Com o desenvolver da Idade das Luzes, a perspectiva de estudo e
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Com o desenvolver da Idade das Luzes, a perspectiva de estudo e
ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO RIO GRANDE DO SUL CURSO DE PREPARAÇÃO À MAGISTRATURA GUSTAVO ANDRÉ OLSSON APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E O REFLEXO DESTA SOBRE A AUTONOMIA DO DIREITO Monografia realizada em atendimento a requisito para obtenção do grau em cumprimento ao III nível do Curso de Preparação à Magistratura, sob a orientação do Professor Mestre Plínio Saraiva Melgaré. Porto Alegre Abril - 2008 GUSTAVO ANDRÉ OLSSON APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E O REFLEXO DESTA SOBRE A AUTONOMIA DO DIREITO Monografia do Curso de Preparação à Magistratura Para obtenção de grau no 3° Nível do Curso de Preparação à Magistratura Escola Superior da Magistratura - AJURIS Direito e Economia Orientador: Plínio Saraiva Melgaré Porto Alegre 2008 GUSTAVO ANDRÉ OLSSON APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E O REFLEXO DESTA SOBRE A AUTONOMIA DO DIREITO Monografia do Curso de Preparação à Magistratura Para obtenção de grau no 3° Nível do Curso de Preparação à Magistratura Escola Superior da Magistratura - AJURIS Direito e Economia Data da aprovação: ____________________________. ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ RESUMO Este trabalho apresenta uma exposição panorâmica sobre os conceitos, significados e objetivos da Análise Econômica do Direito. Aborda a opinião da doutrina norte americana e a maneira pela qual tais idéias são traduzidas pela doutrina brasileira especializada. Ao mesmo tempo em que o assunto é exposto, são discutidas algumas críticas que pairam sobre a aplicação e compatibilidade daquela forma de pensar com o Sistema Jurídico brasileiro, tais como a noção de eficiência, os problemas informacionais e o delineamento que as funções do Direito e a evolução humana trazem à aplicação da juridicidade. A verificação da compatibilidade das ideais é indispensável atualmente, uma vez que a aplicação do Direito no Brasil se dá por intermédio de uma mecânica diferenciada em relação ao sistema jurídico dos Estados Unidos da América. Como pano de fundo, o trabalho analisa os efeitos que a Análise Econômica do Direito acarreta na autonomia da Ciência Jurídica e sua evolução, assim como a relação dessa com a Ciência Econômica. Palavras-chave: Análise Econômica do Direito – doutrina norte-americana – doutrina brasileira – críticas – compatibilidade – sistema jurídico – autonomia – direito – ciência jurídica ABSTRACT This study intends to present a panoramic exposition of concepts, meanings and objectives of Economic Analysis of Law. It involves itself with the mainstream of North American doctrine on the subject and the way such lines of thought are translated by Brazilian specialized doctrine. Alongside the exposition of the subject matter there are to be discussed some criticisms on the application and compatibility of that line of thought to the Brazilian juridical system, as the issues of the efficiency notion, the informational problems, and the impacts that law roles and human evolution bring about application of law or law-abidingness. Nowadays, it is essential to drew a comparison between these both lines of thought because the application of law in Brazil and in the United States of America are headed by different logics in their juridical systems. In the background, the study also analyses the way Economic Analysis of Law theories effects into the issues of scientific autonomy of Juridical Science and its evolution, as well its relations to Economical Science. Keywords: Economic Analysis of Law - North American doctrine - Brazilian doctrine criticisms - compatibility - juridical system - autonomy - Law - Juridical Science Agradecimentos Agradeço ao meu glorioso Professor Plínio Melgaré... pelo incomparável suporte... pelas lições valiosas... como orientador do trabalho... como professor da Escola da Magistratura... e, agora, como um grande amigo... Agradeço ao apoio eternamente incondicional daqueles que fazem parte da minha família (ainda que não biológica, como os amigos e meu colega-sócio de advocacia, Alexandre)... Agradeço a todos aqueles que dedicam parte de suas vidas estudando e tentando compreender melhor as mais diversas facetas de nossa sociedade... curiosos pesquisadores... Agradeço ao Deus que me acolheu... além dos motivos por ele já conhecidos, por ter feito este mundo tão complexo... e interessante de se viver... “Quando enxergou Alice, o Gato se limitou a dar um largo sorriso. Ele parecia ter um bom caráter, pensou ela: também tinha garras muito cumpridas e muitos dentes avantajados; assim, ela sentiu que o gato deveria ser tratado com respeito. - ‘Gatinho de Cheshire’, começou ela de forma bem tímida, uma vez que não tinha certeza se ele gostaria de receber esse tratamento: no entanto, o gato apenas alargou um pouco mais o seu sorriso. ‘Parece que até agora só ficou mais contente’, pensou Alice, e continuou. ‘Poderia me indicar, por favor, o caminho que devo pegar para sair daqui?’ - ‘Depende muito do lugar para o qual você gostaria de ir’, respondeu o Gato. - ‘Eu não me importo muito para onde...’, disse Alice. - ‘Então não importa muito qual o caminho que você seguir’, disse o Gato. - ‘... desde que eu chegue em algum lugar’, complementou Alice. - ‘Ah, certamente chegará em algum lugar’, disse o Gato, ‘basta você caminhar o suficiente’.” (tradução livre de parte do Capítulo VI da obra Alice’s Adventures in Wonderland, de Lewis Carrol) SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................ 09 1 APANHADO DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO NA DOUTRINA INTERNACIONAL........................................................................... 14 1.1 RICHARD POSNER…………………………………………………...………… 18 1.2 STEVEN SHAVELL............................................................................................... 24 1.3 ROBERT COOTER E THOMAS ULEN……………………………………...…. 26 2 APANHADO SOBRE A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO NO BRASIL E DISCUSSÕES ACERCA DE SUA APLICABILIDADE................... 32 2.1 ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO................................................................................ 32 2.2 RELAÇÃO DIREITO TRIBUTÁRIO, CONTRATOS E ECONOMIA................ 41 2.3 PROPRIEDADE E SUA ANÁLISE ECONÔMICA.............................................. 46 2.4 CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA, RESPONSABILIDADE CIVIL E ECONOMIA............................................................................................................. 53 2.5 DIREITO E ECONOMIA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMAS DE CRISTIANO CARVALHO........................................................... 57 3 APANHADO DE PROBLEMAS E CRÍTICAS SOBRE A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO................................................................................... 69 3.1 UMA CRÍTICA DE RONALD DWORKIN............................................................ 69 3.2 QUESTIONAMENTOS SOBRE POSTULADOS DA ECONOMIA.....................77 3.3 DAS FUNÇÕES DO DIREITO.............................................................................. 90 3.3.1 Do Funcionalismo Sociológico............................................................................ 90 3.3.2 Do Funcionalismo Jurídico ao Jurisprudencialismo........................................ 98 3.4 PAPEL DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO..........................................104 CONCLUSÃO............................................................................................................. 112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 117 9 INTRODUÇÃO A presente pesquisa intenta compilar um apanhado de idéias a respeito dos problemas e de críticas doutrinárias relacionadas com a Análise Econômica do Direito. A Análise Econômica do Direito tem sido constantemente reconhecida por uma abordagem realista e vantajosa em relação a assuntos jurídicos, tanto no Brasil, como no estrangeiro. No entanto, algumas questões dentre os pontos indicados como vantajosos não foram submetidos de forma insistente a juízos críticos, sobretudo no que tange à compatibilidade com o Sistema Jurídico brasileiro, de mecânica distinta daquele no qual a “teoria” gestou. Os questionamentos desses pontos geram um resultado duplo: demonstram a existência de inconvenientes graves e reforçam as benesses do emprego da Law & Economics (o que o texto sequer poderia ter a pretensão de negar). Outra motivação para o trabalho consiste no fato de as críticas estarem apresentando um pequeno impacto prático: a Análise Econômica do Direito vem se reforçando e ganhando espaço na aplicação do Direito. É uma realidade que praticamente desconsidera as críticas (que também não se avolumam). Muitas das discussões da vida, se não a grande parte, são consideradas pelo viés econômico. Assim, a pesquisa transita em torno da circunstância de que, na aplicação contemporânea do Direito, encontra-se o emprego de uma forma diferenciada de pensar: analisam-se os fatos por intermédio de seu viés econômico, a partir das conseqüências econômicas das decisões jurídicas. De forma mais corriqueira, embora não tenha ligação direta com nenhuma linha político-ideológica (pelo menos esse é o discurso prevalente), tal pensamento seria resumido num raciocínio economicista conhecido como “custo-benefício”, já empregado na vida prática do ser humano. Busca-se verificar qual dentre as alternativas possíveis oferece o menor custo monetário para o maior número de vantagens (“eficiência”, maximização da riqueza). Essa é uma noção básica, instrumentalizadora de uma análise econômica. 10 A abordagem Direito e Economia busca uma conexão íntima com a realidade, ao adotar como pressuposto a dependência que a geração de riqueza detém na atualidade das negociações e trocas existentes no mercado, o qual, por sua vez, é regulado por normas legais e apresenta forte ligação com a atuação do Poder Judiciário (e poder político), ao intervir na solução dos conflitos. Assim, a qualidade legislativa e a compreensão dos fenômenos econômicos pelos juízes modifica a mecânica de criação de riquezas nos mercados. Por isso, há o interesse em interpretar/direcionar a legislação e orientar a atuação dos operadores jurídicos no sentido de tornar o sistema legal um meio de garantir o bom funcionamento do mercado e o desenvolvimento das sociedades, deixando sua lógica semelhante àquela prevalentemente adotada na solução dos problemas na vida social. As correntes de pensamento estrangeiras pretendem a análise das conseqüências das decisões jurídicas e uma aplicação do Direito com maior eficiência no mundo globalizado. É uma tentativa de compreender melhor os reflexos da globalização e permitir o ingresso da lógica econômica – que rege o mercado – no Direito, como estratégia para não deixá-lo alheio à realidade. Enquanto este reconhecer a lógica “regente da vida em sociedade”, se manteria ou estaria bem instrumentalizado para solucionar as questões modernas, mais adaptado para compreender e controlar as ações dos agentes, sempre econômicos. A questão, contudo, e é o que traz relevância ao trabalho, está em saber qual o reflexo desse pensamento, ainda incipiente no Brasil, na doutrina e na sociedade. Estudar os reflexos sociais de uma linha de concretização do Direito que, na aparência, olvidaria outros caracteres que circundam o fenômeno da juridicidade e da normatividade, como a ética, a religião, por exemplo. O nascimento das discussões que atualmente se travam a respeito da Law & Economics advêm especialmente desde a obra The Nature of the Firm, de 1937, de Ronald H. Coase, embora tenha se encorpado após The Problem of Social Cost, em 1960, do mesmo autor. Àquele momento, reconheceu-se que as atividades e a organização dos agentes atuantes no mercado são influenciados pelos custos de transação. Logo, uma análise econômica poderia ser útil na determinação (e planejamento) das formas organizacionais e das instituições existentes na sociedade. 11 Os debates foram ampliados com diversos outros estudiosos, como Aaron Director, Armen Alchian, Harold Demsetz, Guido Calabresi, Trimarcchi, Douglas North, Oliver Williamson, Gary Becker, Henry Manne, Richard Posner, George Stigler, Steven Medema, Roobert Cooter, Thomas Ulen, assim como dividiu-se o tema em correntes de pensamento. A divisão propriamente dita, assim como as diferenças estruturais entre as escolas teóricas não apresentam relevância para este trabalho, que se preocupa especialmente com a corrente genérica do Direito e Economia. Em razão de parte do objetivo deste trabalho ser a compreensão do significado da Análise Econômica do Direito, selecionou-se estudiosos estrangeiros que freqüentam academias diferentes, adotando-se, por exemplo, Richard Posner (Escola de Chicago), Robert Cooter (Berkeley), Thomas Ulen (Illinois), Oliver Williamson (Berkeley – Economia dos Custos de Transação) e Steven Shavell (Harvard), na intenção de apresentar idéias mais amplas e diversificadas sobre o fenômeno. Evidentemente, há outros pesquisadores alienígenas de elevada importância, como Ronald Coase, não trazido diretamente no trabalho, porque também classificado como membro da Escola de Chicago, e, principalmente, porque, como precursor, acabou sendo diretamente considerado pelos demais. Exemplo manifesto disso é a idéia de custos de transação, assunto originariamente desenvolvido por Coase e, posteriormente, discutido praticamente pela unanimidade dos pesquisadores. Sob o ponto de vista da doutrina nacional, os pesquisadores fazem interessantes desenvolvimentos e traduções dos conteúdos básicos apreendidos de tais autores. Evidentemente, também há casos de mera reprodução das lições. A noção que este trabalho pretende assumir do material selecionado e pesquisado consiste, inicialmente, num verdadeiro panorama da Análise Econômica do Direito. Perquirir sobre seu significado teórico e suas formas de aplicação prática, buscando sempre vislumbrar as conseqüências que tal abordagem da juridicidade acarreta no meio social. Em outras palavras, pretende-se verificar se a concretização do Direito a partir dessa racionalidade é capaz de solucionar os conflitos sociais ou, tão-somente, equaciona problemas de administração, de política e de administração judiciária. 12 Pergunta-se se o elemento gerador do conflito é alcançado por essa forma de pensar e aplicar o Direito ou apenas se soluciona uma lide formalmente, já que nem todos os conflitos são econômicos. Há interesse em se perguntar igualmente sobre a viabilidade da aplicação de uma análise econômica do Direito em nosso sistema, e, sendo possível, a possibilidade de sua aplicação “isolada” ou quais os requisitos para uma boa concretização do ideário. A doutrina também busca compreender o fenômeno da Análise Econômica do Direito como uma teoria com um foco muito mais amplo, afastando-se do ponto de vista dos problemas meramente individuais, uma vez que seria logicamente factível que em uma economia globalizada as conseqüências das decisões jurídicas tragam interferências em uma gama complexa de relações. Essa forma diferenciada de pensar poderia trazer a segurança, a previsibilidade e outras vantagens necessárias para o bom funcionamento do mercado e da vida moderna. Entretanto, normalmente não se pergunta pelos limites possíveis para o afastamento. A utilização de instrumentos econômicos na aplicação do Direito, em que pese a idéia de manter a juridicidade fixada na realidade prática, perpassa inexoravelmente pela discussão do papel que o Direito possui em nossa sociedade. Assim como a Economia, a normatividade jurídica é um fruto social e por ela é guiada. E, na proporção que a vida social é profundamente influenciada pela Economia e existe essa tentativa de trazer a Economia para “dentro” do Direito, é indispensável discutir se não haveria uma ingerência indevida do “mercado” na “juridicidade estatal”. Em princípio, o Direito também se preocupa com outros fatores sociais, além dos econômicos, e, quando se pretende transplantar as suas córneas para enxergar as coisas com o colorido econômico, poderia existir uma indevida manipulação. Portanto, as discussões gravitam evidentemente a autonomia da Ciência Jurídica e sua produção, Direito. A importância de se discutir a autonomia do Direito é patente: é a garantia outorgada ao Sistema Jurídico para que não ceda às expectativas dos demais sistemas, como a moral, a religião, a economia. É, em última análise, a garantia de perpetuidade 13 das conquistas humanas realizadas, não suprimíveis ou alteráveis, sob pena de violar a noção de Direito e de dignidade do homem. É, também, garantia de separação da política. Em relação aos aspectos metodológicos da pesquisa, o assunto será abordado principalmente pelo método dialético. No caso, será buscada uma análise do discurso empregado para legitimar a concretização das normas jurídicas pelo viés economicista e o reflexo de sua aplicação na sociedade brasileira para verificar se há correlação entre os meios discursivos empregados e os fins práticos atingidos, assim como o reflexo causado no âmbito da juridicidade. O procedimento é eminentemente funcionalista, pretende verificar se a aplicação da Análise Econômica do Direito não atrapalha as principais funções do Direito, como a de pacificar a sociedade. Em outras palavras, se a abordagem proposta não interfere nas clássicas funções do Direito, além de questionar se alcança os seus próprios objetivos. Assim, eminentemente bibliográfica e documental, a pesquisa procura amparo em escritos nacionais e estrangeiros sobre o tema, intentando estabelecer o máximo possível de fidelidade em relação ao conteúdo da abordagem compreendida como Análise Econômica do Direito. O método interpretativo pretende ser o dedutivo e comparativo, segundo os quais, inicialmente pretende-se compreender as noções gerais dos ensinamentos doutrinários e, posteriormente, buscar as conseqüências e dificuldades de sua aplicação prática no Brasil. Contudo, por vezes, realizar-se-á a análise de um elemento prático trazido pela doutrina, levando-o para a generalidade das teorias jurídicas e econômicas. Método indutivo, portanto. 14 1. APANHADO DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO NA DOUTRINA INTERNACIONAL Com o desenvolver da Idade das Luzes, a perspectiva de estudo e de análise do Direito se modificou. A razão humana seria capaz de criar e de explicar a totalidade das coisas. Assim, se tornara possível a perspectiva de verdadeiramente se projetar e de se construir racionalmente um mundo, no sentido mais amplo ao qual essa expressão pode ser levada. Ao Direito, se outorgou a pretensão de objetividade: suas emanações viriam de forma completa e exclusiva das leis, que deveriam ser aplicadas pelo jurista de forma puramente dedutiva. Posteriormente, no âmbito do jurídico-filosófico, houve o reconhecimento de que o normativismo jurídico, cuja pretensão era de ser um sistema “puro”, alheio às interferências externas, não poderia prosperar. A autonomia objetiva das normas prévias, que seriam aplicadas por intermédio do raciocínio dedutivo, não foi capaz de solucionar os problemas ocorridos na sociedade: estes insistiam em não se adequar às previsões normativas prévias e abstratas, de forma que o direito acabava por permanecer alheio à parcela dos problemas sociais, políticos, econômicos, além de desconsiderar a própria evolução humana. Ademais, historicamente, se sobressaíram grandes arbitrariedades tomadas em nome da aplicação da lei (como o nazismo ou fascismo), transparecendo a inadequação do Direito à vida social. (...) as normas e as leis costumam ser eficazes quando encontram na realidade por elas regulada as condições sociais, econômicas, políticas, culturais, ideológicas e até mesmo antropológicas para seu enforcement, para seu reconhecimento, para sua aceitação e para seu cumprimento por parte de seus destinatários.1 A disjunção entre a realidade e o sistema jurídico aflorou com incontestável claridade a circunstância de que “inexiste pureza no direito”2. O descontentamento em relação ao Direito nada mais indicava que aquele verdadeiramente não estava de acordo 1 2 FARIA, José E. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 124. CALMON DE PASSOS, Joaquim J. Democracia, Participação e Processo. Revista Ciência Jurídica, Salvador, ano I, n.° 6, p. 13-24, jun. de 1987, p. 13. 15 com a realidade social para a qual deveria estar direcionado; precisava, pois, de adaptações, haja vista que nem mesmo os expedientes das lacunas e das cláusulas gerais eram suficientes: o sistema se direcionava para uma hermeticidade, ocorrendo um isolamento da normatividade em relação à realidade social. As adaptações consistiam em trazer para dentro do sistema jurídico os valores e a “realidade” existente em seu entorno, a qual pretende regular eficientemente. Isso não significa uma novidade histórica, porque, com os grandes acontecimentos históricos da humanidade, ao longo de seu desenvolvimento, as normas jurídicas foram sempre sendo adaptadas, no intuito de melhorar sua aplicabilidade-efetividade. Entretanto, nesse momento histórico (especialmente no século XX, embora as idéias funcionalistas já estivessem presentes nos meados do século XIX), passa-se a questionar qual a direção que o sistema jurídico detém3. As normas jurídicas, sob o ponto de vista estatal, provêm do Poder Legislativo, como resultado de embates políticos realizados por representantes eleitos para a função. O poder político, a meu sentir, é conseqüência da escassez dos bens disponíveis para satisfação das necessidades experimentadas pelos homens, somada à interdependência que a apropriação e produção dos bens necessários à satisfação dessas necessidades acarreta.4 As escolhas são efetuadas pelos representantes dos interesses da maioria, o que é fundamental para garantir a legitimidade das decisões políticas. E, “o instrumento de que se vale o poder político para assegurar a efetividade do modelo adotado é o direito”5. Este, por sua vez, garante a força das decisões da maioria, porquanto escorado e amparado pelo poderio do Estado. A partir do completo esclarecimento de que o sistema jurídico também seria um meio para direcionar a sociedade (porque bastava nele incluir normas referentes às intenções-decisões políticas, aos fins econômicos imaginados-pretendidos), forçando modificações na realidade sensível, perscrutou-se sobre dois novos problemas: para 3 4 5 Sobre o desenvolver dos modelos de juridicidade, ver: MELGARÉ, Plínio Saraiva. Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Stvdia Ivridica, n.º 69. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2003. CALMON DE PASSOS, Joaquim José. Democracia, Participação e Processo. Revista Ciência Jurídica, Salvador, ano I, n.° 6, p. 13-24, jun. de 1987, p.14. Idem, p.15. 16 onde o Direito deveria levar o corpo social e se o estabelecimento de uma direção para a sociedade também seria uma verdadeira função da juridicidade. Em suma, qual desses valores deveriam prevalecer e se o Direito (e a Ciência Jurídica) não deveria subsistir com uma autonomia científica, se é que existia. O movimento que se formou foi classificado posteriormente como “funcionalista”, já que as normas jurídicas passam a ser um instrumento finalístico, transformando o Direito “em um meio para alcançar determinados e específicos objetivos”6. Assim, o Direito é formado por fins que não estariam dentro do próprio sistema, mas que passam a condicioná-lo e em relação aos quais deve se submeter: “o mundo jurídico é compreendido como uma estratégia político-social, teleologicamente programada”7. O Direito como “ingenieria social”, de Roscoe Pound8. Para Castanheira Neves, a mudança que fez o homem enxergar o mundo por intermédio de sua razão, também provocou uma modificação no comportamento humano, agora desvinculado do bem, do justo, do válido; ligado ao útil, ao eficiente e ao desempenho. O homem deixou de ser contemplativo, oportunidade em que desejava a verdade e o conhecimento teórico para alcançar sua plena realização e felicidade, passando a ser um agente criador de sua própria ciência e do progresso. “Um homem, pois, senhor de seu destino”9. Igualmente em relação a qualquer outro objeto possível e existente na sociedade, o Direito também poderia ser construído para alcançar uma finalidade. O sistema jurídico é conscientemente transmudado em um instrumento. A relevância de tal transformação foi encontrada por Castanheira Neves ao verificar que a instrumentalização do jurídico terminou ingerindo na própria autonomia do Direito como ciência. Entrementes, politicamente foi instalado o sistema do bem-estar social, wellfare state, aquele que seria capaz de levar a sociedade a atingir seus fins últimos. Contudo, 6 7 8 9 MELGARÉ, Plínio Saraiva. A Autonomia do Direito: apontamentos acerca do funcionalismo jurídico. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 27, n. 85, p. 337-49, mar. 2002, p. 338. Idem, ibidem. POUND, Roscoe. Las Grandes Tendencias Del Pensamiento Jurídico. Barcelon: Ediciones Ariel, 1950, p. 187 e seguintes. CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito Hoje e com Que Sentido? Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 35. 17 ocorreu um imprevisto: a sociedade não possui um pleno consenso sobre os meios capazes de atingir os fins (isso considerando que estes são conhecidos e que também inexiste divergência a respeito de qual priorizar). Assim, descobriu-se que, embora o Direito deva estar fortemente conectado à realidade, “o resultado dessa estratégia acaba sendo um círculo crescentemente vicioso e paradoxal:”10 Quanto mais procura disciplinar e regular todos os espaços, dimensões e temporalidade do sistema sócio-econômico, menos o Estado intervencionista parece ser capaz de mobilizar coerentemente os instrumentos normativos de que formalmente dispõe; quanto mais normas edita para dirimir conflitos, mais os multiplica, na medida em que a linguagem pretensamente unívoca e unitária de seus textos legais se torna prolixa, ambígua, declamatória e programática; quanto mais expande a legislação, mais a liberdade jurídica acaba acarretando menos liberdade (concebida esta como o âmbito do que não é limitado pelo direito, ou seja, do permitido); quanto mais seus dirigentes e seus legisladores ampliam o número de leis, códigos, decretos, portarias, resoluções, instruções e textos legais, mais, em suma, acabam acelerando o esvaziamento da própria funcionalidade do direito. A ponto de o sistema jurídico, assim desfigurado, já não conseguir diferenciar-se do próprio sistema político.11 E, dentro dessa realidade funcionalista, sumariamente exposta até o momento, cientificamente despontaram diversas correntes de pensamentos. Porém, dentre os modelos funcionalistas, pela extensão que este trabalho pretende assumir, pertinente é, tão-somente, o funcionalismo social em sua matriz econômica, representado de forma expressiva pelo movimento da Análise Econômica do Direito (Law and Economics)12. O sistema jurídico passa a ser submetido a uma idéia de otimização dos 10 11 12 FARIA, José E. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 128. Idem, ibidem. “A história do desenvolvimento da Análise Econômica do Direito é usualmente contada sob a perspectiva de uma sensível separação entre um primeiro período de pesquisas, compreendido entre 1940 e 1950, e a fase instaurada a partir de 1960, que veio hoje a refletir o núcleo central de trabalho da Escola da Law and Economics. Ressalta-se que a ‘velha’ Escola centrava seus estudos em campos do Direito eminentemente ligados à economia, tais como o Direito Antitruste, o Direito Comercial, o Direito da Regulação e o Direito Tributário, mas que em 1960, uma ‘nova’ Escola rompe com essa tradição, ao utilizar a análise econômica para explicar e criticar regras legais que não tão obviamente comportavam uma dimensão econômica, como, por exemplo, as regras contratuais, regras de responsabilidade civil, e, até mesmo, regras de Direito Penal e Processual. Essa separação entre a ‘velha’ e a ‘nova’ Escola, entretanto, não deve ser entendida como uma ruptura, mas sim como um desencadeamento lógico da primeira em direção à segunda, como se demonstrará”. COELHO, Cristiane de Oliveira. A Análise Econômica do Direito enquanto Ciência: uma explicação de seu êxito sob a perspectiva da História do Pensamento Econômico. Berkeley Program in Law & Economics. Latin American and Caribbean Law and Economics Association (ALACDE) Annual Papers (paper 050107-10). Disponível em: <http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/050107-10/>. Acesso: 13 out. de 2007. 18 resultados (medido pelo raciocínio custo-benefício, eficiência), “e não em axiológicas valorações da ‘Justiça’”13. É pensado pelo critério da maximização da riqueza: mecanismo que, mediante a redução dos custos operacionais, busca facilitar as transações e elevar a riqueza total da sociedade. Há, portanto, um pressuposto necessário para tal viés analítico: a existência de um mercado econômico. Como conseqüência, a realidade novamente não pode ser esquecida pelo Direito, “sob pena de prejuízos à organização e ao funcionamento da própria sociedade – que, pelo menos desde o século XVII, organiza-se sob esta forma (ou ‘modo’) de produção e de consumo”14. Desse modo, o mercado como hoje o conhecemos, portanto, existe como fato social e não como construção jurídica. Trata-se de uma instituição social das mais relevantes, porque é resultado de um longo e complexo espontâneo processo de divisão do trabalho social, do qual resultou a sociedade atual: diversificada e heterogênea, como lembrava Durkheim. Em síntese, ninguém é mais auto-suficiente; todos precisam trocar bens e serviços.15 1.1 RICHARD POSNER16 Dentre os estudiosos dessa corrente de pensamento, está Richard Posner, um dos mais conhecidos doutrinadores, em especial pelo seu reconhecimento como juiz da United States Seventh Circuit Court of Appeals e pela característica didática de uma de suas obras, a “Economic Analysis of Law”, publicada inicialmente em 1973. Afirma o autor que, atualmente, a Economia é concebida, assim como a obra desta, como a ciência da escolha racional em um mundo no qual os recursos são limitados em relação aos desejos humanos17. O homem, em sua vida, é um maximizador 13 14 15 16 17 CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito Hoje e com Que Sentido?. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 45. MACHADO, Rafael Bicca; TIMM, Luciano Benetti. Direito, Mercado e Função Social. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 33, n. 103, p. 197-209, set. de 2006, p. 199. Idem, ibidem As divisões aqui propostas não são estanques, de forma que foram realizadas por um critério de preponderância em relação aos argumentos dos autores indicados. Assim, nas demais subdivisões também são encontrados outros argumentos de Richard Posner, por exemplo. POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007, p. 03. 19 racional de seus fins, porque possui desejos infinitos e meios limitados para alcançá-los. Entretanto, alerta Posner, dizer que o homem realiza escolhas racionais não se confunde com cálculos conscientes, mas com respostas a incentivos: se o meio em que a pessoa está é alterável de forma que possa elevar o nível de satisfação daquela, a pessoa o modificará18. Aduz que a racionalidade sob a ótica dos economistas é considerada eminentemente pelo viés objetivo (embora também não se desconsidere o subjetivo), de forma que não seria equivocado falar em uma rã racional. Explica que a racionalidade é vista mais como a habilidade de utilizar a razão como um instrumento para se manter vivo, o que inclui decisões intuitivas19. Em outras palavras, “Economia não é uma teoria sobre consciência. O comportamento é racional quando está em conformidade com o modelo da escolha racional, independentemente do estado de consciência daquele que escolhe”20. De fato, a aproximação entre o Direito e a Economia consistiria em instrumentalizar aquele com ferramentas há muito utilizadas por esta, quando busca explicar o desenvolvimento da riqueza e parte do comportamento humano. A idéia seria deixar os aplicadores do Direito conscientes do funcionamento da lei da demanda e da oferta, do conceito de custo (de transação)21, da “eficiência”, do valor das trocas, do mecanismo de elevação dos preços (da microeconomia, em geral), permitindo um conhecimento e uma percepção diferenciados das situações práticas, talvez até mais consentâneos com a nossa realidade, ligada inexoravelmente ao mundo econômico. 18 19 20 21 Idem, p. 04. Assim consta no original: “But the contradiction is lessened when one understands that the concept of rationality used by the economist is objective rather than subjective, so that it would not be a solecism to speak of a rational frog. Rationality means little more to an economist than a disposition of choose, consciously or unconsciously, an apt means to whatever ends the chooser happens to have selected, consciously or unconsciously. In other words, rationality is the ability and inclination to use instrumental reasoning to get on in life. It does not assume consciousness (rational decisions are often intuitive).” POSNER, op. cit., p. 15. Tradução livre de: “Economics is not a theory about consciousness. Behavior is rational when it conforms to the model of rational choice, whatever the state of mind of the chooser”. Ademais, assim prossegue o autor: “(Does this mean that animals are rational?) Nor is perfect rationality assumed; rational-choice, theory allows us to assume that rationality is ‘bounded’ because of human cognitive limitations, although another way to think of those limitations is as costs of absorbing and using information.” POSNER, op. cit., p. 03. “Pueden considerarse tales: el costo de tomar la iniciativa de negociar con otro, el de identificar a todas las partes involucradas en el conflicto, el de comunicarse con ellos, el que resulte de la negociación, el de la obtención de información sobre precios y calidad; la información legal; el control del comportamiento de los contratantes.” LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoría de la Decisión Judicial: fundamentos de derecho. