Cão Binho, o pequeno cachorro que virou senador
Transcrição
Cão Binho, o pequeno cachorro que virou senador
“CÃO BINHO, O PEQUENO CACHORRO QUE VIROU SENADOR” de Felipe Moreno Permitam-me contar-lhes, como se fosse por intermédio de uma teleobjetiva, as aventuras e desventuras de um menino chamado Rubinho, o qual, já faz muito tempo, fez de sua história uma lição de vida e sabedoria. Mas antes de mais nada gostaria de iniciar essa narrativa buscando imaginar, ou mesmo, se for possível, selecionar na memória alguns desenhos animados sobre cães de Walt Disney, sobretudo aqueles do tipo que mostram lindos cachorrinhos vivendo um mundo particular - tal como Banzé e sua família -, de modo que deveriam ser vistos como uma comunidade à procura de aprendizado e harmonia constantes. Agora, se você já conseguiu formar na imaginação o desenho animado dessas criaturinhas caninas, já pode vir comigo, senão, de outra forma, sugiro que imagine um mundo composto por cachorros especiais - e quando digo especiais é por que vale trazer à memória aquelas imagens tão imponentes que representavam divindades egípcias da Antigüidade, com rosto de gente e corpo de bicho, conhecidas sob o nome de esfinges. O que estamos querendo criar junto com a sua imaginação, meu caro amiguinho ou amiguinha, são o rosto e o corpo dessas criaturas que habitam esse mundo acachorrado, digamos assim, que, ao contrário daquele outro mundo que falamos mais acima e que poderíamos batizar de faraônico, se revela por intermédio de uma objetiva fantástica – através da qual filmamos, por exemplo, personagens que falam um monte de coisas que muitas vezes gostamos e em outras não -, de modo que poderíamos dizer que veremos esse mundo através de lentes de aumento, lá onde esses seres acachorrados me fazem pensar - se é que me permitem pensar neles dessa forma – em uma comunidade de crianças-caninas, visto que possuem focinhos de cachorros e corpos de gente, e, aqui, agora, limito-me a mostrar-lhes esses seres singulares habitantes de um universo embaixo do qual, se se pudesse colocar um rótulo em forma de legenda de filme, não seria exagero inscrevê-lo como um planeta “infanto-canino multirracial”. Cumpre observar que neste mundo a vida não acaba, mas é demarcada por estágios de longa duração - um ano de vida equivale a aproximadamente cinco anos assim, pois, quem ultrapasse os doze anos de vida, é transportado através de veículos muito resistentes e super-aparelhados - tal qual um “Trenó Espacial” - para um outro planeta mais avançado, a fim de pôr à prova os respectivos conhecimentos adquiridos, e assim, pois, sucessivamente, de doze em doze anos, um estágio de vida é cumprido nesse ciclo infindável de “estudo-experiência-prática-estudo-experiência-prática”. Você já sabe, não sabe?, que em nosso mundo existem regras que todos nós precisamos seguir, sob o risco de quebra de harmonia e do equilíbrio entre os seres humanos, a fim de que todos nós tenhamos os mesmos direitos e deveres, e para comprovar o que estou querendo dizer, chamo-lhes a atenção para a conhecida norma escolar que estabelece a freqüência às aulas como requisito fundamental para o aprendizado em classe e em casa, já que se é para lá que se levam tarefas e obrigações diárias sugeridas pelos professores. O fato é que, nesse planeta infanto-canino, uma das regras estabelecidas para a harmonia de toda a sociedade, exige que todos os habitantes, portanto, que todas as crianças-caninas freqüentem a escola, contra o que se estaria sujeito a pagar um pesado preço, cujo imposto vai além de ficar preso em um canil de infratores: a criança-canina fica proibida terminantemente de falar normalmente ali, sendo-lhe permitido dar apenas seis latidos por dia - dois em cada período do extenso dia - como se por meio disso, de fato, se pudesse punir o transgressor da regra ao impor-lhe uma volta ao passado longínquo, à irremediável época de seus ancestrais mais famosos os chamados “Uivossauros”, cuja forma de linguagem se reduzia a meros latidos. E quem senão Rubinho do Cão Brito, espécime forte de cãonino, como são também chamados as crianças-caninas, o primeiro a se atrever a romper a norma preestabelecida por esse sistema. Vale relembrar o que falei anteriormente sobre o desenho animado de Walt Disney, no entanto, agora, isso deve apenas contribuir para a sua imaginação, meu amiguinho ou amiguinha, no sentido de imaginar conosco a figura de Rubinho, que será por nós conhecido por “CãoBinho”, cuja aparência lembra mais a de um “Buldogue” às avessas, quer dizer, CãoBinho é magro e de pequena estatura, e em cuja face se reflete uma tristeza melancólica digna dos mais azarados vira-latas. Imagine o que é ser confundido erroneamente com uma criatura má e de humor caído, como se fosse realmente uma ameaça a todos na escola - tal era a descompostura que transmitia o coitado do CãoBinho -, de forma que, imagine o leitor, ele transmitia pela forma do seu olhar uma espécie de enfrentamento gratuito, como se, em realidade, não houvesse nele sentimento algum, apenas uma cara brava embora triste. Sendo assim, vestindo a carapuça do menino boicotado ou passado para trás pelo grupo de colegas na escola, CãoBinho resolveu desaparecer dali junto com seus mais justificados motivos, razão pela qual ele não perdia por esperar, e para breve, gente no seu encalço - coisa que de resto não lhe preocupava, já que, no fundo, era um criancão, solitário, carente e magoado, cujo pulsar do íntimo de seu lamentoso coração gania, caninamente, uma dupla dor: a da humilhação e a do abandono. Oh, que tristeza, My Dog, que sofrimento CãoBinho passava! Chutando o graveto seco a caminho de sua casa, tentou mudar o pensamento aflitivo. Tudo que fizera e aprendera até agora fora em vão? Não podia ser que naquela majestosa escola não houvesse verdade. Ele passara o dia inconsolável. “Oh minha casa, vou me preparar para a grande mudança na minha vida!”. À luz da realidade, dir-se-ia ser a casa de CãoBinho um casebre jeitoso e apertado, porém agradável, qual uma toca feita de massa de argila já bem endurecida e acinzentada. Era ali a morada de Rubinho do Cão Brito, localizada acima de um vale no qual serpenteava uma estrada de terra cercada por uma floresta que, de encantada, apenas tinha a atmosfera reinante que exalava dos pinheirais. Entrementes, o grupo de farejadores de elite já havia posto o pé nessa estrada, sabendo da determinação de localizar CãoBinho, porém dois insuspeitos se intrometeram e se misturaram ao grupo ali seguia, conhecidos que eram por suas zombarias e peripécias na escola. Um deles, o que tinha o hábito de recuar o corpo ao falar, era conhecido por Prevenildo - e como o próprio nome sugeria - era prevenido e desconfiado. O outro se chamava Rober VauVau que, sem querer, soltava um latido antes de pronunciar qualquer palavra, como se o latido fosse automático feito um tique nervoso. Agora, no entanto, indo um pouco afastado do pelotão, os dois começam uma conversa, sendo iniciada por Rober VauVau que estranha a atitude calada de Prevenildo. — Au, você está bem? — Pensando... — Au, isso eu não acredito! Auh! Auh! Auh!... — Quer parar de rir, VauVau bobalhão; agora eu não tô pra brincadeira. — Au, tudo bem... Mas, Au, por que você não fala alguma coisa então sobre o que está pensando? — Uma coisa é pensar; outra é armar uma cilada infálivel. — Au, sério?! Então, você está pensando... — Sim, eu sou prevenido, já se esqueceu? — Au, claro que