dossiê - UAM-I
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dossiê - UAM-I
A ATUALIDADE DO DEBATE SOBRE TRABALHO E DESENVOLVIMENTO INTRODUÇÃO DOSSIÊ José Ricardo Ramalho, Roberto Véras de Oliveira Uma das questões mais importantes do debate contemporâneo sobre o trabalho tem sido a demanda por explicações teóricas e por pesquisas empíricas mais consistentes acerca de sua manifestação em países com situações permanentes de pobreza e deficit de cidadania. Discutir o trabalho nessa perspectiva requer uma ampliação dos horizontes de investigação, uma revisão de conceitos clássicos e uma abertura de novas frentes de reflexão. Foi com esta intenção que reunimos o conjunto de artigos desse Dossiê, articulando a problemática atual do trabalho com a retomada do tema do desenvolvimento. A discussão sobre desenvolvimento ganhou centralidade nas Ciências Sociais brasileiras e lati* Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) e pósdoutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Largo de São Francisco 1, sala 418, Centro. Cep: 20051070 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected] ** Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). [email protected] no-americanas desde a metade do século XX. Suscitou diversas interpretações sobre as dinâmicas econômicas e sociais alteradas pela ação do Estado em uma perspectiva nacional-desenvolvimentista, que se voltaram para a “modernização” com ênfase na industrialização, para projetos de infraestrutura e para a constituição de um sistema de regulação jurídica face a um mercado de trabalho pouco estruturado e pouco adaptado ao emprego industrial. Tida como uma “década perdida”, quando analisada pelo ângulo estrito da economia, a década de 1980, em perspectiva política, esteve marcada por uma maior participação de setores populares e de trabalhadores no debate sobre democracia, na luta por direitos, quando, por essa via, se “constituiu a base fundamental para a emergência de uma nova noção de cidadania” (Dagnino, 1994, p. 104). Na virada dos anos 1990, no entanto, os impactos sociais da globalização econômica e das políticas neoliberais se fizeram sentir nas sociedades latino-americanas. Observou-se “uma desconcentração do poder do Estado nacional, reorientado por reformas em favor do mercado”. Tal perspectiva aprofundou a ruptura do pacto nacional- 211 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013 José Ricardo Ramalho* Roberto Véras de Oliveira** CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013 A ATUALIDADE DO DEBATE SOBRE TRABALHO ... desenvolvimentista (entre Estado, elites empresariais e trabalhadores assalariados urbanos), que tinha vigorado até os anos 1970 (Ivo, 2012, p. 198). Se, nos anos 1980, tendo o caso brasileiro como emblema, a questão social foi ressignificada na perspectiva dos direitos de cidadania, na década seguinte o que se viu foi um movimento de “refilantropização da pobreza” (Yazbek, 1995). A dívida social cresceu com o desemprego elevado, o aumento da informalidade e da vulnerabilidade das mulheres e dos jovens trabalhadores, o esvaziamento das negociações coletivas e das ações sindicais, a “precarização” das relações de trabalho (DIEESE, 2001). As dinâmicas socioeconômicas e políticas se alteraram ao longo da década de 2000. Segundo Boschi e Gaitán (2008, p. 305 e 306), ocorre, nesse período, “o enfraquecimento da hegemonia neoclássica e uma retomada de trajetórias de intervenção estatal na economia, observando-se uma diversidade de caminhos neodesenvolvimentistas”. O principal desafio dos países latino-americanos passou a ser o de “quebrar um círculo vicioso e reverter as trajetórias prévias sinalizadas pelo subdesenvolvimento, pelo atraso relativo e pela desigualdade na distribuição de renda” (Idem, p. 305). Na retomada do debate sobre o tema do desenvolvimento, a dimensão social tem sido mais enfaticamente reivindicada. É o caso de Kerstenetsky (2011), que propõe uma articulação entre as propostas de desenvolvimento e o estado do bem-estar social, de modo a compatibilizar crescimento econômico e equidade social. Para Ivo (2012, p. 206), a relevância social da agenda de desenvolvimento deve ser considerada para além das políticas de transferência de renda, visto que o enfrentamento das desigualdades sociais não pode prescindir de “políticas vigorosas de proteção e integração social”, as quais “dependem das condições estruturais da distribuição, da qualidade das políticas públicas e da qualidade de inserção dos indivíduos na esfera do trabalho...”. A problemática atual do trabalho, referida à retomada de um discurso desenvolvimentista, ganha particular relevância quando associada, seja às diversas experiências de participação política e institucional dos trabalhadores e dos movimentos sociais nas últimas décadas, seja ao modo como políticas de desenvolvimento lidam com estratégias empresariais de flexibilização e precarização das relações de trabalho, de desrespeito à legislação protetiva do trabalho, de descaso com as consequências ambientais e seu impacto sobre diferentes setores da população. Os estudos sobre o trabalho em um cenário de globalização, em contextos de países periféricos, trouxeram desafios de interpretação, tendo em vista substantivas diferenças no perfil do mercado de trabalho e nas estratégias empresariais com relação às condições de emprego e à reestruturação das atividades produtivas. As mudanças no mundo do trabalho, originadas nos processos de reestruturação produtiva; a introdução de um padrão flexível na organização dos processos de trabalho, como forma de lidar com as novas tecnologias e, ao mesmo tempo, estabelecer novos parâmetros para as relações salariais; a capacidade de deslocamento geográfico das empresas e sua estruturação em rede, como forma de obter vantagens comparativas; todos esses elementos aparecem de forma diferenciada na realidade econômica e social dos países da America Latina (Ramalho, 2000). Na tradição crítica do pensamento sociológico brasileiro e latino-americano, os destacados aspectos da flexibilização foram objeto de questionamento e valorizou-se uma linha de interpretação que mostrava as consequências sociais desse processo, a “precarização” do trabalho e seus efeitos sobre a organização da sociedade. Tal perspectiva, ao mesmo tempo em que ressalta a importância de identificar as situações de “precarização social”, demonstra as contradições entre os processos de modernização percebidos como progresso e processos de regressão social cada vez mais visíveis. A proximidade política da reestruturação das empresas e da expansão das redes globais de produção com os modelos de política econômica de perfil neoliberal tiveram um impacto imediato nas dinâmicas do trabalho no Brasil. As pesquisas realizadas sobre o período que se inicia nos anos 212 1990 identificaram efeitos sociais que fragilizaram trabalhadores e desempregados. A flexibilização das empresas através da “terceirização”, por exemplo, reduziu direitos, rebaixou salários e tornou instáveis os empregos. O alto grau de informalização do mercado de trabalho e a presença da exclusão e da pobreza permaneceram como traços marcantes. Esse perfil do trabalho se manteve também nos anos 2000, quando uma maior ênfase no crescimento econômico se consolidou no cenário político. Tal retomada resultou em um maior incremento das políticas sociais, com mudanças relevantes nos indicadores sociais e do trabalho, sem, no entanto, trazer alterações de tipo mais estruturais (Pochmann, 2012). Toda uma linhagem especialmente delimitada pela noção de “economia solidária” se estabeleceu, enquanto ação coletiva e política pública, recolocando em cena as experiências associativas e solidárias nos campos da produção, comercialização, crédito e trabalho. Por outro lado, o novo contexto de desenvolvimento tem exigido uma necessária ligação da temática do trabalho com os contextos específicos dos “territórios produtivos”, as estratégias de investimento das cadeias produtivas e as políticas de desenvolvimento local e regional. Por tudo isso se justifica um olhar direcionado para as implicações recíprocas entre a nova agenda de desenvolvimento e as novas dinâmicas do trabalho. De um lado, a necessidade de investigar as consequências das novas políticas de desenvolvimento para as relações de trabalho. Em que medida e de que modo as pressões mundiais pela flexibilização e precarização das relações de trabalho se aplicam ao Brasil e a outros países da América Latina? De outro lado, até que ponto os movimentos sociais, o sindicalismo e outras formas de ação coletiva, referidas ao mundo do trabalho e às questões sociais e ambientais, vêm conseguindo influenciar os padrões de desenvolvimento que se estabelecem? A proposta deste Dossiê não é o de cobrir todo esse conjunto de considerações e questões, mas de demonstrar, através dos artigos escritos e diferentes abordagens, um campo possível de arti- culação entre as temáticas do trabalho e do desenvolvimento, sinalizando a sua complexidade para os estudos sociológicos. Começamos com um estudo sobre como uma das expressões de maior destaque do sindicalismo brasileiro vem tematizando a questão do desenvolvimento, justo na região de maior tradição industrial do país. No texto “Sindicato, desenvolvimento e trabalho: crise econômica e ação política no ABC”, José Ricardo Ramalho e Iram Jácome Rodrigues, a partir da atuação do sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista nas últimas duas décadas, especialmente durante a crise de 2008, discutem e problematizam o envolvimento direto de entidades de representação de trabalhadores em espaços não-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvimento e seus desdobramentos em contextos regionais. O texto revela as diferentes inserções e perspectivas dos atores sociais locais, regionais e nacionais na busca de alternativas para a crise econômica mundial e demonstra como, através de um evento público, sem apagar as contradições e os conflitos de uma realidade social marcada pela assimetria de posições na estrutura social, o sindicato exerceu seu poder de mobilização e criou alternativas concretas para enfrentar o desemprego e as ameaças de uma conjuntura hostil aos trabalhadores. Na sequência, em contraste com o caso anterior, trazemos uma abordagem sobre os conflitos do trabalho e a ação sindical em um território na periferia do país, onde vem ocorrendo um boom de industrialização, induzido por políticas desenvolvimentistas. No texto “Suape em construção, peões em luta: o novo desenvolvimento e os conflitos do trabalho”, Roberto Véras de Oliveira analisa a emergência de uma nova agenda de desenvolvimento no Brasil através da ótica do trabalho e de seus conflitos. Tomando como exemplo a construção de empreendimentos industriais no Complexo Industrial Portuário de Suape, em Pernambuco, e enfocando, principalmente, as revoltas e greves de trabalhadores envolvidos nas obras de construção das principais plantas industriais, o autor mostra como tais conflitos permitem apreender os processos desencadeados (conflitos, 213 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013 José Ricardo Ramalho, Roberto Véras de Oliveira CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013 A ATUALIDADE DO DEBATE SOBRE TRABALHO ... mediações e negociações) e o que está em disputa (com as demandas dos trabalhadores e os discursos e práticas governamentais, empresariais e sindicais). A questão que se coloca ao final é se essas mobilizações, além de ganhos imediatos para os trabalhadores, são capazes de lhes dar reconhecimento como legítimos portadores de demandas sociais. E se tais demandas não colocam em xeque os termos do novo discurso desenvolvimentista. Um elemento em evidência nesse novo arranjo discursivo se refere à sua associação com a questão ambiental. Neste particular, um dos aspectos mais controversos diz respeito ao modo como se articulam os temas da “energia limpa” e da produção de etanol. No texto “A imagem do etanol como “desenvolvimento sustentável” e a (nova) morfologia do trabalho”, Maria Aparecida Moraes e Silva et al analisam as relações e condições de trabalho nos canaviais paulistas e alagoanos, resultantes de um processo de reconfiguração do trabalho pela intensificação da mecanização do corte de cana. A proposta é mostrar, criticamente, como a ideologia desenvolvimentista relacionada a essas mudanças, introduzidas pelas empresas sucroalcooleiras e estimuladas pelo Estado, tem resultado em uma intensificação da exploração da força de trabalho no quadro de uma (nova) morfologia que combina tecnologias avançadas com um aumento da desqualificação dos trabalhadores. Discutir modelos de desenvolvimento implica, também, abordar as mudanças no mercado de trabalho e no modo como se tratam questões como a flexibilização dos empregos e a manutenção de direitos. Em “A retomada do desenvolvimento e a regulação do mercado de trabalho no Brasil”, Paulo Baltar e José Dari Krein argumentam que a retomada do crescimento da economia brasileira permite redefinir os termos do debate sobre o trabalho. Sob tal pressuposto, estabelecem uma relação entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo e os desafios de uma regulação pública do trabalho. Ressaltam que a crise econômica mundial abre a possibilidade de o Estado ter um papel mais ativo nas políticas de desenvolvimento e alertam, no caso brasileiro, para os desdobramen- tos do aumento do peso da PEA adulta, em relação ao funcionamento do mercado de trabalho. Os autores identificam, nesse contexto, um embate entre os que defendem uma estruturação do mercado de trabalho com implicações na qualidade das relações sociais e os que destacam a necessidade de uma maior flexibilização na contratação, no uso e na remuneração do trabalho. E associam estas diferentes posições ao modelo de desenvolvimento e às políticas públicas do trabalho que o país vem implementando. O texto seguinte se dedica às possibilidades de uma regulação pública do trabalho, mais especificamente à relação entre o segmento de trabalhadores jovens sem escola e sem trabalho e a reprodução da pobreza. Em “Juventude, trabalho e desenvolvimento: elementos para uma agenda de investigação”, Adalberto Cardoso discute a situação dos jovens que não estudam nem trabalham, fenômeno que vem chamando a atenção no contexto pós-crise econômica de 2008, especialmente na Europa. O autor argumenta que, no Brasil, a condição “nem nem” é estrutural, e propõe um modelo analítico de explicação das transformações ocorridas entre 2000 e 2010. Sugere que as mudanças estruturais por que passou o país e as políticas públicas de redução de barreiras ao acesso à escola e ao mercado de trabalho reduziram o impacto das desigualdades regionais e aumentaram o peso da pobreza na explicação da condição “nem nem” dos jovens. O último texto, de cunho mais teórico, trata da adequação das interpretações sobre as tendências e os sentidos do trabalho na sociedade capitalista contemporânea a partir da especificidade da realidade latino-americana. No artigo “Trabajo no clásico y flexibilidad”, Enrique de la Garza Toledo faz um balanço dessa literatura e atribui destaque a uma dimensão insuficientemente explorada da teoria através do uso do conceito de “trabalho não clássico”. No texto, ele relaciona esse tipo de trabalho com as atividades de serviço, que adquirem importância nas economias capitalistas centrais, mas também nas economias menos desenvolvidas. E, ao recapitular a discussão sobre flexibilidade, reivindica a sua ampliação para incluir os traba- 214 José Ricardo Ramalho, Roberto Véras de Oliveira lhos não-clássicos, em especial a subcontratação. REFERÊNCIAS O autor finaliza com a discussão sobre a fragmenRenato; GAITÁN, Flavio. Intervencionismo estação de identidades e a servidão voluntária e seus BOSCHI, tatal e políticas de desenvolvimento na América Latina. vínculos com o trabalho não-clássico e sugere aten- Caderno CRH. Salvador: EDUFBA, v. 21, n. 53, p. 305322, Maio/Ago, 2008. ção à possibilidade de constituição de sujeitos do DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: DAGNINO, E. trabalho mesmo nestas condições. (Org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Ao final, esperamos que as questões apre- Brasiliense, p. 103-115. 1994. sentadas e discutidas nesse Dossiê tragam novos DIEESE. A situação do trabalho no Brasil. São Paulo: elementos para o debate sobre a centralidade do Dieese, 2001. IVO, Anete B. L. O paradigma do desenvolvimento: do trabalho na sociedade contemporânea e para uma mito fundador ao novo desenvolvimento. Caderno CRH. reflexão mais aprofundada sobre os diferentes des- Salvador: EDUFBA, v. 25, n. 65, p. 187-210, Maio/Ago. 2012. dobramentos que envolvem os processos de de- KERSTENETZKY, Celia Lessa. Welfare state e desenvolsenvolvimento econômico, com ênfase na necessi- vimento. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 129-156, 2011. dade da participação da sociedade e dos trabalhaPOCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na dores na sua formulação e na distribuição dos seus base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012, 128p. resultados. RAMALHO, José Ricardo. Trabalho e sindicato: posições em debate na sociologia hoje. Dados, Rio de Janeiro, v.43, n. 4, p. 761-777, 2000. YAZBEK, Maria Carmelita. A política social brasileira nos anos 90: refilantropização da Questão Social. In: Cadernos ABONG, n. 11, 1995. José Ricardo Ramalho - Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pósdoutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPQ. Sua atuação acadêmica está mais voltada para a área da Sociologia do Trabalho e seus principais temas de pesquisa são: relações de trabalho na indústria; sindicato e sindicalismo; reestruturação produtiva e distritos industriais; trabalho, emprego e desenvolvimento econômico regional e local; identidade operária. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Estado Patrão e Luta Operária: o caso FNM. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Trabalho e Sindicato em antigos e novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007. Roberto Véras de Oliveira - Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). Pesquisador do CNPQ. Preferencialmente, orienta seus estudos e pesquisas para os campos da Sociologia do Trabalho e da Sociologia Política. Tem concentrado sua atenção (na forma de publicações, orientações e participação em eventos) sobre temas como sindicalismo, relações de trabalho, qualificação profissional, políticas públicas de trabalho, emprego e renda, economia solidária, diálogo social, cidadania, entre outros. É autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Sindicalismo e Democracia no Brasil – do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. São Paulo: Annablume, 2011. 215 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013 Recebido para publicação em 14 de junho de 2013 Aceito em 26 de junho de 2013 SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO: crise econômica e ação política no ABC José Ricardo Ramalho* Iram Jácome Rodrigues** DOSSIÊ José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues A intervenção de sindicatos no debate sobre estratégias de desenvolvimento econômico no Brasil pode ser considerada uma novidade no elenco das habituais demandas associadas às questões salariais e às condições de trabalho. A tentativa de trazer para o espaço público as decisões normalmente tomadas em esferas privadas e a preocupação em avaliar os efeitos sociais dos projetos de investimento que atingem localidades e regiões têm exigido das entidades sindicais, com acúmulo político no mundo do trabalho, uma ação diferenciada de engajamento em disputas de poder e experiências institucionais inovadoras. O sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista, pelo protagonismo que exerceu na luta * Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) e pósdoutorados na Universidade de Londres – UK – e na Universidade de Manchester – UK. Professor titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Largo de São Francisco 1, sala 418, Centro. Cep: 20051070 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected] ** Doutor em Sociologia e pós-doutoramento pela Universidade de Cambridge – UK. Professor Associado (Livre-Docente) do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (PPGS-USP). [email protected] de resistência política à ditadura civil-militar instaurada em 1964, e pela experiência histórica de reivindicação por melhores salários e empregos desde o final dos anos 1970, é um bom exemplo de como usar legitimidade e poder de convocação para atuar em instâncias de discussão sobre os problemas criados pelas crises econômicas regionais e para exigir das empresas e dos governos soluções em favor da sociedade local e de seus trabalhadores.1 Pelo fato de ser um complexo distrito industrial, berço da indústria automotiva brasileira e com uma concentração de empresas multinacionais e suas redes de fornecedores, o ABC, como território produtivo, foi atingido, nas últimas duas décadas, em especial nos primeiros anos dos 1990 e nos anos finais dos 2000, por crises mundiais (Ramalho e Rodrigues, 2010 e 2007; Ramalho, Rodrigues e Conceição, 2009). Cenários de recessão e diminuição de atividades 1 Os dados, informações e entrevistas que sustentam o texto são resultados parciais de projetos de pesquisa em andamento, que vêm sendo desenvolvidos pelos autores, apoiados pelo CNPq e pela Faperj (Programa Cientistas do Nosso Estado). 217 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 O objetivo deste texto é discutir e problematizar as novas práticas sindicais dos metalúrgicos do ABC paulista, que implicam o envolvimento direto de entidades de representação de trabalhadores em espaços não-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvimento e seus desdobramentos em contextos regionais de uma economia globalizada. Vamos analisar a ação sindical tomando como base dois períodos distintos – décadas de 1990 e 2000 – , e colocar em foco, como síntese desse processo, a realização de um evento político organizado pelo sindicato dos metalúrgicos em 2009, o Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, que revela as diferentes inserções e perspectivas dos atores sociais locais, regionais e nacionais na busca de alternativas para a crise econômica mundial de 2008. Trata-se de um exemplo de reunião pública que, sem apagar as contradições e os conflitos de uma realidade social marcada pela assimetria de posições na estrutura social, criou um momento de consenso provisório diante das ameaças de uma conjuntura hostil aos trabalhadores. PALAVRAS CHAVE: Ação sindical. Desenvolvimento regional. ABC paulista. Crise econômica CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ... econômicas são conhecidos dos trabalhadores e dos sindicatos: em geral resultam em aumento do desemprego e pressão empresarial por redução de salário e flexibilização de direitos trabalhistas. A essa intimidação conjuntural, a reação habitual dos sindicatos tem sido a da busca de mecanismos de defesa do emprego, evitando abrir mão de avanços já consolidados. No caso dos metalúrgicos do ABC não foi diferente, e o sindicato adotou uma linha de ação pró-ativa para atenuar os efeitos negativos das crises e não se furtou a fazer valer o seu poder político para, junto com outros setores, como os pequenos e médios empresários e a administração pública local, discutir propostas de ativação da economia e do emprego regional. O objetivo deste texto é discutir e problematizar as novas práticas sindicais dos metalúrgicos do ABC, que implicam o envolvimento direto de entidades de representação de trabalhadores em espaços não-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvimento e seus desdobramentos em contextos regionais de uma economia globalizada. Vamos analisar a ação sindical, tomando como base esses dois períodos distintos (décadas de 1990 e 2000), e colocar em foco, como síntese desse processo, a realização de um evento político organizado pelo sindicato dos metalúrgicos em 2009, o Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, que revela as diferentes inserções e perspectivas dos atores sociais locais, regionais e nacionais na busca de alternativas para a crise econômica mundial de 2008. Trata-se de um exemplo de reunião pública que, sem apagar as contradições e os conflitos de uma realidade social marcada pela assimetria de posições na estrutura social, criou um momento de consenso provisório diante das ameaças de uma conjuntura hostil aos trabalhadores. O contexto de crise nos anos 1990 e anos 2000 no ABC paulista apresentou diferenças de formato e de impacto sobre a região, assim como encontrou motivações distintas por parte dos governos federais. Em 2008, por exemplo, a presença de Lula na presidência da república desobstruiu os canais de interlocução do governo federal com a região e com o sindicato dos metalúrgicos. Da mesma forma, a participação diferenciada das administrações municipais nos dois períodos é motivo para uma reflexão, tendo em vista que os prefeitos ligados ao Partido dos Trabalhadores inauguraram novas práticas institucionais ao reunir atores sociais diversos, com heranças históricas diversas, em combinações políticas que sinalizaram caminhos pouco explorados de associação e de debate na esfera pública. UMA DISCUSSÃO TEÓRICA SOBRE MOVIMENTO SINDICAL A estratégia sindical implementada no ABC traz desafios para os trabalhadores, seus representantes e para os estudiosos do tema do sindicalismo. Como explicar uma postura política que implica cooperação institucional com empresários e administração pública, quando, em termos da estrutura social, permanecem inalteradas as contradições irreconciliáveis do capitalismo e as assimetrias que marcam as relações capital/trabalho nas fábricas? O sindicato teria esquecido sua função de representante de classe e deixado de lado a veia de contestação, característica de sua ação nos anos 1970/ 1980? Existem argumentos para justificar essas novas práticas? Houve benefícios concretos para a população trabalhadora do ABC? O sindicalismo metalúrgico do ABC tornouse, durante os anos 1980, um exemplo do que, no debate mundial sobre novas formas de ação coletiva na área trabalhista, ficou conhecido como “sindicalismo de tipo movimento social” (social movement unionism, conforme o original em inglês), por suas características de contestação política e de associação com outros movimentos sociais (entre outros Moody,1997; Waterman, 1998, 2008; Munck, 2002; Seidman, 1994). Ao longo dos anos 1990, no entanto, com a globalização dos mercados e a imposição de uma reestruturação da produção, este sindicato foi obrigado a adotar uma estratégia defensiva, evoluindo de uma fase mais marcada pelo conflito aberto com as empresas para um processo de “cooperação conflitiva” (Rodrigues, 218 José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues [...] se projetar para além das negociações diretas com as empresas”, a buscar “uma nova forma de inserção na sociedade, diversificando sua agenda de preocupações, ampliando sua participação em espaços públicos, instituindo novas frentes de ação2 (Véras de Oliveira, 2011, p. 286 e 287). Um modo de problematizar a ação sindical no ABC, tomando como base as várias interpretações existentes na literatura sobre as diferentes fases do sindicalismo, é o de avaliar essas práticas, levando em consideração as particularidades dos contextos sociais, econômicos e políticos, das tradições políticas incorporadas historicamente, das conjunturas econômicas globais e nacionais e seus desdobramentos sobre o mercado de trabalho. Mas, além disso, perceber que os sindicatos estão permanentemente sob pressão de um dualismo universal entre ser uma “organização de negócios” ou uma “expressão e veículo do movimento histórico das classes trabalhadores subalternas” (Fairbrother; Webster, 2008, p. 309-313; Hyman, 2001). Na avaliação de Fairbrother e Webster (2008, p. 309-313), por exemplo, “os sindicatos são um tipo de movimento social que contém dimensões progressistas e acomodativas” e a questão que se coloca para os analistas é identificar “como e em que circunstâncias os sindicatos podem desafiar e questionar a relação capital/trabalho”. Para esses autores, cabe aos sindicatos, como associações de trabalhadores, regular a relação salário-trabalho e, por essa razão, não podem ignorar o mercado. Mas os sindicatos “são também parte da sociedade, coexistindo com outras instituições e outras constelações de interesses”. 2 Para Véras de Oliveira (2011, p. 270), o I Congresso dos Metalúrgicos do ABC, ocorrido em 1993, foi uma marca importante quando “aprovou-se a participação do Sindicato na campanha denominada Ação da Cidadania contra a Miséria e Pela Vida, que ganhava visibilidade e mobilizava a sociedade”. Embalado pelo apelo da campanha ao resgate da cidadania, a resolução do Congresso soou como um manifesto do “sindicato cidadão”. Discutir essas estratégias sindicais pós-ditadura, em comparação com exemplos de outros países, é uma boa oportunidade para examinar as especificidades de tempo e espaço, as conjunturas particulares com suas próprias dinâmicas e, ao mesmo tempo, identificar dilemas e práticas que aproximam as ações sindicais diante de conjunturas econômicas desfavoráveis. A contribuição teórica de Hyman (2001, p. 3), ao analisar a experiência europeia diante da reestruturação produtiva, parece-nos adequada para o caso do ABC. Sua sugestão de investigar a ação sindical a partir do triângulo mercado/sociedade/classe, também se aplica ao contexto brasileiro das duas últimas décadas. Para este autor (2001, p. 3-5), todos os sindicatos estão referidos a cada ponto do triângulo: “[...] sindicatos de negócio focam, no mercado; sindicatos integradores, na sociedade; sindicatos de oposição radical, na classe”. No entanto, afirma Hyman, os exemplos históricos mostram que os sindicatos, com base em apenas um vértice, ficam instáveis: [...] sindicalismo de negócio puro raramente ou nunca existiu. Mesmo com a atenção principal voltada para o mercado de trabalho, os sindicatos não podem [...] negligenciar o amplo contexto social e político das relações de mercado. [...]. Do mesmo modo, como veículos de integração social, os sindicatos podem sustentar uma rationale que justifica sua existência como instituições autônomas, mas essa postura esbarra no fato de que seus membros, como empregados, têm interesses econômicos distintos, “o que pode se chocar com os interesses de outros setores da sociedade”. Por outro lado, [...] os sindicatos que abraçam uma ideologia de oposição de classe precisam ao menos conseguir uma acomodação tácita com a ordem social existente; e devem também considerar o fato de que normalmente seus membros esperam que seus interesses econômicos de curto prazo sejam adequadamente representados. Sem desconsiderar a perspectiva macro de análise, que problematiza a estrutura de classes da sociedade capitalista e as estratégias das empre- 219 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 1995), situação na qual os trabalhadores, sem abdicar das marcas e diferenças de classe, se viram obrigados a “negociar” as transformações na esfera da produção. A luta pela preservação do seu espaço, enquanto instituição de representação dos trabalhadores nesse novo contexto, levou o sindicato a SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ... sas, a intenção do nosso texto é enfatizar a capacidade de agência dos trabalhadores organizados e o seu poder coletivo de alterar disputas políticas em arenas locais. Embora as empresas multinacionais tenham sua lógica de acumulação articulada globalmente, os territórios produtivos, que constituem seus elos locais, são arenas políticas de disputa de poder, onde os atores sociais exercem sua capacidade de contestar decisões de investimento e projetos de desenvolvimento econômico. Como Olivier de Sardan (2005, p. 183-186), consideramos que estes atores têm “recursos de poder desiguais e desequilibrados”, mas não estão, nunca, “destituídos de poder”. menos interromper o curso natural do que seria o investimento do capital. Mas estamos preocupados também com o desenvolvimento que é na sequência a contrapartida de geração de emprego, de recolocação de pessoas e de ampliação do próprio mercado. Isso é o que tem nos levado a uma preocupação com política industrial, com políticas setoriais, com desenvolvimento local (José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 18/06/2004). No entender de Abrucio e Soares (2001, p. 152-156), a crise no ABC dos anos 1990 fez com que os atores locais fossem “tomando uma postura de organizar-se regionalmente”. Segundo esses autores, [...] nem todos os grupos atuaram (com a) mesma intensidade, [...] bem como nem todas as questões tiveram o mesmo potencial agregador”. Mas as dificuldades econômicas colocaram a região sob um dilema: “ou reagia coletivamente, ou se corria o risco de todos perderem, em proporções diferentes, porém com um impacto de soma-negativa no geral. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 UMA VOLTA AO PASSADO RECENTE: a crise dos anos 1990 e a reação sindical A participação do sindicato dos metalúrgicos na organização e liderança de uma iniciativa do tipo Esse processo coincide, também, com as do Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, na verdade, permite remontar a uma histó- mudanças resultantes das eleições municipais de ria que começa no início dos anos 1990. O ABC, 1988, com a posse de novos grupos políticos, especialmente aqueles ligados ao Partido dos Trabanesse período, segundo Conceição (2008), lhadores.3 Para o ex-prefeito do PT, Celso Daniel [...] vivenciou, de modo mais agudo que no res- (2001b, p. 78 e 79), o principal formulador e realitante do país, a reestruturação industrial, cujo zador das novas propostas de articulação para o resultado foi, entre outros, a desnacionalização do capital, a falência de inúmeras empresas, a desenvolvimento regional, desativação de várias fábricas de grande, médio e pequeno porte, a redução de cerca de 50% dos postos de trabalho. [...] a crescente consciência coletiva da crise estrutural do Grande ABC – em substituição à ausência de tal consciência na década de 1980 – criou condições para a constituição de complexa institucionalidade regional. E a crise serviu para que empresários justificassem o deslocamento para outras regiões, especialmente por causa do “regime automotivo” de 1995, Para Daniel, a superação da crise não podee colocassem a responsabilidade exatamente na inria estar baseada em decisões exógenas à região e tensidade da atividade sindical. fazia-se necessário O processo de reestruturação produtiva é extremamente perverso quando não acompanhado por um movimento sindical que procure minimizar os seus efeitos redutores de mão de obra e de mercado. A ausência de crescimento econômico é o pior dos mundos. Você vive a demissão da reestruturação aliada a não geração de emprego pela ausência de crescimento econômico. Então discutimos a reestruturação produtiva para minimizar seus efeitos ou buscar ao 3 “É bom recordar, ainda, que o diagnóstico sobre a situação regional não era o ponto mais importante no discurso dos petistas [...]. Foi com a assunção ao poder e o enfrentamento de seus problemas, numa época marcada pelo acirramento e conscientização de dimensão da crise econômica e social do ABC, atingindo em cheio um modelo de desenvolvimento bem sucedido por trinta anos, que os prefeitos petistas procuraram atuar em prol da temática regional“ (Abrucio e Soares, 2001, p. 152-156). 220 José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues uma proposta alternativa de desenvolvimento região, em movimento que ficou conhecido como local endógeno, isto é, calcado, sobretudo em decisões tomadas internamente à região, pelos “vote no Grande ABC” (Petrolli, 2000; Horta, seus protagonistas, ou ao menos fortemente in- 2003).5 O Fórum se institucionalizou em seguida fluenciadas por estes últimos”.4 4 Para Abrucio e Soares (2001, p. 128 e 129), embora a região do ABC apresentasse as características principais das metrópoles brasileiras, com o seu desenvolvimento industrial e urbano desordenado, desigual e concentrado, houve, também, razões para a consolidação de uma identidade regional devido: “a) fator histórico – até meados do século XX todo o território que abriga hoje o ABC era apenas um município; b) fator geográfico – [...] como fator agregador a situação da área de mananciais, que abrange todos os municípios e ocupa mais de 50% do território regional; c) fator econômico – a industrialização nas décadas de 1960 e 70 definiu um perfil econômico para a região, assim como a crise a partir da década de 1980 [...] impacta de forma direta ou indireta, todos os municípios do ABC; d) fator social e político – os movimentos sociais, o novo sindicalismo e o nascimento do PT nas décadas de 1970 e 80 enfatizaram uma cultura associativista e politizada; e) fator cultural – ao longo dos últimos anos vem se reforçando o sentimento dos atores sociais de pertencerem a uma região, de compartilharem uma identidade regional”. A Agência de Desenvolvimento Econômico, hoje, é a entidade mais forte, abaixo do Consórcio [Intermunicipal], que faz gestão de projetos, pro5 Nas eleições de 1994, a Região do ABC elegeu cinco deputados federais e oito deputados estaduais, o que foi a maior representação parlamentar observada em sua história até aquele momento. 6 Os componentes da Câmara Regional do ABC, na segunda metade da década de 1990, foram: o Governo do Estado de São Paulo, o Consórcio Intermunicipal (sete prefeituras), os legislativos municipais, os parlamentares do ABC na Assembleia Legislativa e no Congresso Nacional, o Fórum da Cidadania, as associações empresariais e os sindicatos de trabalhadores. 7 A Agência tem como sócios o Consórcio Intermunicipal (que envolve as sete Prefeituras); as quatro diretorias regionais do Centro de Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP); as Associações Comerciais e Industriais dos sete Municípios; os Sindicatos de Trabalhadores (Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sindicato dos Químicos do ABC, Sindicato das Costureiras, Sindicato da Construção Civil); o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), as empresas do pólo petroquímico regional (Petroquímica União, Solvay, Cabot, Polietilenos União, Polibrasil, Crevron, Oxicap e Petrobrás) e as universidades (IMES, UNI-A, Fundação Santo André, UNIBAN, UNIABC, Metodista, FOCO). 221 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 Uma primeira reação institucional à crise da indústria no ABC foi a criação da Câmara Setorial da Indústria Automobilística pelo governo federal (entre outros, Arbix, 1996 e 1997; Oliveira, 1992 e 1993; Diniz, 1993; Cardoso e Comin, 1995 e Cardoso, 1999a; Bresciani e Benites Filho, 1995; Anderson, 1999; Silva, 1997). Experiência nova, pelo exercício de um mecanismo democrático de gestão pública setorial, que reuniu sindicatos, empresas e governo para elaborar saídas para a redução das atividades do setor e para o desemprego, representou um aprendizado para o sindicato dos metalúrgicos. Entre as diversas iniciativas articuladas na região do ABC destaca-se, inicialmente, o papel desempenhado pelos prefeitos na organização do Consórcio Intermunicipal do ABC, de 1990, reunindo sete municípios, com o objetivo de atuar de modo integrado no tratamento dos temas de interesse comum, em especial no que tange à infraestrutura, desenvolvimento econômico e meio-ambiente (entre outros Daniel, 2001a; Abrucio & Soares, 2001; Reis, 2005; também http://www.consorcioabc.org.br). O outro exemplo foi a criação, em 1994, do Fórum da Cidadania do Grande ABC, que articulou setores da sociedade civil regional para priorizar, nas eleições municipais, o voto nos candidatos da e agregou cerca de 80 entidades (associações empresariais da indústria e do comércio, sindicatos de trabalhadores, representações da mídia local, organizações não governamentais etc.), com o objetivo de produzir subsídios para resolver os problemas regionais. Mas a experiência mais completa e reveladora da busca institucionalizada de alternativas para a crise econômica trazida pela reestruturação industrial ocorreu com a constituição da Câmara Regional do ABC, em 1997, diferenciada do Consórcio Intermunicipal e do Fórum da Cidadania pela tentativa de juntar em uma mesma instância de discussão atores públicos e da sociedade civil (entre outros, Daniel & Somekh, 1999 e 2001; Gomes, 1999; Leite, 1999; Guimarães, Comim e Leite, 2001; Boniface, 2001; Klink, 2000 e 2001; Albuquerque, 2001; Camargo, 2003; Bresciani, 2004).6 O desdobramento das atividades da Câmara Regional resultou na constituição, em 1998, da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, uma instituição não governamental, sem fins lucrativos, com a missão de dar suporte institucional aos acordos debatidos dentro da Câmara.7 SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ... xual de criança e adolescente... [...] Então um sindicato voltado pra uma concepção de plenitude cidadã. Então eu diria que nós continuamos alicerçados num forte processo de organização, capacidade e mobilização, de clareza com relação às nossas lutas, nossas maneiras, nossos objetivos e, envolvidos com a comunidade, com as necessidades da cidadania e, sintonizado com a necessidade de desenvolvimento que a região precisa, que o Brasil precisa e que resulta em emprego (José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 18/06/2004). CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 move o debate, que recebe os setores... A Agência é composta por trabalhadores, por empresários, por universidades, e pelos prefeitos. O Consórcio tem 49% do direito a voto na Agência... . Os demais setores: universidades, empresários e trabalhadores têm os outros 51% (Rafael Marques, Vice-Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010). Essas iniciativas podem ser vistas como um esforço coletivo de fugir da decadência econômica e apresentaram alguns desdobramentos positivos. Nos anos 2000, verificou-se uma retomada dos níveis de produção e da atividade econômica no setor metalúrgico. Menos fábricas foram fechadas e reduziu-se o deslocamento de empresas para outros municípios. O emprego formal cresceu em cerca de 35%, entre 1999 e 2005, e em 16%, no caso específico do setor industrial , segundo dados da RAIS-CAGED; e a taxa de desemprego caiu do patamar de 21% em 1999, para 16% em 2005 (PED/SEADE/DIEESE). Todo esse processo de renovação institucional teve a participação decisiva dos sindicatos da região, em particular do sindicato dos metalúrgicos. Para Abrucio e Soares (2001, p. 152156), “ao longo da transição e redemocratização do país, os sindicatos tornam-se o principal personagem da cena política da região e estabelecem uma feição muito peculiar, de contínua mobilização, a este espaço político territorial [...]”. De fato, o sindicalismo do ABC inaugurava uma prática sindical nova ao incluir nas suas preocupações políticas as questões sociais que afloravam com a crise econômica regional. Desse contexto surgiu, inclusive, a denominação de “sindicato cidadão” (Véras de Oliveira, 2011, Rodrigues, 2006 e 2011, entre outros) para definir essas atividades sindicais, além de ter se transformado em referência no debate político da principal central sindical do país, a Central Única dos Trabalhadores – CUT. E o sindicato está voltado hoje para as ações de cidadania, ou seja, pensar trabalhador e trabalhadora como cidadão [...]. Ser trabalhador e trabalhadora é parte do tempo. A integralidade do tempo é cidadania. Então, meio ambiente, política de gênero, raça, questão de etnia, [...] contra o trabalho infantil, exploração sexual, abuso se- A novidade desse processo está na inclusão da economia como um todo e dos projetos de desenvolvimento regional em particular, como temas importantes da pauta sindical e na ampliação e responsabilidade dos sindicatos sobre os destinos do território produtivo e dos trabalhadores. Nesse contexto, ocorreu a incorporação da discussão sobre a “regionalidade”, ou seja, a introdução de uma preocupação com as consequências das políticas macroeconômicas para a vida dos trabalhadores do ABC. Segundo Conceição (2008), nesse processo o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC criou o entendimento de que era necessário empreender esforços para influir na área das políticas públicas, tendo em vista sua importância no nível de produção e emprego. [...] Um dos marcos da ação sindical em relação ao tema da região foi a elaboração, em novembro de 1995, da publicação “Rumos do ABC: a economia do ABC na visão dos metalúrgicos”. Neste trabalho, elaborado pela Subseção do DIEESE do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, realizou-se diagnóstico de alguns dos obstáculos enfrentados pela economia local e foram apresentadas algumas diretrizes gerais para uma política de desenvolvimento da Região (Camargo, 2003; Bresciani, 2004.). A CRISE ECONÔMICA DOS ANOS 2000 A segunda crise econômica a atingir a região do ABC e seu parque industrial, em 2008, teve características diferentes daquela ocorrida ao longo da década de 1990, e o corte nos empregos deveu-se a uma falência dos mecanismos do capi- 222 José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues tal financeiro internacional, com desdobramentos prejudiciais para a economia das empresas, especialmente as da indústria. Os atores políticos da arena regional eram os mesmos, mas, nesse novo contexto, o protagonismo dos sindicatos, especialmente do sindicato dos metalúrgicos (o mais atingido pelas demissões) foi decisivo para uma mobilização em busca de alternativas para reverter o desemprego. Isto se deveu, não só ao acúmulo de práticas de discussão em instâncias como a Agência de Desenvolvimento Regional do ABC, mas, também, à proximidade política dos dirigentes sindicais metalúrgicos com a administração pública regional e nacional que viabilizaram iniciativas como o Seminário ABC do Diálogo e do Desenvolvimento. A participação no debate sobre desenvolvimento e economia regional foi definitivamente incorporada à pauta sindical e se traduziu em documentos como o do VI Congresso dos Metalúrgicos do ABC (Construindo um Brasil justo e democrático: emprego e trabalho decente), ocorrido em maio de 2009: elementos básicos devem ressaltar: aquele que, primeiro combina crescimento econômico com inclusão social e proteção ao meio ambiente; segundo, que promove uma nova cultura empresarial, baseada na democratização das relações capital-trabalho e na responsabilidade social das empresas; terceiro, que estimula formas inovadoras de mobilização dos recursos econômicos através de redes de pequenas empresas, cuja sustentabilidade (social, técnica e institucional) é assegurada a partir dos efeitos sistêmicos (aglomeração e proximidade) proporcionados pelos territórios em que as redes operam (Construindo um Brasil justo e democrático: emprego e trabalho decente – VI Congresso dos Metalúrgicos do ABC. Caderno de teses, 2009, p.42). Se, por um lado, houve um maior envolvimento dos trabalhadores, através do sindicato, na cruzada por alternativas para o modelo de desenvolvimento estabelecido e origem da crise econômica, o mesmo não pode ser dito do setor empresarial, dividido em termos de estratégias gerenciais e tamanho do negócio. Pode-se dizer que houve uma variação significativa de perspectivas. Assim, enquanto os pequenos e médios empresá- Há uma dificuldade em convencer esse empresariado multinacional. [...] As montadoras não têm uma concepção regional, elas não acreditam nisso. Preferem não ter essa concepção para não ficar amarradas a uma determinada região. Elas querem ter a liberdade de transitar – hoje não mais pelo país, mas pelo mundo do jeito que quiser. Então hoje, as montadoras, a gente não consegue trazer eles para o debate. Para elas [...] é tudo como se fosse uma concessão. O emprego é uma concessão, o ICMS, os impostos municipais, estaduais que ela paga, é um favor que ela está prestando a sociedade. Essa é a visão que elas têm (Wagner Santana, Secretário Geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 2013). O poder de convocação investido no sindicato nesse contexto lhe confere legitimidade para acionar outras instituições e atores que são essenciais para a construção de uma proposta de desenvolvimento regional. É o caso da relação com a recentemente criada Universidade Federal do ABC: 223 As universidades participam, mas não com todo o potencial que elas têm. Mas algumas estão se CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 rios, que têm menos mobilidade e dependem dos arranjos produtivos locais para o sucesso dos seus negócios, tiveram um engajamento efetivo nas novas articulações, as empresas multinacionais, habitualmente não envolvidas em negociações e planos desenvolvidos a partir do espaço regional ou local, mas beneficiadas pelas medidas de incentivo fiscal estabelecidas pelo governo federal como forma de reativar a economia industrial e preservar os empregos, tiveram uma atuação tímida diante das novas iniciativas. Na verdade, a discussão sobre a revitalização industrial do ABC exigiu um compromisso que questionava as diretrizes estabelecidas pelas matrizes localizadas fora do Brasil. As dificuldades no relacionamento com as multinacionais da indústria automotiva permanecem e demonstram uma divergência de perspectiva empresarial no que diz respeito aos vínculos e ao enraizamento no território produtivo. As iniciativas locais e regionais de discutir alternativas para as crises econômicas acabaram por criar situações de constrangimento ao demandar um compromisOs atores regionais, entre eles os sindicatos, devem colocar em debate o próprio modelo de de- so em termos de participação e de contrapartidas senvolvimento que se quer para a região, cujos econômicas e sociais. SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ... incorporando mais, o que pode ajudar. [...] Olha que a UFABC é nova aqui na região, mas nós estamos forçando a UFABC. Eu faço parte também de conselho universitário, e quando consigo ir nas reuniões, o meu discurso é: a Federal tem que se relacionar com a sociedade. [...] Então está se criando essa massa crítica importante na UFABC, que pode gerar bons frutos para a região (Rafael Marques, Vice-Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010). CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 A articulação sindical, se ainda carece de políticas regionais mais estáveis, proporcionou uma reação ao desemprego ocasionado pela crise. Segundo o jornal ABCD Maior,8 o ABCD tinha criado, já em agosto de 2009, mais de cinco mil novos postos de trabalho, revertendo a queda dos meses anteriores. E, para confirmar essa inserção regional, o atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, foi eleito em 2013 para o cargo de presidente da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC. É a primeira vez que um sindicalista assumirá a direção da agência, criada em 1998 a partir da união entre instituições públicas e privadas dos sete municípios da região [...]. O vice-presidente na próxima gestão, representante do meio acadêmico, será o [...] pró-reitor de extensão da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. [...] O presidente eleito destacou o fato inédito de um representante do movimento sindical assumir a presidência pela primeira vez. “E assumimos numa composição tão importante, pioneira, junto com a universidade. Uma união do trabalho com o conhecimento, ambos fundamentais para o desenvolvimento econômico”, afirmou [...]”. (“Metalúrgico assumirá comando da Agência de Desenvolvimento Econômico do ABC”, Rede Brasil Atual, 26/03/2013). O SEMINÁRIO “ABC DO DIÁLOGO E DO DESENVOLVIMENTO” O Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, ocorrido em março de 2009, em São Bernardo do Campo (SP), idealizado e convocado pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC, sintetiza o engajamento institucional de duas décadas de iniciativas políticas de enfrentamento da questão do desemprego e da precarização das condições de trabalho. Uma breve descrição desse evento, com seus protagonistas, suas propostas e seus resultados, serve como um retrospecto elucidativo das dinâmicas, conflitos e consensos que se produziram na arena política desse distrito industrial, em função de contextos de crise econômica. O Seminário realizou-se logo após a deflagração de uma das mais graves crises econômicas do capitalismo mundial, que atingiu as atividades industriais no Brasil ao final de 2008. O desemprego que se confirmou nos meses posteriores a outubro desse mesmo ano alertou os dirigentes do sindicato dos metalúrgicos para a necessidade de interferir na lógica do processo de desenvolvimento econômico regional. Na verdade, o estopim para esta mobilização se deu a partir dos protestos organizados pela base sindical nas portas de fábrica do ABC e nas ruas do município de São Bernardo do Campo (SP), o que, segundo o vice-presidente do sindicato na época, chegou a mobilizar “mais de 18 mil companheiros”, que “declararam guerra contra demissões e redução de salários”. O Seminário não nasceu inicialmente do sindicato. Nasceu em frente à RW, em Diadema, em um protesto contra as demissões. [...] E começamos a discutir com a diretoria, [...] precisamos lançar uma proposta de seminário para mais pessoas... outros grupos se integrarem (Rafael Marques, vice-presidente do sindicato dos metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010). 8 “Os dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), divulgados nesta quarta-feira (16/09/ 2009) pelo Ministério do Trabalho, representam um salto na criação de emprego na Região, já que em julho o resultado ainda era negativo [...]. Agosto [...] marcou a recuperação do emprego nas indústrias de transformação da Região. [...] Vale destacar que as principais atividades econômicas apresentaram [resultados positivos] na geração de emprego [...].” (“Criação de emprego dispara no ABCD em agosto”, Jornal ABCD Maior, 16/09/2009). Esse contexto permitiu, então, não só recuperar pautas e práticas sindicais anteriores, exercidas pelo sindicato no ABC dos anos 1990, como, também, acionar diretamente um dos seus principais aliados e ex-dirigente, o Presidente da 224 José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues do demandas e pedindo soluções.9 Após o evento, as avaliações foram, majoritariamente, no sentido de reconhecer avanços: em políticas públicas; no exercício de mecanismos de pressão sobre as administrações municipal, estadual e federal; na possibilidade de acordos mais compreensivos sobre a manutenção de empregos com empresários; no estímulo aos arranjos produtivos locais envolvendo pequenas e médias empresas; na preocupação com a qualidade do trabalho e na formação mais eficiente do jovem trabalhador. Segundo o presidente, à época, do sindicato dos metalúrgicos, Sérgio Nobre, a gente sabia que o seminário não apontaria uma saída imediata para a crise. Seu grande mérito foi juntar atores econômicos e políticos em torno de uma agenda de negociação. A maior parte das propostas apresentadas depende de ações do setor público e esse é o foco da Câmara Regional. Temos a chance de uma participação efetiva, não só para discutir como superar a crise, mas também discutir como é possível melhorar o ABC. [...] Não é qualquer um que consegue juntar tantas pessoas com tamanha representatividade – empresários, trabalhadores e três esferas do poder público – para discutir problemas comuns. Nós conseguimos (Tribuna Metalúrgica – Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 17/03/2009). O grande diferencial do governo Lula foi trazer estes atores para dentro da vida do País, abrir o diálogo e construir políticas conjuntas. No ABCD, nós conquistamos esta autoridade. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC é uma instituição da Região, a comunidade nos entende e quer nos ouvir. Nós criamos historicamente espaços de diálogo de onde surgiram sugestões importantes mesmo em momentos de crise (Para Sérgio Nobre, valorizar salário é garantir desenvolvimento, ABCD Maior, 03/08/2009). A ação sindical envolveu, também, a administração pública regional. O fato de o prefeito de São Bernardo do Campo ser um ex-sindicalista metalúrgico, e com experiência adquirida como dirigente sindical durante a crise econômica dos anos 1990 no ABC, consolidou o apoio à ideia desse evento. O Seminário contou com a presença de mais de 1.500 pessoas. Foi estruturado em grupos de debate sobre os principais problemas da região e refletiu a complexidade de interesses dos diversos setores econômicos ali presentes: problemas de crédito; acesso a mercados e potencialidades regionais com vistas à geração de empregos, e aumento da renda e da competitividade local; tributos e questão fiscal; desemprego; e relações de trabalho e trabalho decente. Ao final, uma carta resumo foi enviada ao Presidente da República, apresentan- 9 Trechos da carta: Exmo. Sr. Luiz Inácio Lula da Silva Presidente da República Federativa do Brasil A Região do Grande ABC, que vem mantendo diálogo constante com Vossa Excelência desde o início de seu primeiro mandato, volta a solicitar sua atenção em um momento em que o Brasil começa a superar os efeitos da crise econômica internacional. [...]. A Região vem sendo beneficiado por várias medidas do Governo Federal desde 2003. Diversos pleitos regionais foram atendidos [...]. Entre os anos de 2003 e 2008, foram gerados na região 173 mil novos postos de trabalho formais, revertendo a tendência anterior e levando a taxa de desemprego no período a quase metade, de 18,1% a 10,0%. Apesar da evolução positiva dos indicadores socioeconômicos regionais no período citado, a partir de outubro de 2008 os efeitos da crise internacional se fizeram sentir no Grande ABC [...]. O Grande ABC não está inerte. Face ao novo contexto, mostrou-se mais uma vez capaz de agir como arranjo social articulado em busca de alternativas de enfrentamento das dificuldades. Esse foi o motor do Seminário “O ABC do Diálogo e do Desenvolvimento” [...]. Soluções criativas e compromissos comuns foram adotados na ocasião e estão em andamento. Dando continuidade a esse processo, os representantes da região dirigem-se a V. Excia., resgatando as demandas ainda pendentes e complementando-as. [...] O Grande ABC conta, mais uma vez, com a atenção e o apoio de V. Excia. Consórcio Intermunicipal do Grande ABC (25 de agosto de 2009). 225 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 República, Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez, por essa razão, o poder de mobilização sindical tenha ultrapassado a esfera regional e o evento ganhado outra dimensão ao propor um amplo debate sobre os efeitos da crise econômica no país. Importantes atores políticos foram convocados e compareceram ao Seminário, como a ministra-chefe da Casa Civil, à época, Dilma Rousseff, o então governador de São Paulo, José Serra e outros membros da administração pública estadual e federal. O Seminário contou, também, com a adesão de atores políticos regionais: a Universidade Federal do ABC, associações, centros comerciais e industriais da região, a Agência de Desenvolvimento Econômico do ABC, a associação das empresas do Polo Petroquímico, além da ANFAVEA e do Sindipeças, representando o setor automotivo. SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ... Para o vice-presidente do sindicato, o Seminário teve o efeito de recuperar atividades voltadas para o desenvolvimento regional, que vinham passando por diversos ciclos de vitalidade em função das diferenças políticas das administrações públicas ao longo da década de 2000. Nos últimos cinco anos, seis anos, houve um recuo da integração regional por conta das lideranças que acabaram se consolidando no ABC nas eleições municipais. [...] Uma das propostas do seminário foi rearticular a Câmara Regional (Rafael Marques, 24/02/2010). Os resultados desse esforço foram incorporados à dinâmica local, e a ênfase regional parece ter se transformado em ponto fundamental nas concepções econômicas e políticas das administrações públicas. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 Existe um conceito hoje na região, para qualquer administrador que seja mais ou menos sério, de que ele não pode correr do debate sobre regionalidade. [...] E aquele momento [do seminário] foi importante para criar unidade em torno dessa questão, de que não existe saída para nenhum município ou para nenhuma gestão independente de que partido seja, sozinho (Wagner Santana, Secretário Geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 26/02/2013). Passados quatro anos da realização do Seminário, já é possível identificar alguns dos seus desdobramentos concretos. No final de 2009, a agenda do trabalho decente foi implantada como fruto do evento. A primeira Agenda Regional do Trabalho Decente no Brasil começou a ser desenhada no ABC [...], com a assinatura da carta de compromisso e a criação de um grupo de trabalho tripartite formado pelo poder público, sindicatos e empresários para tratar do assunto. [...] O assunto foi para a agenda regional com o seminário O ABC do Diálogo e do Desenvolvimento, realizado em março, diante da conclusão de que trabalho de qualidade e com direitos é uma maneira de combate à crise e de estímulo ao desenvolvimento social e econômico (Tribuna Metalúrgica - Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 08/12/2009). Avaliação mais recente confirma o êxito des- sa iniciativa e sua incorporação às práticas de contratação regionais. O secretário-geral do sindicato dos metalúrgicos do ABC, Wagner Santana (2013), em entrevista, ressalta o fato “da agenda do trabalho decente ter sido adotada pela Câmara Regional (do ABC)”, e de que as administrações públicas regionais precisarem “ter aquela agenda em mãos nas suas contratações de terceiros”. Outro empreendimento que se desenvolveu a partir do Seminário de 2009 foi a constituição de um Polo Tecnológico e o incentivo à criação de “Arranjos Produtivos Locais”. A interferência local na lógica do sistema produtivo se coloca na tentativa de criar condições para viabilizar a competição das empresas da região com empresas estrangeiras e habilitar o produtor do ABC para a disputa por melhores produtos e qualidade, como é o caso da ferramentaria e das autopeças. Sobre a ferramentaria, diz Wagner Santana (2013), atual secretário geral do sindicato, “conseguimos estruturar uma APL de um setor que estava sendo terceirizado para a China, para a Coréia, para a Alemanha” e sobre as autopeças: Queremos fazer um debate sobre as autopeças da região, aquelas não sistemistas, que empregam 40 mil trabalhadores, e que condições – aí precisa da intervenção do poder público mesmo – a gente consegue criar para que as empresas brasileiras se tornem competitivas diante das grandes multinacionais fornecedoras. CONCLUSÃO A inclusão do debate sobre desenvolvimento (regional e nacional) à pauta do sindicato dos metalúrgicos do ABC e, mais ainda, a participação efetiva da entidade sindical em instâncias de mobilização institucional e política fora das fábricas e na formulação de alternativas para as crises produzidas pelas falhas do sistema capitalista com repercussão sobre a vida dos trabalhadores, a nosso ver, constitui uma inovação no contexto do sindicalismo brasileiro das duas últimas décadas por significar uma percepção e um posicionamento que reúne os três pontos da geometria sindical da 226 José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues 10 Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, a representação sindical no ABC garante, não só melhores salários, como uma série de benefícios e segurança aos trabalhadores. “O sindicato conseguiu segurar as demissões na Mercedes em 2012, quando a produção de caminhões despencou. Fechamos um turno de trabalho, mas ninguém foi demitido”, diz Wilson José da Silva (montador que trabalha há 18 anos na fábrica da Mercedes-Benz em São Bernardo do Campo). O piso salarial dos metalúrgicos do ABC está em R$1.560. Esse valor é 131% maior que o piso dos metalúrgicos no Amazonas, por exemplo, que está em R$ 675 (Piso do ABC é 131% maior do que na Amazônia, Valor, 04/02/2013). volvimento regional. O termo “sindicato cidadão”, criado no início dos anos 1990, reflete, em parte, essa preocupação. Diríamos que hoje, com o exemplo do Seminário, o debate sobre desenvolvimento e “regionalidade” acrescentou outros elementos às práticas sindicais já voltadas às demandas por melhores condições de habitação, saúde e educação. Está em jogo uma relação mais complexa do sindicato com o território produtivo do qual faz parte, ao se colocar na arena política local como um ator social que reivindica a participação em espaço público nas decisões econômicas e políticas que afetam o bem comum e que contesta, no caso das crises, as justificativas econômicas “moralmente” insustentáveis de atribuir aos trabalhadores os custos dos equívocos do sistema. A minha tese é que o desenvolvimento econômico é local, tem a sua limitação macroeconômica, é óbvio, taxa de juros, câmbio, política industrial, tem essa limitação macro, mas o território deve, pode fazer muito pelo seu desenvolvimento. Acredito que a mobilização da comunidade é fundamental, ter vários atores, lideranças interessadas em promover o desenvolvimento. Perceber que o desenvolvimento é uma relação ganho a ganho, onde o público ganha a arrecadação, o trabalhador ganha porque gera mais emprego e o empresário ganha porque gera um ambiente mais favorável para o seu negócio (Paulo Eugênio Pereira Júnior, Secretário Executivo da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC. 27/07/2004). Se os dados empíricos fornecem elementos para uma interpretação com um caráter de positividade para esta e outras experiências do sindicato dos metalúrgicos do ABC, não há dúvida de que os dilemas presentes na atividade sindical mundial e brasileira permanecem e apontam questões que merecem ser mais discutidas pelos próprios sindicalistas, técnicos e pesquisadores. A produção de conhecimento neste campo de estudos sempre esteve marcada por disputas políticas de interpretação, e as práticas sindicais passam sempre, necessariamente, pelo crivo da luta política e das ênfases variadas que se adequam às concepções do papel que deve desempenhar a instituição sindical no contexto do capitalismo contemporâneo. A postura pró-ativa do sindicato do ABC, de buscar envolver empresários e administração 227 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 formulação de Hyman (2001), ou seja, uma sensibilidade e uma ação equilibrada na relação com a classe, com o mercado e com a sociedade. Sem deixar de ser uma agência de classe, confirmada pela permanente manifestação de descontentamento com as empresas em manifestações públicas de protesto e greves, o sindicato dos metalúrgicos negociou, nos contextos de crise e reestruturação produtiva, não só a preservação de empregos, e obteve até mesmo aumentos reais de salário,10 como, também, voltou suas atividades e preocupações também para a sociedade, para as questões sociais como um todo, reivindicando do Estado, através das administrações e suas políticas públicas, uma mudança de foco visando à melhoria das condições de vida da população. O Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, por ter sido uma iniciativa sindical e por ter demonstrado um poder de convocação dos diversos setores e interesses da sociedade local e regional para debater uma crise que atingia, mesmo que de forma diferenciada, a todos, confirma um estilo único de sindicalismo, que reúne e combina o acúmulo de um histórico de lutas e de experiências de confronto político de classe, em variados períodos de tempo ao longo do processo de industrialização brasileiro, com uma estratégia de conversão desses recursos políticos em uma expertise para negociar com o mercado e as empresas as questões salariais e de reestruturação produtiva impostas pelas crises do sistema. A novidade das últimas duas décadas foi a aproximação com as demandas sociais mais amplas da sociedade, ultrapassando os limites da corporação e atuando nas instâncias de decisão sobre políticas sociais e sobre projetos de desen- SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 pública na constituição de instâncias de debate sobre desenvolvimento, por exemplo, mantém inalteradas as contradições capital/trabalho e as assimetrias insuperáveis do capitalismo, e poderia significar o abandono da perspectiva de contestação dos anos 1970/1980. As greves e manifestações de protesto, ocorridas na década de 2000 no ABC, não confirmam esta interpretação, além do que, houve ganhos reais de salário, acima da média de outras categorias nesse período.11 Ao mesmo tempo, o fortalecimento da instituição sindical ao longo dessas décadas, o que leva a algum tipo de “acomodação”, se comparado com épocas de autoritarismo e confronto político, e que implicaria o descaso com o trabalho de base fabril, também não se confirma. São várias as manifestações de dirigentes sindicais metalúrgicos enfatizando a importância e a legitimidade alcançada pelo trabalho de base, através das comissões de fábrica e comissões sindicais de empresa. Um ex-presidente do sindicato dos metalúrgicos, com mandato durante a década de 2000, ao ser entrevistado, atribuiu grande significado ao trabalho de base, à proximidade com os trabalhadores dentro das fábricas, pelo fato de ser elemento essencial para manter a confiança e respeitabilidade da instituição sindical. Entendemos que a estrutura sindical hoje é absolutamente inadequada, cada vez menos capaz de responder à geografia econômica dos setores econômicos e se torna também incapaz de responder às demandas surgidas nas bases dos sindicatos. E nós, nesta filosofia de um sindicato organizado dentro do local de trabalho, fomos à prática. Então na década de 1980 conquistamos as primeiras comissões de fábrica, o modelo se espalhou. Depois avançamos de modo que a composição da diretoria fosse iniciada pela eleição de comitês 11 “Numa década governada em 80% do tempo por um exlíder sindical dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP), as negociações salariais envolvendo os operários das quatro montadoras da região do ABC paulista registraram o avanço mais expressivo num grupo de quatro categorias tradicionais. Enquanto os petroleiros da Petrobras acumularam ganhos de 1,3% acima da inflação registrada entre 2000 e 2010 e os bancários viram seus rendimentos reais crescerem 3,4%, os operários das montadoras do ABC registraram ganho real de 37,4%, mais que o dobro do já expressivo resultado alcançado pelos químicos - 15,2% acima da inflação no período [...]“. (Com Lula em Brasília, reajuste real foi mais elevado no ABC, Valor Econômico, 19/01/2011). sindicais de empresa; hoje temos, 85% da categoria com representação no local de trabalho. Esta proximidade cotidiana na fábrica nos permite a observação de como está a produção e a economia do nosso setor. Então, de quem a gente compra, para quem a gente vende, os novos modelos de gestão, de tecnologia que vão sendo introduzidos no local de trabalho e as suas consequências. Este foi um dos primeiros sindicatos a discutir para valer os novos métodos de trabalho e a introdução de novas tecnologias. [...] E tínhamos que tomar uma decisão; ou as empresas farão essa reestruturação como bem entenderem, ou o sindicato vai interferir. E nós optamos por interferir (José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 18/06/2004). Para Bresciani (2004, p. 8), o sindicalismo do ABC se reinventa, sua atuação política se diversificou ao longo dos últimos 25 anos e sua capacidade política, no debate e coordenação da agenda regional do desenvolvimento econômico, apresenta um “adequado equilíbrio no que diz respeito à presença sindical na microesfera do cotidiano produtivo” e na participação dos trabalhadores na transformação dos seus locais de trabalho. Para este autor, a sintonia fina da política sindical, que enfatiza o vínculo entre as duas esferas, a região e o local de trabalho, é que coloca os maiores desafios às lideranças dos trabalhadores na “perspectiva concreta de um desenvolvimento regional efetivamente democrático e inclusivo”. Na sua função de regular a relação de trabalho, o sindicato permanece exercendo sua função de representação, já que não pode “ignorar o mercado”. E, como parte da sociedade, necessita, para sua sobrevivência, coexistir com outras instituições e outras constelações de interesse (mesmo com aquelas que certos sindicatos proclamam um antagonismo imutável) (Hyman, 2001, p. 3-4). No caso do ABC, no entanto, o sindicato não pode deixar de ser uma “agência de classe” ao se distinguir dos empregadores pelo fato de incorporar, em sua concepção institucional, os interesses coletivos dos trabalhadores e reafirmar sua identidade coletiva. Em resumo, podemos dizer que a ação sindical dos metalúrgicos do ABC, voltada para a participação política na discussão sobre projetos de desenvolvimento econômico regional (e nacional), contestando decisões que prejudicam a criação e 228 José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues manutenção de empregos e que afetam o bem estar e as condições de vida da população em geral, aproxima a instituição das demandas da sociedade e reforça sua legitimidade como instância de representação dos interesses dos trabalhadores. Recebido para publicação em 30 de março de 2013 Aceito em 14 de junho de 2013 CARTA DO ABC, 25/08/2009. CONCEIÇÃO, Jefferson José da. Quando o apito da fábrica silencia – sindicatos, empresas e poder público diante do fechamento de industrias e da eliminação de empregos na região do ABC. São Paulo: ABCD Maior, 2008. CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL DO GRANDE ABC, Comunidade Cidadã, 2006. http://www.consorcioabc.org.br/ comunidade.htm. DANIEL, Celso. 