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III ENCONTRO LATINOAMERICANO CIÊNCIAS SOCIAIS E BARRAGENS 30 novembro a 03 de dezembro de 2010 -, Belém (PA) ST04 - Experiências de reassentamento, reparação e compensação Perdas e danos nos baixões de Altamira Rodrigo Peixoto Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG Antônia Martins Fundação Viver, Produzir e Preservar - FVPP 0 Perdas e danos nos baixões de Altamira Rodrigo Peixoto Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG Antônia Martins Fundação Viver, Produzir e Preservar - FVPP Introdução Incerteza é a marca principal do AHE Belo Monte. O EIA informa que na Área Diretamente Afetada (ADA) Urbana de Altamira moram 16.420 pessoas. Outras estimativas da população a ser removida dos baixões formados pelos igarapés Altamira, Ambé e Panelas e ao longo da orla do Xingu falam em até 40.000 pessoas. É dito que a soleira da catedral da cidade está localizada na cota 101, enquanto a Casa do Índio, em frente ao cais, está na cota 99, na área alagável, portanto. Um prejuízo para a cidade, que vem sofrendo há décadas com a destituição de serviços básicos. A cidade se atrofia à espera da barragem salvadora. A propaganda do empreendimento mostra o “hoje” – exclusivamente figurado por palafitas, na verdade 37% das edificações da ADA, segundo o EIA – e o “depois”, um vistoso conjunto habitacional. Lado a lado com informações e números duvidosos está a incerteza quanto ao futuro dos que já sabem que serão obrigados a se retirar se o projeto prosseguir. O EIA registrou 666 atividades produtivas nos baixões, comércio na frente e residência atrás, na maioria. Da sua panificadora, uma senhora diz: “São laços sociais que se perdem. Eu conheço todo mundo aqui; é alguém que passa e diz - ‘oi dona Jane, tudo bem?’ Como a gente vai reconstruir tudo isso em outro lugar?” A incerteza envolve muitas questões e principalmente os atingidos pelo grande empreendimento. Os empreendedores justificam a superficialidade do Programa de Negociação e Aquisição de Imóveis e Benfeitorias Urbanas, bem como do Programa de Intervenção em Altamira, que compõe o Plano de Requalificação Urbana, com o argumento de que os detalhamentos deverão ser contemplados apenas no Plano Básico Ambiental, após a obtenção da Licença Prévia. Esse documento foi arrancado do IBAMA não obstante parecer contrário dos técnicos do órgão, responsável por autorizar oficialmente a operação de grandes empreendimentos que degradam o meio ambiente, mediante a avaliação de seus 1 impactos e das mitigações e compensações, que devem estar devidamente previstos no Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Uma vez que o EIA não traz elementos suficientes para comprovar a viabilidade ambiental e social de Belo Monte, a Licença Prévia foi condicionada ao cumprimento de 40 exigências do IBAMA, além de outros 26 condicionantes estabelecidos pela FUNAI. O governo cumprirá essas condições que implicam em considerável atraso no cronograma das obras? A par com as incertezas, o empreendimento se distingue pelo emprego de procedimentos irregulares e contingentes - o governo já se movimenta para obter uma licença de instalação parcial, capaz de permitir a montagem dos canteiros de obra sem o cumprimento das condições exigidas para a validade da Licença Prévia 342/2010. Vale notar que, entre as condições específicas da Licença Prévia, algumas que se referem à área urbana e aos baixões de Altamira nem sequer começaram a ser providenciadas. O documento demanda (a) “convênios referentes aos Planos de Requalificação Urbana, Articulação Institucional e Ações Antecipatórias, propostas no EIA e suas complementações, deverão ser assinados pelo empreendedor e entidades governamentais e apresentados no PBA [Projeto Básico Ambiental], acompanhados de cronogramas visando propiciar o atendimento da demanda suplementar provocada pelo empreendimento, bem como suprir o déficit de infraestrutura” ...; e (b) entre as ações antecipatórias previstas, “i) o início da construção e reforma dos equipamentos (educação/saúde), onde se tenha a clareza de que serão necessários, casos dos sítios construtivos e das sedes municipais de Altamira e Vitória do Xingu; ii) o início das obras de saneamento básico em Vitória do Xingu e Altamira” (...). Não se vê nada disso sendo providenciado, mas o governo quer a qualquer custo iniciar as obras, e, portanto, novos atropelos processuais são esperados. De modo que os conteúdos do EIA de Belo Monte não esclarecem os meios para a efetivação de todo um conjunto de intenções e omite questões fundamentais, como é o caso da identificação das áreas urbanas e das respectivas situações fundiárias para realocar os moradores de Altamira que hoje habitam abaixo da cota 100. Não se sabe também quem se responsabilizará pela realocação dos moradores, já que o estudo alude ao INCRA, mas também à Prefeitura, sem definir prazos. Assim, em função da ausência de informações mais detalhadas e concretas, 2 o EIA se assemelha a uma carta de intenções, um longo discurso de milhares de páginas carregado de alusões a planos que provavelmente não serão realizados, se Belo Monte avançar - a despeito de questionamentos, pareceres negativos, ações judiciais contra a construção da usina e toda a controvérsia -, assim como não o foram no caso da barragem de Tucuruí, experiência que marcou a vida de alguns moradores dos baixões de Altamira. “Essa é uma história que já se repete. A gente correndo da água e a água correndo atrás da gente”, diz uma moradora. Incerteza de números e informações O EIA informa que a Área Diretamente Afetada – ADA Urbana do AHE Belo Monte corresponde às áreas da cidade de Altamira situadas abaixo do nível do reservatório que se formará na cota altimétrica 97 m, aquelas situadas na sua respectiva Área de Preservação Permanente (APP) de 30 m, e ainda as áreas situadas abaixo da cota altimétrica 100 m, passíveis de inundação pelo chamado efeito remanso - intrincado fenômeno não suficientemente estudado, conforme o hidrólogo Molina (2009, p. 100): “Os relatórios do EIA não contém dados essenciais para