Texto 2 - Carnavais, malandros e heróis
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Texto 2 - Carnavais, malandros e heróis
Carnavais, Malandros e Heróis – Para uma sociologia do dilema brasileiro. (Texto 02) Roberto DaMatta – Resumo e comentários de Marcelo Loyola Fraga ocorre no desfile militar do Dia da Pátria, em que, embora exista obviamente uma reunião do povo com as autoridades, sua separação é patente e o foco dos símbolos, gestos e falas rituais é unívoco. Rotinas e Ritos As festas são momentos extraordinários marcados pela alegria e por valores considerados altamente positivos. A rotina da vida diária é que é vista como negativa. Daí o cotidiano ser designado pela expressão dia-adia ou, mais significativamente, vida ou dura realidade da vida. Em outras palavras, sofrese na vida, na rotina impiedosa e automática do cotidiano, em que o mundo é reprimido pelas hierarquias do poder do “sabe com quem está falando?”, e, obviamente, do “cada coisa em seu lugar”. Assim, pode-se dizer que o mundo automático da vida diária é o mundo das hierarquias e do caxias como paradigmas do comportamento quadradamente pautados pelas normas vigentes. A associação do nome do patrono do Exército a um tipo de comportamento formal, pautado por uma extrema preocupação com o cumprimento das normas, mais considerado de forma pejorativa, parece indicar a percepção complexa que temos da nossa ordem social, que nos permite leituras duplas ou triplas da sociedade brasileira. O carnaval comparação e o dia da Pátria: O que caracteriza os dois rituais, em termos dos grupos que o patrocinam é, então, a natureza desses grupos. Assim se diz que carnaval é uma festa do povo, ao passo que o Dia da Pátria é um ritual que focaliza muito mais (por sua organização interna e externa) as autoridades e os símbolos nacionais. Num caso, os grupos acentuam suas posições rituais em homologia com as posições que ocupam no mundo cotidiano. A hierarquia é, pois, mantida e, por meio de uma dramatização, manifesta. No outro as posições sociais ocupadas no cotidiano são neutralizadas ou invertidas: os rituais populares são ritos que objetivam o encontro, não a separação. E, realmente, na Independência, comemora-se o nascimento (ou pré-nascimento) do Estado Burguês, teoricamente aristocrático. Mas, no carnaval, a comemoração é cósmica (universal). Aqui celebra-se o estado de ser pobre e destituído. Desse modo, enquanto no primeiro caso o foco é a virtude burguesa da individualização ostensiva, a separação das fronteiras, no segundo focaliza-se o povo como massa não-individualizada. A ênfase é no encontro e no cerne da sociedade em sua vertente criativa fundamental que sempre se representa pelo que se chama de popular. uma O ponto focal do Dia da Pátria é a passagem pelo local sacralizado onde se presta continência às mais altas autoridades constituídas. O povo faz o papel de assistente, e, junto com os soldados prestigia o ato de solidariedade e de respeito às autoridades e aos símbolos nacionais (a bandeira e as armas da República), por meio do sinal paradigmático de continência. O desfile militar cria um sentido de unidade, sendo seu ponto crítico a dramatização da idéia de corporação nos seus gestos, vestes e verbalizações, que são sempre idênticos. No dia da Pátria, assim, ficam separados autoridades e povo e, dentre as autoridades, aquelas que detêm e controlam maior ou menor parcela de poder. Como o desfile carnavalesco reúne um pouco de tudo – a diversidade na uniformidade, a homogeneidade na diferença, o pecado no ciclo temporal cósmico e religioso, a aristocracia de costume na pobreza real dos atores -, ele remete a vários subuniversos simbólicos da sociedade brasileira, podendo ser chamado de um desfile polissêmico. O oposto é o que O caso dos rituais brasileiros constitui um bom exemplo de três modos possíveis de salientar e tornar manifesto, por meio de um discurso específico, aqueles aspectos considerados importantes da estrutura da sociedade brasileira. Assim, o primeiro discurso – o Dia da Pátria - salienta os aspectos rotinizados (e por isso mesmo implícitos e internalizados) da ordem social. Traz à tona a hierarquia que é parte do sistema social, e é dominado pela ênfase com que tal sistema de posições é salientado. O segundo discurso possível é aquele que focaliza (ou destaca) os aspectos ambíguos da ordem social. É o que acontece no carnaval, quando o foco do rito parece ser o conjunto de sentimentos, ações, valores, grupos e categorias que cotidianamente são inibidos por serem problemáticos. Aqui o foco é o que está nas margens, nos limites e nos interstícios da sociedade. O discurso das festas religiosas, por seu turno, permite surpreender uma perspectiva da estrutura social em que o foco é simultaneamente os valores locais e universais. 