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ENTREVISTAS 230 José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues UNIONS, DEVELOPMENT AND WORK: economic crisis and political action in the ABC Region SYNDICAT, DÉVELOPPEMENT ET TRAVAIL: la crise économique et l’action politique dans la région de l’ABC José Ricardo Ramalho Iram Jácome Rodrigues José Ricardo Ramalho Iram Jácome Rodrigues The goal of this text is to discuss and problematize the new practices by the metal worker unionists in São Paulo’s ABC region, which implies the direct involvement of the entities which represent workers outside the actual factory in the debate regarding development strategies and their ramifications in the regional context of a global economy. We will analyze union actions during two different periods (the 1990s and 2000 – 2009) and as a synthesis of this process, we will focus on a political event organized and held by the metal workers’ union in 2009, a seminar called “The ABC of Dialog and Development”, which reveals the different insertions and perspectives of the social actors at the local, regional and national levels in the search for alternatives regarding the worldwide economic crisis of 2008. The event exemplifies a public meeting which despite not doing away with the contradictions and conflicts of a social reality marked by the asymmetry of positions in the social structure, created a moment of temporary consensus regarding the threats of a setting hostile to workers. L’objectif de cet article est de discuter et de remettre en question les nouvelles pratiques syndicales des métallurgistes de la région de l’ABC pauliste. Ceci fait que les organes représentatifs des travailleurs non-manufacturiers sont directement concernés et mène à un débat sur les stratégies de développement et leurs conséquences dans les contextes régionaux d’une économie mondialisée. Nous analyserons l’action syndicale sur deux périodes distinctes (les décennies de 1990 et 2000) et nous mettrons en évidence, comme une synthèse de ce processus, la réalisation d’un événement politique organisé par le syndicat des métallurgistes en 2009, le Séminaire “L’ABC du Dialogue et du Développement”, qui révèle les différentes insertions et perspectives des acteurs sociaux locaux, régionaux et nationaux dans la recherche d’alternatives à la crise mondiale de 2008. C’est un exemple de réunion publique qui, sans éliminer les contradictions et les conflits d’une réalité sociale marquée par des positions asymétriques dans la structure sociale, a créé un moment de consensus provisoire face aux menaces d’une conjoncture hostile aux travailleurs. José Ricardo Ramalho – Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pósdoutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPQ. Sua atuação acadêmica está mais voltada para a área da Sociologia do Trabalho e seus principais temas de pesquisa são: relações de trabalho na indústria; sindicato e sindicalismo; reestruturação produtiva e distritos industriais; trabalho, emprego e desenvolvimento econômico regional e local; identidade operária. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Estado Patrão e Luta Operária: o caso FNM. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Trabalho e Sindicato em antigos e novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007. Iram Jácome Rodrigues – Doutor em Sociologia. Professor Associado (Livre-Docente) do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (PPGS-USP). Atua na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Trabalho, principalmente nos seguintes temas: ação coletiva, sindicalismo e desenvolvimento regional; relações de trabalho e organização de interesses; sindicalismo e política; trabalho e sindicalismo; emprego, desenvolvimento econômico local e regional. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Sindicalismo e Política: a trajetória da CUT (1983-1993). 2º. ed. São Paulo: LTr, 2011; Trabalho e Sindicato em antigos e novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007. 231 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Union Action. Regional Development. MOTS-CLÉS: Action syndicale. Développement régional. Région de l’ABC pauliste. Crise São Paulo’s ABC. Economic Crisis. économique. SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA: o novo desenvolvimento e os conflitos do trabalho1 Roberto Véras de Oliveira* DOSSIÊ Roberto Véras de Oliveira INTRODUÇÃO Este artigo discute, pela ótica do trabalho e de seus conflitos, a emergência de uma nova agenda de desenvolvimento no Brasil. Tem como foco as revoltas e greves dos trabalhadores que atuam na construção de dois dos principais empreendimentos do Complexo Industrial Portuário de Suape, a Refinaria Abreu e Lima e a Petroquímica Suape, durante os anos de 2011 e 2012. Busca problematizar, a partir deste caso, a reedição de uma construção prático discursiva de teor desenvolvimentista no País. * Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba – UFPB – e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB – PPGS– e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande – PPGCS/UFCG. Av. Washington Luis, 268, apto 201, Bessa. Cep: 58035-340. João Pessoa – Paraíba – Brasil. [email protected] 1 Este artigo resulta de reflexões realizadas a partir do projeto “O novo desenvolvimentismo no Brasil visto a partir de suas implicações sociais no Nordeste”, desenvolvido no âmbito do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Políticas Públicas e Trabalho – LAEPT/UFPB, em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ e o Observatório PE – UFPE. Ao mesmo tempo em que agradeço as contribuições dos colegas, assumo toda responsabilidade pelo seu conteúdo. Agradeço, ainda, as importantes contribuições dos pareceristas anônimos. O Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros – Suape, ou CIPS, está situado na Região Metropolitana de Recife – RMR,2 Litoral Sul de Pernambuco, nos municípios de Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho, abrangendo uma área de 13,4 mil hectares. A partir da primeira edição do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, em 2007, se constituiu em um dos maiores polos de investimentos do país. Pernambuco vive um boom econômico, após um período de declínio. A economia regional esteve, por décadas, sob forte impacto dos incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE. De 1963 a 1969, o estado foi o principal beneficiário dessa política, recebendo 36,9% dos incentivos (seguido da Bahia, com 32,8%). Tal participação caiu, entre 1970 a 1974, para 25,7% e, de 1975 a 1984, para 16,6%. Acompanhando a evolução dos investimentos incentivados pela Sudene, o PIB estadual cresceu 2 A RMR inclui os municípios de Abreu e Lima, Araçoiaba, Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Igarassu, Ipojuca, Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata. 233 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Este artigo discute, pela ótica do trabalho e de seus conflitos, a emergência de uma nova agenda de desenvolvimento no Brasil. Tem como foco as revoltas e greves dos trabalhadores que atuam na construção de dois dos principais empreendimentos do Complexo Industrial Portuário de Suape, a Refinaria Abreu e Lima e a Petroquímica Suape, durante os anos de 2011 e 2012. Esta abordagem pretende apreender os processos desencadeados pelos conflitos, mediações e negociações e o que tem estado em disputa, com as demandas dos trabalhadores e os discursos e práticas governamentais, empresariais e sindicais. Perguntamo-nos se essas mobilizações, além de trazerem ganhos imediatos para os trabalhadores, têm permitido que estes se façam reconhecer como legítimos portadores de demandas sociais. E em que medida tais demandas vêm sendo não só objeto de denúncia pública, mas, também, um modo de problematizar os termos que dão sustentação ao novo discurso desenvolvimentista. Palavras-chave: Desenvolvimento. Trabalho. Sindicalismo. Construção civil. Suape. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... 10,6% ao ano de 1970 a 1975, 6,6% de 1975 a 1980 e 2,4% de 1980 a 1985, invertendo sua relação com o PIB regional (com médias anuais, respectivamente, de 10,2%, 7,2% e 4,4%). Após alguma recuperação no final dos anos 1980, Pernambuco cresceu, na década de 1990, com médias anuais de 2,0% e o Nordeste, com 3,0%. Concorreu para tal evolução a exclusão do estado do II Plano Nacional de Desenvolvimento – PND, lançado em 1975, o qual previu investimentos para a Bahia (Pólo Petroquímico de Camaçari), Alagoas e Sergipe (Complexo Cloroquímico), Maranhão (Pólo Minerometalúrgico) (Lima e Katz, 1993). A proposta do Porto de Suape surgiu nos anos 1960, inspirando-se nos complexos industrial-portuários de Marseille-Fos, na França, e de Kashima, no Japão (Suape/Governo Pernambuco, 2010).3 Ainda durante os procedimentos preliminares, em 1975 foi publicado um manifesto assinado por intelectuais pernambucanos, liderados pelo economista Clóvis Cavalcanti, em um protesto (sobretudo de teor ambiental) à construção do porto,4 evidenciando a relevância pública que o projeto já havia adquirido, assim como o seu caráter controverso (Cavalcanti, 2008). O processo, no entanto, seguiu. Em 1977, foi realizada a desapropriação da área e foram iniciadas as obras de infraestrutura (porto, sistema viário, abastecimento d’água, energia elétrica e telecomunicações). Em 1978, foi formalizada a criação da empresa pública estadual “com a finalidade de administrar a implantação do distrito industrial, o desenvolvimento das obras e a exploração das atividades portuárias” (Suape/Governo Pernambuco, 2010). Quanto às comunidades locais, estabeleceu-se um misto de esperança e medo, conforme apurou o relatório que deu suporte ao Plano Diretor de preservação e revitalização do Cabo de Santo Agostinho, Vila de 3 A ideia originou-se de um estudo realizado pelo Padre francês Louis Lebret, para a Comissão de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, o qual foi publicado em Lebret (1955). Isso sugere o quanto o projeto Suape, desde suas mais remotas origens, se encontra associado ao pensamento e às políticas desenvolvimentistas. 4 O “Manifesto Suape” foi publicado no semanário Jornal da Cidade (ano II, n. 24, 6, 12/4/75). Encontra-se disponível em: http://cloviscavalcanti.blogspot.com.br/p/manifesto-suape.html (Acesso em 25/06/2012). Nazareth, povoados de Baibu e Suape, realizado por Sena Caldas & Polito Arquitetos Associados Ltda (1980, apud Rocha, 2000). O Complexo de Suape começou a funcionar com a incorporação, em 1986, da BR Distribuidora, Shell, Texaco e Esso, oriundas do Porto do Recife. Em 2005, foi anunciado o projeto da Refinaria Abreu e Lima, produto, inicialmente, de uma negociação entre a Petrobras e a Petróleo de Venezuela S.A. – PDVSA. Conforme Santos (2012), até esse momento, “Suape se caracterizaria por investimentos no porto e na instalação de empresas de médio porte, com baixa complexidade tecnológica, pouca exigência de qualificação profissional e limitada capacidade de irradiação na economia regional”. A partir de 2007, com o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, o Complexo passou a atrair grandes investimentos públicos e privados, convertendo-se, desde então, com seu entorno, em um gigantesco “canteiro de obras”. Os investimentos públicos no CIPS passaram de R$ 155 milhões (entre 1995 e 1998) para R$ 136 milhões (1999 a 2002) e R$ 147,6 milhões (2003 a 2006); enquanto, entre 2007 e 2010, pularam para R$ 1,46 bilhões. Quanto aos investimentos privados, totalizaram US$ 2,2 bilhões até 2006; sendo que, de 2007 a 2010, reuniram US$ 17 bilhões (Suape/Governo Pernambuco, 2010). O Complexo, na atualidade, compreende mais de 100 empresas instaladas e dezenas de outras em fase de instalação. Alguns destaques: Refinaria Abreu e Lima e Petroquímica Suape (Petrobrás); Estaleiro Atlântico Sul – EAS; Energética Suape (termelétrica); Impsa Wind Power (fabricação de geradores eólicos); Bunge (refinaria de óleos vegetais, fabricação de margarinas e moinho de trigo); Tecon Suape (logística do porto). Oficialmente, estima-se em 25 mil o número de empregos diretos projetados para as empresas instaladas e em instalação (Suape/ Governo Pernambuco, 2010). A Refinaria representa, de longe, o maior investimento, estimado em US$ 13 bilhões. A previsão oficial é que gerará 1,5 mil empregos diretos e algo em torno de 130 mil indiretos. As obras de construção tiveram início em 2007, com previsão inicial de conclusão para 234 2011, sendo adiada para 2012 e, depois, para 2013. O número de trabalhadores envolvidos na construção da Refinaria e da Petroquímica foi avaliado em cerca de 50 mil no final de 2012 (Santos, 2012). Para Moutinho et al (2011), o bom momento da economia pernambucana resultou, sobretudo, de definições estratégicas de desenvolvimento nacional e regional, materializadas nos grandes investimentos do PAC, nos quais se destacam, além de Suape: a Ferrovia Nova Transnordestina, a Transposição do Rio São Francisco, o Pólo Farmacoquímico. Acrescente-se a esses: a fábrica da Fiat, a Cidade da Copa, entre outros.5 Com isso, o projeto Suape adquiriu peso nas agendas do Governo do Estado e dos governos municipais do entorno, ganhou posição de destaque na mídia local e no imaginário dos pernambucanos. No discurso de Eduardo Campos, o tom é sempre eufórico e o conteúdo, desenvolvimentista: Pernambuco vive um momento muito especial em sua economia. Investimentos públicos e privados estão tirando do papel empreendimentos importantes, que transformam a sociedade e a vida dos pernambucanos de uma maneira nunca vista em sua história [...] Nesse contexto, Pernambuco, que é destaque no País, centraliza as atenções dos investidores, sendo Suape a mola propulsora desse desenvolvimento (Suape/Governo Pernambuco, 2010). As críticas às consequências ambientais e sociais do projeto estiveram presentes desde as suas origens (Cavalcanti, 2008). Contudo, o empreendimento seguiu. Especialmente, ganhou maior legitimidade e força quando da retomada de uma agenda desenvolvimentista no país e na região. De algum modo, se estabeleceu incorporando elementos da crítica, em um esforço de justificação.6 Foi 5 6 As conexões entre a trajetória histórica do Complexo Suape e as economias estadual, regional e nacional, sobretudo no que se refere ao seu momento atual, com os investimentos do PAC em Pernambuco, no Nordeste e no país, assim como com os investimentos públicos, privados e mistos, impulsionados a partir de então, não podem ser menosprezados. Trata-se da atualização da inserção do Nordeste e de Pernambuco na divisão regional do trabalho, que se consumou com forte base na implementação do projeto da Sudene (Oliveira, 1981). Usamos o termo em um sentido próximo ao atribuído por Boltanski e Chiapello (2009, p. 52-53): “Já lembramos a importância que tem, para o capitalismo, a possibilidade de apoiar-se num aparato justificativo adaptado assim que o novo Plano Diretor Suape 2030, publicado em 2011, buscou compatibilizar suas razões econômicas (portuário-industriais) com demandas ambientais, culturais, sociais. Em destaque, incorporou uma ampliação da Zona de Proteção Ecológica, de 48% para 59% da área total (Folha de Pernambuco, 30/09/2011). O adjetivo “sustentável” ganhou importância crescente nos discursos dos agentes estratégicos de Suape. Em maio de 2008, empresários e políticos se reuniram na sede da Federação das Indústrias de Pernambuco para tratar do tema do “Desenvolvimento Sustentável do Território Estratégico de Suape”. Na ocasião, o BNDES apresentou um projeto para a região, prevendo apoio a ações em: controle urbanoambiental; tratamento de resíduos sólidos; articulação de arranjos produtivos locais; sistema viário; transporte público; educação; qualificação profissional; preservação do patrimônio histórico, turístico e cultural (JC,7 17/05/2008). Entretanto, o convênio só foi firmado em setembro de 2010, com a denominação de Programa Especial de Controle Urbano-Ambiental no Território Estratégico de Suape, com recursos não reembolsáveis de R$ 10,9 milhões. O representante do BNDES em Pernambuco, Paulo Guimarães, em declaração ao JC (12/08/2011), deixou escapar um elemento de compensação nessa iniciativa: “temos uma grande preocupação com o desenvolvimento social do território, porque o banco financiou os principais grandes empreendimentos instalados em Suape”. Daí derivou o Programa Suape Sustentável, lançado em 2011, envolvendo os gestores do CIPS, oito secretarias de estado, prefeituras, as empresas instaladas em Suape, o BNDES, o Banco do Nordeste, ente outros. Declarou-se, com o referido Pro- 7 às formas concretas assumidas pela acumulação do capital em determinada época, o que significa que o espírito do capitalismo incorpora outros esquemas, que não os herdados da teoria econômica (...) Mas o capitalismo não pode encontrar em si mesmo nenhum recurso para fundamentar motivos de engajamento e, em especial, para formular argumentos orientados para a exigência de justiça (...) A justificação do capitalismo, portanto, supõe referência a construtos de outra ordem, da qual derivam exigências completamente diferentes daquelas impostas pela busca do lucro”. Utilizamos as siglas “JC”, para Jornal do Commercio, e “DP”, para Diário de Pernambuco. 235 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Roberto Véras de Oliveira SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 grama, o propósito de transformar o Complexo Suape e seu Território Estratégico em um modelo de “desenvolvimento sustentável”, “equilibrando o crescimento econômico, a inclusão social e a preservação do meio ambiente” (http:// www.suape.pe.gov.br). Um esforço de justificação das atuais políticas de desenvolvimento parece estabelecido no construto discursivo dos agentes estratégicos de Suape, o que não tem ocorrido senão sob uma contraditória composição entre racionalidades de teor econômico, social e ambiental. Quanto ao lugar do trabalho no novo discurso desenvolvimentista em Pernambuco e Suape, ao que tudo indica, tem se fixado em dois pontos principais: na capacidade dos empreendimentos gerarem empregos e no crescente desafio de qualificar e incorporar os trabalhadores pernambucanos em mão de obra apta a ocupar os agora exigentes postos de trabalho. Uma declaração de Eduardo Campos ao JC (01/01/2012), no início do seu segundo mandato, é ilustrativa quanto a isso: Tivemos um tempo em que tínhamos pessoas preparadas e não tínhamos oportunidades. Isso era constrangedor. Agora, em cinco anos se gerou quase 500 mil empregos, o desemprego caiu [...] As oportunidades estão chegando e os pernambucanos estão entrando nessas oportunidades. Vamos ler os números como eles são! Nós tínhamos 15% de desemprego. Reduzimos dois terços em cinco anos. Estamos fazendo um grande esforço na educação, que não se muda de um ano para o outro, mas sim de uma geração para outra. Entretanto, a eclosão de uma onda de conflitos, protagonizada pelos peões8 dos canteiros de obra de Suape, realçou outros aspectos, produzindo deslocamentos nas dinâmicas das relações de trabalho, com repercussões econômicas e políticas. Especialmente a partir de 2011, revoltas, paralisações e greves, acompanhadas por confusos e tensos processos de negociação social e sindical, envolvendo os próprios peões, sindicatos, empre8 Não se sabe, precisamente, onde e quando a expressão “peão” passou a ser usada, no Brasil, com o sentido de operário pouco ou sem qualificação. Um dos primeiros estudos a incorporar o termo com tal conotação foi o de Rainha (1980). sas, governos estadual e municipais, Ministério Público do Trabalho – MPT, Ministério do Trabalho e Emprego, Justiça do Trabalho, órgãos de mídia, entre outros, vêm marcando fortemente a cena da região. Uma abordagem com foco em tais conflitos nos permitirá apreender os processos desencadeados (conflitos, mediações e negociações) e o que tem estado em disputa em tais processos (com as demandas dos trabalhadores e os discursos e práticas governamentais, empresariais e sindicais). Perguntamo-nos se, com essas mobilizações, para além de estarem conseguindo trazer ganhos imediatos para os trabalhadores, estes têm sido capazes de se fazer reconhecer9 como legítimos portadores de demandas sociais. Em que medida tais demandas vêm sendo não só objeto de denúncia pública, mas, também, de alguma elaboração, de modo a problematizar os termos com base nos quais emergiu uma nova perspectiva desenvolvimentista em Pernambuco e no país?10 9 Aqui, usamos a noção em um sentido mais próximo de Nancy Fraser (2008), em sua polêmica com Axel Honneth, a qual prefere tratar “reconhecimento” (dimensão cultural, simbólica) em associação com “redistribuição” (dimensão social). Quanto à situação que aqui analisamos, realçamos o quão imbricados, embora distintos, se encontram esses dois movimentos. 10 Tanto quanto no contexto de implementação do projeto da Sudene, também agora, com o PAC e outras iniciativas de políticas de desenvolvimento do Governo Federal, a dinâmica econômica do Nordeste e de Pernambuco se encontram sob fortes vínculos com tais políticas. Mesmo se efetivando uma dissidência na coalizão de forças que dá sustentação ao Governo Dilma, protagonizada pelo Governador de Pernambuco, Eduardo Campos (questão essa que não será tratada aqui), consideramos que a orientação desenvolvimentista não só foi marcante no seu primeiro mandato (embalado pela proximidade política com Lula), como essa continua sendo uma referência no seu mandato atual (quando o mesmo tem mantido certa ambiguidade entre o apoio ao Governo Dilma e a assunção de uma posição de oposição). As obras do PAC, os projetos “estruturantes”, os investimentos em Suape, os vinculam fortemente a um realce desenvolvimentista, não obstante certas nuances diferenciadoras entre ambos os projetos políticos e as possíveis divergências que venham a ser explicitadas entre seus expoentes (veja-se, por exemplo, polêmica entre Eduardo Campos e o Governo Dilma, quando da publicação da Medida Provisória 595, conhecida como MP dos Portos, em dezembro de 2012, tida para o primeiro como ameaça de perda de autonomia do Governo pernambucano sobre o Porto de Suape (JC, 26/ 03/2013). A análise das diferenciações práticas e discursivas aí implicadas certamente será de muita importância para o aprofundamento dessa reflexão. 236 A VOLTA DO DESENVOLVIMENTISMO: agenda e debate O emblema maior do novo discurso desenvolvimentista do Governo Federal tem sido o PAC, lançado em 2007. O Governo Lula passou a incorporar o referencial do papel indutor do Estado com vistas ao crescimento econômico, realçando, ao mesmo tempo, o seu compromisso com a geração de emprego e renda e a estabilidade macroeconômica (Pêgo; Campos Neto, 2008). Objetivou-se, por meio de investimentos, principalmente em infraestrutura, aumentar a produtividade das empresas, estimular investimentos privados, gerar emprego e renda e reduzir as desigualdades regionais. Até 2010, segundo dados oficiais, foram investidos mais de R$ 600 bilhões, oriundos do Governo Federal, de empresas estatais e do setor privado, com destaque para os setores de energia, transporte, habitação, saneamento, recursos hídricos, além de programas de impacto social, como o “Minha Casa Minha Vida” (habitação) e o “Luz para Todos” (distribuição de energia elétrica). A participação do investimento total no PIB passou de 16,4%, em 2006, para 18,4%, em 2010 (Brasil, 2010). Em 2010, foi lançado o PAC 2, redefinindo, mas, sobretudo, confirmando, os eixos estruturantes da sua primeira edição (Brasil, 2012). Para Batista Jr. (2007), não obstante as críticas, ocorreu “uma mudança na orientação da política econômica”, onde essa “pode ser excessivamente cautelosa ou lenta, mas ela é significativa. O governo Lula está migrando, aos poucos, para o desenvolvimentismo, talvez um desenvolvimentismo ‘light’”. Os indicadores econômicos e sociais que, a partir de 2004, passaram a apresentar tendências sistematicamente positivas, podem ser creditados duplamente ao novo dinamismo econômico e às novas condições políticas, nas quais se estabeleceu um certo patamar de lutas salariais e sindicais. Em balanço recente, Krein et al (2012, p. 119) admitem que, na Era Lula, não só devem ser computados “os impactos positivos do aumento progressivo do dinamismo econômico sobre o mercado e as relações de trabalho no Brasil”, mas, tam- bém, é preciso que sejam destacadas que “as políticas públicas e as lutas e conquistas do movimento sindical foram decisivas para acrescentar melhorias ao mercado de trabalho brasileiro”. Especialmente para os segmentos ligados à Central Única dos Trabalhadores – CUT, constituída sob relações históricas com o Partido dos Trabalhadores, prevaleceu, nesse momento, a adoção de uma estratégia ambivalente, que reforçou uma situação já presente nos anos 1990: a perda de protagonismo político do sindicalismo no cenário nacional, ao mesmo tempo em que o mesmo se manteve presente e atuante (Araújo; Véras de Oliveira, 2011). Ao lado da emergência de uma nova agenda e um novo discurso político orientado ao desenvolvimento, ressurgiu um debate acadêmico sobre o tema. O primeiro a utilizar a expressão “novo desenvolvimentismo” foi Bresser-Pereira (2003), para quem o fracasso da “ortodoxia neoliberal” em garantir estabilização macroeconômica e crescimento coloca a possibilidade de uma nova política econômica, na América Latina. Em contraste com o “populismo da esquerda burocrática e sindical” (herdeira do nacional desenvolvimentismo), propõe uma estratégia nacional de desenvolvimento sem protecionismo e com rigor fiscal e monetário, baseada em uma indústria competitiva, voltada à exportação. Requer Estado e mercado fortes, políticas públicas permanentes e flexibilização das relações de trabalho (Bresser-Pereira, 2006). Sicsú et al (2007) apostam no fortalecimento do “empresariado nacional” como “núcleo endógeno” do desenvolvimento, associado a um “Estado forte” e a um “pacto nacionalista”, mas sem que se trate de um retorno à política de substituição de importações, ao protecionismo e ao Estado empresa. Atribuem maior ênfase, comparativamente a Bresser-Pereira, à compatibilização entre crescimento econômico e equidade social. Ridenti (2009) questiona a pertinência do retorno do desenvolvimentismo, tão criticado no passado. Lembra que, sob tal referência, omitiram-se as contradições de classes, ao priorizarem-se as contradições entre nações. Por isso, é preciso não deixar de se perguntar: a quem serve o desenvolvimento? Isso, 237 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Roberto Véras de Oliveira CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... sob pena de serem reeditados os mesmos problemas do passado. Quanto a Fiori (2012a e 2012b), pergunta-se: por que o “desenvolvimentismo de esquerda”, ressurgido recentemente, estreitou-se tanto no seu “horizonte utópico”, tornando-se uma “ideologia tecnocrática”, sem capacidade de mobilização social, não sendo, também, capaz de construir uma nova base teórica? Na sua crítica, o autor argumenta que a “Escola Campineira”, embora surgida de uma crítica ao paradigma cepalino, teria sido sufocada, mais recentemente, com a crise socialista e a onda neoliberal, tendo perdido sua capacidade teórica e seu conteúdo político. Com a retomada do discurso desenvolvimentista, restaria a sensação de um “horizonte utópico” estreito, sem poder de mobilização. Em resposta a Luis Fiori, Carneiro (2012) propõe que o “novo desenvolvimentismo” é uma formulação da equipe da Fundação Getúlio Vargas – FGV/ SP, que privilegia as políticas macroeconômicas, subordinando a essas as políticas sociais, condicionando ganhos salariais à elevação da produtividade. Enquanto o “desenvolvimentismo de esquerda”, centrado na UNICAMP (“Escola Campineira”) e na UFRJ, priorizaria a dimensão social do desenvolvimento. Boschi (2011), discutindo o retorno do intervencionismo estatal na América Latina, insiste na dimensão social como fator de desenvolvimento e no papel estratégico do Estado como seu indutor e garantidor de inclusão social. Coloca, assim, em evidência a política, o projeto nacional, a necessidade de constituição de coalizões de apoio a um novo compromisso desenvolvimentista. Também para Pochmann (2012), a condição para um salto no desenvolvimento da América Latina é a constituição de uma “nova maioria política”. Sobre o Brasil, haveria duas alternativas: uma orientada à exportação de commodities e a outra, a investimentos em valor agregado e em conhecimento. Apenas com investimentos nesta direção seria possível superar o subdesenvolvimento. Para outros, a retomada de políticas de desenvolvimento justifica um novo ciclo de pesquisas sobre o tema. Eli Diniz (2011) destaca que, no mundo, vem ressurgindo um pensamento crítico ao liberalismo, assim como retorna a referência do desenvolvimento, com nova ênfase no papel do Estado, nas liberdades substantivas (Amartya Sen), na questão ambiental. Quanto ao Brasil, o crescimento e o emprego ganham importância. Observa, ainda, que, no debate atual, embora com diferenças, em geral se busca associar mercado e Estado, o econômico e o social, ganhos salariais e elevação da produtividade. Mas admite que ainda não se constituiu uma articulação de forças capaz de dar sustentação a um projeto desenvolvimentista. Draibe e Riesco (2011) propõem a adequação dos referenciais analíticos ao estudo das mudanças recentes nas políticas econômicas e sociais na América Latina, para melhor se avaliar sobre se está em gestação um novo desenvolvimentismo na região. Formulam a noção de Estado Latino-Americano Desenvolvimentista de Bem Estar – ELADBES, visando realçar a relação entre economia e política social. Sugerem que as atuais políticas desenvolvimentistas estariam repondo as articulações entre os dois âmbitos. Acrescentam, ainda, que, embora haja sinais de esgotamento do ciclo neoliberal, não parece se tratar de mero retorno ao desenvolvimentismo, nem simples reafirmação do neoliberalismo. O rumo a seguir será decidido no campo da política. Kerstenetzky (2011) também evidencia a relação entre desenvolvimento e equidade. Após constatar uma segmentação entre tais termos, propõe a sua conciliação, opondo-se ao argumento de que a possibilidade de construção de um Estado do bem estar social requer a existência prévia de desenvolvimento e de que o gasto social é, por si só, economicamente ineficiente. Defende como condição para tanto que as políticas sociais sejam economicamente orientadas e as políticas econômicas, socialmente orientadas. O debate, aqui brevemente mapeado, alimenta-se de uma agenda que vem se estabelecendo, no Brasil e na América Latina, sob um novo discurso desenvolvimentista. As diversas posições em geral reconhecem o retorno a um papel mais central do Estado na economia. Muitas vezes, sugerem alguma compatibilização entre desenvolvimento e equidade. Mas o modo de conceber essa relação é um aspecto de importante diferenciação entre as 238 Roberto Véras de Oliveira perspectivas adotadas. Destacar o lugar do social requer dar um realce especial ao momento da política, assim como tomar esta para além da discussão sobre o papel do Estado. Para Boschi (2011, p. 16), “as diversas políticas que se busca colocar em prática mobilizam atores e interesses que enfrentam um jogo de estratégias, uma dinâmica que, por natureza, é incerta”. Pôr em evidência a dimensão social do desenvolvimento requer tratar com centralidade a problemática do trabalho referida à questão da cidadania. Com Ivo (2012, p. 206): É nesse registro que pretendemos discutir Suape (considerando seus vínculos com a nova agenda e discurso desenvolvimentistas em Pernambuco e no país) pela ótica dos conflitos do trabalho que lá vêm tendo lugar mais recentemente (com suas implicações recíprocas frente a tal agenda e discurso). Da minha perspectiva, considero que avaliar a relevância da agenda social do desenvolvimento hoje implica analisar um padrão decisivo do Estado na distribuição e no enfrentamento da dimensão estruturante e qualificada de inserção pelo mercado de trabalho e na proteção sustentada em direitos sociais, ou na regulação das relações não mercantis (base de que tratam as políticas sociais). Evidências de um desenvolvimento contraditório [...] se, na era nacional-desenvolvimentista, o trabalho assumiu um papel central na constituição de identidades coletivas e formas de participação política, como repensar a articulação entre esses elementos quando se retoma o debate sobre o desenvolvimento em um novo contexto? (Idem, p. 10). É evidente o excelente momento da economia pernambucana. Enquanto o PIB do Brasil cresceu, de 2005 a 2012, a taxas anuais de 2,9%, 3,8%, 5,4%, 5,1%, -0,2%, 7,5%, 2,7% e 0,9%, respectivamente; o de Pernambuco, na mesma sequência de anos, teve um melhor desempenho: 4,2%, 5,1%, 5,4%, 5,3%, 5,2%, 9,3%, 4,5% e 2,3% (IBGE, 2005 a 2012). Tal performance se reflete nos indicadores econômicos de Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho, graças a Suape. Em 2003, Ipojuca já detinha o quarto maior PIB de Pernambuco (5,9%), com Cabo em terceiro (6,2%), Jaboatão em segundo (8,5%) e Recife em primeiro (33,3%). Em 2005, o PIB per capita de Ipojuca se tornou o maior do Estado, representando mais de 4,6 vezes o da cidade de Recife. Em 2007, o PIB de Ipojuca passou a terceiro, invertendo sua posição com Cabo. Em 2010, chega ao segundo lugar (com 9,6% do PIB estadual), alcançando um PIB per capita de 5,8 vezes o da capital (IBGE, 2003 a 2010). O crescimento populacional em Cabo e Ipojuca também teve evolução expressiva, sendo de 21,0% e 36,0%, respectivamente, em 2000 e 2010; enquanto o Nordeste e Pernambuco cresceram no mesmo período, correspondentemente, 11,1% e 10,9% (IBGE, 2000 e 2010). Entretanto, a problemática social persiste. Enquanto Ipojuca registrou um PIB per capita, em 2010, a preços correntes, de R$ 112.924,25, o valor do rendimento nominal médio mensal per capita dos domicílios particulares permanentes, para o 239 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Para os estudiosos do trabalho, por seu lado, está posto o desafio de levar em conta as implicações da retomada das políticas de desenvolvimento quanto às condições, relações e ações coletivas laborais. É o que, por exemplo, se traduz em Ramalho e Fortes (2012, p. 09), quando se detêm sobre as experiências de desenvolvimento da Baixada e Sul fluminense, sob a perspectiva de “pensar as regiões como espaços sociais e históricos, com organizações políticas e identidades próprias, buscando nas particularidades regionais elementos que possam influenciar na construção de novos projetos de desenvolvimento e seus impactos sociais e econômicos”. Entra, aqui, o elemento do território. A abordagem desses espaços regionais se faz com um foco nas questões do trabalho, sob a referência dos seus nexos com os modelos de desenvolvimento implementados no país ao longo do século XX e na passagem para o século XXI: TRABALHO E TRABALHADORES NA CONSTRUÇÃO CIVIL EM SUAPE SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... mesmo ano, ficou em R$ 416,18 – abaixo do Salário Mínimo, que, na época, era de R$ 510,00 (IBGE, 2010). Em Ipojuca, a taxa de analfabetismo, embora tenha caído, entre 2000 e 2010, de 28,7% para 19,2%, manteve-se acima das verificadas para Pernambuco, 18,0%, Nordeste, 19,1%, e Brasil, 9,6% (IBGE, 2000 e 2010). Uma já comprometida infraestrutura urbana e de serviços passou a sofrer uma forte pressão com o extraordinário fluxo migratório para a região (Monteiro, 2011). Nessa fase de implantação dos maiores empreendimentos de Suape, ganham destaque os impactos da construção civil nas dinâmicas econômica e social da região. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Emprego na RMR e na construção civil em Cabo e Ipojuca Entre fevereiro de 2003 e de 2013, a taxa de desocupação da RMR caiu de 12,1% para 6,5%. No mesmo período, os empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado passaram de 35,0% para 47,1% do total e os empregados sem carteira de trabalho assinada no setor privado, de 15,1% para 10,0%. Um claro sinal de melhora no perfil da ocupação da região, mesmo considerando-se que esta passou a receber significativos fluxos migratórios, invertendo-se a direção histórica dos mesmos. Quanto ao rendimento médio real 11 Para a construção da planta da Refinaria Abreu e Lima, a Petrobras firmou contratos com cinco consórcios, no valor global de R$ 8,9 bilhões: Camargo Corrêa – CNEC (R$ 3,4 bilhões); Conest-UHDT, formado pelas empre- habitual da população ocupada, para o mesmo período, também cresceu, passando de R$ 1.057,25 para R$ 1.376,00, embora sempre se mantendo em patamares mais baixos, quando comparados ao conjunto das RM pesquisadas (que passou de R$ 1.555,33 para R$ 1.849,50, no mesmo intervalo) (IBGE/PME, 2003 a 2013). Nesse contexto, o setor da construção civil na RMR, observado pela distribuição da população ocupada, ganhou crescente participação, com estoques de ocupação cada vez maiores. Passou de 5,7%, em fevereiro de 2005, para 7,6%, em fevereiro de 2007 e 7,8%, em fevereiro de 2013. Entre fevereiro de 2005 e de 2013, os empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado tiveram aumento expressivo, passando de 24,7% para 42,5% do total de ocupados no setor, respectivamente. Isso, enquanto os empregados sem carteira de trabalho assinada no setor privado passaram de 24,9% para 13,5% e os “por conta própria”, de 43,9% para 37,2% (IBGE/PME, 2005, 2007 e 2013). Para o município de Ipojuca, a Tabela 1 mostra a evolução da dinâmica do emprego formal na Construção Civil, de janeiro de 2006 a março de 2013. Destaque-se a elevação do nível de contratação em 2009 (coincidindo com o início das obras de terraplanagem da Refinaria e da Petroquímica), assim como em 2010 (quando começaram as obras de construção das duas plantas industriais11). Mas o grande salto no nível de sas Odebrecht e OAS (R$ 3,19 bilhões); RNEST - Conest, constituído pela Odebrecht e OAS (R$ 1,48 bilhão); Conduto – Egesa (R$ 649 milhões); Construcap – Progen (R$ 120 milhões) (Revista Grandes Construções, 2010). 240 Roberto Véras de Oliveira Qualificação como necessidade, oportunidade e justificação Em reportagem da Revista Exame (07/04/ 2010), evidenciando o descompasso entre o crescimento econômico e a disponibilidade de mão de obra qualificada, Marcelo Odebrecht, presidente do grupo que leva seu nome, comentou: “a falta de gente qualificada é uma de nossas piores fraquezas, pois impede que o país cresça por vários anos seguidos”. Órgãos de mídia, em tom sensacionalista, têm falado de “apagão de mão de obra”.13 Estudo de Moutinho et al (2011), diante da crescente carência de trabalhadores qualificados para 12 Isso, provavelmente, se deve a causas diversas. Entre as quais, podemos considerar: essa é uma característica do setor (contratações por empreitadas e alto grau de subcontratação); trata-se de uma estratégia empresarial recorrente na gestão do emprego no Brasil, com o fim de rebaixar salário; pode ser um recurso usado pelos trabalhadores, em condições de demanda de mão de obra aquecida, com o propósito de barganhar melhores salários e condições de trabalho. No caso em particular, avaliamos que tal questão merece análise mais detida, ao mesmo tempo em que admitimos que o primeiro elemento tem tido um peso mais decisivo. 13 Ver, por exemplo, matéria do Jornal Nacional, no site Globo.com (http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/ 2012/08/dificuldade-de-encontrar-mao-de-obra-qualificada-afeta-economia-brasileira.html). os diversos novos segmentos produtivos em Suape, evidenciou o desafio de converter trabalhadores com baixa escolaridade em operários qualificados. Também Monteiro (2011) comentou que as elevadas exigências de qualificação profissional contrastavam com o perfil da mão de obra disponível na região, destacando esse como um grande problema para os novos empreendimentos. Essa questão se tornou, assim, um decisivo desafio da política de desenvolvimento no Brasil e em Pernambuco, ao se situar entre, de um lado, as demandas empresariais (para que seja disponibilizada mão de obra que atenda às suas necessidades de qualificação e em quantidade suficiente para que os salários possam ser mantidos em padrões competitivos) e, de outro, as demandas dos trabalhadores (para que agora sejam criadas – especialmente para os pernambucanos – oportunidades de uma melhor inserção no mercado de trabalho). A legitimação das políticas públicas de qualificação profissional dependem, nesse contexto, de sua capacidade de se colocarem como centrais, para ambas as demandas, ao mesmo tempo em que as venham atender, em alguma medida. Notamos, quanto a esse aspecto, um quê de ambiguidade discursiva. No caso aqui em tela, nas palavras de Eduardo Campos, diante do sucesso econômico de Suape, [...] o desafio agora é capacitar a população para a nova realidade do nosso mercado de trabalho. Parcerias, convênios e contratos estão promovendo uma inédita mobilização em prol da formação e especialização da mão de obra pernambucana (Suape/Governo Pernambuco, 2010). O elemento de ambiguidade, para fins de justificação, requer que os agentes estratégicos da agenda desenvolvimentista, governantes e empresários, afinem o discurso. Neste, as demandas acima referidas tendem a ser enunciadas como (quase) uma mesma questão. Não fica suficientemente explícito no discurso governamental, como indica o fragmento acima, que a ação do Estado nessa área não pode, necessariamente, deixar de lidar com, pelo menos, essas duas visões do problema, diferentes nos seus sentidos, podendo implicar 241 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 contratação ocorreu a partir de 2011, quando as referidas obras ganharam ritmo. Sobressai, ainda, a rotatividade no emprego, atingindo em 2012 as impressionantes marcas de 36.992 admissões e 29.451 demissões.12 Ainda sobre o perfil do emprego formal na construção civil em Ipojuca, entre janeiro de 2008 e de 2013, destaca-se, pelo elevado volume de contrações, baixo nível salarial e extraordinária rotatividade no emprego, o segmento de serventes de obras (17.612 admissões, 10.428 desligamentos, 7.184 de saldo, com salário médio de admissão de R$ 637,05). Mas, de outra parte, evidenciase, também, a elevada e diversificada demanda por ocupações com maiores exigências de qualificação profissional (exemplos: instalador de tubulações, montador de estruturas metálicas, soldador, entre outros) (MTE/CAGED, 2003 a 2013). CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... diversas formas de conflitos de perspectivas, assim como de acertos, composições.14 Entretanto, como o encaminhamento do problema não tem implicado uma franca explicitação dessas diferenças de perspectiva, nem o reconhecimento público dos conflitos que implicam, a questão não tem sido posta claramente em termos de contratação social, mas de atendimento, por parte do Estado (monologicamente), da demanda da sociedade. O encaminhamento prático da questão, no entanto, ao mesmo tempo em que confirma essa perspectiva, problematiza-a parcialmente. A primeira grande ação de qualificação profissional no território de Suape foi, segundo Arioneide Belém, da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Pernambuco – SRTE/PE (entrevistada pelo autor em março de 2013), a realização do Plano Setorial de Qualificação – PLANSEQ da Construção Civil, contando com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT e das empresas beneficiadas. Uma edição esteve voltada à qualificação para máquinas pesadas (de 2007 a 2010), e outras duas para segmentos mais leves (2007-2008 e 2010-2011). Em ambas foram constituídas Comissões de Concertação, reunindo empresas, sindicatos, SRTE, Senai, e outras instituições. Destacou a entrevistada que, diante da baixa escolarização dos trabalhadores da região, foi preciso diminuir as exigências inicialmente estabelecidas, de modo a ampliar o número de cursistas. Para a Secretária Executiva de Trabalho e Qualificação de Pernambuco, Angela Mochel (entrevistada pelo autor e equipe da Fundaj, em dezembro de 2012), o Estaleiro Atlântico Sul – EAS foi um marco no perfil da demanda por mão de obra no estado. Intenso processo de discussão se estabeleceu em torno do cadastramento, seleção e treinamento, envolvendo o Estaleiro, as Agências do Trabalho, prefeituras da região de Suape, Senai. Segundo informações do Senai-Pe (O Estado de São Paulo, 30/08/2010), o número de alunos formados 14 Vista como construção social, em perspectiva relacional, enquanto produto das disputas sociais e dos aspectos valorativos que se encontram na base dos julgamentos e classificações sociais sobre o trabalho, a noção de qualificação se refere às possibilidades trazidas com as diversas condições sociais, econômicas, políticas e culturais (ver quanto a isso a clássica abordagem de Naville, [1956] 2012). pela instituição passou, de 19,4 mil para 48,6 mil, entre 2003 a 2010. Com as demandas do setor de petróleo e gás, o Senai-Pe executou, em 2009, o Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural – PROMINP (do Ministério das Minas e Energia em parceria com a Petrobras). Segundo Soares Júnior e Martins (2010), o orçamento do Proninp/Senai-Pe, para 2009, foi de mais de R$ 10 milhões, envolvendo 14 cursos, 389 turmas e mais de 6,2 mil alunos. Até 2010, o governo de Pernambuco havia criado 13 novas escolas técnicas, frente a um total de 16, disponibilizando 13 mil vagas. Outras ações nesse campo se estabeleceram, envolvendo a FIEPE, governos municipais, Universidades, SEBRAE, BNDES, grandes empresas (Monteiro, 2011; Soares Júnior e Martins, 2010). Após tantas iniciativas no campo da qualificação profissional, embora tenham sido anunciadas como oportunidades de uma nova inserção das populações locais no mercado de trabalho, fica o alerta do ex-prefeito de Ipojuca, Pedro Serafim, em entrevista para o JC (12/08/2011): “ainda ficamos com os menores salários”. Mesmo havendo significativa incorporação de trabalhadores locais aos empreendimentos de Suape (com destaque para a construção civil) e mesmo considerando que tal incorporação tem implicado conversão ocupacional (com os segmentos majoritários sendo oriundos da lavoura da cana de açúcar), com elevação significativa dos empregos com carteira assinada, isso não tem significado a instauração de um padrão salarial e de condições de trabalho muito diferentes dos padrões históricos da região. Os conflitos que serão analisados denunciam tal situação. Reconstituições identitárias A região de Suape tem a marca histórica do trabalho na cana-de-açúcar, na pesca artesanal e, mais recentemente, no turismo. Com o Complexo Suape, estabeleceu-se entre este e as comunidades locais uma dinâmica de conflitos, intensificados, nas décadas de 1990 e 2000, com ações de expropriação (Pérez e Gonçalves, 2012). Para Santos 242 Roberto Véras de Oliveira (2012), existem, ainda, 28 mil pessoas residindo dentro do perímetro do Complexo. Tais conflitos, associados à decadência da base produtiva anterior, têm afetado, significativamente, as comunidades locais, em sua reprodução e identidades.15 Quanto aos moradores da região, absorvidos nos novos empreendimentos, estão vivenciando um processo de reconversão ocupacional e identitária.16 Em contraste com suas trajetórias ocupacionais anteriores, veem-se, agora, imersos na rotina de empresas estruturadas, formais, algumas de grande porte. Para muitos desses, o sentimento é de melhora de vida e até de euforia, a exemplo de uma operária citada por Rodrigues (2012, p. 39): te, são contratados para ocupar os postos de trabalho mais baixos na hierarquia da obra” (Rodrigues, 2012, p. 43). Conforme apurou Rodrigues (2012), as empresas, em Suape, se utilizaram da estratégia de treinamento de trabalhadores agrícolas, como forma de poder dispor de mão de obra barata e dócil. Entre os trabalhadores oriundos da região e os “trecheiros”, em Suape, as diferenças de perfil têm redundado em tensões. Sendo que esses últimos, segundo apurou Rodrigues (2012), têm trazido, de andanças pelo Brasil, não só uma experiência profissional, mas, também, sindical e política. Sindicatos em Suape O discurso desenvolvimentista encontra nesse tipo de manifestação (da parte dos trabalhadores oriundos da região e recém-incorporados aos novos empreendimentos de Suape) uma percepção que o complementa e o legitima. Os trabalhadores dos empreendimentos de Suape são de dois tipos principais: os moradores da região e os trabalhadores vindos de fora, os “trecheiros”.17 Quanto aos primeiros, “normalmen15 Em depoimento a Cavalcanti e Rocha (2013, p. 10), um dos moradores da comunidade Tatuoca, assim se colocou: “tudo que sou tá ligado a Tatuoca! Pra nós, nativos, SUAPE não trouxe benefício. Tiraram muito da nossa sobrevivência. Vivo da pesca e de outro giro das frutas que comercializo. Aqui muitas empresas desmataram, não deram satisfação à gente. E a gente manteve a terra”. 16 Em depoimento a Cavalcanti e Rocha (2013, p. 13), um diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca admitiu: “o trabalhador rural, 60% deles foi trabalhar em Suape. Quem foi trabalhar em Suape, não volta mais para o campo, não quer ser mais cortador de cana. Esse já fez treinamento, já adquiriu outro conhecimento, não volta mais para ser um cortador de cana”. 17 Para Guedes (2011, p. 182), a origem dos termos “trecho” e “trecheiro” pode ter tido relação com a prática de divisão, entre empreiteiras, do serviço referente a uma grande obra de construção de estrada, em “trechos”. Indica que, em trabalhos mais recentes, o termo “trecheiro” passou a ser usado com um sentido alargado, como “intinerante”. Propõe que a noção se estabeleça em contraste com a de “migrante”, cujo “trajeto se justifica pelo ponto que está em seu fim”, enquanto para o primeiro “a circulação é um objetivo em si mesmo”. Nesse enquadramento inclui os “peões de obra“. heterogeneidade no seu perfil; discrepâncias salariais e de condições de trabalho; caráter explosivo dos conflitos; intensas disputas sindicais. Em geral, os sindicalistas não têm conseguido se legitimar como representantes das demandas dos trabalhadores. Para os principais sindicatos filiados à CUT, com base na região, o Sindmetal-Pe (Metalúrgicos), o Sindipetro-Pe/Pb (Petroleiros), o Sindiquímica-Pe (Químicos), o Sticc/Pe (Construção Civil), prevalece, ainda, uma postura de certa perplexidade, segundo evidenciou um dirigente do Sindmetal-Pe (entrevistado pelo autor em março de 2013). Isso tem se traduzido, em geral, em níveis baixíssimos de sindicalização. Para um dirigente do Sindipetro-Pe/Pb (entrevistado pelo autor em março de 2013), este tem uma situação diferenciada, visto que as empresas da Petrobras, em Suape, são suas principais bases de atuação. Quanto à Força Sindical, antecipando-se ao boom da construção civil, trazido com o PAC, criou, em 2000, o Sintepav-Pe (para a construção civil “pesada”), aproveitando-se da desatenção do Sticc/Pe (conhecido como “Marreta”), criado em 1919 e filiado à CUT desde os anos 1980. O Sintepav-Pe passou a representar, legalmente, os trabalhadores da Construção Civil “pesada” em Pernambuco, 243 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 [...] esse é o meu primeiro emprego. Antes eu era uma dona de casa, agora sou metalúrgicaPara o sindicalismo, Suape tornou-se um soldadora do EAS, que vai construir grandes navios. O presidente Lula sabe o que isso significa. Me grande desafio. Requer saber lidar com: grandes sinto honrada em fazer parte disso, em saber que empresas; concentrações de trabalhadores; cada um desses navios terá um pedacinho de mim. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... incluindo Suape. O seu fundador e presidente é o mesmo que, atualmente, preside a Força Sindical no estado, Aldo Amaral. A Conlutas também tem tido atuação em Suape. Embora não detenha representação legal nas empresas do Complexo, essa Central tem deslocado militantes para atuarem nos conflitos da região, tendo conseguido conquistar o direito de participar em assembleias e mesas de negociação (Rodrigo, 2012). A atuação sindical no setor da construção civil no Brasil tem tido, nos processos de terceirização, um desafio especial. Segundo Cockell e Perticarrari (2010, p. 635), embora tais práticas tenham como motivação a busca de serviços especializados, visam, sobretudo, reduzir custos trabalhistas, quando são subcontratadas empresas arregimentadoras de mão de obra, denominadas “gatos”. As subcontratações podem levar a processos sucessivos, quando subcontratadas subcontratam outras empresas. As condições de trabalho se diferenciam ao longo dessa cadeia. O mesmo ocorre em Suape, onde são praticadas diferenças contrastantes em aspectos como salários, acomodações,18 alimentação, transporte, entre outros (Monteiro, 2011; Rodrigues, 2012). Os contrastes salariais e de condições de trabalho entre “trecheiros” e trabalhadores da região e entre contratados diretos e subcontratados, associados a atrasos em pagamentos, relações com chefias, entre outras situações, têm sido fatores de importantes conflitos nos canteiros de obra em Suape. AS LUTAS DOS PEÕES DE SUAPE: O QUE querem dizer? No processo de construção dos empreendimentos de Suape, os conflitos foram se acumulando no ritmo das obras. Em janeiro de 2008, ocorreu uma paralisação de dois dias dos 2 mil traba18 Os trabalhadores chegados de fora são abrigados em alojamentos das empresas, hotéis, pousadas, “puxadinhos” em residências. Os consórcios constituídos para empreenderem as obras de construção civil em Suape construíam alojamentos. O Conest instalou um com capacidade para 3.688 trabalhadores, a Camargo Corrêa, para 3.500, a Odebrecht, para 1.296, a KMA 992, totalizando 9.476 lugares. (Monteiro, 2011). lhadores atuantes nos serviços de terraplanagem da Refinaria. Queixas: não-pagamento de horas extras, atraso de salários, maus tratos pelas chefes (Jornal Tribuna Popular, 30/01/2008). No mesmo ano, ocorreu a primeira greve dos trabalhadores do EAS, com duração de três dias (Rodrigues, 2012). No início de 2009, os dois mil trabalhadores ainda atuantes nas obras do EAS realizaram paralisação de um dia, em protesto pelo não pagamento da Participação nos Lucros (DP, 04/03/2009). Em 2010, os 3 mil trabalhadores do Consórcio Conest, formado pelas construtoras Odebrecht e OAS, realizaram uma paralisação de um dia, contra o plano de compensação das folgas de fim de ano. Em novembro, os mesmos trabalhadores protestaram pelos salários inferiores pagos aos trabalhadores da região, mesmo para funções iguais (A Verdade, 04/11/2010, www.averdade.org.br). Revoltas e greves em 2011 Em 25 de janeiro de 2011, os sete mil trabalhadores da Odebrecht, envolvidos na construção da Petroquímica, paralisaram o trabalho, por aumento de 30% de adicional de periculosidade e melhorias nas condições de trabalho (DP, 09/02/ 2011). No dia 2 de fevereiro, o Tribunal Regional do Trabalho – TRT decretou a greve ilegal. Na noite do mesmo dia, em protesto, um alojamento foi incendiado. Ocorreram demissões e um trabalhador foi preso. Sucederam-se novas depredações (JC, 03/02/2011). No dia seguinte, foi formada uma comissão de seis trabalhadores, para representar suas demandas (JC, 20/02/2011). No dia 9, em assembleia no pátio de acesso à Refinaria, com mais de cinco mil trabalhadores, e sob um clima de tensões, o Sindicato defendeu que as reivindicações deveriam ser remetidas para a data-base da categoria, em agosto. Um conflito se estabeleceu, sendo protagonizado, de um lado, pelos “baianos”, revoltados com a posição dos sindicalistas e, de outro lado, por estes, que passaram a desqualificar aqueles como “preguiçosos” e descomprometidos com o desenvolvimento de Pernambuco. Procurado 244 pelo JC (20/02/2011), o presidente do Sintepav-Pe não admitiu as “expressões mais fortes”, mas reconheceu que acusou os “baianos” de “falta de interesse no crescimento econômico do Estado”. Chamam a atenção três aspectos da participação do Sindicato no episódio: as dificuldades de afirmação da sua liderança perante os trabalhadores inquietos; a adoção de uma estratégia divisionista, alimentando uma tensão latente (entre “pernambucanos” e “baianos”); o recurso ao argumento do “compromisso com o desenvolvimento de Pernambuco”, para justificar a desmobilização dos trabalhadores. Entretanto, os acontecimentos evoluíram na direção oposta: a revolta uniu pernambucanos e “forasteiros”. A tensão cresceu, houve empurra-empurra, e os dirigentes do Sindicato se viram acantonados... Um tiro foi disparado, atingindo um trabalhador baiano. Um segurança do Sintepav-Pe foi preso, acusado de “atirar na multidão” (JC, 20/02/2011). Grupos de trabalhadores se dirigiram à rodovia PE-60, bloqueando, assim, a principal via de acesso a Suape. Com a chegada da polícia, se estabeleceu um momento de negociação. A principal reivindicação dos manifestantes foi a “presença da imprensa” (Rodrigues, 2012, p. 54). Curioso o fato de ter imperado entre os revoltosos, na ocasião, a necessidade de buscar tornar visíveis, para a sociedade, as suas demandas. Sintomático que a superexposição dos assuntos de Suape, do novo discurso e agenda desenvolvimentistas tenham convivido, até então, com o silêncio dos seus protagonistas (governantes e empresários, mas, também, sindicalistas), sobre as condições de trabalho de contingentes tão significativos de trabalhadores. No dia 14 de fevereiro, previsto para a volta ao trabalho, o clima era ainda tenso, com policiais presentes. No pátio de acesso à Refinaria, formouse uma assembleia, com o apoio de militantes da Conlutas. A paralisação foi mantida, sendo constituída uma comissão de oito trabalhadores (Rodrigues, 2012). Na versão do presidente do Sintepav-Pe, as manifestações tinham motivação política (DP, 15/02/2011). Já para Adalberto Silva, um dos membros da comissão, o Sindicato defendia “os interesses da construtora e não as necessi- dades dos trabalhadores” (DP, 15/02/2011). A comissão seguiu para o MPT, que passou a mediar as negociações. A primeira audiência ocorreu no dia 16 de fevereiro. Estiveram representados: o Governo Estadual (Secretarias do Trabalho, Qualificação e Empreendimentos, da Articulação Social e Regional, da Defesa Social e do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco); os empresários (Conest, Petrobras, Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada – SINICON, Confederação Nacional da Indústria e Construção); os trabalhadores (Sintepav-Pe; Federação Nacional dos Trabalhadores da Indústria da Construção Pesada – FENATRACOP, Comissão dos Trabalhadores); a SRTE-PE/MTE; a Prefeitura Municipal de Ipojuca, entre outros (Rodrigues, 2012). Chamou a atenção o fato de não haver, ali, uma pauta de reivindicações. A dificuldade (ou indisponibilidade) do Sindicato em atuar como uma agência social19 processadora das demandas dos trabalhadores, e o caráter incipiente da comissão, mesmo diante de queixas e exigências que pululavam entre os trabalhadores, é o que, provavelmente, explica tal situação. Nas palavras do Procurador Geral, Fábio Freitas: “naquele primeiro momento de reivindicação, o Sindicato, praticamente, ele não falou”; acrescentando: sua presença se justificou pelo “aspecto legal” (depoimento dado a Rodrigues, 2012, p. 58). Os primeiros resultados das negociações foram: a suspensão do pedido de dissídio pelo Sinicon; o reconhecimento da comissão para compor a mesa de negociação e a garantia de estabilidade de 60 dias para seus membros; garantia de que não seriam descontados os dias parados enquanto durassem as negociações; suspensão imediata do movimento grevista enquanto durassem as negociações. Para Adalberto da Silva, a audiência legitimou o processo de negociação. Agora, era preciso validar, junto aos trabalhadores, os acordos firmados: “estamos no processo de convencimento entre nossos companheiros para mostrar 19 Faço uso dessa expressão por alusão ao sentido dado por Sader (1988, p. 143), ao se referir à emergência entre os anos 1970 e 1980, no Brasil, de “novas formas de agenciamento social”, capazes de elaborarem novas “matrizes discursivas”. 245 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Roberto Véras de Oliveira CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... que essa é a melhor maneira encontrada de atingir nossos objetivos” (DP, 17/02/2011). Para a comissão, em particular, estava sendo travada uma dupla luta por reconhecimento: de um lado, das demandas dos trabalhadores frente à mesa de negociações; de outro, de si mesma junto aos trabalhadores. No dia 23 de fevereiro, na segunda audiência, ainda sem que fosse apresentada uma pauta de reivindicações, foi formulada uma proposta, a qual foi assinada pela comissão, Fenatracop e Confederação Nacional da Indústria e Construção, mas não pelo Sintepav-Pe. Entre os 13 pontos apresentados, constaram: pagamento de 3hs in itinere aos trabalhadores; estabilidade para a comissão por um ano; reclassificação dos trabalhadores em desvio de função, com correção salarial; reajuste do vale alimentação de R$ 40,00 para R$ 300,00, por mês; pagamento de adicional de horas extras aos sábados, de 50% para 100%; não desconto dos dias parados (Rodrigues, 2012). As audiências e o processo de negociação seguiram. Entre uma e outra, os trabalhadores se reuniam em assembleia. Entretanto, conforme observou Fábio Freitas, o Sindicato estava tão “desprestigiado” que não participou daquelas assembleias (depoimento dado a Rodrigues, 2012, p. 63). Embora se tenha chegado, na audiência no dia 15 de março, a um acordo sobre alguns itens (ajuste no vale alimentação para R$ 130,00, estabilidade de um ano para a Comissão, abono dos dias parados, pagamento de 80% para horas extras), com outros sendo remetidos a uma avaliação posterior (pagamento das horas in itinere) e ou à data base (auxílio residência), os trabalhadores recusaram o valor do auxílio refeição, que não deveria ser menor do que R$ 160,00, e o percentual de aumento pelas horas extras, que não deveria ser menor do que 100% (JC, 18/03/2011). Era mais um forte indicativo da falta de representatividade do Sindicato, e mesmo da comissão. A insatisfação entre os trabalhadores permanecia.20 Um operário do Conest, em depoimen20 Nesse período, a SRTE/PE, com apoio do MPT, realizou uma Auditoria Fiscal do Trabalho no Complexo Suape (incluindo o EAS e os canteiros da Refinaria e da Petroquímica), na qual se registraram “casos de excesso de jornada, ocorrências de acidentes, falta de registro em carteira de trabalho, atrasos nos pagamentos e to ao jornal A Nova Democracia (Ano IX, nº 75, mar/2011, http://www.anovademocracia.com.br), comenta: “o governo na televisão fala que Suape é uma maravilha” (um elemento de fissura na dimensão justificadora do discurso desenvolvimentista?). A paralisação, agora, havia sido estendida para os demais canteiros de obras de Suape, envolvendo cerca de 35 mil trabalhadores. Após outra rodada de negociações, os trabalhadores, em assembleia, no dia 25, optaram pela manutenção da greve (JC, 25/03/2011). Na nona audiência, ocorrida no dia 28 de março, o Procurador admitiu que havia chegado ao limite sua tentativa de mediar as negociações (ATA, 28/03/2011, apud Rodrigues, 2012, p. 65). No dia 29 de março, o TRT declarou a greve ilegal e, ao mesmo tempo, foram atendidos os 100% no pagamento das horas extras e os R$ 160,00 de vale alimentação (DP, 29/03/2011). Segundo Adalberto Silva, com vistas à convenção coletiva da categoria, em agosto, era preciso buscar a unificação dos salários e benefícios entre as empresas em âmbito nacional. No dia 15 de abril, na décima audiência, as negociações foram concluídas sem que as partes chegassem a um acordo sobre o desconto dos dias parados (Rodrigo, 2012). Nos canteiros de obras, os conflitos continuaram. Os trabalhadores seguiam insatisfeitos: Quando reclamamos do péssimo tratamento, das horas extras que quase nunca pagam e das péssimas condições de trabalho, eles gritam com a gente coisas como: “vocês eram cortadores de cana, passavam fome e hoje tem profissão e salário, tão reclamando de que? Até fardinha vocês têm.” Veja que absurdo! (A Nova Democracia, Ano IX, nº 76, abril de 2011). Naquele momento, em levantamento feito pelo DIEESE (UOL Notícias, 04/04/2011), foi estimado em 170 mil o número de grevistas da construção civil em todo o país, sobretudo envolvendo as obras do PAC. Em geral, as reivindicações se relacionavam a: condições de trabalho; salários; alojamentos, pagamento de horas extras; equalização de direitos entre superlotação de alojamentos” (SINAIT, 25/04/2011 http://www.sinait.org.br). Para Vera Jatobá, que coordenou a missão, chamou a atenção o alto grau de subcontratação praticado na região (entrevistada pelo autor em março de 2013). 246 contratantes e subcontratadas, entre outros. Diante da repercussão das mobilizações, as Centrais Sindicais obtiveram do Governo Federal o compromisso com uma agenda nacional de negociações, sobre condições de trabalho nas obras do PAC, envolvendo empresários, Governo e sindicalistas. Em Suape, nas mobilizações da data-base em julho, havia um clima de insatisfação com a resistência das empresas em abonar os dias parados na greve de fevereiro e março. No dia 1º de agosto, foi aprovado o indicativo de greve. Diante do fato, em nota oficial, o Sinicon entra com pedido de ilegalidade da greve e justifica, acusando o Sintepav-Pe de “atropelar as negociações”, quando “vários itens da pauta de reivindicação já tinham sido concedidos pela categoria patronal” (G1.globo.com, 02/08/ 2011 - http://g1.globo.com/economia/noticia/2011/ 08/trabalhadores-do-complexo-de-suape-estao-emgreve.html). Segundo o Sintepav-Pe, a proposta patronal não era suficiente. A luta era por 15% de aumento, cesta básica de R$ 300,00, abono dos dias parados na última greve (Força Sindical, 02/08/2011 – http://www.fsindical.org.br). Em 5 de agosto, os trabalhadores suspendem a greve. Foram negociados: aumento salarial de 11%, cesta básica de R$ 200; abono de 50% dos dias parados na greve de março; abono total da greve de agosto; concessão de passagens aéreas para os que moram a mais de 1 mil km; redução do tempo de folga de campo (cinco dias), com 90 dias de intervalo. Desta vez, o secretário de Articulação Social e Regional de Pernambuco participou das negociações (G1.globo.com, 05/08/ 2011). O apelo discursivo do “desenvolvimento de Pernambuco” ganha, assim, mais evidência. Não à toa, a advogada do Sinicon introduziu a seguinte frase: “nós temos um compromisso com o desenvolvimento de Pernambuco” (DP, 06/08/2011). Em 2012, nova onda de mobilizações Em fevereiro, os cerca de dez mil trabalhadores da Odebrecht entraram em greve, por pagamento de 150 horas referentes à Participação nos Lucros e Resultados – PLR – de 2011. Para o presidente do Sindicato, teria contribuído para a revolta o tratamento desrespeitoso da Odebrecht para com os trabalhadores (JC, 17/02/2012). Seis dias depois, o movimento foi encerrado, com um acordo firmado entre a empresa e o Sindicato. Para capitalizar esses resultados, o presidente do Sintepav-Pe assim se pronunciou: “venceram os trabalhadores e o bom senso. Mas é importante lembrar que sem a mobilização a empresa não aceitaria rever a sua posição” (DP, 23/02/2012). Esses trabalhadores, no entanto, voltaram a paralisar o trabalho em 18 de junho, reivindicando cumprimento de normas de segurança do trabalho e o pagamento do adicional de periculosidade de 30%. A esses se juntaram 400 trabalhadores do Consórcio Cabeços, revoltados com um acidente que matou um trabalhador na semana anterior. As explosões espontâneas continuavam dando o tom das mobilizações em Suape, com a ação do Sindicato vindo sempre em seguida (DP, 18/06/2012). No dia 19, houve acordo na greve do Consórcio Cabeços, pondo fim à paralisação. Entretanto, a greve na Odebrecht continuou. O Sinicon entrou com pedido de dissídio junto ao TRT, mas seguiu negociando. No dia 26 de junho a greve foi encerrada (DP, 26/06/2012). Em 27 de julho, o Sintepav-Pe assinou acordo com o Sinicon, incluindo: aumento salarial de 10,5%; aumento da cesta básica para R$ 260; equiparação salarial entre trabalhadores de mesma função, nas diversas empresas. O acordo foi homologado em assembleia, em 1º de agosto. Entretanto, logo após a homologação, houve revolta, sendo desencadeada uma onda de protestos, com depredações de alojamentos e a paralisação do trabalho (JC, 02/08/2012). Em nota oficial, o Sinicon, argumentou: “diante desta posição, as empresas representadas pelo Sinicon analisam a possibilidade de demissão e outras medidas legais, visto que as negociações já foram encerradas e a convenção já foi assinada junto ao sindicato da categoria” (JC, 02/08/2012). O Sintepav-Pe, em nota oficial, admitiu que foi tomado de surpresa pelo movimento, criticou os “atos de vandalismo, documentos apócrifos ou pessoas encapuzadas” e se disse em defesa dos interesses dos trabalhadores 247 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Roberto Véras de Oliveira SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 (DP, 02/08/2012). Frente às acusações de que a assembleia que votou o acordo havia sido esvaziada, o presidente do Sindicato justificou que teria começado a chover na ocasião, com alguns operários tendo deixado o lugar, acrescentando: “mas quem saiu é como se tivesse assinado uma procuração para quem ficou” (JC, 02/08/2012). Em 6 de agosto, em sessão de conciliação, realizada no MPT, não houve acordo. No dia seguinte, o TRT decretou a greve ilegal (JC, 07/08/2012). O Sintepav-Pe orientou os operários para o retorno ao trabalho e tentou acordo para evitar o desconto dos dias parados. Mas houve revolta na assembleia do dia 8, que começou com pedras sendo arremessadas contra os diretores do Sindicato, que tiveram que sair às pressas. Dali, a revolta se alastrou, com ônibus e alojamentos sendo depredados. Com a chegada da Polícia, balas de borracha e bombas de efeito moral foram detonadas e prisões efetuadas (JC, 08/08/ 2012). O Sintepav-Pe divulgou nota, condenando a “ação de vândalos”, afirmando que realizava uma “assembleia informativa”, para poder cumprir seu “papel institucional” de repassar aos trabalhadores a decisão do TRT. E, na sequência, retorna com o apelo ao discurso desenvolvimentista: O Sintepav-Pe chama a atenção de toda sociedade pernambucana, em especial o Governo do Estado de Pernambuco, para as consequências de ações isoladas como as que vêm ocorrendo em Suape nos últimos dias. Atitudes como as que se viram hoje afastam novos investimentos, diminuindo assim o número de empregos e consequentemente desaquecendo a economia estadual. Por fim, assegurou seu apoio à “causa dos seus filiados”, defendeu os meios legais de luta e recomendou a volta ao trabalho (JC, 08/08/2012). Nesse contexto, de conflitos explosivos, o Sindicato, que se propunha a se manter em estrito marco institucional e aderente aos termos do discurso estabelecido, se via em apuros. O Sintepav-Pe escolhe um alvo e parte para o ataque: “O PSTU, que é ligado ao Conlutas, tenta dividir a categoria, distribuindo panfletos afirmando que Pernambuco tem um dos piores salários do Brasil e pleiteando um reajuste de 15%” (declaração do presidente, no JC, 08/08/2012). A resposta do Conlutas veio com a dirigente estadual Cláudia Ribeiro: “O Sintepav-Pe faz acusações falsas, levianas e mentirosas. O que os trabalhadores querem são melhores condições de trabalho. Tudo que aconteceu foi gerado por insatisfações da base, que está jogada em galpões ou em casas onde moram 10, 20 pessoas amontoadas” (JC, 08/08/2012). No dia 9 do mesmo mês, o retorno ao trabalho foi parcial. Um clima de insegurança se instalou na região, ocupada por policiais. Muitas empresas liberaram os trabalhadores para só retornarem no dia 13. Diante dos acontecimentos, a Secretaria de Articulação Social e Regional foi escalada para atuar no caso (DP, 09/08/2012). No dia 10, tentativas de retorno ao trabalho encontraram a resistência de piquetes. As empresas decidiram flexibilizar as punições (DP, 10/08/2012). Três dias depois, muitos não retornam ao trabalho, em protesto pelo anúncio de desconto dos dias parados e pelo atraso no pagamento do adiantamento quinzenal. Alguns incidentes foram ainda registrados. O Sintepav-Pe procurou se afirmar como condutor das reivindicações, abordando os trabalhadores e orientando-os a baterem o ponto, mas sem retornarem ao trabalho. Em nota, a entidade propõe que só haja retorno quando houver garantias de que as empresas abonarão “todos os dias da paralisação iniciada no último dia 1º de agosto” (DP, 13/08/2012). No dia 14, também não houve retorno ao trabalho. Um acordo só veio ocorrer no dia seguinte: o pagamento da quinzena foi liberado e as empresas concordaram em abonar 70% dos dias parados (DP, 15/08/2012). As atividades foram retomadas no dia 16 de agosto. Entretanto, com as notícias de que haveria demissões e descontos de parte dos dias parados, retornou um clima de nova paralisação. Novas negociações foram iniciadas, desta vez com a participação de uma comissão de trabalhadores. Houve retorno ao trabalho, mas ficou no ar uma operação “braços cruzados” (DP, 16/08/2012). Um novo impasse se estabeleceu. Os trabalhadores exigiam 100% de abono dos dias parados. Uma expectativa se criou com a reunião prevista para ocorrer em 248 Roberto Véras de Oliveira tanto, quanto mais tal desmobilização avança, cuja previsão é que se estenda até a virada para 2014. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, nos detivemos sobre conflitos envolvendo os peões e as empresas das grandes obras de Suape. Vimos que esses conflitos se desdobram e se articulam sob focos diversos, opondo: peões “forasteiros” e aqueles de origem local; trabalhadores diretos e terceirizados; trabalhadores e forças policiais; trabalhadores e Sindicato; militantes da Conlutas e do Sindicato; comunidades locais e gestores públicos e privados de Suape, entre outros. Pudemos notar que, não obstante a ausência de uma organização sindical capaz de captar, sistematizar e expressar os interesses e demandas coletivas dos trabalhadores, estes se mobilizaram e obtiveram conquistas relacionadas a salário, vale refeição, horas extras, condições de alojamento, abono de dias parados, reconhecimento e estabilidade para comissões de trabalhadores, entre outras. Para além disso, percebemos que, entrando em cena, sob formas explosivas e inesperadas, os peões de Suape e suas condições de existência e trabalho se tornaram visíveis para a sociedade. Que questões, com isso, colocam para o novo discurso e agenda desenvolvimentista? Vimos o quanto elementos das críticas ao projeto Suape foram sendo incorporados, de algum modo, nos discursos e práticas dos atores estratégicos ali implicados. Não à toa, em agosto de 2011, no auge das mobilizações em Suape, o governador assim se pronunciou: Cresce na nossa consciência a importância de planejar a expansão dessa região. Não queremos repetir desigualdades que se arrastam por quatro séculos de história. Porque de desigualdade esse território de Suape entende. São marcas muito profundas, que começaram com a exploração dos índios e dos escravos, e não poderão se repetir nesse novo ciclo de desenvolvimento (JC, 12/08/2011). Em que medida o discurso estabelecido do novo desenvolvimentismo, diante dessa dimensão que se visibiliza com os conflitos, incorpora algo da crítica como reconhecimento ou tão somente como 249 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 Brasília, com representantes das empresas, das centrais sindicais e do próprio governo. Na pauta, o impasse em Suape. Mas os representantes das centrais sindicais não compareceram, não havendo indicações de solução para os impasses (DP, 17/08/ 2012). Um representante do MTE foi designado para iniciar nova rodada de negociações (DP, 18/08/2012). No dia 20, ainda sem solução, a situação em Suape voltou a ficar tensa com o anúncio de centenas de demissões. No dia seguinte, continuaram as demissões “por justa causa” (DP, 21/08/2012). Ocorreu, no dia 23, a volta ao trabalho (DP, 23/08/2012). Matéria do JC (26/06/2012) chama a atenção para o que, na visão do órgão, se deve apreender com os acontecimentos: “vinte dias deste mês de agosto abalaram o marco inicial do desenvolvimento econômico de Pernambuco”; “a paralisação agressiva e sem norte [...] escancarou o despreparo do sindicalismo local”; a “escassez de mão de obra qualificada” e os “prazos e orçamentos rígidos para tirar os empreendimentos do papel” “conferem um poder de negociação distorcido para os trabalhadores”. Um ator (outsider), ao tentar entrar em cena, para, assim, poder ser reconhecido como portador legítimo de demandas sociais, testa os limites da dimensão justificadora do novo discurso desenvolvimentista (aqui incluído seu componente midiático). Até onde vai o seu alcance? Os conflitos seguem. Ainda em 2012, uma nova greve geral atingiu os canteiros de obras da Refinaria e da Petroquímica, com duração de 24 dias (de 30 de outubro a 23 de novembro). Novamente o TRT declarou a greve ilegal. Diversos mediadores foram convocados para solucionar os conflitos, entre eles o próprio Brizola Neto, então Ministro do Trabalho, e o presidente nacional da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva. Mas a greve só acabou quando o Sinicon e o Sintepav-Pe chegaram a um acordo, com a criação de uma tabela prevendo novos pisos salariais para 32 categorias profissionais (O Estado de São Paulo, 23/11/2012). Os conflitos em Suape seguem no mesmo ritmo em 2013, mesmo com o início da desmobilização das obras de construção da Refinaria e da Petroquímica. Um outro cenário se anuncia, no en- CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ... justificação? Por outro lado, até onde os trabalhadores têm sido capazes de se fazer reconhecer?21 Com os conflitos aqui sumarizados, sobressai o fato de que aqueles conseguiram, protagonizando acontecimentos espetaculares, se tornar visíveis. Ao mesmo tempo, ficou evidenciado que a mediação sindical, ao contrário de se constituir como um novo agenciamento social, no sentido de Sader (1988), não tem sido capaz de processar tais demandas e de se converter em canal de elaboração de uma nova matriz prático-discursiva. Conversas com sindicalistas atuantes em Suape e as evidências trazidas com o desenrolar dos conflitos e negociações nos indicam o quanto o sindicalismo na região está longe de cumprir esse papel, o que, para tanto, requereria um outro patamar de elaboração estratégica de suas linhas de ação, de modo a contemplar, entre outros aspectos: consolidação de sua capacidade de representação diante dos trabalhadores; enraizamento e projeção como ator influente no arranjo político e institucional local; articulação em perspectiva de cadeias produtivas, de modo a compor ações nacionais e internacionais referidas às conexões de Suape com a economia nacional e global; articulação em uma perspectiva de ação mais ampla, reportada ao debate sobre os rumos do desenvolvimento do país. A abordagem da experiência sindical em Suape, a partir das dimensões propostas acima, certamente, pode vir a ser bastante enriquecida quando posta vis-à-vis experiências outras, de relevância internacional, assim como nacional. Neste caso, sobressai o caso do ABC Paulista (Véras de Oliveira, 2011; Ramalho e Rodrigues, neste dossiê). Na ausência de uma atuação sindical mais consistente, os trabalhadores de Suape, se têm conseguido dar visibilidade a si e às suas demandas, não necessariamente têm sido capazes de se fazer reconhecidos (na sua condição de agentes e portadores de demandas) como parte do empreendimento desenvolvimentista. Voltamos, assim, ao tema do jogo de tensões entre as razões econômicas (referi21 Todo o processo da constituição de mesas de negociações, com a mediação do MPT, as dificuldades de representação efetiva por parte do Sintepav-Pe e da comissão dos trabalhadores, as ameaças empresariais, as sentenças do TRT, que aqui vimos, ganha relevância quanto a isso. das a noções tais como eficácia, competitividade, crescimento, acumulação) e sociais (reportadas à equidade, redistribuição, proteção social, participação e controle social), enquanto parâmetros para discutirmos os termos e possibilidades do novo discurso/agenda desenvolvimentista. Os conflitos do trabalho, no entanto, continuam; as disputas de sentidos, também. Migrando desses canteiros a outros (seja para se integrar a construção da planta da Fiat, que já se inicia, ou para atuar em outras grandes obras país afora) e daí aos novos empreendimentos, na medida em que vão entrando em funcionamento (estaleiros, refinaria, petroquímica, siderúrgica, indústria de alimentos e bebidas etc.), as reconversões identitárias, as disputas sindicais e os conflitos do trabalho continuarão ganhando novos impulsos e seguirão impactando as dinâmicas econômicas, sociais e políticas na região. A questão que fica se refere à capacidade dos trabalhadores e suas representações sindicais se afirmarem como protagonistas na construção de um novo padrão de relações de trabalho e de uma perspectiva de desenvolvimento que venha a ter nos elementos da equidade social e da sustentabilidade ambiental, aspectos tão estratégicos como o da eficiência econômica. Isso implicará tensionar e levar ao limite os termos atuais do padrão de desenvolvimento embalado na nova edição, em Pernambuco e no Brasil, da agenda e discurso desenvolvimentistas. Recebido para publicação em 21 de abril de 2013 Aceito em 10 de junho de 2013 REFERÊNCIAS ARAÚJO, A.; VÉRAS DE OLIVEIRA, R. El sindicalismo brasileño em la Era de Lula. Trabajo. México, v. 5, n. 08, p. 83-112, 2011. BATISTA JR., P. N. Desenvolvimento “light”? Folha de São Paulo, 25/01/2007. BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo capitalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes. BOSCHI, R. Introdução: instituições, trajetórias e desenvolvimento – uma discussão a partir da América Latina. In: BOSCHI, R. (Org.). Variedades de capitalismo, política e desenvolvimento na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. BRASIL. Programa de Aceleração do Crescimento: balanço 4 anos (2007-2010). Brasília: Ministério do Planejamento, 2010. 250 Roberto Véras de Oliveira BRESSER-PEREIRA, L. C. 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SUAPE UNDER CONSTRUCTION, UNSKILLED LABORERS IN STRUGGLE: new development and labor conflicts LA CONSTRUCTION DE SUAPE, DES OUVRIERS QUI LUTTENT: le nouveau développement et les conflits du travail Roberto Véras de Oliveira Roberto Véras de Oliveira Taking the labor and conflicts point of view, this article discusses the emergence of a new agenda for development in Brazil. Its focus is the construction worker protests and strikes at two of the Suape Port Industrial Complex’s main sites, the Abreu e Lima Refinery and the Suape Petrochemical Plant, in 2011 and 2012. Through the use of this approach we intend to comprehend the processes touched off by the conflicts, mediations, and negotiations, as well as what has been at stake with workers’ demands and also union, management and government discourse and practices. We ask ourselves if these mobilizations, besides giving them immediate gains, have given workers recognition as legitimate agents of social demands. We also ask to what degree such demands have become not only a target of public outcry but also a way of problematizing the terms that give sustenance to the new development discourse. Cet article examine l’émergence d’un nouveau programme de développement au Brésil dans l’optique du travail et de ses conflits. L’accent est mis sur les émeutes et les grèves des ouvriers qui travaillent dans la construction de deux des principales entreprises du Complexe Industriel Portuaire de Suape, la Raffinerie Abreu et Lima et l’entreprise pétrochimique Suape, au cours des années 2011 et 2012. Cette approche se veut d’analyser les processus déclenchés par les conflits, les médiations et les négociations et ce qui a été remis en question, en parallèle aux demandes des travailleurs ainsi que les discours et les pratiques des gouvernements, des entreprises et des syndicats. Nous nous demandons si ces mobilisations ont permis, au-delà des gains immédiats obtenus par les travailleurs, que ceux-ci soient reconnus comme les porteurs légitimes des revendications sociales. Et dans quelle mesure de telles revendications ne sont pas seulement l’objet d’une dénonciation publique mais représentent aussi une manière de remettre en cause les termes du nouveau discours sur le développement. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Development. Labor. Unionism. Civil MOTS-CLÉS: Développement. Travail. Syndicalisme. Construction civile. Suape. construction. Suape. Roberto Véras de Oliveira – Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). Pesquisador do CNPQ. Preferencialmente, orienta seus estudos e pesquisas para os campos da Sociologia do Trabalho e da Sociologia Política. Tem concentrado sua atenção (na forma de publicações, orientações e participação em eventos) sobre temas como sindicalismo, relações de trabalho, qualificação profissional, políticas públicas de trabalho, emprego e renda, economia solidária, diálogo social, cidadania, entre outros. É autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Sindicalismo e Democracia no Brasil – do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. São Paulo: Annablume, 2011. 252 A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” E A (NOVA) MORFOLOGIA DO TRABALHO Maria Aparecida de Moraes Silva* Lúcio Vasconcellos de Verçoza** Juliana Dourado Bueno*** DOSSIÊ Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno INTRODUÇÃO Os estudos sobre a produção açucareira no Brasil remontam ao início da colonização portuguesa no século XVI. De lá para cá, cronistas, pintores, biólogos, viajantes, literatos, sociólogos, economistas, historiadores, cineastas, inter allia, registraram suas análises e impressões sobre a vida social, política, cultural e econômica derivada dessa produção ao longo dos cinco séculos de história. Essa cultura, aliada à exploração de outros recursos naturais – pedras preciosas – formaram a base da colonização, que contribuiu para o processo de acumulação primitiva do capitalismo europeu, por meio, não somente da apropriação dos excedentes produzidos pela colônia, como, também, pela sus* Doutora em Sociologia. Professora livre-docente aposentada da UNESP. Professora visitante do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR. Rua Alvarenga Peixoto, 55 Ap/11. Parque Arnold Schimidt. Cep: 13566-582 São Carlos – São Paulo – São Paulo. [email protected]. ** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCAR. [email protected] *** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UFSCAR. [email protected] tentação do comércio de escravos. A face atual do Brasil, sobretudo desde o último meio século, vem sendo, em boa parte, matizada pelas gigantescas áreas cobertas com canade-açúcar, não mais denominada matéria-prima destinada à metrópole, mas commodity, destinada aos mercados globais, segundo a lógica da acumulação do capitalismo contemporâneo, no contexto do novo imperialismo, segundo Harvey (2004). Se, no passado colonial, os canaviais concentravamse na Zona da Mata nordestina, atualmente, a maioria deles se localiza na região Centro-Sul, sobretudo no território paulista, responsável por quase dois terços de toda a produção do país.1 São perto 1 Em 1997, foram exportadas 3.844.224 toneladas de açúcar. Dez anos depois, em 2007, este montante passou para 12.223.221, havendo um acréscimo de quase quatro vezes (IEA, 2009). Segundo dados do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), em 2012, houve acréscimo de 57,5% na quantidade de etanol exportada, passando de 1,57 para 2,48 milhões de toneladas. No que tange à produção, na safra de 2005-2006, foram 15.808.184.000 de litros e, em 2010-2011, este montante subiu para 25.780.404.000, portanto, havendo um acréscimo de quase 70%, num período de apenas cinco anos. Quanto à produtividade, segundo dados da UNICA (União da Indústria Canavieira), em 1976, era necessária uma tonelada de cana para produzir 45 litros de álcool. Em 2004, esse montante passa para 75 litros, 253 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 O objetivo deste texto é a análise das relações e condições de trabalho nos canaviais, resultantes do processo de reconfiguração do trabalho, em face do momento atual, caracterizado pela intensificação do processo de mecanização do corte de cana. Em função da rapidez das mudanças ocorridas no processo de trabalho, considera-se que estas relações de trabalho devam ser analisadas no contexto da imagem do “desenvolvimento sustentável” produzida pelas empresas sucroalcooleiras e pelo Estado brasileiro. A intensificação da exploração da força de trabalho no quadro de uma (nova) morfologia combina, de um lado, tecnologias altamente avançadas, e, de outro, aumento da desqualificação da força de trabalho. As reflexões procurarão trazer à superfície a realidade social escondida atrás da ideologia fabricada para sustentar essa atividade econômica. Visa-se a uma análise crítica da ideologia desenvolvimentista inerente a essa produção. A metodologia empregada baseia-se na história oral e observação direta nos canaviais paulistas e alagoanos. PALAVRAS-CHAVE: Relações de trabalho. Condições de trabalho. Capitalismo no campo. Cana-deaçúcar. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... de seis milhões de hectares distribuídos ao longo das bacias hidrográficas e das águas subterrâneas dos aquíferos que atravessam essa região. Se, no passado colonial, o açúcar era o produto fundamental, hoje, além dele, o etanol utilizado como combustível constitui-se, não somente em mercadoria, cuja finalidade é movimentar os automóveis flex fluel, como, também, na ideologia do combustível limpo, sustentável, que vem sendo paulatinamente fabricada pelo Estado, visando contemplar os interesses de capitais nacionais e internacionais em busca de lucros e apropriação da renda da terra (incluindo as águas).2 Trata-se, portanto, de um processo de territorialização do capital, cujas fronteiras estão delimitadas pelos recursos naturais – terra e água – e pela ação do Estado para garantir, não apenas a logística dessa produção – estradas, alcoodutos, portos –, como, também, os subsídios por meio de empréstimos vultosos para a instalação de usinas e financiamento da produção agrícola em geral (Xavier et al., 2012). E mais ainda. A criação de normativas institucionais para regular o mercado e as relações de trabalho, sobretudo na agricultura, analisada mais adiante. Na conferência Rio-92, oficializou-se a noção de “desenvolvimento sustentável”, definida no Relatório Brundtland, em 1987, como paradigma para o desenvolvimento socioeconômico aliado à conservação dos recursos naturais. O Estado brasileiro e outros países signatários da Agenda 21 Global se comprometeram a adotá-la como orientação para suas políticas de desenvolvimento (Teixeira, 2005, p. 53). Levando-se em conta os problemas advindos da expansão produtiva do capitalismo em várias partes do globo, vários estudos têm mostrado que as práticas relacionadas à havendo um aumento de 64% (www.unica.com.br acesso em 30/11/2012). Dentre os estados nordestinos, Alagoas é o maior produtor de cana-de-açúcar. Na safra de 2011/12, foram 27.705 milhões de toneladas; em São Paulo esse montante chegou a 304.230 milhões, segundo dados da UNICA. No que diz respeito ao conjunto do país, foram 551.215 milhões de toneladas (www.unica.com.br. Acesso em 03/04/2013). 2 Para produzir um litro de etanol são necessários 13 litros de água (considerando-se apenas a parte industrial do processo produtivo). depredação ambiental se chocam com as normativas dessa Agenda institucional. Nos limites deste artigo, não nos cabe adentrar o debate sobre o conceito e ou noção de “desenvolvimento sustentável”. Teixeira (2005) faz um balanço desse debate, ressaltando o confronto entre os ambientalistas e os chamados desenvolvimentistas, apoiados na lógica do crescimento econômico, que veem a conservação ambiental e a sustentabilidade como obstáculos. Por outro lado, há autores que criticam o conceito de “desenvolvimento sustentável”. Segundo Leis (1999, p. 159, apud Teixeira, p. 54), o conceito de “desenvolvimento sustentável” faz parte de um processo de “[...] adoção oportunista e instrumental [...]” por parte dos estados e das empresas, de novos valores trazidos pelo ambientalismo, com o objetivo de garantir a continuidade do sistema produtivo. Nesse caso, haveria um processo de cooptação das noções do ambientalismo para justificar a lógica produtivista atual. Para além da noção de “desenvolvimento sustentável”, o discurso do desenvolvimento, em sua concepção mais ampla, tem pautado a discussão sobre a agricultura em diferentes momentos histórico-sociais no Brasil e também no contexto internacional. No Brasil, alguns setores da agricultura foram apresentados como verdadeiros motores do desenvolvimento: isso ocorreu no período da chamada “agricultura moderna”, e também a partir da década de 1980, com a ascensão da “agroindústria” e dos Complexos Agroindustriais – CAI. Estes podem ser caracterizados pela expansão da participação do capital internacional, participação do Estado nas políticas de terras, inovações tecnológicas, pesquisas e implantação de infraestrutura local e presença de grandes grupos empresariais e empresas multinacionais (Heredia et al., 2010). No que diz respeito, especificamente, à agroindústria canavieira, o discurso do desenvolvimento promovido pelo setor foi e tem sido bastante acentuado. Silva et al. (2013) demonstram que o Estado tem um papel fundamental na manutenção desse discurso, na garantia dos padrões de acumulação dos capitais nacionais e internaci- 254 onais e na construção de uma nova “ideologia do etanol”. O Estado conta com a colaboração de empresários, representantes dos trabalhadores e meios de comunicação para difundir essa ideologia. A nova imagem revela os números gigantescos da produção, mas esconde a degradação socioambiental e as formas de superexploração dos trabalhadores.3 No que tange ao aspecto político, o agribusiness tem sido o símbolo do desenvolvimento econômico do país, por meio do saldo positivo do comércio exterior, graças ao aumento das exportações, sobretudo de produtos agrícolas, que vem garantindo, especialmente nos últimos anos, o saldo positivo da balança comercial do país.4 É importante destacar que a lógica desenvolvimentista, ao evidenciar as questões ambientais, procura apagar a situação laboral, na medida em que a tecnologia pressupõe o emprego de máquinas tão somente. Essa evidência se manifesta no caso brasileiro nos sítios das empresas canavieiras, nos quais as imagens veiculadas são as das grandes máquinas colheitadeiras, onde os operadores das mesmas não aparecem, bem como os locais onde estão os cortadores manuais, cobertos pela fuligem da cana queimada. Por outro lado, tais imagens são ancoradas em normativas institucionais que asseguram ou a invisibilidade dos trabalhadores ou a visibilidade dos mesmos inseridos em relações laborais “sustentáveis” soci3 A construção da ideologia carregada de elementos simbólicos foi analisada por Burke (2009), referenciando-se à fabricação da imagem do poder absoluto do rei Luiz XIV. Em artigo recente, Bruno (2012) utiliza essa noção para analisar o habitus das elites agrárias do Brasil por meio da propaganda midiática SOU AGRO. A “fabricação dessa imagem” está presente na letra do samba-enredo da campeã do carnaval do Rio de Janeiro de 2013, Vila Izabel, patrocinada pela BASF, uma das maiores vendedoras de agrotóxicos no Brasil. A homenagem aos agricultores (familiares?) é sem dúvida uma forma de confundir e dissimular a maneira de produzir das grandes empresas do agribusiness. A imagem simbiótica do samba-agricultura é mais uma empreitada das elites para assegurar suas vendas no exterior, além de cooptar um dos traços mais importantes da cultura popular. 4 Em recente artigo, Roberto Rodrigues (ministro da Agricultura do governo Lula) defendendo a melhoria dos portos para escoamento dos grãos, sobretudo da soja, afirmou que a exportação do agronegócio passou de 24,8 bilhões de dólares em 2002 para 95,2 em 2012, quase quatro vezes mais. Sua tese, “meu porto, minha vida” é a de que essa melhoria traria benefícios não somente para os produtores como também para todos os brasileiros (Folha de S. Paulo Tendências/Debates, 29 de mar. 2013, p.3). al e ambientalmente. Quanto à degradação socioambiental, muitos estudiosos já apontaram os efeitos negativos desse monocultivo (Szmrecsány, 1994; Andrade, 2009; Thomaz Jr, 2009; Silva e Martins, 2010). Além dos males causados pela queimada de cana (Bosso, 2006; Ribeiro, 2008; Ribeiro, Pesqueiro, 2010, dentre outros), há aqueles relacionados a outras fases do processo produtivo da cana, sem contar que os milhares de veículos empregados nessa atividade – caminhões, tratores, máquinas colhedeiras, ônibus para o transporte dos trabalhadores etc. – são todos movidos à energia derivada dos combustíveis fósseis. Ainda que tenha havido o crescimento da mecanização e a proibição das queimadas a partir de 2017 (no estado de São Paulo),5 nota-se que essa prática ainda continua, pois, ao queimar a palha da cana, diminui-se em 50% a quantidade de água do caule, resultando em menores custos advindos do transporte e das operações industriais da transformação da cana em açúcar ou etanol. Outra fonte de poluição reporta-se à utilização do resíduo gerado no processo de destilação do etanol – vinhoto ou vinhaça – como fertilizante. A cada litro de etanol, são produzidos de 10 a 18 litros de vinhoto, espalhados nos canaviais sob o sistema de fertirrigação. Estudos apontam que o poder poluente desse resíduo chega a ser cem vezes maior do que o esgoto doméstico, além dos danos provocados pela alta temperatura ao sair dos destiladores (70 a 80 graus) que, ao ser lançado no solo, torna-se prejudicial à fauna, flora, microfauna, além de contaminar as águas subterrâneas, quando utilizado em grandes quantidades e, sobretudo, durante as chuvas (Plácido Jr. et al., 2007; Xavier et al., 2012, p. 44). A parte que não é utilizada como fertilizante é depositada diretamente no solo. Em décadas passadas, esse subproduto era lançado nos rios, provocando o desaparecimento de muitas espécies de pei5 Em junho de 2007, o governo do estado de São Paulo firmou com a UNICA o Protocolo Agroambiental visando ao fim das queimadas até o ano de 2014 nas áreas mecanizáveis e 2017 nas não mecanizáveis. Houve a adesão de 127 usinas e 23 associações de fornecedores de cana. Disponível em: http://homologia.ambiente.sp. gov.br/estanolverde/listas.asp. Acesso em 28 de mar. 2010. 255 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... xes, sobretudo no estado de São Paulo. No intuito de desfazer o mito do etanol como combustível limpo, o estudo de Cardoso et al. (2008) revela que o nitrogênio ativo com atividade química e biológica possui potencial para modificar as propriedades físicas do ambiente ou da biota, pelos seguintes mecanismos: a) arraste pela água de chuva do nitrogênio contido nos adubos; b) ação de microrganismos no solo, transformando parte do adubo em gases; c) produção de nitrogênio ativo por bactérias existentes em raízes de leguminosas, que transforma o nitrogênio inerte do ar em nitrogênio ativo; d) formação de gases nitrogenados como produto da combustão de qualquer combustível. As considerações precedentes compõem um dos retratos da produção sucroenergética brasileira e visam desmistificar a imagem de energia limpa, sustentável, exportada para o mundo globalizado e também para os consumidores internos. Outro aspecto da insustentabilidade dessa produção, pouco levada em conta em muitos estudos, reporta-se à acumulação por espoliação por meio da ocupação das terras. A fim de aprofundar nossas reflexões sobre o conceito de acumulação por espoliação, abordaremos, nos próximos itens, o caso recente da ocupação de terras pela agroindústria canavieira alagoana e a destruição das florestas de babaçu no Maranhão. ACUMULAÇÃO POR ESPOLIAÇÃO NAS TERRAS ALAGOANAS Segundo Lima (2006, p. 101), a evolução da agroindústria canavieira alagoana, entre o período de construção do Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA até 1990 está constituída por três etapas: “[...] a da consolidação do parque usineiro (1930-1950), a do processo de expansão e modernização (1950-1975) e a de um segundo surto expansivo ligado ao Proálcool (1975-1989)”. De acordo com o mesmo autor, no que tange a todo esse longo período, a decisão de expandir as lavouras de cana para os tabuleiros (na década de 1950) foi o fato “mais importante para moldar a estrutura produtiva alagoana” (idem, p.101). Mas o que são os tabuleiros? Por que eles foram tão decisivos para os rumos da agroindústria canavieira alagoana? O geógrafo Manuel Correia de Andrade (1959) descreve os tabuleiros como zonas que se estendem desde o pediplano de Arapiraca (município localizado no Agreste Alagoano) até as formações do litoral, possuindo em Alagoas muito maior largura do que em Pernambuco. “Acha-se inclinada, grosso modo, em direção ao mar, alcançando quase 200m de altitude a Oeste de Arapiraca, para descer até os 40 ou 50m nas proximidades da praia onde forma abruptas falésias” (p. 24). A subida dos canaviais alagoanos para os tabuleiros (até o início da década de 1950 os canaviais eram tradicionalmente concentrados nas várzeas dos vales úmidos) está relacionada a um conjunto de fatores que acarreta economia para a usina, como: “por ser plano, é o tabuleiro menos atingido pela erosão, facilitando, por conseguinte, a mecanização, o tratamento e a colheita da lavoura [...]; nos tabuleiros as canas suportam melhor a estiagem, são mais uniformes e menos sujeitas a doenças.” (Idem, ibidem, p. 56). A iniciativa pioneira foi da usina Sinimbu que, por meio de uma adubação adequada, logrou êxito na incorporação dos tabuleiros (Andrade, 1959 e 1994; Loureiro, 1969; Sant’Ana, 1970). Essa experiência bem sucedida (do ponto de vista do usineiro) foi seguida por outras usinas do estado. Assim, os tabuleiros possibilitaram uma drástica expansão da fronteira agrícola da cana, sendo hoje a principal área produtora dessa cultura em Alagoas. Apesar de as áreas dos tabuleiros se estenderem do Rio Grande do Norte ao estado de Sergipe (Andrade, 1994), elas se destacam em Alagoas por serem, em geral, mais largas e compridas, quando comparadas às dos outros estados. No entanto, elas não são homogêneas: ao sul de Alagoas, os tabuleiros se caracterizam por sua maior dilatação de largura e profundidade, enquanto ao norte, são menos extensos (Lima, 2006). Por isso, atualmente a maior concentração de usinas de Alagoas está na microrregião dos tabuleiros de São Miguel dos 256 Campos, ao sul do estado.6 Consideramos que essa breve contextualização do papel dos tabuleiros na expansão dos canaviais seja fundamental para compreendermos por que, atualmente, Alagoas é líder nordestina de produção dessa matéria-prima. Todavia, é impossível compreender tal liderança se nos limitarmos apenas às potencialidades dos aspectos geográficos. Por trás do período “de expansão e modernização” (Lima, 2006) dessa agroindústria em Alagoas, estão, dentre múltiplos aspectos, vários episódios de expropriação. Comecemos investigando as expropriações dos pequenos produtores. No livro Açúcar: notas e comentários, Osman Loureiro, que foi usineiro e ex-governador do Estado, comete um “ato falho” ao revelar aquilo que ele próprio queria esconder. Vejamos o seguinte trecho: A esta primeira primazia quanto à posse de trecho geográfico especial, é preciso adir-se a zona dos chamados tabuleiros [...] esses altiplanos, tidos e havidos de velha data como impróprios à cultura da cana, e apenas admitindo as pequenas lavouras de subsistência, como a mandioca, a batata e algumas frutas, serviam, entretanto, por igual, para a grande lavoura. Tudo era contemperá-los [sic] com adubação adequada. As experiências, por eloqüentes, tiveram seguidores. Em breve, vastos canaviais começaram a desertar-se por esses chapadões, outrora relegados por inadequados, e hoje avocados ao serviço de nossa cultura maior. [...] Para quem atravessou essas solidões semidesérticas e hoje entresachadas [sic] de vigorosos canaviais, o coração se lhe desaperta na antevisão do futuro que nos aguarda (Loureiro, 1969, p. 244 e 245, grifos nossos). Nessa passagem, Loureiro descreve os tabuleiros de duas formas: a primeira é como área das pequenas lavouras de subsistência, enquanto a segunda é como espaço das solidões semidesérticas. Ora, se esses espaços admitiam as pequenas lavouras de subsistência como poderiam ser solidões semidesérticas? Então, era insignificante o número de pequenos produtores nessas áreas? Essa questão é de suma importância, pois, se aceitar6 A microrregião dos Tabuleiros de São Miguel dos Campos é formada pelos seguintes municípios: São Miguel dos Campos, Roteiro, Jequiá da Praia, Boca da Mata, Campo Alegre, Anadia, Junqueiro, Teotônio Vilela e Coruripe. mos a premissa das solidões semidesérticas, a expropriação dos pequenos produtores nessas áreas teria sido quase nula. Por outro lado, recusando essa premissa – e adotando a de que seriam áreas ocupadas por pequenas lavouras de subsistência –, a vertiginosa expansão da cana nos tabuleiros só poderia ter ocorrido por meio de um “xeque mate” nos pequenos produtores. Heredia (2008) foi a pesquisadora que se aprofundou de forma mais minuciosa nessa temática, em estudo realizado no fim da década de 1970 e início dos anos 1980, que incluía pesquisas de campo em parte da área que deu origem ao município de Teotônio Vilela (situado na microrregião dos tabuleiros de São Miguel dos Campos). A autora mostra que os pequenos produtores, inclusive os proprietários, faziam uso dessas áreas situadas fora da grande propriedade, denominando-as terras de “hereu” ou “terras sem donos”, onde plantavam para a sua subsistência e essa prática passou para as distintas gerações (Heredia, 2008, p. 60). Nessa pesquisa, Heredia conseguiu reunir diversos depoimentos, além de outras evidências que comprovam que a expansão da cana para os tabuleiros só foi possível por meio da expropriação dos pequenos produtores.7 Dentre os mecanismos de expropriação identificados pela autora, destacamos os seguintes: 1) boatos de que os usineiros tomariam as terras daqueles que não tinham o documento que comprovasse a posse resultaram em vendas de terras por um preço muito 7 Conforme o Censo agrícola de 1920, no município de Coruripe (que faz fronteira com Teotônio Vilela), as lavouras do coco (1.217 ha.), de feijão, milho e mandioca (1.102 ha.) ocupavam uma área plantada superior à da cana-de-açúcar (863 ha.) (Heredia, 1988, p. 49). Noventa anos após o Censo de 1920, a área do plantio de feijão, milho e mandioca foi reduzida pela metade (restando, atualmente, o equivalente a 650 ha, segundo levantamento das lavouras do IBGE em 2009), enquanto a da cana-de-açúcar cresceu vertiginosamente, de 863ha para 52.238 ha. No tocante à produção agrícola do município de Teotônio Vilela, segundo o levantamento do IBGE sobre as lavouras (realizado 2009), a plantação de cana-deaçúcar é líder, com aproximadamente 1 milhão de toneladas de cana colhidas numa área plantada de 15.500 hectares. A esmagadora liderança só se torna evidente quando comparamos esses números com os dos cultivos de outros produtos: o que mais se aproxima da cana-de-açúcar é o do feijão, que ocupa apenas 200 hectares de área plantada, seguida do milho, com 100 hectares e da mandioca, com inexpressivos 55 hectares de área plantada. 257 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... abaixo do valor de mercado; 2) as usinas compravam o lote de um herdeiro, mas, por fim, registravam como se a compra fosse da área total de todos os herdeiros; 3) aqueles que não vendiam sua terra, muitas vezes ficavam cercados por grandes propriedades e sofriam diversos tipos de pressão, que iam desde fechamento da saída da propriedade, até a invasão paulatina de parte de sua terra (Idem, 1988 e 2008). Essas formas fraudulentas de acumulação e expropriação remetem ao conceito de “acumulação por espoliação,” proposto por Harvey (2004, p. 120-121), ao analisar as formas contemporâneas de acumulação. Para este autor, traços característicos daquelas formas de acumulação, descritas como restritas ao período da “Acumulação Primitiva do Capital” (Marx, 1985), não se extinguiriam ao longo da consolidação e expansão mundial do capitalismo, muito pelo contrário: formas de acumulação baseadas no uso de fraudes e da violência seriam intrínsecas ao capitalismo. Mecanismos de expropriação e acumulação muito semelhantes aos descritos por Heredia também ocorreram (e ainda ocorrem) em nível nacional. O período estudado por Heredia foi marcado, nacionalmente, pelo processo de “modernização trágica” (Silva, 1999) da agricultura brasileira, que intensificou diversas formas de expropriação de pequenos produtores e alterou as relações de trabalho. Como demonstrou Silva (1999), esse processo não pode ser entendido somente como impulsionado pela lógica da acumulação do capital agroindustrial. O papel do Estado, por exemplo, foi fundamental para a sua consolidação. Por meio da análise do Estatuto da Terra (ET) e do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), a autora demonstra como estes mecanismos, que aparentemente poderiam representar algum avanço para os trabalhadores, no fundo regulamentaram a intensificação da exploração da força de trabalho (Idem). Na análise do processo de expropriação dos pequenos produtores alagoanos também não podemos negligenciar o papel desempenhado pelo Estado. A incorporação das terras dos tabuleiros pelas usinas recebeu o estímulo direto do Estado, por meio do IAA e de diversos programas8 que, naquele momento, objetivava elevar a produtividade do setor e reduzir os custos da produção. Nesse contexto, foram adotadas diversas medidas que acabaram beneficiando as principais agroindústrias canavieiras do estado, dentre estas se destacam: financiamento público para a compra de terras, melhoramento genético da cana e isenção de impostos para importação de maquinários (Heredia, 2008; Lima, 2006; Mello, 2002). Essa conjuntura possibilitou uma vertiginosa expansão dos canaviais alagoanos, sobretudo na microrregião dos tabuleiros de São Miguel dos Campos.9 No momento presente, a invasão da canade-açúcar nas áreas dos tabuleiros está consolidada. O fato de a atual usina líder nordestina em produção de cana, situada no município de Coruripe, ter 90% de seus canaviais em terras de tabuleiros10 ilustra bem esse processo. Mas engana-se quem imagina que, após a expropriação dos tabuleiros, tenha acabado o processo de expropriação nos canaviais alagoanos, pois os trabalhadores continuam sendo expropriados pelas usinas – seja em canaviais das terras planas, das várzeas encharcadiças, ou das encostas de grotas e serras. Nessa agroindústria, o trabalho não pago assume taxas altíssimas. A acumulação por espoliação não se realiza, apenas, quando a terra é espoliada do pequeno produtor, mas continua em cada metro cortado subtraído do salário do cortador de cana, em cada caso de “canguru” ou “birôla”,11 decorrente do excesso de trabalho para atingir as metas 8 Dentre os principais programas do Estado nesse período estão: 1) Plano de Expansão da Agroindústria Canavieira (1963); 2) Programa de Racionalização de Agroindústria Canavieira (1971); 3) Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-açúcar (1971); 4) Programa Nacional do Álcool (1975). Para uma leitura detalhada dessas políticas, ver Lima (1998). 9 É válido ressaltar que essa expansão também provocou destruição da vegetação nativa dos tabuleiros. 10 Conforme depoimento do chefe do setor de recursos humanos da referida usina. Entrevista realizada no dia 21 de março de 2013, no município de Coruripe/AL. 11 “Canguru” e “birôla” são expressões regionais cunhadas pelos canavieiros em Alagoas e São Paulo, respectivamente. Significam o momento em que, em razão dos altos níveis de sudorese, provocados pelo calor, eles são acometidos por câimbras por todo o corpo, podendo, até mesmo, levá-los, em alguns casos, à morte, como ocorreu a 23 trabalhadores no período de 2004 a 2011 em São Paulo. 258 mínimas diárias de produtividade, em cada traba- dos ao comércio, agricultura e indústria no Norlhador demitido por ter a sua força de trabalho deste. No Maranhão, esta empresa possui extendesgastada prematuramente. sas áreas com pecuária. Os camponeses não resistiram a este ato de violência, pois, caso contrário, seriam mortos, seACUMULAÇÃO POR ESPOLIAÇÃO NAS gundo vários depoimentos. Muitos ainda não reFLORESTAS DE BABAÇU MARANHENSES E A correram à Justiça em razão do medo de represáliTERRITORIALIZAÇÃO DO CAPITAL as por parte da empresa expropriadora. Ademais da expropriação, a empresa destruiu as florestas Outro exemplo de acumulação por espolia- de babaçu por meio de máquinas e do fogo. Em ção, embora fora das fronteiras geográficas da pro- seguida, foi semeado capim para o gado. O fogo dução canavieira, porém dela resultante, reporta- representa o apagamento dos vestígios, das marse à destruição das florestas de babaçu no sudoes- cas da cultura e do modo de vida. Por esta razão, te maranhense. Em pesquisa levada a cabo nessa trata-se de uma prática empregada pelos pistoleiros região em 2007,12 constatou-se um processo de sob o mando das grandes empresas e dos latifunexpropriação de camponeses que aí viviam na con- diários. Quanto aos camponeses expropriados de dição de ocupantes, rendeiros e moradores, por outra fazenda, denominada Campestre, de 40 mil meio de toda sorte de violência. Ademais da coleta hectares, os depoimentos revelam que a violência, dos depoimentos com homens e mulheres (70 além da destruição material e até mesmo impingindo depoentes), foram analisados 85 processos jurídi- a morte aos camponeses, produz-lhes o medo, cuja cos movidos por camponeses expulsos de suas durabilidade impede a ação de resistência, em muiterras por meio do uso da violência e ameaças de tos casos. No caso dessa fazenda, em razão do momorte, muitos dos quais passaram a viver nas pe- vimento de resistência, uma área de 14.402 hectariferias de Timbiras e Codó, cidades maranhenses, res foi desapropriada pelo INCRA e o Assentamenhoje fornecedoras de mão de obra para as usinas to em 2007 estava se iniciando (Silva, 2010). de São Paulo. Analisando os processos jurídicos Esses fatos são fundamentais para a commovidos por 85 camponeses expropriados em 2004 preensão do processo de acumulação por espolianos municípios de Coroatá, Timbiras e Codó, cons- ção, tendo em vista que a maioria dos camponeses tatou-se que essas famílias eram constituídas de expropriados se transforma, de um dia para oumoradores que pagavam a renda em produto ao tro, em migrantes e cortadores de cana em São Paudono da terra. Plantavam arroz, feijão, milho, man- lo. Por outro lado, as áreas, antes destinadas à pedioca e frutas. Além disso, viviam da economia cuária do estado de São Paulo, em virtude do auextrativista do coco babaçu, atividade essencial- mento da renda da terra, são vendidas ou arrendamente desenvolvida pelas mulheres. Viviam em das para a produção de cana, por meio do movicasas de taipa cobertas de folhas da palmeira do mento de territorialização do capital, no qual “[...] babaçu. No ano de 2004, homens armados desalo- o gado paulista sobe, enquanto os homens do norjaram 100 famílias da Fazenda São Raimundo, deste descem” (Silva, p. 77-78, 2008). No que tange, ainda, ao processo de pertencente a José Ribamar Thomé. Os homens eram mandantes de Ricardo Reis Vieira, que, por territorialização, observa-se que, com a instalação intermédio de escrituras falsas, afirmava ser o legí- de usinas, sobreleva-se o preço das terras, e até timo proprietário da terra. Segundo relatos de cam- mesmo a impossibilidade de muitos pequenos poneses, a queima das casas foi feita pela Empresa proprietários se dedicarem a outras atividades agrído Grupo Maratá, que possui negócios relaciona- colas, forçando-os ao arrendamento ou à venda das mesmas. Em estudo recente, Melo (2012) consta12 Pesquisa financiada pelo CNPq e coordenada por Maria Aparecida de Moraes Silva. tou que muitos sitiantes da região nordeste do es- 259 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... tado são obrigados a isso, em virtude de problemas como a proliferação da “mosca do estábulo”; o abandono da manutenção das estradas rurais pela usina durante os períodos de entressafra; os problemas causados às pequenas propriedades vizinhas às plantações de cana, cujos pastos são afetados tanto pelo depósito de poeira como do agroquímico que é aplicado nos canaviais para maturação do cultivo e que, ao atingir os pastos, tem o efeito de secá-los. Com o pasto comprometido, o gado perdendo peso e diminuindo os rendimentos obtidos com o leite ou com a carne, muitos sitiantes se viram forçados a arrendar sua pequena propriedade. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 A (NOVA) MORFOLOGIA DO TRABALHO As reflexões à luz da crítica do “desenvolvimento sustentável” da produção sucroenergética brasileira, a partir de nossos achados de pesquisa em São Paulo e Alagoas, conduzem-nos, igualmente, a outro viés crítico referente às relações de trabalho. Para esse intento, incorporamos alguns estudos realizados em outros países, a fim de aprofundar a compreensão da lógica da acumulação do capitalismo contemporâneo globalizado. Ao cotejarmos a realidade brasileira com aquela de outros países, observamos que há vários pontos em comum, ainda que nesses últimos os trabalhadores sejam imigrantes, portanto, tratase da mobilidade internacional do trabalho. Tanto em países da América Latina, tais como Argentina e México, como na Espanha, observa-se que a reestruturação produtiva no campo seguiu a via da flexibilização produtiva e das relações de trabalho (De La Garça, 2000). Há a mesma lógica imposta pelo modelo agroalimentar globalizado, onde as agriculturas intensivas ou enclaves de exportação utilizam mão de obra migrante ou imigrante, por meio de contratos temporários regulados pelos respectivos Estados (Flores, 2010). No que tange às condições de trabalho, verificam-se os mesmos traços: precarização, salários baixos, flexiblização, etnificação, discriminação de gênero, precarieda- de das condições de moradia (Grammont; Flores, 2010). Há, assim, impedimento da vida em família, haja vista que o contrato é individual, além do controle policial exercido sobre os imigrantes para que retornem aos seus lugares de origem no final do contrato. O dossiê da Revista Regiones (2012), publicada na Espanha, sob o título Mercados de trabajo en la agricultura mediterrânea, reúne artigos que tratam das questões acima analisadas nas plantações de hortaliças e morango nas regiões de Murcia e Andalucía. A produção é destinada à exportação para os demais países europeus. Empregam-se basicamente imigrantes – as mulheres são em maioria – provenientes do Leste Europeu, da África Central, Marrocos, Equador e Bolívia. As relações de trabalho nessas plantações, segundo os autores, segue o modelo californiano, isto é, precariedade combinada ao avanço tecnológico e à reestruturação produtiva (Cánovas, 2012, p. 1620). Essas imigrações são ordenadas e as contratações em geral são feitas na origem. O governo espanhol, visando resolver os problemas da demanda de mão de obra, em 2000, implantou o sistema de Contratação na Origem, pelo qual os países da Europa do leste eram os principais fornecedores de trabalhadores para a região de Andalucía. Em 2007, os maiores fluxos eram provenientes de Marrocos. A investigadora Reigada (2012, p. 22-26) mostra que a preferência por mulheres marroquinas deu-se em virtude de se tratar de uma força de trabalho mais barata. No entanto, no período de 2008 a 2010, em razão da crise econômica na Espanha e o regresso de famílias andaluzes ao campo, houve a diminuição da presença do número de imigrantes marroquinos e subsaarianos. Para os empresários, governo e representantes sindicais, esse modelo de imigração ordenada e temporária é o ideal, pois evita a presença dos ilegais e resolve a questão da demanda de força de trabalho nessas plantações. A política estatal de Contratação na Origem é uma forma evidente de controlar o quantum de trabalhadores necessários à execução de tarefas temporárias, por meio de critérios seletivos como gê- 260 nero, etnia, idade e, também, garantir o retorno ao país de origem após o final dos contratos de trabalho. No caso das mulheres, há a preferência por aquelas com filhos, pois o retorno ao país de origem é mais garantido, em razão do reencontro com os filhos, vis-a-vis os empresários espanhóis. Reigada (2012, p. 25) critica a imagem e o discurso dos empresários de que a Contratação na Origem, com a obrigatoriedade de firmar o compromisso de retorno, se apresente sob uma “gestão ética e humana da imigração”. Por outro lado, a pesquisa de Rodriguez (2011) revela o papel de outro agente importante neste processo de regulação, o sindicato. Nas plantações de frutas catalãs, o sindicato agrícola Unió de Pagesos é o responsável pelo recrutamento de trabalhadores imigrantes na origem e também pelo controle despótico exercido sobre os mesmos nos alojamentos nas áreas agrícolas da Catalunha. A autora, baseando-se nas reflexões foucaultianas, desenvolveu uma singular pesquisa etnográfica nos alojamentos, concluindo que os encarregados, nomeados pelo sindicato para exercerem o controle e a disciplina, assemelham-se aos capatazes de escravos da época da Roma antiga. Na verdade, o ajuntamento dos imigrantes nos alojamentos cria as condições para o exercício do poder coletivo sobre eles, tornando-os dóceis e domesticados para a aceitação das regras impostas pelos empresários. Os alojamentos se assemelham às prisões, onde ocorre a “gestão fordista dos homens”, produzida pelo Sindicato. Essa autora se refere ao alojamento como exemplo de Instituição Total descrita por Goffman.13 Para aqueles que resistem, a única saída é a fuga, transformando-se em ilegais, sujeitos à perseguição policial. Caso sejam aprisionados, antes de serem extraditados para seus países de origem, são submetidos às leis do estatuto do estrangeiro irregular, pelas quais são enviados a tra13 A análise dos alojamentos como forma de controle e disciplina da força de trabalho no tempo de trabalho e de não trabalho foi realizada por Menezes (2002) para o caso dos trabalhadores migrantes do Estado da Paraíba em usinas do Estado de Pernambuco. Análise similar foi elaborada por Cover (2011) para alojamentos de trabalhadores migrantes paraibanos em usinas da Região de Campinas e Piracicaba, Estado de São Paulo. balhos forçados nos setores produtivos menos rentáveis da economia. Assim, essas práticas, aprovadas pelo Parlamento Europeu, resultam da debilidade do estado Social e Democrático de Direito imperante na Espanha. Com isso, o Estado elimina a figura do estrangeiro nômade, que circulava em busca de trabalho nos municípios frutícolas, cerceando o direito de ir e vir consagrado na Constituição burguesa desde a Revolução Francesa nos finais do século XVIII. Cada vez mais essas normativas vão se configurando como um fenômeno global. Outro país onde a regulação das relações de trabalho pelo estado tem sido posta em prática nas últimas décadas é o México. Vários programas foram assinados entre os governos do México, EUA e Canadá, tais como: H2-A (entre México e EUA); o Programa de Trabalhadores Agrícolas Temporários – PTAT –, firmado entre México e Canadá em 1974 (Binford et. al., 2004). Contrariamente ao que ocorre com as migrações desreguladas internas e as indocumentadas aos EUA, as migrações para o Canadá são estritamente reguladas para impedir desajustes entre oferta e procura de mão de obra. Diferentemente do Programa Bracero (1942-1964) entre México e EUA, cujas falhas ocorreram em razão da deserção dos trabalhadores, o Programa com o Canadá possui as seguintes características: retorno da maioria dos imigrantes a seus locais de origem; provimento da agricultura canadense de mão de obra barata, flexível e temporária (Quintana, 2003, p. 1). Trata-se, portanto, de uma imigração controlada e temporária, cujo crescimento foi expressivo com o passar dos anos. Esse mercado de trabalho não somente é regulado quantitativamente, como, também, por meio de critérios seletivos relativos ao gênero e etnia. As mulheres viúvas e mães solteiras são as preferidas pelos empresários canadenses, sem contar a discriminação que homens e mulheres sofrem pelo fato de desconhecerem os idiomas francês ou inglês e por não serem brancos. O processo de trabalho é rigorosamente controlado; as condições de trabalho são marcadas pelo desgaste físico em razão da postura corporal, pois recolhem o morango agachadas ou sentadas 261 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... no chão durante jornadas de 10 a 12 horas por dia. Nos alojamentos, há o controle de hábitos, moral e sexualidade (Quintana, 2006). Após o trabalho de três a cinco meses, os (as) trabalhadores (as) são obrigados (as) a retornar aos seus locais de origem para, em seguida, imigrarem no ano seguinte, configurando-se, assim, a imigração permanentemente temporária. Em razão do tempo de duração desse fenômeno, há, por parte dos empresários, a preferência pelos (as) mesmos (as) trabalhadores (as), cujas condutas lhes são condizentes, selecionando-os (as) pelos respectivos nomes. Esse é mais um fator para a garantia da oferta de trabalho, segundo suas necessidades, sem, contudo, arcarem com os custos de reprodução dessa força de trabalho, haja vista que esses homens e mulheres não possuem os mesmos direitos sociais e laborais vigentes no Canadá. Flores (2008) mostra que a ação sindical é praticamente nula no processo migratório no México. Ademais, no mesmo estudo, a autora questiona a existência do trabalho decente no México, mostrando, ao contrário, que lá predominam traços de vulnerabilidade, precarização e eterna circulação nacional e internacional de trabalhadores para os enclaves agroalimentares globais. Outros autores têm demonstrado que o modelo de agricultura intensiva de exportação continua sendo considerado como elemento de desenvolvimento e modernização (Ramirez e Olaizola, 2012, p. 5), ao mesmo tempo em que oculta as transformações nas cadeias agrícolas globais e suas consequências em diferentes âmbitos: a estrutura do mercado de trabalho, a relação com o território, os movimentos migratórios e as formas de organização da vida social. As referências, ainda que incompletas, da realidade laboral de outros países, reforçam o argumento de que a lógica da acumulação do capitalismo contemporâneo é a mesma nos diferentes países, ainda que as particularidades históricas sejam diferentes. Assim sendo, notamos que o princípio da contratação na origem dos trabalhadores migrantes é fundamental para garantir a força de trabalho imigrante ou migrante nos enclaves produtivos, com o aval dos Estados. No caso brasileiro, a normativa institucional que rege a contratação na origem é o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições do Trabalho na Cana de Açúcar, firmado em 2009 pelo governo federal, representantes dos trabalhadores rurais e das usinas. Este documento revela que, nos canaviais brasileiros, se estabelece o controle do mercado de trabalho e da gestão das relações de trabalho pelo estado e pelas empresas, consubstanciando-se o declínio do poder sindical. Pelo Compromisso, a fiscalização das relações de trabalho cabe às próprias empresas, retirando dos representantes dos trabalhadores essa função, haja vista que, sequer podem adentrar os locais de trabalho sem credenciamento ou prévia autorização dos patrões, buscando soluções conjuntas para possíveis problemas. Consubstancia-se, assim, o rearranjo das relações de força e dos conflitos, caracterizado não somente pelo enfraquecimento do poder dos sindicatos, mas, também, pela desconstrução dos conflitos de classe, agora tratados em mesas de diálogos e de negociações tripartites. Ao invés da verticalização, observa-se a horizontalidade das relações de classe, por intermédio da fabricação de novas matrizes discursivas e novas práticas. E mais ainda: esse “modelo” horizontal deveria servir de exemplo para outros países da América Latina produtores de açúcar e etanol. O item referente à contratação na origem corrobora o controle do mercado laboral pelas empresas e impede que as famílias dos trabalhadores também migrem, posto que o contrato é individual. Após serem selecionados, os trabalhadores são transportados pelas usinas e destinados aos alojamentos (nas áreas da cana) ou nas chamadas “casas da usina” (nas cidades), onde a presença das famílias é proibida. Uma vez apresentado o debate sobre as relações de trabalho no contexto da agricultura globalizada, retomaremos o caso brasileiro para dar visibilidade aos trabalhos desenvolvidos em diversas frentes nos canaviais paulistas e alagoanos. Tanto o modelo de agricultura intensiva de exportação, como a nova “ideologia do etanol” brasilei- 262 Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno Lúcio: Pensando no tema do corte manual, a gente vê que cada vez tem menos cortadores de cana... Cleiton:14 A tendência é acabar. Acabar não. Ano que vem, provavelmente, a maioria das usinas estarão 100% mecanizadas. Nós vamos ser mesmo uns dos que vai estar. Ou até a partir de agosto, 100% mecanizado (...). A tendência é essa, a mão de obra está muito difícil e caro de se trabalhar. Qualquer coisinha o pessoal faz greve aqui, greve ali... E outra coisa, tem que respeitar as NRs 31,15 as leis trabalhistas... Então hoje é mecanização. E outro fato: não vai poder queimar. Pode queimar só as canas que você já tinha antiga. Você faz uma programação, manda pra Secretaria do Meio Ambiente, pede autorização pra queimar. Nós não fazemos nada sem autorização do Meio Ambiente. Nada. Tem que pedir antecipada a autorização com 72 horas, eles liberam, você tem que ver temperatura, umidade relativa do ar... Então é uma coisa bem criteriosa (Entrevista realizada em julho de 2012, no escritório de uma usina na região de Fernandópolis/SP). No transcorrer da narrativa do gerente da usina, fica claro, não só o discurso da colheita totalmente mecanizada, como, também, a preocupação com a questão ambiental, que levaria a empresa a tomar a decisão de interromper o corte manual de cana-de-açúcar. Entretanto, no mesmo trecho destacado de sua narrativa, é possível encontrar outras justificativas que passam pela questão financeira e os custos de se manter uma quantidade grande de trabalhadores, fazendo cumprir as legislações trabalhistas. Em outro momento da conversa, o gerente da usina afirma que, segundo cálculos realizados pela empresa, o trabalho mecanizado representa uma economia de três a quatro reais 14 Os nomes das pessoas entrevistadas durante a pesquisa de campo que são citados nesse texto são fictícios. 15 Norma Regulamentadora 31 - Dispõe sobre a segurança e saúde no trabalho na agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura. por tonelada quando comparado ao corte manual da cana. Na narrativa de Cleiton, os trabalhadores empregados na colheita manual são invisibilizados, assim como os migrantes: Lúcio: Tem outra coisa que a gente queria saber: os cortadores de cana não estão mais encontrando trabalho e a gente queria saber se essa migração diminuiu ou se eles continuam migrando, mas agora para outras atividades. Cleiton: Olha, eu posso falar da nossa região. Nós temos três municípios que trabalham com a gente. O operador, esse pessoal que tá no corte aí, é pessoal da região, pessoal antigo que está aqui com a gente. Lúcio: Ah, é pessoal daqui mesmo da região. Tem essa característica, então? Cleiton: É. Não temos ninguém de fora. (Entrevista realizada em julho de 2012, no escritório de uma usina na região de Fernandópolis/SP). Os migrantes empregados no corte manual de cana-de-açúcar não são os únicos a serem invisibilizados no contexto do “desenvolvimento” promovido pelo agronegócio sucroenergético, o trabalho das mulheres também é ocultado nesse setor. Esse contexto tem sido apresentado e denominado por Silva (2011) como o “trabalho oculto das mulheres nos canaviais”. Entre outras reflexões, a autora mostra que as mulheres têm sido alijadas do trabalho no corte manual da cana-deaçúcar. Muitas delas estão empregadas em atividades que são ainda mais invisibilizadas que aquelas realizadas pelos homens nos eitos dos canaviais. Muitas das mulheres que são expulsas do corte manual de cana-de-açúcar permanecem no setor canavieiro, sendo empregadas como “faxineiras dos canaviais” (Silva, 2011, p. 28), em atividades como a bituca, abrir eito e o recolhimento de pedras nos canaviais. Bituqueiras são as trabalhadoras que recolhem, no chão, os restos da cana deixados após o corte manual e o carregamento pelo guincho. As mulheres trabalham em dupla, carregando as “bitucas” de cana para a “rua do monte”, de onde serão levadas para a usina. “Abrir eito significa cortar as fileiras de cana que estão sobre as curvas de nível – sulcos feitos para a drenagem das águas fluviais – antes da utilização das máquinas, pois estas só cortam as canas em terras planas” (Silva, 263 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 ra, reforçam, em seu discurso, o uso intenso de alta tecnologia nos maquinários empregados nos campos. No que diz respeito ao emprego das máquinas para o corte de cana-de-açúcar, em ocasião da entrevista com o gerente de usina de álcool do interior paulista, foi possível identificar o discurso do elevado emprego de maquinaria na colheita da cana-de-açúcar, como pode ser verificado nas linhas que seguem: A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 2011, p. 26). As mulheres empregadas na “pedra” também fazem a limpeza do canavial, retirando as pedras do campo para que as máquinas colheitadeiras de cana possam passar pelo terreno sem obstáculos. Há, ainda, outras atividades nos canaviais paulistas que são camufladas no discurso da “ideologia do etanol”, que destaca somente o emprego de tecnologias elaboradas. Dentre as tarefas realizadas manualmente nos canaviais, podemos citar: a retirada de cercas e divisões de currais de propriedades arrendadas recentemente para o plantio de cana-de-açúcar,16 aplicação de veneno utilizando bomba-costal para eliminar as casas de formigas nos canaviais, aplicação de veneno “mata-mato” para eliminar o colonhão e o cipó,17 plantio e carpa de árvores plantadas pela usina em áreas de reflorestamento. A realização dessas atividades está inserida em um contexto hierárquico, na medida em que as trabalhadoras e os trabalhadores encarregados de executar as tarefas manuais não recebem os mesmos direitos que as demais categorias de trabalhadores da usina – aqueles são excluídos, por exemplo, do convênio médico pago pela empresa com uma cooperativa de saúde, além de receber o “vale alimentação” com valor inferior ao dos demais trabalhadores. Outras irregularidades persistem na execução das atividades manuais: Os trabalhadores da Turma do Veneno realizam suas refeições vestidos com as mesmas roupas com as quais aplicam os herbicidas, o que apresenta nítidos riscos de contaminação. As turmas do trabalho manual cumprem um regime de trabalho de 6X1 (trabalham de segunda a sábado, e folgam apenas aos domingos), enquanto todas as outras categorias cumprem um regime de trabalho de 5X1. Sendo o trabalho agrícola manual praticamente o único para o qual mulheres são contratadas (em menor número também trabalham no Posto de Gasolina da Usina e no almoxarifado), e sendo as mulheres frequentemente as únicas responsáveis pelo trabalho do16 Essas tarefas foram encontradas durante incursão em campo empírico na região de Fernandópolis/SP e descritas pela pesquisadora Beatriz Medeiros de Melo, membro da pesquisa “Novas configurações do trabalho nos canaviais. Um estudo comparativo entre os estados de São Paulo e Alagoas”, coordenada pela professora Maria Aparecida de Moraes Silva, com o apoio financeiro do CNPq. 17 Tais plantas são consideradas agressivas para o desenvolvimento da cana-de-açúcar. méstico e o cuidado dos filhos, resulta que a reprodução social das famílias destes trabalhadores é prejudicada e precarizada. As consequências inevitáveis deste quadro são: (a) as mulheres ocupam todo o domingo com as atividades domésticas, não lhes restando tempo para o lazer, a sociabilidade, o acompanhamento da vida de seus filhos... (b) como as creches municipais não funcionam aos sábados, aquelas mulheres que não podem deixar seus filhos sob os cuidados de parentes ou outra pessoa de sua rede de sociabilidade e confiança, se veem obrigadas a pagar uma babá para realizar este trabalho, então, remunerado, e, desse modo, reduz-se ainda mais seus parcos ganhos. Por estas e outras razões é frequente, no discurso das mulheres, a comparação de sua situação como de “escravidão”, já que “vivem para a Usina” (Trecho do diário de campo de Beatriz Medeiros de Melo, julho de 2012). A sensação de viver como “escravo” também foi descrita pelos trabalhadores e trabalhadoras do corte manual de cana na usina onde Cleiton trabalha. Ao contrário do que diz o gerente, a maioria das pessoas empregadas no corte manual da cana é proveniente de outros estados brasileiros, como Bahia, Maranhão, Piauí e Alagoas. Muitos dos quais receberam, antes de realizar a viagem para o interior de São Paulo, promessas por parte da empresa de que ficariam em alojamentos providenciados pela usina, sem necessitar pagar as despesas com aluguel. Entretanto, quando chegaram à região de Fernandópolis se depararam com outra realidade. Muitos despendem um valor de aproximadamente 250 reais para viver em uma residência com instalações bastante precárias, sem camas, com espaço bastante reduzido. Na ocasião em que as entrevistas foram realizadas, em julho de 2012, encontramos algumas turmas em greve em razão das inúmeras irregularidades encontradas na execução da atividade. Uma das trabalhadoras nos apresentou o seguinte relato: “o povo diz que a escravidão acabou, mas ainda não acabou”. A caracterização do trabalho como escravidão se dá não só pelo fato de a remuneração ser bastante reduzida (na safra de 2012 a turma chegou a receber apenas seis centavos pelo metro de cana cortada; em outros períodos a turma recebeu de nove a doze centavos pelo metro da cana embolada), mas, também, pela forma 264 desumanizadora como os fiscais tratam os trabalhadores e as trabalhadoras, comparando-os com animais. Na imagem do recibo (Figura 1) de uma das trabalhadoras empregadas no corte manual de cana-de-açúcar é possível visualizar o valor extremamente reduzido pago pela metragem da cana. Há dias em que a trabalhadora recebeu apenas R$ 7,00. Os trabalhadores grevistas denunciaram, ainda, as seguintes irregularidades: preço reduzido do vale-alimentação (60 reais por mês); a empresa fazia descontos salariais e do vale-alimentação mesmo quando a falta do trabalhador era justificada com atestado médico; alguns trabalhadores tinham que iniciar o corte da cana poucos minutos após a queima do canavial, o que implicava a realização do labor sob um calor extremamente excessivo. Em razão da intensa mecanização, é possível constatar que as melhores plantações são destinadas às máquinas. Por sua vez, as canas que estão “deitadas”, desalinhadas, que crescem na curva de nível são destinadas aos homens e mulheres que têm ao seu lado somente o facão para “enfrentar” tal atividade, que os suga física e emocionalmente – ao contrário do “palco” preparado para a atuação das máquinas, que passam pelos canaviais planos, com o terreno livre das pedras que as mulheres recolheram anteriormente. Tamanha intensificação e exploração da for- ça de trabalho (Silva, 1999, 2004 e 2011; Alves, 2007; Verçoza, 2012) ocasionaram inúmeros acidentes de trabalho e doenças advindas da atividade no corte manual da cana. Um dos trabalhadores relatou a ocasião em que se feriu gravemente ao cortar o próprio dedo com o facão e recebeu por parte da empresa um atendimento após horas de sangramento. Ao receber o atendimento, seus colegas relataram ao enfermeiro da usina o que tinha acontecido e que o sangramento estava muito intenso. Ao ver o desespero do trabalhador e seus colegas, o enfermeiro lhes disse: “Cortou o dedo, não foi a cabeça”. O descaso com problemas de saúde ocasionados pela atividade também foi relatado por uma das trabalhadoras: após realizar um exame em razão de dores intensas na coluna e levar o resultado para o médico, recebeu como resposta a seguinte sentença: “você vai morrer com esse desvio na coluna”, sem receber a recomendação de qualquer tipo de tratamento ou encaminhamento a um afastamento por doença adquirida no trabalho. Durante a realização do corte manual da cana-de-açúcar, muitos trabalhadores são acometidos pela chamada “câimbra de nó”.18 Um dos trabalhadores apresentou a seguinte descrição da sensação provocada pela câimbra de nó: “a dor vai entrando pelo pé e aos poucos vai subindo por dentro do corpo como se fosse um inseto. Eu sinto como se tivesse um bolo se formando no estômago, por isso chamam de câimbra de nó”. Um deles sentiu uma câimbra intensa durante o corte e percebeu que “a morte estava perto e que ela tinha uma cara feia”. Seus colegas interromperam o trabalho, solicitando que ele fosse levado para o hospital, mas isso não aconteceu. Alguns dos trabalhadores estiveram presentes nos canaviais em 18 Outra expressão para se referir às câimbras, além das do “canguru” e “birôla”. 265 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... outros municípios paulistas quando colegas de trabalho faleceram no eito do canavial após sentir a “câimbra de nó”. Um deles acompanhou um colega que perdeu a vida em 2010 no município de Monte Alegre:19 “meu colega foi encontrado em pé, morreu abraçado com a cana”. Em meio às narrativas que demonstravam a situação de humilhação no ambiente de trabalho, o tratamento desumanizado era o fio condutor da conversa. Esse teor ficou bastante claro quando as seguintes frases apareceram: “a ordem é acabar com o povo”; “O sonho foi entrando por água abaixo”; “O ‘gato’ da usina só quer que a gente morra”; “A usina só quer ferrar o pobre”; “Ninguém aqui é escravo, ninguém aqui é bicho”. O cenário de humilhação e desrespeito é configurado, também, a partir da relação que se estabelece com os fiscais de turma. Um dos trabalhadores contou que o fiscal de turma os tratava de forma bastante hostil, exigindo que intensificassem o ritmo da produção. Esse mesmo fiscal ameaçou um trabalhador maranhense de morte, dizendo a ele que, se não trabalhasse direito, voltaria para sua terra “com o paletó de madeira”. Assim, os elementos apresentados pelos trabalhadores e trabalhadoras, tais como a elevada exploração da força de trabalho, o tratamento desumano, a humilhação nos eitos de cana e a comparação com animais e escravos, nada disso parece combinar com a imagem de grandeza e a “sustentabilidade” que caracterizam o “desenvolvimento” gerado pelo setor sucroalcooleiro. Nas próximas linhas, recorreremos à realidade dos canaviais alagoanos para trazer mais experiências que destoam da grandeza da “ideologia do etanol”. No tocante aos canaviais de Alagoas, na safra 2012/2013, a agroindústria canavieira alagoana contou com o uso de 50 máquinas colheitadeiras (todas operando em parte das terras planas dos tabuleiros).20 O processo de mecanização do corte encontra-se em fase embrionária quando comparado ao de São Pau19 No município de Monte Alegre a média mínima que cada trabalhador deveria cortar por dia era de 12 toneladas e meia de cana. 20 Conforme informação concedida pelo coordenador de planejamento e administração rural de uma usina loca- lo.21 O plantio de cana em vastas áreas de topografia acidentada – sobretudo no norte do estado – é um dos fatores que dificulta (ou inviabiliza) um maciço processo de mecanização da colheita em curto prazo. Em algumas dessas áreas, consideradas até o momento como inacessíveis às modernas máquinas colheitadeiras (guiadas por GPS, equipadas de ar condicionado e movidas com tração por esteiras), ainda transitam burros e mulas carregando cana (guiados por cambiteiros, que se abanam com o chapéu, e movidos por tração animal). O cambiteiro é o trabalhador “que vem com um burro com cangalha, e leva a cana até onde o caminhão está, e depois o caminhão leva para a usina”.22 O serviço de cambitagem, que, com a decadência dos engenhos, parecia condenado à extinção, continua usual em algumas encostas de Alagoas. Como um transporte que ainda requer amarração de feixes de canas cortadas, que, em cada viagem até o caminhão, leva apenas aproximadamente entre 20 e 30 feixes de cana no lombo do burro (em torno de no máximo 100 kg de cana) pode sobreviver na contemporaneidade? Talvez (a) (o) leitor (a) imagine que esse tipo de transporte sobreviva no século XXI por ser essa cana destinada a alguma produção artesanal de cachaça, à produção de uma mercadoria inserida em um pequeno mercado deveras específico, que, por não encontrar concorrentes, seria competitiva. No entanto, não é disso que se trata. A cambitagem em questão não leva a cana para um engenho que produz alguma cachaça especial, ela transporta parte da cana que é esmagada por uma usina de médio porte de Alagoas.23 A cana transportada nesse serviço de cambitagem é transformada em açúcar para ser exlizada na região dos tabuleiros de São Miguel dos Campos, em entrevista realizada no dia 21 de março de 2013. 21 Segundo estimativa do Sindaçúcar/AL, em 2011 o corte mecanizado correspondia a 20% da colheita de cana alagoana (Padilha, 2011), enquanto em São Paulo, de acordo com a União da Indústria da Cana de Açúcar (UNICA), mais 60% da colheita já era mecanizada no mesmo ano. 22 Conforme relato de Iracema, no município de Ibateguara/ AL, em 14/06/2012, durante entrevista concedida para a equipe da pesquisa, ”Novas configurações do trabalho nos canaviais. Um estudo comparativo entre os estados de São Paulo e Alagoas”, mencionada na nota 15 deste artigo. 23 A referida usina fica localizada na Microrregião Serrana do Quilombo dos Palmares, área marcada pela grande 266 Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno do um bolo de cana cada vez mais pesado. Próximo ao pé do morro o esforço é ainda maior. A embolada termina quando o bolo de cana chega ao local acessível para os animais ou máquinas. Após o término da embolada, o trabalhador sobe o morro para embolar mais cana. A jornada de trabalho segue em desce e sobe, em agacha e levanta, em puxa e empurra. Esse ciclo se repete até acabarem as canas de embolada. Em pesquisa de campo realizada em Ibateguara, município localizado ao norte de Alagoas, pudemos acompanhar o dia de trabalho de uma frente de corte, transporte e carregamento da cana.24 Os canaviais queimados estavam em morros imensos, alguns trechos eram tão íngremes que, como bem expressou um trabalhador canavieiro: “para subir a rampa, tem que subir de quatro, tem quadra que aconteceu isso, que o trabalhador não tem condições de subir cortando, que é mui- se aproximam –, existe, nas encostas mais íngremes, a embolada da cana. Esse serviço consiste em emaranhar as canas que foram cortadas por outros trabalhadores para rolá-las ladeira abaixo, de modo que elas cheguem até uma área que possa ser acessada por máquinas carregadeira ou por animais de tração. Para tal tarefa, o trabalhador utiliza um longo cabo de madeira que serve como alavanca para levantar as canas, que se amontoam cada vez mais a cada levantada. A atividade consiste em se agachar, colocar o cabo de madeira embaixo do monte de canas, e puxar o cabo para cima, de modo que o monte de cana seja empurrado para baixo. À medida que o trabalhador segue avançando morro abaixo, vai se formanquantidade de morros e serras. Durante a pesquisa de campo, uma trabalhadora nos informou que todas as fazendas da usina possuem criação de burros. Um morador de uma das fazendas da usina nos relatou que o serviço do cambiteiro é desempenhado por alguns trabalhadores canavieiros específicos que são deslocados para cambitagem quando existe necessidade desse serviço. 24 A referida pesquisa de campo ocorreu no dia 21 de janeiro de 2013, no âmbito da pesquisa “Novas configurações do trabalho nos canaviais. Um estudo comparativo entre os estados de São Paulo e Alagoas”, mencionada na nota 15 deste artigo. 