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 234. 20 O pressuposto é de que a racionalidade humana busca maximizar a utilidade das coisas em todas as áreas de sua vida, não somente na econômica, o que não é esquecido pela teoria econômica, cuja preocupação sempre recaiu sobre o fenômeno. O homem responde aos incentivos: “se as circunstâncias que cercam uma pessoa se modificam de modo que, pela mudança de seu próprio comportamento, é possível elevar a satisfação encontrada, ela então irá modificar seu comportamento”22. Nesse sentido, com algumas adaptações do raciocínio, o sistema normativo pode ser um incentivador ou intimidador de condutas sociais: previamente se imagina a conduta desejável (sopesando-se suas conseqüências) e, por intermédio da legislação, deixa-se evidente qual a atitude pretendida23. A consideração dessa realidade econômica pelo aplicador do Direito seria viável na medida em que colabora para a redução de tudo que pode ser interpretado como “custo” (mesmo não econômico), para o crescimento da riqueza e, por óbvio, da sociedade, não permitindo que o sistema jurídico se constitua em um entrave para a vida social (e seu desenvolvimento), importantemente econômica24. Haveria, então, a vantagem de, com a possibilidade de previsão do comportamento das pessoas, o Direito ser um meio mais eficaz para a produção da riqueza e do bem-estar social, porque previamente poderia estabelecer regras em conformidade com as expectativas de comportamento (mantendo a prevalência daquelas maximizadoras da riqueza). 22 23 24 Do original: “that if a person’s surroundings change in such a way that he could increase his satisfactions by altering his behaviour, he will do so.” POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007, p. 04. “Although the evidence that our cognitive limitations inhibit our ability to make rational choice is compelling and requires adjustments in the conventional economic choice is compelling and requires adjustments in the conventional economic analysis of law, there are two reasons to temper enthusiasm for ‘behavioral law and economics.’ The first is that it leaves out self-selection. Most people are bad at dealing with low probabilities, but insurance actuaries are not a random draw from the population; they are self-selected from the subset of people that are good at dealing with low probabilities. Second, cognitive limitations affect judges, legislators, and other government actors as well as private individuals – and maybe more so, because they do not have as much at stake, since they are not as subject to the normal economic incentives and constraints. That limits the policy implications of behavioral law and economics.” POSNER, op. cit., p. 18. “Mas de que maneiras as relações sociais estão subordinadas à economia de mercado? É precisamente o mercado que propicia a socialização entre pessoas que antes não estavam impelidas à interação. É precisamente esta a particularidade da nossa época, ter no mercado o espaço de socialização entre estranhos em sociedades que se tornaram mais complexas através da mobilidade social.” SANTOS, Hermílio. Elementos para uma análise do estado contemporâneo: em torno das políticas públicas. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 25. 21 Entretanto, a consideração da realidade econômica apresenta utilidade mais ampla, porque a racionalidade econômica permite ainda uma sagaz crítica à finalidade de determinada legislação já posta em vigor. Uma análise da legislação permite, igualmente, a verificação de se a finalidade buscada pela lei será atingida em relação ao comportamento das pessoas, uma vez que, na prática, o comportamento esperado pode ser distorcido plenamente25. Em relação ao tema, Posner cita um exemplo sobre a proibição estabelecida para as faculdades não divulgarem dados de alunos sem a prévia autorização destes: um aluno que tenha bons conceitos tenderá a conceder a autorização, porque será um diferencial em relação a outros eventuais concorrentes, enquanto que o aluno com conceitos próximo à média, ou abaixo dela, tenderá a negar a informação. O problema é que a legislação serviria para proteger a privacidade, enquanto, na prática, racionalmente, quando um aluno negar a autorização, é razoável pensar que suas notas não são excepcionais (ou, até mesmo, são ruins)26, retirando toda e qualquer utilidade da intentada proteção. Há, outrossim, uma circunstância de extremo destaque: Posner é um homem atuante no sistema jurídico da Common Law, com uma cultura (política-jurídicaeconômica) diferenciada daquela vigente na América Latina. Nesse contexto, o pensador trabalha com uma lógica e supostos razoavelmente divergentes em relação ao modelo jurídico adotado no Brasil. A pertinência dessa observação está em que, por força do sistema cultural vigente nos Estados Unidos da América, [...] ele argumentou que a meta implícita do direito consuetudinário (comum) era a promoção de uma alocação eficiente de recursos. As doutrinas, recursos e procedimentos do direito consuetudinário têm como sentido a compatibilidade na busca da eficiência27. De qualquer forma, não se pode desconsiderar o sentido que uma análise do Direito sob a perspectiva econômica atribui a muitos institutos vigentes na legislação, como a responsabilidade civil (que adota formas diferenciadas dependendo da relação material existente), a arras, o contrato de garantia, o de seguro, etc. Todos são pensados mediante a análise do comportamento econômico dos sujeitos. 25 26 27 Sobre o impacto da juridicidade sobre a economia, consultar, entre outros: ARIDA, Pérsio. A Pesquisa em Direito e em Economia: (...). In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: (...). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 60-73. Exemplo tratado em: POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007, p. 19-20. STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. São Paulo: Makron Books, 1993, p. 4. 22 No concernente aos contratos, Posner afirma que, em regra, possuem forte natureza econômica: movimentam e geram riquezas, fixando, obrigatoriamente, parte da Economia dentro do Direito. As cláusulas contratuais são manejadas como forma de gerar um estímulo ou um desestímulo ao seu cumprimento, ao atingimento das expectativas materiais dos envolvidos. Na linguagem econômica, visam a estabelecer eficiência para a relação28. Assim, um contrato somente não será cumprido pelos interessados se essa atitude for mais eficiente em relação ao resultado esperado pelos contratantes mediante o cumprimento normal (“mais vantajoso para as partes”). Ainda sobre a questão dos contratos (estendido também para a responsabilização civil), pode-se dizer que as cláusulas são estabelecidas exatamente sobre os fatores econômicos das relações (perda-ganho), de forma que buscam estabelecer uma eficiência econômica na relação entre as partes: no mínimo, não permitindo o prejuízo de um em relação ao outro (ou à situação anterior ao evento danoso). É possível trazer um exemplo, elucidativo em relação à eficiência econômica de um contrato, que considera o instituto aqui conhecido como arras. Perceba-se que um contratante paga parte do valor do contrato visando a demonstrar sua expectativa definitiva em relação a seu cumprimento. Na ponta inversa da relação, a outra parte, para fazer jus à confiança depositada, fica obrigada à devolução do valor pago e o pagamento de igual quantia no caso de descumprimento do avençado. 28 Aqui pode-se pensar no critério de Pareto, segundo o qual, ao menos originariamente, significa que encontra-se a eficiência quando nenhuma das partes fica em uma situação pior daquela que estava antes da relação estudada e pelo menos uma delas recebeu uma melhora por força da relação então estabelecida (Isso significa que o bens tendem a sair do poder de quem menos os valoriza, passando à propriedade daquele que mais os valoriza). O problema da aplicação prática de tal critério consiste na dificuldade de se estabelecer quem ganha ou perde quando há perdas e ganhos múltiplos entre os envolvidos. Evidentemente, por isso, há outros critérios, como o de Kaldor e Hicks (defendido por Posner), segundo o qual as normas devem ser postas de forma que tragam o maior bem-estar possível para o maior número de pessoas. Em razão da dificuldade deste critério em conjugar as duas variáveis, pensa-se em um mecanismo (ao menos potencial) de compensação entre os que são beneficiados em relação aos que são prejudicados. A desvantagem, por sua vez, como indicam Cooter e Ulen, é que cada troca deveria ser realizada com consentimento unânime. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 4.ed. [S.l.]: Person Addison Wesley, 2003. p. 48. Para melhor aprofundamento do assunto, ver, por exemplo: STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. Tradução de Neusa Vitale. São Paulo: Makron Books, 1993; POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007; SZTAJN, Rachel. Law and Economics. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 23 Tal tipo de contratação nada mais significa que as partes detêm um parâmetro de aferição de suas expectativas e da confiança, e, por que não, de avaliação dos riscos de não cumprir o contrato. O desestímulo econômico gera uma maior certeza no cumprimento do contrato (segurança) e uma elevação da consciência de responsabilidade da contratação e, por via reflexa, uma maior eficiência econômica, na medida em que o contrato cumpre efetivamente sua função. Porém, caso a parte tenha outra oferta, poderá avaliar facilmente qual o custo de não cumprir com o primeiro e poderá decidir com tranqüilidade se a nova proposta é mais vantajosa que a segunda (ou seja, se é mais vantajosa considerando a “quebra” do contrato já em vigor, oportunidade na qual poderia receber um valor suficiente para pagar a indenização devida pela quebra do contrato e ainda assim receber uma vantagem: o terceiro adquiriu o que queria, o vendedor recebeu mais valor e o que teve o contrato não cumprido recebeu sua devida e justa indenização)29. O pensamento de Posner, aqui circundado de outros pesquisadores, evidentemente, assume proporções muito mais amplas e significativas além do que fora trazido até o momento30. O importante a destacar é que a visão do Direito pela perspectiva econômica traz ao operador jurídico um número muito elevado de elementos auxiliares para avaliação de um caso concreto e seu julgamento. Permite a ampliação da fundamentação jurídica de um problema para outro patamar mais prático, mais facilmente aferível empiricamente e, sobretudo, que considera a extensão dos efeitos indiretos da sentença, ao extrapolar ao das partes litigantes (afetando a vida econômica de terceiros). Tal raciocínio abarca igualmente circunstâncias inexoráveis no Direito, como a existência de lacunas, os momentos de indeterminação, a contestação jurídica de outras normas jurídicas e a constante alteração dos textos normativos, oportunidades nas quais o operador jurídico pode colmatar os problemas mediante o critério da maximização da ordem econômica, dotando o Direito de uma maior lógica 29 30 Esse exemplo possui relação com a idéia de custos de oportunidade, que: “cuando un individuo elige utilizar un recurso para un objetivo determinado, assume un costo, que es igual al valor de ese recurso si se le da un uso alternative; es el sacrificio de las demás cosas que habríamos podido obtener si no hubiéramos realizado la opción. Expresado de otra manera, son los costos a los que se tiene que renunciar para conseguir algo; una suerte de lucro cesante que se produce al no haber podido utilizar el bien de otra manera más eficiente.” In: LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoría de la Decisión Judicial: fundamentos de derecho. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 235. Inclusive abordando diversos outros assuntos não tratados aqui unicamente em razão da característica monográfica deste trabalho, como direito de família, direito econômico, direito financeiro, discriminação racial e outros. 24 de justificação (diminuindo-se a dificuldade de previsão da resposta jurídica definitiva). Em síntese, pragmatismo, como afirma Arnaldo Sampaio31. Não se pode desconsiderar, por exemplo, a utilidade da aplicação das regras econômicas no Direito Penal, Tributário, Consumeirista, assuntos discutidos com mais profundidade posteriormente, já que estão intimamente vinculados com as tendências humanas da oferta e da procura32. É possível, portanto, mediante o uso de tal tecnologia, aprimorar a aplicação do Direito para melhor atingir os fins buscados. Em suma, permite um melhor planejamento prévio das ações estatais (e das decisões pessoais também) evitando-se o método da tentativa e erro na esfera pública, por exemplo. É inegável, da mesma forma, o estabelecimento de métodos de verificação do desempenho das medidas públicas e da legislação em geral, de incontestável valia para a sociedade. 1.2 STEVEN SHAVELL Embora outros estudiosos também investiguem sobre o assunto, Steven Shavell encontra utilidade para a aplicação das teorias econômicas para explorar a diferenciação entre os meios jurídicos previstos para a responsabilização civil, buscando compreender o meio capaz de atingir o mais elevado bem-estar social. Logo, aplica a teoria econômica para verificar qual a regra de responsabilização civil é a mais apropriada para evitar acidentes, para indenizar as vítimas; enfim, para alcançar o melhor bem-estar social mediante o menor custo social. A resposta não é única, porque dependendo dos custos necessários para evitar os riscos e do montante dos prejuízos causados, as regras apresentam resultados proporcionalmente de maior ou menor vantagem. 31 32 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Economia: introdução ao movimento Law and Economics. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10255>. Acesso: 21 ago. de 2007, p. 8-9. Na prática, percebe-se que a Análise Econômica do Direito “cobre quase todos os campos do direito, preocupando-se com criminalidade, uso de drogas, roubo de obras de arte, exploração do sexo, barrigas de aluguel, direito internacional público, democracia, religião.” GODOY, op. cit., p. 12. 25 Shavell apresenta referência expressa sobre as diferenças entre a analise econômica da responsabilidade civil e a tradicional análise, exclusivamente jurídica. Primeiramente, aduz que “a análise econômica busca compreender os efeitos das regras de responsabilidade”33, buscando as conseqüências práticas de sua aplicação. Esclarece que a finalidade da responsabilização civil, sob a perspectiva econômica é o avanço do bem-estar social, o que perpassa pela “criação de incentivos redutores dos riscos de infortúnios, pela adequada alocação de riscos dos acidentes que ocorrem, pela redução de custos administrativos”34 e pela existência de um regime de seguro que incentive a redução dos riscos (quando, por exemplo, não cobre a integralidade dos danos, evitando que as pessoas relaxem no nível de cuidado, exatamente em razão da cobertura total do seguro). Igualmente, critica o sistema de análise tradicional, porque, ao invés de procurar diminuir os acidentes, se preocupa com a forma e com o valor da indenização (o que pressupõe a ocorrência do evento indesejável), além da circunstância de o sistema de seguro, em tese, arcar com a integralidade dos danos (não havendo uma punição correta ou uma preocupação efetiva em não causar mal a outras pessoas). Em síntese extremada, sob a ótica econômica, o Direito deveria considerar “a distribuição total dos possíveis resultados do comportamento sob investigação”35 e não apenas um resultado, “aquele que ocorreu de fato”36. [...] se perguntarmos se foi razoável negligenciar esse resultado, ele levará em conta a freqüência segundo a qual o acidente pode ocorrer e considerará a magnitude da perda e custo de prevenção da perda. Não é obviamente distributivo, visto que focaliza um tipo de resultado em potencial37. O sistema tradicional busca solucionar a específica situação litigiosa, e de acordo com suas características próprias, o que pode ser modificado na exata proporção da oscilação das circunstâncias. Não cria uma regra “eficiente” para todos os casos 33 34 35 36 37 Tradução livre de: “First, economic analysis focuses on identifying the effects of liability rules;” In: SHAVELL, Steven. Economic Analysis of Law. New York: Foundation Press, 2004, p. 59. No original: “the goal of liability law, under economic analysis, is the advancement of social wellbeing through three channels: fostering incentives to reduce risk, properly allocating risks of accidents that do occur, and reducing administrative costs.” In: SHAVELL, op. cit., p. 59. STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. São Paulo: Makron Books, 1993, p. 137. Idem, ibidem. Idem, ibidem. 26 concretos (até porque não acredita que, na prática, a Economia seria capaz de fazê-lo, sobretudo em razão de existirem diversas teorias sobre a responsabilização civil). De qualquer forma, não se pode olvidar que o uso das teorias econômicas na responsabilidade civil não significa necessariamente a adoção das teorias econômicas pelo Direito; significa que, por sua natureza eminentemente compensatória, as regras de responsabilidade civil previstas na legislação procuram adotar alguns fatores econômicos, como a utilidade marginal decrescente (mas evidentemente pode significar o reconhecimento pelo sistema jurídico de uma regra econômica). 1.3 ROBERT COOTER E THOMAS ULEN Robert Cooter e Thomas Ulen se detêm especialmente sobre os efeitos que a introdução de ferramentas econômicas podem trazer para a aferição dos objetivos legais e do Direito, pensado de forma ampla. A idéia é a de que a Economia concede um suporte para a teoria econômica, permitindo a antevisão dos efeitos de determinada sanção legal sobre o comportamento. Argúem a utilidade da economia em conceder uma precisão ao resultado das pesquisas empíricas sobre o comportamento humano: leva-se, para a prática jurídica, a certeza das teorias matemáticas na aferição do comportamento exercido pelas pessoas38. Para economistas, sanções são como preços, e presumivelmente, as pessoas respondem a elas de forma muito semelhante a como responderiam aos preços. As pessoas respondem aos preços altos com um consumo menor dos bens que estão mais caros, então, presumivelmente, as pessoas respondem às sanções mais pesadas fazendo menos a atividade que é sancionada.39 Nesse sentido, os autores consideram que a Economia acaba por conceder uma garantia para a teoria do comportamento: permite a antevisão de como as pessoas irão agir em contraposição (reação) a determinadas mudanças legais. De fato, o uso das 38 39 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. [S.l.]: Person Addison Wesley, 2003, p. 03. No original: “To economists, sanctions look like prices, and presumably, people respond to these sanctions much as they respond to prices. People respond to higher prices by consuming less of the more expensive good, so presumably people respond to heavier legal sanctions by doing less of sanctioned activity.” COOTER, op. cit., p. 03. 27 teorias sobre a demanda levam a teoria comportamental “além da intuição, da mesma forma que a cientificidade ultrapassa o senso comum”40. Em resumo, a noção consiste em utilizar a Economia (métodos econômicos objetivos e com efetividade inegável) como meio de dimensionar se os objetivos legais e sociais estão sendo alcançados, e encontrar alternativas mais efetivas para atingi-los. Tais perspectivas são consideradas pelos autores como muito hábeis para o estudo do direito criminal, onde haveria um campo muito vasto de experimentação e comprovação das vantagens dos métodos econômicos (porque já exaustivamente testados pelas ciências matemáticas), uma espécie de campo de prova e demonstração de que a Economia muito pode agregar ao Direito. Para Cooter e Ulen, a ocorrência de um crime circundaria dois aspectos práticos: a chance de o criminoso ser pego (descoberto e preso) e a extensão da punição atribuída a determinado ato infracional. Assim, com a migração do raciocínio, quanto menor as chances de ser descoberto e punido, da mesma maneira que, quanto menor a extensão da punição, maior as chances do crime ser praticado. Sob a ótica econômica, o preço a ser pago pelo crime seria baixo (sendo um estímulo para o “consumo”). Logo, ao se buscar descobrir os crimes e prender os agentes (certeza da punição), inclusive com maior reprimenda (reprimenda desestimulante), menores seriam os estímulos para a atuação criminosa, porque o preço seria considerado alto (e os agentes buscariam outra forma de atuação, ou crimes menos ofensivos41). Isso, contudo, não é a integralidade da aplicação da Análise Economia ao Direito Penal. Elencam os autores que há maneira de o Estado realizar uma medição prévia para aferir a eficiência contra as atitudes criminosas. Assim, realizaria atividades capazes de coibir os crimes com o menor dispêndio de dinheiro público possível. Em outras palavras, e de forma mais prática, se existe mais eficiência ou interesse em investir em 40 41 Tradução livre de: “This theory surpasses intuition, just as science surpasses common sense.” In: COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. [S.l.]: Person Addison Wesley, 2003, p. 04. “The rational criminal decreases the seriousness of his offense in order to offset the increase risk he faces from the increase in the punishment schedule.” COOTER, op. cit., p. 460. 28 perseguição ou em estabelecer punições mais severas (e qual punição escolher, dentre as possíveis). Por exemplo, os investimentos são elevados para aparelhar o Estado com instituições apropriadas (policiais, promotores, material de trabalho necessário) para perseguir determinados criminosos, podendo ser mais eficiente a estipulação de altas punições (especialmente as multas42, porque o custo de cobrar uma multa é praticamente fixo – cobrar uma de valor pequeno é semelhante ao de uma de valor grande -, enquanto que o encarceramento seria consideravelmente mais oneroso), retirando do criminoso, inclusive, um excedente em relação ao proveito auferido, ao invés de persegui-los avidamente. Como conseqüência, reconhecem que, sob a ótica do criminoso, o desestímulo de uma alta multa é tão elevado quanto ser perseguido e capturado com facilidade, enquanto para o Estado haveria um gasto muito menor de dinheiro. Ademais, sugerem o uso de políticas de comunidade, onde o cidadão atua de forma ativa e convergente com as instituições repressoras: além de reduzir os gastos do Estado, ainda elevam as chances de dissuadir os criminosos, que passam a se sentir constantemente vigiados43. Evidentemente, os autores enfrentam algumas limitações, como a dificuldade de cobrar as multas de presos desafortunados (sugerindo um trabalho carcerário, de cuja renda será extraído o pagamento parcelado da pena), como a questão do preço do encarceramento ou da custódia de presos em instituições privadas, etc. Especial destaque do uso da teoria econômica aparece em relação ao uso da pena de morte e das políticas anti-drogas, ao demonstrarem os inconvenientes (desvios inesperados) da aplicação da pena capital, assim como de uma política contra as drogas. Por exemplo, descobriu-se uma maior dificuldade dos jurados condenarem pessoas quando têm pleno conhecimento da futura execução do condenado como pena 42 43 A expressa preferência em relação ao uso das multas como forma de punição é discutida especialmente no capítulo décimo segundo da obra. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. [S.l.]: Person Addison Wesley, 2003, p. 498-9. Idem, p. 465-70. 29 para o crime, reduzindo o efeito dissuasório da pena44. No que tange aos tóxicos, constatou-se uma inflação no custo das drogas quando implementada uma política de redução de seu consumo: por um lado, acarretou a redução do consumo entre os não viciados (formam uma demanda elástica, que, exatamente em razão da elevação do preço, atua como desestimulador de compra, afetando igualmente a taxa de criminalidade circundante aos não viciados – ocorrem menos crimes e menos pessoas se tornam viciados); e, por outro lado, um incremento da criminalidade em relação aos viciados, cuja demanda não é elástica em relação aos preços. Isto é, os viciados não têm a escolha de consumir as drogas: precisam delas. Assim, se antes do aumento dos preços já cometiam crimes patrimoniais para “manter” o vício, após a elevação, atuarão de forma quantitativa e qualitativamente mais criminosa. O consumo não é uma opção. Como resultado, uma política efetiva deve considerar igualmente a parte inelástica da demanda de drogas. Nesse contexto, a legalização das drogas poderia ser uma solução viável, permitindo o controle do consumo elástico (erradicando-o) sem esquecer dos viciados, que poderiam ter acesso controlado às drogas e tratamentos (tendendo a reduzir os crimes, já que o preço das drogas teria o controle do Estado) 45. Entretanto, os autores não olvidam o outro lado da interação Economia-Direito, porque orientam a Economia a adotar e a compreender o viés prático que o Direito tem de resolver os problemas, assim como algumas precisões sutis que os operadores jurídicos realizam nos conceitos envolvidos com a aplicação das regras. “Se os economistas aprenderem o que a lei tem para ensinar-lhes, poderão levar seus modelos de forma mais próxima à realidade”46, tornando-os mais úteis e precisos. Por intermédio dessas análises trazidas, percebe-se que as análises econômicas podem assumir duas formas de abordagens, uma descritiva e uma normativa47. A primeira, busca a “aplicação de conceitos e métodos não-jurídicos no sentido de entender a função do Direito e das instituições jurídicas, tais como: a aplicação da 44 45 46 “If so, then the following paradoxical behaviour may result: greater use of execution as the punishment for certain homicides might lead to fewer convictions. This would reduce the deterrent effect of both capital punishment and of convictions on subsequent murderers.” COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 4.ed. [S.l.]: Person Addison Wesley, 2003, p. 505. Para maiores informações sobre o assunto, ver: COOTER, op. cit., p. 507-9. Tradução livre de: “If economists will listen to what the law has to teach them, they will find their models being drawn closer to reality.” COOTER, op. cit., p. 11. 30 teoria dos jogos ou da teoria das escolhas públicas (public choice)”48. A visão normativa, por sua vez, pretende “encontrar elementos econômicos que participam da regra de formação da teoria jurídica”49. Assim, “os fundamentos da eficácia jurídica e mesmo da validade do sistema jurídico deveriam ser analisados tomando em consideração valores econômicos, tais como a eficiência, entre outros”50, ou seja, criar normas que tragam os incentivos necessários para a adoção pelas pessoas do comportamento buscado pelo legislador. Aliás, para Steven Shavell, ao agregar-se a essas duas facetas uma terceira, que é a utilização de modelos teóricos e testes empíricos, encontram-se os três requisitos caracterizadores de uma análise econômica51. Para o presente trabalho não é relevante estabelecer uma divisão estanque entre as abordagens, mas, sim, traçar um panorama que permita uma compreensão do significado e do alcance de uma análise econômica do Direito. De qualquer forma, compreende-se existir uma integração das duas abordagens, há uma utilidade ambivalente: tanto descrevendo e auxiliando da compreensão dos fenômenos (podendo fazer uso da fundamentação descritiva, por exemplo), quanto normativo, que se utiliza do primeiro para estabelecer e para planejar metas e orientações de comportamento no meio social. 47 48 49 50 51 A doutrina de Rachel Sztajn classifica a Escola de Chicago como descritiva, enquanto que a de Yale é considerada normativista. Ver: SZTAJN, Rachel. Law and Economics. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 77. Contudo, Richard Posner (integrante da Escola de Chicago) considera a Análise Econômica do Direito como normativa e positiva. Explica que é normativa porque, embora os economistas não possam dizer se a sociedade deve ou não fazer algo, podem dizer se a ação é eficiente ou não, se determinada solução social foi eficiente ou se poderia ser adotada outra alternativa menos eficiente, mas que sacrificaria menos outros valores sociais. Positiva, uma vez que podem explicar o sentido de uma lei ou indicar de que forma poderia ser modificada para obter melhores resultados. POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007, p. 24-6. A idéia de Posner está retratada por Bernado Mueller, na segunda parte do artigo “Economia dos Direitos de Propriedade”, escrito em conjunto com Rachel Sztajn e Décio Zylbrsztajn, constante do Livro organizado por estes últimos: Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 93. Paulo Caliendo, com o qual se concorda, encontra um ponto intermediário ao afirmar que a Análise Econômica do Direito encontra, por vezes, uma abordagem normativa e, em outros momentos, descritiva. CALIENDO, Paulo. Direito internacional privado e análise econômica do direito. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 201-2. CALIENDO, Paulo. Direito internacional privado e análise econômica do direito. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 202. Idem, ibidem. Idem, ibidem. SHAVELL, Steven. Economic Analysis of Law. New York: Foundation Press, 2004, p. 3. 31 Arnaud e Dulce resumem a extensão e aplicabilidade da Análise Econômica do Direito da seguinte forma (ao fazerem uma comparação de suas convergências com a análise sociológica do Direito): a) a análise, a explicação e a crítica das funções do sistema jurídico e de suas instituições. [...] diz respeito às funções sociais atribuídas a cada sistema jurídico e a cada um de seus elementos. [...]; b) o problema das conseqüências sociais das normas jurídicas, [...] o impacto das normas jurídicas sobre os comportamentos de seus destinatários, [...]. c) o problema da tomada de decisão nas diferentes instâncias, [no legislativo e na aplicação prática, por exemplo]. d) a análise do processo de implementação das normas jurídicas, [...].52 (sublinhado nosso) 2. APANHADO SOBRE A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO NO BRASIL E DISCUSSÕES ACERCA DE SUA APLICABILIDADE 52 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 33-4. 32 Inobstante ter sido estabelecido um panorama a respeito do pensamento de pioneiros e destacados pensadores sobre a Análise Econômica do Direito no capítulo anterior, neste momento, pretende-se explorar a forma pela qual tais ideários estão sendo traduzidos e introduzidos na doutrina nacional, assim como delinear e discutir alguns pontos mais sensíveis em relação a sua aplicação prática. A missão consiste em apreender melhor a realidade doutrinária brasileira a respeito do tema e tentar estabelecer pontos de questionamento sobre uma parcela importante das dificuldades em se aplicar uma análise econômica do Direito no Brasil, além de indagar sobre algumas conseqüências de sua concretização, o que perpassa obrigatoriamente sobre a questão da autonomia do Direito. No Brasil, atualmente, no âmbito da Análise Econômica do Direito, fala-se em análise econômica das políticas públicas e sociais; do Judiciário, da celeridade, das conseqüências das políticas judiciárias; da empresa; da tributação; das organizações; da responsabilidade civil. 2.1 ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO Em relação aos efeitos das decisões judiciais, o professor Rafael Bicca Machado propõe uma análise realista e atual dos problemas reflexos causados à sociedade pelo Poder Judiciário quando busca solucionar conflitos por intermédio de políticas públicas, o que consistiria numa fuga da função primordial daquele. Bicca pressupõe a integração do magistrado em um modelo democrático, no qual o juiz não está “mais habilitado a decidir o que é e o que não é bom para a sociedade do que o conjunto daqueles que foram por ela (sociedade) eleitos para estabelecer o que lhe é do seu interesse”53. Falta dinheiro para pagamento de funcionários públicos? Vêm as liminares ordenando o pagamento imediato dos servidores. Faltam vagas para todos os alunos nas escolas públicas? Surgem as sentenças ordenando a abertura das vagas. Os juros dos empréstimos estão demasiadamente altos? Simples – dizem alguns – basta limitá-lo a um patamar “adequado”. Só que, ao contrário do que os iludidos sonham e os desinformados tentam crer, o Direito não cria o dinheiro para pagar os servidores. Não 53 MACHADO, Rafael Bicca. “Cada um em seu lugar. Cada um com sua função”: apontamentos sobre o atual papel do Poder Judiciário brasileiro, em homenagem ao ministro Nelson Jobim. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 44. 33 levanta as paredes da escola nem monta as carteiras escolares. E, ao contrário, de reduzir as taxas de juros, acaba ao fim somente por aumentálas.54 Em síntese, afirma o autor, o Direito não é capaz de satisfazer todas as expectativas, sanar todos os problemas, construir uma sociedade livre de desigualdades, de escassez e de conflitos (devendo isso ser reconhecido pelos operadores jurídicos). Quando trata a respeito do problema da celeridade processual, assunto o qual, segundo alguns, não pode prejudicar a segurança das decisões judiciais, de forma que não seria viável diminuir o número de recursos ou instâncias, responde: Falso. Não estamos mais no início do século. A fase romântica passou há tempo. Temos problemas sérios e concretos, que precisam ser resolvidos. Há de se pensar inspirado em uma lógica guiada pelo binômio custo e benefício. E o que surge então é: o que ganhamos (nós, o país, a sociedade) e o que perdemos com essa demora na prestação jurisdicional? 