poder avaliar a confiabilidade do estudo de remanso” - provável no caso de grandes chuvas e enxurradas, cujas águas não terão como escoar uma vez represado o rio. Essas áreas urbanas situam-se ao longo da orla do Xingu e nas margens dos igarapés Altamira, Ambé e Panelas, as várzeas dos igarapés formando os baixões de Altamira. Nessas áreas urbanas moram 16.420 pessoas, segundo levantamento realizado pela Leme Engenharia, em 2008. Contudo, e essa é uma das incertezas vinculadas ao projeto, outras estimativas da população a ser removida na área urbana de Altamira falam em até 40.000 pessoas. O projeto mobiliza muitas opiniões e toda uma campanha de resistência. A atriz Dira Paes, em vídeo sobre Belo Monte, produzido pelo Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVS), menciona essa cifra e Antônia Melo, coordenadora do MXVS, avisa que metade da cidade vai para baixo d’água. Ninguém sabe ao certo e a incerteza preocupa todo mundo. Os números levantados em pesquisa socioeconômica censitária e apresentados no EIA na forma de tabela para caracterizar o Conjunto da ADA relacionam essas 16.420 pessoas a 4.362 grupos domésticos, resultando uma média de 3,76 pessoas por grupo doméstico, praticamente a mesma das áreas rurais. Oswaldo Sevá estranha a coincidência dos 3 números e pergunta: “A ocupação numa área urbana periférica, pobre, densa, é a mesma da área rural?” (Sevá, 2010). Evidentemente a subestimação do número de pessoas por grupo doméstico tem conseqüências. Ao considerar uma média abaixo da real, o projeto subestima também os equipamentos e infra-estruturas habitacionais, de saneamento básico, escolares e de saúde necessários para atender a população a ser remanejada. Significa dizer que faltará recursos para a rubrica investimentos sociais, caso o projeto avance. No Painel de Especialistas, Magalhães, Acevedo e Castro (2009) criticam as confusões metodológicas e a inconsistência dos números que caracterizam o EIA: “A média de 3,14 pessoas por grupo doméstico é um grave equívoco derivado de mais uma confusão metodológica. A média é, pelo que os dados indicam e a bibliografia aponta, de 5,5 a 7 pessoas por grupo doméstico. Isto, no mínimo, dobraria a população diretamente afetada. Somente um novo levantamento pode confirmar.” De fato, um grupo, formado pela Defensoria Pública, Ministério Público Federal e organizações populares, pretende realizar cadastramento das famílias da área urbana de Altamira, situadas abaixo da cota 100, e então haverá uma fonte alternativa para confrontar os dados do EIA de Belo Monte. ADA AHE Belo Monte: Imóveis, Estabelecimentos Econômicas, Grupos Domésticos e População Total Área Imóveis (pesquisa censitária) Produtivos/Atividades Rural 1.241 Estabelecimentos Produtivos/ Ativid. Econômicas 1.101 Grupos Domésticos População 824 2.822 2,27 População/ Grupos Domésticos 3,42 Urbana 4.760 666 4.362 16.420 3,45 3,76 Totais 6.001 1.767 5.186 19.242 3,21 3,71 População/ Imóveis Tabela extraída do EIA Belo Monte, com fonte em Leme Engenharia. Pesquisa Socioeconômica Sócio-Antropológica. Fev/2008, acrescida com as duas últimas colunas. Por ora, para se ter uma idéia do tamanho do dano a ser provocado, são esses os números disponíveis, que provavelmente subestimam a quantidade de pessoas a serem removidas caso o empreendimento avance. Uma atualização dos dados que informam o EIA está sendo preparada pela Elabore, prestadora de serviços para o Consórcio Norte Energia, detentora da Licença Prévia para o empreendimento. Na polêmica sobre os números, o movimento de resistência se 4 dispõe a conferir métodos e procedimentos e acompanhar esse novo levantamento, assim como o Ministério Público Federal pretende medir, e assinalar com uma marca nas paredes das casas, até onde a água vai subir, a fim de aferir a extensão do alagamento. Abaixo está uma imagem, retirada do EIA (volume 23 – ADA urbana de Altamira), das áreas a serem alagadas nos igarapés Ambé, Altamira e Panelas e na orla do rio Xingu. Quantos imigrantes serão atraídos para Altamira em função do empreendimento? A população da cidade irá dobrar, com 100.000 novos habitantes? Quantos já chegaram na expectativa de empregos desde quando esse polêmico projeto iniciou-se décadas atrás? A cidade incha principalmente nos baixões - isso é visível e os próprios dados do EIA confirmam esse inchamento ao mostrar que 46% dos moradores têm menos de 5 anos de residência. Há quem diga que a população de Altamira aumentou de 30.000 pessoas de 2006 para cá. Mas quem sabe ao certo? Como se pode dimensionar essa sobrecarga para os serviços e equipamentos urbanos? Junto com a tortuosidade dos procedimentos, incertezas quanto a números e informações marcam Belo Monte. A bióloga e antropóloga Renata Soares Pinheiro, que colabora na Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), define Belo Monte: “Ninguém sabe exatamente quem vai ser atingido. Porque a gente não sabe se vai se limitar à cota 100. Porque também o setor elétrico tem esse costume de ir aumentando a barragem. Então com essa subida aumenta o número de atingidos. Isso pode acontecer. Ninguém sabe. A gente acha que não vai ficar numa barragem só. Que vão vir outras barragens a montante, senão Belo Monte não tem sentido nenhum, você gastar R$ 30 bilhões com uma barragem que vai funcionar 30% da 5 sua capacidade. Então ninguém sabe de fato o que vai acontecer daqui pra frente nas áreas a montante. Quem vai ser expulso não sabe para onde vai, aonde vai morar, porque as pessoas que trabalham e vivem aqui na região dizem que não existem terras disponíveis aqui perto de Altamira para as comunidades rurais, nem para as comunidades urbanas. E ninguém sabe como vão ser essas condições de moradia. Se aonde eles vão ser realocados que tipo de estrada vai haver, que tipo de transporte. Vai haver escolas? Vai haver postos de saúde? Ninguém sabe nada, na verdade. Quem vai ser responsável por isso, quem vai assegurar que os direitos dessas pessoas vão ser respeitados? Então é um belo monte de incertezas.” Cidade e região atrofiam à espera do desenvolvimento. A população se divide Altamira