não, Prevenildo. Au, mas me diga: o que você armou aí na sua cabeça? — Agora você disse bem, VauVau; está na minha cabeça, mas ainda preciso da chave... — Au, chave?! Aqui não tem chave nenhuma... — É isso, VauVau! A chave! – Sua alegria apareceu de repente no focinho. — Sem querer, agora, eu encontrei a chave, VauVau! Só que antes de qualquer coisa, eu preciso me certificar que não há ninguém por aqui de olho... Voltamos um pouquinho no tempo e descobrimos como foi que Prevenildo encontrou a chave. Na verdade, Prevenildo não era do tipo que bolava uma coisa, não. Pensava em duas ou três coisas tudo junto, no entanto tinha habilidade de decidir aquilo que mais lhe agradava porque não era do tipo que ficava só no pensamento; gostava mesmo era de pôr em prática a sua melhor idéia, e por isso mesmo é que cabe imaginar a facilidade com que ele agiu a partir de então: pegou seu companheiro de ação e foi pela retaguarda, enquanto o pelotão do grupo de farejadores seguia agora na frente, subindo um vale de pedras que fazia até estalar as pisadas daqueles cães de faro fino, como era chamado cada um daquela imponente turma de farejadores. Mas isso era só por pouco tempo, pensou Prevenildo. Embora Rober VauVau caminhasse emudecido, ouvia o seu colega falando agora sobre suas próprias qualidades de visão e faro privilegiado, enquanto seguiam investigando por entre a mata abaixo do vale para onde seguiam os farejadores. Os dois agora andavam aos sobressaltos, porque temiam pelo ruído que as folhas e o capim grosso produziam. Não queriam ser descobertos ali mais afastados do grupo. Quando então apareceu uma figura, ao estilo de um super-herói canino, mergulhando do alto de uma daquelas imensas árvores que ali despontavam e desceu bem à frente daqueles dois “caras de mamão” embasbacados. Convém dizer que a esta altura Prevenildo, voltando-se para trás - não como o fazia habitualmente para falar, mas apenas porque estava buscando o melhor ângulo de ver quem era aquela figura surgida à sua frente -, ficou fascinado com a aparição que, à feição de um Super Dober Man, se postou elegantemente face a face com eles. Prevenildo não esperava por esta: à medida que falava com Super Dober Man, vindo sei lá de que explosão meteórica de criptonita, percebia que o mesmo mudava de aparência seguidamente, no entanto sem deixar de ser Super Dober Man. Era tão estranho quanto engraçado. Dissemos que Prevenildo pensa muitas coisas ao mesmo tempo, mas gosta de pôr em prática os seus pensamentos. E foi num desses momentos em que já não se pensa, mas faz, que ele pronunciou o nome de Nanci Chou-Chou, e, para a sua completa surpresa, viu Super Dober Man transformar-se numa linda menina canina do oriente, pêlos bem pretos escorridos até os ombros pequenos, olhar tímido, sorriso miúdo, e completamente sem graça. O fenômeno sem igual era o fato de que ela, por incrível que parecesse, embora fosse diferente, lembrava bastante a formosa e badalada bedel da Grande Escola, para terrível assombro de Rober VauVau. Estava aí a chave de que falara Prevenildo para VauVau. Ele pretendia usar o poder que tinha Super Dober Man em se transformar em Nanci Chou-Chou para alguma coisa que tinha em mente. O que seria hein, Rober VauVau? Imagine o leitor que, logo depois de Prevenildo colocar em prática seu plano e fazer com que Super Dober Man se fizesse passar por Nanci Chou-Chou, este voou para o outro lado da aldeia, bem próximo do casebre de Rubinho do Cão Brito, ao passo que Prevenildo e Rober VauVau tomaram então o caminho de volta, desertando-se daquela turma de cães farejadores. Estavam convencidos de que aquele magnífico super-herói camaleônico, então na pele de Nanci Chou-Chou, atrairia o tal do fujão que fugiu da escola como num passe de mágica. Cabe dizer aqui o que mais chamava a atenção na beldade de sobrenome Chou-Chou: seu uivinho delicado e dócil, tal qual uma música angelical, como se tivesse ido parar ali por um capricho do Senhor Dog. CãoBinho a viu de longe, pois havia entrado na floresta a fim de preparar a sua fuga por ela. Alguma coisa dentro dele ainda lhe causava um sentimento penoso, mas, naquele instante, uma gota de felicidade verteu em seu coração endurecido, e ele, num impulso de arrebatamento canino, acorreu para junto daquela linda criatura, provavelmente impressionado pela visão que lhe aparecia como se fosse uma pérola encantada. — Eu só posso estar tendo uma visão! — exclamou CãoBinho. — Como que você chegou até aqui sozinha, Nanci Chou-Chou? — Ah! Meu queridinho!... Isso eu não posso falar. Vim saber o porquê de você ter sumido da escola... Devemos lembrar que CãoBinho não sabia da existência de Super Dober Man e de suas várias aparências a que podia se transformar. — Eu ainda não acredito que você esteja aqui — disse CãoBinho com cara de interrogação. — Como fez sozinha para... — Que bobagem, CãoBinho — interrompeu a falsa Nanci Chou-Chou. — Eu sou uma menina rápida e determinada. Quando decido que vou fazer alguma coisa, faço tão rápido que não dá nem tempo de pensar. — Está vendo como você é, Nanci? Faz as coisas e não pensa. Não devia fazer assim. — Olha quem fala! Você é que devia pensar antes de fugir da escola. Ao ouvir essas palavras, CãoBinho fica surpreso e por um instante prende até a respiração. Os olhos bem grandes e brilhantes ficam tão visíveis que ele reage: — Você não sabe de nada, menina! Eu tinha os meus motivos para isso. E ninguém vai me fazer mudar. — Nossa, CãoBinho! Eu não sabia que você era tão bravo!... De repente faz-se um ruído logo atrás deles. Ali na descida do vale, na estrada de terra de acesso à casa de CãoBinho, aquele grupo de farejadores começava a aparecer. CãoBinho e Nanci Chou-Chou param de conversar. Imagine como sentia o rosto o nosso CãoBinho, com sua aparência de Buldogue - sentindo agora as orelhas em fogo, as patas dormentes e espumando pela boca. Instintivamente, ele saltou e falou à mocinha: — Traidora! Você é uma serpente, Nanci! E queria me fazer acreditar que veio sozinha aqui, não é mesmo? Nanci Chou-Chou olhou CãoBinho tão assombrada que até o seu cílio postiço caiu! — Espera, CãoBinho... Não é isto que está pensando... Você não pode acreditar que vim com eles... — Nunca! Você também não gosta de mim! Vá embora! — Espera, por favor... Atitude infrutífera, porque, nervosamente, CãoBinho ignorou-a e correu ao seu casebre, com a pressa de um cachorro perseguido. Sua revolta aumentava junto com seu temor, posto que seus sentimentos parecessem embaraçá-lo numa rede de grande confusão interior. Ele ficou à janela observando aquele encontro de seus temidos “caçadores”. “Eles que não se aproximem daqui, senão prendo todos na armadilha que aprontei”, disse ele entre dentes. Pegou uma corda ali atada à janela e respirou ofegante, pronto a se defender caso fosse preciso. Como acreditar que aquela linda menina da qual jamais esperava qualquer atitude insensata, tivera a coragem de chefiar uma delegação de cães farejadores? “Seja quem eles pensam que são, que venham para a briga; estou pronto!”. Acontece que o grupo de farejadores chefiados pelo valente e cruel Bentinho Labrador, parou ali para conversar com Nanci Chou-Chou. Demoravam-se numa conversa suspeita. “Por que eles não vêm logo para a briga?” A visão de CãoBinho era boa. Via que aquele bando comandado por Nanci Chou-Chou (era o que ele achava) estava preste a atacá-lo. Ele esperava que a qualquer momento eles entrariam ali no seu casebre de argila e o retirassem à força. “Ah, eles não sabem o quanto eu sou forte e inteligente!”