ANDRADE, Pedro Gustavo Gomes. A proteção de vítimas de
Transcrição
ANDRADE, Pedro Gustavo Gomes. A proteção de vítimas de
A PROTEÇÃO DE VÍTIMAS DE CONFLITOS ARMADOS – UM PARALELO ENTRE O DIREITO ISLÂMICO E O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO Recebido em: 01/11/2010 Analisado em: 24/12/2010 Pedro Gustavo Gomes Andrade1 Belo Horizonte/MG [email protected] _______________________ Sumário _______________________ 1. A importância do estudo do direito islâmico no âmbito do direito internacional. 2. O direito islâmico e as suas diferenças em relação ao direito ocidental. 3. Direito islâmico e direito internacional humanitário: possível contradição. 4. As normas de direito da guerra do direito islâmico. 5. O instrumentalismo do direito. 6. Perspectivas para o futuro: por um diálogo entre as civilizações. _______________________ Resumo_______________________ Este artigo apresenta uma abordagem geral da atual discussão acadêmica internacional em torno das relações entre direito internacional humanitário e as normas do direito islâmico que regulam a conduta em conflitos armados. O autor levanta, primeiramente, os motivos que levaram ao surgimento desse debate, abordando as questões do terrorismo e do fundamentalismo religioso, e a importância do estudo do direito islâmico para os estudiosos de direito internacional, de relações internacionais e de conflitos armados internacionais. Logo após, aponta as características básicas do direito islâmico e suas normas relativas às situações de guerra e conflitos armados. Por último, conclui como esses estudos podem ajudar a melhor compreender os atuais conflitos no Oriente Médio e no norte da África, a aumentar a proteção conferida às vítimas de conflitos armados e a contribuir para a cooperação intercultural mediante uma perspectiva multiculturalista. Palavras-chave: Direito internacional humanitário. Direito islâmico. Conflitos armados. THE PROTECTION OF VICTIMS OF ARMED CONFLICTS – A PARALEL BETWEEN ISLAMIC LAW AND INTERNATIONAL HUMANITARIAN LAW _______________________ Abstract _______________________ This article describes, in general terms, the current international academic debate on the relationship between international humanitarian law and the rules of islamic law concerning the conduct in armed conflicts. The author presents, first, the reasons that led to the emergence of this discussion, including the issues of terrorism and religious fundamentalism, and the importance for students of international law, international relations and international armed conflicts of studying islamic law. Next, he presents the basic characteristics of islamic law and its provisions related to situations of war and armed conflict. Finally, he conclude how these studies may help to better understand the conflicts in the Middle East and in the north Africa, to increase protection of victims of armed conflicts and to contribute to intercultural cooperation through a multicultural perspective. Keywords: International humanitarian law. Islamic law. Armed conflicts. Bacharelando em Direito pelas Faculdades Milton Campos. Monitor das disciplinas de Direito Internacional Público e Direito Internacional Privado. Editor-presidente da Revista Acadêmica Milton Campos. 1 1 A importância do estudo do direito islâmico no âmbito do direito internacional O Islã é uma religião que existe há mais de catorze séculos e possui hoje cerca de um bilhão e seiscentos milhões de seguidores, o que corresponde a quase 25% da população do planeta.2 Não obstante, pouco se sabe sobre o islamismo ou sobre o direito islâmico no mundo ocidental. De fato, para a maioria de juristas brasileiros, pouca necessidade há em se estudar o direito islâmico para a prática cotidiana. Entretanto, o mesmo não ocorre para os estudiosos de direito internacional. Para estes, o direito islâmico tem ganhado uma crescente importância, em especial na área do direito internacional dos conflitos armados, ou direito internacional humanitário. Esse maior interesse pelo direito islâmico no âmbito do direito internacional surge no contexto do terrorismo e do fundamentalismo, a partir do momento em que grupos extremistas, em busca de justificativas de seus atos, passaram a utilizar, após ataques contra populações civis, alguns preceitos do direito islâmico para legitimá-los. Desse modo, foi levantado, por parte de estudiosos do direito internacional e militares ou oficiais que atuam em zonas de conflitos armados e em missões humanitárias, o questionamento sobre uma possível contradição entre as normas do direito islâmico e as normas do direito internacional humanitário. Além disso, mais de metade das operações de organizações humanitárias, como a Cruz Vermelha, ocorrem em territórios do mundo islâmico, no Oriente Médio e no norte da África, o que por si só já seria motivo suficiente para justificar o estudo das normas locais dessas zonas de conflito.3 O fundamentalismo pode ser melhor compreendido se inserido no contexto da crise da modernidade e do multiculturalismo. Na segunda metade do século XX, se torna perceptível que a modernidade, ao contrário do que se acreditava, não promoveu, com a urbanização e a burocratização, um 2 Um estudo sobre a demografia do Islã foi feito no final de 2009 pelo grupo The Pew Forum on Religion & Public Life, e pode ser acessado em: http://pewforum.org/uploadedfiles/Topics/Demographics/Muslimpopulation.pdf. 3 Conforme o relatório anual do Comitê Internacional da Cruz Vermelha: http://www.icrc.org/Web/Eng/siteeng0.nsf/htmlall/section_annual_report_2009/$File/icr c-annual-report-2009.zip. fortalecimento do secularismo, do racionalismo e do cientificismo. Pelo contrário, foi exatamente a modernidade, o vácuo de identidade por ela produzido, as mudanças sociais e a destruição de valores e instituições tradicionais que levaram as pessoas a se voltarem para a religião. Por este motivo, esse fenômeno foi denominado pelo cientista político francês Gilles Kepel, em sua obra clássica, como “a revanche de Deus”.4 