1 Tudo leva à suposição de que haja uma tentativa nesses festivais de conciliar o povo com o Estado por meio do culto a Deus (ou ao santo), permitindo o encontro e convivência dos diversos elementos descontínuos da estrutura social sob a égide da Igreja, corporação que tem o monopólio das relações com o espiritual. As festas religiosas, por colocarem lado a lado e num mesmo momento as autoridades e o povo, os santos e os pecadores, os homens sadios e os doentes, atualizam em seu discurso uma sistemática neutralização de posições, grupos e categorias sociais, exercendo uma espécie de Pax Catholica. Pode-se concluir que, Roberto DaMatta expressa em suas comparações com os discursos, que os rituais dizem as coisas tanto quanto as relações sociais (sagradas ou profanas, locais ou nacionais, formais ou informais). Tudo indica que o problema é que, no mundo ritual, as coisas são ditas com mais veemência, com maior coerência e com mais clareza às mensagens sociais. Destaca, ainda, que não há ritualização que não esteja utilizando um mecanismo cujas intenções são neutralizar, reafirmar ou pôr tudo “de cabeça para baixo”. E conclui que, devemos prestar mais atenção às relações sociais e aos sistemas dessas relações do que aos efeitos de suas combinações, como parece ser o caso dos rituais. A casa e a rua DaMatta(1997) considera que a oposição entre rua e casa é básica, podendo servir como instrumento poderoso na análise do mundo social brasileiro, sobretudo quando se deseja estudar a sua ritualização. Rua está relacionado a descontrole e massificação e casa está relacionado a controle e autoritarismo. A rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares. Por outro lado, a rua implica movimento, novidade, ação, ao passo que a casa subentende harmonia e calma. Local de calor (como revela a palavra de origem latina lar, utilizada em português para casa) e afeto. E mais, na rua se trabalha, em casa se descansa. Assim, os grupos sociais que ocupam a casa são radicalmente diversos daqueles da rua. Na casa temos associações regidas e formadas pelo parentesco e relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou implicam essa possibilidade. Assim, em casa as relações são regidas naturalmente pela hierarquia do sexo e das idades, como homens e mais velhos tendo a precedência; ao passo que na rua é preciso muitas vezes algum esforço para se localizar e descobrir essas hierarquias, fundadas que estão em outros eixos. Desse modo, embora ambos os domínios devam ser governados pela hierarquia fundada no respeito, conceito relacional básico no universo social brasileiro, o local básico do respeito se situa nas relações entre pais e filhos, sobretudo no eixo que, em muitos contextos, parece reproduzir nitidamente a relação patrãoempregado. O traço distintivo do domínio da casa parece ser o maior controle das relações sociais, o que certamente implica maior intimidade e menor distância social. Minha casa é o local da minha família, da “minha gente” ou “dos meus”, conforme falamos coloquialmente no Brasil. Mas a rua implica uma certa falta de controle e um afastamento. É o local do castigo, da “luta” do trabalho. Numa palavra, a rua é o local daquilo que os brasileiros chamam de “dura realidade da vida”. A rua como categoria genérica em oposição a casa, é o local público, controlada pelo “Governo” ou pelo “destino”, essas forças impessoais sobre as quais o nosso controle é mínimo. Nesse sentido, a rua é equivalente à categoria mato ou floresta do mundo rural. E aqui estamos novamente falando de um domínio semidesconhecido e semicontrolado, povoado de personagens perigosos. Assim, é na rua e no mato que vivem os malandros, os marginais e os espíritos, essas entidades com quem nunca se tem relações contratuais precisas. Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil DaMatta considera que uma pessoa usará a expressão “Sabe com quem está falando?” quando: a) sentir sua autoridade ameaçada ou diminuída; b) desejar impor de forma cabal e definitiva o seu poder; c) inconsciente ou conscientemente perceber no seu interlocutor uma possibilidade de inferiorizá-lo em relação ao seu status social; d) por pessoa interiormente fraca ou que sofre por complexo de inferioridade; e) o interlocutor, de uma forma ou de outra, é percebido como ameaça ao cargo que ocupa. O “sabe com quem está falando?” tem inúmeras variantes, seus equivalentes: “Quem você pensa que é?”, “Onde você pensa que está?”, “Recolha-se a sua insignificância!”, “Vê se te enxerga!”, “Você não conhece o seu lugar?”, “Veja se me respeita!”, “Será que não tem vergonha na cara?”, “Mais respeito!”, etc. As expressões podem realizar o mesmo ato expressivo e consciente que, na sociedade 2 brasileira parece fundamental para estabelecimento (ou restabelecimento) ordem e da hierarquia. o da Nota-se que a maioria dessas expressões assume uma forma interrogativa, o que, no Brasil, surge como um modo evidentemente não cordial. Em nossa sociedade, a indagação está ligada ao inquérito, forma de processamento jurídico acionado quando há suspeita de crime ou pecado, de modo que a pergunta deve ser evitada. Sem a interrogação, a vida social parece correr no seu fluxo normal, de modo que é possível postular uma provável ligação entre o temor das formas interrogativas e as sociedades preocupadas com a hierarquia, onde normalmente tudo deve estar no seu lugar. A pergunta em tais sistemas pode configurar uma tentativa de tudo revolucionar, detendo (ou suspendendo) a rotina santificada do sistema. Assim, não é de se estranhar a surpresa dos brasileiros em países como os Estados Unidos, onde a pergunta é parte normal do mundo das relações sociais. Além disso, descobrem-se formas interrogativas desagradáveis por lá, mas de modo bastante diverso. Como já disse com clareza André Maurois: “Àqueles que se julgam com superioridade suficiente para poderem passar à frente dos outros na alfândega ou no restaurante, o americano dirá: Quem você julga que é? (Who do you think you are?), e obriga-lo-á a ocupar o seu lugar”. O exemplo não poderia ser melhor, porque no caso americano a pergunta aparece no sentido inverso, para situar o homem como um igual, e não como um superior. A forma americana contendo inclusive o verbo “pensar” (to think), indica que o pedante com pretensões de superioridade atua num plano de fantasia, pois, é certamente ele que pensa (tomando a realidade social subjetiva) algum direito a mais do que os outros. Seus concidadãos de fila, ao contrário, usam a fórmula para trazê-lo de volta ao mundo real, reforçando as regras igualitárias e colocando no plano imaginário e da fantasia as pretensões hierarquizantes. Assim, enquanto o “Sabe com quem está falando?” situa quem o usa numa posição superior, sendo um rito autoritário de separação de posições sociais, o “Who do you think you are?” é, inversamente, um rito igualitário. Num caso, quem usa a fórmula é quem pensa ser superior. Noutro, quem se utiliza dela é aquele que é atingido pela pretensão autoritária. Em todos os níveis, nota-se a inversão simétrica das duas sociedades. No Brasil, é preciso traduzir e legitimar o poderio econômico no idioma hierarquizante do sistema. E esse idioma revela as linhas das classificações fundadas na pessoa, na intelectualidade e na consideração por uma rede de relações pessoais. É necessário então ser doutor e sábio, além de rico. E estar penetrado (ou compenetrado, como falamos) por alguma instituição ou corporação perpétua, como as Forças Armadas ou órgão do Estado. Os “doutores” assim substituíram os comendadores, barões, viscondes e conselheiros do Império. Era o modo de manter a nobreza e as distinções hierárquicas, mas usando outros recursos de diferenciação social. Ou seja, não basta apenas a posição no mundo dos negócios. Isso será suficiente nos Estados Unidos ou na França. No Brasil não, é preciso ser “doutor”. Existem medalhões em todos os domínios da vida social brasileira: na favela e no Congresso; na arte e na política; na universidade e no futebol; entre policiais e ladrões. São as pessoas que podem ser chamadas de “homens”, “cobras”, “figuras”, “personagens” etc. e que ocorrem em qualquer campo. São os que já transcenderam as regras que constrangem as pessoas comuns daquela esfera social. É alguém que não precisa mais ser apresentado e com quem se deve primeiro falar (e/ou se “entender”). Em sistemas igualitários, essas figuras são chamadas de VIPs (very important persons), e são raras. Em sistemas hierarquizantes, elas existem em toda parte, em todos os domínios, e são elas que fazem as conexões básicas entre os diversos círculos hierarquizados que formam uma espécie de esqueleto do universo social. Gozam, assim, de uma fama justificada e de um prestígio especial que se manifesta no modo pelo qual são tratados: livres das regras constrangedoras do sistema, colocados unanimamente numa espécie de Nirvana social, um Himalaia das escalas hierárquicas, acima das brigas rotineiras. É quando não se precisa mais usar o “sabe com quem está falando?”