BURKE, P. “A história dos acontecimentos e o renascimento da

Transcrição

BURKE, P. “A história dos acontecimentos e o renascimento da
A ESCRITA J)A HISTÓRIA
N O V A S P E R S P E C T IV A S
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do C onselho C u ra d o r
Jo s é C a r lo s S o u z a T r in d a d e
Diretor-Presiden Ce
Jo s é C a stilh o M arq u es N e to
E ditor Executivo
Jézio H e rn a n i B o m fim G u tie rre
C onselho E d ito rial A cadêm ico
A lb e r to Ik ed a
A n to n io C a rlo s C a rre ra de So u z a
A n to n io d e P ád u a P ith o n C y rin o
B e n e d ito A n tu n e s
Isab e l M aria F. R . L ou reiro
L íg ia M . V e tto r a to T r e v isa n
L o u rd es A . M . d o s S a n to s P in to
R a u l B o rg e s G u im a rã e s
R u b e n A ld r o v a n d i
T a n ir. R e g in a d e L u ca
PETER BURKE (O rg.)
A ESCRITA DA HISTÓRIA
NOVAS PERSPECTIVAS
T rad u ção de
M agda Lopes
7a R eim p ressão ' )
í
rr
Class
Cutter
Tombo
Dat a
O d i+ o v r r
/
/
C o p y rig h t © 1991 by B asil B lack w ell L im ited , E n g lan d
T ítu lo o rig in al e m in glês: N e w P ersp ectiv es o n H isto ric a l W ritin g
C o p y rig h t © 1992 d a trad u ç ão brasileira:
E d ito ra U n e sp , d a F u n d ação p ara o D e se n v o lv im e n to
d a U n iv e rsid a d e E stad u al P au lista (F U N D U N E SP )
P raça d a S é , 108
0 1 0 0 1 -9 0 0 - S ã o P au lo - S P
T e L : (0 1 1 )3 2 4 2 -7 1 7 1
F a x :( 0 1 1 ) 3 2 4 2 - 7 1 7 2
H o m e page: w w w .ed itora.u n esp.b r
E -m ail: feu @ ed itora.u n esp .b r
D a d o s In te rn a c io n a is d e C a ta lo g a ç ã o n a P u b lic a ç ã o (C IP )
(C â m a r a B rasileira d o L ivro, SP, B rasil)
A Escrita a história: novas perspectivas / Peter Burke (org.); tradução de
M agda Lopes. - São Paulo: Editora da U niversidade Estadual Paulista,
1992. - (Biblioteca básica)
dISBN: 85-7139-027-4
1. Historiografia 1. Burke, Peter. II. Série.
CDD-907.2
92-1978
ín d ic e s p ara c a tá lo g o sistem ático :
o
1. Escola dos Annales: Historiografia 907.2
2. Historiografia 907.2
3. N ova história: Historiografia 907.2
E d ito ra afiliad a:
^AMOCWV
B D R
ÇXOflB«a«JW onciiot «cmocnuieot
m
Asociaclón de Edltoriales Unlversltarlas
de América Latina y el Caribe
Associação Brasileira de
Editoras Universitárias
A HISTÓRIA DOS ACONTECIMENTOS
E O RENASCIMENTO DA NARRATIVA
Peter Burke*
Narrativa versus estrutura
A historiografia, com o a história, parece se repetir - com
variações.1 M uito antes do n o sso tem po, na época do Ilum inism o,
já se atacava a hipótese de que a história escrita deveria ser um a
narrativa d o s acontecim entos. O s críticos incluíam V oltaire e o
teórico social escocês Jo h n M illar, que escreveu sobre a “superfície
do s acontecim entos que prende a atenção do historiador com u m ” .
D esse pon to de vista, a cham ada “ Revolução C op érn ica” liderada
na historiografia por Leopold von Ranke n o início d o século
dezenove, parece m uito m ais um a contra-revolução, n o sentido de
que trouxe os acontecim entos de volta ao centro do palco.2
* Docente de H istória C ultural d a U niversidade de C am bridge e m em bro d o E m m anuel
College.
1. E ste artigo originou-se de u m a conferência e a presente versão deve m uito aos
co m entários de vários ouvintes, de C am b rid g e a C a m p in a s, de T el Ayiv a T ó q u io .
M eu s agradecim entos pessoais a C ario G inzburg, M ichael H olly, Ian Kershaw ,
D o m in ick L a C a p ra e M ark Phillips.
2. T e n to apoiar este argum ento em “ R an ke T h e Reactionary” , Syracuse Scholar, 9,
p. 25-30, 1 988.
PETER BURKE
328
U m segundo ataque à história dos acontecim entos ocorreu no
início do século vinte. N a G rã-Bretanha, Lewis N am ier e R.H .
Tawney, que concordavam em algo m ais, sugeriram quase ao
m esm o tem po que o historiador, em vez de narrar os acontecim en­
tos, deveria analisar as estruturas. N a França, a rejeição do que era
pejorativam ente cham ado de “história dos acontecim entos” (histoire événementielle), em prol da história das estruturas, era um a
prancha im portante n a plataform a da cham ada “ escola dos Armales” , de Lucien Febvre a Fernand Braudel, que, da m esm a form a
que M illar, encaravam os acontecim entos com o a superfície do
oceano da história, significativos apenas por aquilo que podiam
revelar das correntes m ais profu ndas.3 Se a história popular
perm anecesse fiel à tradição da narrativa, a história acadêm ica
tornar-se-ia cada vez m ais preocupada com os problem as e com as
estruturas. O filósofo francês Paul Ricoeur certamente tem razão,
q u an d o fala do “ eclipse” d a narrativa histórica em n o sso tem po.4
Ricoeur prossegue declarando que toda a história escrita,
incluindo a cham ada história “ estrutural” associada a Braudel,
necessariam ente assum e algum tipo de form a narrativa. D e um
m od o sim ilar, Jean-François Lyotard descreveu algum as interpreta­
ções da história, especialm ente aquela dos m arxistas, com o “ gran­
des narrativas” .5 O problem a de tais caracterizações, pelo m enos
para m im , é que elas diluem o conceito da narrativa, até que ela
corra o risco de se tornar indistinguível da descrição e d a análise.
Entretando, não vou tratar desse assunto aqui, preferindo
concentrar-me n a questão m ais concreta das diferenças, n o que
poderia ser cham ado de o grau de narrativa, entre algum as obras
contem porâneas de história e outras. D e alguns an os para cá tem
havido sinais de que a narrativa histórica, em um sentido bem
3. F . B rau del, The Mediterranean, 2 ed. rev., trad. S . R eynolds, Lon dres, 1972-3,
prefácio.
4 . P. R icoeur, Time and Narrative, trad. de K . M cLau ghlin e D . D ellauer, 3 v., C h icago,
1984-8, l . p . 138f.