Conforme a teoria de Samuel P. Huntington, a partir do momento em que as religiões e crenças tradicionais não mais conseguiram suprir o vazio gerado pela modernidade, outros credos, inclusive fundamentalistas, passaram a tomar seus lugares e a fornecer respostas para seus seguidores. Deve-se notar que essa revitalização da religião não ocorreu somente no mundo islâmico, mas é um fenômeno global. Exemplos disso podem ser encontrados no abandono do budismo no leste asiático em detrimento do cristianismo, no crescimento do ortodoxismo em países eslavos ou no aumento da proeminência de religiões protestantes na América Latina em detrimento do catolicismo (HUNTINGTON, 1997, p. 120). Nesse sentido, desde as décadas de 60 e 70, surge nos países mulçumanos um renascimento, não somente do fundamentalismo, mas da religião como um todo, fenômeno que tem sido denominado por alguns autores “ressurgimento islâmico”. O fundamentalismo islâmico deve ser compreendido apenas como um componente desse processo maior, que se trata, em síntese, da busca generalizada, por parte das sociedades islâmicas, de respostas à modernidade e à ocidentalização. Esse movimento de revitalização do Islã adotou, de fato, um caráter antiocidental em países como o Irã, ou no caso do movimento da Irmandade Islâmica, entretanto adotou um viés laico em países como a Turquia e uma perspectiva moderada em países como Marrocos. É um erro, portanto, identificar de modo generalizado o fundamentalismo e o antiocidentalismo com o ressurgimento islâmico como um todo. (MESSARI, 2005, p. 32). No entanto, ainda que o fundamentalismo não seja a expressão última desse movimento, é exatamente o fato da religião ter sido usada por grupos extremistas, e até por Estados, para justificar ataques contra civis que levantou 4 Nome que intitula sua obra: La Revanche de Dieu. Paris: Le Seuil, 1991. o questionamento da possível contradição inerente entre as normas de direito da guerra do direito islâmico e as normas de direito internacional humanitário. Essa contradição também pôde ser percebida na guerra entre o Irã e o Iraque, de 1980-1988. Ambos os Estados se comprometeram a respeitar as normas de direito internacional humanitário – ao menos em retórica – contudo, no decorrer do conflito ficou claro o contraste entre a base argumentativa das partes envolvidas. Ao passo em que o Irã fundamentava o conflito principalmente em valores religiosos, o Iraque alegava a necessidade de defesa de suas fronteiras, um princípio de direito internacional público. Os ataques contra civis também foram fundamentados, pelo Iraque, com base na teoria de direito internacional da kriegsräson, já prevista desde a Declaração de São Petersburgo, e, pelo Irã, com base em princípios do Islã, o que abriu margem para o questionamento de uma possível contradição entre ambos (COCKAYNE, 2002, p. 616). Os conflitos atuais que envolvem o terrorismo são em geral caracterizados, por um lado, pela presença de grupos extremistas que perpetram ataques contra civis e, do outro lado, pela presença de forças de segurança de Estados que promovem uma guerra contra o terror, e contra esses que são considerados pelo direito internacional atual “hostes humani generi”, ou inimigos da humanidade. Muitas vezes, violações ao direito internacional humanitário podem ser encontradas na conduta de ambas as partes. Não obstante, cada uma delas possui seu próprio discurso de justificação, alegando fontes normativas diferentes para legitimar seus atos. Em suma, por todos esses motivos citados, se impõe a importância de um estudo sobre as normas locais de direito islâmico que regulam o comportamento de indivíduos e grupos armados em relação à proteção de civis, mulheres, crianças ou prisioneiros de guerra, a fim de se determinar a veracidade ou não dessa possível contradição com as normas humanitárias internacionais. 2 O direito islâmico e as suas diferenças em relação ao direito ocidental Muitas vezes o direito islâmico é denominado de “sharia”, caminho, em árabe, que é o conjunto de normas de conduta contidas no Corão e em outras fontes, como a suna, ou as palavras e atos do profeta Maomé. Entretanto, o termo mais correto para se referir ao direito islâmico é provavelmente “fiqh”, que pode ser traduzido como entendimento ou interpretação. Ainda que juristas e teólogos do direito islâmico afirmem estudarem a sharia, para um observador externo o mais correto seria dizer estudar o fiqh, que é exatamente o conjunto de decisões e interpretações dos juristas islâmicos, algo mais próximo do nosso conceito de “jurisprudência” ou “direito” (BADAWI, 2009a, p. 2-3). Sendo essas as fontes do direito islâmico, cabe analisar quem pode “dizer” o direito islâmico, ou seja, quem tem legitimidade para dizer em um caso concreto se determinada conduta é lícita ou não. No direito ocidental, em geral tal tarefa é delegada a um juiz, que julga conforme as normas determinadas pelo Estado, que integra a burocracia estatal e que foi submetido a um processo seletivo oficial – ainda que isto possa admitir exceções, como no caso da arbitragem. No direito islâmico, contudo, devido às suas fontes religiosas – como o Corão ou a suna – as normas não provêem do Estado, como ocorre no direito ocidental. Trata-se de um direito formulado por juristas e doutrinadores. Não há uma diferença tão grande entre teologia islâmica e uma ciência jurídica islâmica. Um teólogo do Islã em geral também terá legitimidade para se pronunciar sobre as normas islâmicas. Deste modo, percebe-se como diferença fundamental entre ambos os sistemas o fato do direito islâmico se fundar mais na religião e menos em um procedimento burocrático e estatal, como o direito ocidental, cujos sistemas jurídicos foram constituídos, em grande medida, pelos ecos das revoluções liberais e burguesas dos séculos XVIII e XIX, pela doutrina do racionalismo, pela escola jurídica francesa da exegese e sua posterior propagação pela Europa com as guerras napoleônicas. Há também, por conseqüência, uma relação mais íntima