. Mas, surpresa das surpresas, o grupo de farejadores deu meia volta e começou a voltar de onde vieram. Nanci Chou-Chou, sem que CãoBinho sequer imaginasse, houvera convencido Bentinho Labrador e sua turma a voltar e deixar por conta dela a tarefa de fazer Rubinho do Cão Brito voltar para a escola. Disse-lhes que ele não resistiria à sua capacidade de menina meiga, dócil e afetuosa, e justamente mediante o seu gesto de ternura, o faria retornar à responsabilidade. A saída de CãoBinho de sua casa foi uma visão digna daqueles “buldogues invocados” que, intrigado com o que achava impossível, se postara ali de lado à entrada da casa, com o semblante carregado de desconfiança, preparado para atacar a delicada Nanci, que agora havia se aproximado dele. — Não falei, CãoBinho, que você podia confiar em mim — disse ela com um sorriso no focinho — Agora, relaxe. Eles já foram embora. — Isso aqui é uma cilada. Por que você não foi embora junto com eles? — CãoBinho não tirava o friso de desconfiança da sua ampla testa de buldogue. — Eu vim ajudar-lhe, CãoBinho, acredite! — Ajudar-me, é? Com uma tropa de marmancães? — Ele quis dizer marmanjões, na língua dele é claro. — Eles já foram, você não viu? Acabou o perigo. Só falta agora você me contar o que está acontecendo. — Não sei se devo... — Rubinho parecia querer começar a acreditar em Nanci. — Poxa, CãoBinho, eu sou a sua melhor amiga, não sou? — Está bem. Vou lhe contar. Mas ai de você se abrir essa boca! Daí não vou responder mais pelos meus atos. Nanci deu uma latida para CãoBinho, como se dissesse: “confia em mim”, e ele então foi se aproximando lentamente dela, sem perder a desconfiança é verdade, mas foi. Lentamente. Assim, CãoBinho abriu o seu coração à jovem que ele pensava ser Nanci, mas que no fundo era o poderoso Super Dober Man. Contou-lhe sobre uns patifes semvergonhas que fizeram estripulias com ele na escola. Ele tinha certeza de que havia um complô, que ele dizia ser uma tramóia secreta contra ele. Nanci, muito curiosa, acompanhava atentamente as revelações de Rubinho, até que não mais se segurou e começou a insistir com Rubinho para lhe arrancar informações. — Muito bem CãoBinho. Todo complô tem seu chefe. Quem é ele? — Se eu disser que são dois, você vai acreditar? — Vamos, diga logo! — O que adianta eu dizer? Não pretendo voltar àquela escola mesmo... Pelo menos enquanto aqueles dois vigaristas ainda estiverem lá. — Não se esqueça que não pode abandonar a escola; isto é falta grave. — Eu sei, eu sei; admito que esteja errado, mas a culpa maior é daqueles safados do Prevenildo e do Rober VauVau! — Eu já estava quase adivinhando que era por causa deles... — Se quer saber, esses dois debocharam de mim na escola e fizeram os outros debochar também. Eu não tinha mais como ir à escola e ficar quieto no meu canto, ora bolas! Por isso, fugi. — Mas eu não consigo entender a sua atitude de fugir... — Então você acha que eu deveria voltar lá e engolir tudo que esses canalhas fazem comigo? — Não é isso que estou dizendo, queridinho! Fugir da escola não é a melhor solução; ao contrário, só vai complicar ainda mais as coisas. Volte lá e tire tudo a limpo com esses dois pilantras. — Agora não dá mais; já me preparei para fugir para sempre. — Você é quem sabe... Eu disse para o Bentinho Labrador e seus cãesmaradas que você estava arrependido... — O quê?! Como você disse uma mentira dessas? — Não importa como; só fiz isso para eles irem embora e o deixarem em paz. Mas eles só deram prazo até daqui a pouco, para você voltar... — Estou achando que você quer que eu volte à escola e dê uma lição naqueles caras, não é? Mas só que você se esquece de que são dois contra um. Assim não dá! — Eu poderia apostar que você vai encontrar uma maneira de ganhar deles, CãoBinho. É verdade. Vamos, por favor! É muito importante sua volta à escola. — Sinto muito, mas não vou voltar. — E se eu lhe disser que foi por causa daqueles dois bobocas que estou aqui, o que você pensaria? — Você pirou de vez, é? — Se fosse invenção minha, ficaria só na minha cabeça, mas acontece que é verdade! — Chega! Breca por aí! Nem mais uma palavrinha, senão eu mordo! — Mas, agora, queridinho, quem vai dar uma lição neles sou eu! — Como você é, My Dog?! Chegou aqui trazendo um caminhão de intrigas e confusão... — Nada disso; é você que está se enganando; eu só vim aqui ajudar. — Tá bom, então; quer mesmo me ajudar? Pois fique aqui quietinha enquanto agora eu vou voltar lá e acabar com aqueles dois pivetes! — É que eu... — Você não se mexa daqui. É a minha honra que está suja graças à malvadeza daqueles dois cães insignificantes. Mas se existe justiça, o nome dela agora é Rubinho Cãostigador Brito. E ponto final! E lá se foi CãoBinho atrás de seu objetivo, sem qualquer sinal de vacilação. Não deixou Nanci lhe contar que enganou os dois arteiros porque era uma... Bem, meu amiguinho ou amiguinha, não se apresse pois logo irá saber quem ela é de verdade. De sua parte, CãoBinho se roia de raiva por tudo quanto era obrigado a passar por causa daqueles dois sem-vergonhas. “Ah, mas eles não perdem por esperar porque agora eu vou dar uma lição neles...” ruminava ele obstinado. Atirou sobre as costas sua mochila e tomou a estrada de terra rumo à Grande Escola. Embora magro e sem um físico avantajado, CãoBinho sempre foi corajoso, e, agora, os seus pensamentos eram movidos por uma vontade férrea de acerto de contas. Só isso lhe dominava o espírito valente. Sem pesar que, logo que estivesse com as mãos e o coração limpos, Nanci Chou-Chou se sentiria orgulhosa dele. Daí sim, ela ficaria ainda mais bonita do que já é, admitiu ele satisfeito. A propósito da virtuosa Nanci Chou-Chou, ou antes, do grande e poderoso Super Dober Man, que ora encarnava a figura da bela moça, vale dizer que CãoBinho não a deixou ir com ele, fazendo-a prometer esperá-lo até que tudo se resolvesse. Mas ela não era Nanci e sim Super Dober Man, repleto de poderes, para acabar com todos os perturbadores do planeta canino. Dessa forma, decidiu ir atrás de CãoBinho, sem que este soubesse, ainda que na forma de outra figura qualquer, porque queria estar a postos a ajudá-lo em eventual combate que parecia prometer. Tudo podia acontecer, e era então preciso cautela. A prudência era um bem de muito valor, sabia-o o nosso Super-Herói. Pode-se imaginar as dificuldades com as quais estava prestes a se deparar CãoBinho na descida do vale. Você meu amiguinho ou amiguinha, tente imaginar aqueles montes enormes que ora sobem ou descem, atrapalhando qualquer caminhante que por ali se atreva a passar. Era em um lugar desses, onde tudo pode acontecer, o chamado Vale do Osso Recôncavo – que na verdade tinha a forma de um osso bastante estranho -, que se avizinhava ao nosso valente CãoBinho. Era por entre os pedregulhos em meio a uma trilha cercada de rochas lisas, antevendo prováveis perigos ou armadilhas de fatais predadores caninos - como são chamados aqueles que destroem o ambiente em que vive ou os elementos dele -, que seguia confiante e determinado Rubinho do Cão Brito. Era em meio a essas possibilidades que inocentemente o víamos seguir como que atraído àquele caminho. Convém admitir que naquele grupo de farejadores havia especialistas segundo as aptidões características de suas descendências Dog-máticas, portanto, é de se supor o grau de perfeição a que poderiam atingir estando cada qual disposto e