5. J.-F. Lyotard, L a condition post moderne, Paris, 1 979; The Post-Modern Condition, trad.
de C . B en n in gton e B. M acru m i, M anchester, 1984.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
329
estrito, está realizando outro retom o. M esm o alguns historiadores
associados aos A nnales estão se m ovim entando n essa direção G eorges Duby, por exem plo, que publicou um estudo da batalha
de Bouvines, e Em m anuel Le Roy Ladurie, cujo Carnival trata dos
acontecim entos que ocorrem n a pequena cidade de R om ans
durante 1579 e 1 5 8 0 .6 A atitude explícita desses dois historiadores
não está m uito distante daquela de Braudel. D uby e Le Roy Ladurie
não focalizam os acontecim entos particulares por si sós, m as pelo
que revelam sobre a cultura em que ocorreram . D o m esm o m odo,
o fato de dedicarem livros inteiros a acontecim entos particulares
sugere u m a certa distância da posição de Braudel, e seja com o for,
Le Roy Ladurie já discutiu alhures a im portância do que ele cham a
de “ acontecim ento criador” (événement matrice), que destrói as
estruturas tradicionais e as substitui por n ovas.7
A nova tendência, que com eçou a afetar outras disciplinas,
especialm ente a antropologia social, foi discutida pelo historiador
britânico Lawrence Stone em um artigo sobre ‘ The Revival of
Narrative’ , que atraiu m uita atenção.8 Stone dizia não estar fazendo
m ais do que “ tentar m apear as m udanças observadas de m aneira
histórica” , em vez de realizar julgam entos de valor. A esse respeito,
algum as obras históricas m ais conhecidas, que surgiram nos anos
80, confirm aram suas observações. Citizens de Sim on Scham a, por
exem plo, é u m estudo da Revolução Francesa, publicado em 1989
que descreve a si m esm o com o um retorno “ à form a das crônicas
do século dezenove” .9
6. G . D uby, The Legend of Bouvines, trad. de C . Tihanyi, C am b ridge, 1990; E. Le Roy
Ladurie, C arnival, trad. de M . Fenney, Lon dres, 1980.
7. E. Le Roy Ladurie, “ Event and Long-Term in Social H istory” , trad. de B . e S . Reynolds
em seu Terricory ofthe Historian, H assocks, 1979, p. 111-32.
8. L. Ston e, “T h e Revival o f N arrative” , Pasc and Present, 85, p. 3-24, 1979; cf. E.].
H o b sb aw m , “ S o m e C o m m e n ts", Past and Present, 8 5 , p. 3 -8 ,1 9 8 0 . C f. ]. B o o n , The
Anthropological Romance of Bali, C am b rid ge, 1977 e E .M . B runer, ‘“Ethnography as
N arrative” em The Anthropology o f Experience, ed. V . T u rn er e E. B runer, U rb a n a e
C h icago , 1 9 8 6 , capitulo 6.
9. S. Sch am a, Citizens, N o v a Y ork, 1 989, p. xv.
PETER BURKE
330
D o m esrtio m odo, é difícil não perceber a tristeza de Stone
diante d o que ele cham a de “a m udan ça ... do m odo analítico para
o descritivo” d a escrita d a história. O título de seu artigo, assim
com o seus argum entos, têm sido influentes. Ele tem contribuído
para transform ar a narrativa histórica em u m tema de debate.10
M ais exatam ente, a narrativa histórica tornou-se o tem a de pelo
m en os dois debates, que têm ocorrido independentem ente, apesar
da relevância de um para o outro. V in cular os dois é o objetivo
principal deste capítulo.11 Em prim eiro lugar, há a conhecida e
longa cam pan ha de oposição àqueles que afirm am , com o Braudel,
que os historiadores deveriam considerar as estruturas m ais seria­
m ente que os acontecim entos, e aqueles que continuam a acreditar
que a função d o historiador é contar u m a história. N esta cam pa­
nha, am bos os lados estão agora entrincheirados em suas posições,
m as cada um deles tem feito algum as observações im portantes à
custa do ou tro.12
D e um lado, os historiadores estruturais m ostraram que a
narrativa tradicional passa por cim a de aspectos im portantes do
passado, que ela sim plesm ente é incapaz de conciliar, .desde a
estrutura econôm ica e social até à experiência e os m od os de pen sar
das p essoas c o m u n s.13 Em outras palavras, a narrativa não é m ais
inocente na historiografia d o que o é n a ficção. N o caso de um a
narrativa de acontecim entos políticos, é difícil evitar enfatizar os
atos e as decisões dos líderes, que proporcion am um a linha clara
à história, à custa dos fatores que escaparam ao seu controle. N o
caso das entidades coletivas - a A lem anh a, a Igreja, o Partido
C on servador, o Povo etc. - o historiador narrativo é forçado a
10. C f. B. Bailyn, “T h e C hallen ge o f M o d e m H istoriography” , American Historical
Revieiv, 8 7 , p. 1-24, 1982.
11. C f. Ricoeur; M . Phillips, “ O n H istoriography and N arrative” , University of Toronto
Quarterly, 5 3 , p. 14 9 -6 5,1983-4; e H . Kellner, Language and Historical Representation,
M ad iso n , 1 9 8 9 , esp. capítulo 12.
12. Para u m a d iscu ssão de pon tos de vista diferentes, ver Theorie uncl Erzühlung in der
Geschicfite, ed. J. K ocka e T . N ipperdey, M u n iqu e, 1979.
13. A últim a qu estão está bem observada em E. A uerbach , Mimesis, trad. W .R . T rask,
Princeton, 1 9 5 3 , capítulos 2 e 3 (discutindo T acitu s e A m m ian u s M arcellinus).
A ESCRITA DA H ISTÓRIA
331
escolher entre omiti-los com pletam ente ou personificá-los, e eu
concordaria com H uizinga em que a personificação é um a figura
de retórica que os historiadores deveriam tentar evitar.14 Ela
obscurece as distinções entre os líderes e os seguidores, além de
encorajar os leitores sem grande im aginação a suporem o con sen so
de grupos que estavam freqüentem ente em conflito.
N o caso da história m ilitar em particular, Jo h n Keegan obser­
vou que a narrativa tradicional da batalha está levando a conclusões
erradas, com seu “ alto foco sobre a liderança” e sua “ redução dos
soldad os a peões” , e necessita ser ab an d on ad a.15 A dificuldade de
se fazer isso pode ser ilustrada pelo caso do conhecido estudo de
C orn eliu s Ryan sobre o D ia-D .16 Ryan pôs-se a escrever sobre a
guerra d o soldado, em vez daquela do general. Su a história é um a
extensão de seu trabalho com o correspondente de guerra: suas
fontes são sobretudo orais. Seu livro transm ite m uito bem o
“ sentim ento” da batalha de am bos os lados. E vivo e dram ático na verdade, com o um dram a clássico, é organizado em torno de
três “ u n id ades” : de lugar (a N orm andia), de tem po (6 de ju n h o de
1944) e de ação. Por outro lado, o livro é fragm entado em discretos
episódios. A s experiências dos diferentes participantes não têm
coerência. A única m aneira de torná-las coerentes parece ser im por
um esq u em a provindo de “ cim a” e assim retom ar à guerra dos
generais de que o autor estava tentando escapar. O livro de Ryan
ilustra o problem a m ais claram ente que a m aioria, m as o problem a
n ão é apenas dele. Esse tipo de tendência pode ser inerente à
organização da narrativa.