267 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 portado para países de outros continentes, vira álcool, que é vendido nos postos de combustível. Além do trabalho de cambitagem – que é requisitado em áreas de difícil acesso, onde nem a máquina carregadeira de cana e nem o caminhão A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ... to alto”.25 O risco de quedas era grande, não só pela inclinação acentuada ao extremo, mas, também, devido aos trechos de erosões e cortes nos morros. Em determinados casos, essas erosões podem ultrapassar 4 metros de altura. Alguns cortadores de cana nos falaram de amigos que já se machucaram em quedas nesses paredões. Os canaviais se estendem até à beira dessas aberturas. Nessas condições, é preciso ter muito equilíbrio e perícia para manusear os facões. Além disso, não basta ter esses requisitos, é preciso cortar no mínimo 5,2 toneladas para manter-se empregado nessa usina. O calor era enlouquecedor, não havia uma sombra. O ambiente era tão hostil que tornava extenuante até a simples tarefa de subir e descer o morro acompanhando o trabalho alheio. A fuligem se misturava à poeira que se misturava ao suor. Imagine para aqueles que estavam cortando cana! Imagine para os que as embolavam! CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 À GUISA DE CONCLUSÃO gem do desenvolvimento sustentável dessa produção, bem como a miséria do trabalho que se esconde atrás das cortinas desse palco. Vimos, também, que essa miséria se estende a outros países, não sendo, portanto, uma exceção, porém, fazendo parte da lógica da acumulação por espoliação do capitalismo contemporâneo. As condições de trabalho nos canaviais não podem ser simplesmente consideradas precárias, o que seria eufemismo. Consideramos o trabalho sem as máscaras “protetoras” do Estado brasileiro, signatário das Convenções internacionais do chamado “trabalho decente”. Não adjetivamos esse trabalho. Apenas revelamos as cruezas de sua essência. Esse trabalho nos canaviais das grotas, morros e serras alagoanas e nos planaltos paulistas nos remete ao mito de Sísifo, personagem que foi condenado por Zeus a empurrar uma enorme pedra morro acima, porém, ao alcançar o topo, a pedra invariavelmente rolaria morro abaixo, fazendo com que o esforço de Sísifo fosse sem fim. Tanto o mito de Sísifo, quanto o labor nesses canaviais, apontam quão degradantes são determinadas formas de trabalho. No entanto, existe uma grande diferença entre ambos: enquanto o mito de Sísifo é proclamado ao longo de muitos séculos como exemplo de trabalho abominável, a imagem mascarada do labor nos canaviais brasileiros é mais uma das falácias que compõe o mito do “desenvolvimento sustentável” do etanol. Resta-nos perguntar: “Desenvolvimento” de quê? “Sustentável” para quem? Buscamos, nesse texto, fazer vibrar uma voz destoante da “ideologia do etanol”. Na introdução de nosso argumento, remontamos à realidade brasileira do século XVI para mostrar as interfaces da produção de açúcar, a escravização de africanos e o desenvolvimento de uma cultura para o enriquecimento da metrópole. No desenrolar de nossas reflexões, procuramos mostrar que alguns elementos, tais como o incentivo do Estado na perpetuação de interesses do capital nacional e internacional, a superexploração da força de trabalho e Recebido para publicação em 05 de abril de 2013 o discurso do desenvolvimento gerado pelo setor Aceito em 11 de junho de 2013 persistem e marcam a história da produção sucroalcooleira. Trouxemos algumas reflexões sobre a (nova) morfologia do trabalho nos canaviais paulistas e REFERÊNCIAS alagoanos no contexto do processo de acumulação do capital globalizado. Nosso intento foi no senti- ALVES, F. 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Due to the rapid changes which have occurred in the harvest, we feel that these labor relations must be analyzed within the context of the “sustainable development” image projected by sugar and ethanol companies and by the Brazilian government. Intensification of the exploitation of the work force in the setting of a (new) morphology combines highly advanced technology with increasing underqualification of the labor force. These reflections will aim to bring to the surface the social reality hidden behind the ideology fabricated to sustain this economic activity. We seek a critical analysis of the developmentalist ideology inherent to this type of production. The methodology employed is based on oral history and direct observation in the sugar cane fields of the states of São Paulo and Alagoas. Le but de ce texte est d’analyser les relations et les conditions de travail dans les plantations de canne à sucre, suite au processus de reconfiguration du travail et au moment actuel, caractérisé par l’intensification du processus de mécanisation de la coupe de la canne à sucre. En raison de la rapidité des changements dans le processus de ce travail, il s’avère que ces relations de travail doivent être analysées dans le contexte de l’image de “développement durable” produite par les fabriques de sucre et d’alcool et par l’Etat brésilien. L’intensification de l’exploitation de la main d’œuvre dans le cadre d’une (nouvelle) morphologie associe, d’une part, des technologies de pointe et, d’autre part, l’augmentation d’un manque de qualification de la main d’œuvre. Les réflexions faites essaient de mettre en lumière la réalité sociale qui se cache derrière une idéologie fabriquée pour soutenir cette activité économique. On cherche à faire une analyse critique de l’idéologie du développement liée à cette production. La méthodologie utilisée se base sur la tradition orale et l’observation directe dans les plantations de canne à sucre des états de São Paulo et d’Alagoas. Maria Aparecida de Moraes Silva – Doutora em Sociologia. Professora livre-docente aposentada da UNESP. Professora visitante do Departamento de Sociologia da UFSCAR. Pesquisadora (1A) do CNPq. Autora, entre outros, do livro Errantes do fim do século, publicado pela EDUNESP. As linhas de pesquisa se encaixam na Sociologia Rural e na Sociologia do Trabalho Rural. Os temas versam sobre trabalho, memória, migração, gênero e raça/etnia, referentes à realidade rural do estado de São Paulo e outras regiões do país. Lúcio Vasconcellos de Verçoza – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Membro dos Grupos de Pesquisa “Terra, Trabalho, Memória e Migração” e “Trabalho e Capitalismo Contemporâneo”. Em sua dissertação de mestrado, analisou o processo de exploração-dominação do trabalho e as formas de resistência construídas pelos trabalhadores nos canaviais de Alagoas. Publicou um capítulo no livro Trabalho e Capitalismo Contemporâneo. Atualmente, se dedica ao estudo da relação entre trabalho e saúde no universo canavieiro. Juliana Dourado Bueno – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos. Membro do Grupo de Pesquisa Terra, Trabalho, Memória e Migração, coordenado por Maria Aparecida de Moraes Silva. Desde 2004, desenvolve pesquisa no interior do grupo na temática do trabalho rural e relações de gênero. Em sua dissertação de Mestrado pesquisou as trajetórias laborais de mulheres e homens empregados em um abatedouro de frangos no interior de São Paulo. Publicou um capítulo no livro Questão Agrária e Saúde dos Trabalhadores: desafios para o século XXI. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre as experiências de trabalho no processo de produção de flores na região de Holambra (SP). 271 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Labor relations. Working conditions. MOTS-CLÉS: Relations de travail. Conditions de travail. Capitalisme à la campagne. Canne à sucre. Capitalism in the fields. Sugar cane. A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO DO MERCADO DO TRABALHO NO BRASIL Paulo Eduardo de Andrade Baltar* José Dari Krein** DOSSIÊ Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein INTRODUÇÃO As discussões sobre mercado e relações de trabalho no Brasil envolvem velhas e novas questões. As velhas questões referem-se à história do trabalho no país, em que o processo de assalariamento não constituiu um sistema universal de direitos. A proteção social tem sido uma realidade apenas para segmentos da sociedade, dado o excedente estrutural de força de trabalho, o significativo número de trabalhadores sem registro em carteira profissional, o elevado contingente de autônomos sem acesso à seguridade social e a expressiva fração da população ativa trabalhando sem remuneração em negócios de outros membros da família. Ou seja, o mercado de trabalho assalariado é pouco estruturado e a proteção social ainda está em construção. As questões novas do debate sobre trabalho e proteção social decorrem da * Doutor em Ciência Econômica. Professor Associado da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Cidade Universitária Zeferino Vaz Barão Geraldo. Cep: 13083970 – Campinas – São Paulo – Brasil – Caixa-postal: 6135. [email protected] ** Doutor em Economia Social e do Trabalho. Professor da Universidade Estadual de Campinas. [email protected] forma como o Brasil se inseriu recentemente no processo de globalização e internacionalização das atividades produtivas e de como as mudanças provocadas pela abertura econômica e financeira redefiniram a agenda de discussão sobre mercado e relações de trabalho. O impacto inicial da abertura da economia sobre o emprego foi muito forte. Devido à crise da dívida externa na década de 1980, o consumo foi contido, o investimento diminuiu, a importação restringiu-se a um mínimo e o país ficou fora da construção das cadeias internacionalizadas de produção de bens manufaturados. Ao abrir-se ao comércio e à finança internacional em um momento de grande interesse por aplicações financeiras em mercados emergentes, o desempenho da economia foi beneficiado, aumentando o consumo e diminuindo a inflação, com forte aumento de importações de bens manufaturados. A valorização da moeda nacional ajudou a baixar a inflação, mas acentuou os efeitos destrutivos da abertura sobre a produção manufatureira doméstica, rompendo elos das cadeias produtivas existentes, e o país continuou fora das principais cadeias internacionaliza- 273 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 O artigo estabelece uma relação entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo no Brasil e os desafios para a discussão de uma regulação pública do trabalho. O debate no Brasil considera os seguintes aspectos: 1) as mudanças no capitalismo contemporâneo vêm apresentando implicações desfavoráveis à regulação pública do trabalho e à ação coletiva dos trabalhadores; 2) a retomada do crescimento da economia possibilitou redefinir os termos do debate do trabalho no Brasil; 3) a crise atual coloca em discussão a possibilidade de o Estado ter um papel mais ativo no desenvolvimento da economia; 4) as tendências demográficas vêm aumentando o peso da PEA adulta, o que traz implicações para o funcionamento do mercado de trabalho. As posições se localizam entre dois polos: 1) a defesa de uma estruturação do mercado de trabalho com implicações na qualidade das relações sociais; 2) a afirmação dos negócios, que destaca a necessidade de maior flexibilização na contratação, no uso e na remuneração do trabalho. PALAVRAS CHAVES: Trabalho. Regulação. Economia e desenvolvimento. Flexibilização. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... das de bens manufaturados. As crises financeiras dos mercados emergentes (México em 1994/1995, países da Ásia em 1997, Rússia em 1998 e Brasil em 1999) agravaram a deterioração do mercado de trabalho, porque levaram o governo a estabelecer uma taxa de juros elevada e a conter a atividade econômica. O aumento do desemprego aberto, a redução do emprego formal, principalmente nas grandes empresas, a ampliação do número de assalariados sem carteira profissional, notadamente nas empresas menores e no serviço doméstico remunerado, a elevação da participação das pessoas ativas no trabalho por conta própria e no trabalho não remunerado, dominaram a agenda de debates sobre mercado e relações de trabalho na década de 1990. A posição de resistir à inserção passiva na globalização, com uma interferência estatal mais firme na economia, para ter uma melhor evolução do emprego e da renda do trabalho foi vencida pela posição que enaltecia os efeitos de uma abertura brusca e indiscriminada para acirrar a competição e promover a eficiência no uso dos recursos existentes. O predomínio dessa posição restringiu a agenda de discussões sobre mercado e relações de trabalho à questão da adaptação das normas e instituições à abertura da economia, sob o argumento de que essas normas e instituições teriam sido construídas para uma economia fechada e estariam prejudicando a incorporação dos efeitos virtuosos da abertura sobre a concorrência e um melhor uso dos recursos. A abertura comercial e financeira, entretanto, expôs o país às vicissitudes do sistema financeiro globalizado, marcadas pela instabilidade da década de 1990, quando se incorporou os diversos mercados emergentes. A alternância de fortes entradas e saídas de capital perturbou o funcionamento da economia brasileira, motivando intensas flutuações nas taxas de juros e de câmbio, agravando os efeitos da abertura sobre o emprego e a renda do trabalho. Na visão predominante, porém, o mau desempenho do emprego e da renda do trabalho foi atribuído à inadequação das normas e instituições que regem a contratação, o uso e a remuneração da força de trabalho, que não estariam induzindo a um comportamento apropriado de trabalhadores e empregadores, prejudicando os efeitos da abertura e de maior eficiência no uso dos recursos. Os equívocos desta posição nos debates sobre mercado e relações de trabalho no Brasil tornaram-se evidentes quando a situação internacional ficou mais favorável às exportações, a partir de 2003. O crescimento do PIB levou a um aumento do emprego formal, diminuindo a participação na absorção das pessoas ativas do emprego sem carteira profissional e dos trabalhos por conta própria e não remunerado. Neste quadro de melhora do mercado de trabalho, a queda da inflação foi acompanhada de um aumento do poder de compra da renda do trabalho. Tudo isso ocorreu sem mudanças nas normas e instituições que regem a contratação, o uso e a remuneração do trabalho. Em um ambiente político mais favorável aos trabalhadores, os efeitos positivos do desempenho da economia sobre o emprego e a renda do trabalho foram ampliados pela valorização do salário mínimo e pela implementação de um amplo conjunto de políticas sociais. Entretanto, as mudanças recentes na organização da produção, que tendem a uma maior desverticalização e flexibilidade, colocam uma série de desafios novos a serem enfrentados pela regulação pública do trabalho. O equacionamento adequado desses problemas foi prejudicado pelos acontecimentos da década de 1990. O mau desempenho do mercado de trabalho e o quadro político existente enviesou a discussão sobre regulação do trabalho. A crise mundial recolocou a questão da necessidade de interferência estatal para construir uma economia mais sólida e poder ter uma melhor evolução do emprego e da renda do trabalho. A redefinição da agenda de debates sobre mercado e relações de trabalho no Brasil é o objeto deste artigo. O texto contém três partes, além da introdução e das considerações finais. Na primeira parte, é apresentado, brevemente, o padrão mais regulado de relações de trabalho dos países desenvolvidos e as alterações que ocorreram no centro do capitalismo, a partir da reorganização da economia 274 mundial após a crise da década de 1970. Este quadro de mudanças constituiu um ambiente desfavorável às ações coletivas dos trabalhadores, em consequência da descentralização1 e flexibilização das relações de trabalho. A segunda parte aborda as mudanças na economia brasileira a partir da inserção na globalização. Foi nesse contexto que a agenda da descentralização e flexibilização das relações de trabalho foi introduzida no debate nacional. O quadro de crescente desemprego foi agravado pelo aumento da ilegalidade na contratação da força de trabalho. Os termos do debate, então, foram marcados pelo mau desempenho do emprego e da renda do trabalho. A posição que predominou privilegiou a questão das mudanças nas normas e instituições que regem a contratação, o uso e a remuneração da força de trabalho. A terceira parte, finalmente, trata da redefinição dos termos desse debate com a volta do crescimento econômico e melhora dos indicadores do mercado de trabalho. As mudanças na organização da produção colocam desafios para a regulação pública do trabalho, que precisa ser capaz de fazer com que essas novas tendências não resultem em precarização das condições de emprego, permitindo dar continuidade à melhoria dos indicadores do mercado de trabalho. CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: implicações desfavoráveis aos trabalhadores As implicações desfavoráveis aos trabalhadores das mudanças observadas no capitalismo desde meados da década de 1970 são ressaltadas pelo contraste com o que se verificou nos países desenvolvidos, especialmente da Europa, ao longo dos anos 1950 e 1960, quando ocorreu um círculo virtuoso de avanços na economia e no social. Nesse círculo virtuoso de avanços econômicos e sociais destacou-se a atuação de estados nacionais, apoiando o desenvolvimento da produção de bens, 1 Descentralização das relações de trabalho em que a determinação das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho tende a ser realizada no âmbito das empresas, em detrimento das negociações gerais por setor econômico. a construção de grandes aparelhos de prestação de serviços em áreas como educação, saúde e seguridade social e a constituição de uma regulação pública do trabalho2 (Oliveira, 1994). O desenvolvimento de sistemas nacionais de produção de bens, acarretando aumentos expressivos de produtividade, foi fundamental para viabilizar a ampliação do consumo privado e público de bens e serviços. Nesse avanço dos sistemas nacionais de produção, o comércio com outros países desempenhou papel complementar, acentuando os ganhos de produtividade e mantendo relativo equilíbrio nos aumentos de exportação e importação. Para esse desenvolvimento da produção nacional com equilíbrio no comércio com outros países foi importante a estabilidade, em nível adequado, das taxas de câmbio entre as moedas dos diferentes países (Belluzzo, 2004). O desenvolvimento da produção de bens e serviços ocorreu com crescente participação dos serviços na absorção de força de trabalho e na apropriação da renda. A construção e utilização dos grandes aparelhos de prestação de serviços sociais (educação, saúde e seguridade social) foram fundamentais para a existência de baixas taxas de desemprego da população ativa nos anos 1950 e 1960 (Gimenez, 2003). O crescimento do PIB – bem acima do crescimento do emprego – e a ampliação da carga tributária fizeram o aumento da arrecadação dos impostos acompanhar as despesas do Estado, evitando déficit fiscal e aumento da dívida pública. Além da ampliação do consumo público de bens e serviços, houve aumento do consumo privado. A segurança proporcionada pelo acesso aos serviços públicos, pelo pleno emprego e pelos aumentos no poder de compra da renda do trabalho, apoiado pela regulação pública do trabalho, levaram as famílias a antecipar as compras de bens 2 Por regulação pública do trabalho compreende-se que a determinação das regras e normas que regem a relação de emprego é realizada pelo Estado e/ou pela negociação coletiva entre os agentes sindicais de trabalhadores e empregadores. Em contraposição, há a regulação privada, em que a determinação realiza-se pelo mercado ou pelo poder discricionário do empregador (Krein, 2007; Dedecca, 1999). 275 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... de consumo, através do endividamento. O baixo nível das taxas de juros e o aumento de renda no ciclo de vida das pessoas facilitaram a ampliação do grau de endividamento das famílias e a manutenção de baixos níveis de inadimplência. A regulação pública do sistema financeiro, procurando preservar baixas taxas de juros, foi fundamental para que os financiamentos, não somente do consumo, mas também da produção e do investimento, ocorressem em moedas nacionais e com prazos e taxas adequadas. A atuação dos Estados nacionais foi, então, fundamental para o círculo virtuoso de avanços sociais na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial. A ordem econômica, constituída depois de Bretton Woods e em meio à guerra fria, permitiu expressivo grau de autonomia de ação aos Estados Nacionais. Na Europa, essa capacidade de ação autônoma do Estado Nacional se materializou positivamente para o avanço econômico e social constatado, porque coalizões políticas domésticas respaldaram aquela atuação, mesmo quando se sucederam governos articulados por diferentes forças políticas (Belluzzo, 2004). Uma vez completadas as construções dos sistemas nacionais de produção e dos aparelhos de prestação de serviços sociais, os ritmos do investimento e do crescimento do PIB tenderam a diminuir, problematizando a continuidade do círculo virtuoso do pós-guerra. Na culminação dessa onda de crescimento e antes do seu arrefecimento, os protestos sociais, do final da década de 1960, evidenciaram a insatisfação, principalmente, de uma juventude bem mais educada do que a geração anterior, com os valores e padrões de comportamento que se consolidaram em uma sociedade de massa mais regulada e burocratizada. Simultaneamente, houve uma deterioração nas relações entre estados nacionais que levou a uma ruptura da ordem internacional construída a partir de Bretton Woods. A desaceleração do PIB em meio à crescente desordem internacional, acompanhada do aumento de preços das commodities – destacando-se a quadruplicação do preço do petróleo –, levou ao aumento do desemprego e da inflação, minando, na década de 1970, a base das coalizões políticas que sustentaram a ação dos Estados Nacionais nas décadas anteriores. A desordem internacional abalou a hegemonia americana no concerto das nações ocidentais. A maneira como os Estados Unidos reagiram ao enfraquecimento de sua hegemonia, no final dos anos 1970, impulsionou a globalização financeira e internacionalização da produção, em meio a importantes avanços técnicos e mudanças na organização da produção de bens e prestação de serviços (Belluzzo, 2004). A nova ordem internacional, que resultou da reafirmação da hegemonia dos Estados Unidos através da globalização financeira e internacionalização do sistema de produção, reduziu para a maioria dos países o grau de autonomia de ação dos Estados Nacionais. Em particular, a facilidade de deslocamento entre países de fundos aplicados no mercado financeiro instabilizou as taxas de câmbio das moedas dos países, e o comércio entre nações tornou-se desequilibrado e deixou de ser mero complemento do desenvolvimento de sistemas nacionais de produção. O déficit de comércio dos Estados Unidos impulsionou a internacionalização da produção de bens manufaturados, especialmente o desenvolvimento da produção asiática, inicialmente no Japão e, posteriormente, na Coréia do Sul, Taiwan, na China e em outros países. A Ásia tornou-se o grande fornecedor mundial de produtos manufaturados, contribuindo para a redução de seus preços relativos e ajudando a manter baixa a inflação. Em outros países, que não os asiáticos e seus fornecedores de matéria prima, o PIB passou a crescer de forma mais lenta e a carga tributária deixou de aumentar. A arrecadação de impostos, então, reduziu o ritmo de ampliação. As despesas do Estado continuaram aumentando em ritmo forte com a ampliação e diversificação das demandas por serviços sociais, através das alterações na composição etária da população, das mudanças na estrutura familiar devido à crescente participação feminina no mercado de trabalho, do aumento do desemprego, da diminuição do nível e ampliação 276 da dispersão dos salários e da proliferação de reivindicações vindas de novos movimentos sociais. Os recursos públicos se mostram insuficientes para atender às demandas e cresceram os déficits fiscais. A dívida pública aumentou e as despesas financeiras dos Estados agravaram o déficit do fisco. Os problemas de financiamento do Estado foram, inicialmente, contornados pelo crescimento dos mercados financeiros com a globalização. Nesse contexto, a inflação diminuiu e o crescimento do PIB mostrou-se muito irregular e com tendência a ser relativamente pouco intenso. A taxa de desemprego continuou elevada e aumentou a fração de ocupações não submetidas à regulação pública do trabalho. Esta, por sua vez, tendeu a descentralizar, voltando-se para questões mais pontuais ao nível da relação de emprego, notando-se uma diferenciação de condições de trabalho e de remuneração dos trabalhadores (Mattos, 2009). As mudanças na absorção da população ativa e na regulação do trabalho são manifestações de um contexto econômico de maior instabilidade, menor crescimento e ampliação da exposição à concorrência internacional. Nestas condições, os empregadores passaram a reivindicar maior liberdade de ação, o que facilitou a prevalência das teses neoliberais e sua difusão na sociedade e no aparelho do Estado. A demanda pela liberdade do capital para determinar as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho ocorreu em simultâneo a uma desverticalização da produção de bens e serviços, em um quadro de intenso avanço das tecnologias de informação e comunicação. A financeirização da economia obrigou a racionalizar a produção, visando aumentar a rentabilidade do capital aplicado, mantendo somente os ativos estratégicos para o desenvolvimento da empresa e recorrendo mais intensamente a serviços de terceiros (Braga, 2009). No contexto dessa reorganização econômica e em um quadro político desfavorável aos trabalhadores organizados, ocorreram transformações na regulação do trabalho, reforçando a tendência de flexibilização e de descentralização das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho. O capitalismo globalizado é mais instável e acirra a competição. A empresa reclama por maior liberdade de ação para poder competir, exigindo mais e comprometendo-se menos com o bem estar de seus empregados (Sennett, 1999; Uriarte, 2000; Krein, 2007). A demanda empresarial por liberdade de ação ocorreu em um contexto de desverticalização da produção. Paradoxalmente, com a globalização financeira e a internacionalização da produção, fusões e aquisições de empresas levaram a uma estruturação mundial da competição, com estratégias que consideram o conjunto de mercados nacionais e não mais cada um deles separadamente. Cada unidade da empresa, entretanto, mantém somente os ativos estratégicos para o seu desempenho e recorre a serviços de terceiros. A busca da flexibilidade e a descentralização dificultaram ações coletivas mais amplas dos trabalhadores e corroeram as bases da regulação pública do trabalho, que se consolidaram no pós-guerra nos países desenvolvidos. Esses efeitos da reorganização da economia afetaram os empregados permanentes e temporários. Quanto aos permanentes, os empregadores buscaram a flexibilidade funcional, ampliando sua liberdade para determinar os elementos centrais da relação de emprego, tais como a alocação de tarefas, a jornada e a remuneração do trabalho. A liberdade para alocar a força de trabalho refere-se à determinação, sem amarras, das funções a serem exercidas pelos empregados, exigindo mais polivalência. A tendência é exigir multifuncionalidade dos empregados permanentes, controlando suas atividades por meio de metas e projetos, definidos pela empresa, debilitando a relação entre profissão, tarefas a realizar e remuneração, marcadas no passado por negociação coletiva mais ampla de contratos de trabalho, frequentemente envolvendo a interferência do Estado. A remuneração do trabalho tendeu a ser mais variável, ficando cada vez mais vinculada ao desempenho do trabalhador, individualmente ou em pequenos grupos na empresa. Programas de participação nos lucros e/ou resultados e remuneração por comissão passaram a ser uma prática corrente 277 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... nos segmentos empresariais mais dinâmicos. Com isso, esvaziou-se a determinação da remuneração por negociação coletiva mais ampla (Freyninnet, 2006). A regulação do tempo de trabalho também tendeu a ficar mais flexível e adaptada às peculiaridades da empresa, com a modulação da jornada e o descanso não coincidindo, necessariamente, com os fins de semana. A tendência tem sido afastar-se da jornada padrão de 8 horas por dia e 5 dias por semana, que contribuiu para estruturar as políticas públicas e a vida das pessoas em sociedade. Atualmente, prevalece o interesse das empresas, que ajustam a jornada de acordo com suas necessidades. O tempo de trabalho não se separa mais tão claramente do tempo livre das pessoas e os trabalhadores tendem a ficar mais conectados ao trabalho, mesmo fora dele (Dedecca, 1999). A flexibilidade funcional dos empregados permanentes diz respeito ao núcleo estratégico da empresa. A empresa exige o envolvimento desses empregados na vida da organização, aumentando o desgaste emocional decorrente da pressão por resultados, em uma situação econômica marcada pela instabilidade e acirramento da competição entre empresas. As consequências referem-se tanto à insegurança quanto ao futuro profissional como à proliferação de novas doenças profissionais (Barreto, 2003). Para a maior parte dos empregados, entretanto, prevalece a flexibilidade quantitativa, em que a empresa contrata para a prestação de serviços específicos e o contrato dura tanto quanto a necessidade desses serviços. A variedade de situações tem levado a uma ampla diversidade de contratos (a termo, part time, temporário, subcontratados, especial para segmentos da força de trabalho, etc.), aumentando, expressivamente, a heterogeneidade dos assalariados. Essa heterogeneidade é alavancada pelo avanço da subcontratação e crescente uso de terceiros. Freyssinnet (2006) mostrou como essas novas modalidades de contratação proliferam na Europa desde os anos 1980. Assim, a flexibilização quantitativa proporciona graus adicionais de liberdade às empresas, ao facilitarem o ajustamento do “volume do pessoal empregado às flutuações da demanda por seus produtos”. A pressão da concorrência por maior racionalização da produção leva, simultaneamente, a ampliar a flexibilidade funcional dos empregados permanentes e a flexibilidade quantitativa dos empregados temporários. Nos dois casos, aumenta-se a intensificação do trabalho, acentuando a redução do custo da produção (Leal Filho, 1994, p.39). A flexibilidade quantitativa é ainda mais importante em setores de atividade com expressiva sazonalidade. Em todo caso, a atividade das empresas tende a ser mais instável, em decorrência da maior instabilidade da demanda dos produtos e do próprio acirramento da competição entre empresas. O elevado desemprego no quadro político hegemônico desfavorável aos trabalhadores organizados tem diversas implicações: 1) aumenta a pressão das empresas sobre os empregados permanentes para que obtenha melhores resultados; 2) amplia a fração de postos de trabalho correspondentes a empregos temporários; 3) incrementa as diferenças entre os empregados permanentes e temporários. Esta segmentação da classe trabalhadora atinge mais contundentemente os jovens e as mulheres. A desverticalização da produção e a flexibilização do trabalho foram acompanhadas de outros dois fenômenos com efeitos desfavoráveis à situação dos trabalhadores. De um lado, a ampliação e diversificação das demandas de proteção social não foram acompanhadas pela elevação dos recursos necessários para o atendimento dessas demandas. Uma parte dessas demandas foi canalizada para o sistema privado de proteção social, que se desenvolveu como desdobramento do sistema financeiro (por exemplo, os planos de saúde e fundos de pensão). De outro lado, os sindicatos tiveram dificuldade para encaminhar soluções aos novos problemas trabalhistas, notando-se uma redução do poder de barganha dos sindicatos na maioria dos países (Baglioni, 1994). No pós-guerra, a contratação coletiva do trabalho foi parte de um processo virtuoso de estruturação mais ampla da sociedade, contribuindo para evitar que a heterogeneidade dos empregos gerados se refletisse em amplas diferenças de renda do trabalho e 278 estilos de vida dos trabalhadores. As leis do trabalho, o sistema de proteção social e os sindicatos interagiram positivamente no pós-guerra, ajudando a dar legitimidade à atuação do poder público a favor do desenvolvimento do sistema nacional de produção de bens e serviços. Esta construção política da regulação pública do trabalho fez com que a compra e venda da força de trabalho fosse bastante diferente de uma bolsa de mercadoria.3 Oliveira (1994) acrescenta que a regulação pública das relações de trabalho e a elevação do padrão de vida dos assalariados são testemunho de que foi possível encaminhar, positivamente, a luta de classe, compatibilizando o lucro das empresas com a melhora de condições de vida dos trabalhadores. A desregulação da economia, o acirramento da concorrência e a hegemonia política neoliberal colocaram a agenda de flexibilização do trabalho invertendo a lógica de regulação pública anteriormente prevalecente nos campos econômico, político e trabalhista. De fato, os anos 1980 representaram uma ruptura da regulação social do mercado e das relações de trabalho, procurando restabelecer o livre arbítrio dos empregadores na contratação e na determinação das regras de uso e remuneração da mão-de-obra (Krein, 2007; Dedecca, 1999). A flexibilização do trabalho não somente colocou em xeque o padrão de relações de trabalho construído no pós-guerra, mas descortinou uma perspectiva de fortalecimento da lógica de mercado na contratação de força de trabalho, que tem se tornado mais parecida a uma bolsa de mercadoria.4 trabalhadores trazidos com as mudanças na organização da produção, promovidas pelo acirramento da competição, levando à internacionalização de importantes cadeias produtivas. As vendas dos produtos finais dessas cadeias internacionalizadas foram as que apresentaram maior ritmo de crescimento no capitalismo contemporâneo, sendo expressão do avanço técnico que permitiu a criação de uma série de novos produtos. A crise da dívida externa e o modo como ela foi enfrentada paralisou a acumulação de capital no país, que ficou defasado diante das grandes mudanças ocorridas na organização de bens, ao longo da década de 1980. A internacionalização dessas importantes cadeias de produção de bens fez com que o desempenho das economias nacionais, abertas ao comércio e às finanças entre países, dependesse muito da evolução de suas exportações, mesmo quando estas são relativamente pequenas em comparação com o consumo e o investimento. Para usufruir, plenamente, da redução de custo que a internacionalização da produção de bens trouxe, é necessário que o país tenha capacidade para ampliar as suas exportações, de modo a manter sólido o balanço de pagamentos. O contexto pós-abertura, em que a ampliação do consumo e do investimento continuam sendo os principais determinantes de crescimento do PIB, acarreta forte aumento da importação. Além disso, o financiamento internacional da economia implica expressivos déficits na conta renda financeira do balanço de pagamentos (Baltar, 2003). A entrada na globalização, de modo a favorecer o país, exigia a promoção do desenvolvimento de seu sistema de produção de bens, que tinha INSERÇÃO BRASILEIRA NA GLOBALIZAÇÃO ficado defasado na década de 1980, de modo a garantir as possibilidades de ampliação da exporA maneira como o Brasil se inseriu na tação e de competição com a importação, para que globalização agravou os efeitos desfavoráveis aos esta última não aumentasse desproporcionalmente, fazendo com que um expressivo crescimento do 3 Nas palavras de Esping-Andersen (Hyman, 2005), hou- PIB pudesse ocorrer com um balanço de pagamenve uma “desmercantilização“ da força de trabalho. 4 A visão de que a humanidade estava caminhando para to sólido. Isto não foi feito. As cadeias internaciom processo de “desmercadorização” da força de traba- nais de produção de bens foram estruturadas por lho, na expressão de Esping-Andersen (1990), perdeu sentido, pois tem havido uma fragilização do sistema de grandes empresas transnacionais. A liberalização proteção social e da contratação coletiva do trabalho da importação no Brasil foi indiscriminada e sem (Hyman, 2005). 279 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... exigir dessas grandes empresas contrapartida na exportação de produtos manufaturados pelo país. Além disso, a entrada de capital não foi controlada e permitiu-se a valorização da moeda nacional, que dificultou, ainda mais, o desenvolvimento da produção e a capacidade de exportação e de competição com a importação (Santos, 2013). Na realidade, a entrada na globalização foi precipitada e passiva, porque foi usada para reduzir a inflação, que tinha ficado muito alta com a crise da dívida externa e o modo como ela foi enfrentada. A ilimitada importação barata de produtos manufaturados, coberta pela entrada de capital, ajudou a baixar a inflação, mas agravou os efeitos da falta de ação do poder público para desenvolver o sistema de produção de bens de modo a ampliar a exportação e evitar o aumento desproporcional da importação. Além disso, o país ficou muito exposto à instabilidade do sistema financeiro internacional. A crise do México, logo depois da implantação do Real, ameaçou a eficácia do plano de estabilização, que dependia da preservação do nível da taxa nominal de câmbio. Para evitar o aumento da taxa de câmbio, com a fuga de capital, o governo aumentou a taxa de juros, prejudicando todos que usavam o crédito em moeda nacional, particularmente o próprio governo, que precisa administrar o refinanciamento da dívida pública. Imobilizado pelo ônus do refinanciamento da dívida pública com altas taxas de juros e sem mais contar com as empresas estatais que foram privatizadas, o Estado brasileiro perdeu grande parte de sua capacidade para coordenar a realização dos investimentos públicos e privados necessários para ampliar a infraestrutura e desenvolver o sistema produtor de bens e para viabilizar o crescimento continuado da economia. O PIB cresceu lentamente, a taxa de investimento pouco aumentou e houve déficit no comércio com outros países, agravando o déficit de conta corrente do balanço de pagamentos, associado, basicamente, às contas de serviços e especialmente dos serviços financeiros. A produção industrial foi especialmente prejudicada e sua interrelação com a prestação de serviços é fundamental para a geração de empregos de melhor qualificação e renda. A escassa criação desses empregos foi um aspecto importante do agravamento das consequências deletérias gerais das novas formas de organização da produção sobre os trabalhadores. As novas formas de organização da produção dificultaram a construção de empregos de nível de renda intermediário e também fizeram proliferar os empregos de baixo nível de renda. Já os efeitos da maneira como o Brasil entrou na globalização limitaram, também, o surgimento de empregos de alta renda (Quadros, 2008; Baltar, 2003). As repercussões negativas da inserção do Brasil na globalização sobre os trabalhadores aparecem na condição de atividade da população, na posição das pessoas na ocupação e no tipo dessas ocupações. (Baltar et al, 2010) O crescimento da população economicamente ativa (PEA) continuou muito intenso ao longo da década de 1990. A crescente participação das mulheres adultas na atividade econômica foi a principal responsável pela continuidade desse crescimento da População Economicamente Ativa – PEA, pois o declínio do crescimento demográfico, que vem ocorrendo desde o final da década de 1960, já estava começando a reduzir o contingente de população que alcança a idade ativa. A economia brasileira não gerou oportunidades para ocupar essa crescente população ativa e a taxa de desemprego, no final da década, ficou mais do que o dobro da que prevaleceu no final da década anterior (Pochmann, 2001; Santos, 2013). O emprego na agropecuária diminuiu ao longo da década de 1990 apesar da expressiva ampliação da produção. A elevação da produtividade e as mudanças na composição da produção por tipo de bens agrícolas explicam essa redução na geração de oportunidades de emprego neste setor de atividade. No conjunto das demais atividades da economia, a ocupação de pessoas aumentou, porém em ritmo bem menor do que no passado, menor, inclusive, do que a década de 1980, quando a crise da dívida paralisou a economia brasileira. A produção dessas atividades não-agrícolas continuou com um medíocre crescimento e os se- 280 tores com produtos suscetíveis de comércio com outros países, seja exportação ou importação, perderam a capacidade de geração de emprego e renda, em consequência da globalização. Foi notável a redução do emprego nas grandes empresas, especialmente as da indústria de transformação, construção civil, serviços de utilidade pública, finanças e transporte. Nem toda a redução do emprego nas grandes empresas foi eliminação pura e simples de postos de trabalho. Foi intensa a contratação de serviços de terceiros, que deslocou emprego das grandes empresas para as menores, além de provocar a ampliação do trabalho por conta própria. O crescimento do emprego continuou expressivo no comércio, em serviços de apoio às empresas e nas atividades sociais do tipo educação, saúde, previdência e assistência social (Baltar, 2003). O crescimento do emprego em estabelecimento econômico, entretanto, foi muito pequeno, proporcionalmente bem menor do que a ampliação do emprego no serviço doméstico remunerado e no trabalho por conta própria. Além disso, o número de empregadores também aumentou muito com a proliferação de pequenas empresas. Essas mudanças na composição das oportunidades para ocupar a PEA em atividades não-agrícolas foram acompanhadas de forte redução na proporção dos empregos formalizados em conformidade com a legislação trabalhista (Baltar, 2003). A proliferação de empregos que desrespeitam as leis do trabalho foi uma manifestação peculiar dos anos 1990, evidenciando os efeitos deletérios sobre os trabalhadores da inserção brasileira na globalização e teve a ver com um relaxamento na imposição dessas leis, por um governo que estimulou a iniciativa privada, diante de um quadro de forte estreitamento do mercado de trabalho e com uma PEA que continuou aumentando fortemente (Baltar, 2003). No sistema brasileiro de relações de trabalho, as leis são muito importantes na definição das regras e normas que estabelecem a relação de emprego e proteção social. A legislação é detalhada, mas o empregador tem muita liberdade para dispensar força de trabalho e, no caso dos empregos onde é elevada a rotatividade, os salários podem ser alterados em função das empresas, sem desrespeitar a legislação. Nesses empregos de alta rotatividade não se acumula tempo de serviço e, portanto, o montante da indenização ao dispensado é relativamente pequena. Não obstante, a proliferação de pequenos negócios na década de 1990 foi acompanhada de crescente ilegalidade, com ausência do registro da empresa no CNPJ e o não cumprimento das leis do trabalho e da previdência social. A ilegalidade prejudicou os trabalhadores e a arrecadação de impostos e contribuições sociais, mas a reação do poder público não foi impor a lei, mas criar um sistema (SIMPLES) que não somente simplificou, mas também diminuiu os encargos trabalhistas das micro e pequenas empresas (MPE). Os efeitos desse sistema na formalização das MPE e de seus contratos de trabalho aumentou somente depois que o governo de orientação neoliberal teve que reforçar a arrecadação de impostos e contribuições sociais, quando foi obrigado a obter superávit de arrecadação em relação às suas despesas não financeiras, para absolver no orçamento uma parte importante dos juros pagos pela crescente dívida pública. Ocorreram, nos anos 1990, diversas iniciativas governamentais para promover alterações pontuais nas leis do trabalho e da previdência social. Essas mudanças pontuais proporcionaram ainda mais liberdade de ação aos empregadores na contratação e na definição da jornada e da remuneração. Ampliaram-se as possibilidades do contrato temporário, para além das excepcionalidades previstas na legislação anterior, criou-se o contrato por tempo determinado, antes proibido pela legislação e facilitou-se a contratação como pessoa jurídica (PJ) – que não contrata nenhum empregado , além de facilitar a existência de cooperativas de mão-de-obra. Quanto à jornada de trabalho, permitiu-se o trabalho aos domingos no comércio e instituiu-se o banco de horas para facilitar a modulação da jornada trabalhada, evitando o pagamento de adicional por horas extras. Finalmente, quanto à remuneração, proibiu-se a indexação dos salários e facilitou-se o uso da remuneração variá- 281 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... vel, que não é considerada salário, e, portanto, varia mais facilmente e nela não incidem os encargos trabalhistas. Além dessas mudanças pontais na legislação, tentou-se, sem êxito, alterar o conjunto da legislação trabalhista ao estabelecer que o negociado pelas partes prevalecesse sobre o determinado pela legislação (Krein, 2007). Num quadro de desemprego e ilegalidade das relações de trabalho e com uma posição do governo relutante na imposição da lei e promovendo alterações visando a dar maior liberdade de ação aos empregadores, observou-se uma tendência da negociação coletiva se descentralizar, predominando acordos por empresas em relação à convenção coletiva. Nesses acordos por empresa, tendeu a prevalecer uma estratégia defensiva de fazer concessões, procurando preservar os empregos existentes ou buscando compensar a dificuldade da negociação salarial na convenção por acordos de participação nos lucros e resultados. O quadro se modificou e ficou mais desfavorável aos trabalhadores quando, depois da crise da Ásia e da Rússia, o Real se desvalorizou no início de 1999, gerando como consequência o aumento da inflação e a diminuição do poder de compra dos salários. A fuga de capital, provocada pela repercussão no mercado financeiro internacional das crises dos mercados emergentes, paralisou o crescimento do PIB e aumentou o desemprego. Sem crescimento do PIB, com aumento do desemprego e da inflação, os reajustes da grande maioria das categorias profissionais não conseguiram impedir a queda no poder de compra dos salários. O governo, entretanto, aumentou o valor do salário mínimo acima da inflação, de modo que a queda da renda do trabalho, ocorrida entre 1999 e 2004, foi acompanhada pela redução nas diferenças de renda entre os trabalhadores. O aumento do poder de compra das remunerações mais baixas já vinha ocorrendo desde meados da década de 1990, acompanhando a elevação do valor do salário mínimo e o aumento da idade das pessoas nessas ocupações de baixa remuneração. Apenas em categorias ocupacionais de renda muito baixa como o emprego agrícola sem carteira, o trabalho familiar na prestação de serviços para as indústrias de calçados e confecções no nordeste e empregos domésticos de pessoas muito jovens sem carteira de trabalho não foram beneficiados pelo aumento no valor do salário mínimo, que aconteceu desde 1995 e que se encontrava em um nível muito baixo. Na década de 1990, entretanto, a posição predominante no debate sobre o trabalho no Brasil deu como dado a continuação do lento crescimento da economia e centrou a discussão na necessidade de redefinir as regras e normas que regem a relação de emprego para dar liberdade de ação às empresas (Krein, Santos e Nunes, 2011). Os aumentos do desemprego e da ilegalidade dos contratos de trabalho evidenciaram a deterioração do mercado de trabalho. Para aqueles que opinam não haver alternativa a uma inserção passiva na globalização, duas posições diferentes sobressaíram quanto à agenda de problemas a ser enfrentada na área trabalhista. Uma dessas posições (Pastore, 1995; Zylbertjan, 1988) destacou a necessidade de acabar com a rigidez provocada pelas regras que regulam a relação de emprego, que, no Brasil, são fortemente marcadas por um arcabouço legal muito detalhado, que estabelece direitos e obrigações, deixando pouco espaço de adaptação em negociação direta das partes da relação de emprego. Ou seja, conforme essa posição, as leis teriam que ser modificadas para permitir maior flexibilidade na contratação, uso e remuneração do trabalho. Empresas e empregados teriam mais liberdade para se adaptar à realidade da economia globalizada e de produção internacionalizada. A empresa pagaria estritamente pelas horas trabalhadas e não teria tantos encargos associados à contratação de mão-de-obra e o salário pela hora trabalhada seria negociado diretamente pelas partes em função das circunstâncias enfrentadas pela empresa, levando em conta as dificuldades de recrutamento e de adaptação dos trabalhadores aos postos de trabalho. Nessa perspectiva, portanto, a agenda é a de desconstrução das leis do trabalho, deixando para as partes a negociação dos contratos, sem previsão dos mecanismos que viabilizassem uma 282 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein põem a competitividade do empregador. As duas posições mencionadas destacam as virtudes da abertura, no sentido de promover a iniciativa privada e a competição, e, se levaram a resultados negativos de emprego e renda, foi porque o ambiente legal e institucional não se mostrou adequado para uma resposta positiva de empresas e empregados aos estímulos do acirramento da competição. O debate, então, deveria se centrar na necessidade de modificar o arcabouço legal e institucional. Uma terceira posição (Cardoso, 1999), menosprezada ao longo da década de 1990, destacou a própria maneira como se fez a abertura da economia na globalização financeira e internacionalização da produção e não os condicionantes legais institucionais do comportamento de empregadores e empregados na contratação, uso e remuneração do trabalho. As mudanças na organização da produção, com lento crescimento do PIB, aumentaram o desemprego e a ilegalidade dos contratos de trabalho e as alterações pontuais no arcabouço legal institucional apenas agravaram a precariedade do trabalho (Krein, Santos e Nunes, 2011). A REDEFINIÇÃO DOS TERMOS DO DEBATE SOBRE TRABALHO NO BRASIL COM A RETOMADA DO CRESCIMENTO ECONÔMICO EM 2004 A maneira como o Brasil fez a abertura deixou a economia extremamente dependente da situação internacional em termos de finanças e comércio. Assim, as crises da Ásia e da Rússia em 1997 e 1998 provocaram fuga de capital, deteriorando ainda mais a situação do mercado de trabalho como mostra a elevação da taxa de desemprego e a queda expressiva do poder de compra da renda do trabalho entre 1998 e 2003. O desemprego aumentou com a queda na taxa de crescimento do PIB. A combinação de aumentos do desemprego e da inflação provocou uma diminuição substantiva do poder de compra da renda do trabalho (Baltar et al, 2008). 283 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 contratação coletiva, mesmo que estritamente ao nível do local de trabalho. A outra posição (Camargo; Amadeo, 1996), que também valoriza o efeito da abertura da economia, no sentido de liberar a iniciativa privada e intensificar a competição, achando inconveniente uma interferência pública para melhorar o desempenho da economia e geração de emprego e renda, destaca, na raiz do aumento do desemprego e da ilegalidade dos contratos de trabalho, problemas de adaptação das empresas ao acirramento da competição, que não estaria induzindo comportamentos adequados de patrões e empregados na direção de um maior compromisso no local de trabalho, que favoreceriam o aumento da produtividade e da competitividade. Esta posição tem uma opinião diferente sobre o arcabouço legal determinante das normas de contratação, uso e remuneração do trabalho. A lei não impediria a liberdade de ação da empresa, mas aspectos importantes do arcabouço legal tendem a induzir comportamentos inadequados de trabalhadores e empregadores, prejudicando aquele compromisso favorável à produtividade e à competitividade. Assim, por exemplo, FGTS e seguro-desemprego generoso e com base em impostos estimulam comportamentos oportunistas de trabalhadores e empregadores, contribuindo para a existência de um regime de trabalho em que se evita o ônus de uma seleção mais criteriosa na contratação à custa da duração dos vínculos de emprego, em prejuízo da adaptação dos trabalhadores às características dos postos de trabalho e ao desenvolvimento de compromissos favoráveis à produtividade. A lei pressupõe que os contratos de trabalho têm duração indefinida e impõe penalidades e indenizações pela ruptura dos contratos, mas a reclamação dos direitos na Justiça do Trabalho pressupõe o desligamento dos empregados e a morosidade da Justiça termina estimulando acordos entre as partes que negociam o montante das indenizações. O próprio sindicato, mantido com recursos decorrentes de impostos e contribuições obrigatórias, não é induzido a buscar uma verdadeira representação dos empregados, cujo emprego e remuneração pressu- CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... A situação se reverteu completamente com os efeitos sobre a economia brasileira do crescimento da demanda e aumento dos preços internacionais das commodities, a partir de 2003. O crescimento do PIB ficou mais forte, a inflação diminuiu, cresceu muito o emprego formal e recuperou-se o poder de compra da renda do trabalho. Fortes aumentos do valor do salário mínimo e reajustes das categorias profissionais maiores do que a inflação fizeram com que a elevação do poder de compra da renda do trabalho acontecesse com diminuição das diferenças entre trabalhadores. Foi a primeira vez, desde 1960, que um aumento substantivo da renda do trabalho ocorreu com diminuição do índice de GINI. O crescimento do PIB, a diminuição do desemprego, o aumento do poder de compra da renda do trabalho e a queda da inflação, e tudo isso ocorrendo com ampliação das reservas internacionais em relação à dívida externa do país, criaram um clima na economia brasileira em que as famílias passaram a se endividar para ampliar o consumo, apesar das elevadas taxas de juros, e os bancos atenderam a essa maior demanda de crédito. O intenso crescimento do consumo foi fundamental para o bom desempenho da economia brasileira e a melhora dos indicadores do mercado de trabalho desde 2004 (Baltar et al, 2008). Esse quadro de crescimento da economia e de melhora dos indicadores do mercado de trabalho redefiniu os temas da agenda de debates na área trabalhista. A melhora nas condições de funcionamento da economia brasileira, permitida pela expansão das exportações, viabilizou a simultaneidade de intensos aumentos de emprego e de salários com redução da inflação, contrariando opiniões pessimistas que costumam relacionar, inversamente, os níveis de emprego e salário, e, diretamente, o aumento dos salários e inflação. Essa simultaneidade de indicadores positivos da produção, do emprego, do salário e dos preços ocorreu sem qualquer alteração mais substantiva do arcabouço legal institucional que determina as condições de uso, contratação e remuneração do trabalho, mostrando a precipitação das conclusões das duas vertentes predominantes do debate da área trabalhista nos anos 1990, que minimizaram o papel de tentar influir nas condições de funcionamento da economia, destacando, exclusivamente, as alterações no arcabouço legal institucional da regulação pública do trabalho, adequando-o, enviezadamente, às mudanças na organização da produção, de modo a facilitar a flexibilização do trabalho e a liberdade de ação das empresas. A experiência dos anos 1990 e 2000 mostrou que os temas relevantes da discussão sobre regulação do trabalho são muito afetados pela maneira como evoluíram a produção, os preços, o emprego e os salários. As transformações na organização da produção, com sua internacionalização nos anos 1990, colocam problemas novos para a regulação pública do trabalho ao apontar para uma ampliação, como mencionado, da flexibilidade funcional e quantitativa. Nas condições políticas e de mercado de trabalho em que essas transformações ocorreram, na década 1990, a flexibilização foi sinônimo de precarização do trabalho, resultando em simples ampliação da liberdade de ação da empresa em um contexto desfavorável aos trabalhadores. No entanto, em uma situação política e de mercado de trabalho mais favorável aos trabalhadores, como nos anos 2000, os problemas novos, decorrentes das mudanças na organização da produção, poderão ser enfrentados pela regulação pública (leis e contratos coletivos), de um modo que não resulte em precarização do trabalho e, ao contrário, contribua para uma melhor estruturação do trabalho assalariado diante das novas tendências na organização da produção (Krein, Santos e Nunes, 2011). Uma das principais alterações na organização da produção foi o crescente uso de terceiros (terceirização). A terceirização coloca sérios problemas e tem sido uma fonte de precarização do trabalho. Em uma situação econômica mais favorável, é possível realizar um debate mais relevante acerca da terceirização. Esse debate tem, pelo menos, os seguintes aspectos: que atividades podem ser terceirizadas; proibição da atividade que seja simplesmente a alocação de mão-de-obra por parte de outra empresa; a representação dos terceirizados 284 seja a mesma que a dos empregados da empresa e, portanto, que ambos sejam protegidos pelo mesmo instrumento normativo;e responsabilidade solidária da contratante em relação à contratada, caso não sejam respeitados os instrumentos normativos. A regulamentação da terceirização deveria garantir essas condições no uso de terceiros para evitar que conduza à precarização do trabalho. As mudanças na organização foram acompanhadas pela proliferação de novas formas de contratos de trabalho. Algumas dessas formas de contratação não aparecem como relação de emprego, ou seja, a relação de emprego fica disfarçada: o uso abusivo de estagiários substituindo profissionais, as falsas cooperativas de trabalho, empregados contratados como autônomos ou pessoa jurídica. Essas modalidades de contratação buscam burlar a legislação vigente para diminuir despesas, constituindo fraudes que devem ser duramente reprimidas. No caso das contratações em que aparece o vínculo de emprego, destacam-se os diferentes tipos de contratos temporários (setor público e privado), por obra certa, safra, por prazo determinado. O que chama atenção é a ampliação da frequência e continuidade destes tipos de contratos. No caso das fraudes, é preciso fortalecer os instrumentos de fiscalização e as punições. No caso das contratações temporárias, é preciso melhorar sua regulamentação para evitar os abusos de contratos temporários em relação de emprego que poderia ser mais duradora. As mudanças na organização da produção têm levado a uma diminuição do corpo permanente dos empregados da empresa, intensificando a flexibilidade funcional dos permanentes e a flexibilidade quantitativa dos demais. Para muitos empregados, o próprio local de trabalho fica indefinido como no caso do teletrabalho. Além da proliferação dos contratos atípicos, observa-se a continuidade de altas taxas de rotatividade dos contratados por tempo indefinido. A rotatividade é agravada pela inexistência ou pela inoperância de mecanismos contra a dispensa imotivada e a debilidade da organização dos trabalhadores no local de trabalho. O fortalecimento desses mecanismos e organizações é fundamental para a redução da rotatividade, que prejudica uma melhor adaptação da força de trabalho às peculiaridades dos distintos postos de trabalho. A internacionalização da produção coloca a necessidade de uma ampla revisão do sistema de impostos e contribuições para a seguridade social. Nesse contexto, coloca-se a questão da desoneração da folha de salários, de modo a não penalizar a produção, que gera mais emprego sem prejudicar a arrecadação de recursos públicos. A discussão refere-se, explicitamente, à forma de cobrar os impostos e não à magnitude da carga tributária, hoje em 35% do PIB, sendo fundamental para a consolidação das políticas sociais definidas na Constituição Federal de 1988. As mudanças na organização da produção têm implicado em aumentos tão expressivos de produtividade que se coloca a discussão de como aproveitar esse avanço em termos de favorecer o bem estar da população. Nesta perspectiva, podese fazer uma contraposição entre ampliar o consumo privado de bens e serviços, ampliar os serviços públicos ou reduzir a jornada de trabalho em sentido amplo, que envolve, não apenas a jornada diária e semanal, mas também as férias e feriados, a aposentadoria, o retardamento da entrada dos jovens no mercado de trabalho. A opção na forma de como aproveitar os ganhos de produtividade tem diferentes implicações na regulação do trabalho. Por exemplo, a ampliação dos serviços públicos coletivos exigirá maior carga tributária. A opção de reduzir jornada e produção de bens e serviços tem implicações no sentido de diminuir a utilização de recursos naturais com benefícios ecológicos. As mudanças na organização da produção, com tendência de flexibilização e descentralização, têm implicado a intensificação do trabalho com efeitos deletérios sobre a saúde dos trabalhadores. O debate deste assunto é extremamente importante para informar a regulação pública do trabalho e ampliar as políticas de proteção social. A tendência de flexibilidade funcional tem sido acompanhada do aumento do peso da remuneração variável e constituído formas diferencia- 285 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... das de organização da jornada de trabalho (modulação, turnos, escalas). Estas duas tendências têm provocado uma enorme diversidade de situações entre os trabalhadores, problematizando a própria existência da regulação pública do trabalho, que terá que contemplar a remuneração variável e a organização da jornada para delimitar a variedade de situações dos trabalhadores que dificulta a regulação pública do trabalho. As atuais tendências de flexibilização e de descentralização da produção colocam desafios para a regulação pública do trabalho, que terá que aperfeiçoar as normas, desde o marco legal até os apoios para fortalecer as instituições (públicas/estatais e entidades classistas) que produzem e fazem cumprir as normas do trabalho. Neste particular, hoje é mais necessário do que nunca o fortalecimento da organização dos trabalhadores no local de trabalho. Deste modo, uma evolução mais favorável aos trabalhadores da produção, emprego, salários e preços permitiu colocar, de modo mais adequado, as novas questões que devem ser enfrentadas pela regulação pública do trabalho, levantadas pelas tendências de mudanças na organização da produção. Essa evolução da produção, emprego, salário e preços ocorreu sem mudanças significativas na forma de inserção do país na economia mundial, mas esta última se comportou de modo mais favorável ao desempenho econômico do país. Esta realidade vem se modificando a partir da crise mundial. A melhora nos indicadores do mercado de trabalho no Brasil vem ocorrendo desde 2004 e não foi interrompida pela crise mundial. Com reserva internacional e com pouca dívida indexada ao dólar, a reação do governo ao impacto inicial da crise foi eficaz. A desvalorização do Real, em vez de piorar, melhorou as contas públicas ao aumentar o valor em reais das reservas internacionais. Dispondo de recursos, o governo pode agir para amortecer o impacto da crise. Reduziu, temporariamente, impostos indiretos sobre produtos, manteve a programação dos investimentos públicos, continuou aumentando o salário mínimo e fortaleceu os bancos públicos para que pudessem com- pensar a retração dos privados no atendimento da demanda de crédito. O PIB caiu somente 0,3% em 2009 e aumentou 7,5% em 2010. A intensidade da recuperação fez o novo governo, em 2011, atuar no sentido de conter a atividade da economia. Isto prejudicou a continuação dos investimentos públicos e a sustentação do crescimento do consumo. Diante desse quadro e dada a incerteza da situação internacional, o investimento privado, que tinha se recuperado fortemente em 2010, perdeu muito do seu ímpeto. O crescimento do PIB foi de somente 2,7% em 2011, evidenciando os efeitos da estratégia de conter o ritmo da recuperação neste ano. O governo, então, procurou reanimar a economia, mas o resultado foi muito menor do que o observado em 2010, e o crescimento do PIB foi somente 0.9% em 2012. Os estímulos determinados pelo governo contiveram a desaceleração do consumo, mas não impediram a queda do investimento que, em 2012, foi menor do que 2011. Existe um relativo consenso de que, atualmente, um crescimento mais forte do PIB requer a ampliação da taxa de investimento. O país não pode contar mais com uma evolução favorável dos termos de troca do comércio internacional que favoreceu o desempenho da economia brasileira em 2007 e 2008. Atualmente, é preciso aumentar a produtividade da economia para continuar melhorando a condição socioeconômica da população e isto requer investimento em infraestrutura e no fortalecimento da competitividade da produção manufatureira existente no país. A crise mundial prejudicou a atividade econômica nos países desenvolvidos e acirrou a competição internacional pela demanda de produtos manufaturados. A sustentação do crescimento do consumo no Brasil tem provocado um forte aumento da importação de produtos manufaturados em detrimento da produção doméstica, que chegou a diminuir em 2012. O déficit de comércio exterior com produtos manufaturados que tinha fica muito grande em 2008, multiplicou por 2,5 em 2011 e se repetiu em 2012. O comércio internacional de produtos ma- 286 nufaturados é, em grande medida, no interior das próprias empresas transnacionais. O Brasil ficou fora das cadeias de produção internacionalizadas e, mesmo onde não é grande essa internacionalização, as empresas multinacionais têm optado por importar partes e componentes da matriz ou de outras filiais onde apresenta grande capacidade ociosa, em vez de investir na ampliação da capacidade de produção instalada no Brasil. Esse movimento comercial reflete a estratégia das matrizes para enfrentar os efeitos da crise mundial e se mostrou pouco afetado pelo aumento da taxa de câmbio no Brasil. É preciso reverter esse movimento, negociando com as empresas investimentos no Brasil, como pré-condição para o acesso ao crescente mercado doméstico (Sarti; Hiratuka, 2011). A desaceleração do PIB em 2011 e 2012 mostrou as dificuldades encontradas para aumentar a taxa de investimento no quadro de crise mundial. A partir de então, existe um debate na sociedade brasileira sobre o papel do Estado para aumentar a taxa de investimento. Por um lado, o governo tem tomado uma série de medidas para estimular o investimento, tais como: a redução da taxa básica de juros, a elevação da taxa de câmbio, a redução do preço da eletricidade, a criação de empresas estatais para coordenar os investimentos privados em infraestrutura realizados por meio de concessões, entre outros. Por outro lado, é crescente a crítica a essas ações por parte dos setores conservadores e neoliberais, estabelecendo, em articulação com a grande mídia, um contraponto na perspectiva de reduzir o papel do estado e ampliar a liberdade de ação da iniciativa privada. É um embate que começa com o PAC e o fortalecimento dos bancos públicos, a partir de 2006. Essa é uma questão vital para a retomada do desenvolvimento da economia brasileira. A política econômica, entretanto, tem conseguido preservar a melhora nos indicadores do mercado de trabalho, amortecendo a desaceleração que tem ocorrido no crescimento do consumo. Este cresceu em média 5,4% ao ano em 2007 e 2008, manteve a média de 5,5% ao ano em 2009 e 2010 e se ampliou em média 3,2% ao ano em 2011 e 2012. A comparação dos períodos 2003/2008 e 2008/2012 mostra que o crescimento do PIB desacelerou da média de 4,8% ao ano para 2,6%. A desaceleração do crescimento da população ocupada, calculada pela PME/IBGE, foi menor ao passar da média anual 2,7 para 2.1%. O PIB por pessoa ocupada aumentou mais em 2003/2008 do que em 2008/2012, mas o poder de compra da renda média do trabalho continuou aumentando, apesar do aumento da inflação. O aumento nominal da renda média do trabalho foi maior do que a inflação. Contribuiu para isto tanto a ampliação dos serviços que explicam o aumento do emprego, apesar da desaceleração do PIB, quanto o enorme déficit de comércio externo de produtos manufaturados. O déficit de comércio externo de produtos manufaturados foi coberto pelo superávit de commodities, mas ocorreu expressivo déficit de conta corrente de balança de pagamento por causa dos serviços, especialmente a remessa de lucros e dividendos. O déficit de conta corrente foi coberto por entrada de capital, especialmente investimento direto estrangeiro. Porém a continuidade desta situação exigiria manter forte aumento das exportações, que até agora tem ocorrido com os altos preços das commodities. Estes, provavelmente, não reverterão no futuro próximo, mas não continuarão aumentando com tanto vigor como no passado recente. Portanto, a continuação da melhora nos indicadores no mercado de trabalho pressupõe o aumento da taxa de investimento, que aceleraria o crescimento do PIB e aumentaria mais fortemente o PIB por pessoa ocupada. O governo tem atuado nesta direção, como mencionado acima. É, entretanto, fundamental para o aumento da taxa de investimento a ampliação dos investimentos públicos e a negociação com as empresas multinacionais para que ampliem o investimento no Brasil e moderem a importação de partes e componentes de seus produtos. O crescimento mais vigoroso do PIB viabilizaria o crescimento mais robusto do consumo, ajudando a preservar o crescimento do número de pessoas ocupadas e mantendo a taxa de desemprego relativamente baixa. A PME indica que o número de desempre- 287 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... gados, que tinha atingindo o equivalente a 19,2% dos empregados assalariados em 2003, diminuiu para 11,3% em 2008 e alcançou 7,5% em 2012. A taxa da rotatividade do emprego assalariado formal é 4,5% ao mês. Para aumentar em 2% o emprego em um ano, é preciso contratações mensais da ordem de 4,7% do total do emprego assalariado. A existência de um número de desempregado equivalente a 7,5% do emprego assalariado não parece indicar que a economia esteja operando em pleno emprego. As empresas que estão aumentando o emprego não reclamam da dificuldade de encontrar trabalhadores disponíveis, mas sim, da inadequação dos trabalhadores às características dos postos de trabalho. Esse tipo de problema não tem tanto a ver com a baixa taxa de desemprego quanto reflete a existência de altas taxas de rotatividade no emprego. As empresas alegam que alta rotatividade reflete a inadequação dos trabalhadores disponíveis para os postos de trabalho. Porém, esse problema é reflexo da desestruturação do mercado de trabalho, devido, principalmente, à excessiva liberdade de ação dos empregadores que, além de pagar mal frente à sofisticação já alcançada do aparelho produtivo existente no país, dispensa o empregado logo que já não precisa dele. Não tem que justificar a ninguém a causa da dispensa, bastando indenizar o dispensado, sendo que essa indenização é pequena para quem não tem como acumular tempo de serviço. A rotatividade no emprego aumenta quando melhora o mercado de trabalho por iniciativa dos empregadores e dos próprios empregados. Isto coloca problemas no recrutamento e esses problemas ficam ainda mais graves com as tendências demográficas que vêm alterando, substancialmente, a composição da população brasileira por idade. No passado, enquanto a industrialização provocava forte crescimento do PIB e intensa expansão do mercado de trabalho, a elevada rotatividade no emprego renovava, constantemente, a força de trabalho assalariada. A parcela de empregados jovens continuava muito grande, realimentada por rápido crescimento da popula- ção, que, com baixa escolaridade, entrava precocemente no mercado de trabalho. Os jovens transitavam por empregos sem vínculo estável e, com a idade, encontravam crescentes dificuldades de recolocação, tendendo a ser expulsos do mercado de trabalho. Isto provocava uma alta fração da PEA adulta em trabalhos por conta própria. O adulto expulso do mercado de trabalho tinha que inventar um negócio próprio tivesse ou não condição para fazê-lo. Isto provocava uma dispersão de renda do trabalho por conta própria que era ainda maior do que a dos salários dos empregados. A população jovem está diminuindo e o aumento de sua escolaridade tem levado ao adiamento da entrada no mercado de trabalho. Isto tem mudado rapidamente a composição da PEA por grupo de idade. Uma força de trabalho assalariada mais adulta é menos maleável, tendendo a aumentar as reclamações dos empregadores quando há inadaptação dos trabalhadores disponíveis às características dos seus postos de trabalho. O que deve ser corrigido é a alta rotatividade no emprego, estruturando o trabalho assalariado, com as pessoas se vinculando a determinados postos de trabalho. O momento oportuno para essa correção de rumo é, justamente, quando a economia está crescendo e ampliando o mercado de trabalho. Não tem sentido a proposta de conter a atividade da economia na espera que melhore a oferta de trabalho. Ao contrário, uma economia crescendo cria as condições necessárias para construir o seu mercado de trabalho. Não nos parece adequado aumentar o montante da indenização visando reduzir a rotatividade. É mais eficaz fortalecer os instrumentos institucionais de controle da dispensa imotivada. A exigência de ter que justificar a dispensa perante um inspetor do trabalho ou um sindicato significa uma rigidez, mas, nesse caso, é, justamente, a extrema flexibilidade que está prejudicando o funcionamento do mercado de trabalho. Quando se trata da inadaptação da força de trabalho aos postos de trabalho, muitos remetem o problema ao baixo nível de qualificação profissional. Alguns chegam a pensar que esse baixo nível 288 de qualificação profissional tem a ver com baixo grau de escolaridade da força de trabalho. Esse tipo de questionamento, entretanto, diz respeito a uma pequena parcela da força de trabalho assalariada, que é altamente especializada e relativamente bem remunerada. A inadequação dos empregados aos postos de trabalho é uma questão muito mais ampla e atinge, também, postos de trabalho que não têm tantas exigências de qualificação profissional. Para essa grande maioria, o problema principal é a alta rotatividade, que impede a fixação dos trabalhadores no entorno de determinados postos de trabalho, que ajudaria os assalariados a se adaptarem às características dos empregos existentes. Caso isso acontecesse, as empresas passariam a contar com empregados profissionalmente melhor capacitados e os trabalhadores teriam melhores condições para se organizar e construir posições de barganha, na perspectiva de reivindicar, coletivamente, uma melhor participação nos aumentos de produtividade, reduzindo as enormes taxas de exploração que ocorrem no Brasil. A continuidade da melhora do mercado de trabalho pressupõe aumentar a taxa de investimento, o crescimento do PIB e o aumento da produtividade do trabalho na indústria e nos serviços funcionalmente relacionados ao desenvolvimento da indústria. Isto, provavelmente, aumentará a fração da força de trabalho que é mais especializada e melhor remunerada. Nesse caso, será fundamental estruturar o conjunto da força de trabalho assalariado, reforçando os mecanismos institucionais que reduzem a rotatividade e promovem aumentos mais generalizados da renda do trabalho (salário mínimo e reajustes das categorias profissionais), para que o aumento do poder de compra da renda do trabalho prossiga com redução das diferenças entre os trabalhadores. estar coletivo da população. Essa experiência ressaltou. não somente os efeitos positivos da construção da regulação pública do trabalho, mas também os efeitos deletérios da perda de eficácia desta regulação. De um lado, a regulação pública do trabalho, junto com a proteção social, estruturou a compra e venda da força de trabalho de modo a contribuir para estabilizar e reforçar a tendência de crescimento da produção e do emprego. De outro lado, mudanças contemporâneas no capitalismo desafiaram a regulação pública do trabalho e a ação coletiva dos trabalhadores. A perda de eficácia desta regulação ajudou a reforçar a instabilidade e a redução da tendência de crescimento da produção e do emprego, implicando desemprego e aumento das diferenças socioeconômicas entre os trabalhadores. A globalização financeira e a internacionalização da produção de bens e serviços estão no cerne das transformações contemporâneas no capitalismo. A organização da produção se modificou com tendência à descentralização e flexibilização do trabalho. O quadro político gestado pela predominância do neoliberalismo, não somente promoveu essas mudanças, mas também ajudou a ampliar o impacto desfavorável na regulação pública do trabalho, que, em vez de moldar as mudanças de maneira a evitar a precarização das relações de emprego, reforçou esses efeitos, apoiando a liberdade de ação dos empregadores para se adaptarem ao ambiente de acirramento da competição. A maneira como o Brasil entrou na globalização financeira e internacionalização da produção reforçou os efeitos deletérios sobre a regulação pública do trabalho. O oportunismo de aproveitar a globalização para diminuir, rapidamente, a inflação prejudicou o fortalecimento da economia na perspectiva de aumentar a exportação e a competitividade da produção doméstica diante da importação. O Brasil, que não tinha participado da internacionalização das cadeias de produCONSIDERAÇÕES FINAIS ção, continuou fora delas e com um sistema de produção voltado, fundamentalmente, para o merA experiência dos países desenvolvidos cado doméstico. mostrou a importância da regulação pública do traO desempenho da economia brasileira, em balho para a estruturação da sociedade e o bem termos de crescimento do PIB e inflação, ficou 289 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ... muito dependente da situação do comércio e das finanças internacionais. Na década de 1990, o comércio e as finanças internacionais foram desfavoráveis ao desempenho da economia brasileira e aumentou muito o desemprego e a ilegalidade dos contratos de trabalho. No debate sobre trabalho duas posições básicas se confrontaram: (1) a que valoriza os efeitos da abertura da economia, aumentando a competição entre empresas e advogando por uma mínima interferência estatal e; (2) a que destaca a importância desta última interferência para fortalecer a economia nacional, o que é particularmente importante diante da abertura que expõe essa economia à competição internacional. A primeira posição avalia o marco regulatório em função dos estímulos ao comportamento de empregadores e empregados, contribuindo, de modo consistente, para o uso eficiente dos recursos diante do aumento da competição provocado pela abertura. Deste ponto de vista, a flexibilidade do trabalho seria parte de uma acomodação da maneira de realizar os negócios sob intensa competição internacional, permitindo o aproveitamento das oportunidades existentes. A segunda posição, ao contrário, destaca a interferência do poder público para garantir a regulação pública do trabalho, na perspectiva de que as oportunidades de negócios sejam mais amplas e aproveitadas de um modo que ajude a construir relações de trabalho que contribuam para uma estruturação melhor da sociedade, legitimando a atuação do Estado. O comércio e a finança internacional favoreceram o desempenho da economia brasileira na primeira década dos anos 2000. Sem grande interferência estatal para fortalecer a economia nacional, foi possível um crescimento mais forte do PIB, gerando mais empregos formais, a inflação diminuiu e a renda do trabalho aumentou. Um quadro mais favorável aos trabalhadores reforçou a melhora nos indicadores do mercado de trabalho e intensificou o crescimento do PIB. Destacaram-se o aumento do valor do salário mínimo, os reajustes das categorias profissionais acima da inflação e a implementação de um sistema de proteção social em conformidade com os ditames da Constituição Federal de 1988. A melhora dos termos de troca do comércio exterior do país, favorecida pelos preços internacionais das commodities, desempenhou um papel análogo ao correspondente aumento da produtividade, sem que tivesse havido um aumento mais substantivo da taxa de investimento. No auge do crescimento, em 2007 e 2008, a produção industrial chegou a aumentar em ritmo significativo, apesar da explosão de produtos manufaturados. A ampliação do consumo e do investimento deu oportunidade para desenvolver a produção mais competitiva com importações. A crise mundial, que atingiu o Brasil no final de 2008, mostrou que o quadro internacional deixou de ser tão favorável ao desempenho da economia brasileira. É, então, necessário fortalecer a economia, ampliando a taxa de investimento para que o aumento da produtividade permita a continuação da melhora dos indicadores do mercado de trabalho e o PIB volte a crescer mais forte em benefício do conjunto da população brasileira. Isto, entretanto, pressupõe o aperfeiçoamento da regulação pública do trabalho de modo a impedir que as mudanças na organização da produção levem a uma precarização do trabalho. A retomada do crescimento, com maior taxa de investimento e o maior aumento da produtividade, deve aumentar a proporção de ocupações mais especializadas e melhor remuneradas. Neste contexto, é fundamental melhorar a regulação pública para reduzir a rotatividade, elevar o salário mínimo e ter reajustes das categorias profissionais compatíveis com a maior produtividade, evitando que a ampliação da fração de ocupações mais especializadas resulte em aumento da dispersão dos salários. O momento que o país atravessa é crucial na definição das possibilidades de desenvolvimento futuro da economia e da sociedade. As posições no debate se localizam entre dois polos: 1) a defesa de uma estruturação do mercado de trabalho com implicações na qualidade das relações sociais; 2) a afirmação dos negócios, que destaca a necessidade de maior flexibilização na contratação, 290 Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein no uso e na remuneração do trabalho. O embate dessas posições na sociedade se reflete no conteúdo e na forma das políticas públicas do trabalho e no modelo de desenvolvimento do país. Nesta avaliação mais ampla, não é possível desvincular a discussão da regulação ou estruturação do mercado de trabalho das questões centrais que definem qual será o modelo de desenvolvimento do país. Recebido para publicação em 06 de abril de 2013 Aceito em 11 de junho de 2013 CARDOSO, A. M. Sindicatos, trabalhadores e a coqueluche neoliberal. 