. O Sabe com quem está falando dramatização do mundo social como 1. Num parque de estacionamento de automóveis, o guardador diz ao motorista que não há vaga. O motorista, entretanto, insiste dizendo que as vagas estão ali. Diante da negativa firme do guardador, o motorista diz irritado: “Sabe com quem está falando?”, e revela sua identidade de oficial do Exército. 3 2. Uma senhora resolve fazer compras em Copacabana e decide estacionar o carro em cima da calçada, em local proibido. Após algumas horas, o guarda a localiza e pede que ela mande o seu motorista tirar o carro daquela área. A mulher insiste em ficar e diz “Você sabe com quem está falando? Sou a esposa do Deputado Fulano de Tal!” (O desfecho é ambíguo, com a mulher saindo possessa e o guarda ficando totalmente embaraçado de medo e vexame. Há casos em que dias depois, o guarda é obrigado a pedir desculpas à madame.). 3. Alguém viaja para o exterior e deseja importar algum material taxado pela alfândega. Entra em contato com parentes, que finalmente localizam alguém na alfândega. No dia da chegada, estando tudo combinado, a pessoa passa pela fiscalização sem problemas, pois o fiscal sabe com quem está falando. 4. Há uma batida de automóveis. Os dois motoristas saltam de seus carros esperando o pior. Um deles grita: “Sabe com quem está falando? Sou coronel do Exército!” E o outro diz “Eu também!” Então eles se olham, reconhecem-se e resolvem enfrentar o problema com calma. 5. Na ante-sala de um gerente de banco, algumas pessoas esperam sua vez. Entra um senhor, e, após esperar com impaciência alguns minutos, diz num vozeirão: “sabe com quem está falando? Sou Fulano de Ta!” A secretária, nervosa, vai imediatamente ao gerente, e ele logo depois é atendido. Alguns pontos são comuns a todos os casos: configuram uma situação dramática de grave conflito entre duas pessoas. Em situações assim, o tom de voz, expressão facial e os gestos em geral são tensos, reveladores de que as pessoas implicadas estão em extremo grau de excitação. É como falamos no Brasil: uma situação típica de “Deus me livre” ou “Deus nos acuda”. Isto é, um momento em que o senso comum define como “fim do mundo”, quando as regras do cotidiano estão inteiramente suspensas e as pessoas, freqüentemente possessas de raiva e indignação, estão entregues a si mesmas e ao confronto cara a cara. É claro que em tais situações há uma platéia, de modo que o caso logo se transforma num negócio grupal, com cada um dos disputantes procurando convencer o grupo a tomar o seu partido contra o outro. E o grupo agindo como mediador e legitimador entre os dois. Como conseqüência, ocasiões assim suspendem as rotinas da vida social, fazendo com que as testemunhas cogitem sobre a própria natureza da ordem por meio de julgamentos típicos e definitivos. É comum então ver-se nas dramatizações mais intensas e duradouras do “sabe com quem está falando?” meneios negativos de cabeças acompanhados de expressões tais como “é o fim...”, “é o Brasil”, “o mundo está mesmo virado”, “esse Brasil está perdido”, “veja você...”, “onde é que nós estamos?”, “onde já se viu?” – expressões que revelam as frustrações cotidianas e uma certa desconfiança no sistema de regras que governa o mundo. Depois de um desagradável “sabe com quem está falando?”, quando o mais forte acaba por vencer o mais fraco, fica-se realmente convencido de que o mundo é ruim, e que o melhor, o ideal mesmo, é a orientação para a casa e a família, nunca para a rua e para o mundo onde a vida se manifesta de forma injusta e cruel. Assim o “sabe com quem está falando?” contribui e manifesta essa “desconfiança básica do mundo” que nos distingue do universo puritano dos norteamericanos. Das distinções entre indivíduo e pessoa A noção de pessoa pode ser