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1 ART ART 2 ART Reitor da Universidade de Brasília José Geraldo de Sousa Junior Vice-reitor João Batista de Sousa Diretora do Instituto de Artes Izabela Costa Brochado Vice-diretora do Instituto de Artes Nivalda Assunção Araújo Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Arte Maria Beatriz de Medeiros ISBN número: 978-85-89698-34-4 Instituto de Arte da Universidade de Brasília Programa de Pós-Graduação em Arte CNPJ: 00038174000143 Edição: 1 Ano: 2012 Local: Brasília - DF Dados da Obra: Título: Art - Arte e Tecnologia // MODUS OPERANDI UNIVERSAL Organizadores: Cleomar Rocha, Maria Beatriz de Medeiros e Suzete Venturelli 3 ART Conselho editorial Cleomar Rocha Maria Beatriz de Medeiros Suzete Venturelli Projeto Gráfico Cleomar Rocha Capa Maria Antonia Zanta Nobre Diagramação Interna Ronaldo Ribeiro da Silva Bruno Ribeiro Braga 4 ART Sumário 8Apresentação Cleomar Rocha, Maria Beatriz de Medeiros e Suzete Venturelli 9 Cidade expandida: hibridismo e expansão de um conceito para o contexto das redes tecnológicas aGNuS VaLeNTe e Nardo Germano 23 Objetos Tecnopoéticos: uma abordagem da Neuroestética e da Neuroarte Alberto Semeler 33 Arte, conhecimento e livros virtuais Ana Beatriz Barroso 41 Percepção em lá menor Anna Barros 50 Interação, criação e agência Cleomar Rocha 56 Posthuman Tantra: BioCyberShamanism Uma Performance Multimídia Cíbrida. Edgar Franco 65 Registros e ausências: arte contemporânea como desafio para historiadores da arte Emerson Dionisio Gomes de Oliveira 72 A experiência estética: consciência, linguagem e narrativa Fernando Fogliano 81 Projetos Catavento e Amoreiras Gilbertto Prado e Grupo Poéticas Digitais 89Números Hugo Rodas 93 O universal no imaginário sistêmico das poéticas cartográficas: aclopamentos e desvios nos processos de criação transmidiáticos Lucia Leão 103 A relevância da arte-ciência na contemporaneidade Lucia Santaella 112 Identidade cultural de grupo no processo de design, produção e interação na arte de transição, transiarte, uma ciberarte coletiva na Educação de Jovens e Adultos – EJA Lúcio Teles e Aline Zim 5 ART 124 Código e linguagem: articulações e construções do visível Luisa Paraguai 129 Dança, metro e música: geração de arquivos sonoros de textos da tragédia grega Marcus Mota e Cinthia Nepomuceno 144 Kant e a neuroestética Miguel Gally 149 O ato criador (segundo especialistas da indefinição) Nelson Maravalhas Junior 158 Media Art needs Histories and Archives: New Perspectives for the (Digital) Humanities Oliver Grau 174 Narratividade e artes visuais em Brasília Pedro de Andrade Alvim 180 Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias? Priscila Arantes 187 Sinapsis bioelectrónica de creación Raúl Niño Bernal 196 Operando por cruzamentos – processos híbridos na arte atual Sandra Rey 204 Neuroestética/bioestética no contexto da arte computacional Suzete Venturelli 213 Caracolomobile: um simbiote interativo Tania Fraga 224 A contribuição da disciplina materiais em artes: pesquisa e aplicação Thérèse Hofmann Gatti e Daniela de Oliveira 233 Design, arte e tecnologia: princípios e as novas mídias Virgínia Tiradentes Souto e Rogério Camara 241 Arte, ecologia e redes. Considerações a cerca de Fritz Müller Yara Guasque 6 ART Autores aGNuS VaLeNTe e Nardo Germano / USP Alberto Semeler / UFRGS Aline Zim / UnB Ana Beatriz Barroso / PPG-Arte - UNB Anna Barros Cleomar Rocha / UFG Daniela de Oliveira / UnB Emerson Dionisio Gomes de Oliveira / PPG-Arte - UNB Fernando Fogliano / Centro Universitário do SENAC Gilbertto Prado / USP Lucia Leão / PUC - SP Lucia Santaella / PUC-SP Lúcio Teles / UnB Luisa Paraguai / Universidade Anhembi Morumbi Marcus Mota / Departamento de Artes Visuais- UnB Cinthia Nepomuceno / IFB-DF Miguel Gally / Departamento de Artes Visuais- UnB Nelson Maravalhas Junior / PPG-Arte - UnB Oliver Grau / Danube University - Austria Pedro de Andrade Alvim / PPG-Arte - UNB Priscila Arantes / PUC-SP Raúl Niño Bernal / Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá Sandra Rey / UFRGS Suzete Venturelli / PPG-Arte - UNB Tania Fraga / PPG-Arte - UNB Thérèse Hofmann Gatti / Departamento de Artes Visuais- UnB Virgínia Tiradentes Souto / Departamento de Artes Visuais- UnB Rogério Camara / Departamento de Desenho Industrial - UnB Yara Guasque / UDESC 7 ART Apresentação Cleomar Rocha1, Maria Beatriz de Medeiros2 e Suzete Venturelli3 O Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (# ART) é o principal evento do Programa de Pós-graduação em Arte (PPG-Arte) da Universidade de Brasília, em 2011 ocorreu sua 10ª edição. O PPG-Arte, cuja área de concentração é Arte Contemporânea, possui cinco Linhas de Pesquisa: Arte e Tecnologia; Educação em Artes Visuais; Poética contemporâneas; Processos Composicionais para a Cena e Teoria e História da Arte, todas aqui representadas pensando a partir do eixo “modus operandi universal”. O presente livro traz, revistos e ampliados, textos de destaque da programação do 10º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#10 ART): modus operandi universal. Além de pesquisadores do PPG-Arte / UnB e dos departamentos de Arquitetura e Desenho Industrial da UnB, participam, da presente publicação, pesquisadores idependentes e das seguintes instituições: Centro Universitário do SENAC, Danube University (Áustria), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB), PUC – SP, Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá (Colômbia), Universidade Anhembi Morumbi, UFG, UFRGS e USP. Esta publicação discute um conhecimento que se dá pela arte. Este conhecimento se distinue daquele que se adquire e/ou se expressa pela linguagem. O que se busca, aqui, é ir além de diferenças culturais para encontrar recorrências. O #10 ART foi realizado de 10 a 17 de agosto de 2011, no Museu Nacional da República e na Universidade de Brasília, nas dependências do Departamento de Artes Visuais. Além dos textos supracitados, neste livro encontram-se, no DVD anexo, os Anais, contendo todas as apresentações e o vídeo da exposição EmMeio#3.04, com curadoria de Tania Fraga, Maria Luiza Fragoso e Suzete Venturelli. Agradecemos à direção do Museu Nacional da República, Wagner Barja (diretor) e equipe. Destacamos o apoio das instituições de fomento à pesquisa na realização do evento: CAPES, CNPq e a parceria da Faculdade de Artes Visuais/Universidade Federal de Goiás, representada por Cleomar Rocha. Os livros, os anais e os vídeos das exposições encontram-se no site www. medialab.ufg.br/art. Brasília, 2 de abril de 2012 1 Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás, onde coordena o Media Lab UFG. Tem experiência nas áreas de Artes, Comunicação e Design, atuando principalmente nos seguintes temas: Arte Tecnológica, Design de Interfaces e Mídias Interativas. 2 Doutora em Arte e Ciências da Arte- Universite de Paris I, Pantheon-Sorbonne, pósdoutorado em Filosofia no Collège International de Philosophie, Paris. Atualmente é professora associado 2 da Universidade de Brasília. Pesquisadora 1C do CNPq. Coordenadora Adjunta para a área de Artes na CAPES (2005-2010). Suplente na cadeira de Artes Digitais no Conselho Nacional de Cultura. Presidente da ANPAP. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Arte-UnB. 3 Professora pesquisadora da Universidade de Brasília, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. Coordena o MídiaLab Laboratório de Pesquisa em Arte Computacional desde 1989. Bolsista pesquisadora do CNPq. 4 Exposição coletiva que ocorreu de 05 a 15 de agosto de 2011 no Museu da República. 8 ART Cidade expandida: hibridismo e expansão de um conceito para o contexto das redes tecnológicas aGNuS VaLeNTe e Nardo Germano1 Resumo: Este artigo discute o conceito de cidade expandida, desde sua conotação geopolítica na área de arquitetura e urbanismo até o enfoque artístico do campo expandido da escultura, para repensá-lo enquanto cidade digital, no âmbito das redes informáticas. O texto apresenta o agenciamento estético-político de experiências artísticas, como “vendogratuitamente.com” (2006), intervenções e-urbanas conduzidas por Agnus Valente nos mecanismos de busca do Google, e “Auto-Retrato Coletivo” (1987-) de Nardo Germano, cujas intervenções participativas urbanas dialogam com obras interativas on-line. Ambos os casos entendem e problematizam a cidade expandida como absorção híbrida das duas modalidades de cidade. Palavras-chave: Hibridismo Arte/Urbanismo/Tecnologia, Cidade Expandida, Cidade Digital, Campo Expandido, Intervenção e-Urbana. Abstract: This article discusses the concept of expanded city, from its geopolitical connotation in architecture and urbanism to the artistic focus of the expanded field of sculpture, to rethink it in regard to the digital city in the context of technological networks. The text presents the aesthetic-political agency of artistic experiences as “vendogratuitamente.com”(2006), e-urban interventions conducted by Agnus Valente in the Google Search, and “Collective Self-Portrait” (1987-) by Nardo Germano, whose participatory interventions performed at urban space dialogue with interactive artworks online. Both cases understand and problematize the concept of expanded city as the hybrid absorption of the two modalities of city. Keywords: Arts/Urbanism/Technology Hybridism, Expanded City, Digital City, Expanded Field, e-Urban Intervention. Este texto corresponde às palestras que ambos apresentamos durante a Mesa Temática “Cidade e Tecnologia: interrelações”, que coordenamos no 10º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#10.ART): Modus Operandi Universal, que teve lugar no Auditório do Museu Nacional da República em agosto de 2011, na qual discorremos sobre o conceito de cidade expandida no contexto híbrido das redes tecnológicas. Para essa mesa, convidamos Fred Forest, Suzete Venturelli e Christine Mello que discorreram conosco sobre diferentes abordagens e experiências artísticas circunscritas à nossa proposta de discutir uma espécie de e-urbanidade na sociedade contemporânea, nas relações da cidade com a tecnologia ou por ela mediadas, criando situações que ressignificam e ampliam as acepções de «cidade» à medida que exploram contrastes entre sua fisicalidade e suas dimensões política, psicológica e virtual, à luz dos conceitos de «site-especific”, “campo expandido“, “cidade digital“, “cidade expandida” e “galeria expandida”. 9 ART Participando presencialmente da mesa em Brasília, Agnus Valente palestrou sobre “vendogratuitamente.com”, sua intervenção e-urbana desde 2006 no GoogleSearch, e Suzete Venturelli apresentou o projeto “Ciberintervenção urbana interativa” (Ciurbi), desenvolvido no MídiaLabUnB em 2011, que se constitui de projeções interativas na arquitetura em espaços da cidade de Brasília e entorno, inclusive na fachada convexa do Museu Nacional, envolvendo performance, intervenção urbana, grafite, arte computacional, redes sociais e cartografia colaborativa (ciurbi.wordpress. com). Os demais convidados participaram telepresencialmente, via Skype. Fred Forest conversou com o público a partir de New York-EUA sobre o seu recente projeto “Flux et Reflux, La Caverne d’Internet”, de 2011. Nas palavras do artista, a alegoria de Platão é transposta para formas contemporâneas, configurando uma dupla rede ativada pela presença física dos visitantes e presença virtual dos públicos conectados que, juntos, com sombras, textos e vídeos, dão forma à exposição, conexão por conexão (flux-et-reflux.net). No Brasil, a partir de São Paulo, Nardo Germano apresentou a série “AutoRetrato Coletivo” (1987-, nardogermano.com/autoretratocoletivo), focando nas relações entre cidade, identidade e tecnologia, enquanto Christine Mello discorreu sobre a exposição “Galeria Expandida”, realizada em 2010 na Luciana Brito Galeria em São Paulo (galeriaexpandida.wordpress.com), cuja plataforma curatorial reflete sobre os circuitos da arte e da mídia, associada a uma operação curatorial que traz para a galeria trabalhos que ocorrem fora dela, sugerindo uma expansão da galeria enquanto ambiente de relações e trocas, como fluxo informacional. Desse modo, configurou-se a palestra em (tele)presença de convidados dispostos geograficamente em três pontos diferentes de convergência, numa situação de descentralização da emissão de informação que expandiu as fronteiras de Brasília, nacional e internacionalmente, bem como as fronteiras de São Paulo e New York, para a realização da própria mesa temática sobre cidade e tecnologia, constituindo-se numa prática afirmativa do conceito de cidade expandida tratado neste presente texto. Cidade expandida: percurso conceitual If clothing is an extension of our private skins [...], housing is a collective means of achieving the same end for the family or the group. Housing as shelter is an extension of our bodily heat-control mechanisms – a collective skin or garment. Cities are an even further extension of bodily organs to accommodate the needs of large groups. McLUHAN A cidade, um dos meios pensados como extensão do homem (MACLUHAN, 1994)2, é aqui considerada no contexto do hibridismo de meios e sistemas (VALENTE,2008); para isso adotamos o conceito de “expanded city” (ARNOLD, 1972), advindo do urbanismo, que nos permite associações teórico-críticas mais produtivas para a expansão conceitual que propomos para o estudo do cruzamento híbrido entre arte, urbanismo e tecnologia, de 10 ART modo a superar a dicotomia entre cidade real e cidade digital, pois nos parece cada vez mais evidente a relação intrínseca entre as duas modalidades, que demanda uma reflexão sobre o conceito de cidade híbrida que se configura nos seus trâmites, partindo do contexto geopolítico ao tecnopolítico e viceversa. No âmbito da linguagem, ao nos referirmos à Internet, amparamo-nos no hibridismo de conceitos de diferentes áreas do conhecimento. A web, do ponto de vista de sua associação com a urbanística, apresenta-se nos termos “endereço”, “portal”, “site”, “home” que sugerem um “mapeamento” espacial da rede, bem como nos termos de uma percepção da Internet como “ambiente” – conceito que empregamos preferencialmente ao de “espaço”. A noção de “ambiente” (ARGAN, 1983, p.223-224) instaura-se na articulação conjunta de relações e interações entre a realidade física e a realidade psicológica, parecendo-nos mais adequada para pensar a virtualidade e o expansionismo da rede, estabelecendo um contraponto necessário, e dialético, à concepção cartesiana de projeto racional de organização do “espaço”. O “ambiente” interconectado das redes telemáticas constitui uma cidade em escala planetária que efetiva uma “cidade digital” (FOREST in DOMINGUES, 1997, p. 333) para além de uma arquitetura material, pois a ela agrega-se uma arquitetura virtual antes imaginada do que fisicamente percebida. O conceito de cidade expandida fundamenta esta reflexão por corresponder a um fenômeno urbano que hoje observamos em andamento na cidade digital, nos mesmos moldes da expansão das áreas metropolitanas. É importante recordar que, “por mais caótica que tenha sido a constituição da forma do território metropolitano, ele é um todo”, sendo necessário considerar nesse processo “a dimensão da representação da metrópole enquanto cidade expandida, que abarca os vários territórios das cidades que as integram, formando um único território urbanizado” (LACERDA; ZANCHETTI; DINIZ, 2000, p.2-3), não somente sob a perspectiva de uma expansão geográfica, mas também por articulações de outra ordem: A metrópole se organiza a partir de um núcleo (a cidade centro regional) que articula espacial, econômica, política e culturalmente os outros núcleos urbanos a ele ligados em uma relação de dependência e/ou complementaridade. A conurbação entre os núcleos urbanos é extensa, embora não seja total, pois continuam a existir espaços ‘livres’ entre as diversas manchas urbanas. Apesar dessa fragmentação e descontinuidade espacial, a metrópole compõe um conjunto articulado e hierarquizado. (2000, p.3, grifo nosso). Williams (1989) e Roncayolo (1997), desenvolvendo o conceito de cidade expandida, consideram que, tal como no processo de expansão das metrópoles, também não existe ruptura nem autonomia entre o campo e a cidade: ao contrário, campo e cidade são interdependentes. Nesse sentido, para nós, esse conceito é uma premissa para se pensar a relação entre a cidade real e a cidade digital, na medida em que a cidade digital não se configura necessariamente como uma ruptura absoluta ou como elemento totalmente autônomo em relação à cidade real, mas, ao contrário, pode ser pensada como sua expansão. Nessa perspectiva da cidade expandida, poderíamos então, numa paráfrase, afirmar que, no contexto tecnológico, a metrópole promove uma articulação espacial, econômica, política e cultural dos núcleos urbanos 11 ART da web naquela mesma relação de dependência e/ou complementaridade. E, ainda que se considere a fragmentação e a descontinuidade espacial, bem como a ubiquidade do sistema, constatamos que se organiza um conjunto igualmente articulado e hierarquizado, sem ruptura nem autonomia, entre as duas modalidades de cidade, o que coloca a problemática sobre cidade e tecnologia num nível mais complexo. Focalizando “a Internet como campo expandido da urbe” (VALENTE, 2006), a noção da web como cidade expandida encontra sua coerência artística. O conceito de “campo expandido” de Rosalind Krauss (1979) demarca a passagem da arte para locações específicas do espaço rural ou urbano, em diálogo com seu entorno e não mais como objeto suspenso num entorno neutro. Conforme Krauss, “within the situation of postmodernism, practice is not defined in relation to a given medium [...] but rather in relation to the logical operations on a set of cultural terms, for which any medium […] might be used” (1979, p.42). Nesse sentido, o deslocamento das operações artísticas para o campo expandido na década de 60 em direção à paisagem e à arquitetura, tendo a cidade real como meio, incrementa-se agora em relação ao ambiente da web, tendo como meio a cidade digital – e isto porque a prerrogativa da prática pós-moderna ou contemporânea não se fixa a um dado meio, mas a operações e agenciamentos poético-políticos necessários à realização de um programa artístico. Non-site vendogratuitamente.com, de aGNuS VaLeNTe Cidade expandida: site e non-site entre o real e o digital A intervenção e-urbana “vendogratuitamente.com” é desdobramento de um projeto autoral de intervenção no espaço físico, denominado “Cogito Ergo Ludo: Logo/Jogo”, formado a partir da repetição do pattern de “Logo/Jogo” (1997), obra concebida e produzida em meio digital e proposta inicialmente como um wallpaper artístico para exibição em monitores de computador. O pattern constitui-se no díptico de um logo da palavra “logo” e de seu reverso, um logo da palavra “jogo”, que “brinca” com a função estética e referencial do signo publicitário. Posteriormente, o pattern torna-se objeto de várias proposições, configurando-se uma série artística: transferido para plotter de recorte sobre vinil auto-adesivo, ganha o espaço físico, materializando-se em milhares de logos aplicados em espaços urbanos numa sequência de intervenções nas quais ironicamente esses logos se espelham e se espalham no espaço público sem finalidade de divulgação nem venda de produto ou marca. O propósito é demarcar uma tomada de (o) posição poético-política em relação à voracidade do sistema capitalista, criando uma pausa nesse sistema ao oferecer ao público em geral a fruição gratuita e desinteressada de uma forma. Nesse sentido, a idéia que perpassa o projeto é hipostasiar no signo a sua função poética em oposição à função referencial e simbólica. Instauro e preservo assim uma questão ética: um “logo” contestatório na medida mesma de sua opção pela estética. (VALENTE, 2006, p.6). Essas intervenções urbanas cumpriram um trajeto que se iniciou no Edifício Copan, em São Paulo, onde a obra, intitulada “Atlântica” (2002), dialogou com a arquitetura de Oscar Niemeyer, interpretada como 12 ART uma parede de azulejos de Athos Bulcão; em versão intitulada “Occulo” (2002/2003), os logos foram adesivados na extensão inteira das duas vitrines da Galeria ACBEU, em Salvador, configurando um filtro que oculta e ao mesmo tempo deixa ver o espaço interno da galeria pelos transeuntes que passavam pelo Corredor da Vitória; no Complexo Argos, em Jundiaí, a versão “Arbor” (2003) adotou como objeto de reverência uma goiabeira nascida no interior do espaço e cuidada pelos funcionários, metaforizando uma ação ecológica; e no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, a versão “Atrium” (2004) constituiu-se de cinco gravuras, uma no chão e as outras nas janelas, hibridando os logos com o átrio e com a visão do jardim de inverno. Em cada uma dessas intervenções, os logos absorveram o entorno, ressignificando-se conforme as características do lugar, numa proposta conceitual de site-specific. Em 2006, decidi recolocar a série “Cogito Ergo Ludo: Logo/Jogo” no seu ambiente digital de origem bem como reforçar a discussão em seu princípio anticonsumista. Com esse propósito, concebi o projeto-piloto de uma intervenção na web que intitulei “vendogratuitamente.com”, num jogo de palavras com a similaridade e oposição de seus termos, enfatizando ironicamente o contraponto entre a idéia estética de “ver” e a idéia consumista de “vender”. Apesar do caráter individual de minha iniciativa, esta intervenção não é uma luta solitária e quixotesca de um artista contra moinhos de vento: o meu “Logo/Jogo” – o “Logo Lúdico que não se vende” (VALENTE, 2002) –, integra o projeto acompanhado de obras de outros artistas que em suas poéticas investem em intervenção urbana. O projetopiloto já incluía obras e artistas convidados por afinidades ideológicas – ou poético-políticas: Regina Silveira e Julio Plaza, respectivamente com as obras “Dígito” e “Luz Azul”, que foram exibidas na década de 80 num painel eletrônico no Vale do Anhangabaú que usualmente exibia campanhas publicitárias; Carmela Gross, com a obra “Eu Sou Dolores”, exibida no Belenzinho numa das edições de “Arte/Cidade”, mega-projeto de intervenção urbana concebido por Nelson Brissac; e Nardo Germano, com a obra “Neon”, que integrou “Leit-Uras”, um projeto itinerante de poesia concreta e imagética que circulou por diversos bairros de São Paulo entre 1995-96. Posteriormente, escolhi “On Translation: Warning” de Antoní Muntadas que aceitou meu convite e cedeu imagens de sua intervenção urbana em vários idiomas para a inauguração do projeto. Recentemente, convidei Fred Forest com uma proposta de transposição para Internet de sua intervenção “Space-Media”, da década de 70, que invadia a transmissão da TV francesa Channel 2 com uma tela branca. Em 2010, convidei Augusto de Campos, outro artista da intervenção no painel eletrônico do Vale do Anhangabaú nos anos 80, que passa a integrar o projeto a partir desta edição de agosto de 2011 com o poema concreto “nãomevendo”. Penso essa intervenção numa perspectiva híbrida da cidade – perspectiva anteriormente circunscrita à relação arte/arquitetura e agora expandida para a relação arte/urbanismo/web. Por isso não conceituo minha ação como uma intervenção urbana, uma vez que não ocorre no espaço físico da cidade, mas na web. Assim configurou-se “vendogratuitamente.com” enquanto intervenção e-urbana, pois elege a Internet, esta cidade digital, como campo expandido de ação – uma cidade expandida –, colocando em 13 ART xeque a nova configuração de fl’uxo e difusão do repertório de imagens do mundo contemporâneo. Um campo expandido significa, a meu ver, absorver um campo novo sem, contudo, perder o lastro de conhecimento acumulado no campo de origem. Compreendendo a net como ambiente de redes e-urbanas, amparome na Urbanística e na Arte Pública, cujo conceito de “disponibilidade”, curiosamente também empregado no meio digital, é o que coloca toda a web sob a égide do “público”, ainda que essa disponibilidade represente uma mera probabilidade de acesso (e não um acesso efetivo) na rede. Entretanto, minha intervenção busca a efetividade dessa esfera pública da rede – assim, inscrevo meu projeto de intervenção numa dimensão ética, estética e política, através de estratégias de ação da Arte Pública em termos de cobertura, disponibilidade, interação, acesso e frequência de usuários em trânsito na web. Reiterando minha compreensão de que esfera pública na contemporaneidade deve pressupor (ou incluir) o contingente humano enquanto fluxo vital que circula no fluxo telemático (de bits) da comunidade Internet, e detectando nesse fluxo uma fonte de potenciais espectadores; empreendi a e-intervenção de web-art infiltrando-a nos mecanismos de busca – um dos serviços mais requisitados da Internet –, elegendo a busca do Google como campo de ação. Numa perspectiva ideológica, a e-intervenção concentra-se especificamente no contexto do e-commerce, explorando o conceito de links patrocinados nas páginas da web. Além das traduções intersemióticas ou transposições das obras para o novo meio, cada uma delas passou também pelo que denomino “pequenas traduções intersemióticas”, que correspondem aos ads artísticos, à direita dos resultados da busca, cuja exibição visa a atrair o interesse e a curiosidade do público-internauta. Trata-se de um projeto de site-specific on-line estruturado em dois endereços. O logradouro que sofre a intervenção artística é o portal do mecanismo de busca do Google <www.google.com.br> onde o públicoalvo é interceptado com a exibição desses singulares ads que são lançados subliminarmente durante sua pesquisa do resultado da busca, até que, detectados e clicados, o redirecionam para o outro logradouro, que disponibiliza todo o projeto artístico que está sediado no endereço eletrônico <www.vendogratuitamente.com>. Essa articulação entre dois logradouros mobiliza os conceitos da Land Art: “site” e “non-site” (SMITHSON, 1979). Nesse contexto, “site” é o logradouro onde ocorre a ação, no qual o público-alvo é interceptado e surpreendido pelo ad artístico e pela exibição da obra de intervenção que tem como entorno a página de resultados de busca do Google; e “non-site” é o logradouro para onde a ação é deslocada, paradoxalmente o site do projeto onde o público acessa as documentações e obras artísticas das intervenções. A partir do conceito de “site-specific”, a e-intervenção mobiliza também outras categorias específicas que definem particularidades da ação. Para o projeto ser visualizado no mecanismo de busca, investi nos serviços do AdWords, que me permite alcançar o perfil do público-alvo no momento em que estiver “procurando ativamente seus produtos e serviços”, conforme 14 ART frisa o tutorial do Google. Para isso, articulei palavras-chave específicas do contexto do consumo (shopping, compra, cartão de crédito, dinheiro, preço etc.) e datas específicas de caráter afetivo nas quais há um incremento no e-commerce (Natal, Ano Novo, Dia das Mães, dos Pais, dos Namorados etc.) para capturar e desviar esse público específico de consumidores para o “non-site” onde as obras, disponíveis para exibição gratuita, articulam ironicamente uma apropriação crítica da linguagem de “gifs animados”, banners e painéis eletrônicos ou digitais que habitam tanto a vida prática como o universo imaginário do consumismo contemporâneo em portais e redes sociais na Internet. Na rede e-urbana desde 2006 nas datas específicas, a intervenção ultrapassa 700.000 impressões de seus ads artísticos até o momento desta publicação. O projeto acumula uma visitação massiva de consumidores por meio dos mecanismos de busca e, convertendo-a não em vendas, mas em experiências estéticas, instaura uma pausa reflexiva na voracidade do sistema capitalista reproduzido na cidade expandida on-line. Reafirmando meu propósito de demarcar uma tomada de (o)posição poético-política ao consumismo, através da fruição gratuita e desinteressada de uma forma estética, “vendogratuitamente.com” reinveste na potencialidade utópica da web. Auto-retrato coletivo na cidade expandida, de Nardo Germano cidade, identidade e tecnologia A série “Auto-Retrato Coletivo” teve início em 1987, com ensaios fotográficos compostos por painéis de fotos de documento sem negativo obtidos em cabine Fotomática, com apropriação dessas imagens readymade como autorretratos. Esse aparelho, instalado no espaço público, deflagrou desdobramentos de caráter social da identidade na minha abordagem do tema (até então realizada em espaço protegido, na privacidade de estúdio, com temática intimista focada no indivíduo). Por via dessa mudança de perspectivas, usos e funções, os ensaios iniciais da série, “Auto-Objeto” e “Sujeitos”, adotaram uma explícita ênfase social e inauguraram a discussão temática da identidade coletiva como um projeto artístico de maior envergadura. Organizada como repositório crítico da identidade coletiva, a série constituiu-se de autorretratos híbridos entre o indivíduo e o coletivo, questionando a construção de estereótipos nos mass-media sob a égide do desvio e do estigma social (GERMANO, 2007). Em 2001, retomei a série com o objetivo de estabelecer novos contrapontos identitários, investindo o processo de criação numa abertura à recepção. A partir da digitalização de “Sujeitos”, colagens compostas de autorretratos acéfalos, recortes de textos, imagens e manchetes de jornal, a série então articulou-se em estratégias de participação e interatividade para promover a inclusão de alteridade, expressões e pontos de vista dos espectadores na noção de identidade coletiva veiculada nas obras, à luz dos conceitos de “obra aberta” (ECO,1988) bem como “dialogismo e polifonia”(BAKHTIN,1970). Enquanto participantes e/ou interatores em ambiente real e/ou digital, os “espect-autores” (GELLOUZ, 2007) migram 15 ART suas identidades para o corpus de “Auto-Retrato Coletivo” e renovam, expandem, problematizam a identidade coletiva, inscrevendo-a numa dimensão utópica de identidades abertas. Nesse contexto colaborativo, as obras da série remetem à questão identidade e espaço, partindo do pressuposto de interrelações entre as duas modalidades de cidade, num trâmite de mão dupla entre a cidade real e a cidade digital que se esclarece pelo conceito de cidade expandida. Em 2006, enquanto a obra interativa “ANDROMAQUIA on-line” era inaugurada na exposição “Cyber-Arte” (intervenção num cyber-café da rua Augusta durante a Virada Cultural-SP daquele ano), paralelamente a obra “Corpo Coletivo” – intervenção urbana e performance participativa – era inaugurada em espaços públicos, percorrendo praças e bairros da cidade de São Paulo. Já a obra “Doe Seu Rosto” (2001) propõe dupla abertura poética em diferentes condições espaciais: participação, com identidade compartilhada presencialmente em espaços públicos, e interação on-line, em telepresença no ambiente digital, onde ambos os resultados são disponibilizados conjuntamente, sem distinção de sua origem. A série “Auto-Retrato Coletivo” trata da identidade coletiva enquanto memória e compartilhamento de uma história coletiva na perspectiva da identidade nacional (SMITH in FEATHERSTONE, 1992, p.179), introduzindo uma discussão política no jogo de estereótipos e estigmas identitários. Nesse sentido, aproxima-se da noção de “sujeito sociológico” de Mead e Cooley em que “o sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real‘, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores‘ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2006, p.11). No conceito de sujeito sociológico, podemos encontrar equivalências com noções de espaço: implicações geopolíticas na constituição das identidades. O núcleo interior do “eu real” constituiria o espaço habitado primordial, numa “relación con el mundo constitutiva de su peculiar espacialidad” que Barbero (2008, p.4) associa à denominação “corpo próprio” de Merleau-Ponty e que podemos associar à primeira noção de identidade individual. Os mundos culturais exteriores corresponderiam aos demais espaços – produzido, praticado (cf. Benjamin) e imaginado – que constituem no conjunto a noção de ambiente com o qual a individualidade primordial estabelece vínculos. Enquanto espaço produzido, os meios de comunicação de massa monopolizam a construção identitária à medida que en nuestras ciudades, cada día más extensas y desarticuladas [...], la radio, la televisión y la red informática producen el único tipo de espacio compartido, esto es capaz de ofrecer formas de contrarrestar el aislamiento de los indivíduos y las famílias posibilitándoles unos mínimos vínculos socioculturales (BARBERO, 2008, p.5). Entretanto, exercendo o papel de aparelho ideológico de informação do Estado que embute, “através da imprensa, da rádio, da televisão, em todos os ‘cidadãos’, doses quotidianas de nacionalismo, chauvinismo, liberalismo, moralismo” (ALTHUSSER, 1980, p.63), os mass-media geralmente forjam uma falsa consciência do cidadão sobre si mesmo, que incorpora uma “identidade 16 ART legitimadora, introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua dominação sobre os actores sociais”, conforme analisa Cunha (2007, p.192) a partir da conceituação de Castells. As noções de espaço (habitado, construído e imaginado) são acionadas pelas proposições participativas “Corpo Coletivo” e “Doe Seu Rosto”, que ocorrem como intervenção no espaço praticado, do qual se apropriam, abolindo assim a mediação para encontrar o indivíduo diretamente no contexto social, praticando o espaço urbano, haja vista que, conforme Barbero sublinha, la ciudad se experimenta practicándola mediante los trayectos y los usos que de ella hacen y trazan sus habitantes, esas ‘motricidades espaciales’ en las se combinan estilos colectivos y usos individuales, todos ellos atravesados por cambios que trastornan los modos de pertenencia al território y las formas de vivir la identidad. (2008,p.6-7) É possível reconhecer consonâncias entre a noção de espaço praticado e o “Programa Ambiental” de Hélio Oiticica, que norteia as táticas de ação em “Corpo Coletivo” e “Doe Seu Rosto” enquanto arte participativa e intervenção urbana, na medida em que a obra se estende para a experiência cotidiana no espaço público pelo princípio de apropriação do entorno, do “mundo ambiente” (1986, p.79) como contexto. Nesse sentido, “ao situar as operações nas ruas, parques, morros, pavilhões de exposições industriais etc., Oiticica acredita que o público se aproxima sem constrangimentos, com total disponibilidade, de experiências que na arte são segregadas”, o que vale dizer que as Manifestações Ambientais instauram condições mais propícias à criação, pois “não se distinguem aí níveis – de elaboração de obras, de circulação e de significação social: a ambientação reúne artista, participantes e ‘mundo’”, sem distinções hierarquizantes, configurando-se como “lugares de transgressão em que se materializam signos de utopias (de recriação da arte como vida)” (FAVARETTO, 1992, p.121-129). Nessa perspectiva utópica, “Corpo Coletivo” se apropria de espaços públicos não protegidos, como praças públicas, ruas e largos, sobretudo aqueles cuja história os caracteriza como espaços políticos, a exemplo da Praça da Sé (palco dos movimentos pelas “Diretas-Já”, anos 80) e do Vale do Anhangabaú (palanque do movimento pelo Impeachment de Collor, anos 90), dois espaços da cidade de São Paulo que contextualizam politicamente os cidadãos como sujeitos da história – e em “Auto-Retrato Coletivo” como sujeitos e autores de sua própria identidade. Quanto ao espaço imaginado: “Corpo Coletivo” atua na relação fundante que vincula o cidadão com o Estado Nacional (BARBERO, 2008, p.5-6). Num país como o Brasil, que elencamos entre os “povos híbridos” (BURKE, 2003, p.36) no encontro de três raças no período colonial e posterior miscigenação com o processo de imigração européia pós-abolição da escravatura no final do século XIX, a diversidade cultural protagoniza as discussões sobre a identidade brasileira, no nosso imaginário. “Doe Seu Rosto”, propondo uma identidade metonímica ao solicitar a parte do rosto com a qual o indivíduo mais se identifica, aciona inicialmente o espaço habitado (do corpo próprio) e se realiza tanto no espaço praticado da cidade, quanto no espaço produzido da rede informática: enquanto imaginário coletivo, 17 ART a diversidade étnica e cultural deflagra-se pelo recorte não indiciário das identidades pela escolha por retratar (ou não) apenas o olho que denota uma ascendência japonesa, ou a orelha na qual pende um brinco afro. A exibição dos autorretratos lado a lado, justapondo os diferentes tons de pele, tipos de cabelo e traços fisionômicos, revela uma ampla gama da diversidade brasileira. Em “ANDROMAQUIA on-Line”, a abertura para o espaço imaginado ampliou o âmbito do nacional para a noção de identidade latino-americana, como explicitada por uma colombiana, para quem “quase dizer sou brasileira que seria, como borges falava, ao igual que ser colombiana, uma questão de fe”. Essa noção reaparece numa transcrição de versos da canção “Apenas um rapaz latino-americano” do compositor brasileiro Belchior cuja letra também testemunha a migração do interior para as grandes capitais. Nessas três obras, a nossa “narrativa de nação” (HALL, 2006, p.52) aflora de diversos modos, com resquícios de nosso complexo de povo colonizado, cicatrizes do subdesenvolvimento, complexo de inferioridade em relação aos EUA e Europa, em contraponto à apologia da nossa sensualidade, da mistura de raças, da nossa hospitalidade. E paradoxalmente a situação inversa: crítica à nossa subserviência, à nossa obscenidade ou à nossa burrice, em contraponto à apologia da nossa capacidade de superação, inteligência, alegria e criatividade. Observa-se, nessa polifônica falta de unanimidade sobre os mais diversos aspectos, que a identidade, a exemplo da noção de fronteiras, é um componente cada vez mais imaginário do nacional (BARBERO, 2008, p.6). Enfim, os objetos criados nas intervenções urbanas participativas de “Corpo Coletivo” e “Doe Seu Rosto” são disponibilizados no site do “AutoRetrato Coletivo”, na Internet, tornando-se matéria-prima para as interações de “ANDROMAQUIA on-line” e da versão on-line de “Doe seu Rosto”. Desse modo, ancorada no conceito de “Poéticas em coletividade” ou “Poéticas em coletivo” (GERMANO, 2008), que compreende o caráter polifônico da poiesis dos espectadores, a série transforma-se num campo de imersão de poéticas sem hierarquizações, valorações ou discriminações de qualquer ordem – inclusive de espaço. Instauram-se diálogos entre as contribuições obtidas tanto no espaço físico quanto nas redes informáticas, reiterando, nas conexões entre a cidade real e a cidade digital, aquela interdependência e complementaridade presentes no conceito de cidade expandida, mas à luz de uma dialética da utopia e da ideologia tal como proposta por Fredric Jameson, para quem uma hermenêutica marxista negativa, uma prática marxista da análise ideológica propriamente dita, deve ser exercida, no trabalho prático de leitura e interpretação, simultaneamente com uma hermenêutica marxista positiva, ou uma decifração dos impulsos utópicos desses mesmos textos culturais ainda ideológicos (1992,p.304,grifo do autor). Nessa dialética, fundada no entendimento de que a massificação identitária da cidade real circula na cidade digital e vice-versa, a série exerce uma crítica negativa ideológica aos estereótipos, simultaneamente a uma prática afirmativa como decifração de impulsos utópicos, encetada com a abertura aos espectadores como signos de identidades plurais, 18 ART viabilizando enfoques dialógicos e polifônicos para subverter, no âmbito da consciência de classes, os processos identitários hegemônicos em ambas as modalidades de cidade. Considerações finais: dialética da cidade expandida Electric lighting has brought into the cultural complex of the extensions of man in housing and city, an organic flexibility unknown to any other age. McLUHAN Parafraseando McLuhan para nossa reflexão final, podemos considerar que as redes informáticas trouxeram à cidade como extensão do homem uma flexibilidade imaterial e incomensurável que eleva à enésima potência o seu sentido de cidade expandida. A noção de expansão nesse contexto assume uma amplitude radial multidirecionada, por conta da imaterialidade, da virtualidade e do rompimento da noção de tempo e espaço promovidos pelo meio tecnológico, ucrônico e ubíquo. Na cidade real, a expansão geográfica efetiva-se horizontalmente; contudo, para abarcar a cidade digital, composta por redes físicas de transmissão de dados e redes invisíveis de transmissão via satélite, a cidade expandida absorve agora não apenas as áreas físicas periféricas e campesinas, mas também uma cidade invisível, configurada segundo a ordem sócio-política, econômica e histórica do sistema herdado da cidade real e reconfigurado na estrutura do pensamento tecnológico. Considerando que o entendimento embasado num absolutismo da cidade real ou da cidade digital não é produtivo; a adoção do conceito de cidade expandida para refletir sobre as interrelações de cidade e tecnologia aponta para a noção de absorção mútua e recíproca das modalidades de cidade, o que permite uma observação dialética e não maniqueísta da questão, significando dizer que essa absorção não é necessariamente sempre harmoniosa ou pacífica – ou seja, configura-se historicamente uma hibrid[iz]ação por conta do caráter expansionista enquanto processo de dominação hegemônica que não pode ser negligenciado por uma crítica que se deseje imparcial. Retornando a McLuhan: o autor menciona a obra “The City in History” de Lewis Munford que conta sobre a cidade de Nova Inglaterra, capaz de desenvolver o padrão da cidade medieval ideal por sua capacidade de dispensar as muralhas e misturar campo e cidade, comentando que “when a technology of a time is powerfully thrusting in one direction, wisdom may well call for a countervailing thrust” e complementa que “the implosion of electric energy in our century cannot be met by explosion or expansion, but it can be met by decentralism and the flexibility of multiple small centers” (1994, p.70) para concluir, citando a afirmação de Arnold Toynbee: “More often geographical expansion is a concomitant of real decline and coincides with a ‘time of troubles’ or a universal state – both of them stages of declines and desintegration” (apud MCLUHAN, 1994, p.71). Preocupação similar concerne à nova abrangência da cidade expandida no meio digital que permite explorar cumulativamente 19 ART as características em comum e as especificidades antagônicas de cada uma das modalidades de cidade, fator que paradoxalmente sinaliza um período de confronto, instabilidade e crise. Se, de um lado, a cidade digital e seu potencial utópico podem exercer influências e mudanças que renovem a cidade real, tanto em sua estrutura quanto em sua ordem econômica e ideológica, a exemplo de ações artísticas na Internet e movimentos de contestação política organizados em redes sociais; de outro lado, essa expansão também representa reinauguração e/ou reforço de instâncias de poder, controle e opressão da cidade real sobre a cidade digital, numa mera reprodução do status quo e dos meios de produção já existentes. Enfim, na medida em que podemos tratar de necessidades sociais complexas via computador com a mesma segurança arquitetural de nosso espaço privado nessa interfusão de espaços e funções da aldeia global (MCLUHAN, 1994), uma dialética da cidade expandida é fundamental para promover enfoques e filtros mais críticos, de modo que, naquele espírito da crítica negativa do ideológico simultânea a uma prática afirmativa de impulsos utópicos, possamos usufruir dos avanços tecnológicos com a maior consciência possível do fenômeno como transformação, sem mascarar as problemáticas e as forças retrógradas que afetam nossa relação com as urbanidades contemporâneas. Referências ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (notas para uma investigação). 3. ed. Lisboa: Presença, 1980. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ARNOLD, Alvin L. 2001 AD: Real Property Law and Investment in Retrospect. Prob. & Tr. J., Boston, Massachussetts, v.7, 1972. 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[email protected]. 3 Noção de extensão desde a aldeia: “the village, as Munford explains in ‘The City in History’, had achieved a social and institutional extension of all human faculties” (MCLUHAN,1994,p.93). 22 ART Objetos Tecnopoéticos: uma abordagem da Neuroestética e da Neuroarte Alberto Semeler1 Resumo: Os Objetos Tecnopoéticos resultam de uma investigação artística que busca o cruzamento entre arte, ciência e tecnologia. A “teoria da imagem retiniana”, influenciada pelo aparato fotográfico, supunha que ela era o modo de construção da imagem no cérebro. Através dos conhecimentos científicos contemporâneos sobre o córtex visual, a Neuroestética desfaz o mito da arte retiniana contraposta à uma arte do intelecto. A tecnologia deve ser abordada em sua função de acoplamento e prolongamento humano/máquina e vice-versa. O sentido da visão é compreendido enquanto produtor de conhecimento e intelecto visual. Desse modo, a Neuroestética faz a convergência entre tradição e inovação. Por suas técnicas e experimentos laboratoriais – abordagem da imagem enquanto origem do indivíduo – a Neuroestética é concebida em seu aspecto abjeto/repulsivo. Com o uso desses conhecimentos, a Neuroarte potencializa a experiência e a sensorialidade na arte contemporânea, explorando os usos dos avanços científicos do funcionamento cortical para enfatizar a experiência artística. Palavras-chave: Objetos tecnopoéticos; neuroestética; neuroarte; arte abjeta. Abstract: The Technopoetic Objects is a result of artistic research that seeks the intersection between art, science and technology. The “theory of the retinal image,” influenced by the photographic apparatus, was assumed that the mode of construction of the image in the brain. Through the contemporary scientific knowledge about the visual cortex, the Neuroaesthetics breaks the myth of the art retinal opposed to an art of the intellect. The technology must be addressed in its function of coupling and extended human / machine and vice versa. The meaning of a vision must be understood as a producer of visual knowledge and visual intellect. Thus, Neuroaesthetics makes the convergence of tradition and innovation. Because of its technical and laboratory experiments - the approach of the image as origin of the individual - the Neuroaesthetics is conceived in its abject aspect / repulsive. Using these knowledges, the Neuroartpotentialized and enhances sensorial experience in contemporary art, enhancing and exploring the uses of the scientific advances of cortical functioning to emphasize the artistic experience. Keywords: Technopoetic objects, neuroaesthetics, neuroart; abject art. Apesar da tecnologia possuir um status preponderantemente objetivocientífico, ela também produz efeitos na cultura e no imaginário de seu tempo. Não foi diferente com a máquina fotográfica que, com seu funcionamento técnico, inspirou o mito da imagem retiniana. A impressão da luz no negativo durante o processo de construção da imagem fotográfica no fundo da câmera obscura fez com que se pensasse que a imagem cerebral também fosse formada no fundo do olho para, posteriormente, 23 ART ser transmitida ao cérebro. Ao assumir que o modelo fotográfico é o mesmo do funcionamento do olho na transmissão da imagem ao cérebro, o homem moderno e contemporâneo fez do funcionamento técnico do aparato fotográfico um paradigma para a percepção da imagem. Essa concepção alimentou o mito de uma “arte retiniana” que se contrapunha à uma “arte do intelecto”: fruição versus operação mental. A fotografia vista como protótipo do funcionamento da visão humana atuou como metáfora para a construção da imagem cerebral e, a partir desse mal entendido, foram produzidas algumas das grandes revoluções estéticas no mundo moderno e contemporâneo. A arte liberta-se da tradição visual e passa cada vez mais a ser pensada desde um paradigma filosófico-intelectual: a essência da arte é a linguagem. Contudo, o cérebro visual é mais antigo que o cérebro linguístico; com os recentes avanços da pesquisa científica sobre o funcionamento do olho e do córtex visual, a ideia de uma arte retiniana como contraposição à uma arte do intelecto deixa de fazer sentido e passa a ser compreendida apenas em seu valor metafórico. A incongruência dessa concepção não implica necessariamente em uma negação das investigações estéticas desencadeadas nesse processo histórico. A meu ver, os resultados desse efeito imaginário devem ser abordados no que concerne a seus avanços no campo estético. A compreensão do fracasso do modelo fotográfico enquanto meio técnico que buscava objetivar a percepção humana serve para reposicionar algumas questões referentes à visualidade enquanto forma de conhecimento. Isso decorre do fato de que a tecnologia sempre irá, de uma forma ou de outra, influenciar no pensamento e nas concepções estéticas do período histórico onde atua. Também faz-se necessário enfatizar que o conhecimento científico está sempre em mutação: o que é verdade hoje, deixa de fazer sentido com o progresso da ciência. Dito isto, a ideia de que a imagem fotográfica surge como meio técnico para substituir outras formas de representar o mundo deixa de fazer sentido. A partir da invenção da interface gráfica, o computador virtualiza todos os processos técnicos (POPPER, 2007). Com a evolução das tecnologias contemporâneas de construção e captação de imagem, pode-se pensar em uma similaridade maior entre o funcionamento dos dispositivos tecnológicos e o córtex visual: a luz e o movimento são captados em microchips – CCD2, CMOS3 – e, posteriormente, decodificados em processadores e convertidos em informação visual. Nesse sentido, o modelo tecnológico do aparato fotográfico digital assemelha-se ao processo que ocorre na retina na captação de comprimentos de onda e detectores de movimento, onde dados oriundos de nossa experiência são posteriormente convertidos em linha, cor, forma, textura, profundidade e movimento no córtex visual. O modelo da imagem informática ou de síntese parece estar mais sincronizados com o modelo real da percepção. Não se trata de substituir o modelo analógico pelo digital. É necessário repensar a fotografia enquanto mecanismo da percepção, já que isso 24 ART implica no equívoco da imagem/anteparo decalcada no fundo do olho. É esta concepção estática e indicial do mundo que se esvanece sobre um uma realidade informacional, pois a imagem no computador reconquista um status de plasticidade pictórica: ela é literalmente pintada por processos de pós-produção (MANOVICH, 2002). Pensar os objetos técnicos pela perspectiva antropomórfica e o humano pela perspectiva tecnicista implica num equívoco, uma via de mão dupla: a negação do progresso tecnológico como um modo de existência singular, bem como o da imposição de uma modelização do humano a partir dos estágios do progresso tecnológico. Se, ao contrário, pensarmos que o humano e o tecnológico podem coabitar por acoplagem e prolongamento, como no caso dos dispositivos tecnológicos gráficos que evoluem a partir dos experimentos oriundos do universo artístico visual, é possível desmistificar seus efeitos imaginários e reais no pensamento de nossa época. O efeito da máquina fotográfica enquanto “indivíduo técnico” abstrato funcionou por prolongamento, onde o biológico foi submetido ao artificial, criando a fantasia de que o olho funcionava da mesma maneira, e propiciando avanços no campo estético. Porém, esses avanços converteramse em um equívoco academicista. A arte enquanto produto da linguagem com uma essência linguística-textual implode: uma arte que é pensada de antemão, pobre visualmente, e que não raramente deve negar quaisquer qualidades estéticas passa a fazer parte de um discurso anacrônico. É necessário que se desfaça a relação de poder onde o homem se sobrepõe e domina a máquina, mas sim, pensar numa existência no mesmo nível dela, respeitando-a. Para o filósofo Gilbert Simondon, devemos pensar numa relação entre homem e máquina que restitua as intenções de fundo que o progresso técnico tende a esconder – o tecnológico precisa libertar-se do econômico para alcançar sua verdadeira potência. Para a “filosofia das máquinas”, a superação do individual é uma necessidade evolutiva da humanidade. Para Simondon, as técnicas não modificam a ordem natural, elas não são instrumentos de combate nem meios de resistência, elas são um prolongamento. Assim, a técnica possui o germe de uma humanidade nova. O progresso técnico relativiza a concepção tradicional de uma natureza humana imutável, agindo por acoplagem e prolongamento. Homem deve funcionar como tradutor de informações máquina à máquina. Em nossos dias, essa união já está realizada, o que falta é rever a qualidade desse regime matrimonial, sendo no transindividual que essa relação ocorre de forma autêntica. Para Simondon, o objeto técnico soluciona problemas de coerência interna, progredindo da abstração à concretização através da tecnicidade. Se, por um lado, a técnica é um retorno à natureza, por outro, é um prolongamento da mesma (CHABOT, 2003). Para Simondon, o vivente se diferencia por possuir uma pluralidade de sinais de entrada e saída, o vivo digere informação e elabora respostas, supondo um encadeamento da realidade formal concreta com uma realidade biológica informacional. Assim, a individuação é uma maneira de encontrar a vida. A individuação é uma estratégia para resolver um problema. Homem e máquina compartilham de um problema similar: 25 ART encontrar através da existência uma solução comum que só é viável no transindividual onde homem e tecnologia são prolongamentos um do outro, sem porém abandonar suas singularidades. Baseado na cibernética, Simondon concebe o processo de individuação enquanto forma atravessada pela informação, num percurso onde o pré-individual avança em direção ao individual, evoluindo para o transindividual. O individual implica num sistema onde há fechamento (individuação) e perda de informação, e no transindividual há troca de informação com o meio. O processo artístico funciona como um modo de reflexão e construção de novas formas de interação entre o homem e os objetos tecnológicos, construindo novos sistemas ou indivíduos técnicos onde o transindividual permite a troca de informação. A relação humano/tecnológico torna-se possível através do que se pode denominar “objeto tecnopoético” que se instaura a partir de alguns cruzamentos: primeiro, pela característica modular das linguagens de programação e dos produtos dos novos meios focados na noção de objeto; segundo, porque reativa o conceito de experimento e laboratório reivindicado pelas artes de vanguarda que viam no objeto a marca diferencial entre o atelier e a fábrica. E, finalmente, no que Simondon teoriza como “modo de existência dos objetos técnicos”, pensando-os enquanto indivíduos. Desse modo, o modelo inspirado no dispositivo fotográfico como cognição do mundo encontra seu fim; a investigação visual ressurge implodindo com as concepções reducionistas que viam a arte como produto da linguagem como essencialmente conceitual e textualista (Foster, 1996). A pesquisa científica da neurobiologia contemporânea desfaz a concepção errônea de que a retina receberia a imagem como uma chapa fotográfica e, posteriormente, transmitiria ao cérebro. Para o neurologista e neurobiologista inglês Semir Zeki, esse equívoco é decorrente do fato de que a primeira área do córtex visual a ser mapeada foi a retina cortical, a qual ele denomina de área V1. Para ele, essa região conhecida inicialmente por retina cortical era descrita como uma área que receberia uma espécie de “desenho primário” da imagem oriunda do mundo externo e, portanto, teria fomentado especulações sobre instâncias de formação da imagem no fundo do olho e, numa segunda etapa, na retina cortical. Esta hipótese foi rejeitada pela ciência nos últimos vinte cinco anos. A retina cortical é denominada por Zeki de área V1, responsável pela divisão dos impulsos recebidos da retina para outras regiões como a V2, V3, V4 e V5, onde cada uma é responsável por parte da informação visual. Por exemplo, a região V4 é responsável primeiramente pela cor, a região V5 pelo movimento. A ideia de que o cérebro possui instâncias especializadas que funcionariam de forma serial foi abandonada. Atualmente o modelo paralelo é aceito como padrão de funcionamento cerebral. No paralelismo, apesar de possuírem especialização, as regiões corticais compartilham funções. Por exemplo, o processamento da cor oriundo da informação das células receptoras de comprimento de onda (cones e bastonetes), bem como o da construção da forma e detecção de movimento (células ganglionares retinianas) e das células detectoras de níveis de brilho e transmissoras de informações não-visuais a outros pontos do córtex (células ganglionares fotossensíveis 26 ART retinais) também funcionam simultaneamente na percepção visual. Portanto, a construção da imagem no cérebro envolve o córtex visual como um todo, e por vezes outras áreas como, por exemplo, o córtex pré-motor (Zeki, 1993). A Neuroestética de Zemir Zeki surge como um conhecimento decorrente de investigações científicas da neurobiologia, propondo outra forma de abordagem da percepção e da experiência visual. Ele é o primeiro a aplicar as investigações científicas sobre o cérebro na estética. Desse modo, a Neuroestética surge como uma corrente da estética que investiga a base biológica da experiência visual. O autor analisa principalmente a pintura moderna e a arte cinética. Sua análise decorre da similaridade dos experimentos visuais usados em experiências de laboratório por neurocientistas devido à simplicidade da cartela de cores e formas oferecidas pelas obras modernas, bem como pela exploração dos efeitos perceptivos virtuais da arte cinética, que possibilitam uma análise dessas obras a partir da Neuroestética (Onians, 2007). Desse modo, são revistas questões a respeito da construção da imagem, que passa, então, a ser concebida como operação intelectual complexa do córtex visual. Para Zeki, as artes visuais são uma extensão das funções do córtex visual, e assim acabam exteriorizando as suas leis de funcionamento e, por esse motivo, devem ser investigadas à luz da ciência. Noutro sentido, ao depararse com seus limites, a ciência deve analisar a arte para que compreenda os mecanismos de funcionamento do cérebro, já que a mesma é uma exteriorização da maquinaria cerebral. O artista obtém conhecimento sensório-visual do mundo em sua observação investigativa e, nesse processo, decifra o funcionamento do córtex visual. Se as artes visuais são produto do córtex visual, elas são uma exteriorização do mesmo. Buscando desvendar seus mecanismos de funcionamento cortical, a Neuroestética muda o estatuto da pesquisa visual. Ora retoma questões propostas pela tradição, ora refuta-as. Questões como a ambiguidade visual, prazer visual, participação do espectador são revistas a partir de uma perspectiva científica. A percepção visual é redescoberta, porém, não como uma novidade pura propiciada pelos experimentos laboratoriais de neurociência e da computação visual, mas sim, como um mecanismo evolutivo “arcaico”, sem ficar estagnada, pois ela segue a sua jornada evolutiva onde a investigação visual artística ocupa um lugar de destaque. No cérebro, a sensação está associada à falta de acabamento e à ambiguidade nas obras de arte. A Neuroestética desenvolve uma reflexão sobre os mecanismos cerebrais de gratificação envolvidos no processo de criação que ocorrem basicamente a partir de uma experiência de frustração. A “constância cerebral” é caracterizada pela busca cotidiana de características imutáveis nos objetos e nas experiências para que o cérebro possa construir um mecanismo mnemônico de reconhecimento. O princípio da constância cerebral é decorrente da “constância da cor”. A constância da cor é a propriedade pela qual a reconhecemos num dia de sol, num dia nublado, ao amanhecer e ao fim do dia. O cérebro desconta as variações de comprimento de onda, presentes em diferentes tipos de iluminação 27 ART para manter a memória da cor – a cor é antes de mais nada constância. No entanto, o princípio da constância não se restringe à percepção concreta do mundo, atua também em valores subjetivos como o gosto. Assim, as propriedades dos objetos como a cor, a forma, ficam retidos em nossa memória através do que Semir Zeki denomina de “conceito sintético cerebral”. A partir de nossa experiência sensória do mundo, os conceitos sintéticos cerebrais são acrescidos cotidianamente de novas características oriundas da percepção. Nessa perspectiva, questões como a representação, a mimese, o prazer visual são revistas pela neurofisiologia cerebral. Para a neurobiologia, o prazer estético decorre da repetição da experiência e não do fato de a mesma ser agradável ou não. Através da fruição estética, o espectador ativa os mesmos centros de satisfação e recompensa cerebral usados pelo artista. Contudo, a idealização decorrente da constância cerebral acaba por produzir um sentimento de frustração e de inacabado; uma sensação de incompletude e de morte, um mal-estar profundo que tentamos superar na arte. Para a neurobiologia, a insatisfação é um mecanismo biológico evolutivo que faz com que busquemos novas soluções para evolução da espécie. Desse modo, a criação parte de um sentimento primitivo de descontentamento e frustração que o artista busca superar na arte. A criatividade é vista como uma forma do cérebro disfarçar suas deficiências. A arte tem como função apreender e criar novos conceitos do mundo para que posteriormente sejam compartilhados com toda espécie. O cérebro visual decodifica dados e constrói o mundo que percebemos — a imagem é produto do intelecto visual. A Neuroestética de Zeki encontra pontos de convergência com a teoria de Georges Bataille que relaciona o processo de criação a um sentimento profundo de medo e mal-estar. Para Bataille, para que possamos pensar o mal, se faz necessário uma divisão inicial: existem dois tipos de mal que se opõem radicalmente. Um refere-se à atividade humana que busca atingir o bem e conquistar os desejos esperados com a intenção de evitar “fazer o mal”. O outro tipo de mal está relacionado à transgressão, como, por exemplo, a ruptura de tabus: esse tipo de mal pode ser pensado como “agir mal”. O segundo tipo de mal é inerente ao processo criativo: a arte precisa do mal para evitar o tédio. Assim, a obra de arte implica em uma angústia profunda causada pela sensação de que estamos fazendo algo errado, agindo mal. Para Bataille, o escritor e o artista, em geral, desobedecem certas regras sociais e familiares, colocando-os numa situação de culpabilidade: a criação, por se opor ao mundo da produção real do trabalho, coloca o artista numa situação de desobediência, gerando culpabilidade e infantilização. O processo de criação implica numa desobediência, num avanço consciente em direção à proibição. A arte deve nos colocar em contato com a natureza humana em seu aspecto mais violento, fazer com que tenhamos a sensação de perceber o pior e nos confrontar com esse mal, fazer com que tenhamos consciência de que estamos num jogo de horror. Inspirados em Georges Bataille, alguns autores contemporâneos desenvolveram teorias da arte inspirados nesse no “princípio maligno” presente na arte. A crítica de arte Rosalind Krauss, em sua reflexão sobre o 28 ART informal na arte contemporânea, vê no impulso informe não uma vontade de representação, mas sim, de alteração e mutilação. Em sua teoria abjeta da arte, Julia Kristeva fala de um princípio traumático oriundo de nossa relação com a imagem. A autora atribui uma função crucial à imagem “arcaica primordial” enquanto evento fundador tanto do indivíduo, quanto do processo de criação. Assim, a arte abjeta ou repulsiva é uma tendência que ganhou força nas últimas décadas do século XX e que continua presente na arte contemporânea. Esse movimento tinha como ponto de partida retomar a arte enquanto experiência sensorial e afetiva, buscando trazer à tona as relações primitivas do sujeito com a imagem. A análise abjeta do processo criativo afirma que o mesmo origina-se na paixão e repulsa primordial pela imagem. Sua manifestação estética na produção artística contemporânea decorre de uma afirmação dos aspectos estético-sensoriais e representacionais da arte em negação à arte vista apenas como abstração filosófica. Para Kristeva, a arte abjeta é uma convocação do degradado como uma espécie de choro ou apelo em nome de uma humanidade recalcada. Para muitos, na cultura contemporânea, a verdade reside no traumático e no tema abjeto, no corpo doente ou mutilado. Assim, o corpo degradado é um importante testemunho contra o poder. Em decorrência desta separação inicial, o abjeto torna-se uma potência enquanto motor imaginário de origem da poética. Portanto, para a autora, a abjeção estaria na base de todo o processo de criação artística: a repulsa e a náusea são bordas pelas quais a arte se autoriza a frequentar o espaço inexistente do abjeto, tornando-os possíveis através de si. Ao investigarem mapas de ressonância magnética nuclear durante o processo de troca de olhares entre mães e seus bebês , de experiências de amor romântico, e de apreciação de obras de arte, a neurobiologia, a neurologia e a neurofisiologia detectam nestes diferentes contexto a ativação das mesmas áreas no córtex cerebral. No caso das trocas de olhares e expressões faciais entre a mãe e a criança, comportamento este que ocorre mais ou menos até os quatro meses de idade e caracterizado pela fixação da criança ao olhar e a face da mãe, faz com que funções inatas do aprendizado visual sejam ativadas (Stamenov, 2002). Simultaneamente também é a ativada a área especializada de reconhecimento de expressões faciais e centros de recompensa (liberadores de neurotransmissores como a ocitocina) e supressão da região responsável pelo juízo crítico. Esse processo ocorre através dos “neurônios espelho”, grupo de neurônios, descobertos entre as décadas 1980 e 1990 pelo neurofisiologista Giacomo Rizzolati, revelando que o processo de aprendizado ocorre inicialmente através da observação pura. Esses neurônios, presentes no córtex pré-motor e córtex visual, mostram como podemos aprender através da imitação mesmo sem compreendermos o significado da ação e mesmo sem realizarmos nenhum movimento. Quando observamos alguém realizando uma tarefa qualquer, ativamos em nós a mesma área do córtex cerebral (ONIANS, 2007). 29 ART Ao propor o mecanismo de ativação do processo criativo como um impulso decorrente da insatisfação inerente ao processo bio-evolutivo do cérebro, a Neuroestética acaba por reforçar algumas questões propostas pela teoria abjeta. O funcionamento dos mecanismos neurofisiológicos cerebrais, tais como, a ativação do córtex visual e regiões associadas com os neurônios espelho, a troca de olhares mãe/bebê estabelecem uma base biológica para a relação primitiva do sujeito com a imagem, bem como a intangibilidade e idealização decorrente dos “conceitos sintéticos cerebrais” que reforçam o inacabado e o informal, relacionando a arte a um mal-estar profundo. Assim, a Neuroestética possui um aspecto abjeto/repulsivo. Primeiramente, pelo o foco nas heranças biológicas inatas decorrentes da evolução da espécie calcadas na origem da relação do sujeito com a imagem como ato fundador do mesmo; bem como, através do aprendizado com as experiências cotidianas do cérebro nos “conceitos sintéticos cerebrais” que, em sua impossibilidade, incompletude e frustração agem como um bio-drive para a evolução da espécie. E, por último, a forma como é feita a pesquisa de laboratório na neurobiologia com uso de cobaias, como macacos, ratos transgênicos, cães, gatos e pacientes com cegueira seletiva (visual blindness). Portanto, a Neuroarte deve ser abordada pela neurofisiologia cerebral e caracterizada pela visceralidade da experiência estética — a experiência sensório visual é antes de mais nada um evento neurofisiologico e bioquímico que ocorre no cérebro enquanto víscera. Através do conhecimento propiciado pelos experimentos científicos, a Neuroarte nega a concepção equivocada de que existiria uma arte retiniana contraposta à uma arte da ideia ou do intelecto. A Neuroarte também funciona por retroalimentação. As artes visuais, desde sua origem, desvendam os mecanismos cerebrais de construção da imagem. A neurobiologia e a Neuroestética analisam estes mecanismos sob o ponto de vista da ciência. E, por fim, o computador através dos algoritmos e interfaces gráficas de visualização usa esses saberes. Assim, a computação visual inerente aos exames de ressonância nuclear magnética age enquanto “imagem instrumento” (propriedade de ação em tempo real das imagens à distância – telepresença), desvendando o funcionamento dos mecanismos cerebrais do córtex visual. Num processo de retroalimentação, a Neuroarte apropria-se desse conhecimento científico para produzir objetos artísticos, potencializando e focando a experiência estética do espectador a partir desses saberes. Para concluir, é importante demarcar algumas questões instauradas pela Neuroarte: ela é anti-conceitual no sentido de que devolve à investigação visual e à fruição estética um status de conhecimento; é abjeta porque reconstrói a relação primordial com a imagem, bem como pelos modos de investigação que utiliza; a tecnologia é vista em seus estágios evolutivos, abstratos (imagem nas cavernas, perspectiva e câmera obscura) que avança por progresso e tecnicidade até modos mais concretos (fotografia de película e cinema, vídeo, fotografia e cinema digitais, vídeo de alta definição, imagem de síntese e realidade virtual) e assim é abordada por acoplagem e prolongamento. 30 ART Referências Bibliográficas CHABOT, Pascal. La philosophie de Simondon. Paris: Librairie Philosophique, 2003. 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Este livro se escreve no ciberespaço e nele se dá, se transforma ou se perde, entre as malhas da ampla rede aberta, repleta de leitores navegantes, já habituados à linguagem multimídia que nela se faz presente. Palavras-chave: conhecimento, arte, livro virtual, cibercultura Abstract: This paper proposes an approach to the art as a form of knowledge and explores the hypothesis that, in this sense, we can make the book a medium extremely interesting to its development, articulation, transmission and sharing. The book we dream about, however, is not the traditional book, printed, nor the electronic one, closed and finished, but a book called virtual because of its characteristics and peculiarities. This open book is written in cyberspace and in this space it is given and can be transformed by sailors readers already familiar to the multimedia hipertextual language present in the world wide web. Keywords: knowledge, art, virtual book, cyberculture Durante muito tempo se forjou a idéia de que a arte seria uma forma misteriosa de lidar com a realidade, ora criando ilusões e escapes para as mazelas do cotidiano, ora representando fragmentos do que seria de fato o real, em toda sua crueza, beleza e desespero. O artista, dotado de gênio e sensibilidade fora do comum, seria aquele cujo poder de representar tais ilusões e fatos ou de retratar o mundo sensível, encantaria, seduziria e até convenceria as pessoas de que um outro mundo é possível, um mundo imaginário, embora concreto, uma realidade outra. Um sistema paralelo, à parte, abriria-se assim às consciências tocadas pelo poder da arte, que lhes daria em troca o passaporte infalível de acesso a esse universo fabuloso, extasiante e extraordinário. Durante muito tempo, essa talvez tenha sido a inquestionável função da arte e do artista: entreter, representar, mostrar, expressar, fazer sonhar e evadir. Se, por um lado, a indústria cultural lamentavelmente foi se apropriando cada vez mais dessa função, que ainda assim se exerce e nos encanta, por outro, novas funções e disfunções foram aparecendo. Por um processo lento, paulatino, mas também aparentemente súbito e radical, foram se formando outros conceitos de arte, talvez, aparentemente também, mais radicais e temerosos. Nada poderia ser menos encantador que um urinol apresentado como obra de arte. Assim, o século XX viu a arte e os artistas inventarem e assumirem novas funções, abraçarem causas as mais diversas, irem às ruas, às páginas das revistas, dos livros e 33 ART jornais, libertarem-se do cubo branco, conquistarem espaços múltiplos: a praia, a web, o morro da Mangueira, desertos e centros urbanos, campos mediáticos, a caixa preta, o interior dos sistemas, fazendas, salas de cinema, buracos de metrô, escolas e universidades, numa expansão plural, pluralista e libertária. Ainda hoje causa espanto que a arte esteja nesses lugares todos. Mas depois de tudo, afinal, a arte é aquela estranha que estranha os costumes, questiona a cultura, da qual se origina e a qual se destina, num paroxismo tenso e fulgurante. Junto a isso, como uma conquista, talvez a principal, ocupamos a existência. A arte passa a ser uma postura, um modo de estar no mundo, um olhar, uma maneira de sentir e respirar. A arte passa a ser relação, a arte passa a ser relacional, não conta em si, como valor em si, fechado em si, o artista, gênio para si mesmo, estanque e isolado, não se sustenta. Ainda que continue a alimentar sua eterna ilusão, não vale. Ou continue valendo, como sempre, para si, em círculo, a serpente engolindo seu próprio rabo-corpo, devorando-se sem mais. Sem problema. Hoje há confluência e convivência entre o círculo e a espiral, mas eu prefiro a espiral. Nela nos identificamos. Vamos. A arte parece não ter fim. Não morreu, encontrou outras finalidades, além da representação, além da ilustração de sentimentos e valores. Sem renegá-las, sem excluir nada disso, a arte se deu como finalidade o conhecimento, esse ente fugidio, isso que é pura busca e encontro, isso que escapa e elucida. Eis aí o legado mais precioso que herdamos dos modernos, nós, pós modernos, que testemunhamos a queda do muro de Berlim, mas nos mantemos cientes dos múltiplos muros que se erguem e desgraçam vidas no cotidiano do mundo contemporâneo. eu quero ficar que se deite aqui e sinta comigo os murmúrios, palavras que deslizam numa teia, uma estacou agora, e vagarosamente uns fios brilhosos se torcem à sua volta, meu deus, vão recobri-la, que palavra, que palavra? CONHECIMENTO, Hillé, ainda posso vê-la, CONHECIMENTO sendo sufocada por uns fios finos e de matéria densa. pronto. apagou-se. (HILST, 2001, p. 70) Nesse ponto, não desprezamos a doxa, tampouco as ilusões, ouvimos a todos, alimentamos opiniões, frívolas, especulativas, caolhas, sinceras, mas almejamos a episteme. É ela que nos sidera. Por ser assim, embora não nos creiamos exatamente úteis à humanidade, nada há de inútil em nossa busca. Que as perguntas se acumulem sem respostas, que a busca não tenha fim, posto que o mistério da vida, do existir, do ser, do lembrar e esquecer, do amar, também não tem fim, que nos importa? Na variação das formas todas que a arte adquire neste momento, universal parece ser essa busca, esse modo de operar verdades e mentiras, ignorâncias e saberes, misturando-os em fixações efêmeras, aspirantes à eternidade ou à própria fugacidade do instante, de todo modo, partilháveis, dignas de compartilhamento, não pelo valor que carregam em si, mas pela esperança de ecoar uma busca semelhante, de outro semelhante, e aplacar misérias e angústias pela simples razão de mostrar ao outro que, oxalá, ele/ela não está sozinho nessa angústia, nessa miséria, nessas alegrias, nesse mar de incompreensão e desconhecimento que é a própria condição humana, que nos iguala a todos, mortais, donos de necessidades e desejos, buracos sujos e sonhos puros, músicas inaudíveis e lama. 34 ART Talvez, não sei, é difícil precisar, dizer exatamente quando essa nova percepção começou, talvez sempre tenha estado presente no fazer artístico. O passado se nos apresenta como coisa nebulosa. O que pensavam homens e mulheres ao pintarem as cavernas, os potes de cerâmica, o corpo, as inscrições mortuárias, os frontais dos templos, os vitrais góticos? Talvez também eles e elas buscassem o inominável e nessa busca fabricassem conhecimento, um conhecimento de uma outra ordem, a qual se caracterizaria por mesclar razão e sensibilidade, emoção e intelecção, integrando a pessoa ao meio circundante e tornando-a, quiçá, mais íntegra. Esse conhecimento já seria o que hoje denominamos conhecimento artístico, distinto de pelo menos outros dois, o científico e o filosófico, aos quais se chega por outros caminhos e que nos levam a outras paragens (SUASSUNA, 2005). Ainda que assim seja, que sempre tenha sido e havido tal tipo de conhecimento, o fato é que só recentemente isso assim foi sentido. Datemos o fato. Na primeira metade do século XX, Piet Mondrian levanta a bandeira de que há uma linguagem propriamente plástica e busca definir, depurar e praticar essa linguagem. Ele não é o único a fazê-lo, mas fica como símbolo. Theo Van Doesburg também investe nessa convicção e, por um outro viés, Kasimir Maliévitch chega ao extremo das possibilidades da pura linguagem plástica, já liberta das obrigações da representação e do elo com a realidade figurativa. Silêncio profundo. O que se passa a partir de então, pelos múltiplos caminhos percorridos pelos mais distintos artistas, é o que importa e o que vai abrir a perspectiva da arte como forma de conhecimento. Afirmar que a arte é uma linguagem ou que há uma linguagem essencialmente plástica e visual traz uma série de implicações, mas, sobretudo, nos faz ver que, doravante, é possível pensar plástica e visualmente, pensar como artista, ser e estar artista, ser isso que é sendo sem saber porque se é mas inventando sentidos para essa falta de sentido absurda que é a vida. Ele sabe agora, com a longa experiência de seus oitenta anos, que a vida é uma coleção de mortos. Os nossos mortos. Os mortos que só nós podemos ressuscitar nas iluminações de nossa consciência, e que carregamos conosco, sem que nos pesem, constranjam ou perturbem, até que sobrevenha para eles a morte definitiva, que é a nossa própria morte. (MONTELLO, 1978, p.477) Para entender as conseqüências contidas nesse ponto transfigurador é necessário rememorar algumas noções de linguagem. De início, a linguagem não é. Não é nada, não é uma coisa, não é uma substância. A crença de que a linguagem humana fosse uma coisa substancial não levou os lingüistas muito longe, assim afirma Saussure (2010), para quem a linguagem é forma. Dizer que ela é forma é dizer que ela é relação. Isto é, nada na linguagem funciona isoladamente ou tem valor em si. Tudo nela é relacional. Uma palavra ou partícula lingüística tem seu valor alterado ao se colocar ao lado de outra e faz com que essa outra igualmente tenha seu valor alterado. O contexto influi no sentido do texto, tanto quanto esse tem o poder de alterar aquele. Além dessa constatação de fundamental importância para a boa compreensão do que seja a linguagem humana, na qual a linguagem da arte se espelha e da qual ela deriva, há uma outra, dessa vez oriunda da Comunicação. 