concentrado no seu objetivo. Sete elementos compunham o grupo espalhados em pontos estratégicos nas escarpas do vale, a caminho do qual se podia divisar, ao longe, a Grande Escola, estendendo-se em braços que formavam alamedas arborizadas. Na realidade podia-se afirmar seguramente que CãoBinho não meditara sobre todos os riscos a que estava exposto no transcorrer de sua ação em razão de seu objetivo moral mais importante àquela altura: castigar seus oponentes a qualquer custo. Então imagine, caro leitor, que assim que CãoBinho adentrou na zona de tocaia (a surpresa é tão importante quanto o ataque em si), aconteceu o que era de se esperar: como numa série quase que automática, o primeiro elemento daquele grupo de farejadores, na forma de um cão de caça, apareceu-lhe de inesperado e, paradoxalmente, à maneira de um felino, atirou-lhe sobre a cabeça um instrumento que parecia uma “rede-de-caça-cães-vadios” e contra o qual CãoBinho precisou usar seus dentes e sua habilidade para se safar, no entanto, mal se libertara daquela armadilha, um segundo elemento canino, na forma de uma raposa traiçoeira, imprimiulhe um duro golpe de “kung-fu”, fazendo com que CãoBinho se curvasse e caísse aparentemente prostrado, porém conseguindo forças para, num segundo momento, surpreendê-los e contra-atacar com eficácia, dominando e imobilizando aqueles dois primeiros rivais com uma corda que conseguira retirar habilmente de sua mochila, prendendo-lhes a um grande pedregulho para que eles não fugissem. Ufa! Cão Binho trabalhou bem e rápido. Era certo que estava tão disposto a pôr as mãos, quer dizer, as patas naqueles dois picaretas - os quais já sabemos quem são -, que lhe foi muito fácil imobilizar aqueles outros dois pobres cães de tocaia. Só não esperava CãoBinho por um terceiro elemento, que, de fato, o surpreendera, pois era grandalhão na forma de um gigantesco “São Bernardo”, que estava à espreita para prendê-lo. O perigo se tornara fato real. CãoBinho fora pego pelo pescoço e arrastado para uma outra trilha. Sentia-se impotente ante aquele cão-jamanta que se imaginou um “Marinheiro Popeye”, que, em vez de comer espinafre para encontrar as forças sobrenaturais, comia a terra que sua boca engolia enquanto era arrastado pelo outro. E a imaginação como sabemos é criadora e então ele se viu na realidade como o verdadeiro Popeye, tão forte que conseguiu reagir contra o grandalhão puxando-o contra si pelo pescoço, para assombro do brutamonte, que a esta altura, quanto mais se aproximava de CãoBinho, mais hipnoticamente incrédulo demonstrava estar, até que teve sua imensa pata torcida contra a parte superior de seu corpanzil e, depois, amarrado a uma árvore. Era o fim de uma epopéia canina, pensou CãoBinho, que já havia ouvido essa palavra na escola, descobrindo ser uma aventura pela qual muitas vezes temos de passar para sobreviver. Mas se era o fim de uma coisa, parecia ser começo de outra, pensou CãoBinho no exato momento que viu aparecer um anjo iluminado. Imagine o leitor agora a aparição de um translúcido foco de luz parado no ar, em torno do qual um anjo esfumaçado surge e o vemos com as formas de Nanci Chou-Chou. Esse anjo do qual saía nuvens esfumaçadas de tamanha beleza luminosa assistiu a todos os fatos que se sucederam ao nosso herói ali no Vale do Osso Recôncavo. Mas chamo-lhe a atenção pela maneira privilegiada que ele o fez, ou seja, através de poderes que lhe conferiam o dom de não ser visto - apenas aquele contorno luminoso pôde ser captado por mim, enquanto ela sobrevoava, na verdade fora captado pela minha atenta objetiva – lembra-se dela não é mesmo, meu amiguinho ou amiguinha? Aquele anjo formoso percebera que as provas contra as quais se deparava CãoBinho eram difíceis e mesmo crescentes, aumentando-lhe maiores obstáculos à medida que ele se aproximava do seu objetivo ou destino. Entretanto, não havia problema, pois mesmo com os problemas que o nosso CãoBinho pudesse se deparar ainda, não estaria sozinho, já que ele, anjo esfumaçado, lhe daria meios poderosos para que o valente cãonino se defendesse à mesma altura de seus antagonistas, de forma que, entre estes, havia ainda quatro restantes daquele pelotão de farejadores emboscados à descida do Vale do Osso Recôncavo, que agora eu e você, meu amiguinho ou amiguinha, descobrimos tratar-se de cães cruéis e terrivelmente perigosos, que ficaram a meio do caminho da Grande Escola, para agarrar o nosso CãoBinho. Então fora isso que combinaram com Nanci Chou-Chou, ao desistirem de agarrar CãoBinho em seu casebre? Por que fizeram isso sendo tão cruéis? Haveria alguma vantagem especial para deixarem de pegar o nosso herói se parecia tão fácil agarrá-lo ali naquele momento? Questões que descobriremos se não desistirmos da leitura que virá. Não pense que tenha terminado a saga de Rubinho do Cão Brito. Ele já havia voltado pela trilha de terra, deixando seus primeiros inimigos no Vale do Osso Recôncavo, encaminhando-se para a Grande Escola, pois continuava disposto a acertar as contas com Prevenildo e Rober VauVau. Mas não esperaria que outros cães farejadores o aguardassem para lançar mão do bote final contra o tal do cãonino fujão. Tratava-se, em realidade, de uma batalha semifinal, digamos assim, em que o nosso herói logo que havia deixado o morro torna-se presa fácil da primeira dupla de marmancães, tendo suas patas amarradas em volta do seu próprio corpo, e sendo atirado - agora pela segunda dupla de farejadores – dentro de uma casinha na forma de jaula onde, se muito, poderia caber meio cãonino. CãoBinho, sem saber dos recursos daquela jaula, tentou escapar dela logo que se viu preso, porém, para a sua surpresa maior, logo que encostou nas grades tomou um tremendo choque, descobrindo de imediato que ao primeiro contato de suas patas com aquelas barras, estas emitiam uma corrente elétrica contra a qual não havia como resistir, obrigando-o a se manter ali apertado contra a parte inferior daquela casinha em forma de jaula, quietinho e comportado. “Será que eu passei dos meus limites de cão?”, pensou ele espremido no fundo da jaula. Assim, quando parecia realmente que CãoBinho não poderia fazer mais nada, eis que surgiu uma linda mocinha de longos cabelos dourados, qual uma maravilhosa pastora que trazia uma translúcida varinha na mão, que nada nesse mundo canino poderia resistir, sequer mesmo esses farejadores de meia-tigela, de modo que, sem demora, num toque mágico com sua varinha contra a grade elétrica que sustentava a casinha-prisão, esta desapareceu e CãoBinho se viu livre novamente. CãoBinho também estava perplexo; não sabia se ficava mais assombrado com a sua inacreditável e repentina liberdade, ou se estava de fato acordado diante da indescritível beleza daquela fada canina e de seu maravilhoso poder, tal era o seu ar de incrédulo deslumbramento, todavia, era preciso acreditar que fora aquela magnífica criatura saída das ventanias daquele vale, que lhe franqueara a passagem, dizendolhe ser Kaura, a Cãorubinha, protetora dos valentes e dos que tinham sede de justiça, razão pela qual viera ao seu encontro, pois que voejava pelo planeta para sentir no ar o odor exalado por aqueles que se viam em desvantagem ou em perigo, e que estava ali, ele podia agora acreditar, para ajudá-lo. Ainda arrebatado pela força e energia daquelas vibrações que Kaura lhe transmitia, CãoBinho retomou o seu rumo e seguiu em direção à Grande Escola, agora, como que sentindo as suas forças plenamente revigoradas