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The debate in Brazil takes into consideration these aspects: 1) changes to contemporary capitalism have led to implications which are unfavorable to public regulation of labor and to collective action by workers; 2) the resurgence of economic growth has made it possible to redefine the terms of the debate on labor in Brazil; 3) the current crisis brings into discussion the possibility of the State taking a more active role in economic development; 4) demographic trends have increased the weight of the adult EAP, which has implications in the functioning of the labor market. The positions are polarized thus: 1) the defense of structuring the work market with implications in the quality of social relations; 2) business affirmation, which stresses the need for more flexibility in hiring, duties and pay for work. L’article établit une relation entre la dynamique du capitalisme contemporain au Brésil et les défis concernant la discussion pour une régulation publique du travail. Le débat au Brésil prend en considération les aspects suivants: 1) les transformations du capitalisme contemporain démontrent avoir des implications négatives pour la régulation publique du travail et pour l’action collective des travailleurs; 2) la reprise de la croissance économique a permis de redéfinir les termes du débat sur le travail au Brésil; 3) la crise actuelle remet en question la capacité de l’Etat à jouer un rôle plus actif dans le développement de l’économie; 4) les tendances démographiques sont en train d’augmenter le poids de la population économiquement active adulte, ce qui a des conséquences sur le fonctionnement du marché du travail. Les positions se situent entre deux tendances: 1) la défense d’une structuration du marché du travail avec des implications pour la qualité des relations sociales; 2) la déclaration des entreprises qui met en évidence le besoin d’une plus grande flexibilité au niveau des contrats, de l’utilité et de la rémunération du travail. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013 Key words: Labor. Regulation. Economy and MOTS-CLÉS: Travail. Régulation. Économie et développement. Flexibilité. development. Flexibilization. Paulo Eduardo de Andrade Baltar – Doutor em Ciência Econômica. Professor Associado da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia do Bem-Estar Social. Entre várias publicações em periódicos e livros, é coorganizador (com José Dari Krein e Carlos SALAS) de Economia e trabalho: Brasil e México. 1ª ed. São Paulo: LTr, 2009. v. 7. 271p. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho. José Dari Krein – Doutor em Economia Social e do Trabalho. Professor da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Emprego, Relações de Trabalho, Sindicalismo e Negociação Coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: flexibilização, legislação trabalhista, reforma, sindicalismo, trabalho, reestruturação produtiva, emprego, tecnologia, trabalho, salário mínimo e desenvolvimento econômico. Publicou, entre artigos e livros, As relações de trabalho na era do neoliberalimo no Brasil. 1a. ed. São Paulo: LTR, 2012, v. 8, 319p. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia. 292 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO: elementos para uma agenda de investigação Adalberto Cardoso* DOSSIÊ Adalberto Cardoso APRESENTAÇÃO A crise econômica iniciada em 2008, que completa seu quinto ano enquanto escrevo, acendeu a luz vermelha nos países mais ricos do mundo no que respeita às chances de inserção dos jovens no mercado de trabalho. Uma situação que era pensada como típica dos países do sul da Europa (em especial Espanha, Itália e Portugal) disseminou-se pelo continente. Refiro-me à condição “ni ni”, denominação espanhola para os jovens que não estão nem na escola nem trabalhando. Dados para os 34 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE – revelam que 16% dos jovens de 15 a 29 anos estavam nessa condição em 2010,1 sendo que * Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – IESP-UERJ –, Pesquisador Associado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento e do Warwick Institute for Employment Research, Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e Pesquisador 1 do CNPq. Rua da Matriz, 82. Cep: 22260-100. Botafogo – Rio de Janeiro, RJ – Brasil. [email protected] 1 A OCDE utiliza o acrônimo NEET (Neither Employed, nor in Education and Training) para designar o fenômeno dos jovens que não estudam nem trabalham. Ver OCDE (2012). a taxa era de 18% entre as mulheres e 14% entre os homens (OCDE, 2012, p. 382). Em razão da disposição militante dos jovens, depois da crise de 2008, esse quadro de 2010 foi tratado por muitos como crítico, isto é, fruto de surpreendente dissolução das estruturas anteriores de probabilidade de acesso a posições na escola ou no mercado de trabalho. Contudo, olhando os dados da OCDE em mais detalhe, descobre-se que a incidência do fenômeno é bem mais disseminada e extensa no tempo, isto é, a “condição nem nem” não é uma novidade nas dinâmicas social e econômica contemporâneas. Tomando-se o período de 1997 a 2010, entre os jovens de 20 a 24 anos a média de “nem nem” naqueles países mais ricos nunca foi inferior a 13%, atingindo o pico de 17,6% em 2010.2 A novidade, então, parece ser o aumento importante da intensidade do fenômeno, concentrado num período muito curto de tempo, que lhe deu estatura de problema social e político de monta. Neste artigo, não se pretende analisar o fe2 Ver a tabela total em http://dx.doi.org/10.1787/888932667520. 293 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 A crise econômica pós-2008, acompanhada de grandes protestos sociais em toda parte, acendeu a luz vermelha nos países mais ricos quanto às oportunidades de trabalho e estudo dos jovens. Aumentou muito a proporção daqueles que não estudam nem trabalham, em especial na Espanha e na Grécia, mas o fenômeno é disseminado nos países mais ricos. O artigo mostra que, no Brasil, a condição “nem nem” é estrutural, e propõe um modelo analítico de explicação das transformações ocorridas entre 2000 e 2010. Sugere que as mudanças estruturais por que passou o país e as políticas públicas de redução de barreiras ao acesso à escola e ao mercado de trabalho reduziram o impacto das desigualdades regionais e aumentaram o peso da pobreza na explicação da condição “nem nem” dos jovens. PALAVRAS CHAVE: Juventude. Mercado de trabalho. Mudanças estruturais. Condição “nem nem”. Modelos causais. JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 nômeno nos países mais ricos, e sim, tomá-los como referência para a análise do caso brasileiro. Por que, entre nós, o problema, também geral e extenso no tempo, não tinha ganhado, até pelo menos meados de 2013, as mesmas tintas explosivas? Depois de comparar as duas realidades e elaborar teoricamente a persistência do problema geracional no mundo contemporâneo, procuro responder a essa pergunta construindo um modelo logístico de explicação da probabilidade de um jovem estar na condição “nem nem” no país, comparando 2000 e 2010 a partir dos dados dos cen- sos demográficos do IBGE. Argumento que a “condição nem nem” é fruto da conjunção de dois feixes de determinantes: de um lado, os contextos de inserção social dos jovens (a família, o sistema escolar e o mercado de trabalho); e, de outro, as trajetórias dos indivíduos. Os dois feixes são marcados por desigualdades de todo tipo, e o objetivo da análise é identificar tendências e mudanças no tempo, formular hipóteses sobre a direção dessas mudanças e seu efeito na relação dos jovens com a condição “nem nem”, e, por fim, levantar questões de pesquisa e de políticas públicas para o país, relacionadas ao problema da juventude e sua relação com o trabalho e o desenvolvimento. Um dos principais argumentos sustentados aqui é o de que o caráter estrutural do fenômeno “nem nem” no Brasil é um dos elementos centrais da também estrutural resistência à queda dos indicadores de desigualdade econômica e social, o que abre os horizontes do combate à desigualdade para a inclusão desse fenômeno, estrutural e persistente, na agenda das políticas públicas e da pesquisa social por aqui. UM FENÔMENO ESTRUTURAL Desdobremos os dados disponíveis para alguns países ricos segundo o sexo. O Gráfico 1 ilustra a evolução da proporção de homens e mulheres entre 15 e 29 anos de idade que não estavam nem estudando nem trabalhando nos 21 países da 294 União Europeia,3 para o período 1997-2010, segundo faixas etárias. Chama a atenção a dessemelhança segundo o sexo, tanto nas proporções quanto no movimento das curvas temporais das diversas faixas etárias. As proporções de homens “nem nem” são sempre menores do que as de mulheres, e o impacto da crise de 2008 foi muito mais intenso no caso deles, que viram a taxa de exclusão da escola e do trabalho subir mais de 3 pontos percentuais nos dois anos posteriores ao estouro da bolha imobiliária norteamericana, contra 1 ponto percentual no caso delas. Descendo aos detalhes, a linha micropontilhada expressa o total da população analisada (15 a 29 anos) de cada sexo. Por ela vemos que, entre 1997 e 2008 a taxa de mulheres “nem nem” caiu quase constantemente (ficando estável entre 2003 e 2005), saindo de pouco mais de 20% para atingir 15% ao final do período de 12 anos, voltando a aumentar um ponto percentual de 2008 a 2010. O ano de 2008, pois, foi momento de inflexão num processo contínuo de redução do que eu denominarei aqui, provisoriamente, de “taxa nem nem de exclusão” das mulheres. Esse movimento pode ser explicado pela também contínua entrada delas no mercado de trabalho, processo cujas raízes remontam, na Europa, aos anos 1960, mas que, aparentemente, ainda não se completou.4 Note-se que a 3 A OCDE inclui os países mais ricos, como os da União Europeia, Estados Unidos, Japão, Austrália e Canadá, além de países de renda média como México e Chile. A maior diversidade interna à OCDE justifica um olhar mais refinado nos países europeus, que, ademais, sofrem de maneira muito pronunciada os efeitos da crise de 2008 sobre o emprego dos jovens. 4 Para análise de longo curso sobre o processo de inclusão das mulheres no mercado de trabalho na Europa como um todo, ver Crouch (1999) e também Costa (2000). A vasta literatura sobre o tema enumera uma série de explicações, concomitantes ou concorrentes segundo o caso, tais como a redução da taxa de fecundidade, dos encargos com filhos (assumidos pelos Estados de Bem estar, como creches e escolas), maior duração das licenças maternidade e paternidade (que reduzem a incompatibilidade entre ter filho e manter o emprego), mudanças de mentalidade quanto à divisão sexual do trabalho no mundo doméstico, mudanças na divisão social do trabalho por sexo, redução do emprego industrial e aumento do emprego nos serviços e comércio, políticas ativas de emprego em favor das mulheres, expansão de formas flexíveis e temporárias de emprego (como mostrado em OCDE, 2002), atraentes para mulheres com filhos e os desempregados, dentre as mais importantes. Para estudos comparativos mais recentes numa literatura sempre em expansão, ver Thevenon (2009) e, numa perspectiva econométrica, Cipellone et al (2012). queda mais intensa ocorreu junto às mulheres entre 25 e 29 anos, seguidas pelas de 20 a 24. No primeiro grupo, boa parte, senão a maioria delas, já havia completado seus estudos. Logo, o que está sendo ilustrado é um processo constante de troca, pelas mulheres, de formas de inscrição social centradas no mundo doméstico, pelo mercado de trabalho. A queda na faixa de 20 a 24 anos também é expressiva (7 pontos percentuais até 2008) e denota o mesmo processo de incorporação ao mercado de trabalho, elemento menos presente na faixa etária mais jovem (15 a 19 anos), cujas proporções das que estavam na escola ainda eram muito altas. Na verdade, segundo a mesma fonte de dados, para essas adolescentes a redução da proporção de “nem nem” se deveu não à entrada no mercado de trabalho, mas, sobretudo, ao aumento da proporção que continuou estudando. No caso dos jovens homens, os movimentos são menos intensos até 2008, e mais abruptos a partir de então. A linha micropontilhada (que ilustra toda a amostra de 15 a 29 anos) revela pequena variação em torno da média de 11% entre 1997 e 2004, caindo mais fortemente até 2008 para, então, crescer de forma importante até 2010, atingindo quase 14% de “nem nem”. Tal como no caso das mulheres, as maiores taxas de exclusão do binômio escola-trabalho se deram na faixa de 20 a 24 anos e de 25 a 29 anos (ambas com crescimento de 5 pontos percentuais, ou mais, em apenas dois anos), e as proporções foram bem maiores no caso deles. É importante notar que, tanto no caso dos homens quanto no das mulheres nessas faixas etárias, entre 2008 e 2010 aumentou um pouco a proporção dos que permaneciam na escola (com isso adiando sua entrada no mercado de trabalho), o que quer dizer que o aumento dos “nem nem” deveu-se, quase exclusivamente, ao desemprego de jovens antes ocupados, e que já tinham deixado a escola. E o processo é mais intenso para os homens do que para as mulheres.5 5 A literatura econômica sobre a entrada das mulheres no mercado de trabalho tem chamado a atenção para o fato de que elas competem, sobretudo, com os homens mais jovens, com isso contribuindo para aumentar sua taxa de desemprego (Pissarides et al., 2003). 295 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... Desse ponto de vista, parte do fenômeno midiaticamente tratado como novo, que estaria afetando de forma diferenciada uma geração específica, agora rotulada de “geração nem nem”, na verdade é desemprego juvenil em larga escala, ocorrendo entre jovens que já haviam deixado a escola para trabalhar e que, diante da redução das perspectivas do mercado de trabalho, já não conseguem emprego, ou decidiram, ou estão em condições (tendo em vista as salvaguardas dos estados de bem estar na Europa ou as redes de proteção familiar) de esperar por uma ocupação num futuro melhor.6 Pequena parte dos afetados pela crise retomou os estudos, enquanto outra pequena parte dos que, de outro modo, teriam deixado a escola, decidiu permanecer nela, aspecto mais saliente entre as mulheres de 15 a 24 anos. Mas proporção elevada dos jovens europeus (mais de 18% dos jovens de 20 a 29 anos, valor que chegou a 22% na Grécia e 28% na Espanha em 2010, segundo a mesma fonte do Gráfico 1) simplesmente não tinha emprego para si, já tendo abandonado a escola.7 O mais importante a reter desses dados, contudo, é que estamos diante de um fenômeno estrutural, que atinge proporções relevantes de homens e mulheres jovens há muito tempo (portanto, devemos falar de gerações sucessivas de “nem nem”), tendo-se agravado depois de 2008, a ponto de provocar uma crise social de proporções continentais, colocando os jovens, uma vez mais, no centro da contestação à ordem econômica global e suas instituições de sustentação, nacionais e supranacionais.8 O agravamento do fenômeno transformou-o de questão estrutural em problema 6 Para os regimes mistos de bem estar na Europa e na América Latina, ver Dombois (2012). 7 Estudo importante da condição “nem nem” no Japão é Brinton (2011). A autora mostra como a crise dos anos 1990 rompeu o padrão de transição de escola para o trabalho naquele país, principalmente, mas não exclusivamente, entre as classes mais baixas, tornando o termo NEET corrente na literatura dos anos 2000, algo impensável nos 20 anos anteriores. 8 Os movimentos sociais contra a crise não são objeto desta análise, e, obviamente, não se restringiram aos protestos de jovens “nem nem”. Mas não há dúvida de que sua energia contribuiu para radicalizar os movimentos. Ver, por exemplo, Givans e Soule (2011), os vários artigos em Gohn e Bringel (2013), além de Estanque et al. (2013). social e inflamou a disposição militante de jovens por todo o mundo desenvolvido. É uma trivialidade sociológica afirmar que a entrada na vida adulta, enquanto realização de projetos de inscrição social e afirmação de identidades, não tem o mesmo significado para homens e mulheres. Mas o esquecimento dessa trivialidade pode levar a interpretações equivocadas, cegas em relação às diferenças de gênero. É preciso insistir, pois, que, no caso das mulheres, estar fora da escola e do trabalho não necessariamente denota frustração de expectativas ou desestruturação de projetos de vida, como pode ser o caso para a maioria dos homens, em especial os mais velhos entre os jovens. Uma proporção significativa delas estará, na verdade, realizando projetos de maternidade ou de casamento (em especial entre as mais velhas), com isso adiando sua entrada no mercado de trabalho, embora já tenham completado o ciclo escolar. Mas a proporção do fenômeno no continente europeu permite suspeitar que, também no caso delas, a crise afetou parte significativa das que tinham projetos de vida centrados no mundo do trabalho. GERAÇÕES “NEM NEM” NO BRASIL O Brasil viveu momento semelhante ao que se viu na Europa em anos recentes, tanto no que se refere ao desemprego juvenil quanto na proporção de “nem nem” na população mais jovem. Mas, aqui, os movimentos têm sido bem menos intensos. Em primeiro lugar, como na Europa, as mulheres vêm deixando cada vez mais a condição de “nem nem” rumo ao mercado de trabalho, mas em ritmo mais brando. Como mostra o Gráfico 2, em 1999, 30,5% das jovens entre 15 e 29 anos (linha pontilhada superior do gráfico das mulheres) estavam nessa condição, proporção que atingiu pouco menos de 27% em 2008, subindo um ponto percentual daí a 2011. E, tal como no caso europeu, a queda mais acentuada ocorreu na faixa etária de 25 a 29 anos (queda de 40% para 33% de “nem nem”), portanto de mulheres entrando na maturi- 296 dade e que, mesmo estando em sua maioria já casadas ou com filhos (segundo a mesma fonte do gráfico), passaram a estar mais intensamente engajadas no mercado de trabalho (e estudando em menor proporção). Aqui, como na Europa, a redução da proporção de mulheres fora da escola e do mercado de trabalho expressa a crescente procura por inserção produtiva por parte delas, e não tanto o retorno à escola para retomada dos estudos. Ainda assim, a proporção de jovens mulhe- res “nem nem” no Brasil foi de pelo menos 13 pontos percentuais acima da média europeia ao longo do período. Aqui, ao contrário da Europa, não podemos falar numa “geração nem nem”, ou de um grupo etário específica e intensamente afetado pela crise de 2008. A linha pontilhada do gráfico relativo aos homens de 15 a 29 anos deixa clara a pequena variação em torno da média de 11,2% (desvio padrão de apenas 0,3 pontos percentuais) de jovens excluídos do trabalho e da escola ao longo dos 12 anos retratados aqui. A partir de 2008, houve pequeno aumento na taxa, de 10,8% para 11,9%, mas não a ponto de provocar uma “explosão” de exclusão capaz, por exemplo, de ser percebida como crítica. A inflexão observada ocorreu no interior da zona de variação (em torno da média) típica da década anterior. E, vale notar que esse comportamento médio, isto é, relativo a todo o grupo de 15 a 29 anos, se repetiu em cada faixa etária em particular, com possível exceção dos mais jovens entre eles (15 a 19 anos). Aqui, o desvio padrão foi um pouco maior (0,6 pontos percentuais), com crescimento de 10% para 11,4% na taxa “nem nem” de exclusão entre 2008 e 2011. Ainda assim, trata-se de crescimento longe de poder ser considerado explosivo, mesmo se imaginarmos que, nessa faixa etária, quando fora dos ambientes de sociali- 297 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... zação secundária mais importantes (a escola e o local de trabalho), os jovens estão em posição mais vulnerável vis-à-vis o que se poderia denominar “os apelos do mundo”, isto é, as redes sociais concorrentes que convocam constantemente seu engajamento.9 O caso das mulheres é algo diverso, porque a queda na taxa “nem nem” de exclusão vinha ocorrendo de maneira lenta, mas contínua, queda que foi interrompida bruscamente em 2008. Ainda assim, a interrupção, aparentemente, não foi tal que tivesse potencial para gerar a percepção de que se estava vivendo uma crise social.10 Esse rápido quadro mostra que a faixa etária escolhida pela OCDE apresenta problemas analíticos importantes. Idades entre 15 e 29 anos expressam momentos biográficos muito distintos. Aos quinze anos, estar fora da escola é uma “anomalia” que diz muito sobre o sistema escolar, que deveria ser o destino de todos eles, ainda mais na nova configuração do Ensino Fundamental no Brasil, com duração de 9 anos ou séries. Aos 15 anos, a totalidade dos(as) jovens deveria estar estudando, de preferência na nona série (num currículo normal, sem atrasos ou repetência), enquanto outra parte poderia estar no primeiro ano do Ensino Médio.11 Na outra ponta do espectro etário sugerido pela OCDE (que mantive para efeito desta comparação), os/as jovens de 29 anos, em princípio, já deram início à sua vida produtiva, e, ao contrário dos muito jovens, deles deve-se esperar que estejam procurando emprego ou trabalhando em sua maioria ou, no caso das mulheres, em parte viven9 Refiro-me ao mundo do crime, ao ócio improdutivo, às redes sociais reais (as gangs, turmas e galeras) ou virtuais, e, também, o mundo religioso etc. 10 Os movimentos coletivos de junho de 2013 no Brasil não parecem ter sido detonados pela crise de desemprego juvenil. O estopim da mobilização foi o Movimento pelo Passe Livre (MPL), uma organização estudantil, e, na infinidade de demandas difusas propostas pelos jovens nas ruas, não estava o fim do desemprego, como foi o caso na Europa, muito especialmente em Portugal e na Espanha. 11 E, de fato, 92% dos jovens daquela faixa etária estavam estudando em 2011, segundo a mesma fonte do Gráfico 2. Mas 8,3% dos homens e 7,8% das mulheres já não estavam na escola. E dois terços desses jovens tampouco estavam no mercado de trabalho, seja empregados ou procurando emprego. do projetos de construção familiar.12 Em todo caso, ainda que ter filho estivesse associado à maior proporção de mulheres adultas “nem nem”, as que trabalhavam eram a maioria (62% das mães e 76% das que não tinham filho), e uma pequena proporção apenas estudava. Isso recomenda parcimônia na delimitação do espectro etário relevante para a análise da condição “nem nem”. Abro, então, um parêntese para avaliar o problema com maior rigor. SOBRE JUVENTUDE E GERAÇÕES Num momento dado da biografia de uma pessoa (indivíduo de uma geração determinada), ela é o produto de sua trajetória, o resultado acabado, até aquele ponto, de suas escolhas e ações passadas ou, quando muito jovens, das escolhas, ações e omissões (mais ou menos restritas ou favorecidas pela classe social ou trajetória de vida) de seus pais ou responsáveis quanto a em que escola estudar, em que bairro morar, que atividades físicas ou artísticas desenvolver, que amigos favorecer ou evitar etc. Como ponto de chegada de biografia mais ou menos escolhida, mais ou menos vivida como resíduo das escolhas de outros, ou seu resultado, a pessoa é, também, um conjunto multidimensional de possibilidades, cuja finitude é função dos recursos socialmente disponíveis, disponibilidade que está, desde logo, desigualmente distribuída. As pessoas não nascem iguais em suas potencialidades e possibilidades. A desigualdade está inscrita no território de nascimento (campo ou cidade, cidade grande ou pequena, o Brasil ou a Suécia), na existência ou não de hospitais e condições adequadas de salubridade do local de nascimento, nos recursos financeiros e culturais das famílias, no acesso à saúde pré-natal da mãe e do bebê etc., e nada disso está igualmente distribuído. Isso é uma trivialidade sociológica, e serve apenas para deixar claro, desde 12 Na verdade, ter tido um filho impacta mais intensamente as mulheres mais jovens. Nada menos que 70% das mães de 15 anos eram “nem nem”, taxa que caía a 35% no caso das mães que tinham 29 anos. Entre as mulheres sem filhos nesta faixa etária, a proporção de “nem nem” caía para 21%. 298 logo, que as pessoas não são potencialidades indeterminadas ao nascer. Seus caminhos possíveis configuram um conjunto de probabilidades de destino em etapas sucessivas da vida que apenas muito tardiamente são vividas pela pessoa como propriamente fruto de escolhas suas.13 Num momento determinado da vida, pois, a pessoa é o ponto de chegada de potencialidades desiguais no ponto de partida tornadas, na trajetória de vida, corpos desiguais, habilidades físicas e mentais desiguais, recursos socioeconômicos desiguais inscritos em redes institucionais e de interação que configuram capitais econômico, cultural e social desiguais. Toda pessoa, queira ou não, saiba disso ou não, traz consigo o seu passado. Mas ela é, também, um conjunto de potencialidades que não estão jamais inscritas inteiramente em seu passado como campo de determinações já realizadas em seu corpo e em sua mente. O que a pessoa é (na totalidade finita de suas determinações atuais em termos de recursos econômicos, habilidades cognitivas, disposições físicas, constituição emocional, preferências, projetos de vida e padrões éticos) nos permite tecer hipóteses bastante plausíveis sobre suas oportunidades de vida no futuro, mas essas hipóteses estão destinadas a ser negadas em boa parte. Isso porque a sociedade moderna é aberta até certo ponto,14 fluida até certo ponto, obviamente de maneira diversa para as diversas classes sociais, mas é indubitável que está em constante transformação, sendo esta uma característica definidora da modernidade (Giddens, 1991). Se o médio prazo está sendo parido nas entranhas do presente, e terá dele aquilo que, em toda sociedade, é acomodação de processos de história lenta (as mudanças populacionais, as transformações na estrutura produtiva, a configuração institucional do Estado, nela 13 Bourdieu (2007[1979]) chamou a atenção para o caráter sistemático e de classe das probabilidades de trajetórias de vida. Uma crítica interna ao constructo bourdieusiano é Lahire (2001), que recusa a ideia de habitus como corporificação das trajetórias pessoais. Sua noção de disposições é mais próxima do que proponho aqui. 14 É conhecida a formulação “tudo que é sólido desmancha no ar” de Marx no Manifesto Comunista, apropriada por Marshall Berman em seu livro de mesmo nome, no qual a modernidade é apresentada como uma era fáustica. O próprio Berman (1982) sugere que o faustianismo da modernidade bebe do sangue dos trabalhadores. o sistema educacional etc.), permitindo, com isso, grande previsibilidade dos movimentos em grande escala, por outro lado, é muito difícil prever, com segurança, o destino de um indivíduo em particular e mesmo de comunidades inteiras. Quando as comunidades imaginadas que são as nações (Anderson, 1993) atingem certo patamar de renda e riqueza, o mundo de possibilidades e oportunidades abertas a seus membros deixa de ser um conjunto de impossibilidades ou barreiras à mobilidade ou à fruição dos recursos socialmente disponíveis, e isso para parcela crescente dos concidadãos. Isso porque o crescimento econômico, em toda parte, ganha a forma, dentre outras coisas, de recursos materiais e simbólicos públicos, mesmo quando destinados a favorecer a atividade econômica e a acumulação de capital. Rodovias, ferrovias, energia e os muitos serviços de comunicação são apenas alguns exemplos desses meios e recursos que, criados pela e para acumulação capitalista, melhoram as condições de vida de parcelas crescentes da população. A materialização desses recursos no território lhes dá durabilidade, e, uma vez materializados, eles mudam as probabilidades de percurso de grupos inteiros de indivíduos, com isso dificultando a construção de prognósticos plausíveis sobre sua vida no futuro. O acesso a esses recursos é desigualmente distribuído, claro, e um dos marcadores centrais dessa desigualdade é, justamente, a idade. Mais ainda quando se miram os mercados de trabalho e escolar. Mudanças sociais ocorrendo num período específico não afetam da mesma maneira as diferentes gerações. Uma crise no mercado de trabalho que reduza de forma importante as chances de emprego dos mais jovens (como o que ocorre hoje na Europa e muito especialmente na Grécia e na Espanha) tem efeitos sobre todos, mas os jovens terão comprometidas suas chances de vida por muitos anos, provavelmente para o resto de suas vidas.15 Do mesmo modo, uma hecatombe nuclear 15 A literatura sobre impactos de eventos de desemprego juvenil na vida produtiva posterior tem longa história na Europa, onde pesquisas longitudinais são comuns. Para comparações entre vários países, ver Russel e O’Connell (2001), Bradley e van Hoof (2005) e Wolbers (2007). Perspectivas de longo prazo são Steijn (2006), sobre a Holanda, e Vanttaja e Järvinen (2006) sobre a Finlândia. Ver ainda Shildrick e MacDonald (2007) sobre as trajetórias de exclusão dos mais pobres na Inglaterra. 299 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... tem o mesmo efeito sobre a saúde de todos, mas o efeito é mais duradouro para os mais jovens, que precisarão construir suas vidas com um handicap sanitário que terá duração mais curta para os mais velhos, muitos deles já aposentados. As gerações chegadas ao sistema educacional num momento de universalização da oferta ou de melhoria generalizada de sua qualidade terão condições melhores de acesso a melhores posições no mercado de trabalho do que gerações imediatamente posteriores, ou eventualmente anteriores, que sofram com momentânea, mas duradoura (tendo em vista as janelas temporais de suas vidas) crise do ensino no futuro (por exemplo por desinvestimento, como ocorreu na Argentina nos anos 2000 e tende a ocorrer na Grécia e na Espanha hoje, fruto da falência dos estados de bem estar nos dois países). Guerras civis têm efeito semelhante, e assim por diante. Além disso, as sociedades demarcam barreiras à entrada em dimensões institucionais que são, muitas vezes, em parte ou exclusivamente etárias: classificação etária de eventos culturais, por exemplo, com fronteiras rígidas (proibindo a entrada de menores de 18 anos – como nos cinemas ou casas noturnas) ou mais latas, mas, ainda assim, importantes, como a proibição do trabalho para menores de 14 ou 16 anos, dependendo do país, a obrigatoriedade de aposentadoria a certa idade etc. Se essas barreiras se aplicam a todos os membros de uma certa idade em qualquer tempo (desde que as regras não mudem), num momento dado do tempo é uma geração específica que as vivencia, aquela que tem 14 ou 16 anos ou a idade obrigatória de aposentadoria, por exemplo. No ano seguinte, serão outras pessoas etc., mas é um grupo específico de pessoas a cada vez que vive a mesma experiência e ao mesmo tempo.16 16 O problema das gerações frequenta a discussão sociológica de tempos em tempos, sem nunca deixar a cena teórica ou de pesquisa. Os trabalhos pioneiros são, obviamente, Ortega y Gasset (1987) e Manheim (1928), mas crises periódicas, que afetam gerações de jovens, colocam de novo o tema em evidência. Foi o caso com o movimento estudantil de 1968 no mundo e é o caso agora, na discussão da “geração nem nem”. Para o maio de 1968, analisado do ponto de vista geracional, ver Eisenstadt (2002). Domingues (2002) é uma boa sistematização do debate teórico sobre o tema. É nesse sentido que é possível falar-se numa geração “nem nem” em certos países europeus, um grupo etário que trará consigo uma marca coletiva e comum a todos os seus membros, de dificuldade ou impossibilidade de acesso ao sistema educacional e ao mercado de trabalho num momento crucial de suas trajetórias de vida. Pois bem, avaliado contra esse pano de fundo, o espectro etário de 15 a 29 anos (utilizado pela OCDE no estudo apresentado mais acima) marca momentos muito distintos nas biografias dos jovens, suas potencialidades e possibilidades. Em termos substantivos, comparar um/a jovem “nem nem” de 15 anos com outro/a de 29 não faz sentido, já que boa parte das condições sociais e das possibilidades biográficas e identitárias dessas idades polares é, a rigor, incomensurável. Na seção anterior, utilizei a faixa de 15 a 29 anos porque o interesse era comparar com a situação na Europa, cujos dados foram tornados públicos quando eu iniciava a redação deste artigo. Agora, é preciso ser mais rigoroso na delimitação do escopo empírico da análise, se o que se tem em mente é compreender, de maneira adequada, a condição “nem nem” e formular uma agenda de pesquisas para o país, tendo em vista, sempre, determinações e potencialidades de trajetórias sociais que, de algum modo, permitam a realização de projetos virtuosos de inclusão social, isto é, longe das zonas de vulnerabilidade representadas por empregos precários, desemprego, ausência de proteção social etc. Proponho como faixa etária de interesse para o estudo da condição juvenil “nem nem” como um problema social digno de se transformar em problema sociológico, aquela entre 18 e 25 anos. Sustento que, nessa faixa etária, faz sentido usar o termo “taxa nem nem de exclusão” como uma medida da vulnerabilidade social dos jovens, tendo em vista que: 1. Aos 18 anos a maioria dos jovens brasileiros já deixou ou está em vias de deixar o ensino médio.17 Como a taxa de transição para o ensino 17 Ver Leão et al. (2011); Silva et al. (2012). Pesquisa quantitativa importante sobre as mudanças nos padrões de entrada no mercado de trabalho é Tomás et al. (2008). 300 Adalberto Cardoso 18 No Brasil, como se sabe, é grande a proporção de jovens que deixa os estudos para trabalhar ou ajudar a família e, depois, retomam sua formação escolar quando estão em condições de financiar a universidade, em geral privada. Ver Cardoso (2013), Ribeiro (2011), Comin e Barbosa (2011). e 2010 no Brasil. Os modelos foram construídos a partir dos dados dos Censos Demográficos realizados naqueles anos. Diferentemente do que foi feito até aqui, a condição “nem nem” será definida como a totalidade dos jovens de 18 a 25 anos que não estavam nem na escola nem no mercado de trabalho, quer dizer, não tinham um emprego e não estavam em busca de um. Na discussão anterior, incluí os que procuravam trabalho (ação que define um desempregado) porque o interesse era comparar com os dados disponíveis para a OCDE. Agora, interessa a condição “nem nem” purificada dos jovens que tinham, ao menos, a expectativa de um emprego, expectativa expressa nas ações que tomaram para conseguir um. Essa definição torna mais apropriado falar-se em “taxa nem nem de exclusão”, já que os jovens deveriam estar na escola ou, se fora dela, ao menos procurando trabalho. Não estando nem numa nem noutra condição, estão, de fato, excluídos de duas das principais estruturas de socialização e construção de identidades sociais para pessoas nesse estágio de suas biografias. UM MODELO PARA EXPLICAR A CONDIÇÃO “NEM NEM” Partamos da conhecida formulação de Marx no 18 Brumário: as pessoas fazem sua própria história, mas “não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitas pelo passado” (Marx, 1978, p. 331). Essas circunstâncias estão materializadas na estrutura dos mercados de trabalho dos locais onde vivem; na rede de estruturas estatais de suporte à vida e à atividade econômica; no conjunto de recursos existentes no território onde as pessoas constroem sua trajetória de vida. Como já se sugeriu, tudo isso está desigualmente distribuído em termos geográficos. Um modelo de explicação das probabilidades de exclusão da escola e do mercado de trabalho deve ter em conta essas diferenças. Alguém pode ser “nem nem” não por escolha ou acaso, mas por morar num município desprovido de recursos econômi- 301 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 superior é historicamente baixa no país (Pinto, 2004; Comin e Barbosa, 2011, Torche e Ribeiro, 2012), deixar o ensino médio significa, para a maioria dos jovens, deixar o sistema escolar, mesmo que provisoriamente.18 No caso das mulheres, por exemplo, a proporção de “nem nem” saltou de 19% aos 17 anos para 30% aos 18 em 2011 (segundo a PNAD), mantendo-se nesse patamar ou em nível levemente superior nas idades subsequentes. No caso dos homens, segundo a mesma fonte (PNAD), a proporção saltou de 11% para 18% entre os 17 e os 18 anos, caindo a partir daí até 11% aos 25 anos, taxa que se manteve nas idades subsequentes. Trata-se, pois, de idade (18 anos) marcadora do abandono da escola e da possível entrada no mercado de trabalho para boa parte dos jovens. Geradora, portanto, das tensões e inseguranças típicas das transições biográficas cruciais, e que resulta em frustração de expectativas de emprego para boa parte deles ou, ainda, de inserção precária e insegura no mercado de trabalho. 2. Aos 25 anos, as taxas de exclusão “nem nem” estão estáveis para homens e mulheres, em torno de 11% no primeiro caso e de 32% no segundo. A idade parece perder influência a partir desse marcador biográfico. Isto é, parece plausível imaginar que, na explicação da condição “nem nem”, ganham relevância características multidimensionais, extraetárias, relativas ao ambiente social mais geral em que os jovens passam a circular. Isto posto, voltemos à questão central que nos guia nesta investigação: o que explica as taxas “nem nem” de exclusão no Brasil? Por que, por aqui, elas não provocaram a mesma comoção que na Europa? Para oferecer respostas tentativas a essas perguntas e extrair delas elementos para uma agenda de pesquisas e políticas públicas, no que se segue, apresentarei dois modelos logísticos, tendo a condição “nem nem” de jovens de 18 a 25 anos como variável dependente para os anos 2000 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... cos e institucionais, isto é, escola ou emprego para todos os que queiram estudar ou trabalhar. Isso delimita a hipótese central a se investigar: a condição “nem nem” é fruto tanto de escolhas e trajetórias individuais quanto de contextos nos quais as pessoas tomam suas decisões, sobre os quais elas têm pouca ou nenhuma capacidade de intervir diretamente, e que, por isso, funcionam como condicionantes mais gerais de suas oportunidades de vida. Uma pessoa pode escolher mudar de cidade ou estado (ou mesmo de país) para melhorar suas probabilidades futuras, mas, num momento dado, essas escolhas já se materializaram no que estou denominando aqui de “taxa nem nem de exclusão” e não podem ser mudadas pelo indivíduo isolado. A segunda hipótese, derivada da anterior, sustenta que, no caso do Brasil, a persistência de taxas elevadas de jovens “nem nem” (que dá caráter estrutural a essa condição) vem sendo contrabalançada por mudanças na direção oposta às observadas na Europa. Por aqui, o contexto econômico era, em 2010, bastante mais favorável do que o de dez anos antes, com isso renovando os horizontes de expectativa dos jovens e tornando críveis as perspectivas de inclusão no futuro. A Tabela 1 apresenta os dados agregados para o Brasil nos dois pontos no tempo, isto é, a distribuição da taxa “nem nem” de exclusão, que é, também, a variável dependente dos modelos propostos. A proporção total variou pouco, de perto de 21% para perto de 20% de “nem nem” em 10 anos. Estamos falando de 5,5 milhões de jovens em 2000 e 5,3 milhões em 2010. Essa aparente estabilidade esconde mudanças importantes segundo o sexo. Confirmando a tendência detectada nos dados da PNAD, a taxa “nem nem” de exclusão das mulheres caiu quase 4 pontos percentuais, enquanto a dos homens cresceu 1,6 ponto. Havia 4 milhões de mulheres “nem nem” em 2000, e 3,5 milhões em 2010, enquanto eles subiram de 1,5 para 1,8 milhão de excluídos. Em 2000, as mulheres representavam 72% do total dos “nem nem”. Em 2010, 66%. A “taxa nem nem” de exclusão continua a ser muito mais alta entre as mulheres, mas a mudança detectada permite alimentar a hipótese de que o efeito das variáveis selecionadas não será o mesmo nos dois pontos no tempo, tanto pelo aumento da proporção de homens quanto pela queda das mulheres. Isso porque sabemos que homens e mulheres têm destinos sociais distintos quando deixam a escola, em grande parte condicionados pelas hierarquias socialmente construídas com base nas relações de gênero (Hirata, 2002). E, também, porque ocorreram muitas mudanças nos padrões familiares e comportamentais nos 10 anos que separam os dois recenseamentos,19 para não falar das mudanças econômicas discutidas mais abaixo. A condição social de interesse é fruto de história, circunstâncias atuais e escolhas que não são adequadamente mensuradas nas pesquisas domiciliares. Qualidade do ambiente familiar, estrutura do mercado de trabalho, estrutura da oferta educacional, preferências pessoais ou projetos de vida, nada disso é coberto pelos censos demográficos. Tudo o que podemos fazer é construir medidas aproximadas a partir dos dados disponíveis, e tecer, a partir dessas aproximações, hipóteses sobre as condições subjacentes às práticas dos jovens (como a disposição para se mobilizarem ou não para mudar o destino coletivo de uma eventual “geração nem nem”). Um modelo multivariado apresenta muitas vantagens, porque permite mensurar o impacto independente de uma variável, num ambiente complexo em que múltiplos determinantes atuam ao mesmo tempo. O modelo proposto mescla indicadores de contexto (familiar e municipal) com indicadores de trajetória pessoal dos jovens de 18 a 25 19 Extensa discussão sobre as mudanças na composição das famílias é encontrada em Alves e Cavenaghi (2012). E, ainda, em Leoni, Maia e Baltar (2010). 302 anos. Trata-se, portanto, de modelo multinível, que opera com variáveis enquanto agregados construídos a partir das informações sobre os indivíduos, e com variáveis propriamente individuais. Três agregados foram construídos para dar suporte à hipótese de que diferentes contextos oferecem chances diversas de inserção social dos jovens: 1. Tamanho do município. Variável fruto do agregado dos moradores do município. Os municípios foram agrupados em faixas de tamanho, como se verá. Espera-se encontrar menos “nem nem” quanto maiores os municípios, na hipótese de que eles oferecem maiores oportunidades de emprego e, também, é a maior a oferta escolar; 2. Mercado de trabalho municipal. Foi construído um proxi da capacidade de o município oferecer empregos, composto da taxa de participação das pessoas de 10 anos ou mais na PEA, ou seja, a proporção de pessoas com essa idade que estava empregada ou procurando emprego. A variável assume o mesmo valor para todos os moradores do mesmo município. Logo, ela distingue não as pessoas, mas os próprios municípios, uns em relação aos outros, como ambientes em que se gera ou não empregos. Para tornar-se operacionalizável e comparável nos dois pontos no tempo, transformei a distribuição em decis. Em 2000, os primeiros 10% tinham taxa de participação na PEA de até 39,09%, enquanto os 10% de maior participação tinham taxa de 60,79% ou mais. Em 2010, os números eram superiores a esses (47,61% e 64,67% respectivamente), como era de se esperar, já que foi um ano de boom econômico e de geração de empregos, o que contribuiu para elevar a taxa de participação, sobretudo das mulheres. A hipótese, aqui, é a de que, quanto maior a taxa de participação na PEA, menor a proporção de “nem nem” na população mais jovem. 3. Oferta escolar municipal. Trata-se, também, de um proxi. Definiu-se como indicador aproximado da existência de uma rede municipal de ensino a proporção de pessoas com idade entre 7 e 17 anos que estava fora da escola no município. Evitou-se incluir jovens de 18 anos porque essa faixa etária define a população de interesse (jovens de 18 a 25 anos), o que geraria um problema de autocorrelação. Aqui, também, a variável assume o mesmo valor para todos os moradores, distinguindo, portanto, os municípios em sua capacidade de manter os jovens na escola antes dos 18 anos. A variável também foi transformada em decis de sua distribuição, pelas mesmas razões da variável anterior. A hipótese a se testar é a de que quanto mais jovens estejam fora da escola num município (expressão da baixa capacidade de investimento municipal), maior a chance de que um jovem de 18 a 25 anos seja “nem nem”. 4. Região do país. Ainda como tentativa de controle das diferenças geográficas, incluí a região do país no modelo. Explorações iniciais do problema mostraram que as regiões Norte e Nordeste apresentam as maiores taxas “nem nem” de exclusão, e a região Sul, as menores. 5. Mora na cidade. Esse indicador complementa aquele sobre tamanho do município, ao distinguir os que moram na cidade e no campo. A hipótese é que o campo terá menor proporção de “nem nem” do que a cidade, tendo em vista a tradição brasileira de trabalho precoce no mundo rural. Os indicadores de contexto familiar são, em boa parte, oferecidos pelos censos demográficos, alguns sendo perguntados diretamente (como a renda e o número de moradores do domicílio), outros sendo construídos depois pelo IBGE. Além dessas, criei outras para dar mais substância à hipótese da importância da família nas decisões e oportunidades dos jovens. 6. Renda familiar per capita. Utilizei a informação que veio originalmente nos censos, transformando-a em decis de sua distribuição, também para facilitar a comparabilidade. A hipótese é a de que quanto mais pobres as famílias, maior a taxa “nem nem” de exclusão, já que é potencialmente menor a capacidade das famílias sustentarem seus filhos na escola, menor a escolaridade média destes e menores as chances de emprego, dada a baixa qualificação. 303 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... 7. Tamanho da família. O número de membros da família não terá impacto direto, supõe-se, mas pela mediação da renda (de modo que famílias grandes com renda baixa terão chances diversas de famílias grandes com renda alta) e das condições estruturais dos municípios. Ainda assim, quis-se averiguar se essa variável tem impacto independente desses outros determinantes e em que direção. 8. Número de filhos de 4 anos ou menos na família. Essa é uma variável típica dos estudos sobre determinantes da renda pessoal ou da participação no mercado de trabalho. A hipótese é que um filho pequeno na família aumenta as chances de jovens mulheres deixarem os estudos e o trabalho (seja porque são as mães dessas crianças, seja porque são instadas a cuidar das crianças da família enquanto os adultos trabalham). 9. Há outro “nem nem” na família. Essa variável foi incluída na suposição bastante plausível de que, se há um jovem na família em condição vulnerável, haverá outros na mesma condição. A variável apresenta dificuldades, já que a pessoa que é “nem nem” está contida em sua definição, isto é, onde há dois “nem nem”, há, necessariamente, um. Ao transformar a informação numa característica familiar, o problema é, em parte, solucionado, sobretudo num modelo multivariado em que outras variáveis familiares ou contextuais estão em operação. É um problema de colinearidade, mas decidi pagar o “preço estatístico” para ganhar em compreensão do problema como algo que parece estar para além dos próprios indivíduos, embora seja vivenciado por eles. Além dessas variáveis de contexto, geradas secundariamente a partir das informações sobre as pessoas, o modelo inclui indicadores individuais sobre os jovens, suas características inatas e aspectos de sua trajetória pessoal. Já vimos que as probabilidades de se estar na condição “nem nem” são diversas segundo o sexo e a idade. Mas há outras dimensões relevantes disponíveis nos censos demográficos. 10. Sexo. O modelo toma as mulheres como referência, isto é, mede o efeito de ser homem na probabilidade de ser “nem nem”, por compara- ção com ser mulher. Espera-se efeito negativo (redução da probabilidade), já que esse resultado já foi apresentado na Tabela 1. 11. Cor. Agregou-se a informação dos censos numa dummy distinguindo brancos e não brancos. Os não brancos são a referência da regressão. Sigo, aqui, a sugestão de Hasenbalg e Silva (2003), que mostraram que as probabilidades de pretos, indígenas e pardos distam consistentemente das de brancos e amarelos, e são muito próximas entre si, tendo em vista o acesso à renda, à educação e ao mercado de trabalho.20 12. Escolaridade. Trata-se de outra dummy agrupando os que tinham escolaridade menor do que ensino fundamental completo (8 anos ou menos), e a referência na regressão são os com mais escolaridade do que isso. Espera-se que os menos escolarizados sejam “nem nem” em maior proporção, já que, tendo 18 anos ou mais, é grande a probabilidade de que estejam fora da escola. Com baixa qualificação formal, terão, por hipótese, maior chance de estar também fora de um emprego. 13. Tem uma restrição física grave. Trata-se de uma dummy que indica se a pessoa tem dificuldade permanente de enxergar, ouvir, caminhar ou tem uma doença mental. Supõe-se que qualquer dessas dificuldades impõe restrições à atividade escolar ou de trabalho. 14. Mulher com filho. Outra dummy, agora distinguindo as que têm e não têm filho. É sabido que os filhos são os principais determinantes da saída das mulheres do mercado de trabalho, e sabemos, pelos dados do próprio censo, que eles afetam, também, a frequência à escola. 15. Vive com os pais ou padrastos. Supõe-se que jovens vivendo em família têm maior probabilidade de permanecer estudando, reduzindo as chances de que sejam nem nem. 16. Tem ou teve cônjuge. A vida conjugal, presente ou passada, é outro determinante importante das chances das mulheres (e em menor parte dos homens), resultando, frequentemente, no abandono da escola e do trabalho. 17. Morou em outro município além do atual. A 20 Ver também Cardoso (2013: cap 3). 304 migração dos jovens, para acompanhar os pais ou por si mesmos, em geral se acompanha de incerteza quanto à inserção escolar e por vezes empregatícia. Procurou-se mensurar o efeito de ter migrado, ainda que sem o controle do período em que essa migração ocorreu, e espera-se que ele seja positivo, quer dizer, aumente a probabilidade de ser “nem nem”. 18. Idade. Vimos que a probabilidade de ser “nem nem” varia com a idade, e pretende-se medir a direção do efeito independente desse indicador. DISCUSSÃO Os modelos para os anos 2000 e 2010 são apresentados na Tabela 2. Ela traz os efeitos líquidos de cada indicador, isto é, tem-se o quanto a probabilidade de ser “nem nem” aumenta ou diminui quando a condição ocorre, por comparação com a categoria escolhida como referência em cada variável, mantidos constantes os efeitos de todos os outros indicadores. Com exceção do número de componentes do domicílio e do número de crianças com 4 anos ou menos, todas as variáveis de interesse foram transformadas em dummies (assumem o valor 0 ou 1), e o efeito de cada categoria de uma variável se mede em relação à probabilidade da categoria de referência. Por exemplo, no caso da renda familiar, se o jovem morava numa família entre as 10% mais pobres em 2000, a probabilidade de ser “nem nem” era 232,9% maior do que a de um jovem de família entre as 10% mais ricas, categoria de referência selecionada no modelo, mantida constante (pela média) a probabilidade de ser “nem nem” em todas as outras variáveis. Em 2010, essa probabilidade havia saltado para 797,5%. Com exceção dos indicadores marcados com (**), todos os outros são estatisticamente significativos em pelo menos 0,01, a maioria superior a 0,001, sendo, portanto, muito robustos. Além disso, os modelos apresentam falsos R2 de 0,39 em 2000 e 0,36 em 2010, indicando que 36% ou mais da variância da taxa “nem nem” de exclusão são explicados por eles. Os modelos confirmam a hipótese geral sobre os efeitos de contexto e trajetória, e, com poucas exceções, as hipóteses específicas sobre os efeitos de cada indicador também se confirmam. E houve mudanças importantes no impacto independente de cada indicador, entre 2000 e 2010, tendo em vista as profundas transformações por que passou o país no período. Desçamos, então, a alguns detalhes desse quadro geral. Os contextos familiar e municipal se mostraram preditores poderosos das taxas “nem nem” de exclusão. Tomando-se o tamanho da família, cada novo membro adicionado reduzia entre 8 a 11% as chances de um jovem de 18 a 25 anos ser “nem nem” em 2000 e 2010. Vale marcar que a redução é contraintuitiva, já que a proporção de “nem nem” é sempre maior quanto maior o grupo doméstico, quando se trabalha com essa variável fora do modelo.21 Isso significa, como sugerido, que o efeito do tamanho da família se dá pela mediação de outros indicadores. E, de fato, se ajustamos o modelo passo a passo, adicionando uma variável de contexto por vez, o efeito do tamanho da família é sempre positivo até a inclusão da renda. É o controle pela renda familiar que inverte o sinal. Ou seja, o contexto familiar, de fato, configura-se como um campo onde interagem diversas dimensões, e não faz sentido tratar cada variável individualmente, sendo a renda a dimensão mais importante, mediadora dos demais indicadores. O número de crianças de 4 anos ou menos no domicílio também mostrou-se relevante, com cada criança a mais reduzindo, em quase 10%, a probabilidade de um jovem “nem nem” na família. A queda do impacto desse indicador entre 2000 e 2010 ocorreu no interior do intervalo de confiança dos parâmetros, portanto, não é significativa em termos estatísticos. Seria de se esperar mudanças mais pronunciadas, tendo em vista, por exemplo, que, em 2000, 2,6% das famílias tinham um neto ou bisneto residindo no domicílio. Em 2010, a proporção subira para 4,8%. Isto é, havia au21 Uma regressão linear, contendo apenas a proporção de “nem nem“ segundo o número de membros da família, gera um R2 de 0,899 em 2010, com cada membro a mais gerando um aumento médio de 4,3% naquela proporção. 305 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... 306 mentado a proporção de convivência de mais de uma geração no mesmo espaço doméstico, com filhas (e filhos em menor medida) morando com os pais, sendo elas mesmas mães precoces. Mas essa mudança não aumentou o efeito independente de ter criança em casa. E, como no caso do número de membros da família, é a mediação da renda familiar que inverte o sinal do efeito, de outro modo positivo. Isto é, famílias mais ricas com crianças têm menor probabilidade de ter um jovem “nem nem” do que famílias pobres com crianças. Volto a isso na conclusão. E, como esperado, a inclusão do indicador “tem outro nem nem na família” mostrou-se es- sencial na construção do contexto familiar. O parâmetro está enviesado, já que há um problema de colinearidade (o indicador “tem outro jovem nem nem no domicílio” contém a variável dependente), e é o que explica o elevado impacto independente dessa variável. Mas ela é teoricamente relevante, além de empiricamente consistente: em 2010, por exemplo, nas famílias com mais de um jovem com idade entre 18 e 25 anos de idade, se um deles era “nem nem”, a chance de que o segundo também fosse era de espantosos 32%, segundo o mesmo censo demográfico. Havendo um segundo “nem nem” nas famílias, com três ou mais jovens da mesma idade, a chance de haver um 307 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... terceiro era ainda maior, de 41% (em 2000 as proporções eram de 21% e 32% respectivamente). Logo, haver um “nem nem” na família é um preditor poderoso das chances de haver outro, sendo a condição “nem nem” um indicador da vulnerabilidade diferencial das famílias. O mais importante a reter nessa dimensão é que os efeitos das variáveis contextuais foram muito semelhantes nas duas pontas do tempo, com exceção da renda. Sabemos, pela literatura já citada, que as famílias passaram por mudanças importantes em sua estrutura no período, com aumento de famílias unipessoais, famílias conviventes, mães solteiras, homens vivendo sozinhos, famílias homoafetivas, etc. Mas os efeitos dos indicadores de morfologia da família se mantiveram quase constantes. A mudança mais importante ocorreu no impacto da renda familiar, com crescimento substancial do risco entre as famílias mais pobres em 10 anos. Em 2000, famílias entre as 10% mais pobres tinham 233% mais chances de ter um “nem nem” entre os seus do que famílias entre os 10% mais ricos. Em 2010, esse valor havia aumentado para quase 800%. Isto é, a disponibilidade de recursos familiares, tal como expressa pela renda enquanto capacidade de aquisição de bens como saúde e educação para seus membros, por exemplo, confere um caráter de classe às mudanças ocorridas no período, com aumento da vulnerabilidade dos mais pobres. Isto é, é maior a proporção de “nem nem” em 2010 entre as famílias que, em termos relativos, tinham menores condições materiais de dar respaldo a eles. Na outra ponta, o contexto extrafamiliar também se mostrou relevante, mas em menor proporção do que a família. Os indicadores selecionados de infraestrutura municipal são quase todos estatisticamente significativos, mas apenas o indicador de robustez do mercado de trabalho local (taxa de participação de pessoas de 10 anos ou mais na PEA) tem incidência incontestável, ainda que tenha perdido intensidade entre 2000 e 2010. Essa perda parece estar associada à melhoria nas condições dos mercados de trabalho municipais, já que cresceu de forma importante a taxa de participação no tempo. Por exemplo, o valor de corte do pri- meiro decil foi de perto de 37% em 2000, subindo para quase 48% em 2010. A diferença entre o primeiro e o nono valor de corte foi de 24 pontos percentuais no primeiro ano, caindo para 17 pontos em 2010. Ou seja, a desigualdade entre os mercados de trabalho municipais foi reduzida de maneira importante, muito em função do aumento da taxa de participação das mulheres (Nonato et al., 2012), e isso explica boa parte da perda de intensidade do efeito da variável. Ainda assim, morar num município no primeiro decil de taxa de participação, aumentava em 56% a chance de um jovem ser “nem nem” em 2010, em comparação com um município no topo da distribuição (65% ou mais de pessoas na PEA). Perdeu intensidade, também, o indicador de investimento municipal na rede escolar, e pela mesma razão, isto é, houve melhoria nas condições de escolaridade da maioria dos municípios brasileiros, com isso reduzindo a desigualdade entre eles e, por conseguinte, o efeito diferencial nas chances de um jovem ser “nem nem”. Em 2000, o valor de corte do primeiro decil foi de 6,11% de jovens entre 7 e 17 anos fora da escola, proporção que caiu para 3,25 em 2010 (queda de 2,86 pontos percentuais). No topo (nono decil), a queda foi mais intensa, de 5,37 pontos percentuais (os valores estão entre parênteses na tabela). Isso aproximou as características municipais, reduzindo o impacto independente dessa variável. Os demais indicadores de contexto têm efeito mais brando sobre as taxas “nem nem” de exclusão. Morar na Região Sul tornou-se um pouco mais vantajoso em 2010, por comparação com 2000, e no Nordeste, um pouco menos. O sinal do efeito de se morar no Sudeste mudou de negativo para positivo, mas numa faixa muito pequena de variação. O tamanho do município, por sua vez, ganhou maior relevância no tempo, com os menores municípios apresentando condições mais vantajosas em 2010 do que os maiores, por comparação com 2000. Isso também deve ser creditado à melhoria geral das condições dos mercados de trabalho no interior do Brasil, como vem mostrando a literatura especializada (IBGE 2012). 