35 ART No estudo dos meios de comunicação, eventualmente causa incômodo o fato de a linguagem não ser considerada um meio de comunicação, muito embora, claro, ninguém negue que nos comuniquemos por meio da linguagem. A razão, porém, para isso é simples: a linguagem não está fora de nós, não foi algo por nós fabricado, inventado, cujo nascimento se possa precisar e investigar. Pelo contrário, não sabemos ao certo onde começa a linguagem e onde começamos nós, como seres humanos, como seres sociais. Não se pode dizer que a linguagem é uma ferramenta ou uma tecnologia de comunicação, um meio, como o é a escrita, esta sim, primeiro dos meios de comunicação. A linguagem nos constitui como seres humanos e nada somos, nem histórica, nem pré-historicamente, sem ela. Tampouco ela é exclusividade nossa. Sabe-se que quase todas espécies animais são dotadas de linguagem, o que permite a comunicação entre os indivíduos e a vida em grupo, mesmo entre as espécies mais solitárias. O que é estranho no nosso caso é a complexidade que a linguagem adquiriu e o fato de articularmos uma quantidade infinitamente maior de sons e sentidos que as outras espécies animais, o que fez com que nós, ainda que mais fracos e frágeis fisicamente, nos impuséssemos diante de animais muito mais fortes e conquistássemos com isso inegável expansão e supremacia. Isso é espantoso. Isso é inexplicável. O fato de falarmos é o grande enigma. Ensina-nos a Lingüística clássica (SAUSSURE, 2010), que a fala é a dimensão da linguagem habitada pelo indivíduo, enquanto a língua é a dimensão social e operacional da linguagem. Em outras palavras, podemos imaginar o seguinte: a linguagem é um grande sistema articulado de signos, a língua é o que nos permite operar ou dinamizar esse sistema e a fala é a maneira como cada um de nós faz suas operações, articula os signos. A fala é, no fundo, o lugar onde o abstrato se concretiza, onde a pessoa se apodera do que é cultural e onde as transformações são forjadas, porque à força de falar, de falarmos, fomos compartilhando nossas compreensões e incompreensões da realidade e assim fomos, simultaneamente, descobrindo e inventando as coisas e os nomes das coisas, alterando a face do planeta e as condições de vida na Terra. Nesse vai-e-vem de nós aos outros, propiciado pela linguagem – dizia Walter Benjamin (2000) que devíamos dizer NA linguagem e não PELA linguagem, posto que a linguagem é tudo e tudo é linguagem –, transformamo-nos e provocamos transformações. Erguemos mundos e fundos. Conhecemos, desconhecemos, reconhecemos, calamos. Pensamos, enfim, o que é o pensamento se não linguagem concatenada? Dizer agora que existe uma linguagem da arte, pictórica, musical, fotográfica, visual, significa dizer que podemos pensar musicalmente, fotograficamente, visualmente. “Trata-se aqui de linguagens sem nome, sem acústica, de linguagens feitas de matéria; é preciso aqui pensar na comunidade material das coisas na sua comunicação.” (BENJAMIN, 2000, p.164) Mas o que pensamos nesses meios, cromáticos, sonoros, gestuais, formais? O que pensamos com ou diante da forma, nisso que é relação? Pensamos-sentimos, sabemos-não-sabendo. Temos talvez consciência de sermos algo que já não somos, sentimos o corpo e é o corpo que, sensibilizado, pensa, lembra, inventa, canta, cala, tudo junto, não sistematicamente, com dificuldade de dizer o que pensa, em verbalizar, mas sentindo-se íntegro, único, ímpar naquele instante. 36 ART Desviemo-nos para o vermelho. Lá dentro, o que é aquilo? Lemos alhures: “Desvio para o vermelho (1967-84) [de Cildo Meireles] propõe a construção de um espaço que, por um lado, aproxima-se do ambiente doméstico e, por outro, desconecta a obra do espaço real.” (COHEN, 2008, p. 89) Mas nós mesmos, aquém da informação que temos daquilo, pensamos: o que é isso, o que sinto aqui, quem sou neste aqui, que relação estabeleço ou posso estabelecer neste espaço, com este espaço, que sentido faz isso tudo ou que sentido eu posso inventar para isso que é da ordem do nunca visto e do nunca sentido? A consciência da falta de sentido da vida, condensada em uma obra de arte, nos força a criar sentidos. Misteriosa, então, não é exatamente a arte, mas a vida ela mesma. Criar sentidos é conhecer por meio da invenção que se dá a partir do reconhecimento de uma ignorância profunda. Conhecer é relacionar, estabelecer conexões e elos, afetivos e intelectivos, com a esperança de vê-los ecoarem no social. Conhecer é habitar a linguagem no mesmo instante em que nos sentimos abandonados por ela. Adentrar o silêncio denso. Ir no íntimo: as vísceras, o cérebro, o sangue, neurônios, mecanismos fisiológicos são universais na mesma medida em que são pessoais. O corpo e o saber (instintivo) do corpo são universais. O corpo, como suporte e meio da arte, é conquistado na contemporaneidade. “Ninguém ensinara ao homem essa conivência com o que se passa de noite, mas um corpo sabe.” (LISPECTOR, 1999, p.18) Agora, além dessa constatação, cabe apontar para o que dela pode surgir em conseqüência. Que tenhamos uma, na verdade, várias funções cerebrais responsáveis pela cognição e que a parte não verbal, não lingüística, seja uma delas, e que justamente esta seja a responsável pela percepção da beleza e pelo desenvolvimento cognitivo humano, em busca do prazer que temos em, novamente, conhecer, que isso seja assim, que conseqüência isso traz para nós, fazedores de arte? Como nos apropriamos desse conhecimento oriundo da neuroestética e o usufruímos? Entre as inúmeras possibilidades de resposta à questão, uma, que se situa ainda na transição e na confluência da novidade e da tradição, é a que me interessa. Esta se apóia em uma sugestão de Roland Barthes (2005), que sublinha a necessidade de estudarmos ainda, e muito, um tipo de signo abundante no mundo contemporâneo: o signo logoicônico, este que é misto de imagem e palavra, de verbo e silêncio, e que sensibiliza simultaneamente audição e visão. Ora, a experiência comunicacional que temos diariamente navegando na Internet nos coloca em contato direto com signos daquele tipo, logoicônicos. Ainda que diversas formas de arte, e não só as visuais, mas as musicais e coreográficas, nos tragam conhecimento e sejam, elas mesmas, formas de conhecimento, que independem da verbalização e do apoio da linguagem verbal, não precisamos abdicar desse apoio, nem deixar de usá-lo para intensificar os sentidos multidimensionais sintetizados na arte. Ao contrário, temos muito a ganhar e temos já ganho muito com a junção complementar dessas distintas formas de conhecer o mundo. Não podemos nos dar ao luxo de esquecer que a própria linguagem verbal, quando distanciada de suas funções práticas e corriqueiras, quando estranhada e 37 ART habitada pelo artista, reveste-se de imagem, metamorfoseia-se em visões, derrete-se em sons, sensualiza-se, transmuta-se em arte literária, em poesia, em canção. É errôneo, embora costumeiro, associar a linguagem verbal (oral ou escrita) à razão e a razão a algo puro, desconectado da sensibilidade, da imaginação e do corpo, como se o pensamento fosse matéria abstrata. Uma criança que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não “tenho vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto, “tenho vontade de lágrimas”. Esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper as pálpebras conscientes da amargura líquida. “Tenho vontade de lágrimas!” Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral. (PESSOA, 1986, p. 94) Cumpre lembrar que, ainda no século XX, se cria um tipo sociológico até então raro: o artista intelectual. Embora esse tipo já existisse desde a Renascença, tendo em Leonardo da Vinci seu emblema inaugural na figura do artista cientista, é no apagar das luzes da modernidade que esse tipo se expande, populariza-se e se afirma. Nenhum espanto há, hoje, que músicos, artistas visuais, atores e atrizes, dramaturgos, coreógrafos e estilistas dêem entrevistas, participem de debates, escrevam e façam da escrita um meio de reflexão sobre a sociedade, sobre aspectos históricos de seu estilo, sobre problemas de linguagem, sobre questões técnicas, que estudem e tratem de tantos assuntos quanto lhes interessem. Os exemplos são abundantes em qualquer ramo da arte. Cito aqui apenas um, o de Nei Lopes (2009), sambista e estudioso da cultura africana e de sua contribuição na formação da sociedade brasileira. Esse maravilhoso artista brinca com o próprio nome ao dizer-se pesquisador da fundação NEI – Núcleo de Estudos Independentes. Além de vários livros, didáticos e de ficção, enciclopédias e dicionários ligados ao assunto, Nei Lopes mantém um blog bastante instrutivo e descontraído, onde exerce sua alegre militância e deixa registrado seu pesquisar. Cito ainda Silvio Zamboni, que em sua atual pesquisa em arte, fotografa de modo independente, prazeroso e regular cidades tombadas pelo patrimônio mundial da humanidade, proporcionando-nos conhecimento de matriz artística ao nos presentear gratuitamente com as imagens que publica no site que mantém por conta própria. ”Resumidamente podemos afirmar que o objetivo geral do projeto é o registro, a interpretação artística e a divulgação do patrimônio artístico arquitetônico pela linguagem fotográfica.” (ZAMBONI, 2009). Iniciativas como essas mostram que o pensamento e a escrita de artista já lançam mão, neste momento histórico, de outros meios, que não só a escrita, para incrementar o que precisa ser dito, o que, intelectual e esteticamente, pode ser acoplado à arte, interagindo com seu campo semântico, sem competição ou ofuscamento. Assim, o livro virtual surge dessa vontade de fusão entre logos (palavra, inteligência) e ícone (imagem, imaginação), entre linguagens e meios, em um espaço propício ao exercício hipertextual, interativo e multimídia – a rede mundial de computadores. Nela, ele surge como ambiência virtual de estudos, AVE, em alusão à idéia de AVA, ambiente virtual de aprendizagem, comum no ensino à distância. Entre professores e alunos o que há em 38 ART comum é o fato de estudarmos e de precisarmos de um lugar para fazêlo. O livro é este lugar e neste contexto ele é virtual não só em função da virtualidade própria do ciberespaço, mas também por ser dado como potência, texto incompleto, desejoso de vir a ser completado, lido e escrito por nós, em novelos, na leitura imersiva (SANTAELLA, 2004) do naveganteviajante. Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência e da imaginação me estorvou a seqüência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma. (PESSOA, 1986, p.182) Desse modo, o livro-lugar-virtual originário de blogs, wordpress, tumblrs e afins, facilmente manipuláveis, nascem como caderno, lugar de exercício e anotações, onde autores, já familiarizados com a escrita multimídia e hipertextual (bem como com uma ferramenta tecnológica que a viabilize), e leitores, igualmente familiarizados com um tipo de texto, despretensioso e leve, encontrariam prazer em ler e escrever na rede mundial de computadores. Publicar um livro, na cibercultura, pode ser simplesmente transformar um weblog, que tenha características conceituais de livro, em um website. Distribuí-lo significa dar acesso a ele. Na cibercultura e nas linguagens que ela engendra em múltiplas línguas, a ave-blog se assemelha à fala. É nela que a pessoa, ser finito e não interminável, voa e varia, articula a seu modo os signos, usa a língua para imitar e criar sentidos, areja a linguagem, se poeta for, arrisca rupturas, se revolucionário se sonha, e gera conhecimento artístico, se sua busca se confunde com o mistério do existir. Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. Inéditos, vol.3 – imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BENJAMIN, Walter. Sur le language en général et sur le langage humain. IN Œuvres I. Paris: Éditions Gallimard, 2000. BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. COHEN, Ana Paula. in: Pedrosa, Adriano; MOURA, Rodrigo [orgs.]. Através: Inhotim. Brumadinho, MG: Instituto Cultural Inhotim, 2008. HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001. MONTELLO, Josué. Os tambores de São Luís. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. LOPES, Nei. Mandingas de mulata velha na cidade nova. 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Ao entrar no mundo da nanotecnologia e da nanoarte, o mundo quântico causou, na percepção, um mergulho ainda mais profundo. A percepção tátil e a háptica, dominantes nas imagens geradas pelos microscópios eletrônicos, levantam um questionamento, pois o que as vivencia é a ponta rastreadora do aparelho e não o ser humano. O que acontece conosco? Essas qualidades perceptivas têm sido consideradas secundárias. Será? O texto aborda essa questão e traz alguns dos meus trabalhos em nanoarte como campo investigativo. Palavras-chave: Nanoarte, sistemas perceptivos, microscópios eletrônicos, trans-humanidade. Abstract: Perception has been for years a major point to me, begining with my real time-space installations. Moving to the virtual in art and technology, perception got even more important due to the different qualities in the ambiance. Nanotechnology and nanoart demand from us a deeper dive into perception in the quantum physics world. The images from the electronic microscopes are in 3D have a virtual character and what you see on the screen is their transcoding by a computer program. The domination of seeing was altered by the entry of these three-dimensional topographic images, closer to tactile sense. The problem is that what the microscopes perceive is not what we do. How can we get closer to the microscope perception? The haptic and tactile perceptions have been considered secondary in the Occidental culture. Are they? The text goes over this question bringing my art work as the research field. Keywords: Nanoart, perceptive systems, electronic microscopy, transhuman. O processo de criação de uma obra segue determinadas etapas inerentes à técnica escolhida pelo artista, e que oferecem ativações perceptivas bem diversas, pela maneira com que o artista deve estabelecer uma profunda relação com cada material bruto a ser trabalhado, seja ele uma máquina inteligente com a qual possa dialogar, seja qualquer outro material existente no chamado mundo real. Em minha pesquisa em nanoarte, dois reinos se aliam: a natureza e a tecnologia. Minha obra, embora ainda resumida, resulta da união entre amostras de materiais concretos advindos da natureza - os quais ativam a imaginação e a curiosidade -, e a tecnologia dos microscópios eletrônicos - ativada para desvendá-los em escala nanométrica - com registro imagético trazido à luz por programas de computador visualizados em monitores. As formas presentes nas imagens oriundas da varredura das amostras têm qualidade topográfica, e, portanto, tridimensional o que tem sido considerado como dentro dos domínios da percepção tátil e háptica. 41 ART É exatamente essa constatação que gostaria de examinar. Primeiro - por perceber que essa qualidade tátil só pode ser sentida pela ponta do microscópio, e mesmo assim de maneira diferente da sentida por um dedo, pois a força entre a ponteira e a amostra é que é rastreada e não sua estrutura material. Todo o universo, incluindo a nós mesmos, está inserido na escala nano, e obedece às suas leis quânticas, as quais, com nossa maior familiaridade, irão alterar nossas percepções e comportamentos. Inseridas à questão perceptiva, na cultura atual, nossas sensibilidades estão sendo adaptadas para desenhar realidades variáveis, pelas quais nós flutuamos livremente: a real, a virtual, a local, a da telepresença e a do espaço da nanociência, as quais experimentamos em conjunto, formando uma nova consciência que habita múltiplos selfs (Roy Ascott, 2009, on line). Segundo - por julgar que a percepção é sempre fruto de uma integração sensorial, no que James J.Gibson e o fenomenologista Maurice MerleauPonty estão de acordo: “Os cinco sistemas perceptivos se sobrepõem, eles não são mutuamente exclusivos”, (Gibson, 1966, p. 4). “Meu corpo, não é uma coleção de órgãos adjacentes, mas um sistema sinérgico, cujas funções todas são exercidas e conectadas na ação geral de ser no mundo” (MerleauPonty, 1962, p. 234). A evolução humana levou à formação do cérebro como um órgão de acesso à consciência e mesmo que sejam os sistemas sensoriais que levem a informação do mundo até ele, no entanto será possível que a consciência não seja material. A percepção presente em uma obra tem sido julgada com características definidas. Na arte denominada de visual seria aquela que tem por acionador o sistema visual. Gostaria de discutir essa noção da atuação de um único sistema perceptivo em nossos atos, e, para tanto, vou introduzir a noção de sistemas perceptivos de James Gibson e, na arte, da não-existência de um sentido em estado puro de W. T. Mitchell e o texto de Ascott sobre a realidade sincrética, a coerência quântica na construção do mundo e o nanoespaço. Integração sensorial na arte Minha experiência artística iniciou-se nos vários anos de participação e ensino de expressão corporal, dança-improvisação, dentro dos parâmetros de Rudolf Laban. Dançávamos comumente em grupos, de olhos fechados e me sentia enxergando o tempo todo. Não havia trombadas uns com os outros, nem com objetos. Por vezes, de olhos abertos, a comunicação era com a totalidade háptica de nossos corpos (toque, cheiro e gosto, de acordo com os fenomenologistas e com as pesquisas recentes de Madalina Diaconu (University of Vienna, Faculty of Philosophy and Pedagogy, Austria), aos quais acrescento: o sentir a circulação e a respiração). Essas constatações levaram-me a buscar uma integração sensorial que leva à percepção, o que a arte iniciou aos poucos desde o Impressionismo, 42 ART quando o “olho” descorporificado clássico, que passeava pela ilusão da superfície pictórica, viu seu império começando a se desmoronar pelo questionamento de perguntas como: “o que é isso? ” e “ o que significa isso ?” terem sido substituídas por “onde eu devo ficar”, diante de uma pintura impressionista, pois ela só se desvendava ao “Olho” com o deslocamento corporal (Anna Barros, 1996, p.50.) Quando as instalações em tempo-espaço real surgiram com o Minimalismo, no chamado cubo branco, até então repositório de pintura e escultura, toda uma nova vivência sensorial e perceptiva enriqueceu o espaço da imaginação. A escultura já fazia apelo a uma fusão do visual e do tátil, mas não era um trabalho “acontecendo” e sim um já codificado, a memória de um momento que marcara a sensibilidade do artista. Robert Morris, em The Present Tense of Space, 1978, disseca a mudança da memória para a experiência, de maneira ímpar, chamando de “presentificação”, um estado de ser onde a experiência do que está acontecendo no momento é prioritária para usufruir a obra. (Barros, idem, p. 46). Da arte em tempo presente, instalações em técnicas tradicionais, passou-se à arte com processos em movimento: vídeos, e depois as qualidades do analógico foram substituídas pelas técnicas digitais. Em cada um desses momentos a formação da percepção foi se enriquecendo. Os chamados órgãos perceptivos dilataram suas apreensões e a eles foram acrescentados outros órgãos protéticos com o computador e aparelhos tecnológicos. O ser humano tornou-se transhumano. A nanotecnologia, ao explorar um universo instalado dentro das regras da física quântica, e em dimensões moleculares e atômicas, demanda um enriquecimento perceptivo ainda maior, pois as reações que nele ocorrem não nos são familiares. O que acontece é uma maior importância da associação homem-máquina, pois o olho dos microscópios eletrônicos faz-se nosso, sendo um olho sensível à experiência tátil, uma vez que as imagens que eles nos proporcionam são em 3D, topográficas (esses microscópios têm uma elevada profundidade de foco), registrando, à sua maneira, o “terreno” das amostras. Ao contrário do olho humano que vê o que existe no mundo em que vivemos, o do microscópio gera uma realidade que ele mesmo vê e torna visível a nós por programa digital associado e transmitido pelo monitor; as superfícies resultantes da varredura são registro de sinais transmitidos por elétrons: “À medida que o feixe de elétrons primários vai varrendo a amostra seus sinais vão sofrendo modificações de acordo com as variações da superfície...”... “A versatilidade da microscopia eletrônica de varredura e da microanálise se encontra na possibilidade de se poder captar e medir as diversas radiações provenientes das interações elétron-amostra. Estas interações podem revelar informações da natureza da amostra incluindo composição, topografia, potencial eletrostático, campo magnético local e outras propriedades da amostra”. (MEV, acessado em maio 2011, p.27). Nesse processo de geração de imagens, a questão da presentificação pode coexistir quando estamos observando o trabalho do microscópio; quando 43 ART vemos as imagens por ele geradas e já registradas como apresentação digital, caímos nas mesmas qualificações atribuídas às imagens da arte digital, originadas pelos programas computacionais. Em meu trabalho, especificamente, as imagens foram trabalhadas em animações registradas em vídeo, o que atribui a essas imagens qualidades já examinadas em outros textos por mim escritos; são eventos em continua atualização. O fato de apresentarem material científico do reino da nanociência altera a percepção qualitativa; aí podemos aplicar o que estamos tentando registrar sobre a percepção nesse domínio. Tem relevância a união imagem/ informação e o conhecimento adquirido sobre a matéria científica. O que vemos alia a técnica à informação que está sendo divulgada. O sistema perceptivo humano está integrado ao das máquinas (microscópio e computador), o que leva a experiência além da conhecida interligação homem/computador. Como máquinas inteligentes, elas recebem e decodificam informação, neste caso, advinda de um universo no qual nunca poderemos penetrar, embora nós mesmos estejamos dentro dele. As qualidades da matéria, alteradas na escala nano, só podem ser sentidas em nós e por nós nessa mesma escala. De como virá a ser a percepção dessas prováveis alterações, ainda não temos conhecimento. Nossos sistemas perceptivos serão transformados? O mais provável é que as alterações ocorridas em escala molecular sejam percebidas no todo do ser humano como tal, ou, por meio de próteses. Com o correr do tempo, é provável que incorporemos as informações oriundas dessas próteses em transformações moleculares. Com um feixe de elétrons incorporado a um sistema perceptivo, ou ao conjunto deles, talvez possamos detectar a superfície da matéria em escala nano. Por hora, isso só ocorre no microscópio, sem que possamos senti-lo a não ser visualmente por tradução digital. É necessário trazer outra abordagem: a de que a experiência com novos materiais com propriedades e comportamentos alterados pela escala nanométrica, irão construir a percepção de um mundo novo. Nele, surge a necessidade de explicações consideradas “mágicas”, pois ainda em busca de uma narrativa. Ascott vai em busca de uma nova organização dos sentidos, instaurando nos sentidos de segunda ordem o sistema tecnoético. A união do digital, do somático, do farmacêutico e do nano, para atingir estados e psíquicos e uma compreensão espiritual. Para ele, atualmente, nós vivemos em uma realidade variável onde o real, o virtual e o espiritual estão fundidos sincreticamente. Isso detona “uma presença variável. Uma presença física no ecospace, uma presença aparicional no espaço espiritual, uma telepresença no espaço ciber e uma presença vibracional no nanoespaço.” A percepção alterada, no que ele chama de sistema nanoético, que inclui a realidade sincrética onde está arrolada a coerência quântica como construtora do mundo, deve atingir diferentes graus da que, em geral usufruímos, e possivelmente chegar à percepção da presença do vibracional nanométrico. Em um mundo composto por um complexo de realidades variáveis, “todos estados são transientes e todas as fronteiras permeáveis”. (Ascott, 2009). Ascott traz “a teoria quântica de campo como a que define que um 44 ART organismo vivo está conformado com a compreensão da mecânica quântica quando afirma que a realidade material forma um todo indivisível que não tem partes. A visão redutivista do mundo na física clássica tem que dar lugar à compreensão na mecânica quântica da importância primordial do todo inseparável e da interconectividade dentro do organismo assim como entre organismos, e a do organismo e seu ambiente”. (2006, p. 74). Trago as idéias de Ascott sobre o mundo nano por definirem uma nova forma de consciência possível, resultante de sua experiência. Julgo serem importantes porque configuram o estado espiritual, por nós ligado à experiência do mágico na nanociência. Seria necessário aprofundar essas idéias, o que infelizmente não é possível neste texto. Na física quântica, lembremo-nos da importância do experimentador na experiência . Sistemas perceptivos Quero ligar a idéia de interconectividade entre organismo e ambiente aos últimos escritos de James Gibson, The Senses Considered as Perceptual Systems, (1966) e The Ecological Approach to Visual Perception, (1979). Julgo que a visão de Gibson sobre percepção alterou em vários pontos a visão tradicional e tem vários pontos de concordância com a fenomenologia de Maurice MerleauPonty; pode gerar um diálogo com a de Ascott apresentando duas maneiras de apreensão da realidade, uma antes, e outra dentro da cultura digital. Segundo Gibson (1966, p.1), os sentidos não são simplesmente canais de sensação, mas também captadores de informação, e por isso deveriam ser chamados de sistemas perceptivos, os quais são responsáveis pela informação; eles são fontes de conhecimento. Os órgãos, canais de sensação são fontes de qualidades conscientes. Eles têm uma dupla função – de nos fazer sentir e de nos fazer perceber. Gibson livra-se da antiga fórmula de estímulo-resposta para oferecer uma de informação sobre o ambiente onde se dá a percepção. Ele oferece um novo sistema de “óptica ecológica, onde não é só a luz que estimula os receptores mas a informação contida na luz que pode ativar o sistema”. (Gibson, 1979 p. 2). Essa informação une percebedor ao ambiente. A percepção seria então a concepção e crença que a natureza produz por meio dos sentidos. “Os cinco sistemas perceptivos se sobrepõem, eles não são mutuamente exclusivos” (Gibson, 1966, p.4). Mais adiante, ele declara a existência de “quatro sistemas perceptivos que trabalham em uníssono: o sistema básico de orientação, o sistema háptico, o sistema gosto-cheiro e, o sistema visual, o qual combina com os outros todos e se sobrepõe a todos eles ao registrar fatos objetivos... ele registra certas informações que nenhum outro registra, tais como a cor dos pigmentos das superfícies” (Gibson, 1966, p.52). A informação sensorial, quanto ao conjunto de sistemas perceptivos é redundante, podendo ser considerada como acumulativa. 45 ART Na cultura e na arte ocidental parece haver um consenso sobre a classificação dos sentidos em primários e secundários, sendo os primários – a visão, a audição -, e mesmo pensadores contemporâneos como Diaconu na estética seguem essa classificação. Para ela, o tato, o cheiro e o gosto estariam entre os sentidos secundários por não poderem produzir arte, “porque lidam com estímulos efêmeros e consomem seus objetos” (on line, acessado em junho de 2011). Entretanto, ela admite que as artes transitórias como a dança, o teatro e a música são excepções, às quais nós acrescentamos as animações digitais. Estas últimas são um evento, um fluir contínuo de tempo e espaço, um eterno devir. Na arte, ao procurar apoio para a percepção multisensorial, encontrei o texto de W.T. Mitchell (2007, p.400) que clama pela não-existência de um sentido em estado puro assim como a especificidade de uma mídia em organizá-los; “... não existe uma mídia visual”. Mitchell, nesse texto, faz uma profunda análise do sentido da visão e de como ele tem sido visto e interpretado em séculos de cultura. O que importa aqui é a afirmação de que a própria visão se completa na linguagem descritiva, da qual, temos consciência na arte, principalmente na pintura. Há também a sempre presença da sensorialidade tátil. Ele oferece uma tentativa de percepção da multisensorialidade, mediante certa proporção de atividade de cada sentido na experiência perceptiva, nas diferentes mídias, e ainda acrescenta que além das diferentes mídias serem a expressão dos sentidos elas são “operadores simbólicos e semióticos complexos de funções sígnicas”. Apresenta a tríade elementar de Peirce - ícone, índice e símbolo, como não existindo em estado puro. P.400. O cientista da nano, James Gimzewski, afirma o desaparecimento das fronteiras entre o real e o virtual na nanotecnologia pelo uso comum da tecnologia entre as várias formas de conhecimento; ele chama a atenção sobre a dificuldade de colocar em narrativa as experiências na nanotecnologia e sobre a necessidade de “tomarmos conhecimento das metáforas que estão sendo geradas”, (2008, p. 56). Gimsewski e a artista Victoria Vesna, com trabalho conjunto no SCIArt Laboratório da UCLA buscam introduzir, ao mesmo tempo, uma formação mista dos dois campos do conhecimento o que deve gerar uma nova maneira de pensar e de se perceber o mundo. Os dois partilham, em alguns momentos, as idéias de Ascott sobre a espiritualidade no universo multidisciplinar da tecnologia. Na minha maneira de ver, a instalação dos dois, Blue Morph, já mostrada em uma versão, no Museu de Arte Brasileira, na exposição: Nano: Poética de um mundo Novo, 2008, com minha curadoria, é um lídimo exemplo. Ela tem corrido o mundo com várias versões muito esotéricas. Obra: Tecendo o Tempo ou Sendo Tecida pelo Espaço Esta minha instalação faz parte de um conjunto de obras que tem por assunto amostras de uma árvore petrificada colhida em Mata, RGS; um Ypê 46 ART e sua semente. Nesta obra, as amostras são da árvore petrificada, varridas no microscópio de força atômica, que se tornam atuantes, dentro do universo poético, em três animações digitais em 3D; elas conservam a percepção tátil da topografia gerada pelos microscópios. Enfatizando a percepção tátil e háptica, duas das animações são projetadas sobre um tapete texturizado, detonadas pela movimentação interativa das pessoas ao rolarem sobre o tapete, ora uma, ora outra, segundo a área atingida. Elas guardam a característica de tecitura de animações renderizadas em wire frame. Outra animação é vista sobre a parede fronteira, anexa ao tapete, esta renderizada. Apresento Tecendo o Espaço como uma incursão viva ao campo de pesquisa deste trabalho; ela pode ser considerada como uma obra duplamente híbrida, no sentido de ligar o real com o virtual, ao fazer a reconsubstancialização da imagem nano na sua projeção sobre o corpo humano. O que quero dizer é que a representação da escala nanométrica na imagem passa a fazer parte da nossa escala ao ser projetada sobre o corpo, assim assumindo seu tamanho. Ela visa “vestir”, o que significa ter a mesma escala do que é vestido. Sendo vestimenta ela passa a ser tátil, háptica, sendo para o interator visível em partes incompletas, aliás, como toda percepção o é do todo. Para o fruidor da instalação ela gera um conjunto interativo e imersivo, alia a visão à performance. A percepção é multisensorial. Toda a ambience visa um conjunto perceptivo que transcende a pura experiência física a facilitar uma imersão no encanto e magia da nanoarte, o de poder experimentar o universo em uma escala em que é possível construir um novo mundo a partir de átomos e moléculas. O artista, atualmente, busca dar forma e presença a um corpo e a um mundo do qual só temos a percepção intuitiva e no qual somos formados a partir da complexificação da molécula. Nas palavras de Ascott, (on line, 2009) esse mundo “desenha nosso próprio Dasein, e onde, nosso sentido de Ser e de Tempo estão mudando... de nossa base no nano campo podemos construir muitos mundos e desenhar múltiplas realidades. Nós habitamos um espaço-fase, em um tempo não-linear.” (Ascott, 2009). O fluir constitutivo e as qualidades imagéticas das animações digitais são elementos básicos à atualização do sincretismo apregoado por Ascott gerado pela mídia, que “ transita o espectro do seco e do úmido, do natural e do artificial, incorporado e distribuído, tangível e efêmero, visível e oculto”. (Ascott, 2009). As Imagens das Animações As imagens na animação introduzem uma paisagem que, embora desconhecida anteriormente, assemelha-se às topografias geo e às estelares, como se todo o universo fizesse uma reordenação de formas para se constituir. Embora na escala nano, ainda não se encontram dentro da escala molecular, aqui varridas pelo microscópio de força atômica; no de tunelamento, aí sim, poderemos ter a organização atômica de cada elemento, o que os torna individualizados e passíveis de uma reorganização. Esse microscópio existe no Brasil no INMETRO, 47 ART Rio de Janeiro. Meus contatos científicos atuais são com os Laboratórios da Física USPSP e São Carlos, Nanobiologia da UnB e recentemente com o Centro de Microscopia Eletrônica, na Física da UFRGS. A obra procura uma conectividade entre a coerência cultural, a quântica e a espiritual, que seriam a base de um novo desenho de campo, segundo Ascott (2009). Nela, a ciência, a arte e a tecnologia juntas, visam gerar novas maneiras de comportamento e de comunicação. Essas experiências se dão nesse espaço sincrético incluindo o espaço mítico, onde o espaço e o tempo estão demarcados e uma repetição contínua desses elementos acontece pelo looping do vídeo. Seguindo minha dissertação de mestrado Espaços Rituais do Arquétipo do Feminino na Arte Contemporânea, (ECAUSP), uma das funções desse arquétipo é o de abrigar, o que, se atualiza aqui pelo vestir virtual do interator pelas imagens da animação digital constituída por interpretações da nanociência. Na instalação, as imagens científicas são tratadas no Blender para conseguir um objeto em bitmap que possa se constituir no sujeito-ator da animação. O conteúdo mágico-poético remodela a experiência científica. As imagens são retrabalhadas com a liberdade estética. Fim É sempre difícil analisar intelectualmente uma obra de arte principalmente, quando ela é de nossa autoria, pois o que predomina no ato criativo é a imaginação e a intuição, com conotações quase sempre impossíveis de ser traduzidas verbalmente. Na nanoarte, isso ainda se torna mais difícil pelo caráter fluido, ambíguo e impreciso do comportamento do átomo e das moléculas, o que é uma constante na nanociência, e que, quando atualizadas em imagens, tornam-se conformadas e imutáveis. Quando esse campo de conhecimento é traduzido por poética em tecnologia digital, tudo se complica por abranger qualidades e ações próprias de dois pares:o real e o virtual, a ciência e a arte e as duas com qualificações determinadas e determinantes. Entretanto, o que torna possível é o uso da mesma linguagem e da nossa consciência multilinear e de espaços híbridos, onde é possível construir uma realidade sincrética. Ascott acrescenta em suas considerações a participação mística quando não é mais possível distinguir-se o objeto de nós mesmos. Antes dele, Carl Jung, na psicologia profunda, apresentou a alquimia, como um processo importante na individuação, a qual comumente é vista de maneira semelhante à nanotecnologia pela busca de transformar os materiais, mas que é de fato uma ligação para a transformação espírito-matéria. A participação mística para Jung é uma relação profunda entre o sujeito e a matéria desenvolvendo um caráter numinoso (transcendente), onde se formam os símbolos. A magia na nanoarte pode estar incluída nessa participação. Neste texto, esperamos fazer vislumbrar algo que resulta de nossas elucubrações, sobre Gibson, Merleau- Ponty e Ascott e porque não Carl Jung, pois, todos eles têm tido uma forte influência em minha maneira de pensar e de sentir. Na análise dos textos de Ascott, encontrei um exemplo das mudanças perceptivas que poderão ocorrer no mundo da tecnologia. Meu trabalho de arte, contudo, foi criado antes dessa análise, podendo ser um exemplo do que ele 48 ART apregoa e, não, fruto disso. Encerro com uma frase de Jung sobre a arte:“ela ocupa-se de processos criativos que o intelecto pode descrever, mas que só a experiência vivida pode entender”. (1970, p. 608) Referências ASCOTT, Roy. “Ontological Engineering: Connectivity in the Nanofield”. In Engineering Nature. Art and Consciousness in the Post_Biological Era, edited by Roy Ascot, Intellect: Bristol, UK, Portland, OR, USA, 2006, pp.69-76. BARROS, Anna. A Arte da Percepção. 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Pesquisa atual: nanoarte. anna [email protected] 49 ART Interação, criação e agência Cleomar Rocha 1 Resumo: O artigo discute o papel do interator - usuário de um sistema interativo - e sua relação com o ato criativo, a criação e a agência destes ambientes, a partir da abertura da obra de arte e dos próprios sistemas computacionais interativos. Conclui que a atividade do interator é de agência, em sua maior parte, não cabendo identitificá-lo enquanto cocriador da obra. Palavras-chave: interator, cocriador, agência, mídias interativas, interfaces afetivas. Abstract: This article discusses the role of the interactor – the user of an interactive system – and his relationship with the creative act, the creation and agency of this environment. It concludes that the activity of the interactor is the agency, and no the co-creator of the work. Keywords: interactor, co-creator, agency, interactive media, affective interfaces. A despeito de uma série de falas que apontam o interator como sujeito co-criador dos trabalhos em arte interativa, face a característica da obra de ocorrer somente a partir da ação direta do chamado interator, o artigo problematiza tal concepção, buscando referências na noção de receptor, na teoria semiótica e nos conceitos de abertura da obra de arte, em Eco (1976), e de agência, em Murray (2003). Busca-se compreender a exata atuação deste agente fruidor que não está mais convocado a contemplação, mas a os acionamentos para fazer ocorrer a obra, torná-la atualizada nos meios computacionais. O interator A base da interatividade é a agência, o acionamento, a ação executada pelo usuário, chamado usuário, interator ou interagente. O usuário dos sistemas computacionais, independentemente da rotulação ou categorização do sistema interativo - se arte, game, website, etc. - é o responsável pelo acionamento do sistema, a partir da manipulação de elementos das interfaces ou mesmo pela inserção de dados, sempre possibilitado por uma interface do sistema. Acionamentos são também reconhecidos como dados pelo sistema, que o processa, realizando uma ação de sistema, que pode retornar para o usuário ou realizar uma ação interna, como gravar um dado, por exemplo. Sem uma ação inicial do usuário o sistema não responde com outra ação, não executa qualquer função, à exceção dos sistemas autogeridos ou daqueles de acionamentos não humanos. Mesmo quando o usuário não realiza uma ação ciente de que o fez, o sistema pode ser acionado, como ocorre com a computação pervasiva. 50 ART Todo sistema interativo, neste sentido, realiza uma ação a partir de um dado inicial provocado pelo usuário. O usuário, como o nome já o diz, é o sujeito que usa o sistema, não aquele que o cria ou o desenvolve, não se confundindo com o criador ou desenvolvedor deste sistema. Isto significa dizer que todo sistema interativo depende de um usuário que o acione. Os aplicativos computacionais são interativos. Se eu não acionar as teclas para produzir um texto no Word, ele não executará a tarefa de gerar os caracteres sequenciados na ordem em que o eu determinei. O fato de eu ter acionado, contudo, não me faz autor do Word, mas do texto produzido. O fato de eu, na condição de usuário, ter definido uma ordem de lexias – unidades mínimas do sintagma -, não me faz autor das lexias, mas de sua ordenação, do percurso que eu escolhi fazer. Em última instância estamos defendendo que o interator ou interagente é um usuário, o usuário de sistemas interativos. Avancemos em nosso raciocínio, buscando ampliar um pouco mais a noção de usuário enquanto agente. Shannon, ao conceber a Teoria da Informação, estabeleceu como receptor o sujeito que recebe a o código e o decodifica, alcançando a mensagem original. Neste aspecto o receptor não sofre a ação comunicacional, mas a exerce, enquanto sujeito da ação de receber, de ser afetado pela comunicação. Há, necessariamente, o reconhecimento da ação, que por si é uma ação. Um objeto jamais será um receptor de informação. A teoria semiótica traz, em Peirce, o fundamento da terceiridade, que é o interpretante, que reforça a ideia de que o receptor, ou intérprete nesta concepção teórica, é agente e não paciente de uma ação. O intérprete gera os interpretantes, mediante a afetação que os signos causam nele, acionando a semiose. A interpretação é o resultado enquanto ação que desvela e cria sentidos. Dito de outro modo, é equivocado pensar que o receptor é um elemento paciente, que não executa ação alguma, apenas acolhe, indistintamente, signos ou outros elementos que o afetam. O leitor, como já o disse Ricoeur (1994) cria elementos mentais que dão vida aos signos. Ele, leitor, os vivifica no ato, ação de ler. Um livro, um texto, jamais acionará alguma coisa se não for lido. E ler é posicionar-se enquanto receptor. Neste sentido um texto terá o mesmo efeito que um sistema interativo sem seu leitor ou usuário: nenhum. E se o fato de ler não torna o leitor o autor ou co-autor, não haveria motivos de dizer que o usuário de um sistema interativo se torna autor ou co-autor, apenas por realizar o que lhe cabe, o acionamento do sistema, por mais complexo que ele seja. Certamente disciplinas como Análise do Discurso e todas as hermenêuticas depõem favoravelmente no sentido de que os signos não são completos em si, mas precisam de interpretantes que o vivifiquem, gerando uma gama possível de sentidos. Sem um leitor que acione os signos, um texto será tinta sobre uma superfície. Um trabalho interativo simplesmente não será, como um texto não lido também não será. Aberturas A alteração percebida dos sistemas sígnicos ditos prontos para os interativos - como um texto e um hipertexto, por exemplo - está em 51 ART sua ordenação, linear e não alterável no primeiro caso e multilinear, intercambiável, no segundo caso. Os sistemas hipertextuais exigem uma ordenação sintática, visto que ele se apresenta como uma gama de possibilidades. A ordenação sintática, neste caso, é um nível maior de abertura do trabalho, visto que caberá ao usuário, além de ler, juntar as peças. A polifonia do trabalho pode, embora não seja uma consequência direta, ampliar as possibilidades de sentido ou afetação, uma vez que poderá ser ordenado de duas ou mais formas. Entretanto, ainda que o seja, o exercício de ordenação foi comandado e definido pelo autor. Se ele escolhe dez ou mil lexias para um usuário ordenar, este mesma gama de possibilidades já foi definida, e mesmo a ação de ordenação, que cabe ao usuário. Ainda que a ordenação seja de número muito alto, ainda assim foi esta a proposta do autor, cabendo ao usuário seguir a ordem dada, e não elaborar novas ordens. Queremos dizer com isto que o usuário, ao jogar cartas, por exemplo, seguindo regras do jogo, não passa para a condição de co-autor do baralho ou do jogo, mas a jogador, por maiores que sejam as possibilidades de resultados e emoções possibilitadas pelo jogo. O fato de ele embaralhar as cartas e ter como resultado final uma gama de jogadas, muitas vezes sem precedentes, não o torna nada além de jogados, aquele que segue regras para alcançar resultados distintos a cada jogada. E se assim o é, porque nominar coautor o usuário de um sistema interativo? Ele igualmente não está seguindo as regras estabelecidas pelo autor? E se de outro modo fosse, se de fato sua atividade fosse de co-autor, não caberia a ele, a partir de então, registrar-se como co-autor do trabalho, figurando ao lado do autor, inclusive reivindicando sua cota de direito autoral? Ora, não é exatamente isto que ocorre com os trabalhos em mídias interativas. A fala de abertura e participação que são tão caras a alguns autores, não são mantidas na própria abordagem dos trabalhos, muitas vezes descritos antes de qualquer participação ou interação, negando a própria condição de não ser antes de uma atuação de usuário. Vários trabalhos em arte interativa, por exemplo, são descritos e apresentados em sua condição de possibilidades, e não de execução ou pós-execução, ainda que se diga que os trabalhos não possuem sua completude antes de um processo interativo que o acione. As aberturas dos trabalhos repousam, como afirma Eco (1976), em sua compreensão, interpretação, por serem abertos a elas. Em trabalhos participativos e interativos, a manipulação e interação podem ampliar esta condição do usuário, tornando-o responsável também por definir um percurso específico, nos vários percursos possíveis. Todavia, este será um percurso. Criação e cocriação O ato da criação é definido por fazer surgir algo, seja material ou mental. Um objeto tem um autor, tanto quanto um conceito ou uma palavra também o tem. A criação não está restrita a execução de um trabalho, mas basicamente em sua idealização, antes mesmo de ser executada. Certamente Duchamp não criou o urinol que denominou de fonte, mas 52 ART foi seu gesto que fez de um objeto utilitário um ícone da Arte. Assim, a autoria não está somente contemplada pela construção objetual, mas pelas articulações de sentido criadas a partir dele. Criar é mais que fazer existir um objeto. Caminhando, de Lygia Clark, é um conjunto de instruções e não uma peça. A peça é feita por cada um que queira experienciar o trabalho da artista. Ainda que alguém execute o trabalho e o experiencie, ainda assim Caminhando será de autoria de Lygia Clark, e não de quem executou o trabalho. Cocriação é a criação conjunta, portanto que resulta no trabalho a ser apresentado, seja na condição de sintaticamente concluído, seja na condição de instruído ou dado a manipulação ou interação. O cocriador não é aquele que executa uma atividade determinada pelo autor, mas sim aquele que constrói com o autor as regras de sua execução ou criação. O cocriador não é o jogador, mas um dos autores do jogo. Dito de outro modo, o uso de sistemas interativos, por mais complexos que eles sejam, não se equipara a determinação de regras sobre as quais o sistema opera. Soa forçosa a aproximação do usuário com o autor do sistema interativo. Ademais, ser usuário não desqualifica o sujeito que opera o sistema, fazendo-o ativo, do mesmo modo que ser receptor não desqualifica intelectualmente aquele que ativa a semiose, que a completa. Pelo contrário, emissor e receptor, autor e leitor, artista e público são peças-chave para que o processo comunicacional se complete. Ainda que não se confunda criação, cocriação e recepção, não há se de observar tais termos de modo preconceituoso ou como medida de valor. Sem qualquer um destes sujeitos, o trabalho não acontece, não é, como aponta a fenomenologia (MERLEAU-PONTY, 1999). Talvez o incômodo com o termo receptor tenha sido construído com a comunicação de massa (SANTAELLA, 1996), que potencialmente restringe a ação do receptor, na medida em que sua construção ocorre em meio a milhares de outros receptores, sendo sua competência hermenêutica individual não considerada, a não ser que ela se equipare a de outros milhares, perfazendo um índice majoritário da assistência. Entrementes, ainda assim, o exercício é realizado. E na cultura digital superamos esta fase, a da cultura de massa, no que a digressão acerca do receptor pode, e deve, ser também superada, retomando sua importância original, seu papel de fundamento da comunicação, no plano individual. Agência Janet Murray (2003) denomina agência a ação realizada por usuários de sistemas interativos. Segundo a autora, o fato de ordenar elementos pré-determinados segundo regras igualmente determinadas não se confunde com autoria ou coautoria. Esta atividade de ordenação sintática ou acionamento de sistemas interativos é uma agência. O usuário agencia os elementos disponíveis, segundo as regras estabelecidas pelo autor, executando o que foi por este concebido. Neste aspecto havemos de compreender o termo interagente como o sujeito que agencia elementos interativos. O prefixo inter, neste 53 ART caso, apenas situa o agente em relação aos elementos agenciados, os interativos, não o caraterizando de outro modo. Ocorre, contudo, que a ação não é denominada interagência, mas apenas agência, no que resultaria correto afirmar que o sujeito desta ação seja denominado agente, e não necessariamente interagente. Questões linguísticas à parte, os termos interator e interagente têm sido bastante usuais na nominação do sujeito que aciona os sistemas interativos, estabelecendo uma relação de sinonímia, embora o segundo termo esteja mais afinado com a ação executada pelo sujeito. Importa, em última instância, o reconhecimento de que agenciamos sentidos, enquanto receptores, em um exercício hermenêutico intenso e fundamental, mesmo quando nos deparamos com signos ordenados linearmente. A ação do receptor não é ser afetado, em uma construção passiva, mas disparar os interpretantes a partir destes estímulos externos, códigos, signos, ambientes, sistemas interativos, permitindo e organizando a geração de sentido, em uma elaboração fenomenológica e, portanto, dialógica, entre o ser e o mundo. Se o sentido não repousa nos signos nem no sujeito, é na interação destes elementos, tornados um fluxo, que o exercício hermenêutico, semiótico, se faz ver. Palavras finais Vários autores advogam que a nova ordem dada pelos sistemas interativos recria o papel do receptor, que enquanto responsável pelo ordenamento dos elementos, em padrões sintáticos definidos, passa a assumir o papel também de criador. Admitimos que ele seja autor de seu percurso, como o é em uma leitura, na montagem de um quebra-cabeças, em uma partida de jogo de baralho, na escritura de um documento em um editor de texto. Mas certamente esta ação não o torna autor ou coautor do texto, do quebra-cabeças, do baralho ou do jogo, ou do editor de texto. Ele é o usuário, elemento sem o qual o sistema, qualquer que ele seja, não é acionado ou agenciado. Será preciso despir de uma concepção equivocada de que o receptor é menos importante que o emissor para compreender que sua ação não é menos valorosa. Emissor e receptor são elementos fundamentais para o processo comunicacional, inclusive usando os meios computacionais interativos, não sendo necessário construir outro deslize conceitual de que o interator ou interagente passa a ser um coautor ou cocriador, senão de seu próprio percurso, como ocorre a todo momento. Referências ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1976. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999) 54 ART MURRAY, Janet H. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Trad. de Elissa Jhoury Daher, Marcelo Fernandez Cuzziol. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 1), Trad. Constança Marcondes Cesar. São Paulo: Papirus, 1994. ROCHA, Cleomar. Da imanência ao inacabado: estéticas comunicacionais e interatividade na arte tecnológica. Tese de doutorado defendida na Faculdade de Comunicação / FACOM. Salvador: UFBA, 2004. . Interfaces cognitivas. Exposição instinto computacional. Org. Suzete Venturelli. Brasília, 2009. . Metáfora, metonímias e outras velhas figuras de linguagem na poética tecnológica. Org. Suzete Venturelli. Brasília, 2009. . Pontes, janelas e peles: contexto e perspectivas taxionômicas das interfaces computacionais. Relatório de estágio de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, PUCSP. São Paulo: 2009. . Interfaces computacionais e experiência sensível. In Anais do 19º Encontro Nacional da ANPAP – Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Cachoeira: Bahia, 2010. SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996. 1 Pós-doutor em Estudos Culturais (PACC-UFRJ), pós-doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD-PUC-SP), doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (POSCOM-UFBA), mestre em Arte e Tecnologia da Imagem (IdA-UnB). Docente do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual. 55 ART Posthuman Tantra: BioCyberShamanism Uma Performance Multimídia Cíbrida. Edgar Franco1 Resumo: Este artigo apresenta o processo criativo das performance multimídia cíbidra “BiocyberShamanism” da banda Posthuman Tantra, capitaneada pelo artista multimídia Edgar Franco. Destaco o universo ficcional transmídia da “Aurora Pós-humana”, contexto de geração da performance - inspirado por possibilidades futuras dos avanços da tecnociência e por uma possível emergência transumana, além de aspectos tecnognósticos desse futuro hipertecnológico. Finalmente detalho os aspectos estéticos e desenvolvimentos tecnológicos presentes na performance que utiliza-se de recursos multimídia tradicionais e outros contemporâneos, como vídeos, mágica eletrônica e aplicações computacionais em realidade aumentada (RA). Palavras-chave: Performance, Arte e tecnologia, Pós-humano, Ficção Científica, Música Eletrônica. Abstract: This paper presents the process of creation of the multimedia performance “BiocyberShamanism” of the band Posthuman Tantra, leaded by the multimedia artist Edgar Franco. It underlines the fictional transmedia universe known as Posthuman Dawn that is the background context for creation of this performance and was inspired by possible future advances of technoscience, the possible transhuman rise and technognostic aspects of such hypothetical future. Finally, it also details aesthetic aspects and technological developments present within that performance, which uses traditional multimedia resources and other contemporary ones such as videos and the use of augmented reality (AR). Keywords: Performance, Art and Technology, Posthuman, Science Fiction, Electronic Music. Posthuman Tantra é um projeto musical transmídia, com músicas eletrônicas e digitais que sofrem influências de gêneros musicais como o psicodélico, o sci-fi, o dark, o industrial e o ambient. O projeto foi criado por Edgar Franco em 2004. No princípio a música do Posthuman Tantra surgiu para funcionar como trilha sonora do universo ficcional transmidiático da “Aurora Pós-Humana” – admirável mundo novo baseado na fusão entre DNA & Silício, com novas criaturas que mixam humano, animal, vegetal e máquinas. A música e os conceitos que engendram os aspectos estéticos e ficcionais do projeto são influenciados pelas idéias de pensadores como Robert Anton Wilson, Terence MacKenna, Buckminster Fuller, Teilhard de Chardin, Aldous Huxley, Madame Blavatsky, John C. Lilly, Timothy Leary, Giordano Bruno, John Dee, Rupert Sheldrake, Ken Wilber, P.K.Dick, Crowley, Stanislav Grof, Ray Kurzweil, Hans Moravec, Vernon Vinge e também pelas criações de artistas envolvidos com novas tecnologias e reflexões sobre o pós-humano: Orlan, H. R. Giger, Mark Pauline, Natasha 56 ART Vita More, Stelarc, Roy Ascott, Diana Domingues, Eduardo Kac, David Cronenberg, Enki Bilal. Reflexões tecnognósticas e a busca de aspectos transcendentes em um contexto hipertecnológico também compõem o espectro conceitual das músicas e performances da banda, o que envolve investigações sobre movimentos como The Extropy, Transhumanism & Immortalism. Edgar Franco - o criador do projeto, é arquiteto pela UnB, mestre em multimeios pela Unicamp e doutor em artes pela ECA/USP; ele estuda as perspectivas pós-humanas nas ciberartes - uma pesquisa sobre artistas controversos como os já citados Kac, Orlan e Pauline, entre outros. Franco é também artista multimídia com várias criações que vão de histórias em quadrinhos, ilustrações para revistas e capas de CDs, poesia visual, música, chegando a trabalhos de web arte como “NeoMaso Prometeu” que recebeu menção honrosa no 13º Videobrasil - Festival Internacional de Arte Eletrônica. O Posthuman Tantra pretende ser um casamento constante entre as criações visuais de Edgar Franco, o universo da música eletrônica e das performances multimídia. Desde sua criação o Posthuman Tantra já participou de dezenas de compilações em 3 continentes e lançou álbuns em parceria com a banda francesa MELEK-THA, além do álbum de estréia “Pissing Nanorobots” (2004) e dos dois álbuns oficiais, “Neocortex-Plugin”(2007) e “Transhuman Reconnection Ecstasy (2010), lançados pela gravadora Suíça Legatus Records, com quem a banda tem um contrato para o lançamento de mais 2 álbuns. A banda tem recebido resenhas positivas em importantes veículos da área de música eletrônica como a revista Judas Kiss da Inglaterra, o site bielorusso The Machinist (em que “Pissing Nanorobots” recebeu nota 9) e na revista brasileira Rock Hard Valhalla (a qual incluiu entrevista e resenha de “Neocortex Plug-in” – também com nota 9). Em 2010 o Posthuman Tantra lançou por sua gravadora, A Legatus Recs (Suíça) seu segundo fulllenght “Transhuman Reconnection Ecstasy”, com excelente repercussão na mídia especializada, também em 2010 a banda iniciou suas performances multimídia ao vivo, estreando nos palcos em junho durante o Woodgothic Festival II, em São Thomé das Letras (MG), o festival é considerado um dos mais importantes da cena gótica brasileira e reuniu também atrações internacionais. A recepção à apresentação do Posthuman Tantra foi muito calorosa pelo público presente que destacou o aspecto inusitado do show multimídia apresentado. Logo depois, ainda em junho, a banda se apresentou no III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual da UFG, a apresentação, que lotou o auditório da FAV - Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, além dos vídeos e efeitos em realidade aumentada contou com a participação exclusiva da performer Aline Bueno. Em novembro de 2010 o Posthuman Tantra se apresentou no Museu Nacional, em Brasília, durante o 9# ART - Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. O público da apresentação foi pequeno, mas seleto, pois incluía alguns dos mais importantes artistas e pesquisadores da arte tecnologia no Brasil. A apresentação contou com os integrantes do Grupo de Pesquisa Criação e Ciberarte da UFG, e foi selecionada pela curadoria da exposição EmMeio#2 para integrar o evento. Também em novembro o Posthuman Tantra se apresentou no 16º 57 ART Goiânia Noise Festival, um dos festivais independentes mais importantes do país que em 2010 contou com atrações do calibre de John Ulhoa (Pato Fu), Musica Diablo ( banda de Derrick Green do Sepultura), Otto, Cólera, Krisiun, The Mummies, Macaco Bong & Gilberto Gil. Além dos habituais vídeos e efeitos em realidade aumentada coordenados pelos VJs Gabriel Lyra Chaves e Luciana Hidemi Nomura, a apresentação do Posthuman Tantra contou com a participação de dois performers convidados, Thaís Oliveira e Flávio Takeshi, que criaram uma performance exclusiva para o evento. Em dezembro o Posthuman Tantra se apresentou no evento 10 Dimensões da Arte e Tecnologia na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa. Evento acadêmico organizado pelas universidades UFRN, UFPB e IFRN, com patrocínio da CAPES e MINC - Programa Pró-cultura. Em janeiro de 2011 o Posthuman Tantra se apresentou pela primeira vez em Ituiutaba, Minas Gerais, cidade natal de Edgar Franco, a apresentação aconteceu durante o evento Rock Fest 5 e contou com a participação especial da performer Julie Zombieraven. Em abril de 2011 o Posthuman Tantra apresentou-se na Universidade Estadual de Goiás, em Anápolis, durante o evento 1º Encontro de Quadrinhos da UEG. Em junho, durante o FAM – Festival Internacional de Arte e Mídia, em Anápolis, o Posthuman Tantra apresentou a primeira versão da performance BioCyberShamanism, incluindo um oitavo ato tendo como convidado especial o músico e performer Eufrásio Prates; em agosto de 2011 acontece a performance no 10#ART – Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, no Museu da República, em Brasília, desssa vez com a participação especial da performer convidada Rosangella Leote. Com essas apresentações o Posthuman Tantra reafirma a singularidade de sua proposta através de seu trânsito entre o universo da música independente - se apresentando em festivais alternativos, e o mundo acadêmico - marcando presença em eventos organizados por universidades e programas de pós-graduação em arte. A aurora pós-humana: Universo ficcional transmídia. A criação de universos ficcionais amplos com possibilidades de geração de obras em múltiplos formatos audiovisuais ganhou maior visibilidade a partir do surgimento da franquia “Guerra nas Estrelas” (Star Wars), em fins da década de 1970 e início da década de 1980. Com o passar do tempo personagens coadjuvantes da saga de George Lucas ganharam espaço em outros produtos como histórias em quadrinhos narrando outros aspectos da saga, desenhos animados, jogos de tabuleiro e computador que se somaram às tradicionais traquitanas e brinquedos ligados à série, despertando o interesse dos fãs para os diversos aspectos da história. O fenômeno midiático perpetrado pelo universo ficcional de “Guerra nas Estrelas” e o surgimento de narrativas em formatos diversos abarcando aspectos múltiplos da cosmogonia da saga pode ser caracterizado como um bom exemplo de narrativa transmídia, outro exemplo notório é a franquia Matrix (1999). Para o professor do MIT (USA) e estudioso das mídias Henry Jenkins (2009, p.138): Uma narrativa transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de 58 ART mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. A conceituação de Jenkins é abrangente, no entanto o autor está muito preocupado em tratar o fenômeno das narrativas transmídia como algo ligado ao mercado e ao consumo de produtos de entretenimento. Sua visão passa longe das chamadas perspectivas autorais da arte e como outros investigadores do fenômeno está ligada à ideia de franquia e indústria cultural mesmo numa perspectiva de convergência midiática. Sobre produtos transmidiáticos o autor emenda: Cada acesso à franquia deve ser autônomo para que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como um todo. A compreensão obtida por meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de experiência que motiva mais consumo. (JENKINS, 2009, p.138). Mais adiante Jenkins apresenta seu ponto de vista de que estamos “numa época em que poucos artistas ficam igualmente à vontade em todas as mídias” (2009, p.139), reafirmando sua crença no caráter compartimentado da geração de produtos de entretenimento da industrial cultural mesmo no contexto da chamada cultura da convergência. A questão importante para mim, enquanto artista interessado em desenvolver poéticas autorais desconectadas de uma obsessão mercadológica e consumista, é burlar essa perspectiva compartimentada das narrativas transmidiáticas no contexto da indústria cultural e tentar produzir trabalhos artísticos que utilizem as mesmas estratégias transmídia, mas com objetivos poéticos e de autoexpressão. O universo ficcional transmídia da “Aurora Pós-humana” - um work-in-progress desenvolvido por mim desde o ano 2000, e para o qual já realizei obras artísticas em múltiplos suportes - é o meu esforço pessoal de levar as narrativas transmidiáticas para o contexto da arte. Atualmente minha obra nas múltiplas mídias toma como base um universo de ficção científica que criei, a “Aurora Pós-humana”. São trabalhos que trazem em seu teor o chamado “deslocamento conceitual”, definido pelo escritor norte americano P. K. Dick (apud QUINTANA, 2004), pois desloco o tempo, a gnose e a tecnologia para um futuro hipotético para, na verdade, tratar de questões contemporâneas. A “Aurora Pós-humana” é um universo ficcional futurista criado por mim inspirado por artistas, cientistas e filósofos que refletem sobre o impacto das novas tecnologias: bioengenharia, nanotecnologia, robótica, telemática e realidade virtual sobre a espécie humana. Para sua criação também me inspirei no reflexo desses questionamentos na cultura pop, com o surgimento de filmes - eXistenZ, Matrix, 13º Andar, Gattaca, Avatar - e de seitas como as dos Imortalistas, Prometeístas, Transtopianos e Raelianos. Esses últimos, por exemplo, crêem na clonagem como possibilidade de acesso à vida eterna, nos alimentos transgênicos como responsáveis futuros pelo fim da fome no planeta, e na nanotecnologia e robótica como panacéia que eliminará 59 ART o trabalho humano, liderados pelo pseudo-guru Raël, um hedonista que constrói todo seu discurso a partir das previsões mais otimistas da ciência, baseando seu pensamento em afirmações messiânicas controversas. Mergulhado no estudo e investigação dessas polêmicas envolvendo os avanços tecnocientíficos, previsões e vivências, surgiu, ainda no ano de 2000, o germe desse universo poético-ficcional que posteriormente batizei de “Aurora Pós-humana”. A idéia inicial foi imaginar um futuro, não muito distante, onde a maioria das proposições da ciência & tecnologia de ponta fossem uma realidade trivial, e a raça humana já tivesse passado por uma ruptura brusca de valores, de forma - física - e conteúdo - ideológico/ religioso/social/cultural. Imaginei um futuro em que a transferência da consciência humana para chips de computador seja algo possível e cotidiano, onde milhares de pessoas abandonarão seus corpos orgânicos por novas interfaces robóticas; imaginei também que neste futuro hipotético a bioengenharia tenha avançado tanto que permita a hibridização genética entre humanos e animais, gerando infinitas possibilidades de mixagem antropomórfica, seres que em suas características físicas remetemnos imediatamente às quimeras mitológicas. Finalmente imaginei que estas duas “espécies” pós-humanas tornaram-se culturas antagônicas e hegemônicas disputando o poder em cidades estado ao redor do globo enquanto uma pequena parcela da população, uma casta oprimida e em vias de extinção, insiste em preservar as características humanas, resistindo às mudanças. Dessas três raças que convivem nesse planeta terra futuro, duas são o que podemos chamar de pós-humanas, sendo elas os “Extropianos” - seres abiológicos, resultado do upload da consciência para chips de computador - e os “Tecnogenéticos” - seres híbridos de humano e animal, frutos do avanço da biotecnologia e nanoengenharia, tanto Extropianos quanto Tecnogenéticos contam com o auxílio respectivamente de “Golens de Silício” – robôs com inteligência artificial avançada, alguns deles reivindicam a igualdade perante as outras raças e “Golens Orgânicos” – robôs biológicos, serventes dos Tecnogenéticos. A última raça presente nesse contexto é a dos “Resistentes”, seres humanos no “sentido tradicional”, raça em extinção correspondendo a menos de 5% da população do planeta. ByoCyberShamanism: Performance Multimídia do Posthuman Tantra As performances ao vivo do Posthuman Tantra são apresentações multimídia, contam com vídeos, aplicações computacionais e eletrônicas e ações artísticas exclusivas criadas por Edgar Franco em parceria com os integrantes do grupo de pesquisa CriaCiber – Criação e Ciberarte. Com relação aos efeitos computacionais em realidade aumentada (RA), eles dão um caráter cíbrido às performances pois criam “ambientes cíbridos que integram simultaneamente o real e o virtual” (LEÃO, 2004, p. 165), o Posthuman Tantra foi uma das primeiras bandas do mundo a usar esse recurso no palco. Nas apresentações da banda, além de VJs e performers convidados, Franco conta com o auxílio inestimável de sua esposa Rose Franco que toca teclados e controladores em algumas músicas. 60 ART Na performance multimídia cíbrida BioCyberShamanism agrega alguns novos elementos em relação às performances anteriores do Posthuman Tantra batizadas de CyberPajelança. Nelas o Posthuman Tantra leva para os palcos o universo ficcional da “Aurora Pós-humana”, somando à ambientação sonora digital múltiplos recursos audiovisuais com a intenção de simular um contexto pós-humano em que o performer Edgar Franco e seus convidados passam por rituais hipertecnológicos de transmutação em criaturas híbridas. BioCyberShamanism envolve fortes aspectos tecnognósticos e propõe aproximações entre transcendência e hipertecnologia, ao mesmo tempo que repudia a assepsia das imagens publicitárias que induzem ao consumo e à destruição da biosfera perpetrada pelas multinacionais auxiliadas pelas grandes agências publicitárias globais. O set básico da performance BioCyberShamanism é composto por 8 atos, os 7 atos presentes nas performances anteriores chamadas de CyberPajelança, e um oitavo ato sempre contando com um performer convidado. Os atos são estruturados sobre as músicas digitais que lhes dão nome e abarcam seus conceitos principais, a duração da apresentação tem variado de 35 a 45 minutos. A seguir descrevo aspectos estéticos e conceituais de cada ato. Ato I: The Omega Neocortex – Nessa música, acompanhada de um vídeo exclusivo, trato do possível surgimento de uma consciência planetária transcendente, uma hiperconsciência emergente formada a partir da conexão entre todas as consciências humanas, animais e vegetais, conexão a ser criada pelos avanços tecnológicos nos campos das redes telemáticas, nanorobótica e biogenética. Quando essa conexão global se completar surgirá então essa grande mente ômega, o neocortex ômega da Terra viva, Gaia. O conceito remete à ideia de Noosfera e Ponto Ômega de Theilhard de Chardin (1994, p.300). O vídeo investe em imagens simbólicas de base alquímica que metaforizam a emergência dessa hiperconsciência. Além disso, acontece uma performance simples em que Edgar Franco, que chega ao palco de terno e gravata – uniforme global dos líderes de multinacionais e de seus asseclas promotores de tecnologias ultrapassadas com o único objetivo de lucrar – vai aos poucos tirando a gravata, depois o paletó do terno e finalmente a camisa, revelando por baixo dele sua indumentária característica marcada pela presença dos tons negros – oposição à assepsia publicitária, e verde – referencia direta à busca de reconexão do homem com a natureza, assim como de plugues P10 ícones dessa reconexão que não nega a tecnologia mas sim os aspectos monetaristas que atravancam o avanço de tecnologias como as energias limpas e renováveis. Ato II: Little Bob’s New Toy - Sexual initiation with a multifunctional robot – Essa faixa fala de sexualidades emergentes e polêmicas no contexto pós-humano, ela traz a história de um mentor que compra para o seu pupilo um robô multifuncional para realizar sua iniciação sexual. Nesse caso um ciborgue substitui um humano nesse papel, reconfigurando o prazer e os desejos do jovem, gerando nele taras tecnofetichistas. Trata da indústria do entretenimento investindo maciçamente no sexo pós-biológico, na busca de prazeres instantâneos. O vídeo exclusivo criado para a performance é baseado em servomecanismos sexuais maquinico-orgânicos e conclui com a metáfora de sangue cobrindo a tela, representando a violência incontida do ato. Durante a música, Edgar Franco performatiza com gestos obscenos 61 ART a penetração em um robô multifuncional, essa é um dos momentos mais polêmicos da apresentação e que já resultou em pessoas abandonando a sala de espetáculo. Adiante tratarei detidamente desse assunto. Ato III: Os Mistérios Insondáveis – O conceito que engendra música e vídeo é o da dimensão inescrutável do homem e da existência, tudo aquilo que nós não compreendemos apesar de todos os avanços tecnológicos. Nesse caso o destaque é dado pelas coincidências, e o performer recita a letra de forma ritualística, ela diz “Ao mesmo tempo mil borboletas azuis pousaram sobre a testa de mil garotas virgens nos mais distantes pontos da Terra e ninguém percebeu. Os mistérios insondáveis das falsas coincidências.” Ato IV: Penetrating The Virgin Bioport – Este ato é inspirado pelo filme eXistenZ, do cineasta canadense David Cronenberg, no filme a bioporta é um novo orifício hipertecnológico, aberto na base da coluna vertebral no qual se conecta o console de um jogo de realidade virtual que é vivo, feito de partes de anfíbios transgênicos e alimentado pelo sangue do corpo do usuário. A performance enfatiza a erotização desse novo orifício, durante sua execução uma performer tem uma bioporta aberta em suas costas com o auxílio de um plugue P10, numa simulação que envolve um vídeo exclusivo, efeitos de mágica eletrônica e sangue artificial. Ato V: CyberPajelança – Este ato seria o ápice da performance, trata-se de uma música que evoca um clima xamãnico, de ritual de incorporação de totem ou uma pajelança. Nesse caso a faixa propõe conceitualmente um mix das realidades vegetais - o acesso a níveis transcendentes de consciência através do uso de tecnologias avançadíssimas ancestrais, os enteógenos, também chamados plantas de poder, como a Ayahuasca e o Psylocibe Cubensis – com as realidades virtuais, a criação de cosmogonias e mundos digitais visando também novas formas de expansão da consciência. Edgar Franco, com seu alter ego Oidicius, adota a figura de um cyberpajé que une as realidades vegetais às realidades virtuais na busca da transcendência. O performer incorpora um totem tecnomístico, pois durante a performance, na imagem do telão, através do uso de um efeito de realidade aumentada (RA), em tempo real, surgem serpentes que saem das costas do músico, tornando-o uma criatura híbrida pós-humana. O Posthuman Tantra é uma das primeiras bandas do mundo a utilizar efeitos de RA. Ato VI: Transhuman Werewolf’s Mutation – Esse ato propõe a reconexão do homem com a natureza através da incorporação de genética animal no organismo humano. Ao longo do desenvolvimento tecnológico dos dois últimos séculos o homem foi se afastando de sua percepção de que é um ente natural, apartando-se da natureza e das criaturas. A performance propõe a hipertecnologia da manipulação do código genético como um ouroboros, o processo de reversão pelo qual o homem voltará a reencontrar sua dimensão natural, pois ao incorporar a genética de um lobo que ainda vive de forma integrada com a natureza ele voltará a compreender sua conexão natural e cósmica. Na performance fazemos uso de efeito computacional de realidade aumentada e face detecting para transformar - ao vivo - o rosto de Edgar Franco (Oidicius) em uma de suas criaturas póshumanas - um lobisomem transgênico - o efeito é visto no telão durante 62 ART o tempo em que Oidicius canta a faixa “Transhuman Werewolf’s Mutation”. Ato VII: Tênue Esfera Azul – É o ato final dedicado a uma reflexão sobre as razões da mortalidade no contexto cósmico e as buscas obsessivas da hipertecnologia por formas de extensão da vida ou por uma imortalidade baseada em avanços tecnocientíficos. A performance conta com um vídeo exclusivo com o qual o performer Edgar Franco interage e também com efeitos de mágica eletrônica. Ato VIII: Esse é o ato final que compõe a performance BioCyberShamanism, trata-se de um ato que envolve sempre convidados que darão sua interpretação ao universo ficcional da Aurora Pós-humana e criarão algo especialmente para a apresentação em parceria com o Posthuman Tantra. A primeira vez que o Ato VIII aconteceu foi em junho de 2011, durante o FAM – Festival Internacional de Arte e Mídia, em Anápolis; o Posthuman Tantra teve como convidado especial o músico e performer Eufrasio Prates; Prates utilizou como base para seu ato performático a música Biotech Antenna do Posthuman Tantra e utilizando softwares programados por ele desconstruiu a faixa produzindo música em tempo real através da captação de movimentos do performer Edgar Franco e do público presente à apresentação, realizando uma ação performática bioscíbrida. A segunda apresentação do Ato VIII, aconteceu em agosto de 2011 durante a performance do Posthuman tantra no 10#ART – Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, no Museu da República, em Brasília, desssa vez com a participação especial da performer convidada Rosangella Leote que criou especialmente para o Ato VIII a performance “A Noiva Póshumana” com música do Posthuman Tantra. A ação performática contou com a participação de Edgar Franco, como seu alter-ego pós-humano Oidicius, improvisando uma relação dinâmica com a noiva pós-humana. Referências: CHARDIN, Teilhard. O Fenômeno Humano, São Paulo: Cultrix, 1994. FRANCO, Edgar Silveira (Org.). Desenredos: Poéticas Visuais e Processos de Criação. 6. ed. Goiânia: UFG/FAV; FUNAPE, 2010. . Processos de Criação Artística: Uma perspectiva transmidiática. In: Edgar Franco. (Org.). Desenredos: poéticas visuais e processos de criação, Goiânia: UFG/FAV; FUNAPE, 2010, p. 107-130. FULLER, R. Buckminster. Manual de Instruções para a Nave Espacial Terra, Via Optima: Lisboa, 1998. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência, São Paulo: Aleph, 2009. LEÃO, Lúcia. Cibernarrativas ou a arte de contar histórias no ciberespaço. In Derivas: cartografias do ciberespaço / Lúcia Leão, organizadora. São Paulo: Annablume; Senac, 2004. QUINTANA, Haenz Gutiérrez. Os Discursos da Ciência na Ficção, in: Revista On-line Com Ciência (Tema: Ficção e Ciência, nº 59, outubro), Url: http://www.comciencia.br/reportage. shtml, 2004. 63 ART 1 Edgar Franco. É artista multimídia, mestre em multimeios pela Unicamp, doutor em artes pela USP, pós-doutorando em arte e tecnociência pelo LART – Gama/ UnB com bolsa PDJ CNPq e professor permanente do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG. [email protected], (62) 3268 3879 64 ART Registros e ausências: arte contemporânea como desafio para historiadores da arte Emerson Dionisio Gomes de Oliveira1 Resumo: Diferentes propostas artísticas contemporâneas utilizam parâmetros peculiares para a criação de obras que desafiam os modelos de institucionalização vigentes. Compreendida como uma das instituições responsáveis pela circulação de parte do conhecimento sobre a Arte, as narrativas da História da Arte têm encontrado uma série de dificuldades metodológicas para enfrentar estratégias da produção artística atual, destinadas a não mais construir um aparato memorial. Nos últimos 50 anos, um elenco formidável de obras veio colocar em xeque sistemas de registro e documentação, modelos de circulação e interação, discursos expositivos e, em nosso caso, narrativas historiográficas. O próprio sentido da obra enquanto “fonte” à disposição do escrutínio dos pesquisadores está em questão diante de uma produção cada vez menos preocupada com sua própria continuidade memorial. Procuro problematizar a questão de como historiadores da arte, auxiliados por diferentes instituições de memória (museus, galerias, mercado editorial, crítica e ensino especializados, entre outros), inscrevem-se neste desafio. Palavras-chave: arte contemporânea, memória, historiografia. Abstract: Different proposals contemporary artistic use parameters to create unique works that challenge existing models of institutionalization. Understood as an institution responsible for the circulation of the knowledge about art, the narratives of art history have found a number of strategies to address methodological difficulties of artistic production today, for not more an apparatus built memorial. In the past 50 years, a formidable cast of works has brought into question of registration and documentation systems, models of movement and interaction, narrative and discourse, in our case, historiography narratives. The very meaning of the work as “source” available to the scrutiny of researchers is in question before producing a less and less concerned with its own continuity memorial.This paper attempts to discuss the question of how art historians, aided by different memory institutions (museums, galleries, publishing, criticism and education specialist, etc.), form part of this challenge. Keywords: contemporary art, memory, historiography. É muito conhecido o ato performático realizado pelo artista modernista Flávio de Carvalho em 1956, denominado Experiência n.º 3. Nele o artista passeou pelo centro da capital paulista trajando saiote com pregas, blusa de mangas folgadas, meia arrastão e sandália de couro. Os registros fotográficos nos apresentam uma “plateia” curiosa com a ousadia do artista múltiplo. Ousadia superada por outra inquietante provocação: mais de duas décadas antes, em 1931, Carvalho realizou a Experiência n.º 2 no centro de São Paulo: de chapéu, andou em sentido contrário ao cortejo de uma procissão de Corpus Christi. Ação que lhe rendeu agressões da multidão e uma breve perseguição. Dessa experiência nada temos como registro. 65 ART Na década seguinte, a obra-projeto 4 dias e 4 noites, de Artur Barrio, realizada em 1970, no Rio de Janeiro, consistiu numa performance sem espectadores, na qual o artista percorreu as ruas da cidade de modo ininterrupto até a exaustão por 4 dias e 4 noites. O corpo no espaço da cidade, dentro de uma psicogeografia aleatória, foi o elemento essencial do ato performático. O limite do corpo que transita sem controle. Como no caso de Experiência n.º 2, nenhuma fotografia ou qualquer imagem do ato. Nada ficou como registro, além da memória do artista2. A recente literatura está repleta de exemplos de obras cujos relatos orais são os únicos elementos instituidores de uma memória sobre e da obra, tanto no plano internacional, quanto local. A questão do registro de obras efêmeras tem ocupado, há pelo menos 20 anos no Brasil, o tempo de diferentes pesquisadores no campo das artes visuais, da comunicação museal, do patrimônio, apenas para citar as áreas mais preocupadas com este fenômeno. Os exemplos citados, de fato, possuem qualidades diferentes quando o assunto é a manutenção memorial da obra. No caso de Experiência n.º 2, de Flávio de Carvalho, artista pouco preocupado com as narrativas-de-si e com a problemática do arquivamento, a ausência de registros estava ligada à carência metodológica e tecnológica dos anos de 1930. O problema realmente surge quando artistas de diferentes quadrantes passam ativamente a evitar ou rechaçar o registro, como no caso de Barrio. Nos últimos 50 anos, um elenco formidável de obras veio colocar em xeque sistemas de registro e documentação, modelos de circulação e interação, discursos expositivos e, em nosso caso, narrativas historiográficas. Os exemplos de Barrio e Carvalho, como de muitos outros artistas antes e depois deles, colocaram o próprio sentido da obra enquanto “fonte” à disposição do escrutínio dos pesquisadores em questão. Para compreender como a dinâmica de obras não registradas, construídas em processos “imaterais”, exigem novos posicionamentos de historiadores, é preciso tecer algumas considerações sobre o relacionamento entre a prática da arte e sua manutenção enquanto narrativa memorial e historiográfica. A compreensão da obra de arte enquanto elemento material perene deixou de ser unânime por volta dos anos de 1960. Nessa época, tornou-se evidente que a conservação de processos artísticos e seus suportes materiais eram incompatíveis com muitas das poéticas concebidas desde então. Buscavase, em certo sentido, desfazer-se de algumas convenções que envolviam acordos institucionais. No Brasil, os artistas começaram a problematizar a homogeneidade do suporte, entendido por meio de sua essência material, no mesmo período. Além de Barrio – e antes dele –, Hélio Oiticia, Lygia Clark, Antonio Manuel, Nelson Leirner, Paulo Bruscky, Lygia Pape, Luiz Alphonsus, Letícia Parente, Anna Bella Geiger tornaram-se nomes obrigatórios da historiografia brasileira. Todavia, o predicado do registro veio como elemento necessário para a construção narrativa que desse sentido memorial aos happenings, às performances e às intervenções da época. Fotografias e depois vídeos, e mesmo películas, além de toda uma escrita documental foram e continuam a ser importantes peças de recuperação das obras executadas uma ou mais vezes por seus 66 ART produtores. Desde os anos de 1990 tomou forma o debate sobre como alguns destes registros estavam ultrapassando seu estatuto meramente documental para se tornarem elementos constitutivos do próprio ato poético da obra. Em muitos casos, tal transformação contraria a intencionalidade primeira do registro e o julgamento dos próprios artistas, como é o caso de artistas como Barrio e Marina Abramovic, que recusam considerar tais documentos como próprios do processo artístico. Todavia, o sentido histórico da arte em processo e sua circulação e reapresentação ao público têm transformado muitos desses registros em elementos de apreciação estética, até porque gerações posteriores de artistas vêm utilizando o registro não mais como documento representacional, mas como componente indissociável da trama poética e especulativa que compõe as obras, como bem exemplifica a produção de Anna Bella Geiger e Letícia Parente, já nos anos de 1970. A própria imagem da arte tornou-se arte, justamente porque tal imagem, dentro dos circuitos autorizados, comporta-se, em sua estética, de maneira quase autônoma. A imagem da arte é a arte que vende a si mesma. Esta é uma afirmação polêmica, que mobiliza diferentes campos de conhecimento, afinal pergunta-se qual o limite entre o registro de uma performance e a própria performance enquanto ato finito inscrito num dado espaço-tempo. Nesse jogo muitos atores ligados às redes de circulação da arte dissolveram os limites entre os registros documentais e os registros poéticos, o que ampliou nossa percepção sobre os impactos da arte e seus públicos, mas ao mesmo tempo tem nos feito questionar sobre os modelos de ressignificação que incidem sobre as obras inscritas num passado recente. Atos provocadores, como encapar o Reichstag na Alemanha (obra de Christo e Jeanne-Claude, 1971-1985) ou caminhar ao lado de um marido europeu ” adquirido” graças a um anúncio no jornal (obra de Tania Ostojic, apresentada na IV Bienal de Cetinje, em 2002), são domesticados, comercializados e recuperados por registros convencionais: projetos no formato de desenhos, fotografias e imagens digitais. Essa utilização do registro fotográfico, fílmico ou videográfico de processos relacionais, de performances e de intervenções artísticas em espaços públicos ou institucionais como componentes poéticos mais recentemente mostra-nos que os artistas passaram a se posicionar diante do universo imagético. Esse posicionamento busca o domínio de narrativas antes consideradas exteriores à obra propriamente dita. De fato, como nos lembra Jacques Rancière 3, os artistas contemporâneos estão apenas reagindo às apropriações realizadas pela cultura midiática. Os registros são manipulados como elemento positivado no processo de recuperação e atualização dos trabalhos “imaterais”. Funcionam como desdobramentos narrativos sensivelmente atrelados aos atos fundadores, que passam a depender deles numa complexa dimensão de virtualidade. Atualmente, a sensível maioria dos artistas dedicados à experimentação 67 ART tem no registro um elemento múltiplo crucial para a constituição da base memorial de suas práticas, antes e depois de um dado ápice poético, seja ele o momento de realização da performance, seja a reação ilustrada de um determinado público. A tecnologia tem mesmo eliminado o sentindo temporal de antes e depois, numa coabitação entre tempos que tornam o registro um próprio essencial para a circulação de determinado ato criador. Pouco a pouco a ética de tais procedimentos volta-se para a estética do arquivamento e reapresentação contínuos. Paradoxalmente, o arquivamento da experiência da obra “imaterial”, por meio dos registros, faz surgir a ausência da obra, como objeto, porque se tornou uma experiência não permanente. Do mesmo modo, o arquivo apresenta-nos uma escrita sobre a obra (vídeo, fotografia, imagens digitais etc.). Uma presença traduzida em outra linguagem. Presença mediada, que exige conhecimento do pesquisador para compreender a extensão e as propriedades apropriadas pelo registro. Historiadores da arte voltados para a história do tempo presente, aquela preocupada com a problemática imbricação entre memória e história, já se habituaram a identificar os diferentes níveis de registro da arte, daquele que navega entre o mero discurso documental, por vezes didático, até as ambições do registro-arte, elaborado numa perspectiva poética. Entretanto, continuamos diante de um problema diverso ao recuperarmos os exemplos de Barrio. Se o debate sobre a competência do registro em oferecer pistas ou vestígios do que foi a poética da obra, no momento de sua realização, é demasiadamente polêmico e inconcluso, o debate entre historiadores da arte de obras “imateriais” que não se apresentam pela forma de registros imagéticos ainda não tem sido suficientemente enfrentado. Se no caso dos registros de obras há um potencial para a relação dialógica entre o sujeitoobra e o sujeito-pesquisador, quando a obra deixa-se verificar apenas pela memória de artistas e (quando possível) de espectadores, toda uma dimensão de contínua reinterpretação torna-se refém de outra ordem: a do relato, oral ou escrito. Deixamos o plano da arte para o plano complexo do testemunho. Um problema mais amplo que inquieta historiadores há pelo menos 50 anos. Historiadores da arte estão pouco familiarizados com aquilo que foi denominado como a crise de testemunho e que mobilizou pensadores tão díspares como Hannah Arendt, Andreas Huyssen, Tzvetan Todorov, Paul Ricouer, Beatriz Sarlo, Joel Candeau, Annette Wieviorka, entre outros. Essa crise do relato testemunhal encontrou, na impossibilidade de narrar a experiência traumática por inteiro, seu problema fundador. O tema do Holocausto foi o divisor de águas dessas questões políticas entre o narrar e o calar. Questões que despertaram todo um campo incerto no processo narrativo e mnemônico e seus usos e abusos. Paul Ricoeur debruçou-se demoradamente sobre a questão de como o relato memorial está intrinsecamente ligado a uma dimensão política da narrativa. Ricoeur questiona: “Por que os abusos da memória são, de saída, abusos do esquecimento?” 4. A resposta reside no fato de 68 ART que, antes do abuso, há o uso. Da mesma maneira que não é possível lembrar-se de tudo, não é possível narrar tudo, o que torna cada narrativa um ato de seleção. “Alcançamos, aqui, a relação estrita entre memória declarativa, narratividade, testemunho, representação figurada do passado histórico” 5, pois, em cada ato de seleção, há a presença das estratégias de esquecimento, uma vez que, para narrar algo de alguma forma, é preciso não narrar de tantas outras formas. Daí o esquecimento poder ser tanto ativo – quando acarreta um deficit de memória ideologicamente definido – quanto passivo – quando a manifestação do esquecimento não delibera sobre os agentes do narrado. O testemunho é, portanto, uma tradução tão complexa quanto qualquer outro registro, com o complicador de não nos oferecer uma dimensão imagética socialmente compartilhada. Graças à crise do testemunho enquanto elemento matricial para a engenharia das narrativas historiográficas, o plano memorial passou a ser um problema para a ética veritativa em que estavam inscritos os processos metodológicos da História. Em nosso problema particular, passamos a depender exclusivamente dos testemunhos dos artistas e espectadores para a reapresentação de uma obra que não mais poderia ser visualizada. As tensões de sentidos entre artistas, público, crítica e historiadores da arte perdem um elemento crucial: a obra enquanto instituição reapresentada. O testemunho, de ordem biográfica, passa a ser, em muitos casos, o único elemento de reconstituição de uma obra à qual, por vezes, nem o público teve acesso. O que temos então como fonte é uma certa tradição da memória instaurada como soberana. É fato que essa questão da memória subjetiva tornada memória coletiva pelo testemunho não é um problema para o artista e, sim, para os sistemas instauradores de legitimidade, como as narrativas da história da arte. Narrativas presas ao relato testemunhal carregado do presente que não possui outras fontes ou registros que permitam submetê-lo a comparações críticas. A obra é aquilo que é dito dela e nada mais. Para os artistas, evita-se ancorar suas obras a uma “indústria cultural da memória”, segundo terminologia de Beatriz Sarlo 6. Já para os historiadores, abre-se um momento problemático, que foge a toda tradição metodológica que institui a disciplina desde o século XVIII: Como fazer uma história da arte sem a obra ou seu registro? Parte considerável da crítica e da história da arte atual ainda está ligada a conteúdos nocionais próprios às vanguardas históricas, como o gosto pelo ineditismo, a recusa do passado desqualificado, a posição ambivalente de uma arte ao mesmo tempo efêmera e substancial (eterna). A maioria dos historiadores da arte ainda estabelece, entre as obras e seus contextos constituivos, uma dicotomia hierárquica que enfatiza a abstração da maior parte das obras e a realidade dos contextos formadores. Nessa dicotomia, as obras funcionam como documentos que revelam ou refletem um autor, um lugar, um tempo ou uma cultura histórica coerente e relativamente unificada, mas o desejo de interpretar as obras desse modo reduz sua complexidade. Temos de lembrar que classicamente a história da arte se constituiu por meio de um sistema a posteriori, no qual o sentido não está ligado apenas à 69 ART obra em si, mas também à maneira como essa obra se inscreveu no tempo segundo múltiplos remanejamentos, segundo os processos tipológicos e os toponímias autorizadas. O sistema a posteriori é entendido, em primeiro lugar, como um fenômeno que intervém ulteriormente para dar inteligibilidade ao passado, mas se define também como um suplemento de sentido que só se desdobra mais tarde, reforçando uma cadeia teleológica, recusando, por exemplo, obras que possuem uma genealogia duvidosa. A ausência da obra cria um problema grave para tal sistema, ao mesmo tempo pode nos servir para repensar nossas práticas metodológicas diante dos processos que nos oferecem a obra enquanto materialidade ou desdobramento (registro). Eis uma questão que coloca o historiador da arte diante de todo um conjunto de problemas próprios a outros campos da história. Da mesma forma que artistas contemporâneos estão empenhados há décadas em dissolver as fronteiras entre a prática artística e o cotidiano ordinário, desmistificando, por um lado, o sentido idealista atrelado ao fazer arte e, de outro, ainda mitificando o lugar social do artista. Alguns artistas que se negam a construir processos memoriais para suas obras estão exigindo que se dissolvam algumas fronteiras entre historiadores da arte e os demais campos do conhecimento preocupados com narrativas sobre o passado (historiadores, antropólogos, cientistas socais, literatos, etc.) O desafio para nós, narradores de um dado passado, está diante de uma obra que leva, à radicalidade, sua inspiração “imaterial”. Teremos que procurar nossas fontes fora de uma inspiração individual tornada obra. Procurá-las, talvez, no remodelamento, na reapresentação e na recontextualização da obra pela inspiração individual tornada testemunho, enfrentando todas as indeterminações que isso acarreta. Ao contrariar os sistemas narrativos legitimadores, os artistas nos forçam a repensar a prática de compreender suas obras, expondo quanto historiadores têm sido cúmplices “a favor de uma idéia do curso da história da arte e da situação da arte”. Isso porque “ainda estamos presos a um sentido de arte cada vez menos compreendido, que conseguimos identificar apenas no quadro de sua história prévia” 7. As obras não registradas lembram-nos de que a liberdade de interpretação própria ao universo da arte não significa apenas encadear variantes mais ou menos complexas escondidas sob um jargão autorizado; também não é algo que fique apenas no domínio do gosto ou da fantasia individual, contrariando muitos teóricos relativistas. A liberdade deriva do fato de que é preciso inventar algo que não existia até então: aquela mesmaoutra obra numa dada época. Construir narrativas possíveis é, sobretudo, compreender que a obra se liberta através do gesto da interpretação. Liberta-se de uma identidade na qual a tradição tinha tentado paralisá-la. Desta forma, essa negociação entre obra e intérprete talvez venha a ser o grande desafio para a compreensão dos trânsitos culturais por meio de uma história da arte avessa aos enquadramentos ilusoriamente universais e autônomos 8. Afinal, para além das possibilidades individuais dos produtores e intérpretes das obras de arte, há uma rede de instituições que tenta, a 70 ART seu modo e finalidade, estabelecer sentidos unívocos ou dominantes para os objetos que acolhem ou interpretam. Os usos que essa rede efetiva sobre determinadas produções podem, em boa medida, ser percebidos pelos processos discursivos que os legitimam dentro de instâncias tão complementares quanto concorrentes como a história da arte, a estética, a crítica e a pedagogia. O exemplo de 4 dias 4 noites só pode frequentar uma narrativa histórica graças à legitimidade de seu autor, porque sua própria existência interpretativa é precária. É claro que estamos diante de uma minoria de artistas e de atos isolados, mas que se tornaram desafios prementes à prática historiográfica. Se, para esta minoria de artistas, não há sentido em produzir uma memória da arte, como discutir a obra de determinado artista que pode apenas avisar, por meio de redes sociais, que realizará uma performance pelas ruas de uma grande cidade, mas que além de não registrá-la se recusa a comentá-la? Será que essa obra existiu? E, se a obra não existe enquanto discurso, como produzir uma narrativa histórica? Como instituir uma legibilidade e uma legitimidade para ela? Sem a obra e sua legitimidade há artistas? Se não há arte nem artistas, o problema parece resolvido, pois para que serviriam os historiadores da arte? 1 Doutor em História pela Universidade de Brasília. Professor Adjunto do Departamento de Artes Visuais/IdA/UnB e docente consorciado no curso de Museologia na mesma universidade. 2 FREIRE, Cristina. O latente manifesto: arte brasileira nos anos 1970. In: GOLÇALVES, Lisbeth R. (org.). Arte Brasileira no século XX. São Paulo: ABCA: Imprensa Oficial, 2007, p.237. 3 RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negreo, 2010. 4 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François [et al.]. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p.455. 5 idem. 6 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras; Belo Horizonte, UFMG, 2007. 7 BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Cosac Naify, 2006,p.135 8 idem, p.24. 71 ART A experiência estética: consciência, linguagem e narrativa Fernando Fogliano1 Resumo: A Neuroestética, campo emergente do conhecimento, traz, a partir dos avanços científicos oriundos das neurociências, contribuições importantes no entendimento do fenômeno artístico. O objetivo neste texto é refletir sobre a experiência estética. A experiência consciente, de difícil definição, é um aspecto chave para o entendimento de aspectos do papel da Arte como estratégia cognitiva. Nesse contexto, linguagem e experiência estão profundamente interligados. A questão da experiência concreta do indivíduo no seu ambiente constitui a base através da qual compartilha e troca com seus pares, por meio da linguagem, experiências subjetivas. A atenção é um aspecto da experiência consciente importante neste contexto e pode ser relacionada ao incremento da sensibilidade do indivíduo e de seu grupo social para padrões ambientais de regularidade. Palavras chave: neuroestética, linguagem, experiência consciente, narrativa Abstract: Emerging scientific field of investigation, neuroaesthetics based on advances of neurosciences brings new possibilities to the understanding of artistic phenomena. The intention here is to reflect about the conscious experience. Hard to define, this concept may be considered a key aspect to the Arts’ role as cognitive strategy. In this context, language and experience are deeply linked. The question of the concrete experience of the individual in its environment constitutes the base through which it shares and exchanges with its peers, by means of language, subjective experiences. Attention is an important aspect of conscious experience and might be related to the increment of sensibility of the individual, and its social group, for ambient patterns of regularity. Keywords: neuroaesthetics, language, conscious experience, narrative Ainda pode causar surpresa para alguns, colocar lado a lado campos do conhecimento, ou da atividade humana, distintos ou díspares. Isso acontece mesmo depois do surgimento de campos multidisciplinares do conhecimento como as teorias que exploram a Complexidade. Ganhou importância, por exemplo, a Ecologia e a visão integradora que ela proporciona. A distinção entre os campos do conhecimento é, na visão de Wilson (1999), “artefato da erudição”. As ciências naturais fornecem o suporte epistemológico necessário para que se possa debruçar sobre questões, das mais variadas naturezas, a respeito do universo que nos cerca. Uma das consequências desse tipo de abordagem é a necessidade de que se considere o conhecimento como um corpo único e complexo; a percepção de que este constitui um organismo fragmentário constituído por um composto de disciplinas autônomas é ilusória (Fogliano, 2002). “A confiança na consiliência é o fundamento das ciências naturais. Pelo menos para o mundo material, o impulso tende esmagadoramente à unidade conceitual. Fronteiras disciplinares dentro das ciências naturais estão 72 ART desaparecendo, para ser substituídas por domínios híbridos mutáveis onde a consiliência está implícita. Esses domínios estendem-se por vários níveis de complexidade, da física química e química física à genética molecular, ecologia química e genética ecológica. Nenhuma das novas especialidades é considerada mais do que um foco de pesquisa. Cada uma é uma indústria de ideias originais e tecnologia em avanço.” (Wilson, 1999, p.9-10) A idéia do conhecimento consiliente deveria ir para além das ciências naturais. Esta perspectiva do conhecimento é uma demanda da contemporaneidade. Historicamente, em especial nas últimas décadas, temos visto a ciência voltar seus instrumentos e métodos de observação para questões que antes somente poderiam ser tratadas através de silogismos e da observação qualitativa dos fenômenos. A Tomografia por Emissão de Pósitrons, por exemplo, abriu enormes possibilidades para os estudos do cérebro. Essa técnica de imageamento permitiu um novo tipo de acesso observacional das dinâmicas funcionais do cérebro, proporcionando um acúmulo sem precedentes de conhecimento sobre o mais complexo órgão do corpo humano. No final da década de 1990, que ficou conhecida como a década do cérebro, os neurocientistas sentiram-se aptos a expandir linhas de investigação como aquelas iniciadas pela escola da Gestalt em 1920, que posteriormente teve contribuições importantes como as de Rudolf Arheim. No século XXI as ciências cognitivas continuaram seu caminho evolutivo dando origem a uma série de linhas de pesquisa e originando novos campos do conhecimento como a Neuroestética (Onians, 2007, p. 07). Nesse processo de desenvolvimento, novos achados puseram em cheque algum conceitos, em muitas áreas do conhecimento, de há muito estabelecidos. Lakoff e Johnson (1999, p.03) consideram que as conquistas realizadas pela ciência cognitiva implicam em que mais de dois milênios de especulação filosófica a priori encontrem seu final. Devido aos avanços da ciência, a filosofia não pode mais ser a mesma. Para Gibbs (2007, p. 1-13) a separação que se estabelece na filosofia tradicional entre corpo e mente impõe sérios limites aos estudos acadêmicos da vida mental. Platão via o corpo como uma fonte de distração na vida intelectual que necessitava ser erradicada na prática da filosofia. Essa mesma perspectiva pode ser encontrada nos escritos cristãos, quando Santo Agostinho, no século V, referia-se ao corpo como origem do pecado e da fraqueza espiritual. A separação entre mente e corpo e a organização hierárquica tendo a mente sobre o corpo assombra a história da filosofia ocidental desde Platão, Aristóteles e Santo Agostinho até Descartes e Kant. (Gibbs 2007, p. 3) Para Descartes o fenômeno mental não tem lugar no mundo físico. O filósofo teve de supor a existência de um tipo de matéria a res cogitans, indivisível e intangível, para dar suporte à existência da mente, seus pensamentos, desejos e volições. O dualismo cartesiano estabeleceu uma tradição filosófica no ocidente que cristalizou o corpo como um objeto sólido e o self, particularmente a mente, de natureza etérea, infundida misteriosamente no corpo. Damásio (1996) vai refere-se ao dualismo cartesiano e à necessidade de superá-lo diante das evidências científicas 73 ART que demonstraram em que lugar, no cérebro, se realiza o pensamento emocional e sua importante influência sobre a razão. Nos anos 1950, avanços na linguística, que dependeram do uso de computadores e de complexos softwares, permitiram visualizar como processos cognitivos podem ser gerados de formas complexas usando representações de coisas externas ao computador. O cérebro pôde ser imaginado em analogia a um computador e, com o auxílio da matemática, desenvolveu, em conexão com a inteligência artificial, conceitos que foram levados para a Psicologia expondo o simplismo da abordagem behaviorista, incapaz de dar conta de todas as complexidades do comportamento humano (Stapp, 1993, p.21). Uma observação superficial permite considerar que impactos dos novos conhecimentos científicos são melhor suportados quando incidem sobre o próprio campo científico. Contudo quando estão em jogo ciências e humanidades, as dificuldades parecem avolumar-se. Um exemplo emblemático dessas dificuldades pode ser encontrado quando se lê o comentário de Gombrich (2000, p. 17) sobre o artigo de Ramachandran e Hirstein (1999), “The science of art: A neurological theory of aesthetic experience”. Em sua considerações o célebre historiador da arte busca desqualificar a opinião dos cientistas afirmando que: Para o historiador de arte, é evidente que para os dois autores a “noção de arte” é de data recente, e não compartilhada por todos. Eles clamam: “o propósito da arte, certamente, não é meramente descrever ou representar a realidade“ isso pode ser feito facilmente com uma câmera “mas para realçar, transcender, ou mesmo para distorcer a realidad” (Ramachandarn and Hirstein, p.16). Eles não explicam como alguém pôde fotografar Paraíso ou Inferno, a Criação do Mundo, a Paixão de Cristo, ou as escapadas de deuses ancestrais “ todos assuntos que podem ser encontrados representados em nossos museus. Também não é correto generalizar a partir de certas convenções indianas de representar-se o nu feminino, do mesmo modo como é para a tradição acadêmica de tomar a Venus de Medici para o mesmo propósito. Mesmo uma rápida visita aos grandes museus poderia servir para convencer os autores de que poucas exibições conformam-se às leis que eles postulam. (Gombrich, 2000, p.17) Massey (2009, p.18) reflete sobre a resistência entre os campos do conhecimento, que ele sintetiza como um embate entre o “como” e o “por que”. O autor busca reconhecer a força e as deficiências de cada campo, reconhecendo como a ciência pode ser mais eficiente no raciocínio analítico, enquanto as humanidades o são quando se trata de sintetizar conceitos. Para isso exemplifica o quanto a neurologia é adequada na localização, no cérebro, dos componentes da experiência estética, mas é deficiente em oferecer uma melhor compreensão da sobre a produção de “A flauta mágica”, de Mozart. A neurociência é adequada para conectar certas características dos processos estéticos com eventos específicos no cérebro. Contudo, artistas e espectadores estão engajados na integralidade dos processos, estão interessados na fenomenologia do evento artístico muito mais do que em seus aspectos científicos (Massey 2009, p.19). Não obstante, os artistas estão hoje utilizando sensores de padrões da atividade neuronal na busca de estabelecer vínculos entre as narrativas de suas experiências estéticas com o interator. Este fato nos obriga a perceber o quanto estão imbricados os campos do conhecimento e que avanços científico e tecnológicos reverberam por todas as áreas da cultura 74 ART e do saber. A busca pelo conhecimento, independentemente da abordagem metodológica, encontra dificuldades inerentes a quaisquer dos métodos empregados. Ao reconhecer possibilidades e limitações metodológicas inerentes às ciências e às humanidades, não se está necessariamente considerando a possibilidade de reduzi-las a um denominador comum. Ao contrário, esta diferença entre pontos de vista e métodos deve ser celebrada como um importante aspecto da diversidade de alternativas na busca pelo conhecimento. Celebra-se, portanto, sua irredutibilidade (idem, p. 22). É da maior importância, no entanto, reconhecer a necessidade para o estabelecimento de pontes conceituais entre os campos. Essa busca não deve ser confundida como mero exercício epistemológico, mas como um imperioso que emerge das demandas apresentadas pelas novas tecnologias que nos confrontam, de forma acelerada, com questões, concretas e conceituais, cada vez mais complexas e multimodais. O fato de estarmos nos defrontando com essas questões é um importante sintoma de que mudanças paradigmáticas estão no horizonte dos eventos. Os avanços científicos, principalmente aqueles oriundos das neurociências, e agora da neuroestética, estão no centro daquilo que Bryson (2003, p.19) considera a nova arena do desenvolvimento cultural: “a interface neural”. As novas perspectivas proporcionadas pelos avanços científicos permitemnos considerar os produtos da arte como capazes de acessar diretamente a atividade interna do cérebro com o potencial de criar novas configurações de imagem, espaço e tempo, de forjar novos caminhos no nexo mente/mundo. A experiência da realidade decorre de construtos sociais intersubjetivos e pode ser considerada a partir do ponto de vista de que ela emerge do acionamento coletivo de sinapses neuronais, dos sistemas sensoriais e da consciência, colocando no centro de nossa existência não o significante, mas padrões neuronais e a ação no meio ambiente. Experiência estética e linguagem Kaptelinin e Nardi (2006), na busca por construírem um campo teórico integrador para os estudos sobre a relação homem-máquina e a questão da interatividade, discutem a unidade entre a consciência e a atividade. Esta última constitui o cerne de sua Teoria da Atividade que é definida como uma “interação intencional do sujeito no mundo, um processo no qual transformações mútuas entre os pólos ‘sujeito-objeto’ são produzidas” (idem, p. 31). Apoiados nos conceitos oriundos da escola russa de psicologia, notadamente nas ideias de Vygostky, os autores vão definir o conceito de mente humana com sendo: Intrinsecamente relacionada a todo conceito de interação entre seres humanos e o mundo, um órgão de tipo especial, emergindo e desenvolvendo-se para fazer a interação com o mundo bem sucedida. (Kaptelinin e Nardi, 2006, p.37) A partir dessas considerações pode-se concluir que a consciência emerge das experiências interativas que levamos a cabo no meio ambiente. A idéia de que o corpo e a mente são inextricáveis estão não somente no âmago da filosofia contemporânea, como vimos acima, mas também nas 75 ART teorias da linguagem. Feldman (2006) ao considerar a base neural para a linguagem busca na experiência subjetiva a ideia de que a linguagem se origina na experiência concreta. Para o autor: O pensamento é estruturado na atividade neural. Linguagem é inextricável do pensamento e da experiência.(Feldman, 2006, p.3) No contexto da Teoria Neural da Linguagem esta evolui da concretude à abstração (Fogliano e Camargo, 2010). A experiência subjetiva é a base a partir da qual palavras culturais, técnicas, abstratas e conceitos surgem. Neurônios e corpo são centrais nesse processo: pessoas, como sistemas neurais, compreendem ideias abstratas porque esses conceitos são mapeados e ativados em circuitos cerebrais envolvidos na experiência. A metáfora, portanto, não é apenas um truque linguístico ou figuração cultural. Ramachandran e Hirstein (1999) também consideram a metáfora um mecanismo cognitivo fundamental para a produção da linguagem quando a definem como um “túnel” mental entre dois conceitos ou perceptos que parecem dissimilares: Quando Shakespere diz “Julieta é o sol” ele está apelando para o fato de que eles são ambos mornos e provedores (não o fato de eles moram no nosso sistema solar). Ramachandran e Hirstein (1999) Através de imagens realizadas com o uso de Tomografia por Emissão de Pósitrons, Ramachandran e Hubbard (2003) descrevem os mecanismos neuronais e as estruturas cerebrais relacionados com a produção da metáfora. O discurso sobre a metáfora e a cultura deu forma a uma mudança paradigmática naquilo que concerne ao nosso entendimento sobre criatividade e aquisição de conhecimento. Desses estudos é possível considerar que a linguagem e a cultura tem seus mais importantes mecanismos de desenvolvimento apoiados na maquinaria neuronal. Experiência, linguagem e consciência emergem da fervilhante atividade dos neurônios e dão forma à realidade, produzem nossa individualidade, os grupos sociais e a todas manifestações concretas e conceituais da cultura. Compreender a natureza da experiência subjetiva, ou qualia, como o termo foi cunhado no âmbito da filosofia, é uma tarefa muito complexa e situa-se além dos objetivos desta discussão. Para a reflexão que aqui se propõe, as idéias de Aleksander (2005) bastarão para que as ideias em jogo nesta reflexão se acomodem coerentemente. Segundo aquele autor, engenheiro envolvido na construção de sistemas computacionais conscientes, a consciência pode ser considerada a partir de cinco axiomas básicos (Aleksander, 2005, p.35): 76 • De que somos parte distintas do todo, de que existe algo “lá fora”. O Self. • De que a percepção do mundo se mistura com experiências anteriores. A memória. • De que a experiência do mundo é seletiva e ART intencional. Intencionalidade e sensibilidade. • De que somos capazes de pensar sobre as coisas antes delas acontecerem, de forma a podermos tomar decisões. Antecipação. • De que temos sentimentos. Emoção. Embora não tenhamos uma definição de consciência, o axiomas acima permitem-nos conhecer que aspectos ela envolve. Isto serve tanto para o desenvolvimento de máquinas conscientes quanto para que possamos aquilatar que aspectos estão presentes nas experiências de que tomamos parte no mundo, bem como a produção da linguagem ou melhor, linguagens e suas formas de articulação as narrativas. É importante expandir o conceito de linguagem para além da linguagem falada, a qual nos referimos normalmente quando pensamos no assunto. Para Johnson (2007, p. 210) a cultura ocidental valorizou sobremaneira o valor da palavra e a arte nunca foi considerada seriamente como um modo essencial de engajamento com o mundo subjacente. Podemos tomar essa afirmação e trazer para o campo da linguagem toda forma de engajamento que fazemos com o ambiente? Se assim for, poderemos considerar a teoria da linguagem como um campo unificado de estudos das linguagens das palavras, sons, movimentos e todas as demais formas da expressividade humana como a fotografia, o cinema, a música, o teatro, o design em todas suas vertentes. Nas artes visuais, as imagens e seus padrões, qualidades, cores e ritmos são portadores de significado (Fogliano e Camargo, 2010). Nessa mesma direção Boyd considera que: Nossas representações não estão confinadas à linguagem: elas podem envolver ação e objetos ou imagens e música além de apenas, ou tão bem quanto, a linguagem. (Boyd, 2009, p. 129) Linguagem e narrativa “ Arte e experiência” Boyd (2009) traz interessantes contribuições quando situa a arte no cenário evolutivo onde também estão em cena as ciências cognitivas. Para o autor o entendimento evolucionário da natureza humana começou por reformular várias disciplinas do conhecimento como: psicologia, antropologia, filosofia, economia, história, estudos políticos, lei e religião. Nesse rol pode-se incluir a arte e a mente humana. “Uma abordagem biocultural para a literatura convida ao retorno da riqueza de textos e a multifacetada natureza humana que eles evocam. Mas também implica que não podemos simplesmente voltar para os textos literários sem assimilar o que a ciência descobriu a respeito da natureza humana, mentes e comportamento ao longo dos últimos cinquenta anos, e considerando que essas descobertas podem oferecer uma abrangente teoria literária.” ( Boyd, 2009, p. 4) A partir dessa perspectiva, a arte pode ser considerada um 77 ART comportamento, um jogo estratégico projetado para engajar a atenção humana através de seu apelo à nossa preferência para padrões de informação inferencialmente ricos (idem, p.85). É importante sublinhar que atenção é um dos aspectos da consciência e que, neste sentido, podemos considerar que o jogo a que se refere Boyd é, em última instância, uma estratégia para provocar experiências conscientes. Esse jogo se dá num contexto complexo para permitir que mentes socialmente desenvolvidas, especialmente mentes humanas, possam acessar maiores redes de módulos de conhecimento abstrato ou concreto (ferramentas). Este acesso habilita o enfrentamento a novos contextos, a avaliação da informação e a produção de inferências e cenários para a tomada de decisão. Esse processo se dá aparatado por sistemas emocionais, conforme descreve Damásio (1996) em seu livro “O erro de Descartes”. Tais sistemas, como vimos, constituem a consciência que também possui sua história evolutiva na qual a emergência da linguagem protagoniza um papel decisivo. Nesse processo evolutivo o mais complexo não suplanta o mais simples, mas o integra de novas maneiras criando novos contextos, ou níveis de complexidade, que propiciam o desenvolvimento de novas funções (idem, p.48). Esta pode muito bem servir como uma definição para os fenômenos de emergência e aplica-se da mesma forma à definição de metáfora. Arte como mecanismo para cooptar a atenção do grupo, oferece um interessante aspecto no entendimento da Arte e como produtor de coesão social. Para explicar a arte precisamos considerar a atenção. A arte morre sem ela, como as pessoas desde Aristóteles notaram, ambos dentro e fora da explanação evolutiva. A arte altera nossas mentes por que engaja e reengaja nossa atenção desde os cantos de ninar até o cantarolar distraído. Contudo, a arte nunca foi considerada como tendo evoluído para assumir o papel de ser um estimulador da atenção nas vidas humanas. (Boyd, 2009, p.100). Ramachandran e Hirstein (1999) ao descreverem a função do exagero na busca do artista por capturar a essência das coisas e produzir no observador um estado de espírito, ou emocional, escreveram: Devem haver neurônios no cérebro que representem a forma sensual, arredondada do feminino em oposição à forma angular do masculino e o artista escolheu amplificar a “verdadeira essência” (a rasa) do corpo feminino movendo bastante a imagem para o lado feminino do espectro feminino/masculino. O resultado dessas amplificações é um “super estímulo” no domínio das diferenças macho/fêmea. É interessante, nesse contexto, que as primeiras formas de arte são frequentemente caricaturas de uma forma ou de outra, por exemplo, arte rupestre pré-histórica descrevendo animais como bisões e mamutes, ou as famosas figuras de “fertilidade” de Vênus. (Ramachandran e Hirstein, 1999) É possível estabelecer um vínculo entre as idéias de Boyd e as de Ramachandran e Hirstein. Uma das melhores maneiras de cooptar a atenção do observador é oferecer-lhe um “super estímulo” capaz de proporcionar-lhe uma rica experiência sensorial. Se assim for, o papel do artista é inventar recursos linguísticos para construir narrativas capazes de produzir estímulos sensoriais e chamar a atenção do grupo para aspectos 78 ART abstratos, ou concretos, presentes nos embates com o meio ambiente. Na maioria das vezes essa atividade, que faz do artista uma espécie de inventor, está relacionada às técnicas e às tecnologias. As narrativas produzidas no campo da Arte, como consequência do que se considerou até aqui, podem ser vistas como uma estratégia cognitiva na busca por alternativas na construção da realidade. Considerações finais O surgimento da neuroestética como área do conhecimento parece apontar para o surgimento de novos paradigmas para a reflexão sobre a produção de conhecimento em vários campos da Cultura. Dentre o campos considerados, os da Arte e do Design talvez sejam daqueles onde haja um grande, senão o maior, potencial para frutíferas reflexões. Ao considerar-se a produção artística sob os novos prismas oferecidos pela neuroestética, cria-se um novo patamar, de maior complexidade, tanto para a produção quanto para a reflexão. Talvez o surgimento desse campo conceitual marque o início do que futuramente poderá ser conhecido como o ponto de inflexão da cultura humana em direção ao século XXI. Referências Bibliográficas ALEKSANDER, Igor. The world in my mind, my mind in the world: key mechanisms of consciousness in people, animals and machines. Exeter: Imprint Academic, 2005. ATAPP, Henry P. Mind Matter and Quantum maechanics. New York: Springer verlag Heidelberg, 1993. BOYD, Brian. On the origino f stories: Evolution, cognition and fiction. Cambridge: The belknap Press of Havrad University Press, 2009. DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 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The Phenomenology of Synaesthesia in: Journal of Consciousness Studies 10 (8):49-57, 2003. 1 Doutor em Comunicação e Semiótica de Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Professor e pesquisador do Centro Universitário do Senac.E-mail: fernandofogliano@ gmail.com 80 ART Projetos Catavento e Amoreiras Gilbertto Prado1 e Grupo Poéticas Digitais2 Resumo: Catavento (2011) é um projeto sobre o diálogo de céus e de nuvens que se formam em função do local, da intensidade e da direção dos ventos compondo uma projeção em tempo real. Amoreiras (2010) é um projeto com arvores que foram plantadas na Avenida Paulista, em São Paulo que através de “próteses poéticas” tem seu comportamento alterado, causando movimentos involuntários nas folhas e nos galhos. Ao longo dos dias, as árvores vibram em diálogo com a variação dos fatores de poluição, numa dança de árvores, próteses e algoritmos, como um sintoma dos diversos poluentes e poluidores. Os trabalhos artísticos foram realizados pelo Grupo poéticas Digitais configurando distintos diálogos com forças da natureza. Palavras-chave: instalação aprendizado artificial interativa, artemídia, meio ambiente, Abstract: CATAVENTO ( Windmill ), 2011, is a project about the forming skies and clouds dialogue in function of the location, intensity and direction of winds. Amoreiras (2010), is an installation about autonomy, artificial learning, nature and the environment. The main actors are five young mulberry trees at Paulista Avenue, São Paulo’s cultural and economic hub. Each one of the trees has an implanted poetical prosthesis, a device with the purpouse of supplying, correcting, and enhancing a natural but compromised function, thus guaranteeing the tree’s survival. The aim of this article is to present this two recent experiments of the Poeticas Digitais Group. Keywords: interactive installation, art media, environment, artificial learning Catavento Catavento é um projeto sobre o diálogo de céus e de nuvens que se formam em função do local, da intensidade e da direção dos ventos compondo uma projeção em tempo real. O trabalho considera os eixos de Brasília (Asa Norte, Asa Sul etc.) como referência para a disposição dos pontos cardeais sobre o mapa brasileiro, de modo que a obra traga, em função da direção dos ventos, as nuvens de distintos pontos do Brasil, configurando um diálogo simbólico de céus locais e imaginários. As nuvens são formadas por partículas geradas por algoritmos a partir do vento local que aponta para céus distantes e se compõem numa projeção em tempo real. O que opera nos fluxos é a força da própria natureza: a direção dos ventos de Brasília elegendo o local cujo céu será gerado, no fluxo dos dados, no fluxo da cidade, dialogando através da cor-céu e movimento-vento. Os dados são captados por uma estação meteorológica (alinhada com os eixos de Brasília), mais especificamente da biruta, do vento local, na sua intensidade e direção. A composição visual do projeto é afetada diretamente pelos dados recebidos. As “nuvens” são geradas por sistemas 81 ART de partículas, por um algoritmo, normalmente utilizados para simular fenômenos naturais como fogo, água, nuvem etc. O algoritmo do trabalho foi desenvolvido para apresentar visualmente «flocos de nuvens» dentro da palavra “céu”. De acordo com a variação do vento (mais ou menos vento), a palavra “céu” se desvanece com maior ou menor intensidade até desaparecer por completo e tornar a surgir momentos depois. A direção do vento, por sua vez, desloca a palavra «céu», mais para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, etc. Ou seja, tem-se, o tempo todo, a composição simultânea de dois movimentos que operam o trabalho: um movimento «dentro» da palavra céu propriamente dita, que se avoluma e desaparece, e o segundo movimento, que é o do vento que empurra para diversas posições a palavra “céu”, também em função de sua direção e intensidade. A biruta da estação integra a instalação como objeto visível no próprio local, ficando assim perceptíveis para o visitante os movimentos e as variações no instrumento de leitura, bem como a sensação da direção e velocidade do vento no seu próprio corpo. Essa relação de presença potencializa a efêmera sincronia com o vento, como se pudéssemos entrar no fluxo e ajudar no arrastar e no compor do “Céu”. CATAVENTO foi apresentado na exposição EmMeio#3, no Museu Nacional de Brasília, durante o evento #10. ART, em agosto de 2011. O Grupo “Poéticas Digitais” neste trabalho está composto por: Gilbertto Prado, Silvia Laurentiz, Andrei Thomaz, Claudio Bueno, Daniel Ferreira, Luciana Ohira, Lucila Meirelles, Mauricio Taveira, Nardo Germano, Sérgio Bonilha, Tania Fraga, Tatiana Travisani e Val Sampaio. http://poeticasdigitais.net/projetos/catavento/index.html FIGURA 1 – Projeto Catavento 82 ART Amoreiras Cinco pequenas amoreiras foram plantadas em grandes vasos, na Avenida Paulista, em São Paulo. A captação da “poluição” é feita através de um microfone, que mede as variações e discrepâncias de ruídos, como um sintoma dos diversos poluentes e poluidores. O balançar dos galhos é provocado por uma “prótese motorizada” (disposta ao redor do tronco de cada árvore, a prótese vibra, causando movimentos nas folhas e nos galhos). A observação e o amadurecimento do comportamento das “árvores” são possibilitados a partir de um algoritmo de aprendizado artificial. Ao longo dos dias, as árvores vibram em diálogo com a variação dos fatores de poluição, numa dança de árvores, próteses e algoritmos, tornando aparente e poético o balançar, às vezes (in)voluntário-maquínico, às vezes conduzido pelo balanço do próprio vento sobre as folhas. Conceituação Aos primeiros sons da manhã, uma “árvore” responde à poluição que já começa a se depositar em suas folhas, movimentando-se para se livrar da sujeira. Quanto maior o ruído dos motores, das buzinas dos carros e do vozerio dos transeuntes na rua, mais a “árvore” balança. As árvores novas e menores não sabem como lidar com esse ambiente de barulhos e humores. Elas não sabem como balançar para espantar a sujeira da cidade - são as “novatas”. Mas elas são capazes de aprender em resposta ao ambiente e através da sobrevivência. Amoreiras é um projeto sobre autonomia, aprendizado artificial, natureza e meio ambiente. Os atores principais são cinco novas árvores na Avenida Paulista, centro cultural e econômico de São Paulo. Cinco pequenas amoreiras recém plantadas, que dão frutos vermelhos, drupas compostas cilíndricas, infrutescências de textura suculenta, de sabor acidulado e agradável, que amadurecem na primavera. A árvore tem folhas cordiformes, denteadas, que servem de alimento ao bicho-da-seda; flores em amentilhos e frutos vermelho-escuros, quase negros, comestíveis ao natural e muito apreciados em geléias; amora, amoreira-negra, amoreira-preta, mora. São árvores de plantio proibido nas avenidas das cidades por poluírem suas ruas, com folhas que caem nos bueiros e frutos que atraem passarinhos e mancham de maneira indelével as calçadas e as roupas dos passantes. Cada uma das cinco amoreiras tem uma prótese implantada, um dispositivo que visa suprir, corrigir ou aumentar uma função natural comprometida, e, assim, garantir sua sobrevivência. Prótese de metal, borracha e acrílico, conectadas a pequenos motores e a uma placa arduíno - tudo isso é instalado no jovem tronco, que vai vibrar em diálogo com a variação dos fatores de poluição. Cada árvore tem uma prótese similar, que varia, porém, em função de suas peculiaridades e de sua anatomia. Ao longo do dia, as “aprendizes”, inicialmente desajeitadas, passam a reagir cada vez mais autonomamente em relação aos dados recebidos de poluição, balançando-se quando há muito ruído (o que será uma baliza para o reconhecimento do nível de poluição) e descansando quando a ameaça é 83 ART menor. Até o final da tarde, já se nota diferenças em seus comportamentos, o que demonstra que elas estão aprendendo e talvez também dialogando entre si, intercambiando dados numa dança de próteses maquínicas, varetas, borrachas e folhas. A citação a seguir faz parte de um estudo de Biondi e Reissmann3 a respeito da relação das árvores com a poluição nas grandes cidades: Segundo Harris (1992), as folhas, o tronco e os galhos são as principais partes de uma árvore que podem ajudar o observador a diferenciar uma árvore saudável de outra que sofreu algum distúrbio. Tronco e galhos podem apresentar baixo vigor quando apresentam poucas folhas, grande exudação e furos. A aparência da brotação, ramos ou galhos, no tronco principal podem indicar uma súbita mudança de condições ambientais, injúria estrutural, doenças ou podas excessivas e/ou incorretas. Os problemas com a poluição do ar são observados logo nas folhas, pois são as partes que mais apresentam os sintomas causados por este fator. Os sintomas são altamente variáveis, geralmente dependentes da espécie e do estado de crescimento, do tipo e concentração dos poluentes, da extensão da exposição da umidade, luz, temperatura, vento e outros fatores Heart (1980). (Grifo nosso). Citamos ainda: Os parâmetros utilizados para a avaliação das árvores urbanas são ainda bastante subjetivos. Na agricultura e na silvicultura, a avaliação do desempenho das árvores é determinada pelas suas respectivas produções, baseadas nos critérios referentes à qualidade e quantidade, de acordo com seus objetivos. Já na área urbana, os critérios utilizados transcendem esses valores qualitativos e quantitativos, porque o envolvimento com os valores estéticos são bem maiores e mais difíceis de quantificar, devido a fatores sentimentais e psicológicos. Atualmente, o monitoramento das árvores urbanas vem sendo realizado na observância e mensuração de variáveis que podem não estar informando o bom desempenho das árvores. Desta forma, é premente a busca de outros parâmetros práticos e precisos para facilitar a manutenção da arborização urbana. (Grifos nossos)”. Dentro deste projeto, um desses parâmetros possíveis para a manutenção da arborização urbana seria a noção de autonomia, presente no processo de aprendizagem entre as árvores-ciborgue, de cintas postiças e motorizadas, com seus “marca-passos poéticos”. Uma proposta de aprendizagem artificial envolvendo arte, meio ambiente e novas tecnologias, numa dança de folhas e balanço de troncos, que evidencia de forma poética o balançar, às vezes (in)voluntário-maquínico, às vezes efeito do próprio vento. Descritivo O Projeto Amoreiras é composto basicamente pelos seguintes elementos: - 5 amoreiras; 84 ART - 3 microfones, que captarão os ruídos (um dos quais é responsável pela leitura da trepidação do chão, decorrente da passagem do metrô e de outras interferências) e funcionarão como sensores e coletores dos dados para as árvores; - 1 computador, que gerencia os dados das 5 árvores e retransmite as informações; - 5 placas arduino bluetooth (uma para cada árvore); - 5 caixas de acrílico com 3 motores independentes, varetas e mecanismo de transmissão (uma para cada árvore). O comportamento de cada árvore é autônomo e se dá em resposta à intensidade do som ambiente, também sendo influenciado pela “personalidade” de cada árvore. A captura do som é realizada diretamente por um patch escrito no Pure Data, que envia as informações para a aplicação principal, desenvolvida em Java, via OSC. Já a “personalidade” de cada árvore, é definida por duas variáveis, sorteadas no início de cada dia, que definem o quanto cada árvore irá buscar imitar as suas companheiras e o quanto o seu comportamento será perturbado de forma aleatória. Cada árvore tem um algoritmo que determina como ativar seus motores (via arduíno) de acordo com a atividade sonora. De uma maneira geral, quanto maior o ruído, maior a atividade. É importante ressaltar que há regras adicionais, como, por exemplo, a intensidade e a extensão da vibração, para que os movimentos sejam suaves, ou o limite de duração de tempo, período em que se pode balançar as árvores sem que elas sejam danificadas. As árvores podem “ver” o comportamento das outras árvores, de modo que cada uma é influenciada pelo comportamento das vizinhas. Essa capacidade é utilizada pelo algoritmo do trabalho para avaliar o “comportamento” de cada árvore. Por “comportamento”, entendemos o nível de ativação dos motores: quanto mais parecido for o comportamento de uma árvore com o comportamento das demais, melhor avaliado será seu comportamento. Inicialmente, o algoritmo é “não habituado”, o que leva a comportamentos “sem sentido” (por exemplo, as árvores balançarem mesmo sem que haja ruído). Um algoritmo de aprendizado monitora o banco de dados e observa constantemente o comportamento de cada árvore, comparando-o com a atividade sonora, e tenta adaptar o algoritmo para que este possa agir de maneira similar. Isto é: o algoritmo de aprendizado tenta fazer com que o algoritmo de cada árvore chegue ao mesmo nível de ativação que os das demais em uma dada intensidade sonora. Existe uma grande variedade de algoritmos de aprendizagem; alguns tão complexos, que podem ser aplicados até mesmo à simulação de processos mentais humanos. Para este projeto, basta um algoritmo simplificado, que atinja um nível de complexidade suficiente para que o resulta do final seja interessante e emergente. O funcionamento seria basicamente o seguinte: para as cinco árvores aprendizes, haveria equações similares que guiariam seus comportamentos, com apenas uma variável 85 ART adicional para cada uma. O aprendizado seria o processo de modificar o valor dessa variável, até que as equações se aproximassem em reação à excessiva poluição. De acordo com o resultado prático dessa abordagem, os parâmetros poderiam ser regulados, de forma a obter o comportamento desejado, que é indeterminado a priori para cada uma das distintas árvores, gerando uma “dança da chuva” espontânea e coletiva. Para a realização do algoritmo das amoreiras, nos orientamos pelos princípios do jogo da vida, de John Conway. Isto é: temos um conjunto de regras simples, que dão origem a um resultado complexo. Entretanto, devemos observar que o comportamento final não é especificado pelas regras, apesar de derivar delas4. O que fazemos é aplicar princípios de vizinhança ao processo de autoavaliação das amoreiras. Quer dizer: o comportamento de duas (ou de apenas uma, se a amoreira estiver em uma das extremidades) amoreiras adjacentes possui um peso maior do que o das amoreiras mais distantes (o que poderia facilitar a ocorrência de comportamentos com possíveis combinações de acionamento dos motores). Todos os algoritmos citados acima são a princípio programados em Java, rodando no computador5. Por conta das limitações de processamento da Arduíno e da sua incapacidade de armazenar dados, a placa só será usada como uma interface entre a aplicação desenvolvida em Java e os motores. Também estão sendo utilizados o banco de dados MySQL, para registrarmos o comportamento de cada amoreira ao longo da exposição, e um pequeno sistema de monitoramento, escrito em PHP, que é acionado pela aplicação em Java, em caso de erro6. Ao ser acionado, o sistema de monitoramento envia e-mails aos integrantes do grupo, relatando o erro ocorrido. Na prática, o resultado esperado é o seguinte: • As árvores irão balançar isoladamente, de vez em quando, de acordo com o ruído ambiente, de forma a se livrar da poluição em suas folhas. • As árvores irão agir de maneira inicialmente arbitrária e ao longo do dia passarão também a dialogar entre si, entrando cada vez mais em uma sintonia emergente. Algumas observações: 86 • • As árvores são todas jovens e cada uma delas é tratada como um indivíduo. Seus motores e caixaspróteses são similares, mas não idênticas, adaptandose de forma adequada a cada uma delas, sem machucá-las. • • Ao término de cada dia, as “personalidades” das árvores são alteradas de maneira randômica, de forma a reiniciar o processo de aprendizagem. Isso ART impede que, a partir do primeiro dia, todas as árvores já estejam “em sintonia fechada” e não mudem mais de comportamento; ao contrário, permite que construam ciclos e ritmos emergentes e que continuem buscando distintas aproximações entre si, como numa dança de folhas e árvores, com suas próteses poéticas, que se rebelam contra a fuligem, em meio a barbárie urbana. Como se as árvores da cidade se agitassem para denunciar a sujeira do ar7, lembrando-nos também do perigo em que vivemos e da situação que ajudamos a gerar. FIGURA 2: Projeto Amoreiras O Grupo Poéticas Digitais, neste trabalho, é composto por: Gilbertto Prado, Agnus Valente, Andrei Thomaz, Claudio Bueno, Daniel Ferreira, Dario Vargas, Luciana Ohira, Lucila Meirelles, Mauricio Taveira, Nardo Germano, Sérgio Bonilha, Tania Fraga, Tatiana Travisani e Val Sampaio. http://poeticasdigitais.net/projetos/amoreiras/index_en.html 87 ART O projeto foi selecionado para a exposição Emoção Art.ficial 5.0, Bienal de Arte e Tecnologia do Itaú Cultural, São Paulo, 30 de junho e 5 de setembro de 2010. 1 Artista multimídia, professor titular do Departamento de Artes Plásticas da ECA - USP, Pesquisador 1C CNPq. www.gilberttoprado.net 2 O Grupo Poéticas Digitais foi criado em 2002, no Departamento de Artes Plásticas da ECA- USP, com a intenção de gerar um núcleo multidisciplinar, promovendo o desenvolvimento de projetos experimentais e a reflexão sobre o impacto das novas tecnologias no campo das artes. O Grupo Poéticas Digitais tem diferentes composições a cada projeto. Os créditos com os respectivos participantes estão relacionados ao final de cada projeto. 3 BIONDI, Daniela; REISSMANN, Carlos Bruno. Avaliação do vigor das árvores urbanas através de parâmetros quantitativos, In: Scientia Florestalis, n. 52, dez. 1997, p.17-28. 4 Em outras palavras, no algoritmo do projeto não há nenhuma especificação de “gliders” ou “blinkers”. Há apenas as quatro regras básicas de Conway, que trabalham os princípios de vizinhança. Para informações iniciais sobre o jogo da vida, consultar: <http://en.wikipedia.org/ wiki/Conway’s_Game_of_Life> 5 A parte feita em Java da programação do projeto Amoreiras foi realizada com o uso do NetBeans e utiliza as seguintes bibliotecas: JavaOSC <http://www.illposed.com/software/ javaosc.html> RXTX <http://rxtx.qbang.org/wiki/index.php/Main_Page> Links úteis: NetBeans <http://netbeans.org/> JDK <http://java.sun.com/javase/downloads/index.jsp> 6 Sobre a estrutura do banco de dados utilizado pela programação do projeto, algumas referências adicionais: SQL <http://en.wikipedia.org/wiki/SQL> MySQL <http://dev.mysql.com/ doc/> phpMyAdmin <http://www.phpmyadmin.net/> XAMPP <http://www.apachefriends. org/en/xampp.html> 7 DIMENSTEIN, Gilberto. Amoreiras Inteligentes, In: Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, C2, 30/06/2010. 88 ART Números Hugo Rodas1 Resumo: Lembranças e experiências com números, como subsídio para o esclarecimento de exercícios que levam em consideração movimento, tempo e intensidade. Palavras-chave: Matemática, memória, criação. Abstract: This paper presents memories and experiments using numbers in order to clarify artistic exercises based on movement, time, and intensity. Keywords: Mathematics, Memory, Creation. No começo odiei a matemática. Minha primeira relação com ela foi absolutamente material - tudo o que significava dinheiro e junto com isso o sacrifício para consegui-lo a clareza para reparti-lo, enfim. Tudo, absolutamente tudo o que era justo e certo tinha que ver com matemática. Lembro-me dos meus pais quando logo do jantar e normalmente quando eles pensavam que eu dormia, faziam contas e contas:tanto para Hugo, tanto para a casa, tanto para a comida, tanto para diversão , tanto para prevenir. Eu via os números voando e cercando a vida do mundo inteiro, tempo de trabalhar,tempo de estudar,tempo de brincar,tempo de esperar,tempo X tempo,número X número, ano X ano, a conta certa,o pago certo,o resultado certo. Um terço dos meus pesadelos infantis eram relacionados com números já que desde muito cedo eu não era uma pessoa certa,o numero de biscoitos que roubava,a quantidade de chocolatinhos que comprava na mercearia,o tempo que soterrava dos estudos,enfim. Detestava todas as proibições e atribuía todas elas à idade. Odiava ser menino. Uma das minhas primeiras contas foi a de calcular quantos anos teria no 2000, somas e mais somas até chegar aos 60,teria sessenta anos . Não gostava muito da infância. Achava chata a vida de menino,a dos adultos me fazia sonhar,imaginar. Vivia pensando em isso e sonhava com o mundo novo que veria. Como sou filho único inventava minhas próprias brincadeiras. E uma das favoritas era a do cego. Contava os passos e os tempos para andar no escuro ou de olhos fechados: dois para descer da cama ,três passos pela borda da cama, um para direita e de pronto estava de frente à porta da cozinha, e assim por diante. Quando comecei a estudar piano esta brincadeira passou a ter outros requintes e ficar um pouco mais perto de Deus. O que simplesmente eram três passos se transformou numa dança de reconhecimento do meu quarto , ou então em uma frase musical que ocupava a descida da cama - cego, sempre cego e sem trapaças comigo mesmo, lento, muito lentamente para não me lastimar,ou quebrar alguma coisa,ou fazer qualquer ruído que perturbasse a minha concentração ou denunciasse o meu trabalho. Tinha 89 ART sete ou oito anos. Mais tarde entenderia isso como o encontro do numero com o divino,o tempo de representá-lo, senti-lo ,ritualizá-lo. Até hoje faço esse exercício com meus alunos - tempo,numero e o infinito e íntimo do obscuro, e a liberdade do movimento nessa segurança. Naquele momento, tudo era embalado pelos musicais da época, os quais me enlouqueciam - via duas ou três vezes, contava e recontava ,cantava cada tempo para aprender e repetia no meu quarto as coreografias, tempo por tempo,passo por passo. Creio que foi meu primeiro contato espiritual e prazeroso com o numero. Já não me cercavam, nem me torturavam. Tive outras “experiências” como, por exemplo, contar quando me punham de castigo.No começo era só a conta por si mesma. Em vez de rezar, contava. Logo que eu reconheci o tempo que durava, eu comecei a apostar. Por exemplo: a conta oscilava de 100 a 500 dependendo da gravidade da falta - o que vinha a dar em uns 200 a 1000 na realidade, porque eu sempre contei de a dois para dar mais tempo ao numero e trabalhar diferentes ritmos,quer dizer sempre contei compasses: 2/4: 1-2 - 2-2 - 3-2 – 4-2 .Ou 3/4 :1-2-3 – 2-2-3 – 3-2-3 – 4-2-3. O que resultava em outra brincadeira preenchendo o meu tempo de espera. Nos anos setenta esta forma de contar rendeu num exercício coreográfico que trabalho ate hoje,uma frase numérica do numero um ao nove. A frase é composta da seguinte maneira: 8 tempos de 1 ,-fortes 4 grupos de tempos 2.-o 1º. forte, o 2º. suave 4 grupos de tempos 3.-o 1º forte, o 2º.e o 3º. suaves 4 grupos de tempos 4,-o 1º e 4º, fortes,o 2º. e 3º. suaves 4 grupos de tempos 5.-o 1º e 4º, fortes, o 2º 3º.e 5º.suaves 4 grupos de tempos 6.-o 1º. e 4º, Fortes, o 2º. 3º. 5º.e 6º. suaves 4 grupos de tempos 7.-o 1º.3º.e 5º fortes, o 2º. 4º. 6º e 7º. suaves 4 grupos de tempos 8.-o 1º.4º.e 7º.fortes, o 2º. 3º. 5º. 6º.e 8º. suaves 4 grupos de tempos 9.-o 1º.3º.5º.e 7º.fortes, o 2º. 4º. 6º. 8º.e 9º. suaves FRASE ESCRITA EM MAÍUSCULA É O TEMPO FORTE 1) ES-TOU-COME-ÇANDO-A-EN-TEN-DER 90 2) ES-tou-COME-çando A-en-TEN-der 3) ESTOU-come-çando A-enten-der ART 4) ESTOU-come-çan-DO A-en-ten-DER 5) ESTOU-começando-a- ENTEN-der 6) ESTOU-começando-a En-ten-der 7) ESTOU-come-ÇAN-do A-enten-der 8) ES-tou-come-ÇAN-do-a-ENTEN-der 9) ES-tou-COME-çan-DO-a-En-ten-der Este exercício completa seu caminho tocando os tempos fortes com instrumentos de percussão e os suaves com instrumentos de sopro além de cantado e bailado a um mesmo tempo. O caminho estava aberto, logo Julio César de Mello e Souza o Malba Tahan e O homem que calculava, com sua primeira edição em 1939 o ano em que nasci,realmente revoluciono e amenizo os ensinamentos através das historias do comerciante Beremiz Samir. Histórias... O entendimento matemático aberto para todas as possibilidades rendeu uma das histórias mais lucrativas da minha infância: aproveitei-me da disputa que duas das minhas cinco tias mantinham pela minha preferência, (já contei isso numa peça que se chamava Boleros). Tinha uma delas que era a minha madrinha, Eustáquia, que sempre me dava dinheiro às escondidas para comprar guloseimas no cinema . A outra, que curiosamente se chamava Justa, sacou o suborno, e me perguntava quanto tinha ganhado. Eu confessava, e como recompensa recebia o dobro. Calculando, se madrinha me dava 10 , minha outra tia me dava 20, o que dava 30, o súbito entendimento de prosperidade apareceu: se eu aumentasse o numero da quantidade da minha madrinha, eu receberia muito mais. Quer dizer, 15 da madrinha dariam 30 da Justa, o que daria 45 ,ou seja um ganho do 50%. Creio que por isso algumas frases dele como, “o homem vale pelo que sabe”,”saber é poder”,serviram para conter aquele monstro incipiente. Mais tarde o encontro com Pitágoras e seus ensinamentos 500 anos antes de Cristo a igualdade de condiciones entre homens e mulheres,o entendimento da comunidade e seus ACÚSMATAS, que quer dizer, ‘coisas ouvidas’ - chaves,símbolos entendidos apenas pelos próprios membros que a constituíam, facilitando sua compreensão, desenvolvimento e criatividade,ensinamentos que regeram todos meus atos ,desde o final dos anos sessenta. Quem não conhece expressões minhas como ‘das-lais’ ou ‘safemberguem-nais’, palavras compreendidas por meus alunos e absolutamente claras em seus significados para eles. 91 ART Considerações NÚMEROS, NUMEROLOGIA - foi tão forte o encontro com ela, depois de descobrir que eu era um 669, a três números da perfeição, que seria o 369, e a três números da besta, o 666, até chegar num ponto em que não alugava um apartamento ou não viajava em tal data, ou se tinha um encontro importante não pegava nenhuma condução que a soma dos números não desse num número impar. Numerologicamente, o 9 é 0, o que facilita a conta.Digamos, 669 na soma é três: 9=0 , 6+6=12 , 2+1=3 Números uma paixão certa. Para terminar, umas frases de Pitágoras, que são um testamento: “todas as coisas são números” “aquele que fala semeia,aquele que escuta,recolhe” “com ordem e com tempo encontrasse o segredo de fazer todo e todo fazer bem” “os afetos se somam, subtraísse nunca” “o ser capaz, mora perto da necessidade” “o universo é uma harmonia de contrários” “o homem é a medida de todas as coisas” “não é livre quem não consegue ter domínio sobre si” “educai as crianças e não será preciso punir os homens” 1 Ator, bailarino, coreógrafo,músico, dramaturgo. Professor do programa de pós-graduação em artes da Universidade de Brasília. 92 ART O universal no imaginário sistêmico das poéticas cartográficas: aclopamentos e desvios nos processos de criação transmidiáticos Lucia Leão1 Resumo: As poéticas cartográficas, compreendidas enquanto processos de visualização dinâmicos de bancos de dados digitais caracterizam práticas de produção de sentido e organização esquemática no ciberespaço. Também denominados mapas da informação, esses projetos, devido sua natureza multidisciplinar, são discutidos em diferentes campos da ciência como a carto-semiótica, o info-design e as teorias da informação. O exercício de estruturação do pensamento em diagramas conceituais, no entanto, é algo que acompanha os procedimentos cognitivos da humanidade e são observáveis em diferentes períodos da cultura. Através das interações com os sistemas de visualização, é possível perceber diferentes níveis de complexidades, relações inesperadas entre os dados, extrair reflexões pessoais e desenhar resignificações. Objetiva-se neste artigo analisar a presença e a busca pelo universal sistêmico no cenário das produções transmidiáticas. Palavras-chaves: Processos de Criação nas Mídias; Arte e tecnologia; Imaginário; Cartografias digitais, visualização de dados, universal. Abstract: The poetic cartographies, understood as dynamic data visualization processes, characterize frequent practices of meaning production and schematic organization into cyberspace. Also called information maps, these projects, because of its multidisciplinary nature, are discussed in different areas of research such as semiotics, info-design and information theory. The exercise of structuring the thought into conceptual diagrams, however, is something that accompanies the cognitive procedures of humanity and that can be observable in different periods of culture. Through interactions with visualization systems, it is possible to see different levels of complexity, unexpected relationships among the data, extract personal reflections and design meanings. The main objective of this article is to analyze the presence and the search for the systemic universal in the context of transmedia productions. Keywords: Creative Processes in Media; Art and technology; Data visualization; Imaginary; Digital Cartographies. Nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha. (Bachelard, 1991:95) Visualização do conhecimento, mapas dinâmicos de bancos de dados digitais e design da informação são processos criativos que permeiam o ciberespaço. As poéticas cartográficas caracterizam práticas de produção de sentido que buscam organizar dados complexos. Também denominados visualização de dados (em inglês, “data visualization”), ou visualização da informação (“information visualization”, abreviado em “infovis”), esses projetos buscam desenvolver maneiras visuais de representação de 93 ART um grande número de dados. Devido sua natureza multidisciplinar, são discutidos em diferentes campos do conhecimento como a comunicação, a carto-semiótica, as ciências cognitivas, o info-design e as teorias das mídias. As aplicações desses sistemas de visualização se estendem para praticamente qualquer campo de pesquisa. Nas Ciências Sociais, por exemplo, os processos de visualização desempenham papel fundamental no entendimento de padrões e comportamentos. As redes sociais online, com suas práticas e milhares de membros, geram e disponibilizam numerosos dados. São os sistemas de visualização que auxiliam as pesquisas na organização e compreensão desses dados. Os bancos de dados são elementos distintivos da linguagem das novas mídias (Manovich, 2001). Como já discutimos anteriormente, o exercício de estruturação de dados em mapas, tabelas, gráficos e diagramas, é algo que acompanha os procedimentos cognitivos da humanidade. Meios que auxiliam a expansão das capacidades cognitivas, as representações visuais são encontradas em diferentes períodos da cultura (Leão, 2003). Consideramos as cartografias informacionais como processos de criação transmidiáticos à medida que operam nas convergências das mídias (Jenkins, 2008). Como veremos, as cartografias informacionais são processos que necessariamente hibridizam linguagens e meios diversos (textos, imagens, fotografias, diagramas, áudio, vídeos, entre outros). Nas cartografias de dados, os processos de convergência midiática são realizados a partir de protocolos das tecnologias digitais, mas não se restringem a isso. Para compreendermos as dimensões midiáticas que orbitam nos processos de convergência, é necessário que pensemos cada mídia envolvida como um sistema cultural. Na definição de Gitelman em “Always already new” (2008): I define media as socially realized structures of communication, where structures include both technological forms and their associated protocols, and where communication is a cultural practice, a ritualized collocation of different people on the same mental map, sharing or engaged with popular ontologies of representation (2008:7).2 Na rica discussão empreendida por Manovich (2010) em seu artigo “o que é visualização”, os processos de infovis são mapeamentos de dados discretos que resultam em uma imagem. O que há de especial a respeito das imagens produzidas através desse processo de mapeamento é que são meios de descobrir estruturas de grandes volumes de dados. Nesse sentido, Manovich aponta que os infovis se caracterizam por adotar uma metodologia de redução de dados e privilegiam variáveis espaciais no processo de mapeamento: By employing graphical primitives (or, to use the language of contemporary digital media, vector graphics), infovis is able to reveal patterns and structures in the data objects that these primitives represent. However, the price being paid for this power is extreme schematization… They all use spatial variables (position, size, shape, and more recently curvature of lines and movement) to represent key differences in the data and reveal most important patterns and relations. This is the second (after reduction) core principle of infovis practice as it was practiced for 300 years 94 ART - from the very first line graphs (1711), bar charts (1786) and pie charts (1801) to their ubiquity today in all graphing software such as Excel, Numbers, Google Docs, OpenOffice etc. (Manovich, 2010)3 No desenvolvimento de seu artigo, Manovich descreve um tipo especial de visualização que opera sem reduzir os dados. Nessa metodologia, popularizada a partir dos desenvolvimentos tecnológicos recentes, o rico conjunto de propriedades dos objetos de dados são preservados à medida que as visualizações são criadas diretamente. Nesses procedimentos, são visualizadas propriedades como interatividade, animação e também as conexões entre os objetos. Manovich denominou esse método de “visualização direta”. Para a discussão presente, optamos por considerar os processos de produções em interfaces gráficas interativas que acoplam meios variados (imagens, textos, diagramas, vídeos, etc.) que, devido sua natureza de convergência, podem ser situados naquilo que Jenkins denominou transmidiáticos (2008). Os estudos de casos que apresentamos no decorrer do artigo foram realizados a partir de uma visão em rede e em constante transformação, tal como apresenta Salles (2006). O objetivo dos processos de visualização de dados é desenvolver métodos e técnicas de representação visual que aumentem a comunicação e a compreensão de dados complexos ou volumosos. Os projetos de visualização de dados são compostos por três etapas: a coleta de dados, programação de ferramentas para visualização de dados e programação de aplicações de visualização interativa. Na pesquisa realizada por Manuel Lima, presente no site Visual Complexity 4 e também em seu livro (2010), os projetos de visualização da informação estão organizados nas categorias: assunto, método de visualização, “trend”, ano e autores. Em “trend”, Lima apresenta projetos que se utilizam de procedimentos de mash-ups de sistemas como YouTube, Flickr, Google Maps, etc. Na taxonomia fundada nos métodos de apresentação estão listados: globo em 3D, diagramas de arco, árvore, convergência radial, redes radiais segmentadas, entre outros. Ben Fry, Valdis Krebs, Santiago Ortiz, W. Bradford Paley, Martin Wattenberg, Stephen G. Eick, Burak Arikan, Chris Harrison, Graham J. Wills, Jeffrey Heer, Marcos Weskamp, Aaron Siegel, Alex Adai, Boris Muller são nomes que figuram na lista de autores “tops” de Lima. Através das interações com os sistemas de visualização, é possível perceber diferentes níveis de complexidades, relações inesperadas entre os dados, extrair reflexões pessoais e desenhar resignificações. Objetivase neste artigo analisar a presença e a busca pelo universal sistêmico no cenário das visualizações. Partimos da constatação de que o universal se manifesta nos processos cartográficos que buscam organizar uma grande quantidade de dados em um sistema de visualização. Façamos agora uma reflexão acerca dos sentidos do universal no imaginário. 