55 De fato, o texto do pesquisador visa a reduzir o preconceito dos operadores do Direito em relação à aplicação da teoria econômica, que deve ser estudada e considerada nas decisões judiciais56. Trata-se de um apelo para a interdisciplinaridade: o reconhecimento de que a solução de todos os problemas não é encontrada no Direito e de que os operadores jurídicos não conseguem resolver todas as questões, porque atualmente muito daquilo que envolve o sistema jurídico não é essencialmente jurídico. Um apelo, outrossim, por planejamento da prestação jurisdicional. Entretanto, o autor aparentemente desconsidera que não é possível existir espaços não preenchidos pelos Poderes do Estado; os “vácuos” devem ser preenchidos, 54 55 56 MACHADO, Rafael Bicca. “Cada um em seu lugar. Cada um com sua função”: (...). In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 42-3. Idem, p. 45. No mesmo sentido, porém abordando o assunto por intermédio da Teoria dos Sistemas, conclui Cristiano Carvalho: “Sabemos que uma simples disposição legal ou uma decisão de um Tribunal pode acarretar efeitos imprevistos e até mesmo assoladores nos demais subsistemas sociais, tais como a economia, a política, a ciência, etc., que juntos perfazem o macro-sistema social. Muitas vezes uma decisão final de uma Suprema Corte, que tem a função precípua de fechar o sistema, tem de levar em conta esses fatores, sob pena de desintegração do próprio ordenamento jurídico e crise desestabilizadora da ordem social.” In: CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico – direito, economia, tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 24. 34 ainda que por uma solução não ideal: caso um Poder não atue, os demais tendem a fazêlo, compensando aquela inércia. Ainda tratando da influência que o Poder Judiciário acarreta na economia de um país globalizado, Armando Castelar Pinheiro57 afirma que o processo de integração econômica internacional utiliza eminentemente o sistema contratual para regular as atividades, influenciando, evidentemente, o desenvolvimento do Direito. Nesse contexto, a legislação de um país, assim como a atuação do Poder Judiciário, pode ser uma alavanca ou um entrave à economia e à desenvoltura econômica de um país em um mundo com poucas fronteiras econômicas. Assim, o Judiciário é uma das instituições mais fundamentais para o sucesso do novo modelo de desenvolvimento que vem sendo adotado no Brasil e na maior parte da América Latina, pelo seu papel em garantir direitos de propriedade e fazer cumprir contratos.58 Em tal contexto, o Poder Judiciário passa a ser também pensado como uma instituição econômica, devendo adaptar sua atuação, melhorando sua eficiência. Por exemplo, um sistema legal e judicial de má qualidade distorce os preços da economia, na medida em que introduz um risco jurídico nos preços, que, ao incidir de forma não uniforme nos vários mercados de bens e serviços, distorce os preços relativos e diminui a eficiência alocativa da economia. No mercado de crédito doméstico, por exemplo, e mesmo no acesso a financiamentos externos, o risco jurídico é um componente importante dos juros, que contribui para reduzir a oferta de crédito e levar a métodos de produção mais ineficientes do que os encontrados em economias com juros mais baixos. Assim, porque o banco não pode contar com o Judiciário para reaver rapidamente as garantias dadas – uma cobrança judicial de dívida leva em média de dois a três anos – ele tem de compensar este custo financeiro extra no spread. Além disso, a morosidade do Judiciário faz com que os bancos sejam obrigados a manter toda uma burocracia encarregada de seguir os longos processos judiciais de cobrança de dívidas, causando um custo administrativo adicional, que também é incorporado nos spreads. O mercado de crédito imobiliário ilustra um caso em que os riscos e custos de transação introduzidos pela forma de atuação do Judiciário são tão altos que praticamente levam à inexistência do mercado59. Como resultado das pesquisas citadas e das realizadas pelo autor, constata-se que a legislação e a atuação do Poder Judiciário (especialmente a negativa) geram 57 58 59 PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 51-83. Idem, p. 53. Idem, p. 63. 35 modificações nas decisões administrativas das empresas, aumentando gastos, substituindo mão-de-obra, evitando a atuação em Estados nos quais o Judiciário não é confiável, etc., enfim, elevando os custos das transações. A questão central, contudo, trazida pelo autor, consiste em demonstrar que a carga de subjetividade ou não-neutralidade existente nas decisões judiciais acaba por prejudicar aqueles aos quais a concepção de “justiça social” almeja proteger60. Isto é, aquelas pessoas protegidas individualmente pela atuação “não-neutra” de um magistrado em um momento presente, acabam por ser prejudicadas (incluindo aí a coletividade a que pertencem, como idosos, trabalhadores, locadores) em um momento futuro, porque o mercado tende a se proteger dos riscos das decisões desfavoráveis, e inesperadas, buscando sempre reduzir os custos de transação, mediante a modificação de sua atuação61. Luciano Timm é perspicaz em apontar que esse tratamento dispensado pelo Judiciário tem o reflexo de elevar a demanda por decisões judiciais e o custo global do Poder Judiciário. Ora, sendo uma pessoa beneficiada por uma decisão judicial, as 60 61 Os resultados das pesquisas demonstram que os próprios magistrados reconhecem a si um papel ativo na sociedade (portanto, não neutro). Ver: PINHEIRO, Armando Castelar. Magistrados, Judiciário e economia no Brasil. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 244-83. Interessante constatar que o autor aponta como resultado da pesquisa estas digressões, que estão na página 249 do texto: “Conclui-se dessas duas pesquisas que o magistrado brasileiro não acredita que cabe ao Judiciário ser neutro na aplicação da lei, não se identificando com o papel clássico que se supõe ser o de um juiz em um sistema de civil law, o de intérprete de um direito produzido pelo Poder Legislativo. Pelo contrário, o magistrado brasileiro acredita majoritariamente que também é seu papel ‘produzir’ o direito. E, em particular, que esse papel envolve atuar de forma a produzir justiça social, ainda que uma minoria acredite que esse objetivo deve se sobrepor à aplicação da lei”. Entretanto, parte das conclusões não encontra respaldo nas perguntas oferecidas aos juízes durante a pesquisa. Tais conclusões exsurgem da conjugação de dois blocos de afirmações que deveriam ser escolhidas pelos testados. Majoritariamente, os juízes disseram que “o Poder Judiciário não é neutro: em suas decisões o magistrado deve interpretar a lei no sentido de aproximá-la dos processos sociais substantivos e, assim, influir na mudança social” (82,9% dos juízes) e que “a conquista do Estado do Direito democrático devolveu à sociedade a capacidade de decidir sobre o seu destino, especialmente por intermédio da representação partidária e da vida associativa. O magistrado participa da consolidação democrática na medida em que age como fiel intérprete da lei, produzindo sentenças com independência das pressões sociais” (61,9%). Por outro lado, as opções menos votadas não fazem qualquer referência acerca da sobreposição da justiça social e da criação de Direito pelos juízes em relação à lei, embora essa tenha sido uma das conclusões do autor. Ademais, à folha 267 do mesmo texto (o que é reiterado à fl. 280), o autor identifica uma “amostra estratificada de representantes de vários segmentos da elite brasileira” (grifos nossos) como sendo “o valor predominante na sociedade brasileira”, como se a opinião de grupos da “elite” brasileira fosse quem estabelece os valores a serem respeitados no país. Sobre as influências que as decisões judiciais implicam no meio social e econômico, ver: TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 67-81. 36 demais igualmente buscarão apoio em sentenças judiciais, aumentando o número de demandas e, conjuntamente, “os custos para manutenção da burocracia estatal com milhares de demandas idênticas, sem efetivamente enfrentar o problema estrutural causador do desequilíbrio contratual”62. No entanto, Castelar Pinheiro não aborda com ênfase um assunto de elevada importância quando se trata de Poder Judiciário: a qualidade da legislação. Em grande parte dos momentos em que o texto aborda os problemas do “Judiciário”, não há referência de que parcela relevante dos empecilhos consistem em equívocos de legislação (ou políticas legislativas mal aplicadas)63. Perceba-se, por exemplo, o seguinte excerto: Uma justiça que busca privilegiar o trabalhador acaba diminuindo o nível de emprego e aumentando a informalidade. O juiz que favorece os inquilinos diminui o número de imóveis disponíveis para aluguel. O magistrado que beneficia pequenos credores estará em um segundo momento aumentando os juros que lhes são cobrados ou mesmo alijando-os do mercado de crédito.64 Independentemente das críticas econômicas a que as afirmações não estão imunes, como, por exemplo, por que a decisão administrativa nunca é a de reduzir a margem de lucro(?) (o que é demonstrado claramente no Brasil pela rentabilidade bilionária dos Bancos que competem no mercado nacional), as afirmações são desvinculadas da legislação que rege as situações materiais. Ora, não são necessariamente os juízes que protegem os trabalhadores, os consumidores, os inquilinos: a tônica histórico-legal desses microssistemas é de proteção aos respectivos grupos. Evidentemente, o juiz também pode exercer uma 62 63 64 TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 76-7. No seio da pesquisa econômica, há estudos que se debruçam sobre o retrocesso legislativo, ou seja, buscam compreender as razões pelas quais a legislação se direciona ao caminho contrário àquele que se desejaria. Pérsio Arida, sinteticamente, apresenta três fatores, a saber: “(i) a pressão dos grupos de interesse – no jargão dos economistas, a ‘captura’ do Estado por interesses privados; (ii) distorções no processo de representação que fazem com que os parlamentares votem em desacordo com as preferências de seus eleitores; e (iii) a ignorância do legislador quanto aos efeitos econômicos das normas que promulga.” ARIDA, Pérsio. A Pesquisa em Direito e em Economia: em torno da historicidade da norma. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 67-8. PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 76. 37 postura pró-ativa de cuidados ao “hipossuficiente”; entretanto, o âmago de tal tipo de norma é protetivo. A desconsideração da qualidade (o que por certo aspecto também envolve a quantidade) da legislação brasileira invalida grande parte da pesquisa realizada, uma vez que considerou nas entrevistas a atuação protetiva do juiz, olvidando-se todo o conjunto legislativo que está por trás da atuação dos operadores do Direito. De qualquer forma, o autor faz nascer no leitor uma hipótese praticamente não discutida, a de que “não há como discordar, nesse sentido, que na hierarquia dos valores o da justiça precede o da eficiência econômica, e que, portanto, caberia à economia adaptar-se ao tempo do direito, e não o contrário”65. Talvez, os economistas não queiram adaptar seus fundamentos à realidade do direito, onde se enaltece a casuística, as especificidades. Além disso, aparentemente muitos economistas continuam perplexos com a dificuldade atual de aplicar a lógica linear na solução dos problemas. Provavelmente, a dificuldade de diálogo entre economistas e operadores do Direito não esteja no âmbito do jurídico, mas do econômico, que pode não estar sendo capaz de explicar e prever os fenômenos econômicos da forma apropriada e desejada pelos cientistas. Não se olvida, ainda, a incapacidade de perfeita tradução do econômico para o jurídico, assim como muitas vezes não há uma tradução perfeita de uma linguagem para outra66. Fritjof Capra trata longamente da incapacidade científica atual de contemplar os fenômenos mundanos por uma lógica linear, instrumento com o qual o ser humano sempre contou para buscar explicações sobre a mecânica das coisas que acontecem na vida. No que tange especificamente ao econômico, afirma: Quando as redes financeiras globais alcançaram um certo de grau de complexidade, suas interconexões não-lineares geraram anéis de realimentação rápida que deram origem a muitos fenômenos emergentes inesperados. A nova economia que resultou disso é tão complexa e turbulenta que não pode ser analisada pelas teorias econômicas convencionais. [...] No 65 66 PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 78. Sobre a apropriação de conceitos econômicos pelo direito e sobre a necessidade de uma transposição analítica dos conceitos entre ambas as ciências, ver: CAVALLI, Cássio Machado. Reflexões sobre empresa e economia: (...). In: TIMM, op. cit., p. 85-95. 38 cassino global operado por máquinas eletrônicas, os fluxos financeiros não seguem uma lógica de mercado. Os mercados são continuamente manipulados e transformados por estratégias de investimento criadas em computador, pelas percepções subjetivas de analistas influentes, por acontecimentos políticos em qualquer parte do mundo e – o que é mais significativo – por turbulências inesperadas causadas pelas interações complexas dos fluxos de capital nesse sistema altamente não-linear. Essas turbulências, que dificilmente poder ser controladas, são fatores tão importantes da fixação de preços e tendências de mercado quanto as tradicionais forças de oferta e procura.67 (grifo nosso) Tal opinião é significativa em demonstrar que, além da subjetividade, tanto criticada do mundo jurídico, deve ser considerada igualmente aquela do mundo econômico. Com uma desvantagem comparativa: a subjetividade jurídica há muito integra e é reconhecida por seu sistema. Por sua vez, o viés economicista visava a pluralidades qualitativas e quantitativas, o que sempre permitiu grande objetividade dentro de seu sistema, acabando, hoje, por transparecer uma baixa capacidade adaptativa para integrar a subjetividade em seu meio. Isso, não é reconhecido por Armando Castelar Pinheiro, ao menos de forma explícita, porque dentre suas propostas não consta um remanejamento das instituições econômicas para bem conviver com o Direito. O pressuposto tratado pelo autor, e por muito outros estudiosos, consiste em adaptar o mundo jurídico ao econômico (incutir nos operadores jurídicos o seu papel de instituição econômica). Não que isso não deva acontecer também. Contudo, proporcionalmente falando, há pouco igualmente se trata de ética na Economia, ao lado de que o Direito considera a ética e a moral desde seus primórdios. Uma questão esclarecedora sobre o assunto consiste na concorrência internacional de produtos com a China. Nas academias jurídicas, costuma-se exortar o grande avanço da legislação consumeirista e trabalhista nacional, não em razão de algum ufanismo, mas em razão do significado evolutivo jurídico para a humanidade que o reconhecimento desses microssistemas legislativos demonstra: a diminuição de uma exploração mutilante, que acabava por prejudicar a vida de toda a humanidade. 67 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 150. 39 Para a Ciência Jurídica, essa evolução soa como truísmo. Inobstante, para a vida prática comercial não há como precisar um significado para essa legislação, normalmente vista como um “freio” ao desenvolvimento. Não é incomum ouvir-se estudiosos da Economia e empresários reclamando da falta de competitividade dos produtos nacionais no mercado externo, em razão do elevado preço que o produto assume, dentre outros motivos, pela “carga trabalhista”, indicadora de um excesso de direitos que sobrecarregam o exercício da empresa. Ocorre que, sob o ponto de vista jurídico (e ético também), a questão da participação da China da maneira que vem ocorrendo é o que se apresenta como indevido. Há trabalho escravo. Há exploração. Contudo, ao contrário de se movimentar uma política internacional para forçar a China a se adaptar ao patamar de desenvolvimento humano, ético e jurídico, os empresários nacionais (e isso não é privilégio do Brasil) preferem estabelecer suas fábricas na China e “simplesmente” criticar a legislação devidamente protetiva. Evidentemente, é possível realizar ajustes na legislação nacional, e isso ninguém negaria; mas a questão consiste na impossibilidade de competição com o trabalho escravo, ou com a ausência de qualquer regra trabalhista. A eficiência econômica, ao menos a prática (dos agentes econômicos), que busca a minimização de custos de transação e uma maior eficiência econômica, irá levar os empresários para a televisão e para a China, enquanto que esta é quem deveria se adaptar aos padrões internacionais de proteção ao trabalho e ao consumidor68. A problemática ora discutida é muito bem resumida, sob o ponto de vista prático-econômico, pela pergunta de Raquel Sztajn: “algum agente econômico perderá a oportunidade de obter a vantagem se tiver possibilidade de optar por ela?”69. 68 69 Digna de nota é uma conclusão apontada por Pinheiro entre a divergência entre a visão dos magistrados e dos empresários a respeito da Justiça do Trabalho: “os magistrados avaliam a Justiça do Trabalho de primeiro grau como o melhor ramo/grau do Judiciário (...) o Supremo Tribunal Federal vem em penúltimo”, enquanto que os empresários “vêem a Justiça do Trabalho como o pior ramo do Judiciário e o STF como o melhor.” PINHEIRO, Armando Castelar. Magistrados, Judiciário e economia no Brasil. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 251-2. SZTAJN, Rachel. Law and Economics. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: (...). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 81. 40 O Direito é um meio de controle social e não, tão-somente, um garantidor das políticas econômicas: o Direito trabalha com diversos valores sensíveis dos seres humanos, em grande parte diferentes daqueles com os quais a Ciência Econômica se preocupa, embora curiosamente, tenham alguns pontos de toque70 e as decisões tomadas em um âmbito inexoravelmente influenciem o outro. De qualquer maneira, não há como se estabelecer uma hierarquia econômica de valores ou subjugar o Direito: a relação deve ser de coordenação, mantendo a autonomia do Direito, e a da Economia. Enquanto “os juízes parecem não conhecer as repercussões macroeconômicas de suas decisões, os economistas parecem desconhecer a realidade sobre os microfundamentos institucionais que alicerçam suas estratégias de desenvolvimento”71. Assim, em muitas oportunidades, a evolução jurídica se reflete na economia como um “choque adverso” – “algo que o pensamento econômico não é capaz de antever”72, sendo igualmente, um motivo de apartamento das ciências. Os economistas precisam adaptar também o seu sistema ao mundo jurídico, o qual, assim como a Economia, está cada vez mais universalizado. Ainda assim, em graus maiores ou menores de intervencionismo, nos regimes democráticos existem os sistemas econômicos apartados do direito. [...] Outrossim, ainda que existam diversos subsistemas autônomos, inseridos no macrossistema social, eles interagem entre si, enviando e recebendo mensagens, de forma a auto-regularem-se, calibrando eventuais desvios que são ínsitos a toda ordem dinâmica.73 Como pressuposto, Cristiano Carvalho assume que o subsistema mais “perturbador” da ordem social é o do Direito, exatamente em razão de sua característica coercitiva, onde as normas são dotadas de sanções, e garantidas por um aparato estatal. 2.2 RELAÇÃO DIREITO TRIBUTÁRIO, CONTRATOS E ECONOMIA 70 71 72 73 Bruno Miragem afirma que há uma proximidade entre o Direito e a Economia porque “ambas as ciências são tendentes à busca de um resultado ótimo, seja demonstrado pela paz social em sentido amplo (como é o caso do direito), ou pela otimização dos recursos disponíveis em favor de um maior ganho futuro (no caso da economia).” MIRAGEM, Bruno. Direito da concorrência e raciocínio econômico: intersecções entre o direito e a economia na experiência brasileira. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 143. PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 51 ARIDA, Pérsio. A Pesquisa em Direito e em Economia: (...). In: SZTAJN, op. cit., p. 68. CARVALHO, Cristiano. Tributação e Economia. In: TIMM, op. cit., p. 100. 41 Cristiano Carvalho, inflete seus estudos sobre a relação do Direito, em especial o Direito Tributário, com os demais sistemas sociais, como a Economia. Em seus estudos, constata que, com similitude ao ocorrente em relação aos subsistemas sociais, os tributos de um Estado apresentam interferência na economia. Segundo suas observações, a relação do Direito Tributário com a economia é elevada porque a legislação tributária considera como fonte para o pagamento de tributos “atividades economicamente apreciáveis (v.g., vender mercadoria, ser proprietário, auferir renda, etc.)”74, ou seja, o Direito Tributário se preocupa exatamente com as atividades que detêm potencial econômico (portanto, uma tradução jurídica ou reconhecimento jurídico de algo que integra o subsistema econômico). Reconhece que a tributação é um valor social, na medida em que garante a existência do Estado e, por seu intermédio, proporciona a liberdade dos indivíduos, já que é um subsistema interessado em equilibrar as relações sociais. Entretanto, elucida que uma elevação demasiada do montante de tributos transmuda a situação para um desvalor social: o subsistema moral avaliaria a situação como injusta, porque paga um preço muito elevado pela liberdade (podendo, inclusive, gerar uma inversão, onde não pagar tributos passaria a ser o reconhecido como justo); o subsistema econômico, desvaloriza a situação porque os custos comparativamente são muito elevados em relação aos benefícios trazidos pelo Estado. A análise do autor é sobremaneira interessante quando apresenta uma exemplificação da forma com que o sistema econômico tende a reagir a um meio de exacerbada tributação. Como o econômico reconhece a tributação excessiva como um “custo” excessivo, o agente econômico tenderia a modificar sua conduta de duas formas (além daquela esperada pelo subsistema jurídico, consistente no pagamento dos tributos): a) ficar inadimplente ou ocultar os fatos geradores da tributação; e b) buscar no sistema jurídico meios de aliviar os ônus tributários, como intentar ações judiciais ou realizar um planejamento tributário. 74 CARVALHO, Cristiano. Tributação e Economia. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 102. 42 Por sua vez, ao verificar a inadimplência tributária, o sistema jurídico busca se adaptar: aplicam-se as multas e executam-se as dívidas judicialmente. Além disso, ainda é comezinho uma alteração da legislação, quer para abrandar a tributação, quer para reforçá-la, tornando-a mais “imponente”. Ressalta o autor, o mais relevante é que, quando há uma tributação excessiva, há maior “economia informal” e diversos segmentos econômicos passam a trabalhar na ilicitude, ao contratar funcionários sem registro em Carteira de Trabalho, ao vender mercadorias sem emissão de notas fiscais, etc. Quanto maior o percentual da economia informal, menor é a quantidade de contribuintes que pagam tributos. Consequentemente maior é a tributação per capita. O efeito pernicioso é a retroalimentação positiva do sistema jurídico e do sistema econômico: como a arrecadação necessita ser mantida, quanto maior a sonegação, mais aumento de impostos. E quanto maior a tributação, maior será a sonegação, gerando um círculo vicioso.75 Para elucidar, de uma forma genérica, o autor afirma que é natural que o Direito intervenha nos demais sistemas sociais. Isso, porque o fenômeno da intersistematicidade ocorre em razão de o Direito ser um “emissor de mensagens prescritivas”76, que intenta alcançar e determinar também os demais sistemas. O sistema jurídico extrapola suas fronteiras internas e atinge os demais subsistemas, sendo a observação de suas prescrições impostas e garantidas pela coercitividade, característica ímpar, da qual apenas o Direito está dotado. No entanto, especialmente em relação ao ambiente econômico, o pesquisador aponta grandes empecilhos para que o Direito tente laçá-la, como será visto adiante. Igualmente ao que acontece com a tributação, a Análise Econômica do Direito realiza pertinente estudo sobre a relação entre o viés jurídico e econômico dos contratos. Luciano Timm, que adotou o tema como objeto constante de pesquisa, afirma não poder mais o contrato ser encarado pelo aspecto tradicionalmente aceito pela doutrina jurídica (como acordo de vontades entre interessados), devendo ser considerado em seu contexto institucional e social: um fato econômico e social. 75 76 CARVALHO, Cristiano. Tributação e Economia. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 105. CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico – direito, economia, tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 111. 43 Apoiando-se em Enzo Roppo, afirma que sob uma perspectiva vulgar do termo contrato, está-se a tratar de um fato, uma operação econômica e social, enquanto em uma perspectiva jurídica, fala-se de um instituto que supõe essa operação social e econômica (seria uma estrutura ou uma forma legal de tal operação). Isso significa: o contrato não é um objeto estritamente jurídico, porque é influenciado e composto também pelas “interconexões com outros sistemas sociais (a economia, a política, etc.)”77, sobretudo ao se considerar que o Código Civil (artigo 421) reconhece o dever de cumprimento de uma função social pelo contrato. Nestas palavras, afirma: “para o contrato confluirão várias pretensões regulatórias, seja da política, seja da economia, seja do direito, ou mesmo da ética”78. Por isso, reconhece com naturalidade a existência de conflitos em relação ao contrato, dependendo da racionalidade adotada para enxergá-lo. Por exemplo, sob o ponto de vista político, o contrato deveria ser uma relação justa (onde se protegeria o mais fraco); sob a ótica econômica, um “instrumento de eficiência econômica”; para o Direito, deveria operar “quase um milagre”79, porque deveria respeitar os direitos fundamentais, sem desconsiderar, por exemplo, as normas econômicas e o direito de família. Além disso, a compreensão dos contratos é complexificada ainda mais pela circunstância de que, em grande parte dos momentos, tais racionalidades serem excludentes: “daí se falar em ‘politização’ do contrato, ‘análise econômica’ do contrato; ‘moralização’ da relação contratual”80. Evidentemente, a conclusão não poderia ser outra: todas essas racionalidades são aspectos (portanto, parciais) de uma mesma estrutura da realidade, que é híbrida, complexa e “policontextual”. Assim, é natural que conflitem, no âmbito da relação contratual, racionalidades políticas, jurídicas ou mesmo econômicas. Concebido o contrato em sua totalidade ou sistematicidade complexa, é inerente admitir que isso possa acontecer.81 77 TIMM, Luciano Benetti. Função social do contrato: (...). In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 109. 78 Idem, p. 110. 79 Idem, ibidem. 80 Idem, ibidem. 44 A esta altura, perquire o autor sobre qual a racionalidade deve prevalecer. Conclui, na esteira daquilo que fora tratado anteriormente, por uma sincronização das interferências sob as quais o contrato está submetido. Ressalta, contudo, que, por estar esse instituto submetido ao meio de mercado, e por ser a Economia uma ciência preocupada primeiramente com a eficiência (o que significa melhor distribuição de bens e de serviços que são escassos em relação à demanda humana), é nesta que o operador jurídico deve encontrar apoio, sobretudo para o contrato não perder sua função (social). Isto é, exatamente por só poder ser reconhecida a função do contrato no meio para o qual foi construído e se desenvolveu, não pode o jurídico permanecer alheio ao mercado. Adverte, “no entanto, a análise do jurista deve ser mais ampla e complexa do que a pura e simples análise econômica do contrato”82. O sistema jurídico não pode permanecer independente às “irritações” dos outros sistemas, que o complementam e, sobretudo, justificam sua funcionalidade, devendo, por exemplo, as decisões jurídicas considerar o juízo de eficiência econômica (e igualmente política), além da racionalidade do próprio sistema jurídico. Em síntese, o autor argumenta: Diante desse papel central dos tribunais no subsistema jurídico contratual, devem os julgadores considerar a complexidade normativa do contrato, em seus diversos planos, levando em conta as mútuas expectativas reguladas autonomamente pelas partes, as expectativas dos agentes econômicos no mercado em que é realizado o contrato e ainda as diversas racionalidades conflitantes que dirigem a ele seu feixe normativo e cognitivo (ética, política, economia).83 Nesse contexto, o operador do Direito deve vislumbrar a repercussão de suas decisões nos outros subsistemas sociais, em especial na Economia, “diante da interconexão sistêmica do contrato com o mercado e com o sistema econômico”84. Ademais, aduz ser indispensável a adoção dos precedentes judiciais, sob pena de não 81 82 83 84 TIMM, Luciano Benetti. Função social do contrato: (...). In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 109. TIMM, Luciano Benetti. Função social do contrato: (...). In: TIMM, op. cit., p. 112. Sobre o assunto, ver igualmente: TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 63-6 e 113-30. TIMM, 2005, p. 117-8. TIMM, Luciano Benetti. Função social do contrato: (...). In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 118. 45 haver uma integridade no sistema e, por sua vez, a quebra da funcionalidade de normatizar as expectativas. Portanto, conclui TIMM, as decisões jurídicas devem ser informadas pelos diversos sistemas e não podem desconsiderar a importância do precedente, meio capaz de estabilizar as expectativas85. Pertinente mencionar, nesse texto, o autor não esclarece precisamente a relação estabelecida entre o Direito a Economia, transparecendo que o contrato deve ser considerado e interpretado fundamentalmente pelo viés do mercado e da economia, embora não se possa instituir uma preferência entre os planos. Uma noção evidente no texto é a de que o meio jurídico não pode desconsiderar um pressuposto do contrato, a existência do mercado, e, como conseqüência, a Ciência Econômica, meditadora sobre a compreensão daquele espaço de trocas. Da análise dos estudos, constata-se a inexistência de sobreposição ou hierarquização dos subsistemas, permanecendo cada um com sua autonomia própria, porém sujeitos a “irritações” mútuas. De qualquer maneira, não se pode perder de vista na análise jurídica de um contrato os elementos lá contidos de modo a não esquecer a perspectiva dos agentes ao realizar o negócio, eminentemente econômica. As cláusulas de um contrato, assim como a lei, buscam a precisão e o atendimento de algum fim mútuo para os contratantes (sobretudo se o contrato for considerado como meio de cooperação multilateral, para eliminar as ações não-cooperativas ou o agir estratégico individual 86), fator de indispensável ponderação quando da análise de um contrato. Não se pode perder de vista exatamente o motor da realização do negócio: as condições econômicas. Aliás, a complexidade crescente dos contratos está igualmente a significar, não só a complexidade das redes de mercado, mas a profunda influência que o pensamento economicista apresenta nos agentes: sem a complexidade de cláusulas, a eficiência dos negócios tende a ser menor (porque não são antevistos meios de solucionar os problemas contratuais). 85 86 Idem, Ibidem. Para uma sucinta e interessante discussão a respeito dos contratos (natureza econômica dos contratos, motivações econômicas para contratar, dificuldade no cumprimento dos contratos, indicações de leitura), ver: AZEVEDO, Paulo Furquim de; SZTAJN, Rachel; ZYLBERSZTAJN, Décio. Economia dos Contratos. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 102-12. 46 As cláusulas funcionam como incentivos, contra-incentivos e controles para que as partes assumam e se mantenham fiéis ao seus papéis nos acordos. Tal realidade não pode ser olvidada pelos operadores jurídicos. 2.3 PROPRIEDADE E SUA ANÁLISE ECONÔMICA Em razão da importância que o Direito de propriedade possui em nossa sociedade ocidental, os estudiosos da Análise Econômica do Direito não o esqueceram, sendo outro assunto recorrente nas pesquisas. Aqui, assume importância um assunto até então sonegado neste trabalho, e que será tratado de forma parcial, em razão da natureza deste texto: o Teorema de Coase 87. A idéia inicial (atualmente bastante desenvolvida e criticada) consiste em que, com a inexistência de custos de transação, as partes que se relacionam buscarão sempre uma solução eficiente, independentemente de quem seja o proprietário (ou a quem seja outorgado o direito de propriedade em determinada disputa). Em outras palavras, “que na ausência de custos de transação, a atribuição dos direitos de propriedade em nada altera a alocação final dos bens entre as partes”88. [...] en un mercado en equilibrio, donde existen condiciones de competencia perfecta, y en ausencia de costes de transacción, las partes arribarán a una solución eficiente. De ello se deduce que el Derecho está enfocado a garantizar que funcione el modelo de competencia perfecta: debe reducir la existencia de fallas de mercado, como las externalidades, monopolios, garantizar condiciones de libertad y seguridad; en definitiva, reducir los costos de transacción. Cuando ello no es posible y los costos de transacción son tan altos que dificultan la solución del mercado, el Derecho 87 88 Para melhor elucidação e aprofundamento de elementos sonegados neste texto, ver: POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007, p. 50-5; STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. Tradução de Neusa Vitale. São Paulo: Makron Books, 1993, p. 26-39; COASE, Ronald H. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics, 3, n.