308 A terceira dimensão de interesse é a trajetória individual, que, no censo demográfico, é apreendida a partir de uma série de indicadores sobre as características atuais das pessoas, boa parte delas fruto de escolhas, decisões e ações passadas. O ponto mais importante a se salientar é que, com exceção da idade dos jovens, todos os outros indicadores de trajetória perderam intensidade no tempo, ainda que permaneçam estatisticamente significativos. Ter uma restrição física grave, por exemplo, aumentava a chance de um jovem ser “nem nem” em 407,6% em 2000, por comparação com os que não tinham uma restrição. O efeito foi reduzido a menos de 117% em 2010. Efeito ainda importante, claro, mas a queda estará, com certeza, associada ao impacto das políticas de ação afirmativa para portadores de necessidades especiais, que obrigam empresas a contratá-los numa proporção de sua força de trabalho e as escolas a desenvolverem mecanismos de inclusão de deficientes visuais, auditivos ou físicos. A adaptação das escolas para cadeirantes e o aumento da acessibilidade no espaço urbano são políticas com efeitos semelhantes: reduzir as restrições de acesso dessas pessoas aos espaços da escola e do trabalho. A persistência do efeito na casa dos 117% é indicador de que se está muito longe de universalizar a acessibilidade, e esse é, certamente, um tema importante para uma agenda de pesquisas e políticas públicas de desenvolvimento que tenha no horizonte a emancipação da maioria. A redução do efeito da cor deve ser creditada ao mesmo processo de mudança nas relações sociais no país, fruto de políticas públicas e de redução da desigualdade daí decorrente. As políticas de ação afirmativa para negros estão longe de resolver o problema secular que é a persistência e reprodução da desigualdade racial, mas parecem estar reduzindo a distância entre os jovens no que respeita às chances de serem “nem nem”. Os brancos tinham quase 16% de chances de estarem nessa condição, por comparação com os não brancos (tudo o mais permanecendo constante), efeito que caíra a 2% em 2010. Lembre-se: está-se falando do efeito, independente da cor, num ambiente em que várias outras dimensões atuam ao mesmo tempo. Logo, a cor não-branca, que, tomada individualmente, aumenta a probabilidade de um jovem ser “nem nem”, por outro lado, quando controlada pelos efeitos de contexto, inverte o sinal. Ainda assim, o que importa para nossa discussão é que a cor perdeu intensidade no tempo como componente explicativo da probabilidade de um jovem ser “nem nem”. Os filhos, como previsto, aumentam muito a probabilidade de as mulheres jovens serem “nem nem”, embora, como no caso das variáveis anteriores, tenha havido queda no efeito desse indicador no tempo. Em 2000, ter filho aumentava em 300% a chance de uma mulher jovem ser “nem nem”, por comparação com as que não tinham. Em 2010, a probabilidade caíra para pouco mais de 170%. A queda é importante e indica redução do peso dos filhos como elemento de ruptura nas trajetórias escolar e empregatícia das mulheres, o que pode estar associado à melhoria das condições econômicas de suas famílias (que permitem acesso a creches privadas), aumento da oferta de creches públicas ou escolas maternais etc. Retomo o ponto na conclusão. Viver ou ter vivido com um cônjuge perdeu muito de seu impacto de um ano ao outro. O casamento (efêmero ou duradouro) tem, historicamente, maior efeito de ruptura para as mulheres do que para os homens. Esse efeito vem caindo, com o tempo, para as faixas etárias mais velhas entre os jovens. Mulheres casadas estão mais inseridas no mercado de trabalho hoje do que em 2000, fruto do processo já mencionado de transformação (embora lenta) das relações de gênero. E homens jovens experimentam relações conjugais precoces mais intensamente hoje do que há dez anos, ainda que não duradouras. A conjugação desses vetores de mudança deve estar contribuindo para explicar boa parte da anulação do efeito dessa variável entre os dois censos demográficos. Por fim, e ao contrário do que seria de se esperar, viver com os pais ou padrastos aumenta as chances de o jovem ser “nem nem”, por comparação com os que não vivem. Aqui, também, o efeito da variável se dá mediado por outros indicadores 309 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... da família, sobretudo a renda. Isso porque, tomado isoladamente (fora do modelo), há mais jovens “nem nem” entre os que não estão morando com os pais do que entre os que vivem em família. Ao se controlar pela renda familiar, porém, o efeito muda de sinal, sugerindo que morar com os pais reduz o risco de ser “nem nem” apenas em determinadas condições de bem estar econômico familiar. Como há mais “nem nem” nas famílias mais pobres, morar com os pais, nessas condições, aumenta a chance de ser “nem nem”. É o que explica a mudança de sinal, ainda que a uma taxa não muito alta (em torno de 10%). CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 CONCLUSÃO A condição “nem nem” dos jovens é um problema social de monta. Na Europa, ela adquiriu proporções explosivas, em parte por ter afetado diretamente jovens de classe média, que viram ruir seus projetos de inserção social em condições equivalentes ou melhores do que a de seus pais. A condição “nem nem” é um problema geracional e de classe por lá, e é vivida, em parte, como traição das promessas de emancipação pelo mercado, tendo, portanto, a forma da luta contra o neoliberalismo.22 No Brasil, a recorrência no tempo da taxa “nem nem” de exclusão (que lhe confere um caráter estrutural) não produziu os mesmos protestos que na Europa, em parte porque ela afeta mais as classes subalternas e as famílias mais pobres. E é exatamente por essa razão que o país não pode considerar normal ou aceitável que um em cada dez de seus jovens do sexo masculino entre 18 e 25 anos esteja fora da escola e do mercado de trabalho. Essa proporção não é homogeneamente distribuída no território, sendo muito pior nas regiões e municípios mais pobres do país e, mais ainda, nas famílias de baixa renda. Isto é, a taxa “nem nem” de exclusão é maior nas regiões e famílias mais vulneráveis, e, nesse sentido, deve ser 22 Ver os importantes artigos sobre os novos movimentos sociais em Gohn e Bringel (2013) e também Estanque et al. (2013). tratada como um dos elementos centrais dessa vulnerabilidade. Isso quer dizer que o país está transmitindo a vulnerabilidade de uma geração a outra em proporção significativa. A taxa “nem nem” de exclusão, por ser estrutural e muito resistente à queda, configura-se, então, como um dos elementos estruturantes da persistência das desigualdades entre nós. Proporções sempre altas de jovens (que variaram pouco em torno da média de 11% no caso dos homens nos últimos 15 anos e, mais ainda, no caso das mulheres) carregarão para o resto de suas vidas o peso de ter deixado cedo a escola, com isso reduzindo suas chances no mercado de trabalho. O problema é importante, também, no caso das mulheres. Mesmo que parte significativa delas seja “nem nem” porque constituiu família, a instabilidade dos laços afetivos no mundo contemporâneo torna mais do que provável a tentativa de retorno delas seja ao mercado de trabalho, seja à escola, caso os casamentos por ventura se desfaçam. A instabilidade dos vínculos empregatícios dos maridos menos qualificados também pode levar a que elas procurem inserção ocupacional no futuro, e isso se fará em condições de desvantagem vis-à-vis aquelas de sua geração que se qualificaram. Essa circunstância torna mais resistentes à queda as desigualdades de gênero no mercado de trabalho e, também, as desigualdades de renda para mulheres de uma mesma geração. A taxa “nem nem” de exclusão, pois, é um dos mecanismos recônditos da persistência secular das desigualdades no Brasil. Atacar a condição “nem nem” é atacar, insisto, um mecanismo gerador de exclusão e desigualdade a longo prazo. Os modelos ajustados para a explicação das taxas “nem nem” de exclusão, e as mudanças encontradas nos dois pontos no tempo sugerem elementos para uma agenda de pesquisas e políticas públicas de desenvolvimento. O crescimento econômico e o maior acesso à renda têm efeitos multiplicadores importantes num país em que os serviços públicos de melhor qualidade são mercantilizados, como é o caso do Brasil. Há educação e saúde públicas, mas o acesso a elas tem nítido corte de classe, já que os serviços são consi- 310 derados de má qualidade. A melhoria na renda leva as famílias a procurar serviços melhores no mercado (escolas privadas, incluindo creches, planos privados de saúde, automóvel em lugar do transporte público etc.), com isso reduzindo, em parte, o peso das desigualdades de acesso à infraestrutura urbana. O adensamento da malha escolar pública e sua extensão a novas áreas geográficas no interior das regiões mais pobres do país tem o mesmo efeito redutor de desigualdades regionais, abstraindo-se, para efeitos dessa discussão, a qualidade dos serviços ofertados. O fato de as taxas “nem nem” de exclusão serem muito mais altas nas famílias de baixa renda revela a importância das políticas de distribuição de renda, sejam os programas de transferência condicional (tipo bolsa família), seja a política de valorização do salário mínimo. Essas políticas miram o curto prazo, isto é, dar acesso imediato ao mundo dos serviços públicos que as décadas de desinvestimento estatal acabaram transferindo ao mercado. No longo prazo, a melhoria dos serviços públicos oferecidos pelo Estado, decorrente do aumento do investimento hoje em curso,23 tornará menos relevante, espera-se, esse aspecto mercantilizado das relações sociais, reduzindo, ainda mais, as desigualdades que sustentam as diferentes probabilidades de um jovem ser “nem nem”. Nesse sentido, estão corretos os que insistem no caráter estratégico de uma educação pública e universal de qualidade. Políticas de estímulo à manutenção dos jovens mais pobres na escola, a partir dos 18 anos, também são absolutamente cruciais. As políticas de cotas para estudantes em escolas públicas e para negros no ensino superior podem ter esse efeito no médio prazo, e devem ser intensificadas e universalizadas no território nacional. Aspecto decisivo, e não atentado pelas discussões sobre o tema, é o de que alunos do ensino médio público que hoje o abandonam adotam atitude perfeitamen23 O investimento por aluno no ensino médio atingiu 20% do PIB per capita in 2009, contra 25% nos países da OCDE. Isso representa o dobro da média dos anos 1990, que girou em torno de 10%. Dados do Banco Mundial em http://data.worldbank.org/indicator/SE.XPD.SECO.PC.ZS. te racional. As chances de admissão no vestibular das melhores universidades, em sua maioria públicas, são diminutas, já que não há vagas para todos e a concorrência com jovens de classe média, oriundos de escolas privadas, é grande e desleal. O acesso ao ensino superior para aqueles jovens (em geral de classes sociais mais baixas) depende, em geral, do investimento no custeio dos estudos por parte do próprio estudante. Isso requer a entrada no mercado de trabalho, o que se dá em condições de competição também muito ruins: jovens de 18 anos, saídos do ensino médio de má qualidade, competem em condições muito desfavoráveis com os que já estão empregados e os que demandam emprego ao deixar a universidade. É isso que explica o salto na taxa “nem nem” de exclusão entre os 17 e os 18 anos, que vimos antes, para homens e mulheres igualmente. Parte substancial deles e delas se torna “nem nem” por não ter condições de acesso ao ensino superior, e por não ter poder de barganha no mercado de trabalho. Para esses jovens, a sociedade brasileira se apresenta como um ambiente enclausurado, condenando seu futuro. As políticas de cotas, nessas condições, têm grande potencial transformador das chances de vida dos jovens das classes mais baixas. A perspectiva de entrar numa universidade pública, mesmo quando oriundos do ensino público, é um incentivo para a redução da evasão, ainda muito alta, que ocorre na passagem dos jovens das classes mais baixas do ensino fundamental para o médio.24 E a dedicação à própria qualificação média muda de sinal se há perspectivas reais de progressão nos estudos rumo ao ensino superior de qualidade. Um dos efeitos disso pode ser o aumento da pressão dos pais e dos próprios alunos para a melhoria do ensino público, pressões até aqui vistas como inócuas, já que a mobilidade escolar dos mais pobres encontrava no ensino médio um beco sem saída. Isso permite prever o aumento da pressão popular por melhoria do ensino público em geral. No caso específico das mulheres jovens, é 24 Estudos importantes dessas transições são Hasenbalg (2003); Torche e Ribeiro (2012). 311 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 Adalberto Cardoso CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ... hora de se discutir a criação de creches nas escolas públicas do ensino médio. A incidência de “nem nem” entre as jovens de 15 anos com filhos é de mais de 70%, e esse evento continuará cobrando seu preço no futuro dessas adolescentes. Educação sexual é, obviamente, crucial, mas ela não parece capaz de evitar a gravidez precoce nas camadas populares. Uma rede local de creches públicas, oferecida pelas prefeituras, poderia cumprir essa função, dando prioridade para crianças de jovens em idade escolar. Uma pesquisa que dimensione o problema em escala municipal, atenta às regiões do país, é estratégica para orientar uma política dessa natureza. Inclusão emergencial via mercado, por meio de políticas de renda; investimentos na qualidade dos serviços públicos de educação, visando ao longo prazo; incentivos aos jovens para que permaneçam na escola (mesmo quando esta apresenta má qualidade no momento), como as políticas de cotas para o ensino superior (e também ao ensino técnico) e as de acessibilidade para jovens portadores de necessidades especiais; educação sexual para as adolescentes; num ambiente de incentivos ao crescimento econômico e à geração de empregos de qualidade: eis uma agenda de políticas públicas com potencial para desativar esse mecanismo gerador de desigualdades de longo prazo que é a taxa “nem nem” de exclusão. Sugiro que essa taxa não produziu explosão social no país em razão da combinação entre caráter estrutural do problema e melhoria nas condições dos mercados de trabalho e educacional nos últimos anos. As variáveis de contexto, nessas duas dimensões, perderam muito de sua incidência, o que indica redução real de desigualdades intermunicipais e regionais. A hipótese, aqui, é a de que a melhoria das condições materiais de vida, ao se disseminar pelo país, contribuiu para reduzir a percepção de clausura das condições de mobilidade social, ampliando o horizonte de expectativas de inclusão dos jovens “nem nem”, em especial as mulheres. Ao contrário, pois, de aparecer como deterioração de condições antes favoráveis e, portanto, como frustração de suas expectativas, como é hoje o caso de vários países europeus. Por fim, mesmo correndo o risco de ver o diagnóstico negado pela história, expresso minhas dúvidas quanto ao fato de a população diretamente beneficiada pelas políticas públicas de inclusão em curso se sentir representada nos movimentos iniciados em junho de 2013, que apresentam nítido recorte de classe média, e, mais ainda, estudantil. Logo, não parece ser alimentada pela juventude “nem nem”, hoje concentrada nas regiões e famílias mais pobres do país. Recebido para publicação em 4 de maio de 2013 Aceito para publicação no dia 21 de junho de 2013 REFERÊNCIAS ALVES, José Eustáquio R.; CAVENAGUI, Suzana M. Tendências demográficas, dos domicílios e das familias no Brasil. Publicado em http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/ tendencias_demograficas_e_de_familia_24ago12.pdf,2012. Acesso em fevereiro de 2013. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1982. BISILLIAT, Jane. (Org.). Regards des femmes sur la globalisation. Paris: Karthala, 2003. BLAY, Eva A. Trabalho industrial X trabalho doméstico. A ideologia do trabalho feminino. 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YOUTH, WORK AND DEVELOPMENT: elements for an investigation agenda JEUNESSE, TRAVAIL ET DÉVELOPPEMENT: éléments pour un programme d’investigation Adalberto Cardoso Adalberto Cardoso The post-2008 economic crisis, accompanied by large social protests everywhere, turned on a stop light in the richer countries in terms of work and study opportunities for young people. The number of youth who neither study nor work increased greatly, especially in Spain and Greece, but this phenomenon has spread to the wealthier countries. This article shows that in Brazil the “nem nem” (neither nor) condition is structural and it proposes an analytical model to explain the transformations that occurred from 2000 to 2010. It suggest that the structural changes that the country went through and the public policies to lower the barriers to enter schools and the labor market reduced the impact of regional inequalities but increased the burden of poverty in explaining the “nem nem” condition of young people. La crise économique d’après 2008, accompagnée un peu partout de grandes protestations sociales, a déclenché un signal d’alarme dans les pays plus riches quant aux opportunités de travail et d’étude pour les jeunes. Le nombre de ceux qui n’étudient ni ne travaillent a beaucoup augmenté, tout spécialement en Espagne et en Grèce, mais le phénomène s’est très répandu dans les pays riches. L’article montre qu’au Brésil la condition « ni-ni » est structurelle et propose un modèle analytique pour expliquer les changements survenus entre 2000 et 2010. Il montre que les changements structuraux subis par les pays et les politiques publiques de réduction des barrières d’accès à l’école et au marché de travail ont réduit l’impact des inégalités régionales et ont augmenté le fardeau de la pauvreté capable d’expliquer la condition de « ni-ni » des jeunes. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Youth. Labor market. Structural M OTS - CLÉS : Jeunesse. Marché du Travail. changes. “Nem nem” condition. Causal models. Changements structuraux. Condition “ni ni”. Modèles de causalité. Adalberto Cardoso – Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP-UERJ). Pesquisador Associado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento e do Warwick Institute for Employment Research. Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e Pesquisador 1 do CNPq. Atualmente coordena três projetos de pesquisa (dentre eles um PRONEX) e atua em diversas áreas da Sociologia do Trabalho, da Sociologia Urbana (incluindo desigualdades sociais) e da Teoria Social. Sua produção mais recente inclui “Ensaios de sociologia do mercado de trabalho”, Rio de Janeiro, FGV, 2013, e “Brazil Emerging: inequality and emancipation”, New York, Routledge, 2013 (organizado com Jan Nederveen Pieterse). 314 Enrique de la Garza Toledo Enrique de la Garza Toledo* DOSSIÊ TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD INTRODUCCIÓN El concepto clásico de trabajo, en el sentido de la forma teórica que adoptó en muchas ciencias sociales este tipo de actividad, se vincula con la Revolución Industrial (Thompson, 1972), cuando el capitalismo adquirió una forma moderna y cuando en algunos procesos productivos centrales fueron introducidas las máquinas para la realización de la transformación de la materia prima, impulsadas no por la fuerza de los obreros sino, inicialmente, por la del vapor. Es lo que Marx llamó la fase maquinista de la transformación de los procesos productivos capitalistas. Estos procesos productivos implicaban también el uso de trabajo asalariado por el capital, la subsunción real del primero no solo al capital sino al ritmo de las máquinas; también la segmentación espacial (la fábrica) y temporal (jornada de trabajo) entre el * Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Autônoma Metropolitana, Departamento de Sociologia. Professor visitante da Universidade Autônoma de Barcelona, Universidade de Cornell e de Evry (França). Caixa Postal 55536, 09340, México, D.F., Purísima y Michoacán, Col. Vicentina, Edificio H-141 [email protected] mundo del trabajo y otros mundos de vida de los trabajadores (Moore, 1995). Este tipo de trabajo sirvió de basamento empírico a teorías muy diversas en cuanto a los conceptos de lo que es trabajo, producción, producto, relación laboral. Por ejemplo, para la teoría neoclásica solo sería trabajo el que produce para el mercado, con esto se incluye al trabajo no asalariado que produce para el mercado, pero el eje de la teorización sería la producción capitalista fabril. Otro tanto sucede en el marxismo, con el añadido de que trabajo no es solo transformación de objetos de trabajo a través del trabajo para el mercado sino que también puede incluirse el que produce para el autoconsumo. Sin embargo, casi toda la teorización de El Capital sin duda que tiene como referente a la producción capitalista maquinizada. En su forma más desarrollada, en torno del capital los conceptos de valor, valor de uso, mercancía y dinero, excepto observaciones al margen, los conceptos de esta obra se refieren a dicha producción (capital constante, variable, plusvalía, acumulación de capital, rotación, etc.). Implicaba también una separación temporal y espacial entre producción (fábrica), 315 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 En este ensayo presentaremos el concepto de trabajo no clásico (De la Garza, 2010), como un intento de dar cuenta no solo de las diferencias en los tipos de trabajo, sino de dimensiones amplias de lo laboral incluidas en forma parcial en otras teorizaciones (Thompson, 1983). Buscaremos precisar el concepto y su alcance, así como las relaciones con las actividades de servicios, que se han vuelto cada vez más importantes en las economías modernas, sin olvidar su peso en las menos desarrolladas. Entraremos a recapitular sobre el concepto clásico de flexibilidad (Durand, 2004) y la ampliación que sería pertinente al incluir trabajos no clásicos. En particular incluiremos una forma de flexibilización que probablemente se esté convirtiendo en dominante en el capitalismo luego de la última gran crisis económica, la subcontratación (Moncada y Monsalvo, 2000) y sus vínculos con el trabajo no clásico. Finalmente, discutiremos las tesis de la fragmentación de identidades (Sennet y Coob, 1972) y la servidumbre voluntaria (Durand, 2006) al calor del enfoque mencionado de trabajo no cásico, para culminar con consideraciones acerca de la posibilidad de constitución de sujetos laborales en estas condiciones. PALABRAS CLAVE: Trabajo. Trabajo clásico. Trabajo no clásico. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD circulación con puntos de venta fuera de la fábrica y consumo en otras empresas o en los hogares (De la Garza, 2011). Es decir, el cliente aparecía en el mercado y en el consumo pero no directamente en el proceso productivo. Este implicaba un acercamiento que solo permitía la relación directa entre dos sujetos y sus representantes, el del trabajo y el del capital. Otro tanto podríamos decir de las teorías originarias de la Sociología del Trabajo (Mayo, Friedman, Touraine, Naville, Golthorpe, Panzieri, Braverman) centradas en el proceso de producción capitalista de tipo industrial; o bien las teorías de organizaciones o la psicología del trabajo (De la Garza, 2006). La apuesta a ver a la producción industrial capitalista, inicialmente maquinizada, como el paradigma de toda producción no era gratuito. Mostraba que efectivamente, hasta los años sesenta del siglo XX, decir capitalismo era casi sinónimo de industrialización. En esta medida fueron creados los conceptos centrales de las teorías que analizan el trabajo teniendo como referencia al sector industrial y sus transformaciones. Hubo diversas formas de conceptualizar las transformaciones del trabajo capitalista al industrial, pero una de las más simplificadas era la que distinguía etapas históricas en el desarrollo de los modelos de producción capitalistas. Comenzando por el trabajo de oficio capitalista – no hay que confundirlo con el artesanal puesto que se realizaría con trabajadores asalariados del capital – en procesos que Marx llamó “de cooperación simple y manufactureros” (Offe, 1998). No se entendía por tales, como ahora la economía hegemónica, un sector de la economía, sino procesos capitalistas no maquinizados dependientes de las habilidades de los trabajadores. Luego vendría el trabajo subordinado a las máquinas y, posteriormente, con la introducción primero del Taylorismo y luego del Fordismo, se completaría la subsunción real del obrero al capital, pero no solo a la máquina sino también a la organización del trabajo (obrero masa, descalificado, que realiza trabajo segmentado, rutinario, monótono). La Gran Crisis de los Setenta del siglo XX habría conducido a una profunda reestructuración de las grandes empresas, primero en el sentido del Toyotismo (reintegración de tareas a través de la polivalencia, el trabajo en equipo, la calidad total, el control estadístico del proceso y el justo a tiempo, trabajadores recalificados, involucrados, con iniciativa en la toma de decisiones en el puesto de trabajo) (Burawoy, 1979), junto con la introducción de la computación en el control del proceso productivo y de toda una planta o conjunto de plantas; primero en las tareas productivas, luego también en diseño, compras, ventas, contabilidad, finanzas. Todo esto sin olvidar la importancia que algunos autores dan en este proceso a la formación de clusters y otras redes entre empresas. Con diferentes conceptos y salvedades acerca de cómo definir las etapas, esta sería más o menos la línea de desarrollo clásico de la producción industrial, a veces extendida a servicios modernos e incluso a una parte de la agricultura. Este trabajo clásico siempre convivió con otras formas laborales (artesanal, de oficio, en servicios, agricultura no industrial), pero se pensó que en el PIB la parte más importante iría correspondiendo a la industria e incluso en el empleo. Y así fue hasta 1950. Sin embargo, a partir de este año en los Estados Unidos y otros países europeos los servicios comenzaron a crecer y actualmente en la mayoría de estos representan la mayor parte del PIB y del empleo. En países no desarrollados la importancia de los servicios no es nueva, pero una parte muy elevada de estos corresponde a los servicios precarios, incluso informales que existían de larga data. Es decir, lo clásico o lo no clásico no se relaciona con su importancia en el empleo o en el producto, tampoco con su antigüedad histórica (Handy, 1986). Muchos conceptos se han propuesto como alternativos a lo que llamamos trabajo no clásico (García, 2006). Uno de los primeros fue el de trabajo informal (Portes, 1995; Tokman, 1987), que en su acepción original (misión de la OIT a Africa en los setenta del siglo pasado) apuntaba a un concepto colindante con el más actual de modelo de 316 producción porque incluía tecnología, organización, relaciones laborales, características de la mano de obra, relación con la unidad doméstica. Esta línea, desde nuestro punto de vista, hubiera sido más fructífera que las actuales, enfrascadas en cómo medir la informalidad, que las ha llevado a simplificar lo que empezó como un concepto muy complejo. Las dos definiciones más socorridas actualmente son: sector informal, que no lleva una contabilidad racional separando las cuentas de las familia de las del negocio, que no está registrada y que no paga impuestos; y la de relación laboral informal, relativa a los trabajadores con los que no se cumplen las protecciones de las leyes laborales, específicamente derecho a la salud por ser trabajador y a la pensión. Es decir, estas definiciones están centradas en la relación de la unidad económica o del trabajador, con instituciones externas al trabajo (fisco y seguro social), pero no en el contenido del trabajo que es lo que nos interesa destacar, como veremos con el concepto de trabajo no clásico (Salas, 2006). Otro tanto sucede con los conceptos de trabajo no estructurado, concepto poco acertado puesto que las estructuraciones del trabajo no pueden quedar reducidas al cumplimiento de regulaciones legales. Trabajo atípico (Senise, 2001), nuevamente se centra en el cumplimiento o no de las regulaciones laborales. Precario, muy centrado en variables sociolaborales (inestabilidad, inseguridad o falta de protección social, vulnerabilidad social y económica) más que en el contenido del trabajo, trabajo no estándar (Reglia, 2003), que mira hacia protecciones legales o no. Trabajo decente, con el que se amplía la mirada de las protecciones hacia el derecho a sindicalizarse, a firmar contratos colectivos, seguridad social, diálogo social. Exclusión, vulnerabilidad e inseguridad, apuntan no tanto a derechos no cumplidos sino a la relación del trabajador con la sociedad, desarticulación de relaciones sociales entre individuos, pérdida de solidaridad, fragilidad del vínculo social; el trabajo deja de articular el tiempo cotidiano. Estos últimos conceptos colindan con los que criticaremos más delante de fragmentación de las identidades. Es decir, ninguno de estos conceptos, acuñados en los últimos tiempos – el de informalidad es el más antiguo – nos ayuda a dar cuenta del cambio en los contenidos del trabajo, del producto, de las relaciones sociales en el trabajo, independientemente de que se cumpla lo dispuesto en las leyes laborales. El concepto más antiguo que sirve de inspiración al de trabajo no clásico es el de Marx asociado a la producción inmaterial. En la Historia Crítica de las Teorías sobre la Plusvalía Marx acuña con gran perspicacia este concepto, notando desde su época que hay trabajos que no se ajustan exactamente a su propia teorización sobre el trabajo industrial. Un ejemplo que utiliza es la representación de una obra de teatro en donde el teatro es propiedad de un capitalista, los actores son asalariados y el público paga por el espectáculo y el negocio debe generar ganancias para sostenerse y acumular capital. Según Marx, en este tipo de producción, primero el producto es inmaterial y no material como lo es en la industria. Marx como buen filósofo no entendía por material solo lo físico material, que está diferenciado del productor y puede ser observado a través de los sentidos, sino entiende por material lo objetivado; es decir que, aunque es producto del trabajo humano adquiere una existencia separada de su productor. Sin embargo, en la obra de teatro en un solo acto se produce el espectáculo (que no es sino una configuración de símbolos que adquieren significados para los espectadores), al mismo tiempo se circula como mercancía hacia los compradores que son los espectadores y se consume en el mismo teatro por estos. Es decir, la producción simbólica que es la obra termina subjetivándose en el espectador y no puede ni almacenarse ni revenderse. El producto no se objetiva sino se subjetiva. Para nosotros este sería un primer tipo de trabajo y producción no clásica, pero que no lo agota. También puede haber una producción puramente simbólica objetivada, es decir, los símbolos generados adquieren una existencia separada de su productor (el diseño de software, el film, el libro, etc.). De acuerdo con el concepto de 317 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 Enrique de la Garza Toledo CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD materialidad expuesto, esta producción no sería inmaterial sino material pero eminentemente simbólica – por supuesto que a toda producción eminentemente simbólica siempre se le asocia algo físico material, la depreciación del teatro, el CD, el costo del material del libro, pero esta parte de su valor no es lo que lleva a ser comprado sino su contenido simbólico. Dentro del trabajo no clásico también estamos incluyendo el trabajo eminentemente interactivo en el sentido no de que se interacciona para trabajar (esto es propiedad de todos los trabajos sean cara a cara o virtuales), sino que la interacción es la condición para producir y, al mismo tiempo, lo más importante del producto. Trabajo interactivo lo llaman algunos, válido siempre y que se acote que todos lo son, pero no en todos es parte de lo que se vende (cuidado de bebés, de ancianos, educación tradicional, cuidado en hospitales, parte importante en las ventas directas al cliente, en el trabajo de call centers, en comida rápida, el del taxista, etc.). Si en cierto tipo de trabajos es muy importante la forma de interacción con el cliente, esta triada puede ampliarse a más sujetos, especialmente cuando se trabaja en el espacio público (taxistas que interaccionan con el pasajero, con agentes de tránsito, automovilistas, peatones). Estas interacciones pueden ser cara a cara o virtuales a través de teléfono, internet. Habría que añadir que toda interacción entre sujetos es simbólica pues implica la generación e intercambio de símbolos que son transformados en significados en la subjetividad de los involucrados. En otras palabras, el trabajo interactivo es también trabajo de generación y transmisión de símbolos y de allí las dificultades del consenso en lo que se quiso decir. Es decir, una parte del trabajo es creación de símbolos comprensibles para el otro, que impacta nuevas calificaciones de los trabajadores para lograrlo e implica a un externo a la relación capital trabajo, clásica en esta actividad. En esta medida, en el trabajo no clásico, por su énfasis en lo simbólico – no reducido a lo cognitivo sino que implica además lo emocional, moral, estético-, con mayor razón cuando es interactivo, el concepto de trabajo – que es trabajar, como se trabaja y que se produce – tiene que implicar cómo se generan los símbolos, y cómo interviene el cliente u otros sujetos como en el caso del taxista en esa construcción simbólica. La Sociología del Trabajo, al menos desde inicios de los ochenta, acepta el concepto de trabajo emocional; de fines de los noventa el de trabajo estético y con mayor facilidad aceptó el de trabajo cognitivo relacionado con la ciencia y la tecnología y la innovación (Micheli, 2006). Si bien estas denominaciones indican énfasis en el tipo de códigos o símbolos producidos, nunca pueden presentarse solos, lo que habla de la necesidad no de tipologías de trabajo no físico material sino de cómo se combinan en diferentes configuraciones y con énfasis diversos los códigos cognitivos, emocionales, estéticos, morales y se conforman en red (configuración) (De la Garza, 2001) a través de formas de razonamiento lógico formal, pero también del razonamiento cotidiano (metáfora, analogía, regla práctica, hipergeneralización, retórica, etc.). Es decir, cómo, para la actividad concreta de trabajar, se construyen configuraciones concretas de códigos o símbolos que no dependen solo del trabajador sino también de la actividad y consenso del cliente o de otros actores, según el caso. Es decir, el cliente en estos trabajos no clásicos no puede verse como un ente pasivo que compra y consume, porque lo que compra no se llega a generar sin su propia actividad. A pesar de no ser asalariado de la empresa que le vende, en esta medida, dentro de la idea de extensión de conceptos habría que considerar en este tipo de trabajos el del cliente (Jurgens, 1995). Trabajo no asalariado que si no se realiza no se tiene el producto: la compra en supermercados, en un restaurante de hamburguesas. Por esta razón, en los diseños organizacionales de cadenas de supermercados, cines, comida rápida, se contempla la actividad del cliente como parte de lo que permitirá la generación del servicio. Una última dimensión del trabajo no clásico (simbólico, interactivo) es el tema de los traslapes entre espacio convencional del trabajo y otros 318 Enrique de la Garza Toledo es indispensable para que se realice la producción y se tenga el producto. Ya sea porque se generan símbolos y se transmiten al cliente, o porque el producto es la interacción misma. La intervención del cliente implica interacción con los trabajadores clásicos y, a veces, con otros actores aparentemente ajenos a dicho trabajo, e intercambios simbólicos entre los sujetos del trabajo, incluyendo al cliente. Esto porque parte importante del trabajo no clásico es la producción e intercambio de símbolos (cognitivos, emocionales, morales, estéticos). En última instancia el concepto de trabajo no clásico puede ser más que un tipo de trabajo, un enfoque de análisis. LOS SERVICIOS En el centro de los trabajos no clásicos están los servicios, aunque puede incluir trabajos en la industria y la agricultura. Su definición sigue siendo objeto de controversia. Sin embargo, las dificultades de la definición dependen también del enfoque de análisis del fenómeno laboral que se adopte. En el enfoque sociodemográfico y económico, en el que se trata de relacionar variables propias de cualquier tipo de trabajo (edad, escolaridad, nivel educativo, estado civil, duración de la jornada laboral, antigüedad en el trabajo, salario, disposición de prestaciones, etc. ) no importaría si la producción fuera material o inmaterial, física o simbólica, interactiva con creación de significados, pues las variables solo se diferenciarían en nivel entre los diversos trabajos, de tal manera que la diferenciación entre trabajo clásico y no clásico sería ociosa. Así mismo, para la perspectiva jurídica lo fundamental es la observancia de la norma, independientemente del tipo de trabajo, salvo excepciones contempladas en la misma Ley. De tal manera que las diferencias mencionadas en el Apartado I serían irrelevantes. En cambio en las tradiciones de la Sociología del Trabajo, la Antropología, la Psicología, Las Relaciones Industriales, la Administración y las Organizaciones es, o puede ser, muy importante 319 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 mundos de vida, sea del propio trabajador, de los clientes o de otros actores que intervienen, sin ser trabajadores ni compradores, en el proceso de trabajo (De la Garza, 1997). Es el caso del trabajo a domicilio, sea tradicional (costurera) o moderno (teletrabajo en casa). Trabajar es también poner en juego la imbricación de espacios, de tal forma que el espacio y el tiempo de trabajo no se pueden separar de esas imbricaciones (para el taxista detenerse a comer durante la jornada en un restaurante es parte de su jornada y de las actividades laborales) (Pogliaghi, 2011). El concepto no clásico de trabajo debe ser considerado como un concepto ampliado, tanto en el nivel de la valorización como en nivel del proceso de trabajo. Desde este último nivel habría que pensar en ampliar, como hemos mencionado, el concepto de que es trabajar y quien trabaja, pero también el de control sobre el trabajo. Al estar en interacción con no asalariados (el cliente, pero también pueden ser otros actores dependiendo de cual trabajo se trate) estos también ejercen control sobre el trabajo del asalariado, además del patrón. En esta medida se impacta también el concepto de relación laboral – entendida estrictamente como relación social en la producción - que en el clásico queda reducida, cuando se trata de trabajo asalariado, a la del capital con el trabajo, pero en el no clásico esta relación puede ser tríadica (inclusión del cliente) o poliádica (interviene otros agentes favoreciendo u obstaculizando el trabajo) (Muckenberger, 1996). Y se impacta también el concepto de construcción social de la ocupación, que no depende solo de quien quiere trabajo y quien necesita trabajadores (oferta y demanda de trabajo) sino que pueden intervenir otros actores, redes sociales, además de la propia subjetividad de los que intervienen (Zucchetti, 2003). Finalmente la imbricación de espacios de relaciones puestas en juego, al mismo tiempo que se trabaja, puede requerir conceptos bisagra que den cuenta de esos espacios, a la vez que ya no aparecen segmentados ni espacial ni temporalmente. En síntesis entendemos por trabajo no clásico aquel en el que la intervención del cliente CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD analizar el trabajo como actividad por la cual se transforma una materia prima, a través de la fuerza de trabajo, utilizando ciertos medios de producción (Korezynski, Hodson y Edwards, 2006). Es la perspectiva de analizar el trabajo en acción en el proceso de trabajo, la cual puede tener importancia para entender el comportamiento productivo de las empresas, así como para aquellos que piensan que el trabajo no es un simple factor de producción o costo laboral, sino sujetos en acción dotados de subjetividad que interaccionan en los procesos de trabajo y generan productos. En esta medida, cuanto trabajo incorporado al producto generará la fuerza de trabajo, no está determinado por su salario. El trabajador puede generar más valor de lo que su fuerza de trabajo cuesta. De tal manera que su productividad se defina en las relaciones cotidianas de producción, día por día, dependiendo de la resistencia o cooperación del trabajador con la gerencia. Pero, la perspectiva de análisis del trabajo en el proceso de trabajo puede también orientarse en cuanto a la posible formación de sujetos colectivos de trabajadores, como veremos en la última parte de este ensayo. En esta tesitura, los servicios han sido primero definidos como un residuo, lo que queda en el producto nacional luego de descontar a la industria, agricultura, pesca, silvicultura, ganadería. Los que han tratado de darle contenido analítico a la definición de servicios han comenzado por considerarlo como el sector de producción de intangibles. El concepto de intangible a estas alturas resulta muy elemental para dar cuenta de la complejidad de los servicios. Primero, porque remite a uno sólo de los sentidos del cuerpo, el del tacto, lo que se puede o no tocar, por ejemplo, la música se oye pero no se toca. Sin embargo, la comida en el restaurante si se puede tocar y se considera servicio, aunque el buen trato del personal “no se puede tocar”. El ejemplo lo que indica es que los servicios comúnmente combinan producto material con inmaterial, aunque con un peso importante de lo inmaterial, de lo simbólico y/o de lo interactivo. Otros han tratado de reducir los servicios a los que están basados en el conocimiento. Nuevamente, no podríamos encontrar aislado conocimiento de emoción, moral y estética, por decir algo, aunque uno de estos campos simbólicos podría tener más peso. En todo caso, en el placer por la música lo más importante no es el conocimiento sino la emoción y lo estético. También hay quienes han definido los servicios como interactivos directamente, y hay muchos servicios así (restaurante, concierto en vivo). Pero, hay servicios sin interacción directa entre trabajadores y clientes, como en buena parte de las telecomunicaciones. Finalmente, se les ha definido como productos no almacenables, aunque los paquetes de cómputo si lo son. En otras palabras: puede haber intangibles objetivados (software); servicios que ofrecen un tangible (comida en restaurante); tangibles con fases intangibles en su producción (diseño en automotriz); intangibles observables (concierto); la percepción de tangibles es, a su vez, un intangible; una parte de lo material es intangible. Resultan más pertinentes, ante estas confusiones, las diferencias entre material e inmaterial, observable e inobservable, interactivo cara a cara y mediatamente. Es decir, resulta más conveniente una definición bidimensional de lo que es un servicio: producción eminente de símbolos y/o producción de interacciones con los clientes y otros actores con significado, es decir, el centro del trabajo no clásico estaría en los servicios definidos de esta manera. Aunque una parte de la producción material puede ser no clásica al crecer la importancia del cliente y de las interacciones como en la preparación de hamburguesas en un McDonald’s. FLEXIBILIDAD Y TRABAJO NO CLÁSICO El tema de flexibilidad del trabajo se ha vuelto un lugar común a partir de la última década del siglo pasado para analizar las relaciones laborales. La gran crisis capitalista de mediados de los setenta de dicho siglo fue atribuida por sectores pro empresariales a la rigidez de las relaciones laborales, resultado del largo período de 320 Estado benefactor y keynesiano, que implicó pactos entre Estado, sindicatos y empresas. En esta medida había que flexibilizar el mercado laboral. Aunque el término de flexibilización no era usado en la economía neoclásica, resultaba fácil asimilarlo al concepto de eliminar rigideces al libre encuentro entre oferta y demanda de trabajo. Es decir, el centro estaba en el mercado de trabajo. Sin embargo, las primeras reestructuraciones productivas no fueron tanto al mercado sino al proceso de trabajo, rescatando la tradición de las grandes empresas automotrices japonesas y que luego se llamaría el Toyotismo. En otras palabras, aunque parecieran referirse a lo mismo los que hablan de flexibilizar el mercado y el proceso de trabajo, las connotaciones son diferentes. Entre estas dos posiciones empresariales se encontraba la idea de flexibilizar el sistema de relaciones industriales. La primera y la tercera fueron asimiladas por las propuestas neoliberales al coincidir con la economía neoclásica, siendo traducidas como eliminar rigideces (protecciones) contenidas en las leyes laborales y en la contratación colectiva, así como establecer limitaciones a los pactos con los sindicatos, en especial marginarlos del diseño de políticas económicas, laborales o sociales. En otras palabras, se trataba de flexibilizar un sistema de relaciones industriales relativamente benefactor del trabajo y, de esta manera, permitir que salarios y empleo se fijasen por productividad marginal del trabajo y oferta y demanda del mismo. Aunque relacionada con la flexibilidad en el proceso de trabajo, desde el momento en que este obedecía a normas de las relaciones laborales internas y externas de la ley laboral, se trataba de facilitar el empleo y el despido (flexibilidad numérica), la movilidad interna de los trabajadores entre puestos, categorías, departamentos (flexibilidad funcional) y poner el salario en función de la productividad (la calidad, la puntualidad y asistencia, el tener menos desperdicios), a las que habría que añadir la flexibilidad a través del outsourcing (Uriarte y Tusso, 2009; Novella et al., 2007; Martínez, 2008). Todo esto fue pensando directamente para el sector industrial, aunque extendido a los servicios. En la doctrina estrictamente toyotista, como era importante la identidad con la empresa, el trabajo en equipo, el involucramiento y la participación de los trabajadores para aumentar la productividad, no necesariamente la máxima flexibilidad daría la máxima productividad; la nueva cultura laboral se consideraba muy importante, en particular cuando entraba a jugar, además de la productividad, la calidad. Estas concepciones, especialmente las neoclásicas, de entender la flexibilidad como desregulación, han estado presentes en el centro de las disputas entre el capital y el trabajo en el nivel internacional desde los años ochenta hasta la actualidad. El problema es que los conceptos de desregulación y de flexibilidad neoclásica y toyotista fueron creados mirando al sector industrial (Piore y Sabel, 1988). El problema es cómo se presenta para el trabajo no clásico que implica producción eminente de símbolos con intervención inmediata o mediata del cliente (además de otros posibles actores) y la interacción entre estos. En el caso de la producción físico material clásica la disputa directa puede ser capital-trabajo en torno a obligar o convencer al trabajador de ser más productivo (valor agregado/hora-hombre). En este caso el trabajador se puede resistir o cooperar. En la producción no clásica el problema es que el cliente que intervine no puede ser controlado estrictamente por la gerencia, como se intenta con el trabajador por estar este al mando del capital. El cliente puede cooperar o no, pero también puede imponer durante la interacción productiva variaciones no estandarizadas que rompen la rutina y pueden afectar la productividad y la calidad. En esta medida una extrema rigidez en los ordenamientos de cómo trabajar puede ser contraproducente para la productividad y sobre todo para la calidad. Asimismo, la producción de símbolos compartidos entre trabajador y cliente pueden entrar en desacuerdo más allá de que el trabajador se comporte de acuerdo con la normatividad empresarial (Hochschild, 1983). Además, se presenta el problema de qué tanto puede estandarizarse la 321 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 Enrique de la Garza Toledo CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD producción y el intercambio de símbolos, en parte porque el cliente no es estrictamente controlado, pero también porque no hay cadenas de montaje de símbolos para formar configuraciones, ni mucho menos tiempos estándar para genera un símbolo compartido. En el caso de la producción objetivada de símbolos (producción de software), sin intervención directa del cliente (aunque puede intervenir directamente en el llamado software a la medida), el problema es nuevamente si se puede estandarizar las operaciones cognitivas y fijar tiempo estándar de producción. Ilustraremos este caso con la producción de software: El diseño de software es un ejemplo de producto simbólico objetivado: el programa existe al margen de su creador y sus consumidores pueden intervenir directamente en el proceso de trabajo (software a la medida) o bien a través de la demanda; se puede almacenar y revender; el proceso de trabajo usa como insumos símbolos o vocablos del lenguaje de programación y algoritmos; las operaciones más importantes de transformación se dan en la subjetividad del programador y son de carácter cognitivo; se producen en un campo de interacciones entre gerencia, líder del proyecto y programadores. Lo que implica consensos acerca de cuál camino seguir, aunque es el programador el que decide la secuencia de códigos a utilizar para resolver el problema. Es decir, en la solución del problema influye la habilidad del programador, la cual es de resolución simbólica de problemas, aunque supone colaboración con líderes y gerencia, también con probadores de la calidad e incluso con comunidades virtuales de programadores que se ayudan más allá de las fronteras de la empresa. Las metodologías que sigue el programador no son lineales, no aceptan en general su asimilación a reglas burocráticas y siempre hay incertidumbre en cuanto a si se tendrá la solución, si habrá errores y sobre todo respecto al tiempo de producción. En esta medida, para evitar la “aflicción de software” (errores en el mismo y falta de tiempos estándar) aparecen propuestas de estandarización y rutinización en el diseño como la Ingeniería del Software. Es una propuesta aná- loga a la de la administración científica del trabajo de Taylor para la manufactura, aunque en este caso el intento es estandarizar tiempos y pensamientos y no movimientos. Esta perspectiva se enfrenta a las limitaciones que provienen de la incertidumbre del proceso que no se reduce al ensamble de partes de cadenas de códigos, las soluciones están muy relacionadas con las habilidades “artesanales” de los programadores y las soluciones muchas veces no son generalizables sino son ad hoc. También se enfrenta la estandarización al hecho de que los programadores no documentan en forma suficientemente explícita la manera como diseñaron software previos, a veces por la lucha por el saber-pensar y el intento del monopolio del conocimiento por parte del diseñador. Por estas razones el diseño de software se ha resistido a su estandarización y al establecimiento estricto de tiempos estándar para su producción. Una solución paralela para lograr la estandarización en el diseño de software ha sido la separación entre lo más importante de la concepción del diseño a cargo de la gerencia, dejando las tareas menores de codificaciones de logaritmos a los programadores. Todos estos intentos solo han fructificado parcialmente y la incertidumbre sigue en esta actividad. En este ejemplo se puede observar que la producción de símbolos tiene una parte de creatividad en la concepción que no puede reducirse a rutinas, sino que depende de las habilidades subjetivas de este tipo de trabajador, así como de las relaciones que se entablen con la jerarquía, de cooperación o conflicto con la empresa. Estas circunstancias marcan límites no solo a la estandarización sino al control de la empresa de los tiempos de producción e incluso de la calidad del producto. No es posible estandarizar radicalmente las redes neuronales – además de que, si existieran estas es imposible ubicarlas con precisión y mucho menos reconfigurarlas planeadamente para producir diseños en menos tiempo y de mejor calidad – que supuestamente se pondrían en funcionamiento para el diseño; ellas tienen que ver con la biología y la experiencia, con el conocimiento pero también con otros cam- 322 pos de la subjetividad del diseñador, así como con estructuras y relaciones. En el caso de trabajo no clásico es difícil pensar en la taylorización de la asimilación de códigos y la creación de significados estrictamente a voluntad, así como el establecimiento de interacciones proactivas siempre, erradicando el conflicto y la competencia entre los propios trabajadores o con los mandos. No es posible separar tajantemente concepción y ejecución en el trabajo simbólico pues todo trabajo simbólico implica concepción y mucho menos reducirlo a microoperaciones simbólicas de transformación claramente identificable, todo lo cual dificulta la aplicación de estandarización, rutinización, simplificación de las tareas de simbolización y también la constitución de cadenas de montaje de símbolos, estrictamente sincronizadas. En estas actividades de creación de símbolos puede ser importante el trabajo en equipo, pero cada uno de sus miembros tendrá funciones menos claras que en la producción material; en estas relaciones juegan más las interacciones simbólicas para lograr la cooperación, de tal forma que el control total de la calidad, muchas veces no puede funcionar para operaciones parciales sino para resultados y el justo a tiempo puede ser un concepto exótico por lo que mencionamos. Es decir, en este tipo de producción no basta, aunque importa, el Toyotismo, para lograr productividad y calidad, y la tecnología es un instrumento que no resuelve los problemas principales. En cambio, la dependencia del producto y del proceso respecto al trabajador y sus cualidades, potencia sus capacidades de resistencia. En el diseño de software los programadores pueden ocultar códigos, es decir no explicar con detalle cómo llegaron a la solución, lo que les da el monopolio sobre ese conocimiento y los hace menos sustituibles. De la misma manera, la formación de redes virtuales de solidaridad posee componentes personales que no son estrictamente transferibles a otros. Cuando en la generación de software interviene el cliente, como en el llamado software a la medida, la situación se complica. El cliente se encuentra en interacción en varios momentos con el programador durante el diseño del software. En este caso, se amplían las interacciones, cooperaciones o conflictos con un tercero en discordia que no es empleado ni directivo. Estas relaciones influyen en las soluciones, en los tiempos y calidades, así como en el control del proceso de trabajo, complicando la relación social de trabajo a tres partes. Otra situación de trabajo no clásico es el restaurante de hamburguesas (McDonald’s). Este es un caso que combina un trabajo interactivo y significativo con otra parte de producción físico material. La segunda es propiamente la preparación de la hamburguesa que sigue un proceso taylorizado y maquinizado, con participación lateral del sistema informático para transmitir las órdenes. El trabajo de los empleados es poco calificado, rutinario (se producen pocos productos estandarizados, sencillos, en masa, para su venta al menudeo, se trabaja en condiciones precarias). Esta parte no se diferencia de la producción de ropa en maquiladoras. Sin embargo, la parte manufacturera está íntimamente imbricada con la del servicio de venta en el propio restaurante y el consumo en el mismo, puesto que el producto se genera por pedido del cliente y no se almacena. Para ser atendido el cliente tiene no solo que pagar, sino escoger, formarse, ordenar con precisión (siguiendo ciertas frases ya hechas por la empresa), esperar a que se surta su orden, tomar el producto, sentarse, consumir y depositar los desperdicios en recipientes para tal efecto. Es decir, aunque el cliente no es un empleado, ni tampoco un directivo tiene que “trabajar” para lograr la compra y el consumo. De tal forma que la empresa hace diseños organizacionales que incluyen al cliente que no es su empleado: mostrador y caja registradora especialmente diseñada para que el cliente haga una fila, pizarrones con la lista limitada de productos para que no se pierda el tiempo usando otro lenguaje que confunda al empleado o evitar las preguntas ambiguas como “¿Qué hay de comer?”. Los asientos donde se consume están diseñados para no hacer agradable permanecer mucho tiempo y los contenedores de desperdicios 323 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 Enrique de la Garza Toledo CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD se diseñan para que se depositen estos con facilidad e inmediatamente las charolas. Es decir, se hace un diseño del espacio, de los instrumentos de acarreo de las hamburguesas y para el depósito de desperdicios que ahorran tiempo de trabajo del cliente. Esto es porque si el cliente no trabaja no se realiza el servicio o si lo hace en forma torpe o perezosa ocupa espacio y tiempo que afecten la eficiencia del restaurante. En otras palabras, el trabajo en este tipo de negocios no puede desentenderse del cliente. Este trabaja en los pedidos, circulación y consumo que normalmente se realizan en el mismo espacio que se da la producción de la hamburguesa. En este proceso importan las interacciones entre el cliente y algunos de los empleados, al momento de ordenar y pagar; interacciones superficiales y estereotipadas que, sin embargo, pueden sufrir de muchas disrupciones imprevisibles y afectar con esto al proceso global de producción-circulación y consumo de la hamburguesa. Es decir, el empleado puede ser controlado en forma más o menos estricta por la gerencia en cuanto a la fase de producción físico material, a través de gerentes de restaurante, supervisores o el cliente misterioso, pero no puede controlar estrictamente la interacción del empleado con el cliente, porque no depende solo del primero, que puede estar muy bien capacitado para estandarizar dicha interacción, porque el cliente puede salirse del guión y en el peor de los casos la consecuencia puede ser que no sea atendido. Lo mismo sucede con cada operación que el cliente tendría que realizar con su trabajo para que el servicio se realice con eficiencia (el cliente puede no depositar los desperdicios en el recipiente adecuado). El empleado sufre la presión de la empresa a través de gerentes y supervisores, pero también del cliente que puede protestar si considera deficiente el servicio. Es decir, el cliente en parte controla al empleado y en parte es controlado por la empresa en el intento de taylorizar su trabajo. En este caso, como en el del diseño del software, la relación de trabajo se complica con respecto del trabajo clásico, en esta relación interviene el cliente en varios momentos y se convierte en una tríadica entre asalariado, directivo y cliente. Otro tanto pasa, como decíamos con el control y quien controla al trabajador. El taylorismo es una realidad en la fabricación de la hamburguesa, se puede combinar con principios de toyotismo, pero la relación del cliente es de una persona con un trabajador, comúnmente el que recibe los pedidos y cobra. Aunque se presiona al cliente para que emplee poco tiempo en el consumo esto no puede garantizarse y no hay circulación y consumo justo a tiempo, ni tampoco se puede garantizar con el establecimiento de palabras y frases estándar la compresión mutua entre cliente y empleado. El empleado es en buena medida, en cuanto a la transformación físico material de la carne en hamburguesa un obrero masa poco calificado, pero el trabajo del cliente se parece más al artesanal que incluso trabaja con sus manos, lo que dificulta la estandarización del tiempo global de prestación del servicio (producción-circulación-consumo). Así mismo, el concepto de resistencia del trabajador debería ampliarse y no referirse solo a la gerencia sino al mismo cliente. Esta última forma de resistencia toma una forma eminentemente simbólica (Hall, 1997). En cuanto a la flexibilidad: en el diseño de software, a causa de la dependencia del diseño de las habilidades del trabajador, se dificulta la flexibilidad numérica; en cambio en el McDonald’s, el trabajo taylorizado en la parte propiamente de fabricación de la hamburguesa la facilita, no así en la venta. Por lo que respecta de la flexibilidad funcional, está se presenta como flexibilidad cognitiva en el software porque el diseñador puede participar simultáneamente en varios proyectos sin cambiar de puesto o departamento; en los McDonald’s se facilita por la simplificación de las tareas y porque los empleados son capacitados para desarrollar cualquiera de estas; la presencia de bonos puede estar presente en ambos. En síntesis la producción capitalista que implica trabajo no clásico históricamente ha encontrado obstáculos para su estandarización, por las dificultades de estandarizar la producción de símbolos, la propia interacción del empleado con 324 el cliente y el trabajo del cliente. De tal forma que, paradójicamente, en el momento actual habría dos estrategias del capital en este tipo de trabajador, una la de estandarizar aquello que no había sido posible y otra arriesgarse a dar más poder de decisión al empleado que a su contrapartes en el trabajo físico material de la industria y agricultura. TRABAJO NO CLÁSICO Y SUBCONTRATACIÓN Cuando se inició en la década del ochenta la discusión actual sobre la flexibilización del trabajo, la subcontratación aparecía como un anexo de la misma; el acento se ponía al interior del proceso de trabajo. Para los noventa la subcontratación pasó al primer plano de la flexibilidad, relacionada con el concepto de empresa red y también con el de cadena de valor, clúster y distrito industrial. La subcontratación se ha facilitado desde los noventa por la informatización (Taylor, 2005). En la actualidad se debate si la subcontratación es el paradigma productivo que nacerá de la crisis actual. Por supuesto que hay varias circunstancias de subcontratación: la de tareas complementarias a la principal actividad de transformación de la empresa, tanto en bienes como en servicios – la contabilidad, el diseño, la comercialización, el cosido de pantalones, etc. – o bien si se subcontratan tareas del core de las actividades que definen a una industria. Hay quienes plantean que solo conviene a la empresa lo primero y debería de dirigir directamente a los trabajadores en el segundo caso para garantizar calidad, productividad, lealtad, identidad con la empresa. Un problema complementario es el uso de agencias de contratación de personal, que no dirigen a los trabajadores productivamente sino que los seleccionan, los contratan como si fueran de la propia agencia y los destinan a trabajar en la compañía que subcontrata con esta. Las consecuencias generales de la subcontratación serían la precarización de los empleos y la pérdida de fuerza de los sindicatos. Los trabajadores subcontratados en general tendrían jornadas laborales y riesgos en el trabajo mayores y una pérdida de derechos e identidad con la empresa (García, Mertens y Wilde, 1998). Por supuesto que el trabajo no clásico se puede subcontratar, sin embargo, como es menos controlable, al depender la forma de la interacción y la creación de símbolos compartidos en buena medida del trabajador en su relación con el cliente, la subcontratación podría implicar una menor satisfacción del cliente (menor calidad del servicio) lo que marcaría limites a esta forma de flexibilización o bien la necesidad de que la empresa que subcontrata destine personal de supervisión directamente en las instalaciones de la subcontratada. Es el caso de call centers subcontratados por grandes corporaciones en donde estas llegan a establecer oficinas cerca de las mesas de trabajo combinando su supervisión con las de la empresa de call centers, lo que puede originar conflictos y órdenes que se contraponen. Cuando sea posible estandarizar las interacciones o la comunicación con clientes resultará más factible la subcontratación que en trabajos más sofisticados de creación de confianza con el cliente o de códigos o configuraciones simbólicas más profundas. Es decir, la “fábrica de sonrisas” tiene también su límite en la percepción de la sinceridad que puede no lograr la confianza del consumidor en la oferta del producto. SUJETOS NO CLÁSICOS, IDENTIDAD Y FRAGMENTACIÓN ¿SERVIDUMBRE VOLUNTARIA? A mediados de los noventa surgió una teoría que, derivada de la del fin del trabajo de la década anterior y de la postmodernidad, planteó en términos sociológicos – supuestamente demostrable empíricamente – que la inestabilidad de las ocupaciones en la Nueva Economía se traducía en trayectorias laborales fragmentarias – ocupaciones desvinculadas y fugaces –, como nueva caracterís- 325 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 Enrique de la Garza Toledo CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD tica del mercado laboral y que la decadencia del Estado benefactor junto con sus sistemas de relaciones industriales, implicaría una pérdida de identidad con el Trabajo (Dubar, 2001; Dubar 2002). En esta medida ya no serían concebible la conformación de sujetos laborales amplios, ni organizaciones ni proyectos de transformación de la sociedad (Geiser, 1997; Kirk y Wall, 2011). Un problema de esta tesis es que en lo fundamental hace derivar la identidad colectiva y personal de la posición en la ocupación (Parsons, 1968), es decir, ante la heterogeneidad de las ocupaciones resulta una no identidad, y ante trayectorias ocupacionales zigzagueantes, no coherentes, tampoco habría identidad a nivel individual con algún tipo de trabajo en particular (Dreher et al., 2007; Dubar, 1991). Sin embargo, hacer depender la identidad de la ocupación remite a un pasado artesanal ya muy lejano. En las grandes empresas, desde la revolución industrial, la identidad no tenía que ver con cada ocupación en particular, mucho menos con la extensión del taylorismofordismo (Bizberg, 1989; Burke et al. 2009; Cerullo, 1997). Cuando llega el toyotismo y la automatización, por el contrario, la propia empresa busca inducir identidad colectiva con ella y el trabajador automatizado, computarizado e informatizado es posible que haya reeditado en términos modernos un orgullo de trabajar con tecnologías de punta (De la Garza, 2007; Dubet, 1989). Es decir, la identidad colectiva de los trabajadores no terminó con el obrero de oficio, se siguió en casi todo el siglo XX con identificaciones no siempre con el producto o la actividad realizada sino con sus compañeros, sus organizaciones o sus partidos. Además, es probable que sobre la identidad de los trabajadores no solo influya la actividad laboral desarrollada, sino otros espacios de la vida no laboral como la familia, el ocio, la religión, el espacio urbano o rural (Beriani y Pataxi, 1996; Eagleton, 2006; Giddens, 1991). Por otro lado, la identidad debería de considerarse como una forma de la subjetividad (Gimenez, 2008, 1992, 1996; Hogg, Terry y White, 1995; Howard, 2000), en tanto proceso de crear el sentido de identificación, pero situado en ciertas estructuras y en determinadas interacciones con otros actores (Linhart, 2008; Melucci, 2001). Vista como subjetividad podría ser pensada como una configuración de códigos cognitivos, morales, emotivos, estéticos y formas de razonamiento cotidiano que permiten dar identidad por y para (Schutz, 1996, 2003, 2003a). Entre el puesto de trabajo y la identidad se encuentran otras estructuras (al interior de la empresa, organizacionales, tecnológicas, de relaciones laborales, de ocupaciones, de calificaciones, culturales; al exterior de cadenas entre clientes y proveedores, del mercado de trabajo, del mercado del producto, cadenas productivas). El trabajador en un puesto se encuentra en interacción con sus compañeros, supervisores y jefes. Finalmente, el proceso de creación de identidad pone en juego códigos como los mencionados provenientes de la cultura (Taylor, 1989; Portal, 1991), pero los sujetos obreros construyen las configuraciones específicas de sentido para situaciones concretas (Sainssaulieu, 1977). Estas pueden cambiar en función de estructuras como las mencionadas pero también de experiencias (Sewell, 1992). En otras palabras, sobre la formación de identidad influyen procesos más complejos que las simples características del puesto de trabajo (Taylor, 1992; De Gaulejac, 1993). Por otro lado, los procesos colectivos de identificación no conducen a formas que deban permanecer; ya quela identidad puede crearse, ser contradictoria y parcial (Recour, 1992; Pizzorno, 1983; Mead, 1972) y a la vez desestructurarse; cuando esto sucede no significa que esta situación llegó para quedarse, como plantea Sennet. En el caso de los trabajadores asalariados del capital, además de las estructuras, subjetividades, interacciones en el trabajo y la influencia de otros espacios de la vida (Gayosso, 2011), no hay que olvidar que el eje es la acumulación del capital y, en esta medida, pueden entrar en contradicción dicha acumulación con las aspiraciones, con lo que consideran un trabajo legítimo los propios trabajadores y desencadenar un proceso que afiance la identidad e incluso la constituya desde 326 Enrique de la Garza Toledo de símbolos (por ejemplo los artistas exclusivos que muchas veces se adhieren a causas que consideran justas), aunque la alta especialidad si mueve hacia el individualismo en las soluciones laborales y de la vida, aunque tampoco hay determinismo en este sentido: en determinadas coyunturas el individualismo puede sumergirse frente a eventos impactantes socialmente como ha sucedido durante las revoluciones. En síntesis, la importancia actual de los trabajos no clásicos tendría que llevarnos a revisar el concepto de clase social, de conflicto de clases, de sujetos trabajadores, de organizaciones y de proyectos (Dubet, 1999), en lugar de suponer en forma superficial que entre estos ya no son posibles las solidaridades, acciones y organizaciones colectivas (De Jours, 1998; Linhart, 2009) y que el futuro queda determinado por la sumisión voluntaria (aceptación del control empresarial del trabajo por voluntad del proprio trabajador, sin coersión). Recebido para publicação em 18 de janeiro de 2013 Aceito para publicação em 27 de maio de 2013 REFERENCIAS BERIANI, Josetxto; A. Patxi. Identidades culturales. Bilbao: Universidad de Deusto. 1996. 220p. BIZBERG, Ilán. Individuo, identidad y sujeto. Estudios Sociológicos. México, v. 7, n. 21, sept./dic., p. 485-518 1989. BURKE, Peter, et al. (Ed.). Advances in identity theory and research. N.Y.: Klewer Academic 2009. BURAWOY, Michael. 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El trabajo en los servicios puede implicar relaciones individualizadas con el cliente, la generación de interacciones y de símbolos compartidos, depender en buena medida del trabajador y en este sentido dificultar la construcción de identidad colectiva. Esta sería otra forma de la conocida tesis de Bauman de fragmentación de identidades, que en última instancia dependería de las características del puesto de trabajo. Sin embargo, la “fábrica de sonrisas” iría desde la alta especialización en interacción con clientes y creación de símbolos cognitivos, morales, emotivos o estéticos compartidos, hasta el acercamiento a la estandarización de dichas interacciones y símbolos sin mayor profundidad en las relaciones (por ejemplo la oferta de un producto por teléfono puede hacerlo una grabación o cuando lo hace un trabajador usar frases ya hechas y tener respuestas estandarizadas, aunque, como mencionamos al entablarse la interacción, el cliente puede fácilmente salirse del guión que ante un trabajador poco hábil la interacción puede salirse de control). Entre los trabajadores no clásicos de alta calificación, esta puede significar capacidades técnicas para resolver un problema, pero también calificación en cómo lograr una interacción y simbolización que lleven al cliente a aceptar el producto o la explicación que se le ofrece. Entre los de baja calificación – cajeros y acomodadores de Wal Mart, empleados de restaurante de McDonald’s, trabajadores de call centers, cajeros de bancos), aunque de ellos depende finalmente la venta o generación del servicio , este puede estar de tal forma estandarizado que la actividad se vuelva rutinaria, estándar, simple y de baja remuneración ,y la construcción social de la identidad, puede basarse en el reconocimiento compartido de su situación de precariedad (Lomnitz, 1998; Ramírez, 2005); es decir, no resultar solo del puesto de trabajo sino de una en compleja configuración como ya hemos explicado. Tampoco resulta imposible la identificación de los expertos y técnicos en interacciones y creación TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD ________. ¿Hacia dónde va la Teoría Social? In: Tratado Latinoamericano de Sociología Latinoamericana. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Autónoma Metropolitana. 2006. 318p. ________. Hacia un concepto ampliado de trabajo. 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N.Y.: Knopt, 1972. 329 TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD NON-CLASSICAL LABOR AND FLEXIBILITY TRAVAIL NON CLASSIQUE ET FLEXIBILITÉ Enrique de la Garza Toledo Enrique de la Garza Toledo In this article we will present the concept of non-classical labor (De la Garza, 2010) in an attempt to explain not only the differences among types of work, but also to address broader dimensions, which are partially included in other theories (Thompson, 1983). We will attempt to clarify the concept and its scope, as well as the relations with the services activities, which have gained constantly increasing importance in modern economies, even in less developed ones. We will recall the classical concept of flexibility (Durand, 2004) and the extent to which it would be pertinent to include non-classical labor. More specifically, we will include a form of flexibilization which has probably become dominant in capitalism since the most recent great economic crisis, outsourcing (Moncada e Monsalvo, 2000) and its connections with non-classical labor. Lastly, we will discuss the thesis of fragmented identities (Sennett e Cobb, 1972) and voluntary servitude (Durand, 2006) in the vein of the approach mentioned in the nonclassical article, culminating in considerations on the possibility of training subjects who work under these conditions. Nous présentons dans cet article le concept de travail non-classique (De la Garza, 2010), pour essayer d’expliquer non seulement les différences entre les types de travail mais aussi d’étudier les larges dimensions inclues, en partie, dans d’autres théories (Thompson, 1983). Nous essayons d’expliquer le concept et ses portées ainsi que les relations avec les activités de service, qui sont devenues de plus en plus importantes dans les économies modernes, sans oublier son poids dans celles moins développées. Nous rappelons le concept classique de flexibilité (Durand, 2004) et l’extension qu’il serait bon d’inclure dans le travail non-classique. Nous introduirons tout particulièrement une forme de flexibilité qui va probablement devenir dominante dans le capitalisme, suite à la dernière grande crise économique, les prestations de services (Moncada et Monsalvo, 2000) et leurs liens avec le travail non-classique. Au final, nous discuterons de la thèse des identités fragmentées (Sennett et Cobb, 1972) et de la servitude volontaire (Durand, 2006) en fonction de l’approche mentionnée du travail non-classique pour en arriver à des considérations sur la possibilité de formation des personnes qui travaillent dans ces conditions. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Work. Classical labor. Non-classical MOTS-CLÉS: Travail. Travail classique. Travail non classique. labor. Enrique de la Garza Toledo – Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Autônoma Metropolitana do México, Departamento de Sociologia. Professor visitante da Universidade Autônoma de Barcelona, Universidade de Cornell e de Evry (França). Pesquisador da Posgraduação em Estudios Laborales de la Universidad Autónoma Metropolitana en México. Publicações recentes: La revitalización del debate del proceso de trabajo. Revista Latinoamericana de estudios del trabajo. v. 16, n. 26, 2012; El trabajo no clásico y la ampliación de los conceptos de la Sociología del Trabajo. Revista de Trabajo. Dinámica del trabajo en el marco de la incertidumbre global, v 8, n. 10, Nueva Época, Buenos Aires, Argentina.2012 330 Paulo Henrique Martins AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL SISTEMA-MUNDO EN LA ORGANIZACIÓN DE LOS MODELOS DE DESARROLLO Paulo Henrique Martins* INTRODUCCIÓN Desde que logramos incorporar la idea de América Latina como manifestación particular del sistema mundo, podemos proponer un segundo elemento, a saber, que los cambios históricos, sociales, políticos, culturales, tecnológicos, estéticos e institucionales verificados aquí siguen una lógica de tiempo lineal producida por configuraciones o patrones de desarrollo propios.1 Estos procesos también no son homogéneos y revelan diferentes movimientos sistémicos y alter-sistémicos que expresan las transformaciones de los patrones de poder sobre los territorios nacionales y entre los espacios transnacionales.2 Por consiguiente, la * Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociología da Universidade Federal de Pernambuco (Brasil). Rua Acadêmico Hélio Ramos s/n. Cidade Universitária. Cep: 50679-900 - Recife, PE - Brasil. [email protected] 1 Se trata de entender el desarrollo como fenómeno temporal dinámico del sistema mundo que articula sus diversas manifestaciones capitalistas y anticapitalistas. Los procesos de desarrollo son dominados por una lógica de temporalidad histórica lineal que L. Tapia llama de una flecha del tiempo lanzada hacia adelante y sustituyendo concepciones cíclicas o circulares del tiempo (Tapia, 2011, p. 20-21). 