95 ART Imagens do universal: uma busca mitohermenêutica O universal permeia a cultura contemporânea e emerge como sonho de totalidade em um cenário povoado pela imensidão de dados digitais. Assustadora e mutante, a imensidão composta por gigantescas quantidades de dados se assemelha a um ser vivo, em constante metamorfose. Nesse sonho, a busca pela compreensão do infinitamente grande vem acompanhada pelo desejo de atribuir significado. Como nos fala Bachelard: “O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua aureola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva” (1990:1). No imaginário sistêmico das redes, o universal é sempre rizomático e se desvela em múltiplas faces: listas de favoritos, assinaturas de atualizações, enciclopédias... Como imagem de totalidade, o universal retoma propostas da gestalt e do holismo, e nos convida a compreender o “todo”. Fundada no fato de que o princípio operacional do cérebro tem uma natureza holística, a teoria da gestalt propõe que o todo tem uma natureza diferente da soma de suas partes. Como nos fala Arnheim (1980): No ensaio que deu à teoria da Gestalt seu nome, Christian Von Ehrenfels demonstrou que se doze observadores escutassem cada um dos doze tons de uma melodia, a soma de suas experiências não corresponderia à experiência de alguém que a ouvisse inteira. Vejamos agora as imagens do universal através de um olhar da Mitohermenêutica, que, segundo Ferreira Santos, consiste em: ... um trabalho filosófico de interpretação simbólica com cunho antropológico que visa compreender as obras da cultura a parti dos traços míticos e arquetipais captados através de arranjos narrativos das suas imagens e símbolos na busca dinâmica de sentidos para a existência (2004:91). Uma pesquisa sobre as imagens do universal nos leva ao encontro da carta de número 21 do Tarô, denominada “O Mundo”. É importante notar que existem diferentes baralhos de Tarô e que cada um apresenta imagens próprias. No entanto, os sentidos inscritos em suas imagens são bastante similares. Para o presente artigo, utilizamos o Baralho de Marselha. Símbolo das estruturas equilibradoras, a carta do Mundo, segundo a classificação isotópica das imagens de Gilbert Durand, é uma imagem que se situa no sistema sintético. Na sistematização das imagens que impregnam a civilização, Durand apresenta os princípios do regime diurno (razão, distinção) e princípios do regime noturno (emoção, mistura). Na união desses dois princípios opostos, o sistema sintético evoca imagens de cooperação e sinergia (Durand, 2002). Na carta do Mundo, a imagem de um ser andrógino aparece ao centro da imagem. Ao redor do corpo, uma guirlanda o circunda. Em cada um dos cantos da carta, quatro figuras representam imagens como um anjo sobre uma nuvem, uma águia, um leão e uma vaca (ou um cavalo, em alguns baralhos). Seguindo uma leitura de perspectiva mitohermenêutica, esses elementos se referem aos quatro elementos do universo: o anjo sobre 96 ART uma nuvem, expressa o elemento água; o ar é indicado pela águia; o fogo vem na forma de um leão; e a terra na imagem do cavalo ou da vaca. Os quatro elementos simbolizam também as quatro direções da bússola e conjungados revelam a harmonia cósmica. A idéia de totalidade está indicada também pela coroa de folhas que enlaça a figura humana. Observando a imagem humana, podemos refletir sobre os sentidos da androginia, sobre a integração dos dois sexos em um único ser. Normalmente vistos apenas como princípios opostos, o andrógino nos apresenta a união do masculino e feminino. Nessa imagem, as polaridades se conectam de forma complementar, equilibrada: “é que o andrógino, microcosmo de um ciclo em que as fases se equilibram sem que nenhuma seja desvalorizada em relação à outra, é, no fundo, justamente um “símbolo de união” (Durand, 2002:292). Além disso, podemos ver que um dos pés da figura está elevado, indicando movimento. Assim, podemos relacionar esse corpo jovem ao centro com a idéia de dança, uma dança em movimento perpétuo. Uma busca arqueológica nos sentidos do movimento perpétuo e da eterna mutação nos insere na segunda dimensão imaginária do universal. Nesse sentido, o universal se revela como aquilo que está sempre em movimento, eterno fluir, nunca inerte. Ao imaginar esse eterno movimento, a figura de um círculo que roda, que gira, nos remete às antigas reflexões sobre o tempo. Como se sabe, os babilônicos já usavam o círculo para medir o tempo. Na alquimia, o círculo é um dos símbolos fundamentais, imagem de unidade. Geometricamente, todos os pontos são eqüidistantes do centro e isso remete a idéia de reencontrarse no ponto central. Não por acaso, o universal também aparece na imagem do círculo que gira incessantemente e, nessa interpretação, o tempo é algo infinito, cíclico, uroboros e serpente que se renova. Como aponta Durand: “O círculo, onde quer que apareça, será sempre símbolo da totalidade temporal e do recomeço” (Durand, 2002:323). Além disso, podemos associar o círculo à imagem do “tai-gi-tu dos chineses, no qual os dois princípios, yin e yang, se engendram reciprocamente” (Durand, 2002:325). E, nesse sentido, são símbolos que se situam como “estrutura sintética, uma estrutura de harmonização de contrários” (Durand, 2002:346). A terceira dimensão dos sentidos do universal que gostaremos de explorar diz respeito à idéia de iluminação, entendimento. Na carta do Mundo, essa idéia está expressa na visualização dos quatro elementos primordiais, que formam a figura de um quadrado, e sua relação com o elemento circular da guirlanda. Como um mapa de conhecimento, a carta do Mundo sintetiza e apresenta os movimentos que levam do quadrado ao círculo. Busca ancestral, também presente na imagem da mandala, “a quadratura do círculo” evoca um tipo de compreensão elevada, quase impossível de ser alcançada. Podemos associar esse tipo de entendimento à idéia de “iluminação pelos sentidos” desenvolvida por Maffesoli em “Elogio da Razão Sensível”. Para o pensador francês, o sensível é elemento central no ato de conhecimento e, portanto, é preciso integrar abstração e conceitos à função cognitiva ligada ao prazer estético: ...o intelectual deve saber encontrar um modus operandi que permita passar do domínio da abstração ao da imaginação e do sentimento ou, melhora ainda, de 97 ART aliar o inteligível ao sensível (Maffesoli: 2008:196). Em síntese, as imagens do universal que irão nos auxiliar nas reflexões sobre as cartografias do ciberespaço são: totalidade (compreendida como união de opostos complementares); eterna mutação (compreendida como processos transformativos dinâmicos e cíclicos); e entendimento (pensado tanto em termos de insight como de construção de conhecimento). Estudos de casos Vejamos agora alguns exemplos de cartografias poéticas que tratam do universal. O recorte escolhido para análise compreende projetos que utilizam tecnologias computacionais na criação de representações visuais com objetivo de amplificar a cognição. Em essência, essas cartografias poéticas são processos mediados por sistemas computacionais que transformam grande quantidade de dados abstratos em uma representação visual, em geral, dinâmica e interativa. As visualizações, à medida que são meios de comunicação visuais, desvelam estruturas e padrões, auxiliam reflexões de caráter explicativo e relacional; estimulam descobertas, e favorecem o discernimento. Como afirmaram Card, Mackinlay e Shneiderman (1999:6): “O propósito de visualização é o insight, e não as imagens”5. “The World by National Geographic” projeto da Stamen Design6, é um aplicativo para IPad que traz o globo terrestre como interface para cartografias de diferentes partes da Terra. Desenvolvidos pela equipe da tradicional revista, os mapas do projeto são extremamente cuidadosos e precisos. Os mapas e as referências podem ser visualizados em diferentes estilos e tamanhos. Além disso, imagens em alta resolução (de 600 a 2400 dpi) possibilitam aproximações e visualizações de detalhes. Uma questão que acompanha o sentido de universal diz respeito às características das propriedades locais e globais (Petitot, 1985). Em geral, pensadas como propriedades opostas, a busca pelo universal nas cartografias de dados permite uma conjunção dos aspectos globais e locais. Nesse projeto específico, é possível acessar dados do globo terrestre como um todo quando se aciona a interface central do sistema. Na visualização que privilegia o olhar macroscópico, temos a possibilidade de compreender as características globais, mas, no entanto, não temos como acessar detalhes à medida que uma das características do global é a redução de detalhes (Leão, 1999). A conjunção das propriedades globais e locais ocorre a partir do momento em que o interator decide se aprofundar na navegação e clica em pontos específicos do globo. Com esse tipo de interação, o visitante acessa as propriedades locais do ponto geográfico escolhido, e, nesse sentido, o projeto da Stamen Design possibilita que articulações cognitivas das complexidades dos dois sistemas. O segundo projeto que iremos discutir também traz a questão do universal pensada enquanto organização de dados massivos através de uma representação visual. “Gapminder World: Wealth & Health of Nations”7 98 ART permite a visualização de dados de todos os países do mundo a partir de uma interface gráfica. Em um primeiro olhar, o projeto nos lembra os diagramas bidimensionais compostos por um eixo vertical e outro horizontal que costumam ser usados para apresentar dados relacionais. O mapeamento dos dados segue uma lógica fácil de ser detectada e que traduz os países em esferas coloridas de tamanhos diversos. As cores indicam o continente no qual o país se situa e os tamanhos apontam para o número populacional. No eixo horizontal estão alocados os dados referentes aos valores da renda per capita dos países, enquanto que o eixo vertical refere-se a número de anos de expectativa de vida. Um menu situado na lateral direita é meio de acesso aos países através de uma lista ordenada de maneira alfabética. Ao se selecionar o nome de um país, a esfera correspondente é realçada no diagrama. No processo de interação, percebe-se que as relações bidimensionais entre saúde e riqueza das nações podem se associar a uma terceira dimensão referente a outros gráficos que são acessados pela linha do tempo. O projeto também possibilita que se assista a uma animação que percorre as transformações dos dados em uma narrativa cronológica que compreende o período de 1800-2009. Uma terceira forma de acessar visualmente ao banco de dados se relaciona a um tipo de navegação em profundidade. Nessa investida, o interator clica sobre uma das esferas coloridas e acessa a dados referentes a um país. Ao clicar nos eixos (vertical e horizontal) é possível acessar as fontes dos dados. Um menu alocado na parte inferior possibilita a visualização de trajetórias (trails) de um país selecionado. E, finalmente, o Gapminder também oferece a opção de se visualizar os mesmos dados a partir de uma interface do mapa mundi. Nessa opção, uma imagem transparente do mapa acopla informações de localização geográfica às anteriores. O terceiro projeto que escolhemos para análise exemplifica os acoplamentos e desvios que permeiam a busca pelo universal nas aplicações de info-design. Metáforas de constelações são as imagens que desvelam diferentes visualizações de dados em “Universe: Revealing our Modern Mythology”8 (2007). Concebido por Jonathan Harris9, o projeto utiliza o banco de dados de notícias mundiais em tempo real da empresa Daylife10. Baseado na idéia de Zeitgeist – espírito do tempo, “Universo” é um sistema de visualização de dados que permite a exploração do imaginário coletivo das redes informacionais. Ao mesmo tempo, possibilita a exploração das mitologias individuais, à medida que também disponibiliza a visualização de constelações pessoais, geradas com base nos interesses e curiosidades do interator. Vejamos como esses dois movimentos se conjugam. Uma primeira aproximação com o sistema nos leva a uma interface que nos convida a explorar “o universo de...” A visita inicia com opções de links organizados nas categorias: pessoas (people), lugares (places), conceitos (concepts), além de um quadro com escolha livre. O visitante também recebe sugestões para escolha (Angelina Jolie, New York City, climate change etc). Ao se clicar em uma das opções, o aplicativo carrega os dados referentes à escolha feita. Nessa etapa da navegação, vemos uma tela com imagem em movimento de estrelas com uma estrela maior ao centro e é possível também escolher um período de dados (ontem, semana passada, 99 ART mês passado, ano passado). Cada estrela representa um dado - notícia, citação, imagem. Ao mover o cursor através do “espaço celeste”, aparecem linhas que indicam as conexões entre os dados, formando constelações. Quando uma das constelações é selecionada, se movimenta para o centro da tela e envia as demais para a sua órbita. Outras nove opções de visualizações dinâmicas são possíveis através dos “Stages”11: Estrelas, Formas, Segredos, Estórias, Declarações, Instantâneos, Superstars, Configurações e Tempo. Pensado a partir da escolha do usuário, o projeto estabelece representações de universos que se relacionam a temas específicos e cada um dos “palcos” busca dados de uma natureza e propicia relações específicas. O palco “Estrelas” apresenta um campo de pontos (estrelas) que se relacionam com o objeto escolhido para busca. Assim, o projeto também é um tipo de busca de dados que apresenta como resposta um mapa relacional de temas. O palco “Formas” aciona uma série de palavras que se formam pela união de pontos e remetem a idéia de constelação. As palavras geradas se relacionam com ocorrências de notícias que se vinculam ao tema e surgem de forma dinâmica. O palco “Segredos” também parte de uma busca referente ao tema e apresenta as mesmas palavras do palco anterior em uma visualização linear seqüencial que indica em escala de tamanho as ocorrências. O palco “Estórias” busca dados de natureza narrativa e os apresenta visualmente. O palco “Declarações” resgata dados referentes a afirmações ditas. O palco “Instantâneos” busca especificamente imagens, enquanto que “Superstars” extrai dados a respeito de pessoas, lugares, empresas, equipes e organizações. O palco “Tempo” mostra como o “universo escolhido” evoluiu ao longo de horas, dias, meses e anos. É interessante observar também que o usuário escolhe os limites do universo a ser gerado ao definir os parâmetros de busca. Nesse sentido, o universo criado pode ser amplo e geral ou específico, particular e local. Considerações finais Nesse artigo, trouxemos o universal enquanto imagem tríplice de busca e valoração dos sentidos da totalidade; constante mutação e entendimento. Os estudos de casos que realizamos vitalizam as nuances do universal. Conforme sugerimos, o universal se apresenta em projetos cartográficos do ciberespaço que buscam organizar grandes volumes de dados, ou seja, os sistemas de visualização dinâmicos. No primeiro caso apresentado, “The World by National Geographic”, o sentido de busca pelo universal se manifesta na sua forma mais imediata: uma representação do globo terrestre. Vimos que nesse projeto as propriedades globais e locais são visualizadas de forma complementar. Na confluência dessas características, um tipo de compreensão complexa pode emergir. No segundo caso discutido, “Gapminder World: Wealth & Health of Nations”, o universal se desvela em camadas de informações que podem ser visualizadas de maneiras dinâmicas e complementares, acoplando características como mutação no tempo e informações de localização geográfica. No terceiro caso estudado, “Universe: Revealing our Modern Mythology”, observamos características como a complementaridade das visões local/global e o 100 Assim, os aclopamentos e desvios se manifestam nos processos de criação transmidiáticos que caracterizam as cartografias informacionais. Nessa leitura por imagens, nosso texto foi em busca de novos entendimentos do universal e, para isso, contou com o auxílio das metáforas. Como afirmou Maffesoli: “É possível que a metáfora seja a mais capacitada para perceber o aspecto matizado de um mundo marginal cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis” (1998:147). Em resumo, o imaginário sistêmico se manifesta nos projetos de visualização de dados de três maneiras: como imagem de totalidade ao integrar características locais e globais; como imagem em constante transformação ao acoplar as dimensões de tempo e espaço; como imagem de insight e conhecimento ao possibilitar visualizações individualizadas, particulares, desviantes, que emergem das escolhas do usuário e desvelam trajetórias cognitivas em busca de entendimento. Referências bibliográficas ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão craidora. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1980. BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 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Elogio da Razão Sensível. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge: The MIT Press, 2001. 101 ART acoplamento de dimensões mutacionais no tempo e espaço, presentes os projetos anteriores. Entretanto, ao permitir visualizações a partir das escolhas do usuário, “Universe” rompe com a idéia de um universal hegemônico, generalizado e trabalha com a idéia de desvio. ART MANOVICH, Lev. What is visualization? Disponível em: <http://manovich.net/2010/10/25/ new-article-what-is-visualization/>. Acesso em 01/09/2011. PETITOT, Jean. Local/global. In Enciclopédia Einaudi, vol 4. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985, pp.11-71. SALLES, C. A. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Horizonte, 2006. 1 Lucia Leão é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É autora de vários livros, entre eles: O labirinto da hipermídia e O chip e o caleidoscópio. É Pós Doutora em Artes pela UNICAMP e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. [email protected]. [email protected] 2 “Eu defino mídia como estruturas de comunicação realizadas socialmente, sendo que essas estruturas incluem as formas tecnológicas e seus protocolos associados; e a comunicação é uma prática cultural, uma colocação ritualizada de pessoas diferentes compartilhando um mesmo mapa mental, ou envolvidos com ontologias populares de representação “. 3 “Com o emprego de primitivas gráficas (ou, para usar a linguagem contemporânea da mídia digital, gráficos vetoriais), os infovis são capazes de revelar padrões e estruturas nos objetos de dados que representam essas primitivas. No entanto, o preço a ser pago por esse processo é a esquematização extrema ... Todos eles usam variáveis espaciais (posição, tamanho, forma e, mais recentemente curvatura de linhas e movimento) para representar as principais diferenças nos dados e revelar padrões mais importantes e relações. Este é o segundo princípio fundamental (após a redução) da prática infovis como é praticada há 300 anos - a partir dos gráficos de linha (1711), gráficos de barras (1786) e diagramas pizza (1801) - até hoje e sua onipresença pode ser vista em softwares gráficos tais como Excel, Numbers, Google Docs, OpenOffice, etc.» 4 http://www.visualcomplexity.com/vc/ 5 “The purpose of visualization is insight, not pictures”. 6 http://content.stamen.com/ 7 http://www.gapminder.org/ 8 “Universo: revelando nossa moderna mitologia”, In: http://universe.daylife.com/ 9 http://number27.org/ 10 http://www.daylife.com/ 11 Escolhemos traduzir o termo em inglês “stage” por palco. 102 ART A relevância da arte-ciência na contemporaneidade Lucia Santaella1 Resumo: Quando a produção e a circulação de linguagens se aceleram, as florestas de signos ficam extremamente densas, gerando florestas de tempo. Presente, passado e futuro se misturam, cruzam-se em interconexões ininterruptas, pulverizando as noções do tempo como duração e da história como progressão linear. A aceleração teve início na revolução industrial com a invenção da fotografia. Desde então, os meios tecnológicos de produção e difusão de linguagens não cessam de se multiplicar e se diversificar: a começar pelo cinema, passando pelo telefone, rádio, TV, vídeo e sons aqui, ali, por todos os lugares, em todos os momentos, até alcançar as atuais interfaces computacionais com seus fluxos ininterruptos de linguagem hipermídia, junto com a realidade virtual, aumentada, mista e a transmídia. Esta caracteriza-se por textos, imagens e sons que escorregam de uma mídia a outra, conformando-se às determinações semióticas dos novos ambientes que os acolhem. Com isso, a roda viva dos signos foi ganhando um ritmo atordoante, deixando atrás de si cacos de uma imagem de mundo que se estilhaçou. Esse estilhaçamento tem recebido nomes variados, tais como pós-modernidade, segunda modernidade, super modernidade, modernidade líquida, designações que, no universo das artes, repercutiram sob os títulos de “fim da história da arte” ou até mesmo “fim da arte”. Mas que fim é esse? Um fim que não é outra coisa senão um novo começo. De quê? De um fluxo que, cada vez mais, desemboca no múltiplo, no diverso, no plural. Na densa malha das multiplicidades de que a arte contemporânea se constitui, escolhi como tema para reflexão um de seus vetores que me parecem mais fundamentais, a relação entre arte e ciência. Palavras-chave: arte-ciência, transmídia, mediação tecnológica, ciênciatecnologia-arte Abstract: When the production and circulation of languages accelerate, the forests of signs are extremely dense, creating forests of time. Present, past and future mixing intersect in uninterrupted interconnections, spraying the notions of time as duration and history as linear progression. Keywords: art-science, transmedia, technological mediation, sciencetechnology-art A expansão nas fronteiras da arte A era da reprodutibilidade técnica, proclamada por Walter Benjamin, produziu o primeiro abalo sísmico responsável pela expansão nas fronteiras das artes estabelecidas no Renascimento, uma expansão promulgada pela fotografia que carregou consigo a necessidade de se repensar a própria noção de arte, aliás, uma reflexão que deve se renovar ao advento de cada nova mediação tecnológica. A desconstrução contínua e radical das formas de representação visuais herdadas do passado, levada a cabo pelo modernismo, de Cézanne a Mondrian e Pollock, fez-se acompanhar pela 103 ART inserção das novas tecnologias e pela abertura de horizontes insuspeitados no fazer da arte. Essa inserção e essa abertura tornaram-se, sem dúvida, as idéias mais persistentes a atravessar o século 20 e chegar até os nossos dias. Ao submeter, em 1917, como obra de arte um vaso sanitário -- uma privada branca, sem qualquer outro significado que transcendesse o fato de ser um dos mais prosaicos objetos de uso cotidiano -- Duchamp estava assinando uma carta de alforria para a arte. A partir desse gesto-limite, os artistas se viram liberados para fazer de sua arte um ato de fé nos horizontes do sem fim. Não por acaso, em 2004, 500 artistas e historiadores da arte elegeram a “Fonte” como a obra de arte mais influente de todo o século 20. A carta de alforria incluía para os artistas não apenas a absoluta liberdade de escolha dos materiais e dos suportes, das técnicas e dos meios, mas a incorporação e manipulação de todas as tecnologias de linguagem que as forças produtivas do seu tempo colocam ao seu dispor. Do telefone ao rádio, do cinema ao vídeo, da holografia à computação, da internet à realidade virtual, dos aparelhos móveis aos games, são todos dispositivos tecnológicos que os artistas sabem transmutar e transfigurar para o usufruto e regeneração da sensibilidade perceptiva e do pensamento sensível do ser humano, com o fim último de humanizar os sentidos humanos, torná-los sobejamente humanos. Na mesma linha de frente da física que, há um século, já havia demolido os alicerces newtonianos e da matemática questionadora de seus próprios axiomas, as artes também minaram os dogmas, as doxas e os preceitos sobre os limites preconcebidos do que cabe à arte ser ou não ser. A partir do século 19, a tradição das alianças da arte com a ciência, iniciada por Da Vinci, foi se intensificando graças ao crescente engajamento dos artistas no mundo da pesquisa científica e tecnológica até converter essas alianças na chave mestra para a arte do século 21 ao ponto de impossibilitar a compreensão do futuro das artes quando se ignoram as intrincadas relações entre arte, ciência e tecnologia. Entretanto, as florestas do tempo implicam a coexistência e a convivência incondicionais do presente, passado e prenúncios do futuro nos modos artísticos de conceber e de formar. Por isso, o intrincado tecido da arte contemporânea tem soberanamente resistido a quaisquer investidas que tentam reduzir a potência do seu pluralismo. Nos inumeráveis e distintos circuitos atuais da arte, há espaço para abrigar cada um de seus variegados vetores: micro e mega exposições, mini-galerias e mega museus, pequenos festivais e gigantescas feiras, ateliês caseiros e estúdios sofisticados, galpões para hackarte e midialabs de ponta. Nesses espaços vicejam desde a pintura até a neuroarte, da arte feita com pó e brisa a céu aberto à arte que viaja em naves estelares, da escultura à arte pós-mídia. Enfim, nada pode refrear a franquia que os artistas vieram conquistando há quase dois séculos, cabendo agora a cada um encontrar a rota e o nicho que dêem guarida ao seu desejo. Na densa malha das multiplicidades de que a arte contemporânea se constitui, escolhi como tema para a nossa reflexão um de seus vetores que me parecem mais fundamentais, a relação entre arte e ciência. 104 ART Aproximações entre arte e ciência Desde o Renascimento, a arte veio crescentemente se aproximando da ciência. Com a intensificação do papel que, a partir da Revolução industrial, a tecnologia passou a desempenhar nas forças produtivas da sociedade, as relações entre arte e ciência tornaram-se mais estreitas, especialmente através da mediação das tecnologias. Na contemporaneidade, multiplicamse as tendências artísticas ligadas à ciência nas quais tipos variados de parcerias entre artistas e cientistas são estabelecidos. A ciência e filosofia modernas nasceram mais ou menos ao mesmo tempo, a primeira com Galileo (1564-1642), a segunda com Descartes (1596-1650). Por essa época, o Renascimento italiano já havia fundado a arte concebida na sua autonomia, isto é, uma arte que passaria a gozar de uma independência crescente da mitologia e da religião. Leonardo da Vinci (1452-1519) funciona como o emblema de uma produção científica e artística em que a separação entre ciência, filosofia e arte não existia, visto que sua filosofia da arte e sua criação artística se nutriam de suas pesquisas e conhecimentos científicos e técnicos. Depois disso, a ciência foi se caracterizando mais propriamente como uma atividade específica, separada da criação artística. Dentre os três campos, portanto, a ciência foi aquele que se desenvolveu com bastante autonomia em relação aos outros dois. A filosofia, pelo menos até Hegel, manteve relações íntimas com a matemática e a ciência. Com Hegel, houve um divórcio que culminou na visão negativista da ciência presente na obra de Heidegger e da Escola de Frankfurt, entre outros. A arte, ao contrário, é o campo que, ao longo dos séculos e crescentemente, manteve-se muito próxima das descobertas científicas. Disso resulta que o modo como os cientistas tratam a arte é muitíssimo diferente do modo como os artistas sempre trataram e continuam a tratar a ciência. Desde o Renascimento, enquanto alguns artistas puseram seus conhecimentos científicos a serviço da criação, outros encontravam na ciência fontes inestimáveis para as suas obras. Exemplos muito citados disso, ao longo do tempo, podem ser encontrados, no Renascimento, em Leon Battista Alberti e Piero de la Francesca, mentores da perspectiva artificialis, em Daguerre, inventor do daguerreótipo, em Robert Barker que, em 1794, em Londres, mandou construir o primeiro panorama completo e obteve uma patente sobre a idéia. Casos de alianças entre artistas e cientistas também são muitos. Bastante mencionado, por exemplo, é o fato de que os impressionistas, Monet, Cèzanne, Renoir, Sisley, inspiraram-se nos trabalhos científicos sobre o funcionamento da visão, do amigo Eugène Chevreul. Do século XIX para cá, com o advento de três grandes revoluções tecnológicas -- a eletromecânica, a eletroeletrônica e a digital -com as máquinas produtoras de linguagem que essas revoluções subseqüentemente trouxeram, a fotografia, o telégrafo e o cinema, na primeira, o rádio e a TV, na segunda, o computador e todos os seus anexos e extensões, na terceira, as relações entre arte e ciência passaram a ser mediadas pelos aparatos tecnológicos. Uma vez descobertos pela ciência, 105 ART esses aparatos passam a ser imediatamente apropriados pelos artistas para a exploração dos novos potenciais que eles abrem para a criação artística. Hibridações da ciência-tecnologia-arte Como já afirmei em outra ocasião (Santaella 2003: 176), os artistas inquietos e experimentais sempre trabalham com os meios mais avançados que o seu tempo lhes apresenta. Se, no Renascimento, o meio mais avançado era a tinta a óleo, neste início do terceiro milênio, os meios do nosso tempo estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas hibridizações dos ecossistemas com os tecnossistemas e nas absorções inextricáveis das pesquisas científicas pelas criações artísticas. Os artistas que estão trabalhando com esses meios dificilmente poderiam realizar sua arte sem conhecimentos científicos e técnicos ou, mais ainda, sem a parceria certeira com cientistas e técnicos. Essa hibridação entre arte, ciência e tecnologia tornou-se hoje uma realidade inquestionável, especialmente no mais recente avanço da arte para dentro do território da ciência como é aquele que se revela na bioarte (ver Santaella 2004: 95-114, ver também Grau 2003: 285-304). Há quase 20 anos, Mandelbrojt (1994: 179) já falava sobre a relevância dessas relações e hibridizações. Os avanços constantes da ciência e tecnologia, pelo menos desde a segunda metade do século XIX, foi tornando tão importante situar a arte na sua relação com a ciência quanto era importante situar a arte com respeito à religião na Idade Média. A comparação entre ambos pode levar a uma melhor compreensão tanto de uma quanto de outra. Renovando as considerações de Mandelbrojt, para Wilson (2001: 147), os artistas estão verdadeiramente perplexos com o que fazer em resposta à crescente importância da pesquisa científica e tecnológica na formação da cultura. Diante disso, uma das perspectivas mais desafiadoras é aquela que conclama os artistas a entrarem no âmago dos desenvolvimentos como participantes essenciais, pois é um grave erro, continua o autor, “entender a pesquisa contemporânea meramente como um empreendimento técnico; ela tem profundas implicações práticas e filosóficas para a cultura”, implicações das quais os artistas não podem estar alijados. Isso significa que o artista não se coloca simplesmente na posição daquele que faz uso dos resultados de pesquisas realizadas pelos cientistas, mas participa ele mesmo na atividade da pesquisa. Isso se revela no trabalho que artistas, nas últimas décadas, vêm realizando com o computador, fazendo experiências quase ao mesmo tempo em que os pesquisadores também as realizam. Isso fica igualmente claro nos trabalhos atuais de artistas lidando com robótica, com realidade virtual, realidade aumentada e com vida artificial. As principais alianças que se estabelecem entre arte e ciência podem tomar variadas formas: a colaboração entre artistas e cientistas, a apropriação e exploração de procedimentos científicos pelos artistas, propostas visuais que ecoam problemas científicos ou ainda pesquisa que 106 ART se baseia em uma hipótese formulada por meio de uma obra de arte. Dadas essas possíveis variações, é impressionante o recente crescimento no número de instituições, artistas e teóricos voltados para as relações entre arte e ciência. Para ilustrar essa afirmação, apresento a seguir uma listagem não exaustiva dos campos de atuação da arte ciência e de alguns artistas e cientistas nelas envolvidos. Campos de atuação da arte-ciência Um dos grandes especialistas nas aproximações e apropriações da ciência pela arte é Stephen Wilson, Professor de Conceptual/Information Arts, no Art Department da San Francisco State University. Seu livro, Information Arts: Intersections of Art, Science, and Technology, publicado em 2001, apresenta uma impressionante documentação e avaliação crítica desse universo. O livro versa sobre as diversas áreas científicas com as quais a arte e tecnologia se interseccionam. • (a) Biologia (microbiologia, genética, comportamento de plantas e animais, o corpo, processos cerebrais-corporais, tecnologias imagéticas do corpo, medicina). • (b) Ciências físicas (física das partículas, energia atômica, geologia, física, química, astronomia, ciências espaciais e tecnologia GPS). • (c) Matemática e algoritmos (fractais, arte genética, vida artificial). • (d) Cinética (eletrônica conceitual, instalações sonoras e robótica). • (e) Telecomunicações (telefone, rádio, telepresença, web arte), • (f ) Sistemas digitais (mídias interativas, RV, realidade aumentada, sensores alternativos – tato, movimento, olhar, características pessoais, ativação de objetos, som 3-D, fala, visualização científica, vigilância, sistemas de informação). Na área de arte robótica, há um número muito grande de artistas. Um grupo proeminente, formado em 1992, sob o nome de Amorphic Robot Works e sediado em Nova York, reúne artistas, engenheiros e técnicos que trabalham juntos para criar performances robóticas e instalações. Já existe inclusive uma Associação denominada ArtBots que promove o The Robot Talent Show, uma exposição internacional de arte robótica e da arte de se criar robôs. Não poderia haver um indicador mais claro da miscigenação da arte e ciência do que essa justaposição entre uma arte robótica e a arte de criação de robôs. Essa associação organizou uma longa cronologia da arte robótica que já teve início nos anos 1950. O campo da bioarte e arte genética não está menos avançado do que o da arte robótica (ver Grau 2003, Santaella 2003). Ele envolve obras que se 107 ART utilizam tanto de materiais vivos (DNA, microorganismos, células, tecidos) quanto de mídias tradicionais como a pintura como um modo de se engajar na problemática da biotecnologia. Trata-se de um campo extremamente controverso. Pronunciamento crítico sobre as questões envolvidas na bioarte foi feita por Roger Malina, diretor do Euve, observatório da Nasa, e teórico das relações entre arte e ciência, durante o Contemporary Art Experts Forum da Arco-04, Feira de Arte de Madrid. Para Malina, em relação à bioarte, especialmente quando envolve manipulação de material genético, e ao design midiático da vida artificial, devemos manter uma atitude crítica para evitar a cegueira de nossas perspectivas. Outra área também explorada por alguns artistas é a da nanoarte que usualmente explora os espaços quase onínicos da nanotecnologia em conexão com as realidades e aplicações dos fenômenos em nanoescala. A nanoarte trabalha tanto com as ferramentas e técnicas da nanociência, quanto com suas metáforas subjacentes naquilo que elas sugerem da compreensão que podemos ter de nós mesmos e do nosso lugar no mundo. Uma área, até mesmo surpreendente, em que as relações entre arte e ciência têm emergido, está voltada para os átomos, fissura e fusão. Enquanto a química orgânica na sua conexão com sistemas vivos é mais frequentemente trabalhada pelos artistas, a química inorgânica e os processos nucleares de fissura e fusão raramente aparecem em contextos culturais e artísticos. No entanto, a busca de fontes energéticas alternativas tem colocado o átomo em evidência, chamando a atenção inclusive dos artistas. Em uma linha similar, existem trabalhos de arte que exploram, ilustram, completam ou enriquecem um dos mais importantes debates em curso na física atual sobre a incompatibilidade da física quântica com a teoria da relatividade geral. Na mesma esteira dos cientistas, os artistas tentam interpretar o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Também se preocupam com as aplicações das mídias locativas, com os campos eletromagnéticos e com as consequências da curvatura do espaço-tempo. Entretanto, os fundamentos epistemológicos e os meios visuais de que se apropriam para atingir seus objetivos são radicalmente distintos daqueles que são utilizados na ciência. Tendo em vista a ecologia e as questões climáticas que estão hoje no centro das preocupações internacionais, há artistas que têm se envolvido com trabalhos que exploram uma noção expandida da ecologia em tempos de emergência. A expansão no conceito de ecologia vem dos três tipos de ecologia desenvolvidos na ecosofia de Guattari: o ambiente, as relações sociais e a subjetividade. A ecosofia de Guattari não envolve as costumeiras divisões entre natureza e cultura, natureza e homem, espécie humana e espécies não humanas. Em lugar disso, o autor lida com diversos aspectos do pensamento e da ação ecológica – o ambiental, o mental, o social, o político. Por fim, um campo que tem chamado atenção recentemente é o da neuroestética e neuroarte. Os avanços nas neurociências e neuroimagens têm atraído os artistas para os variados aspectos que essas ciências revelam sobre o cérebro. No campo vizinho, existem também trabalhos de artistas que se interessam pelas relações entre arte e medicina. 108 ART Artistas pioneiros na arte-ciência Alguns dos artistas mais conhecidos cujos trabalhos, muitas vezes em parceria com cientistas, situam-se nos interstícios entre arte e ciência são: Thomas Ray, biólogo e pioneiro em criações de vida artificial. Ele colaborou com Kwnobotic Research e com Christa Sommerer e Laurent Mignonneau (artistas sediados no Centro de Arte e Tecnologia de Tóquio) na criação do E-Volve, uma das mais comentadas obras digitais de artebio. Joe Davis vem desenvolvendo trabalhos em arte transgenética no MIT. Ted Krueger tem fabricado sentidos sintéticos. Esse artista-cientista pratica e analisa questões sobre gravidade zero, quando o corpo incorpora o ambiente. Marcos Novak vem trabalhando com arquitetura inteligente. Victoria Vesna, artista e chefe do departamento de Design e Artes Midiáticas na Universidade da Califórnia, em parceria com Jim Gimzeski, especialista em nanotecnologia, criou o Zero@wavefunction: nano dreams, uma obra que foi exposta em Los Angeles. Marie Hélène Tramus e Michel Bret têm trabalhado com inteligência artificial, redes neurais e autonomia em sistemas autoorganizativos e Scott Fischer com Realidade Virtual. Desde os pioneiros acima elencados, o número de artistas nesse campo tem crescido, inclusive no Brasil já há alguns artistas que estão produzindo nos interstícios da arte e ciência. Uma vez que estou trabalhando no momento no levantamento de obras desses artistas brasileiros, a apresentação de um mapeamento relativo a eles deverá ficar para uma outra ocasião. Assimetrias nas relações entre arte e ciência Diante da proliferação de trabalhos que revelam a indissociação contemporânea entre a arte e a ciência, resta perguntar por que, através dos tempos, a ciência não necessitou da arte e não se aproximou da arte com a mesma intensidade com que esta buscou aquela. Para compreendermos as razões dessa assimetria, é preciso refletir um pouco sobre algumas distinções básicas entre a ciência e a arte, enquanto formas de conhecimento e representação do mundo. A ciência tem como tarefa decifrar as leis da natureza, para poder predizer ocorrências futuras. Seu compromisso com o objeto que propõe conhecer é incontornável. Por isso mesmo, o esforço da ciência está voltado para o aprimoramento dos meios de observação acurada, aferição, experimentação e mesmo simulação do real. Seus protocolos de pesquisa são controlados e seus procedimentos padronizados. Por isso também, os discursos da ciência buscam evitar ambigüidades, sentidos suspensos, resultados inconclusos. A arte, por seu lado, não assina compromissos diretos com o real. Ela nasce e se realiza por força dos apelos indomáveis do imaginário e seu discurso, em quaisquer dos sistemas de signos com que trabalhe – verbal, visual, sonoro e todas as suas misturas, alimenta-se do impreciso, do incerto, do indecidível. 109 ART Embora essas sejam distinções básicas entre a ciência e a arte, o século XX viu nascer, dentro da própria ciência, teorias que colocaram em cheque suas tradicionais pretensões de precisão, objetividade, conclusividade, como, por exemplo, ocorreu com a física quântica, com o princípio da incerteza de Heisenberg, com o teorema da incompletude de Gödel. Além disso, o advento do computador tornou possível a visualização de mundos matemáticos complexos como nas teorias dos fractais, do caos determinista, enfim, o mundo dos números, das equações, dos algoritmos, quando transplantado para as telas dos computadores, revela imagens dinâmicas cuja exuberância estética nos obriga a repensar supostas separações entre ciência e arte (ver Azeredo Campos, 2003; Santaella, 2010). Isso, entretanto, não anula a dissimetria no modo como cada uma se aproxima da outra. Enquanto os artistas buscam crescentemente a intersecção com a ciência, os cientistas, via de regra, devido às condições impostas à sua formação, têm uma visão bastante conservadora da arte. Razões para tal dissimetria não faltam. A começar pelas distinções nas esferas sócio-culturais e institucionais em que ambas, ciência e arte, operam. Na expectativa da multiplicação do retorno financeiro que as descobertas científicas trazem, investimentos vultosos são aplicados pela indústria e pelo Estado nas pesquisas científicas, em laboratórios e equipes de pesquisa que gozam de condições de trabalho, muitas vezes invejáveis, enquanto a arte continua a ser conservadoramente concebida como uma relíquia do mundo artesanal, como o campo reservado para o tratamento das questões do sentimento e das emoções. Com isso não se quer sugerir que a arte não seja também mastigada nas engrenagens do capital. Índice seguro da absorção da arte pela cultura oficial e alto comércio encontra-se no enorme investimento financeiro voltado para a construção de museus impressionantes na dimensão e luxo que exibem. O que interessa, para o giro do capital relativo à arte, é hipervalorizar os objetos criados pelos artistas, depois que eles já os criaram. São poucas as instituições no mundo voltadas para o apoio, incentivo e suporte financeiro ao processo de produção do artista. E ironia maior: o valor agregado à obra do artista aumenta depois de sua morte. O artista vale mais quando morto do que quando vivo. Paralelismos e afinidades Apesar das evidentes diferenças não se quer sugerir que não existem paralelismos, afinidades e similaridades entre a ciência e a arte. Entretanto, as similaridades não são capazes de anular o argumento que estou aqui apresentando, a saber, enquanto a arte, no seu processo de produção e nos seus alvos, está cada vez mais interseccionada com a ciência, a recíproca não é verdadeira. O que a ciência tem de mais forte é sua perscrutação das leis evolucionárias da natureza por meio de protocolos e métodos analíticos rigorosos e mediações fortemente codificadas. O que a arte tem de mais desafiador está na criação de mediações sintéticas, qualitativas e sensíveis com capacidade revelatória de mundos atuais ou possíveis. Fundir essas 110 ART duas forças é o norte da arte-ciência contemporânea. Em suma, constatar as distinções entre arte e ciência não pode nos cegar para a similaridade ou identidade do lado criativo dessas duas atividades mais nobres de nossa espécie. Arte e ciência diferem nos métodos e nos envolvimentos pessoais que implicam. Mas o que as unifica é o espírito inventivo que está no âmago do humano. Uma inventividade que, por ser portadora de uma finalidade sem fim, a arte está mais apta a levar ao limite. Por isso mesmo, os artistas são os arautos daquilo que a humanidade tem de mais admirável: a capacidade de transcender os constrangimentos da realidade, na luta perene e vital para tornar o humano cada vez mais digno de si mesmo. Referências bibliográficas AZEREDO CAMPOS, Roland (2003). Arteciência. Afluência de signos co-moventes. São Paulo: Perspectiva. GRAU, Oliver (2003). Novas imagens da vida. Realidade virtual e arte genética. Em Arte e vida no século XXI – Ciência, tecnologia e criatividade, Diana Domingues (org.). São Paulo: Unesp. MANDELBROJT, Jacques (1994). Introduction. Art and science: similarities, differences and interactions. Leonardo vol. 27, no. 3, The MIT Press, 179-180. SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus. .(2004). Corpo e comunicação. Sintoma da cultura. São Paulo: Paulus. . (2010). A ecologia pluralista da comunicação. Conectividade, ubiqüidade. São Paulo: Paulus. mobilidade, WILSON, Stephen (2001). Information arts. Cambridge, Mass.: Mit Press. 1 Professora pesquisadora da PUC-SP. 111 ART Identidade cultural de grupo no processo de design, produção e interação na arte de transição, transiarte, uma ciberarte coletiva na Educação de Jovens e Adultos – EJA Lúcio Teles1 e Aline Zim2 Resumo: A arte de transição ou transiarte é entendida como aquela que usa o digital como suporte de criação para o ciberespaço mostrando a existência de uma transição estética entre a arte presencial dos membros de um grupo, cujo suporte passa a ser digital em formato vídeo, texto,, imagem ou som, animações, e outras mais. A transiarte permite a construção de relações entre as diferentes linguagens artísticas, os sujeitos participantes, as interfaces digitais no ciberespaço. Trata-se de uma forma de ciberarte que é desenvolvida no projeto PROEJA-Transiarte, uma pesquisa-ação da Faculdade de Educação da UnB com estudantes de EJA (Educação de Jovens e Adultos), na cidade de Ceilândia, Distrito Federal. A especificidade da transiarte, além de que para se ter acesso é necessário estar conectado à Internet, está no processo de criação, que é coletivo e se manifesta no ciberespaço. Este coletivo geralmente está formado a partir da iniciativa de um professor com uma disciplina especifica do currículo EJA, e se nutre de experiências, habilidades, e memórias artísticas dos membros do grupo de participantes. Os pesquisadores/formadores da equipe da pesquisaação, ajudaram com a instalação de vários softwares que foram utilizados, como o GIMP (desenho gráfico), o Paint, o MovieMaker, facilitando assim a utilização destas tecnologias. O grupo de estudantes EJA trabalhou e produz arte coletiva que é postada na net. Esta postagem e interação online, pode ser na forma de texto, como em poesia, relatos, contos curtos, e mesmo documentos; de vídeos curtos sobre temas de interesse coletivo, fotos, e musicas ou formas de expressão de som gravadas. Estas criações são postadas no portal do projeto www.proejatransiarte.ifg.edu.br A transição estética de uma forma de arte “tradicional” à arte virtual vivenciada pelos estudantes EJA é um processo que ocorre durante a criação, o design e a produção artística facilitando a emergência de uma identidade cultural de grupo que se expressa através da ciberarte coletiva, a transiarte. Palavras-chave: transiarte, ciberarte, educação de jovens e adultos, arte coletiva, inclusão digital, digital art Abstract: The art of transition – transiart – is seen as one makes uses of digital support for the creation of works of art for the cyberspace.. This art-form can facilitate an aesthetic transition between the art that is created with traditional support such as paints, paper, cameras , to the digitally created works of art. Transiart also refers to the art-form created by collectives using technologies such as digital cameras, sound recording and remix, stop motion, videos, animations, and other techniques. Transiart allows for the development of relations among various artistica languages, the participantskl-artists, and the digital interfaces in the cyberspace. The art collective is made up by student in adult education programs with the objective to complete high school. The researchers, students and professors from the faculty of education, University of Brasilia – UnB, supportethe school where the program took place with the 112 Keywords: cyberart, netart, collective art, adult education and mídia, digital inclusion, digital art. PROEJA-transiarte é um projeto de pesquisa com financiamento CAPES, com fundos orientados para o trabalho da educação profissional de jovens e adultos (PROEJA) utilizando a arte digital neste processo. Neste sentido busca-se ligar a produção coletiva da transiarte com os objetivos do PROEJA, tais como a utilização de novas tecnologias no processo de aprendizagem e de inclusão social. Além de ser integrada às atividades da escola, a produção coletiva da transiarte facilita o desenvolvimento de um possível itinerário formativo para estes indivíduos, como por exemplo, a escolha de uma carreira voltada para o design de softwares ou mais especificamente de tratamento de som ou foto digital, criador de animações, design de interfaces e outras mais que estão em crescente demanda nesta área. A equipe de pesquisa deste projeto é constituída por professores universitários, estudantes da graduação e da pós-graduação. A metodologia de pesquisa utilizada no grupo é a pesquisa- ação existencial proposta por Barbier (2002). Segundo o autor, a pesquisa-ação se distingue de outros modelos pela abordagem da realidade, própria da intuição, criatividade e improvisação. No contexto do PROEJA-transiarte, não é o pesquisador individual mas todos os participantes do grupo que contribuem com os resultados da pesquisa. O objetivo do projeto é investigar o processo de introdução de arte digitalizada na escola, a partir do design e produção de trabalhos artísticos digitais e compartilhá-los. As oficinas de trabalho coletivo da transiarte se dão em uma escola de Educação de Jovens e Adultos (EJA), na cidade de Ceilandia, ao lado de Brasília. Os participantes são os estudantes de EJA que, junto ao professor, decidem tomar parte do tempo dedicado às disciplinas (matemática, português, historia, física etc.) para trabalhar com a transiarte. Uma escola profissional que fica a 800 metros da escola também participa do programa. Lá as atividades são mais focados no ensino técnico do uso das ferramentas de software para a produção de textos, fotos, músicas e videoclipes, que serão depois disponibilizados no ciberespaço, no site do projeto http://www.proejatransiarte.ifg.edu.br. A transiarte, uma forma de ciberarte coletiva no ciberespaço. O referencial teórico da transiarte se dá na confluência de conceitos e 113 ART installation of various software such as GIMP, MovieMaker, and introduced them to the use o the technology, emphasizing the aesthetic of creation in colours, texture, interaction and others. Once they produce a video, or a poem, a song, a photograph, they can post it online in a you-tub like software that allows the the continuous interaction with cyber people. The aesthetic transition from one art form, “traditional”, to the virtual art is experienced by students in Adult Education who are in the process of completing their high school degree, and it has been facilitating the emergence of a cultural identify of group, that expresses itself as a collective cybeart, or “transiarte”, as we named it. ART considerações desenvolvidos por três críticos de arte: Walter Benjamin, Richard Shusterman e Nicolas Bourriaud. A estes críticos de arte anteriores à Internet incluímos também o artemidia de Arlingo Machado e Arte e Mídia de Priscila Arantes. Ambos autores trata da arte em tanto arte digital. Walter Benjamin, com seu trabalho sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte, coloca a contemporaneidade de sua teoria em relação à tecnologia digital que parece magnificar ainda mais a velocidade com que se dá a reprodutibilidade técnica - agora não somente de tecnologias analógicas mas também digitalizadas. E isto traria como conseqüência a perda da aura da obra de arte, enquanto ao mesmo tempo facilitando a disseminação mais rápida de acesso à arte por um numero crescente de pessoas, democratizando assim o acesso a outras formas de expressão. Shusterman mostra que quando pensamos na palavra arte, estamos quase sempre associando essa noção com belas artes ou arte erudita como também é conhecida. Pensamos em obras de teatro, plásticas, galerias de pinturas e assim por diante. A palavra está quase sempre relacionada com a chamada “arte erudita”. Quando se fala de história da arte o foco se dá sempre nos grandes gênios da literatura, pintura, escultura que, através dos séculos, foram criando obras que hoje estão nos museus e galerias publicas ou privadas. E a “arte popular” recebe assim o status de segunda classe. Mas segundo Shusterman o que se deve buscar é estabelecer uma ponte entre a arte erudita e a popular, sendo ambas formas válidas de expressões artísticas. O terceiro elemento que facilitou a emergência da transiarte como forma de expressão artística contemporânea é seu trabalho como coletivo no processo artístico, durante o qual a geração de temas para o trabalho coletivo do grupo é escolhido, a escolha da forma de arte, os suportes, assim como o roteiro são debatidos e executados pelo grupo com sua plateia, implicando assim numa estética relacional (Bourriaud). A estética relacional vê a arte como processo de interação social que se dá nas relações humanas coletivas de arte. Tal como diz Cunha (2007): A arte relacional não pretende progredir através dos conflitos e dos opostos, característicos no pensamento moderno, no qual proliferavam ideais de oposição. A prática artística hoje pretende se desenvolver a partir do progresso das relações entre unidades diferentes e através da conciliação de ideais opostos (Cunha, 2007). No trabalho artístico da transiarte, procura-se desenvolver uma amplitude de opções para que todos se sintam efetivamente incluídos A contemporaneidade da reprodutibilidade técnica da arte Na sociedade contemporânea vivenciamos uma revolução profunda em nossos costumes, hábitos e na forma como nos expressamos e nos comunicamos. O período que vivemos é marcado pela utilização da tecnologia digital e da Internet, assim como os vários softwares e hardwares que foram criados para o ciberespaço, como as redes sociais e as comunidades virtuais. 114 Uma mudança histórica recente foi a introdução da tecnologia digital no planeta. Nossas formas de comunicação foram alteradas e também a maneira de nos expressarmos na nossa comunicação cotidiana. A tecnologia digital permite que amplos setores da população possam participar em vários âmbitos antes relegados a poucos. Uma delas é a arte digital que permite que uma grande parte das pessoas possam ser potencialmente criativas. Arte e tecnologia Frequentemente a arte digital é vista como “somente tecnologia”. Todos já o fazem o que a torna uma “arte popular”, sendo desqualificada por estes adjetivos. A conceituação da arte proposta por Shusterman (2005) permite ir além das limitações impostas pelas noções conflitantes de belas artes e arte popular para se chegar a uma nova conceituação que inclua no universo estético ambas formas de expressão artística. A passagem do real físico para o virtual, ou seja, a digitalização de componentes artísticos produzidos por meio das técnicas das artes “tradicionais” permite capturar expressões artísticas agindo como uma linguagem norteadora do fazer artístico. Neste sentido, o fazer artístico pode ser constantemente reinventado ou modificado para ser parte da arte eletrônica no ciberespaço. Nesta perspectiva é marcada pela mudança na essência dos elementos da arte, ou seja, de um estado, de um sentido, de um sentimento que mostra também expressões de transição da vida do artista. As obras de arte transitam do imaginário daquele que a criou e a sua percepção do contexto social que a envolve. A arte de transição, assim como a ciberarte permite infinidades de interação do artista com a sua obra, assim como exercício do olhar promovido pela mudança tecnológica. Neste projeto, explorase a transiarte, uma forma de ciberarte que facilita o desenvolvimento de habilidades no uso da Internet facilitando a inclusão digital e social por meio das novas técnicas e formatos artísticos. Estética relacional O indivíduo enquanto ser humano está interessado na arte como forma de expressão artística a partir de seu próprio interesse e gosto. Na discussão 115 ART O impacto das novas tecnologias na arte é descrita por Benjamim (2005) que estudou o uso de tecnologias na sociedade e sua relação com a arte de seu tempo. Ele chegou à conclusão de que novas tecnologias fazem com que a obra de arte seja cada vez mais reprodutível (como por exemplo na reprodução do som, primeiro no fonógrafo, depois nos discos de vinyl, até nossos dias com o som digitalizado; ou a fotografia, tanto digital quanto analógica). Ao ser reprodutível em grande escala a arte perde sua “aura” ao mesmo tempo em que chega a setores mais amplos da sociedade, e se democratiza. Benjamin afirma que quando mudam as épocas históricas e com elas as formas de como a sociedade produz seu sustento, muda também a percepção dos seres humanos. Esta mudança sensório-perceptiva leva a uma transformação na forma como nós como seres humanos percebemos os fenômenos sociais, inclusive a arte. ART do grupo ele vai aprender a negociar esta relação do individuo com o grupo enquanto experiência estética. Segundo Cunha (2007), As ações artísticas relacionais são calcadas no desenvolvimento do pensamento artístico através da criação de interstícios sociais nos quais novas “possibilidades de vida” são desenvolvidas e se revelam possíveis – é a estética da conciliação. Desenvolvem suas práticas através da criação de mundos possíveis com os aspectos mais proximos da realidade humana, são feitas com os vizinhos, com os quais se acredita ser mais urgente inventar relações. Aqui buscamos capturar o coletivo da arte através da noção da estética relacional (Bourriaud, 2009) que mostra a importância do intercâmbio social no trabalho coletivo de arte. À medida em que a estética relacional se dá no processo criativo e não somente se revela no produto final, o trabalho coletivo passa a ter um impacto fundamental na estética relacional. Na transiarte este processo se dá a partir da priorização do trabalho coletivo em diferentes aspectos, como a escolha dos temas, das técnicas, do roteiro e produção da arte digital. A criação coletiva no Proejatransiarte A dimensão coletiva do Proeja-transiarte se dá no processo criativo de arte digital realizada por vários indivíduos que formam um grupo. Os membros do grupo têm em comum que estão na mesma turma de EJA da Escola de Ceilandia; frequentam reuniões semanais durante o semestre; estão matriculados nas turmas dos dez professores que participam do projeto, permitindo que dedique parte do tempo na sala de aula para o trabalho com a transiarte. Ao incorporar a arte de cada um àquela do grupo na arte do ciberespaço, o sujeito coletivo na transiarte cria trabalhos de forma conjunta, sem direitos autorais. O coletivo também usa na sua produção bastante material da Internet, por sua vez produzidos por outros indivíduos ou grupos. No Proejatransiarte o trabalho coletivo se dá a partir das oficinas que são realizadas a cada quinta feira à noite na escola. O grupo se reúne, geralmente cinco ou mais estudantes, de idade variando de 18 a 70 anos. A partir daí se inicia a discussão sobre o projeto, a arte do ciberespaço e como o grupo pode trabalhar com a ciberarte. Uma escola técnica muito próxima da escola EJA oferece também cursos de introdução às técnicas da ciberarte permitindo que alguns deles se aperfeiçoem mais no uso de software apropriado para arte digital. Vídeo “Tribus” Um dos trabalhos desenvolvidos pela equipe transiarte aconteceu na semana cultural da escola do Centro de Ensino Médio 03, que acontece duas vezes por ano. Cursos de vários tipos são disponíveis: artesanato, dança, música e também a transiarte. A seguir o processo de gestação, criação, e postagem de um videoclipe chamado Tribus. Foi numa sexta-feira, último dia de atividades, que foi apresentado o videoclipe Tribus (ver clipe no site) no auditório da escola. Os estudantes 116 Tudo começou a partir de discussões em roda entre a equipe da UnB, professores e estudantes da escola, até definirmos um roteiro das atividades para a oficina transiarte: 1. Geração de temas, discussão do problema gerador; 2. Roteiro e planejamento das atividades; 3. Execução artística e audiovisual (fotografias, filmagens, desenhos, teatro, bonecos, massinha, gravação de músicas, colagens etc.); 4. Edição digital (captação de vídeos e músicas da internet, tratamento das imagens e áudio, edição do material captado segundo o roteiro); 5. Postagem do vídeo no site www. proejatransiarte.ifg.edu.br para interação com internautas. No Tribus o calouro jogador de basquete, o reaggeiro, o skatista, a patricinha, a roqueira, o emo, a nerd e a funkeira foram os personagens escolhidos pela roda de discussão. Por isso o clipe tem pedaços do rap da periferia, do funk carioca, o punk rock, o pop americano e o pop rock brasileiro, o reagge de Bob Marley, música popular brasileira, interpretados cada um pelo seu personagem. Os estereótipos mostram a diversidade cultural, as classificações e os rótulos na escola. Nas conversas de roda cada um se sentia mais próximo de um ou de outro personagem. Na verdade faltaram personagens para tantas modas e comportamentos classificáveis. Faltaram também os personagens múltiplos, híbridos, que representam vários tipos ao mesmo tempo ou então variações desses tipos. Talvez a roda de conversa poderia ser um espaço de expressão das identidades dos estudantes e professores de EJA. Participantes sugeriram imagens da identidade cultural de cada um, das origens e das identidades múltiplas associadas aos grupos, à escola e à cidade. Cidade das feiras, cidade dos repentistas ou cidade-dormitório, a cidade de Ceilândia é o lugar onde as pessoas são muitas – o maior colégio eleitoral do Distrito Federal. É um espaço próprio de construção de identidades múltiplas, de transições. Seus habitantes vêm de todo o país, principalmente do Nordeste. Mais que espaço de transição, a Ceilândia é bairro, moradia e encontro. Um encontro de tribos, de guetos, de grupos diferentes e ao mesmo tempo semelhantes entre si. Naquele momento, na roda de conversa dentro da escola ceilandense, as identidades emergiram em forma de personagens caricatos, cada um com seus tipos e comportamentos. E quais são as modas para esses estudantes de Ceilândia? A roda mostra que essas são modas muitas vezes globalizadas e globalizantes. Fazem referência direta ao comportamento de se ouvir determinado tipo de música e pertencem ao mundo atual, ao presente. Onde? De todos os lugares e em toda parte, do hip-hop mais pedido nas rádios à música popular brasileira - que de tão popular atravessou o mundo. As modas, as origens e os destinos se confundem e se misturam; geram outras coisas. Culturas híbridas, culturas múltiplas, e culturas novas. Na tentativa de representar os tipos, surgem os personagens caracterizados na vestimenta e no comportamento, e essa classificação 117 ART de EJA (Educação de Jovens e Adultos) conduziram esse espetáculo que aconteceu em torno do vídeo. Houve um encantamento pela técnica e a identificação imediata entre ela e espectador. ART fica interessante para o roteiro. Para a obra de arte e a expressão artística, escolhemos a livre iniciativa dos estudantes que, nesse caso, foi a de classificar os diferentes e identificar os pares. Ao observarmos a roda de discussão, percebemos que os paradigmas e as visões de mundo dos estudantes se expressam na fala, na música e nas imagens escolhidas por eles. Essas não são meras informações sobre a realidade desse ou daquele indivíduo. São imagens deles, sobre eles e construídas por eles – as múltiplas identidades, a construção individual e a construção coletiva. Quando o tema e os personagens foram escolhidos, o ponto de partida foi a própria escola. As tribos, os guetos e os grupos representam geralmente a vontade das gerações mais novas de se diferenciarem, de se expressarem. Procurou-se um roteiro que todos pudessem participar. Cada um escreveu as características de um personagem e o ponto comum entre eles era a figura do calouro que chegando à escola é assediado por vários estudantes, cada um representando uma tribo, um gueto ou um grupo. Esses grupos foram definidos pela forma de vestir e pelo tipo de música preferida. Ed, o calouro, aparece com uma bola de basquete. Surgem então vários elementos ligados aos personagens e ao cenário, que vão se movimentando e se modificando ao longo da trajetória de Ed. O cenário constitui ali o fundo para as fotomontagens. Ele é um muro feito de cartolina colorida, na frente de um céu que é dia e depois é noite. As músicas se modificam de acordo com os personagens que encontram a figura de Ed, o calouro do Tribus, pelo caminho. A idéia do roteiro era a de que eles – os personagens – assediassem Ed a tomar partido de suas tribos. Ao final dessa trajetória, Ed compartilharia um momento com todos. Mas no processo dessa transiarte os detalhes se constituem como parte da história e modificam o roteiro, que não é nunca definitivo ou final. Alguns bonecos, desenhos e um cenário foram montados. Buscou-se nas revistas os pedaços, os fragmentos dos atores. Rostos anônimos que representam pessoas reais. Anônimos ou populares que não reclamariam seus direitos autorais estão ali, na mídia impressa, expostos ao recorte. As imagens foram reconfiguradas em seus fragmentos pelas técnicas da fotocolagem e da fotomontagem. Cartolina, cola e tesoura deram vida aos bonecos articulados. Foram novecentas fotografias que animaram o roteiro, usando da seqüência para dar ilusão de movimento. O claque da câmera não conseguiu acompanhar a criatividade que quase flui das mãos que articulam os movimentos dos bonecos. Enquanto alguns participantes captam essas imagens, outros buscam na rede as músicas que foram escolhidas. Concluída essa etapa, vamos à edição usando a técnica de stopmotion, onde uma grande quantidade de imagens estáticas (fotografias, montagens ou desenhos escaneados), quando postas em sequência, gera a ilusão de movimento. Pode-se atribuir aqui a qualidade de animação digital, pois os desenhos animados originalmente usavam desse artifício, mas nós preferimos chamá-lo de videoclipe. O vídeo ficou muito conhecido pelo seu formato de vídeo musical, onde a música e o silêncio são elementos constituintes das imagens. 118 Pela edição conseguimos expressar nossa habilidade de contar uma história ou transmitir uma mensagem, porque ali organizamos as idéias através da imagem, do som e do movimento. Esteticamente, a imagem em movimento enquadrada e editada se aproxima do nosso pensamento. Imaginamos cenas esteticamente parecidas com as que vemos nas telas, mesmo antes da técnica cinematográfica surgir já que as técnicas e as tecnologias modificam o ser humano ao longo do tempo e espaço, e vice-eversa. Priscila Arantes (2008) nos lembra que, As técnicas, de acordo com Benjamin, desencadeiam percepções e processos cognitivos que são, muitas vezes, os motores das grandes transformações estéticas. (...) Contrariamente às técnicas de visualização desenvolvidas na época do Renascimento, que tinham no olhar do sujeito único e imóvel seu foco fundamental, as tecnologias informacionais ligam-se muitas vezes a um sujeito em trânsito, em constante movimento. Nesse contexto, não somente a obra se movimenta, rompendo com a forma fixa e imutável da estética da forma, mas o próprio sujeito se desloca, interferindo no comportamento da obra (p. 31). As novas técnicas artísticas possibilitam ao ser humano experiências estéticas diferentes. Diana Domingues (2002) aponta a ciberarte como uma experiência partilhada entre produtor e receptor. A partilha com os participantes da experiência modifica a relação obra-recepção, pois não mais se trata de um público em atitudes contemplativas, mas de sujeitos/atuantes que recebem e transformam o proposto pelo artista, em ações e decisões que são respondidas por computadores. É o fim do “espectador” em sua passividade. A passividade é trocada pela possibilidade (p.61). Da mesma forma que é interativa, a transiarte é uma obra aberta porque pode ser modificada. Seu valor de origem é praticamente irrelevante. Quando ela é reproduzida, não importa o meio, não importam as mídias, o que vale é seu poder de transmissibilidade e acesso. Segundo Walter Benjamin (1994, p. 168), a esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica. O autor salienta que a obra de arte poderia ser colocada em situações inusitadas e até mesmo impossíveis se não fosse reproduzida. “A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto”, exemplifica. E continua: Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser 119 ART As fotografias são postas em seqüência em um dos programas eletrônicos que editam imagens, áudio e vídeo. O programa usado foi o Windows Movie Maker, disponível no sistema operacional Windows. Além dessa ferramenta, a equipe também trabalha com software livres como o Cinelerra e o Gimp. Podemos, com a ajuda desses aplicativos, escolher o tempo em que cada fotografia permanece, atrasando ou acelerando a ilusão de movimento ou repetindo-o. São recortes e fragmentos de imagens e músicas que, ao se juntarem, criam uma narrativa que tem como ponto de partida o roteiro. Mas o roteiro não é o fim, porque ele pode ser desconstruído e modificado durante o processo, principalmente na edição. ART reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande variedade de cópias; a questão da autenticidade não tem nenhum sentido (p. 171). A questão da autoria também é discutida nos grupos transiarte. Tradicionalmente, ela está ligada a uma concepção mais individual do sujeito. No movimento moderno do início do século XX, por exemplo, a arte era vista como a expressão profunda da singularidade desse indivíduo, ou seja, a noção do talento individual do artista. Ao falar da morte do sujeito moderno, Stuart Hall (2005) afirma que a noção de identidade unificada e individual está associada com a modernidade. No início no século XX, segundo esse autor, emergem dos movimentos estéticos e intelectuais um quadro perturbado e perturbador do sujeito e da identidade. Na modernidade tardia, ou pós-modernidade, o sujeito e identidade únicos estariam abalados por fragmentações e deslocamentos, onde até mesmo condições de ubiquidade colocariam em questão a noção da autoria da obra de arte. Alguns autores apontam a “morte do autor”, enquanto outros mais conservadores defendem a pureza como condição de sobrevivência da obra de arte. O impuro seria considerado um desrespeito aos limites, quando estruturas e identidades são misturadas. Ainda sobre a morte do sujeito, Lucia Santaella (2004) nos diz que Não é apenas o pressuposto de que existe um sujeito universal e centrado que está em questão, mas, sobretudo, como porventura o sujeito poderia ser situado, corporificado, fragmentado, descentrado, des-construído ou destruído. Por isso, no lugar dos antigos “sujeito” e “eu”, proliferam novas imagens de subjetividade. Fala-se de subjetividade distribuída, socialmente construída, dialógica, descentrada, múltipla, nômade, situada, fala-se de subjetividade inscrita na superfície do corpo, produzida pela linguagem etc. Nessa mudança, o psicológico abandona o espaço privado e intransferível das psiques individuais para alojar-se nas encruzilhadas e nas ruelas que marcam o estar-no-mundo com outros seres humanos (p. 17). Segundo Priscila Arantes (2002), muitos dos trabalhos em mídias digitais implicam a desmistificação de certos valores convencionais da obra de arte e do artista. A idéia de que a obra de arte é fruto de um gênio individual em profunda sintonia com o cosmos cai por terra. Há cada vez menos pertinência em encarar os produtos ou processos estéticos contemporâneos como criação individual, como manifestação do estilo de um gênio singular, em vez de um trabalho em equipe (p. 49). Os estudantes envolvidos no projeto transiarte são autores, interatores, público e produção. No ciberespaço eles experimentam a autoria coletiva, se vêem e se ouvem – sentem. Decidiram, tanto na elaboração do trabalho, como na forma de disponibilização no ciberespaço, pela não autoria do trabalho produzido, disponibilizando os mesmos para serem vistos, copiados e/ou modificados. 120 ART Conclusões A criação coletiva é um complexo projeto estético que permite a negociação entre membros do grupo na geração de um tema para posterior produção digital e postagem na Web. Neste projeto o coletivo foi o veiculo para a produção e disponibilização da arte digital no site do projeto. Ali, as artes digitais permitem maior interatividade, pois as fronteiras entre obra e público podem ser desconstruídas facilmente. Nessa pesquisa com a transiarte, por exemplo, é possível alterar e reconfigurar as produções artísticas, porque as técnicas digitais permitem essas ações. Os estudantes são incentivados a interagirem no ciberespaço, num trabalho individual, coletivo, contínuo e inacabado. Ao aceitarem a roda de discussão como o ponto de partida para a oficina transiarte, muitos estudantes revelam a falta de contato com as novas tecnologias, principalmente com o computador. Um dos objetivos da oficina transiarte foi de promover os primeiros contatos de muitos estudantes com o computador e a Internet. Para alguns, estaria ali uma das poucas oportunidades de se aprender informática. A transiarte como arte de transição mostra para eles a galeria virtual como possibilidade de um espaço interativo povoado pelas produções artísticas e construído a partir dessas interações. O ciberespaço é um espaço reverberante, onde as possibilidades atravessam até mesmo a condição transitória dessas pessoas na escola EJA. O vídeo Tribus, por exemplo, ganhou outras telas e outras platéias, dentro e fora da escola. Ele está nas redes, para quem quiser ver e ouvir, a qualquer momento e em qualquer lugar, como arquivo postado no “transiartetube”. Esse espaço virtual é uma imensa galeria onde as pessoas podem compartilhar todo tipo de arte que puder ser digitalizada. São videoclipes, animações, imagens, poesias, músicas, textos e fotografias modificadas, além dos comentários e avatares que povoam esse espaço e torna possível a interatividade entre os seus usuários. Mais do que galeria, o site proejatransiarte é um espaço de vivência coletiva, um ensaio para uma comunidade virtual. Todas as produções transiarte estão expostas no mundo virtual ao remodelamento e às redefinições. Isso significa que a autoria é coletiva no que se refere aos participantes da oficina transiarte, mas não é definitiva. Toda obra de arte ali pode ser modificada, descontextualizada e redefinida por quem quiser. A obra de arte perde o seu valor de origem, sua autenticidade, e ganha as redes, o ciberespaço, onde é reproduzida infinitas vezes, em espaçostempos diversos. Dada a especificidade mesma da transiarte de ser uma forma de arte digital em uma sociedade em rede, é possível que cada vez mais existam coletivos de todo tipo na Internet que trabalhem de uma maneira similar na produção coletiva de arte digital, como no Projeto PROEJATransiarte. 