entre direito, ética e moral no direito islâmico, ao passo em que no direito ocidental há – ou pelo menos se tenta criar – uma nítida separação entre uma norma moral e uma norma jurídica. Um dos principais pontos pelo qual as normas jurídicas se diferenciariam das normas morais é exatamente o fato de serem objetivas e categóricas, determinando qual conduta é permitida, qual é proibida e qual é obrigatória. Uma norma (hukm) de direito islâmico, por sua vez, pode tratar, igualmente, de uma proibição (haram ou mazur), de uma permissão (mubah ou halal) e de uma conduta obrigatória (wajib ou fard); entretanto uma norma de direito islâmico também pode tratar de uma conduta meramente “desencorajada” (makruh) ou “recomendada” (mustahhab). Deste modo, tornase mais difícil afirmar de modo absoluto se uma conduta é categoricamente permitida ou proibida pelo direito islâmico. Esses fatores fazem com que o direito islâmico não seja uno, mas sim diversificado. Ele deve ser visto mais como um sistema metodológico, um meio de se determinar as normas de conduta, do que simplesmente um conjunto de normas materiais que dizem o que é certo e errado. O próprio Corão, a sua maior fonte, é constituído de versos poéticos e subjetivos – motivo pelo qual muitos alegam que perderia o seu sentido original caso traduzido – e isto somente abre margem para uma maior possibilidade de interpretações divergentes por parte dos juristas de direito islâmico. Trata-se, portanto, de um direito de interpretações, cuja hermenêutica é muito mais aberta do que a do direito positivista e liberal criado pelo ocidente. Caso a metodologia correta seja seguida, e seja interpretado por aquele que possui legitimidade para isso, diferentes entendimentos poderão ser ao mesmo tempo considerados “direito islâmico”, mesmo que divergentes entre si. Exemplos disso são, não somente a divisão clássica entre sunistas e xiitas, mas também a existência de diversas escolas de pensamento jurídico no âmbito do direito islâmico, ou madhhab, sendo quatro as mais famosas, na ordem de número seguidores: a escola de Hanafi, a escola de Maliki, a escola de Shafi e a escola de Hanbali, sendo esta última considerada, das quatro, a mais conservadora (BADAWI, 2009a, p. 8). Tudo isso indica uma dificuldade na determinação das normas de direito islâmico, sob um ponto de vista ocidental. Trata-se de um direito formulado por juristas e não pelo Estado, aberto a diversas interpretações diferentes, com uma relação íntima com a moral e com a religião. É um direito de possibilidades, possuindo normas que não se pode dizer que se tratam categoricamente de condutas permitidas ou proibidas. Isto torna difícil o trabalho dos estudiosos ocidentais, quando buscam determinar se certas condutas – como aquelas sobre o uso do véu ou sobre as questões humanitárias e de direito da guerra – são categoricamente proibidas ou permitidas. Mais de uma interpretação poderá ser encontrada, podendo alguns juristas islâmicos afirmar que ações, como ataques suicidas, são vedadas pelo direito islâmico e que as normas da ONU devem ser respeitadas, enquanto outros, sob uma perspectiva mais fundamentalista, afirmam que tais atos são permitidos ou até mesmo encorajados (MUNIR, 2008, p. 78).5 3 Direito islâmico e direito internacional humanitário: possível contradição Conforme a máxima de Jean Pictet, “o direito da guerra é tão antigo quanto a própria guerra em si, e a guerra sempre existiu desde que existe vida neste planeta” (PICTET, 1985, p. 6). Apesar de se tratar de uma perspectiva determinista, pode-se dizer que se aproxima da verdade, pois há inúmeros registros históricos que remontam à antiguidade de normas relativas à vedação de ataques contra mulheres, crianças e prisioneiros de guerra, mesmo em casos de conflitos armados. Entretanto, quando falamos em direito internacional humanitário, em geral nos referimos a algo mais recente. Em especial, nos referimos ao conjunto de normas que foram criadas pelas convenções de Genebra e pelas convenções de Haia a partir do final do século XIX, cujo marco é em geral apontado na Declaração de São Petersburgo. Sob este prisma, o direito humanitário é o ramo do direito internacional que busca regular o comportamento de indivíduos, grupos ou nações em situações de conflitos armados abertos, seja em relação ao tratamento de prisioneiros de guerra, civis e não combatentes, à assistência a refugiados e deslocados ou à vedação do uso de armas e métodos hediondos. Por sua vez, o chamado direito da guerra também é comumente dividido em duas áreas fundamentais: o jus ad bellum, ou o direito de se engajar em uma guerra – algo que envolve as teorias de guerra justa ou a de legítima defesa, ou seja, fatores a serem consultados antes do início de um conflito – e o jus in bellum, que engloba as normas destinadas a regular a conduta no âmbito de um conflito armado – fatores a serem consultados após o início do conflito. Apesar de levantada a possível contradição entre o direito islâmico e o direito humanitário, trata-se de um questionamento que chega a ser irônico, uma vez que muitos autores afirmam que as normas humanitárias ocidentais Para uma análise da construção histórica das normas islâmicas relativas a ataques suicidas, ver FREAMON (2003-2004). 