º 1, 1960, p. 114. Também é encontrado outro exemplo em: MUELLER, Bernardo; SZTAJN, Rachel; ZYLBERSZTAJN, Décio. Economia dos Direitos de Propriedade. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 84-101. COELHO, Cristiane de Oliveira. A Análise Econômica do Direito enquanto Ciência: uma explicação (...). Berkeley Program in Law & Economics. Latin American and Caribbean Law and Economics Association (ALACDE) Annual Papers (paper 050107-10). Disponível em: <http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/050107-10/>. Acesso: 13 out. de 2007. 47 debe proveer una solución, pero ésta debe ser modélicamente fundada en la lógica de lo que harían dos sujetos negociando libremente.89 Imagine-se a hipótese de alguém ter uma plantação na qual vive algum tipo de pássaro, que se alimenta dos predadores das plantas. Ao lado dessa plantação, há um caçador que serve os pássaros assados em seu restaurante. A caça traz um prejuízo ao plantador de R$1.000,00, conseqüência de as plantas serem atacadas por predadores, diante da escassez das aves. Poderia o agricultor instalar uma rede de proteção, para o vôo dos animais além do âmbito de sua propriedade, pelo valor de R$ 3.000,00. Por outro lado, o caçador pode estabelecer um criadouro de aves em cativeiro, de modo que não precise mais caçá-las, por R$ 500,00. Se ambos pararem de realizar suas atividades produtivas o prejuízo é superior a R$ 3.000,00. Assim, diante de tal problema, releva saber a quem a lei deve outorgar o direito sobre os pássaros, já que ambos são interessados e nenhum tem a propriedade garantida sobre os animais. A idéia de Coase: existindo um direito de propriedade bem garantido e não havendo custos de transação, as partes irão de forma voluntária atingir o máximo de eficiência possível. Pois bem, no nosso caso hipotético, o uso dos recursos seria inegavelmente mais eficiente com a instalação de um criadouro das aves na propriedade do caçador, porque é a medida que exige um menor investimento (apenas R$ 500,00). A instalação da tela, a cessação de qualquer das atividades ou a manutenção do estado atual, todos são ineficientes em relação ao criadouro, porque apresentam investimentos bem superiores (alocação ineficiente de recursos). Assim, se for reconhecido o direito do agricultor ter os pássaros em sua plantação, este somente estará disposto a abrir mão do direito se o caçador lhe compensar em pelo menos R$ 1.000,00 (que é o seu prejuízo). Assim, o caçador irá preferir gastar os R$ 500,00 para fazer sua própria criação. Por outro lado, se for reconhecido o direito de o caçador continuar caçando as aves, o agricultor irá pagar os R$ 500,00 para a instalação da criação no terreno do seu vizinho, ao invés de ficar com o prejuízo de R$ 1.000,00. Perceba-se que, independentemente da decisão (para quem será reconhecido o direito exclusivo sobre os animais), o resultado alcançado é o mesmo: o de maior 89 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoría de la Decisión Judicial: fundamentos de derecho. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 234. 48 eficiência. O que muda é o resultado da negociação (barganha) entre os interessados após o reconhecimento do direito em favor de algum. De fato, o detentor do direito acaba sempre sendo favorecido. O Teorema não se preocupa com a distribuição da riqueza, apenas com a eficiência econômica (enquanto que o Direito, diga-se, se preocupa também com a distribuição de riqueza). Ademais, outra conclusão importante é a que a relação da eficiência da propriedade seria diretamente proporcional à segurança outorgada pelo sistema legal ao proprietário (pressupondo-se uma tendência para o uso exclusivo): quanto maior proteção, mais racional é o uso da propriedade e menores são os gastos, por exemplo, com proteção em relação às demais pessoas. Em resumo, a tendência dos doutrinadores (Posner, Coase) está na compreensão de que, para haver eficiência em relação aos direitos de propriedade, esses devem ser universais, de uso exclusivo (afastando-se os demais, elidindo a ocorrência do natural descaso pelos bens comuns da sociedade) e transferíveis, permitindo a circulação dos bens e a aquisição de maior lucratividade. A tônica é elevar sempre a produtividade. Contudo, Frank Stephen desconsidera a universalidade, porque muitos bens são naturalmente comunitários: o ar atmosférico, por exemplo. Apresenta, também, um exemplo relativo à pesca nos oceanos. A atmosfera é um recurso que está sendo usado para absorver materiais inúteis originados da produção: por exemplo, a fumaça. [...] Como ninguém pode possuí-lo e todos podem usá-lo, ninguém tem incentivo para usá-lo eficientemente. O custo da poluição na atmosfera não recai sobre o poluidor – é um bem gratuito e, por conseguinte, ao decidir seu nível de produção, o indivíduo não conta com esse custo. Conseqüentemente ele o usará o máximo possível.90 Em relação à pesca, assim segue o autor: “os estoques de peixes não são possuídos por ninguém, por conseguinte, ninguém tem um incentivo para administrá-los eficientemente, para fazer sua manutenção a longo prazo etc”91. Prosseguindo, apresenta exemplos comprobatórios que também contrariam a idéia da exclusividade. Indica casos nos quais a eficiência fora superior pelo uso não90 91 STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. Tradução Neusa Vitale. São Paulo: Makron Books, 1993, p. 14-5. Pertinente referir que a regulamentação da poluição não invalida o argumento, já que a utilização da poluição tende a ser a máxima dentre os limites permitidos. STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. São Paulo: Makron Books, 1993, p. 15. 49 exclusivo em relação ao uso exclusivo, como nos casos dos campos petrolíferos da costa americana e da pesca da lagosta. Justifica seu posicionamento argumentando que muitas vezes o interesse particular tende a acarretar um interesse anti-social. No caso da pesca de lagosta, por exemplo, porque o explorador particular busca maximizar seus lucros pelas vendas, gerando um excesso desnecessário de pesca, não devidamente consumida. Em relação ao petróleo, porque a produção só gera a propriedade quando retirado do solo, estimulando os exploradores individuais a explorar os campos com a maior agilidade possível. Essa competição pela maior produção (maximização dos lucros) “reduz a pressão da superfície, e o gás natural dissolvido no petróleo se desprende da solução, reduzindo a mobilidade do petróleo e deixando algumas reservas permanentemente retidas abaixo do solo”92. Para este caso, a solução foi a concessão do direito exclusivo de administração e extração do petróleo, regulado pelo Estado, gerando uma produção mais eficiente, embora a renda proveniente não seja exclusiva. Essas idéias remontam a outro problema considerável na análise do Direito: o elemento subjetivo das partes. Não é possível, especialmente quando se fala em Justiça ou, mesmo, legalidade, aferir a eficiência de um negócio por intermédio do potencial econômico que a relação detém. O elemento subjetivo das partes, como a intenção, as expectativas, as finalidades, é de extrema relevância para o Direito, enquanto que não é passível de medição econômica. Embora tratando da antiga discussão sobre qual sistema seria mais eficiente economicamente, entre o da Common Law e o de influência romano-germânica93, citando Hirsh, Érica Gorga, apresenta crítica aos pressupostos dos modelos tendentes a encontrar maior eficiência no direito consuetudinário, elencando pontos de ineficiência sob o viés da psicologia e da economia comportamental. Tais pontos, que seguem, constituem forte crítica contra a noção de eficiência econômica, cuja pretensão é ser 92 93 Idem, p. 18-9. Aliás, discussão que rendeu muitas páginas escritas e já rompeu com a idéia inicial de Posner sobre a prevalência do sistema da Common Law. Para aprofundar a problemática atual, ver: GORGA, Érica; SZTAJN, Rachel. Tradições do Direito. In: SZTAJN, R. e ZYLBERSZTAJN, D. (org). Direito & Economia: (...). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 137-96, e ANDONOVA, Veneta; ARRUMADA, Benito. Instituições de mercado e competência do Judiciário. In: SZTAJN, op. cit., p. 197-227. 50 absorvida pelo Direito: (a) viés de status quo (status quo bias), ou seja, a tendência de as partes superavaliarem os direitos e coisas que já têm, o que leva as partes a colocarem um prêmio no valor da situação do status quo, seja ele eficiente ou ineficiente; (b) efeitos de custos irrecuperáveis (sunk-cost effect), que induz as partes a gastarem mais devido ao medo de “perderem” o já gasto; (c) vieses egocêntricos (self-serving or egocentric biases) os quais levam as partes a superavaliarem suas chances de vitória. Outras barreiras psicológicas incluem: (d) o problema do enquadramento (framing), segundo o qual os autores tendem a ser risco-aversos porque encaram a solução extrajudicial (settlement) como um ganho, enquanto os réus tendem a preferir o risco porque encaram tal solução como uma perda; (e) busca de eqüidade (equity seeking), quando as partes buscam apoio moral para as suas defesas; (f) desvalorização reativa (reactive devaluation), quando as partes não desejam “parecer perder” diante do adversário; (g) aversão a arrependimento (regret aversion), quando ocorre o desejo de evitar a situação de saber e se arrepender de ter tomado a decisão errada. Todos esses processos cognitivos podem provocar distorções no processo de decisão das partes, induzindo-as a resolver seus conflitos fora ou dentro das cortes, o que interferirá no processo evolutivo do direito.94 Isto significa, minimamente, que uma análise de eficiência econômica (se de possível aferição) não significa uma eficiência jurídica em termos estritos, já que um negócio poderia ser juridicamente ruinoso e economicamente eficiente. Para exemplificar, pode-se pensar em uma simulação de negócio jurídico, onde poderia haver uma grande eficiência econômica, haja vista o fato de as partes atingirem plenamente seus objetivos, enquanto que juridicamente o negócio seria nulo (acarretando no futuro um grande risco econômico, que seria a insegurança). Além disso, a medição da eficiência sob o ponto de vista econômico, esbarra na condição pessoal de riqueza das partes (alocação inicial da riqueza), gerando uma insegurança para a própria validade da “aferição da eficiência”. Por exemplo, Assim, se o senhor A deseja pagar 10 libras por uma entrada de teatro e a senhorita B deseja pagar somente 8 libras pela mesma entrada, pode-se deduzir que o senhor A tira mais vantagem de ter uma entrada do que a senhorita B. Conseqüentemente, o bem-estar da sociedade é maior se o senhor A possuir o bilhete. Entretanto, a maioria das pessoas aceitaria que o valor da vantagem da renda L1 é diferente para pessoas de níveis de renda diferentes. Se levado a extremos, uma libra a mais para um milionário produzirá menos vantagem do que uma libra a mais para uma pessoa pobre. Assim, se o senhor A é muito rico e a senhora B é muito pobre, a vantagem representada pelas 10 libras do senhor A poderia presumivelmente ser menor do que a representada pelas 8 libras da senhorita B. Assim, o desejo relativo de pagar pode não representar a vantagem relativa aos ganhos, e a oferta aos consumidores, medida em termos de dinheiro, pode não ser a mesma em 94 GORGA, op. cit., p. 167-8. 51 termos reais para pessoas com rendas diferentes.95 Outro questionamento em relação à eficiência está na seguinte afirmação: em um mundo de mercado, a decisão judicial deixa de ser em si um elemento de pacificação social. Perceba-se que analisando-se um caso pela perspectiva exclusiva da eficiência (como a aplicação do Teorema de Coase), qualquer decisão judicial apresentada por um órgão do Poder Judiciário é apenas um começo para a solução (porque, ao se estabelecer a solução central da controvérsia, as partes ainda tendem a fazer outras distribuições). A cognição judicial é sempre limitada àquelas informações integrantes do processo, o que também depende do interesse das partes de lá agregar informações. Pois bem, considerando que na generalidade dos casos o conteúdo do processo é limitado em relação ao mundo fático (desconsiderando inclusive os eventuais problemas de cognição do magistrado, de expressão lingüística dos envolvidos, etc.) a decisão judicial invariavelmente não seria a melhor opção em termos de eficiência e poderia ser sempre diferente (ou melhor) de acordo com os elementos levados ao juiz. E mais: sempre poderia ser negociada entre as partes num momento posterior, de modo a melhorar a ainda mais a situação de ambos. A conclusão inexorável é que, em situações normais, não há como aferir a eficiência de (ou “em”) uma decisão judicial (porque pressupõe uma gama de informações existentes e não levadas à juízo). Atinge-se, no máximo, uma “eficiência”, não absoluta (porque a vida permite a ocorrência de novas modificações mais eficientes): significando que uma decisão jurídica, ao adotar critério diferente da perspectiva econômica também pode ser “eficiente” (atingindo um ou o mesmo resultado encontrado pela solução econômica). Relevante ponto a ser questionado, diante da suposta autonomia existente entre a Economia e o Direito consiste em perquirir acerca da obrigatoriedade ou não dos tribunais adotarem o viés econômico em suas decisões. A idéia inicial, seria de defasagem social do Poder Judiciário quando não reconhece a importância das lições econômicas em suas decisões. Entretanto, a autonomia entre os subsistemas permite questionar qual deve ser o resultado de um determinado caso, quando a atividade é plenamente aceita 95 STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. São Paulo: Makron Books, 1993, p. 53. 52 juridicamente, porém é absolutamente ineficiente economicamente. Em outras palavras, qual deveria ser a solução, quando o jurídico é contrário à eficiência econômica. Aliás, sob certa perspectiva, Richard Posner reconhece essa realidade: Não é obviamente ineficiente permitir pactos suicidas; permitir a discriminação privada racial, religiosa ou sexual; permitir que se mate o passageiro mais fraco de um barco salva-vidas para dele se alimentar em uma situação de desespero; forçar pessoas a se auto-incriminar; chicotear prisioneiros; permitir a venda de crianças para adoção; permitir a tortura para a extração de informações; permitir o uso de força letal para defender interesses puramente de propriedade; legalizar a chantagem; ou dar a oportunidade para que condenados criminais escolham entre o cárcere ou participar de experimentos médicos perigosos. Todas essas idéias ofendem o senso de justiça dos Americanos modernos, e todos esses casos são concebidos, em maior ou menos extensão (normalmente maior extensão), como ilegais. Neste livro haverá um esforço para explicar algumas dessas proibições em termos econômicos, mas muitos não podem ser assim explicados. Evidentemente, há mais de justiça que economia nesses casos, e este é um ponto que o leitor deve ter em mente ao analisar as declarações presente neste livro.96 Portanto, a advertência não pode ser desconsiderada pelos estudiosos: muito daquilo que é afeto ao Direito, não pode ser considerado sob a ótica econômica, porque o resultado é manifestamente incompatível com o desenvolvimento jurídico atual. Primeiramente, é possível pensar, havendo implicações entre os subsistemas sociais, algo não poderia ser jurídico e ineficiente ao mesmo tempo, de forma que a mácula da ineficiência tornaria a atividade por si só antijurídica. O problema dessa concepção é de que haveria uma subordinação do jurídico ao ideal econômico. Em segundo lugar, seria viável pensar na prevalência do jurídico, impondo a aceitação da atividade ou ação ineficiente ao econômico. Aqui, a discussão recai novamente sobre a hierarquia entre os subsistemas, e, mais, significaria que o viés econômico seria apenas uma sugestão ou orientação para ser adotada em determinados casos. 96 Tradução livre de: “It is not obviously inefficient to allow suicide pacts; to allow private discrimination on racial, religious, or sexual grounds; to permit killing and eating the weakest passenger in the lifeboat in circumstances of genuine desperation; to force people to give selfincriminating testimony; to flog prisoners; to allow babies to be sold for adoption; to permit torture to extract information; to allow the use of deadly force in defense of a pure property interest; to legalize blackmail; or to give convicted felons a choice between imprisonment and participation in dangerous medical experiments. Yet all these things offend the sense of justice of modern Americans, and all are to a greater or lesser (usually greater) extent illegal. An effort will be made in this book to explain some of these prohibitions in economic terms, but many cannot be. Evidently there is more to justice than economics, and this is a point the reader should keep in mind in evaluating normative statements in this book.” POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7. ed. New York: Aspen Publishers, 2007, p. 27. 53 Em termos mais teóricos, a relação constatada acima intenta estabelecer os limites do funcionalismo. É que, sob aquele aspecto, os fins do Direito não estão em si, mas em outros sistemas circundantes, fins externos e sociais, que o influenciam, transformando-o em um instrumento social. Conseqüentemente, a economia, assim como outras ciências, estudariam, e concluiriam sobre quais fins a sociedade necessita, e, o instrumental direito privado e seus institutos deveriam, de forma subsidiária, conformar-se a tais fins97. A imbricação que a tese funcionalista pretende implicar no Direito é claramente demonstrada pelo estudo de Rafael Dresch, referente à influência da economia no âmbito da responsabilidade civil. 2.4 CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA, RESPONSABILIDADE CIVIL E ECONOMIA Rafael Dresch traça uma linha comparativa entre o papel da Economia em um sistema jurídico formalista e em outro funcionalista, mediante o estudo da justiça corretiva e distributiva, respectivamente. Afirma que, ao contrário do sistema formalista (onde a economia não pode fornecer qualquer objetivo ao instituto da responsabilidade civil), na ótica funcionalista (que muito se aproxima da justiça distributiva), a economia tem muito a contribuir: a) fixando o “objetivo da responsabilidade civil (maximizar o valor comum de bens e serviços)”; e b) “determinar a análise dos custos decorrentes dos acidentes e dos participantes que poderiam evitar os riscos destes acidentes”98. O autor adota como exemplo de funcionalista a teoria de Posner, tratada sucintamente acima, para quem, quando se trata de determinar a responsabilidade de pessoas que interagem, deve-se escolher pela hipótese que gere uma maximização do valor dos bens, única oportunidade em que o Direito é verdadeiramente justo (porque deve servir para maximizar a riqueza). A análise, por conseguinte, deve buscar uma 97 98 DRESCH, Rafael de Freitas Valle. A influência da economia na responsabilidade civil. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 125. DRESCH, Rafael de Freitas Valle. A influência da economia na responsabilidade civil. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 137. 54 distribuição eficiente dos custos do acidente, dos custos para avaliar esses custos e dos custos de prevenção dos riscos: “capacidade de evitar os riscos do acidente”99. Assim sendo, para pensar uma distribuição com base no critério da igualdade, numa comunidade pluralista, necessariamente, deve-se analisar as qualidades dos participantes da distribuição, sobretudo, analisar os méritos e as necessidades desses participantes em relação aos bens e encargos a serem distribuídos. [...] A justiça distributiva, pelo exposto, está delimitada numa mediana a ser definida entre quatro termos de uma relação, sendo que dois representam o mérito dos sujeitos e outros dois a máxima e a mínima quantidade de um bem ou encargo. Assim, a distribuição será justa quando atentar para a mesma igualdade entre as porções dos encargos (como custos decorrentes de acidentes) e os sujeitos (com base na capacidade de evitar riscos). [...] Assim, aquele que detém maior possibilidade de evitar os riscos de acidentes deve receber maior parte dos custos decorrentes desses acidentes. [...] A economia, na concepção de Posner, atua tanto na definição e na compreensão da finalidade do instituto da responsabilidade civil, quanto na análise dos elementos internos da definição de responsabilidades.100 O estudo do autor demonstra com clareza, sob tal perspectiva, a submissão do Direito à eficiência econômica, parâmetro a ser adotado para aferir a justiça de determinada ação ou decisão. A responsabilidade civil assimilaria o conhecimento econômico, que forneceria os objetivos do instituto (objetivos externos ao Direito), o conteúdo e a linguagem capaz de permitir o estudo dos objetivos; portanto, tais influxos afetariam a autonomia do Direito, exatamente porque os objetivos e fins do Direito seriam concebidos de forma última pela economia. Afinal, ao invés de perguntarmos quem causou determinado prejuízo devemos questionar como o modelo jurídico poderia minimizar os custos com o acidente. O direito deve ser eficiente, e mede-se essa realidade pela maximização da riqueza.101 Ademais, ainda que concebível essa perspectiva, cabe perguntar a respeito da influência dos demais subsistemas no jurídico e no econômico (que delimitaria o jurídico). Uma visão economicista como a ora discutida se apresenta de forma absolutamente parcial, porque, além de desconsiderar os fins específicos do Direito, igualmente desconsidera as “irritações” dos outros subsistemas, o que provavelmente retiraria a coerência do texto e das conclusões apresentadas. 99 Idem, p. 136. Idem, p. 136-7. 101 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Economia: introdução ao movimento Law and Economics. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10255>. Acesso: 21 ago. 2007, p. 11-2. 100 55 Ora, talvez até mais que outros institutos civis, a responsabilidade civil é em grandes proporções influenciada pela política, pela moral, pelos costumes, o que é facilmente comprovado: basta pensar na “fragmentação” da responsabilidade civil, na qual, dependendo da característica da relação material ou do sujeito envolvido com o evento, há uma modificação do regime legal aplicável (por exemplo, responsabilidade subjetiva, subjetiva com culpa presumida, objetiva, risco administrativo). Portanto, a menos que a eficiência econômica já tenha influenciado o instituto e a existência de diversas modalidades de responsabilização sejam conseqüência de uma influência prévia (que já foi considerada pelo legislador), não há como conceber uma aplicação uniforme de um modo de responsabilização (o mais eficiente) ou desvirtuar as escolhas realizadas pelo Poder Constituinte e pelo legislador infraconstitucional (adotando-se um modelo mais eficiente; porém diferente do escolhido), simplesmente porque se operaria à revelia da Constituição e da legislação. Embora a eficiência seja um critério válido e muito perspicaz em um ambiente de escolha limitado, não há como adotá-lo sem considerar a realidade jurídica já existente (como no caso brasileiro). O sistema jurisprudencial é visivelmente diferente. Ademais, não são passíveis de desconsideração os resultados encontrados por Shavell102, e também por Posner103, no sentido de que, dependendo do caso em análise, uma regra de responsabilidade pode ser mais viável em relação a outra (inclusive, há referência em casos que são iguais, mudando-se apenas a situação pessoal dos envolvidos), sendo difícil aplicar homogeneamente apenas um critério. Não há como aplicar a eficiência para todos os casos (talvez para uma maioria). Para elucidar um pouco melhor essa questão, é cabível referir sobre a utilidade marginal decrescente. Ésta puede ser considerada como el aumento de la utilidad total que reporta el consumo de una unidad adicional del bien en cuestión. De este modo, el individuo obtiene una utilidad marginal decreciente de un bien si cada unidad adicional que consume eleva la utilidad total menos que la unidad anterior. El primer bien que uno compra da más satisfacción que el 102 103 SHAVELL, Steven. Economic Analysis of Law. New York: Foundation Press, 2004, p. 37-59. POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen Publishers, 2007, p. 167-214. 56 décimo bien de la misma clase que adquiere, porque puede estar satisfecho.104 Há diversos exemplos práticos que podem ser colocados aqui, como a compra sucessiva de alimentos para saciar a fome: quando se está com fome, a utilidade do primeiro alimento é muito grande. Todavia, proporcionalmente à quantidade de comida ingerida, sua utilidade vai diminuindo, exatamente porque se está com menos fome (até chegar em um patamar de nenhuma utilidade para o alimento: o sujeito está plenamente satisfeito – podendo até ser prejudicial, como elevar a gordura e o peso). Esse raciocínio pode ser utilizado para se chegar a um ponto ideal entre o grau de freqüência de uma atividade social útil que traga risco social: ou seja, pode-se estabelecer um nível no qual a vantagem da atividade é maximizada enquanto os riscos de provocar danos são minimizados (um equilíbrio). Esse, seria, então, o ponto ótimo de comportamento social (relação entre o ótimo nível de cuidado com o ótimo nível de atividade). O importante é que a exigência de um nível ótimo de cuidado gera uma redução dos prejuízos e ocorrência negativas. Entretanto, dependendo da regra de responsabilização adotada (como referido no primeiro capítulo), não há o estímulo para se alcançar um nível ótimo de atividade, deixando-se grandes ensejos para a ocorrência de acidentes (que, no caso, não seriam indenizados, porquanto regidos pela regra da responsabilidade – onde se exige apenas o cuidado devido). Sobre a ótica da responsabilidade estrita e, assim como a da negligência, os ofensores tendem a adotar os níveis ótimos de cuidado. Contudo, quando se trata da regra da negligência, os ofensores tendem igualmente a elevar o nível de extensão de suas atividades, porque não indenizam pelas perdas dos acidentes que causarem.105 Assim, em conclusão, dependendo da atividade exercida não haveria inconvenientes em apenas se respeitar o nível ótimo de cuidado (talvez na maioria dos 104 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoría de la Decisión Judicial: fundamentos de derecho. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 236. 105 “Under both strict liability and the negligence rule, injurers are led to take socially optimal levels of care. But under the negligence rule, they engage in their activity to too great an extent because, in contrast to the situation under strict liability, they do not pay for the accident losses that they cause.” In: SHAVELL, Steven. Economic Analysis of Law. New York: Foundation Press, 2004, p. 46. 57 casos, como afirma Shavell), mas não se pode desconsiderar a importância da minoria, cujos inconvenientes são bastantes para reduzir (ou afastar) aquela aplicação. Aliás, provavelmente em razão da dificuldade em se migrar as regras alienígenas para o direito brasileiro é que o âmbito da responsabilidade civil não é estudado com o mesmo afinco que os demais pela doutrina nacional. Desponta principalmente aqui a intenção de aplicar altos valores como pena (punitive damages) para que determinado agente modifique sua conduta social (um desestímulo econômico grave para o agente não repetir a mesma atitude, por exemplo). O instituto não se resume apenas a isso, porém, de qualquer forma, não é novidade doutrinária no Brasil. 2.5 DIREITO E ECONOMIA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMAS DE CRISTIANO CARVALHO Cristiano Carvalho se propôs a estudar a Teoria do Sistema Jurídico, traçando sua relação com os demais sistemas sociais. Segundo o autor, a teoria sistemática deveria cumprir, pelo menos, a função de delimitar categorias fundamentais e universais da ordem jurídica, analisar o nexo de suas partes com o todo e examinar a relação que o sistema jurídico possui com os outros subsistemas sociais106. Como subsistemas, devem ser considerados, dentre outros, a economia, a política, a religião, a moral. Assim, demonstra em sua fundamentação (já encontrada em Luhmann) que o sistema jurídico é aberto cognitivamente (na medida em que recebe informações dos demais sistemas) e fechado operacionalmente (por seu funcionamento interno ser previsto por intermédio de suas próprias normas), características necessárias para garantir a manutenção do sistema, que é capaz de adaptar-se e detém um equilíbrio interno (homeostase). Ressalta: o fechamento operacional não significa isolamento, 106 CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico – direito, economia, tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 25. 58 mas, sim, interdependência: “o sistema social como um todo é formado por essas interconexões entre os subsistemas: um estimula a auto-reprodução do outro”107. O mecanismo de auto-produção se utiliza da auto-referência. Isso significa: a capacidade de gerar um equilíbrio interno, bem como de se reproduzir, exigem que o sistema leve em consideração as suas normativas internas, prescribentes de como deve se modificar e determinadoras de algumas limitações. A troca de mensagens entre os sistemas gera uma necessidade adaptativa para os novos tempos, mas a mecânica das modificações dentro dos murros de um sistema ocorre segundo suas próprias normas. O sistema do Direito seria, então, autopoiético (assim como o da Economia). A conseqüência da autopoiese para o domínio jurídico é a consagração da sua autonomia sistêmica, em relação aos demais sistemas sociais. Desta forma, não se pode falar em manipulação econômica ou política do direito. Atos econômicos ou atos políticos não fazem atos jurídicos. O sistema jurídico não tem outputs; a influência dos demais sistemas não é direta ao sistema jurídico. Pode, quando muito, “estimular” modificações neste. [...] O fato de o sistema adotar um código valorativo binário [no caso, lícito/ilícito] para processar as mensagens que recebe do ambiente é fundamental para manter sua identidade. Assim, mesmo que o sistema econômico influencie o sistema jurídico, este não produzirá atos comunicativos econômicos, mas sim jurídicos, consoante os seus próprios critérios de produção.108 Reforça sua exposição com Hans kelsen, quando igualmente aduzira a exigência da Teoria Pura do Direito por autonomia e por auto-reprodução do Direito, pelo respeito a suas próprias prescrições, fixadoras de critérios para sua própria modificação109. Sob o ponto de vista da relação entre os subsistemas, Cristiano Carvalho é defensor aguerrido da não-intervenção do Direito na Economia, a qual, para bem funcionar, deve estar livre de interferências externas daquele. É verdade, apresenta farta fundamentação sustentando seu parecer, sinteticamente assim explicitado: 107 Idem, p. 126. Idem, p. 130-1. 109 Nestes termos afirma Kelsen: “particularidade que possui o Direito de regular a sua própria criação. Isso pode operar-se de forma a que uma norma apenas determine o processo por que outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado ainda – em certa medida – o conteúdo da norma a produzir. Como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida de uma determinada maneira, isto é, da maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação”. In: KELSEN, HANS. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p. 240. 108 59 A Teoria do Caos não nega as relações de causalidade. Porém, afirma que, pela dependência sensível das condições iniciais, não é possível prever quais efeitos surgirão. Se ficássemos nas meras previsões, o dano não seria tão grave. Porém, as previsões, quando advêm do detentor do poder político, geralmente têm cunho prescritivo ao utilizarem o ordenamento jurídico como tecnologia coercitiva. E pior, os “planos” para dominar racionalmente tais sistemas, na pior tradição racional-construtivista, sempre criticada por pensadores do porte de Friedrich Hayek, além de serem inúteis, têm quase sempre efeitos maléficos: ao querer impor um determinismo artificial, podem gerar ruído capaz de desintegrar tais sistemas. Destarte, o máximo que um “plano” pode conseguir fazer é perturbar um sistema, nunca dominá-lo. O sistema jurídico, ao tentar impor esse determinismo de que já falamos, estará fazendo o direito positivo: ao juridicizar a economia, estará criando normas jurídicas, i.e., mensagens imperativas, potencialmente perturbadoras do equilíbrio homoestático [sic] do sistema econômico, pois poderá obrigar o sistema a adotar comportamento distinto daquele que adotaria espontaneamente. Porém não estará criando a ordem econômica, que é espontânea (e não coercitiva). Não logrará dominar o sistema econômico que tem identidade própria; pode destruí-lo, não dominá-lo. Se assim não fosse, ter-se-ia que admitir que o sistema artificial do direito, pertencente à ordem do dever-ser, poderia controlar efetivamente a ordem do real, do ser das condutas. E sabemos, desde David Hume, que tal pretensão é impossível.110 Na verdade, assume o autor o suposto que, assim como o sistema jurídico, o sistema econômico é complexo e caótico: portanto, sujeito a instabilidades. A idéia, entretanto, não é pejorativa, porque a noção de caos é exatamente o necessário para gerar um novo estado de coisas, melhor que o anterior. É um gatilho para gerar uma modificação sobrelevadora do problema, modificando o sistema. Em tal contexto, a intervenção do jurídico no econômico abala a ordem natural das coisas, significando a ineficiência dos mecanismos de auto-controle próprios do setor econômico111. Aponta uma impossibilidade prática: sendo a ordem econômica espontânea, é extremamente complexa e dinâmica, não sendo possível a realização de pré-visões. É possível uma regulação dos atos que estão acontecendo 112, mas é inviável estabelecer movimentos futuros (inclusive, porque tendem a evitar a aplicação do 110 CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico – direito, economia, tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 118-9. 