Por outro lado, os defensores da narrativa observaram que a
análise d as estruturas é estática e, assim , em certo sentido, não-histórica. A o se tom ar o m ais fam oso exem plo de história estrutural
de n o sso tem po, em bora o Mediterranean (1949) de Braudel
14. J. H uizinga, “Tw o W restlers with the A n gel” em seu Men and Idfias, trad. de J.S .
H olm es e H . van M arle, Lon dres, 1 9 60. C o n trastar a defesa d a personificação em
K ellner (esp. capítulo 5 sob re Michelet).
15. J. K eegan, The Face of Battle, 1 9 7 6 : H arm on dsw orth, 1 9 7 8 ed. p. 61f.
1 6. C . Ryan, The Longest Day, Lon dres, 1959.
332
PETER BURKE
encontre espaço, tanto para os acontecim entos quanto para as
estruturas, freqüentem ente tem sido observado que o autor pouco
faz para sugerir que aquilo que une poderia estar entre as três
escalas de tem po que ele utiliza: o longo, o m édio e o curto prazo.
Seja com o for, o M editerranean de Braudel não é um exem plo
extrem o de história estrutural.17 A pesar de suas observações n o
prefácio sobre a superficialidade dos acontecim entos, ele prosse­
guiu dedicando-lhes várias centenas de páginas n a terceira parte de
seu estudo. O s seguidores de Braudel, entretanto, têm-se inclinado
a reduzir seu projeto (e não apenas n o sentido geográfico) enquanto
o im itam . O atual form ato clássico de um estudo regional à m aneira
do s Annales inclui um a divisão em duas partes, estrutura e conjun­
tura (em outras palavras, tendências gerais), com pouco espaço para
os acontecim entos no estrito senso.
O s historiadores desses dois cam pos: estrutural e narrativo,
diferem, não apenas na escolha d o que consideram significativo
n o p assado , m as tam bém em seus m odos preferidos de explicação
histórica. O s historiadores da narrativa tradicional tendem - e isto
não é exatam ente contingente - a exprim ir suas explicações em
term os de caráter e intenção individuais; explicações do tipo “ as
ordens chegaram tarde de M adri, porque Felipe II n ão conseguia
decidir o que fazer” , em outras palavras, com o diriam os filósofos:
“ a jan ela quebrou porque Brow n atirou nela um a pedra” . O s
historiadores estruturais, p o r outro lado, preferem explicações que
tom am a form a: “ a janela quebrou porque o vidro era frágil” ou
(citando o fam oso exem plo de Braudel) “ as ordens chegaram tarde
de M adri porque os navios do século dezesseis dem oravam várias
sem an as para cruzar o M editerrâneo” . C o m o observa Stone, o
cham ado renascim ento d a narrativa tem m uito a ver com um a
crescente desconfiança do segundo m od o de explicação histórica,
freqüentem ente criticado com o reducionista e determ inista. M ais
um a vez, o recente livro de Sch am a oferece um bom exem plo da
17. R icoeur (1 9 8 3 ) vai adiante para afirm ar qu e é um a narrativa histórica com u m “ q u ase
en red o ” , p. 2 9 8 ff.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
333
tendência. O autor explica que “ escolheu para apresentar estes
argum entos na form a de u m a narrativa” , tendo em vista que a
Revolução Francesa foi “ m uito m ais o produto da atuação h um an a
do que de condicionam ento estrutural” .18
Esta prolongada guetra de trincheiras entre os historiadores
narrativos e os estruturais foi longe dem ais. A lgum a idéia do preço
do conflito, a perda d o entendim ento histórico potencial qu e ele
envolve, pode ser sentida ao se com pararem dois estudos da ín d ia
do século dezenove, que foram publicados em 1978 e focalizam o
que se costum ava cham ar de Motim Indiano de 1857, agora
conhecido com o a Grande Rebelião.19 C hristopher H ibbert produ ­
ziu um a narrativa tradicional, um a história dividida em partes em
grande estilo, com capítulos intitulados “ M otim em M eerut” , “ O
M otim se E spalh a” , “O C erco de Lucknow” , “ O A taque” , e assim
p o r diante. Seu livro é colorido, n a verdade prende a atenção, m as
é tam bém superficial, n o sentido de não dar ao leitor m uita idéia
do porquê os acontecim entos ocorreram (talvez por ser escrito do
ponto de vista dos britânicos, que foram tom ados de surpresa). Por
outro lado, Eric Stokes apresenta um a cuidadosa análise d a geogra­
fia e d a sociologia da revolta, suas variações regionais e seus
contextos locais, m as .se exim e de um a síntese final. Len do os dois
livros, um im ediatam ente após o outro, pode-se ficar assom brado,
com o eu fiquei, pelo fantasm a de um potencial terceiro livro, que
pudesse integrar a narrativa e a análise e relacionar m ais intim a­
m ente os acontecim entos locais às m udanças estruturais na socie­
dade.
C h ego u o m om en to de se investigar a possibilidade de encon­
trar u m m od o d e escapar a este confronto entre narradores e
analistas. U m b o m com eço poderia ser criticar am bos os lados,
por um a su p o sição falsa do que eles têm em com um , a suposição
de qu e distinguir o s acontecim entos das estruturas seja um a
questão fácil. T en d em o s a utilizar o term o “ acontecim ento” de um a
18. Sch am a, 1 989, p. xv.
19. C . H ibbert, The G reat Mutiny, Londres, 1 978; E. Stokes, The Peasant and the Raj,
C am b rid g e, 1978.
334
PETER BURKE
m aneira m uito vaga, referindo-nos, não somente a eventos que
duraram poucas horas, com o a batalha de W aterloo, m as também
a ocorrências com o a Revolução Francesa, um processo desenrolado
durante vários anos. Pode ser útil empregar os termos “ acontecimen­
to” e “ estrutura” para se referir aos dois extremos de todo um espectro
de possibilidades, m as não deveríamos esquecer a existência do
centro do espectro. A s razões para a chegada tardia das ordens de
M adri não necessitam estar limitadas à estrutura das comunicações
n o Mediterrâneo, ou ao fato de Felipe II não conseguir se decidir
em um a determ inada ocasião. O rei pode ter sido cronicamente
indeciso, e a estrutura do governo, por conselho, poderia ter
retardado m ais ainda o processo de tom ada de decisão.