incha com a chegada de imigrantes, mas também se atrofia com a falta de investimentos públicos. Essa circunstância deprimente é fenômeno típico que afeta localidades que se tornaram alvo de um grande projeto. Todos os investimentos, desde o plantio de uma roça ou a reforma de uma casa até a pavimentação de ruas e outros serviços urbanos, se paralisam, à espera do grande empreendimento. Não vale a pena desperdiçar investimento onde a represa vai alagar. Ao mesmo tempo a notícia do grande projeto que trará progresso e desenvolvimento se espalha, atraindo legiões de migrantes. Influenciada pela propaganda, uma parte da cidade acredita que Belo Monte será mesmo um empreendimento salvador, capaz de fazer correr dinheiro, dinamizar o comércio e gerar empregos. A cidade se divide entre os que são contra e os que são a favor, as duas facções se odiando, e isso é mais uma perversidade. Estima-se em cerca de 96.000 o número total de empregos direta e indiretamente ligados à construção da represa, número equivalente à população atual de Altamira (Sousa Júnior e Reid, 2010). Essa massa de trabalhadores no pico das obras implicará uma demanda por infraestruturas e serviços que significa uma grande sobrecarga para o município já combalido, a qual não está considerada nas análises oficiais e no próprio EIA. Investimentos para compensar essa sobrecarga representam inclusive uma das condições estabelecidas quando da liberação da Licença Prévia nº 342/2010 pelo IBAMA. Na referência da cota 100, se a água vai chegar ao pé da catedral e vai alagar a Casa do Índio, então se perderão várias ruas importantes que fazem o patrimônio urbano da cidade, assim como as casas que lá estão. Muita gente não avalia o dano, por isso o Ministério Público Federal vai assinalar com tinta nas paredes a altura que a água iria alcançar. Pode ser que então a população tenha uma idéia do prejuízo para a cidade, que, aliás, vem sofrendo há décadas com a destituição de 6 serviços básicos, para que Belo Monte seja vista como a salvação de Altamira, porque com ela viriam o saneamento e outros direitos da população. A região está abandonada, esperando pela barragem salvadora, e isso se vê pela falta de manutenção. Na toada de que a barragem vai redimir Altamira da miséria, folhetos que fazem propaganda do empreendimento usam a estratégia de mostrar o “hoje” – com a população vivendo mal, figurando as áreas dos baixões como se fossem exclusivamente formadas por palafitas (na verdade 37% das edificações da ADA urbana de Altamira, conforme o EIA) – e o “depois”, um vistoso conjunto habitacional, capaz de se tornar um aspirado padrão habitacional na cidade. Até certo ponto esse efeito é alcançado, já que o discurso do progresso e do desenvolvimento tem dividido a cidade. Dia 6 de novembro, um sábado, uma passeata pela rua principal da cidade já não atraiu tanta gente. Mas isso não quer dizer que não existam muitas pessoas contra a barragem; é que elas temem represálias, o que se justifica pela história de ameaças e perseguições contra quem luta contra a barragem: “Olha, tu tava lá, tu não tem medo não? Olha, te cuida!” - é uma advertência que se faz. De toda forma, muitos associam Belo Monte com a redenção da cidade mal mantida e seria um dano se o movimento de resistência perdesse adesão popular em Altamira. Mas não é fácil mostrar que a outra face dos empregos eventualmente criados com o empreendimento são dezenas de milhares de imigrantes, gerando demandas por serviços e infra-estruturas que não estão consideradas no projeto. De fato, a expectativa de criação de empregos e oportunidades faz a população dos baixões crescer, junto com a população de Altamira, que se estima tenha aumentado em 30.000 pessoas, de 2006 para cá. Nos baixões, conforme os dados do EIA, quase metade da população tem menos de 5 anos de residência, e 20% chegaram há menos de 1 ano. Ou seja, os baixões estão inchando com a chegada de imigrantes, a maioria deles de áreas rurais de Altamira, de onde foram expulsos, para engrossar o número de desempregados na cidade. Entre os principais problemas apontados pela população dessas áreas, a falta de trabalho aparece com 24% das citações, seguida pela violência, com 19%. O empreendimento já deflagra mudanças sociais e elas não são boas. 7 Enquanto se espera pela conclusão da polêmica – “será que o projeto vai mesmo acontecer?”, é a crônica interrogação -, os que ficaram em suas terras estão sem plantar, desestimulados de investir trabalho no que é incerto. Os prefeitos não investem nos travessões, nas vicinais. E então na cidade começam a faltar alimentos e a cesta básica já aumentou de preço. “Aumentou o número de crianças nas ruas, de crianças fora da escola, de crianças e adolescentes na prostituição, isso é visível”, fala Antônia Melo. Altamira, da parte dos governos, é uma cidade à espera de Belo Monte, não tem políticas públicas, e isso desde há muitos anos. “O serviço de saúde já não atende, faltam médicos todos os dias nos postos, as escolas públicas são de péssima qualidade, as creches não têm condições de funcionar, o presídio está superlotado de detentos, é o caos”, reitera Melo. Sob muitos aspectos esse processo se assemelha a uma longa guerra. Altamira parece uma cidade sitiada e condenada - é isso, a privação, ou é Belo Monte, o grande projeto redentor. Mas, então, o Estado não poderia investir parte dos controvertidos bilhões de Belo Monte para melhorar as condições de vida na cidade e na região? Parece que definitivamente não, já que todos os investimentos públicos estão condicionados pela represa. Até mesmo o programa Terra Legal não entra em Altamira porque não quer investir em legalização fundiária na região impactada por Belo Monte, reclamam os agricultores, que reclamam também que o Luz para Todos, “e em todos os lugares”, conforme o lema do Programa, não está levando energia elétrica para o município. E então as pessoas abandonam o campo para inchar os baixões de Altamira. Atropelos nos procedimentos. Novos baixões na cidade? Enquanto espera o que seria “a mãe de todos os investimentos”, cidade e região vão