caracterizada como uma vertente coletiva de individualidade, uma máscara colocada em cima do indivíduo ou entidade individualizada (clã, família, clube, associação etc.) que desse modo se transforma em ser social. Quando a sociedade atribui máscaras a elementos que deseja incorporar no seu bojo, o faz por meio de rituais, penetrando por assim dizer essa coisa que deve ser convertida em algo socialmente significativo. Isso equivale a tomar algo que antes era empiricamente dado (algo natural), como uma criança, uma árvore, um pedaço de pedra, uma casa recém construída, para elaborar uma relação essencial, ideologicamente marcada. Resumindo, diria que a noção de indivíduo e de pessoa recobre as seguintes características: Indivíduo Livre, tem direito a um espaço próprio Igual a todos os outros Tem escolhas que são vistas como o seu direito fundamental Tem emoções particulares A consciência é individual Pessoa Presa à totalidade social à qual se vincula de modo necessário Complementar aos outros Não tem escolhas Tem emoções sociais A consciência é social 4 A amizade é básica no relacionamento = escolhas Faz as regras do mundo onde vive Não há mediação entre ele e o todo A amizade é residual e juridicamente definida Recebe as regras do mundo onde vive A segmentação é a norma No Brasil, tudo indica que temos uma situação na qual o indivíduo é a noção moderna, superimposta a um poderoso sistema de relações pessoais. Assim, o “sabe com quem está falando?”, o carnaval, o futebol, a patronagem e o sistema de relações pessoais são fenômenos estruturais. Em formações sociais desse tipo, a oposição indivíduo/pessoa é sempre mantida, ao contrário das sociedades que fizeram sua “reforma protestante”, quando foram destruídos, como demonstra Max Weber (1967), os mediadores entre o universo social e o individual. No mundo protestante, desenvolveu-se uma ética do trabalho e do corpo, propondo-se uma união igualitária entre o corpo e a alma. Já nos sistemas católicos, como o brasileiro, a alma continua superior ao corpo, e a pessoa é mais importante que o indivíduo. Assim, continuamos a manter uma forte segmentação social tradicional, com todas as dificuldades para a criação das associações voluntárias que são a base da “sociedade civil”, fundamento do Estado Burguês, liberal e igualitário, dominado por indivíduos. Temos então no Brasil, ao lado do “sabe com quem está falando?”, as famosas expressões “preto de alma branca” e “dinheiro não traz felicidade”, tudo isso junto com a equação segundo a qual trabalho é igual a castigo e riqueza é sinônimo de sujeira, de coisa ilícita. Basta ler alguns aforismos de Bem Franklin (in Weber, 1967) para ver como a idéia do capitalismo é entrar no mundo, e não fugir ou renunciar a ele, como parece ser o caso entre nós. Desse modo, no sistema protestante (e capitalista), o corpo vai junto com a alma, o dinheiro segue o trabalho, e o indivíduo faz o mundo e suas regras. Já entre nós, o corpo é menor do que a alma, dinheiro e trabalho são coisas separadas e sãs as pessoas que comandam. A idéia de uma sociedade segmentada, com as oposições clássicas entre homem/mulher, velho/moço, rua/casa, boa vida/trabalho. No Brasil, são inúmeras as expressões que denotam o desprezo pelo “indivíduo”, usado como sinônimo de gente sem princípios, um elemento desgarrado do mundo humano e próximo da natureza, como os animais. Daí a expressão “indivíduo” poder ser utilizada na linguagem da crônica policial como um terrível sinônimo para o pleno anonimato. Utilizamos então expressões como “aquele indivíduo sem caráter”, ou “ou o indivíduo assassinou o menino sem piedade” etc., tomando a individualização no seu sentido literal, como para exprimir a realidade de alguém que foi incapaz de dividir-se, de dar-se socialmente. Ficando “indivisa”, aquela criatura não foi capaz de ligar-se na sociedade, não foi penetrada por ela, como ocorre quando se é uma pessoa. Daí no Brasil, o individualismo ser também um sinônimo e expressão cotidiana de egoísmo, um sentimento ou atitude social condenada entre nós. No Brasil, assim, o indivíduo entra em cena, todas as vezes em que estamos diante da autoridade impessoal que representa a lei universalizante, a ser aplicada para todos. E, já vimos quando usamos o “sabe com quem está falando?” ou formas mais sutis e brandas de revelar a verdadeira “identidade” social. Não mais como cidadãos da República, iguais