D evido a essa im precisão de definição, deveríam os fazer o que
M ark Phillips sugeriu e “ pen sar nas variedades de m od os de
narrativa e de não-narrativa, existentes ao longo de um a série
contínua” .20 T am bém não deveríam os n os esquecer de questionar
a relação entre acontecim entos e estruturas. T rab alh an do nesta
área central, pode ser possível ir além das duas posições opostas
para alcançar u m a síntese.
Narrativa tradicional versus narrativa moderna
V isan d o a esta síntese, as opiniões expressas no segundo
debate podem proporcionar u m a contribuição útil. Este segundo
debate teve início n os Estados U n id o s n os an os 60, e ain da n ão
foi levado tão a sério qu an to merece pelos historiadores de outras
partes d o m undo, talvez por parecer “ m eram ente” literário. N ão
está preocupado com a questão de escrever ou n ão escrever a
narrativa, m as com o problem a d o tipo de narrativa a ser escrita.
O historiador de cinem a Siegfried K racauer parece ter sido o
prim eiro a sugerir que a ficção m oderna, m ais especialm ente a
“ decom posição da continuidade tem poral” em Joyce, Proust e
20. P hillips, “ O n H istoriograph y” , 1983-4, p. 157.
335
A ESCRITA DA HISTÓRIA
V irgínia W oolf, oferece um desafio e u m a oportunidade aos
narradores históricos.21 U m exem plo ain da m ais nítido dessa
decom posição, incidentalm ente, é Eyeless in G aza (1936), de
A ld ou s Huxley, novela com posta de curtos verbetes datados para
o período de 1902-34, .em um a ordem que, em bora lógica, é
determ inadam ente não-cronológica.
H ayden W hite atraiu, m ais atenção que Kracauer, q u an d o
acusou a profissão histórica de negligenciar as reflexões literárias
de su a própria época (incluindo um sentido de descontinuidade
entre os acontecim entos n o m undo exterior e sua representação
sob a form a narrativa) e de continuar a viver n o século dezenove,
a época áurea do “ realism o” literário.22 Em um a tônica sim ilar,
Lionel G o ssm an queixou-se de que “ não é fácil, para n ós hoje em
dia, perceber quem é, com o escritor, o Joyce ou o Kafka da
historiografia m oderna” .23 Talvez. M esm o assim , o historiador
G o lo M an n parece ter apren dido algo d a prática narrativa de seu
pai novelista. N ão é inteiram ente fantasioso com parar-se a inter­
pretação de G o lo M an n dos pen sam en tos do idoso W allenstein
com o célebre capítulo de Lotte in Weimar que evoca o fluxo de
consciência de G oethe, aparentem ente u m a tentativa de superar
Joyce. E m seu estudo, que ele cham a de “u m a novela excessiva­
m ente verdadeira” , G o lo M an n segue as regras da evidência
histórica e deixa claro que está apresentando um a reconstrução
hipotética. A o contrário d a m aioria dos rom ancistas, ele não
pretende ler a m ente de seu herói, apenas su as cartas.24
21. S . K racauer, H istory: the Last Tfiings be/ore the Last, N o v a Y ork, 1 9 69, p. 178f.
2 2 . H .V . W h ite, “T h e B u rden o f H istory” , History and Theory, 5, 1 966, republicado em
seu Tropics of Discourse, Baltim ore, 1 983, p. 27-50. Para u m a defesa filosófica da
co n tin u id ad e entre as narrativas e o s acontecim entos qu e eles relatam , ver D . C arr,
“ N arrative an d the R eal W orld : an A rgum ent for C ontinu ity” , History and Theory,
2 5 , p. 1 1 7 -3 1 ,1 9 8 6 .
2 3 . L. G o ssm a n , “ H istory an d Literature” em The Writing of History, ed. R .H . C an ary e
H . Kozicki, M ad iso n , 1 978, p. 3-39.
,
2 4 . G . M a n n , Wallenstein, Frankfurt, 1 971, p. 984f.: 993ff.; T . M an n , Lotte in Weimar,
1 939, capítulo 7. C f. G . M an n , “Pládoyer fü r d ie h istorische E rzàhlung” em Kocka
e N ipperdey, 1 9 7 9 , p. 40-56, especialm ente su a declaração de qu e a narrativa histórica
n ão exclui o conhecim ento d a teoria.
PETER BURKE
336
Em contra'ste com W hite e G o ssm an , n ão estou afirm ando que
os historiadores sejam obrigados a se engajar em experiências
literárias, sim plesm ente por viverem n o século vinte, ou a imitar
determ inados escritores, devido suas técnicas serem revolucioná­
rias. O objetivo de buscarm os um a nova form a literária é certamen­
te a consciência de que as velhas form as são inadequadas aos
n o sso s propósitos.
A lgum as inovações são provavelmente m ais bem evitadas pelos
historiadores. N este grupo eu incluiria a invenção do fluxo de
consciência, por m ais útil que pudesse ser, pelas m esm as razões
que levaram os historiadores a rejeitarem o fam oso expediente
clássico do discurso inventado. O utras experiências, n o entanto,
in spiradas por um a variedade bem m aior de escritores m odernos
do que já tem sido m encionado, podem apresentar soluções para
problem as com que os historiadores há m uito vêm lutando, três
problem as em particular.
Em prim eiro lugar, poderia ser possível to m ar as guerras civis
e outros conflitos m ais inteligíveis, seguindo-se o m odelo dos
rom ancistas que contam suas histórias, partindo de m ais- de um
ponto de vista. E estranho que esse expediente, tão eficaz nas m ãos
de Huxley, W illiam Faulkner em The Sound and the Fury (1931),
e Lawrence D urrel em The Alexandria Quartet (1957-60) - sem
m encionar as novelas epistolares d o século dezoito - não tenha
sid o levado m uito a sério pelos historiadores, em bora pudesse ser
útil modificá-lo, para lidar com pontos de vista coletivos e tam bém
individuais. T al expediente perm itiria um a interpretação d o con­
flito em term os de um conflito de interpretações. Para perm itir que
as “vozes variadas e o p o stas” da m orte sejam novam ente ouvidas,
o historiador necessita, com o o rom ancista, praticar a heteroglossia
(ver anteriorm ente, p. 15).25
25. C f. G . W ilso n , “ Plots an d M otives in ]a p a n ’s M iji Restoration” , Comparatiue Studies
in Society and History, 2 5, p. 407-27, 1983, qu e faz u so d a term inologia de H ayden
W hite, m as está essencialm ente vinculada à m ultiplicidade d o s p on tos de vista d o s
atores. N . H am p so n , The Life and Opinions ofM axim ilian Robespiene, Lon dres, 1976,
apresen ta um diálogo entre diversas interpretações m od ern as d a R evolução Francesa.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
337
Bastante curiosam ente, q u an d o este en saio estava prestes a ir
para o prelo, foi publicado um trabalho histórico desse tipo.