111 CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico – direito, economia, tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 248. Em outro trecho, afirma que: “A auto-regulação de um sistema econômico tem de vir de dentro do próprio sistema, é endógena. Uma economia de mercado, ou [...], uma economia mista, semi-livre, é autopoiética, pois regula a si própria, produz seus próprios elementos e é auto-referencial. Por isso a sua regulação não pode ser externa, como pretendem os apologistas da intervenção estatal na economia. Apenas um sistema alopoiético necessita que sua regulação seja externa, por isso tem a capacidade de se auto-reconstruir. Intervenções externas em sistemas autopoiéticos acabam trazendo ruído, mesmo que a intenção seja a oposta.” In: CARVALHO,op. cit., p. 269-70. 112 Idem, p. 271. 60 Direito, realizando outras atividades, economicamente mais vantajosas, e há uma tendência de reduzir a liberdade de experimentação prática e de progresso). Igualmente, o autor aponta que o sentido inverso também não é viável: Cabe ressaltar que é preciso ter cautela na utilização das ciências interdisciplinares, sob o risco de se confundir a aplicação metodológica de cada Ciência em particular. Não há problema, por exemplo, em utilizar-se o método econômico para interpretar o direito, desde que o intuito seja fazer Ciência da economia. Já a aplicação da metodologia das ciências econômicas no campo do Direito, com o intuito de fazer Ciência jurídica, acarretaria resultados funestos ao conhecimento do objeto pretendido.113 Ademais, o autor critica a concepção de “Justiça Social”, pela vagueza de seu conteúdo, além de significar que necessariamente alguém deve indicar os passos a serem tomados pelos demais, na intenção de atingir o objetivo igualitário (uma elite dominadora das regras, indicadora de resultados a serem alcançados, e não apenas das regras do jogo, como pretende o autor)114. Contudo, esse é o mecanismo pelo qual nossa sociedade é estruturada. O Poder Político, atuante da forma prevista na Constituição, estabelece, considerando os limites e objetivos lá impostos, a forma com que o Estado e as pessoas em geral devem agir, o que acaba sendo levado para o âmbito jurídico. A juridicização é a garantia do respeito às decisões políticas tomadas pelos representantes do povo. Perceba-se, entretanto, a inexistência de total liberdade de o Poder Político estabelecer resultados sociais: seu agir deve encontrar respaldo nos limites estabelecidos na própria Constituição (que também pode ser emendada em parte, é verdade, ou seja, alguns conteúdos podem ser razoavelmente manipulados). Inobstante, a crítica realizada pelo autor é a mesma apresentável contra a Law & Economics. De fato, essa busca modificar as regras do jogo de aplicação das normas jurídicas para garantir que o resultado esperado seja alcançado (aumento de riqueza, eficiência). Isto é, busca incutir no sistema jurídico regras e meios interpretativos para garantir a obtenção do resultado econômico pretendido. Resultado que não é o único previsto em nosso sistema jurídico e para o qual ainda não há evidências científicas capazes de indicar ser um efetivo meio para viabilizar os demais fins do Direito. 113 114 Idem, p. 53. Idem, p. 235-40. 61 Ressalta o autor: a interferência entre os subsistemas seria um “ruído”, que atrapalha o sistema comunicacional, prejudicando, por sua vez, o conteúdo da mensagem (gerando, por exemplo, acontecimentos indesejados quando o Direito pretende regular a Economia e quando há excesso de tributação). O ruído é algo considerado essencialmente negativo. A questão que urge é se um ruído não pode transformar uma mensagem em um resultado positivo? Explica-se: havendo o recebimento de uma determinada mensagem com ruído, é factível que sua interpretação levasse a um objetivo positivo, e não necessariamente a um negativo. Ou, mesmo, apenas parte da mensagem recebida seria o suficiente para criar no recebedor uma idéia nova, capaz de trazer fins positivos. Logo, de algo essencialmente negativo pode nascer algo positivo. A doutrina da Análise Econômica do Direito no Brasil, de um modo geral, critica a intervenção indevida do Poder Judiciário para “proteger” os inquilinos, porque seria um desestímulo aos proprietários para alugar seus bens, gerando uma escassez no mercado de imóveis para alugar e uma “óbvia” elevação de preços. Sustentam uma menor proteção, significando uma mais fácil retirada do inquilino inadimplente do imóvel (e da cobrança das dívidas), para os preços dos aluguéis diminuírem e para a existência de uma maior concorrência. Assim, os proprietários ficariam alegres pela segurança em receber os alugueres e os inquilinos pela amenização dos preços. Consideremos como perfeita a lógica da demanda proposta e a assimilação da intervenção do Judiciário como um ruído. Nada indica que seria mais valioso para o inquilino pagar uma quantia menor. Ora, bastaria realizar uma pesquisa empírica realizando o seguinte questionamento: “Você prefere pagar menos pelo aluguel ou pagar mais e ter a certeza de que não será despejado com facilidade, na hipótese de você não ter (ao menos temporariamente) condições de adimplir com a obrigação?”. A escolha da pergunta é crucial. Nesse caso, elegeu-se uma que carrega outros componentes além do questionamento puramente econômico (componentes valorativos éticos – com os quais o Direito se preocupa). Por outro lado, e essa deve ser a suposição adotada para se eleger os menores preços como vantagem, se perguntarmos aos inquilinos simplesmente se “preferem pagar menos pelo aluguel, podendo fazê-lo”, a unanimidade de perguntados responderia positivamente. 62 Isso demonstra a limitação de conhecimento em relação às conseqüências da escolha existente no momento em que realizada. Basta demonstrar que a escolha importa em uma renúncia, que a solução encontrada diferiria em grande proporção. Fazendo uso da própria linguagem econômica, se alguém está pagando menos é porque, ou está comprando menos, ou porque alguém mais está pagando a conta. E, mais: o sistema jurídico se preocupa também com o resultado do despejo. Alguém perdeu a sua casa e precisa morar em outra. Diga-se, é muito mais difícil encontrar um novo lugar quando se está endividado e despejado (porque o sistema econômico se protege contra a inadimplência) a restabelecer a relação inquilinoproprietário. O restabelecimento da relação desponta como algo com menos custos de transação, enquanto o despejo descarrega todos os custos no inquilino (acarretando problemas socialmente graves, porque a perda de uma residência afeta todas as ligações sociais da família, como trabalho, a saúde, a própria relação familiar). É dispensável dizer que a dignidade da família estaria afetada (ainda que eventualmente não fosse amparada pelo sistema), embora o proprietário estivesse em uma situação jurídica de excelência (se não recebeu, ao menos pode alugar para alguém que o pague). Tal discussão remonta a um assunto já apontado em momentos anteriores: a importância do alcance do Direito. Uma análise econômica do Direito realizada pelo Poder Judiciário pode ser efetivamente benéfica socialmente, como muitas vezes a doutrina aponta que o é. O inconveniente está numa análise econômica realizada individualmente, oportunidade em que pode trazer a colisão de interesses e a prevalência da lógica do mais forte. A vida é rica em exemplos nesse sentido (e o Direito adota a idéia como pressuposto quando regula a situação do trabalhador, do consumidor, do idoso). Esta lição, que se refere ao utilitarismo, continua apresentando elevada atualidade: “Mas se, além disso, as relações dos indivíduos com os demais só têm sentido como meio para o alcance dos fins de cada um deles, elas se tornam duplamente subjetivas – e, como se pode supor, potencialmente disruptivas”115. Perceba-se que, no nosso caso do aluguel, o inquilino representa uma fonte da renda “a qualquer custo” 115 OLIVEIRA, Márcia Gardênia Monteiro de; QUINTANEIRO, Tania. Labirintos Simétricos: introdução à teoria sociológica de Talcott Parson. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 29. 63 para o locador (porque o inadimplemento geraria uma fácil “exclusão” do inquilino); para o locatário, a situação é de uma fonte de moradia, somente e enquanto fizer os pagamentos em dia. Deve haver um equilíbrio: o inquilino que não paga suas dívidas quando tem condições, deve ser retirado com certa facilidade; aquele que não está com condições de adimpli-las, deve receber um tratamento diferenciado. E é papel do sistema jurídico tratar dessa ponderação, não da Economia. A sociedade é uma coletividade porquanto possui valores institucionalizados, uma cultura comum que deve ser mantida. Sendo também formada por um sistema de normas coerente que, numa sociedade moderna, pode chegar a ser “legal, integrado e administrado por tribunais”.116 Ademais, a atual fase de integração mundial, de fato, vem abalando diversas certezas e gerando uma miscigenação de valores culturais, uma integração econômica ampla, uma dificuldade de antevisão dos acontecimentos, enfim, acarreta complexidade social. Os subsistemas aparentemente já sofrem outros tipos de interações, que não apenas as interferências. Arnaud e Dulce foram atentos em relação a isso, ao constatar que a teoria dos sistemas prevista por Luhmann (onde se imaginava uma porta cognitiva e uma clausura normativa), unicamente teria sentido enquanto abstração117. Questionam como indicar “o momento, a quantidade e a qualidade”118 de sua abertura na prática. Luhmann resolve essa questão de legitimidade fundamentando-se na oportunidade – uma “oportunidade” que passa pelas mãos dos que têm o poder de decisão, o que leva a considerar-se o direito como uma máquina de reprodução da ordem estabelecida.119 A solução de Luhmann poderia ser interpretada como a nossa realidade jurídicosocial, como visto acima (que é contraditada por Cristiano Carvalho). Todavia, é possível realizar sérios questionamentos em relação à possibilidade de existir um equilíbrio interno nos subsistemas sociais, e no jurídico especificamente. 116 Idem, p. 131. ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 327. 118 Idem, ibidem. 119 Idem, ibidem. 117 64 O nódulo da questão consiste, na verdade, em se considerar os sistemas atuais como tendentes ao equilíbrio, como tradicionalmente reconhecido. A idéia de sistema jurídico sempre trouxe em si a noção de ponto de equilíbrio, uma vez que o fim do sistema social (mediante sua organização) seria a redução das complexidades e das contingências que a relação humana exige120. Preferível uma sociedade organizada a uma desorganizada, porque se inclinaria à destruição do próprio homem. Considerando a realidade fática atual, onde há uma integração global de meios de vida e culturas diferentes, qual a forma possível de se estabelecer e se reconhecer um ponto de equilíbrio quando cada medida descomplexificadora gera maior complexidade? Cada medida tendente a resolver um problema social, como o estabelecimento de uma política de distribuição de renda, de cotas raciais, de planejamento familiar, de combate à criminalidade, gera mais complexidade. Gera mais problemas sociais, em última instância. Essa é uma dificuldade patente para a teorização atual dos sistemas, na proporção em que questiona a possibilidade de se encontrar um efetivo equilíbrio social. Afinal, as nossas sociedades estão em constantes guerras e conflitos (de raça, de classe, de sexo, de gênero, de riqueza) e, para cada tentativa de elidir um problema, a complexidade social traz consigo outros. Neste ponto, pode-se discutir dois exemplos que possuem natural relação com a análise econômica: as relações trabalhistas e as políticas de maior eficiência econômica. Há uma tendência no Brasil de se indicar uma excessiva extensão de direitos trabalhistas, o que geraria uma elevação do custo da mão-de-obra (e, como corolário, do preço dos bens). Em distinta mão, não se discute outras conseqüências econômicas da restrição daquilo que o trabalhador recebe, além de uma suposta diminuição nos preços. A lógica é apresentada da seguinte maneira: ao se diminuir a gama de direitos, acaba o trabalhador recebendo menos. Isso, reflete em seu poder aquisitivo, na perspectiva de que possuiria menos renda para gastar. Entretanto, a redução não seria 120 “O que Luhmann entende por complexidade é a existência de mais possibilidades que as que podem ser atualizadas, isto é, ‘um excesso de possibilidades em relação à capacidade receptiva dos sistemas’, o que implica a necessidade de seleção. O que Luhmann entende por contingência é a imprevisibilidade das próprias possibilidades, o que implica a necessidade de se enfrentarem os riscos.” ARNAUD, op. cit., p. 166. 65 real, porque os produtos seriam mais baratos se a carga trabalhista fosse menor, sendo mais facilmente acessível por aquele e por outros trabalhadores: rendas mais baixas podem continuar comprando os mesmos produtos se os preços forem menores. A decisão de diminuir os custos do trabalho recairia praticamente sobre toda a sociedade, gerando uma diminuição geral das rendas e dos preços. Mas a relação não é logicamente necessária. A renda geral média é apenas um dos componentes que compõem os preços dos produtos, de maneira que sua diminuição provavelmente não traria uma igual redução proporcional nos preços (diminuindo o poder aquisitivo). Ademais, embora grande parte das pessoas passassem a receber menos, parcela importante do grupo de consumidores não teria a mesma diminuição, permanecendo com suas rendas no mesmo patamar: os servidores públicos, porque regidos por um sistema remuneratório diferente. Quais as efetivas relações entre esses vetores e suas conseqüências? Em suma, há uma enorme dificuldade em se encontrar as conseqüências de tal decisão política na economia, e não há muitos estudos sobre isso. Outro exemplo, cujos resultados são semelhantes, consiste nas políticas de diminuição das empresas (downsizing), que busca a redução da burocracia, maior agilidade nas decisões, racionalização de procedimentos, minimização da estrutura operacional (“empresas enxutas”). Indiscutivelmente a finalidade do empreendimento de “enxugação” parece justificar os meios pelos quais é concretizada: demissões, racionalizações de procedimentos (que retiram fontes de rendas que circundam o objeto principal da empresa, como distribuidores de copos para café, papel, etc.). No que tange às demissões, parece óbvio que a redução de postos de trabalho acarreta menor potencial aquisitivo geral, porque há menos pessoas trabalhando e auferindo renda. Aliás, um dos grandes fatores atuais do desemprego estrutural encontrado no mundo é a redução de postos de trabalho, provocada pelo aprimoramento de técnicas, da implantação da informática e da robotização. Isto é, enquanto a empresa se prepara para ser mais eficiente, dificulta o próprio ambiente em que pretende trabalhar: mais eficiência para um meio ao qual contribuiu para ser problemático. 66 Há uma aparente tentativa cíclica e global de melhorar a eficiência para um meio social difícil, enquanto que, ao fim (sob uma perspectiva macrossocial), a própria tentativa consiste em apoio a tornar a realidade social mais caótica. Menor taxa de emprego e maiores gastos desnecessários para melhorar a eficiência em um mundo de desempregados e sem renda (aliás, sempre se fundamenta pela busca de novas alternativas de absorção no mercado pelas pessoas desempregadas, mas dificilmente se menciona que nesse intento competem com as que, embora estejam no próprio mercado, buscam novas alternativas). Evidentemente, a argumentação aqui proposta peca pelo reducionismo de problemas complexos. Entretanto, permite elucidar que há muitas questões econômicas ainda pendentes de uma devida consideração, não tendo sido objetos de estudos científicos (talvez pela dificuldade dos métodos existentes para aferir a realidade atual). De qualquer forma, o exemplo trazido levanta uma outra hipótese praticamente esquecida: quanto de riqueza os procedimentos ineficientes produzem para a sociedade? Em outros termos, uma sociedade ineficiente economicamente necessariamente deixa de ser uma sociedade eficiente socialmente? A preocupação nos leva a considerar o quanto de riqueza os procedimentos ineficientes economicamente produzem. Por exemplo, um posto de trabalho desnecessário em uma grande empresa, que agrega, por suposição, cinco centavos no preço de um produto, enquanto sustenta uma família de quatro pessoas. O que seria mais vantajoso socialmente? Em regra, se optaria pela manutenção do posto de trabalho. Afinal, a elevação do preço compensaria o fim de conceder o sustento para uma família inteira. Claro. O problema é que a diferença de preço poderia significar o consumo de produtos concorrentes e o fechamento da grande empresa, gerando prejuízos sociais muito maiores que os de uma família. Esse dilema demonstra que a economia não nos ajuda diretamente na solução do problema, porque reduzirá o posto de trabalho exclusivamente porque é desnecessário (maior eficiência empresarial), excluindo a possibilidade fechamento da empresa (o máximo que o Direito pode fazer, do outro lado, é dar uma segurança contra o desemprego, concedendo direitos). 67 A questão circunda o fato de muita riqueza ser produzida por intermédio de procedimentos ineficientes economicamente. O custo de transação de um procedimento pode acabar por remunerar diversos outros postos de renda. Pode-se pensar que os custos de transação para se licenciar e emplacar um automóvel sustentam, por exemplo, diversas atividades circundantes, como a de despachante. Ou, na linha do exemplo do inquilino tratado acima, a existência de seguros e outros meios para garantir o recebimento da dívida. A redução ou eliminação dos custos, significa uma profunda alteração dessas atividades satélites. Há um grupo de famílias que vive da reciclagem de materiais que são descartados por uma grande repartição pública, por exemplo. A implantação de uma alternativa administrativa para reduzir o custo do papel adquirido pela repartição, que implicaria em desconto nas novas aquisições mediante a entrega do material descartado para reciclagem, retiraria das famílias uma fonte de renda (enquanto que daria um desconto na aquisição de novos materiais). Qual a alternativa mais viável? A decisão econômica aponta pela entrega do material quando da nova aquisição. Sob o ponto de vista social, poderia ser mais interessante a manutenção do sustento das famílias, que, embora numa economia informal, ainda tem uma fonte de renda. Muitos diriam que a retirada de renda das famílias forçaria uma organização entre elas (e com outras famílias) para aumentar sua competitividade no mercado de recicláveis, ou que poderiam trabalhar no setor de reciclagem da empresa que vende o papel, por exemplo. Também são alternativas viáveis logicamente. O problema é escolher uma delas, numa tal complexidade fática. De fato, a dificuldade encontrada para a escolha representa que a decisão não é puramente jurídica ou econômica, afetando outros subsistemas sociais. No caso, uma decisão política institucional poderia estabelecer qual a melhor opção a ser adotada, tornando a escolha jurídica (ainda que econômica). Assim, a relação entre os sistemas pode já não ser a mesma prevista por Luhmann, além da natural dificuldade em se reconhecer o legitimado a realizar a escolha e da enorme complexidade social existente, causadora de interferência, inclusive, na tendência sistêmica de encontrar um equilíbrio. 68 3. APANHADO DE PROBLEMAS E CRÍTICAS SOBRE A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO Neste terceiro espaço, pretende-se colacionar algumas críticas à Análise Econômica do Direito, assim como estabelecer melhor a noção trazida sobre o “funcionalismo”, apresentar algumas palavras sobre o “jurisprudencialismo” e buscar elucidar melhor a questão relativa à autonomia do Direito. 3.1 UMA CRÍTICA DE RONALD DWORKIN Um dos mais reconhecidos críticos da Análise Econômica do Direito é Ronald Dworkin. Já no início de um capítulo referente ao assunto, na obra “Uma Questão De Princípio”, o autor afasta a idéia central da maximização da riqueza individual apregoada pela Análise Econômica do Direito, porque nem sempre as pessoas têm a 69 intenção de pagar mais por algo que não têm (em relação ao preço pelo qual estariam dispostas a vender o bem se já o tivessem). Afirma que algumas vezes a soma alocada pelas pessoas para comprar um bem que não possuem é superior, fenômeno conhecido como “galinha mais gorda” (no Brasil, popularmente conhecido como “a grama do vizinho é mais verde”), segundo o qual as pessoas tendem “a cobiçar a propriedade do vizinho mais do que se fosse sua”121. A problemática consiste em que, em tal caso, haveria uma instabilidade crônica no sistema econômico. Haveria um movimento cíclico na distribuição dos bens: o vendedor passaria a valorizar mais a coisa após a venda e tenderia a recomprá-la, enquanto o comprador a valorizaria menos, tendendo a revendê-la à pessoa anterior. Além daquela hipótese, há casos de outorga de maior valor sobre algo já possuído, em proporção à quantia que as pessoas estariam dispostas a pagar para adquiri-lo. Nesse contexto, há diferenças concernentes à ordem das transações, porque as vendas e as compras dependem dos valores atribuídos pelos vendedores, assim como da expectativa do valor a ser atribuído ao bem após a compra. Assim, aduz pela aplicação de critério dúplice: a maximização da riqueza deve ser considerada quando aumentar a riqueza das pessoas, tanto em relação ao que pagariam para ter o bem, quando em relação ao que aceitariam para aliená-lo. Nos casos em que as duas avaliações discordam, o padrão de maximização da riqueza social é indeterminado. A indeterminação, em alguns casos, não constitui grande objeção a qualquer padrão de promoção social, contanto que tais casos não sejam desagradavelmente numerosos.122 Para Dworkin, a Análise Econômica do Direito não deve se preocupar com o conceito econômico de “eficiência”, porque este pressupõe a aplicação da eficiência de Pareto, muito facilmente alcançável (quando naturalmente não o é). O importante é a maximização da riqueza social, conceito que, ao contrário de Pareto, permite apenas uma solução correta para o problema: a maximizadora da riqueza social (enquanto a eficiência de Pareto, permitiria diversos arranjos que a satisfizessem). A maximização da riqueza é o fator relevante, e não o conceito técnico-econômico de “eficiência”, que remete à Pareto. 121 122 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 352. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 353. 70 Continuando em direção ao que entende ser o cerne do problema, ressalta não haver uma explicação capaz de justificar a razão pela qual uma sociedade é melhor quando a riqueza é maximizada, ou seja, não haveria explicação razoável para o motivo por que a maximização da riqueza seria um “objetivo digno”. Quem pensaria que uma sociedade que tem mais riqueza, tal como definida, é melhor ou está em melhor situação que uma sociedade que tem menos, a não ser alguém que cometeu o erro de personificar a sociedade, e, portanto, pensou que uma sociedade está em melhor situação se tem mais riqueza, da mesma maneira que ocorre com qualquer indivíduo?123 Na busca por uma resposta, Dworkin enfrenta as explicações ou justificativas possíveis, rechaçando-as. Entretanto, como pano de fundo de sua análise, a argumentação perpassa por uma discussão a respeito de ser a riqueza um objetivo (social e) para a Análise Econômica do Direito (ou se caracteriza como instrumento para outro objetivo). O autor afasta a idéia de maximização da riqueza como um objetivo, porque esta não é um valor em si, devendo encontrar apoio em outro fator que lhe ofereça delimitações e critérios capazes de permitir a aferição de sua ocorrência, ou extensão. Trata, por exemplo, da utilidade social da riqueza, expressamente afastada por Posner, ao mencionar que riqueza e utilidade não estão conjugados, podendo um andar na contramão de direção do outro. Para elucidar, o autor apresenta um exemplo da transferência forçada de um livro de uma pessoa pobre e doente para outra rica e saudável, e disposta a pagar pelo exemplar um valor superior em cotejo ao cobrado pelo vendedor, embora provavelmente não iria lê-lo: a riqueza cresce, a utilidade diminui (a riqueza é criada, mas o livro ficaria numa estante). De fato, resumidamente, reconhece que o fator riqueza, desconsiderado dos custos, das conseqüências, da justiça, não é propriamente um ganho. A riqueza não é um valor isolado. Ademais, critica a noção de ser a riqueza individual produtora de mais felicidade, o que também é reconhecido por Posner. E, mais: afirma não ser possível desconsiderar o poder da riqueza de reduzir a felicidade, uma vez que “as pessoas 123 Idem, p. 356. 71 querem outras coisas além da riqueza, e essas preferências adicionais podem ser colocadas em risco pelo aumento da riqueza”124. E não é só. Aduz a aceitabilidade dos indivíduos de elevar seu bem-estar individual em detrimento daquilo que entendem ser justo, se preocupando de forma efetiva e prevalente com seu destino pessoal: “a riqueza social (ou eficiência de Pareto) não desempenha nenhum papel nesses cálculos”125. Nesse contexto, dissocia da realidade o objetivo primordial elencado pela Análise Econômica do Direito (em especial, por Posner), de que as escolhas judiciais devem ser feitas de maneira a maximizar a riqueza, como supostamente ocorreria na vida de mercado, a qual todos estão sujeitos. Isso, porque não é inexorável a busca da primazia da riqueza em detrimento de outros fatores, como o bem-estar individual. A argumentação é simples, porém contundente: nada indica que uma sociedade mais rica é melhor que uma sociedade mais pobre. Afinal, como referido, há outros valores importantes a serem considerados, assim como relevante dependência dos objetivos sociais das coletividades. De qualquer forma, considera, na hipótese de ser a idéia de maximização da riqueza um elemento instrumental, a obrigação desta de encontrar amparo em uma concepção de Justiça de uma Teoria Padronizada, significando que a [...] distribuição é justa apenas quando se conforma a algum padrão que possa ser distinguido independentemente da história de como a distribuição ocorreu. [...] – [no caso,] os bens devem estar nas mãos dos que pagariam mais para tê-los.126 O inconveniente: tais teorias não são “puras”, havendo a utilização de outros elementos, que não apenas os ligados à utilidade, justiça, igualdade, merecimento. Por exemplo, em muitas oportunidades, a decisão (judicial ou política) deve dar prevalência à utilidade social e não à riqueza. Afinal, grande parte das vezes as pessoas visam ao bem-estar, e não à riqueza. Evidentemente, há outros fatores de potencial consideração, como o mérito, além da possibilidade de aplicação de uma concepção pluralista de justiça (exigindo a aplicação de vários fatores ao mesmo tempo para atingir uma 124 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 365. Idem, p. 368. 126 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 382. 125 72 verdadeira justiça, esbarrando na dificuldade efetiva de aplicar cada fator em uma medida efetiva para alcançar a maximização da riqueza, já que há uma tendência de que a aplicação isolada de cada um seja mais eficiente). Não afirmei que maximizar a riqueza é apenas um entre vários objetivos possíveis, ou que é um objetivo social mesquinho, pouco atraente ou impopular. Afirmei que ela não faz nenhum sentido como objetivo social, mesmo entre outros. É absurdo supor que a riqueza social é um componente do valor social, e implausível que a riqueza social seja fortemente instrumental para um objetivo social porque promove a utilidade ou algum outro componente do valor social melhor do que faria uma teoria instrumental fraca [que traria uma justificação para uma instituição realizar algo não de forma exclusiva, como a realização de ações, tanto pelo Judiciário, quanto pelo Legislativo, para alcançar determinado objetivo].127 A crítica também recai sobre a motivação que levaria os juízes a decidir pela maximização (comportamento individual dos decisores): se não há um objetivo claro para que seja maximizada a riqueza social (porque, em princípio, não pode ser um fim em si mesmo), também não seria possível justificar o atuar dos operadores jurídicos nesse sentido. A teoria deveria ser minuciosa, reformulada a ponto de demonstrar porque a suposição de maximização da riqueza pelos julgadores em determinada decisão permitiria o alcance de outros objetivos sociais “independente[s] valorizado[s] por esses juízes – a utilidade, o maximin128, o alívio da pobreza, o poder econômico do país em assuntos externos, ou algum outro objetivo”129. Diante das dificuldades apontadas, para a teoria da maximização da riqueza social como um objetivo, o autor elenca três hipóteses conclusivas: a do abandono do critério econômico (o que considera um desperdício); a da construção de uma teoria instrumental (atrelando-a “a alguma idéia de valor social, como a utilidade, recomendaria a estratégia maximizadora de riqueza como um bom meio [...]”130), levando a análise econômica a um detalhamento do qual jamais se aproximou; ou, por fim, a da busca de uma explicação de princípio (aplicando uma “concepção plausível de equidade”131, ao invés de buscar uma explicação política para sua aplicação. 127 Idem, p. 393. Vem da idéia de Rawls, segundo a qual deve-se utilizar o critério de maximizar a pequena vantagem que alguém possa ter (quanto menor a vantagem, maior qualidade deve possuir), ou seja, buscar melhorar o bem-estar daqueles mais desafortunados. De forma mais geral, realizar racionalmente a melhor escolha dentre as piores. 129 DWORKIN, op. cit., p. 394. 130 Idem, p. 396. 131 Idem, p. 397. 128 73 Ponto igualmente interessante, discutido por Dworkin, é aquele concernente à justificação apresentada por Posner para a aplicação da regra da maximização da riqueza. Posner afirma que a concretização da regra é viável porque praticamente todas as pessoas aprovam antecipadamente a idéia de maximização da riqueza, assim como que sua imposição é de interesse de todos (ou da maioria pelo menos). Dworkin critica ambas as jutificações. Recusa a primeira porque a noção de consentimento utilizada por Posner é demasiadamente abstrata (não considera efetivamente os fatos reais, é arbitraria e artificial), olvidando a parcela de pessoas que seriam beneficiadas pela adoção, por exemplo, de uma regra de responsabilidade diferente (e por isso não ofereceriam seu consentimento de fato) ou aquelas que já tiveram ou estão discutindo a aplicação da regra. Exemplifica da seguinte forma: algumas pessoas são sempre pedestres no trânsito, o que seguramente indicaria o consentimento da aplicação da regra de responsabilidade estrita (segundo a qual quem provoca os danos deve indenizar os prejuízos) e não a da negligência (pela qual só há indenização quando quem gerou o acidente agiu de forma negligente, não evitando os riscos da ocorrência do acidente – reduzindo os custos gerais do trânsito) quando o motorista não agiu de forma negligente, regra que seria mais profícua para a maximização da riqueza (mais eficiente). Afinal, as vítimas não querem arcar com os prejuízos do acidente. No contexto, embora a regra da negligência seja melhor para a visão econômica, e para os motoristas em geral, já que só indenizarão na medida em que agirem com negligência (desrespeitando as regras para evitar os riscos), para os pedestres a tendência deveria ser diferente. Logo, é difícil aceitar a regra da maximização da riqueza como consentida pelas pessoas (todas), sendo arbitrária tal presunção. O argumento se sofistica quando Dworkin enfrenta a idéia segundo a qual as pessoas têm interesse pela riqueza. Agora, considera alguém que, além de pedestre, também é motorista. Enquanto motorista, se beneficia dos menores custos do sistema da negligência; após ser atropelado por um motorista, ainda que não negligente, descobre serem as despesas de tratamento bem superiores ao que economizou enquanto dirigia. 74 Assim, conclui que o interesse na maximização da riqueza existia somente no momento antecedente, ou seja, antes de ser atropelado, quando passou a preferir o sistema da responsabilidade estrita (especialmente se não realizou seguro contra atropelamentos custeado com parte do economizado em razão dos menores custos como motorista). Em síntese: Quando não sei que serei atropelado, meu bem-estar esperado é mais elevado no sistema da culpa por negligência. Quando sei disso, meu bemestar esperado é mais elevado no sistema da responsabilidade estrita132. Ocorre que, no caso daquele exemplo ter ocorrido em um local onde o Judiciário não fixou ainda qual das regras de responsabilidade civil aplicar, se for concretizada a regra da negligência, não haveria eficiência (de Pareto). Se o fato for julgado conforme a regra da negligência, aquele e todos os outros do passado e do presente ficarão em pior situação em comparação à hipótese de a regra já estiver vigente quando da ocorrência (ou os danos fossem menores), tornando a decisão ineficiente. Estará em desvantagem após a decisão, ao passo que, no momento anterior, no mínimo, existia a dúvida em relação à aplicação da maximização. Assim, demonstra não existir unicamente vantagens no critério de Pareto (evitar comparações interpessoais de utilidade e moralidade política, quando não permite que ninguém fique em situação pior a que estava antes da decisão política), porque na consideração de fatos controversos sua aplicação apresenta problemas. Além disso, a eficiência, sob essa ótica apresenta igualmente incompatibilidades com alguns dos princípios jurídicos. Imagine-se uma questão onde se está a tratar de igualdade entre as pessoas: desde que uma pessoa melhore de situação e outra não sofra prejuízo com isso, encontrou-se a eficiência. Todavia, quebra-se a igualdade, a qual pressupunha exatamente que ambos deveriam estar ou permanecer numa mesma situação. Isto é, ao se atingir a eficiência, quebra-se a igualdade. É possível estender tal referência do autor à aplicação de outros princípios, como o da redução da pobreza, da liberdade: caso alguém fique em situação vantajosa, afastase do objetivo jurídico (eficiência jurídica), embora haja eficiência econômica. 