pela sublime intervenção daquela maravilhosa querubinha, ou melhor, cãorubinha, que o havia libertado daqueles “lobos traiçoeiros”, fazendo-lhes cair em um sono tão profundo quanto duradouro, porquanto, agora, Cãobinho estava então a salvo e, claro, aliviado, pois, tivera a sensação de que queriam assá-lo vivo - como se ele, CãoBinho, fosse transformado em um “churrasquinho de cão grelhado” – ao colocarem-no um pouco antes dentro de uma jaula com grades elétricas. “Nossa! Quanta coisa maravilhosa tem me acontecido nesses últimos dois dias”, espantou-se CãoBinho. Como numa corrida de obstáculos, havia ele se superado rumo ao acerto de contas final com Prevenildo e Rober VauVau. Era o que se avizinhava segundo após segundo. Ele não pensava em encontrar mais ninguém para atrapalhá-lo no seu caminho. Será? No fundo, CãoBinho sentia saudades da escola, mais precisamente da matéria de Ciências da qual tinha verdadeira adoração, e também de alguns colegas que, assim como ele, gostavam de “bater um fute” no muro da quadra de esportes da escola onde tinha o desenho de uma trave de futebol. “Vou dar uma bomba naquele gol isso sim. Um golaço de Cãobinhooo...”. Mas qual foi a surpresa de CãoBinho quando surgiu saído de trás de um poste, o maior e preferido de toda a cachorrada daquele lugar, o chefe dos cães farejadores – Bentinho Labrador. Aconteceu tudo muito rápido e inesperado a CãoBinho, que se encostou na parede da casinha de um conhecido seu da escola. Estava vazia e era provável que o amigo estivesse fora com a família fazendo compras. — Pensava que podia fugir de mim, Rubinho? — disparou Bentinho com cara de poucos amigos e com uma rede de caça-cães sobre os ombros. — Saia da minha frente – respondeu CãoBinho com coragem. — Eu não tenho tempo para falar com você agora. — CãoBinho parecia tão destemido que o clima ganhava ares de combate. Bentinho aproximou-se ainda mais de CãoBinho. Devagar. Olhos nos olhos, fulminando-o e expressando um ar irônico que poluiu ainda mais o ambiente entre os dois. Bem perto dele, proferiu: — Você é tão tolo quanto àquela tola da Nanci Chou-Chou. CãoBinho estava pronto a reagir, não se importava mais. Só não queria se intimidar. “Vou dar um soco nessa cara suja e cuspir depois... Epa! Que coisa feia isso, assim não dá! A não ser que eu não tenha outro jeito”. — Por que está dizendo isso? — perguntou CãoBinho, ainda sem tirar os olhos do chefe dos cães farejadores. — Porque é a verdade – respondeu o outro. — Ela acreditou que fôssemos embora como cordeirinhos. Mas eu não sou carneiro; sou um labrador retriever, legítimo cão de caça. — Eu não quero brigar com você, Bentinho. Deixe-me passar agora. — Ah! Ah! Ah! Brigar comigo? Ah! Ah! Ah! CãoBinho, surpreendentemente, esticou a pata e bateu de leve no ombro de Bentinho. Parecia disposto a fazer o outro a recuperar o senso das coisas. — Você é uma boa pessoa, Bentinho — Ajuntou. — Não devia pensar maldades... — O que está querendo ganhar com isso, moleque? — A sua amizade. A sua ajuda em coisas importantes. — Coisas importantes?! – Bentinho agora estava mais relaxado, mas ainda sim mantinha uma posição ofensiva. CãoBinho se mantinha calmo para falar a Bentinho sobre o que pretendia. Em poucas mas com objetivas palavras procurou convencê-lo de que faltara à escola por causa de Prevenildo e Rober VauVau. — Foi isso que eu disse à Nanci Chou-Chou quando ela foi me procurar no meu casebre e eu sei que ela o convenceu a ir embora com a sua turma de farejadores. Sei que você é um cara legal, Bentinho! Bentinho percebeu que as intenções de Rubinho eram verdadeiras e confirmou as palavras dele: — Nanci disse para nos afastarmos e voltarmos para a escola e esperar lá. Não posso negar que achei uma bobagem de cadela essa idéia, pois queríamos pegar você antes de voltar à Grande Escola, mas se está me dizendo que me acha um cara legal, eu vou deixá-lo ir. Mas não se engane comigo. — Você é um bom cachorrão, Bentinho. Agora, me empresta essa rede de caçar cães. Eu devolvo logo que puder. — Está bem. Mas veja lá o que vai fazer. Não quero mais problema por sua causa. — Pode deixar, Bentinho. E assim CãoBinho seguiu pelo caminho e foi para a escola. Descobriu que Bentinho Labrador e sua turma de cães farejadores não era tão ruim assim e que tudo, até mesmo as piores coisas, dava para ser superado com um jeitinho amigo. Ele chegara à hora da saída, e, sem ficar à vista, entreviu Prevenildo e Rober Vauvau saindo dali alegres e cheios de fanfarronice; como de hábito, gozando os outros colegas. De tocaia, CãoBinho espera o melhor momento para enfrentar aqueles dois, e isto só acontece quando eles entram na alameda. CãoBinho se aproxima dos dois sem ser visto e os prende com a rede. Os dois tentam se livrar de todo o jeito, mas a cada movimento deles em meio à rede de caça, mais eles ficam presos. CãoBinho aproveita para prendê-los com uma corda que levava com ele. — Agora vocês vão ver o que é bom para tosse — esbraveja CãoBinho enquanto os arrasta pelo caminho. — Ficarão presos aos portões da Grande Escola para todo mundo ver o castigo que merecem. — Au, tire-nos daqui, seu fedelho! — berra Rober VauVau, com irritação. — ‘VauVau’ latir em outro lugar agora... Ah! Ah! Ah!... — diverte-se CãoBinho, agora vendo-se vingado. — Você pensa que ganhou a guerra hein, espertinho? — vocifera Prevenildo com ódio. — Pois saiba que vai cair de quatro sem que espere! — Pode reclamar à vontade, seu tolo – responde CãoBinho sem se incomodar com o desespero dos dois. — Agora chegou a minha vez. Como é bom poder desmascarar vocês dois. — E que você pensa que pode fazer se nunca fez coisa alguma que prestasse? - revida Prevenildo. — Isso é problema meu! Agora, os dois tratem de ficar quietinhos aí que vou pensar numa boa surpresa para vocês. — Au, Prevenildo! – late VauVau — Você vai ficar aqui olhando esse bobalhão sem fazer nada? — E o que é que você quer que eu faça, seu inútil? — responde mal-humorado o comparsa. — Não está vendo que estou preso como você? — Au, mas eu pensei que arranjasse uma idéia para nos livrar dessa rede... — Calem a boca, vocês dois! - esbraveja CãoBinho. — Se quiserem ficar discutindo o que vão dizer para os cães que passarem por aqui, tratem de arranjar uma boa arenga. CãoBinho prendeu-os ao portão e logo em seguida adentrou à escola desaparecendo da vista deles. Rober VauVau estava tão nervoso que gaguejava. — Au, volte aqui, seu seu... Prevenildo, por sua vez, começava a matutar como de costume várias coisas ao mesmo tempo. “Isso não vai ficar assim, CãoBinho, porque, enquanto eu me chamar Prevenildo, eu sempre faço alguma coisa que ninguém espera. Você verá, seu cão danado!”