121 ART Referências ARANTES, Pricila. @rte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005 BARROS, Anna & SANTAELLA, Lucia. Mídias e Artes: os desafios da arte no início do século XXI. São Paulo: Unimarco Editora, 2002. BARBIER, René. A Pesquisa-Ação. Trad. Lucie Didio. Brasilia: Liber Livro Editora, 2007. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989 (Obras escolhidas vol III). . A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO et al. Teoria da Cultura de massa. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 221-254. I). . Magia e técnica, arte e política. 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Acesso em: 2 mar. 2010. 1 Professor Adjunto, Faculdade de Educação, Universidade de Brasília. 2 Professora de Arquitetura na Universidade de Brasília. 123 ART TELES, Lúcio. Reconfigurações estéticas virtuais na transiarte. in MARTINS, Raimundo. Visualidade e Educação. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás. ART Código e linguagem: articulações e construções do visível Luisa Paraguai1 Resumo: Este texto procura contextualizar as linguagens de programação como elementos intrínsecos e norteadores no campo das artes e do design. Importa refletir sobre as produções artísticas e de designers sob a ótica das estruturas computacionais, na medida em que ao organizarem outputs dinâmicos repensam os modos de projetar. O designer-artista neste contexto coloca-se como um articulador de objetos computacionais, que modelam a relação humano/máquina e resultam em construções do sensível. No final, serão apresentados alguns trabalhos que atuam como agentes da relação entre linguagens computacionais e materialidades. Palavras-chave: Arte e tecnologia, estética computacional, código, linguagem, tecnologias de inscrição. Abstract: The paper is concerned with computational languages as intrinsic elements and guiding principles in the art and design field. It is important to think about the artistic and design productions from the perspective of the computational structure, since through the organization of dynamic outputs they reconfigure the projecting modes. An artist-designer on that context can be recognized as an articulator of computational objects that are able to conform the human/machine relationship and produce constructions of sensitive. At the end, some projects will be presented as they work as agents of computational languages and materialities. Key-words: Art and technology, computational aesthetic, code, language, inscription technologies. A cultura do software implica em performances dinâmicas construídas em tempo real. (MANOVICH, 2008, p.17) Neste texto pretende-se explorar as relações entre representação e modos de produção, articulando modelos de tradução entre linguagens e visualidades. O conceito de “metáfora material” proposto por Hayles (2002, p.22) como processo de tradução entre palavras e artefatos físicos, enfatiza a conexão entre modos de visualidades e linguagem computacional. Interessa neste texto focar alguns processos de produção e suas estruturas lógicas, embora reconhecendo que a atualização dos dados pela negociação – leitura, intervenção e significação dos mesmos, dependa dos leitores e seus referenciais. Para Reas, Mcwilliams e Barendse (2010, p.11) o código tipicamente congrega três principais propostas “comunicação, explicação ou ofuscamento”, na medida em que as regras evocam conhecimento prévio e podem portanto gerar significados. 124 Assim, como todo processo de produção, podemos afirmar que o contexto digital conforma uma materialidade, que passa a “funcionar de forma interpenetrada, mediante dispositivos transdutores e de interfaces adequadas, possibilitando a transdução para outros meios” (PLAZA e TAVARES, 1998, p.31). Também para Hayles (2002, p.23-24) o código computacional é compreendido como uma “tecnologia de inscrição”, que pode congregar dispositivos distintos e produzir mudanças matéricas – marcas. Para a autora estas inscrições tecnológicas são capazes de produzir transformações constantes no contexto e nas circunstâncias – compreendidos como processos de significação. Para Manovich (2008, p.13) “os programas computacionais são usados para criar e acessar objetos e ambientes midiáticos, articulando funções de autoria e de acesso”. O trabalho denominado moveable type, 2007, de Ben Rubin e Mark Hansen, apresenta diariamente em 560 pequenos displays as notícias atualizadas e arquivos do jornal New York Times, bem como as atividades dos usuários no website - navegar, buscar, comentar; a proposta dos artistas organiza-se através de métodos estatísticos e algoritmos computacionais para estabelecer na materialidade do visível o reconhecimento da cultura da colaboração em ambientes hipermidiáticos na Web. Outra questão importante a ponderar é a compreensão desses objetos computacionais como prática cultural; assim, enfatizam-se os processos de mediação na elaboração de outras dimensões imateriais como os códigos de comportamento, ideologias, hábitos, rituais, valores e significados. “A essência do computador - matemática e fundamentos lógicos, [...] como máquina - forma de operar da cultura” (MANOVICH, 2008, p.11). A linguagem computacional codifica a construção e o agenciamento da visualidade, e torna-se responsável portanto, pela formatação e expressão das informações. Estes códigos são percebidos como textos sobrepostos mediando o humano e a máquina, enquanto deixam rastros e marcas como em um palimpsesto. Também, para Martin Barbero (apud Santaella, 2007) “hibridizar a densidade simbólica da abstração numérica com a sensorialidade perceptiva” implica em acessar e modular estes dados diversos gerando estruturas complexas no campo do visível. Elementos computacionais e operadores estéticos A compreensão do código e seus modelos de criação e produção de formas implica em considerar outras atitudes criativas. O artista-designer, ao trabalhar com processos de codificação e decodificação, deriva 125 ART Assim, compreende-se o código computacional como “técnicas contemporâneas de controle, comunicação, representação, simulação, análise, tomada de decisão, memória, visão, escrita, e interação” (Manovich, 2008, p.8). Para McWilliams (2006) o software atua como “uma contínua conexão entre homem e máquina”, sistematizando métodos e técnicas de trabalho, práticas e processos de representação e expressão, enquanto apresentações do sensível. ART comportamentos de ordem sintática e semântica, quando atualiza as leis programadas e assume distintas previsibilidades. Elegemos alguns elementos conceituais intrínsecos da linguagem computacional para organizar a produção a ser apresentada, como: repetição, parametrização, transformação, visualização e simulação, que foram apresentados por Reas, Mcwilliams e Barendse (2010, p.). A repetição, como iteração2 embedada, articula a regularidade das sequências para gerar efeitos múltiplos em cascata e explorar padrões. Considerar a regularidade como elemento não implica em obter efeitos plásticos de formas similares, mas antes, pensar como procedimento de manipulação dos dados. O trabalho experimental de Vivian Chiu, mohawk headdress, 2010, explora estas possibilidades formais – materiais e estéticos, para tratar os objetos do vestir e as relações culturais. Em outra dimensão do espaço – as paisagens urbanas, o grupo LUSTlab apresenta o trabalho urban echo, 2011. Grandes displays, colocados em áreas públicas, evocam a conexão entre distintos e não contíguos lugares físicos. Um loop recursivo visual permite que as pessoas, localmente, de várias cidades, estabeleçam conexões visuais de leitura e de imersão nos espaços urbanos, conforme as imagens desdobram-se e apresentamse rebatidas internamente. Urban echo constrói pelo jogo de espelhos e webcams espaços temporários de transparência e reflexão, introspecção e extroversão, durante as transmissões em tempo real. A parametrização explora a forma pela decomposição em elementos e suas possíveis variações; isto implica em trabalhar com parâmetros, que receberão distintos valores, randomicamente ou não. Este movimento determina a exploração de um campo de possíveis e não mais um objeto previsível. Este processo realiza mediações entre as intenções do artistadesigner e o sistema computacional, como materializa o trabalho inception chair, 2011, da designer Vivian Chiu; o exercício da forma estabelece-se como princípio metalingüístico. O recente logo do MIT Media lab, no escritório The Green Eyl, pelos designers E. Roon Kang, Willy Sengewald e Richard The, foi desenvolvido em um algoritmo gerando 40000 formas, que permitem personalizar cartões para cada professor, estudante ou funcionário do laboratório. A transformação das imagens fotográficas, analógicas ou digitais, enfatiza a potencialidade da escrita informática, manipuladas por processos de transcodificação, e capaz de gerar diferentes perspectivas de leitura e representação. O trabalho beekeeper, 2006-2011, de Chandler McWilliams elabora a decomposição de uma imagem por movimento randômico, no qual cada pixel transforma-se em partícula e reconstrói dinamicamente os espaços de apresentação. Este contraponto entre representação estática e possibilidades de movimento questiona a imagem e seus atributos usuais de composição visual. A visualização, por sua vez, revela padrões e estruturas para os objetos de dados, privilegiando as variáveis espaciais. Para Manovich (2008), este processo apresenta um mapeamento entre dados discretos 126 A simulação envolve processos generativos de formas orgânicas através do movimento de partículas em um padrão no espaço - random walk. Neste processo, a colisão de partículas gera uma complexa estrutura ramificada, que determina a própria forma. Assim, a imagem apresenta-se não mais como representação direta do objeto, mas determina-se a partir de um conjunto de parâmetros; estes, como valores possíveis na intersecção com os modelos matemáticos fazem emergir o objeto criado. O objeto não mais reproduz um padrão de mímese, mas atualiza um modelo de simulação. O projeto nervous system, especificamente no trabalho hyphae, propõe redes rizomáticas, na qual os nós ramificam-se hierarquicamente e combinam-se para construir uma estrutura densamente interconectada, aerada e forte. Hyphae é uma coleção de artefatos 3D, inspirados nas estruturas capilares que circulam fluídos nos organismos e caracterizam esculturas orgânicas. Outro trabalho deste grupo, nomeado de dendrite, produzido também com algoritmo generativo, mas diferentemente do anterior é capaz de recuperar e inserir a ação dos usuários durante o processo projetual. Estes são convidados a criar, modificar e implementar mudanças na linguagem de programação. Considerações finais O texto procura estabelecer relações entre os fundamentos lógicos da máquina computacional e as operações visuais como um outro layer estabelecido no campo da arte e do design. Importa-nos a sistematização destes processos criativos na medida em que promove a compreensão de várias ações criativas da sociedade contemporânea, como a visualização de dados científicos, de imagens de diagnóstico, de sensoriamento. As imagens resultantes apresentam-se em suas distintas materialidades do real como imagens cifradas e portanto, polissêmicas em suas manifestações. Os objetos computacionais vêm, assim, organizando propriedades físicas e os usos históricos, mas, sobretudo, estruturando nossas interações de maneira sutil. Referências Bibliográficas CACHE, B. Earth Moves: The Furnishing of Territories. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1995, p.97. HAYLES, N. K. Writing machines. Cambridge, MA; London, UK: The MIT 127 ART e representação visual, que procura “descobrir e revelar a estrutura, não dada a priori.” O trabalho circulation, 2010, do artista Chandler McWilliams materializa visualmente as direções de percurso em um museu criando flechas direcionais luminosas; este trabalho mimetiza a lógica de um projeto de sinalização no espaço museográfico e passa a indicar o próximo espaço/ambiente/sala a ser escolhido pelo visitante. Estas flechas apontam e orientam as pessoas, a partir dos dados topográficos recuperados de seus percursos no museu. Assim, estas indicações de direção são resultantes da leitura estatística dos trajetos mais comuns, a partir de cada ponto localizado, no espaço de exibição. ART Press, 2002. MANOVICH, L. Software takes command. Novembro, 2008. Disponível em <http://lab.softwarestudies.com/2008/11/softbook.html>. Acesso em janeiro, 2011. MUNARI, B. Design as art. London, England: Penguin Books. 1971. PLAZA, J.; TAVARES, M. Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. REAS, C.; McWILLIAMS, C.; Barendse, J. Form+Code in Design, Art, and Architecture. New York, NY: Princeton Architectural Press, 2010. 1 Artista, pesquisadora e professora doutora no Mestrado em Design, Universidade Anhembi Morumbi, email:[email protected]. 2 O termo iteração é o processo chamado na programação de repetição de uma ou mais ações. 128 ART Dança, metro e música: geração de arquivos sonoros de textos da tragédia grega Marcus Mota1 e Cinthia Nepomuceno2 Resumo: Textos das tragédias gregas apresentam informações sobre som e movimento. Nesta pesquisa em andamento, algumas possibilidades de interpretação e materialização dos metros e ritmos são discutidas. Palavras-Chave: Métrica, cognição, percepção rítmica, tragédia grega, dança Abstract: Ancient Greek Tragedies present information about how sound and movement links. In this paper we deal with interpretation and application of metric data. Keywords: Meter, cognition, rhythm, perception, greek tragedy, dance O que se segue é uma discussão de pesquisa em curso sobre representação e performance de padrões métricos a partir de obras dramáticas clássicas (Edital MCT/CNPq 02/2009, n.4000937/2009-3). Os textos restantes das tragédias gregas são documentos rítmicos que, em sua distribuição de valores temporais e acentos, apresentam-se tanto como campo de investigação quanto de produção de eventos sonoros (Mota 2009, Brown & Ograjensk 2010, Georgaki & Velianitis 2008). O enfrentamento destes textos passa por algumas etapas metodológicas as quais explicitam a interdisciplinaridade do objeto de estudo. Porém, o que se observa de fato na recepção bibliográfica da métrica grega é uma dicotomia entre a descrição dos padrões rítmicos e produção sonora, entre filologia(texto) e música(som), entre métrica e ritmo (Hasty 1997). A partir dessa dicotomia, a métrica grega, concebida como exposição de fatos linguísticos, é atualizada por um conjunto de formas abstraídas de seus contextos de geração( Dale 1968, West 1982, Martinelli 1997,Steirück 2007) Tal abordagem contribuiu para a canonização da prática de se pensar metros apenas como consequência da escansão (contagem) e etiquetagem, corroborando a ideia que os textos são entidades verbais auto-fechadas e que geram por si mesmas sua intepretação. Neste caso, temos o predomínio de uma representação restrita dos metros sobre as implicações de sua performance. Por outro lado, a recepção musical dos metros gregos, a partir dos dados disponibilizados da filologia, viu nessas formas cristalizadas presets para a composição e classificação de eventos rítmicos, sem, contudo, se interrogar sobre seus específicos contextos de produção e geração, induzindo a uma imagem universal e tácita dos metros (Messiaen 1956, Cooper&Meyer 1960, Houle 1987). Novamente, com o pressuposto de formas mínimas e básicas 129 ART de agrupamentos rítmicos, o estudo da métrica grega dissocia-se de seus textos, o que determina uma restrição ao acesso de sua produtividade. Para superar essa dicotomia, torna-se necessário voltar aos textos, concebendo-os não mais como formas esvaziadas de som, de expectativas de sua percepção e performance. Discussão conceptual e metodológica À parte detalhes editoriais - alguns impossíveis de serem resolvidos -, os textos das tragédias encontram-se satisfatoriamente escandidos. Há discrepâncias quanto a algumas ambiguidades classificatórias: em algumas situações as formas registradas podem ser lidas de diversas maneiras (Cole 1988). Em todo caso o que é determinante, desde a Antiguidade é a atribuição de valores temporais relativos às sílabas (Pearson 1990, Ophuijsen, 1987, Gentili & Lomiento 2003) . A escolha das palavras na performance e depois em seu registro escrito se efetiva em função de sua composição rítmica, ou organização do material verbal em sequências ou agrupamentos rítmicos inicialmente relacionados a durações. Um diferencial para a proposta desta pesquisa é integrar escansão, representação e performance. As descrições dos metros presentes nas edições críticas dos textos oferecem notações das quantidades das sílabas dos versos sem o recurso à sua expressão sonora. Os metros identificados são visualmente expostos em esquemas gráficos. Em decorrência disso, forma-se uma circularidade: a escansão parece gerar o padrão rítmico a partir das durações registradas na distribuição das sílabas e estes padrões ritmos encontrados se completam em sua esquematização. Tal “ciência métrica” para os olhos descarta atos que problematizariam os procedimentos e resultados da escansão (Becker, 2004, David 2006) . Por isso, não nos limitamos à representação visual dos metros decorrente na identificação dos padrões quantitativos do verso grego. As informações geradas pela escansão foram submetidas à mediação tecnológica, por meio de partitura rítmicas gerada em estação de trabalho de áudio digital(DAW). Ao se usar a DAW para registro e produção sonora dos dados iniciais da escansão, procurou-se, mais do que simplesmente transferir esquemas métricos para sua digitalização, consolidar a ampliação de escopo do estudo dos padrões ritmos dos textos clássicos gregos. Com as ferramentas da DAW, os arquivos produzidos podem ser manipulados, editados, o que pode manifestar in loco a flexibilidade dos métricos gregos dentro de um contexto realizacional, a partir de seu uso concreto. Ainda, tais arquivos tornam audíveis e perceptíveis determinados processos de composição rítmica registrados nos textos, seja por meio da atribuição de sonoridades ao imput binário métrico, seja por meio das representações visuais decorrentes da visualização dos parâmetros sonoros utilizados no registro, mixagem e edição dos arquivos. Na realização deste projeto, um dos obstáculos epistemológicos enfrentados é o da impossibilidade de reconstrução da performance original. É proverbial a assunção de que música não registrada é música 130 Para exemplificar tal obstáculo, notem-se as contradições de uma das maiores autoridades em música na antiguidade: de acordo com M.L. West, It is conventional, in writing about ancient Greek music, to voice a lament that ‘the music itself’ is almost entirely lost. So far as its melodic lines are concerned, this is true: we have only a few dozen specimens to represent a thousand year’s music , and of these few dozen, most are tattered fragments with scarcely a line complete, and nearly all are from compositions of post- Classical date. Of music from before the last decade of the fifth century BC we have not a single music. On the other hand there is quite a considerable amount of music from the Archaic and Classical periods of which we can claim to know the rhythms, with at least a fair approximation to the truth. There should be litte satisfaction to be had from knowing the ups and donws of the melodies if we had no idea or the rhythms that gave the shape. For rhythm is the vital soul of music. The Greeks acknowledged its fundamental role (West 1994:127). A longa citação atesta tendências hegemônicas no enfretamento dos documentos musicais do passado, os quais não disponibilizam registro partitural considerado completo. Na posição de M.L.West, música é sinônimo de “melodia” e “ritmo” é ao mesmo tempo algo subsidiário e basilar. Tanto que a musicalidade objetivada nesta pesquisa, a do drama grego, seria inexistente, pois não há registro melódico dela, pois, segundo West, em não havendo registro melódico, não há música. Desde o início, desta pesquisa este obstáculo foi enfrentado na proposição de outros objetivos que o da reconstrução histórico-filológica da performance original. Inicialmente, há sim registro de parâmetros sonoros nos textos da tragédia. A codificação rítmica ali presente, por meio de combinação de padrões métricos bem caracterizáveis, aponta para o exercício de uma prática coerente de organização do material sonoro em função de seus efeitos para uma massiva audiência. E esta codificação rítmica é binária, na alternâncias de sons marcados como longos e breves, produzindo algoritmos claros que nos informam sobre finitas instruções sobre execuções de atributos. Uma tragédia grega pode ser interpretada como um algorítmo complexo, que dentro de limite temporais precisos, exibe eventos audíveis em sucessão, os quais se organizam e se relacionam entre si e expõem suas configurações e seus nexos durante sua realização diante de uma audiência. É a amplitude da experiência composicional e recepcional da tragédia grega, registrada em parte em seu complexo algoritmo rítmico, que aponta para opções de se enfrentar e superar o obstáculo da performance original. Mas para tanto se representar quanto performar essa complexidade é preciso correlacionar os valores rítmicos da escansão com as divisões do texto em função de seus padrões métricos. O texto da tragédia compreende seções ou partes que organizam durações temporais em diferentes formas. Temos três básicos tipos: seções com sequências construídas por recorrência de unidades assemelhadas; seções marcadas por modulações em blocos justapostos ou modulações no interior desses blocos; seções que combinam por 131 ART perdida (Wilson 2005). No caso, a “música perdida da tragédia grega” é tomada como um fato por não haver uma notação de parâmetros sonoros: teria restado apenas o libreto, as palavras e não a música, o espetáculo. ART justaposição e/ou contraste sequências recorrentes e modulantes (Hagel 2000,Zaminer 1989). Como se pode observar o complexo algoritimo das tragédias gregas trabalha com uma prática composicional heterométrica, o que enfatiza seu vínculo com a audiência por meio do reconhecimento e apropriação de variadas performances ritmizadas. Ou seja, a detalhada organização sonora evidencia uma recepção exposta a distinções aurais específicas. É como uma tragédia exibisse no decorrer de sua apresentação vários espetáculos. A trama dos acontecimentos narrativos cede lugar à trama dos eventos aurais. Essas mesmas seções se especificam em função de sua densidade( monofônica, bifônica, homofônica coral) e tipicidade (cenas de lamento, embate, reconhecimento e alusão mítica), pois os registros métricos são registros de performances: os padrões rítmicos presentes nos textos são articulados fisicamente pelos corpos dos agentes dramáticos (Lattimore 1969) . O ritmo aqui é algo que se ouve e vê em cena. Em todo caso é o acabamento sonoro-rítmico das seções que as produz e determina sua identificação: tanto as falas, diálogos e performances corais e quanto os tipos de eventos se relacionam com metros e composições métricas. Diante disso, é necessário projetar uma linha do tempo à qual se acoplam as diversas seções ou partes, cada uma com seus relógios(Sethares 2007). Como se pode observar, a composição rítmica presente no texto da tragédia apresenta um ritmo estruturante que se efetiva a partir da tensão entre a composição temporal-sonora de cada seção e das seções entre si. Como cada nova sessão ou projeto em uma DAW é viabilizada dentro de uma linha de tempo, a irreversibilidade dos diversos eventos rítmicos da tragédia em suas configurações sincrônicas e em sucessão podem ser visualizados. Logo, o efeito trágico é sustentado pelo exploração da irreversibilidade temporal: a audiência acompanha um universo sonoro mutante em seus nexos e transformações enquanto a linha de ação do herói se completa em ruína. O descompasso entre a riqueza e diversidade rítmica e a crescente restrição e perda de possibilidades/opções do protagonista conecta a audiência ao universo sonoro-imaginativo do drama. Para se construir essa linha do tempo, dois tipos de tablaturas são produzidas: uma, que apresenta a macro-estrutura do texto analisado, explicitando suas partes e orientações temporais(Simpson & Ferrario 2006); outra, que traduz as durações relativas marcadas nas sílabas. É justamente de posse dessas duas tablaturas que se dá a próxima fase do projeto: a geração de arquivos. O modelo ideal da representação, que subsidia discussões estéticas e conceptuais a respeito de ritmos em contextos performativamente orientados, é o que apresenta três distintos sistemas para uma linha do tempo dos eventos: o primeiro é um registro em áudio de interpretação vocal do texto grego. Essa voz-guia enuncia o texto de acordo com a tablatura das durações previamente elaborada. O segundo apresenta essa tablatura transcrita em notação musical tradicional vinculado a arquivo midi, ao qual se atribui sons não melódicos(hand claps). O terceiro registra apenas a acentuação das palavras, por meio de arquivo midi vinculado a som também percussivo(Acoustic Bass Drum). 132 Como se pode concluir, a passagem das tablaturas para os arquivos de som e midi acarreta não só uma mudança no perfil realizacional da pesquisa. De posse das tablaturas, as decisões interpretativas no registro vocal do texto metrificado acarretam o enfretamento dos limites das informações dessas tablaturas. Esta situação sincrônica do intérprete retoma aspectos da diacronia: parcas notações que restaram de parâmetros musicais dos textos clássicos gregos nos mostram que havia um vínculo tradição e performance, no sentido de o intérprete não dispor uma obra mais explícita em seu acabamento antes do ato de sua efetivação. Mesmo os sinais presentes nos fragmentos de notação melódica são esparsos, não cobrindo todas as notas a serem vocalizadas, diferentemente da notação métrica, presente em cada sílaba (Pölmann e West 2001) . De forma que os textos restantes da tragédia grega manifestam a dialética da abertura de sua construção: não há a prerrogativa de uma instância prévia aos atos performativos. Nada substituí a unicidade e irrepetibilidade do acontecimento sonoro. No lugar de se pensar a inexistência de notações expandidas, a questão é pensar a razão de se haver privilegiado um registro das durações em detrimento de outros parâmetros (Hagel 2008). Dessa maneira, a cantilena da “perda da música grega” não faz sentido continuar a ser entoada. Na verdade, o que se extrai dessa cantilena é a tentativa de aplicar uma prática musical a outra. Na prática musical de se compor obras que integravam música, dança e atuação para uma plateia massiva em competições dentro festivais anuais, as estratégias compositivas foram as enfatizar o acontecimento multidimensional por meio de um design rítmico-sonoro(Pintacuda 1978, Scott 1984). A escritura temporalizada presente nesses fósseis espetaculares que são os metros da tragédia grega demonstram essa experiência de se organizar temporalmente heterogêneos eventos sonoros e audíveis. Diante disso, o procedimento adotado na segunda fase da pesquisa foi o de, a partir da discussão e análise dos dados das tablaturas métricas e de macro-estrutura, trabalhar, em um primeiro momento com as seções individuais, partindo inicialmente da trilha midi baseada na escansão métrica. Como cada momento de passagem das tablaturas para a geração envolve questões específicas de sua realização, a produção de trilha midi dos metros esbarrou em algumas questões. Inicialmente, a tablatura apresenta apenas durações relativas binária (um tempo, meio tempo). Não há uma série de outras elementos ou informações temporais: pausas, compassos, indicações de andamento. Porém, no reverso dessa negatividade, há outros dados presentes no texto. Tudo em uma tragédia é verso. Os versos se organizam em diferentes modos de integração e 133 ART Nesse sentido, justifica-se o uso de duas tablaturas: a métrica, na qual se marcam as durações(e, consequentemente, os acentos) e estrutural, na qual se registram as seções e suas divisões. No lugar de uma notação apenas, que procura simular a performance para preencher o pressuposto vazio representacional da música da tragédia grega, temos a produção de outros formas de representação a partir mesmo desse não acabamento do registro. Ou seja, no lugar de preencher o “vazio” ou as lacunas da tradição, desloca-se o foco para modos complementares de tornar compreensível os fatos cifrados nos textos. ART divisão. Nesse sentido, a análise pode enfocar a composição do verso isolado, elenca os agrupamentos rítmicos e suas relações entre si. Ou pode ultrapassar este nível frasal, e observar como versos em conjuntos, os quais ou pertencem a seções monométricas/ plurimétricas, ou seguem arranjos estróficos/não estróficos. Como se vê, mudando-se a unidade de medida altera-se a perspectiva de análise, o que ratifica a generalizada ritmização marcada no texto. Partindo do verso em seu isolamento, a frase rítmica registrada e decomposta na escansão precisa passar recuperar sua orientação expressiva. O momento de sua atualização pelos arquivos midi gerados determina a substituição de uma análise atomizante dos metros para uma que os insira em níveis de identificação e vinculação mais amplos(Lerdahl & Jackendoff 1996,Temperley 2001) . É a partir desse redirecionamento que a demanda por novas informações temporais é aplicada à limitada tablatura e assim os dados ali registrados são suplementados por atos de sua ressignificação. Disso, alguns fenômenos já apontados pela filologia podem encontrar agora uma melhor compreensão, tais como restrições de durações em determinadas posições de versos, cesuras, tensões entre as partes internas no verso e possíveis pausas finais e em outras posições do verso. A ultrapassagem da decomposição em pés métricos para a organização rítmica da frase é o pressuposto para a tradução midi das tablaturas métricas. Uma primeira dificuldade para se acessar a frase rítmica a partir das análises métricas é da contraposição entre as estratégias de escansão e a pluralidade de formas de organização temporal que os metros exibem. Incialmente, é preciso deixar claro que não há pés métricos isolados, mesmo em uma contextura métrica homogênea(quando se ter o mesmo padrão recorrente).A sucessão do mesmo padrão é uma construção: mais que a extensão de uma forma base por meio de processos aditivos(Sachs 1953), temos formas de agrupamento que estabelecem relações e hierarquias entre os materiais conjugados, que se tornam, por isso, um grupo perceptivo(Bregman 1990). Veja-se, como exemplo o caso do anapesto não lírico. Na verdade, quando de sua ocorrência, principalmente em Ésquilo, ele se apresenta em sistemas duplos que se integram a outros sistemas (Brown, 1977,Hubard 1991) . No caso, para se marcar como anapesto, os atos sonoros atualizam simultâneas operações para que a aparente simplicidade rítmica seja mantida. Baseado em um contraste bem marcado de durações, o anapesto aparece na tragédia associado a deslocamentos físicos de grupos corais em suas entradas e saídas de cena e posicionamento para o canto/dança(Smyth 1896). Na tablatura rítmica temos a sucessão de unidades isócronas mas que se articulam de modos diversos. Assim, de uma proporção 2:2, o anapesto, pode se manifestar como típico ( UU- UU-) ou como dátilo (-UU UU-) como espondeu (-- --). Ou seja, há a tensão entre durações diferentes. Para que a continuidade da ambiência anapéstica se manifeste e com isso a audiência associe o tempo, a sonoridade e o contexto de cena, a versatilidade das formas simples é realizada. 134 Em virtude disso, temos o segundo tipo de arquivo, o das pulsações, associados aos acentos presentes no texto. Na recepção renascentista e pós-renascentista dos metros gregos, valores rítmicos, que são baseados em durações, foram traduzidos por valores de tonicidade, que são relacionados à intensidade. Assim, um anapesto foi lido como uma sucessão de duas sílabas fracas para uma forte (UU-). No texto grego original há um sistema de acentuações, que marca as alturas e não a intensidade. São acentos melódicos e não dinâmicos (Allen 1973, Devine&Stephens 1994, Probert 2006). Ou seja, não há uma estrita identidade entre o plano das durações e plano das alturas no verso grego. Isso significa que a distribuição e arranjo dos grupos rítmicos pode ou não coincidir com a distribuição e arranjo dos valores de frequência. Assim, em uma ambiência anapéstica, para continuar em nosso exemplo, uma sucessão de frases rítmicas apresenta sílabas com durações breves e longas as quais o movimento melódico não correlaciona sempre uma frequência mais alta a uma sílaba mais longa. A assincronia entre os planos temporal e melódico tanto retoma a construtividade da composição rítmica, ao problematizar os nexos e vínculos entre as formas, quanto determina o desdobramento perceptivo da audiência em função de uma orientação da performance: os acentos melódicos destacam sílabas, ocasionando um efeito de intensidade não relacionado imediatamente às durações(David 2006). Assim no texto, os acentos melódicos marcam sílabas que consequentemente vão adquirir um movimento melódico ao se acopla uma intensidade(Allen 1968). Para traduzir esse outro ritmo, temos, seguindo a mesma linha de tempo geral em cada obra analisada, arquivos midi que traduzem por meio de som 135 ART No registro de sua sonoridade e durações por meio de arquivos midi, os atribuiu-se a etiqueta “palmas” aos valores marcados na tablatura, atualizando a orientação percussiva do metro, que interpreta a correlação simétrica arsis/tesis dos sistemas anapésticos ( West 1992:136, Pereira 2001:86-93). Em uma comparação com outros tipos de performances culturais sonoramente orientadas, temos que os anapestos, chamando a atenção da audiência para o grupo de coral que ocupa o centro focal da cena, podem ser associados audiovisualmente às marcações por palmas ou instrumentos de percussão de timbre agudo presentes na África Negra (Sandroni 2001:25). Ou seja, em espaços públicos, dentro de um contexto interativo, a iteratividade dos sistemas anapésticos repetidos em ostinatos estritos demarca formas de participação nas fronteiras das seções do espetáculo. Situados antes e entre seções de contracenação falada e cantada/dançada, os sistemas anapésticos apontam justamente para essas distinções rítmicas sonoramente perceptíveis e corporalmente efetivadas e partilhadas. A melodia reduzida desses sistemas, vocalizados em recitativo, entre canto e fala, coloca em primeiro plano de escuta a batida, o pulso, o movimento cadenciado, em uma autoapresentação do coro como agente rítmico e da espetáculo como uma composição temporal. A periodicidade temporal (ciclos) dos sistemas anapestos não se produz pela expansão ou atualização de um esquema básico(Patel 2008:150). Antes, em sua composição interna, em seu agrupamentos, os anapestos sustentam-se na provisão de uma perceptível seção ou subseção de uma obra. ART percursivo grave (bumbo), os acentos agudos e graves presentes no texto( Di Giglio 2009). Para o ouvinte torna-se patente a organização em vários níveis da tragédia grega. Nessa orquestração de procedimentos de diversos parâmetros psicoacústicos, temos mesmo para um metro aparentemente tão simples como o anapesto, considerado uma marcha de passo duplo, ou dois passos consecutivos que realizam um ciclo completo, distinções aurais e hierarquias de tempo diversificadas(Schomolinski 2004). Retomando os passos da metodologia, a figura 1 exibe a escansão métrica, destacando para cada sílaba uma duração. No mesma figura, os acentos melódicos estão marcados no texto grego. figura 01 Continuando, a figura 2 exibe dois sistemas: o primeiro temos uma transcrição em notação rítmica tradicional da escansão métrica; o segundo, a transcrição dos acentos melódicos que marcam inputs de intensidade. figura 02 Como se pode notar, a presumida “regularidade” e homogeneidade temporal dos anapestos é construída a partir de movimentos síncronos e assíncronos entre as durações e as intensidades. Diante disso, não apenas a identificação do padrão métrico, mas sua necessária variação e redefinição é o que o efetiva sua cognição e reconhecimento (Mirka 2009, Malin 2010). As ocorrências do anapesto têm aproximadamente a mesma duração, mas não o mesmo ritmo. Este paradoxo se compreende pelo horizonte compositivo dos ritmos, articulando diversos parâmetros, probabilidades e expectativas em sua realização e efeitos (Huron 2006, Temperley, 2010). Segundo Bachelard, só uma pluralidade pode durar ( Bachelard 1994). Nesse sentido, K. Agawu já havia externado sua insatisfação com a representação dos ritmos africanos, ao atacar o que ele chama de “enduring myths”, presentes na estratégias de se descrever a musicalidade de eventos interatísticos fora de seus contextos de produção (Agawu 2003). Em 136 O terceiro arquivo de som a partir das tablaturas é o do texto recitado. A ênfase aqui é o de disponibilizar mais uma perspectiva para análise da pluralidade das durações da performance dos metros gregos. Pois, como se vai observa com nesse estágios, a duração real das sílabas não se confina nos valores convencionais atribuídos. Esse fato, discutido desde a antiguidade, apontava para a luta entre descrições hegemônicas entre metricistas e ritmicistas, ou, respectivamente, entre os que trabalhavam com as durações atribuídas e as proporções matemáticas das durações(Usher 1985, Mota 2010). De fato, temos sílabas escandidas como “curtas” que possuem extensões diversas, algumas até maiores que o de uma sílaba “longa, como se observa na figura 1”. Essa não sincronia acarreta quantizações não só na plataforma DAW, como também na performance (Gouyon 2005). Verticalmente, a contrametricidade muitas vezes presente na relação entre os dois sistemas da figura 2 se contrapõe à horizontal continuidade das durações efetivas da fala na figura 1(Psaroudakês 2010, Georgaki,A.;Carlé,M. ;Psaroudadês, S. & Tzevelekos 2009). Pesquisa Durante o primeiro semestre de 2011 realizamos pesquisas de movimento a partir dos cinco ritmos da prática Power Wave de Gabrielle Roth, nas aulas da disciplina Fundamentos da Dança, da grade curricular do curso de licenciatura em dança do Instituto Federal de Brasília. A principal indicação de Roth para essa prática é deixar-se levar pela pulsação dos ritmos musicais, que ela divide em cinco tipos: fluente, staccato, caos, lírico e quietude. Com o objetivo de desconstruir os treinamentos prévios dos dançarinos ingressantes no curso de dança, já que a disciplina é ministrada para os alunos do primeiro ano, estudamos esses ritmos em busca de uma movimentação mais espontânea. As práticas corporais às quais muitos desses alunos estiveram submetidos costumam limitar a criatividade e a autonomia ao dançar, por causa de suas restrições a modelos coreográficos repetitivos. Roth nos oferece caminhos para superar a padronização fragmentária e desconectada de sentidos do ato de dançar. A segunda indicação para a prática da “onda poderosa” é moverse sem esforço. No volume dois do vídeo Dances of Ecstasy (2003) essa recomendação é associada à ideia de que o dançarino é a própria dança e que, portanto, não se move - é movido. A dança acontece independente de seu comando consciente, atravessa o corpo, ou melhor, é o corpo. A identidade de quem dança deve se perder durante a prática, como ocorre com os dervixes rodopiantes da Turquia. De fato, imagens dos dervixes, membros do Sufismo, ilustram a parte do primeiro volume do DVD que se refere à busca pela unidade a partir do transe que se experimenta ao 137 ART situações que envolvem eventos multidimensionais, a pluralidade temporal é uma interpretação da construção de interações rítmicas entre grupos engajados na partilha de referências e atos (Cook 1998, Leman 2008, Mota 2005). A organização rítmica dessa obras negocia com e responde a organização dos eventos interpressoais. ART girar. Mevlana Jalaludin Rumi, poeta e teólogo iraniano, cujo ensinamento inspirou a fundação da Ordem Sufi Mevlevi dos dervixes, acreditava que o giro era a expressão do amor divino. Percebendo que tudo gira - a Terra, os planetas, os tornados, redemoinhos - Rumi acreditou que o sopro de Deus impulsionou os giros que deram início à criação do universo. Quem assiste a essa prática de meditação em movimento percebe que o dançarino se ausenta, se transforma, fazendo com que apenas o giro permaneça. Por cerca de um mês praticamos as danças guiadas pelos variados ritmos, tendo apenas a contaminação musical como estímulo para improvisações livres. Após um contato com o tema de pesquisa do professor Marcus Mota, começamos a idealizar parcerias entre os alunos da graduação do IFB e as pesquisas desse professor, responsável pelo LADI-UnB (Laboratório de Dramaturgia e Imaginação Dramática da Universidade de Brasília). Suas pesquisas associam a métrica dos textos das Tragédias Gregas a ritmos que remetem aos passos de dança do coro que as representavam. Seu trabalho estava numa fase de geração de arquivos sonoros a partir do texto As Suplicantes, de Ésquilo. Elaboramos, então, uma atividade de extensão sob a forma de seminário intitulada “Dança, Métrica e Música da Antiguidade”. O seminário foi realizado nos dias 18 e 20 de maio de 2011, aberto ao público e contando com a presença dos estudantes da disciplina Fundamentos da Dança. Uma semana antes do seminário, o professor nos disponibilizou um arquivo sonoro composto por ritmos percutidos. Esse arquivo foi utilizado em duas aulas da turma citada, sem menção aos processos de composição que originaram os sons. Os alunos não tinham qualquer referência sobre o trabalho que relacionava o texto grego com a movimentação do coro. Aquele trecho rítmico enviado por Mota foi utilizado nos mesmos moldes das práticas dos cinco ritmos de Roth. Num primeiro momento, os alunos foram solicitados a improvisar a partir dos estímulos proporcionados pelo ritmo do arquivo sonoro, reproduzido em caixa de som, com programação para se repetir ininterruptamente. As sessões tinham duração de 15 a 30 minutos. As improvisações livres começaram a definir certos padrões de movimento. Os alunos foram solicitados a memorizar os padrões. Em seguida, deveriam perceber as qualidades de movimento que constituíam aqueles padrões. Iniciamos um processo de composição, ainda sem as referências sobre a origem do ritmo. Nas aulas do semestre havíamos estudado alguns conceitos da teoria de movimento de Rudolf Laban. Ao estabelecer relações entre as improvisações livres com base no arquivo de Mota e a prática do Power Wave, os estudantes perceberam que o estudo da fluência, do peso, do espaço e do tempo - qualidades de movimento destacadas por Laban - poderia auxiliá-los no processo de composição. Escolheram trabalhar o ritmo que Roth denomina staccato porque o identificaram como similar ao ritmo percutido do arquivo com o qual vinham improvisando livremente. O staccato tem como principal característica o uso do espaço de forma direta, o que é destacado em comandos como: “Seja convincente, direto. Crie fronteiras. Defina-se” (ROTH, 1997, p.101). Os deslocamentos são assertivos, os movimentos nítidos, angulosos, percussivos e executados com base 138 Após essas primeiras pesquisas, o grupo iniciou discussões sobre escolhas estéticas e estratégias a adotar. Dividiram-se em dois grupos que fariam as entradas em cena por diagonais opostas, simulando um enfrentamento. O grupo que entrava pela diagonal direita ao fundo da cena iniciava a marcha, que se mantinha estável: todos com o corpo ereto, passos idênticos, pulso marcado pelos pés, como um grupo militar. Na primeira pausa da música, os dançarinos paravam no centro do espaço cênico. Quando a música reiniciava, esse primeiro grupo se mantinha estático enquanto o outro grupo fazia sua entrada a partir da diagonal esquerda à frente da cena. Os movimentos do segundo grupo eram angulosos, a partir dos ossos e explicitando todas as articulações, avançando em passos marcados pelo ritmo, porém com variações da postura do tronco. Na segunda pausa da música, paravam em frente ao primeiro grupo. Com a retomada do ritmo sonoro, os dois grupos se entrecruzavam e quando passavam pelos integrantes do grupo oposto, assumiam a movimentação do outro grupo. Ou seja, os que marchavam passaram a realizar caminhadas com angulações das articulações enquanto os que se moviam a partir do tronco começavam a marchar com a postura ereta. Após a passagem, se dirigiam às posições iniciais do grupo oposto. Continuando a composição, fizeram deslocamentos circulares trotando e marchando, com variações de movimento, integrando-se e formando um conjunto. Com alguns deslocamentos, realizaram uma formação em fileiras. Finalizaram a sequencia nessa formação, executando movimentos com percussão corporal. Com o trecho coreográfico ensaiado, os estudantes assistiram ao seminário do professor Marcus Mota, onde tiveram acesso ao contexto de criação daquele ritmo. Souberam que se tratava dos ritmos correspondentes às métricas das primeiras partes do texto As Suplicantes. Também foram apresentados ao enredo dessa tragédia - o drama vivido por cinquenta mulheres que se recusam a casar com seus cinquenta primos. No encontro do dia 18, além dessa contextualização, o grupo apresentou o trecho coreografado a partir dos sons. No encontro do dia 20, assistiram aos vídeos do trabalho de A.P. David que, juntamente com uma coreógrafa, realiza uma pesquisa semelhante à que nós conduzimos. O produto de seus estudos nos pareceu tão familiar que alguns dos alunos ficaram surpresos. Estavam presentes as marcações dos pés, a marcha, as acelerações com movimentação coletiva a partir de uma formação circular, movimentos angulosos com uso de espaço direto, peso firme, tempo súbito e fluência controlada. Faltam-nos dados para inferir se os dois estudos teriam desencadeado processos correspondentes 139 ART na expiração; o tempo é súbito. A análise dos movimentos inspirados pelo arquivo sonoro trouxe a percepção de que as ações apresentavam qualidade de fluência controlada. De acordo com Laban (1978), a fluência pode ser livre-desembaraçada ou controlada-embaraçada. Com o impulso partindo dos pés num controle dos passos que limitava os movimentos, a estrutura coreográfica foi se aproximando de uma marcha. Esse marchar era composto por sapateios com a qualidade de esforço firme, definindo assim a gradação do fator peso. ART a partir da similaridade dos resultados. Porém, não restam dúvidas de que os estímulos da métrica forneceram um mote que originou criações parecidas. Após o seminário, o grupo teve seis encontros para reelaborar a composição. Dessa vez, optaram por se basear na história da súplica contida no texto da tragédia. Dividiram papéis: um pequeno grupo representava os primos; um rapaz representava Danaos - pai das suplicantes; um grande grupo representava as suplicantes/Danaides; outro rapaz representava Pelasgo - o rei de Argos, para o qual se dirigia a súplica; um terceiro representava Zeus. Com roteiro simples compuseram uma cena de enfrentamento entre Danaos, com suas filhas, e os primos. A seguir, recriaram a fuga para Argos e a primeira súplica diante do altar de Zeus. Finalmente, entra em cena Pelasgo. Então, as Danaides, pedindo proteção prostram-se aos pés do rei. Os resultados foram registrados em vídeo. Essa primeira iniciativa no sentido de recriar coreograficamente movimentos integrados ao texto grego, sua métrica e a música derivada, auxiliará a idealização e elaboração de outras composições cênicas. Referências Bibliográficas Agawu K. Representing African Music. Routledge, 2003. Allen, W. Vox Graeca. A Guide to the Pronunciation of Classical Greek. Cambridge University Press, 1968. . 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Privilegiou-se uma abordagem que reflete sobre o lugar da Estética no projeto filosófico moderno clássico e seu deslocamento operado pela Neurociência atual, questionando o que de novo e proveitoso é gerado e proporcionado pela maneira como a Neuroestética investiga o estado estético. Palavras-chave: estado estético, neuroestética, Kant Abstract: The replacement of some concepts and discoveries made by the recently created field of the Neuroaesthetics are investigated through the light of the history of aesthetics, to be more precise, from the view of Immanuel Kant (1724-1804). This approach was focused: a) on the place of aesthetics within the classic-modern philosophical project and its (dis)placement operated by this new field of the Neuroscience; b) on an examination of what is positive and on a critic of what is new through the way the Neuroaesthetics investigates the aesthetic state. Keywords: Aesthetic State, Neuroaesthetics, Kant Algumas pesquisas recentes (Kawabata & Zeki: 2004; Jacobsen & Schulz et all: 2006; Cinzia & Vittorio: 2009) no domínio das Neurociências apresentaram grande interesse em descobrir se há e, havendo, qual ou quais seria(m) o(s) correlato(s) neuronal (is) de uma experiência estética e/ou de uma experiência estética do belo na arte visual (especialmente na pintura). Esse campo de investigação, que inclui ainda as Ciências Cognitivas, a Filosofia da Psicologia e a própria Psicologia, a Filosofia da Mente e a Metafísica Contemporânea tem sido chamado de Neuroestética. Para o cientista pesquisador, a descoberta das populações neuronais e/ou das zonas específicas do cérebro que entram em atividade quando o cérebro se depara com uma situação estética seria o ponto de partida para reflexões que normalmente fizeram parte da Estética. Inclui-se nesse campo novo questões como a da universalidade possível ou provável de uma experiência particular e íntima ou a da relação entre recepção e criação, já que essas zonas ativadas ou a maneira de ativação das células no cérebro poderiam ser as mesmas, semelhantes ou estar associadas as que são usadas/articuladas para criação artística. Podendo ainda incluir nesse conjunto, sendo bastante otimista, pistas sobre o que para os neurocientistas parece ser uma das grandes questões a desvendar, a ponte entre uma conexão neural química/eletromagnética e seu correlato estado de consciência, ou seja, a da (não)materialidade da consciência (Chalmers 2006; Damásio 2010). Para o (cientista) pensador com preocupações especulativas em torno 144 Caso não haja um correlato neuronal seguro, específico e regular do estado do belo, como sugerem algumas pesquisa (Cinzia et all: 2009; Kawabata et all: 2004), seria possível inferir, embora possa não estar correto, que o belo remete a uma preferência particular, porque sempre ocorreria de modo contingente no cérebro. Dessa inferência ter-se-ia algo mais a favor da sentença usual segunda o qual “cada um tem seu próprio gosto” ou “que a beleza é relativa”, e de que gosto e beleza não são teorizáveis porque são aquilo que de mais íntimo e irredutível a conceitos poderia haver. Salvo naquela pesquisa de Jacobsen, que conseguiu identificar áreas específicas do cérebro que são ativadas, mas apenas para uma situação estética ligada a formas geométricas simétricas (2006), cabe lembrar que as situações propostas nessa pesquisa eram vinculadas à arte visual e não à natureza, um campo tradicionalmente também vinculado à Estética. Essa abordagem da Neurociência pensa a Estética e o estado estético por um viés objetivo, tratando esse sentimento (esse estado cognitivo) enquanto tendo um correspondente identificável no cérebro e esse estado ou sentimento podendo ou não ser universalizável (caso seja regular sua manifestação em zonas do cérebro), mas não a experiência do belo propriamente. Trata-se de um (re)esclarecimento do estético, ou seja, de um desencantamento da experiência do belo através de uma naturalização. Suponhamos, entrando ainda mais no tema por esse viés desencantado, que temos a certeza de que um estado neuronal realmente corresponde a um estado cognitivo, o estético, e que sua universalização objetiva seja também a da experiência do belo e que posso pensar sua universalidade objetivamente, materialmente. Eliminando a fronteira entre estado cognitivo (não material) e estado neuronal (material), entre estado subjetivo e a objetividade material relacionada a esse estado, o que fizemos, propriamente, com o estado estético? Como deveríamos pensar esse estado estético considerado agora materialmente? Com certeza, essa seria uma nova Estética e muito diferente daquela pensada por Kant quando escreveu a Crítica da Faculdade de Julgar publicando-a em 1790 e que orienta grosso modo ainda hoje nossa visão do que seja a Estética e o estado estético e sua crítica no final do século passado e início do XXI (Cf. Danto, The Abuse of Beauty, 2003; Heidegger, A origem da obra de arte, 1936). E o que seria radicalmente diferente, o que de novo a Neuroestética traria para a história da Estética? Kant pensava o ajuizamento estético como parte de um processo de estados cognitivos que só são possíveis porque o sujeito cognoscente 145 ART do sentido dessa eventual descoberta, ou investigação, restaria ainda se debruçar sobre quais seriam as implicações dessas pesquisas para a Estética e talvez para o domínio das artes, já que a Estética, por um tempo, esteve ligada diretamente às artes. Gostaríamos também, aqui, de problematizar algumas dessas implicações para a Estética e para o conhecimento em geral observando-se suas condições de produção e contato com o mundo, pois desde que se prestou atenção a uma estetização da vida/existência/ cultura a Estética está dissolvida na vida, na cultura e na existência também como pensamento. ART consegue desvincular-se, nesse ajuizamento, de qualquer forma de interesse que ele possa ter: na existência do objeto para seu prazer imediato e meramente sensível; no uso e na determinação conceitual desse objeto; ou mesmo, numa desvinculação frente ao significado que esse objeto possa ter. Ainda com Kant, o sentimento do belo estaria baseado não numa relação material com objetos, mas numa relação formal, ou seja, indireta porque vincularia a intuição do objeto a uma capacidade de não apreender com um conceito determinado o que esse objeto é ou para que serve. Mesmo sabendo que ele pode ser muitas coisas e que pode servir para muitas coisas a partir do momento em que não há mais a experiência estética, mas que seu acontecimento pode servir, ser ou significar algo (Cf. Kant, CJ, §§41 e 59, relativos ao interesse empírico pelo belo e o belo como símbolo do moralmente bom). Em todo caso, Kant esperou alcançar uma universalização do sentimento do belo independente de época, cultura ou região, uma espécie de modus operandi universal, apesar de enfatizar sua subjetividade enquanto um tipo especial de afeto. Basta lembrar que tal afetividade universal se dá como um sentido comum (sensus communis) baseado em um modo peculiar em que as mesmas faculdades utilizadas para conhecer discursivamente (entendimento e imaginação) se rearticulam, quando provocadas pela forma de alguns objetos. Nesses casos, tais faculdades não se ocupam mais com a tarefa de conhecer ou determinar um objeto e sua convivência (jogo das faculdades) fora de uma relação de conhecimento para com o objeto gera um prazer reflexivo (desinteressado/livre). Tal estado estético do belo pode ser esperado de todos porque tal disposição alternativa das faculdades de conhecer pressupõe essas mesmas faculdades para que a comunicação, por exemplo, seja possível. A Neuroestética quer pensar a relação entre esse estado e seu correspondente neuronal, ou seja, material. Ora, enquanto Kant tentou desmaterializar o sentimento do belo através de um processo de subjetivação (desencantando o estético, mas nem tanto, porque embora universal permaneceria imaterial!), a Neuroestética quer rematerializar tal sentimento (desencantando completamente o estado estético!). A materialização do belo ficou por conta dos estetas, filósofos e teóricos das artes e da natureza que viram em critérios objetivos tais como proporção, simetria, harmonia, etc. as, em termos modernos, condições de possibilidade e o fundamento (do sentimento) do belo. Seguindo essa pista, a pesquisa de Jacobsen (et all: 2006) com experiências estéticas a partir de formas geométricas e simétricas foi, curiosamente, a que mais avançou nessa tarefa de rematerialização do estético conseguindo mapear um conjunto regular embora variado e complexo de zonas do cérebro ativadas com essas experiências estéticas escolhidas. Ora, se ficou atribuído a Kant a revolução do gosto por ele ter revertido o ponto de partida para se pensar o belo colocando o sujeito e o modo como somos afetados por um processo cognitivo peculiar (o do jogo das faculdades), se isso tornou-se o centro, será que podemos dizer que a Neurociência opera também uma revolução na Estética? Sim, mas nessa pergunta esconde-se um detalhe muito importante: ao rematerializar o sentimento do belo e seu estado estético, não estaria a Estética se perdendo de alguma maneira? Ao se naturalizar 146 Tratar a consciência como cérebro faz parte do projeto cultural e epistemológico moderno clássico (XVII-XVIII) no sentido de ser o aprofundamento da sua questão principal: conceituar e teorizar objetivamente o máximo possível desencantando o mundo ao mesmo tempo em que ele é desvendado e esclarecido ao se apontar e acreditar em uma regularidade desse e nesse mundo. No caso da Estética, ela foi um lugar à parte no miolo desse mesmo projeto na medida em que, apesar de se conceituar tal sentimento definindo-o, não se poderia, contudo, ter conceitos determinados ou referências ao que o objeto é ou para que serve como parte fundamental do “esclarecimento” da experiência estética, que, ainda segundo Kant, usaria as mesmas faculdades de conhecer, mas fora de uma relação de conhecimento para com o objeto. O que a Neuroestética transgride e propõe enquanto, eu vou sugerir, revolução da rematerialização do sentimento do belo: é recolocar sob bases neuronais tal materialidade para que tal sentimento possa ser determinado conceitualmente nessas condições específicas e identificáveis tal como se fosse um objeto. Isso seria ampliar o alcance do projeto cultural moderno de conhecimento para um domínio resguardado, por esse mesmo projeto, das suas próprias investidas para desencantar o mundo como um todo. Mas seria isso, então, o fim da Estética? Não, certamente que não, porque tal tratamento material/naturalizante do estado estético inauguraria uma vertente das investigações estéticas dentro das ciências, com a tarefa de cada vez que descobrir mais detalhes desse funcionamento, então mais distante ficará da Estética do gosto, contudo mais próxima a estados de fantasia e liberdade, mesmo que aparentemente protegido dos seus encantos, sem saber ao certo quais as repercussões desse contato inaugural e tão próximo. Não se trata de saber quem vai ganhar influenciado mais a outra com suas peculiaridades, se uma desmaterialização da ciência através do estético ou uma rematerialização do estético pela ciência. Ainda: se um reencantamento do saber/do conhecimento em geral (aqui, do científico) ou um desencantamento completo da Estética como ponto final do projeto moderno. Não se trata de saber quem vai ganhar porque não há disputa. Trata-se sim de reconhecer, mais uma vez, uma passagem aberta entre dois domínios apartados estruturalmente, se se pensa somente com Kant, ou seja, da passagem entre uma visão desencantada da filosofia crítica (científica) e o encantamento ligado ao estado estético (fantasia e liberdade). Se a ciência se coloca como revolucionária dentro da história da Estética porque rematerializa suas condições de possibilidade, abrindo para a ciência um campo até pouco tempo cego, por outro lado a Estética (e isso 147 ART o sentimento não se estaria aí trazendo a Estética para uma condição de manejo objetivo que perdurou na história da Estética fortemente até Kant? Não haveria nesse processo um impedimento e uma perda do seu lugar próprio no campo do saber (conhecimento) em geral e da cultura? Talvez sim, mas ora, também esse lugar específico de um conhecimento tem saído de moda com a perda das fronteiras delimitadas nas trans/multi/ pluri/interdisciplinaridades dos conhecimentos e saberes. Enfim, o que, propriamente, está questão? ART serve também para arte computacional) entra dentro do mundo da ciência não apenas enquanto presença reforçada da liberdade criativa (o que a ciência também dispõe porque cria), mas decisivamente como crítica da ciência, sendo uma brecha do encanto impulsionando novas descobertas. A presença da liberdade estética ou da liberdade da atividade criadora artística dentro do mundo da ciência já se mostra visível, mas pouco sabemos (embora muito se especule!) da repercussão das eventuais descobertas dos correspondentes neuronais da experiência estética/ do belo para a atividade criadora nas artes e nas ciências também. Aqui, evidentemente, precisa-se fazer um ajuste nessas pesquisas da Neuroestética, que é a de ampliar do belo para a experiência de arte em geral o foco da investigação desses correspondentes neuronais. E a de ter a certeza que podemos ter alguma experiência estética ou artística dentro de um Scanner, uma questão de método completamente desencantada que me faz lembrar de um projeto de Yure Firmeza e sua “experiência de gavetão”... especulações à parte, até aonde pude perceber em algumas pesquisas atuais, parece mesmo é que o cérebro anda a desafiar encantando os cientistas quando não se deixa mapear materialmente de maneira integral nesse estado estético/ou de beleza... esses estados seriam como aquelas sereias que seduziam e cantavam para Ulisses amarrado no mastro do navio em seu retorno para casa, parecem colocar em questão um retorno seguro para a casa da ciência! Referências bibliográficas Chalmers, David J. (1996) The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. Oxford: OUPress, 1996. Cinzia, DD & Vittorio, G. (2009) “Neuroaesthetics: a review”. In Curr. Opin. Neurobiol. Dec; 19(6): 682-7, 2009. Damasio, Antonio (2010). Self comes to Mind: Constructing the Conscious Brain. New York: Pantheon Books. Danto, Arthur C. (2003) The Abuse of Beauty, Chicago: Open Court. Heidegger, Martin. (1936) Der Ursprung des Kunstwerkes [A origem da obra de arte]. Stuttgart: Reclam, 2003. Jacobsen, T., Schulbotz, RI. et all. (2006) “Brain Correlates of Aesthetic Judgment of Beauty”. Neuroimage Jan 1:29(1): 276-285 [Errata Aug 1; 32(1) 486-7, 2006], 2006. Kawabata, H. & Zeki, Semir. (2004) “Neural Correlates of Beauty”. In J. of Neurophysiol. 91: 1699-1705, 2004. Kant, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar (1790). Rio de Janeiro: Forense, 1994. 1 Professor pesquisador do Instituto de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília. 148 ART O ato criador (segundo especialistas da indefinição) Nelson Maravalhas Junior1 Resumo: O texto pondera sobre o que seria o ato criador da poética, entendida como uma possível essência da obra de arte. Sendo fenômeno de difícil precisão, lança-se mão de algumas enunciações bastante vagas de autores diversos que discorrem, de maneiras mais ou menos diretas, sobre como seria o processo e o clima que envolvem o ato primordial da criação artística. Palavras-chave: Ato criador, intuições, arte marginal e loucura, formasconstantes. Abstract: The text endeavors to explain what would be the poetic creative act, understood as the very essence of the work of art. Considering that it is no easy task defining what this phenomenon is, appropriations are made of somewhat vague discourses from various authors who, in more or less direct ways ,brood over how would be the process and the atmosphere which envelop the primordial act of artistic creation. Key-words: Creative act, intuitions, outsider art and madness, formconstants. D’immenses cercles se traçaient dans l’infini, comme les orbes que forme l’eau troublée par la chute d’un corps; chaque région, peuplée de figures radieuses, se colorait, se movait et se fondait tour à tour, et une divinité, toujours la même, rejetait en souriant les masques furtifs de ses diverses incarnations, et se réfugiait enfin, insaisissable, dans les mystiques splendeurs du ciel d’Asie. Gérard de Nerval, Aurélia: La revê de la vie2 Neste texto, vou discorrer sobre o ato criador, aquele momento decisivo em que a criação poética irrompe e um objeto (material ou imaterial), dela advindo, tem a capacidade de tornar-se uma obra de arte. Sei que esse fenômeno é de difícil precisão, por isso, para auxiliar na tarefa de definir o que para muitos é um dos conceitos mais inapreensíveis da arte, lançarei mão aqui de emissários de mensagens que, em certa medida, discorrem sobre o processo em si ou aludem a um clima em que o processo pode aparecer. Os três primeiros emissários usam a palavra escrita como portadora de sugestões algo vagas sobre o fenômeno; entretanto, fecharei o texto com uma pintura que, apesar de ser uma imagem, de ser uma “poesia muda”, é capaz também de enunciar uma ideia, de ser propositiva. Tal assunto é coerente com o tema Texto & Imagem, da mesa de Poéticas Atuais. O primeiro, Jayme Rojas de Aragón y Ovalle (1892 ou 1895 - 1955), o São Sujo, como se autodenominava, foi músico de talento. Compositor de exatas 33 músicas (segundo ele, o número perfeito, por ser a idade de Cristo), entre elas O Azulão, em parceria com Manuel Bandeira e gravada por nomes como Victoria de Los Angeles, Kathleen Battle, Angela Gheorghiu, Alaíde Costa e Nara Leão. Querido e adorado por vários intelectuais e artistas como Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, José Lins do Rego e Mário de Andrade, além de seu 149 ART parceiro da famosa canção, Jayme Ovalle foi um nome estelar na boemia carioca dos anos 1940 e 1950, por seus rompantes de poesia inesperados e intuições agudas saídas como que do nada. Profeta, místico e fervoroso católico, parecia deter na ponta da língua os mais fundos segredos da alma humana, ele foi entrevistado em maio de 1953 por Vinícius de Moraes (em parceria com Otto Lara Resende) para o tabloide semanal em cores Flan, publicado sob o título “Retrato de Jayme Ovalle”, da qual transcrevo uma parte3, por me parecer conter justamente a enunciação mesma do segredo da criação em arte. O poetinha Vinícius pergunta: - Agora me diga uma coisa importantíssima, Ovalle. Que é o ato criador? Meio surpreso e pego de surpresa, Ovalle responde: - Puxa, isso é muito importante! Deixe ver... O ato criador é qualquer coisa assim como um desastre. Tem o imprevisto de um choque. E é qualquer coisa extremamente ligada ao pecado. Pode acontecer de maneiras muito diferentes. Há vezes em que nós participamos dele, outras não... O poetinha parece não entender a belíssima resposta e, não satisfeito, insiste: - Não, Ovalle. Eu quero é a coisa em si, o nó do assunto. O que é o ato criador? - Espere aí... O ato criador... no fundo, é a revelação das coisas que não aconteceram, as que nós deixamos de viver por falta de oportunidade e sobretudo por covardia. É um ato absolutamente livre e espontâneo. Olhe aqui, é qualquer coisa assim como Adão ainda com a sua costela, na grande noite fechada que era seu corpo. Já estava previsto que a costela deveria ser tirada por Deus para iluminar seu corpo, que antes era uma noite profunda e integral. É ao mesmo tempo o só e o coletivo. Pode-se mesmo dizer que, nesse sentido, o ato de criação é o mais puro socialismo. - A Poesia, Ovalle, que é a poesia? - É a coisa mais importante do mundo. Todo mundo nasce com ela, porque ela é a própria vida. Todo mundo é criado com o dom da poesia, e só deixa de ser poeta porque perde a inocência. Quanto mais um homem cresce carregando consigo sua inocência, maior poeta ele é. No fundo, esse pessoal que se torna banqueiro, ou Senador, ou Presidente da República, só faz isso porque deixou de ser poeta, ou porque é poeta frustrado. - Onde vive a Música? - Fora de nós. Nós somos os instrumentos. Quanto melhor o instrumento melhor a música. Se formos um Stradivarius, a música toca em nós que é uma beleza! Mas tem muito instrumento ordinário por aí. Vinícius segue perguntando acerca de temas tão díspares como a loucura, o suicídio, a noite, o ato sexual, Freud e a Psicanálise, Karl Marx, o câncer, etc. A este amplo espectro, intuições inusitadas eram produzidas 150 Entretanto, mais que um teórico intuitivo da gênese do ato criador, Ovalle era um poeta do instante, um poeta do dia a dia, como eu chamo “um poeta para o vento”, que, envolto em uma atmosfera constante de poesia, enunciava pérolas para quem pudesse agarrá-las no ar. Foi, decididamente, um performer do tipo contemporâneo5 da fala magistral e da criação pura, que se fazia entremear no cotidiano banal que sempre nos cerca. Infelizmente, tentou ser poeta da forma consagrada, da poesia em forma de poemas com ritmo, rima e música, e nisso fracassou (ele mesmo - quem diria? - um poeta frustrado, como os banqueiros, senadores e presidentes por ele citado). Faltou-lhe, suponho, a premonição de que a seu ato criador pudesse residir tão somente naquelas suas “falas para o vento”, de que esta forma nova seria tão válida como obra de arte quanto a consagrada poesia impressa. Outro universo de intuições vem de uma filósofa amadora de Brasília e, também ela, artista das tiradas enigmáticas, Helena Vieira Coelho Pereira. Em um pequeno texto, não sem uma grande dose de risco e conjectura intitulado “O Futuro da Filosofia”, remetido a mim por e-mail e por mim aqui apropriado e transcrito, cria também algumas observações preciosas e pedras filosóficas. Helena inicia seu texto com uma citação do filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): “A filosofia que se escolhe depende do homem que se é”6. Continua a filósofa amadora, com suas próprias palavras: A frase faz pensar que há relação entre filosofia e o modo de viver. Então não é algo assim tão abstrato, questões como, por exemplo: se existo? Também poderia dizer que não é assim tão sem sentido buscar expressar racionalmente o que se é, ou pensa, ou observa. Minha imaginação, por doença ou outra causa, submeteu-me a fenômenos curiosos. Onde a razão aparecia, sim, vez por outra, como uma pausa, como que para um descanso, minha mente e meu corpo, a maior parte do tempo, era interação descontrolada. Porque a frase lógica que minha mente gerava, que deveria dar ao corpo a sensação de chão, era demasiadamente longa, me fazendo perder o ponto de partida e, consequentemente, eu temia não encontrar o ponto final. Mas em um momento em que os pensamentos, observações e sensações pareciam que se encaixavam, 151 ART sem sombra de esforço ou artificialidade. Podemos ver, em algumas das respostas de Ovalle, premonições da teoria artística, por exemplo, a de um Josef Beuys (“todos podem ser artistas”). Por outro lado, é de notar a relação estabelecida – por um cristão devoto, deve-se frisar – entre o ato criador e o pecado. Leitor, talvez, de um só livro, a Bíblia, sua esposa Virginia Peckam o definiu: “estamos falando de um homem que nunca foi à escola, e que por pouco não era analfabeto (...) não era um intelectual. Era um simples, quase a ponto de ser defeituoso, uma santa criança”4. Residiria aí, em sua pureza e em sua ausência de erudição, justamente o frescor de suas intuições? Ovalle tentou ser poeta – de forma mais incisiva curiosamente em língua inglesa, que não dominava absolutamente – e, para isso solicitou ajuda primeiro de uma empregada inglesa e depois de sua esposa americana! Estaria aí já o germe da dissolução da autoria individual e da ideia do coletivo em arte atual? ART já a razão vinha me dar um descanso e um fôlego. Aí mergulhava novamente no caos incompreensível, porém fascinante. Esta sedução era o indicativo de coesão. Em outras palavras, um lugar de minha mente, onde não moram as palavras, onde razão e afeto se confundem (intuição?) permanecia a certeza, a sensação de unidade. Os episódios de loucura pareciam conectados entre si, numa cadeia evolutiva de uma busca por um chão que resistisse a todo abalo. Amoral porque não reconhecia autoridade, boa, porque é da minha índole, minha mente guarda um caos privado onde sofrimento, sexo, sensualidade, religião, fé, crime, todos os pecados e todas as caridades são amigos e focam o mesmo objetivo: a vontade de Deus de pôr ordem na casa, uma tarefa infinita, eterna e paradoxalmente terminada. Perfeitamente. É louco este pensamento? Melhor do que os outros que estudei; digo, para mim. Não por estar correto, como saber? Mas por que plantou em mim a semente da paz. Agora é só brincar. Então aposto que este é o futuro da filosofia: cada macaco no seu galho, todos sorridentes. [todos os grifos são meus] Os grifos que operei acima parecem apontar todos para um estado liminar, um entre-estado, uma indefinição espacial, porém carregada de uma riqueza potencial. Veremos mais abaixo a relação que poderá ser estabelecida. Como lidar com um texto dessa natureza? Aparentando tratar de filosofia, o texto tem a forma de um poema em prosa, o conteúdo de um ensaio em poéticas contemporâneas, e se parece com um objeto imaginário tal como uma faca só lâmina7: por onde quer que o seguremos, ele nos cortará as papilas tácteis das mãos, é quase inapreensível. No entanto, não guardará, em termos estruturais, em termos de atmosfera geral, semelhança com os mistérios enigmáticos tão caros a um simbolista, como por exemplo, um Paul Valéry? Vejo em seu texto analogias outras, desta vez com um romântico também francês, Gérard de Nerval, (1808-1855), como veremos agora. O escritor francês, cujo nome real era Labrunie, escreveu – quando paciente em um hospital psiquiátrico8 - o conto Aurélia: La revê de la vie (cujo excerto serve de epígrafe a este artigo) a parte final do qual foi encontrado em seu corpo quando de sua morte. Nerval, além de escritor, era também desenhista e, conta-se, teria pintado as paredes do hospital onde foi internado. O protagonista narrador de Aurélia conta que pintou afrescos em um hospital com a imagem de sua amada com o suco de ervas e flores e com carvão e pedaços de tijolo, quando de sua doença mental 9 . São frequentes as indicações por alguns escritores (Maxime Du Camp, Théophile Gautier e John MacGregor, por exemplo) de que as descrições de sonhos (rêves) tão recorrentes em Aurélia são alucinações de natureza psicótica. A epígrafe, excerto selecionado para este ensaio, aponta para outra direção, assim como o parágrafo inicial deste seu conto, que aqui traduzo livremente: 152 O que se pode observar pelos grifos indicados nestas linhas de abertura, tanto do conto, quanto do próprio universo ao qual o autor quer nos levar (furando as portas de marfim ou de chifre), é que o autor experiencia estados intermediários entre a vigília e o sono; mais propriamente falando, pareceme que Nerval caía repetidamente em estados liminares denominados de Hipnagógicos (em direção ao sono), comumente confundido com os sonhos devido à indefinição típica deste estado (não é sono nem é vigília e são os dois ao mesmo tempo!). Tal estado geralmente é acompanhado por imagens mentais visuais ou auditivas espontâneas de grande vivacidade (algumas pessoas me relatam terem tido “sonhos coloridos”, ou seja, experienciaram imagens hipnagógicas). Conforme assinalei acima, a epígrafe deste artigo aponta para uma das formas constantes (os círculos concêntricos das ondas na água quando se joga uma pedra), presentes tipicamente nas imagens visuais bidimensionais nascidas espontaneamente neste estado liminar. Estas imagens são projeções subjetivas que se veem como que pelo “olho da mente”. Exemplo claro de uma destas imagens e de sua forma constante está na ilustração 01, de Fernando Diniz11. Já as alucinações psicóticas contêm outra característica, a de ser superposta ao espaço real (e ser com ele confundidas) como um objeto ou um ser tridimensional, tendo, às vezes, o poder de fala, sendo assim mais teatral. Outro exemplo de formas constantes em trabalhos de pessoas não classificadas como “normais”, pode ser encontrado no conto The Secret Agent, de Joseph Conrad, de 1907. Neste conto, o agente secreto Mr Verloc, vê seu enteado Stevie (uma espécie de artista outsider) “sentado quieto e bonzinho a um balcão, desenhando círculos e círculos; inumeráveis círculos, concêntricos, excêntricos; redemoinhos coruscantes de círculos que, por sua miríade de emaranhadas curvas repetidas, uniformidade de forma e confusão de linhas e intersecções, sugeriam a representação de um caos cósmico, o simbolismo de uma arte louca tentando apreender o inconcebível” 12. Nesta passagem, ao criar o que seria a manifestação gráfica da mente de um personagem mentalmente perturbado, a intuição do escritor encontrou as mesmas formas constantes que se encontram repetidas vezes nos trabalhos dos pacientes psicóticos, exemplificadas na ilustração 01. Haveria, então, um método na loucura? Método esse responsável pela repetida incidência de formas? Os redemoinhos caóticos, o desastre, a costela arrancada de Adão, o pecado, a culpa e a tragédia daí advindas não são todas expiações e catarses necessárias propiciadas pela obra de arte? E a nossa não participação, em 153 ART O Sonho é uma segunda vida. Eu não posso descobrir sem tremer estas portas de marfim ou de chifre que nos separam do mundo invisível. Os primeiros instantes do sono são a imagem da morte. Um entorpecimento nebuloso agarra nosso pensamento, e nós não podemos determinar o instante preciso onde o eu, sob uma outra forma, continua a obra da existência. É um subterrâneo vago que se ilumina pouco a pouco, e onde se livram da sombra e da noite as pálidas figuras gravemente imóveis que habitam a câmara do limbo. Quanto mais o quadro se forma, uma claridade nova ilumina e faz jogar estas aparições bizarras; o mundo dos Espíritos se abre para nós10 [todos os grifos são meus, à exceção do negrito]. ART outras palavras, a espontaneidade ou a não voluntariedade, que o místico Ovalle apontou como características do ato criador, por um lado; e a falta de chão, o caos, os hiatos e as pausas da razão, a interação descontrolada que Helena aponta em seu pequeno ensaio, me parecem convergentes com o imaginário mental típico do universo de Nerval. O que é a loucura senão um desastre, um pecado, uma pausa da razão? E o ato criador, não será um hiato, uma costela arrancada que ilumina a noite de um corpo em seu quase sono, como soe acontecer com as imagens mentais do tipo visual? Assim, proponho, todo ato criador é uma espécie de visão. Podemos ver, na ilustração 02, a projeção de uma visão ao fundo do espaço perspectivo. A personagem, cujo rosto provém da história da arte, parece indicar que o movimento circular que produz esta visão nasce de dois mananciais: o dicionário (fonte de palavras) e a lata de tinta (fonte de imagens), ambos (texto & imagem) sob seus pés, ao seu dispor. As duas fontes são manipuladas no peito, manualmente por meio da manivela. Em um encontro de Arte e Tecnologia, não poderíamos deixar de notar o fio e a tomada elétrica conectada à cadeira onde senta a personagem e a projeção que mais parece vir de um data show. Temos aí algumas indicações do ato criador, nada em definitivo, como não pode ser mesmo quando se fala em criação e em arte. Sugestões de personalidades peculiares, cada uma com sua cor particular, especialistas da não exatidão, da proposta vaga, da liminaridade entre um estado e outro, não sendo nem um nem outro, e sendo os dois ao mesmo tempo. Enfim, não há uma palavra no thesaurus das línguas que defina a criação; se houvesse, após enunciá-la, todos nós calaríamos. Bibliografia CONRAD, Joseph, The Secret Agent – a simple tale, Penguim Books, 1994. MacGREGOR, John, The Discovery of the art of the insane, Princeton University Press, 1989. MARAVALHAS Jr., Nelson, Heliogábalus, in Poiésis, n. 14, vol. 1, PPGCA/ PROPP/UFF, 2009. NERVAL Gérard de, Aurélia, suivi de Pandora, Librio nº 23, 2003. NETO, João Cabral de Melo Uma faca só lâmina ou Serventia das idéias fixas [1956], in Serial e Antes (Poesia completa, vol. 1) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. WERNECK, Humberto, O Santo Sujo: a vida de Jayme Ovalle, São Paulo: Cosac Naify, 2008. 