perante a lei, mas como pessoas da sociedade, relacionadas essencialmente com certas personalidades e situadas acima da lei. Desenvolvendo ao longo dos anos essa maneira de hierarquizar e manter as hierarquias do mundo social, criamos os despachantes ou padrinhos para baixo, esses mediadores que fazem as intermediações entre a pessoa e o aparelho de Estado quando se deseja obter um documento como o passaporte ou a nova placa do carro, as pessoas – contratando um despachante – podem dispensar filas e um tratamento impessoalizado, quando se está sujeito aos vexames de um tratamento igualitário que é sempre sinônimo de tratamento inferior. O despachante, então, esse padrinho para baixo, garante um tratamento diferenciado em locais onde operam as regras impessoais, sua lógica de funcionamento sendo a mesma do padrinho (ou mediador para cima), que nos relaciona ao mundo social em geral como pessoas. Você deve ter ouvido falar da expressão “quem tem padrinho não morre pagão!”. No sistema social brasileiro, então, a lei universalizante e igualitária é utilizada freqüentemente para servir como elemento fundamental de sujeição e diferenciação política e social. Em outras palavras, as leis só se aplicam aos indivíduos e nunca às pessoas; ou, melhor ainda, receber a letra fria e dura da lei é tornar-se imediatamente um indivíduo. Poder personalizar a lei é sinal de que se é uma 5 pessoa. Desse modo, o sistema legal que define o chamado “Estado liberal moderno” serve em grande parte às sociedade semitradicionais – como o Brasil – como mais um instrumento de exploração social, tendo um sentido muito diverso para os diferentes segmentos da sociedade e para quem está situado em diferentes posições dentro do sistema social. Já o conjunto de relações pessoais é sempre um operador que ajuda a subir na vida, amaciando e compensando a outra vertente do sistema. As áreas de Passagem Mas reduzir nossa sociedade a apenas dois universos (o das pessoas e a dos indivíduos) seria simplificar demais o problema. Porque existem zonas de conflito e também zonas de passagem entre eles, e essas zonas são críticas para o entendimento de alguns processos sociais brasileiros. Vimos acima alguns dos dilemas colocados pelas relações entre os dois sistemas, pois fica claro que a lei é uma faceta indissociável da moralidade pessoal e do jeitinho, do mesmo modo que o “Caxias” é o outro lado do malandro, e o carnaval é o reverso da parada de Sete de Setembro. A moralidade pessoal, todavia, com seu código de interesses, intimidades e respeitos, acima circularmente os mecanismos jurídicos impessoais, de modo que as relações entre os dois sistemas são complexas e problemáticas. Vejamos agora alguns casos de passagem de um sistema ou domínio a outro, ou seja: quando e como os indivíduos se transformam em pessoas e quando as pessoas se transformam em atividades. Tomemos, inicialmente, a trajetória mais básica e universal entre nós, que vai do nascimento até a idade adulta, quando o indivíduo entra no mundo. Aqui a oposição básica é aquela entre a casa e a rua. Na casa as relações são marcadas pelo laço de sangue ou de substância, pelo dormir, pelo comer juntos, por uma atmosfera de estar meio dentro e meio fora do mundo real. Numa casa, no seio da família, fazemos a primeira passagem fundamental, pois, nascendo indivíduos, somos transformados em pessoas quando ganhamos o nosso nome no ritual de batismo, que nos liga ao mundo e à sociedade maior. Na casa ou no lar, só temos pessoas, e os papéis são vistos como complementares: velho/jovem; homem/mulher; pais/filhos; marido/mulher; família/empregada doméstica; sala/quarto etc. Na família e na casa, em conseqüência, o individualismo é banido e qualquer comportamento individualizante é vivido como uma ameaça à vida do grupo. Podemos, pois, dizer que no Brasil o domínio da pessoa é o da família e o da casa, onde todos se sentem agasalhados e protegidos da famosa e dramática luta pela vida. Mas o que significa a expressão luta pela vida e suas congêneres “vida”, “dura realidade da vida”, “sair de casa para ganhar a vida”, “mulher da vida”, “a vida é dura” etc.? Todas indicam a importância da dicotomia casa/rua como dois domínios sociais distintos e básicos no universo social do Brasil. O momento de saída de casa é, deste modo, dramático. E, porque efetivamente marcamos o mundo em termos de domínios e posições com regras internas