2 Recordando la afirmación de I. Wallerstein que “lo que se desarrolla no es un país sino un patrón de poder” (Wallerstein, 1996, p. 195-207), Quijano aclara este relación entre sistema mundo y desarrollo, de modo general, o de sistema mundo latino-americano y patrones de desarrollo de modo particular, no puede ser conjugada en lo singular sino en lo plural. En esta dirección es más correcto proponer la existencia de diversos sistemas mundos y procesos de desarrollos que manifiestan diferentes configuraciones de poder y de modalidades de transformación de las estructuras sociales. entendimiento afirmando que el patrón de poder capitalista no existe de modo homogéneo en el espacio mundial: […] este patrón de poder es mundial, no puede existir de otro modo, pero se desarrolla de modos diferentes y en niveles distintos en diferentes espaciostiempos o contextos históricos” (Quijano, 2000, p. 75). Sin embargo, para profundizar el desarrollo desde la perspectiva de los patrones de poder nos parece importante señalar que el poder económico capitalista es solo parte de configuraciones de poder más amplias que revelan cuestiones filosóficas complejas respecto el trabajo creativo del ser humano en la organización de su mundo. El poder capitalista no es auto-evidente y no funciona solo. Como lo nos explica M. Weber no hay “leyes económicas” en el sentido de conexiones “regulares” de fenómenos en el sentido estricto de las ciencias de la naturaleza pero “conexiones causales adecuadas” expresas en reglas y, luego, que pueden aparecer como “posibilidad objetiva” (pero no como imposición necesaria de la realidad). Pues, aclara él, el número y la naturaleza de las causas que determinan cualquier acontecimiento individual son siempre infinitos y este caos solo puede ser ordenado cuando un hecho específico tiene interés y significado para nosotros y se encuentra en relación con las ideas de valores culturales como abordamos la realidad (Weber, 1979, p. 94-95) 331 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 Nuestra idea es que la definición de América Latina como manifestación particular del sistema mundo es importante para aclarar el entendimiento de las innovaciones teóricas, sociales, culturales, tecnológicas, estéticas e institucionales verificadas en la región desde el final de la segunda guerra mundial. Sin embargo, el carácter de esta definición depende directamente de un entendimiento anterior respecto a lo que significa el sistema mundo y el desarrollo. Porque si definimos el sistema mundo como una unidad homogénea no tiene sentido hablar de manifestaciones particulares de este sistema; por otro lado, si limitamos el sistema mundo al sistema capitalista, la idea de particularidad de América Latina también queda complicada cuando pensamos la región como base de procesos políticos y culturales liberatorios y propios. En fin, recordamos que este análisis se inspira en contribuciones inestimables de la Comisión Económica para América Latina y Caribe – CEPAL – que ha planteado de modo pionero innovaciones importantes sobre el tema del desarrollo, contribuyendo con la ruptura del ideario colonial. PALABRAS-CLAVES: América Latina. Sistema-Mundo. Desarrollo. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ... Sin embargo, tales diferencias de patrones solo pueden ser percibidas desde que reflexionamos sobre el entendimiento del sistema mundo (y de los patrones de desarrollo) como movimientos sistémicos abiertos a expresiones y significaciones variadas desde las luchas involucrando intereses mercantilistas y anti-mercantilistas. Para el avance de nuestra reflexión necesitamos diferenciar tres nociones de sistema mundo que de modo amplio dominan los imaginarios de las ciencias sociales y que influyen sobre la discusión sobre desarrollo, tipos de desarrollo y superación del desarrollo. La primera noción busca reducir el sistema mundo al sistema capitalista; aquí los términos se anulan: globalización significa capitalismo y vice-versa. La segunda, diferencia sistema mundo y capitalismo y propone que el primer término es más amplio que el segundo. Sugiere que al ampliarse la noción de sistema mundo más allá del sistema capitalista tenemos que incorporar elementos no económicos de los cambios institucionales, tenemos que reconocer que existen varios sistemas mundos o movimientos sistémicos dentro del sistema mundo. Sin embargo, esta tesis continúa proponiendo que el eurocentrismo es el centro de las diversas formas de organización de movimientos a favor y contra el capitalismo. La tercera noción, partiendo del supuesto de la amplitud histórica del sistema mundo y de su existencia más allá del sistema capitalista, cuestiona radicalmente el eurocentrismo – la idea de Europa y su extensión, los EUA, como centro del sistema mundial. Esto tiene como implicación directa el reconocimiento que hay varios centros y/o centros potenciales de impulso del mundo que conocemos (los márgenes como centros) y que también hay varios movimientos sistémicos y altersistémicos que mueven los impulsos para adelante. Esta tercera noción es fundamental para elaborar la tesis de la América Latina como una expresión particular del sistema mundo donde se manifiestan diversos tipos de patrones de poder. A partir del entendimiento de esta pluralidad de concepciones sobre el sistema mundo, pode- mos avanzar con la idea de América Latina como manifestación particular del sistema mundo y como espacio de luchas entre fuerzas capitalistas y neocoloniales, por un lado, y fuerzas anti-capitalistas y decoloniales, por otro. Para este avance, es fundamental incluir la idea de desarrollo como patrón de poder, en primer lugar, y la idea de desarrollo como pluralidad de posibilidades de cambios sociales e históricos, lo que depende de los acuerdos y luchas políticas. LAS TRES INTERPRETACIONES DEL SISTEMA MUNDO PRIMERA INTERPRETACIÓN: el sistema mundo es igual al sistema capitalista En esta interpretación, que es la base de la doctrina neoliberal y también del marxismo más ortodoxo, sistema mundo y sistema capitalista se identifican. El liberalismo y el marxismo en esta interpretación aparentan ser opuestos en la medida que proponen lecturas distintas de las bases causales de la solidaridad social. Pero, ellas confluyen en el campo epistemológico cuando valoran la anterioridad fenoménica del interés económico. El fundamentalismo económico define la marcha del progreso de todos los países y las alternativas se limitan a dos opciones: desarrollo con crecimiento económico o desarrollo con recesión económica y crisis. Aquí las transformaciones del capitalismo definen las del sistema mundo tanto en las etapas de crisis como las de prosperidad y las soluciones son las de reforma – para los sistemas políticos liberales – o de revolución – para los sistemas políticos marxistas, que se proponen “antisistémicos”. Para el liberalismo la sociedad es fruto de un contrato interesado entre individuos libres cada uno buscando maximizar su posibilidades de placer y de minimizar las perdidas como fue difundido por la filosofía utilitarista inglesa (Caillé, 1989) y que funda el mercantilismo colonial como valor natural. En esta primera interpretación restrictiva el entendimiento de sistema-mundo es limitado por la presencia de un patrón de dominación económica capitalista determinado por 332 la economía de mercado, como vemos entre los liberales, y en particular por la preocupación con el consumo, como con los marginalitas. Por su lado, para los marxistas, la sociedad es fruto de las luchas entre clases sociales por el control de los medios de producción colectivos económicos. Desde la perspectiva marxista, como vemos en Wallerstein (2003), el sistema capitalista se confunde con el sistema mundo; por consecuencia, la alternativa al capitalismo es la expectativa que sus contradicciones generen su crisis y reacciones organizadas a tal crisis, lo que es muy problemático cuando hacemos la retrospectiva de la historia reciente del capitalismo. Pues cuando hacemos este balance verificamos que los momentos dramáticos del imperialismo eurocéntrico ocurrieron cuando él tuvo que confrontarse con resistencias políticas y culturales apuntando para otras modalidades sistémicas y no por causa de crisis mecánica de regulación en el proceso de mercantilización. Sin embargo, ambas corrientes, liberal y marxista, están del mismo lado al considerar que el motivo central – de los acuerdos espontáneos o de las luchas sociales – son de naturaleza económica, como si el elemento económico pueda aparecer como una referencia meta-histórica con existencia propia e independientemente de las significaciones culturales que imprimimos a la realidad. En esta dirección, muchos actores indican que las dos tesis no rompen con el paradigma utilitarista moderno (Caillé, 1989) en la medida en que el análisis de las sociedades contemporáneas se limita al análisis de clases sociales definidas por los conflictos económicos (los marxistas), o por motivaciones económicas utilitaristas e individuales (los liberales), sin considerar las significaciones morales, políticas y culturales que también contribuyen por la objetivación de la realidad. En esta lectura la discusión sobre política y cultura queda subordinada a la determinación económica principal y los análisis de la crisis actual no logran comprender la complejidad de cambio del sistema mundo, pues quedan prisioneros de previsiones sobre la crisis inminente del capitalismo. Los análisis devalúan las perspectivas de los contextos históricos y culturales particulares dentro del sistema mundo o entienden que la crisis es solo una desregulación provisoria del sistema capitalista a ser corregido mecánicamente por el progreso económico y financiero. Si aceptamos que la globalización capitalista involucra el sistemamundo como sugieren los neoliberales y los marxistas más ortodoxos, entonces somos obligados a aceptar una jerarquía cognitiva en que las determinaciones económicas subordinan las luchas por otros modelos sociales y económicos y por justicia social. A nosotros, sin embargo, esta jerarquía nos parece ilusoria pues esconde el hecho de que hay varios dispositivos políticos, culturales, morales y estéticos que influyen sobre la reproducción del sistema mundo y del sistema capitalista en su interior. En esta dirección, si ampliamos el abordaje economicista para incluir a elementos políticos, culturales y simbólicos ampliando la teoría de las clases y de la dominación con la inclusión de teorías del reconocimiento y teorías implicadas en la desconstrucción del patriarcalismo, entonces podemos organizar un entendimiento más complejo del sistema mundo. Este entendimiento debe considerar que las manifestaciones regionales del sistema mundo operan sobre territorios políticamente movilizados por actores conectados con la esfera económica y mercantil pero igualmente con las esferas raciales, étnicas, identitárias, patrimoniales, estatutarias, eco-sociales entre otras que contribuyen para demostrar la complejidad de las luchas y de las acciones colectivas en los territorios políticamente organizados. Contra esta lectura determinista del sistema capitalista, preferimos considerar que el sistema mundo es más amplio que el capitalista y que las luchas contra él son dirigidas por movimientos “alter-sistémicos” que no quedan sometidos a una jerarquía comandada por las determinaciones económicas. Por eso, tales movimientos apuntan para heterotopías (Foucault, 2010), como las de “alterglobalizacion” o de “alterdesarrollo”, por ejemplo, que objetivan abrir el entendimiento humano para otros imaginarios socio-históricos. Así, 333 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 Paulo Henrique Martins CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ... nos parece importante caminar por nuevos senderos epistemológicos que nos faciliten el rescate de la complejidad histórica, social y cultural del sistema-mundo. Aquí, admitimos que el sistema capitalista tuvo gran importancia para su éxito, pero también aceptamos que este sistemamundo es algo más amplio y complejo que la modernización capitalista y que el desarrollo es un concepto que se desplaza entre diversos pactos de poder posibles. El pensamiento latinoamericano incorporó históricamente las dos corrientes. La visión liberal está en la base de las teorías de la modernización que sugieren etapas de desarrollo en América Latina y que fueron divulgadas por las universidades norteamericanas (Rostow, 1993). La visión marxista, por su lado, ha inspirado grandes intelectuales latinoamericanos como José Carlos Mariátegui y Florestan Fernandes, que buscaron adaptar las tesis eurocéntricas del marxismo a la realidad de América Latina. El esfuerzo de integrar elementos no económicos y contextualizados como el de la racialidad, para explicar la realidad compleja regional es prueba del esfuerzo de estos intelectuales. En esta dirección los marxistas son más profundos que los liberales que quedan prisioneros de una teorización muy abstracta. Así, podemos concluir que unos y otros, al final, reducen el sistema mundo al sistema capitalista. SEGUNDA INTERPRETACIÓN: el sistema mundo es más amplio que el sistema capitalista La segunda noción propone que el sistema mundo es más amplio que el sistema capitalista y que, por consecuencia, las transformaciones del sistema mundo exigen marcos interpretativos más complejos que los ofrecidos por las teorías económicas. Este entendimiento más amplio del sistema mundo se apoya en un conjunto de críticas anti-utilitaristas y anticapitalistas. Al proponerse que el sistema mundo es más amplio que el sistema capitalista, obligatoriamente somos invitados a reflexionar sobre que otros elementos no-capitalistas por naturaleza deben ser apuntados como necesarios para explicar esta amplitud del sistema mundo. De inmediato, nos parece importante subrayar que no siendo el mundo conducido solo por intereses capitalistas y utilitaristas entonces se explica la variedad de movimientos sistémicos estimulados por diversos motivos y por otros usos del poder político. Aquí el pensamiento crítico avanza en la discusión moral de la modernidad eurocéntrica con énfasis en la búsqueda de racionalidad comunicativa en la modernidad inacabada (Habermas, 2003), de la exigencia de ética en la civilización tecnológica (Jonas, 1997), de la emancipación de un self moderno expresivo que cuestiona el self instrumental (Taylor, 1997), del reconocimiento moral y afectivo de los sujetos del cotidiano, de la crítica al fatalismo económico (Caillé, 2005) y de la revisión de la idea de desarrollo como un proceso técnico (Latouche, 1986). Aquí, el sistema mundo aparece como una estructura cultural y humana compleja más amplia que el capitalismo que todavía continua a ser impulsado – en el buen y en el mal sentido – por el eurocentrismo. Así, el sistema mundo y el desarrollo como expresión concreta del cambio histórico del sistema en la orientación del tiempo lineal, siempre pueden ser vistos desde dos lados: de la dominación de los intereses económicos sobre el conjunto de motivaciones humanas y las reacciones más diversas contra este reduccionismo. Pues lo que caracteriza, de hecho, la complejidad del sistema-mundo, hoy, es la imposibilidad de reducirlo a una única cosa: a una empresa económicofinanciera, al único patrón de poder, a una cultura de consumo uniformizada o a una única lengua. La contribución francesa es evidente y ella se revela en tres dimensiones. La primera y más conocida es la representada por las tesis que acercan las ciencias sociales a las teorías del lenguaje, organizadas por nombres como Foucault (1999) y Derrida (1967). La segunda se revela por las contribuciones de la filosofía política del grupo de la Revista Civilización y Barbarie, dirigida por C. Lefort (1986) y C. Castoriadis (1975) que han 334 Paulo Henrique Martins movimientos sociales, culturales y étnicos, las luchas democráticas y por justicia social, la ciudadanía republicana, la creatividad humana y las experiencias de solidaridad quedan necesariamente dependientes de la idea de una solución económica en primer lugar aunque articulada con otros elementos no económicos. Sin embargo, si la crítica teórica en el Norte fue importante para ampliar el entendimiento del sistema mundo para allá del sistema capitalista, tal crítica no es aún bastante para explicar que la relación centro versus periferia no se limita a determinaciones geográficas o históricas que ubican a Europa como centro y a la no-Europa como periferia. La crítica radical a esta ecuación jerárquica es, todavía, promovida por la crítica descolonial como vamos ver a seguir. TERCERA INTERPRETACIÓN: el sistema mundo es más amplio que el sistema capitalista y se mueve desde varios centros de poder que cuestionan el eurocentrismo La difusión de interpretaciones que cuestionan con radicalidad las ideas de sistema mundo y de desarrollo están relacionadas con el avance del pensamiento postcolonial y, en los últimos años, del pensamiento decolonial. La decolonialidad es una variable crítica de las tesis postcoloniales que problematizan la ecuación centro y periferia como una realidad dada históricamente. Si las tesis poscoloniales como las cepalinas problematizan la colonialidad sin romper con el dogma del progreso económico, las descoloniales buscan desconstruir la propia idea de colonialidad y de progreso económico como un reto incuestionable. Las tesis decoloniales de Dussel, 1993; Lander, 2003; Mignolo, 2005; Castro Gomes e Grosfoguel, 2007; Escobar, 2008; Abellán, 2009; Farah y Wanderley, 2011; Quijano, 2012; Martins, 2012 entre otros, avanzan en esta dirección de problematizar el capitalismo desde la crítica de un patrón de poder que se refiere simultáneamente – y sin subordinación jerárquica 335 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 avanzado elementos importantes para el entendimiento de los fundamentos no económicos de las experiencias democráticas. La tercera es representada por los activistas de la Revue du MAUSS (Movimiento AntiUtilitarista en las Ciencias Sociales) (MAUSS, 2010) que exploran la crítica moral del capitalismo desde contribuciones inestimables de autores como M. Mauss y K. Polanyi (Caillé, 1989), para proponer otros modos de pensarse la economía (Revue du MAUSS, 2007). Este movimiento constituye una de las bases centrales de la discusión sobre economía solidaria (França Filho, Laville, Medeiros y Magnen, 2006). La fuerza de la crítica francesa a la globalización económica no es aleatoria pero debe ser entendida como expresión de la tradición republicana e iluminista del campo intelectual en este país que siempre reaccionó contra la propuesta utilitarista anglosajona de mercantilización del mundo, propuesta que a ellos, los franceses, siempre recordó una amenaza directa al republicanismo liberal. Tal vez, aquí, tenemos uno de los puntos de diferencia entre el eurocentrismo de inspiración francesa que articula el universalismo cognitivo y la política, y el de inspiración anglosajona que es más directamente comprometido con la mercantilización del mundo y menos con los modelos de gobernabilidad política que se preocupan de la articulación de Estado y Nación. En América Latina, esta interpretación del sistema mundo es representada sobre todo por los teóricos de la dependencia que entienden que las reacciones políticas posibles al capitalismo se hacen necesariamente desde el reconocimiento del imperialismo como un centro motor incuestionable. A pesar de los cambios históricos esta interpretación dependientista se actualiza como verificamos en los análisis recientes de autores importantes de la teoría de la dependencia como Theotonio dos Santos, cuando explica las perspectivas de los sistemas regionales como América Latina, en el sistema mundo en el contexto contemporáneo (Santos, 2012). De hecho, cuando la internacionalización del capitalismo es priorizada en la jerarquía cognitiva del sistema mundo, entonces los CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ... de los elementos a un factor prioritario – a la economía, a la política, a la cultura, a la historia, finalmente, a la diversidad de narrativas modernas que se combinan desde patrones interpretativos diferenciados. El avance de la crítica deconstruccionista está también contribuyendo para la complejidad de la crítica teórica al subrayar que la colonialidad se refiere simultáneamente al capitalismo y al patriarcalismo. Al capitalismo, la colonialidad se refiere para organizar la dominación por la clasificación por clases sociales; al patriarcalismo, ella se refiere para organizar la dominación por la clasificación por elementos de raza, género, sexo y control de la naturaleza (Lugones, 2010). Así, la dominación colonial se hace por la exploración del trabajo pero igualmente por la exploración del deseo, de los sentimientos, de la reproducción humana, y, sobretodo, de la alienación del ser humano respecto a su complejidad como ser vivo. Por eso, E. Dussel (1993, p. 188) sugiere que la modernidad eurocéntrica se define por su emancipación racional y cognitiva respecto a “nosotros” pero igualmente por su carácter míticosacrificial de los “otros”. Este raciocinio nos parece adecuado para plantear con más detalles tanto el entendimiento teórico de la diferencia entre sistema mundo y sistema capitalista como de la profundización teórica de los patrones de dominación actuales, subrayando los aspectos epistemológicos y las condiciones culturales particulares de las realidades locales, nacionales, continentales y globales. Aquí, las críticas proponen que el sistema mundo se mueve bajo varios movimientos sistémicos destacándose el movimiento capitalista – que nos habla de la reflexión anti-sistémica del marxismo –, el movimiento del patriarcado – a que se refiere el movimiento anti-sistémico feminista –, y el movimiento colonial – que nos ha explicado por las movilizaciones anti-sistémicas postcoloniales. Pues se trata de demostrar que el sistema mundo revela la influencia de patrones de poder que existían antes del capitalismo moderno, como el del patriarcalismo o de las culturas no europeas o que fueron producidas en los últimos siglos al lado y contra el capitalismo mercantilista. En esta segunda interpretación el desarrollo no se pronuncia en singular y si en plural y en relación con los patrones de poder establecidos históricamente. Así, nos aclara I. Farah y F. Wanderley que contra una visión restrictiva del desarrollo que valora solo las estrategias de dirección de los procesos económicos hay que incluir las perspectivas de género, generación, ambientales, entre otras, así como temáticas como justicia, derechos humanos, participación y deliberación, ciudadanía y control social (Farah y Wanderley, 2011, p. 11). Esta no es solo una sugerencia metodológica. Es sobre todo una ruptura metodológica con impactos en la política. Se trata de entender por las variadas y complicadas actividades del modo de producción, reproducción y consumerismo “glocales” lo que está directamente conectado a las estrategias de sobrevivencia de las élites económicofinancieras centrales y coloniales, por un lado, y a las reacciones sistémicas, sociales, culturales e históricas de las más variadas que revelan que la característica central del sistema-mundo nos es su tendencia para la uniformización planetaria pero su ambivalencia constitutiva (Martins, 1999) entre unicidad y diversidad, por otro. Estos comentarios son importantes para el avance de nuestra tesis en esto texto que, recordamos, se funda sobre dos puntos: primero, el desarrollo es un concepto que se apoya sobre una variedad de motivos, incluso el económico, pero no solo; en esta dirección el desarrollo se apoya sobre la producción y la circulación del capitalismo pero igualmente desde la tradición patriarcalita que es anterior al capitalismo europeo y, en el lado contrario, desde las reacciones anti-sistémicas contra el capitalismo, contra el patriarcalismo y contra la colonialidad, fundadas en las tradiciones históricas no europeas. En segundo lugar, considerando la complejidad del fenómeno, hemos de pensar en la posibilidad de varios tipos de desarrollo que espejan diferentes modalidades de patrones de poder y diversas modalidades de inserción de las sociedades nacionales en el contexto dinámico 336 Paulo Henrique Martins 3 Tuve esta comprensión al observar las diferentes modalidades de hablar inglés cuando sucedió el fórum organizado por la Internacional Sociological Asociation – ISA – en Buenos Aires, en agosto de 2012. Conversando con una colega ilustre de India, la socióloga Sujata Patel, ella reclamaba al no entender casi nada de la traducción del castellano para el inglés que había sido hecha por una traductora argentina. Por otro lado, varios colegas y estudiantes de lengua española y portuguesa reclamaban por las dificultades para entender el inglés de los indianos y de los chinos. Claro, esto es un pequeño ejemplo que necesita ser profundizado pero que sugiere que la lengua inglesa está conociendo mutaciones fonéticas y semánticas importantes al ser apropiada por individuos de otras estructuras lingüísticas. En verdad, lo mismo ya pasó antes con el latín a lo largo del proceso de colonización pues el portugués que se habla hoy en Brasil o Angola no es el mismo portugués originario de Portugal. También podemos recordar, en esta dirección, que, hoy, el inglés que se habla en los Estados Unidos no es el mismo que se habla en Inglaterra. La particularidad ahora del inglés es que él pasa a ser apropiado como dispositivo de traducción simbólica y cultural por individuos que mantienen sus estructuras lingüísticas originales. Este sencillo ejemplo nos revela a complejidad histórico-cultural del sistemamundo en la actualidad. Y podemos tomar muchos otros ejemplos en las danzas, las fiestas, los rituales, las economías entre otros para demonstrar que las mediaciones lingüísticas son extremamente complejas y que la transmodernidad de la que nos habla E. Dussel (2012) es fabricada por experiencias y practicas variadas que se comunican pero no se disuelven en un patrón histórico y cultural uniformizado. estamos presenciando por los conflictos religiosos en la actualidad), y que el desarrollo es un concepto elástico que revela las tensiones constitutivas del sistema mundo en la dinámica del tiempo lineal, que es el del progreso tecnológico, por un lado, y del tiempo circular, que es el de la reproducción de los sistemas vivos, incluso de las culturas y de las familias de los humanos, por otro. Así, podemos avanzar con otra cuestión: entender la diversidad-particularidad de América Latina dentro del sistema-mundo a partir del reconocimiento que la relación centro-periferia no es solo un sistema mecánico producido por el flujo económico internacional sino un proceso político de dominación colonial que revela las tensiones sistémicas más amplias y que solo pueden ser enfrentadas políticamente. Esto es el aprendizaje que nos legó la Comisión de Estudios de América Latina y Caribe – CEPAL – y que marca el desarrollo particular del pensamiento crítico postcolonial y decolonial después de la segunda gran guerra mundial. Es lo que vamos a discutir a seguir. La liberación de América Latina como sistema-mundo particular Al analizar el rol de la CEPAL en la formación del pensamiento latinoamericano, constatamos que R. Prebisch (1949) planteó una reflexión sobre el sistema-mundo que tiene mucho más valor sociológico que la mirada de los economistas en su época. Queremos decir que el momento en que Prebisch y colegas como C. Furtado (1961, 1964) entienden que el deterioro del intercambio económico internacional entre países productores de manufacturas y países proveedores de materias primas agrícolas y minerales estaba profundizándose y que no había solución para los países “subdesarrollados” dentro de la lógica económica de las “ventajas comparativas”, ellos logran producir desde América Latina, un entendimiento económico político más amplio del sistema mundo que tuvo importantes impactos prácticos. En el campo del pensamiento podemos decir que la CEPAL introduce un hecho nuevo 337 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 de la matriz centro-periferia mundial. La presencia del inglés en el sistema-mundo es curiosa. Aparentemente, esta presencia contradice lo que decimos aquí en la medida en que esta lengua es hoy un sistema universal de organización del diálogo cultural mundial y el eje lingüístico de la dominación capitalista. Pero en la práctica lo que observamos es que el inglés tradicional, que tiene sus orígenes en el mundo anglosajón, está conociendo mutaciones muy importantes en su estructura en la medida en que está siendo apropiado y adaptado por diversas culturas. Esto nos hace recordar la historia del latín en los siglos pasados que se desplegó en variadas lenguas como el portugués, el español, el francés, el italiano entre otros. Cuando analizamos la adaptación del inglés en otras culturas como la ibérica, la indiana o la china en esto momento entendemos que el avance del inglés se hace simultáneamente a las mutaciones que sufre su estructura fonética abriéndose a varios dialectos.3 Para sintetizar la discusión de esta sección podemos decir que el sistema-mundo es una realidad humana variada y constituida por elementos muchas veces irreductibles unos a otros (como CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ... para pensar el sistema mundo por testimoniar claramente los desplazamientos de centros de producciones de ideas sobre el desarrollo de centro para centro – desplazamiento del imperialismo de Europa para Estados Unidos – y de centro para periferia – nacimiento de un pensamiento crítico en los márgenes, que contrariaba las tesis de las teorías de la modernización defendidas por autores como Rostow (1993). Las teorías de la modernización se basaban y en la idea que la posibilidad de éxito para los países “subdesarrollados” dependía de seguir los pasos del crecimiento económico de los países “desarrollados”. Las tesis desarrollista y anticomunista de Rostow (1993) reveladas en su libro Etapas del crecimiento económico son las más conocidas. Proponían que cada país debería pasar por cinco etapas: sociedad tradicional, transición (condiciones previas para el “despegue económico”), el despegue económico, camino de la madurez y consumo a gran escala. En las universidades norte-americanas se discutirán mucho los usos de las teorías de la modernización en América Latina en la post-guerra. Según esta ideología del desarrollo la posibilidad de superación de la condición del “subdesarrollo” dependía de la capacidad de los dirigentes y empresarios de los países subdesarrollados de copiar los modelos exitosos de los países “desarrollados”, apareciendo los Estados Unidos como el modelo ejemplar. En paralelo y contra esta lectura evolucionista de la modernización, la CEPAL estimuló reacciones antiimperialistas y también anticapitalistas que van a manifestarse en las reformas de los estados de la región, en las luchas por nuevas políticas públicas, y en la liberación de las tesis poscoloniales. Tales reacciones están presentes en la teoría estructuralista cepaliana, en las teorías de la dependencia, en las teorías de la colonialidad, en las teorías de la liberación y en las teorías de la decolonialidad. En esta dirección, podemos sugerir que América Latina desde los años cincuenta se mueve desde dos campos de ideas: por un lado las teorías de la modernización estimuladas por las universidades norte-americanas para combatir el comunis- mo y por el avance del imperialismo norte-americano que reconfigura el eurocentrismo; por otro, las teorías antiimperialistas (que niegan la distancia estructural entre países desarrollados y subdesarrollados) y que entienden que América Latina pasa a ser desde entonces también un nuevo centro de organización del sistema mundo. Teorías imperialistas del desarrollo Este es un punto importante para el avance de nuestra reflexión y que debe ser explicado para no haber exagero sobre el alcance de la ruptura crítica producida por la CEPAL. O sea, la crítica cepalina solo rompió con un aspecto de la colonialidad, lo representado por la tesis equivocada del encubrimiento de la matriz centro-periferia del sistema-mundo por la ideología del equilibrio espontáneo del mercado. Hay sin embargo otro aspecto de la colonialidad que no se rompió con la crítica cepalina: la de la ideología del progreso económico por etapas que fue sugerida por las teorías de la modernización. Esto significa que los teóricos cepalinos entendieron que la teoría liberal del libre mercado económico era falsa pero no lograron romper los dogmas evolucionistas de la teoría de la modernización. Seguramente, necesitamos considerar los límites del contexto cepalino para entender las posibilidades de avance, pues los movimientos sociales e intelectuales solo se liberan dentro de ciertas condiciones históricas dadas. No es posible concebir la creatividad intelectual fuera del espacio y del tiempo (Castoriadis, 1975, Santos, 1979). En esta dirección podemos entender que la descubierta cepalina tuvo sus límites objetivos dados por las tensiones entre la postcolonialidad y el imperialismo. La revolución cubana, por un lado, las dictaduras militares, por otro, revelan la intensidad de las tensiones políticas en América Latina en este contexto de conciencia de la importancia de una praxis de los márgenes. Estos hechos prueban la existencia de límites al pensamiento poscolonial crítico que fueron impuestos tanto externamente, 338 por el imperialismo norteamericano como internamente, por las fuerzas oligárquicas de base rural. Hay que subrayar en esta dirección, por consecuencia, que la incapacidad de los cepalinos de romper con la ideología del crecimiento económico ilimitado no fue solo una dificultad teórica de los académicos de criticar la teoría de la modernización por etapas. Los movimientos intelectuales tenían que enfrentar dos tipos de presiones políticas importantes: de los intereses norteamericanos y de las oligarquías conservadoras. Así, las resistencias de estas oligarquías contra los cambios de los regímenes de propiedad y de uso colectivo de las tierras inexploradas económicamente revelan el cuadro de las relaciones de fuerzas presentes. Las tentativas de implementación de las políticas de reforma agraria apuntan para las dificultades de implementar reformas estructurales en el sistema de propiedad de base oligárquica y en las políticas públicas controladas por el autoritarismo burocrático. Esta tesis queda más clara cuando consideramos que interesaba a los cepalinos interferir sobre las reformas del aparato estatal y sobre las políticas públicas y económicas. O sea, si las políticas cepalinas fueron, por un lado, audaces para la época confrontando incluso los intereses oligárquicos con los planos de reforma agraria, por otro, ellas fueron conservadoras por limitar tales reformas al proyecto de organización de mercados internos nacionales de consumo proyectados dentro de la matriz del crecimiento económico lineal y evolutivo. De esta forma, las teorías de la modernización, pensadas desde la importancia de los EUA de limitar la influencia soviética sirvieron claramente para actualizar los pactos conservadores involucrando a oligarquías tradicionales y los intereses capitalistas internacionales. Y esta ecuación de las tesis de la modernización por etapas continua siendo de gran importancia en la actualidad. Ella fue la referencia por la penetración de las ideas neoliberales desde los años 80 (Martins, 2012). Por consecuencia, no es exagero afirmar que la tesis neoliberal de disolución de la ecuación centro y periferia tuvo un efecto desastroso sobre las creencias post-coloniales que legitimaban el modelo del Estado desarrollimentista centralizado. En varios países de América Latina, en los contextos de movimientos de redemocratización en la década de ochenta, como fue el caso de Brasil, los economistas de “izquierda”, legítimos herederos de la tradición cepalina, no tuvieron éxito en las tentativas de reforma del aparato estatal para asegurar simultáneamente redistribución de ingresos y democratización social. No es exagero pues afirmar que el neoliberalismo contribuyó para desorganizar profundamente una parte de la izquierda intelectual, sobre todo académica, que interpretaba la coyuntura de las sociedades nacionales periféricas desde las relaciones conflictivas entre el Estado, el Poder Central desarrollimentista y los diversos intereses presentes en el escenario político y partidario (Martins, 1992). Así, el pensamiento crítico latinoamericano que había sido estimulado entre las décadas de 50 y 70 por la crítica poscolonial, estructuralista cepalina y postdependientista, conoció cierta recolonialidad desde los años 90 del siglo XX provocada por decisiones políticas más interesadas en los indicadores de productividad académica que en la construcción de una ciencia adecuada para apoyar los procesos de liberación social. Esta recolonialidad pasó en Brasil, pero también, bajo diversos senderos, en México, Argentina, Chile y varios otros países de la región. Por consecuencia, el pensamiento académico y universitario latinoamericano, hoy, está muy marcado por procesos de recolonialidad del saber que se materializaron bajo la profesionalización de los estudios universitarios. Este hecho contribuyó para estrechar las cooperaciones entre universidades latinoamericanas, europeas y norteamericanas, fragilizando la cooperación universitaria entre las sociedades latinoamericanas. En muchos países se olvidó de algún modo la memoria de América Latina como una comunidad de destino, siendo Brasil un caso emblemático de esta alienación académica (Martins, 2012). 339 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 Paulo Henrique Martins CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ... La traducción de la ideología de la globalización en el glosario poscolonial fue lo de la disolución de la tensión centro y periferia dentro del sistema mundo. Muchos postcolonialistas de izquierda se convirtieron al fascínio del pensamiento único. Pues lo que ellos más ambicionaban - la realización del desarrollo en condiciones de periferia – les pareció arreglado de súbito por el aparente desaparecimiento de la tensión centro y periferia, lo que igualmente para muchos significaba que el Estado centralizado e interventor no era más necesario. Hemos de reconocer, entonces, que parte del pensamiento académico heredero de la crítica poscolonial quedó pasivo y fue absorbido por los nuevos dispositivos de colonialidad producidos la ideología de la globalización económico uniforme que fue articulada dentro del campo académico neoliberal, impactando sobre los destinos de parte de las ciencias sociales regionales. El proceso de recolonización del saber por políticas de profesionalización universitaria que valoran la subordinación del conocimiento al eurocentrismo se verificó bajo procesos de recolonialidad del poder destinados a asegurar los cambios en el patrón de poder dominante para permitir el avance del capitalismo económico y financiero en el interior de los Estados desarrollimentistas. En Brasil, por ejemplo, hay varios departamentos de economía que no incluyen, en sus contenidos estratégicos para la enseñanza, asignaturas como sociología y antropología; y muchos estudiantes reclaman por la ausencia de estudios sobre la CEPAL y sobre el rol de Celso Furtado para las teorías del desarrollo. Paralelo a estos procesos debemos registrar el avance de la crítica descolonial, o decolonial, que ha progresado de modo incierto y casi siempre fuera de la academia. Tales críticas se apoyan principalmente sobre el avance de la sociedad civil compleja que cuestiona las estructuras de colonialidad desde abajo, desde el mundo de la vida, desde los conflictos urbanos y rurales, desde los nuevos movimientos sociales conectados a las luchas, de las mujeres, de los sin tierras, de las personas sin hogar, de los sin ciudadanía, de los ambientalistas entre otros. En Brasil, esta nueva mirada es planteada por autores como M.G. Gohn (2000), B. Bringel (2010) y I. Scherer-Warren y L.H. Hahn Luchmann (2011), sin embargo hay una producción importante de estudios y redes en Latinoamérica que están a mapear las reacciones altersistémicas (Mato, 2004; Quiroz, Jonas, Pereira e Nagata, 2006; Escobar, 2008 ). La invención de la CEPAL fue en suma una experiencia de descolonialidad. Pero, tenemos aquí una revisión parcial que no rompió con la idea de centro versus periferia como una ecuación de validad ontológica, y, por consecuencia, con la idea de crecimiento económico ilimitado. Por otro lado, la idea de decolonialidad se refiere a un cuestionamiento de la validad ontológica de la ecuación centro y periferia, liberando los márgenes para movilizarse como centros autónomos y creativos de producción de conocimiento sobre el desarrollo e igualmente sobre la vida y los derechos humanos (Martins, 2012). Este es pues el contexto en que vamos a presenciar el surgimiento al lado de las teorías postcoloniales, del movimiento teórico decolonial que objetiva deconstruir radicalmente la colonialidad desde otros marcos interpretativos que cuestionan la idea misma de centro y periferia; cuestionamientos que proponen liberar la periferia de una posición dependientita en el sistemamundo para que aparezca como nuevos lugares de producción de saberes y experiencias del mundo. Teorías antiimperialistas del desarrollo El cuestionamiento político de la ecuación centro versus periferia que tiene como marco la CEPAL tuvo impactos sobre el surgimiento de un pensamiento crítico en los márgenes del sistema mundial que se abrió en variados senderos: el estructuralismo cepalino, las teorías de la dependencia y de la liberación entre otros. Pero también sobre innovaciones institucionales y políticas como las reformas de los mecanismos del Estado modernizador y sobre las reacciones alter- 340 sistémicas de la sociedad movilizada como la sugerencia de diversos estilos de desarrollo (Faletto, 2009). El desplazamiento de la mirada crítica sobre los centros de producción del sistema mundo a través del estructuralismo cepalino se materializó desde entonces por iniciativas políticas intencionadas para organizar el desarrollo nacional: estimular la industrialización nacional y la expansión del mercado interno. Las reformas del sector estatal se hicieron primeramente en los mecanismos cambiales y avanzaron en iniciativas más profundas de reformas institucionales, fiscales y financieras (Faletto, 2009) que fueron bien detalladas en el caso brasileño por Luciano Martins (1968). Sin embargo, las tensiones generadas en este momento histórico de postguerra no se limitaron al debate académico como el de la CEPAL, desplazándose para la vida política y para las calles, apareciendo en varios momentos sentimientos colectivos antiimperialistas. La campaña “el petróleo es nuestro” en Brasil a inicios de la década de cincuenta generó reacciones nacionalistas importantes que legitimaron la creación de la PETROBRAS (Petróleo Brasileiro) en 1953. Varios ejemplos pueden ser recordados en esta dirección. No obstante, es más importante subrayar el hecho que la crítica inicialmente de razones económicas de las relaciones centro-periferia se pasaron para el plano de la política generando sentimientos anticoloniales significativos. Hubo entonces una ruptura epistemológica importante en este momento y que es fundamental para entender el desarrollo del pensamiento crítico postcolonial y contextual en Latinoamérica y lo que le diferencia de otros continentes. Esta observación es interesante para entender que lo que llamamos genéricamente de sistema mundo es un fenómeno organizado desde varios movimientos sistémicos, desde varias lógicas de organización de un mundo humano que está siempre moviéndose en direcciones hegemónicas y contra hegemónicas. Esta ruptura de entendimiento respecto a la colonialidad tiene, luego, valores epistémicos y políticos inestimables, contribuyendo para desplazar para el sistema político y para las movilizaciones sociales lo que los colonizadores planetarios querían limitar a un simple problema económico a ser arreglado a largo plazo por el “libre juego de mercado”. La ruptura epistémica y epistemológica con efectos en la política y en la organización del Estado, en particular en la organización del Estado Desarrollimentista, se reveló tanto por el entendimiento de que las ciencias sociales son un conjunto de saberes articulados por un imaginario histórico compartido y que la disciplina económica exige su permanente evaluación política y social como por el hecho de que el sistema mundo es constituido por tensiones de centralización y descentralización o de centro-periferia. O sea, la descubierta cepalina generó además de rupturas epistemológicas con impactos sobre el modelo de Estado y las políticas de modernización regionales, una importante ruptura epistémica respecto a la desconstrucción del imaginario de la colonialidad y la emergencia del otro, postcolonial que problematizó la dependencia económica y política. O sea, el discurso capitalista colonial – el de las teorías de la modernización que reducía las relaciones entre naciones “desarrolladas” y subdesarrolladas” a un problema de desigualdades económicas a ser eliminadas en un futuro incierto por las leyes espontáneas del mercado -, fue contestado por otros discursos que entendían las relaciones internacionales como un problema político y epistemológico que revelaban las tensiones entre los movimientos sistémicos del centro y de las periferias. Las ideas de dependencia y desarrollo pasan a ser cuestionadas con más profundidad desde los años 60 y el pensamiento crítico pasó a resignificar la modernidad como colonialidad (Schlosberg, 2004). En esta dirección es importante recordar que no es mera coincidencia que la creación de la CEPAL fue seguida de otras iniciativas institucionales importantes como la creación de la Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales – FLACSO –, de la Asociación Latinoamericana de Sociología – ALAS – que es la más importante asociación continental del planeta y de centros de 341 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 Paulo Henrique Martins CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ... investigación sobre América Latina, aquí destacando la importancia del sociólogo mexicano Pablo González Casanova que fue el gran incentivador del Instituto de América Latina de la Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM – que ya completó 60 años de existencia. La descubierta cepalina está pues en el origen de importantes movimientos teóricos y sociales que se desarrollan en la región desde los años cincuenta. Y aquí, a nosotros nos gusta diferenciar, siguiendo reflexiones de autores de la escuela peruana de sociología inspirada en la obra de A. Quijano (Mejia, 2012), entre dos planos de análisis: el del movimiento teórico pos-colonial y el del pensamiento descolonial. La descubierta cepalina, como vimos, significó una ruptura importante con el imaginario colonial – liberando las semillas de la heterotopía de una comunidad de destino solidaria (Martins, 2012) – y con el imperialismo –, desplazando la discusión de los cambios económicos internacionales del plano de la economía para la política. El entendimiento del deterioro de las relaciones económicas significó, así, importante inauguración de nuevo paradigma interpretativo con implicaciones prácticas sobre la organización de un pensamiento latinoamericano particular dentro del sistema mundo, que no tiene similitud en otros continentes. CONCLUSIÓN No hay como negar los avances del pensamiento crítico latinoamericano desde el momento en que la idea de deterioro de las relaciones centro y periferia fueron cuestionadas políticamente por los cepalinos al final de la segunda guerra mundial. Todas las teorías críticas posteriores son de algún modo herencias de esta ruptura epistémica en el interior del sistema mundo y del surgimiento de fuerzas alter-sistémicas cuestionando el capitalismo desde los márgenes de los países centrales. Por otro lado, no hay como negar igualmente la importancia de las teorías de la modernización fabricadas en las universidades norte-americanas para el impulso de proyectos modernizadores que legitimaron la expansión de prácticas capitalistas en la región y la formación de una élite de economistas que van a articular la neocolonización por el neoliberalismo al final del siglo XX. Considerando el contexto del pensamiento crítico latinoamericano desde la coyuntura actual, debemos reconocer que hubo varios avances favorables a una crítica decolonial y a una praxis de resistencia amplia. Sin embargo, estos avances teóricos no fueron aún articulados en un sistema disciplinar o interdisciplinario ampliamente compartido por intelectuales, activistas y movimientos sociales y culturales, o sea, como fundamento epistemológico de un pensamiento del sur o de los márgenes, constituyendo una ruptura de hecho con el pensamiento eurocéntrico. La sistematización de esta crítica de los márgenes es necesaria todavía para profundizar el entendimiento del sistema latinoamericano como un conjunto de fuerzas sistémicas y alter-sistémicas que se mueven entre el tiempo del desarrollo – el tiempo lineal – y otras modalidades de tiempo a través la creación de patrones de poder variados sobre el cambio social, que llamamos de padrones de desarrollo y que son importantes para el entendimiento práctico de las luchas actuales entre fuerzas decoloniales y neocoloniales respecto al futuro de la humanidad y de América Latina. A nosotros nos parece así, que los impases de las teorías de la dependencia pueden ser superados desde que entendemos el desarrollo no solo como un proceso económico definido por clases sociales sino como procesos simultáneos económicos y no económicos que generan varias ecuaciones políticas sobre los territorios políticamente movilizados. En América Latina, los diversos patrones de poder se organizan bajo la dialéctica centro y periferia del sistema mundo y del capitalismo global y bajo los dislocamientos de las tensiones de la producción de conocimiento entre el Norte Global y el Sur Global. En esta dirección, pensamos sea posible organizar una tipología provisoria de patrones de desarrollo, ins- 342 pirados en la tesis de M. Weber (1979)4 respecto a la importancia de la clasificación cognitiva provisoria para organizar el caos de la realidad. En principio, nos parece pues que en Latinoamérica es posible observar cuatros patrones de desarrollo que necesitan ser más profundizados en otro momento. Aquí, tenemos: a) Patrón de desarrollo por retos económico-financieros con subordinación de lo social al consumo; b) patrón de desarrollo por retos económico-financieros con indexación de lo social a los derechos republicanos; c) Patrón de desarrollo por derechos colectivos solidarios con apoyo en políticas económicas plurales; y d) Patrón de desarrollo por derechos igualitarios con apoyo en políticas económicas colectivistas. Tales patrones expresan las ecuaciones de poder que se forman en los territorios nacionales, regionales, locales y transnacionales a partir de las diversas fuerzas presentes que pueden ser económicas – las clases – pero también los grupos estamentales, étnicos, de género, culturales entre otros. En la lucha por la apropiación de los territorios políticamente y socialmente movilizados, tales fuerzas organizan los sentidos de sus acciones desde categorías que pueden ser capitalistas – las clases económicas – pero igualmente patriarcalitas, religiosas, coloniales y étnicas. Las diversas matrices que surgen de las combinaciones de intereses movilizados por categorías cognitivas diferenciadas son la base para la constitución de patrones de desarrollo que se distribuyen geográficamente por grupos de territorios – países – y dentro de los territorios nacionales. En esta dirección, podemos observar que el tipo uno sugerido, el de Patrón de desarrollo por retos económico-financieros con subalternización de lo social al consumo, impacta horizontalmente sobre territorios adonde el capitalismo subordinó lo social como Brasil y México, como dentro de cada uno de esos países. Este patrón se funda en 4 Pues, aclara él, el número y la naturaleza de las causas que determinan cualquier acontecimiento individual son siempre infinitos y este caos solo puede ser ordenado cuando un hecho específico tiene interés y significado para nosotros y se encuentra en relación con las ideas de valores culturales como abordamos la realidad (Weber, 1979, p. 94-95). la hegemonía de los economistas neoliberales en la definición de los retos del desarrollo en términos claramente económicos y consumistas. Aquí, lo social no es percibido como un sistema social que tiene su propio ritmo sino como un producto del crecimiento económico. Desarrollo es claramente crecimiento económico y la función del Estado es apoyar la reproducción del patrón de poder económico y financiero internacionalista, siendo la ciudadanía limitada a la inclusión de los individuos en el mercado de consumo de bienes y servicios. En el caso brasileño, vemos que el modelo de inserción de los individuos en la sociedad organizada por el consumo de bienes durables y no durables contribuyó para un consumo no reflexionado que impacta negativamente sobre las condiciones de vida en las grandes ciudades. Por otro lado, en el caso mexicano, que sigue en líneas generales el mismo patrón de desarrollo, vemos que la subordinación de lo social al capitalismo por el consumo estimuló largamente la expansión del capitalismo del narcotráfico al lado y en articulación con el capitalismo liberal tradicional. O sea, cada patrón de poder tiene impactos diferenciados según las modalidades de presencia histórica y cultural de los territorios políticamente movilizados. En esta dirección, podemos afirmar que los demás patrones sugeridos también obedecen a estas determinaciones generales. Así el Patrón de desarrollo por retos económico-financieros con indexación de lo social a los derechos republicanos se funda igualmente en la hegemonía de los economistas como en el caso anterior. Sin embargo la ambición de clasificar lo social como producto del crecimiento económico encuentra resistencia en una memoria de derechos de ciudadanía republicana (al trabajo, a la libre expresión, a los servicios públicos básicos como educación y salud, etc.) que aún funciona como dispositivo de resistencia al avance neoliberal. Los ejemplos más típicos de este patrón son Chile y Costa Rica. Por su lado, el Patrón de desarrollo por derechos colectivos solidarios con apoyo en políticas económicas plurales se basa en articulaciones amplias de agentes sociales e institucionales, no 343 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 Paulo Henrique Martins CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ... solo económicos, y que expresan ciertos tipos de REFERENCIAS rupturas con los patrones de poder típicos de ABELLÁN, J. L. La idea de América. Origen y evolución. modernización conservadora (alianza de las Madrid: Ibeoamerica, 2009. oligarquías con el capitalismo internacional). Bajo BRAUDEL, F. História e ciências sociais: a longa duração. presión de los movimientos sociales y de fuerzas In: BRAUDEL, F. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1992. políticamente organizadas los gobiernos son BRINGEL, B. 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LATIN AMERICA AS AN EXPRESSION OF WORLD-SYSTEM IN THE ORGANIZATION OF DEVELOPMENT MODELS L’AMÉRIQUE LATINE COMME EXPRESSION DU SYSTÈME-MONDE DANS L’ORGANISATION DES MODÈLES DE DÉVELOPPEMENT Paulo Henrique Martins Paulo Henrique Martins Nous partons de l’idée que la définition de l’Amérique Latine comme manifestation particulière du système-monde est importante pour clarifier la compréhension des innovations théoriques, sociales, culturelles, technologiques, esthétiques et institutionnelles confirmées dans la région depuis la fin de la deuxième guerre mondiale. Cependant le caractère de cette définition dépend directement d’une compréhension préalable mise en rapport avec ce que l’on entend par système-monde et développement. Car si l’on définit le système-monde comme une unité homogène, cela n’a aucun sens de parler de manifestations particulières de ce système, d’autre part, si nous limitons le système-monde au système capitaliste, l’idée de particularité de l’Amérique Latine se complique, elle aussi, si nous pensons à la région comme à une base de processus politiques et culturels libératoires et propres. Enfin, rappelons que cette analyse s’inspire des contributions inestimables de la CEPAL (Commission Économique pour l’Amérique Latine et les Caraïbes) qui, en tant que pionnière, a introduit d’importantes innovations concernant le développement et a apporté une K EY W ORDS : Latin America. World-system. contribution à l’effondrement des idées coloniales. Development. MOTS-CLÉS: Amérique Latine. Système-Monde. Développement. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013 Our idea is that the definition of Latin America as a particular manifestation of worldsystem is important for clarifying the understanding of innovations that have taken place in the region since the end of World War II, whether they be theoretical, social, cultural, technological esthetic, or institutional. Nevertheless, the character of this definition depends directly on a prior understanding of the meaning of world-system and of development. If we define world-system as a homogeneous unit, it makes no sense to talk about particular manifestations within this system. On the other hand, if we limit world-system to the capitalist system, the idea of Latin America’s particularity becomes complicated when we think of the region as a base for political and cultural processes, both borrowed and original. After all, we must remember that the inspiration for this analysis is the inestimable contributions made by CEPAL (Economic Commission for Latin America and the Caribbean), which pioneered important innovations to the theme of development, thus contributing to a break with the colonial mindset. Paulo Henrique Martins – Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor e Pesquisador dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Saúde Coletiva da UFPE. Presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) (2011-2013). Coordenador do Núcleo de Cidadania e Processos de Mudança – NUCEM – (UFPE). Bolsista de Produtividade 1B do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tem produção acadêmica na área de Sociologia, particularmente nas áreas de Teoria Sociológica e Estudos Pós-Coloniais, Estudos sobre a Dádiva; Sociologia da Saúde e Sociologia do Poder. Publicações recentes: Durkheim, Mauss e a atualidade da escola sociológica francesa. Sociologias (UFRGS. Impresso), v. 31, p. 70-90, 2013; Revisitando os fundamentos das modernidades periféricas: dádiva, mercado e pacto. Revista Brasileira de Sociologia, v. 1, p. 243-274, 2013; América Latina y el (des)encanto del desarrollo. Revista de Sociología - Universidad Nacional Mayor de San Marcos, v. 23, p. 115-130, 2013. 346 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO DE BIODIESEL Yumi Kawamura Gonçalves* Arilson Favareto** Ricardo Abramovay*** INTRODUÇÃO Este texto tem por base um estudo realizado no Semiárido Nordestino,1 no qual foram investigadas as condições e os bloqueios à inserção dos agricultores familiares no recente mercado de biodiesel, ao mesmo tempo em que procura explicitar as contribuições que a sociologia econômica propicia para o entendimento das questões atuais sobre o Programa Brasileiro de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), evidenciando que o mercado de biodiesel brasileiro não pode ser compre* Doutora em Energia. Pesquisadora na área de Sociologia Econômica na Universidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas. Rua da Catequese 242. Jardim. Cep: 09090400 - Santo André, SP - Brasil [email protected] ** Doutor em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo. Professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC). [email protected] *** Doutor em Ciência Econômica. Professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo – USP. [email protected] 1 Os autores registram especial agradecimento à GTZ (Cooperação Técnica Alemã no Brasil) que financiou este estudo, aos técnicos daquela organização e da Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário pelas críticas e sugestões recebidas, e aos endido com um olhar exclusivamente econômico, assim como a viabilidade dos agrocombustíveis não pode ser prevista a partir de um viés exclusivamente agronômico. O mercado do biodiesel no Brasil, que nasce induzido por um programa governamental, mostra-se hoje, depois de oito anos desde o seu lançamento, como uma realidade controversa e heterogênea. É indiscutível a pujança que o programa gerou em termos de investimentos privados no setor industrial em praticamente todo o país. Entretanto, um conjunto de críticas e questionamentos marca o debate público sobre o PNPB. Uma delas diz respeito ao contraste entre a expectativa de diversidade de matérias-primas que podem ser empregadas na produção deste combustível e a predominância absoluta da soja, importante em cadeias alimentares, e cuja dinâmica de produção e preço é dada pelo mercado internavários agricultores e membros de organizações sindicais, governamentais e não governamentais que atuam no Semiárido Nordestino pela disponibilidade em fornecer informações e dados sobre o tema aqui analisado. Como de praxe, os autores permanecem, contudo, os únicos responsáveis pelo conteúdo aqui expresso. 347 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 O trabalho traz uma análise dos processos favorecidos pelos incentivos e investimentos derivados do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) no Semiárido nordestino. Em função da importância da produção de mamona na região e da aposta do PNPB nesta oleaginosa como meio de inserção da agricultura familiar no mercado de biodiesel, o principal objetivo do estudo consistiu em compreender a estrutura e a dinâmica do mercado da mamona, as mudanças que até agora resultaram dos incentivos do PNPB, e os possíveis entraves aos processos condizentes com os objetivos sociais do programa. A análise demonstrou que as ações em curso não têm sido suficientes para alterar as estruturas sociais associadas à pobreza e à dependência dos agricultores pobres e que a dinâmica empresarial sinaliza importantes incertezas sobre a continuidade dos processos em curso. PALAVRAS-CHAVE: Biodiesel. Semiárido. Agricultura familiar. Mamona. Sociologia econômica CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ... cional.2 A imagem de sustentabilidade vendida pelo biodiesel também destoa dos problemas ambientais e trabalhistas presentes nas cadeias produtivas em que está baseado, estruturadas antes de seu advento, mas que lhe “contaminam” (como é o caso da produção de soja e sebo bovino, as duas principais matérias-primas). Outra crítica corrente sobre o PNPB – uma das mais contundentes –, é que ele tem sido falho na inclusão de agricultores familiares mais pobres. Ao se apoiar na soja para garantir os níveis de produção estipulados pela mistura obrigatória (em percentuais crescentes desde 20083), as aquisições de matériaprima têm sido efetuadas junto aos setores mais dinâmicos e capitalizados da agricultura familiar, particularmente no Centro-Oeste e Sul do país. Este texto se volta para esta questão, examinando os processos de construção do mercado de biodiesel no nordeste do país, onde estavam depositadas grandes expectativas em termos dos ganhos sociais do programa. Duas visões polarizam o debate neste ponto. A primeira delas vê com reticência e ceticismo as perspectivas deste mercado, uma vez que a mamona, eleita a estrela da inclusão social do PNPB, conta (e contava, à época de criação do programa) com mercados consolidados, que envolvem cadeias de altíssima tecnologia e produtos de alto valor comercial, o que comprometeria a viabilidade de seu emprego no mercado de biodiesel (Nogueira, 2008). Entretanto, o paralelo feito por críticos da estratégia do programa, de que produzir mamona para biodiesel seria equivalente a produzir jacarandá para ser queimado como lenha, apesar de forte apelo retórico, desconsidera que a produção e o mercado da mamona são muito mais maleáveis do que o mercado de uma madeira nobre como o jacarandá. Ademais, sendo verdadeira a afirmação de que a mamona tem finalidades mais nobres do que o biodiesel, caberia perguntar por que, então, a produção de mamona no Nordeste permaneceu, por décadas, tão rudimentar e tão fortemente associada à pobreza. 2 Discutido, entre outros, em Kawamura (2012) e Kawamura, Diniz e Favareto (no prelo). 3 Começando com 2% em janeiro de 2008; e chegando a 5% em 2010. A outra visão, em contraste, tem como principal argumento que a criação da demanda de mamona para biodiesel geraria uma concorrência antes inexistente, elevando os patamares de preço e favorecendo ganhos na renda aos agricultores que já forneciam mamona para a indústria ricinoquímica. Além disso, os produtores se beneficiariam de maior segurança na comercialização – propiciando a ampliação da base de agricultores neste cultivo – e de serviços e incentivos, previstos nas normas do PNPB, que até então não estavam presentes nos sistemas produtivos tradicionais. Como decorrência, haveria o aprimoramento dos sistemas produtivos da agricultura familiar, que sustentaria a estratégia de produção de biodiesel no Nordeste e estimularia a dinamização das economias locais (Carmélio & Campos, 2009). A rigor, estas duas visões não são excludentes. A elevação dos patamares de preços pode estar gerando um aumento nas rendas dos agricultores e melhorando as expectativas de investimento na sua produção. Mas pode haver um teto para as aquisições de mamona pela indústria de biodiesel, delimitado pela dinâmica dos usos concorrentes na indústria ricinoquímica que, por operar com produtos de maior valor agregado, teria maior margem de manobra para compor a estrutura de preços, repassando custos ao produto final, ou valendo-se da possibilidade de, simplesmente, importar óleo, caso os custos para tanto se mostrem compensadores. Ocorre que venda do óleo de mamona para indústria ricinoquímica ou no mercado de biodiesel envolve muito mais do que a comparação entre os preços oferecidos neste ou naquele. Uma série de particularidades não mercantis marca a lógica de exploração que perpassa a cadeia da mamona. Ao examinar estas questões, este texto propõe-se a discutir perspectivas analíticas através das quais o biodiesel brasileiro é tratado. Neste sentido, o principal objetivo deste estudo consistiu em compreender a estrutura e a dinâmica do mercado da mamona, as mudanças que até agora resultaram dos incentivos do PNPB, e os possíveis entraves aos processos condizentes com os objetivos do programa, especialmente no 348 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay 4 Para testar esta hipótese, foi visitado um pequeno grupo de municípios no Semiárido, selecionados com base em consultas a informantes-chave. Foram visitados municípios em que tivesse ocorrido uma expansão importante na produção de mamona, impulsionada pelo mercado de biodiesel e, de outro lado, municípios em que a produção já estava estruturada (Monsenhor Tabosa, Pedra Branca e Boa Viagem no Ceará, e Morro do Chapéu, Nova Redenção, Cafarnaum, Irecê e Lapão na Bahia). No total, foram entrevistadas setenta e cinco pessoas, das quais trinta e seis agricultores. As entrevistas cobriram, também, comerciantes, agentes financeiros, membros do poder público local, técnicos agrícolas e dos serviços de assistência técnica e extensão rural, lideranças comunitárias e dirigentes de organizações de agricultores como sindicatos, associações e cooperativas. Finalmente, foram entrevistados informantes-chave e diretores de empresas de biodiesel e da indústria ricinoquímica. A pesquisa de campo ocorreu em 2009 e foi complementada em 2010. As ideias formuladas por Neil Fligstein (2001) fornecem um quadro de análise interessante para destrinchar os mecanismos desta estabilização de relações a um só tempo econômicas e sociais. A sistematização feita por Abramovay (2008) é bastante útil para os propósitos deste artigo (Box 1). Dando continuidade à apresentação do tema proposto, a seção seguinte traz as principais características do mercado internacional e nacional da mamona, descreve e analisa este mercado no Semiárido Nordestino, apresentando os principais agentes, características da produção e da comercialização, bem como analisa as mudanças recentes neste mercado, a partir dos incentivos do PNPB. As conclusões são apresentadas na terceira parte do texto. O MERCADO DA MAMONA Produtos de alto valor agregado, mercado externo e interno Os óleos de mamona dão origem a derivados que são empregados em diversas indústrias, de química fina, compondo produtos como têxteis sintéticos de última geração, vidros especiais, cosméticos avançados, medicamentos, perfumaria, lentes de contato, plásticos de alta resistência, lubrificantes, resinas plásticas, próteses ósseas, poliuretanos com diversas aplicações. No plano internacional, empresas e grandes grupos empresariais atuam na extração, processamento e comercialização dos derivados, com mercados em diversos continentes. É consensual que as perspectivas desse mercado guardam forte potencial de expansão e uma tendência à continuidade da diversificação dos usos, com a constante criação de novos produtos. Na outra ponta, a produção de matérias-primas no nordeste brasileiro apresenta um forte contraste com este vigor. A oferta de matéria-prima é pulverizada, organizada em bases tradicionais e marcada por uma severa precariedade. Desde 1978, o Brasil figura entre os três maiores produtores de mamona e de óleo de 349 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 que diz respeito ao envolvimento de agricultores familiares pobres. A hipótese orientadora deste estudo é que o biodiesel pode ser um elemento decisivo para alterar a organização daquilo que Frank Ellis (1988) chamou de mercados incompletos e imperfeitos, característicos dos produtos típicos dos segmentos mais empobrecidos da agricultura familiar. No caso do Semiárido, isso significa a formação de novos circuitos de comercialização, que estimulem a concorrência e que abram aos agricultores o acesso a um conjunto de serviços que lhes permita escapar da dependência em que se encontram em relação a comerciantes tradicionais. Entretanto, esse intento depende das estruturas sociais dos mercados que a produção de biodiesel integra e a partir dos quais se viabiliza, sendo que as ações promovidas pelos principais agentes do PNPB no Semiárido não têm se mostrado suficientes para transformar tais estruturas, ainda que sejam capazes de alterar o patamar de renda dos produtores de mamona por efeito das novas dinâmicas de concorrência que elas inauguram.4 Nessa perspectiva, este trabalho funda-se em uma abordagem teórica pouco usual quando se trata de analisar os mercados. À luz da sociologia econômica, os mercados são muito mais do que o resultado do confronto entre oferta e demanda, protagonizado por agentes livres, e do qual os preços são a expressão última: mercados devem ser entendidos como estruturas sociais nas quais os agentes, portadores de interesses, adotam estratégias para garantir melhores posições na estrutura e estabilizar suas relações com os demais agentes. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ... mamona, juntamente com Índia e China, países que concentram, atualmente, nada menos do que 93% da produção mundial. Entre 1978 e 1982, o Brasil ocupou a primeira posição em produção de mamona. Já em 2005, o país contribuía com apenas 13% da produção mundial. Trajetórias semelhantes entre os países líderes podem ser observadas no que diz respeito à produção de óleo de mamona (Santos e Kouri, 2006a). Dentre as empresas que produzem o óleo a partir da mamona, há indústrias que processam a mamona somente para comercialização do óleo, há indústrias que processam mamona para produção e comercialização de derivados do óleo, e, ainda, aquelas que processam a mamona, produzem os derivados e já os empregam na produção de outros produtos. Segundo Savy Filho (2005, apud Santos e Kouri, 2006b), havia no Brasil, no meio da década..??????, uma capacidade instalada para processamento de 440 mil toneladas/ano de mamona em baga, o que geraria, aproximadamen- te, 198 mil toneladas de óleo. Considerando a média das safras desta década em 110 mil toneladas, segundo os dados da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab (2009), o déficit seria de, aproximadamente, 330 mil toneladas. Parte importante da indústria ricinoquímica está em São Paulo, mas na produção nacional da matéria-prima – a mamona em baga –, a principal referência é a região nordeste do país, que concentra mais de 90% da produção brasileira. O Estado da Bahia, sozinho, é responsável por 83% da produção nacional, em média, desde o ano 2000, e é onde está localizada a principal indústria processadora de mamona instalada no país. (Conab, 2009). Algumas das características mais marcantes desta produção são: (a) a forte oscilação no total de área plantada de uma safra a outra, com uma forte retração a partir de meados da década de oitenta, e uma tímida recuperação na década de 2000; (b) a heterogeneidade em termos de produtividade nos diferentes municípios e regiões – no Centro-Sul a 350 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay Os fatores mais comumente apontados como principais influências no preço no mercado interno são o clima e seus impactos na variação da safra; o câmbio, que pode estimular ou frear a opção pela importação do óleo por parte das indústrias; e a variação dos preços internacionais – tudo isso concorre para a definição do preço que a indústria demandante se dispõe a pagar pela mamona em cada período. O outro fator que concorre para a definição desse preço é a estrutura de organização da oferta, como se verá adiante. O MERCADO DA MAMONA NA BAHIA E NO CEARÁ O mercado da mamona é estruturado em uma oferta bastante pulverizada, com a produção apoiada, predominantemente, em agricultores pobres, com sistemas de produção bastante tradicionais. Esta pulverização e os baixos índices de produtividade favorecem a formação de uma cadeia na qual as estruturas intermediárias, que permitem concentrar a produção dispersa e acessar a igualmente concentrada indústria processadora, tornam-se fundamentais. Ademais, por suas características físicas, a baga da mamona pode ser estocada, e os atores em condições de fazê-lo – em geral os maiores produtores e os comerciantes – utilizam este recurso para auferir maiores lucros. Assim, a oferta de mamona no mercado não depende apenas da colheita. Esta estrutura vem sendo ligeiramente alterada com a entrada das empresas de biodiesel e os incentivos previstos no PNPB – e, no caso do Ceará, também nos programas estaduais – vêm alterando as bases de funcionamento deste mercado. No Semiárido da Bahia e do Ceará, o cultivo de mamona ocorre há pelo menos três gerações. Mesmo com a retração ocorrida nos últimos vinte anos, o cultivo foi mantido, ainda que de forma secundária em relação a outras atividades. Em ambos os estados, houve uma recuperação na presente década, ligeiramente mais acentuada no Ceará, principalmente a partir de 2003. 