132 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 421. 75 As críticas de Dworkin são teoricamente fatais133. Contudo, não elidem a aplicação da Análise Econômica do Direito na prática. As refutações, embora tenham eminente importância, ao demonstrar a inexistência de um substrato teórico suficientemente estabelecido pela Análise Econômica do Direito e ao apresentar problemas da aplicação da eficiência e da maximização da riqueza, tal circunstância não evita a aplicação prática das teorias econômicas no Direito. É que, inobstante a importância científica dos arranjos teóricos, a análise econômica busca exatamente modificar e trazer mais argumentos e elucidações para a aplicação prática do Direito, elevando seu grau de habilidade para tratar com os assuntos cotidianamente desconsiderados nas decisões jurídicas. De qualquer forma, a impossibilidade de se encontrar uma satisfatória justificação teórica para aplicação da Análise Econômica do Direito ou fazer uma razoável conexão entre as duas ciências significa muito: que a autonomia do Direito está preservada. Não houve a captura, ao menos por enquanto, haja vista que a Análise Econômica do Direito não conseguiu demonstrar de que forma se integra ou liga ao pensamento jurídico e ao Direito. E mais: não conseguiu demonstrar com clareza metodológica inquestionável o papel que a riqueza ou sua maximização tem a cumprir na sociedade e no Direito. Afinal, almeja-se a riqueza, com isso praticamente todas as pessoas concordariam (e veja-se que não é a totalidade). Mas com qual propósito? (e aqui certamente a discordância é estrondosamente mais elevada, em especial, se considerar-se que é apenas um fato relevante na vida humana, dentre muitos outros. 133 Para Dworkin, a solução deveria ser a adoção pela Law & Economics do seguinte princípio: “As pessoas deveriam assumir a responsabilidade por tais custos de acidentes [...] se essa responsabilidade lhes fosse atribuída pela legislação numa comunidade ideal em que todos atuassem e votassem com senso de justiça e igual consideração e respeito mútuos, baseados em informações que também estão disponíveis para o ator, de maneira fácil, pública e confiável [o autor nomeia-o de Beta]. [...] Beta é um princípio sobre a responsabilidade natural e portanto, como guia para prestação jurisdicional, une o julgamento e a moralidade privada e permite a afirmação de que uma decisão em um caso controverso, atribuindo responsabilidade a alguma das partes, simplesmente reconhece a responsabilidade moral dessa parte. [...] Portanto, é irrelevante que beta nunca tenha sido expressamente reconhecida como um compromisso de nosso sistema jurídico. Ela tem, por assim dizer, suas próprias razões para ser um princípio de eqüidade. Se for possível demonstrar que as decisões passadas teriam sido justificadas por beta, isso realmente servirá como argumento de que essas decisões foram justas. Se for possível demonstrar o mesmo para as decisões futuras, apenas isso já recomendará essas decisões como justas.” DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 429-34. 76 E, aqui está o ponto prático justificador da dificuldade de captura do Direito: este considera com elevada importância os outros fatores, e não apenas a repercussão que os problemas trazem à riqueza. A afetação do Direito é muito mais ampla, e uma simples leitura do artigo 3° de nossa Constituição dá conta em demonstrar tal realidade. O Direito tem fins (embora não haja unanimidade sobre quais seriam), enquanto a análise econômica tem um fim, e desamparado de um consistente apoio teórico (embora na vida prática, as pessoas tendam a aplicar a idéia de custo-benefício para decisões não verdadeiramente econômicas). Outrossim, as discussões trazidas por Dworkin, já referidas no primeiro capítulo como um pressuposto para Posner, consideram a realidade da Common Law, realidade na qual o papel do juiz apresenta diferenças em relação ao sistema brasileiro. Em nosso sistema, em tese, não são os magistrados que escolheram qual a regra de responsabilidade civil a ser seguida em determinado caso, mas a lei. A vantagem consiste em uma atuação muito mais restrita do magistrado, porque deve considerar a previsão normativa legal (restando pouco espaço de escolha pela aplicação de raciocínio econômico). A desvantagem, por outro lado, é enorme: como se costuma dizer nos meios de comunicação, “basta” mudar a lei. A possibilidade de aplicação da análise econômica de certa maneira, como referido, já é considerada na realização das leis, mas, inegavelmente, sua influência poderia ser muito superior (mas nessa hipótese, seria necessário uma fundamentação teórica que justificasse a inclusão maciça dessas idéias na legislação). 3.2 QUESTIONAMENTOS SOBRE POSTULADOS DA ECONOMIA Outro inconveniente consiste no fato de a própria Ciência Econômica, assim como seus instrumentos, renderem dúvidas científicas. Por exemplo, a própria idéia de comportamento deve considerar os fatos sociais, e não estar apenas ligada a uma noção teórica. Essa é a crítica que os sociólogos da 77 economia fazem aos economistas. Afirmam que o raciocínio dedutivo proposto por estes (que imaginaram incorporar uma verdadeira “lei” do comportamento) desconsidera fatores sociais indispensáveis, capazes de modificar suas leis (como as instituições, as redes de trabalho, o poder e a cognição). Os estudos práticos de observação feitos pelos sociólogos demonstraram ser a economia uma realidade imbricada na vida social. Todavia, no intuito de escapar dessa idéia, mantendo aquela como um “mundo a parte”134, os economistas formularam teorizações abstratas nas quais o comportamento é considerado como integrante de uma fórmula, sendo tratado pela expressão “como se”. Sociólogos são indutivos, derivando suas teorias sobre o comportamento pela observação do próprio comportamento. Economistas são dedutivos, derivando teorias sobre comportamento mediante o axioma de que o interesse-próprio dirige o comportamento individual.135 A observação dos sociólogos demonstrou que o comportamento econômico influencia a vida social; mas, reconheceram uma outra face da mesma moeda: o comportamento econômico é influenciado pelos fatores sociais. As pessoas são movidas pelas e se movem entre as regras e convenções sociais, sendo essas obviamente também influenciadoras do comportamento econômico. Logo, modificando a circunstância de tempo e local, o comportamento social e o econômico se modificam também. É possível vislumbrar, por exemplo, a política de preço de uma mesma empresa que possui lojas em Nova Iorque e em algum lugar do Afeganistão: agirão de maneira diferente, adaptando-se ao meio social, sob pena de saírem do mercado. Em certa medida, isso significa que o “comportamento social e o econômico se originam da mesma forma, não do individual, mas da sociedade”136. Agora, tratando-se as questões sob um ponto de vista propriamente econômico, constata-se a existência de enorme gama de teorias para explicar as ações humanas, tendo algumas, inclusive, apresentado soluções contrárias, dependendo do grau de 134 DOBBIN, Frank. The Sociological View of the Economy. In: DOBBIN, Frank (org). The New Economic Sociology: a reader. New Jersey: Princeton University Press, 2004, p. 3. 135 No original: “Sociologists were inductive, deriving theories of social behavior by observing behavior. Economists were deductive, deriving theories of economic behavior from the axiom that self-interest drives individual behavior.” In: DOBBIN, Frank. The Sociological View of the Economy. In: DOBBIN, Frank (org). The New Economic Sociology: (…). New Jersey: Princeton University Press, 2004, p. 3. 136 Idem, p. 40. 78 influência dos fatores considerados. Um exemplo problemático seria a teoria da escolha racional (que verifica a ação comportamental de acordo com um modelo ideal) em relação à teoria dos jogos – racionalidade estratégica (demonstrando que em grande parte das vezes a escolha tomada contraria a melhor escolha racional, exatamente pela circunstância de os tomadores da decisão não terem condições de considerar todas as elementares, como a reação das outras pessoas, por falta de informação). O agir estratégico, especialmente, apresenta grandes inconvenientes para a teoria econômica conseguir estabelecer seus preceitos. A Análise Econômica tende a pressupor que todos os envolvidos estão engajados em busca de um resultado eficiente, o melhor resultado. Entretanto, uma grande monta das ações humanas está relacionada com a busca unilateral de lucro: não há uma cooperação. Os envolvidos buscam nada mais que o melhor para si, movimentando seus passos de acordo com as informações que detêm no momento da negociação. É interessante notar: a própria teoria econômica já demonstrou, por intermédio do “dilema do prisioneiro”, entre outros exemplos, que a ação estratégica unilateral é tendencialmente prejudicial a ambos os envolvidos. A eficiência da negociação é mais facilmente atingida quando as partes cooperam na sua busca. Em outras palavras, a informação é plena e discutida honestamente entre os interessados. 79 Em um âmbito processual, se vislumbraria que, por exemplo, a parte não está interessada na justiça do caso, mas em apenas ganhar a causa137. Interessante também notar que com a repetição do “jogo” (na proporção que os envolvidos apreendem outras informações), o resultado tende a se modificar (elidindo uma certeza sobre o resultado). Por outro lado, há casos nos quais o defeito do agir estratégico é o que permite uma solução para o caso prático, o qual, independentemente da conjugação de informações entre os interessados obteria o mesmo resultado. Pode-se adaptar um clássico exemplo, como o dos leões e da gazela, ou o dos bandidos e da vítima armada. No caso dos leões, estão dispostos em grande número e sabedores previamente que a gazela não será suficiente para alimentar a todos. Sabem, igualmente, que o primeiro leão que atacar a gazela e a matar comerá mais e, por conseqüência, dormirá após a refeição, tornado-se, por sua vez, vítima dos demais. A tendência é a de que ninguém ataque a gazela, ficando esta incólume (ao menos na teoria). O outro exemplo é aquele em que há uma vítima armada com uma arma de dois tiros e há seis bandidos tentando ingressar em sua casa. Na medida em que tomam conhecimento de que há dois projéteis, esses têm certeza de que pelo menos quatro sairão vivos e terão êxito no assalto: porém dois serão abatidos. A tendência, como no caso anterior, é o reconhecimento de que o preço a ser pago pelo beneficio auferido é muito alto, sendo mais interessante procurar outra vítima. 137 Oliver Williamson, apresenta outros pontos que também devem ser considerados, quando agrega a idéia de racionalidade limitada ao estudo da Economia das Organizações, chegando à conclusão de que a unanimidade dos contrato complexos são incompletos. Explica: “a combinação de contratos incompletos (decorrentes da racionalidade limitada) com informações pouco confiáveis (decorrentes do oportunismo, que será tratado adiante) corroem a idéia de que o simples conhecimento do contrato entre duas partes será suficiente para eliminar problemas pós-contratuais. Sendo implausível atribuir conhecimento eqüitativo aos árbitros das disputas (tribunais), o conhecimento eqüitativo do contrato entre as partes não impede o surgimento de disputas pós-contratuais e de má adaptação dos contratos. Conclui-se que, contrariamente aos resultados tradicionais da teoria dos jogos, barganha a custo zero não é razão suficiente para a eficiência pós-contratual.” Assim, considera também que grande parte daquilo que interessa para a análise do comportamento dos indivíduos está na exceção, e não na regra. Logo, ainda que as partes tenham discutido e se esforçado para atingir a maior eficiência possível (com os menores custos) não há garantias de que o contrato será eficiente, uma vez que isso não elide a possibilidade de um terceiro ter de interpretá-lo, a ocorrência de algo imprevisto, a inexistência de meios alternativos para solução dos problemas ou a incapacidade destes. WILLIAMSON, Oliver. Por que Direito, Economia e Organizações? Tradução de Décio Zylbersztajn. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 22. Sobre as vantagens da renegociação dos contratos, ver, também: SHAVELL, Steven. Economic Analysis of Law. New York: Foundation Press, 2004, p. 77. 80 Em ambos os casos, o agir estratégico dos agentes (quer pensados individualmente – oportunidade em que ninguém aceita para si o destino de ser abatido - ou como grupo – quando conjuntamente compreendem ser melhor se manter íntegro) é exatamente o limitador da ação, porque ninguém quer ser a perda, embora tenham consciência do êxito da empreitada (substitua-se a gangue por um corpo de militares em cumprimento de uma missão). Variável interessante consiste no caso de os bandidos terem a sensação de que os ganhos são vultosos (como um baú de moedas de ouro, ou na missão dos militares), quando possivelmente correriam o risco de sofrerem as perdas. Mas, nessa hipótese, percebe-se, as circunstâncias subjetivas dos agentes são os elementos preponderantes para a decisão, prejudicando a idéia de se formar uma “lei” sobre o comportamento. De fato, a lei acaba se tornando vazia de sentido, porque só é passível de verificação no momento da ocorrência do fenômeno que se pretende pré-dizer. Especialmente em relação à posição dos agentes em relação ao risco: adversos, aceitantes. Mas a idéia do agir estratégico remete ao problema da informação, apresentando, essa, relevância para o direito em razão das conseqüências jurídicas de possível ocorrência. A esta altura é possível falar, por exemplo, do erro, cuja proteção jurídica no Brasil é relativamente limitada. Limitada, porque não se protege o insipiente em todas as situações, mas apenas quando o erro é substancial, ou seja, quando é o elemento determinante para a formação da vontade. Em outras palavras: se tivesse percebido, não teria anuído para a realização do ato como o fizera. A questão apresenta relevância quando, por intermédio da teoria da confiança, se verifica que nenhuma das partes interessadas poderia ter reconhecido o erro, porque não o é acessível à normalidade das pessoas. Imagine-se, por exemplo, um negócio realizado entre duas pessoas que não consideraram e avaliaram corretamente as vantagens de um negócio (o que em determinada circunstância não poderia ser reconhecido por praticamente ninguém, como o cálculo econômico dos custos de produção e de manutenção da coisa adquirida – que deveriam ser muito mais amplos). Nessa hipótese, alguém vende um bem por um valor não lucrativo (pensando que o fosse) e o outro adquire a coisa pensando ter uma manutenção consideravelmente 81 menos onerosa que a efetiva. Se não fosse pelo “erro de avaliação”, ambos não teriam feito o negócio nos termos em que acordado. Entretanto, o Código Civil não ampara a pretensão de invalidação do negócio, que pode ser desfeito pelo consenso, evidentemente. Ora, ambos laboraram em erro e, nas circunstâncias normais, toda e qualquer pessoa cometeria o mesmo erro, porque trata-se de desconhecimento de uma técnica (que talvez só fosse descoberta após a negociação); porém o sistema jurídico não o reconhece como tal. É o risco normal do negócio, de cuja análise se extrai a vontade ou não de realizá-lo, a avaliação das conveniências. Pense-se, por exemplo, no caso de alguém que comprou um veículo para reformá-lo e, posteriormente, vendê-lo. No preço da venda, desconsiderou os custos indiretos, como o espaço ocupado na oficina (que impediu que consertasse outros veículos ao mesmo tempo, e auferisse mais renda, ou o desgaste das ferramentas), o que tornou o veículo muito mais barato do que deveria ser para compensar a venda. O comprador, no exemplo, embora buscasse obrigatoriamente um veículo baixa manutenção, desconsiderou o preço da substituição de determinadas peças (que custariam o valor do veículo), o que por si só deveria desvalorizar em muito o bem, devendo o preço ser muito inferior. Nenhum percebeu essas circunstâncias, que, se conhecidas, inviabilizariam a realização do negócio na forma em que efetivado. E, pior, tal conhecimento talvez nunca fosse adquirido. Esse exemplo imperfeito, simplório e hipotético é capaz de demonstrar que, embora por uma análise economicista seja possível aferir um problema na relação, pelo viés dogmático-jurídico esse problema não é viável, porque não faz parte daquilo que razoavelmente era esperado das pessoas. Assim, embora a análise econômica permita aos participantes desfazerem o negócio, não permite a invalidação jurídica, porque o caso está fora da previsão normativa. Esse problema ressalta outra característica extremamente problemática para o direito (e para o erro), que é a informação possível de o sujeito deter quando da realização de um negócio (e o reflexo que isso determina na aferição da eficiência). Não a informação corriqueira, mas a informação que inclusive é desconhecida pela outra 82 parte, como um indireto dano que um determinado produto causa à natureza, a ser descoberto futuramente. A solução jurídica é a responsabilização objetiva pelo dano ambiental, enquanto que economicamente o problema não era calculável como custo, em razão da impossibilidade racional de atingi-lo pela lógica no momento anterior138. No futuro será considerado, provavelmente até de forma a compensar os prejuízos causados, mas os negócios realizados no passado não podem ser desfeitos (basta vislumbrar a hipótese de a empresa produtora ter sido adquirida por outra que, sucessivamente, também foi adquirida posteriormente, as quais não subsistem juridicamente e seus ex-sócios já faleceram). Deve-se esclarecer, que algumas teorias econômicas139 já reconhecem que os contratos são “incompletos”, uma vez que as partes não têm condições de buscar previamente todas as possibilidades de intercorrências, quer em razão da elevação dos custos de transação, quer pela impossibilidade racional dos agentes. Tão-somente a título de esclarecimento, elucida-se que as teorias econômicas buscam diferenciar a forma e o momento da ocorrência da solução dos problemas existentes nos contratos (incompletos). Por exemplo, a Análise Econômica do Direito, concede prevalência ao Poder Judiciário como meio capaz de trazer soluções para os problemas com custo zero para as partes. Havendo uma intercorrência, o Judiciário estabelecerá qual a solução mais eficiente para o problema, eliminando um custo de transação para as partes (mas ir ao Judiciário gera custos, inclusive de oportunidade). Por sua vez, a Nova Economia Institucional (teoria que agrega também como fator a importância das Organizações ou firmas para a ação dos agentes econômicos) apresenta prevalência para os meios não judiciais de solução das controvérsias decorrentes dos contratos. As partes buscam estabelecer os meios e mecanismos de solução dos problemas ocorridos durante o contrato (ou pós-contrato), havendo relevância para um estabelecimento dos direitos de propriedade e para os mecanismos 138 Se a questão fosse discutida no âmbito consumeirista, sequer haveria qualquer responsabilização, porque a melhora da técnica ou o descobrimento posterior não significa ter havido desconformidade com os produtos vendidos anteriormente à descoberta (artigo 12, §1°, III, e §2°, do Código de Defesa do Consumidor). 139 Para maior esclarecimento acerca das teorias contratuais, abordagens e extensão, consultar: AZEVEDO, Paulo Furquim de; SZTAJN, Rachel; ZYLBERSZTAJN. Economia dos Contratos. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 102-12. 83 de solução dos problemas (requisitos para a redução dos custos de transação e diminuição do oportunismo, na medida em que os problemas podem ser discutidos com a finalidade de prevalecer a maximização do valor da relação econômica). Haveria um reconhecimento pelos agentes econômicos da inevitabilidade da ocorrência de eventuais desajustes, existindo, então, previsões para a solução dos problemas (ainda que seja a simples previsão para rediscutir as cláusulas, na ocorrência de um desequilíbrio). Em outras palavras, a teoria reconhece que os agentes não possuem um conhecimento pleno, sendo, também, incapazes de processar integralmente os elementos defeituosos (informações) que estão a sua disposição: os indivíduos agem na tentativa de encontrar uma eficiência adaptativa. Como afirma Aguirre, “não que eles não queiram acertar, o problema é que não sabem qual é a resposta correta para seus problemas e vão buscá-las na base da tentativa e do erro”140. Ora, perceba-se, falando em tentativas de adaptação para encontrar a eficiência, está-se a falar reflexamente de circunstância cara ao Direito que é a segurança. Qualquer tentativa adaptativa pode ser traduzida como uma instabilidade para o Direito, geradora de insegurança, ao menos inicialmente, sobretudo se for considerado como critério balizador a eficiência econômica (que sob certo aspecto é volátil)141. A questão da dificuldade de obter e processar as informações também pode ser estendida para as aplicações econômicas criminais. Por exemplo, como é possível ao criminoso brasileiro (em sua grande maioria semi-alfabetizados) realizar um cálculo da sua chance de ser pego, a fim de avaliar se compensa realizar determinado ato criminoso? Ou, por outro lado, como o Estado calcularia a chance de pegar um criminoso, considerando especialmente a dificuldade de acesso até mesmo para serem realizados registros de ocorrências policiais (não se pode esquecer a extensão do território nacional)? A resposta imediata inviabiliza totalmente a aplicação das teorias econômicas nesse contexto. Inobstante, pode-se ir mais longe: como aplicar a lógica economicista quando a escolha do criminoso é entre cometer o crime ou morrer de fome? Perceba-se que a 140 AGUIRRE, Basília; SZTAJN, Rachel. Mudanças Institucionais. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 240. 141 Atualmente esses questionamentos são tratados pela Economia Institucional, e não profundamente pela Análise Econômica do Direito tradicional. 84 aplicação de tal hipótese prática viola totalmente a regra econômica, porque a escolha não é de utilidade, mas de sobrevivência (embora possa ser dito que, em último aspecto, essa também se resume a uma utilidade). E, num caso como esse, dificilmente haveria uma condenação (o juiz não maximizaria a riqueza e a absolvição poderia ser interpretada como incentivo para a ocorrência do fato). E como compatibilizar com as leis econômicas a aplicação do princípio da bagatela, por exemplo? Oportunidade em que o Poder Judiciário reconhece a desnecessidade de um apenamento para alguém pela diminuta lesividade da conduta realizada. Se for possível falar nestes termos, houve ineficiência no momento que a foi modificado o estado de riqueza sem que fosse alcançado sua maximização, mas, juridicamente, é indubitavelmente a melhor decisão. A tradução que o sistema jurídico faz do fato social é contrária à regra da demanda, por exemplo (tenderia a estimular o fato social). Além da questão da informação, outro ponto que merece ser tratado com mais vagar é o da eficiência. Embora tratada anteriormente, a noção de eficiência recebe uma perspectiva diferente aos olhos de Alain Supiot, quando estudava aquilo que considera como uma das três figuras do fundamentalismo ocidental142, o cientismo. Nos seguintes termos, apresenta crítica contundente à Análise Econômica do Direito: Mas são, igualmente, os direitos do Homem da primeira geração que o cientismo conduz a interpretar à luz das supostas leis da economia. Quando, por exemplo, o artigo 5 da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclama que «ninguém será submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes», um dos pais da análise econômica do Direito, Richard Posner, afirma que «se as implicações forem suficientemente elevadas, a tortura é admissível». Esta interpretação no mínimo audaciosa intervém no contexto da «guerra contra o terrorismo» e da mobilização patriótica do «pós-11 Setembro». Mas ela está perfeitamente conforme com o princípio da análise económica do Direito, segundo o qual o cálculo de utilidade é sempre o fundamento e o limite dos direitos individuais. A utilidade para um indivíduo de não ser torturado (que fundaria o direito do Homem correspondente) deveria, pois, ser referida à utilidade que pode haver para outros homens em torturá-lo. Na há, aqui, afinal de contas, nada de novo em relação às justificações mais rústicas da tortura, que 142 “[...] o messianismo, quando procura impor ao mundo inteiro uma interpretação literal; o do comunitarismo, quando se faz, pelo contrário, dos direitos do Homem a marca de uma superioridade do Ocidente e se nega a outras civilizações, em nome do relativismo cultural, a capacidade de se apropriar deles; e, finalmente, o do cientismo, quando a interpretação dos direitos do Homem é referida aos dogmas da biologia ou da economia, que seriam as verdadeiras leis intangíveis do comportamento humano.” SUPIOT, Alain. Homo Juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2005, p. 219. 85 produzia o general Massu durante a guerra da Argélia, a não ser a convocação da Ciência para justificar o afastamento dos direitos do Homem.143 Sob tal ótica, uma análise pura da eficiência pode levar a um raciocínio absolutamente contrário aos fins das leis e das constituições. Não se discute mais no meio jurídico acerca da necessidade histórica e importância dos direitos fundamentais. A idéia criticada pelo autor com muita precisão, retorna a humanidade para um passado certamente já distante (ao menos no que concerne a um dever-ser). A idéia de utilidade a ser alcançada, pode justificar a violação dos direitos mais comezinhos e fundamentais, além de uma verdadeira desconsideração da situação individual levada a julgamento. O desapego ao caso individual levado ao Judiciário é gritante quando a doutrina busca enaltecer as vantagens econômicas da adoção da stare decisis, que se constitui no modelo de adoção dos precedentes. A discussão, no Brasil, circunda a da “súmula vinculante”, que tem o condão de direcionar as decisões judiciais no caminho daquelas já tomadas pelos tribunais superiores. Ressalta-se, aqui, uma circunstância tomada como vantagem econômica do sistema de precedentes: “outro fator é a minimização dos custos de revisão judicial, pois os precedentes possibilitam que as cortes superiores escolham os casos para revisão de maneira mais eficiente”144, o que elevaria o desejo social pelas leis provenientes do Judiciário em detrimento daquelas provenientes do Legislativo, o que traria, por fim, um efeito positivo de “aumenta[r] o poder do Judiciário em relação ao do Legislativo” 145. Além do mais, afirmam que os juízes gostariam disso porque elevaria o tempo livre, possibilitando que aqueles mais “ambiciosos” pudessem ser influentes e que os juízes decidiriam conforme o precedente nos assuntos menos familiares, permitindo uma verticalização do estudo em assuntos que sejam de seu interesse particular. Ora, esse modelo de eficiência é falaz. Isso, porque o precedente deve ser mudado sempre e segundo a exigência de determinado caso, e não após a escolha dos 143 Idem, p. 227-8. GORGA, Érica; SZTAJN, Rachel. Tradições do Direito. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 176. 145 Idem, ibidem. 144 86 casos em que a revisão possa se dar de modo mais eficiente ou quando o assunto for julgado por um magistrado com ele familiarizado. É direito da parte ter o seu caso julgado conforme o melhor critério encontrado capaz de pacificar a situação, e não detém o Judiciário a prerrogativa de julgar mal um processo individual em nome de uma eficiência econômica. Esse tipo de perspectiva viola os direitos fundamentais, alienando-se do fiel cumprimento do devido processo legal, no qual não consta a possibilidade de o Judiciário oferecer uma decisão conhecidamente incorreta para uma parte. A alternativa, é fazer as modificações em partes, na medida em que os casos vêm aparecendo de forma mais completa (gerando decisões complementares a respeito de um tema). Aliás, o nosso sistema de vinculação das decisões reconheceu parcialmente esse problema, ao determinar a suspensão dos recursos extraordinários que tratam de matéria semelhante àquelas que aguardam no Supremo Tribunal Federal o julgamento sobre a “repercussão geral”, conforme dispõe atualmente o artigo 543-B do Código de Processo Civil. Assim, embora sobrestados enquanto o Supremo Tribunal Federal decide a solução da controvérsia, quando o mérito do recurso extraordinário “paradigma” for julgado, podem os órgãos judiciais retratar-se, ainda que seu julgamento anterior fora contrário ao daquele. Assim, a modificação de uma decisão tende a ocorrer para todos os que a mereçam. Outra questão tormentosa para a Análise Econômica do Direito é o objetivo do Direito de gerar uma redistribuição social, meio encontrado para concretizar o objetivo constitucional previsto no artigo 3º, inciso III: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. É que a grande parte da doutrina da Law & Economics não aceita a redistribuição social, em razão da ineficiência “geral” que tende a ocorrer. A negação da redistribuição social, especialmente no que concerne ao “direito privado” (em contraposição ao Direito Tributário, por exemplo), é explicada por Cooter e Ulen, ao afirmarem, dentre outros motivos, que há controvérsia entre os economistas sobre as finalidades das distribuições e que uma redistribuição eficiente sob a perspectiva de quem recebe os bens gera uma redistribuição ineficiente em relação ao 87 todo maior. A ineficiência global ocorre em razão das perdas geradas pelo processo de distribuição. Em outra perspectiva, que o montante a ser redistribuído é assunto de difícil acordo entre as pessoas, enquanto que os meios para fazê-lo normalmente são concordes. Colorindo a explanação, os autores apresentam o seguinte exemplo: dois oásis num deserto, onde um produz sorvete e o outro não. As pessoas que simpatizam com a justiça social dirão que o primeiro oásis deve distribuir sorvete ao segundo, que não consegue produzi-lo. O fato problemático é a perda de sorvete (derretimento) causado pelo calor do sol, fazendo com que, para haver um consumo igual entre ambos os locais, deve-se considerar a perda no transporte (em proporção, para se atingir um consumo igual entre ambos, deve sair do primeiro um volume muito maior ao que é consumido – o que gera novo desequilíbrio). Aduzem a concordância geral de a carga ser transportada pelo corredor mais ágil existente (o que reduz o desperdício), mas há dificuldade em encontrar o volume de sorvete que deve ser redistribuído146. O problema é que essa negação, racionalmente justificada pelo preciso exemplo, contraria um dos ideais do Direito: ao invés do sorvete, pensemos em remédios. El derecho (siempre en sentido sociológico) no garantiza únicamente los intereses económicos sino los intereses más diversos, desde el normalmente más elemental, la protección de la mera seguridad personal, hasta los puros bienes ideales como el propio “honor” y el de los poderes divinos. Garantiza sobre todo, también, situaciones de autoridad política, eclesiástica, familiar o de otra clase y, en general, situaciones sociales privilegiadas de todas clases, las cuales, sea cual fuere su relación con la esfera económica, no pertenecen en sí mismas a este sector, y tampoco son apetecidas necesariamente o de un modo predominante por motivos económicos.147 Em outras palavras, o Direito, como sumariamente já referido, busca trabalhar com um estado ideal de coisas (dever-ser), enquanto a Economia trabalha de forma mais efetiva com aquilo que hordinariamente ocorre na sociedade (ser). Por isso mesmo é que, sob o ponto de vista jurídico, uma norma pode ser plenamente ineficiente sob o ponto de vista econômico enquanto cumpre um elevado papel social. Anteriormente, se exemplificou com a questão da desregulamentação do trabalho na China. Pode-se agregar agora outro exemplo capaz de demonstrar que a regulação jurídica pode ter 146 Para a contextualização do assunto, bem como maiores explanações, consultar: COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 4.ed. [S.l.]: Person Addison Wesley, 2003. p. 7-8. 147 WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 269. 88 outros sentidos não expressos pela lei, isto é, a busca por fins indiretos e futuros, não estabelecidos diretamente nas normas (valores, por exemplo). Trata-se sobre uma questão longamente debatida no Brasil: a norma constitucional estabelecedora da limitação da taxa de juros ao patamar de 12% ao ano. Praticamente a unanimidade da doutrina econômica (e da Análise Econômica do Direito) criticavam o dispositivo constitucional vigente à época (artigo 192, §3º ). Entretanto, Pérsio Arida verificou que o dispositivo poderia ser uma “pressão politica por juros mais baixos independentemente da conjuntura econômica enfrentada pelo país”148. Assim, segue o autor: Menciono nossa abortada tentativa de limitar juros não para motivar exercícios contrafactuais, necessariamente imprecisos e nem sempre úteis, mas apenas para chamar a atenção para a importância de um melhor entendimento das formas pelas quais a legislação pertinente à vida econômica evolui ao longo do tempo. Em certas condições, a experimentação no plano social de fórmulas que desafiam a racionalidade econômica pode ser benéfica no longo prazo. A pesquisa em Direito, ao iluminar a historicidade das normas, pode também aqui interagir de forma profícua com a pesquisa econômica na busca de maneiras pelas quais a sociedade pode amadurecer.149 Outra questão muito em moda atualmente se refere à segurança dos aviões. As companhias aéreas preconizam decisões econômicas. Por outro lado, e em razão disso, há uma dependência de que as modificações práticas vantajosas para o consumidor sejam implementadas mediante a imposição legal. É truísmo o fato de existir, atualmente, uma plêiade de mecanismos utilizáveis para melhorar o conforto dos passageiros e para a proteção e a segurança das aeronaves. De fato, não o são utilizados, porque, como o risco de acidente é relativamente pouco expressivo, os investimentos em segurança elevariam “desnecessariamente” o valor das passagens, sendo mais eficiente economicamente o pagamento de indenizações quando da queda de um avião, ao invés de agregar em todas aeronaves mecanismos outros mais efetivos de controle de panes, ou quedas, por exemplo. Exemplo contundente é que se 148 ARIDA, Pérsio. A Pesquisa em Direito e em Economia: em torno da historicidade da norma. SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 71. 