5 possuem sua origem nas próprias normas islâmicas. Tal é o entendimento do Barão Michel de Taube, em seu curso geral proferido na Academia de Haia de Direito Internacional, em 1926. O autor analisa a influência do mundo árabe na origem das normas de comércio e de guerra no ocidente medieval. Exemplos disso são as teorias da guerra justa ou os códigos de honra das ordens de cavalaria, que teriam surgido pelo contato com o mundo árabe, como nas cruzadas, e posteriormente produzido reflexos na religião. De fato, as origens do direito internacional ocidental em geral são apontadas nos nomes dos teólogos espanhóis da Escola de Salamanca: Francisco de Vitória e Francisco de Suárez, provenientes de um dos países europeus de mais forte influência árabe (TAUBE, 1926, p. 384). Um dos relatos mais interessantes sobre esse contato entre ocidentais e árabes foi feito por um historiador ocidental, Oliverus Scholasticus, em que narra, surpreso, o fato ocorrido durante uma das cruzadas, em que um exército franco derrotado recebeu assistência humanitária e alimentos do Sultão alMalik-al-Kamil, mesmo após diversas atrocidades cometidas pelos francos durante a guerra (MARSOOF, 2003, p. 26). Também são famosas as histórias, nas cruzadas, entre Saladino e Ricardo Coração de Leão, em que Saladino é lembrado por vedar ataques contra a população civil ao retomar Jerusalém e até mesmo ter prestado assistência médica Ricardo I (YAMANI, 1985, p. 206). Neste sentido, o ex-Juiz da Corte Internacional de Justiça, Christopher Weeramantry, aponta que já existiam normas árabes de direito da guerra cerca de oito séculos antes que Hugo Grócio, considerado o pai do direito internacional moderno, escrevesse O direito da guerra e da paz, sendo este por elas fortemente influenciado (WEERAMANTRY, 1988, p. 149-158, apud COCKAYNE, 2002, p. 599). Os países muçulmanos, inclusive, também tiveram mais recentemente um papel fundamental na reforma de 1977 das Convenções de Genebra de 1945, o que garantiu uma preocupação maior, nestas convenções, com a conduta de atores não-estatais (COCKAYNE, 2002, p. 613). Entretanto, a interpretação das fontes e das normas de direito islâmico aplicáveis a conflitos armados não é fácil, pois se caracteriza por uma metodologia bastante diferente daquela aplicável ao direito internacional. Ao passo que no direito internacional a soberania e a conduta do Estado são conceitos fundamentais, isto não ocorre no direito islâmico. A vontade do Estado não é um fator determinante ao se analisar as normas humanitárias do direito islâmico: o Estado pode agir em conformidade ou contra o direito, mas ele não cria o direito. O direito internacional humanitário, ao contrário, surge com base na conduta dos Estados, no seu consentimento e no costume internacional, o que engloba fatores como a prática geral e a opinio juris. O direito islâmico, por outro lado, se caracteriza principalmente com base no ensinamento de juristas e doutrinadores (BADAWI, 2009b, p. 4). 4 As normas de direito da guerra do direito islâmico No âmbito do direito islâmico (fiqh), a melhor terminologia para designar as normas de direito da guerra é provavelmente a expressão siyar, plural de sira, que por sua vez significa caminho, biografia, história ou conduta. Os juristas de direito islâmico em geral se referem a este termo para descrever as normas que regulam a conduta de islâmicos com não-islâmicos em um conflito armado. Contudo, esta divisão sistêmica não existe expressamente no âmbito do direito islâmico e outras fontes normativas podem influenciar as normas de direito da guerra (BADAWI, 2009b, p. 3; ENGELAND, 2008, p. 82). A fonte mais importante do direito islâmico é o Corão, ou Al-qu’ran, que em árabe significa “recitação”. Para a religião islâmica, o Corão é o livro revelado pelo arcanjo Gabriel ao profeta Maomé, ou Muhammad. O Corão é considerado a palavra de Deus revelada. Ele trata de temas que vão desde Adão, considerado o primeiro profeta do islamismo, passando pela história dos judeus, a de Moisés e de Abraão, a de Jesus Cristo, chegando até a de Maomé. O Corão é dividido em suras, ou capítulos, tendo sido cada um revelado ao profeta em momentos diferentes, algo que é relevante ao se estudar as normas humanitárias do islamismo. Este intervalo histórico abre margem para interpretações divergentes do Corão. Os versos mais antigos, revelados em Meca, são interpretados por alguns juristas no sentido de vedarem a guerra de agressão. Um exemplo é a sura Al-Baqara, ou o capítulo “A vaca”, que diz expressamente que, durante a guerra, há limites que não podem ser transgredidos. Outros versos, contudo, revelados em Medina, tais como aqueles contidos na sura de número 57 do Corão, a sura Al-Hadid, ou o capítulo “O Ferro”, indicam em outro sentido. Alguns juristas interpretam esses versos no sentido de permitirem aos mulçumanos perpetrar uma guerra de agressão. Os que assim entendem também afirmam que estes versos prevalecem sobre os primeiros, uma vez que os versos mais novos derrogam os versos mais antigos – semelhante ao princípio de direito ocidental lex posterior derrogat legi priori. Alguns autores apontam que essa suposta contradição entre os versos do Corão ocorre pelo fato de que, nos versos mais antigos, de Meca, os seguidores do Islã eram as partes fracas dos conflitos, ao contrário daqueles revelados em Medina, em que o Islã já havia conquistado a maior parte da península arábica (BADAWI, 2009b, p. 1). Percebe-se, portanto, que o Corão não é suficiente para determinar as normas islâmicas sobre o direito de um Estado de perpetrar uma guerra, ou as normas de conduta a serem obedecidas no caso de conflitos armados, em especial no que concerne o jus in bellum. Há uma omissão e uma ampla margem de interpretação, o que legitima a consulta às fontes secundárias do direito islâmico. Uma dessas fontes, como citado acima, é a suna, ou o conjunto de normas baseadas nas palavras e nos atos do profeta Maomé. Integrando a suna, estão os hadith, ou “narrações”, que são conjuntos de leis baseadas em interpretações da vida do profeta por determinados 6 doutrinadores. Ainda que não seja mais importante que o Corão, trata-se de uma fonte mais rica para a interpretação das normas relativas a conflitos armados, devido às guerras empreendidas por Maomé e seus seguidores durante a unificação da península arábica no século VII (BADAWI, 2009b, p. 2). Um exemplo disto é a obra de um intérprete do século IX, Abu Dawood (817-889), autor da terceira das seis coleções de hadith do sunismo, em que narra que o profeta teria dito, durante um conflito: “não matem nenhuma pessoa idosa, nem crianças, nem mulheres”. Em outra coleção de hadith, a Pode, contudo, haver controvérsias de interpretações sobre o valor dos hadith, dependendo de qual escola do Islã se tratar. Alguns autores citam, por exemplo, que os seguidores da escola de hanafi concedem a eles uma importância maior do que os seguidores da escola de maliki, que, por sua vez, podem rejeitar o fato de alguns desses hadith integrarem ou não a suna. 6 Musnad de Ibn Hanbal, escrita pelo fundador da escola de hanbali, Maomé diz: “não matem sacerdotes em seus templos” e “não matem pessoas que se encontrarem em seus locais de oração”. Há também um texto em que o profeta, ao ver o corpo de uma mulher, teria afirmado: “ela não estava lutando, por que ela foi morta?”