acumulando déficits e prejuízos. Esse longo período de abandono já soma três décadas e une numa mesma atitude impositiva a ditadura, que construiu Tucuruí prejudicando milhares de moradores locais, e a atual democracia sem soberania popular, na medida em que Belo Monte avança sem atender a legislação e permitir uma participação realmente informada dos grupos atingidos. A peleja dura desde quando o projeto foi lançado no final dos anos setenta, já com muitas críticas, com o nome Kararaô, experimentando grande repercussão em 1989, no 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, mesmo ano em que se criou a 8 Comissão dos Atingidos por Barragens do Rio Xingu, e não tem final definido. A resistência insiste, mas o governo está disposto a atropelar procedimentos legais e criar no Xingu uma irreversível situação de fato, sem volta. Irreversível foi uma palavra muito usada durante a ditadura militar e o atual processo de Belo Monte, ao adotar o autoritarismo como critério para a tomada de decisão, mostra que o setor elétrico traz heranças daquele tempo. A expressão ditadura de fato é empregada na região por pessoas que se sentem prejudicadas e não têm como fazer valer seu descontentamento. Muitas audiências públicas deixaram de ser realizadas e aquelas que foram não garantiram a efetiva participação informada da população. As oitivas dos povos indígenas não foram realizadas como prevê a Constituição, mas suspeita-se que o empreendimento seguirá assim mesmo. Afinal, os grandes interesses que o sustentam são fundamentalmente os mesmos do período militar, dado que o comando político do setor elétrico brasileiro não se alterou durante todo esse tempo. E esse comando político está ligado a grupos econômicos que ganharão rios de dinheiro com o empreendimento. O lucro das empresas privadas que realizarão Belo Monte e atenderão a encomendas de materiais, máquinas, equipamentos e serviços é provavelmente questão mais fundamental que a própria geração de energia. Esse fundamentalismo está na base do atropelo dos procedimentos. Tudo mais é protocolar, figurando como meros rituais para aparentar o cumprimento de normas, inclusive as audiências públicas. Como elas funcionam? Os empreendedores apresentam o projeto em suas linhas gerais, cujos detalhamentos em documento com milhares de páginas foram liberados para consulta pública apenas uma semana antes da audiência. Ninguém teve tempo hábil para deslindar e entender as várias questões complexas que o projeto envolve, mas mesmo assim perguntas são feitas, várias delas sem resposta da parte dos empreendedores. É claro que o projeto é apresentado de forma favorável, mas algumas questões suscitam dúvidas e precisam ser analisadas tecnicamente. Contudo, não há espaço para outras rodadas de debates, depois que população e pesquisadores tenham tido tempo para digerir as informações. Questionamentos importantes ficam sem resposta e as críticas são censuradas como impertinências, inclusive nos altos escalões do governo, de onde um ministro chegou ao descomedimento de tachar a resistência de “forças demoníacas”. 9 O governo está impaciente com os críticos e com os próprios rituais exigidos pela legislação e pela democracia. Deixando por um momento de lado as controvérsias quanto à viabilidade ambiental e econômica do empreendimento, que têm marcado pontos de vista diametralmente opostos, está claro que os procedimentos são obscuros, situando-se muito aquém dos padrões estabelecidos por organismos internacionais. Até mesmo defensores de Belo Monte criticam o governo quanto à atitude de fazer a usina sair de qualquer jeito. Belo Monte não segue várias das recomendações estabelecidas pela Comissão Mundial de Barragens, inclusive a de o projeto conquistar aceitação pública mediante uma participação bem informada dos grupos afetados. Confrontado por grupos que se opõem à barragem, o governo os tem tachado de obstrucionistas e tem reprimido a resistência. O governo tem inclusive usado de expedientes sigilosos e pressões políticas para superar impedimentos técnicos a fim de conseguir vencer etapas no processo de obtenção da Licença de Instalação, como foi o caso da Licença Prévia extraída do IBAMA, ainda que com vários condicionantes (Sousa Júnior e Reid, 2010). A rigor, um projeto dessa dimensão, que drena, de outras escolhas de investimento, uma grandeza de recursos públicos que nem mesmo os empreendedores sabem precisar, deveria ser objeto de um plebiscito nacional, precedido de uma ampla e muito bem informada discussão. Essa discussão deveria partir da própria concepção do projeto, como recomenda Acserald (2009), desde os estudos para o aproveitamento hidrelétrico da bacia do rio Xingu, devendo-se ainda “abrir o debate público sobre quais setores são responsáveis pelo aumento da demanda por energia, se esta demanda é legítima e justifica os impactos sociais e ambientais, qual tipo de energia é o mais adequado para cada região e quais as formas social e ambientalmente seguras de obtê-la (idem, p.48). No entanto, se os empreendedores estão falseando oitivas indígenas, se deixam de cumprir audiências públicas, tendo realizado apenas 4 das 27 previstas no processo, evitando informar e ouvir a população, e se omitem as ruas que serão alagadas na cidade, para evitar oposição, então o processo não é transparente, e não é possível acreditar no que prega o EIA, que ademais trata tudo de forma muito superficial, deixando todos os detalhamentos para futuros programas e projetos. 