diferenciadas, todas as passagens são perigosas e muito bem marcadas. Do primeiro dia na escola ao primeiro dia no trabalho, passando por todos os rituais como batismo, crisma, os aniversários e, sobretudo, as formaturas, todos os movimentos são ocasiões para uma aguda tomada de consciência de afastamento do grupo de substância e do lar, esse ponto de referência fixo na vida de qualquer brasileiro. Este movimento representa a passagem da pessoa (em casa) para indivíduo (rua, quando se entra no mercado de trabalho), sendo poucas as pessoas que ingressam no mercado de trabalho sem a passagem pelo estado de indivíduo, desconhecido e só, lutando para ser “alguém”. Normalmente, a passagem é de pessoa a indivíduo e depois a pessoa, quando o emprego se torna familiar e laços de simpatia, amizade e consideração são estabelecidos com os patrões. E toda troca de emprego é assim, existe este movimento da passagem de pessoa a indivíduo e depois o retorno para pessoa. Então não é por mero acaso que os brasileiros no exterior sentem saudade, ou seja, vêm descobrir a terrível nostalgia do estado de solidão, quando se situam diante de um mundo impessoal, sem nenhuma relação de mediação e de complementaridade com ele. Pedro Malasartes malandragem e o paradoxo da Aqui DaMatta (1999) faz uma comparação entre o Caxias e o malandro, o trabalhador honesto e o astuto. Aponta que está na cultura brasileira, que o trabalho puro e simples não pode ser tomado como um mediador perfeito entre a pobreza e a riqueza, pois ninguém fica rico com o trabalho, mas por meio de um golpe de sorte, por intermédio de um padrinho (ou madrinha), pelos favores de um patrão ou 6 alguém que nos dá a mão e nos ajuda a subir. Como compensação, a riqueza não traz necessariamente a felicidade. Temos, nessa narrativa, mais uma estrutura de hierarquização da estrutura social brasileira. Pois conforme diz a ideologia, ninguém muda de posição social somente pelo trabalho e pelo dinheiro. É preciso alguma coisa mais: um pouco de nobreza, muita sorte, alguma transformação substantiva, interna. A vadiagem e a astúcia (a malandragem) podem ser traduzidas sociologicamente como a recusa de transacionar comercialmente com a própria força de trabalho. Ou seja, de pôr a sua força de trabalho no mercado, já que isso implica – graças a demonstração de Marx – a apresentação da própria pessoa moral nesse mercado. Em outras palavras, o malandro prefere reter para si sua força de trabalho e suas qualificações. O vadio, assim, é aquele que não entra no sistema com sua força de trabalho, e fica flutuando na estrutura social, podendo nela entrar ou sair, ou ainda a ela transcender. A astúcia, por seu turno, pode ser vista como um equivalente do jeitinho como um modo estruturalmente definido de utilizar as regras vigentes na ordem em proveito próprio, mas sem destruí-las ou colocá-las em causa. A origem de Pedro Malasartes (http://www.terrabrasileira.net/folclore/r egioes/3contos/entesud.html) Pedro Malasartes é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos. Convergem para o ciclo de Malasartes episódios de várias procedências européias, vivendo mesmo nos contos orais dos irmãos Grimm, de Hans Andersen, dos exemplários da Europa de Leste e do Norte. É o tipo feliz de inteligência despudorada e vitoriosa sobre os crédulos, os avarentos, os parvos, orgulhosos, os ricos e os vaidosos, expressões garantidoras da simpatia pelo herói sem caráter. Em Portugal a mais antiga citação é a cantiga 1132 do Cancioneiro da Vaticana: chegou Payo de maas Artes, datando de fins do séc. XIV. Na Espanha ocorre em vários livros do séc. XVI, aproveitado literariamente, denunciando popularidade total. Na Lozana Andaluza, de Francisco Delicado, 1528, cita-se Pedro de Urdemalas. Tirso de Molina (Dom Gil de las Calzas Verdes, 2.