Richard Price apresenta seu estudo do Surinam e do séculodezoito,
n a form a de u m a narrativa com quatro “vozes” (sim bolizadas por
quatro padrões tipográficos); aquela dos escravos negros (transm i­
tida por seus descendentes, os Saram akas); a dos adm inistradores
holan deses; a dos m ission ários m oravianos; e, finalmente, aquela
do próprio historiador.26 O objetivo do exercício é precisam ente
m ostrar, e tam bém estabelecer, as diferenças de pontos de vista
entre o p assad o e o presente, a Igreja e o Estado, o negro e o branco,
os desentendim entos e a luta para im por definições particulares da
situaçãq. Será difícil imitar este towr de force de reconstrução
histórica, m as Price merece inspirar toda um a estante de estudos.
Em segundo lugar, cada vez m ais historiadores estão com eçan­
do a perceber que seu trabalho não reproduz “ o que realmente
aconteceu” , tanto quanto o representa de u m ponto de vista
particular. Para com unicar essa consciência aos leitores de história,
as form as tradicionais de narrativa são inadequadas. O s narradores
históricos necessitam encontrar um m od o de se tornarem visíveis
em sua narrativa, não de auto-indulgência, m as advertindo o leitor
de que eles não são oniscientes ou im parciais e que outras
interpretações, além das suas, são possíveis.27 Em um a peça notável
de autocrítica, G o lo M an n declarou que um historiador necessita
“ tentar fazer duas coisas sim ultaneam ente, nadar com a corrente
dos acontecim entos” e “ analisar esses acontecim entos da posição
de um observador posterior, m ais bem in form ado” , com bin an do
os dois m étodos “ para produzir um a aparência de hom ogeneidade,
sem qu e a narrativa fique de lado” .28
26. R. Price, A lab i’s World, Baltim ore, 1990.
27. O problem a já foi d iscu tido p o r Thierry e M ichelet. V er G . Pom ata, “O vert and
C ov ert N arrators in N ineteenth-Century H istoriograph y” , History Workshop, 27,
p . 1 -1 7 ,1 9 8 9 .
2 8 . Prefácio p ara a tradução inglesa de seu Wallenstein, de autoria de C . K essler, Lon dres,
1 9 7 6 . M an n co n fessa qu e “a prim eira abordagem prevalece” em seu próprio livro.
O u tro b o m exem plo d o q u e M an n defencle pod e ser encontrado em T .H . Breen,
Imagining the Past: E ast Hampton Histories, R eadin g, M ass., 1989.
PETER BURKE
338
A q u i m ais um a vez o novo livro de Price apresenta um a possível
solução para o problem a, rotulando su a própria contribuição com o
u m a “voz” entre outras. Soluções alternativas tam bém são dignas
de consideração. O s teóricos literários têm, ultimamente, discutido
o expediente ficcional do “ narrador nada confiável de prim eira
p esso a” .29 T al expediente pode ser de algum u so tam bém para os
historiadores, contanto que a não-confiabilidade seja explicitada.
M ais um a vez, H ayden W hite sugeriu que as narrativas históricas
sigam quatro planos básicos: com édia, tragédia, sátira e rom ance.
Ranke, por exem plo, escolheu (consciente ou inconscientem ente)
escrever história “com enredos de com édia” , em outras palavras,
seguindo um “m ovim ento ternário ... a partir de u m a condição de
paz aparente, através da revelação do conflito, até a resolução do
conflito n o estabelecim ento de um a ordem social genuinam ente
pacífica” .30 Se o m od o com o a narrativa term ina ajuda a determ inar
a interpretação do leitor, então pode ser valioso seguir o exem plo
de alguns rom ancistas, com o Jo h n Fowles, e proporcionar finais
alternativos. U m a história narrativa da Primeira G uerra M undial,
por exem plo, vai n os dar u m a im pressão, se a narrativa term inar
em V ersailles em 1919, outra, se a narrativa se estender até 1933
ou 19 3 9 . A ssim sendo, fechos alternativos tornam a obra m ais
“ aberta” , n o sentido de encorajar os leitores a chegarem às suas
próprias con clusões.31
E m terceiro lugar - e este é o tem a principal deste capítulo u m novo tipo de narrativa poderia, m elhor que as antigas, fazer
frente às dem andas dos historiadores estruturais, ao m esm o tem po
em que apresenta um sentido m elhor d o fluxo do tem po d o que
em geral o fazem suas análises.
2 9 . W . R iggan, Pícaros, Madmen, N aifs and Clowns: the Unreliable Firts-Person Narrator,
N o rm an , 1 981.
3 0 . H . W h ite, Metahistory, Baltim ore, 1973, p. 176f.
31. C f. M . T orgovnick, Closure in the Novel, Princeton, 1 9 8 1 , e U . Eco, “T h e Poetics o f
the O p e n W o rk ” em seu The Role o f the Reader, L on dres, 1 981, capítulo 1. U m
m ovim ento n a direção de u m a narrativa histórica m ais aberta é prevista p o r Phillips,
“ O n H istoriograph y” , p. 153.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
339
Densificando a narrativa
H á alguns an os atrás, o antropólogo C lifford Geertz inventou
a expressão “ descrição d en sa” para um a técnica que interpreta um a
cultura alienígena, através da descrição precisa e concreta de
práticas ou acontecim entos particulares, em seu caso, a descrição
das brigas de galo em B ali (cf. G iovanni Levi, p. 134).32 A ssim
com o a descrição, a narrativa poderia ser caracterizada com o m ais
ou m en os “ fluida” ou “ den sa” . N o final fluido do espectro, tem os
a observação crua em um volum e dos anais com o a C rôn ica
A nglo-Saxônica de que “ N este ano C eolw ulf foi destituído de seu
rein ado” . N o outro extremo, encontram os narrativas (raríssim as
até agora) que foram deliberadam ente construídas para suportar
um volum e pesado de interpretações.
O problem a que eu gostaria de discutir aqui é aquele de se
fazer um a narrativa den sa o bastante, para lidar não apenas com
a seqüência dos acontecim entos e das intenções conscientes
do s atores nesses acontecim entos, m as tam bém com as estruturas
- instituições, m od os de pen sar etc. - e se elas atuam com o um
freio ou u m acelerador para os acontecim entos. C o m o seria um a
narrativa desse tipo?
Estas questões, em bora vinculadas à retórica, não são em si
retóricas. É possível discuti-las tendo-se com o base textos e narra­
tivas produzidos por rom ancistas ou por historiadores. N ão é difícil
encontrar rom ances históricos que abordem esses problem as.
Poderíam os com eçar com W ar and Peace, pois pode-se dizer que
T olsto i com partilhou a opin ião de Braudel sobre a futilidade dos
acontecim entos, m as de fato m uitos rom ances fam osos estão
vinculados a im portantes m udanças estruturais em u m a determ i­
n ada sociedade, encarando-as em term os d o seu im pacto nas vidas
de alguns indivíduos. U m exem plo de destaque externo à cultura
3 2 . C . Geertz, “T h ick D escription: T o w ard s an Interpretative T h eory o f C u ltu re” , e
“ D eep Play: N otes o n the B alinese C ockfight” em The Interpretation ofCultures, N ova
Y ork, 1973.