10 A maneira superficial com que o EIA trata de algumas questões de extrema relevância para a população de Altamira é parte dos problemas relacionados a procedimentos atropelados. Na página 45 do volume 23 do EIA, em tópico que trata do saneamento da área urbana diretamente afetada de Altamira, o texto diz que apenas a área central da cidade possui rede de drenagem de águas pluviais, com os bueiros desaguando acima do nível do rio Xingu e “que nessa rede são interligados os efluentes do esgoto dessa área, com sérias conseqüências para a qualidade da água do corpo receptor”. É verdade que o sistema de esgoto em Altamira é precário, e a rigor inexistente. Contudo, o problema pode se tornar muito mais grave com a mudança do nível do rio, conforme considera o professor Hermes Medeiros, ecólogo na UFPA: “A parte baixa da cidade tende a ficar com água rasa e parada. Porque hoje Altamira joga o esgoto no rio, mas em locais onde o Xingu corre, não tem água parada na frente da cidade. Quando a água está parada no período da cheia, está tendo muita chuva, e os próprios igarapés estão jogando muita água. Então a água não fica parada, a água tem movimentação. Quando uma parte da cidade está inundada é o período em que o rio Xingu está com uma vazão 60 vezes maior que no período seco. Então existe muita mais movimentação de água. No momento em que essa água fica parada no período seco, ela vai ficar realmente parada, eles chamam de águas eternas, aquela água que está ali e não tem como sair dali. Então vai haver muita contaminação nessa água parada e isso vai produzir uma coisa séria, muito mais grave”. Significa dizer que essas águas eternamente paradas podem produzir novos baixões, com problemas sanitários sérios para a população da cidade. As implicações desse alagamento permanente das áreas baixas de Altamira se enquadram na recomendação de cautela implícita na observação do pesquisador Inocêncio Gorayeb, do Museu Emílio Goeldi: “O projeto AHE-Belo Monte promoverá drásticas e extensas alterações ao meio ambiente e as conseqüências certamente serão muito maiores do que as previstas e anunciadas no RIMA”. Águas paradas ou com drenagem lenta são criadouros para várias espécies de insetos que trazem problemas para as populações humanas, inclusive das áreas urbanas atingidas pelo empreendimento: “É imprevisível saber quais as espécies de mosquitos que responderão com superpopulação, mas se dentre elas as potenciais vetoras de malária estiverem envolvidas, o problema será ainda mais grave; e isso é muito provável. Mesmo as espécies não vetoras, em superpopulação, chegam a inviabilizar a presença do homem e de animais (incluindo os domésticos e manejados) por causa do número de picadas, do estresse, incômodos e vulnerabilidade que causam aos animais. Vastas áreas onde a antropofilia de culicídeos é elevada se tornam insalubres para a 11 permanência humana. A extensão desta problemática agravante, também é uma incógnita, mas poderá atingir os grandes núcleos urbanos de influência da AHE. O aumento da população humana imigrante (mais vulnerável) e a migração local intensa de pessoas atuarão como fonte retro-alimentadora de recursos para as superpopulações de mosquitos e descontrole de doentes” (Gorayeb, 2009, p. 79). Assim, questões relacionadas à saúde da população não são devidamente consideradas nos estudos do AHE Belo Monte, que não aprofunda questões sociais relacionadas ao empreendimento, cujos impactos mais fortes, como sempre ocorre, recairão sobre as populações mais pobres, que adoecerão, o aumento da morbidade representando mais uma sobrecarga para o município: “Constata-se um mecanismo de postergação para as questões sobre o tratamento dos efluentes, dos riscos potenciais aos trabalhadores, a comunidade e, conseqüentemente, para a saúde pública. Vários problemas sociais fazem parte do cenário de impactos da implantação dessa hidroelétrica o que exige a urgente reposta a questões omissas no EIA. Confirma-se a falta de prioridade para as questões sociais que demandam implementação de políticas públicas e também um foco claro para as questões de saúde. A exclusão dos possíveis impactos à saúde humana e a negação da incomensurabilidade dos valores ambientais demonstram a falta de uma abordagem ecossistêmica para o complexo problema socioambiental. É possível inferir que, novos riscos e novas formas de adoecer e morrer aparecerá nas áreas de influências alterando o perfil de morbimortalidade da população. A maior carga dos danos ambientais será destinada às populações de baixa renda e ao poder público restará os custos diretos de assistência” (Couto, R. e Silva, J., 2009, p. 89). Economia e sociabilidade popular dos baixões água abaixo Nos baixões de Altamira há evidentemente quem esteja querendo mudar, para não morar mais sobre igarapés em palafitas com toda a privação que isso significa. Mas muitos comerciantes, ao mesmo tempo moradores, não concordam e temem a remoção. Seu Adão, dono do Comercial Bahia, acha que a indenização do governo não vai pagar suas perdas e danos: “Para mim, se eu tiver que sair daqui vai ser uma perda tremenda. Indenização de governo não presta. Eles não vão pagar o valor do ponto comercial. Eles vão pagar o valor da casa, não do ponto comercial. É diferenciado”. Dona Jane nem quer pensar na possibilidade de sair: “Rapaz, para te falar a verdade eu prefiro nem pensar. Seria uma perca muito grande sair daqui. Como vou fazer para recuperar tudo isso? Seria muito difícil me instalar noutro lugar, começar tudo do zero é muito difícil. Se isso acontecer vai haver muita perca, em todos os sentidos. O pessoal passa aqui, encosta o barco na beira do rio, a gente já tem aquela clientela certinha. Então fica muito difícil dizer eu vou para daqui a 2 quilômetros, 3 quilômetros. Não sei nem com quem eu vou conviver lá, entendeu? Não sei nem se vou dar conta de pagar as minhas contas.” 