º Ato, cena primeira) compara a heroína a Pedro de Urdemalas. Cervantes de Saavedra escreveu a Comédia Famosa de Pedro de Urdemalas (Madrid, 1615), onde o personagem vence pela arteirice imprevista, embora sem as liberdades morais dos contos populares. Ramón Laval informa que, em meados do séc. XVI, Alonso Jerônimo de Salas Barbadilho publicara a primeira parte do El Sutil Cordovés Pedro de Urdemalas. D. Francisco Manuel de Melo, no apólogo dos Relógios Falantes, cita a Pedro de Malas Artes. Pedro Malasartes, Malasartes, Urdemalas, Urdemales, Urdimale, Ulimale, Undimale, veio com portugueses e espanhóis para a América, onde se aclimatou e vive num vasto anedotário. O Prof. Aurélio M. Espinosa, da Stanford University, recolheu no Cuentos Populares Españoles, III, muitos episódios em várias províncias castelhanas. No Chile, Ramón Alvear Laval encontrou outros tantos, publicando um ensaio, Cuentos de Pedro Urdemales, Santiago de Chile, 1925, reimpresso em 1943. Maria Cadilla de Martinez fez semelhante em Porto Rico, Raices de la Tierra, Arecibo, 1941, sobre Pedro Urdemala, Pedro Urdiala ou Juan Animala. No Brasil, Sílvio Romero publicou um conto, “Uma das de Pedro Malas Artes”, 5.º do Contos Populares do Brasil, o Prof. Lindolfo Gomes divulgou doze façanhas, Contos Populares, I, 64. No Vaqueiros e Cantadores, Porto Alegre, 1939, registrei o Pedro Malasartes na poesia popular sertaneja nalgumas aventuras famosas (Pedro Malasartes no Folclore Poético Brasileiro, 183) e comentei seis aventuras suas no Contos Tradicionais do Brasil, “Seis Aventuras de Pedro Malasartes”, 218, Rio de Janeiro, 1946) publicando um estudo sobre o personagem (“Histórias de Pedro Malasartes”, A Manhã, 116-1944, Rio de Janeiro). Jorge de Lima e Mateus de Lima publicaram (Rio de Janeiro, segunda ed. 1946) um volume, Aventuras de Malasartes, mas se trata de sucessos de Till Eulenspiegel, estranhos à literatura oral brasileira. Malasartes figura com Till Eulenspiegel pela identidade de alguns processos psicológicos e não pelos assuntos. Não coincide Malasartes com os temas de seus irmãos Gusman d’Alfarache, Lazarillo de Tormes, Marcos de Obregón, Estebanillo Gonzáles, El Buscón e outros eminentes da novelística picaresca espanhola. O episódio mais tradicional é a venda de uma pele de cavalo, urubu ou outro pássaro vivo, tido como adivinho, por anunciar o jantar escondido pela adúltera e 7 expor o amante como sendo um demônio. É fusão de dois temas espalhadíssimos na Europa. O primeiro, Magic Cow-hide (K114, K1231, na sistemática de Stith Thompson), é elemento de um conto muito conhecido, The Rich and the Poor Peasant. Mt-1535 de Arne-Thompson, n.º 61 dos irmãos Grimm, divulgado por Andersen, Afanasiev, Gonzenbach. O segundo tema, identificação do amante como diabo e aproveitamento do jantar oculto, deu assunto a Cervantes para o entremez La Cueva de Salamanca (1610 ou 1611). Leite de Vasconcelos (Tradições Populares de Portugal, 294, Lisboa, 1882) registrou uma estória de “Pedro Malasartes e o Homem de Visgo”, que é o Tar-Baby dos folcloristas ingleses e norteamericanos, uma das mais espalhadas do mundo. O Prof. Espinosa reuniu 318 variantes e há longa bibliografia na espécie (Os Melhores Contos Populares de Portugal, notas, 247, Rio de Janeiro, 1944). com quem está falando?” de Roberto DaMatta, enfatizando a visão do indivíduo x pessoa e rua x casa discutido por Roberto DaMatta em Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. O nome de Pedro se associa ao apóstolo São Pedro, com anedotário de habilidade imperturbável, nem sempre própria do seu estado e título. Na Itália, França, Espanha, Portugal, São Pedro aparece como simplório, bonachão, mas cheio de manhas e cálculo, vencendo infalivelmente. Rodriguez Marín registra o Cinco Contezuelos Populares Andaluzes, onde o divino chaveiro é um exemplo de finura velhaca e simplicidade ladina. Pedro Malasartes é a figura humana que determinou um ciclo de facécias em maior quantidade, de exemplos e com atração irresistível (Amadeu Amaral, Pedro Malasartes, Tradições Populares, Instituto Progresso Editorial S. A. São Paulo, 1948; Lindolfo Gomes, Contos Populares Brasileiros, 80-97, Ed. Melhoramentos, São Paulo, s. d.; Luís da C6amara Cascudo, Contos Tradicionais do Brasil, “Seis Aventuras de Pedro Malasartes”, Améric Edit., Rio de Janeiro, 1946; Ramón Laval, Cuentos de Pedro Urdemales, Santiago de Chile, 1943 (na introdução estudo bibliográfico); ver a nota do Prof. Angel Valbuena y Prat prolongando a comédia Pedro de Urdemalas, de Cervantes de Saavedra, Obras Completas, 534, Ed. M. Aguilar, Madrid, 1946; Aurélio M. Espinosa, Cuentos Populares Españoles, 1.º, os contos, 407-420, III, bibliografia, notas, 130-140, Madrid, 1946, 1947). Aluísio de Almeida, O Vigarista Malazarte (contos e notas), sep. “Investigações”, n.º 28, S. Paulo, 1941. Exercício: Trace um paralelo entre “A justificativa de desempenho ou meritocracia à brasileira” de Lívia Barbosa, em Igualdade e Meritocracia, e o “Sabe 8