. Assim, Prevenildo e Rober VauVau ficaram ali amarrados no portão, enquanto CãoBinho foi procurar a inspetoria de alunos, aproveitando, ainda, para arrebanhar um batalhão de coleguinhas à porta da escola, levando-os até onde estavam os dois patifes. Na verdade, CãoBinho havia colocado uma condição para que todos pudessem ouvir a confissão de Prevenildo e Rober VauVau: ser ele o único a servir de interrogador dos acusados e com isso obterem uma confissão espontânea, ao que foi aceito por aclamação. Então, logo que viram alguns inspetores de alunos e toda uma multidão de crianças-caninas se aglomerarem defronte ao portão onde estavam presos, Prevenildo e RoberVauVau sem demora começaram a clamar por socorro, mas CãoBinho tomou à dianteira do grupo e começou uma espécie de acareação com os prisioneiros. — Muito bem, um de vocês dois pode falar: está todo mundo aqui ansioso para ouvir a confissão de culpa de vocês. — Culpa de que, mané? — exclamou com fúria, Prevenildo. — Culpa de terem provocado o meu afastamento da escola - respondeu calmamente CãoBinho. — Au, isso é uma cau, uma cau, uma caulúnia!... - gaguejou VauVau. — Somos inocentes – bradou Prevenildo. — Nunca fizemos nada contra ninguém, muito menos gozamos da cara do CãoBinho. Ele está fazendo isso para chamar atenção. — Quer dizer então que o comportamento de vocês sempre foi exemplar, nunca provocando nem magoando nem rebaixando ninguém, é isso mesmo? continuou CãoBinho. — Sim, é verdade – respondeu Prevenildo. — Se fossemos ruins com os outros colegas, eles estariam nos acusando de fazermos a mesma coisa e isso não acontece, não é mesmo? — Pois bem então — prosseguiu CãoBinho —, agora deixo por conta dos honrados cidacãos aqui presentes: que vocês façam a correta justiça por mim e em nome também daqueles que sofreram a mesma coisa que eu, porque, em minha presença, tenho quase certeza que nenhum desses dois cachorros irá admitir a maldade que fizeram. Disto isto, afirmo que assim feita a justiça, retomo a minha vida aos estudos normalmente... E assim foi que CãoBinho deixou aqueles dois para serem acusados e interrogados porque sabia que havia outros com o coração ofendido e ansiosos por uma chance daquela. Ele retirou-se com o orgulho da missão cumprida, podendo agora dizer àquela linda cãonina da Nanci, que conseguira vingar a sua honra “buldoguesa”. Espera uma coisa! Nanci Chou-Chou? Ela existe de verdade ou é coisa do Super Dober Man? Isso viríamos saber somente depois de uns dias. CãoBinho já estava de volta à escola e aquela dupla de fanfarrões, que ele havia prendido aos portões da Grande Escola, Prevenildo e RoberVauvau, também já haviam recebido o castigo de todos que foram atingidos por suas malvadezas, inclusive dos inspetores da escola, cabendo-lhes, tão-somente, como uma espécie de tarefa remissória, preparar e entregar uma trabalho sobre o duro fardo de Mister Mastino - o mais antigo e espetacular ancestral do Planeta OssoDuro, o qual teve de se transformar em gato para poder sobreviver. Vale lembrar que uns cinco dias passados no planeta infanto-canino, equivalem a quase um mês em nosso calendário. Durante esse tempo, até que Prevenildo e Rober Vauvau bem que ruminaram como poderiam voltar à carga contra Rubinho do Cão Brito, mas estavam mesmo eram dispostos a pôr as mãos em Super Dober Man, que havia lhes enganado como se eles fossem vira-latas! Era uma ofensa sem tamanho para quem tinha o orgulho zombeteiro como eles. Mas onde encontrá-lo agora? Acontece que certa tarde, quando já imprimia os primeiros passos rumo ao seu casebre no alto do Vale do Osso Recôncavo, lá ia CãoBinho a revelar uma renovada aparência diante da nossa objetiva que procurava enquadrar seus passos leves, pois nem parecia aquele mesmo dognino com cara de buldogue, mas sim, um radiante e esbelto protegido da fantástica Cãorubinha chamada Kaura, o qual, estranhando a visão que se anunciava mais à frente, pára ao ver alguns livros encostados sob uma grande rocha arredondada, e, aproximando-se para investigar, com sua fisionomia cismada por não ver nenhuma criança-canina ali perto, toma um susto daqueles grandes. Ao retirar aquela pilha de livros de sob a grande pedra rolante, CãoBinho percebe que esta começa a se movimentar em sua direção, e precisa correr para se proteger. A minha objetiva, no entanto, deixa à mostra sabe quem, meu amiguinho ou amiguinha? Os dois caras de pau – ou será melhor, focinhos de pau? – e bagunceiros, Prevenildo e RoberVauvau, que haviam saído para ver se encontravam o tal de Super Dober Man. Prevendo, então, que desta vez o nosso herói não escapasse daquela imensa rocha, Prevenildo e VauVau correm para onde havia outra pedra, à procura de uma posição mais confortável. Porém, uma brisa soprou do vento sul e arrebatou CãoBinho da fúria daquela rocha em avalanche, que certamente o esmigalharia se passasse por cima de sua cabeça. No entanto, CãoBinho como se fosse uma folha seca soprada por um golpe de ar, tem o seu corpo erguido que se torna flutuante, para assombro e desespero daqueles dois traiçoeiros que, não vendo como pudesse se dar aquilo sem razão aparente, empenham-se em correr temerosos e desabaladamente em descida pelo vale, sem voltar-se para trás. Os dois estão correndo sem parar, mas, ao terminarem a trilha no final do vale, mais ou menos onde lhes apareceu Super Dober Man pela primeira vez, surge-lhes ele novamente. A dupla toma um susto sem tamanho que quase desmaia. — Era eu que vocês estavam procurando? — perguntou Super Dober Man. Mãos na cintura, pose de vencedor. Prevenildo, refeito do susto, vai para cima de Super Dober Man, mas é facilmente seguro por ele. VauVau tenta ajudar o amigo, mas o super-herói também o segura. Coloca-os sobre o galho de uma árvore. — Acabaram as safadezas de vocês dois. Na escola, conseguiram perdão, mas comigo vão precisar rebolar! — Super Dober Man sentou-se encostado em outra árvore, de frente para a dupla. — Você nos enganou Super Dober Man! — repudiou Prevenildo com raiva. — Por que não nos trouxe Rubinho como combinamos? Você não era a Nanci ChouChou? Neste momento, como num passe mágica, novamente Super Dober Man transforma-se em Nanci Chou Chou, para a surpresa de VauVau. — Au, de novo essa mudança!? Desse jeito eu caio daqui de cima! Manhêêê!... Neste momento, Nanci dá uma volta por ali sem perceber que CãoBinho se aproximou dela. Quando percebe, ela tenta esconder-se atrás da árvore, mas Prevenildo a denuncia perante CãoBinho. — A sua super-heroína está aqui, Rubinho! CãoBinho logo corre até ali e se depara com a dupla em cima do galho alto de uma árvore. — O que estão fazendo aí em cima – pergunta bastante assombrado. — Pergunte a ela primeiro — responde Prevenildo. — Ela quem? — torna a perguntar CãoBinho. — Essa daí que se transforma em Nanci Chou-Chou – torna a responder Prevenildo. Neste instante, Nanci sai de trás da árvore e encara CãoBinho. Está com medo de falar alguma coisa, deixando CãoBinho muito desconfiado do que ela fazia ali com aquela dupla. — Eu posso explicar, CãoBinho – disse ela. — Que está fazendo aqui com esses dois safados? Você falou que era minha amiga — CãoBinho está muito encafifado a esta altura. — E sou, claro! – responde Nanci. De repente, Prevenildo, gozador, percebe que CãoBinho não sabe dos poderes daquela ou daquele que estava conversando com CãoBinho e resolve interferir: — Diga para ele quem você é, menina enganadora. Fala Super Dober Man! – Ele solta um grito lá de cima da árvore. Neste instante, Nanci Chou-Chou toma a forma de Super Dober Man. CãoBinho fica tão impressionado que até escorre uma baba do canto da sua boca de buldogue. Super Dober Man se afasta um pouco dele, mas CãoBinho corre até ele e questiona-lhe com desconfiança: — Mas então você não é quem aparenta ser... É um Super Dober Man! Um cachorro super-herói? Mas como pode ser Nanci Chou-Chou também? Neste instante em que fala o nome de Nanci, Super Dober Man transmuda-se em Nanci Chou-Chou. A boca de CãoBinho agora goteja intensamente de embaraço, pois perdeu a exata clareza das coisas momentaneamente. Nanci ou Super Dober Man, tanto faz agora, procura correr para longe. CãoBinho vai atrás delas e eles abandonam a dupla de gozadores, que desesperada chama-os para que os