12 Os empreendedores julgam a resistência intransigente e ideológica, mas a intransigência não seria, ao contrário, dos empreendedores, ou seja, do próprio governo, que insiste num projeto cheio de incertezas econômicas, ambientais e sociais? No meio da duradoura controvérsia, os atingidos. Não se pode negar que, abaixo da cota 100, vige em Altamira toda uma economia popular, com padarias, pequenos supermercados, marcenarias, açougues, farmácias e drogarias, lojas de materiais de construção, peixarias, lojas de vestuário, mercearias e frutarias, restaurantes e lanchonetes, salões de beleza, borracharias, oficinas mecânicas, pousadas e muitos bares e botequins. Os baixões de Altamira não são apenas as palafitas que a propaganda de Belo Monte mostra, enfatizando a miséria para dizer que o projeto vai melhorar a vida de todos os moradores. Muitas pessoas que desenvolvem atividades econômicas estão perdendo o sono com a perspectiva de perder o ganha-pão, junto com a moradia. Boa parte desses estabelecimentos funciona no padrão de uso misto, que combina pequeno comércio e residência. A pesquisa que informa o EIA contou 666 desses estabelecimentos produtivos na ADA urbana de Altamira. Estranho número, que é o mesmo da besta fera do apocalipse, tão temida pelos migrantes de origem rural que povoam os baixões, que perguntam: será que o monstro vem mesmo? Do outro lado da contenda o ministro Lobão já se referiu a forças demoníacas a impedir o avanço do progresso. Ou seja, a polêmica desceu às profundezas e os pequenos empreendedores dos baixões estão receosos de ser engolidos pela besta, ficando sem casa e sem negócio. Lado a lado com alusões e números duvidosos está a incerteza quanto ao futuro dos que já sabem, pela movimentação de topógrafos e pesquisadores, que serão obrigados a se retirar se o projeto prosseguir. Nos bairros Alberto Soares, Aparecida, Colinas, Boa Esperança, Mutirão, Brasília, Centro, Jardim Altamira, Sudam I e Sudam II concentram-se 90% dessa população, assim como a maioria das 666 atividades produtivas consideradas no levantamento. A panificadora de dona Jane, situada na Avenida Ernesto Alcioly, bairro Aparecida, é uma dessas atividades. Entrevistada no seu bem arrumado estabelecimento, dona Jane, ali há quinze anos, expressa suas preocupações de perdas, inclusive sentimentais. “São laços sociais que se perdem. Eu conheço todo mundo aqui; é alguém que passa e 13 diz - ‘oi dona Jane, tudo bem?’. Como a gente vai reconstruir tudo isso em outro lugar?” Essa preocupação com a perda de laços sociais é comum nos moradores dos baixões. Esses pequenos comércios atendem a uma freguesia local que efetua trocas que vão muito além de meras relações comerciais. São os pobres se remediando, melhorando suas rendas e estabelecendo uma socialização que uma vez destruída dificilmente será recomposta. “De tudo eu vendo um pouco”, diz dona Anacélia, que na sua bem sortida mercearia no bairro Brasília, com alvará da Prefeitura, tira R$ 1.500,00 por mês, vendendo frutas, verduras, cereais, sandálias, pilhas, farinha, arroz, feijão, açúcar, carvão, entre outros artigos de consumo popular. “Se não fosse isso aqui, eu ia trabalhar de quê? Eu acho bom demais trabalhar na minha venda”. Igualmente, é a mercearia de dona Francinete, na rua 2 do lugar chamado Tufy, bairro Brasília, que dá o sustento da casa e serve de parada para os vizinhos conversarem um pouco: “tem outra fonte de renda? Meu marido pega empreitada, mas agora que não pode mais roçar ele tá parado (...) a freguesia são os vizinhos, gente amiga, freguês e amigo”. O desemprego é grande nessas áreas, onde, segundo o EIA, o percentual das moradias com uso misto, combinando residência e uso econômico, é quase de 10%. Quem são os moradores dos baixões? Gente humilde certamente, 50% ganhando até um salário mínimo e 75% até dois salários. Dona Raimunda, por exemplo, e seu marido, que é pescador, conseguem fazer R$ 120,00 por semana. “Vendo peixe, meu marido pesca e eu vendo. Traz 40, 50 quilos de peixe - curamatá, pacu, cari, surubi, pescada, tucunaré e salada. A renda aqui é o peixe. Com Belo Monte o peixe vai embora, e nós também vamos embora desse lugar. A gente vai pensar em outra hipótese de vida, que eu não sei qual é. Isso é uma dor de cabeça. A gente pensa 24 horas nisso, porque para sair daqui a gente vai caçar um outro meio de vida que ninguém sabe nem qual é ainda.” Dona Raimunda e o marido vieram de Tucuruí em 1976, quando começou a construção da barragem. Moravam no Repartimento, que hoje não existe mais. “Com a barragem ficamos sem o lote, sem a casa, e viemos para cá, para Altamira. Começamos aqui tudo de novo. Essa é uma história que já se repete. A gente correndo da água e a água correndo atrás da gente”. Correndo das águas as pessoas perdem o patrimônio que levaram uma vida para construir e deixam para trás também relações afetivas com pessoas e lugares, 14 impossíveis de serem reconstituídas. Essa sociabilidade perdida ocorre inclusive nas mercearias, vendas e bares, segundo o EIA, importantes locais de encontro, perdendo apenas para as igrejas, as casas de família e a sede da associação comunitária como os “Locais de Socialização Mais Destacados pelos Grupos Domésticos”. Com a remoção, provavelmente para alguma área distante alguns quilômetros do rio, perde-se também o próprio rio, os igarapés e suas praias, como opções de lazer. A pesquisa socioeconômica censitária que informa o EIA, realizada pela Leme Engenharia, entre agosto de 2007 e fevereiro de 2008, aponta o rio Xingu como a maior opção de lazer da população dos baixões. “Balneários, como o do São Francisco, localizado no Igarapé Ambé, e as praias ao longo do rio, nas proximidades de Altamira, fazem parte do cotidiano dos moradores locais que se reúnem para tomar banho, fazer churrascos, ouvirem músicas, etc.” (EIA, volume 23, Texto, p.71). Há no EIA de Belo Monte (Figura 12.9.1, p. 208) um grande organograma mostrando o Plano de Atendimento à População Atingida. Esse plano contempla um Programa de Recomposição das Atividades Produtivas Urbanas, que por sua vez se subdivide em um Projeto de Recomposição das Atividades Comerciais, de Serviços e Industriais Urbanas, e um Projeto de Recomposição de Atividades Oleiras. Tudo isso a ser posteriormente detalhado. Mas quem pode assegurar que esse grande organograma com dezenas de quadrículas não passará de mais uma ilustração sem efetividade prática? A Eletronorte certamente não, tomando-se a recente experiência do ambicioso Plano de Desenvolvimento Sustentável da Jusante (PDJUS), prometido para a área a jusante da represa de Tucuruí (Eletronorte, 2004). As Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A (Eletronorte) produziram no papel uma proposta que continha vários eixos de abordagem, abrangendo todas as questões sociais e ambientais que afligem as populações atingidas abaixo da represa, tudo incluindo muita participação popular. Como se sabe, os resultados desse grandiloqüente discurso foram pífios. A seguir um quadro mostra a economia popular dos baixões que irá água abaixo se Belo Monte prosseguir. 