. Estes trechos levaram a interpretações, por parte de juristas islâmicos, no sentido de impor restrições ao atentado contra nãocombatentes em um conflito armado (BADAWI, 2009b, p. 2). Há uma série de outras restrições na suna como um todo. Os autores citam textos que proíbem os combatentes de saquear ou pilhar, em especial proibições contra a destruição de casas e vilarejos, do solo cultivável, da morte de gado, ou de árvores frutíferas. Há textos em que Maomé afirma que indivíduos feridos não devem ser atacados, ou que proíbe a utilização de algumas armas consideradas cruéis, como flechas ou lanças envenenadas, ou a utilização do fogo em combate, prevendo que nenhuma pessoa deveria ser queimada viva. Os juristas islâmicos também interpretam que outros tipos de mortes cruéis em geral são proibidas pela sharia, tal como a por mutilação. O estupro ou o abuso sexual de mulheres também é amplamente repudiado pelo direito islâmico no decurso de um conflito armado. Da mesma maneira, há proibições de ataques contra soldados que depõem suas armas (AL-QAZWINI, 2004, p. 83; YAMANI, 1985, p. 207). Para citar outras normas humanitárias de direito islâmico, o próprio Corão preveria a obrigação de conceder asilo. Dentre diversas passagens, alguns autores citam que há uma previsão expressa no Corão que diz: “se um pagão lhe pedir asilo, você deve garanti-lo, e levá-lo para um local onde esteja seguro”. Conforme estes autores, o direito islâmico prevê que todos os indivíduos, sem distinção, possuem o direito de fugir da perseguição e receber proteção em uma comunidade islâmica, em especial se tratar-se de pessoas vulneráveis, como mulheres ou crianças, sendo este considerado um princípio fundamental do direito islâmico (KIRMANI & KHAN, 2008, p 43; RAHAEI, 2009, p. 4). Alguns juristas interpretam esses versos no sentido de que prisioneiros de guerra devem ser protegidos, bem como devidamente alimentados. Há inclusive relatos na suna de que Maomé teria libertado prisioneiros de guerra em diversas ocasiões. Os relatos deste tipo de solidariedade, mesmo com inimigos, são comuns na história de conflitos nos países árabes. Os autores afirmam que, pelo direito islâmico, a caridade para com aqueles que passam fome, mesmo que não islâmicos, é uma obrigação, podendo aquele que se omite ser responsabilizado por esta omissão. Estes preceitos não são meras abstrações, pois geram efetivamente um impacto nas atividades humanitárias atuais, que ocorrem, em sua maioria, em países árabes e de maioria islâmica (KRAFESS, 2005, p. 328; HYDER, 2007, p. 5). Entretanto, apesar da existência de uma série de normas humanitárias no direito islâmico – em especial no Corão e na suna – não é possível determinar se essas condutas são categoricamente proibidas ou permitidas pela mera leitura das fontes em si. Como visto, o Corão pode ser interpretado no sentido de vedar a guerra de agressão – em relação ao jus ad bellum – mas, ao mesmo tempo, há intérpretes que entendem que ele permite a guerra para a propagação da religião. A suna, por sua vez, também pode ser interpretada no sentido de condenar uma série de condutas no âmbito de conflitos armados – em relação ao jus in bellum – mas também possui uma margem para interpretações divergentes. Exemplos disso são outros trechos da suna, em que há relatos de que Maomé teria aceitado a morte de mulheres e crianças, caso isto fosse inevitável – como no caso de ataques noturnos – o que pode abrir amplas margens de interpretação sobre o que é ou não “inevitável” (BADAWI, 2009b, p. 2). Cabe notar, contudo, em relação ao jus ad bellum, que a guerra de agressão era também, até relativamente pouco tempo, lícita no mundo ocidental. Somente com a Carta das Nações Unidas a guerra de agressão se torna um ato ilícito internacional. Até na anterior Liga das Nações, de 1919, o direito de perpetrar uma guerra de agressão havia sido restringido, mas não eliminado: foi criado um procedimento para a solução pacífica dos conflitos, mas, caso exaurido, o direito à guerra ainda era legítimo. A determinação expressa da ilegalidade da guerra somente seria reconhecida em 1945. O mesmo ocorreu no âmbito do direito islâmico. Ainda que diversas interpretações indiquem no sentido de que uma guerra de agressão seria válida sob alguns argumentos, muitos intérpretes islâmicos, por outro lado, entendem que hoje, com o sistema internacional de nações e todos os acordos internacionais assinados e ratificados, não há uma ameaça à religião islâmica, devendo as regras internacionais ser respeitadas e a guerra de agressão ser vedada. Isto envolve o conceito de acordo ou pacto, que é considerado sagrado para o direito islâmico, e que deve ser respeitado mesmo se firmado com nações não islâmicas – novamente, há uma identidade com outro reconhecido princípio geral de direito, o pacta sunt servanda. Este tipo de interpretação é algo que merece ser incentivado e apoiado, pois reconhece a ilegalidade da guerra não pela imposição de normas exteriores, mas pela própria base argumentativa do direito islâmico. Ainda em relação ao jus ad bellum nota-se também que, em uma situação de invasão e ocupação estrangeira, muitos autores apontam que o direito islâmico não somente garante o direito, mas determina o dever de todo cidadão de combater o inimigo ocupante e tomar parte na defesa do território. Os ataques justificados pelo conceito de jihad – traduzido muitas vezes como “guerra