149 ARIDA, Pérsio. A Pesquisa em Direito e em Economia: em torno da historicidade da norma. SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 71. In: do In: do 89 tem discutido atualmente sobre o número de assentos disponíveis nas aeronaves, porque acabam os passageiros ficando “enlatados”. Sob o ponto de vista econômico, é uma desvantagem reduzir o número de poltronas, até porque quem viaja de avião normalmente não pode usufruir de meio alternativo, de maneira que não se “perdem” muitos clientes em razão dos bancos apertados. Entretanto, há a necessidade de sobrevir uma legislação, ineficiente sob o ponto de vista econômico, para regular um espaço “saudável” para cada passageiro (a troca de uma eficiência econômica por uma eficiência jurídico-consumeirista). Não se desconsidere a infinidade de exemplos conhecidos e apresentáveis aqui. Tais idéias demonstram a dificuldade da Economia em compreender o universo jurídico, que muitas vezes é voltado para um futuro distante, para uma verdadeira “educação jurídica”, para a implantação de valores novos sobre a realidade social existente. 3.3 DAS FUNÇÕES DO DIREITO 3.3.1 Do Funcionalismo Sociológico No âmbito da sociologia jurídica, o funcionalismo se propõe a estudar as tarefas que o direito cumpre na sociedade e aquelas que deveria supostamente cumprir, além de verificar a forma pela qual essa mecânica acontece. Para o objetivo deste trabalho, é pertinente estabelecer alguns exemplos de funções dadas pelas sociedades ao Direito, de modo a tornar mais palpável parte do objeto da pesquisa, que diz respeito exatamente às funções do Direito, superficialmente tratado até então. Entretanto, ao falar-se em funções do Direito, já se estabelece uma impossibilidade de completude de objetivo, porque se trata evidentemente de um objeto complexo, cujos sentidos a ele outorgados ao longo da história não permitem se falar em completude. Impossível, diante da complexidade do fenômeno, estabelecer todas as 90 funções do Direito. Ademais, há uma notória dificuldade terminológica, na proporção que diferentes pensadores concederam nomes diferentes a circunstâncias/funções semelhantes. De qualquer forma, ultrapassando as dificuldades terminológicas, é possível encontrar algumas funções materialmente semelhantes entre os estudiosos que, mediante uma observação empírica, como o fazem os sociólogos Arnaud e Dulce, trazem uma elucidação suficiente para os fins do presente trabalho: integração ou controle social, resolução de conflitos, regulação e orientação social, legitimação do poder, estabilização de expectativas, engenharia social. Sob a perspectiva de resolução de conflitos, o Direito busca a manutenção de uma “coesão social em torno de um determinado número de valores básicos”150, cuja preservação é necessária. Arnaud e Dulce argumentam que o Direito não resolve propriamente os conflitos sociais, porque estes são permanentes na sociedade. O papel do Direito seria conceder uma solução de como o embate de interesses deve ser solucionado, mas não retira ou soluciona a diferença de interesses existente. O conflito, sob esse prisma, não obrigatoriamente desaparece, mas “o faz seu e propõe um tratamento possível, sempre o mantendo sob seu controle”151. Como meio de integração ou controle social152, ao Direito é reconhecido um papel de equilíbrio social, alcançado por intermédio de um controle e integração dos conflitos existentes no seio fático da sociedade. Exerce uma função de dizer aos membros da sociedade quais os comportamentos a serem seguidos, e forçá-los a adotar o comportamento desejado, o que é garantido pela coerção estabelecida pelo Estado. Por regulação e orientação social, cuja conexão é intrínseca com a integração e o controle social, deve-se entender o conjunto de medidas realizadas pelo Direito para evitar que os comportamentos dissonantes gerem conflitos sociais. Evitar que a diferença de interesses entre as pessoas as faça laborarem umas contra as outras, 150 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 149. 151 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 150. 152 Arnaud e Dulce esclarecem que entre os subsistemas, há o sistema jurídico, “cuja função principal é a integração ou o controle social”, que pode ser “subdividida em função de orientação dos comportamentos e em função de solução de conflitos”. In: ARNAUD, op. cit., p. 11. 91 gerando os conflitos sociais. As normas exercem um papel importante de apresentar limites ao comportamento e indicar o devido, “definindo assim padrões generalizados de expectativa”153. Isso implica que, por essa função, o direito assegura não apenas a estabilidade nos modelos normativos, mas também sua segurança jurídica, na medida em que os atores sociais podem conhecer e prever os efeitos de seu próprio comportamento e do comportamento dos outros, e planejar, assim, sua interação social. Uma conseqüência importante da função de regulação ou de orientação social é a ‘possibilidade de calcular e de prever’ que o sistema jurídico fornece aos indivíduos em sua ação social.154 A idéia de promoção social e de distribuição se relacionam fortemente com a implantação do Estado Social (embora não seja exclusividade deste, porque o Direito ao longo da história sempre teve uma certa concepção distributiva), segundo o qual, o Estado deveria conceder incentivos ou freios para determinadas condutas desejadas ou indesejadas, respectivamente. Nesse contexto, o Direito seria um instrumento para se garantir e se alcançar os objetivos sociais propostos. A função de legitimação do poder social, por sua vez, possui profunda relação com a natureza organizativa, especialmente contida nas constituições dos estados modernos. Relaciona-se, propriamente, com os meios legítimos (competência e procedimento) e os limites das tomadas de decisões sociais. Estabelece os procedimentos concessivos da legitimidade das decisões na sociedade, o que por si só concede força àquelas. Porém, mais que isso, indicam Arnaud e Dulce, outorgam o poder às decisões tomadas pelos indivíduos, quando cumpridos todos os requisitos previstos na normatividade social155. Entretanto, como quaisquer outros elementos da sociedade, houve uma complexificação das funções do Direito de harmonização dos conflitos e legitimação do poder para se transformar em “instrumento de implementação de políticas públicas”156. A idéia sintética é a de que, com o Estado Liberal, a burguesia assume o controle do Estado e instrumentaliza o Direito para garantir a eles a dominação social e a 153 OLIVEIRA, Márcia Gardênia Monteiro de; QUINTANEIRO, Tania. Labirintos Simétricos: introdução à teoria sociológica de Talcott Parson. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 157. 154 ARNAUD, op. cit., p. 153. 155 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 154-5. 156 GRAU, E. R. A ordem Econômica na Constituição de 1988: (...). São Paulo: Malheiros, 2006, p. 15. 92 segurança de que necessitam. Com o advento do Estado Social, há uma tendência de inversão, onde o Direito é instrumentalizado para alcançar certos fins sociais, embora não perca a característica anterior. É pertinente elucidar melhor essa relação. O liberalismo econômico se valia do poder estatal para garantir a primazia e a efetividade de seus princípios. E, nesse sentido, o “mercado” não se resume a um fato social, mas a uma instituição jurídica: “insisto neste ponto – é uma instituição jurídica constituída pelo direito positivo, o direito posto pelo Estado Moderno”157. O fato é que o Terceiro Estado, a burguesia, apropriou-se do Estado e é a seu serviço que este põe o direito, instrumentando a dominação da sociedade civil pelo mercado. O Estado, que inicialmente regulava a vida econômica da nação para atender a necessidades ditadas pelas suas finanças, desenvolvendo políticas mercantilistas, passou a fazê-lo para assegurar o laissez faire e, concomitantemente, prover a proteção social, visando à defesa e preservação do sistema.158 O direito positivo, àquele momento histórico, servia exatamente para garantir a existência de um mercado, que necessitava de uma regulação que concederia regularidade e a possibilidade de previsão dos comportamentos, como afirmaria Weber. A finalidade acumulativa capitalista exige uma Justiça e um Estado cuja movimentação possam ser racionalmente calculados, o que poderia ser garantido ao se estabelecer uma fonte única e equilibrada de regulação social. Resumidamente, haveria garantias, quer contra o próprio Estado, quer contra os próprios agentes do mercado, para o cumprimento dos contratos, permitindo sua livre realização e desenvolvimento159. Las exigencias de calculabilidad y confianza en el funcionamiento del orden jurídico y la administración, una necesidad vital del capitalismo racional, condujo la burguesía a concentrar su esfuerzo en limitar a los príncipes patrimoniales y a la nobleza feudal por medio de una corporación, en la que la presencia (conjunta) de la burguesía predominante, y mediante la cual poder controlar las finanzas y la administración en las variaciones del orden jurídico.160 Eros Grau afirma ser equívoca a idéia de “intervenção”, porque pressupõe uma cisão entre a sociedade civil e o Estado: “Família, sociedade civil e Estado são 157 Idem, p. 35. Idem, p. 31-2. 159 “Isto é: cada agente econômico necessita de garantias (i) contra o estado e (ii) contra os outros agentes econômicos que atuam no mercado. Vale dizer, cálculo e segurança inerentes à produção capitalista exigem uma dupla garantia: (a) contra o Estado (= liberalismo político) e (b) em favor do mercado (= liberalismo econômico).” In: GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação crítica. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 38. 160 WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 238. 158 93 manifestações, que não se anulam entre si, manifestações de uma realidade, a realidade do homem associando-se a outros homens”161. Tal idéia de separação se presta para tentar delimitar a atuação do Estado: controlar a sociedade de forma que seja possível o exercício da acumulação. Uns estão sobre os outros, o que significa obrigatoriamente que “os outros” estão submetidos aos interesses dos “uns”. Nas palavras de Grau, a acumulação “necessita da ordem, mas a detesta, procurando a qualquer custo exorcizála”162. Como corolário lógico, aparece na prática um discurso que “reclama a atuação estatal para garantir a fluência de suas relações, porém, ao mesmo tempo, exige que essa atuação seja mínima”163. Em suma: (i) a sociedade capitalista é essencialmente jurídica e nela o direito atua como mediação específica e necessária das relações de produção que lhe são próprias; (ii) essas relações de produção não poderiam estabelecer-se, nem poderiam reproduzir-se sem a forma do direito positivo, direito posto pelo Estado; (iii) este direito posto pelo Estado surge para disciplinar os mercados, de modo que se pode dizer que ele se presta a permitir a fluência da circulação mercantil, para domesticar os determinismos econômicos.164 Posteriormente, sob a perspectiva do novo estado, o Estado Social agora é funcionalizado para a implementação de políticas públicas, sendo interpretado por Eros Grau como um legitimador capitalista. Interessava ao capitalismo uma Constituição que tivesse um viés “progressista”, voltado para o desenvolvimento, porque manipulável pelas classes dominantes, permitindo a manutenção do sistema capitalista (que vive da inovação, do desenvolvimento). Nenhuma regulação garantiria melhor a manutenção do sistema capitalista que uma regulação social pretendente a estabelecer metas e objetivos desenvolvimentistas, porque em cima dessas prescrições o capitalismo estaria legitimado a trabalhar sem intervenções. E, perceba-se o quanto uma Constituição (artigo 170) que prega ser um princípio a “propriedade privada”, a “função social da propriedade” (até então pensada como garantia da propriedade e da produção de riqueza), a “livre concorrência”, a 161 GRAU, op. cit., p. 21. Idem, p. 36. “Observe-se enfaticamente que, embora a estatização e o intervencionismo estatal no domínio econômico possam aqui ou ali contrariar os interesses de um ou outro capitalista, serão sempre adequados e coerentes com os interesses do capitalismo.” In: GRAU, op.cit., p. 44. 163 Idem, p. 37. 164 GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação crítica. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 32. 162 94 “redução das desigualdades regionais e sociais” (alcançada pelo desenvolvimento econômico) e a “busca do pleno emprego” (em que há um papel preponderante o livre desenvolvimento da economia, segundo se prega) estão profundamente comprometidos com esse ideal. A transformação que refiro se dá no instante em que as precedentes ordens econômicas (mundo do dever-ser) passam a instrumentar a implementação de políticas públicas. Vale dizer: no instante em que a ordem econômica – parcela da ordem jurídica -, já instalada no nível constitucional, passa a predicar o aprimoramento da ordem econômica (mundo do ser), visando à sua preservação. O direito é afetado, então, por uma transformação, justamente em razão de instrumentar transformação da ordem econômica (mundo do ser). Que essa transformação, no mundo do ser, é perseguida, isso é óbvio. Retorno à leitura do art. 170 da Constituição de 1988: a ordem econômica (mundo do ser) deverá estar fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa... A ordem econômica liberal é substituída pela ordem econômica intervencionista.165 [...] De uma banda, a nova ordem econômica (mundo do dever ser), além de não se exaurir no nível constitucional – deixe-se isso bem vincado -, da antiga se distingue na medida em que, ao contrário do que ocorre em relação a esta, compreende não apenas, fundamentalmente, normas de ordem pública [que sempre existiram na ordem jurídica], mas também, e em profusão enorme, normas que instrumentam a intervenção do Estado na economia – normas de intervenção [que estão associadas também com o papel de manutenção do capitalismo].166 Evidentemente, a interpretação sistemática atual concedida a esses princípios transmudou o seu sentido original. Mas, o importante é o que se pretendia estabelecer na época. Inobstante, num momento em que a queda das fronteiras econômicas é um fator reforçador da concorrência no mercado, a regulação continua sendo julgada indispensável. Sobre certo aspecto, todos querem acumular, mas ninguém quer perder. Assim buscam no Estado, ou em outros meios alternativos (arbitragem, tribunais internacionais), alguma forma de garantia contra a concorrência. Com a globalização, há um direito “anacional”, que anda além dos limites das ordens jurídicas nacionais e do direito tradicional, espelhado nas convenções entre os 165 166 Idem, p. 74. GRAU, E. R. A ordem Econômica na Constituição de 1988: (...). São Paulo: Malheiros, 2006, p. 75. 95 Estados167. É algo que está fora da idéia tradicional de hierarquia das normas jurídicas, porque não se adéqua propriamente ao modelo ordinário: é um “terceiro excluído”168. O sentimento social de inadequação da teorização tradicional considera o sistema jurídico como estagnado, não alcançando a globalização econômica, que encontrou “formas jurídicas globais”169. Além disso, no interior dos Estados (e evidentemente no plano exterior igualmente isso ocorre) há uma complexidade social, gerando uma policontextualização do Direito, desenlaçando-o de sua fonte política estatal, o que permite a construção de “formas jurídicas independentes do soberano político, ligando directamente o direito aos outros subsistemas sociais”170. As normas jurídicas, por não advirem do centro político tradicional, tendem a contemplar aquilo que é considerado nos demais subsistemas sociais – sem o filtro clássico do Legislativo. Frente à tal realidade, a proposta de Bernard Remiche, por exemplo, consiste em elevar o nível de abrangência das normas jurídicas, saindo o âmbito nacional e ingressando no sistema mundial: um direito transnacional, com tribunais e juízes internacionais para regular e garantir o respeito do liberalismo econômico e de mercado, que inegavelmente são mundiais. A partir do momento em que se admite que o mercado se tornou mundial, é indispensável que o direito da concorrência se mundialize. De maneira geral, a mundialização e a globalização da economia devem ter por corolário o desenvolvimento de um direito económico internacional.171 O pensamento do autor consiste em elevar a ordem jurídica para um nível internacional de regulação e fiscalização, única alternativa para combater uma economia globalizada que vem sistematicamente retirando o (ou se furtando ao) controle dos Estados nacionais. Pertinente ressaltar, a concepção do modelo internacional de direito se apresenta como contraponto à regulação do próprio mercado, atuando como meio para garantir a mundialização do poder econômico sem desrespeitar os povos, cidadãos 167 TEUBNER, Gunther. Os Múltiplos Corpos do Rei: a autodestruição da hierarquia do Direito. In: FILOSOFIA do Direito e Direito Económico: que diálogos? Miscelâneas em honra de Gerard Farjat. Lisboa: Piaget, 1999, p. 344. 168 Idem, ibidem. 169 Idem, p. 346. 170 Idem, p. 354. 171 REMICHE, Bernard. Direito Económico, Mercado e Interesse Geral. In: FILOSOFIA do Direito e Direito Económico: (...). Miscelâneas em honra de Gerard Farjat. Lisboa: Piaget, 1999, p. 287. 96 e sua diversidade de valores, de maneira que “esta mundialização, que pode ser portadora de tanto progresso, não ser fonte de graves fracturas”172. No que concerne propriamente a nossa Constituição, Eros Grau afirma, o que é um empecilho para a implantação do neoliberalismo no Brasil, que a superação do modelo de Estado de bem-estar depende de alteração de preceitos normativos, os quais, ressalta-se, são cláusulas pétreas. Isso, porque o autor refere a necessidade de modificação nos artigos 1°, 3° e 170173. A nossa Constituição de 1988 carrega uma ordem econômica progressista, de dever-ser. E isso significa necessariamente o entendimento de que ordem econômica é inexoravelmente parte da ordem jurídica e, como tal, assim como a ordem jurídica, está instrumentalizada para o alcance de certos fins. Para exemplificar, colaciona-se a interpretação de Eros Grau sobre o conteúdo do artigo 170 da Constituição: Analisando porém com alguma percuciência o texto, o leitor verificará que o art. 170 da Constituição, cujo enunciado é, inquestionavelmente, normativo, assim deverá ser lido: as relações econômicas – ou a atividade econômica – deverão ser (estar) fundadas na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim (fim delas, relações econômicas ou atividades econômica) assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguinte princípios...174 O sentido concedido ao artigo da Constituição denota uma questão interessante, por exemplo, em relação à função social do contrato, levantada em linhas anteriores. Sendo a ordem econômica parte do jurídico e, por sua vez, estando o jurídico a controlar e a garantir a manutenção do modo de vida acumulativo, é essencial que os atos jurídicos preencham sua finalidade social. Ora, a compreensão, manutenção e aprimoramento do papel social dos contratos, por exemplo, é que, em última análise, garantem o bom funcionamento do mercado. Em outras palavras, os contratos se apresentam como “instrumentos dinâmicos voltados ao alcance não apenas dos fins almejados pelas partes mas também, na medida 172 Idem, p. 288. GRAU, E. R. A ordem Econômica na Constituição de 1988: (...). São Paulo: Malheiros, 2006, p. 48. 174 GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação crítica. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 68. 173 97 em que conformados pelo Estado, dos fins últimos da ordem econômica” 175. E exatamente em razão disso há legitimidade para a sujeição de muitos contratos à aprovação de agências reguladoras (e do Estado, de modo amplo), como os de transferência de tecnologia, de fusão empresarial. Sob certo aspecto, a calculabilidade referida por Eros Grau, é o que aparentemente se pretende encontrar com a Análise Econômica do Direito, sobretudo quando se considera o discurso empregado pela doutrina apresentado anteriormente. Houve uma nova complexização do mundo e da economia, que necessita de novos meios de controle para a manutenção do sistema capitalista, que precisa ganhar uma nova roupagem, quer para se legitimar, quer para adquirir uma armadura contra a concorrência global (pode-se lembrar do problema da China, levantado linhas acima). A regulação legislativa não alcança mais todos os confins da globalização, exigindo uma doutrina nova e inflexionada exatamente nos ponto de aplicação do Direito: por isso a idéia preponderante de exaltação do poder dos juízes pela Análise Econômica do Direito. Frente a uma dificuldade de se legislar para o mundo inteiro, como pretende Bernard Remiche (embora algumas instâncias internacionais se prestem para isso, como a Organização Mundial do Comércio, etc.), a garantia necessária para o capitalismo passa a encontrar respaldo no momento de aplicação do Direito, utilizandose o critério da maximização da riqueza. A Análise Econômica do Direito pode, nesse contexto, ser uma tentativa de retornar à situação liberal de controle da juridicidade, sobretudo em um momento quando alguns valores atuais não são mais passíveis de retorno ao passado. As coisas evoluíram, e não é possível se dar a marcha ré para transformar a legislação. 3.3.2 Do Funcionalismo Jurídico ao Jurisprudencialismo 175 Idem, p. 95. Sobre as demais conseqüências, ver páginas 93-102 do mesmo texto. 98 O viés funcionalista do pensamento jurídico, por sua vez, ao contrário do âmbito sociológico, busca não compreender na prática o papel desempenhado pelo jurídico, mas estabelecer o papel que deve assumir: uma noção programática, estratégica. Assim, as funções sociológicas do Direito são aqui consideradas como fins estabelecidos, passando-se a questionar como o Direito deve ser para atingir aqueles objetivos estipulados (como seria sua organização, estrutura). Direito como instrumento, como meio para atingir diversos fins (que podem ser políticos, sociais, ideológicos). Perceba-se que o descompasso entre o ideário teórico do normativismo e a prática social, como referido no capítulo primeiro, é o que demonstrou cabalmente a perda da autonomia do Direito, porque não estava servindo àquilo que deveria regular, a sociedade. Seus modelos dedutivos não serviam mais: [...] a própria autonomia do direito deliberadamente se sacrificaria. Pois na linha do funcionalismo o direito deixa de ser um auto-subsistente de sentido e de normatividade para passar a ser um instrumento – um finalístico instrumento e um meio ao serviço de teleologias que de fora o convocam e condicionantemente o submetem.176 Na nova realidade, o Direito precisava de uma “aberta indeterminação”, permitindo transformações constantes, conforme a sociedade mutava. O Direito, segundo a compreensão racional da época, como as demais coisas da vida, era medido não pelo seu valor ontológico, mas por aquilo que poderia proporcionar; portanto, sujeito também à razão instrumental. Ademais, a razão científica era neutra177. Esta, testada empiricamente e reprodutora fiel da realidade, agora deveria ser posta em prática para modificar a realidade na medida do interesse do homem. Raciocínio que deveria ser empregado em todas as coisas: o Direito perde sua importância como substância e passa a ter importância enquanto função. 176 CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito Hoje e com Que Sentido?. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 30-1. 177 Porque não direcionada por valores, mas por finalidades. “Que tanto é dizer que a fundamentação cede à instrumentalização ou a razão objectivo-material à formal «razão instrumental» e a ordem (de validade ou institucional) à planificação (programático-regulamentar), a validade à eficácia ou a eficiência. Ou, de outro modo, aos valores substituem-se os fins (subjectivos) aos fundamentos ou efeitos (empíricos) – numa só palavra, trata-se de um finalismo que se afere por um consequencialismo.” In: CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito Hoje e com Que Sentido?. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 39-40. 99 [...] e adopta-se o ponto de vista da variação contingente de variáveis no quadro complexo de estruturas organizatórias ou de sistemas referíveis, com o objetivo de uma mobilização de possibilidades e meios para uma programação estratégica de fins controláveis pelos efeitos.178 Sendo uma função, o Direito passa a ser um meio; logo, contingente e relativo, sujeito a alterações finalísticas, dependentes dos objetivos sociais propostos. Da mesma forma que o Direito, o juiz passa a ter um papel fundamental (especialmente na linha funcionalista social tecnológica e econômica) como participante ativo de garantia do atingimento dos fins propostos, deixando de ser um mero aplicador de normas. Especialmente na vertente econômica, o juiz passa a se preocupar com a eficiência, com a redução dos custos sociais e com a maximização da riqueza. Nesse sentido, se verifica a perda da autonomia do Direito, porque subjugado àquilo que uma análise econômica afirma ser Direito. E situação diferente não existe em relação ao funcionalismo político, no qual, ao fim e ao cabo, o Direito seria exercício da política179. No funcionalismo sistêmico, já referido, o Direito tem uma função integrativa (descomplexificadora da realidade e estabilizadora das expectativas), pela sua capacidade de interiorizar os conflitos sociais. Aqui, ou (a) se pressupõe a autonomia do Direito mediante o reconhecimento de ser uma teoria “metanormativa”, ou seja, os sistemas são vistos de um ângulo externo (como faria a sociologia). Aliás, como indica Castanheira Neves, “pressupõe-se no sentido normativístico tradicional – para ser simplesmente descrito e analisado na sua auto-referência e autopoiésis”180. Ou, (b) se buscaria uma teoria propriamente jurídica do Direito, em que a autonomia ficaria preservada caso adotado um “funcionalismo puro, em termos só formais, processualísticos e com abstracção (ou equivalência funcional) de quaisquer dimensões materiais (fossem elas as de valores, dos fins, dos interesses)”181. 178 Idem, p. 38. “O direito não teria só uma geral função política, nem se lhe reconhecem apenas efeitos políticos, pretende-se que assuma um directo e determinante objectivo político, e assim segundo fundamentos e critérios imediatamente políticos.” CASTANHEIRA NEVES, op. cit., p. 41. 180 CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito Hoje e com Que Sentido?. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 47. 181 Idem, p. 48. 179 100 Em outras palavras, transforma a vida num mundo racional-funcionalista formal e abstrato, alienado aos valores. Entretanto, a escolha a ser feita pelo homem deve perpassar pela verificação do sentido que o próprio homem concede à sua existência: [...] a implicar um fundamento axiologicamente crítico e o homem transcendendo-se assim a um sentido materialmente vinculante em que assuma o projecto responsabilizante da sua própria humanidade; ou uma prática determinada tão-só por juízos de oportunidade, a não exigir mais do que programações finalísticas actuadas por esquemas de uma operatória eficiente, e o homem reduzindo-se à imanente titularidade de estratégias de interesses que lhe permitirão uma existência axiologicamente neutralizante ou uma existência formalmente calculada, e nada mais.182 Castanheira Neves aduz que é possível o restabelecimento da autonomia do Direito mediante a reconsideração de que, embora seja detentor de uma função, representa os valores vigentes em determinado ambiente espaço-temporal. Um sistema, portanto, regido por valores e princípios éticos metapositivos, que controlariam e condicionariam a aplicação funcional do Direito. Um Direito “autopressusposto”, fundado na ordem social vigente. Nesse sentido, evitaria transformações jurídicas que contradissessem a ordem estabelecida. Outra possibilidade trazida pelo autor é a de restabelecer a diferença entre “jus e lex”, reconhecendo-se a existência de uma ordem jurídica além da lei, na qual os princípios tem um papel fundamental (porque tem sentido “axiológico-normativamente fundamentante e constitutivo”183) para garantir ao Direito sua autonomia. Entretanto, a autonomia aqui é “axiológica-normativa”, dependente da existência de um Direito mais prático, judicial, que nunca seria puramente a legalidade, em razão das especificidades dos casos concretos. É que a lei é intrinsecamente limitada, havendo a necessidade de complementações quando de sua aplicação. Nessa concepção, por óbvio, a jurisprudência passa a ser fonte do Direito184. 182 Idem, p. 50. CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito Hoje e com Que Sentido?. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 60. 184 “Ao lado do Poder Legislativo, é chamado o órgão jurisdicional a participar criativamente do contexto jurídico comunitário, realizando construtivamente o direito, e não apenas o reproduzindo, de acordo com os ditames legislativos.” In: MELGARÉ, Plínio Saraiva. Juridicidade: sua compreensão políticojurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Stvdia Ivridica, n.º 69. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2003, p. 166. 183 101 Por fim, Castanheira Neves apresenta a idéia de que, com o reconhecimento do homem como pessoa (que pressupõe a existência de uma dignidade – que significa sua “pessoal participação e realização”185), antes de sua relação com a sociedade, atinge-se o mesmo sentido protetivo e fundamental dos “direitos do homem e dos direitos fundamentais”186. Assim, o não afastamento da dimensão de “pessoa” pela comunidade gera um reconhecimento mútuo entre indivíduo e sociedade: a justiça, que “sempre quis exprimir a suprema axiologia da existência humana comunitária”187. Segundo Plínio Melgaré, “além de um incondicional respeito à dignidade da pessoa humana”188, deve coexistir obrigatoriamente “o reconhecimento de que cada ser humano representa e significa um sujeito ético, com um valor indisponível diante das estruturas de poder e de seus semelhantes”189. Essa é a dimensão ética que é capaz de conferir ao Direito sua autonomia. É que o Direito exige a convivência comunitária humana em um espaço territorial limitado e uma condição ética de reconhecer o homem como pessoa (portador de uma dignidade)190, [...] com um valor indisponível para o poder e a prepotência dos outros e comunitariamente responsabilizado para com os outros – só assim ele poderá ser, também simultaneamente, titular de direitos (dirigidos aos outros) e de obrigações (exigidas pelos outros), em todos os níveis, segundo todos os princípios e em todas as modalidades estruturais que normativamente se têm objectivado a constituírem o direito (o direito como específica realidade objectivo-cultural).191 Para que as perspectivas funcionalistas (e a Análise Econômica do Direito) não firam a autonomia do Direito, deve ser mantida, além das funções sociais e estratégicas, 185 CASTANHEIRA NEVES, op. cit., p. 70. Idem, ibidem. 187 Idem, ibidem. 188 MELGARÉ, op. cit., p. 157. 189 Idem, ibidem. 190 Nas palavras de Axel Honneth: “[…] direitos são de certa maneira as pretensões individuais das quais posso estar seguro que o outro generalizado as satisfará. Nesse sentido, pela concessão social desses direitos, é possível medir se um sujeito pode conceber-se como membro completamente aceito de sua coletividade; [...] Por sua vez, o grau de auto-respeito depende da medida em que são individualizadas as respectivas propriedades ou capacidades para as quais o sujeito encontra confirmação por parte de seus parceiros de interação; visto que ‘direitos’ são algo por meio do qual cada ser humano pode saber-se reconhecido em propriedades que todos os outros membros de sua coletividade partilham necessariamente com ele, [...]”. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: 34, 2003 , p. 136-7. 191 CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito Hoje e com Que Sentido?. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 72. 