15 Atividades Econômicas nos baixões e na orla do Xingu TIPO DE ATIVIDADE Estabelecimentos Comerciais Nº % Mercearia Comércio de produtos alimentícios de fabricação caseira Artigos de vestuário (roupas/calçados) Frutaria/frutas e balas/vende-se coco Peixaria Perfumaria/cosméticos Materiais de construção Farmácia/drogaria Venda de açaí Supermercado (300 m² a 5.000m²) Açougue Padaria Armarinho Venda de carvão/venda de carvão e galinha Utensílios domésticos Plantas naturais/ervas medicinais Pet shop Comércio/beneficiamento de arroz Venda de churrasquinho Venda de bebidas Outros NS NR Total Estabelecimentos Comerciais Estabelecimentos de Serviços Bar/botequim/barzinho Cabeleireiros e tratam. de beleza/manicure e pedicure Oficina mecânica Lanchonete e similares Costureira Bicicletaria/oficina de bicicletas Vídeo game Lan house/cyber café Lava-jato/lavagem de carros Restaurante Locadora de bilhar/bilhar Borracharia Locadora de DVD Oficina de ferreiro/ferreiro Conserto de eletro-eletrônicos Gravação de CDs Conserto de calçados Eletricista Lanternagem Clube Guarda Voadeiras Outros NS NR Total Estabelecimentos de Serviços Estabelecimentos Industriais Olarias Refrigeração/fábrica de gelo/geleira/geleira e peixaria/geleira e aquário Fabricação de artigos de vestuário e acessórios Marcenaria/movelaria Extração de areia e cascalho Fábrica de tapetes e colchas/tapeçaria Serralheria Fabricação de barcos Artesão/artesanato Fabricação de jóias/bijuterias Beneficiadora de arroz Total Estabelecimentos Industriais TOTAL ATIVIDADES ECONÔMICAS 103 75 37 18 16 11 10 9 9 5 5 4 4 3 2 2 2 2 2 2 24 2 348 29,60 21,55 10,63 5,17 4,60 3,16 2,87 2,59 2,59 1,44 1,44 1,15 1,15 0,86 0,57 0,57 0,57 0,57 0,57 0,57 6,90 0,57 52,25 68 34 32 13 12 7 7 6 6 4 4 3 3 3 3 2 2 2 2 2 2 16 1 233 29,18 14,59 13,73 5,58 5,15 3,00 3,00 2,58 2,58 1,72 1,72 1,29 1,29 1,29 1,29 0,86 0,86 0,86 0,86 0,86 0,86 6,87 0,43 34,98 24 18 13 7 4 4 3 2 2 2 2 85 666 28,24 21,18 15,29 8,24 4,71 4,71 3,53 2,35 2,35 2,35 2,35 12,76 100,0 Adaptado de Leme Engenharia. Pesquisa Socioeconômica Censitária – ago/07 a fev/08. 2008. 16 O estigma de Tucuruí O que aconteceu com a barragem de Tucuruí é referência em Altamira, para quem viveu aquilo lá. “Eles passaram dizendo que, pra quem tem um comércio, eles vão dar o comércio e a casa. Mas ninguém sabe se isso é verdade, porque muita gente que já morou pras bandas de Tucuruí diz que isso tudo é mentira. Eu não sei, só quem sabe é quem já passou”, conta dona Francinete. “O projeto lá era também muito bonito. Diziam que a gente ia ganhar uma casa melhor do que a gente tinha”, confirma dona Raimunda. Um dos estigmas dos grandes projetos hidrelétricos é justamente a falta de correspondência entre o que asseguram os planos e o que finalmente se cumpre. Isso tanto no que se refere aos custos do empreendimento, que extrapolam em muito o previsto, como no que tange às indenizações e compensações para os atingidos, que ficam muito aquém do prometido. Os pequenos empreendedores, também moradores, localizados próximos aos igarapés estão preocupados. Não sabem o que acontecerá de fato com eles, além da compulsória remoção. Há no EIA um organograma que divide o Plano de Atendimento à População Atingida em vários programas e projetos, inclusive um Programa de Recomposição das Atividades Produtivas Urbanas, do qual não se tem maiores informações. Assim, em função da ausência de informações mais detalhadas, o EIA se assemelha a uma carta de intenções, um discurso, conforme crítica realizada pelos movimentos sociais. Um discurso do mesmo teor das promessas feitas pela Eletronorte em Tucuruí, com relação à área a jusante da barragem, que deveria ser objeto de um plano de desenvolvimento regional, que ao fim se reduziu à concessão de migalhas para os municípios, na forma de doação de alguns tratores aos prefeitos. Até onde Belo Monte não é uma reedição de Tucuruí no que tange aos procedimentos? Recentemente o projeto de Belo Monte foi modificado depois da Licença Prévia. Trocaram-se dois canais por um, ou seja, o rio Xingu ia passar por dois canais e agora parece que passará só por um, aumentando a área a ser inundada. Outras modificações devem ocorrer da mesma forma como aconteceu com Tucuruí: “foi mais uma vez como fato consumado que a mudança de cota se impôs. Foi através de espaços abertos na legislação que se subtraiu à sociedade e especialmente às populações atingidas a oportunidade de acercar-se dos processos e das transformações que lhes serão impostas (Magalhães, 2005, p. 252). 17 De 1980 para cá avanços importantes têm sido conquistados à noção de direitos humanos, que tem incorporado novas gerações de direitos, incluindo temas políticos, culturais, ambientais e sociais, entre outros. Em artigo que trata do conceito de atingido, Carlos Vainer inclui o direito das populações atingidas a um processo democrático, que garanta,“desde a concepção do projeto (inventário, viabilidade, etc.), a efetiva e informada participação das populações interessadas nos processos de avaliação e decisão” (Vainer, 2009). Ora, no caso de Belo Monte está claro que o direito de escolher não é facultado às populações atingidas, embora teoricamente os índios tenham o direito de dar a palavra final sobre a instalação ou não do empreendimento. Mas vamos ver como o governo irá se comportar com relação a esse preceito constitucional. Vainer discorre sobre como, da estreita concepção territorial-patrimonialista, que não reconhecia quaisquer impactos sociais ou ambientais, reduzindo tudo a uma mera negociação de valores para desapropriações, a abordagem sobre os direitos dos atingidos evoluiu para o entendimento de que o empreendimento hidrelétrico provoca amplas mudanças sociais, envolvendo aspectos econômicos, políticos, culturais e ambientais. Ou seja, reconhece-se a existência de outras aflições, por parte dos atingidos, além das estritamente pecuniárias ou materiais. Assim, quando uma comerciante