santa”, algo que é criticado por autores islâmicos – na maioria das vezes pressupõe essa legítima defesa do Islã contra um inimigo externo, uma ocupação ou uma guerra ilegal, e não a mera propagação religiosa (ALQAZWINI, 2004, p. 84). Há também, aqui, uma semelhança com o direito à guerra de legítima defesa no direito internacional. Entretanto, alguns grupos que adotam interpretações extremistas possuem o entendimento de que, neste caso, qualquer indivíduo que colabore com uma potência ocupante também poderá ser visto como um inimigo e alvo, mesmo tratando-se de um civil – algo que já ocorreu no passado contra colonos israelenses, atacados por não serem considerados civis, mas “ocupantes” (MUNIR, 2008, p. 74). Isto explica por que, em conflitos internacionais recentes, a ONU, em tese uma organização neutra, tem sido vista como alvo de ataques por alguns grupos. O marco deste fato foi o atentado a bomba de 2003 em Bagdá contra a sua sede no Iraque, que ceifou a vida do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, e vinte e um de seus colegas.7 Neste sentido, a maior compreensão da cultura islâmica e dos motivos e ideologias dos grupos militantes extremistas poderá talvez Para maiores informações sobre a pessoa de Sérgio Vieira de Mello e sua atuação no Iraque sob o mandato da ONU, recomenda-se duas obras: a biografia escrita por Samantha Power, O homem que queria salvar o mundo (Companhia das Letras, 2008), e uma coletânea de artigos organizada por Jacques Marcovitch, Sérgio Vieira de Mello: pensamento e memória (Saraiva, 2004). 7 contribuir para evitar este tipo de tragédia no futuro. No entanto, ainda que a ONU e outras organizações humanitárias sejam vistas como alvos secundários, caso sejam suficientemente associadas por esses grupos com as potências ocupantes poderão vir a sofrer novos ataques (HYDER, 2007, p. 7). Isto é um exemplo de como os conflitos internacionais do século XXI e o terrorismo impõem sérias dificuldades e desconfianças para o trabalho das organizações humanitárias por parte daqueles envolvidos. 5. O instrumentalismo do direito A discussão acadêmica no âmbito do direito internacional tem chegado à conclusão de que as normas de direito da guerra do direito islâmico não são tão diferentes das normas do direito humanitário. Pelo contrário, percebe-se que não há um conflito de civilizações ou culturas quando se trata de proteger a vida e a dignidade de vítimas de conflitos armados, mas sim que essas normas em geral possuem um caráter universal e independem de cultura ou crença religiosa. Contudo, se essas normas existem no direito islâmico, como explicar, portanto, os ataques contra civis e as interpretações de grupos extremistas no sentido de que isto seria permitido? A nosso ver, isto ocorre devido ao fato de que tanto as regras de direito islâmico quanto as regras de direito internacional humanitário são utilizadas de maneira estratégica e instrumental pelos diferentes grupos e líderes para justificar seus interesses. Alguns autores indicam declarações públicas de líderes de movimentos ativistas islâmicos que corroborariam este entendimento. Um líder da Irmandade Islâmica da Jordânia teria dito: “Nós respeitaríamos o direito internacional humanitário se Israel o respeitasse. Nós somente iremos condenar [os palestinos] quando Israel parar de atacar civis”. Um líder do Hizbollah teria dito: “O ataque contra civis é inaceitável”, mas “como você pode responder ao fato de que Israel ataca os nossos civis? Nós temos que punilos”. Aponta-se que este líder do Hizbollah também disse que o acordo com Israel que vedava mutuamente o ataque contra civis, de 1996, não teria sido assinado caso não houvessem sido perpetrados ataques em represália contra civis israelenses. Do mesmo modo, Ismail Abu Shanab, do Hamas, teria dito: “Se você pedisse para que nós obedecêssemos [o direito internacional humanitário], isto não seria difícil. Os ensinamentos islâmicos não são contra as Convenções de Genebra. Elas são aceitas. Mas no que concerne o outro lado, se eles não as cumprirem, nós não podemos ser obrigados a elas”.8 Estas declarações corroboram o entendimento de que o direito islâmico não é intrinsecamente incompatível com o direito internacional humanitário. Pelo contrário, como exposto neste artigo, percebe-se a existência de uma série de normas islâmicas que vedam o ataque contra civis, mulheres, crianças e não combatentes e que, inclusive, surgem historicamente antes mesmo das normas ocidentais. Entretanto, mesmo sendo essas condutas vedadas, os grupos extremistas se utilizam do argumento religioso de modo instrumental para buscar legitimidade para seus atos, algo que é influenciado pela já citada existência de uma ampla gama de possibilidades de interpretação de uma mesma norma no âmbito do direito islâmico. Há, portanto, uma forte influência do discurso religioso na política, mas que, muitas vezes, é meramente instrumental. Em outras palavras, mais do que um conflito cultural e religioso entre valores inconciliáveis de civilizações distintas – como muitas vezes o terrorismo é apresentado – trata-se frequentemente de um conflito político. 