154 ART Ilustração 01 – sem título, Fernando Diniz, 1979, 50 x 40 cm, guache sobre papel. Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente. 155 ART Ilustração 02 – Bases Antropológicas para o Imaginarium I – A manivela, a reflexão. Nelson Maravalhas Jr., 2004, 87 x 64 cm, óleo sobre tela. 1 Professor pesquisador doutor do Departamento de Artes Visuais, Instituto de Artes da Universidade de Brasília. 2 Imensos círculos se traçam no infinito, como as ondas que se formam na água agitada pela queda de um corpo; cada região, povoada de figuras radiosas, se colorem, se movem e se fundam a cada vez, e uma divindade, sempre a mesma, rejeita sorrindo as máscaras furtivas em suas diversas encarnações, e se refugiam 156 ART enfim, inapreensíveis, nos místicos esplendores do céu da Ásia. (Trad. Livre do Autor) 3 Todas as informações aqui contidas, inclusive as perguntas e respostas da entrevista, retiradas de WERNECK, Humberto, O Santo Sujo: a vida de Jayme Ovalle. São Paulo: Cosac Naify, 2008. 4 Idem, p. 310. 5 Semelhante correlação foi feita por mim acerca de um artista marginal psicótico de Brasília, no artigo Heliogábalus, In: Poiésis, n. 14, vol. 1, PPGCA/PROPP/UFF, 2009. 6 Provavelmente do seu sistema Wissenschaftslehre, Teoria da Ciência ou Ciência do Conhecimento. 7 Como no poema de João Cabral de Melo Neto Uma faca só lâmina ou Serventia das idéias fixas (dedicado para Vinícius de Moraes), 1956, In: Serial e Antes, Poesia completa, vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. 8 Hospital dirigido pelo Dr. Emile Blanche, em Passy, que demostrou extraordinário interesse pelo paciente/escritor. Dr. Blanche tratou também do irmão de Van Gogh, Theo, que foi hospitalizado ao fim da vida. A vida de Nerval tem um curioso paralelo com o seu contemporâneo artista e gravador Charles Meryon, também ele hospitalizado por problemas mentais (Cf. MacGREGOR, 1989). 9 Gérard de Nerval, Aurélia suivi de Pandora, Librio nº 23, 2003, p. 31. 10 Le Rêve est une seconde vie. Je n’ai pu percer sans frémir ces portes d’ivoire ou de corne qui nous séparent du monde invisible. Les premiers instants du sommeil sont l’image de la mort; un engourdissement nébuleux saisit notre pensée, et nous ne pouvons déterminer l’instant précis où le moi, sous une autre forme, continue l’œuvre de l’existence. C’est un souterrain vague qui s’éclaire peu à peu, et où se dégagent de l’ombre et de la nuit les pâles figures gravement immobiles qui habitent le séjour des limbes. Puis le tableau se forme, une clarté nouvelle illumine et fait jouer ces apparitions bizarres; le monde dês Esprits s’ouvre pour nous. Cf. Nerval, Idem, p. 11. 11 Paciente/artista do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, que produziu em suas obras grande variedade de formas-constantes e de propriedades visuais típicas daquele estado liminar. 12 “...seated very good and quiet at a deal table, drawing circles, circles; innumerable circles, concentric, eccentric; a coruscating whirl of circles that by their tangled multitude of repeated curves, uniformity of form, and confusion of intersecting lines suggested a rendering of cosmic chaos, the symbolism of a mad art attempting the inconceivable”. Cf Conrad, pp. 47 e 48. 157 ART Media Art needs Histories and Archives: New Perspectives for the (Digital) Humanities Oliver Grau1 Abstract: Over the last thirty years Media Art has evolved into a vivid contemporary factor, Digital Art became “the art of our time” but has still not “arrived” in the core cultural institutions of our societies. Although there are well attended festivals worldwide, well funded collaborative projects, numerous artist written articles, discussion forums and emerging database documentation projects, media art is still rarely collected by museums, not included or supported within the mainframe of art history and nearly inaccessible for the non north-western public and their scholars. Thus, we witness the erasure of a significant portion of the cultural memory of our recent history. It is no exaggeration to say we face a total loss of digital contemporary art, and works originating approximately 10 years ago can most likely not be shown anymore. The primary question is: what can we learn from other fields to develop a strategy to solve the problems of Media Art and its research, to answer the challenges Image Science is facing today in the framework of the Digital Humanities? This question opens up a perspective to overcome the typical placement of Media Arts in an academic ghetto. The development of the field is supported in an increasingly enduring manner by new scientific instruments like online image and text archives, which attempt to document collectively the art and theory production of the last decades. By discussing examples from a variety of projects from the natural sciences and the humanities, this article tries to demonstrate the strategic importance of these collective projects, especially in their growing importance for the Humanities. Keywords: Media Art, Media Art Education, Media Art Research Media art’s revolution? Media art is the art form using the technologies that change our societies fundamentally. Globalization, information society, social networks, Web 2.0 - the list could be far longer – are enabled by digital technologies. Although not all Media Art comments on the social, cultural and political conditions, it is nevertheless the art form with the most comprehensive potential for cultural necessity. We know that media artists today are shaping highly disparate areas, like time-based installation art, telepresence art, genetic and bio art, robotics, Net Art, and space art; experimenting with nanotechnology, artificial or A-life art; creating virtual agents and avatars, mixed realities, and database-supported art. These artworks both represent and reflect the revolutionary development that the image has undergone over the past years (Fig.1).2 Currently, we are witnessing the transformation of the image into a computer-generated, virtual, and spatial entity that is seemingly capable of changing “autonomously” and representing a life-like, visual-sensory sphere. Interactive media are changing our perception and concept of 158 Contemporary media art installations include: Digital stills and video, 3-D objects and animation, digital texts and music, sound-objects, noises and textures, whereas different meanings may be inscribed and combined with each other. Meaning develops by chance, experiment and well directed strategy. The active spirit, the combining user, becomes the new source of art and meaning if you leave enough degrees of freedom to him to develop to the actual artist. Dynamic he is involved to navigation, interpretation, transfer, contextualisation or production of image and sound which may come into being by his participation. Memory, thoughts and experiments with accident may respond to a fertile connection. Increasingly the art system transforms to an organism with slices which organize themselves while the user has a chance to experience and produce combinative meaning. Media Art makes use of the latest image techniques and strategies for aesthetic and reflective means: With Johanna and Florian Dombois’ Fidelio, 21st Century, named after Beethoven’s “Fidelio,” for the first time a classical opera was directed as an interactive virtual 3D experience. The protagonists embody music, follow the dramaturgic direction and react to the interventions of the visitors (Fig. 2).3 Artist-scientists, such as Christa Sommerer and Berndt Lintermann, have begun to simulate processes of life: evolution, breeding, and natural selection have become methods for creating artworks.4 Eduardo Kac’s installation Genesis raises open-ended questions about the complicated ethical issues involved in the manipulation of DNA.5 In Murmuring Fields, Monika Fleischmann and Wolfgang Strauss create a virtual space of philosophical thought, where statements by Flusser, Virilio, Minsky, and Weizenbaum are stored. The work creates a new type of a “Denkraum” (Thinking-Space) — a sphere of thought.6 Constructed on a database, the interactive installation Ultima Ratio7 by Daniela Plewe offers a first glimpse of a future system for interactive theatre. Intellectually challenging, her concept allows the spectator to solve an open conflict at a high level of abstraction and combination of different dramatic motifs. Daniela Plewe’s goal is to generate a visual language for argument and debate. Diana Domingues, one of the most known artists in the Americas, created with TRANS E: My Body, My Blood for more than a decade poetical, transitoric and immersive experiences for body and senses: Again and again her artistic will “Kunstwollen” pushed the transposition of the technological border by developing innovative image procedures. With this, she questions the growing aesthetics of medical and scientific image worlds, using them in her work strategically. 159 ART the image in the direction of a space for multi-sensory experience with a temporal dimension open to evolutionary change and gaming. Images appear, whose condition is defined by the functions of display and interface, images serve as projection surface for interlaced information, images enable to move us telematically in immersive scenarios, and reversely images allow us have an affect into the distance. ART Media Art and the Humanities Typical for media revolutions is, they are again and again platonistic or even apocalyptic commentaries. Their positions often exhibit an antitechnology thrust and have developed partly from Critical Theory and Post-Structuralism. At the other end of the spectrum are utopian-futurist prophesies. Variations on ideas like: “now we will be able to touch with our bodies into the far distance,” and “now the illusion will become total” on the side of the utopians have collided with fears like “our perception will suffer,” or “our culture will be destroyed,” and even “we will loose our bodies.” This discourse mechanism, provoked by media revolutions, comes again and again. Let’s remember the discussion the discussion around VR in the 1990s, the cinema debate in the early 20th century, the Panorama in the 18th century, and so forth. Both poles are either positive or negative teleological models, which follow largely the pattern of discourse surrounding earlier media revolutions. But analogies or fundamental innovations in contemporary phenomena can only be discerned through historical comparison. Seen in this light we cannot consider the protagonists of this latest media revolution debate with their projections and dark fantasies as contributors to a serious discussion anymore, but rather as meaningful sources of the thinking from their time. In addition, it must to be assumed that not only analogies but also fundamental innovations of current phenomena become clearly recognizable only through historical comparison. “Depth of field” analyses of images can play an important role in facilitating our political and aesthetic analysis of the present. Only if we are aware of our media history with its myths and utopias, its interests and power games, we will be able to make decisions that go beyond the heritage of ancient believers in images. Beyond that, by focusing on recent art against the backdrop of historic developments, it is possible to better analyze what is really new in media art and to better understand our present and our goals in a period where the pace appears to get faster and faster — that is the epistemological thesis. It is necessary to take stock soberly in the realm of art and media history. It is essential to create an understanding that the present image revolution, which indeed uses new technologies and has also developed a large number of so far unknown visual expressions, cannot be conceived of without our image history. Art History and Media Studies help understand the function of today´s image worlds in their importance for building and forming societies. With the history of illusion and immersion, the history of artificial life or the tradition of telepresence, Art History offers sub-histories of the present image revolutions. Art History might be considered as a reservoir in which contemporary processes are embedded, like an anthropologic narration on the one hand, but as well the political battleground where the clash of images is analyzed on the other hand. Furthermore, its methods may strengthen our political-aesthetic analysis of the present through image analyses. Not left to last, the development and significance of new media should be illuminated since the first utopian expressions of a new media often take place in artworks. 160 Image science: from the image atlas to the virtual museum The integration and comparison of a “new” image form within image history is not a new method, there were different historic forerunners: Inspired by Darwin´s work “The Expression of the Emotions” Aby Warburg began a project of an art-historical psychology of human expression. His famous Mnemosyne image atlas from 1929 tracks image citations of individual poses and forms across media – and most significantly, independent from the level of art niveau or genre. He redefined art history as medial bridge building – for example including many forms of images. Warburg argued that art history could fulfill its responsibility only by including most forms of images. The atlas, which has survived only as “photographed clusters”, is fundamentally an attempt to combine the philosophical with the image-historical approach and Warburg arranged his visual material by thematic areas. Let’s remember that it was art historians dealing with artifacts in a non-hierarchical manner who founded the first arts and crafts museums for the artifacts that were not counted as art. Art historians also founded the first photographic collections at the end of the 19th century containing besides art photography, also images of everyday life. Alois Riegl examined the popular culture of late Roman art industries and Walter Benjamin was drawn to Aby Warburg’s cultural studies library, whose ground floor was completely dedicated to the phenomena of the image. Warburg, who considered himself an image scientist, reflected upon the image propaganda of World War I through examination of the image wars during the reformation. Warburg intended to develop art history into a “laboratory 161 ART The evolution of media art has a long history and now a new technological variety has appeared. However, this art cannot be fully understood without its history. So the Database for Virtual Art, Banff New Media Institute, and Leonardo produced the first international MediaArtHistory conference. Held at The Banff Centre, Refresh! represented and addressed the wide array of 19 disciplines involved in the emerging field of Media Art8 Through the success of Replace (2007) at Berlin’s House of World Cultures, (the Department for Image Science hosted the brainstorm conference in Göttweig 2006), Re:live was planned for Melbourne 2009, and an established conference series was founded with Re:2011 is on the way.9 Re:fresh! was not planned to create a new canon, but to create a space for the many-voiced chorus of the involved approaches. The subtitle HistorIES opened up the thinking space to include approaches from other disciplines beside ‘art history’. Re:fresh, Re:place and Re:live were organized via the MediaArtHistory.org platform, which is now developing into a scholarly archive for this multi-faceted field, ranging from art history, to media, film, cultural studies, computer science, psychology etc. Meanwhile almost 1000 peer-reviewed applications have been coordinated on MediaArtHistory. org.10 With the 19 disciplines represented at Re:fresh! serving as its base, MAH.org is evolving with future conferences under the guidance of an advisory board, among them: Sean Cubitt, Paul Thomas, Douglas Kahn, Martin Kemp, Timothy Lenoir or Machiko Kusahara. ART of the cultural studies of image history”, that would widen its field to “images (…) in the broadest sense”. (“Bilder…im weitesten Sinn”).11 Let us remember too, that Film Studies was started by art historians: An initiative by Alfred Barr and Erwin Panofsky founded the enormous Film Library at the New York MOMA, called by its contemporaries the “Vatican of Film”. This way film research already in the 1930s possessed a dominant image science approach and cultivated it further. This initiative allowed the large scale comparison of film for the first time. The same spirit concerned with new investments for infrastructures to provide for and analyze the Media Art of our time is needed in the Digital Humanities. Art history – visual studies – image science We know that for years academic discussions and battles have been raging around the fields of images and the visual and perception of them. Specific to segments of the English Language Humanities there continues to be a not very fruitful and ultimately simple polarization between Art History, which partly is considered conservative, formalistic, aesthetic, sometimes even elitist and male-dominant and the Visual Cultural Studies12, which emerged to a large extend from Literature Studies. Drawing upon a multi-cultural and post-colonial13 etiquette, Visual Cultural Studies attempts to research the visual within approaches of societal and identity politics.14 Within the traditionally strong German Language Humanities we perceive a two folded development: Art History departments increasingly rename themselves as Institutes for Art and Image History, allowing Art History as the oldest scholarly endeavor dealing with images to avoid tendencies of separation; and at the same time to renew the interdisciplinarity that bloomed in German Art and Image History before National Socialism with representatives like Warburg, Panofsky, Kris or Benjamin. Image Science does not imply that the experimental, reflective, and utopian spaces provided by art are to be abandoned. On the contrary, within these expanded frontiers the underlying and fundamental inspiration that art has provided for technology and media is revealed with even greater clarity. With strong representation of art history15, the project of Image Science expands towards an interdisciplinary development that connects neuroscience16, psychology17, philosophy18, communication studies19, emotions research20, and other scientific disciplines.21 Recently, interdisciplinary scientific clusters have been built around the subject of the image that lie increasingly perpendicular to the human, natural and technical sciences, which have succeeded in profiting from the paradigm “Image” as well as from an increased disposition towards interdisciplinarity. More and more, tendencies appear that require a farewell or at least a new evaluation of the relation Word / Image in favor of the latter. Already in 1993 Martin Jay triggered with his work “Downcast Eyes” 22 a criticism of the “sight-hostility” of language-fixated French Philosophy. Contemporarily this critique unfolds in terms like “Image Immersion” (Oliver Grau, 1998 and 2001)23; “Power of the Iconic” (Gottfried Boehm 2004)24; “Picture Act” (Horst 162 Preconditions In contrast to other disciplines concerned with images, ones that not infrequently try to explain images as isolated phenomena springing from themselves, the primary strength of art history is its critical potential to define images in their historical dimension. Exactly because art history emphasizes a rigorous historicization and the practice of a critical power of reflection can it produce its most natural possible contributions to the discussion around images. Scientific work with images is based on three pre-conditions: 1. definition of the object, 2. building of an image archive and 3. familiarity with a large quantity of images. This enables and defines the understanding that images follow a diachronic logic; without this historic base, image science remains superfluous and cannot realize its full potential. If those pre-conditions are fulfilled, image science may be practiced within any field - medicine, natural science, history of collections, design or art technique. If these requirements are not fulfilled, we see merely a form of aesthetics. All of those approaches of comparison are based on the insight that images act diachronic, within a historical evolution and never function simply as an act and without reference. This diachronic dynamic of image generations is increasingly interwoven with understanding the images alongside those of their time, the synchronic approach. Image Science, or Bildwissenschaft, now allows us to write the history of the evolution of the visual media, from peep-show to panorama, anamorphosis, stereoscope, magic lantern, phantasmagoria, films with odors and colors, cinéorama, IMAX and the virtual image spaces of computers: The medium of the phantasmagoria for example is part of the history of immersion, a recently recognized phenomenon that can be traced through almost the entire history of art in the West, as I have documented in a previous book27: History has shown that there is permanent cross-fertilization between large-scale spaces of illusion that fully integrate the human body (360°frescoes, the panorama, Stereopticon, Cinéorama, IMAX cinemas, or the CAVEs (Fig. 4) and small-scale images positioned immediately in front of the eyes (peepshows of the 17th century, stereoscopes, stereoscopic television, Sensorama, or HMDs). Evidently among the latest examples of this development are computer games like Grand Theft Auto, which mix the emotional involvement of the story with immersive graphics. It is, let me underscore, an evolution with breaks and detours; however, all its stages are distinguished by a relationship between art, science and technology. Image science is an open field that engages equally with what lies between the images. André Malreaux, the adventurer and former French minister of culture, described after the war the field opened up by photographic reproductions as museé imaginare, because it goes beyond the museum and can contain 163 ART Bredekamp 2005).25 The central thesis is that in every image cognition, the eyes cannot be separated as the sole perception organs, more so it is that the entire body perceives.26 ART works of art that are bound to architecture, like frescoes. The famous picture at the introduction of the book shows Malreaux in an archival grid compiling, side-by-side, the most diverse objects from various epochs and cultures. Being recontextualized like this, a crucifix becomes a sculpture and a sacred effigy for example a statue.28 We may say, the museé imaginare is both product and symptom of globalization. And now as a key project for the Digital Humanities we are witnessing the birth of the Virtual Museum. The virtual museum The Virtual Museum represents an extension of traditional museum forms. It is a museum “without walls,” a space of living, distributed information, database driven and network oriented. It is a space where artists and scholars can intervene and foremost it is museum where documentation and preservation of media art is supported and international networks can develop. Art and the connected information are presented on new forms of displays, via new interfaces within the traditional museum cube, but also via networks beyond the walls to a larger public. The Virtual Museum offers a multimedia data flow in real time that continuously reconfigures over time, and on the other hand it preserves the physical elements media art installations contain. Collective strategies and new tools for the humanities In the first generation of Digital Humanities29, data was everything. Massive amounts of data were archived, searched and combined with other databases in the nineties for interoperable searches yielding a complexity and realization at a previously inconceivable rate. Yet the amount of material to be digitized is so vast that, in real terms, we are only at the tip of the data iceberg. In non-textual fields, such as visual arts, music, performance, media studies, we are “at the tip of the tip”. Now remember that digital art has still not “arrived” in our societies; no matter how well-attended digital art festivals are or how many scientific articles the artists have published. Due to the fact that this art depends entirely on digital storage methods, which are in a constant state of change and development, it is severely at risk. Many art works that are not even ten years old can no longer be shown and it is no exaggeration to say that 30 years of art threatens to be lost for the next generations. During the last decades the natural sciences started to address new research goals through large collective projects, in Astronomy for example the Virtual Observatory compiles centuries worth of celestial observations30; global warming is better understood with projects like the Millennium Ecosystem Assignment, at a detail never before calculable, evaluating 24 separate life systems and the global change they are part of.31 The rapid expansion of computational power has effected biology, and the Human Genome Project became already legend.32 So far, unknown collective structures give answers to complex problems. For the field of Media Art research and the Digital Humanities in general an appropriate approach is 164 ART needed to achieve equivalent goals. Comparable with natural sciences, digital media and new opportunities of networked research catapult the cultural sciences within reach of new and essential research, like appropriate documentation and preservation of media art, or even better, an entire history of visual media and their human cognition by means of thousands of sources. These themes express in regard to image revolution current key questions. In order to push humanities and cultural sciences in their development, it is necessary to use the new technologies globally. Timelines and new methods of visualization belong to the history of invention of visual techniques, image content and especially their reception in the form of Oral History in popular and high culture, in the western as well as in non-western cultures. So we live in an exciting time for Image Science and the Humanities! The credo is: not to give up the established individual research, but to complete it in a new way through collective, net-based working methods which allow us to deal with explosive questions in the field of humanities and cultural sciences. a. The database of virtual art Begun as a counterpart to the systematic analysis of the triad of artist, art work and beholder in digital art under the title Virtual Art, we originated the first documentation project, the (Fig. 5) Database of Virtual Art, which celebrated it’s tenth anniversary last year.33 As a pioneer, supported by the German Research Foundation, it has been documenting in cooperation with renowned media artists, researchers and institutions the last decades of digital installation art as a collective project. We know that today’s digital artworks are processual, ephemeral, interactive, multimedial, and fundamentally context dependent. Because of their completely different structure and nature they require a modified, we called it some years ago, an “expanded concept of documentation”.34 As probably the most complex resource available online: hundreds of leading artists are represented with several thousand documents and their technical data, more than 2000 listed articles and a survey of 750 institutions of media art, the database became a platform for information and communication. The Database runs completely on open-source technology and since the artists are members it avoids copyright problems. Beside this group there are theorists and Media Art historians totaling at this point an additional more than 300 contributors - therefore we say the Database of Virtual Art is a/the collective project. The system allows artists and specialists to upload their information and the DVA relies on its advisory board. Beside that, the policy, whether an artist is qualified to become a member is the number of exhibitions, publications, awards and public presentations; high importance is ascribed also to artistic inventions like innovative interfaces, displays or software. Over the last 10 years about 5000 artists were evaluated from which 500 fulfilled the criteria to become member of the DVA. b. “Bridging the gap:” new developments in thesaurus research 165 ART And now together with probably one of the most important unknown art collections, the Göttweig print collection, representing 30 thousand prints emphasizing Renaissance and Baroque works35 and a library of 150.000 volumes going back to the 9th century like the Sankt Gallen Codex, the Database of Virtual Art strives to achieve the goal of a deeper Media Art historical cross examination. Just as the Media Art History conference series aims to bridge a gap, the combination of the two and other databases hopes to enable further historic references and impulses, in the manner, Siegfried Zielinski calls “The Deep Time of Media”.36 The Göttweig collection also contains proofs of the history of optical image media (Fig. 6), intercultural concepts, caricatures, illustrations of landscapes in panoramic illustrations. For the future this will provide resources for a broader analysis of media art. Keywording is bridge building! The hierarchical Thesaurus of the DVA constitutes a new approach to systemize the field of Digital Art. It was built on art historical thesauri from institutions like Getty, Warburg Institute or festival categorizations and discussions with artists, so that it supports historical comparisons. Out of the Getty Arts & Architecture Thesaurus from the subject catalogue of the Warburg Library in London, keywords were selected which also have relevance in media art. On the other side, out of the most common used terms from media festivals like Ars Electronica, DEAF, Transmediale new keywords were selected. Important innovations such as “interface” or “genetic art” have been considered as well as keywords that play a role in traditional arts such as “body” or “landscape” and thus have a bridge-building function. It was important to limit the number to 350 words so that members of the database can assign use and keywords their works without long studies of the index. The categories led to natural overlapping, so that the hybrid quality of the artworks can be captured through clustering. Important was the thematic usability for the humanities – it was necessary to avoid developing something only new, separated from our cultural history. It was important to compile a thesaurus that connects cultural history with media art and does not isolate them from another. As expected, the material has produced a multitude of fractures and discontinuities, which we make visible in the terminology of the database. One of the goals for the future is to document the works within a context of complex information and, at the same time, to allow users to find individual details quickly. In addition to statistically quantifiable analyses and technical documentation, Databases should also present personal connections and affiliations and funding information, with the idea to reveal interests and dependence. The term “database” may be misleading: like Warburg´s image atlas which supports key icons that define the extent of problems and enables possibilities for comparison, databases should possess an experimental character in order to find thematical clusters within media art. And yet, the tools only hold the data - the quality of the analysis continues to rely on thoughtful developments in the Digital Humanities. In addition to searches of themes, Media Art documentation should also admit questions of gender, track the movement of technical staff from lab to lab, technical inventions pertaining to art, the destinations of public and 166 c. Media art education Bridging the gap for Media Art means also the use of new telematic forms of education, which enlarge the audience now being able to intervene interactively from other continents, as we practice with the archived Danube Telelectures.37 The future of Media Art within the Digital Humanities requires the further establishment of new curricula, as we developed with the first international Master of Arts in MediaArtHistories, with faculty members like Erkki Huhtamo, Lev Manovich, Christiane Paul, Gerfried Stocker and Sean Cubitt, which deals also with the practice and expertise in Curation, Collecting, Preserving and Archiving of Media Arts. The necessity for an international program capable of accommodating future scholars coming from diverse backgrounds and all continents was answered by a low-residency model allowing professionals to participate in the advanced program of study parallel to ongoing employment and activities. It was necessary for the needs of the field to create a course specific to MediaArtHistories with experts that normal universities could not gather all in one institution in order to pave the way towards development of innovative future educational strategies in the field. Giving an overview of the relevant approaches and on the other hand a specialization via project and masters theses, the Masters of Arts provides an initiation for fresh students and depth for seasoned students into this emergent field. The problem of media art documentation today – future needs Since the foundation of the Database of Virtual Art a number of online archives for digitization and documentation arose: Langlois Foundation in Montreal, Netzspannung at the Frauenhofer Institut or MedienKunstNetz at ZKM – all these projects were terminated, their funding expired, or they lost key researchers like V2 in Rotterdam.38 Even the Boltzmann Institut for Media Art Research in Linz, faced its close-down after evaluation. In this way the originated scientific archives which more and more often represent the only remaining image source of the works, do not only lose step by step their significance for research and preservation but in the meantime partly disappear from the web. Not only the media art itself, but also its documentation fads that future generations will not be able to get an idea of the past and our time. To put it another way, till now no sustainable strategy exits. What we need is a concentrated and compact expansion of ability. There is/was increasing collaboration with these projects in a variety of areas and in changing coalitions. But let me add some remarks: In the field of documentation projects - real preservation projects do not exist yet39 - the focus is still directed too much towards particularisation, instead 167 ART private funds allocated to research, and, through the thematic index, show reminiscences of virtual/immersive art in the forms of its predecessors, for example, the panorama. In this way, documentation changes from a oneway archiving of key data to a proactive process of knowledge transfer. ART of concentrating forces, what is an essential strategy in most other fields. A new structure for Media Art research Especially the university based research projects and partly also the ones which are linked to museums have developed expertise that needs to be included in cultural circulation, not only in order to pass it on to future generations of scientists and archivists but also to give it a chance to flow into future university education in the fields of art, engineering, and media history. Clearly, the goal must be to develop a policy and strategy for collecting the art of our latest history under the umbrella of a strong, let’s say “Library of Congress like” institution. Ultimately, however, this can only be organized by a network of artists, computer and science centers, galleries, technology producers and museums. Those projects which collected culturally important documents in the past and which often expired, were not further supported or even lost their base must be supported and reanimated. They should be organized like a corona around an institution which receives the duty of documentation and may be even the collection of contemporary media art, such an institution could be in the USA, the Library of Congress; in Europe, besides the new European digital libraries database Europeana, it could be the Bibliotheque National, the British Library, the V&A or in Germany beside the ZKM for example the Deutsche Bibliothek. Interestingly the libraries show increasingly interest to archive multimedia works and their documentation; however, the usually complex cultural and technical know how is lacking in order to preserve principal works of the most important media art genres of the last decades. A structure which updates, extends and contextualizes research – whether in historical or contemporary contexts is required. The funding and support infrastructures which have been built in the end of the last century are not suitable for scientific and cultural tasks in the Humanities of the 21st Century. One key issue for the digital humanities would be to identify all the existing databases, also those smaller ones in countries where you do not search first. In astronomy the funding agencies developed and modernized their systems towards sustainability, which is needed as well in the humanities: The virtual observatory infrastructure is funded on an ongoing basis and there is international coordination between a dozen or so countries that produce astronomical data. What we need and we could archive in the near future is an electronic “Enclyclopedia of Visual Media” (EVM) created from a network of databases and the thousands of existing websites. Based on scholarly criteria of every known image medium in history described and on the basis of original sources, it should precisely capture how our forerunners experienced them. The EVM could allow scholars from all over the world to research their image media and discover further unknown treasures of human image making. We know that a central problem of current cultural policy stems from serious lack of knowledge about the origins of the audiovisual media and this stands in complete contradistinction to current demands for more media and image competence. Considering the current upheavals and innovations in the media sector, where the societal impact and 168 What is urgently needed is the establishment of an appropriate structure to preserve at least the usual 1 – 6% of present media art production, the best works. This important step is still missing for media art from the first two generations. The faster this essential modification to our cultural heritage record will be carried out, the smaller the gap in the cultural memory; shedding light on the dark years, which started about 1960 and lasts till now.40 The hybrid character of media art requires a shift of the paradigm towards an orientation of process and context recording, which includes more and more the capture of the audience experience.41 Our hope for the future is that we can bring together the expertise of the most important institutions in order to form an up to date overview of the whole field, to provide the necessary information for new preservation programs within the museum field, new university teaching programs for a better training of the next generation of historians, curators, restorers, engineers and others involved in the preservation and new form of open access to media art. Just as research in the natural sciences has long recognized team efforts, a similar emphasis on collaborative research should make it’s way into the thinking of the humanities. 1 Professor doctor, chair Professor for Image Science, Department for Image Science, Danube University, Austria 2 For an overview: www.virtualart.at. Recently: Edward Shanken: Art and Electronic Media (London: Phaidon, 2009); Christa Sommerer and Laurent Mignonneau (Eds.): Interface Cultures: Artistic Aspects of Interaction (Bielefeld: Transcript 2008); Victoria Vesna: Database Aesthetics: Art in the Age of Information Overflow (Minneapolis: University of Minnesota Press 2007); Steve Dixon: Digital Performance: A History of New Media in Theater, Dance, Performance Art, and Installation Cambridge (Mass.: MIT Press 2007). Already a classic: Christiane Paul: Digital Art (London: Thames & Hudson 2003). 3 Johanna Dombois, Florian Dombois, op.72., II 1-5, 3D. Beethoven’s «Fidelio» in a Virtual Environment. In: Proceedings of The 5th World Multi-Conference on Systematics, Cybernetics and Informatics. Vol. X, Orlando (Florida), July 22-25, 2001, p. 370-373. 4 Christa Sommerer and Laurent Mignonneau, “Modeling Complexity for Interactive Art Works on the Internet,” in Art and Complexity: At the Interface, edited by J. Casti and A. Karlqvist, (Amsterdam: Elsevier, 2003), pp. 85-107. 5 At the center of the installation is the so called “artists gene”, which Kac created by translating a sentence from Genesis in the Bible into Morse code and the converting of the Morse code into DNA base pairs open for manipulation by the visitors. 6 Fleischmann, Monika; Strauss, Wolfgang; Novak, Jasminko: Murmuring Fields Rehearsals – building up the Mixed Reality Stage. In: Proceedings of KES (International Conference on 169 ART consequences cannot yet be predicted, the problem is acute. Social media competence, which goes beyond mere technical skills, is difficult to acquire if the area of historic media experience is excluded. ART Knowledge Engineering Systems). (Brighton, 2000). 7 Bernhard Dotzler: Hamlet\Maschine, in: Trajekte: Newsletter des Zentrums für Literaturforschung Berlin, no. 3, vol. 2, 2001: 13-16; Daniela Alina Plewe: Ultima Ratio. Software und Interaktive Installation, in: Ars Electronica 98: Infowar: Information, Macht, Krieg, ed. Gerfried Stocker and Christine Schöpf (Vienna/New York: Springer Verlag 1998); Yukiko Shikata: Art-criticism-curating as connective process, in: Information Design Series: Information Space and Changing Expression, vol. 6, ed. Kyoto University of Art and Design, p. 145. 8 Some of the conference results can be found in the anthology MediaArtHistories by Oliver Grau (Ed.), (Cambridge Mass.. MIT-Press 2007); recently: Andreas Broeckmann and Gunalan Nadarajan (Eds.): Place Studies in Art, Media, Science and Technology: Historical Investigations on the Sites and the Migration of Knowledge (Weimar: Verlag und Datenbank für Geisteswissenschaften, 2009). 9 See: www.mediaarthistory.org 10 The content development of Re:fresh! was a highly collective process. It involved three producing partners, a large advisory board, 2 chairs for each session, call and review for papers, a planning meeting in 2004, keynotes, poster session and the development of application content over the time of two and a half years. Before Banff could host the conference, this was organised by the team of the Database for Virtual (DVA). The international planning meeting at Vigoni/Italy in 2004 (hosted by the Database of Virtual Art) agreed that it is of importance to bring media art history closer to the mainstream of art history cultivating a proximity to film- cultural and media studies, computer science, but also philosophy and other sciences. After nomination and acceptance of the chairs, coordinated call for papers, review by the program committee and selection of speakers by the chairs organized and funded by the Database of Virtual Art - the conference brought together colleagues from the following fields: invited speakers (based on self description from bios) HISTORIES: Art History = 20; Media Science = 17; History of Science = 7, History of Ideas = 1; History of Technology = 1; ARTISTS/CURATORS: Artists/Research = 25; Curators = 10; SOCIAL SCIENCES: Communication/Semiotics = 6; Aesthetics/Philosophy = 5, Social History = 2; Political Science = 2; Woman Studies = 2, Theological Studies = 1; OTHER CULTURAL STUDIES: Film Studies = 3; Literature Studies = 3; Sound Studies = 3, Theatre Studies = 2; Performance Studies = 1; Architecture Studies = 1, Computer Science = 2; Astronomy 1 11 A. Warburg, Heidnisch-antike Weissagung in Wort und Bild zu Luthers Zeiten,“ in: Zeitschrift für Kirchengeschichte, 40 (1922), pp. 261-262. We know that National Socialism put a sudden end to this work and although its emigrants could create important impulses in the US and England, the image science approach did not return until the 70ies with the Hamburg School. See also: Michael Diers: “Warburg and the Warburgian Tradition of Cultural History,” New German Critique 22, no. 2, 1995: pp. 59-73 and Claudia Wedepohl: Ideengeographie: ein Versuch zu Aby Warburgs ‚Wanderstrassen der Kultur‘, in: Ent-grenzte Räume: Kulturelle Transfers um 1900 und in der Gegenwart, eds Helga Mitterbauer and Katharina Scherke, Vienna, 2005. 12 Margret Dikovitskaya: Visual Culture: The study of the Visual after the Cultural Turn, (Cambridge 2005); W.J.T. Mitchell: Interdisciplinarity and Visual Culture, in: Art Bulletin 77, 1995, 170 ART 540-544. 13 Simon Faulkner and Anandi Ramamurthy (Eds.): Visual Culture and Decolonisation in Britain (Aldershot (Ashgate) 2006). 14 Mike Bal: Visual Essentialism and the Object of Visual Culture, in: Journal of the Visual Culture 1-2, 2003, 5-32. Although she has for decades used a semiotic approach. 15 Hans Belting (Ed.): Bildfragen: Die Bildwissenschaften im Aufbruch (Munich: Fink 2007); Horst Bredekamp, Mattias Bruhn und Gabriele Werner: Bildwelten des Wissens. Kunsthistorisches Jahrbuch für Bildkritik. Berlin 2003ff. 16 Leidloff, G. and W. Singer: Neuroscience and Contemporary Art: An Interview, in: Science Images and Popular Images of the Sciences (Eds. B. Hüppauf and P. Weingart) (London: Routledge, 2008), pp. 227-238. 17 See the publications and research projects of Helmut Leder. 18 Klaus Sachs-Hombach (Ed.): Bildwissenschaft (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005). 19 Marion G. Müller: Grundlagen der visuellen Kommunikation (Konstanz: UVK 2003). 20 Oliver Grau und Andreas Keil (Ed.): Mediale Emotionen: Zur Lenkung von Gefühlen durch Bild und Sound (Frankfurt: Fischer 2005); Anne Hamker: Emotion und ästhetische Erfahrung (Münster: Waxmann 2003). 21 Albeit concentrated on the gravitational field of art history, the courses in Image Science at the Danube University in Göttweig are interdisciplinary aligned. www.donau-uni. ac.at/dis. 22 Martin Jay: Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought (Berkeley 1993). 23 Oliver Grau: Into the Belly of the Image, in: Leonardo, Journal of the international Society fort he Arts, Sciences and Technology, Vol. 32, No. 5, p. 365-371 and: Oliver Grau: Virtuelle Kunst in Geschichte und Gegenwart: Visuelle Strategien (Berlin: Reimer 2001). 24 Gottfried Boehm: Jenseits der Sprache? Anmerkungen zur Logik der Bilder, in: Christa Maar/Hubert Burda (Ed.): Iconic Turn, Köln 2004, pp. 28-43, here: p. 30. 25 A first glimpse of his theory of “picture act” Horst Bredekamp presented during his Gadamer-Lecture series at the University of Heidelberg in 2005. A research project “Picture Act Research: History, Technique and Theory of the Picture Act” was approved by the German Research Foundation in 2008 and supported with 2.3 Mio Euro. 26 Hans Belting emphasised in 2001 that we, as living media, are the “Location of the Images“ and not the apparatuses, see: Hans Belting: Bild-Anthropologie. Entwürfe für eine Bildwissenschaft (Munich: Fink 2001). 27 Oliver Grau: Virtual Art: From Illusion to Immersion (Cambridge/Mass., MIT-Press 2003). 171 ART 28 André Malraux : Psychologie de l’Art : Le Musée imaginaire - La Création artistique - La Monnaie de l’absolu, 1947. 29 For the discussion and development of the field see the Journal Digital Humanities Quaterly. 30 The International Virtual Observatory Alliance (IVOA) was formed in June 2002 with a mission to “facilitate the international coordination and collaboration necessary for the development and deployment of the tools, systems and organizational structures necessary to enable the international utilization of astronomical archives as an integrated and interoperating virtual observatory.” The IVOA now comprises 17 international VO projects. 31 The Millennium Ecosystem Assessment assessed the consequences of ecosystem change for human well-being. From 2001 to 2005, the MA involved the work of more than 1,360 experts worldwide. Their findings provide a state-of-the-art scientific appraisal of the condition and trends in the world’s ecosystems and the services they provide, as well as the scientific basis for action to conserve and use them sustainly. 32 The Human Genome Project was an international scientific research project with a primary goal to determine the sequence of chemical base pairs which make up DNA and to identify and map the approximately 20,000-25,000 genes of the human genome from both a physical and functional standpoint. The mega project started 1990 with the collective work of more than 1000 researchers in 40 countries, the plan was to acchive the goal in 2010. A working draft of the genome was released in 2000 and a complete one in 2003. See: IHGSC (2004). “Finishing the euchromatic sequence of the human genome”, in: Nature 431: 931–945. doi:10.1038/nature03001 33 www.virtualart.at, Oliver Grau: The Database of Virtual Art, in: Leonardo, Vol. 33, No. 4, 2000, p. 320. 34 Oliver Grau: For an Expanded Concept of Documentation: The Database of Virtual Art, ICHIM, École du Louvre, Paris 2003, Proceedings, pp. 2-15. It was a long development since the classic text by Suzanne Briet: What is Documentation? (Lanham: Scarecrow Press 2006). 35 www.gssg.at. The digitization of the collection is a project developed by the Department of Image Science at Danube University and conducted in cooperation with the Göttweig Monastery. The collection of prints at Göttweig Monastery, which itself was founded in 1083, is based on acquisitions made by various monks since the 15th century. The first report of graphic art kept in the monastery dates back to 1621, with an archive record that mentions a number of “tablets of copper engraving” (“Täfelein von Kupferstich”). The actual act of founding the collection is attributed to Abbot Gottfried Bessel whose systematic purchases in Austria and from abroad added remarkably a total of 20,000 pieces to the collection in a very short span of time! Reaching to the present day, the print collection at Göttweig Monastery has grown to be the largest private collection of historical graphic art in Austria with more than 30,000 prints. The Department of Image Science’s digitization center at the Göttweig Monastery uses technology to scan paintings and prints from the collection (up to 72 million pixels). 36 Siegfried Zielinski: Deep Time of the Media: Toward an Archaeology of Hearing and 172 ART Seeing by Technical Means (Cambridge Mass.: MIT Press 2006): 37 The Danube Telelectures from the MUMOK in Vienna contained debates between Sarat Maharaj and Machiko Kusahara: Does the West still exist?; Gunalan Nadarajan and Jens Hauser: Pygmalion Tendencies: Bioart and its Precursors; Christiane Paul and Paul Sermon: Myths of Immateriality: Curating and Archiving Media Art as like Lev Manovich and Sean Cubitt: Remixing Cinema: Future and Past of Moving Images. See: www.donau-uni.ac.at/telelectures 38 Also compare the OASIS (Open Archiving System with Internet Sharing (2004-2007) or the GAMA project (2008-2009), a gateway, a metadatabase, which is not connected with the Europeana. „The issue of generally accepted machine-readable descriptive languages in these semantic and metadata approaches and the long-term interoperability of databases have lead to an emphasis on questions concerning the openness of the sources and the source codes.“ Rolf Wolfensberger. On the Couch – Capturing Audience Experience, Master Thesis, Danube University 2009. 39 Although there are a number of promising case studies like: Caitlin Jones: Seeing Double: Emulation in Theory and Practice, The Erl King Case Study; http://206.180.235.133/sg/ emg/library/pdf/jones/Jones-EMG2004.pdf 40 The loss might be even more radical and total than that of the Panorama, the mass media of the 19th century. Almost 20 Panoramas survived which is much more than 3% of the ever existing 360° image worlds – we should be glad if at all 3% of the most important exhibited media art works. 41 See Grau 2003, recently: Lizzie Muller: Towards an Oral History of New Media Art (Montreal 2008). 173 ART Narratividade e artes visuais em Brasília Pedro de Andrade Alvim1 Resumo: Abordamos o tema das formas de narratividade implicadas nas artes visuais, considerando Brasília como “solo narrativo” na produção de alguns artistas, a partir do fim da década de oitenta (José Guilherme Brenner, Andréa Sá, Azul, Rubens Mano). Tal produção responde à necessidade de se apropriar da complexidade do real através da representação e simultaneamente estabelece um espaço de fabulação no campo visual. Ali, entram em conexão referências da história da arte, da literatura, da indústria cultural e mesmo da cultura popular, podendo-se extrair delas uma forma permanente de reconsideração da realidade. Esse tipo particular de produção inclui também um componente de indagação sobre os próprios processos de representação, que retoma elementos da chamada “arte metafísica” do início do século XX. Palavras chave: narratividade, artes visuais, Brasília, arte metafísica. Abstract: We aim to approach the subject of the forms of narrativity implied in visual arts, taking Brasilia as “narrative ground” in the production of some artist, from the eighties until more recent times (José Guilherme Brenner, Andréa Sá, Azul, Rubens Mano). These works responds to a need to appropriate the complexity of reality through representation and simultaneously to establish a space of fabulation in the visual field. In this space references in art history, literature, cultural industry and popular culture can be connected, and brought to a permanent form to reconsider reality. This particular type of production includes also a questioning about the processes of representation per se, which takes back elements of the so-called “metaphysical art” of the beginning of 20th century. Keywords: narrativity, visual arts, Brasilia, metaphysical art. O presente texto foi redigido para servir de base a uma mesa temática do 10° Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, intitulada “História da Arte: um olhar sobre a produção recente”. Por casualidade, acabou aproximando-se também de um dos temas propostos para a inscrição de trabalhos: “História: ficção ou realidade”. As artes visuais e o discurso narrativo estabeleceram uma antiga associação, muitas vezes questionada. Sem se aprofundar no terreno das definições teóricas, pode-se constatar a existência de uma linhagem dita “literária” de artistas, que inaugura e explora diferentes formas de narratividade visual. Verifica-se, com isso, a ocorrência, nas artes visuais, da produção de um tipo especial de representação: obras cuja qualidade especial de presença, se funda menos na busca de semelhança com os objetos físicos que servem de modelo à figuração, do que numa relação mais distanciada com uma experiência complexa. Os artistas que melhor representam a “família literária” podem ser considerados colecionadores e propagadores de narrativas, “contaminados” por seus modelos e influenciados por eles na definição de uma posição diante do real. 174 Consideramos a história a partir de uma mirada poética, cujo caráter mais abrangente e metafísico _ o que apontava Aristóteles em sua comparação entre história e poesia_ diz respeito à absorção dos contextos reais dentro de possibilidades “ficcionais”. História em que as expectativas do presente se fundiriam à matéria do passado em dispositivos de narração. O conceito de narratividade que nos interessa abarca tanto as artes visuais quanto a literatura, teatro ou cinema. Trata-se menos de dar forma concreta a uma representação interna da experiência do que de extrair até o fim as conseqüências de uma tomada de partido pessoal, representada numa narração por assim dizer “coreográfica” da realização de uma trajetória no tempo. Não apenas contar uma história, mas acompanhar por determinado tempo a evolução de um ou mais pontos de vista, como se vê em determinadas obras “obsessivas” que parecem retomar sempre o mesmo ponto de partida. Poderíamos citar como exemplo, na literatura, os monólogos obsessivos de Louis-Ferdinand Celine ou Thomas Bernardt. No cinema, a narração dilatada de Antonioni ou Gus Van Sant. São obras em que a narrativa tende menos a resultar numa história, do que a uma deriva, mas uma deriva que ocorre dentro de determinada moldura. Nelas, enquanto o “conteúdo” da experiência biográfica parece ir progressivamente se esvaziando (reflexo dos tempos), é o próprio médium narrativo enquanto suporte estrutural que é reforçado. Há uma ênfase em limites estruturais como o formato, as divisões internas, os procedimentos que se repetem, em paralelo à dilatação de aspectos “anódinos”, “insignificantes”, que levam a representação à beira da abstração. A “família artística brasiliense” apóia-se conscientemente numa certa ilusão de estabilidade, enquanto bóia na superfície do abismo em movimento, e a “qualidade” específica da vida local se reflete de maneira significativa nas obras. Os artistas aqui estabelecidos são solicitados por três tipos de apelo, em certa medida contraditórios: - a educação estética modernista, jogo formal que busca seu próprio ponto de equilíbrio clássico, plano e silencioso, e atinge seus momentos extáticos, sublimes. - A ânsia pelo anedotário “fervilhante” da cultura de massa, que recicla infinitamente temas e imagens herdados da tradição, como válvula de escape para a monotonia da planificação moderna. - A tentativa de responder aos paradoxos da contemporaneidade. 175 ART Ao propormos Brasília como “solo narrativo” para as artes visuais, pensamos num determinado tipo de experiência histórica. Como definilo? Entre os horizontes reais e imaginários da Brasília utópica e distópica, o espaço da cidade se abre para novas miradas sobre o campo social e individual, cultural e artístico, enquanto o projeto moderno vai sendo lentamente engolido pela economia da era pós-industrial, e permanecem as dificuldades de se constituir localmente, enquanto sujeito histórico, dentro de uma “contemporaneidade” global. ART A passagem do tempo encontra uma representação quase visível na imobilidade “dramática” da cidade. Imobilidade também característica da chamada “arte metafísica”, que respondia ao culto futurista da velocidade, buscando apontar a imobilidade e a estranheza no centro de uma realidade incerta, os misteriosos ingredientes visuais que apontam o deslocamento dos paradigmas. Em nossa “Brasília metafísica”, toma corpo a planificação que orquestra espaços e tempos distintos, diferentes extratos da realidade (o passado histórico, a vida social, os elementos de ordem climática, física, biológica...). E ainda: o deserto contraposto às zonas concentradas de aglomeração; o isolamento e nitidez dos Blocos (as fatias de céu entre eles)... O silêncio ampliando o zumbido constante do trânsito e o barulho longínquo das construções. A distância sempre igual entre o tráfego que flui e a paisagem imóvel, o panorama imutável visto das janelas... A primeira obra que iremos mencionar é de um “estrangeiro”: tratase de uma vídeo-instalação do paulista Rubens Mano, intitulada “Futuro do Pretérito”, com imagens gravadas em Brasília e cidades satélites, que foi exposta entre janeiro e março de 2011 no Museu da República. São longuíssimos planos de “cantos” neutros da cidade, praticamente desérticos, cujo estatismo fotográfico é de vez em quando rompido pela passagem de uma pessoa, veículo, animal ou mesmo o movimento do vento. A parte sonora desses vídeos é tão importante quanto a visual: os ruídos passeiam por eles como personagens dramáticos, e os motivos urbanos são por assim dizer “fatiados” em diferentes camadas sonoras. Não nos interessa tanto a crítica tão repetida, à “cidade-cemitério”. O que há de mais sugestivo na obra de Rubens Mano é a especificidade dos lugares escolhidos, sua maneira de tornarem-se geradores de ocorrências mínimas e significativas. Esses registros audiovisuais revelam-se dotados de um princípio de narratividade interno, surgido do próprio espaço de Brasília, dos sistemas urbanos, em princípio funcionais, mas que se recobrem aleatoriamente ou que se redefinem à distância, a partir dos terrenos baldios ou dos limites exteriores da cidade. Com a série de gravuras de José Guilherme Brenner tem lugar uma representação imaginativa de Brasília que lança mão de elementos narrativos, envolvendo níveis de realidade muito mais profundos e interessantes do que se fosse lidar apenas com o registro direto. Nela, cria-se um espaço de especulação visual onde se joga com possíveis relações entre a realidade física da cidade e referências da arte, da história, da cultura. Figura 1- José Guilherme Brenner- Gravura, 1991 As possibilidades narrativas desse trabalho se tornam ao mesmo tempo muito abertas e concentradas – nele, o distanciamento anda junto do lirismo – desde que se aceite seu convívio discreto com os signos do passado: Adão 176 A série de gravuras era antecedida por pinturas que se relatavam à cidade por uma arquitetura de piscinas vazias, cores escuras irreais e expressividade rude, estabelecendo de forma precedente um nexo forte entre Brasília e a história da arte moderna, através do encontro entre a visão da melancólica degradação do espaço arquitetônico modernista e a atmosfera misteriosa da pintura de De Chirico. Encontro que se produzia surdamente, mas com um paradoxal poder de reverberação. Tal metafísica visual se converte em fabulação, incorpora momentos de distração e digressão, reabrindo passagens entre áreas que se haviam tornado estanques e isoladas. O que não faz é repetir ou citar diretamente outras obras: a produção visual do passado dissolve-se em representação inédita. Uma parcela significativa da produção contemporânea que não se vincula ao mainstream do experimentalismo estético ou conceitual tenderia a recair no pastiche, em que os modelos históricos referidos na arte são automaticamente convertidos em “gênero”. Não é este o caso das gravuras em questão, que, como já dissemos, também não pertencem ao domínio da paródia, mas envolvem uma apropriação de elementos de repertórios iconográficos tradicionais para fins próprios, ligados à produção de uma deriva narrativa, de um desvio histórico marginal. Os trabalhos de Brenner eram claramente motivados pelo objetivo de retomada do ofício do gravador e pela busca de aperfeiçoamento técnico, sem que se considere a técnica em separado da definição de uma proposição artística. Ao mesmo tempo em que também foi erodida, a partir do modernismo, até o ponto de desaparecer em toda uma vertente importante da produção, a dimensão técnica e material nunca deixou de constituir também uma fonte possível de revelação e de renovação da própria arte. A consternação diante do abandono das práticas tradicionais de atelier, apesar de seu travo passadista, aponta o efeito da ameaça de extinção dessa dimensão histórica sobre componentes do significado mesmo da arte. A sensação, a que se referia Lévi-Strauss numa entrevista, de que a pintura moderna deixou desaparecer, ou até destruir, as bases mesmas da pintura, isto é: uma atividade culta, difícil, que se aprendia durante anos e anos de trabalho no ateliê. Sem essa atividade não há pintura de verdade.2 Tal dimensão concreta da arte também era evocada com veemência num texto escrito por Alfred Kubin que aborda o trabalho do desenhista em ligação com um conhecimento sensível, que se define a partir de uma prática retomada ao longo de toda uma vida: Uma sensibilidade particular para seu material, totalmente distinta daquela do pintor, o anima. Ele entende tudo sobre o papel e é excepcionalmente sensível à atração que pode exercer sobre ele o material, constantemente à espreita de suportes nobres. Seu traço seria seriamente contrariado e seria impossível dar o melhor de si mesmo sobre papel de impressão branco-calcário, enquanto o grão irregular, o tom acinzentado 177 ART e Eva, mitologia clássica e hagiografia cristã, paisagens flamengas, ficção científica do século XVIII. O mais surpreendente é perceber como tudo isso pode se ligar a Brasília, por elos que seriam em alguma medida originários. ART ou amarelado de um velho papel lhe provoca calor nas mãos.3 Na produção de Andréa Sá, narrativas deslocadas de seu contexto original adquirem sentido especial, seja por contato ou contraste com o cenário de Brasília. Numa xilogravura da artista, impressões do cerrado e da arquitetura modernista parecem fundir-se ao simbolismo hierático de paisagens de Caspar Friedrich e elementos da Ilha dos Mortos de Böcklin. Num trabalho mais recente, que tomou parte numa instalação realizada em conjunto com Walter Menon, a artista realizou autorretratos fotográficos, vestida com o hábito religioso e encenando momentos de êxtase místico numa paisagem pastoral. O aspecto luminoso e desértico da paisagem adquire por associação alguma coisa do espaço da capital, cuja exterioridade feroz se abre ao riso dos místicos e dos drogados. As pinturas de “Azul” não parecem ter sido produzidas por um único indivíduo, dando mais a impressão de resultarem de um “coletivo” de artistas, trabalhando a partir de dispositivos pré-fixados, lançando mão de recursos da linguagem popular, entre a pintura de reclame e a fotografia de lambe-lambe. O anonimato das imagens conjuga fragmentos de coisas e elementos inteiros. Surpreendemo-nos ao conseguirmos ler até o fim as palavras e os sinais das placas – vai-se letra por letra. Mesmo com a forte demarcação de formas e cores, o sentido espacial está sempre a um passo de soçobrar. O significado dessas pinturas se define por fora do que seus elementos representam isoladamente – no conjunto aberto, em analogia com o modo de ocupação do comércio e do negócio na cidade. Há uma aparente indigência e falta de gosto nas escolhas dos motivos e na inconsistência dos ritmos visuais, mas o manejo estético vigora, na gratuidade afirmativa dos ângulos e na economia irônica do fazer. “Azul” estabelece, na pintura, uma correspondência com o trabalho de Nicolas Behr, nas letras locais. Onde se encontram a metafísica, a narrativa, nessas pinturas? Talvez no olhar que vagueia soberano, sem ligar para o que vê _ nele não há economia _ que faz pensar num olhar infantil, ou na possível presença de seres como os deuses marítimos que se deixam ficar calmamente na proximidade das velhas ruas das cidades pintadas por Alberto Savínio. No caminho que leva das obras de R. Mano às de “Azul”, há dois momentos que não podem ser descartados. Em primeiro lugar, a comoção provocada pelo encontro com a estranheza da realidade. Em segundo lugar, a transformação de um estado de irresolução irônica em atividade fabril, que resulta num objeto, seja pintura, gravura ou filme. O enigma se transforma assim em bricolagem, e a lida construtiva_ em que talvez certo número de artistas encontre saúde _ continua a vigorar, conformada às áleas do pós-moderno. Gostamos de assistir filmes, ler e ouvir histórias que ativam nossa imaginação antes de dormir, talvez elas estimulem a produção de imagens nos sonhos, e certamente alguma coisa do encadeamento narrativo, com seus ritmos e sobressaltos hipnóticos, acaba se transferindo para o campo da representação visual. O artista testa suas visões e lança seus dados, fascinado pelo constante recobrimento entre subjetividade e objetividade, 178 Brasília, lugar onde o tempo não passa, o que traz por momentos a sensação nítida e palpável da finitude das coisas. Na pintura e nas artes gráficas, a passagem do tempo pode ser medida como duração da luz nos elementos da composição _ o deslizamento da sombra pela arena, a melancolia patética da despedida numa tarde de outono: Kitsch sentimental a ser apropriado e reconvertido. Qual o sentido em retomar a bandeira de uma arte “metafísica”? Talvez o de explorar o mistério transcendental, inesgotável, da representação, que opera constituindo objetos próprios sempre renovados. Representação que ocupa lugar inegociável nas artes visuais, configurando narrativas que podem ser também “puramente visuais”, ao mesmo tempo em que dizem respeito a uma crença na experiência narrada – a uma suspension of desbelief. A composição das obras de arte não se esgota no arranjo formal, mas há uma solubilidade da narrativa no campo visual. O sentido que a representação é dessa forma passível de adquirir não pode ser substituído por sentido de nenhum outro tipo, e corresponde ao exercício de uma função vital. 1 Doutor em História da Arte pela Universidade de Paris I, professor adjunto do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Email: [email protected] 2 Entrevista concedida à revista Veja, edição de 24 de setembro de 2003 3 KUBIN, Alfred, Le travail du dessinateur, Paris: Allia, 2001 (trecho traduzido pelo autor). 