ajudem a descer da árvore onde estavam. É um momento importante para CãoBinho que, muito curioso, procura saber de tudo que atina àquela altura. Nanci não tem mais como esconder e lhe revela: — Sim, a verdadeira Nanci Chou-Chou não sabe da minha existência, e nem podia saber... CãoBinho liga as coisas com rapidez agora: — É claro! Por isso que a Nanci na escola dizia que eu estava louco quando agradecia a ela por ter ido até meu casebre para me ajudar... Você é que é a Nanci que subiu até lá e convenceu os cães farejadores a irem embora, não é? E também é um Sper Dober Man! Então talvez deva ser a outra que me salvou da casinha de grades elétricas? — CãoBinho está arrebatado com as associações que faz a sua mente a esta altura. — Kaura... Você é a Kaura, a minha protegida... Agora eu já sei. Mas por que muda tanto de figura? CãoBinho estava muito atônito e agora viu Super Dober Man mudar de novo e se transformar naquela linda cãorubinha possuidora de encantos mágicos e que havia lhe libertado da prisão. Prevenildo e VauVau, não se sabe se por desespero ou outra coisa, caem de lá do galho e se estatelam no chão. Eles também não entendiam mais nada. Como podia ser que aquela criatura pudesse mudar de identidade assim de forma tão rápida, não importando o sexo que precisasse assumir? Para esta pergunta, a resposta foi para as nuvens. Literalmente. Isto porque, de inesperado, Kaura, ou Nanci, ou Super Dober Man, ou sei lá quem, subiu para o céu e se misturou à primeira nuvem que passava por ali. CãoBinho que correu atrás dela, e depois voltou para onde estavam Prevenildo e Rober VauVau, ficou tão fascinado que ficou com aquela linda visão se desmanchando no céu, sentando-se sem perceber sobre as costas de VauVau para ver o espetáculo que sua protetora revelava neste instante. Instintivamente, levantou-se ergueu a pata e dirigiu o jato por sobre Prevenildo, e um pouco também, sobre Rober VauVau, ambos ainda sem os sentidos. Mas acordaram ao sentir os focinhos sendo lavados pela urina de Rubinho do Cão Brito. — O que você está fazendo seu cãozinho mijão? — gritou Prevenildo. — Au, seu pivete! Au, te pego ainda... CãoBinho nem respondeu e foi de novo subindo o vale em direção à sua casa. Estava se sentindo com a alma lavada. E com o direito de lavar os seus principais inimigos. Passado cindo dias no planeta canino, e como o caro leitor já sabe, equivale a cinco vezes mais tempo do que sabemos, portanto, vinte e cindo dias depois, CãoBinho viu-se às voltas novamente com a sua protegida Kaura, que, lhe aparecendo em mantos translúcidos, diz-lhe para procurar o Diretor da Grande Escola, mas com o cuidado de não revelar a existência dela para o Diretor, e sim, tentar persuadir-lhe com a idéia de se montar um Colegiado, tal qual um Grande Congresso, no qual deveria se constituir um novo poder – “O Poder Infantil dos Remidos” – que seria composto de crianças-caninas que sofreram perseguições, injustiças e abusos diversos na Grande Escola. CãoBinho, ainda inebriado diante daquela visão angelical também conhecida como uma linda e esfumaçada potestade, cujos poderes dominava-lhe o seu mais canino olfato, concorda em fazer o que ela tão singelamente lhe sugere. Seria uma oportunidade para ajudar os cachorrinhos mais perseguidos da escola e ele, CãoBinho, se tornaria o protetor dos fracos e oprimidos. “Viva CãoBinho, O Canídeo Justiceiro!”. E assim se deu que CãoBinho foi recebido por Vossa Excelência Dog Mático logo pela manhã à hora do café para uma audiência. Ele então tomou conhecimento de tão inesperado pedido, no entanto, embora compreendendo a sua importância, responde a CãoBinho sobre a necessidade de levar o assunto a outros conselheiros da escola a fim de se refletir melhor sobre o pedido. Entrementes, Prevenildo e RoberVauvau, com visível despeito daquele por quem passaram a odiar, inventam uma história na classe, na ausência de CãoBinho, dizendo aos presentes que, ao passarem pelo vale dias atrás, livraram CãoBinho de ser atropelado por uma rocha, e que isso acontecera porque fizeram um pedido especial para um anjo através do qual foram imediatamente atendidos. Os cãoninos da classe acham tudo muito estranho, mas, ouvem que este mesmo anjo é o protetor de CãoBinho e que usa a forma de um super-herói famoso e de uma conhecida bedel da escola. Essa informação provoca uma agitação total entre os coleguinhas da classe, que querem saber mais sobre esse anjo e como ele faz essa mágica de se transformar em outras figuras. O interesse toma conta geral e mesmo o Professor Pastoraldo fica curioso com a novidade. Mas, ao final, diz que tudo isso não passa de invenção fantasiosa dos dois, coisa que os coleguinhas da classe também passam a acreditar, deixando Prevenildo e Rober VauVau numa situação tão sem graça que eles acabam de castigo ali de frente para a parede da lousa até o final da aula do Professor Pastoraldo, com a promessa de suspensão por tempo indeterminado. Talvez essa fosse a melhor lição que vinha para esses dois - quem sabe assim aprendiam a respeitar os companheiros, porque até mesmo a verdade que eles pensavam ter, já não era mais acreditada por ninguém ali da escola. Entrementes, o pedido de CãoBinho ao Diretor da Escola chegara ao Colegiado para análise. Aceitavam pôr a idéia de CãoBinho em vigor na escola conquanto que CãoBinho perdoasse os seus recentes desafetos – Prevenildo e Rober VauVau - porque, se assim o fizesse, ele procederia com a mais sábia atitude de toda Grande Escola e, assim, seria condecorado tanto como mentor da idéia quanto exemplo a ser seguido pelos colegas. E por falar em nosso herói cãonino, ele estava voltando pelo Vale do Osso Recôncavo, quando, de repente, apareceu-lhe sua linda protetora angelical, Kaura, e esta, com uma voz aveludada, lhe disse: — Meu protegido CãoBinho... Você é um bom cãonino. Tem bom coração, é honesto, justo e corajoso. Tem as principais qualidades dos grandes cães. Mas agora precisa se preparar... CãoBinho que já não estava tão deslumbrado com a presença do anjo, demonstrava mesmo era curiosidade. — Me preparar para quê? — perguntou ele. — Para uma prova... — Prova? — Prova de grandeza. Será exigida de você uma prova de conduta. No seu mais profundo “eu”... — Olhe, Kaura, para ser franco, eu não estou entendendo o que quer dizer... — Vai entender, meu protegido, e isso não irá demorar muito. Aí você compreenderá a sua importância, o valor que se tem quando ficamos acima dos nossos gostos pessoais, de nosso terrível egoísmo... — Isto é possível? — Claro que é, meu canjo. Veja: há males que vem para bem. Se não acontecesse tudo aquilo com você na escola, se não ficasse chateado, deprimido e ofendido, não poderia mostrar ao Diretor da Escola o seu interesse em criar um novo Poder de proteção aos cãoninos perseguidos e injustiçados. — Mas foi você, Kaura, que me pediu para ir falar com ele. — Rubinho estava bastante confuso com tudo aquilo. — A única coisa que você precisa agora é ser cada vez mais forte, derrubar seu orgulho ao chão, ser nobre e decente para um cargo de prestígio. — Um cargo de prestígio? Para mim? Continuo sem entender... — Não preciso dizer que o seu pedido será aceito pela comissão da escola. Só precisava de uma atitude, porque, no fundo, você sabe o quanto é difícil ser gozado e humilhado em sua própria escola e por amiguinhos com quem tem de conviver todos os dias. — Mas o que preciso fazer agora então? — Suportar as dores da nova missão. — Mais gozação