moradora ameaçada de remoção diz “tem muitas pessoas que desde a infância trabalham nessa área e hoje já está numa certa idade para de repente ficar sem chão”, esse ficar sem chão engloba amplos prejuízos, junto com a renda ela perde também as relações com a vizinhança e a clientela, o cotidiano, estruturado ao longo de muitos anos, além da referência do próprio chão. O prejuízo não é pequeno e é mesmo incalculável, embora, em recente reunião realizada em Altamira, representante do Consórcio Norte Energia, que arrematou a licença para a construção da usina, tenha dito que o projeto irá considerar o ressarcimento de perdas afetivas. Mas que fórmula extraordinária será capaz de medir o desgosto? Não se sabe ainda como, mas o Plano de Atendimento à População Atingida prevê a realização de muitas coisas. Estão previstos para as áreas rurais e urbanas da região atingida vários programas e projetos, mas como se dará a negociação deles? Realocações, indenizações, recomposições, reorganizações, reestruturações, perdas e danos – se Belo Monte prosseguir, quem acompanhará e negociará todo esse processo que implica profundas mudanças 18 sociais? A montante e jusante da barragem de Tucuruí o movimento social tenta a duras penas negociar com a Eletronorte condições melhores que as parcas migalhas das tacanhas medidas de compensação e mitigação oferecidas. Conclusão: mudanças no horizonte de Altamira Os custos e benefícios de uma grande obra como Belo Monte afetam os grupos sociais de maneira muito desproporcional. Os mais fracos assumem as perdas e danos, enquanto para os mais fortes grandes empreendimentos desenvolvimentistas significam grandes oportunidades. Os mecanismos para dar voz aos grupos sociais subalternos são rituais criados para legitimar processos que já estão previamente decididos e não funcionam para proporcionar real poder de deliberação aos atingidos. A história da Amazônia é repleta de exemplos que confirmam essa assertiva e de resto, assim como ocorreu em Tucuruí, em qualquer lugar do mundo, seja na China, na região do vale do rio Narmada, na Índia, na Guatemala ou na bacia do Xingu, as medidas de indenização e compensação relacionadas a esses empreendimentos são ao mesmo tempo um reconhecimento dos danos causados e a continuação da política do mais forte (Peixoto, 2004). Mundo afora são mais de 45.000 barragens com dezenas de milhões de pessoas atingidas (Switkes, 2008), sofrendo todas os efeitos dessa mesma lógica. Com tanto empenho do governo, que face ao movimento de resistência se dispõe inclusive a atropelar processos legais para conseguir a Licença de Instalação de Belo Monte, é de esperar que mais uma vez prevaleça a lei do mais forte. Há uma dezena de ações na justiça interpostas pelo movimento de resistência contestando a legalidade do processo, e, mesmo que os indígenas digam não, é provável que o processo prossiga mediante algum artifício criado pelo próprio Judiciário. O sistema que nos governa é fundamentalista quando se trata de defender o lucro das grandes empresas que movem não só a economia, mas também a política. Nessas circunstâncias, os módicos lucros dos pequenos empreendedores dos baixões de Altamira que se danem. Assim como a própria cidade de Altamira, que talvez veja surgir novos baixões formados por águas paradas. Mudanças sociais certamente ocorrerão de forma dramática em Altamira, com a chegada de milhares de imigrantes que, assim como ocorreu nas cidades em torno 19 da represa de Tucuruí, irão formar uma periferia de favelas. E esses novos moradores estarão possivelmente posicionados próximos aos novos baixões, sujeitos a picadas de mosquitos, sofrendo a maior carga do desequilíbrio ambiental que a elevação permanente das águas provocará, em mais um exemplo de injustiça ambiental. A violência aumentará com o afluxo de migrantes e desempregados e isso afetará toda a população de Altamira, mas seguramente serão os moradores das novas periferias os que mais sofrerão com o problema. O represamento do Xingu acarretará perdas não reparáveis monetariamente, embora os planos aludam à monetarização do desgosto causado pela perda de lugares, paisagens, modos de vida, relações sociais, histórias, o próprio chão que dá identidade. Se o empreendimento prosseguir, apesar das ações na justiça contestando a legalidade do processo, a presença da barragem determinará mudanças substanciais no quadro político regional, com prefeitos e instituições locais gravitando de modo subserviente em torno de uma potência empresarial cujos reais interesses não estarão ali na região. Plano de Atendimento da População Atingida, programa de negociação e aquisição de terras e benfeitorias na área urbana, programa de recomposição das atividades produtivas urbanas, tudo envolvendo negociações, e novos agentes políticos, advogados e intermediários de interesses populares já comparecem em nome dos atingidos. Nesse contexto de mudanças políticas é muito importante que a resistência continue a vigorar mesmo depois da possível instalação da obra. Seria uma perda imensurável para a região se assim não fosse. Ainda otimista quanto à possibilidade de preservar o rio e a vida que pulsa ao longo dele, Antônia Melo, do Movimento Xingu Vivo para Sempre pensa também na outra possibilidade: “a Defensoria Pública já tem um grupo de defensores para tratar essa questão da garantia dos direitos da população atingida. E nós temos essa articulação com o Ministério Público. Os procuradores já se dispuseram a trabalhar a garantia dos direitos dos atingidos. E aí é claro que o movimento social também vai estar junto”. 20 Bibliografia ACSERALD, Henri. A noção de “sustentabilidade” presente no documento intitulado RIMA do Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte”. In Magalhães, Sonia e Hernandez, Francisco (org). PAINEL DE ESPECIALISTAS - Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte. 2009. COUTO, Rosa Carmina e SILVA, José Marcos da. As questões de saúde no estudo de impacto ambiental do Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte. 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