340
PETER BURKE
ocidental é Be/ore the Dawn (1932-6), de Shim akazi T o so n .33 A
palavra “ despertar” - n o título, “ dow n” - é a m odernização
(industrialização, ocidentalização) do Japão, e o livro lida com os
an os im ediatam ente anteriores e subseqüentes à restauração im pe­
rial de 1868, q u an d o não estava de m od o algum claro que cam inho
o país iria seguir. O rom ance m ostra em brilhantes detalhes com o
“ O s efeitos da abertura do Japão para o m u n d o estavam se fazendo
sentir nas vidas de cada indivíduo” .34 Para fazer isso, o autor
escolheu u m indivíduo, A oyam a Hanzo, que é o vigia de um posto
dos correios em um a aldeia da principal rodovia entre Q uioto e
T óqu io. Seu trabalho m antém H anzo em contato com os aconte­
cim entos, m as ele não se limita a observá-los. E m em bro do
m ovim ento de Instrução N acional, em penhado em um a solução
autenticam ente japon esa para os problem as do Japão. O enredo
d o rom ance é em grande extensão
narrativa do im pacto da
m u dan ça social em um indivíduo e em sua família, ponto enfati­
zado pela interrupção de T o so n de sua narrativa, de tem pos em
tem pos, para relatar os principais acontecim entos da história
japo n esa de 1853 a 1886.
E provável que os historiadores po ssam aprender algo, a partir
das técnicas narrativas de rom ancistas com o T olstoi e Shim azaki
T o so n , m as não o bastante para resolver todos os seus problem as
literários. Pois os historiadores não são livres para inventar seus
personagens, ou m esm o as palavras e os pensam entos de seus
personagens, além de ser improvável que sejam capazes de con­
den sar os problem as de um a época n a narrativa sobre u m a família,
com o freqüentem ente o fizeram os rom ancistas. Poder-se-ia esperar
que o cham ado “ rom ance de não-ficção” pudesse ter tido algo a
oferecer aos historiadores, desde In C old Blood (1965) de T ru m an
C apote, até Schindler’s Ark (1982) de T h o m as Keneally, que
declaram “ usar a textura e os expedientes de um rom ance para
contar u m a história verdadeira” . Entretanto, esses autores não
33. Sh im azaki T o so n , Be/ore the Daw n, H on olu lu , 1987.
34. Ib id ., p. 62 1 .
A ESCRITA DA HISTÓRIA
341
enfrentaram o problem a das estruturas. Parece que os historiadores
teriam de desenvolver suas próprias “técnicas ficcionais” para suas
“ obras factuais” .35
Felizm ente, os autores de algum as obras recentes de h istória
tam bém têm refletido sobre problem as com o estes e seus estudos
esb o çam u m a resposta, ou m ais exatam ente várias respostas, das
q u ais pode ser útil destacarem -se quatro. U m d o s m odelos está
bem a cam in h o de se tran sform ar em m oda, en quanto os outros
três são representados por pouco m ais de um livro cada um .
A prim eira resposta poderia ser descrita com o “micro-narrativa” (ao longo das linhas do novo termo “micro-história”). E a
narração de um a história sobre as pessoas com uns no local em que
estão instaladas. Em um certo sentido, essa técnica é lugar-comum
entre os rom ancistas históricos, e isso desde o tem po de Scott e
M anzoni, cujo Betrothed (1827) foi atacado n a época (da form a que
a história vista de baixo e a micro-história foram atacadas m ais
recentemente), por escolher com o seu tem a “ a crônica miserável
de u m a aldeia obscura” .36
Foi apenas m uito recentemente, n o entanto, que os historia­
dores adotaram a m icronarrativa. Exem plos recentes bem-conhecidos incluem a narrativa de C ario C ip o lla sobre o im pacto da
peste de 1 6 3 0 n a cidade de Prato, n a T oscan a, e a história de
N atalie D avis de M artin Guerre, um filho pródigo do século
dezesseis que retornou a su a casa, n o sul da França, para
descob rir que seu lugar n a fazenda - e tam bém n a cam a de su a
e sp o sa - havia sid o tom ad o por u m intruso que afirm ava ser o
próp rio M artin .37
35. W .R . Sieben sch u h , Fictional Techniques and Factional Works, 1 9 83, discute com o
isso foi feito no p assad o , com referência especial à vid a de Jo h n so n , de autoria de
Bosw ell. C f. R .W . Rader, “ Literary Form in Factual N arrative: the Exam ple o f
B osw ell’s Jo h n so n ” em E ssays in Eighteenth-Century Biography, eçl. P .B . D agh lian,
Bloo m in gto n , 1 9 6 8 , p. 3-42.
36. C itad o em Letteratura Italiana, ed. A . A so r R osa, 5, T u rim , 1 986, p. 224.
3 7 . C . C ip o lla, Cristo/ano and the Plague, Lon dres, 1 973; N .Z. D avis, The Return of
M artin Guerre, C am b ridge, M ass., 1973.
PETER BURKE
342
A redução n a escala não densifica em si a narrativa. A questão
é que os historiadores sociais voltaram-se para a narrativa, com o
u m m eio de esclarecer as estruturas - as atitudes em relação à peste
e às instituições para combatê-la, n o caso de C ario C ipolla, a
estrutura da família cam pon esa do sul da França, n o caso de Natalie
Davis, e assim por diante. M ais exatamente, o que N atalie D avis
queria fazer era descrever, não tanto as próprias estruturas, m as
“ as esperanças e os sentim entos dos cam poneses; os m od os com o
sentiam a relação entre m arido e m ulher, pais e filhos; os m od os
com o experim entavam as restrições e as possibilidades em suas
v id as” .38 O livro pode ser lido sim plesm ente com o u m a boa
história e um a evocação viva de alguns indivíduos do passado, m as
a autora faz deliberadas e repetidas referências aos valores da
sociedade. D iscutindo, por exem plo, porque a esp osa de M artin,
Bertrande, reconheceu o intruso com o seu m arido, D avis com enta
sobre a posição das m ulheres na sociedade rural francesa e sobre
seu sen so de honra, reconstruindo as restrições no interior das
quais elas m aquinavam .
Por outro lado, os com entários são deliberadam ente discretos.