186 102 a perspectiva de pessoa do ser humano (concepção ética que dá sentido ao Direito e concede a ele sua autonomia). E esse mesmo humano deve assumir o Direito em sua existência, vivendo-o no seu sentido. Assim, para que o Direito não seja capturado pelas demais ciências, deve obrigatoriamente manter o seu sentido limitador autônomo, ter algum sentido em si mesmo, não apenas assimilando o sentido que os demais sistemas sociais lhe impõe. Está-se a tratar não mais do funcionalismo; mas do jurisprudencialismo. E, Plínio Melgaré adverte que “a racionalidade do jurisprudencialismo em nenhum momento se identifica com a já vista racionalidade finalística”192. Anima-se, assim, o jurisprudencialismo, por um modo dialéctico, argumentativo e problemático do pensar. O eixo é a praxis jurídica, sendo o problema o ponto de partida para a solução da racionalidade jurídica, a ser encontrada por um processo dialógico, com uma relação discursiva, alternando-se justificativas, na busca de uma fundamentação racional, referentes à controvérsia jurídica.193 Não funciona mais a idéia do silogismo formal na aplicação da lei, pelo menos de forma preponderante. Igualmente, não se aceita a noção de que os processos trazidos ao juiz sejam julgados conforme a linha dos precedentes, porque cada caso concreto deve ser considerado tópico (em suas especificidades) e sistematicamente (considerando toda principiologia normativa existente dentro do sistema, assim como o Direito Positivo, que pode existir). O Direito passa a ser compreendido como uma expressão dos valores de uma determinada comunidade, adotando-se sempre como pressuposto as conquistas realizadas até então (a noção de reconhecimento como pessoa). Por certo que não se pensa em uma axiologia ou ordem principiológica pronta e acabada, ou referida a uma situação ontológicotranscendente, ou ainda dirigida a fins que se tenham por necessários ou eficazes. Ao revés, a dimensão valorativa de uma comunidade é dinâmica. É fruto de uma construção comunitária a fundamentar e justificar as decisões políticas. De modo que o direito não é um resultado final de um operar silogístico-subsuntivo ou predeterminado; mas é um fazer-se, referido a um 192 MELGARÉ, Plínio Saraiva. Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Stvdia Ivridica, n.º 69. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2003, p. 151. 193 Idem, p. 153. 103 ambiente comunitário, visando à solução de problemas concretos de pessoas que interagem, [...].”194 As decisões judiciais, portanto, não valem apenas em razão da autoridade que as emana. Valem em razão de sua argumentação racional e sistemático-valorativa que soluciona um caso concreto sob a perspectiva dos princípios e dos valores de determinado local e tempo. O Direito é construído nessa perspectiva. Assim, nas sociedades atuais, regidas pelos princípios gerais do Direito, alguns com concepções praticamente milenares, pelos direitos fundamentais do homem e do cidadão, pela concepção moderna de dignidade humana e suas formas de concretização, grande parte da autonomia do Direito está preservada, porque não há como se olvidá-los (ainda que seja considerado apenas pela perspectiva funcionalista, porque também limitam a esta). As difíceis conquistas humanas é que garantem ao Direito sua autonomia. 3.4 PAPEL DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO Talvez o subconsciente da Análise Econômica do Direito busque efetivamente o estabelecimento de critérios objetivos para as decisões judiciais, de modo a obter um maior controle dos juízos dos magistrados, assegurando-se, por intermédio da garantia do precedente, a estabilização das expectativas impostas sob os julgadores. Conscientemente, há o discurso da aplicação da ciência econômica no Direito como meio de garantir que as sociedades continuarão a se desenvolver na globalização. Aliás, Cristiane Coelho reconhece o sucesso da expansão da Análise Econômica do Direito em razão de sua possibilidade de trazer para o Direito a objetividade perdida com o fim do Positivismo (e, por isso, aponta uma proximidade com este), renovando a possibilidade dos operadores jurídicos encontrarem, por força da “cientificidade e 194 MELGARÉ, Plínio Saraiva. Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Stvdia Ivridica, n.º 69. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2003, p. 173. 104 objetividade”195, fundamentos sólidos para suas manifestações, ao invés de adotar “posturas eminentemente interdisciplinares que advogam uma interpretação mais aberta e socialmente comprometida das normas jurídicas”196. Por outro lado, no Brasil, essa situação é intrinsecamente problemática, quer pela natureza e profundidade da Constituição Federal de 1988, quer pelas características do atual Código Civil. Luciano Timm assinala a crueza da realidade do Direito brasileiro, em especial após o advento do Código Civil de 2002: enquanto os agentes econômicos buscam segurança e previsibilidade, o Código oferece “cláusulas gerais a serem interpretadas caso a caso pelo juiz” e o “sistema jurídico enaltece a liberdade absoluta de decisão dos magistrados, sem comprometimento com os julgados das cortes superiores”197. O legislador renunciou aos pressupostos positivistas de rígida separação entre ética e direito a fim de que, via cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, permitisse que a moral voltasse a permear a aplicação do Direito.198 De qualquer forma, uma razoável estabilização das expectativas não é possível em um mundo social complexo, porque a cada dia o homem avança (se desenvolve) realizando novos negócios, com novas tecnologias até então impensadas, estabelecendo redes dentro de outras redes, exigindo-se inadvertidamente a parte “subjetiva” do magistrado na solução dos casos199. 195 COELHO, Cristiane de Oliveira. A Análise Econômica do Direito enquanto Ciência: (...). Berkeley Program in Law & Economics. Latin American and Caribbean Law and Economics Association (ALACDE) Annual Papers (paper 050107-10). Disponível em: <http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/050107-10/>. Acesso: 13 out. de 2007. 196 Idem. 197 TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: (...). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 43. 198 TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: (...). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 53. O autor apresenta severas críticas a esse sistema, como se observa em: “Como o volume de processo é imenso, os juízes não terão tempo para analisar detalhadamente os processos para criar regras para o caso, tornando praticamente inócua na prática as cláusulas gerais. [...] Efetivamente, com instrumentos novos que são as cláusulas gerais (função social do contrato, onerosidade excessiva) e que dão muita margem à subjetividade do juiz, o que esperar de uma justiça em que os próprios tribunais, por meio de suas câmaras, dão decisões contraditórias? Imagine-se só, sem vinculações a precedentes, o que será a função social da propriedade para um mesmo Tribunal de Justiça? Para auxiliar nesta racionalização e previsibilidade das decisões, ter-se-ia que recorrer à tópica aristotélica, à teria da argumentação. Mas estes juízes assoberbados, educados dentro daquele modelo positivista e subsuntivo terão tempo para se atualizarem neste novo paradigma?” In: TIMM, op. cit., 55-6. 105 E nesse sentido, pode-se apontar uma possível inconsistência entre a busca de uma objetividade e a alocação da função de “proteger” a economia dada ao Judiciário. Como se verificou, especialmente em Eros Grau, o capitalismo depende do poder estatal: mas atualmente está mudando seu ninho da lei para a prática jurídica, buscando encontrar nos juízes um amparo, talvez inconcebível, em razão dos demais fatores que o Direito deve tutelar. Ao tratar do jurisprudencialismo, Plínio Melgaré ressalta: O processo mobilizado por aquele terceiro imparcial, que vem a dizer o direito, não visa ao conhecimento objetivo de uma verdade demonstrável; não consiste em aplicar critérios certos, apreendidos pela cognição. Ao contrário, busca a compreensão de um significado, do sentido de uma situação humano-existencial, articulada argumentativamente, inscrita no âmbito do plausível, e não da demonstração. Então, não se excogita algo abstracto, estremado por um processo cognitivo e atrelado a um sistema normativo de cariz dogmático e previamente estabelecido, senão que um caso concreto, atinente a pessoas e situações concretas e envoltas num específico contexto histórico.200 Em conclusão: Nesse contexto, firma-se o direito como um sistema pluridimensional, segundo já visto, de princípios ético-jurídicos, onde repousará o fundamento da solução a ser construída para o caso decidendo, e que, após sua tomada, configure-se como racionalmente fundamentada, por meio de um raciocínio argumentativo, alcançando a condição de plausível, razoável, no momento histórico em que se encontre, e no ambiente comunitário a qual esteja vinculada. Assim, que se afaste da decisão judicativa e invocação somente da autoridade que a profere. Então, que a decisão dos casos concretos encontre uma consistente e racional justificação, em uma perspectiva de coerência com os princípios também fundamentantes da constituenda normatividade jurídica, numa linha de construção-realização e justificação do pensamento jurídico, do direito e de suas decisões.201 199 “El Derecho debe tener estabilidad y, sin embargo, no puede permanecer inalterable. Por ello, toda meditación en torno al Derecho ha tratado de reconciliar las necesidades contradictorias de estabilidad y transformación. El interés de la sociedad en la seguridad general ha inducido a los hombres a buscar alguna base cierta que permita dar a los actos humanos un valor absoluto, capaz de asegurar un orden social firme y estable. Pero la incesante transformación en las condiciones de la vida social siempre y de nuevas causas susceptibles de menoscabar la seguridad establecida. Es necesario, pues, que el orden jurídico sea flexible y, al mismo tiempo, estable. Es preciso someterlo continuamente a revisión y readaptarlo a las alteraciones que experimenta la vida efectiva que há de regir. Los principios que buscamos han de serlo tanto de evolución como de seguridad.” POUND, Roscoe. Las Grandes Tendencias Del Pensamiento Jurídico. Barcelon: Ediciones Ariel, 1950, p. 5. 200 MELGARÉ, Plínio Saraiva. Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Stvdia Ivridica, n.º 69. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2003, p. 167. 201 Idem, p. 172. 106 É num meio como esse que a Análise Econômica do Direito pretende se inserir e ganhar certezas. E por isso mesmo, é que são pertinentes as questões ora discutidas: “objetividade”, nesse contexto, recebe outra conotação. Mas não é só. O problema da objetividade tem outras implicações, como quando procura agregar no Direito elementos que não são por este considerados de forma exclusiva ou, talvez até, de forma principal. A Análise Econômica do Direito, na prática, consiste em uma escola/abordagem de pensamento que busca gerar uma manipulação do Direito. É uma dentre as diversas formas possíveis de enxergar o Direito, e a economia é uma dentre os diversos fatores que intervém na formação de aplicação das normas (provavelmente, até agora o melhor encontrado). Significa, portanto, reflexos sobre a autonomia do Direito. Inobstante, ao contrário de o Direito perder a autonomia, o Direito renova sua independência na medida em que escolhe (por intermédio de suas instituições) o que irá fazer parte do sistema jurídico ou não, assim como conduz o limite do movimento dos agentes econômicos. A impossibilidade de aplicação de uma análise economicista a todos os casos, é o fator preponderante para a incapacidade de capturação do Direito pela Ciência Econômica. Em última instância, a realização de atividades econômicas (que dependem fortemente dos contratos), além de ser um fato, consiste em um direito subjetivo, limitado e controlado pelos outros interesses e irritações que o ordenamento jurídico está sujeito. É o Direito quem indica o limite dos direitos subjetivos, para o que também faz uso de visões que buscam espaço no mesmo meio social. Pode-se pensar, por exemplo, em diversas atividades econômicas que poderiam ser eficientes sob o ponto de vista econômico, porém são vedadas pelo Direito, como a exploração sexual e o tráfico de drogas e de pessoas. Aliás, o tráfico de pessoas foi (e continua sendo) um sistema bem evoluído de trocas, sob a ótica econômica. [...] o direito é, simultaneamente, causa e efeito da ação socialeconômica. É causa porque o processo econômico (no qual há contínua criação de novos tipos de direitos subjetivos) pressupõe um sistema jurídico como condição necessária. É efeito porque essa criação de novos direitos tem 107 efeito cumulativo, que realimenta o grau de sofisticação e complexidade do sistema jurídico.202 A relação do operador jurídico com o sistema em que trabalha é explicitada por Jean-Jacques Sueur: O método de análise substancial não procede de outra forma, parecenos: faz do tempo, ou melhor, da duração, um elemento constitutivo da iniciativa do investigador ao qual retorna, depois do diagnóstico e inventário das “contradições” no sistema jurídico ou no interior das categorias ditas formais, em forjar novos conceitos, significativos de uma nova “coerência”. O tempo, se for então levado em conta, é-o como factor da erosão das categorias ou instituições jurídicas, sempre em nome do realismo proclamado, e a “substância” designa, se assim quisermos, a distância que separa o momento do advento da instituição em questão, do da análise à qual é sujeita. Tantas hipóteses de ultrapassagem do direito, variantes do “declínio do direito”.203 Mesmo tendo Jean-Jacques se referido acerca do Direito Econômico, raciocínio extensível para outros ramos, o autor considera o Direito como a ligação entre diversos sistemas sociais, dentre eles a Economia, que também tem a “vocação de regulamentar a conduta dos homens”204. O papel do Direito seria de alcançar “ainda imperfeitamente uma linguagem comum, porque relativamente abstracta, aplicável às diversas esferas da atividade comercial (pública ou privada)”205. O operador jurídico, para o autor, exerceria o papel de um porteiro, que assume uma dúplice função de “barragem de uso interno da disciplina e de mediação em direção aos outros sectores do saber [...] permitindo avançar rumo à elaboração de um saber crítico sobre o direito”206. E nesse contexto é que a Ciência Econômica acaba sendo um verificador, demonstrando ou afirmando acerca, tanto da efetividade do Direito, quanto influenciando-o a ser melhor compreendido e utilizado, mantendo uma aproximação das 202 MELLO, Maria Tereza Leopardi. Direito e Economia em Weber. Disponível em: <http://ww2.ie.ufrj.br/datacenterie/pdfs/seminarios/pesquisa/texto2205.pdf>. Acesso: 13 jan. de 2008. 203 SUEUR, Jean-Jacques. Direito Económico e Metodologia do Direito. In: FILOSOFIA do Direito e Direito Económico: que diálogo?. Miscelâneas em hora de Gérard Farjat. Lisboa: Piaget, 1999, p. 336. 204 Idem, ibidem. 205 SUEUR, Jean-Jacques. Direito Económico e Metodologia do Direito. In: FILOSOFIA do Direito e Direito Económico: que diálogo?. Miscelâneas em hora de Gérard Farjat. Lisboa: Piaget, 1999, p. 336. 206 Idem, p. 336-7. 108 normas com o meio social circundante, o que perpassa também pela atuação dos operadores jurídicos (tradutores dos fenômenos jurídicos). É evidente que uma solução científica não admite uma solução aparentemente tão simples. Contudo, verifica-se que as discussões de Eros Grau, Plínio Melgaré, Castanheira Neves, Arnaud e Dulce, por exemplo, dão pleno sentido a tal conclusão. Isso, porque, ou se admite que o Direito nunca teve qualquer autonomia (o que especialmente sob o aspecto formal é difícil de sustentar207) ou se admite que o Direito sempre conviveu e depende das intervenções das demais ciências sendo ora mais ou menos influenciado e direcionado. Essas intervenções não deixam de estar no universo de suas funções, haja vista garantirem sua proximidade com a realidade social. E a autonomia, de qualquer forma, dificilmente é perdida em razão da intervenção das demais ciências e fatores sociais, uma vez que sempre há uma tradução dos fenômenos para, após, integrar o jurídico. Ademais, quando se trata da tradução ou tentativa de incorporação de conteúdos de um sistema em outro, como buscar implantar as teorias econômicas para dentro do Direto, também surgem inconvenientes: Não restam então dúvidas de que, pedindo assim emprestados os conceitos da teoria económica dos direitos de propriedade aos economistas, os juristas dão-lhes um novo conteúdo que parecerá estranho aos próprios economistas, que haviam transformado, para os seus próprios fins, os conceitos jurídicos de propriedade. Espero ter mostrado que tais deformações de disciplinas podem ser o meio de uma compreensão acrescida, tanto para quem empresta como para quem toma emprestado. Para provas suplementares, não há como os juristas – entre os quais e à sua cabeça se encontra Gérard Farjat – se apoderaram do conceito económico de “empresa” e o desenvolveram para fazer dele um instrumento poderoso da análise jurídica e da reconstrução.208 207 Ultrapassando a perspectiva das linhas já trazidas no presente trabalho pelo viés da Teoria dos Sistemas, pode-se buscar amparo em Weber: “Es evidente que ambos modos de considerar los fenómenos plantean problemas totalmente heterogéneos y que sus “objetos” no pueden entrar en contacto de un modo inmediato; el “ordem jurídico” ideal de la teoría jurídica nada tiene que ver directamente con el cosmos del actuar económico real, porque ambas cosas yacen en planos distintos: una en la esfera ideal del deber ser; la otra en la de los acontecimientos reales.” In: WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 251. Posteriormente, reforçando a idéia de um núcleo formal absolutamente alheio aos demais sistemas, Weber afirma ser possível modificar toda uma ordem econômica sem que nenhuma alteração seja necessária na ordem jurídica (ou, tão-somente, com pequenas modificações). In: WEBER, op. cit., p. 269. 208 DAINTITH, Terence. Poder Estatal em Direito e em Economia. In: Filosofia do Direito e Direito Económico: que diálogo?. Miscelâneas em hora de Gérard Farjat. Lisboa: Piaget, 1999, p. 411. 109 Esse excerto contempla muito bem o que ocorre quando há uma tradução para o jurídico, como já mencionado. O objeto traduzido acaba por perder parte de suas características iniciais e por adquirir conteúdo jurídico próprio: um objeto semelhante (poderia ser igual ou completamente distinto do original). Ao ingressar no sistema jurídico, o objeto adquire uma roupagem e sentido próprios do âmbito jurídico. Além disso, ainda que nossa vida seja evidentemente econômica, não se pode esquecer o papel que o Direito sempre desempenhou – e que cada vez mais assume importância – consistente na proteção das idéias minoritárias, garantindo que não sejam esmagadas pela maioria. E essa proteção se dá modernamente, de forma preponderante, por intermédio dos princípios e valores conquistados ao longo do tempo. Assim, quer sob o ponto de vista do funcionalismo ou da premente aparição do jurisprudencialismo (ou do estágio de transição entre um e outro), há conquistas jurídicas que não são passíveis mais de retrocesso, porque aviltariam a própria função da existência do Direito (de proteção). E, nesse passo, tende-se cada vez mais a fixar uma autonomia do Direito, que cada vez mais passa a assumir um sentido em si mesmo (ou apenas mais um movimento histórico cíclico). Pois bem, ressaltou-se ao longo do trabalho as dificuldades de uma análise econômica para o Direito, o que evidentemente não significa que não existam grandes vantagens em sua aplicação prática, como indiretamente o texto esclarece e reconhece. A fim de trazer alguma sistematicidade para as vantagens, socorre-se de uma análise realizada por Roscoe Pound, já nos idos de 1950, de inegável atualidade no Brasil, quando elencou alguns avanços de uma análise econômica (embora também tenha apresentado inúmeras críticas): a) um desenvolvimento do pensamento que dá preferência para a satisfação das necessidades com os bens limitados que o operador do Direito tiver para dispor, ao invés de buscar uma reconciliação entre as vontades existentes na ação; b) um estímulo a ressaltar a defasagem dos códigos e dos corpos legislativos tradicionais em relação a organização industrial existente à época, estimulando a ciência jurídica funcional; c) uma idéia de uma história do direito social ou sociológica, em contraposição à história jurídica meramente doutrinária, institucional ou política; d) uma possibilidade de um uso inteligente das idéias econômicas pelos 110 operadores jurídicos, de forma que as regras jurídicas possam ser compreendidas sob o ponto de vista prático; e e) uma fé no esforço contra o “pesimismo jurídico enseñando el poder efectivo de la acción del hombre en la satisfacción de las necesidades humanas”209. Resta, por fim, uma profunda inquietação. E provém da dificuldade de saber se esta realidade consistiria em uma análise econômica do Direito: O litigante frequente programa e estrutura as suas relações contratuais de maneira a garantir a sua defesa em casos de eventuais conflitos, escrevendo ele próprio com frequência o contrato; tem fácil acesso aos especialistas; o investimento inicial para cada litígio é fraco; tem oportunidade de estabelecer relações informais com os responsáveis das instituições em diferentes níveis hierárquicos; tem uma reputação de “litigante”, que se esforça por conservar de maneira a tornar mais credíveis as suas posições; arrisca-se a intervir nas acções nas quais os seus direitos não são claros, na medida em que o facto de ser um “litigante” habitual leva-o a calcular as suas vantagens nem grado alargado, minimizando os riscos elevados que podem existir num caso ou no outro; tem interesse em influenciar não apenas o conteúdo das leis, materiais ou processuais, mas também a sua interpretação, para que elas lhe sejam favoráveis, sendo dado que elas o afectam de maneira repetida.210 Mais adiante, assim continua Maria Manuel Leitão Marques: O perfil do litigante frequente corresponde perfeitamente a este tipo de queixoso. Dispondo de um serviço contencioso permanente, o custo da acção relativa à sua preparação e aos custos do advogado é insignificante e não intervêm então na decisão de recorrer ou não ao tribunal. Uma boa gestão do serviço de contencioso levá-lo-á, pelo contrário, a correr o risco. Observase em numerosos casos que a preparação da acção é informatizada e que as relações com o tribunal são rotineiras.211 Inquietação, porque grande parte das atitudes ali previstas são a médio tempo desagradáveis para o Judiciário e para os consumidores. Há uma dificuldade de se estabelecer se essa realidade advém de uma análise econômica do Direito ou se esta é apenas um fruto daquela. E, mais: se efetivamente seria uma análise econômica do Direito, ou de administração privada. 209 POUND, Roscoe. Las Grandes Tendencias Del Pensamiento Jurídico. Barcelona: Ediciones Ariel, 1950, p. 152-3. 210 MARQUES, Maria Manuel Leitão. Os Negócios e a Justiça. In: FILOSOFIA do Direito e Direito Económico: que diálogo? Miscelâneas em hora de Gérard Farjat. Lisboa: Piaget, 1999, p. 490. 211 MARQUES, Maria Manuel Leitão. Os Negócios e a Justiça. In: FILOSOFIA do Direito e Direito Económico: que diálogo?. Miscelâneas em hora de Gérard Farjat. Lisboa: Piaget, 1999, p. 493. 111 De qualquer modo, não passa de uma inquietação exatamente pelo que já fora dito anteriormente: a realidade está aplicando o raciocínio economicista, com amparo ou não do Direito. Daí, desponta, então, outro problema já indiretamente discutido: não vislumbrase um mundo ideal quando cada pessoa (jurídica ou natural) pretende realizar individualmente uma análise econômica daquilo que julga ser seu direito. CONCLUSÃO A pesquisa buscou compreender o significado da Análise Econômica do Direito e estabelecer algumas críticas contra essa forma de compreender o Direito. Não se trata propriamente de uma desclassificação da Análise Econômica do Direito, porque, como o texto demonstra, essa apresenta mecanismos interessantes e úteis para o dia-a-dia da aplicação jurídica. As vantagens da abordagem Law & Economics falam por si mesmas. Não há como deixar de reconhecer que as teorias econômicas, de um modo 112 geral, são frutos de uma evolução científica que culminou com a integração na Economia da análise do comportamento humano. As vantagens aparecem nas idéias da Law and Economics quando se propõem a analisar o impacto da legislação no comportamento humano como um todo, não necessariamente o comportamento econômico. Inclusive, nesse aspecto, grande parte da doutrina analisada aduz a incapacidade do Século XX de criar outra forma tão hábil de verificação e previsão do comportamento humano (capaz de emparelhar com aquela proveniente da Economia). Por outro lado, no que tange às críticas, que era a efetiva pretensão do trabalho, verificou-se uma movimentação da Análise Econômica do Direito quase de forma despreocupada em relação a esse assunto: as críticas vêm se esmaecendo ao longo do tempo, praticamente chancelando uma aplicação direta das idéias e instrumentos econômicos. Todavia, não significa a inexistência de vicissitudes, como demonstrado. Fortalecer o grupo de críticas, significa ressaltar que a aplicação das análises econômicas no Direito não podem ser cegas aos inconvenientes, volumosos e significativos. Há, sim, reações adversas, sobretudo em razão do objeto que o Direito pretende classicamente abarcar. Suas funções. Nesse contexto de pesquisa, o trabalho inicia no primeiro capítulo com um apanhado de opiniões de estudiosos estrangeiros sobre o conteúdo e alcance do que se entende por Direito e Economia. Assim, o capítulo está envolto pelas idéias de Posner, Robert Cooter, Thomas Ulen e Steven Shavell. Deduziram-se lá as idéias principais a respeito da corrente de pensamento: alguns conceitos, finalidades, forma de aplicação. O segundo capítulo, por sua vez, realizou uma análise de como as idéias da Law & Economics são traduzidas no Brasil e a maneira pela qual a doutrina pretende aplicar o Direito nacional sob o viés econômico. Assim, colacionou-se a opinião de diversos pesquisadores de peso no assunto no Brasil, circundando as discussões sobre a importância do papel do Judiciário em relação à economia de um país, sobre a tradução da abordagem para os contratos, para a responsabilidade civil, para o Direito Tributário, para o Direito de Propriedade. Igualmente, tratou-se sobre a Teoria dos Sistemas, além de se estabelecer e se apontar algumas críticas às idéias levantadas. Aqui, parte da pesquisa é solucionada: as análises econômicas permitem a 113 resolução dos conflitos materiais em parte dos problemas sociais. Em muitos casos, o Direito é melhor aplicado e encontra forte respaldo social quando reconhece o viés econômico da relação envolvida e as conseqüências sociais e econômicas que as decisões jurídicas produzem. O resultado da pesquisa é claro nesse sentido, e, como corolário disso, há uma tendência de se aplicar as noções em todos os casos. Toda a problemática aparece em momentos nos quais há outra possibilidade não econômica de conflito social ou quando o cerne de um problema econômico não é propriamente econômico (se apresenta como econômico, mas possui outro fundo). É que a existência humana não se resume nos atos econômicos: os atos realizados sob o império do amor demonstram isso, mormente pela tendência de serem ineficientes economicamente. A vida é cheia de exemplos neste sentido: muitas ações não se enquadram na mecânica das idéias “lei da demanda”. Apareceram os choques entre a teoria e a realidade prática. Descobriu-se que o papel do Poder Judiciário não é puro e está intrinsecamente conectado com os papéis que o Direito exerce em determinada sociedade em certo tempo, embora, de certo modo, permaneça vinculado aos fatos históricos geradores de seu desenvolvimento. Surgiram questões sobre a complexidade fática atual (que se reflete em todos os ramos de conhecimento) e sobre a problemática da racionalidade humana, incutindo reflexos na aplicação da “eficiência” (sob certo aspecto também volátil), no desequilíbrio informacional e noutros pontos. O pano de fundo, entretanto, é sempre constante: a perquirição sobre o funcionamento da relação Direito-Economia e os impactos que tal interconexão acarreta sobre a autonomia do jurídico. A fim de esclarecer melhor essa mecânica, agregou-se parte da doutrina de Cristiano Carvalho na qual o pesquisador analisa, mediante a Teoria dos Sistemas Comunicacionais, a relação entre os subsistemas sociais, como o Direito, a economia, a religião, a política. As relações efetivamente são complexas, devendo o Direito se afastar da regulação econômica, diz o autor, em razão da rapidez e maleabilidade dos agentes do mercado. Por fim, o terceiro capítulo traz as críticas de Ronald Dworkin e alguns problemas referentes aos conceitos e postulados da Economia. Retoma as principais 114 funções do Direito e a transmudação deste para uma nova fase de conhecimento e aplicação, o jurisprudencialismo. A intenção é de verificar se a inversão do raciocínio de Cristiano de Carvalho também não gera resultados verdadeiros. Em outros termos, não sendo possível ao Direito amarrar a Economia (e há casos nos quais dificilmente se poderia admitir que tal conclusão é falsa), seria viável a lógica do mercado tentar “direcionar” o Direito como pretende a Law & Economics? Nesse contexto do trabalho, é criticada a pretensão de objetividade que a Economia pretende passar ao Direito, quando se está cercado por complexidades sociais perplexivas. Especialmente, quando o Direito é reconhecido por intermédio de raízes menos legalistas, mais valorativas e principiológicas (mesmo se mantendo dentro de uma perspectiva funcionalista). O Direito é um regulador e estabilizador das decisões sociais. O Direito tem um sentido em si mesmo, como reconhecer como válida uma normatividade que por ele também é garantida. E nesse sentido é inexorável a sua autonomia sistêmica, uma vez que são decisões internas e dependentes do próprio sistema: estabelece meios para o ingresso na juridicidade e garante a aplicação do jurídico segundo os critérios do justo lá estabelecido. E, em regra, a “maximização da riqueza” não aparece como um objetivo de justiça, sobretudo se pensada de maneira isolada dos demais fins do Direito. Ademais, constatou-se especial inconveniente quando as análises econômicas pretendem retirar os olhos do julgador da circunscrição de um conflito individual para aplicar uma noção mais ampla (de maximização de riquezas sociais, por exemplo), oportunidade em que pode haver uma violação aos direitos fundamentais postos sob julgamento. Já não se julga mais o caso proposto, mas todos aqueles que possivelmente possam ocorrer: constata-se, então, o problema da dualidade existencial de uma eficiência individual e de uma eficiência social. As funções clássicas do Direito reconhecidas pela doutrina reforçam a resposta ao questionamento: o Direito também se prestar para apontar um estado ideal de coisas, que deve tentar ser alcançado pelo homem. Uma função de educação para o futuro, que confrontam a noção de eficiência e maximização da riqueza apresentados pela Law & Economics. 115 Ao cabo, trazendo uma resposta mais específica para a pergunta, a pesquisa trata a respeito da autonomia do Direito em relação à aplicação da Análise Econômica do Direito, no sentido de ser tendência a preservação daquela. O Direito inegavelmente possui uma parte estrutural-formal de difícil captura e manipulação e, sob o ponto de vista substancial, contempla uma série de outros fatores sociais além dos simplesmente econômicos. E, se por um lado seria possível manipular a substância do Direito, apenas seria possível fazê-lo na parte que se refere à economia e ainda de forma parcial: há valores e princípios que não podem mais ser desconsiderados, porque integrantes da dignidade humana. Sempre que a economia pretender encontrar objetivos contrários ou alheios a esses avanços históricos, deve ser barrada, porque desvirtua as funções primordiais do Direito, dentre elas, de proteger aquilo que como humano vai sendo agregado ao longo da história no conceito de homem. As conclusões são parciais, porque não solucionam todas as questões. Pairam dúvidas se a Análise Econômica do Direito não poderia – sobretudo no nosso contexto jurídico – se limitar a uma decisão interpretativa que recai sobre as regras de direito posto. Por exemplo, dentre as possibilidades estritamente jurídicas, talvez a aplicação de uma análise econômica consista em permitir encontrar dentre as soluções jurídicas previstas em nosso sistema aquela que contempla melhor o interesse econômico trazido pelas partes (ou cuja aplicação dos instrumentos econômicos possam ajudar a desenvolver os institutos jurídicos e a sociedade, embora o caso não seja econômico). É viável a utilização dos instrumentos da Economia apenas para selecionar dentre as hipóteses legais qual seria a mais eficiente para alcançar determinado objetivo social. Portanto, haveria um uso diferenciado e restrito da teoria, o que não é plenamente compatível com a intenção da doutrina. E haveria ainda outro inconveniente filosófico: para alguns, o direito só pode oferecer uma resposta correta, não sendo possível a existência de escolhas. Ademais, muito daquilo que é tratado como análise econômica do Direito, não o é, podendo ser classificado como conteúdo de administração, que indiretamente apenas possui relação com o Direito. 116 O resultado, sob certo aspecto, é desanimador: deve-se pesquisar melhor a questão da tradução das teorias econômicas para o Direito, sobretudo considerando a realidade constitucional brasileira, talvez a maior barreira para uma aplicação crua do pensamento econômico. Tal realidade constitucional é certamente um filtro severo; porém deve permitir o ingresso de instrumentos sociais com aplicação positiva. Sabe-se que parte da Análise Econômica do Direito é benéfica e útil, mas não se estabeleceu claramente seus limites, que devem ser impostos (ou já estão impostos) pelo Direito. O problema é que enquanto se pesquisa, as análises econômicas vão tomando conta da realidade, porque apresentam alternativas viáveis para solucionar os problemas, ainda que algumas não seja as melhores. O Direito, um ancião teimoso e apegado ao velho retrato do dever-ser, por intermédio dele julga o mundo, nunca se contentando com outra que não seja a melhor decisão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDONOVA, Veneta; ARRUMADA, Benito. Instituições de mercado e competência do Judiciário. In: SZTAJN, Rachel e ZYLBERSZTAJN, Décio (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. AGUIRRE, Basília; SZTAJN, Rachel. 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