6. Perspectivas para o futuro: por um diálogo entre as civilizações Ao se estudar o islamismo e a cultura local, não se deve cometer o erro de generalizar e concluir que tudo se reduz à religião. Percebe-se que, muitas vezes, o discurso religioso é utilizado de forma instrumental pelos diferentes grupos para formular justificativas de suas ações perante seus seguidores. Como visto, há muitas vezes uma identidade entre as normas de direito humanitário e as normas islâmicas relativas aos conflitos armados, e não uma contradição. Entretanto, ainda que os grupos extremistas reconheçam que os ataques contra civis sejam algo condenável, eles ainda são perpetrados como 8 Estas declarações foram citadas em um seminário online de especialistas do Programa de Pesquisa em Política e Conflitos Humanitários da Universidade de Harvard, de 17 junho de 2009. O seminário se encontra disponível online, e pode ser acessado em: http://ihl.ihlresearch.org/index.cfm?fuseaction=page. viewPage&pageID=2085&nodeID=2 (última vez acessado em 01 de novembro de 2010). forma de represália ou de pressão política. Em suma, a compreensão do elemento religioso não exclui uma análise dos diferentes interesses e das forças políticas que estão em jogo em cada questão. A compreensão das normas de direito islâmico pode, contudo, garantir uma maior cooperação entre as culturas e uma maior proteção das vítimas de conflitos armados. A proteção das vítimas de conflitos armados deve independer de nacionalidade, religião ou de origem étnico-cultural. Pouco importa a fonte do arcabouço normativo que garante essa proteção, seja proveniente de normas internacionais, seja de um direito local. Pode ser mais eficaz, em uma situação concreta de conflito armado, invocar uma norma do direito islâmico local, que vede o ataque contra civis, do que uma norma de direito internacional, que poderia ser vista como uma forma de influência externa. Neste sentido, isto nega a tese de que a aplicação de normas locais acarretaria em uma menor proteção do que a aplicação das normas humanitárias internacionais. Além disso, este tipo de estudo pode facilitar futuras negociações, de modo que ambas as partes poderão compreender as razões mútuas e discutir sob uma base argumentativa comum, com a consciência de quais argumentos serão mais ou menos eficazes. Entender os motivos e os discursos de justificação de grupos militantes islâmicos pode ajudar a melhor compreender o que os leva a considerar determinados indivíduos ou instituições como alvo, contribuindo para evitar que ataques, como aqueles cometidos contra organizações humanitárias, voltem a ocorrer no futuro. Por esses motivos citados, devem ser priorizadas perspectivas multiculturais, que encontrem as bases comuns entre as diferentes culturas, ao invés de apontar para suas diferenças. Ao se incentivar as iniciativas que respeitem as culturas locais, se torna perceptível que a proteção de civis e de outras vítimas de conflitos armados é um valor universal, presente em ambas as culturas ou civilizações. Esta perspectiva é, inclusive, mais eficaz, mesmo sob um ponto de vista puramente pragmático, uma vez que prioriza as interpretações dos grupos moderados, que prezam pelo diálogo intercultural. Neste sentido, o reconhecimento do direito islâmico como uma fonte do direito internacional humanitário é um fator que contribui para sua maior eficácia. A ingerência em assuntos internos de outros países e a tentativa de impor valores externos é algo que certamente conduzirá ao recrudescimento do extremismo e fortalecimento de grupos fundamentalistas. A resposta ao terrorismo deve ser feita em nome da diversidade de todas as civilizações, e não em nome de uma suposta luta entre bem em mal, pois isto significaria cair novamente na barbárie, tal como ensina Francis Wolff (WOLFF, 2004, p. 43). Uma iniciativa que pode ser citada neste sentido é o Fórum da Aliança das Civilizações,9 criado no âmbito das Nações Unidas pelos governos da Espanha e da Turquia após os atentados no metrô de Madrid de 2004. Como o próprio nome diz, trata-se de um fórum que busca fomentar um diálogo entre as diferentes culturas, de modo a evitar o extremismo e o fundamentalismo e buscar uma base comum entre as culturas, negando a existência de uma incomunicabilidade intrínseca entre si, tal como prega a teoria do choque de civilizações proposta por Huntington. O último fórum ocorreu no Rio de Janeiro em maio de 2010, tendo como um de seus grupos temáticos o papel dos líderes religiosos na manutenção da paz, e foi simbólico no sentido de que serviu para a chancelaria brasileira reafirmar, perante a comunidade internacional, seus valores multiculturais como um país em que culturas diversas convivem em paz, inclusive os milhões de judeus e descendentes árabes. Bertolt Brecht diz num de seus poemas: “Pergunta a cada idéia: serves a quem?”. De fato, a tese do choque de civilizações obteve terreno fértil justamente entre aqueles que defendiam uma “guerra contra o terror”, ou a reinvenção do direito internacional mediante as intervenções “humanitárias”, as guerras de “legítima defesa preventiva” e o uso unilateral da força em violação ao sistema multilateral da ONU. Para um país como o Brasil, que busca se afirmar como uma potência pacífica e multicultural, tal teoria não somente seria para si incompatível, como violaria os princípios constitucionais fundamentais que regem a suas relações internacionais, definidos no artigo 4º da Constituição da República, tais como: a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. 9 http://www.unaoc.org/ Referências ALI, Shaheen Sardar; REHMAN, Javaid. The concept of jihad in islamic international law. Journal of Conflict and Security Law, v. 10, n. 3, 2005, p. 321-343. AL-QAZWINI, Imam Sayed Moustafa. Just war: an islamic perspective. Nexus, v. 9, 2004, p. 79-86. AL-ZUHILI, Sheikh Wahbeh. Islam and international law. International Review of the Red Cross, v. 87, n. 858, 2005, p. 269-283. AN-NA'IM, Abdullahi Ahmed. Islamic law, international relations, and human rights: challenge and response. Cornell International Law Journal, v. 20, 1987, p. 317-336. ARZT, Donna E. The application of international human rights law in islamic states. Human Rights Quarterly, v. 12, 1990, p. 202-230. BADAWI, Nesrine. Introduction to islamic law. Working Paper, Program on Humanitarian Policy and Conflict Research at Harvard University, Fevereiro, 2009a. BADAWI, Nesrine. Islamic jurisprudence and the regulation of armed conflict. Working Paper, Program on Humanitarian Policy and Conflict Research at Harvard University, Fevereiro, 2009b. BADERIN, Mashood A. Dialogue among civilisations as a paradigm for achieving universalism in international human rights: a case study with islamic law. AsiaPacific Journal on Human Rights and the Law, v. 2, n. 2, 2001, p. 1-41. BENNOUNE, Karima. As-salamu alaykum? Humanitarian law in islamic jurisprudence. Michigan Journal of International Law, v. 15, 1993-1994, p. 605-644. BOSTANJI, Sami. É a sharia a única fonte de direito nos países árabes? In: ARAUJO, Heloisa Vilhena de (org.). Diálogo América do Sul-países árabes. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2005, p. 81-142. CHASE, Anthony. Legal guardians: islamic law, international law, human rights law, and the Salman Rushdie affair. American University Journal of International Law and Policy, v. 11, 1996, p. 375-436. COCKAYNE, James. Islam and international humanitarian law: from a clash to a conversation between civilizations. International Review of the Red Cross, v. 84, n. 847, Setembro, 2002, p. 597-626. ENGELAND. Anisseh Van. The differences and similarities between international humanitarian law and islamic humanitarian law. Journal of Islamic Law and Culture, v. 10, n. 1, 2008. FERRANE, Mohammed El. A sharia e o direito positivo nas sociedades árabomuçulmanas modernas. In: ARAUJO, Heloisa Vilhena de (org.). Diálogo América do Sul-países árabes. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2005, p. 65-80. FREAMON, Bernard K. Martyrdom, suicide, and the islamic law of war: a short legal history. Fordham International Law Journal, n. 27, 2003-2004, p. 299-369. GULAM, Hyder. Islam, law and war. Murdoch University Electronic Journal of Law, v. 13, 2006, p. 140-157. HASHMI, Sohail H. International society and its islamic malcontents. Fletcher Forum of World Affairs, v. 20, 1996, p. 13-30. HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. HYDER, Masood. Humanitarianism and the muslim world. Journal of Humanitarian Assistance, 2007. JACKSON, Sherman A. Domestic terrorism in the islamic legal tradition. The Muslim World, v. 91, 2001, p. 293-310. KIRMANI, Nida; KHAN, Ajaz Ahmed. Does faith matter: an examination of islamic relief's work with refugees and internally displaced. Refugee Survey Quarterly, v. 27, 2008. KRAFESS, Jamal. The influence of the muslim religion in humanitarian aid. International Review of the Red Cross, n. 858, Junho, 2005, p. 327-342. MAHMASSANI, Sobhi. The principles of international law in the light of islamic doctrine. Recueil des cours de l'Academie Droit International de la Haye, v. 117, 1966, p. 201-328. MARSOOF, Saleem. Islam and international humanitarian law. Sri Lanka Journal of International Law, v. 15, 2003, p. 23-28. MAYER, Ann Elizabeth. Universal versus islamic human rights: a clash of cultures or a clash with a construct? Michigan Journal of International Law, v. 15, 1993-1994, p. 307-404. MEDDEB, Abdelwahab. O islã entre civilização e barbárie. In: NOVAES, Adauto (org.). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 171-196. MESSARI, Nizar. O islã e a política. In: ARAUJO, Heloisa Vilhena de (org.). Diálogo América do Sul-países árabes. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2005, p. 134. MILLIOT, Louis. La conception de l'état et de l'ordre légal dans l'islam. Recueil des cours de l'Academie de Droit International de la Haye, v. 75, 1949, p. 591-687. MUNIR, Muhammad. Suicide attacks and islamic law. International Review of the Red Cross, v. 90, n. 869, 2008, p. 71-89. NASSER, Salem Hikmat. Seria a sharia a única fonte de direito nos países árabes? In: ARAUJO, Heloisa Vilhena de (org.). Diálogo América do Sul-países árabes. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2005, p. 37-63. PICTET, Jean. Development and principles of international humanitarian law. Martinus Nijhoff Publishers, 1985. RAHAEI, Saeid. Islam, human rights and displacement: the rights of refugee women and children in Islam. Forced Migration Review, v. 32, Suplemento, Janeiro, 2009. RECHID, Ahmed. L'Islam et le droit des gens. Recueil des cours de l'Academie Droit International de la Haye, v. 60, 1937, p. 371-506. SALAYMEH, Lena. Early islamic legal-historical precedents: prisoners of war. Law and History Review, v. 26, 2008, p. 521-544. SCHWARTZ, David Aaron. International terrorism and islamic law. Columbia Journal of Transnational Law, v. 29, 1991, p. 629-652. SILVERMAN, Adam L. Just war, jihad, and terrorism: a comparison of western and islamic norms for the use of political violence. Journal of Church and State, v. 44, 2002, p. 73-92. SMITH, Perry S. Of war and peace: the hudaibiya model of islamic diplomacy. Florida Journal of International Law, v. 18, 2006, p. 135-168. STUMPF, Christoph A. Christian and islamic traditions of public international law. Journal of the History of International Law, v. 7, 2005, p. 69-80. SUPERVIELLE, Manuel E. F. Islam, the law of war, and the U.S. soldier. American University International Law Review, v. 21, 2005-2006, p. 191-220. TAUBE, Baron Michel de. Études sur le développement historique du droit international dans l'Europe orientale. Recueil des cours de l'Academie Droit International de la Haye, v. 11, 1926, p. 341-535. THOMAS, Troy S. Jihad's captives: prisoners of war in islam. United States Air Force Academy Journal of Legal Studies, v. 12, 2002-2003, p. 87-102. TIBI, Bassam. Islamic Law/Shari'a, human rights, universal morality and international relations. Human Rights Quarterly, v. 16, 1994, p. 277-299. VOGEL, Frank E. The trial of terrorists under classical islamic law. Harvard International Law Journal, v. 43, n. 1, 2002, p. 53-64. WEERAMANTRY, Christopher G. Islamic perspective. Macmillan, Houndmills, 1988. jurisprudence: an international WESTBROOK, David A. Islamic international law and public international law: separate expressions of world order. Virginia Journal of International Law, v. 33, 1992-1993, p. 819-898. WING, Adrien Katherine. International law, secularism, and the islamic world. American University International Law Review, v. 24, 2008-2009, p. 407-428. WOLFF, Francis. Quem é bárbaro? In: NOVAES, Adauto (org.). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 19-43. YAMANI, Ahmed Zaki. Humanitarian international law in islam: a general outlook. Michigan Yearbook of International Legal Studies, v. 7, 1985, p. 189-216.