ainda? — Não, meu canjo, nada de gozação. — Kaura estava exalando perfumes coloridos que se espalhavam pelo vale. — Você precisa ser apenas forte diante das novas situações que virão depois que for eleito para a autoridade desse novo poder. — Então eu vou poder mandar o que eu quiser? — Ter autoridade não é mandar, obrigar ou maltratar alguém. Isto é para quem usa de poder, de força. Autoridade é ser um líder, um condutor de idéias de uma comunidade, de uma escola. É a busca da liberdade para um grupo que deseja um objetivo comum. — E qual objetivo é esse? – perguntou o cãonino, sentindo algo além de uma curiosidade qualquer, mas como se fosse uma lição que caía literalmente do céu. — Ser forte! – respondeu Kaura lhe abrindo um lindo sorriso. — Mas eu sou forte! Não há nada que eu não possa fazer para levar os meus amigos comigo para frente. — Assim seja, meu protegido, e agora vá descansar, porque amanhã, provavelmente, terá as suas provas definitivas. — Obrigado por sua ajuda, minha santa cãorubinha Kaura. Mas me diga uma coisa: como consegue mudar de rosto com tanta facilidade? Kaura sorriu-lhe e lhe abraçou. Foi a primeira vez que CãoBinho sentiu uma coisa apertada em seu peito tão forte que parecia que ia explodir de felicidade. O anjo olhou-o nos olhos e disse: — Mudar de rosto é a coisa mais fácil que existe, CãoBinho. Todo mundo tem vários rostos e muda de um para outro com muita facilidade. Mas mudar o nosso coração deixando o amor e a sabedoria conduzirem nossos passos, isso não é fácil. É um ato de real nobreza. Por isso, você é o meu rei! O Rei CãoBinho! A paz abençoe o seu caminho, meu canjo. E quando novamente um sorriso apareceu nos lábios da maravilhosa criatura, sua imagem toda se desmanchou na claridade do entardecer e soltou um puft, desaparecendo por completo. Para assombro mais uma vez do agora nobre Rubinho do Cão Brito. No dia seguinte, CãoBinho logo que chegou à escola, ficou sabendo da boca do Diretor Dog Mático sobre a decisão a que chegaram durante a assembléia a respeito do assunto levado pelo cãonino. Logo, CãoBinho sentiu de novo tudo aquilo que lhe falara Kaura. Não pôde esconder certa inquietação diante do Diretor, que tinha o focinho achatado de Boxer com uma mancha preta em volta do nariz. Ele mexia as patas quase sem parar, enquanto falava sobre o perdão, principalmente para aqueles de quem sentíamos mais ódio. CãoBinho, neste instante, pensou nos safados do Prevenildo e Rober VauVau, mas procurava ouvir o que o Diretor lhe dizia. — Você, Rubinho, precisa dar um nobre exemplo a todos. No futuro, poderá ser considerado o grande reformador do nosso planeta. Novamente, CãoBinho lembrou das palavras tranqüilizadoras de Kaura. Havia chegado a sua hora, o seu momento. Precisava continuar a ser forte, como disse Kaura. Uma parte de seu “eu” dizia para ele fugir da responsabilidade - e já que havia fugido uma vez, não faria mal em fugir pela segunda vez. Mas a outra parte do “eu”, a parte ligada à verdadeira força que possuía no seu coração, como havia alertado Kaura, precisava ser forte. Então, ele aceitou perdoar aos malfeitores e assumir a sua nova missão na Escola. Assim, foi preparado um encontro na Grande Escola em que todos os alunos deveriam participar justamente para que CãoBinho assumisse o perdão em público àquela dupla que tanto o fizera sofrer. Prevenildo e Rober VauVau estavam a seu lado, e CãoBinho, mesmo tendo de se superar, tomou a palavra e começou o seu discurso: — “Quero dizer a todos que cheguei a uma decisão das mais importantes para a minha vida canina, por isso gostaria de pedir um pouco da atenção de todos vocês, porque, mesmo que eu não admita em público, confesso que estou bastante nervoso”. Um rumor geral se ouviu, com aplausos e latidos animados. CãoBinho, no entanto, procurou controlar seu nervosismo e retomou a palavra: — “Bem, o objetivo principal de minha fala aqui é dizer-lhes que aprendi a olhar meus colegas da forma como eles são, isto é, cheguei à conclusão de que não posso mudar o comportamento de ninguém, muito menos as atitudes de quem quer que seja, mas posso aceitá-los do jeito que são, aprendendo a gostar de suas características, ou, no mínimo, respeitá-las. Entendi também que se alguém fizer alguma coisa contra a minha pessoa, preciso ter uma atitude compreensiva e procurar, da melhor forma, corrigir o cãonino, seja com um conselho, seja com um sorriso, seja com uma palavra amiga, seja com o simples perdão. Porque dessa forma, ele entenderá que errou e evitará fazer de novo. Considero o perdão uma das coisas mais difíceis de dar em nossa infanto-canidade, mas eu gostaria de dizer agora aqui a todos vocês, meus amigos e amigas, que, embora sofrendo bastante as conseqüências dos atos desses dois colegas, Prevenildo e Rober VauVau, decidi pôr uma pedra sobre tudo isso e perdoá-los de uma vez por todas! Vocês estão perdoados porque têm o direito de errar. Só espero que daqui em diante vocês se esforcem para acertar.” Sob o ângulo de minha objetiva, eu pude captar os aplausos entusiasmados para CãoBinho, que abraçou Prevenildo e Rober VauVau. Esses dois, emocionados, não contiveram o choro e pediram perdão a ele pelo que lhe fizeram assim como para todos que se sentiam ofendidos ou humilhados. Era difícil acreditar que haviam se modificado, poderiam estar fingindo, mas as lágrimas que derramavam eram muito verdadeiras. O Diretor da escola tomou a palavra e disse que Rubinho do Cão Brito passava a ser o primeiro Senador do Perdão Canino, por sua flama e arrojo. Dog Mático estava então instituindo o novo cargo a ele, razão pela qual CãoBinho também ganharia uma assessora, a linda Nanci Chou-Chou, a verdadeira e autêntica bedel da escola, entre outras regalias e confortos. De fato, CãoBinho agora parecia outra criança, mostrando-se como estava mais amadurecido com a nova responsabilidade, de modo que não esquecera o ensinamento de Kaura – aliás, ela não lhe apareceu ali, mas falou-lhe em seu ouvido para que usasse de autoridade a fim de conduzir cãoninos à soma de esforços pelo bem comum de todo o planeta, deixando o poder de mandar ou de dar ordens para a história passada. Passou-se um ano no planeta canino, e CãoBinho ganhara dois novos ajudantes. Nada menos nada mais do que Prevenildo e Rober VauVau, que resolveram adotar uma nova postura e auxiliar CáoBinho na condução de uma nova campanha para a escola: distribuir material escolar aos menos afortunados. Rubinho do Cão Brito, enfim, o então Senador do Perdão Canino, estabeleceu com a sua liderança o que acabaram chamando ali de “Pilar Máximo de Sustentação da Harmonia do Bem-Canino”, através do qual fazia vigorar a lei de respeito mútuo entre todos ali na Grande Escola, evitando dar vez a qualquer sentimento ruim, egoísta ou invejoso, o que fazia o orgulho de todas as crianças-caninas. Isso foi tudo o que fiquei sabendo depois que fechei o livro que lia na Casa do Museu de História Canina, uma casa onde não é permitido latir alto nem correr pelos corredores. Como um fiel cumpridor de leis e normas, só me resta então guardar os valores caninos para toda a eternidade bem quietinho, só com a minha teleobjetiva que filmou toda essa estória e mostrou a você em forma de palavras, meu caro leitor e bom amiguinho ou amiguinha. Espero que tenha gostado dessa nossa fábula do seu fiel amigo. Au! FIM. Excerto do Apêndice do Livro “Dupla Personalidade para um Roteiro”, de Felipe Moreno. Célebre Editora, 2007, São Paulo, SP