C o m o explica a autora, “ Eu ... escolhi previam ente m eus argum en­
tos ... tanto pela ordenação da narrativa, escolha de detalhes, voz
e m etáfora literária, quanto pela análise tem ática” . O objetivo era
aquele de “ im plantar esta história nos valores e nos hábitos d a vida
e das norm as de um a aldeia francesa n o século dezesseis, e
utilizá-los para ajudar a com preender os elem entos centrais na
h istória e usar a história para comentá-los de volta” .39 A história
de M artin pode ser encarada com o u m “ dram a social” , no sentido
em qu e os antropólogos utilizam o term o; u m acontecim ento que
revela conflitos latentes e assim esclarece as estruturas sociais.40
A m icronarrativa parece ter vindo para ficar; cada vez m ais
historiadores estão se voltando para essa form a. M esm o assim ,
3 8 . D avis, M artin Guerre, p. 1.
3 9 . N .Z. D avis, “ O n the Lam e” , American Historical Revieiv, 93, p. 5 7 5 ,5 7 3 , 1988.
4 0 . S o b re este conceito, V . T u rn er, Dramas, Fields and Metaphors, Ithaca, 1 974, capí­
tulo 1.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
343
seria um erro encará-la com o um a panacéia. Ela não apresenta um a
solução para todos os problem as delineados anteriorm ente e gera
problem as próprios, especialm ente aquele de ligar a m icro-história
à macro-história, os detalhes locais às tendências gerais. E por
enfrentar diretam ente esse problem a im portante, que considero
Gate of Heavenly Peace, de Spence, um livro exemplar.
Jon ath an Spence é um historiador d a C h in a que há m uito
tem po tem se interessado pelas experiências sob form a literária.
U m de seus prim eiros livros foi um a biografia do im perador
K ’ang-Hsi, ou antes um retrato do im perador - na verdade, um
tipo de auto-retrato, um a tentativa de explorar a mente de K ’ angH si, fazendo um a espécie de m osaico ou m ontagem de suas
observações pessoais, encontradas dispersas entre os docum entos
oficiais, dispondo-as sob títulos com o “ filhos” , “governando” ou
“ envelhecendo” . O efeito não é diferente de um as Memoirs of
H adrian chinesas. E difícil pen sar em um estudo que m elhor
m ereça a descrição de “história vista de cim a” do que o auto-retrato
de um im perador, m as Spence seguiu-o com um ensaio comovente
em história vista de baixo. The Death of Woman Wang é um a peça
de m icro-história, ao estilo de C ipolla ou Davis, com quatro
histórias contadas, ou im agens descritas, para revelar as condições
n a província de Shantung, n os anos conturbados do final do século
dezessete. M ais recentemente, em The Memory Palace of Matteo
Ricci, Spence organizou seu relato do fam oso m ission ário jesuíta
n a C h in a, em torno de várias im agens visuais, à custa de seqüência
cronológica, produzindo um efeito rem iniscente do Eyeless in G aza
de Huxley.
The Gate of Heavenly Peace, po r outro lado, parece m ais um a
peça de história convencional, um relato das origens e do desen­
volvim ento da Revolução C h in esa de 1895 a 19 80.41 M ais um a
vez, contudo, se afirm a o interesse do autor pela biografia e pelos
instantâneos históricos e seu livro é construído em torno de um
4 1 . J. Sp en ce, Emperor of C hina, Lon dres, 1 9 74: The Death of Woman Wang, Lon dres,
1 9 7 8 ; The Gate o f Heavenly Peace, Lon dres, 1 982; The Memory Palace of Matteo Ricci,
Lon dres, 1985.
344
PETER BURKE
pequen o ijúm ero de indivíduos, especialm ente o estudioso K ang
Youwei, o soldado e acadêm ico Sh en C ongw en e os escritores Lu
X u n e D in g Ling. Esses indivíduos não desem penham um papel
im portante n os acontecim entos da revolução. D esse ponto de vista,
podem ser com parados com o que o crítico húngaro G eorg Lukács
cham ou de “herói m edíocre” nas novelas de Sir W alter Scott; um
herói, cuja vulgaridade permite que o leitor enxergue m ais clara­
m ente a vida e os conflitos sociais da época.42 N o caso de Spence,
os protagonistas foram selecionados porque, com o sugere o autor,
eles “ descreveram suas esperanças e tristezas com particular sensi­
bilidade” e tam bém porque as experiências pessoais “ ajudam a
definir a natureza dos tem pos, através dos quais eles viveram ” . São
encarados m ais com o passivos que com o ativos. N a verdade, o
autor fala das “ intrusões dos acontecim entos externos” sobre seus
personagens.43 Su a preocupação com indivíduos diferentes im plica
um interesse em pontos de vista m últiplos ou um a multivocalidade,
m as - em contraste com o livro de Price, discutido anteriorm ente
- esta m ultivocalidade perm anece abaixo da superfície da história.
A presentar a história da C h in a dessa m aneira suscita proble­
m as. A passagem de um indivíduo para outro corre ò risco de
confundir o leitor, assim com o tam bém as m udanças para trás e
para diante, entre o que poderia ser cham ado de tem po “ público” ,
o tem po dos acontecim entos com o a G ran de M archa ou a Revo­
lução de 1949, e o tem po “ privado” dos principais personagens.
Por outro lado, Spence com unica de u m m od o vivo e com ovente
a experiência de vida (ou, n a verdade, de deixar de viver) durante
esses an os turbulentos. Entre suas passagens m ais m em oráveis está
seu relato da opinião de um a criança sobre a revolução de 1919,
com o é lem brada por Sh en C ongw en; a reação de Lu X u n ao
m assacre dos estudantes em um a passeata em Beijing em 1926; e
os ataques oficiais sobre D ing Ling em 1957, em seguida à
su pressão do M ovim ento das “ C em Flores” .
4 2 . G . Lukács, The Historical Novel, trad. de H . e S. M itchell, Lon dres, 1 962, p. 30f.
4 3 . Spen ce, 1 9 8 2 , p. xiii.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
345
Pode haver outras m aneiras de se relacionar m ais intim am ente
a estrutura aos acontecim entos do que em geral fazem os historia­
dores. U m m étodo possível é escrever a história de frente para trás,
com o fez B .H . Su m n er em su a Survey ofRussian History (organizada
por tópicos) ou N orm anJD avies em sua história recente d a Polônia,
Heart of Europe (1984), narrativa que focaliza o que o autor cham a
de “ o p assad o na presente.Polônia” .44 C om eça com “ O Legado da
H um ilhação: a Polônia a partir da Segunda G uerra M un dial” e
move-se para trás através de “ O Legado da D errota” , “ O Legado
do D esen canto” (1914-39), “ O Legado do D om ínio Espiritual”
(1795-1918), e assim por diante. Em cada ocasião o autor sugere
que é im possível com preender os acontecim entos narrados em um
capítulo, sem conhecer o que o precedeu.
Esta form a de organização tem suas dificuldades, m ais obvia­
m ente o problem a de que em bora os capítulos sejam dispostos em
ordem inversa, cada capítulo tem de ser lido para diante. A grande
vantagem da experiência, por outro lado, é permitir, ou m esm o
forçar o leitor a sentir a pressão do p assado sobre os indivíduos e
os grupos (a pressão das estruturas ou dos acontecim entos que
congelaram ou, com o diria Ricoeur, se “ sedim entaram ” em estru­
turas). D avies n ão explora esta vantagem tanto quanto poderia.