179 ART pelas passagens entre interior e exterior _ de que os cenários da cidade oferecem possibilidades renovadas _ pelo encontro da experiência biográfica individual e da sucessão das gerações. Alguma coisa do sentimento que moveu uma geração se mantém no que irá mover outra. ART Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias? Priscila Arantes1 Resumo: Muito mais do que um simples fenômeno tecnológico, a cultura contemporânea tem se caracterizado por dinâmicas sócio-comunicacionais em rede, fruto muitas vezes de influências que colocam sinergias em contacto, incentivando a troca e a apropriação criativa da informação. Na perspectiva da rede a idéia de conexão se expande rompendo com visões estanques de categorizações e de fronteiras definidas no campo das artes. Por outro lado, a arte começa a operar em outros circuitos para além dos tradicionais propondo um esgarçamento das fronteiras entre arte e vida com ênfase em práticas colaborativas e coletivas, especialmente aquelas engajadas no diálogo com contextos sociais. Neste sentido o presente artigo Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias? tem como proposta investigar, tomando como ponto de partida a idéia da rede, como a idéia do relacional, daquilo que se dá em rede, tem se manifestado no sistema da arte contemporânea. Palavras chaves: arte contemporânea, rede, trabalhos colaborativos Abstract: Much more than just a technological phenomenon contemporary culture has been characterized by socio-communication network, the result of influences that put in contact synergies, encouraging the exchange of information and creative appropriation. In the view of the network, the idea of connection has been expanded breaking visions of fixed categorization and boundaries in arts. On the other hand, art begins to operate in different circuits proposing a fraying of boundaries between art and life with an emphasis on collaborative and collective practices, especially those engaged in dialogue with social contexts. In this sense, this article Network, art and society: utopia or dystopia? aim to investigate, how the idea of relational, has been manifested itself in the system of contemporary art. Keywords: contemporary art, network, colaborative practice O mundo em rede Rede, malha, conexão, são algumas das metáforas utilizadas para designar as dinâmicas da cultura contemporânea. Caracterizada por operações de articulação e combinação, de edição e de montagem e longe de procurar exprimir a essência imutável das coisas, a atualidade tem apontado para a idéia de colagem indicando padrões de rede que suas articulações tecem em constante movimento. Para René Berger (Domingues 2003) a certeza em categorias precisas e estanques se enfraqueceu, justamente pela percepção de que tudo é de certa forma transversal, conectado e em rede. “Nenhum ser por mais simples ou complexo que seja, subsiste ou pode subsistir isoladamente. Os laços são a condição mesma de sua existência, de toda a existência. Laços endógenos que ligam os componentes de um organismo, laços exógenos 180 ART que ligam os seres entre si e com seu ambiente. Com efeito, a rede não é uma idéia apenas do nosso século. Já na Grécia antiga Galeno (131-200 d.c), proeminente filósofo e médico, associava a idéia de rede ao corpo humano, vínculo este que atravessou toda a história de representações da rede, “designando ora o corpo em sua totalidade como agenciamento do fluxo ou do tecido ora uma parte deste, principalmente o cérebro” (Musso In Moraes 2006 : 198) . No campo das artes, a idéia da rede também não é recente. Basta lembrarmos do pensamento romântico no século passado ao designar a inspiração do artista gênio em função de sua íntima comunhão com o Cosmos. Apesar da idéia de rede não ser somente um conceito atrelado ao nosso século, as formações em rede se tornaram mais visíveis na atualidade graças aos meios técnicos que, ao operarem eles próprios por conexões e interconexões, nos permitiram fazer articulações de toda ordem, tornandoas perceptíveis. As redes informáticas e as redes virtuais de comunicação constituem talvez a faceta mais visível do sistema de redes, pois dão a ver as estruturas de interconexão entre seus elementos em interação. Com o ciberespaço triunfa a idéia de uma rede universal que conecta todos os indivíduos em escala planetária. A própria sociedade seria de hoje em diante uma “sociedade de rede” no dizer de Manuel Castells. Rede de computadores, rede de conceitos, rede orgânica; sociedade em rede. A idéia de multiplicidade, convergência e interconexão, extrapola os meios da comunicação contaminando outras áreas e fazendo-nos perceber que a trama social é constituída de interstícios de complexas redes institucionais, culturais, afetivas, midiáticas e artísticas. A idéia da rede é, a um só tempo, uma espécie de paradigma e de personagem principal das mudanças da nossa época. Utopias e distopias tecnológicas De fato a cultura contemporânea potencializa a idéia do compartilhamento, distribuição e cooperação sendo fruto de uma crescente troca social sob formatos diversos - de fóruns e chats a weblogs, de fotoblogs a trocas de mensagem SMS, do Orkut aos sistemas mais gerais. Ligar ao outro, ou re-ligar parece ser o mote da cultura contemporânea criando novas formas de sociabilidade que têm nas tecnologias digitais um vetor de agregação social. A própria web é dentro desta perspectiva uma tecnologia social cuja maioria dos protocolos e linguagens permitem participações de grupos e indivíduos os mais diversos. Muito mais do que um simples fenômeno tecnológico a cultura contemporânea caracteriza-se por dinâmicas sócio-comunicacionais em muitos aspectos inovadora, fruto de influências mútuas de trabalho cooperativo que coloca sinergias em contacto, incentivando a troca e a apropriação criativa da informação. Para alguns a ‘hiper rede’ internet seria a concretização, no plano 181 ART tecnológico, da utopia social dos ideais modernos: “A rede por essência anti-hierárquica se torna sinônimo de auto-organização e de igualdade (...). O internauta deveria travar um combate pela liberdade contra todos os órgãos de regulação, contra os operadores dominantes (Microsoft ou o FBI, por exemplo) pela igualdade contra todas as hierarquias, a começar pelas dos Estados e pela fraternidade mundial das “comunidades virtuais”. Liberdade, igualdade e fraternidade: a utopia social se realizaria finalmente, graças à utopia técnica reticular”. (Musso in Moraes 2006: 206) Nesse contexto as redes digitais fixas e móveis apresentariam alternativas cada vez mais sólidas de organização política e construção de cenários coletivos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que sinalizariam possibilidades de democratização da cultura embutidas em práticas de compartilhamento e na cultura de softwares de código aberto, as redes colocariam em cena um mundo cada vez mais ”controlado” em que práticas de vigilância e quebra de privacidade estão cada vez mais presentes no dia a dia. De modo diverso ao dos apologetas da cibercultura que vêem a informatização da sociedade e o desenvolvimento das redes telemáticas como um fenômeno que abre possibilidades para a instauração progressiva de uma espécie de tecnodemocracia, Alex Galloway (2004) coloca em xeque a crença de que não haveria nenhuma forma de controle na sociedade informática, sinalizando para uma vertente mais distópica da cultura contemporânea. Partindo de pressupostos já delineados por Deleuze e Foucault, Galloway argumenta que as novas formas de poder se debruçariam nas regras, ou mais precisamente, nos protocolos, que governam as trocas de informações entre os computadores conectados em rede. Para Galloway, a rede, e os seus processos descentralizados de transmissão de informação, o computador digital e os protocolos - os princípios que regem e controlam os fluxos de informações de forma descentralizada em um sistema distribuído e em rede - são as bases por onde se sustentam o novo império de poder da sociedade capitalista contemporânea. Utopia ou distopia o fato é de que um dos aspectos mais potentes da cultura das redes é a forma como a tecnologia amplia e modifica as relações sociais, isto é, como as tecnologias em rede, sejam elas fixas ou móveis proporcionam desdobramentos sociais interessantes. O paradigma da rede na produção artística Na perspectiva da rede a idéia de conexão se expande rompendo com visões estanques de categorizações e de fronteiras definidas no campo das artes. A partir dos anos 1970, a experiência da arte migra de um campo de proposições artísticas específicas para uma prática desdobrada, ampliada, que opera na convergência de linguagens e em diálogo com outras esferas do conhecimento. Ao mesmo tempo em que teóricos como Rosalind Krauss, Raymond Bellour e Gene Youngblood sinalizam a expansão dos campos de ação artística a partir da intersecção das linguagens, a historiadora de arte 182 Por outro lado, a arte começa a operar em outros circuitos para além dos tradicionais propondo um esgarçamento das fronteiras entre arte e vida com ênfase em práticas colaborativas e coletivas, especialmente para aquelas engajadas no diálogo com contextos sociais. Pensadores como Nicolas Bourriaud (2009) sinalizam que uma das grandes características da arte atual seria o fato dela se desenvolver em função de noções conviviais e relacionais. Para ele a comunicação hoje, encerraria os contatos humanos dentro de espaços de controle que decompõe, ao invés de afirmar, o vínculo social. Em uma sociedade em que as pessoas não se comunicam e onde o vínculo social tornar-se produto padronizado, a atividade da arte, contrariamente, efetuaria ligações, conexões, abrindo as passagens obstruídas de níveis de realidade. A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado) atestaria, de acordo com Bourriaud, uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna; uma forma de arte que é dada pela intersubjetividade tendo como tema central o estar junto; em rede. Dentro desta mesma perspectiva Claire Bishop no seu livro Participation (2006) destaca a dimensão social das artes participativas, não no sentido da atuação do indivíduo nas artes interativas mas da ativação de um corpo social possível através de práticas colaborativas. No campo das artes esta proposta afetiva corresponde à ruptura de uma visão da arte como ilusão para uma proposta mais vivencial e de produção de intersubjetividades. Percebe-se, neste sentido, práticas que no intuito de trazer a arte para a vida, se deslocam do espaço protegido e confinado do museu, para o espaço da realidade mesma, seja através de intervenções urbanas, performances e happenings ou, mais recentemente, através de investigações artísticas no âmbito da rede internet e muitas vezes em espaços em trânsito, on o off line. Dentro desta perspectiva vale lembrar de O Branco invade a cidade (1973), do artista argelino Fred Forest. A ação consistiu em sair pelo centro de São Paulo - do Largo do Arouche até a Praça da Sé - simulando uma passeata com umas 10 pessoas carregando cartazes em branco. Centenas de curiosos aderiram “à passeata” bloqueando o trânsito por várias horas. Quando Fred Forest desenvolve esta ação ele cria simultaneamente uma microunidade; a dos integrantes da passeata unidos por uma ação performática que subverteu a condição do silêncio imposta na época da ditadura militar no Brasil. Caso exemplar de projetos neste sentido são aqueles desenvolvidos por Maurício Dias e Walter Riedweg. Muitos dos protagonistas de seus trabalhos são grupos sociais que se situam à margem do universo supostamente 183 ART Anne Cauquelin aponta para a confluência de papéis entre os diferentes agentes do sistema da arte contemporânea, típica dos tempos fluidos que caracterizam nossa época. ART garantido pelo capitalismo mundial. Os projetos de Maurício Dias e Walter Riedweg produzem, muitas vezes, uma falha, um corte, uma interrupção na ordem dos sentidos e do curso “natural” das coisas. Provocam uma iluminação profana como diria Benjamin, ao colocar em evidência o esgarçamento e as tensões que compõem o cenário social. Entre os trabalhos da dupla pode-se destacar Dentro e fora do tubo (1988). Realizado a partir de depoimentos gravados com refugiados vindos de terras em conflito e vivendo na Suíça à espera de legalização de seu asilo político, a idéia do projeto foi a de gravar depoimentos orais da memória do trajeto que o imigrante realizou quando da saída de sua cidade natal até chegar à Suíça. Estas lembranças, vozes, memórias dos refugiados foram colocados em walk-talks e espalhados, dentro de tubos, no espaço urbano, disponíveis para a escuta da população. Trata-se, neste caso, de colocar em evidência, em público, estados afetivos e experiências sensóreas decorrentes de situações específicas dos processos de marginalização. Um processo como esse nos remete às experiências desenvolvidas pelo artista polonês Kristof Vodisko, conhecido, desde os anos 80, por trabalhar com projeções de vídeo em grande escala no espaço público. Em Tijuana Project (2001), desenvolvido no Centro Cultural de Tijuana, no México, o artista se utiliza de dispositivos midiáticos para dar voz a mulheres operárias da cidade de Tijuana. Neste trabalho o artista desenvolveu um capacete integrado a uma câmera e a um microfone que permitia gravar e transmitir em tempo real a imagem e a voz da depoente na fachada do Centro Cultural de Tijuana. Os testemunhos das mulheres, ouvidos pelo público em praça pública, discorriam sobre abuso sexual, alcoolismo e violência doméstica. Criavam uma zona de comunicação, em rede, sobre afetos íntimos vividos por situações de fragilidade social. Em todos estes projetos percebe-se, de certa forma, aquilo que Deleuze e Guattari diziam quando definiam a obra de arte como um bloco de afetos e perceptos: o fato da arte manter ou criar momentos de subjetividade ligados a experiências singulares. Mais do que apenas criar situações em rede, são projetos que proporcionam desdobramentos sociais interessantes, promovendo vínculos diversos daqueles promovidos pela sociedade de controle. Dentro de outra perspectiva, já no âmbito da rede internet, podemos citar The File Room, de Antonio Muntadas, um dos primeiros projetos artísticos desenvolvidos para a internet. O projeto, que discutia o tema da censura cultural, consistia de uma instalação e um banco de dados, onde os usuários poderiam depositar os seus projetos censurados. Além de colocar em cena a idéia de compartilhamento da informação dentro da perspectiva de um wok in progress colaborativo, o projeto atuava na contramão da censura, abrindo na rede um espaço expositivo para os projetos censurados. Já Suspensión Amodal do artista catalão Rafael Lozano Hemmer é uma instalação em grande escala desenhada para a inauguração do centro de arte YCAM no Japão que permitia ao participante enviar mensagens via telefone celular e Internet ao espaço da cidade. As mensagens se codificavam em seqüências de luz e eram disparadas por canhões, permanecendo no céu até que a mensagem fosse lida pelo destinatário. 184 Mais radical é o trabalho do grupo Loca que “conseguiu mapear e se comunicar com moradores da cidade de San José, sem o conhecimento dos moradores ou permissão. Através da utilização de seus telefones celulares (desde que o dispositivo Bluetooth estivesse aberto para localização) mais de 2500 pessoas foram detectadas por mais de 500 mil vezes pela rede Loca - construída em agosto de 2006 com clusters formados por nós interconectados, auto-suficientes e equipados com Bluetooth, no centro da cidade californiana. A malha resultante permitiu descrever em detalhes o movimento das pessoas” (Catálogo Arte.Mov) Muitos destes trabalhos não perseguem mais a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas contrárias às vigentes, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente. O que estes projetos compartilham é o mais importante, a saber, o fato de operar num mesmo horizonte prático e teórico: a esfera das relações humanas. Suas obras lidam com os modos de intercâmbio social e pensam os processos de comunicação enquanto instrumentos concretos para interligar pessoas e grupos criando sociabilidades alternativas e chamando atenção para as questões que permeiam a nossa cultura. Referências Bibliográficas Bishop, Claire (og).Participation.MIT Press, 2006. Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.Catálogo do 2 Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis. Telemig Celular Arte.Mov, 2007 Domingues, Diana. Arte e Vida no Século XXI. São Paulo: Editora Unesp, 2003. Galloway, Alex. Protocol. How Control Exists After Decentralization. MIT Press, 2004. Musso, Pierre. Ciberespaço, figura reticular da utopia tecnológica. In Dênis de Moraes (org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. 1 Pesquisadora, crítica de arte e curadora. É formada em filosofia pela Universidade de São Paulo (1989), possui mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia 185 ART Ao serem lidas, as mensagens se retiravam do céu e eram projetadas na fachada do edifício do YCAM. Neste trabalho fica evidente a idéia da cidade como dispositivo de comunicação e como dispositivo para trocas de afeto dentro da perspectiva já desenhada pelos situacionistas. Mas não somente. O trabalho coloca também em debate a questão da mobilidade e das conexões em rede, um dos temas mais caros da atualidade. Para além de assinalar as contaminações entre o espaço físico e o da comunicação, o projeto aponta para a idéia da rapidez dos “relacionamentos virtuais”. As conexões via Internet, email, SMS, telefone celular, exigem rapidez e é extremamente fácil sair destas conexões; basta deixar de responder um email ou apertar a tecla apagar. São relacionamentos que acendem e apagam, ‘como’ a velocidade da luz. ART Universidade Católica de São Paulo (1997-2003) e pós-doutorado, com projeto na área de estética e arte em meios tecnológicos pela Unicamp (2008). É professora de teoria, estética, curadoria e história da arte de cursos de graduação e pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desde 2007 é diretora técnica e curadora do Paço das Artes/MIS sendo responsável pela programação geral da instituição. Entre seus livros destacam-se: Arte @ Mídia: perspectivas da Estética Digital, Conexões Tecnológicas, Estéticas tecnológicas: novas formas de sentir e Experiências/Campos/Intersecções/Articulações. 186 ART Sinapsis bioelectrónica de creación Raúl Niño Bernal1 Resumen: Estética y Biología de lo Posible2, desde una relación teórica y conceptual establece puntos de convergencia e interrelación entre los enlaces sinápticos de las redes neuronales nerviosas como puntos de conexión para la creación, y los enlaces electrónicos de las redes computacionales en los procesos de creación. Desde esta perspectiva se conceptualiza la emergencia estética y la condición de la vida artificial con sinapsis entre los biochips computacionales como los posibilitadores de las interfaces entre biología y tecnología para hacer tangibles los actos de creación en la virtualidad y los medios visuales en la expansión de la ciencia de los procesos. Palabras Claves: Sinapsis, Bioelectrónica, Ciencia de los procesos, emergencia estética. Abstract: Aesthetics and Biology of possible, from a theoretical and conceptual relation, it establishes points of convergence and interrelationship between the synaptics links of the nervous neuron networks. They work as points of relation for creation, and by the other hand there are electronic links of computational networks happening in the processes of creation. From this perspective the aesthetic emergency is conceptualized as well as the condition of the artificial life is related with the synapsis between the computational biochips, becoming the way to achieve interfaces between biology and technology. That is to make creation acts tangible in the virtuality and the visual media in the expansion of the science of processes. Keywords: Sinaptic, Bioelectronic, Science of processes, aesthetic emergency Biología de los procesos sinápticos Esta relación teórica de los procesos sinápticos, es también denominada bioelectrónica y tiene una doble condición metodológica respecto a los actos o procesos de creación; por una parte la condición biológica de los enlaces neuronales por campos eléctricos entre las células desde un origen químico y, por otra la condición artificial de las sinapsis entre el cerebro humano los biochips computacionales como los posibilitadores para hacer tangibles (simulaciones, modelaciones, representaciones) en los actos de creación, entendidos estos como la ciencia de los procesos (Prigogine), que virtualmente configuran una estética cognitiva de los sentidos; es decir, que el mundo computacional extrapola los actos de creación de la mente. Esta dimensión heurística en la que se explora y comprende la complejidad de la ciencia de los procesos, no se halla en estados naturales de pensamiento solamente, sino en dimensiones computables3, que procesan datos y sensibilidades en diferentes lenguajes electrónicos, programas y software, haciendo posible que los creadores realicen los diseños y simulaciones y a la vez sean transferencias de creatividad 187 ART compartidas para los tiempos cualitativamente diversos del mundo en el que la información es también una interfaz de sentidos y conocimientos complejos. Las sinapsis, proveniente del gr. σύναψις, que significa «enlace», es la unión intercelular especializada entre neuronas para establecer impulsos nerviosos. Y la relación bioelectrónica es una búsqueda de procesos relacionales en inteligencia y emoción para detectar los campos de creación en la dimensión de un nuevo logos. Este logos, constituye el punto de indagación estética sobre cómo el sistema nervioso es ampliado desde una condición postsináptica externa, constituida por los dispositivos electrónicos y computacionales que acompañan los procesos creativos virtuales en las artes como interfaces de los sentidos. Asimismo, el conjunto de procedimientos vinculantes con aplicaciones a muchos otros campos computacionales gracias a los enlaces intercelulares de las personas y los dispositivos electrónicos, relaciones sinápticas internas y externas mediante entradas sensoriales denominadas emociones. Las emociones son Patrones de Acción Fijos (PAF) como las define R. Llinás4, las cuales han evolucionado significativamente a emociones globales sensoriales. La pregunta central es ¿cómo se producen estos enlaces bioelectrónicos, o cual es la esencia excitadora para que una emoción de pensamiento creativo pueda traducirse como interfaz en otro lenguaje matemático (binario) a través de ayudas computacionales? Esta pregunta es a la vez una hipótesis plausible que explica a través de argumentos estéticos en el campo de las heurísticas computacionales el proceso con el que se establecen las emociones y se desprenden por señales nerviosas a través de los microtúbulos; entonces la acción sináptica obedece a cambios continuos internos y externos por acción de las emociones y sensaciones y las conexiones en las actividades que desempeñan estos microtúbulos, es decir, las funciones diversas dentro de las células que transportan moléculas como los neurotransmisores químicos a través de los cuales se propagan las señales sinápticas. El momento en el cual ocurre la creatividad se da en el lapso del enlace cerebral y computacional. Esta consideración si bien es biológica también, al ser traducido por sistemas perceptuales involucra las dimensiones externas o posinápticas que corresponden a las ampliaciones externas de un poder creativo circulante por distintos medios, canales y soportes que si bien están en el mundo físico y en el marco de las leyes físicas que lo rigen, también se advierte el cambio a un mundo de información matemática (no platónica) de algoritmos y sistemas infinitesimales o con leyes intemporales de las cuales emergen nuevos campos relacionales o dimensiones creativas. Computación bioelectrónica Los campos de creación o ciencia de los procesos expandidos por este fenómeno bioelectrónico son relaciones cerebrales y de otra naturaleza, es decir, con la simbiosis de la vida artificial y la emergencia en el desarrollo de biomoléculas, que no solamente se conocen por la descarga química de 188 Esta causación formativa biológica se produce en los campos mórficos de información (Sheldrake 1998) en el aprendizaje humano y el de todas las especies vivas en el espaciotiempo de la vida biológica. Por los cambios cualitativos de ahora, tanto la causación formativa como los campos mórficos incorporan la interfase entre tecnología y biología como se evidencia en la vida artificial en procesos y estructuras que se disipan y son objeto de estudio a través de las ciencias de la bioinformación, creándose una interfase cerebro-mente y máquinas. Así pues, la evolución de las culturas contemporáneas en los procesos postsinápticos se traduce en la capacidad de nuestra especie de inventar nuevos modos de pensar. Los nuevos modos de pensar con las interfaces tecnológicas en la vida artificial, es la respuesta a los tiempos de la vida y a la diversificación de lo cualitativamente nuevo (Prigogine 1997); por tanto, para el futuro de la humanidad y de las especies vivas del planeta, la ciencia de los procesos responde a estos campos mórficos de información y a las diversas sensaciones emocionales, de innumerables individuos que transfieren información genética a través del espaciotiempo, posiblemente más ampliada por el mundo computacional6; sin embargo, esta noción de espaciotiempo para la ciencia de los procesos ya no depende de las condiciones innatas naturales solamente de la memoria y las capacidades anteriores o del lenguaje, sino de los campos de resonancia mórfica de síntesis matemáticas y de la capacidad de almacenar, procesar y transferir información. Esta es la simbiosis que emerge con las sensibilidades artificiales en la dirección de la vida como invención por las estructuras de autoorganización en computadores y dispositivos de circuitos eléctricos7 que simulan la membrana de las neuronas y amplían la cognición humana. Ciencia de los procesos Tal como lo ha expuesto Ilya Prigogine, la creatividad contemporánea se sitúa en la ciencia de los procesos. La pregunta sobre la creación y su emergencia estética, se plantea en la posibilidad bioelectrónica del autoensamblaje de estructuras organizadas, así como ocurre biológicamente con los virus, el caso es semejante por evolución molecular en la información en estructuras de biochips que también ofrecen un paso al futuro con la electrónica molecular en lo infinitamente pequeño. Es posible una sinapsis bioelectrónica simbiótica entre humanos y maquinas inteligentes producto de la evolución cultural actual y lo que resultaría aún más conmovedor es que las sinapsis artificiales de las máquinas inteligentes puedan desprenderse de cualquier explicación sobre modelos existentes y logren la autonomía de la innovación constante a través de los intercambios, principal cualidad del mundo de hoy. 189 ART las membranas celulares, sino por la condición artificial bioelectrónica de procesos de almacenamiento y procesamiento de información a través del espaciotiempo mediante causación formativa5 (Sheldrake 1998) en campos inherentes a la memoria. ART La cuestión simbiótica respecto a la creación permite investigar si es computable esta transformación de la sensibilidad, la conciencia y la misma creación en la ciencia de los procesos respecto a los avances teóricos y a las innovaciones. Se plantea entonces la pregunta sobre cómo se percibe y define la emergencia de la creación y de la vida artificial respecto a cambios interdependientes entre la vida orgánica o biológica y desde su condición epistémica respecto a las implicaciones tecnológicas y los cambios en las escalas de creación y evolución del conocimiento que se replica o si se quiere materializa en lenguajes artísticos y en soportes computacionales. En la aproximación de este nuevo logos que parte de la sinapsis bioelectrónica, se plantean nuevos retos para una estética de lo posible, es decir, la incursión sobre lo novedoso del conocimiento en los campos de la creación y su incidencia en la innovación que parte de la emoción como motor de activación de acciones irracionales, entendidas estas como ciencia de los procesos (creaciones), y en su mejor denominación de carácter cognitivo. En síntesis, esta ponencia explora como las raíces del conocimiento ha evolucionado de la condición biológica y sus causaciones formativas a la de la creación y nuevos campos de información que se encuentran en una clara relación con lo viviente, a través de conexiones y redes con extensiones a nuevos materiales biomoleculares, los cuales son objeto de estudio a nivel de la ciencia de los procesos y los campos de desarrollo en redes neuronales artificiales, autómatas celulares, sistemas expertos, robótica entre otros. Las relaciones entre emoción e irracionalidad, contemplan una perspectiva simbiótica con los episodios de la macrovida para imaginar como la ciencia de los procesos está avanzando en los procesos de los tiempos y en la diversidad de lo cualitativamente nuevo de la creación y ofrece alternativas de distinta índole para las creaciones en estructuras disipativas relacionadas con lenguajes, simulaciones, modelaciones. La ciencia de los procesos deberá ocuparse desde un nuevo logos por entender la complejidad de la vida, de la cual la biología todavía tiene campos de investigación insospechados por revelar, debido a la magnificencia que encierra la incertidumbre de la vida. No se trata de condenar esta condición de la biología en pos de la vida artificial, por el contrario, se trata de ampliar la comprensión de simbiosis que se produce entre los campos de inteligencia biológica (cognición) y que convergen en la relación cultural mente-maquina como bioinformática, o lo que intento llamar en esta ponencia como sinapsis bioelectrónica, para situar una dimensión cognitiva en la cual nos podemos ocupar de manera compleja en los actos creativos. En esta simbiosis cultural de intercambios, los campos de causación formativa y la resonancia de los campos mórficos intensificados por códigos y patrones computacionales, además de contribuir en los ciclos de actividades normales como hablar, caminar, nadar, masticar, montar bicicleta, son ahora digitales para una civilización basada en la información electrónica y telemática que deberá seguir creando mundos artificiales 190 A través de la ciencia de los procesos la innovación y la creatividad de simulaciones, de mundos posibles, de vida de síntesis, las sinapsis bioelectrónicas, están permitiendo comprender una naturaleza virtual de nuevas leyes y reglas a través de las cuales se gobierna la vida artificial y de la cual en los actos creativos que se expanden y disipan en estructuras con otras lógicas y desde las cuales por interacción o percepción como sucede en el arte electrónico y computacional, la vida pasa a las relaciones de sistemas abiertos y en esta comprensión que es el mundo de la complejidad emergen los mundos de las interfaces sinápticas, de limites no localizables y con la posibilidad de preguntarnos e imaginarnos escalas de vida en otros universos. Pensar la vida en escalas de otros universos es una tarea de la inteligencia para el futuro de la mente humana, la cual no depende de la capacidad biológica solamente, sino de la interacción con interfaces electrónicas y computacionales en las cuales sea posible imaginar lo que podría cambiar en la relación mente-máquina para transformar las condiciones de lo viviente. Conclusiones La sinapsis bioelectrónica de la creación por cuenta de los sistemas informacionales y computacionales es la novedad de la inteligencia artificial y es el de un nuevo logos computable o lo que puede explicarse desde la heurística como una emergencia estética de nuestra inteligencia disipada en estructuras complejas en el contexto mismo de la ciencia de los procesos, marcada principalmente por la velocidad de los sistemas electrónicos y también vinculada a la inteligencia colectiva de redes con las capacidades alcanzadas hasta ahora por los computadores actuales en los sistemas abiertos de información. Estas cualidades son posibles gracias al desarrollo de los computadores con capacidad de procesamiento de “1 Petabyte = 1024 Gygabytes y el almacenamiento de 1027 Xeraflops”8, cada vez más superables y sustituibles en relación con las capacidades de los cerebros humanos para procesar y guardar información, lo cual es determinante para la vida artificial y la inteligencia del futuro. La evolución de las interfases tecnológicas como procesos computables de la creación colectiva o lo que podríamos llamar simbiosis cultural con las redes electrónicas, pone en consideración la capacidad computacional como una reacción aprendida (Minsky) que será constitutiva de nuevos campos mórficos de información genéticamente transmitidos para el aprendizaje futuro. Estas serán las bases de la causación formativa para las futuras generaciones humanas para que la inteligencia que se reclama hoy en la sociedad del conocimiento sea parte de los modelos incompletos de la naturaleza virtual que aún sigue los procesos de la indeterminación, o lo que sería igual a permitir que la ciencia de los procesos navegue y entrelace 191 ART como las maneras de explicar científicamente un momento de sociedad del conocimiento. ART tantos procesos creativos como inteligencias emerjan producto de las ampliaciones sinápticas El espaciotiempo de las redes electrónicas y la inteligencia artificial es la dimensión en la cual es posible enfrentar los problemas de la vida cotidiana actualmente, y en la que se pueda aprovechar el nivel deliberativo (Minsky) de las acciones o de las creaciones en el plano epistemológico del logos electrónico en el cual confluye la vida artificial. En las redes electrónicas están incorporadas las reglas de interconexión concernientes a como se activan las sinapsis. Es así, que el esquema análogo que aún la supedita a interactividades de vínculos informativos y como lo plantea R. Llinás: ¿memoria colectiva?, la cuestión estaría superada toda vez que las neuronas son células y como tal las células son estructuras muy elaboradas, que no dudo en su capacidad evolutiva de hacer simbiosis con dispositivos electrónicos incorporados en nuestros organismos biológicos. Por ahora los dispositivos electrónicos conocidos como redes neuronales artificiales, los percibimos y sentimos como lejanos o separados, pero en la condición bioelectrónica tal y como avanza con las nanoinfobiotecnologías es posible que tengamos en los próximos años sistemas más unificados, gracias a que la inteligencia comporta condiciones exponenciales de creatividad, adaptación e innovación. Los actuales problemas y los problemas del futuro o sea los del siglo XXII, requieren de nuevas sinapsis bioelectrónicas cuya energía sea comparable a la relatividad cuántica del sistema solar. No se trata de hacer copias replicables de la realidad observables o que las simulaciones se repitan con base en los patrones existentes. La transformación sináptica de modelos es a partir de cambios radicales para imaginar nuevas condiciones, formas, procesos, novedades creativas en el mundo simulado. La emergencia estética de la creación es también la de las naturalezas virtuales y de las expansiones cognitivas a través de la computación. Los sentidos están enlazados al sistema abierto de los satélites9 y a la proliferación de redes electrónicas y sistemas de información son exponenciales, lo cual indica que las relaciones de conocimiento es bioelectrónico y las redes neuronales no solo son de orden biológico, sino que son computacionales, la capacidad de almacenamiento y procesamiento indicadas anteriormente muestran una condición fiable de la información que se procesa. La sinapsis bioelectrónica de la creación es por tanto el acto creativo que identifica el proceso de innovación de la vida artificial con los avances computacionales, pero abre nuevas preguntas sobre la confiabilidad, la incertidumbre y la indeterminación cuando se trabaja paralelamente en sistemas abiertos conformados por partes no fiables individualmente, pero variadas. 192 ART Bibliografía De ROSNAY, Joël. (1995) El hombre simbiótico. Miradas sobre el tercer milenio. Madrid: Cátedra. EMMECHE, Claus. (1998) Vida simulada en el ordenador. 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Coinvestigador del grupo de investigación Estética y Nuevas Tecnologías, Candidato a Doctor en Political Science por la Atlantic International University de E.U, Magister en Estudios Políticos por la Pontificia Universidad Javeriana, titulado como Restaurador de Bienes Muebles por la Universidad Externado de Colombia, con Diploma en Gerencia y Gestión Cultural por la Universidad del Rosario de Bogotá. Autor de las siguientes publicaciones: Ciberbiología y procesos tecnológicos de la cultura. (2010) En: Estética Vida Artificial y Biopolítica. (2010) (coeditor). Bogotá, Pontificia Universidad javeriana. Repolitizar la biodiversidad (2009). En: Poéticas y criticas del Devenir. Bogotá, Editorial Pontificia Universidad Javeriana. Cognición y Subjetividades Políticas: Perspectivas estéticas para las ciudadanías globales (2008), Indicadores Estéticos de Cultura Urbana (2006). Ensayo: Giro Cultural de la Estética Contemporánea (2003), en libro colectivo, coautor de “Nuestros Museos de Bogotá”, publicación universal en 2 Resultado Proyecto de Investigación, Departamento de Estética Pontificia Universidad Javeriana 2010. 3 La posición de Roger Penrose, es de alguna manera sustentar que la emoción y otras condiciones de la mente no son computables. Sin embargo existen autores que desde otra perspectiva demuestran que las emociones y sensaciones son también de las máquinas. 4 Llinás Rodolfo. (2003). El cerebro y el mito del yo. El papel de las neuronas en el pensamiento y el comportamiento humanos. Colombia: Grupo Editorial Norma. 5 “La hipótesis de causación formativa, parte de la suposición de que los campos morfogenéticos son físicamente reales, en el mismo sentido de que los campos gravitatorios, electromagnéticos y de materia cuántica son físicamente reales. Todo tipo de célula, tejido, órgano y organismo tienen su propia clase de campo. Estos campos confieren forma y organización a los microorganismos, plantas y animales en proceso de desarrollo, y estabilizan la forma de los organismos adultos. Esto lo llevan a cabo basándose en su propia organización espaciotemporal.” Sheldrake, 1998: p.p. 172-173. 6 “Mientras que el cerebro humano tiene capacidad de procesamiento -es decir, percepción y recordación- de ±7 objetos y biológicamente se desarrolló para trabajar con un mundo de solo tres dimensiones (3D), el desarrollo cultural ha sido tan magnífico que el cerebro se enfrenta en el mundo contemporáneo con bastante más que ±7 objetos, y con muchas más relaciones que las que permite la geometría euclidiana. La mejor ilustración es la capacidad de procesamiento y la velocidad alcanzada por los computadores, actualmente.” P. 72 Maldonado (2010). Construyendo la Evolución. En: Hernández, I. Niño, R (eds). Estética, Vida Artificial y Biopolítica. Bogotá: Editorial Pontificia Universidad javeriana. 7 Avances en este campo es “la fórmula principal del modelo Hodgkin-Huxley, y con la que sus autores obtuvieron el premio nobel, fue obtenida aplicando las leyes de Kirchoff al circuito eléctrico que representa a la membrana de la neurona. […] El sentido de transmisión entre neuronas es el resultado de su peculiar forma y organización, es decir de su polarización 194 8 Maldonado, C. (2010) p. 73 9 La NASA, reporta que para el año 2002 cuando aparece la abolición de la ley de monopolio audiovisual hay 23.133 satélites en el espacio. En: La Ferla, J. (2009). Cine (y) digital. Aproximaciones a posibles convergencias entre el cinematógrafo y la computadora. Buenos Aires: Manantial. P. 223. 195 ART topográfica. Este principio fue postulado por el genial investigador español, y premio Nobel Santiago Ramón y Cajal y al que las redes neuronales artificiales y por tanto la inteligencia artificial deben casi un siglo después de Cajal parte de su éxito, es el relativo al modo en el que las neuronas se relacionan entre sí. El método de tinción empleado por Cajal fue el que le permitió dilucidar al microscopio que el sistema nervioso no era una masa continua de células cerebrales, más bien al contrario, una red de neuronas en la que cada neurona conservaba su individualidad. Cada neurona de acuerdo con Caja, es una célula individual que se relaciona y por tanto se conecta con otras neuronas, a través de una conexión muy particular llamada sinapsis.” (Lahoz, p. 392-393). ART Operando por cruzamentos – processos híbridos na arte atual Sandra Rey1 Resumo: O artigo aborda os processos híbridos que caracterizam a produção artística atual, notadamente os processos que envolvem ciências e tecnologia. Está estruturado em duas partes, a primeira trata os cruzamentos como modus operandi que regula os processos atribuindo um caráter inespecífico no que diz respeito à técnicas e mídias, nas produções contemporâneas. A segunda parte levanta aspectos do projeto “DesDOBRAmentos da Paisagem” que supõe transversalidades e entrecruzamentos entre as diferentes práticas artísticas que o englobam. Palavras-chave : processos híbridos, cruzamentos, desdobramentos da paisagem. Abstract: The article covers the hybrids process that characterizes the current artistic productions, especially the practices that involve science and technology. It is structured in two parts, the first deal the crossings as “modus operandi” that regulate artistic procedures, assigning a nonspecific nature regarding to techniques and media, at current art productions. The second part raises aspects of the project “Unfolding of the Landscapes” that implies intersections and crossings among the different art practices that include. Keywords: hybrid processes, crossings, “Unfolding of the Landscapes”. Processos hídridos na arte atual O tema da mesa modus operandi oferece a oportunidade para pensar e debater os cruzamentos entre idéias, conceitos, ações, procedimentos e dados da cultura, com base na tecnologia e nas ciências presentes na arte atual. A hibridação é uma característica da arte de nosso tempo e se inscreve na natureza dos processos que envolvem os meios tecnológicos. Os processos híbridos com base nas tecnologias atuais permitem, não somente constituir e instaurar a imagem, mas também alterar seus elementos cruzando-os com sons, textos, movimentos, circuitos eletrônicos, algoritmos e dispositivos que lhe atribuem interatividade. A principal característica da arte produzida através de cruzamentos com a tecnologia digital é operar redefinições nas relações entre a obra, o autor e o espectador e a capacidade de penetrar, contaminar e operar transversalidades entre as categorias já constituídas, dissolvendo as especificidades. Identificamos processos híbridos como modus operandi em obras instauradas através de cruzamentos conceituais e operatórios entre as diferentes áreas das artes e das ciências e em invenções de procedimentos que propõem desvios, passagens, deslocamentos, migrações e resignificações passíveis de despertar, no receptor, percepções intersensoriais. 196 Operar por cruzamentos implica proceder de maneira aberta. A atuação nas artes visuais, hoje, não exige tanto do artista o domínio de saberes específicos da área e destrezas em técnicas que se encerram em gêneros e categorias mas, em contrapartida, exige habilidades para lidar com os dados que a cultura contemporânea dispõe, demanda capacidade de conceituação e a concepção de uma ideia própria da arte, exige a compreensão do conhecimento científico e tecnológico do nosso tempo e habilidades para conduzir projetos interdisciplinares. Operar por cruzamentos implica conceber táticas para lidar com certos dados provenientes do conhecimento e tirar partido da potência da tecnologia para desenvolver estratégias visando operar desvios nos desígnios da cultura, da política e das ciências, sem aplicação prática outra, que a de reposicionar os conceitos, idéias e concepções de mundo, já estabelecidas. Diante dos inúmeros campos abertos e de incontáveis alternativas e maneiras de fazer, cabe ao artista instaurar seu próprio conceito e modo de fazer arte e disso resultam as infinitas possibilidades de hibridação presentes na arte atual que operam transversalidades entre tecnologias avançados e técnicas tradicionais ou remotas, entre a arte, as ciências, e elementos da cultura. Nos processos híbridos que começam a prevalecer progressivamente desde a alta modernidade, o artista aspira produzir não um objeto (embora a produção de objetos não esteja completamente descartada), mas instaurar uma estratégia de produção recorrendo a fusões e simbioses novas e inesperadas que não segrega gêneros mas, ao contrário, abrangem e cruzam dados do visual, com outros dados provenientes do musical, do literário e do performático ou, da biologia, da genética, da robótica. Identificamos, portanto, nos processos criativos da arte atual um campo aberto à investigações com base em cruzamentos singulares que envolvem questões conceituais, invenções de procedimentos operatórios diversos, concepções de modos de apresentação, de exposição, e estratégias de circulação, que são gestados no âmbito de cada projeto artístico particular. Para Jameson, a arte atualmente é gerada por uma ideia brilhante que combina forma e conteúdo, e pode ser repetida infinitamente até que o nome do artista assuma uma espécie de conteúdo próprio; a ideia é uma espécie de descoberta técnica ou invenção. Nesse ponto, a arte atual, envolvendo tecnologias ou não, se inscreve numa linha contínua com a tradição modernista. 197 ART O modus operandi implícito na instauração dos processos artísticos com base na tecnologia, portanto, não é uma técnica já estabelecida embora o rigor técnico seja um de seus pressupostos, nem uma mídia específica, muito menos um estilo individual que possa ser identificado através de alguma linguagem específica. Se pode afirmar que o modus operandi universal que prevalece nas manifestações contemporâneas e, notadamente as que são provenientes da tecnologia, é designado por uma palavra que fornece o estatuto de inespecificidade que regulam os procedimentos artísticos, hoje: o cruzamento. ART Efetivamente, em retrospectiva, constatamos que a arte do século XX se fixou em romper com os critérios, bases teóricas e com as técnicas tradicionais que sustentaram o fazer artístico no campo das artes visuais durante mais de quatro séculos. A arte atual dá continuidade à insurgência contra todo tipo de especificidade exclusiva e a se abrir a todas as técnicas e cruzamentos possíveis a fim de promover experiências estéticas. Essa desespecificação das práticas artísticas se inscreve plenamente numa continuidade histórica, não é uma especificidade do digital. Ela subentende uma parte preponderante da estética que identificamos desde a metade do século XX e encontra, sim, no digital, os meios para acontecer plenamente. Porém a lógica própria à desespecificação já está bem presente nos movimentos do Cubismo, em Dada e no Surrealismo através de procedimentos tais como a colagem, a fotomontagem e das junções de objetos heteróclitos presentes ready-mades. Entretanto a lógica da desespecificação presente na arte desde inícios do século XX encontra um grande impulso com a evolução tecnológica e o advento do computador, provocando um deslocamento dos centros de interesse e reforçando a tendência em explodir com os critérios clássicos da arte1. Os processos digitais estão sujeitos a variações infinitas, suas possibilidades são ilimitadas não somente para modificar como para regenerar a imagem fazendo-a explodir em mutações surpreendentes. Imensa, também, a capacidade de difusão da arte digital em múltiplos suportes “on e off line”. Porém, apesar de não introduzir uma ruptura estraçalhadora na continuidade da arte, apenas lhe fornecer os meios tecnológicos que lhe convém, seu reconhecimento, condicionado à aceitação no sistema através de museus, galerias e instituições culturais, ainda hoje encontra resistências devido às dificuldades do sistema em adaptar seus critérios às exigências e problemas inerentes à arte digital, tais como conservação, registro, modos de exposição e valor de mercadoria, rápida obsolescência das mídias e suportes. Isso posto para estabelecermos um debate sobre os modus operandi que regulam os processos atribuindo um caráter inespecífico às produções contemporâneas, no que diz respeito à técnicas e mídias, passemos à segunda parte de nossa proposta que levanta aspectos supondo transversalidades e entrecruzamentos entre as diferentes práticas artísticas que englobam o projeto “DesDOBRAmentos da Paisagem”. DesDOBRAmentos da Paisagem: transversalidades e entrecruzamentos Minha forma de fazer arte inicia com o ato mais primário da condição humana sobre o planeta – o ato de caminhar. Se constitui através de uma coleção de imagens dos territórios atravessados, armazenadas em arquivos digitais, e se desenvolve com investigações, em laboratório, sobre possibilidades de rupturas, nos dados visuais das imagens captadas, que não envolvem mudanças de conteúdo, mas abrangem deslocamentos, passagens, desvios e ressignificações, a partir da reestruturação dos elementos visuais, já dados. Dessa forma, as reestruturações que opero nas imagens dos dados visuais captados da paisagem, durante os deslocamentos, levam a que certos elementos subordinados podem tornar198 O projeto “DesDOBRAmentos da Paisagem” configura-se através de três processos em estreita articulação, supondo transversalidades e entrecruzamentos entre as diferentes práticas artísticas que o englobam: a) deslocamentos na paisagem: que se constitui através do ato de caminhar, de atravessar determinados territórios e da experiência estética que daí decorre; b) arquivos de deslocamentos: uma coleção de documentos visuais, de registros fotográficos de fragmentos de paisagens, captadas nos territórios atravessados; c) desDOBRAmentos da paisagem: a instauração de um campo experimental, em laboratório, propondo reestruturações de elementos visuais captados na paisagem, e investigações sobre modos de materialização, de apresentação e exposição das imagens. Deslocamentos na paisagem A ação de atravessar o espaço nasce da necessidade natural de se deslocar para encontrar alimentos e informações indispensáveis à sobrevivência. Entretanto, apesar da necessidade de satisfação de exigências primárias o ato de se deslocar se converteu na ação simbólica de habitar o mundo. Na arte, o ato de caminhar foi exaustivamente experimentado desde as primeiras décadas do século XX, lhe sendo atribuído diferentes estatutos: num primeiro momento como forma de anti-arte, depois enquanto ato primário de transformação simbólica do território, até chegar a uma forma de arte autônoma. O que denomino no projeto de deslocamentos na paisagem envolve a experiência de desterritorialização através de viagens, caminhadas, de trajetos e derivas. Nos deslocamentos na paisagem, portanto, a mobilidade é assumida, levando em conta a experiência de destituir-se das referencias que balizam o dia-a-dia. A pergunta que se coloca no âmbito desse processo é, — de que maneira o deslocamento se torna uma experiência perceptiva e pode adquirir conotações estéticas ? 199 ART se dominantes ou, de modo inverso, elementos dominantes podem tornarse secundários ou subordinados. A idéia de operar esses cruzamentos provém do sentimento e reforçam a sensação que o Real que nos envolve, ou que estamos inseridos, é sempre maior, e escapa ao que podemos perceber através dos sentidos. ART As ações empreendidas consistem em percorrer determinadas extensões em sítios naturais ou contextos urbanos. Essas experiências definem-se pelo lado avesso das ações que pautam o dia-a-dia: não estabelecer nenhum destino ou trajeto pré-determinado, não andar atrás disso, ou daquilo. Simplesmente, deixar-se levar pelo andar, encadeando um passo no outro, às cegas quanto ao rumo a tomar, porém de olhos bem abertos ao entorno que se desvela. O espaço percorrido torna-se percurso, no atravessamento de uma extensão. Constitui-se como experiência de evasão dos hábitos e responsabilidades do cotidiano e de abertura ao que possa advir. Não se trata, portanto, de um andar qualquer, mas de fazer do andar uma experiência perceptiva inteiramente centrada no deslocamento. Encontramos no budismo a palavra apranihita2, que significa ausência de desejo ou de meta. A ideia é essa: simplesmente andar com a atenção inteiramente voltada ao desenrolar de cada passo e ao que podemos perceber no campo visual da paisagem que se desvenda aos nossos olhos. Um caminhar que envolve uma dimensão processual enquanto um fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que engloba a produção de uma arte cujo produto pode se esgotar simplesmente na experiência. Sobre a experiência do “lugar” Didi-Huberman observa, em Genie du nonlieu3, que “o lugar se instaura obrigatoriamente numa retirada […] é preciso o deslocamento do pé – é preciso que o caminhante se afaste – para que sua pegada nos seja visível. É o passo que comanda as grandes distâncias, o passo que conduz o artista a trabalhar o lugar, a se interessar pelas derivas e pelas passagens. O passo retém o artista e, ao mesmo tempo, o convida a exercer um ‘tocar’ o espaço na escala do território”. A experiência do “lugar” é o que se constitui como atitude estética na caminhada. Quando fotografo na paisagem, minha percepção alimenta meu modelo mental e esse modelo se ajusta para acomodar minha percepção, e assim por diante, levando-me a mudar certas decisões na tomada fotográfica. Percebo que essas pequenas acomodações deslocam meus pontos de vista, minha percepção do real, desacomodando meus modelos mentais, sensoriais e perceptivos. Isso altera certos ajustes de minhas percepções. Estabelece-se um processo dinâmico de inteiração da observação do entorno, de entendimento de imaginação e de intenção e é nisso que consiste, até o presente, o que denomino como experiência estética na paisagem. Arquivos de deslocamentos Num primeiro momentos os arquivos de deslocamentos constituem-se a partir com as imagens-documento obtidas durante a caminhada. Em seguida, envolvem processos de ordenação e catalogação das imagens captadas. Os arquivos de deslocamentos, portanto, permitem lidar com as representações resultantes das ações de deslocamento na paisagem, através de processos de classificações e arquivamento das imagens em ambiente digital. Esses documentos visuais retém fragmentos de memória e, de certa maneira, “descrevem” as passagens realizadas, os territórios atravessados. Constituem-se, dessa maneira, como pequenas narrativas visuais de lugares, passagens e territórios percorridos. 200 Se a fotografia sempre opera idas e vindas entre o presente da foto e o que ficou longe do referente e do momento vivido, não podemos esquecer que a imagem fotográfica não é um espelho transparente do mundo. Ela não restitui o real, mas codifica as aparências através de uma convenção. Anne Cauquelin5 situa a invenção da perspectiva no centro das questões que envolvem a paisagem e aquilo que manifesta à sua maneira: a natureza. Ela observa que essa fusão entre paisagem e natureza faz com que esqueçamos que o quê nomeamos paisagem se instaura em torno de um ponto crucial na constituição da aparelhagem simbólica do Ocidente, a perspectiva. A paisagem surge como noção e se instala definitivamente na cultura ocidental com a longa elaboração das leis da perspectiva que estão na base da instauração da imagem fotográfica. Os arquivos de deslocamentos constituem um work in progress de fragmentos de paisagens, e formam um banco de imagens constantemente alimentado a cada caminhada. Os agenciamentos dos arquivos por trajetos, data, lugares e temas atribuem sentidos a essa coleção de dados icônicos do mundo, uma vez que formam uma espécie de diário de bordo dos deslocamentos na paisagem, e já supõem alguma ordenação simbólica do real. desDOBRAmentos da paisagem: ressemantizações do referente Trata-se, nesse processo, da instauração de um campo experimental, em laboratório, investigando possibilidades de recombinações, reestruturações, ressemantizações e de rupturas de certos elementos visuais captados na paisagem. Trata-se, numa mesma seqüência de fotografias, de tomar cada foto como um plano de imagem, e de prospectar como uma pode unir-se à outra, como pode uma contrair-se à outra, como pode uma incrustar-se ou justaporse à outra. Partindo da coleção de dados icônicos do mundo presentes nos arquivos de deslocamentos, em laboratório, busco investigar possibilidades de agenciamento através da edição de certas imagens, seja reconstruindo a vista da paisagem através de diversos fragmentos recortados pelos enquadramentos, seja desidentificando o referente da fotografia a partir de procedimentos provenientes da pintura, tais como justaposição e sobreposição de planos. As operações levam em conta as informações visuais inscritas nas imagens, sem modificá-las. Nessa etapa, colocamos em jogo os conceitos de montagem e de fotomontagem. A fotomontagem é um gênero de expressão visual baseado na justaposição e na fusão semântica de imagens fotográficas sobre um mesmo plano ou suporte. Torna possível ressignificar 201 ART Cada fotografia tomada, implica no registro de paisagens por recortes, visto que o dispositivo fotográfico trabalha por subtração. Assim, cada foto recorta e isola uma porção da extensão, as imagens extraídas do mundo são fragmentos descontínuos, já que o enquadramento é um ato que fragmenta o visível e revela sempre alguma coisa de parcial que implica num resíduo que Dubois chama de ‘fora de campo’ ou espaço off, igualmente importante quanto o que se enquadra na foto: “O que a fotografia não mostra é tão importante quanto o que ela revela”4. ART as informações visuais do referente fotográfico e expandir o processo da imagem através das dobras originadas pelas operações de justaposição e sobreposição. Esse modo operatório que multiplica os dados extraídos do real numa série de combinações possíveis e que não cessa de fazer dobrar a imagem sobre si mesma acaba por provocar mutações na percepção dos fragmentos de paisagens, transformando-os em um espaço sem topos, não localizável, porém, aberto a acontecimentos: “A dobra que vai em direção ao infinito”, segundo Deleuze6. O processo de instauração de novas imagens a partir das fotografias tomadas do real, durante as caminhadas, é pautado por experimentações de protocolos que vou criando e adaptando, a partir de procedimentos provenientes do conceito de montagem e de princípios da fotomontagem, que possibilitam uma criação livre, sem entraves, independente das formas naturais. Nessa etapa do projeto, a fotomontagem é um sistema semiótico que permite a criação de uma imagem a partir de diversos métodos e fundamentos epistemológicos. O agenciamento de fragmentos virtuais dos dados visuais captados na paisagem, associados uns aos outros no interior de um mesmo espaço visual, permitem integrar pequenos extratos dos deslocamentos e do entorno percorridos, para formar uma unidade nova de forma e de conteúdo. Do ponto de vista conceitual os princípios de fotomontagem respondem produtivamente a uma atitude diferente de tratar tanto a fotografia como a realidade, ampliados pelos processos digitais. Possibilita expor e tratar a experiência a partir de fragmentos visuais independentes para construir uma imagem e ampliar a margem semântica dessa experiência. Referências Bibliográficas CARERI. Walkscapes, walking as an aesthetic practice. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 2005. CAPISTRÁN, Jacob. Fotomontage. Madrid: Ed. Cátedra, 2008. Cauquelin, Anne. L’invention du paysage. Paris : ÜF, 2004, p.101. COUCHOT, Edmond. L’art numérique: dissolution ou hybridation?, Revue Recherches en Esthétique, C.E.R.E.A.P. nº 6, octobre, 2000, p. 25-32. . A Tecnologia na arte, da fotografia a realidade virtual. Tradução Sandra Rey. Ed. UFRGS, 2003. DANTO, Arthur. Após o fim da arte: A arte Contemporânea e os limites da história. São Paulo. Odysseus Editora. 2006. DEBORD, Gui. Théorie de la dérive, 1958. in http://www.agbsaopaulo.org.br/node/109, Didi-Huberman, Georges. Genie du non-lieu: air, poussière, empreinte, hantise. Paris: Lês éditions du minuit, 2001. DELEUZE. A dobra, Leibiniz e o Barroco, trad. 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L’acte photographique et autres essays. Paris, Nathan, 1990. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appelzeller, São Paulo, Ed. Papirus, 2000, p. 179. 6 Invenção da Paisagem, 203 ART Neuroestética/bioestética no contexto da arte computacional Suzete Venturelli1 Resumo: Partindo do pressuposto que o prazer que sentimos está relacionado com a aquisição de conhecimento, a partir da nova ciência do cérebro, neurobiologia, surgiu um grande número de estudos interessados na produção e a fruição das artes, como fenômeno biológico. Um dos teóricos, o inglês Semir Zeki denominou de neuroestética, o mais recente campo da ciência interessado em entender melhor a relação entre o cérebro e as artes. Para ele muito se tem escrito sobre arte, mas nunca sobre o cérebro visual, através do qual toda a arte é expressa, na concepção ou na execução ou na apreciação. Ou seja, não relacionaram ainda as funções da arte com as funções cerebrais. A razão desta omissão reside na concepção da visão e do processo visual que foi em grande parte ditado por fatos simples, mas poderosos, derivados da anatomia e da patologia. A pergunta que neurologistas, criticos e historiadores da arte poderiam fazer é: porque é que esta capacidade cognitiva se desenvolveu nos humanos? A conclusão que se chega é que a função da arte é uma extensão da função do cérebro. A partir desta definição encontramos o germe da teoria da arte que contem sólida fundamentação biológica que une os pontos de vista de neurobiólogos e de artistas. Palavras-chave: Neuroestética, arte computacional, bioestética Abstract: This paper presents the main ideas about the pleasure we feel is related to the acquisition of knowledge from the new brain science, neurobiology, which emerged a large number of studies interested in the production and enjoyment of the arts, as a biological phenomenon. One of the theorists, the English Semir Zeki, called the neuroesthetics, the most recent field of science interested in understanding the relationship between the brain and the arts. For him, much has been written about art, but never about the visual brain, through which all art is expressed in the planning or execution or appreciation. The conclusion reached is that the function of art is an extension of brain function. Based on this definition we find the seed of art theory that contains solid biological foundation that unites the views of artists and neurobiologists. Keywords: neuroesthetics, computer art, bioesthetics Hoje a noção de arte para as ciências humanas é vista como uma categoria especial de atividade humana. Por exemplo, Wartenberg (2006) discute perspectivas diferentes sobre o que faz com que um objeto seja ou não arte. Ele baseia-se em pontos de vista filosóficos que descrevem a arte como “imitação” (Platão), “Redenção” (Nietzsche), ou “comunicação de sentimento” (Tolstoi), há mais visões recentes de arte como “fetiche” (Adrian Piper), “virtual” (Douglas Davis) ou computacional, no nosso caso. A arte também é definida do ponto de vista dos espectadores, ou seja a arte é aquilo que é categorizado pelos espectadores como tal (Bourdieu & Darbel, 1997; Dewey, 1989). 204 A base dos conceitos que se originam na pergunta: qual é o sistema do cérebro para sentir a beleza? foram inicialmente respondidas entre 1860 e 1970, a partir da demonstração que a retina não é difusamente ligada a todo o cérebro, ou mesmo à metade do cérebro, mas apenas a uma bemdefinida circunscrita parte do cortex cérebral, denominado de cortex visual primário. O cientista Semir Zeki afirma que a arte é um subproduto da principal função evolutiva do cérebro, que é a aquisição de conhecimento, pois o cérebro humano com seus 100 bilhões de células nervosas e mais de cinqüenta substâncias neurotransmissoras, cujo potencial de conexões entre os neurônios chega a 500 trilhões, proporciona comportamento complexo a partir de diversos grupos de células ligados por circuitos. O cientista diz que a metáfora mais freqüente para se entender o processo cerebral de transmissão e conexões citado nos novos livros de neurologia é a das cascatas neurais – grandes seqüências de ativação de áreas do cérebro, às vezes bastante afastadas entre si. Especialização e coordenação – essa última em níveis às vezes insuspeitados – são dois princípios que governam o cérebro. Enquanto ajudam a compor uma nova “teoria geral do cérebro”, cientistas interessados em arte fazem achados num terreno anteriormente percorrido apenas por filósofos e críticos culturais. Quando participei na Universidade Sorbonne, em Paris, no início dos anos 1980, do curso ministrado por François Molnar, que fez parte do grupo Groupe de Recherche d’Art Visuel, trabalhando mais especificamente com sua esposa Vera Molnar, como especialista em psicofisiologia da visão, ele pediu ao nosso grupo de estudantes que respondem a questão O que é a beleza? A partir da apreciação que levavam a escolha e classificação como belas, feias ou neutras de pinturas do artista Mondrian. O resultado mostrou que as que possuíam mais branco como predominante na cor agradavam mais. Mas porque o branco agradou mais ao grupo de estudantes de arte da Sorbonne? Não obtivemos resposta que pudesse naquele momento esclarecer o resultado. Vera e François Molnar receberam formação clássica na Escola de Belas Artes de Budapeste, entre 1942 e 1947. Em 1946, ela passa a trabalhar com formas não-figurativas, ou seja, abstração chega gradualmente por motivos naturais. No ano seguinte, mudou-se para Paris. Eles logo desenvolveram uma arte geométrica abstrata e se recusam a realizar composição. O trabalho é baseado na utilização de sistemas: conjuntos, permutações e rotações de linhas e formas geométricas simples, ocupando o espaço de forma racional e controlável. Eles participam da criação, em 1960, do Centre de Recherche d`Art 205 ART A natureza da arte tem sido um tema de interesse filosófico, desde os dias da Grécia antiga. Mas a experiência da arte e, conseqüentemente, a percepção e avaliação da arte, parece particularmente interessante no contexto tecnocientífico atual. Para uma compreensão psicológica da percepção da arte e apreciação estética, algumas questões emergem e muitas são respondias. ART Visuel - C.R.A.V. que surgiu do GRAV, com Horacio Garcia, Julio Le Parc, François Morellet, Francisco Sobrino, Joël Stein, Jean-Pirre Yvaral. François Molnar, logo depois deixou o C.R.A.V. e passou a se dedicar à pesquisa teórica sobre a psicofisiologia da percepção visual. A partir de 1968, ela usa computadores e executa obras cujos componentes plásticos e sua distribuição são determinados pelos programas em que o acaso pode intervir. Ela desenvolveu o programa “Molnart” em 1976, nesse ano foi organizada sua primeira exposição individual (London Polytechnic of Central), retirando-se voluntariamente do mundo da arte. Nos anos 1980, eles se tornaram membros fundadores do Centre de recherche expérimentale et informatique des arts visuels da Universidade de Paris-I, onde também trabalharam como professores. François Molnar e Robert Frances inauguraram o Laboratoire de psicofisiologie, que se transformou no Centro de pesquisa de imagens, cultura e cognição (Cricc), cuja história remontas aos anos 60, quando foi inaugurado o Instituto de Estética e ciências da arte, por Étienne Souriau. Em 2006, quando ocorreu a sua integração no Laboratoire d’Esthétique Théorique et Appliquée (Leta) criado por Marc Jimenez, o Cricc integrou também o campo teórico de estudos culturais. O componente cultural permitiu integrar as pesquisas desenvolvidas por Bernard Darras. Outras experiências são realizadas em vários laboratórios, que visam entender por que a arte e a estéticas são tão importantes e essenciais. A experiência realizada no University College de Londres, por Semir Zeki e sua equipe envolveu um grupo de pessoas de qualquer profissão que classificaram 300 pinturas como belas, feias ou neutras, numa escala de 1 a 10. O interessante é que depois, as mesmas pinturas lhes foram reapresentadas, enquanto seus cérebros eram monitorados numa máquina de ressonância magnética. Uma gama diversa de estruturas cerebrais reagiu durante a experiência. Concluiu-se, segundo o cientista, que o córtex orbito-frontal medial e o córtex motor eram as áreas de fato ligadas ao julgamento do belo. O córtex orbito-frontal medial, relacionado ao prazer e às recompensas, apresentou atividade mais intensa diante de quadros belos. A atividade era maior para um quadro que recebera nota 9 do que para um quadro nota 7. O oposto aconteceu com o córtex motor: maior atividade diante da feiúra. Uma região na parte frontal do cérebro “acende” quando desfrutamos a uma obra de arte ou de uma música agradável. Os cientistas afirmam que a única característica comum a todas as obras de arte, qualquer que seja sua natureza, é que todas levam a uma atividade numa mesma região do cérebro. A beleza para o cientista é um aumento de fluxo sanguíneo na base do lobo frontal. Além disso, diz que os artistas são neurobiologistas intuitivos, que exploram e desvendam regras da percepção. Zekir gosta de citar uma frase de Picasso: “Seria muito interessante preservar fotograficamente as metamorfoses de uma pintura. Talvez assim se pudesse descobrir o caminho percorrido pelo cérebro para materializar um sonho”. É isso que a neurociência faz ao desvendar o que um cérebro calcula e o que cria. 206 ART Motivações, emoções em harmonia com a razão Na busca de conhecimento, verifica-se a forte relação entre a arte e a ciência. Enquanto a ciência busca a verdade universal, arte procura a comunicação intersubjetiva num constante exercício de equilíbrio entre a emoção e a razão. A hipótese que se apresenta, em particular na neuroestética, é que as funções cognitivas; consciência e atividade artística estão associadas com o maior desenvolvimento da organização cerebral, que durante a nossa evolução, se manifestou principalmente com a expansão do córtex cerebral, em estreita relação com o sistema límbico que é a unidade responsável pelas emoções. Platão distinguia a idéia de uma coisa, quando inteligível, do modelo da coisa que o artesão tinha no pensamento, da coisa executada, por exemplo, por um marceneiro e dela pintada numa parede. As equivalências na neuroestética destas distinções são: o conceito – primeira imagem, o conceito – objeto fabricado e finalmente a pintura na parede ou numa tela, como representação do conceito. Encontramos aqui a definição de arte como mimese traduzida como representação/imitação. A definição de arte em geral como imitação da natureza foi legitimada nos século 16 e 17, tendo Aristóteles como autoridade no assunto. Ainda hoje, muitos intérpretes vêem isso como a marca mais evidente da influência de Aristóteles sobre a constituição da teoria da arte. Para Aristóteles, de um modo geral, a arte (tekhnê) ou bem executa aquilo que a natureza é impotente em realizar ou a imita. As coisas artificiais são produzidas para qualquer finalidade, assim como as coisas da natureza, pois nas coisas artificiais e naturais as conseqüências e os antecedentes possuem entre elas a mesma relação. A mimesis poética a que se refere Aristóteles, não diz respeito a natureza mas sim à história; ela é uma imitação das ações humanas (mimesis praxeos [μίμηὓιὖ πρᾶξεωὖ]). Ao atribuirmos a Aristóteles a idéia de que a arte, o sentido artístico, é uma imitação da natureza, implica que estamos fazendo uma transferência de significado dos termos do plano da física para o plano da poética, da arte no sentido de tekhnê para a arte no sentido de poiesis (CARTERON, 1973). A tradução da tekhnê por ars, e depois por “arte”, ocorreu em função da língua grega não possuir uma palavra para o que chamamos de arte, no sentido de belas artes, ou seja, confunde no mesmo termo dois significados que nas línguas européias, desde o Renascimento, têm procurado distinguir, a saber: a arte do artista, o pintor ou escultor, e a arte do artesão, que é o trabalhador que incorpora a distinção estabelecida a partir da Idade Média entre as artes liberais e ofícios. Seu pensamento mostra que a atividade artística é uma tendência natural fonte de prazer e instrumento de conhecimento, posto que é mimese. A mimese não nos deixa enganar. Fazemos a diferença do que é real e sua imagem. A arte não é só agradável, mas é útil para o indivíduo. A arte não é somente representação, ela se integra na natureza... Hegel dizia que a arte não é somente uma imitação da natureza, pois ela 207 ART realiza um acordo entre o sensível e o inteligível. O belo é a manifestação sensível da idéia, do espírito (cérebro?). Na neurobiologia, segundo Jean-Pierre Changeux (2010), a mimese aporta questões relacionadas à fisiologia, ou seja, à percepção, à psicologia e à sociedade. Por exemplo, a percepção de relações na imagem pode ser comparada àquelas dos ritmos endógenos e harmonizados sobre o modelo da música? Ou ainda, mais especificamente como o inteligível interage com o sensível no mundo interior do artista no espaço estético consciente? Se o enfoque são os códigos, discutindo a idéia de que o artista se expressa pela arte, seu cérebro, neste caso, é o reflexo da sociedade, como sugere Max, ou a sociedade reflete o cérebro do ser humano? Considerando as pesquisas e trabalhos realizados nos últimos 30 anos, que a obra de arte tem traços em comum com o “modelo científico”: ela é ao mesmo tempo serendipite, ocorre por acidente, reducionista e reveladora. O conhecimento é um prazer para o artista, mas também o é para outras pessoas. Paradoxalmente, diz Changeaux, para mostrar a verdade muitas vezes foi necessário enganar. Por exemplo, a ilusão do cavalo a galope com as quatro patas no ar pintado por Derby d`Épsom de Géricault ou ainda a posição impossível do homem que anda do escultor Rodin, levou-o a escrever que é o artista que diz a verdade e que é a fotografia que mente, pois na realidade o tempo não pode ser parado. Mimese, imitação/representação x simulação Recorrendo a processamentos digitais, a arte computacional, retoma os debates sobre a arte como mimese, pois muitos artistas se interessam por aspectos estéticos envolvendo a natureza artificial, assim como a vida num contexto mais amplo. Por exemplo, na exposição Humano_pós_humano, de 2005, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, a obra Contato, simulava partículas de água que se movimentavam em função da participação do interagente, quando dançava diante da instalação, que continha uma câmera, para captura do movimento. A simulação contida na imagem projetada provoca o surgimento de formas abstratas, não representativas de objetos reais, mas que modificam o olhar nos ensinando a ver coisas da natureza impossíveis de serem representadas com as técnicas tradicionais, envolvendo principalmente parâmetros que se modificam em tempo real. O termo simulação tem uma relação histórica, tanto com a ciência quanto com as artes. Na ciência, o termo se aproxima do sentido de simulação de fenômenos, em oposição à experimentação, e na arte, falamos de simulação em oposição ao simulacro/imitação. A simulação tecnológica é criada com o computador e aproxima os campos da tecnologia e da arte, pois permitiu o surgimento de um novo gênero de simulação. Da ciência à arte, de que natureza ela é composta? Na ciência, a 208 As tecnologias digitais permitem reconstituir completamente um fenômeno, e reproduzir, para reviver o mesmo em seus princípios naturais. Vida artificial, tecnologias de inteligência artificial, algoritmos genéticos, redes neurais, biotecnologia e outros. Tecnologias que têm uma base em sistemas vivos recriam artificialmente, a natureza, e a complexidade de alguns sistemas através de programas de computador. Ou seja, comportamentos modelados, que podem ser organismos complexos, e sua interface oferecem uma nova natureza. Este paradoxo perceptual marca a interferência gerada pela simulação numérica: natureza, artifício, original, duplo, reprodução, imitação, simulação e ilusão se juntam e se misturam. O que podemos vislumbrar em todo caso, é que a relação entre natureza e artifício abrange implicações conceituais na ciência, arte, estética.... Explorando e desvendando regras da percepção O filósofo David Hume, argumentava que a beleza está em quem vê, e não no objeto. Para Deleuze, a filosofia de Hume é uma crítica aguda também da representação. Segundo o autor: “Hume não faz uma crítica das relações, mas uma crítica das representações, justamente porque estas não podem apresentar as relações. Fazendo da representação um critério, colocando a idéia na razão, o racionalismo colocou na idéia aquilo que não se deixa constituir no primeiro sentido da experiência, aquilo que não se deixa dar sem contradição numa idéia, a generalidade da própria idéia e a existência do objeto, o conteúdo das palavras [...]. Nesse sentido, a razão será chamada instinto, hábito, natureza” (DELEUZE: 2001, p. 22). Hume compara a imaginação a uma coleção de percepções e faz ver que ela opera mediante princípios de associação, onde o espírito é antes um acontecer a partir das percepções, se originando na relação com as mesmas, e não pode ser compreendido como algo que torna possíveis as percepções. O filósofo pensa o espírito como um feixe de percepções e não mais como a condição para as mesmas, por isso o destaque de Deleuze em mostrar que o espírito (cérebro?) é idêntico à idéia de algo. Partindo do pressuposto que a beleza está em quem vê e não no objeto, relataremos algumas experiências que visam demonstrar o interesse, sobretudo em estética e suas relações com a psicobiologia, ou seja, com os aspectos orgânicos, biológicos, da experiência do belo. Daniel Berlyne (1970), professor de psicologia da universidade de Toronto, 209 ART simulação é um método usado para estudar teoricamente a atividade ou ação de um fenômeno real, ou melhor, os resultados de uma ação em um elemento real. A simulação substitui a experiência na realidade, mas mantém o mesmo quadro, para depois observar os resultados. Na arte a simulação é imitar, pois adota-se atitudes e comportamentos de uma pessoa ou coisa. Ele simula, especialmente na arte do teatro. É uma forma de mimetismo, a imitação, sem necessariamente com intenção de causar a ilusão. ART além de ter interesse em entender os fatores que levam certos indivíduos a se motivarem para produzir arte, passou a se interessar por questões sobre os estímulos visuais. Estudando as respostas fisiológicas, como o aumento da freqüência cardíaca, de hormônios percebidos por meio de estímulos visuais, verificou que o novo, o complexo e a ambigüidade provocavam um estado de alerta que influenciava diretamente nas respostas emitidas, bem como no prazer que os estímulos insinuavam. Para tanto, mostrou figuras com diferentes graus de complexidade, variando o tempo e a repetição de exposição das mesmas. Elas eram classificadas como muito agradáveis até muito desagradáveis, em diferentes momentos da experiência. As experiências mostram que figuras simples e estímulos monótonos praticamente não interessavam e eram menos prazerosos a cada apresentação. Já os estímulos novos e os complexos estimulavam, e se tal estímulo fosse moderado as figuras eram consideradas agradáveis, mas se fosse muito intenso, ocorria o desprazer. No entanto, com a apresentação repetida das figuras complexas, a novidade reduzia-se lentamente, não a ponto de tornar a experiência tediosa, mas suficiente para reduzir a intensidade do alerta gerado, tornando a experiência agradável. A sensação de compreender melhor a figura a cada nova apresentação levava à redução do alerta, produzindo prazer semelhante à resolução de um enigma. Sensações virtuais provocadas pela obra Som Interativo Digital, a seguir apresentada. Figura 1-Som Interativo Digital (SOM-ID), 2011. Projeto MídiaLab: Kiko Barretto, Claudia Loch, Victor Valentim, Suzete Venturelli, Roni Ribeiro, com a colaboração de Camille Venturelli Pic. 210 Considerações finais Ellen Dissanayake (1992) debate no seu Homo Aestheticus sobre a emoção estética. Para ela, a criação e a contemplação estética constituem primeiramente uma relação empática, termo criado por Theodore Lipps em 1897, na Alemanha, que significa a capacidade de se identificar ao outro, de sentir o que ele sente. A empatia, diz a autora, intervém na arte num diálogo intersubjetivo entre as figuras, no caso da pintura, empatia do espectador com as figuras e entre o artista e o espectador. A empatia toma por base a “imitação interior”, pois o espectador projeta sua personalidade sobre o objeto contemplado. Para a neuroestética, as bases neurais da empatia e mesmo da simpatia são abundantes. Sabe-se que os neurônios do córtex temporal respondem às emoções, as intencionalidades de ações. Por outro lado, ela defende o que chama de “espécies-centrismo” em estética, preferindo ver a arte contra um brackdrop de quatro milhões de anos de evolução humana. Em um sentido modificado, ela pretende construir uma espécie de sociobiologia da resposta humana estética, começando com as implicações do fato bruto de que a arte faz as pessoas se sintam bem. Arte persiste em todas as sociedades humanas, e deve fazê-lo por algumas razões. Entre elas está o prazer que dá, e nada tão fortemente agradável e convincente como as artes, provavelmente, de alguma forma contribui para a sobrevivência biológica. Referências Bibliográficas CARTERON, H. Aristote Physique (I-VIII). Paris: les belles lettres, 1973. BERLYNE, D. Novelty, complexity, and hedonic value Perception & Psychophysics, 8 (5), 279286 DOI: 10.3758/BF03212593, 1970. CHANGEUX, Jean-Pierre. Sobre lo verdadero, lo bello y el bien. Un nuevo enfoque neuronal. Buenos Aires: Katz Editores, 2010. . Raison et Plaïsir. Paris: Odile Jacob, 2002. CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciência humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2006. DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed.34, 2001. DISSANAYAKE, E. Art as a human behavior: toward an ethological view of art. Journal of 211 ART O artista Maurits Cornelis Escher aparentemente sabia disso. Suas gravuras e desenhos levam a uma sensação de estranhamento inicial que a cada nova exposição diminui um pouco. No entanto, como possuem algo de impossível, paradoxo, provoca tensão suficiente para estimular o alerta, dando à experiência estética um sabor constante de novidade. Ao falar sobre suas criações Escher mostrou que, mesmo não sendo psicólogo, conhecia perfeitamente esse processo, pois sabia que havia certo enigma nelas, mas que não era captado imediatamente pelo olhar. Enigma provocado pelo mundo do paradoxo que ilustra a construção do impossível. ART Aesthetics and Art Criticism 38(4): 397-406, 1980. Disponível em: http://ellendissanayake.com/ publications/pdf/EllenDissanayake_5618127.pdf. Acessado em 12/05/2011. . Homo Aestheticus: Where Art Comes From and Why. New York: Free Press. 1992. ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Editado por Michael Schroter. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowski. São Paulo: Editora da UNESP, 2002. 