N ã o faz qualquer esforço sério para relacionar cada capítulo com
aquele que vem “ dep ois” . E difícil im aginar su a abordagem de
an dar para trás, tornando-se adaptável ao estilo da micro-história.
M esm o assim , esta é um a form a de narrativa digna de ser seria­
m ente considerada.
U m quarto tipo de análise da relação entre estruturas e
acontecim entos pode ser encontrado n a obra de um antropólogo
social am ericano, em bora ela vá com pletar o ciclo que nos trará de
volta aos Annales. O antropólogo M arshall Sahlins, que trabalha
n o H avaí e nas Ilhas Fuji, é extremam ente interessado no pen sa­
m ento m oderno francês (de Saussure a Braudel, de V ourdieu a
Lévi-Strauss), m as considera m ais seriam ente os aco'ntecimentos
4 4 . N . D avies, Heart of Europe: a Short History of Poland, O xford , 1984.
346
\
'J fl NQJ>
/
PETER BURKE
do que qualquer um desses pen sadores.45 Em seus estudos dos
encontros entre as culturas n o Pacífico, Sahlins faz duas observa­
ções diferentes, m as com plem entares.
Em prim eiro lugar, sugere que os acontecim entos (especial­
m ente a chegada de C o o k n o Havaí em 1778) “ portam traços
culturais distintos” , que são “ regulados pela cultura” , nò sentido
de que os conceitos e as categorias de um a cultura particular
determ inam os m odos pelos quais seus m em bros percebem e
interpretam seja o que for que aconteça em sua época. O s havaia­
nos, por exem plo, perceberam o C apitão C o o k com o um a m an i­
festação de seu deus Lono, porque ele era obviam ente poderoso e
porque chegou na época do ano associada aos aparecim entos do
deus. O acontecim ento pode por isso ser estudado (com o sugeriu
Braudel) com o u m a espécie de papel heliográfico que revela as
estruturas da cultura.
Entretanto, Sahlins tam bém declara (ao contrário de Braudel)
que há um relacionam ento dialético entre os acontecim entos e as
estruturas. A s categorias são postas em perigo cada vez que são
utilizadas para interpretar o m u n d o em m utação. N o processo de
incorporação d o s acontecim entos, “ a cultura é reordenada” . O fim
do sistem a dos tabus, por exem plo, foi um a das conseqüências
estruturais do contato com os britânicos. A ssim tam bém o aum en­
to do com ércio intercontinental. É verdade em m ais de um sentido
que C o o k não deixou o Havaí com o o havia encontrado. Sahlins
contou u m a história com um a m oral, ou talvez com duas m orais.
A m oral para os “ estruturalistas” é aquela em que eles deveriam
reconhecer o poder dos acontecim entos, seu lugar no processo da
“estruturação” . O s defensores da narrativa, por outro lado, são
en corajados a exam inar a relação entre os acontecim entos e a
cultura em que eles ocorrem . Sahlins foi além da fam osa ju stapo­
sição dos acontecim entos e das estruturas de Braudel. N a verdade,
4 5 . M . Sah lin s, Historical Metaphors and Mythical Realities, A n n A rb o r, 1981 e lslands
o f History, C h icago , 1 985. C f. P. Burke, “ Les iles anth ropologiqu es et le territoire de
l’h istorien” , em Philosophie et histoire, ed. C . D escam p s, Paris, 1 987, p. 49-66.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
347
ele virtualm ente resolveu, ou dissolveu, a oposição binária entre
essas duas categorias.
R esu m in do , tenho tentado argum entar que historiadores
com o Taw ney e N am ier, Febvre e Braudel, foram justificados em
su a rebelião contra um a form a tradicional da narrativa histórica
qu e era m al adaptada à história estrutural que eles consideravam
im portante. A escrita da história foi im ensam ente enriquecida
pela ex p an são de seu tem a, e tam bém pelo ideal da “ história
total” . Entretanto, m uitos estu diosos atualm ente con sideram que
a escrita da história tam bém tem sid o em pobrecida pelo ab an d o ­
n o d a narrativa, estan do em andam ento u m a b u sca de novas
form as de narrativa que serão adequadas às novas histórias, que
os historiadores gostariam de contar. Estas novas form as incluem
a m icronarrativa, a narrativa de frente para trás e as histórias que
se m ovim en tam para frente e para trás, entre os m u n d os público
e privado, ou apresentam os m esm os acontecim entos a partir de
p o n tos de vista m últiplos.
Se os historiadores estão procurando m odelos de narrativas
que ju stapon h am as estruturas da vida com um pelos acontecim en­
tos extraordinários, e a visão de baixo pela visão de cima, podem
m uito bem ser aconselhados a voltar à ficção do século vinte,
incluindo o cinem a (os filmes de Kurosaw a, por exem plo, ou de
Pontecorvo ou de Jancsó). Pode ser im portante que um a das
discu ssões m ais interessantes da narrativa histórica seja a obra de
um historiador do cinem a (a obra de Kracauer, já citada). O
expediente de pontos de vista m últiplos é central ao Rashomon de
K urosaw a.46 Está implícita em The Red and the White, de Jancsó,
u m a narrativa da guerra civil ru ssa em que os dois lados se revezam
para capturar a m esm a aldeia.
Q u an to a Pontecorvo, poderia ser dito que ele transform ou o
próprio processo histórico em si n o tem a de seus filmes, em vez
de sim plesm ente contar um a história sobre indivíduos em trajes
4 6 . A h istória original d e Akutagaw a n ão adotava este expediente.
348
PETER BURKE
históricos.47* É interessante observar que Jonatham Spence u sa a
linguagem de “ m ontagem ” e que The Return of M artin Guerre
apareceu m ais ou m en os na m esm a época, com o um a história e
com o um filme, depois de Natalie D avis e D aniel V igne terem
trabalhado juntos n o tem a.48 V isões retrospectivas, cortes e a
alternância entre cena e história: essas são técnicas cinem áticas (ou
na verdade literárias) que podem ser utilizadas de um a m aneira
superficial, antes para ofuscar do que para ilum inar, m as podem
tam bém ajudar os historiadores em sua difícil tarefa de revelar o
relacionam ento entre os acontecim entos e as estruturas e apresen­
tar pontos de vista m últiplos. Desenvolvim entos desse tipo, se
continuarem , podem reivindicar ser vistos, não apenas com o m ero
“ renascim ento” da narrativa, com o denom inou Stone, m as com o
u m a form a de regeneração.
4 7 . G . Pontecorvo, L a battaglia di Algeri, 1 966; Q ueim ada, 1969.
4 8 . N .Z. D avis, J.-C . C arrière, D . V igne, Le retour de M artin Guerre, Paris, 1982.