1 Artista pesquisadora da Universidade de Brasília e bolsista do CNPq. 212 ART Caracolomobile: um simbiote interativo Tania Fraga1 Resumo: Este ensaio tece sinteticamente reflexões sobre a hibridização no campo da artecomputacional em sua relação com a distribuição pervasiva de microchips, atuadores e sensores por objetos e pelo espaço físico. Pergunto-me se é possível integrar arte, arquitetura e design para o desenvolvimento de regimes produtivos. Especulo sobre modos potenciais a serem explorados por artistas, designers e arquitetos para amplificar possibilidades latentes nos modos de produção, armazenamento, recepção, difusão e transmissão dos produtos computacionais. Esse campo de investigação forma um vasto arsenal que permite focar e expressar agenciamentos relacionados com os aspectos sensíveis, sensoriais, poéticos e estéticos que acontecem quando a arte e as tecnociências se hibridizam. Essas reflexões emergem da prática artística e se entretecem com fatos relacionados com o conceber e produzir a obra interativa Caracolomobile. Palavras-chave: arte computacional robótica, realidade virtual, organismos artificiais Este ensaio pauta-se sobre algumas perguntas que tenho presente ao conceber e produzir obras artísticas interativas decorrentes da hibridização das artes com as tecnociências. Inquiro, sem xenofobia, se é possível manter a mente aberta para novas investigações tecnológicas sem, servilmente, repetir os modelos importados que nos conservam num provincianismo cultural em que predominam os modelos europeus e americanos. Pergunto-me se é possível integrar arte, arquitetura e design para o desenvolvimento de regimes produtivos de meta-objetos1 criados com o auxílio de computação física (O´SULLIVAN & IGOE, 2004: p. XIX). Indago o que é necessário desenvolver para implementar possibilidades que estão latentes nos modos de produção, armazenamento, recepção, difusão e transmissão dos produtos computacionais. Modos de produção que acredito estarem em gestação. Modos de produção que demandam ainda muita investigação tanto para o desenvolvimento de ferramentas como de dispositivos que possibilitarão seu pleno desabrochar. Como essas considerações permeiam o desenvolvimento de meu trabalho, vou focar essas discussões enquanto elaboro situações que emergiram no processo de construção do organismo artificial Caracolomobile. 213 ART Figura 01: Caracolomobile – instalação na exposição Emoção Art.ficial 5.0, realizada de 01 de julho a 05 de setembro de 2010 A obra e o processo: Caracolomobile2 foi selecionado pelo Instituto Itaú Cultural para ser exposto em uma instalação interativa realizada para a bienal de arte e tecnologia Emoção Art.ficial 5.0. O organismo é composto por sistemas integrados de atuadores e válvulas pneumáticas articulados através de sensores, microchips, programas computacionais (softwares) e sistemas de controles. Apropria-se de alguns procedimentos robóticos e de automação industrial e foi construído para atuar em simbiose com o interator. Para isso, foi desenvolvida uma interface visual usando um capacete neural (neural headset da Emotiv3) que capta através de 16 sensores biométricos neurais as flutuações da mente daquele que se coloca em simbiose com o organismo. Este pode reagir, reconhecer e expressar características comportamentais que estou denominando, por analogia com os organismos vivos, como afetivas. Falar de afetividade e emoções em relação a tais organismos requer destacar que esses comportamentos são abordados aqui sob uma perspectiva muito rudimentar, pois esse tipo de pesquisa é ainda muito incipiente e depende da integração de áreas de conhecimentos bastante diversificadas. É, no entanto, através dessa integração que artistas, designers e arquitetos vão defrontar-se com a possibilidade de conceberem produtos complexos e que requerem equipes transdisciplinares para sua realização. As investigações que propiciam projetar e construir organismos artificiais estimuláveis e afetivos precisam acompanhar os desenvolvimentos das tecnologias de materiais e das tecnologias computacionais e robóticas que possibilitam agenciar o conjunto complexo de fatores envolvidos na produção de um organismo similar. Através do agenciamento desses fatores, artistas, designers e arquitetos podem desenvolver produtos muito diferentes e interessantes. A tarefa é bastante complexa, embora atualmente existam modos de facilitar essa abordagem. É preciso, no entanto, estar muito atento, pois as aparentes ‘facilidades’ e a complexidade dos problemas podem, também, provocar uma 214 Figura 02: Nanoshelters, arquiteturas visionárias metamorfoseáveis 215 ART explosão exponencial da mediocridade. Caso os processos não sejam bem compreendidos e os procedimentos de uso de ‘templates4’, ou gabaritos pré-formatados de soluções, sejam usados sem crítica, poderemos velos tornarem-se em modos dominantes de facilitação da produção. Uma pesquisa no Google com a palavra ‘templates4’ trouxe aproximadamente 117.000.000 resultados. Em sua maioria esses resultados se referem a algum tipo de facilidade para a personalização de diferentes aspectos do design. Não tenho nada contra o uso de ‘templates’. Apenas considero que as novas tecnologias de materiais e as tecnologias numéricas aplicadas ao projeto e produção de obras de arte, de arquitetura e de design de objetos possibilitam extenso uso de novas morfologias geométricas e topológicas cujo desenvolvimento abre um amplo campo de investigações (FRAGA & LOURO: 2008, p 1-7). Caracolomobile resulta de investigações desse tipo; investigações sobre tipos de estruturas configuradoras de formas que sejam capazes de produzir um máximo de movimentos com a aplicação de forças mínimas (FRAGA & LOURO: Op cit). Elabora possibilidades morfológicas para essas formas, estudando suas leis de crescimento e desenvolvimento, analisando a distribuição dos esforços que atuam sobre elas, articulando maneiras de mover suas partes, e desenvolvendo a modularidade dos seus elementos componentes. ART Figuras 03 e 04: Caracolomobile – simulação do projeto da instalação Os primeiros estudos visando à contrução de obras desse tipo partiram de geometrias simples, como o cubo-octaedro. Algumas organizações fractais foram também estudadas mas, nas escalas macro utilizadas, apresentaram problemas por desestruturarem as formas. Nesse percurso, voltei-me para as espirais que são formas recorrentes no meu repertório formal. Embora na natureza as conchas não sejam articuladas, percebi que posso triangular espirais em conjuntos articulados de modo similar ao que fazem as plantas quando crescem. Estruturas treliçadas desse tipo possuem um grande potencial para crescerem e moverem-se. Elas me propiciaram vislumbrar a ponta de um iceberg e antever os problemas que se iniciavam. ` Figura 05: Estudo de estrutura móvel através de pneumática , utilizando a geometria do cubo-octaedro 216 Figura 06: Protótipo do Caracolomobile realizado com canos de PVC e cordas de sisal azul Quando, em março de 2010, recebi o prêmio do Instituto Itaú Cultural que me permitiria construir o organismo, finalizei o projeto executivo e desenvolvi seus inúmeros detalhes. Concebí então um sistema de tubos infláveis que trabalhavam como uma traqueia. Na primeira montagem, essa solução não se mostrou forte o suficiente e optei por integrá-la com atuadores pneumáticos. Foi preciso desenvolver os conectores pois os encontrados no mercado são direcionados para indústria e não para produtos artísticos e ficavam muito distante dos objetivos buscados. Portanto, para construir o organismo que havia concebido, foi preciso 217 ART Assim, dei início à construção de protótipos para testar a hipótese formulada e desenvolver maneiras de dar movimentos a essas estruturas. Iniciei usando tubos de PVC revestindo-os com borracha da Amazônia e posteriormente sisal. Inicialmente para mover o protótipo usei câmara de ar de pneus de bicicleta. Elas eram baratas e me mostraram a viabilidade do projeto mas não eram adequadas para as restrições poéticas, funcionais e estéticas que o balizavam. Para que não houvesse flexão nos tubos maiores eles precisavam ser grossos e espessos. Canos de PVC precisam ser revestidos. Todas essas restrições iam contra a proposta poética e estética que embasam meu trabalho e que têm na leveza, flexibilidade e na simplicidade seu principal fundamento. Ao construir o Caracolomobile eu queria construir um robô diferente da imagem geralmente associada aos robôs. Queria um robô que fosse muito leve visualmente, bonito, que pudesse ser visto de todos seus lados e muito flexível. Esse é o motivo pelo qual o chamo de organismo artificial e não de robô. ART estudar muitos materiais, como por exemplo o titânio, o PU (resina de poliuretano) e o silicone. Para obter uma estrutura resistente, leve e que pudesse ficar sem revestimento, escolhi o titânio anodizado5 na cor azul violeta. Conectores pneumáticos de engaste rápido e a modulação dos atuadores facilitam a montagem, desmontagem, transporte e manutenção do organismo. Os nós vermelhos que pontuam e delimitam a espiral dando molejo à forma foram realizados com silicone flexível de alta resistência. Intento realizar novamente, no futuro, esses detalhes utilizando impressoras 3D conectadas diretamente do computador de modo que cada nó possa incorporar as variações decorrentes de sua posição na estrutura. Para obter o tipo de simbiose visceral entre humanos e máquinas que buscava, usei um capacete neural da Emotiv. Esse dispositivo possui 16 sensores capazes de captar muitas expressões faciais, os estados afetivos e uma série de palavras pensadas pelo usuário. Como teria apenas 3 meses para desenvolver todo o trabalho, optei por não usar nele a suíte cognitiva. Face à complexidade que traria para a logística da exposição, optei também por ter interatores treinados para usar o capacete, não o disponibilizando para o público em geral. O objetivo inicial era ter o organismo se expressando em resposta aos estados emocionais e expressivos desse interator, no enteanto emergiu por parte desses usuários uma busca de controlar o organismo. Esse fato não foi planejado mas abre perspectivas para investigações futuras. Figura 07: Caracolomobile – detalhe de um nó estrutural 218 ART Figuras 08 e 09: Caracolomobile - aberto Figura 010: Caracolomobile - fechado 219 ART Reverberações: A maneira como uma tecnologia é usada depende das escolhas de quem dela se apropria. Acredito que, em parte, a ‘fetichização’ de modelos e ‘templates’ decorre do modo como algumas empresas utilizam-se de marketing para divulgar produtos incipientes e pouco consistentes. Em minha opinião, cabe aos artistas, arquitetos e designers conceber produtos que utilizem plenamente o potencial imanente a tais tecnologias e não aceitá-las de modo acrítico. Por outro lado, cabe aos teóricos e críticos assinalar as falácias do sistema apontando-nos direções possíveis. A relação dos artistas, designers e arquitetos com os processos criativos, produtivos, receptivos e de difusão/transmissão desses produtos é recente e está mudando dramaticamente nesta última década. Para a realização de tais obras é preciso compreender o conjunto complexo de fatores que as fundamenta. É preciso, também, estabelecer as conexões entre elas e os processos que estão redefinindo o modo de produção industrial contemporâneo (FRAGA: 2008, p 305-312). Assim, agrupar e interconectar criadores e empresas interessadas no desenvolvimento de projetos focados em idéias inovadoras possibilitaria, a médio prazo, a emergência de novos modos de agenciar os fatores complexos intercorrentes ao novo modo de produção que se implanta na sociedade contemporânea. Outro foco interessante de desenvolvimento refere-se às aplicações interativas e aos conjuntos de artefatos, de dispositivos, de ferramentas e instrumentos de programação open-source seguindo paradigmas de programação6 que possibilitem integrar a diversidade com as funcionalidades e características específicas da área de arte, arquitetura e design. É preciso desenvolver metodologias para projetar produtos usando tecnologia numérica e estabelecer diretrizes para modulação, compatibilidade e interoperabilidade das ferramentas existentes. É importante, também, traçar metas para o estabelecimento de padrões de qualidade dos produtos e processos envolvidos. É relevante não esquecer a importância do debate entre investigadores, artistas, arquitetos, designers, cientistas, teóricos e programadores quanto aos assuntos relacionados ao desenvolvimento do potencial poético, estético, funcional e comercial de produtos decorrentes da aplicação das novas tecnologias numéricas de concepção e de produção. Finalizar um projeto como o do Caracolomobile foi uma experiência muito estimulante, revigorante e mostrou-me que o panorama delineado acima não é ficção de minha fértil imaginação mas se embasa nas profundas mudanças em processo na nossa sociedade. A partir de agora, posso dar continuidade a outros Caracolomobiles, com outros problemas a resolver, e outros protótipos a produzir. Considero que esses problemas e processos, embora nascidos no campo tão desvalorizado das artes, trazem sementes de um futuro que gostaria de ver emergir. Venho desenvolvendo o conceito de meta-objeto para caracterizar famílias topológicas de objetos virtuais criados e disponibilizados com o auxílio de aparatos computacionais. Esses meta-objetos podem ser personalizados para atender aos desejos e necessidades dos usuários finais. Eles podem ser manipulados para a criação de produtos personalizados. Por exemplo, podemos imaginar a compra online de uma roupa cuja escolha será totalmente personalizada 220 Referências bibliográficas: ADDINGTON, M. & SCHOEDEK, D.. Smart Materials and Technologies. Oxford: Elsevier, 2005. ARANTES, P.. Arte e Mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Senac, 2005. COUCHOT, E.. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. . A segunda interatividade: em direção a novas práticas artísticas, in Domingues, Diana (org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: UNESP, 2003. FLUSSER, Villem. Writtings. USA: Minnesota, 2002. . 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In O chip e o caleidoscópio. São Paulo: SENAC, p 51-71, 2005. 1 Tania Fraga é artista e arquiteta, doutora em comunicação e semiótica pela PUC/SP, foi professora do Instituto de Artes da UnB. http://www.lsi.usp.br/~tania/ http://www.unb.br/vis/lvpa/ http://taniafraga.art.br/blog/ email: [email protected] 2 Venho desenvolvendo o conceito de meta-objeto para caracterizar famílias topológicas de objetos virtuais criados e disponibilizados com o auxílio de aparatos computacionais. Esses meta-objetos podem ser personalizados para atender aos desejos e necessidades dos usuários finais. Eles podem ser manipulados para a criação de produtos personalizados. Por exemplo, podemos imaginar a compra online de uma roupa cuja escolha será totalmente personalizada e sua manufatura produzida através de processos computacionais automatizados; ou de um carro, como já acontece com algumas marcas; ou ainda podemos conceber um edifício com elementos estimuláveis capazes de reconhecer, reagir e responder aos indivíduos que o experimentam. Personalizações de produtos desses tipos serão resultado de um amálgama de processos utilizando tanto métodos de produção seriais como computacionais. Arquiteturas, objetos artísticos ou de consumo, assim concebidos, podem existir em simbiose com aqueles que os experimentam, habitam, vivam, ou neles transitam. Texto baseado nas palestras “Envisioning possibities for computer art, architecture and design” apresentadas em Adelaide e Sydney, Austrália, em março de 2007 (FRAGA: 2008, p 305312). 222 4 Http://www.emotiv.com 5 Templates são conjuntos de modelos de procedimentos simplificados, préprogramados, que aumentam a produtividade e facilitam trabalhar com softwares diversos. Podem também se caracterizar como restritivos se não possuírem flexibilidade que possibilite sua adequação a objetivos diversos. 6 A anodização foi realizada no Laboratório de Física da Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP. A coloração do titânio por anodização baseia-se em eletrólise usando voltagem para controlar a espessura da camada dielétrica oxidada a qual por sua vez é um isolante elétrico. A anodização não resulta de pigmentação mas sim de padrões de interferências luminosas produzidas pela camada de óxido resultante da anodização. A camada oxidada além da coloração protege o titânio tornando-o ainda mais resistente ao desgaste temporal e à corrosão galvânica, deixando a superfície mais dura sem alterar as propriedades mecânicas do metal. A coloração, portanto, depende da voltagem aplicada no metal. Maiores voltagens produzem camadas de óxido de titânio mais espessas com maior poder refrator. A anodização do titânio melhora também ainda mais a sua biocompatibilidade. Quando o filme de óxido, obtido com certas faixas de voltagens, contém anatase (TiO2) ele atua como material antibactericida. O titânio é em geral colorido para facilitar a identificação/codificação de peças. É muito usado em implantes médicos e dentistas devido à biocompatibilidade e na indústria aeroespacial por sua leveza, dureza e resistência galvânica. http://www.valhallaarms.com/ wyvern/titanium/- consultado em 12 de maio de 2010, às 16h16 7 “O conceito do Software Público Brasileiro - SPB é utilizado como um dos alicerces para definir a política de uso e desenvolvimento de software pelo setor público no Brasil. Tal política compreende a relação entre os entes públicos, em todas as unidades da federação e demais esferas de poder, e destes com as empresas e a sociedade.“ http://www. softwarepublico.gov.br/O_que_e_o_SPB - consultado em 22/09/2009 às 08h57. 223 ART 3 A obra Caracolomobile recebeu prêmio do Instituto Itaú Cultural para ser construída para a bienal de arte e tecnologia, Emoção Art.ficial 5.0, tendo ficado exposta de 01 de julho a 05 de setembro de 2010, naquele Instituto. ART A contribuição da disciplina materiais em artes: pesquisa e aplicação Thérèse Hofmann Gatti1 e Daniela de Oliveira2 Resumo: O objetivo deste artigo é compartilhar o resultado das pesquisas realizadas pelos alunos da disciplina Materiais e Artes I que integra o currículo dos cursos de licenciatura em Artes Plásticas, Artes Cênicas, Música e Desenho Industrial do Instituto de Artes da Universidade de Brasília. No âmbito da atividade Seminário de Pesquisa - atividade de conclusão da disciplina nos semestres 1º/2010, 2º/2010 e 1º/2011 – os alunos foram incentivados a identificar as possibilidades de aproximar a manufatura dos materiais artísticos da sua própria realidade cultural. A prática do Seminário de Pesquisa envolveu 150 alunos, resultando em processos de investigação individuais e em grupo, dos quais 36 são apresentados, de forma resumida, neste artigo. Palavras-Chaves: materiais em arte, manufatura artesanal, ensino e pesquisa A disciplina A disciplina Materiais em Artes I é oferecida pelo Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília e integra o currículo dos cursos de licenciatura em Artes Plásticas, Artes Cênicas, Música e Desenho Industrial desde a década de 1980. Em 1991 a disciplina passa a ser ministrada pela professora Thérèse Hofmann Gatti, que também assume a coordenação do Laboratório de Materiais Expressivos (LEME). Com uma ementa que prioriza o estudo das técnicas tradicionais, a iniciação da produção e a análise dos materiais que possibilitam o desenvolvimento da capacidade de expressão e suas aplicabilidades na arte, a disciplina, em 2007, teve seu conteúdo compilado e sistematizado, resultando no livro Materiais em Artes: Manufatura Artesanal (HOFMANN-GATTI et al, 2007). A partir do 1º semestre de 2010, o programa da disciplina passa a incorporar a prática do Seminário de Pesquisa - atividade que estimula o aluno a pesquisar sobre componentes ou processos alternativos para manufatura artesanal dos materiais em artes abordados na disciplina. Tal atividade chama atenção para a necessidade de estimular os alunos e futuros professores para busca de materiais próximos à realidade cultural e regional das unidades de ensino, no processo de manufatura e utilização dos materiais em artes: papel, bastões, tintas e pincéis. A justificativa para o processo de investigação pauta-se na necessidade de facilitar o acesso dos alunos e professores da rede pública de ensino aos materiais de arte: seja pelo baixo custo, pela facilidade de manufatura, pela disponibilidade da matéria-prima, ou ainda pela oportunidade de integrar conteúdos de outras áreas do conhecimento, com destaque para a área de ciências naturais. Neste contexto o processo de investigação dos 224 Com duas turmas ofertadas a cada semestre, a prática do Seminário de Pesquisa envolveu 150 alunos, resultando em processos de investigação individuais e em grupo sob a orientação das professoras Thérèse Hofmann e Daniela de Oliveira. Este artigo apresenta de forma resumida 36 trabalhos que se destacaram pela inovação, facilidade de manufatura, possibilidade de replicabilidade e instrumento de aprendizagem das etapas e processos da manufatura artesanal de materiais em artes. Pesquisa e aplicação Os trabalhos aqui apresentados priorizaram a investigação de matérias– primas alternativas para manufatura de SUPORTES (papel), PIGMENTOS, CORANTES NATURAIS e COMPONENTES AGLUTINANTES das tintas e bastões. Suportes O tema suportes é o conteúdo introdutório da disciplina e destaca os diferentes tipos de suportes utilizados pela humanidade ao longo dos tempos. Dentre eles, o papel e sua manufatura artesanal - seja por meio do reaproveitamento de fibras celulósicas secundárias (aparas pós-consumo), seja pela utilização de fibras vegetais - encontra no LEME suporte técnico e infra-estrutura adequados para sua prática e experimentação em função do histórico de pesquisas e projetos desenvolvidos na área de reciclagem de papel incluindo as patentes PI nº 9605508-1: Reciclagem de PapelMoeda com utilização de anti-resistência a úmido e PI nº 0305004-1: Reaproveitamento das Fibras de Acetato de Celulose - Bitucas de Cigarro (HOFMANN-GATTI, 2007) e as atividades de extensão, com destaque para implantação de núcleos de produção artesanal de papel em Tremembé (SP), Tabatinga (DF) e Brazlândia (DF). Os trabalhos envolvendo o tema SUPORTE abordaram: (i) a utilização de materiais alternativos, (ii) diferenciação e/ou inovação no processo de manufatura – do ponto de vista técnico e/ou pedagógico, e (iii) inovação no processo de aplicação. Dez trabalhos merecem destaque: quatro investigaram fibras alternativas para manufatura artesanal de papel, outros quatro investigaram, respectivamente: processos de impermeabilização e de suportes para fins artísticos (dois trabalhos); utilização de fibras celulósicas (vegetais e aparas pós-consumo) em conjunto com argila para modelagem ou suporte; e manufatura artesanal de papel sob o aspecto pegagógico-ambiental, buscando identificar a disponibilidade de resíduos celulósicos na região da comunidade escolar e adequando o processo a disponibilidade de infra-estrutura local. Somam-se a estes mais dois trabalhos que ainda investigaram espessantes alternativos para técnica de marmorização. 225 ART três últimos semestres priorizou a busca de matérias-primas alternativas para manufatura de suportes (papel), pigmentos, corantes naturais e componentes aglutinantes das tintas e bastões. ART Quadro1. Lista de trabalhos com a temática Suporte Aluno Semestre Tema da pesquisa Ana Paula Vasconcellos Moreira 1º/2011 Utilização de cola branca, gelatina, água de trigo e gel de cabelo como espessante para marmorização Ciro Naum Rockert dos Santos 1º/2011 Utilização da Babosa para manufatura artesanal de papel Fellipe Souza 1º/2011 Aplicação dos matérias em artes no ambiente escolar: papel artesanal (aparas pós-consumo, fibras, tingimento e branqueamento), giz de cera e tempera ovo Iara Lagos Unganelli 2º/2010 Utilização de polvilho como espessante para marmorização João Tadeu Maia Junior 1º/2011 Manufatura de papel a partir da raiz e da palha do milho Rafhael de Arruda Sessa 1º/2010 Preparação do suporte para aquarelas Sandra Lucia Rodrigues da Rocha 1º/2011 Utilização das folhas e caules da mamona para fabricação artesanal de papel Talitha Monfort pires 1º/2011 Comparação da utilização de aparas de papel pós-consumo e fibras de bananeira na manufatura de argila de papel (paperclay) Valdinei Bezerra 1º/2010 Aplicação do papel artesanal de bananeira, casca de eucalipto e sisal para gravura Vinicius Peruza 1º/2011 Impermeabilização do suportes para tinta óleo Um dos trabalhos da disciplina resultou no projeto de pesquisa que investigou a aplicabilidade de três tipos de papéis manufaturados a partir da fibra de BANANEIRA (Musa sp) para gravura. As amostras de papel de bananeira pura, bananeira branqueada e bananeira com adição de carboximetilcelulose (CMC) foram submetidas a dois métodos de impressão com matriz de xilogravura de umburana (Amburana cearensis): impressão mecânica com prensa de rosca vertical e impressão manual com colher (BEZERRA et al, 2011). 226 ART Pigmentos e Corantes Os trabalhos que envolveram os temas PIGMENTOS ou CORANTES abordaram a utilização de pigmentos naturais (minerais, vegetais e animais) e o re-aproveitamento de pigmentos na manufatura artesanal de tintas. Seis trabalhos investigaram a utilização de componentes vegetais para extração de pigmentos e corantes (beterraba, jenipapo, sementes de goiaba, sementes de laranja, café, urucum e açafrão), dois o reaproveitamento de materiais: sobras de maquiagem e cargas de canetas hidrográficas; e um a utilização da casca do ovo (natural, pré-torrada e torrada) como pigmento. Dois trabalhos investigaram a utilização de resíduos para manufatura de carvão: (i) resíduos de poda de espécies arbóreas do campus Universtário Darcy Ribeiro (PAU FERRO – Caesalpinea ferrea, JAQUEIRA - Artocarpus heterophyllus, PAJEU – Triplaris brasiliana, PATA DE VACA - Bauhinia variegata e o ABACATEIRO – Persea americana) e, (ii) o reaproveitamento de cabos de vassoura para fabricação de carvão. Destacamos também o trabalho sobre o reaproveitamento da carga de canetas hidrográficas. Quadro2. Lista de trabalhos com a temática Pigmentos e Corantes Aluno Semestre Tema da pesquisa Carolina Elizabeth Sayuri da Rocha Maia 1º/2011 Utilização de sementes de goiaba para produção de pigmento utilizado na manufatura de nanquim Danielle Monteiro Correa Amorim 1º/2011 Reaproveitamento hidrográficas Evaldo Werbete Lima e Aline Arruda 1º/2010 Pigmentos naturais para aquarela Ingrid Orlandi Meira 2º/2010 Utilização do pó de serragem e lascas do falso Pau Brasil como pigmento para aquarela Lana Rodrigues Aguiar 1º/2011 Espécies arbóreas Pau Ferro, Jaqueira, Pajeú, Pata de Vaca e Abacateiro para fabricação de lápis carvão Leonor M Câmara 1º/2011 Utilização do “Crocin” presente na cúrcuma e açafrão na manufatura de tintas Mariana Brites 1º/2011 Utilização de temperos e sobras de maquiagem na manufatura de giz de cera de canetas 227 ART Naira Johansson Carneiro Larrea 1º/2011 Utilização de temperos de cozinha como pigmento substituto do pó xadrez para a realização de giz pastel e têmpera ovo Túlio César dos Santos Mendes 1º/2011 Utilização de sementes de laranja como pigmento para manufatura de nanquim Luisa Malheiros 1º/2011 Utilização da casca de ovo (natural, pré-torrada e torrada) como pigmentos Marina Suassuna 1º/2011 Reaproveitamento de cabos vassoura na fabricação de carvão de A reflexão a cerca da utilização de pigmentos naturais no âmbito da disciplina Materiais em Artes resultou no projeto de pesquisa PIBIC/CNPq/ UnB – Pigmentos Naturais: Durabilidade e permanência no contexto regional, desenvolvido em dois trabalhos pelas alunas Kenya Cristina Ricarte e Fernanda Gois, sob a orientação da professora Thérèse Hofmann. A abordagem da aluna Kenya Ricarte investigou a utilização de solos do cerrado (região da APA da Cafuringa) para manufatura artesanal de tintas. O trabalho apresentado pela aluna Kenya Cristina Ricarte no 16º Congresso de Iniciação Científica da UnB recebeu o prêmio de melhor pôster da sessão (RICARTE et all, 2010). Componentes aglutinantes Os trabalhos que envolveram o tema AGLUTINANTE identificaram aglutinantes alternativos para manufatura de bastões (em especial o pastel) e tintas. O processo de investigação teve como motivação a facilidade de acesso, o contexto regional ou econômico e a similaridade de características das substâncias aglutinantes com os componentes investigados. O conteúdo da disciplina Materiais em Artes I compartilha o processo de manufatura das tintas e bastões com aglutinantes de uso comum dos antigos artistas, aglutinantes alternativos, como o CMC, a gelatina, o gumex, a cerveja choca e a água de aveia, como destacam, GARCIA(1999), MAYER (2002), HOFMANN-GATTI et al (2007), KRUG (2008), SMITH (2008), SIDAWAY (2008), MICHEL (2009) e GOUTTRY (2010). Considerando que os aglutinantes de tintas e bastões podem estar mais próximos do que imaginamos, seis trabalhos investigaram aglutinantes alternativos para manufatura artesanal de giz pastel. Podemos dividir tais aglutinantes em mucilagem alimentícias (Chá de canela – Cinnamomum sp , babosa – Aloe vera , gelatina, água de trigo, soja fermentada - NATTÔ e baba de quiabo) e em exsudados vegetais de espécies arbóreas (Flamboyant). Três trabalhos investigaram aglutinantes alternativos para manufatura artesanal de tinta guache e aquarela, com destaque para os exsudados vegetais das espécies arbóreas Barbatimão (Stryphnodebdron adstringens), 228 Cinco trabalhos investigaram a viabilidade da utilização de óleos alternativos ao óleo de linhaça na manufatura artesanal de tinta óleo: os óleos de mamona, carnaúba, palma, azeite, girassol, castanha-do-pará e pequi, mesmo sendo esses classificados como óleos semi-secativos e não-secativos, devido a baixa predominância de ácidos graxos do tipo linolênico. Desta forma as investigações realizadas consideram a aplicação pedagógica dos diferentes tipos de óleos: facilidade de homogenização da solução aglutinante e pigmento, aplicabilidade e tempo de secagem. Os trabalhos de conclusão da disciplina foram determinantes na continuidade da pesquisa realizada pelas alunas Pamella Otanásio e Eva Botar (1/2010) no âmbito do LEME. A primeira analisou a consistência (maciez), resistência, uniformidade do traço e fixação de bastões manufaturados com chá de CANELA, BABOSA e CERVEJA choca, confeccionando cerca de 65 pastéis, 15 para cada tipo de aglutinante, sendo o aglutinante carboximetilcelulose (CMC) utilizado como amostra controle, em razão deste material ser usualmente indicado para substituir o aglutinante original da técnica – a goma adragante (OTANÁSIO et al, 2010). A continuidade da pesquisa realizada pela aluna Eva Botar resultou nas análises de aplicação, aderência, cobertura e durabilidade de tinta guache manufaturada com os componentes aglutinantes: BARBATIMÃO, AROEIRA SALSA, GOMA ARÁBICA e DEXTRINA INDUSTRIAL (BOTAR et al, 2011). De forma complementar aos trabalhos dos alunos, os professores da disciplina Materiais em Artes em parceria com o professor Lacê Breyer, do Departamento de Botânica, investigam as propriedades aglutinantes de 5 espécies arbóreas do cerrado: GOMEIRA (Vochysia thyrsoidea), CAJAMANGA (Spondias dulcis), PAU FORMIGA (Triplaris americana) e ANGICO (Anadenathera falcata) e TAMBORIL (Enterolobium contortisiliquum) (HOFMANN_GATTI, 2011). Quadro3. Lista de trabalhos com a temática Aglutinantes Aluno Semestre Tema da pesquisa Ana Flávia do Valle Silvestre 1º/2011 Utilização do óleo de girassol na manufaturada da tinta óleo Barbara de Souza Araujo 1º/2011 Utilização do óleo de castanha-dopará na manufatura da tinta óleo Camila Lopes Marques 1º/2011 Utilização do Palmiste (óleo de palma) e azeite na manufatura de tinta óleo Camila Sugai Mortoza Macedo 1º/2011 Utilização de água de trigo e soja fermentada (nattô) na manufatura do giz pastel 229 ART AROEIRA SALSA (Schinus molle), Flamboyant (Delonix regia) e CAJU DO CERRADO (Anacardium sp), sendo que um aluno investigou a utilização da resina do Jatobá (Hymenaea courbaril) em diluição em com acetona (CH3(CO)CH3) como verniz. ART Daniela Mariano da Silva Tonaco 1º/2011 Utilização do exsudado de flamboyant na manufatura de giz pastel Érica Barros Cavalcante 1º/2011 Utilização do exsudado do Cajueiro na manufatura de tinta aquarela Eva Botar 1º/2010 Utilização do exsudado do Barbatimão e Aroeira Salsa na manufatura de tinta guache Ivan Henrique Souza e Marisa Mendonça 1º/2010 Utilização do óleo de carnaúba e mamona na manufaturada da tinta óleo Juliana Lovato 1º/2011 Utilização de gelatina comestível na manufatura do giz pastel Maisa Rabelo Vieira 2º/2010 Utilização do óleo de Pequi na manufatura da tinta óleo Niele Fernades Pires 1º/2011 Utilização do flamboyant na aquarela Pamela Nunes Otanásio 1º/2010 Utilização do Chá de canela como aglutinante na manufatura do giz pastel Pedro Faria Lopes 1º/2011 Utilização da resina de jatobá como verniz e fixador Rafael Benjamin da silva 1º/2011 Utilização da baba do quiabo na manufatura do giz pastel Ricardo Maruo de Matos Ribeiro 2º/2010 Utilização da babosa como aglutinante na manufatura do giz pastel exsudado manufatura de de Considerações finais Os resultados do processo de investigação para elaboração e apresentação do trabalho final de conclusão da disciplina Materiais em Artes I apontam benefícios pedagógicos e técnicos- científicos. Do ponto de vista pedagógico o seminário de pesquisa contribui para reforçar os conceitos e as funções dos diferentes materiais utilizados na produção artesanal, além de fixar as etapas do processo de manufatura das técnicas. Temos como exemplo a diferenciação conceitual e prática entre pigmentos e corantes, gomas e resinas, aglutinantes. A busca por pigmentos e aglutinantes alternativos, aliada a execução prática de uma tinta ou bastão tem se mostrado uma ferramenta auxiliar no entendimento de conceitos e processos. 230 Embora alguns trabalhos não apresentem inovações do ponto de vista da matéria-prima a ser utilizada ou do processo de manufatura, a experiência em realizar mesmo processos já comumente conhecidos tem pelo menos duas finalidades: resgatar o conhecimento e história da produção artesanal dos materiais e propor adaptações que as tornem factíveis e aplicáveis no ambiente de sala de aula – considerando, sempre, as limitações de cada ciclo a ser trabalhado. 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O toque na tela do celular, jogos eletrônicos, ou mesmo novas formas de visualização e interação da informação através da web, podem trazer uma nova dimensão de espaço e de percepção dos objetos e do meio. O artigo tem como objetivo discutir as implicações das novas mídias no campo da arte e do design. É mencionado alguns desafios dos artistas e designers no desenvolvimento de projetos das novas mídias. Além disso, é mostrado alguns modelos e princípios relacionados às mídias digitais e suas aplicações em projetos de mídias digitais. Também é discutido como os aparelhos móveis touchscreen potencializaram a possibilidade de acessar informações em qualquer instância. Palavras-chaves: novas mídias, mídias digitais, arte, design, princípios Abstract: Everyday people interact with new objects and digital media. Touching the screen of a mobile device, online games and new forms of visualization and web interaction can create new space dimensions and also new ways of perceiving the objects and its surroundings. The article aims to discuss the implications of the new media in the fields of art and design. It mentions the artists and designers challenges in designing new media projects. It also shows some models and principles related to digital media projects and their applications. Furthermore, it also discusses how touch screen mobile devices made it easier to access information everywhere. keywords: new media, digital media, art, design, principles A cada dia as pessoas interagem com novas mídias. O toque na tela do celular, a interação e a possibilidade de criação de interfaces nas instalações em museus, jogos eletrônicos, ou mesmo novas formas de visualização e interação da informação através da web, podem trazer uma nova dimensão de espaço e de percepção dos objetos e do meio. Manovich, em seu livro: “The language of new media” (2002), define as novas mídias como sendo a tradução de todas as mídias existentes em dados numéricos acessíveis por computadores. De acordo com ele, a lógica cultural tradicional pode ser significativamente influenciada pela lógica do computador uma vez que “as novas mídias são criadas nos computadores, distribuídas via computadores, armazenadas e arquivadas nos computadores”. O termo novas mídias aqui se refere as mídias digitais. Mídias digitais são numéricas, usam códigos binários. As novas mídias assim se contrapõem com as “velhas” mídias, as mídias analógicas. As mídias analógicas tendem a ser fixas, existem como objetos físicos, e perdem a qualidade quando são copiadas; por outro lado as digitais tendem a ser dinâmicas, são armazenadas na memória do computador, e podem ser replicadas sem perda de qualidade (Austin & Doust, 2007; Lister et al., 2009). As diferenças entre essas mídias tem grande implicação em várias 233 ART áreas de conhecimento, e na vida das pessoas. A mudança do analógico para o digital ocorreu em todo o processo de produção e uso da mídia, por exemplo no acesso a mídia, no seu armazenamento, na sua forma e na sua manipulação. As novas mídias foram “desmaterializadas” e isso trouxe como consequências, uma manipulação mais fácil, um acesso muito veloz e de forma não linear, e a compactação em pequenos lugares, entre outras (Lister et al., 2009). O objetivo desse artigo é discutir as implicações das novas mídias no campo da arte e do design. Primeiro, é conceituado as novas mídias nos campos da arte e do design e brevemente é discutido os desafios dos artistas e designers. Depois, é mostrado alguns modelos e princípios relacionados às mídias digitais e suas aplicações em projetos de mídias digitais. Também é discutido como os aparelhos móveis touchscreen potencializaram a possibilidade de acessar informações em qualquer instância e articulá-las em contextos específicos e, mesmo, permitiram repensar a forma como usamos computadores. Por fim, são feitas algumas reflexões sobre as implicações das novas mídias no campo da arte e do design. Arte e design nas novas mídias Os mundos do design, filme, musica, teatro, arte, fotografia, e arquitetura eram considerados como distintas e separadas formas de comunicação ou mídia até que o computador permitiu vendê-las como uma. (AUSTIN & DOUST, 2007, p. 14) Essa frase, de Austin & Doust, no livro “New media Design” (2007) sintetiza a idéia da transformação causada pelas novas mídias. As novas mídias permitem muito mais do que o encontro das várias áreas num único meio, elas permitem uma grande integração e sobreposição de conhecimentos criando novas formas de interação entre os usuários e os objetos. Sob o ponto de vista da arte, os projetos de arte em novas mídias são projetos que fazem uso dessas mídias e são interessados nas suas possibilidades culturais, políticas e estéticas (Tribe & Jana, 2006). De acordo com Tribe & Jana (2006) a arte em novas mídias está entre o campo da “arte e tecnologia” e a “arte mídia”. A primeira envolve tecnologias que não são necessariamente relacionadas com mídias (ex. arte eletrônica e arte robótica) e a segunda envolve formas de arte em mídias que não são consideradas novas (ex. vídeo arte e filme experimental). Sob o ponto de vista do design, os projetos em novas mídias requerem que os designers tenham entendimento da audiência, da tecnologia, e saibam comunicar de forma “cativante”. Eles também devem considerar, entre outros fatores, que as pessoas podem ficar ansiosas ao navegar em networks desconhecidos (Austin & Doust, 2007). A influência das novas mídias na arte e/ou no design tem sido objeto de reflexão por muitos estudiosos (ex. Plaza e Tavares, 1998; Giannetti, 2002; Edmonds et al., 2006; e Rush, 2006). Plaza e Tavares (1998) afirmam que os novos meios tecnológicos provocam “uma influência de difícil avaliação 234 Rush (2006), afirma tecnologia digital torna a imagem “infinitamente maleável”. Ele afirma que ainda precisa ser desenvolvida uma linguagem estética e crítica para a nova realidade digital. Sobre novos paradigmas em mídias digitais, Giannetti (2002) argumenta que na arte digital as teorias devem refletir o processo, o sistema e o contexto contrapondo a teoria estética centrada no objeto de arte. Ela também menciona a interconexão das disciplinas e a necessidade de redefinir os papéis do autor e do observador. Pesquisadores também tem escrito sobre as características da nova mídia. Lister et. al. (2009) e Lugmayr (2010) descrevem as características das novas mídias de uma forma similar. Lister et. Al. (2009) aponta cinco características principais: digital, interativa (i.e. possibilidade de manipular e intervir na mídia), hipertextual (i.e. unidade de material que carrega um número de caminhos para outras unidades), dispersiva (i.e. produto que muda o relacionamento do autor e do consumidor) e virtual. Já Lugmayr (2010) fala em seis características das novas mídias: digital, interativa, hipertextual, virtual, networked, e simulada. Lugmayr (2010) argumenta que cada mídia consiste de três componentes principais: tecnologia (i.e. ferramentas métodos, e técnicas que são necessárias para criar a mídia), forma (i.e. aparência e estética dos componentes) e conteúdo (i.e. informação ou mensagem expressa). Uma das mais importantes características das novas mídias é o fato de poderem ser hipertextuais (Austin & Doust 2007; Lister et. al. 2009). Os hipertextos ou hiperlinks permitem uma acesso não linear a obra. O usuário pode acessar o produto de vários modos. Dessa forma, os artistas e designers perdem o controle de como o usuário irá acessar o produto. Apesar do autor do produto não ter total controle da ordem que o usuário irá utilizar o mesmo, eles podem controlar as possibilidades de navegação na interface, como por exemplo, podem colocar links somente onde for desejado. Desta forma, os autores controlam e manipulam a navegação do usuário. Outra característica importante é a “dinâmica” dos projetos de mídias digitais. Essa característica diz respeito ao fato que de os projetos de novas mídias não são nunca concluídos, eles podem ser atualizados, expandidos, modificados (Austin & Doust, 2007). Essa característica traz para ambos os artistas e designers um novo desafio. Eles podem perder o controle do resultado final. Isso faz com que os artistas e os designers tenham uma nova relação com o produto, desde a concepção até a criação do mesmo. Os usuários também podem interferir na obra, participando e modificando a finalização da mesma. Eles também tem uma nova relação estabelecida com o produto uma fez que eles podem ser, de certa forma, co-autores do mesmo. As novas mídias digitais tem características próprias, como por exemplo, 235 ART sobre as formas culturais tradicionais”. De acordo com eles, as novas mídias “renovam a criação audiovisual, reformulam a nossa visão de mundo, criam novas formas de imaginários e discursos icônicos, ao mesmo tempo que recodificam as imagens dos períodos anteriores.” ART o hipertexto citado acima. Essa e outras características, tem uma implicação direta no design de novas mídias. Pelas especificidades, vantagens e limitações da novas mídias, modelos e princípios são necessários para auxiliar os artistas e designers na criação dessas mídias. Modelos e princípios das novas mídias Modelos e princípios das novas mídias vem sendo propostos por estudiosos na área (Manovich, 2002; Edmonds et al., 2006; Martinec e Leeuwen, 2009). Alguns tem um caráter mais genérico, outros são aplicados a mídias específicas (ex. websites). Esses modelos e princípios vem auxiliar os artistas e designers no desenvolvimento de projetos de novas mídias. O uso de tais modelos e princípios podem ajudar os autores a desenvolver projetos mais adequados as características das mídias e também auxiliar os autores a tirar maior proveito das possibilidades das tecnologias de tais mídias, fazendo melhor uso de suas vantagens e considerando suas limitações. Os princípios descritos por Manovich (2002), e os modelos criados por Edmonds et al. (2006) são sumarizados abaixo para ilustrar a relevância de tais modelos e princípios. Além disso, a possibilidade de aplicação desses modelos e princípios em projetos de mídias digitais é discutida. Lev Manovich, no seu livro The Language of New Media (2002), descreve cinco princípios da nova mídia: • representação númerica (todos os objetos da nova mídias são compostos por código digital); • modularidade (estrutura fractal da nova mídia, um objeto da nova mídia tem a mesma estrutura modular no todo); • automação (na criação, manipulação e acesso – “o homem pode, pelo menos em parte, ser retirado do processo de criação”); • variabilidade (variável, mutável, líquido – um produto da nova mídia pode ter muitas versões diferentes); • transcodificação (traduzir algo para outro formato - categorias e conceitos culturais são substituídos por outros derivados pelo computador). O conhecimento desses princípios descritos por Manovich (2002) pode auxiliar o artista e o designer na concepção de um objeto de mídias digital. Por exemplo, o princípio da variabilidade é um princípio chave tanto para artistas quanto para os designers. A possibilidade de se criar infinitas versões de um mesmo objeto permite que o autor crie uma gama de opções de representação do produto final. Outro princípio fundamental a ser considerado em projetos de mídias digitais é o da automação. A possibilidade de que o processo de possa ser 236 Como descrito, esses princípios descritos por Manovich (2002) referemse a linguagem das novas mídias em geral. Já Edmonds et al. (2006) criaram um modelo com o foco no design de sistemas de arte interativos para locais públicos, denominado “engajamento criativo”. Eles afirmam que hoje uma das principais características da arte é a interação entre os sistemas de arte e as pessoas. De acordo com Edmonds et al. (2006), as questões de engajamento dos usuários ainda não é bem entendida pelos designers desses sistemas. O modelo proposto é dividido em três atributos: attractors, sustainers e relaters. Attractors são coisas que tem como objetivo fazer o público perceber o sistema; sustainers refere a atributos que mantém o público engajado no primeiro encontro; e relaters refere-se a aspectos que fazem com que audiência retorne para ver o trabalho em ocasiões futuras. Edmonds et al. argumentam que os attractors são importantes para chamar a atenção do público, uma vez que em lugares públicos cheios, como um bar ou um museu, existem muitas distrações e pontos de interesse. Depois que os attractors ganharam a atenção é importante que os sustainers façam com que o público permaneça por um tempo interessado no trabalho, e finalmente os relaters tem a função de manter o usuário interessado (“quente”) nas visitas repetidas da exibição. Apesar desse modelo ter sido concebido para utilização em projetos de mídias digitais em museus, ele tem um escopo mais amplo e pode facilmente ser aplicado em outros projetos. Todos três atributos são muito relevantes de serem considerados em um website, por exemplo. Numa situação do usuário estar num portal com muitos links, os attractors servirão para que o usuário preste atenção no link do produto, depois é importante que hajam atributos, os sustainers, que façam com que o usuário mantenha atenção naquele produto; e por fim é desejável que o usuário volte ao site em questão e portanto os relaters são importantes para que isso aconteça. Dessa forma percebe-se uma relação entre diferentes projetos de novas mídias uma vez que as características e princípios das novas mídias são similares. Os modelos tem normalmente um caráter mais específico sendo criado com um foco em questão. Entretanto, eles podem ser aplicados a outras interfaces desde que avaliadas as possibilidades e limitações da interface. Os tablets: uma análise Conhecemos a popularização das telas touch através dos aparelhos móveis que tomaram o mercado empurrados pelos lançamentos do Iphone e, à seguir, do Ipad. Os smartphones já vinham integrando cada vez mais o cotidiano das 237 ART automatizado tem implicações na autoria do produto. O computador passa a ser também o autor do produto não só pelo seu uso como ferramenta de produção, mas também pelo fato de que ele pode ser utilizado para fazer parte da concepção/criação do produto. Esse princípio também tem uma forte implicação na estética do produto: uma estética feita através do computador e pelo computador. ART pessoas na medida em que permitem o acesso de todo tipo de informação compartilhada, mas com caráter de portabilidade e de objetos pessoais. Os aparelhos móveis touchscreen, no entanto, definem novos procedimentos e dinâmicas de interação, formas de produção e construção de interfaces. Eles permitem uma experiência intuitiva e otimizada das ações com respostas rápidas. A relação que estabelecemos com o aparelho é muito mais orgânica, executamos tarefas complexas com gestos e toques rápidos graças ao multitouch. O touchscreen muda a lógica com que lidamos com os computadores. Elimina o mouse e o teclado físicos, altera o sistema de arquivamento por pastas e tendem adotar o sistema de nuvens, transformando-se num dispositivo em rede do qual podemos acessar toda natureza de informação de qualquer lugar. Quando o Ipad foi lançado falava-se na criação de um novo paradigma de computação que colocaria fim a um modelo de interface, pré-internet, que tem origem nos anos 70 e popularizada com os computadores pessoais a partir dos anos 80. Segundo estas analises este modelo de interface estaria atrelado à máquinas muito mais lentas e desconectadas. Os tablets ganharam dimensão suficiente para potencializar uma experiência muito mais íntima, envolvente e rápida caracterizando-se fortemente com um dispositivo pessoal e lúdico, enquanto os computadores laptop não seriam tão próximos e teriam um caráter de dispositivo de trabalho. Steven Johnson, em artigo para a revista Wired (2010), considera os tablets como um ponto final e não um começo de uma nova era. Para ele os tablets comparecem como o estágio final de uma era de inovação textual depois de 30 anos de computação e conectividade. Até os anos setenta muitos pregavam como perspectiva de futuro o domínio da linguagem visual tendo o texto como elemento periférico. Os anseios por uma sintaxe visual se configuram em fins do século XIX desembocando em propostas como isotipo, semantografia e domínios de mídias como a televisiva. No entanto, segundo Johnson, o computador veio a se apresentar como um dispositivo para se fazer coisas com palavras. A conectividade favoreceria uma série de inovações textuais. Este período para Johnson chega ao seu limiar com os tablets que colocam o texto em causa, com a diminuição paulatina das formas de interagir com o texto. Este tipo de tecnologia abriria espaço para outros tipos de dados como vídeos, evocação de espaços virtuais, dados georeferenciados, e outros incrementos. Os tablets têm favorecido a criação de diversos aplicativos com padrões estéticos rígidos que permitem integrar toda a navegação. Anuncia-se a tendência de absorvermos grande parte desta informação digital via aplicativos e não mais via web. Estas publicações têm se caracterizado por um design envolvente com apresentação todo tipo de conteúdo — livros, revistas, vídeos e jogos. Conclusões As novas mídias tem mudado como os usuários interagem e percebem os produtos. Os usuários tem poder sobre a interface de muitos produtos digitais, podendo criar interfaces únicas e que fogem do controle do 238 Nesse contexto, novos modelos de criação de desenvolvimento de projetos de mídias digitais são desenvolvidos. Reas, McWilliams and Lust (2010) afirmam que o significado e o conteúdo dos produtos digitais são construídos através do software. Daí a importância do conhecimento de software por artistas e designers que usam as mídias digitais para realizar seus projetos. Como falado no tópico dois, as novas mídias permitem um encontro de várias áreas num único meio. Além disso, permitem uma grande integração e sobreposição de conhecimentos, criando assim novas formas de interação entre os usuários e os objetos. A revolução dos tablets, discutida acima, nos leva a pensar em interfaces cada vez mais integradas e interligadas com mapas mentais mais complexos. Nessa perspectiva, é relevante a criação de modelos e princípios que auxiliem o artista, o designer, e outras áreas de conhecimento, a desenvolver tais mídias. Muito ainda a ser pesquisado e descoberto na área de mídias digitais, área em constante crescimento e que amplia cada vez mais as possibilidades de interação entre os usuários e os objetos. Referências bibliográficas AUSTIN, Tricia e DOUST, Richard. New Media Design. Londres: Laurence King Publishers, 2007. EDMONDS, Ernest, MULLER, Lizzi and CONNELL, Matthew. On Creative Engagement. Em Visual Communication, 2006 (5): 307. GIANNETTI, Cláudia. Estética Digital: sintopía del arte, la ciencia y la tecnologia. Barcelona: Associació de Cultura Contemporània L’Angelot, 2002. JOHNSON, Steve, The end of an era. Wired Magazine: Abril 2010. Disponível em: http://www. wired.com/magazine/2010/ 03/ff_tablet_essays/, acessado em 5 de julho de 2010. LISTER, Martin, DOVEY, Jon, at all. New Media: a Critical Introduction. Routledge, 2009. LUGMAYR, Artur, Connecting the real world with the digital overlay with smart ambient media—applyin Peirce’s categories in the context of ambient media. IN: Multimed Tools Application, Publicado online 4 de dezembro de 2010. Disponível em: http://www.springerlink. com/content/m67415u07r252p44/ , acessado em 5 de julho de 2010 MANOVICH, Lev. The Language of New Media. MIT Press, 2002. MARTINEC, Radan e LEEUMEN, Theo van. The Language of New Media Design: Theory and Practice. London: Routledge. 2009. PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Processos Criativos com os Meios Eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, 1998. 239 ART autor da mesma. Além disso, os produtos digitais são em grande número um produto criado em grupo por diferentes áreas do conhecimento. Dessa forma, um produto digital é em muitos casos um produto feito por vários autores, sendo que autoria final fica por conta do usuário que pode personalizar a interface. ART REAS, C., McWilliams, C., LUST. Form + Code in design, art, and architecture. New York: Princeton Architectural Press, 2010. RUSH, M. Novas Mídias na Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006. TRIBE, Mark; JANA, Reena. New Media Art. Londres: Taschen, 2006. 1 Doutora Virgínia Tiradentes Souto é professora do Departamento de Desenho Industrial da Universidade de Brasília. Doutora em Typography and Graphic Communication pela Universidade de Reading, Reino Unido. [email protected], 61 33072890. 2 Doutor Rogério Camara é professor do Departamento de Desenho Industrial da Universidade de Brasília. Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. [email protected], 61 33072890. 240 ART Arte, ecologia e redes. Considerações a cerca de Fritz Müller Yara Guasque Resumo: Arte, ecologia e redes pressupõe uma pesquisa interdisciplinar relacionada às questões do meio ambiente e à teia de colaborações, como é o caso de Mar Memorial Dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento. Tratei destas redes, que Bruno Latour chamou de redes de transformação, mais detalhadamente no artigo a ser apresentado no ISEA 2011 “Colonização e redes de ciência entre as periferias e o centro: o caso do naturalista Fritz Müller”. Estas redes de colaboração legitimam a coleta e a experimentação que se dá longe dos centros— na periferia com seus ecossistemas — como investigação artística, ou conhecimento científico, a exemplo da correspondência e a troca de espécimes, entre Fritz Müller (1822-1897) e Charles Darwin (1809-1882). Palavras-chave: arte; ecologia; redes; interdisciplinar; Mar Memorial Dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento; Fritz Müller. Abstract: Art, ecology and networks implies to an interdisciplinary research that is related to the environment and to the web of collaborations, as is the case of Dynamic Memorial Sea – embedded system. I focused these networks, which Bruno Latour called transformation networks, with more details in the article to be presented at ISEA2011 “Colonization and science networks between peripheries and the center: the case of the naturalist Fritz Müller”. These net of collaboration legitimize the collection and the experimentation which occurs far away from the centers — within the periphery with its ecosystems — as artistic investigation, scientific knowledge, as the example of the correspondence and the exchange of specimens between Fritz Müller (1822-1897) and Charles Darwin (1809-1882). Keywords: Art; ecology; networks; interdisciplinary; Dynamic Memorial Sea – embedded system; Fritz Müller. A trajetória da produção científica de Fritz Müller, um estrangeiro entre nós, que tem recebido destaque desde as comemorações do centenário de nascimento de Charles Darwin em 2009, expõe muitos aspectos que encontraremos em uma produção de arte, ciência e tecnologia. Em 2010 foi aberto o edital REFLORA para catalogação e repatriamento das espécies nativas brasileiras dos séculos XVIII, XIX e XX depositadas em dois herbários internacionais. Esta iniciativa fortaleceu e incentivou a criação de redes de pesquisadores trabalhando com o inventário dos espécimes da flora de Santa Catarina. Minha intenção era pensar a relação entre a colônia do Dr. Blumenau e o círculo de cientistas na Alemanha, mapeando a rede de colaboradores na qual Fritz Müller se inseriu e levantar os espécimes do jardim de sua casa, considerando seu jardim, o inventário vivo, fruto de sua correspondência, como proposição artística. Outras instituições catarinenses como o Inventário Florístico Florestal de Remanescentes Florestais do Estado de Santa Catarina, IFFSC, pretendem mapear as espécies depositadas no herbário de Kew na Inglaterra e também atualizar 241 ART a lista das espécies ameaçadas de extinção. É sabido que dentre as espécies catalogadas de Kew algumas foram coletadas por Fritz Müller no século XIX. Das espécies plantadas no jardim de Fritz Müller, fruto de sua investigação e correspondência com outros cientistas estrangeiros, nada se sabe. As considerações que formulamos em “Parâmetros para o entendimento das mídias emergentes e a formação de um público especializado no Brasil” (Guasque, Guadagnini e Fachinello, 2007) apontavam para as condições materiais de produção das novas mídias e para o aparelhamento das instituições que geram conhecimento, responsáveis pelos banco de dados e divulgação. Estas coincidem com as da produção científica no pais. Mesmo se hoje temos maior agilidade de comunicação do que na época de Fritz Müller, quando a media usada era a carta, que era enviada de barco da colônia `a Europa, podemos ainda destacar da trajetória de Fritz Müller certos fatores que também incidem na produção de arte, ciência e tecnologia: a efetividade das redes de colaboração entre a periferia e o centro, que podemos relacioná-las com as redes de transformação que possibilitam ao centro a representação dos fenômenos fora de seu alcance; a institucionalização das redes de ciência no Brasil; a formação científica que instrumenta conceitualmente o observador; a adaptação e reformulação do currículo da educação formal para disseminar este instrumental; as metodologias da produção de conhecimento científico; a observação do fenômeno in loco; a documentação e a publicação; as formas de comunicação e interlocução; o domínio da língua estrangeira; a colaboração e o consenso sobre as questões de autoria. Outros detalhes são no legado de Fritz Müller mais especificamente relacionados `a vida da colônia: como a questão na colônia da oposição entre mata e roça. Rede de colaboradores entre a periferia e o centro de cálculo O fato de estarmos conectados pelo telégrafo ao continente europeu, somente a partir de 1874, não impediu que Fritz Müller se correspondesse com seus colegas internacionais e estabelecesse com eles uma rede de colaboração. A correspondência por cartas e a troca de espécimes, entre Fritz Müller e Charles Darwin, caracteriza o que Bruno Latour chamou de redes de transformação. Fritz Müller pertenceu ao primeiro grupo de assentamento da colônia do Dr. Blumenau no vale do Itajaí — Alto do Itajahy. Em suas peregrinações solitárias no litoral e, no planalto, acompanhado do engenheiro de estradas Dr. Oderbrecht, a serviço do Dr. Blumenau, encontrou (1852) a natureza quase intocada. Formação científica e o currículo da educação formal Como professor do Liceu Provincial de Santa Catarina, em Desterro, de matemática (1857-1864), entre outras disciplinas que propôs lecionar como química e física, e alemão, esteve “em contacto ininterrupto com todos os ramos das ciências naturais e da literatura, e este contacto foi muito mais estreito que o que poderia manter nos anos posteriores de sua vida” (Ernst Haeckel, 1980). Paralelamente à docência pesquisou em seu tempo livre na 242 Institucionalização das redes de ciência no Brasil Entre 1807 e 1815, na passagem do Brasil colônia ao Brasil imperial, foram instituídos por D. João VI o Museu Nacional, o Jardim Botânico, a Biblioteca Nacional, a Academia de Belas Artes, a Imprensa Régia, o Banco do Brasil. O herbário do Museu Nacional foi fundado em 1831 pelo botânico Ludwig Riedel, que integrou a expedição científica de von Langsdorff de 1825 a 1829. Entretanto o do Jardim Botânico do Rio de Janeiro só foi formado em 1890 com a doação da coleção de plantas desidratadas que pertencia a D. Pedro II. O cargo de Naturalista Viajante desempenhado por Fritz Müller no Museu Nacional do Rio de Janeiro, entre os anos de 1876 a 1891, coincide com os avanços das instituições criadas no Império em consolidação e a passagem para uma nova administração do Brasil, já republicano. Metodologias da produção do conhecimento científico O que determinou que sua observação se transformasse em investigação científica? Fritz Müller, o cientista consolidado, tinha “a floresta como livro predileto” dentre os volumes de sua reduzidíssima biblioteca. A prática experimental da observação na floresta, dos fenômenos em sua complexidade, diferia da realizada nos laboratórios das academias. O jardim, o inventário vivo de sua correspondência com cientistas europeus, possibilitava o acompanhamento, em diferentes horários e estações do ano, do giro das hastes das trepadeiras ou do movimento das folhas sob a chuva, e a transposição mais confortável e ágil destes dados para sua mesa de trabalho — onde os registrava com índices e formatos mais confiáveis à ciência. Formas de interlocução e comunicação Suas anotações sobreviveram ao ambiente acanhado da então Desterro e Blumenau, e também se lançaram para além da rede nacional de pesquisadores que se formava em torno do Museu Nacional, do Rio de Janeiro, ou do Museu Paulista. A amizade que cultivou com cientistas europeus, Ernst Krause, Charles Darwin e Ernst Haeckel entre outros, permitiu-lhe publicar artigos curtos na Kosmos, nas Notícias Entomológicas, e em outros periódicos zoológicos, como por exemplo na Relações da Sociedade Botânica Alemã. Durante seu exílio no Brasil produziu 237 dos 248 artigos que escreveu em toda sua vida, sendo que muitos — extraídos dos manuscritos contextualizados com ilustrações detalhadas que compartilhara com seus correspondentes europeus — foram publicados no exterior como sendo de autoria dos destinatários de suas cartas. A legitimação e o cunho científico de seu trabalho dependiam da rede internacional de colaboração, mas, 243 ART orla de Desterro, atual Florianópolis, as medusas, os briozoários, os pólipos, e os crustáceos que resultou em seu único livro, Für Darwin. ART também, da aculturação e formação das instituições brasileiras de pesquisa, responsáveis pelos círculos científicos que se criavam em seu entorno. A questão na colônia da oposição entre roça e mata Entre a floresta, a roça e o jardim há diferentes graus de dominação da natureza, que diminuem a complexidade das relações e que mostram o avanço da colonização. O campo, com a derrubada da mata e a clareira aberta na floresta, servia às necessidades crescentes de segurança e de comunicação dos habitantes da colônia que se transformava em cidade. Hoenhe queria homenagear Fritz Müller de maneira singular, atribuindo seu nome a uma das picadas do Instituto de Botânica, ao invés de lhe dedicar o nome de uma rua, ou praça urbana, “em que a natureza completamente banida não mais consegue estabelecer a relação entre o homenageado e o motivo da homenagem” (Frederico Carlos Hoenhe Apud Fontes; Lopes, 2008). Fritz Müller viveu entre a então Desterro e a colônia do Dr. Blumenau no Alto do Itajahy, onde trabalhou a terra como outros colonos de facão. O abatimento psíquico seja pelo clima ou por falta de estímulo intelectual, e as precárias condições de anotação de suas observações são expressas nestas linhas por Fritz Müller: “ Living a full quarter-century in the land of the sloth, one gradually assumes something of the qualities of that creature, whether as a result of example or climate, or perhaps chiefly of a lack of intellectual stimulation. Add to this that I can get access only to the scantiest fragments of the literature and am therefore falling far behind the rapid onrush of science and may scarcely dare say anything. In addition, I will hardly be able to make any progress in a larger coherent project; I shall probably seldom be at home for any length of time, but will be occupied instead in expeditions around our province. Detailed investigations are out of the question on such trips into the country, because one often has to give up table and chair, bed and house, for weeks at a time, and one’s scientific apparatus consists only a magnifying glass, a pocket knife and a pencil”. F M para Ernst Krause, 1877. In West, 2003, p. 196. Ciberestuário manguezais Ciberestuário Manguezais, uma plataforma multiusuário que promove a participação aberta, é a continuidade do projeto de pesquisa Visualização do manguezal para a Plataforma Multiusuário Estação Carijós. Coordenado por Yara Guasque (2007/2010) o projeto foi pensado para ser realizado em partes, e teve como desdobramentos: a plataforma multiusuário Ciberestuário Manguezais (2010, http://ciberestuariomanguezais.ning. com), a Web art (de 2008, http:// WWW.tecnologiadormente.com/carijos, exposto no FILE de 2009) e as instalações Mar Memorial Dinâmico — apresentada na exposição da Galeria da Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Rio Grande do Sul (2009, http://tecnofagiagptaipi.blogspot. 244 Por contar em 2010 com a estrutura da plataforma multiusuário, Ciberestuário Manguezais permitiu a participação mais dinâmica da comunidade com a chamada para a coleta multimídia no Manguezal Itacorubi. As instalações Mar Memorial Dinâmico e Mar Memorial Dinâmico – Surroundings propiciaram a interação do público e uma nova forma de visualização do manguezal. A chamada aberta a participação com incursões no espaço físico do manguezal e o convite a ocupação da plataforma multiusuário se deu pelo enfoque da ação como um jogo pervasivo, por este gênero permitir diferentes níveis de participação e pelo apelo às ações off-line como estratégias lúdicas interessantes de engajamento e crítica. A importância da participação da comunidade não é uma retórica de publicidade vazia. Como sabemos Fritz Müller e Henry Walter Bates foram pioneiros quanto a investigação da mimese entre as borboletas palatáveis e não palatáveis. Mas apenas Fritz Müller continuou a viver entre os fenômenos que ele observou. Neste sentido pode ter uma reflexão mais precisa da razão das borboletas se auto imitar. Considerações relevantes são descritas por vezes nos relatos da comunidade, por esta poder acompanhar um fenômeno, num tempo alargado, e observar os vários desdobramentos e implicações que ultrapassam a agenda e o escrutínio dos pesquisadores. Entretanto é difícil garimpar quais informações são pertinentes. A criação da plataforma multiusuário buscava ser um repositório de diferentes níveis de narrativas e observações, e facilitar o acesso às informações que nem sempre se dá de forma confortável. Na chamada de 28 de abril de 2010 e as de julho e agosto do mesmo ano de Ciberestuário Manguezais o manguezal focado foi o do Itacorubi, que se situa no bairro onde a Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, foi construída. Foram antes necessários quase três meses de espera para que o órgão ambiental responsável por aquele manguezal, a Floran, desse a permissão para coletarmos apenas dados multimídia. Já em 2008 para a elaboração da Web art — quando da construção do mapa do Manguezal Ratones, que foi o primeiro a ser percorrido, mesmo antes do projeto abrir a chamada à participação, (HTTP://www.tecnologiadormente.com/carijos) — tínhamos sentido o embate com os órgãos municipais, estaduais, e federais, nas várias consultas aos órgãos competentes, Ibama e Ipuf, para verificar a possibilidade de permissão de adentrarmos o manguezal Ratones, e pesquisar a existência de mapas antigos e atuais da região. A significação das informações sobre o sítio físico postadas numa mesma plataforma poderia ser coletiva. A diversidade, e complexidade dos dados coletados da região, dependeria desse agenciamento coletivo que improvisaria a capacidade de interpretação. Mesmo que a discussão tenha sido suscitada e a atenção tenha sido criada, não foi o que aconteceu. Tivemos poucos participantes realmente ativos e dispostos a construir 245 ART com/2009/11/arquivos-da-instalacao-mar-memorial.html) e na Galeria Municipal de Arte Victor Kursansew, de Joinville — e Mar Memorial Dinâmico - Surroundings apresentada na exposição Pneumatóforos na Fundação BADESC, Florianópolis, Santa Catarina (2010, http://tecnofagiagptaipi. blogspot.com/2011/02/mar-memorial-dinamico-surrounding.html), e agora Mar Memorial Dinâmico – sistema de sensoriamento. ART um debate na plataforma. Nem mesmo a exposição Pneumatóforos, de novembro de 2010 na Fundação Cultural Badesc, em Florianópolis, que teve ótima visitação de estudantes da rede pública e privada, e que abriu ainda mais a participação, conquistou novos membros adeptos a compartilhar seus arquivos. Mar Memorial dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento Independente da inexistência na época do sistema embarcado e do chamariz da procura dos módulos-letra, a plataforma multiusuário e a chamada aberta a participação, as instalações e exposições levantaram alguns pontos importantes: a acessibilidade dos dados levantados pela comunidade científica; a importância da participação ativa, e ao longo dos anos, da população civil; o alcance questionável dos projetos artísticos para fazer mudanças concretas. Como obra artística o sistema embarcado de Mar Memorial dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento que agora toma impulso, dá continuidade às realizações das instalações interativas. O sistema embarcado, previsto desde o início do projeto, consistia nas letras da frase Mar Mermorial Dinâmico modeladas em material ecologicamente aprovado, que encapsulam micro controladores. Dezenove unidades de módulos-letra compõem a frase Mar Memorial Dinâmico (M-A-R- M-E-MO-R-I-A-L-D-I-N-Â-M-I-C-O ). Dentre estas seis possuem célula solar, para garantir a auto-suficiência do abastecimento de energia, e encapsulam micro controladores associados a sensores e a dispositivos de comunicação por rádio. Os restantes não possuem micro controladores e apenas coletarão as bactérias. Estes módulos-letra serão dispersos no mar para coletar dados do meio ambiente. Desde o início do projeto admitíamos que o sistema embarcado fosse hospedado em outra região que não a do manguezal, e realizado em outro país. Seguindo o exemplo da rede de colaboração que permitiu ao naturalista viajante Fritz Müller, em Santa Catarina no século XIX, atualizar sua pesquisa graças a sua interlocução com cientistas internacionais, hoje é imprescindível a cooperação das redes de colaboração na realização de trabalhos em arte, ciência e tecnologia. Mar Memorial dinâmico - sistema embarcado de sensoriamento participou no mês de junho de 2011 do programa de Residência Artística em Arte, Ciência e Tecnologia, M.A.R.I.N. – Media Art Research Interdisciplinary Network, http://marin.cc/residency/cfp/, coordenado por Tapio Mäkelä, que aconteceu no arquipélago finlandês do mar báltico. O programa oportunizou o melhor entendimento de projetos similares e impulsionou parcialmente o delineamento da comunicação do sistema embarcado, entre os módulos-letra e os sensores de detecção de dados do meio ambiente. A pesquisa focou neste momento a comunicação entre os micro controlodadores, a escolha dos sensores e o material de encapsulamento, para que este além de não agridir o meio-ambiente, e não ser nocivo aos animais, impermeabilize os componentes eletrônicos sem interferir na comunicação de dados via rádio freqüência. 246 A performance foi melhor elaborada conceitualmente no projeto Mar como sistema de escrita dinâmica, de 2005, que enfatizava os sistemas nãolineares como suporte da escrita e a ação dos fenômenos naturais como processo de co-autoria. Dentre as perguntas que Tapio Mäkelä se coloca destacamos algumas: como as práticas e dados levantados por artistas diferem tecnologicamente, conceitualmente e cientificamente dos levantados pela comunidade científica? Podem estes dados ser considerados indexicais, já que apontam para fatores importantes, apesar de não serem relevados como base e material de pesquisa científica? Consideraríamos estes projetos dentro do guarda-chuva da Arte e Ciência ou da Arte Revestida de Ciência? Respondendo se os parâmetros físicos e químicos, que queremos levantar com o sistema embarcado, auxiliarão de fato as pesquisas ambientais, me deparo para o enorme movimento que o projeto causou em mim. Todo o conhecimento adquirido em relação aos manguezais e mares modificou como me situo hoje no ambiente que vivo. Acredito que esta transformação ocorreu também para os demais participantes. Achar soluções ou criar estratégias? A residência nos arquipélagos filandeses do mar báltico seria para desenvolver Mar Memorial Dinâmico – sistema embarcado de sensoriamento agora com os participantes: Ina Oestroem, Oriel Frigo, Igor Rocha e eu, Yara Guasque. O esquema de comunicação entre os módulosletra, desenvolvido por Oriel, era apenas um começo para pensarmos os equipamentos e suas lógicas. Partimos de carro no domingo, 19 de junho de 2011, com Tapio Mäkelä e o também artista, Tuomo Tammenpää, outro moderador da residência, rumo a ilha onde o programa aconteceria. Num país que mistura apropriações pré-industriais combinadas às pós industriais a residência acabou por trazer à tona a questão não só da preservação dos biomas em sua complexidade, mas também a possibilidade 247 ART Com o sistema embarcado o projeto alcançará a autonomia pretendida das coletas, recuperando algumas premissas do projeto original, como a aproximação com a poesia e a literatura, que estavam nos primeiros insights do projeto, destacando novamente os fenômenos da natureza como co-autores e obtendo como resultado Escrituras bacterianas da água. A base poética e conceitual de Visualização do manguezal para a Plataforma Multiusuário Estação Carijós provinha das experimentações com o mar como um suporte dinâmico de escrita, capaz de embaralhar objetos díspares, que resultou na performance Mar como Morte de 1998. Na performance as letras esculpidas em material flutuante foram espalhadas na Lagoa da Conceição. As letras formavam a frase Mar como Morte e eram embaralhadas pela correnteza e pelo vento. Semanas depois estas foram fotografadas e capturadas por moradores da região. Revendo a performance digitalizada em vídeo me dei conta, na época, de que um sistema de monitoramento dos ventos e das correntes da água teria enriquecido muito o projeto. ART de propiciar a variedade e a multiplicidade de invenções de resistências, e de auto invenções e subjetividades no contexto da economia global. Lazzaratto em As revoluções do capitalismo se detém no conceito de mônadas de Leibniz. Sob o viés da interpretação de Gabriel Tarde, Lazzaratto descreve as mônadas como invenções de mundos. Este conceito nos auxiliou a entendermos melhor a importância da deriva e da autonomia dos módulos-letra de Mar Memorial Dinâmico, sistema embarcado de sensoriamento. Não procurávamos situações nas quais os módulos-letra navegariam com estabilidade, nem a segurança de não os ver perdidos num mar memorial de informação, pois não queríamos como resultado uma comunicação informacional codificada. Nem almejávamos obter parâmetros legitimizadores de um discurso científico. Também não os víamos como um enxame de vespas sendo comandadas a distância. Gostaríamos de evitar um sistema embarcado onde alguns módulos-letra agissem como server e outros apenas como slaves. O que estava em questão não era a eficiência da comunicação entre os módulos-letra com GSM/GPRS e os outros com Xbee e sensores, mas a capacidade destes módulos-letra em conversação de criar uma linguagem, mesmo que caótica. Referências: ARAUJO, Yara Rondon Guasque. “Ciberestuario Manguezais: articulações extra mangue. Achar soluções ou criar estratégias de eventos ‘acontecimentos’?” Texto aguardando publicação no V Colóquio de Poéticas do Urbano. ANTONACCI, Célia Maria Ramos (Org.). GUASQUE, Yara; GUADAGNINI, Silvia Regina; FACHINELLO, Sandra Albuquerque Reis. “Parâmetros para o entendimento das mídias emergentes e a formação de um público especializado no Brasil,” in VENTURELLI, Suzete. (Org.). #6. ART. Arte e tecnologia. Interseções entre arte e pesquisas tecno-científicas, Brasília: Instituto das Artes da Universidade de Brasília, 2007. HAECKEL, Ernst. “Fritz Müller – Desterro”, trad. Richard Paul Neto, Blumenau em Cadernos, no. 1. Janeiro 1980, pp. 02-07. LATOUR, Bruno. “Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções”. In: Parente, André (Org.). Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004, pp- 39-63. LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. 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