351 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 produtividade média é de 1.380 kg/hectare, enquanto no Norte-Nordeste a média é de 670 kg/ hectare (Conab, 2009), ficando em torno de 100 kg/hectare em alguns municípios do Ceará. Com base nesses dados, uma pergunta que não pode deixar de ser feita é: por que a demanda não atendida, o dinamismo do mercado internacional e os usos nobres do óleo da mamona não se convertem em igual dinamização da produção de matéria-prima? Quando se trata da precariedade e da instabilidade da produção nordestina de mamona, um dos principais argumentos é a instabilidade de preços do produto. As cotações internacionais na bolsa de Rotterdam mostraram oscilações da ordem de até 50% entre a segunda metade da década de 80 e o final da década de 90. Desde 2001, há uma tendência de alta, acentuada nos últimos anos: em 2008, o preço mais que dobrou em relação ao preço de 2001. As cotações de Irecê, principal polo do mercado de mamona na Bahia e no Brasil, praça onde é definido o valor no mercado interno, oscilaram ainda mais, com os preços variando em até 200% nesta década. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ... A produção de mamona é feita, predominantemente, por pequenos produtores, com mãode-obra quase exclusivamente familiar, em áreas que variam de dois a quinze hectares e sem orientação técnica.5 As técnicas empregadas pela esmagadora maioria dos pequenos agricultores são, basicamente, as mesmas aprendidas com as gerações anteriores. É também tradicional o consórcio da mamona com outros produtos, como estratégia de intensificação do uso das terras na época do verão, quando ocorrem as chuvas.6 Depois da colheita dos cultivos mais rápidos, a mamona permanece no solo, em produção contínua, durante dois anos, com colheitas de maior volume entre setembro e novembro. Assim, por ser uma planta mais resistente ao stress hídrico dos meses de estiagem, a mamona representa, para grande maioria dos pequenos produtores, a única fonte de renda oriunda da agricultura ao longo do ano. Nos municípios visitados no Ceará, grande parte das áreas em que se cultiva mamona é arrendada de grandes proprietários pecuaristas. Dada a toxicidade da mamona, se consumida pelo gado, estes cultivos são conflitantes, o que restringe a expansão do cultivo da mamona, visto que a pecuária bovina tem prioridade – e, em áreas arrendadas aos agricultores, os pés de mamona permanecem no solo apenas no primeiro ano – enquanto se forma o capim para o gado – perdendo-se, assim, os ganhos que ocorreriam no segundo ano. Assim, quatro são os bloqueios principais a uma expansão dos cultivos de mamona e a uma maior produtividade nos segmentos mais pobres da agricultura familiar na região: disponibilidade de trabalho para as lavouras (particularmente na Bahia); disponibilidade de terra (particularmente no Ceará); técnicas de cultivo inadequadas e ausência ou ineficiência de assistência técnica para contornar estas inadequações, além de um mercado volátil, instável e que pratica preços baixos na compra da mamona. 5 Na região de Morro do Chapéu e Irecê, há uma minoria de médios produtores, com áreas de mais de 150 hectares, que alcançam produtividades superiores à média da região. 6 Predominam os consórcios com feijão e milho, sendo frequente, no Ceará, o capim para formação de pasto para pecuária bovina. Dentre estes, um dos mais difíceis de solucionar é a escassez de mão-de-obra. A grande maioria dos agricultores afirma contar, apenas, com o trabalho da esposa ou do marido, e não mais com o trabalho dos filhos, que preferem buscar oportunidades nas cidades da região ou em centros mais distantes.7 A ajuda recíproca entre vizinhos é uma prática comum, mas limitada, pois as principais atividades na lavoura, como a colheita, por exemplo, coincidem no tempo. A contratação temporária é ainda mais rara, tanto pela reduzida oferta, quanto pela falta de recursos financeiros para contratar. Tudo isso faz da escassez de força de trabalho um dos principais limites à expansão da cultura da mamona. Enquanto na Bahia raras são as menções à falta de área para plantio, no Ceará, esta foi uma constante. A mamona está, em geral, em posição secundária na priorização das atividades produtivas locais (mesmo nos estabelecimentos familiares), e em conflito com a principal atividade, que é a bovinocultura. Grande parte dos agricultores cultiva áreas arrendadas,8 e vê-se, regularmente, na dependência de que o proprietário concorde com o cultivo de mamona. Esta preferência pelo gado reflete-se, também, na distribuição geográfica: as áreas de “sertão”, como são chamadas as áreas planas, são mais ocupadas pela pecuária, enquanto as áreas de “serra” são as mais utilizadas para cultivo de mamona consorciada com feijão e milho. Mesmo aí, os cultivos vêm sofrendo a pressão da expansão dos pastos. Por todos estes motivos, no Ceará, a expectativa em relação ao aumento de áreas plantadas de mamona é muito mais contida. A perda de nutrientes e a compactação dos solos (principalmente em função do uso de máquinas na Bahia, e em função do pisoteio pelo gado 7 Segundo alguns relatos, os mais jovens conseguem ganhar até doze mil reais numa temporada no corte da cana em São Paulo, enquanto a renda da família com a mamona varia, comumente, entre duzentos e três mil reais anuais. 8 Em Monsenhor Tabosa, a estimativa feita pelas lideranças e técnicos é de que 60% dos agricultores familiares possuem uma propriedade, enquanto os outros 40% são moradores em grandes propriedades, e trabalham em áreas arrendadas. Mesmo os agricultores proprietários frequentemente arrendam outras áreas para completar a renda familiar. 352 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay agricultores têm, em geral, uma compreensão muito parcial e restrita do mercado como um todo: conhecem o sistema de comercialização regional, mas muitos não sabem qual o destino do produto fora da região, e a larga maioria desconhece as aplicações do óleo. Os elos do comércio são feitos pelos compradores (ou atravessadores) locais e regionais, que se organizam em diferentes níveis. Em geral, existem, nas comunidades rurais, um ou dois comerciantes locais, também chamados “bodegueiros”: são proprietários de pequenos estabelecimentos comerciais aos quais os agricultores recorrem para comprar a crédito produtos necessários ao consumo cotidiano, ou mesmo pequenos empréstimos em dinheiro a serem pagos posteriormente, com a produção da mamona. Como a mamona é a única lavoura que produz ao longo de todo o ano, é ela, em geral, a moeda de troca que permite ao produtor “fazer a feira”.9 A estes atravessadores locais, os produtores vendem pequenas quantidades, comprometendo, aos poucos, sua produção antes da colheita, prática conhecida como “venda na folha” ou “venda na palha”. Esta relação se dá pelo contato direto com o produtor, ou é intermediada ou monitorada por As estruturas tradicionais do mercado da mamona A Figura 1 traz uma representação da estrutura tradicional do mercado de mamona. Nela se vê, na base da cadeia produtiva, um grande número de agricultores, pequenos e médios, cujos sistemas de produção foram descritos acima. Esses 9 Em geral, as outras produções, como o feijão e o milho, quando têm destino comercial, passam, também, por estas vias – com a diferença de que sua colheita é concentrada em dois ou três meses. Em alguns casos, o fato de que a colheita seja concentrada permite ao agricultor reunir um volume maior e comercializá-la através de outros canais, na tentativa de receber melhores preços. 353 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 no Ceará), além da baixa disponibilidade hídrica, somam-se aos problemas agronômicos descritos em estudos anteriores (Machado et al, 2006; Santos e Queiroga, 2008; Negret, 2008; Conab, 2006), como o pouco uso de técnicas agrícolas básicas como análise de solo e adubação, pouca disponibilidade de sementes de qualidade e baixa produtividade e custo de produção alto. Um dos fatores que explica a precariedade técnica desta produção é a ausência de assistência especializada. Na avaliação dos técnicos contatados no estado da Bahia, a orientação técnica adequada poderia elevar a produtividade, sem aumentar os custos, e não demandar mais recursos do que dispõe hoje um produtor familiar médio. Outro fator importante é a descapitalização. A maioria dos agricultores não procura crédito bancário para custeio das lavouras – é um recurso tradicionalmente distante da realidade dos agricultores menos favorecidos e, além disso, o histórico de inadimplência e as regras do financiamento inviabilizam contratos para a cultura. Apesar disso, não houve redução de lavouras por falta de financiamento: o custeio é feito com recursos próprios ou, mais comumente, com o adiantamento realizado pelos compradores locais – aqui reside um dos fortes componentes da estrutura de dependência em que estão enredados os agricultores familiares e que lhes impede de obter maiores ganhos no mercado. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ... informantes, que levam e trazem informações sobre os preços oferecidos e sobre o andamento da lavoura, informações que passam, também, pelas associações comunitárias. O bodegueiro, além dos adiantamentos, fornece, também, crédito para custeio da lavoura e realiza favores pessoais às famílias de agricultores, mantendo, assim, cativos os seus fornecedores. Trata-se, em suma, de relações de dominação profundamente pessoalizadas, sob o revestimento de relações de solidariedade e fidelidade, alicerçadas no constante endividamento dos agricultores e na ausência de canais alternativos para acessar o mercado ou para encontrar outras oportunidades de renda. No nível seguinte da cadeia de comercialização, encontra-se o atravessador ou comerciante com uma base na sede municipal, para os quais os atravessadores locais repassam as mercadorias. Em geral, dois ou três atravessadores na cidade dividem a clientela, sem grande mobilidade: há uma forte fidelização dos mercados. Os atravessadores de cada município, por sua vez, vendem a mamona para os grandes comerciantes ou atravessadores de Irecê. Atuando em escala regional, existem estes grandes atravessadores, que compram de atravessadores médios e pequenos. Neste nível, a comercialização é centralizada em Irecê, e concentrada em três grandes compradores, que fornecem para indústrias na Bahia (Bom Brasil) e em São Paulo. O elo seguinte da cadeia são as indústrias processadoras, que compram a mamona em baga e extraem o óleo, sendo que uma delas, a Bom Brasil, subsidiária brasileira do grupo internacional Nidera, produz uma série de derivados a partir do óleo. O segmento de extração do óleo vem diminuindo nos anos recentes e, segundo informações de empresários do setor, apenas seis ou sete empresas dominam a quase totalidade do mercado de óleo. No último elo do mercado, estão as indústrias que usam o óleo em sua produção. São indústrias do setor químico, farmacêutico e de cosméticos, e, mais recentemente, de biocombustíveis. Como fica evidente neste desenho, há dois funis na formação dos preços: a indústria de transformação, com destaque para a Bom Brasil, e os atravessadores, que controlam a comercialização da mamona, particularmente aqueles localizados na praça de Irecê. Na estrutura do mercado, tal como descrita acima, vale enfatizar alguns pontos. Em primeiro lugar, a presença de muitos níveis de atravessadores entre o produtor da mamona em baga e as indústrias processadoras, que fazem com que os preços pagos ao produtor sejam diminuídos para permitir lucros dos vários comerciantes envolvidos. Em segundo lugar, o fato de não haver concorrência efetiva, nem entre os poucos bodegueiros, nem entre os donos dos depósitos nas pequenas cidades, nem entre os atravessadores regionais. Em terceiro lugar, destaca-se o fato de que os adiantamentos em dinheiro ou em espécie são o principal meio 354 de fidelização destas relações. Em quarto lugar, por fim, há o fato de que a formação de preços dá-se, fundamentalmente, na relação entre os poucos atravessadores regionais e as indústrias. Tudo isso com base em uma produção pulverizada e em bases bastante precárias, com fortes restrições à expansão da área ou à melhoria de produtividade. Estes elementos respondem à pergunta sobre o contraste entre o dinamismo das indústrias finais dos derivados, e a situação de fragilidade dos produtores de mamona. A entrada de novos atores: o mercado da mamona depois do PNPB A entrada de novos atores econômicos ligados ao mercado de biodiesel começou em 2003, quando a Brasil Ecodiesel iniciou os contatos com os produtores. Naquele ano, era instituído o PNPB e seus principais mecanismos de funcionamento: o percentual progressivo e garantido de mistura do biodiesel ao diesel de petróleo; o Selo Combustível Social (SCS) e seus incentivos como principal mecanismo de favorecimento à compra de matéria-prima de agricultores familiares; e os leilões de compra como forma de organizar o suprimento de biodiesel. A integração de agricultores nesta cadeia, conforme o previsto nas normas, prosseguiria com a venda da matéria-prima pelos agricultores (a preços previamente acordados), vinculada ao fornecimento, pelas empresas, de serviços de assistência técnica. O desenrolar do processo, entretanto, não se deu como o esperado. De forma geral, as aquisições de mamona para biodiesel ficaram muito abaixo do esperado, como é conhecido. Os novos atores econômicos atuando no mercado desde a instituição do PNPB são as empresas de biodiesel – com destaque, num primeiro momento, para a Brasil Ecodiesel (BED) e, mais recentemente, para a Petrobras Biocombustíveis (PBio) – e seus técnicos diretamente contratados, e as cooperativas, que fazem a intermediação das relações entre os agricultores e as empresas de biodiesel, realizando aquisições e prestando assistência técnica. O desenho a seguir procura esquematizar as mudanças que estes agentes produziram nas estruturas de funcionamento do mercado da mamona. Parte dos agricultores, que antes comercializavam seu produto através dos mecanismos tradicionais, passou a fornecer para as cooperativas ou para as empresas diretamente. A assistência técnica, que é a contrapartida prevista nos contratos de biodiesel, passou a ser realizada por cooperativas conveniadas com as empresas ou por técnicos diretamente contratados pelas empresas. A aquisição de mamona feita pelas empresas de biodiesel originou uma concorrência inédita, fazendo o preço subir a partir de 2006. Em 2007, a BED fez o cadastramento de agricultores, mas de forma apressada e sem critérios bem estabelecidos, o que se revelou pouco efetivo em termos de fidelização e de produção. Àquele momento, não havia sementes suficientes no mercado, e o serviço de assistência técnica foi pouco eficiente, pois empregou técnicos 355 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ... sem qualificação, também contratados às pressas. Naquele ano, a empresa não conseguiu comprar mamona, porque a concorrência local, em reação, ofereceu preço melhor e foi mais ágil no momento das transações. Como resultado, nenhum dos agricultores cadastrados manteve completamente o contrato com a BED. No início de 2009, na Bahia, a PBio se fazia mais presente do que a Brasil Ecodiesel. Nas áreas visitadas no Ceará, ao contrário, a presença desta ainda se mostrava mais consolidada e estável, mas com grande expectativa com a recente entrada da Petrobras. Em 2010, a atuação destas empresas se valia, por um lado, de um aprendizado acumulado nos três anos anteriores e, por outro, deparavase com resistências e com o descrédito herdado dos equívocos ocorridos no período anterior, quando a BED era sinônimo de biodiesel na região. Nas áreas visitadas, foi possível compreender como, concretamente, operava a concorrência entre os compradores do mercado tradicional e os agentes do mercado de biodiesel: além dos contratos e da assistência técnica – que seriam os principais instrumentos para fidelizar o agricultor – no momento da venda, a cooperativa paga o preço de mercado sem descontar as impurezas ou a sacaria utilizada, descontos estes praticados nos canais tradicionais e, muitas vezes, traz a máquina para debulha do grão até a propriedade, poupando trabalho ao agricultor. Ainda assim, muitos agricultores, mesmo cadastrados pelas empresas de biodiesel, mantiveram as vendas para o atravessador, quando este ofereceu preço mais alto. Um dos trunfos destes comerciantes é a reciprocidade que se cria com as transações recorrentes ano após ano, com a prática dos pequenos favores e com os adiantamentos em dinheiro aos agricultores. Mas pesa, também, a agilidade na transação, pois dispõem das informações sobre a produção – valendo-se de uma estrutura ramificada e enraizada no território – e o fato de pagarem em dinheiro vivo no momento do recolhimento, ao passo que os pagamentos feitos pelas empresas de biodiesel tinham um prazo para se efetivar. É importante ressaltar, ainda, que sem- pre houve alguma ambiguidade nas relações entre o mercado tradicional (organizado pelos atravessadores) e o mercado de biodiesel, comportando uma dose de concorrência e outra de complementaridade. Desde os primeiros anos, ocorreram compras das empresas de biodiesel junto aos comerciantes locais, em função das dificuldades de adquirir quantidades suficientes diretamente dos produtores. Nos anos mais recentes, diante do fomento às cooperativas da agricultura familiar por parte da PBio, os comerciantes locais, para manterem sua fatia de comercialização para o mercado de biodiesel, também formalizaram cooperativas.10 Desta forma, as duas estruturas operam concomitantemente no mercado da mamona. O mercado tradicional se mostra ainda vigoroso o suficiente para manter em funcionamento as velhas estruturas, que envolvem, principalmente, os agricultores mais precarizados que, nessa condição, não conseguem abrir mão dos adiantamentos e favores. O segmento organizado pelas empresas de biodiesel, com a Petrobras hoje à frente, consegue, por sua vez, envolver, sobretudo, os agricultores já organizados em sindicatos e cooperativas. Dados obtidos em campo, no primeiro semestre de 2010, mostram que a entrada da PBio no mercado vem corroborando as expectativas iniciais de ampliar as bases dos contratos de biodiesel no mercado da mamona. As cooperativas vêm se capitalizando progressivamente e começam a esboçar alternativas para fazer frente aos mecanismos de fidelização utilizados pelos comerciantes tradicionais: maior agilidade na compra e adiantamento em dinheiro para necessidades imediatas, sob a forma de compras antecipadas. Gradativamente, o lastro oferecido pela PBio também confere maior confiabilidade em relação às cooperativas a ela vinculadas. O número de agricultores mobilizados por essas cooperativas também aumenta significativamente, embora em números absolutos ainda se trate de um universo relativamente pequeno. Finalmente, o número e a qualidade da assistência técnica 10 Vide, por exemplo, o site http://www.copemai.com.br/, da cooperativa fundada pelo conhecido Vicente da Mamona. 356 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay do, com grandes dificuldades no campo da assistência técnica e da capitalização dos agricultores. Vê-se que as limitações quantitativas dos resultados do PNPB no Nordeste, em termos dos contratos de biodiesel e de produção de mamona, estão diretamente relacionadas às estruturas que caracterizam este mercado, e que os elementos que conformam esta estrutura estão concatenados entre si. CONCLUSÕES O objetivo principal da análise era saber se, com a experiência recente do PNPB, estavam sendo modificadas as bases de funcionamento do tradicional mercado da mamona. O estudo realizado no Semiárido permitiu lançar um olhar aprofundado sobre os avanços e as permanências e, sobretudo, entender os fatores que barram as mudanças mais amplas. Pode-se dizer que as mudanças institucionais promovidas pelo PNPB na produção de oleaginosas no Semiárido geraram ganhos aos agricultores que participam do mercado de biodiesel, particularmente em função da concorrência (inédita) pela mamona, que fez elevar os patamares de preço desta matéria-prima. Empregando as categorias a partir das quais se procurou descrever este mercado, é possível afirmar que as regras de troca presentes no mercado foram alteradas de duas maneiras: a concorrência exercida pelas empresas de biodiesel pressionou os preços, produzindo uma mudança que foi sentida de forma generalizada por produtores e comerciantes tradicionais. Os produtores auferiram ganhos maiores; já sobre os comerciantes tradicionais, não é possível saber se tiveram sua margem de lucro deprimida ou se isto foi, simplesmente, repassado para a indústria de transformação. De toda forma, as condições sob as quais a indústria ricinoquímica continua viabilizando suas aquisições – passando pelas formas de manter as redes de fidelização e captação – foram alteradas na medida em que foi necessário incorporar a pressão da concorrência como novo fator na formulação 357 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 também passam por um incremento, importante em termos evolutivos, embora tímido em termos absolutos. Por outro lado, vale ressaltar uma informação recente de que o principal atravessador de Irecê criou uma cooperativa para continuar comercializando com as empresas de biodiesel, o que revela a versatilidade das estratégias dos atores tradicionais para manterem sua força no mercado. Mesmo não tendo atingido as metas em relação à integração de agricultores familiares no Nordeste, nem tendo atingido as expectativas relativas à composição do rol de matérias- primas utilizadas no biodiesel, pode-se dizer que o PNPB desencadeou algumas mudanças importantes no mercado. Para os agricultores, destacam-se alguns elementos inéditos: (a) a criação de uma nova opção de comercialização, diversificando minimamente aquilo que, antes, se restringia aos comerciantes locais; (b) o agricultor passou a receber assistência técnica, ainda que muito precária e incerta; (c) e os contratos monitorados pelas organizações dos agricultores foram introduzidos, o que pode permitir maior estabilidade e proteção contra variações de preços. Junto a isso, a entrada das empresas de biodiesel foi acompanhada de uma razoável recuperação nos preços pagos aos produtores, um fenômeno que não pode ser atribuído, com segurança, somente à maior concorrência, mas que foi, certamente, influenciado por isso. Não se trata, a rigor, de um novo mercado, posto que existe uma convivência entre duas estruturas paralelas – em 2010, a estrutura tradicional era ainda muito maior do que a estrutura montada para a produção do biodiesel. Mas é inegável que novas bases foram lançadas. Bases cuja longevidade e alcance esbarram em alguns constrangimentos: (a) a precariedade dos agricultores e sua dependência dos canais tradicionais de comercialização, restringindo uma mudança ainda maior nas regras de troca; (b) a baixa produtividade e o alto custo da matéria-prima para as indústrias de biodiesel; (c) e a fragilidade das estruturas de governança criadas para melhorar essas condições de competitividade e viabilizar o merca- CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ... de suas estratégias de aquisição e preços. O outro aspecto novo, relativo às regras de troca no mercado da mamona, diz respeito às formas pelas quais se define quem comercializa com quem. Os mecanismos de fidelização do fornecedor no mercado convencional repousam, basicamente, no constante endividamento econômico e moral dos agricultores em relação aos comerciantes. O mercado de biodiesel introduz um novo mecanismo de fidelização, que consiste no contrato, com previsão dos serviços e insumos que precedem a colheita e com regras para definição do preço a ser pago na entrega do produto. Nesse caso, trata-se, também, de uma mudança parcial, que não atinge todos os produtores, mas que coloca no horizonte dos atores uma nova possibilidade ou uma nova referência em termos de organização produtiva e comercial. Assim, é possível afirmar que as regras de troca deixaram de ser ditadas, exclusivamente, pelo grupo de atravessadores locais e regionais, e passaram a incorporar novas demandas e estratégias alavancadas a partir do PNPB. Em relação às formas de governança presentes no mercado da mamona no Semiárido, há uma ambivalência nos seguintes termos: inaugura-se uma forma de governança radicalmente nova no contexto analisado, se comparada às práticas tradicionais. O mercado da mamona, que se organizava com base em um único canal de comercialização do produto – afunilado, na oferta, pela concentração nos poucos grandes cerealistas regionais, e, na demanda, pelas poucas empresas do segmento da indústria ricinoquímica – passa a experimentar, com a formação do mercado de biodiesel, impulsionado pelo PNPB, uma mudança significativa, ainda que quantitativamente restrita. Além da diversificação das opções de venda da matéria-prima, a entrada em cena de empresas como a BED e a PBio trouxe novas bases contratuais para o mercado, com a possibilidade – inédita – de acessar serviços como a assistência técnica, com a garantia de preço e com o monitoramento dos contratos por organizações de representação. Por isso, a mudança não se restringe a uma simples transferência da mesma relação de dependência para com outros agentes econômicos. Por outro lado, as formas tradicionais de governança permanecem dominantes, o que é claramente indicado pelo fato de a indústria ricinoquímica permanecer a principal compradora de mamona. Mesmo que se vislumbre o potencial de multiplicação dos contratos para biodiesel, as formas de governança inauguradas no novo mercado não são, ainda, suficientes para transpor amarras tradicionais que envolvem: a necessidade de antecipação da venda no mercado local (“venda na folha”), como forma de obter adiantamentos em dinheiro; os fortes laços sociais nos quais estão imersas estas transações; e a agilidade das formas tradicionais de financiamento, que reforçam a fidelização e as relações de dependência. Além da relação de compra e venda, e para além da esfera local, os esforços, no sentido de prover a agricultura familiar com serviços de assistência técnica, podem ser vistos como ensaios de novas formas de governança, que envolvem instituições públicas de apoio. Os resultados, entretanto, são ainda muito tímidos. O caráter parcial da mudança experimentada nas formas de governança não diz respeito, portanto, somente ao número de agricultores afetados, mas, também, ao fato de que, até aqui, atingem, apenas, uma parte das estruturas sociais do mercado. No que tange aos direitos de propriedade, há uma mudança qualitativamente significativa: a partir do PNPB, a condição de agricultor familiar passa a ser definidora de direitos de propriedade, já que se determinam condições de compra que possibilitam que este segmento capture ganhos que antes eram apropriados pelos atravessadores locais. Por outro lado, em função do alcance restrito destes novos mecanismos de compra a uma pequena parcela da agricultura familiar, esta mudança é mais um potencial cuja efetividade dependerá da consecução do conjunto de ações em curso. Isso significa que o contraste entre o caráter desconcentrado da produção e a apropriação altamente concentrada de lucros nas regiões produtoras permanece como estrutura geral. No Ceará, a propriedade concentrada da ter- 358 ra, que marginaliza grande parte dos agricultores, e o conflito entre o uso da terra para pecuária ou para cultivo da mamona configuram, também, bloqueios não só à expansão da cultura, mas à possibilidade de auferir ganhos com o produto. Finalmente, em relação às concepções de controle – que, conforme a abordagem político-cultural dos mercados, diz respeito à maneira como os atores usam os recursos de que dispõem e como organizam, internamente, a produção e as relações de trabalho – não foram identificadas alterações importantes porque, de modo geral, as estratégias de condução das unidades produtivas permanecem estruturadas segundo os mesmos moldes de antes do PNPB. Em função do caráter recente e pontual dos serviços técnicos de apoio à produção, pouca mudança houve até aqui em relação ao emprego de tecnologias e à forma como são manejados os recursos naturais envolvidos na produção. Da mesma forma, os ganhos propiciados pelas mudanças recentes também não afetaram, ainda, as expectativas de alocação de trabalho nas famílias de agricultores. Há um potencial de expansão do número de agricultores com contratos de biodiesel, assim como há um grande potencial de aumento de produtividade. Os investimentos que vêm sendo feitos pela PBio são um indicativo de que é razoável esperar um incremento futuro do número de agricultores contratados. Contudo, as estratégias de condução da maioria das unidades produtivas ainda permanecem estruturadas segundo os moldes anteriores ao PNPB; a produção da mamona vem aumentando, mas, ainda, a patamares bastante baixos,11 pois os entraves estruturais à produção não foram alterados; e a maior parte dos produtores permanece enredada nos mecanismos de fidelização tradicionais. Tais permanências podem ser compreendidas, em primeiro lugar, como resultantes dos constrangimentos que vão além do que as empresas de biodiesel podem governar, pois têm caráter mais estrutural. Este é o caso, destacadamente, da baixa 11 Conforme dados da CONAB – Série Histórica. Disponível em http://www.conab.gov.br/conteudos.php?a=1252&t=, consultada em novembro de 2012. disponibilidade de técnicos com boa formação para serem contratados para atuar junto aos agricultores. É o caso da escassez de terras no caso do Ceará. E é o caso da dificuldade em alocar mão de obra adicional em novas áreas de produção de mamona, tanto no Ceará como na Bahia. Portanto, é possível afirmar que ações implementadas até o momento não têm sido suficientes para alterar as estruturas produtivas no sentido de conferir competitividade e autonomia aos produtores de mamona, de forma que esta produção ganhe um dinamismo condizente com os mercados finais aos quais se destina. É improvável que fossem, considerando que elas ocorrem relativamente isoladas de outras iniciativas voltadas para este público específico e se voltam, exclusivamente, à cultura da mamona12 – o queê remete a uma necessidade de revisão da estratégia mais geral do PNPB que, portanto, está além da governabilidade das empresas. Ao mesmo tempo, é preciso refletir sobre outras duas questões que dizem respeito ao caráter da possível expansão dos contratos das empresas de biodiesel junto aos agricultores familiares. A questão quantitativa da disponibilidade de mamona no mercado de biodiesel – que ainda é uma incógnita e depende da superação dos constrangimentos discutidos acima – já foi central para a viabilidade do PNPB no Nordeste ou, pelo menos, para sustentação do seu conteúdo social. Com as alterações na Instrução Normativa, que regula o SCS, a baixa disponibilidade de matéria-prima deixou de ser um entrave para manutenção do selo, porque passaram a ser contabilizados os diversos gastos com apoio à produção.13 Ao mesmo tempo, o problema da incompatibilidade entre os preços elevados da mamona e os custos da indústria de biodiesel parece ter sido solucionado pela desvinculação entre aquilo que as empresas gas12 A atenção exclusiva à mamona era justificada, nos primeiros anos, em função de ser esta a matéria-prima que seria convertida em biodiesel. Hoje, havendo a desvinculação entre os gastos que empresas efetuam para manutenção do SCS e a conversão da matéria-prima em biodiesel, torna-se mais difícil justificar esta atenção exclusiva a um único cultivo. 13 Ver Instrução Normativa 01 do Ministério do Desenvolvimento Agrário, publicada no D.O.U. em 25 de fevereiro de 2009 (páginas 71-73). 359 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ... tam na “rubrica” SCS e o uso da matéria-prima BIBLIOGRAFIA originada na agricultura familiar na produção de Ricardo. Uma abordagem político-cultural biodiesel. A aceitação da prática de adquirir ABRAMOVAY, dos mercados de biocombustíveis no Brasil. 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Brasília: Conab, v. 17, n.10, 2008. é relevante o fato de, nos últimos anos, a PBio ser, ———. Indicadores da Agropecuária. Brasília: Conab, v. praticamente, a única empresa implementando as 16, n.10, 2007. ações voltadas para a inclusão dos agricultores po- ———. Série Histórica. Disponível em http:// www.conab.gov.br/conteudos.php?a=1252&t=. Acesso bres e o fato de sua presença decorrer de uma deci- em novembro 2012. são política do Governo Federal, com tudo o que CRUZ, Patrick. Indústrias descartam uso da mamona. Valor Econômico, 13/08/2008. isso implica em termos de riscos inerentes às muDAMASCENO, N. P.; KHAN, A. S.; ALVES, L. M. danças nas coalizões políticas em posse do Estado. Potencialidade da mamona como fonte de produção de A participação da agricultura familiar pobre biodiesel. XLVI CONGRESSO SOBER. Rio Branco, 2008. DESER – Conjuntura Agrícola - Boletim Eletrônico, n.161, no dinâmico mercado de energia vislumbrada pelo set/2007. PNPB, portanto, carece de uma profunda ELLIS, Frank. Peasant Economics – Farm Households Agrarian Development. Cambridge: Cambridge reformulação de seus princípios e suas estratégias. and University Press, 1988. Recebido para publicação em 04 de janeiro de 2013 Aceito em 26 de março de 2013 FERREIRA, M. S. L.; Castro, C. R.; Prado, F. M. V. Organização e capacitação de agricultores familiares na cadeia produtiva da mamona no semi-árido. II CONGRESSO BRASILEIRO DE MAMONA. 2006. FLIGSTEIN, Neil. The architecture of markets. New Jersey: Princeton University Press, 2001. FREITAS, S.; FREDO, Carlos E. Biodiesel à base de óleo de mamona: algumas considerações. Informações Econômicas, São Paulo, v.35, n.1, jan. 2005. 360 Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto, Ricardo Abramovay GRANOVETTER, Mark. Economic action and social structure: the problem of embeddedness. American Journal of Sociology, 91, p. 481-510, 1985. GTZ. Relatório qualitativo – Bahia. Brasília: GTZ. 2008. (Mimeo). FAVARETO, Arilson; KAWAMURA, Yumi; DINIZ, João Fabio. Para uma socioeconomia dos biocombustiveis – três polêmicas internacionais e uma avaliação do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel. Paper apresentado no ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. Caxambu/ MG, 2008. KAWAMURA, Yumi. Por que é difícil criar mercados sustentáveis?: a construção social do mercado brasileiro de biodiesel. Tese de Doutorado. Santo André/SP: Universidade Federal do ABC, 2012. MACHADO, R. S. et al. Análise dos problemas do cultivo e produtividade da mamona (Ricinus comunnis) no município de Belo Jardim-PE. II CONGRESSO BRASILEIRO DE MAMONA. Salvador, Bahia. 2006. NOGUEIRA, Luiz A. H. O biodiesel na hora da verdade. O Estado de São Paulo, 7-2-2008. SANTOS, Roberio F.; QUEIROGA, Vicente. Levantamento dos principais problemas da produção de mamona em uma amostra de produtores familiares do Nordeste. III CONGRESSO BRASILEIRO DE MAMONA. Salvador, Bahia. 2008. ———; KOURI, Joffre. 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SOCIAL STRUCTURES IN THE SEMI-ARID REGION AND THE BIODIESEL MARKET STRUCTURES SOCIALES DANS LA RÉGION SEMI ARIDE ET LE MARCHÉ DU BIODIESEL Yumi Kawamura Gonçalves Arilson Favareto Ricardo Abramovay Yumi Kawamura Gonçalves Arilson Favareto Ricardo Abramovay This article provides an analysis of the processes favored by the incentives and investments derived from the National Program for the Production and Use of Biodiesel (PNPB) in the semi-arid region of northeastern Brazil. Due to the importance of castor bean crops in the region and to PNPB’s wager on castor bean oil as an opportunity for family farmers to take part in the biodiesel market, the main goal of this study is to understand the structure and dynamics of the castor bean market, the changes that PNPB’s incentives have brought about, and the possible obstacles to the processes consistent with the program’s social goals. The analysis has shown that current actions have not been enough to alter the social structures linked to poverty and to poor farmers’ dependence, and also that business dynamics mean significant uncertainties regarding the continuity of current processes. Le travail que nous présentons ici consiste en l’analyse des processus favorisés par les encouragements et les investissements dérivés du Programme National de Production et d’Utilisation de Biodiesel (PNPB) dans la région semi-aride du Nord-est du pays. En raison de l’importance de la production de ricin dans la région et du pari du PNPB que cet oléagineux peut permettre l’inclusion de l’agriculture familiale dans le marché du biodiesel, l’objectif principal de cette étude est de comprendre la structure et la dynamique du marché du ricin, les changements apportés jusqu’à présent en fonction des encouragements du PNPB et les obstacles possibles aux processus liés aux objectifs sociaux du programme. L’analyse a démontré que les actions en cours n’ont pas suffi à modifier les structures sociales associées à la pauvreté et à la dépendance des agriculteurs pauvres et que la dynamique des entreprises fait preuve d’importantes incertitudes quant à la continuité des processus en cours. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Biodiesel. Semi-arid. Family farming. MOTS-CLÉS: Biodiesel. Région semi-aride. Agriculture familiale. Ricin. Sociologie économique. Castor beans. Economic sociology. Yumi Kawamura Gonçalves – Doutora em Energia. Pesquisadora na área de Sociologia Econômica na Universidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas, em temas relativos ao planejamento e desenvolvimento territorial, conflitos ambientais, políticas públicas e incentivos para o desenvolvimento rural sustentável. Realiza pesquisa e consultoria para órgãos de governo nos temas mencionados. Publicações recentes: Mobilizing for democracy. 1. ed. London: Zed books, 2010; Redes e estruturas sociais no semi-árido nordestino: desafios do Programa Nacional de Produção e uso de Biodiesel. In: XXXIII Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2009, Caxambu. XXXIII Encontro Anual da ANPOCS, 2009. Arilson Favareto – Doutor em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo. Professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde coordena o Bacharelado em Ciências e Humanidades, e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, onde coordena o Núcleo Territórios e Conflitos Socioambientais. Tem realizado pesquisas na área de sociologia econômica e do desenvolvimento. É autor do livro Paradigmas do desenvolvimento rural em questão e de vários artigos sobre agricultura, políticas públicas e desenvolvimento territorial. Ricardo Abramovay – Doutor em Ciência Econômica. Professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq e coordenador do Projeto Temático FAPESP sobre Impactos Socioeconômicos das Mudanças Climáticas no Brasil. Publicações recentes: Muito além da economia verde. Ed. Planeta Sustentável, São Paulo, 2012; Desigualdades e limites deveriam estar no centro da Rio + 20. Estudos Avançados, v. 26, p. 21-33, 2012; Urban evolution in Sao Paulo: employment growth and industrial location. Regional Science Policy and Practice, v. 4, p. 447-477, 2012. 362 João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR POR EXDETENTOS CATADORES DE LIXO1 João Bosco Feitosa dos Santos* Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel** Tereza Glaucia Rocha Matos*** INTRODUÇÃO As transformações do trabalho ocorridas nas últimas décadas interferem intensamente na quantidade e qualidade do emprego formal que, considerado um “suporte privilegiado de inscrição na estrutura social” (Santos, 2000, p. 49), garante a “filiação” (Castel, 1998), um “lugar social” no sentido a que Gaulejac (1991) se refere como meta principal do homem contemporâneo. A condição de trabalhador formal não só possibilita inserção social como, também, reforça a identidade individual e social por meio do exercício de determinadas atividades e do * Doutor em Sociologia. Professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará – UECE no curso de Ciências Sociais e no Mestrado de Políticas Públicas e Sociedade. Rua Jabaquara, 344 Castelão. Cep: 60.861-200. Fortaleza – Ceará – Brasil. [email protected] ** Doutora em Psicologia Experimental. Professora titular da Universidade de Fortaleza e adjunta da Universidade Estadual do Ceará. [email protected] *** Doutora em Psicologia. Professora na graduação e no programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. [email protected] 1 Este texto é parte de pesquisa “Saúde, Trabalho e Identidade nos Coletores de Lixo da Cidade de Fortaleza” edital CNPq/FUNCAP, Proc. nº 09100044-0 - Edital nº 002/2009 – Programa de Pesquisa para o SUS: gestão compartilhada em saúde PPSUS. convívio com relações sociais que constituem o “modo de ser” dos indivíduos (Sainsaulieu, 1977), qualificando, assim, os pares como iguais, sem desconsiderar as características específicas de cada um. Portanto, a atividade laboral pode conferir valor social, reproduzindo o imaginário coletivo de valorização moral de ser trabalhador. Na impossibilidade de um emprego formal, há indivíduos que buscam formas alternativas de sobrevivência pelo trabalho informal, que nem sempre permitem viver com dignidade. Um exemplo desse tipo de “trabalho atípico” (Vasapollo, 2005) e informal é a catação daquilo que a sociedade produz em larga escala e rejeita: o lixo, refugo do consumo na era da descartabilidade. Na verdade, a catação de recicláveis nas ruas das grandes cidades é uma ocupação informal que desafia a dignidade humana. Reféns do desemprego e, por vezes, do discurso ambientalista, esses refugos humanos recorrem à catação como forma de sobrevivência e inclusão. O surgimento de indústrias de reciclagem, amparadas na descoberta do lixo como potencial gerador de lucros e favorecidas pelo crescente dis- 377 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 O objetivo deste trabalho é refletir e compreender como catadores de lixo ex-detentos de Fortaleza reconstituem a identidade de trabalhador com base no trabalho precarizado e estigmatizado socialmente. Foram realizados pesquisa bibliográfico-documental e estudo de inspiração etnográfica, tendo como ferramentas a observação direta e entrevistas semiestruturadas. Os resultados apontam para condições precárias de trabalho e conflitos com o “deposeiro” (dono do depósito) que explora os catadores em todos os âmbitos. Vistos pela população como vagabundos, perigosos e sujos, a sua condição de trabalho e de vida é permeada por exploração, conflito e preconceito. As narrativas desses reciclados pela justiça indicam forte identificação com o refugo que coletam. Na busca da reinserção social e reconstrução de identidades, alguns admitiram práticas ilícitas ou recaídas, demonstrando a fragilidade do sistema, tentando reciclá-los e incluí-los precariamente. PALAVRAS-CHAVE: Trabalho. Identidade. Precarização. Catadores de lixo. Ex-detentos. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ... curso ambientalista, tornou possível o crescimento dessa categoria de trabalhador informal, há poucos anos bastante inexpressiva e, hoje, constituída por trabalhadores rejeitados pela lógica do capital: o catador de lixo nas ruas dos centros urbanos. Neste texto, procura-se privilegiar um fenômeno identificado em um dos depósitos de lixo estudados no desenvolvimento de duas pesquisas sobre os catadores de lixo das ruas da cidade de Fortaleza: a grande incidência de ex-presidiários entre os catadores. O depósito estudado situase no bairro Tancredo Neves, um dos mais pobres de Fortaleza, e o dono do referido depósito é conhecido por abrigar, entre seus catadores, uma grande quantidade de ex-detentos. Este grupo de trabalhadores, em busca de sua reinserção no mercado de trabalho, instigou a elaboração desta reflexão sobre trabalho e identidade. Assim, buscouse averiguar: (1) se esses trabalhadores, provenientes do sistema prisional, percebem a atividade de catar lixo como uma forma de inclusão no mundo do trabalho; (2) como eles se percebem nesse processo de reinserção; e (3) qual a influência de sua condição de ex-detento na reconstrução da sua identidade de trabalhador. No que se refere às condições de trabalho, procurou-se observar a organização e as condições a que estão submetidos os trabalhadores desse grupo específico. Com isso, buscou-se refletir sobre a repercussão do trabalho com dejetos sociais e sobre a reinserção de ex-presidiários, estigmatizados tanto pela sociedade como por eles mesmos, como refugos humanos da sociedade. coleta em suas atividades pelas ruas da cidade, bem como na dinâmica de chegada e negociação da venda do material para o depósito. Dois deles foram acompanhados durante o dia em duas oportunidades diferentes, e outro durante a noite. As observações no depósito procuraram verificar a organização do trabalho, da pesagem e venda dos materiais coletados, do recebimento pelo material, bem como as relações interpessoais estabelecidas entre os catadores e entre eles e o deposeiro. Ressalte-se, ainda, que foram realizados contatos informais com catadores por ocasião das sessões de observação. As observações e comentários foram anotados e sistematizados no diário de campo. No depósito, foram realizadas, também, entrevistas semiestruturadas com outros catadores, num total de cinco entrevistas. Essas entrevistas foram gravadas (com o consentimento dos catadores) e, posteriormente, transcritas para a realização das análises. Para subsidiar quantitativamente a situação do catador em Fortaleza, recorreu-se ao Diagnóstico da Situação Socioeconômica e Cultural dos Catadores de Materiais Recicláveis de Fortaleza, realizado pela Prefeitura Municipal (2006), que apresenta um perfil dos trabalhadores. É importante salientar que o relatório da Prefeitura reflete a realidade dos catadores em geral, por isso seus resultados foram utilizados para demonstrar a realidade ampliada do trabalho desses indivíduos. Na análise das observações e entrevistas, foram realizadas leituras flutuantes e aprofundadas das falas e diários de campo. Os conteúdos foram submetidos à separação temática para reunir as categoriPERCURSO METODOLÓGICO as de análise, organizadas à luz de Bardin (1977), e analisadas com suporte em um diálogo aproximado Esta análise tem como subsídio metodológico com a literatura revisada para a pesquisa. procedimentos qualitativos de pesquisa em que foram privilegiadas técnicas de observação e entrevista durante um período de dois anos. Primeiramen- A RECICLAGEM COMO ALTERNATIVA AO te, foram realizadas observações e entrevistas com o DESPERDÍCIO dono do depósito, aqui chamado de “deposeiro”. Em seguida, com inspiração nos estudos A produção de lixo está intimamente assoetnográficos, foram observados e acompanhados três ciada ao forte estímulo ao consumo e à brevidade catadores que realizavam roteiros diferenciados de dos ciclos cada vez mais efêmeros de produção, 378 consumo e desperdício. Layrargues (2002) chama a atenção para a obsolescência planejada como incentivadora do consumo e da produção de resíduos, na medida em que os produtos são concebidos com vida útil que possibilite constante renovação, decorrendo em maior produção e novo consumo e, consequentemente, mais lixo. A percepção de que o conjunto de atividades humanas é o principal fator de degradação do meio ambiente suscita as mais diversas mobilizações, bem como posicionamentos diferentes em relação ao complexo problema. Para as empresas, a proteção ao meio ambiente não pode desviar o foco da produção e do auferimento de lucros. A posição dos grupos empresariais e dos economistas, que lhes dão suporte, é de que é possível chegar a um ponto ideal de desenvolvimento sustentável. Assim, muito embora o meio ambiente seja colocado em pauta, defendem seu ponto de vista, preconizando taxas de crescimento financeiro como indicadores únicos de seus argumentos. Se, há alguns anos, muitas empresas eram recalcitrantes na adesão ao desenvolvimento sustentável, hoje, cada vez mais, percebem os benefícios financeiros da adesão a métodos produtivos ambientalmente corretos. Tais benefícios associam a reciclagem à agregação de valor à imagem da empresa, um bem intangível, mas com repercussões financeiras reais (Meireles & Santos, 2008, p. 160-162). Mesmo com o discurso da reciclagem como alternativa de lucro para empresários, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2000), o Brasil produzia, diariamente, 228 mil toneladas de resíduos, porém, dessa quantidade, apenas 148 mil toneladas eram coletadas. Desse enorme volume, somente 2,8% do lixo brasileiro chega a ser reciclado, indo 59% para os lixões. Com efeito, as tecnologias de reciclagem avançaram sobremaneira, contribuindo para um mercado que movimenta grande volume de capital. Trata-se de um processo produtivo que conta com o apoio dos fornecedores da matéria-prima, dos consumidores e produtores de resíduos. Reitere-se o fato de que, nesse processo, o interesse econômico tem prioridade em detrimento do interesse ambiental. É aí que, muitas vezes, conforme defende Layrargues (2002), a reciclagem escamoteia seu cinismo. Esse autor denuncia que a propalada política dos 3 Rs (reduzir, reaproveitar e reciclar) só é hegemonicamente valorizada em seu terceiro aspecto, a reciclagem, relegando-se os dois primeiros, a redução e a reutilização, a um plano inferior. Assim, a valorização da reciclagem pelo sistema de produção de objetos e obsolescência planejada é uma forma de absorver os elementos compatíveis do movimento de proteção ambiental, sem abandonar – ao contrário, incrementando – a lógica de produção e consumo exacerbados. Apesar da existência de um mercado de reciclagem em pleno desenvolvimento no Brasil, movimentando altas cifras, grande parte do volume de material processado nas indústrias é colhido (casqueirado ou catado) por sujeitos que veem, nos primeiros elos da cadeia produtiva de transformação de resíduos, a alternativa, ainda que deveras precária, à falta de trabalho. Segundo dados do Banco Mundial, estima-se que 1% da população urbana mundial sobreviva da coleta, separação e venda de materiais recicláveis, seja catando nas ruas, seja fazendo triagem, ou, ainda, do trabalho direto em lixões (Bonner, 2008). O Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR, 2009) estima que haja cerca de dois milhões de catadores no País, mas, desse total, apenas 200 mil fazem parte do Movimento. PERFIL DO CATADOR DA CIDADE DE FORTALEZA Segundo pesquisa da Prefeitura de Fortaleza (2006), presume-se a presença de mais de oito mil catadores de resíduos sólidos recicláveis realizando seus trabalhos em uma cidade que produz por volta de três mil toneladas de lixo por dia. Esses trabalhadores organizam-se, essencialmente, sob duas formas: vendendo seu material para deposeiros, donos de depósitos de sucata e materiais recicláveis, ou sob o modelo de associações 379 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ... ou cooperativas, em que os próprios catadores se organizam autonomamente. Entre as formas associativas, há movimentos de congregação de grupos de cooperados, formando redes de associações (inclusive no plano continental e global), que discutem questões acerca do trabalho desses homens e mulheres, ampliando o poder de luta desses personagens e atuando fortemente no aumento da sua autoestima. Os resultados do diagnóstico das condições socioeconômicas dos catadores da Capital cearense permitem traçar um perfil desses trabalhadores. A pesquisa, realizada por meio de questionários aplicados a catadores nas ruas de Fortaleza, envolveu 906 pessoas. Desses, 24,2% eram mulheres e 75,6%, homens. A faixa etária dos entrevistados foi de 8 a mais de 60 anos, apresentando dois picos: 27,9 % dos catadores estavam na faixa dos 18 a 25 anos e 23,6%, de 31 e 40 anos. Chama a atenção o baixo nível de escolaridade entre os catadores: 95% deles concluíram, no máximo, o ensino fundamental, 22,6% são analfabetos e 90,9% não estão estudando, o que é alarmante, notadamente por se tratar de uma população jovem. Quanto à necessidade de trabalhar, 68% alegaram como motivo o fato de terem parado de estudar. No que diz respeito à renda familiar, 71,4% dos catadores responderam que a principal renda da casa é de sua responsabilidade. O nível de empobrecimento dessa população de trabalhadores é ressaltado pelo expressivo percentual de 11,3% de catadores que obtêm alimento no lixo, reforçando a conclusão de que a catação surge como alternativa extrema à falta de meios de sobrevivência. O alto índice de catadores que dizem ter se iniciado nas atividades da catação por falta de emprego (82,8%) confirma a hipótese de que esses indivíduos, na maioria das vezes, se inserem nessa atividade como alternativa ao desemprego. Dessa forma, são emblemáticas as falas dos catadores entrevistados, demonstrando ser a atividade de catação a única opção pela falta de possibilidade de escolha de um emprego formal. Para eles, o lixo é apontado como última opção, o que difere da ideia dos empresários, que priorizam o lucro, en- quanto os trabalhadores enxergam a sobrevivência e a inserção no mundo do trabalho, mesmo que precariamente: “Vim pra catação porque não tinha outra coisa. Emprego hoje em dia não tem mais. Aí a catação foi a saída que eu encontrei pra continuar vivendo, né?”, afirmou um catador do depósito, com 23 anos de idade. No contexto geral dos catadores de Fortaleza, tem-se que o carrinho com o qual trabalham, geralmente, pertence ao deposeiro ou sucateiro (58,6%). Apenas 16% trabalham com carrinho próprio e 2,5% trabalham com carrinhos de cooperativa. Em relação ao comprador do material recolhido, 91% vendem-no para deposeiros ou sucateiros e apenas 7,9% vendem-no para cooperativas ou associações. Esses índices permitem inferir a grande dependência dos catadores para com os sucateiros ou deposeiros, que lhes emprestam carrinhos e aplicam preços inferiores na compra do material aos aplicados nas cooperativas. A intermediação de atravessadores, como os deposeiros, advém da necessidade de acúmulo de material em uma quantidade suficiente para vender diretamente à indústria ou a atravessadores maiores. Assim, a relação com os deposeiros fazse imperativa, porquanto o catador, sozinho, não tem como juntar grande quantidade de material, além de deter pouco conhecimento dos aspectos logísticos da cadeia de reciclagem (Medeiros & Macêdo, 2007, p. 80). Os deposeiros, portanto, estabelecem os preços e, muitas vezes, submetem o catador à sua dependência em troca do uso do carrinho, considerado, entre os catadores, um objeto conferidor de status e de difícil obtenção, dado o alto custo para o seu padrão de vida. Resta estabelecida, desta forma, uma relação autoritária, que limita a possibilidade de venda do catador para outros depósitos, submetendo-se aos preços e condições impostos pelo deposeiro. Daí é que vários autores que diagnosticam o referido problema (Medeiros & Macêdo, 2007; Wilson et al, 2006; Medina, 2005) propõem o associativismo como alternativa à dependência ante o deposeiro. Indagados sobre quais são as perspectivas pessoais, 6,7% creem que continuarão catando 380 materiais recicláveis; 51,9% responderam que vislumbram deixar a catação e exercer outra atividade laboral. Esses dados indicam o grau de insatisfação dessas pessoas com o seu trabalho degradante. Os números permitem delinear um perfil da categoria, marcada pela pobreza, pela baixa escolaridade, pela falta de opções de trabalho. São indivíduos que desenvolvem uma atividade extenuante, em razão das longas distâncias e do elevado peso transportado por tração própria e sobre os quais recai forte estigma social. CONDIÇÕES DE TRABALHO PRECARIZADAS E PRECARIZANTES reciclável e, embora não se tenha um número exato, pelo menos 15 são ex-detentos, que chegam lá por indicações de amigos de prisão. Percebe-se que as condições de trabalho são extremamente insalubres e perigosas. Diferente de outros depósitos, a higiene inexiste, não há sequer um banco para os catadores sentarem-se, e, após rotas de, em média 20 km por dia, eles têm de separar o material, pesar e vender ao deposeiro ao preço estimado por este que, em razão do empréstimo do carrinho de coleta, geralmente mantém uma posição autoritária suficiente para não causar reclamações. Observa-se que esses trabalhadores já conviveram com situações de precariedade no trabalho anteriores à experiência na catação, refletindo implicações diretas na inserção desses sujeitos no universo da catação. De acordo com Alves (2007), a precariedade já é uma condição socioestrutural característica do trabalho daqueles que vendem a força de trabalho e que estão alheios ao controle dos meios de produção. Dessa forma, a precarização é um fenômeno que aprofunda ou repõe a condição de precariedade do trabalhador, diluindo alguns benefícios trabalhistas conquistados pelos trabalhadores ao longo do século XX. Em suma, o autor compreende precarização como processo e precariedade como um estado, no contexto sociometabólico do capital. Na categoria profissional estudada, de catadores ex-presidiários, é possível notar a existência de um estado de precariedade anterior ao trabalho da catação, caracterizado pela combinação de fatores – que ganha dinâmica própria em cada caso – tais como pobreza, baixa escolarização, trabalho precoce, experiência em trabalhos informais, participação em delitos e contravenções, prisões ou reclusões passageiras e retorno ao trabalho. Essas experiências não conferem estabilidade nem proporcionam melhor ocupação posteriormente. A observação direta do local de trabalho dos catadores, incluindo as rotas pela cidade, e as entrevistas semiestruturadas permitiram refletir mais detidamente sobre as condições de trabalho a que esses indivíduos estão submetidos, além de verificar que a precarização associada à catação é precedida de condições de vida já precárias. Assim, a abordagem acerca das histórias de trabalho dos catadores aponta remissões ao ingresso precoce no mundo do trabalho informal, ainda durante a infância ou a adolescência, que, muitas vezes, impediu o acesso regular aos estudos. Já no início da vida, o trabalho surge como necessidade de manutenção básica. O depósito selecionado para subsidiar nossa reflexão situa-se num bairro de periferia de Fortaleza, em terreno de 28m por 33m com um muro de 3m. No interior, existe uma espécie de cômodo de tijolo aparente e coberto, que o deposeiro considera seu escritório. Não há banheiro, e os catadores contam, apenas, com uma torneira no terreno, onde lavam os materiais e enchem as garrafas pet para beberem no percurso de coleta. Foi observada a presença de duas mulheres, que ficam no depósito, auxiliando o deposeiro, mas não se consideram catadoras. O número de catadores Os “pequenos delitos” varia conforme o dia, já que não há uma constância na frequência. Segundo o deposeiro, há cerca Segundo alguns catadores, há um tráfico de de 25 catadores diariamente entregando material drogas no local, e o próprio deposeiro costuma 381 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 pagar com crack alguns materiais coletados. Nenhum catador, porém, assumiu receber pagamento com a droga ou mesmo afirmou o vício. Esse discurso sempre se voltava para a acusação de outrem. Mas o próprio deposeiro afirmou que muitos catadores, após receberem pelo material coletado, se dirigem a um “ponto” de drogas próximo ao depósito. O fato é que as condições de insalubridade e periculosidade extremas, bem como a relação conflituosa com o patrão/deposeiro, testemunham um estado de precarização exacerbado nesse ambiente, que contribui, negativamente, para uma reinserção social e profissional dos trabalhadores. Nesse depósito, reproduzem-se a conflitualidade e a violência na organização do trabalho, de modo que as práticas gerenciais de desmando e autoritarismo nada contribuem para a constituição de uma identidade positiva de trabalhador. Daí, possivelmente, a constatação de que é recorrente a “recaída” - termo utilizado para demonstrar pequenos golpes que os catadores costumam praticar em transeuntes ou residências, quando têm chance de fazê-lo. Essas ações provam que essa atividade em cenário degradante nada pode contribuir para a formação de um “novo” trabalhador. A reinserção social pelo trabalho Por todas as sujeições aos desmandos do deposeiro, a catação de materiais recicláveis é posta por alguns entrevistados como última opção, após todas as buscas por trabalho, no contexto da “nova morfologia do trabalho” (Antunes, 2005). Neste contexto, se a vida, desde o início, não favorece um estudo de qualidade, se a necessidade de sobrevivência é um impedimento para dedicação exclusiva aos estudos, se a precariedade das condições de vida insiste em diminuir a qualificação, o ânimo e, sobretudo, o acesso à formação e a empregos de qualidade, só resta se concordar com o catador entrevistado, quando desabafou: “Eu sonhava em ser alguém na vida, né. Em ser um bombeiro, um doutor... mas não tive chance, fazer o quê né!?” (Catador, 38 anos). Mesmo considerando o sonho parte da existência, sua realização envolve fatores que nem sempre dependem da teimosia das pessoas em realizá-los. De fato, a catação surge na exiguidade de alternativas. Assim, o que se pode observar é a retroalimentação de um ciclo que se inicia em um estado de precariedade corrente e que, com o trabalho de catação, é acentuado por estar associado a uma atividade que, por sua vez, aumenta ainda mais a precariedade. É obvio que não se pode generalizar a situação a todos os catadores, trata-se de uma tipificação ideal. Destarte, pode-se tipificar a catação como atividade mediadora entre dois estados de precariedade a ela associados e que tem características que transpõem o aspecto material. As falas dos catadores entrevistados corroboram os dados do diagnóstico da Prefeitura de Fortaleza (2006) acerca da necessidade de sobrevivência como motivação imediata para o início na atividade de catação, dentro de um contexto de vida marcado por uma trajetória instável. A precariedade da vida os levou a cometer delitos e, por conseguinte, a serem expurgados do meio social. Na cadeia, são tratados como dejetos humanos em processo de ‘reciclagem’; ao saírem, não lhes são ofertadas políticas eficientes que possibilitem a inclusão tanto no mercado quanto na vida social. Nesta pesquisa e na realizada pela Prefeitura, foram citados fatores motivacionais imediatos de ingresso na atividade de catação como a inexistência de patrão, a flexibilidade da jornada de trabalho e a liberdade decorrente dessas características. Todavia, estes se afiguram como fatores secundários, não narrados pelos catadores como um ato motor inicial, senão como uma vantagem posteriormente descoberta. Há, portanto, que ser salientado que, na condição de ex-presidiários, a busca pela catação é uma alternativa importante, também, pela possibilidade de ganho de dinheiro sem a burocracia decorrente de um emprego formal, nos quais, muitas vezes, eles são barrados antes de assinarem a carteira de trabalho por terem sido ex-detentos. Apesar das vantagens citadas pelos catadores, eles narram, também, como desvantagem, a 382 João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos denota uma perenidade da precariedade pretérita ao trabalho e seu exacerbamento no ofício de catador. Vê-se, portanto, que o trabalho da catação não sanou os mesmos problemas que dificultaram a entrada no mercado de trabalho, e que o ciclo explicitado termina, de fato, por se retroalimentar em um ciclo de precariedade: precariedade da vida pretérita – precarização do trabalho – precariedade da vida atual. Ações de preconceito e solidariedade A tentativa de reinserção social pelo trabalho de catar lixo confere ao trabalhador um estigma (Goffman, 1982) vinculado ao produto de sua sobrevivência, o que tem sido unânime entre as queixas dos entrevistados. Produto do descarte, destinado à inutilidade, associado à sujeira, aos expurgos da sociedade de consumo, torna-se signo que se integra ao catador como se ele possuísse características semelhantes. Indubitavelmente, outros elementos simbólicos, como a tração humana para puxar os pesados carrinhos por léguas a fio – que faz lembrar tração animal – as roupas velhas, as mãos sujas, a pele marcada pela pobreza de quem precisou recorrer ao lixo para sobreviver, ajudam a compor um quadro sobre o trabalho de catação que repercute diretamente na identidade de trabalhadores e de seres humanos. Assim, a precariedade da situação em que o catador desenvolve o trabalho de catação interfere, inclusive, na imagem que ele faz de si: “Tem gente que passa pela gente “bora, burro, puxa a carroça!” Desse jeito, né, dentro dum carrozão importado” (Catador, 32 anos). Essa situação reforça a construção de uma identidade negativa de trabalhador, pois nem o outro nem o próprio indivíduo conseguem ver positividade na tarefa de catar lixo. As principais representações do preconceito sofrido pelos catadores associam o trabalho de catação à criminalidade e à sujeira nas ruas da cidade, além da aparência de miséria que suas vestimentas denotam. São os catadores considerados responsáveis por rasgarem os sacos dispostos 383 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 propalada liberdade conferida pelo fato de não haver figura assemelhada a um patrão: “Mas é assim, se trabalhar ganha, se não trabalhar também não ganha, né. Isso é uma desvantagem porque o cara trabalhar tendo aquele ganho certo é melhor” (Catador, 32 anos). A flexibilidade resultante do caráter autônomo do trabalho é também objeto de reflexão de Sousa & Mendes (2006, p. 33), para quem “[...] essa flexibilidade tem um efeito perverso – a autoimposição de longas e extenuantes cargas de trabalho, num esforço dos trabalhadores para aumentarem a renda auferida”. É de se notar que as principais dificuldades apontadas estão relacionadas ao tratamento dado pela sociedade ao trabalhador da catação, à incerteza no ganho e à dificuldade, cada vez maior, de obtenção do material, segundo os catadores. Somam-se, ainda, a crescente percepção do potencial lucrativo do lixo, que aumenta com a concorrência, além do cansaço e pelos longos percursos feitos na atividade: “A desvantagem da catação é porque tem dia que não tem né. Às vezes o cabra anda, anda e não acha nada, aí vem embora sem nada” (Catador, 53 anos). A expressão do desejo de exercer outra atividade e incluir nas perspectivas o exercício de atividade diversa da catação – desejo também endereçado aos filhos – soma-se ao caráter de escolha da catação, reforçando a configuração da precariedade a ela associada, na medida em que reitera a ideia de que a satisfação com o trabalho remanesce desde que não haja outra forma de garantir o sustento: “Eu gostaria de fazer outra coisa, né. […] A chance que Deus me desse, um emprego mais digno, que todos nós sonha” (Catador, 35 anos). “Eu espero que meus filhos não caiam nessa sorte de na minha idade, ter um trabalho desse. Eu espero que eles tenham um bom futuro na vida, um bom emprego. Porque isso aqui, num dá pra gente ir pra frente não, dá só pra quebrar o galho, pra frente dá não” (Catadora, 44 anos). Dentre os fatores que dificultam a realização dos desejos de exercer outra atividade, é possível notar que são da mesma natureza daqueles que os levaram a entrar no universo da catação, o que CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ... para o serviço de coleta de lixo. Há casos em que a ação de rasgar sacos é proposital, após sofrerem algum tipo de repreensão pejorativa. Não obstante as queixas, na maioria das vezes, falta ao catador a consciência de que deveriam utilizar uma sistemática de abrir e fechar os sacos para evitar o aumento da sujeira, doenças, proliferação de insetos etc. Apesar do preconceito, os catadores também contam com a solidariedade durante suas jornadas de trabalho. Assim, há quem receba comida, objetos de uso pessoal ou doméstico. Os gestos de solidariedade, aos quais os catadores, muitas vezes, atribuem ser fruto da sorte ou da benção divina, são narrados em paralelo aos casos de preconceito, como que atribuindo a eles uma forma de compensação. “Tem gente muito boa, cara! É por isso que eu disse que no meio dos ruins a gente tira os bons... Compensa” (Catador, 35 anos). Malgrado todo o estigma sentido no cotidiano de trabalho pelos catadores, muitos estudiosos da temática apontam para sua importância como agentes ambientais e responsáveis pela coleta de boa parte do lixo urbano (Medina, 2005; Abreu, 2001). Os próprios catadores, sobretudo aqueles que têm a oportunidade de participar de debates acerca do seu trabalho, notadamente os vinculados a associações, salientam a relevância da catação para além da satisfação de suas necessidades pessoais, ressaltando a importância ambiental da atividade e a contribuição para a gestão de resíduos sólidos urbanos. Nesses casos, na tentativa de preservarem uma identidade, eles próprios se diferenciam: “Nós não somos ‘lixeiros’, somos catadores”, afirmou um catador de uma associação. Os catadores do depósito do bairro Tancredo Neves, porém, não se veem como agentes ambientais e sequer cogitam essa qualificação. Para eles, a importância dessa atividade se restringe, apenas, a permitir sobreviverem com o que ganham diariamente e recomeçarem suas vidas. O viés atribuído à relevância socioambiental não condiz com a precariedade do ofício e com a forma como seu trabalho é socialmente percebido. Daí que muitos autores (Magera, 2004; Layrargues, 2002; Medeiros & Macêdo, 2007) assumem uma posição mais crítica, questionando essa forma de inclusão que confere um status de importância ao trabalhador do lixo. Assim, Medeiros & Macêdo (2007) convidam a refletir sobre a qualidade da inclusão que está sendo proporcionada a esses sujeitos que entraram no mercado de trabalho por vias oblíquas, ou seja, por meio de uma atividade laboral que não lhes assegura direitos sociais básicos. Por isso, as autoras acentuam que “[...] o catador de materiais recicláveis é incluído ao ter um trabalho, mas excluído pelo tipo de trabalho que realiza” (Medeiros & Macêdo, 2007, p. 82). Berger e Lukmann (2002) propõem que a identidade pode se referir à inserção do sujeito no mundo e à sua relação com o outro, sem perder de vista, porém, o caráter dinâmico e múltiplo que a identidade apresenta, na medida em que não só o mundo do trabalho, mas, também, os indivíduos se transformam mediante as condições materiais e históricas dadas (Ciampa, 1998; Santos, 2000). Para Santos (2000), somos um amálgama de sujeitos que se combinam em várias subjetividades, com base em múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas. Portanto, ser catador pode ser, apenas, uma das únicas opções de (re)inserção desses sujeitos no mundo, na perspectiva de retomar a relação com o outro com suporte em um trabalho precarizante e, sobretudo, estigmatizante. TRABALHO E IDENTIDADE A despeito da crítica sobre a centralidade do trabalho, realçada por Lafargue (1999), Schaff (1995) e Kurtz (1992), entre outros pensadores, acredita-se no caráter fundante do trabalho na vida de cada um, como exposto em Marx (1980) e seus seguidores. Nessa perspectiva, o trabalho continua sendo uma categoria importante na construção da identidade social dos indivíduos, na medida em que, atuando sobre as coisas, atua também sobre si. De fato, o pensador alemão inaugurou a discussão científica do trabalho para além de sua concretude imediata, inscrevendo-o como um meio de construção de um componente sui generis en- 384 tre os seres sociais: a dignidade. O trabalho não alimenta só o corpo, de maneira material e individual, mas é uma forma de buscar a inserção do sujeito como ser social. Nessa perspectiva, Weber (2005, p. 133) ressalta que “[...] a visão do trabalho como vocação tornou-se característica do trabalhador moderno”. O trabalho, portanto, inscreve o sujeito no mundo e o grava em um lugar social. Pode-se ir além, alegando que o trabalho significa para o trabalhador uma forma de afirmar sua identidade por meio de atribuições individuais referentes à realização da tarefa. Essa característica, ressaltada por Forrester (1997), atribui ao trabalho um caráter estruturante no capitalismo contemporâneo. Além disso, não seria exagero estabelecer a noção de habitus do catador no sentido a que se refere Bourdieu (2006). Esses argumentos se aplicam a diferentes categorias profissionais, mas cabem perfeitamente na categoria em estudo aqui, os catadores de materiais recicláveis, quando se constata a importância do trabalho que ultrapassa um meio de sobrevivência, considerando-o, também, como atividade subscritora de sua cidadania. Nesse sentido, tomando a acepção de cidadania pensada por Arendt (1995, p. 22), tem-se que, na sociedade contemporânea, o trabalho assegura a inserção do sujeito que trabalha num estado de albergue jurídico – ainda que somente potencial – haja vista que sua referida centralidade no mundo social lhe confere caráter de pedra angular no construto social que garante o “direito a ter direitos”. Para a autora, a importância do Homo Faber no mundo contemporâneo leva à valorização do papel de trabalhador na constituição do “ser”. Tem, pois, o trabalho um caráter fundamental para o acesso à cidadania, que se contrapõe ao efeito marginalizante do ócio e da desocupação – muitas vezes forçados. Na fala dos catadores, é possível constatar a frequência dessa alusão: “Eu prefiro tá aqui, catando lixo, do que tá vagabundando ou roubando. Porque isso aqui é um trabalho!” (Catador, 38 anos). Reforçando a observação do catador, cumpre salientar que o ócio já é, de há muito, reprimido, inclusive com prescrições de severas cominações para os infratores dessa conduta, e, ainda hoje, a vadiagem é considerada um ilícito no Brasil. A despeito de todo o realce em torno do trabalho como um valor social, ele é bastante desafiado pelas dúvidas expressas pela “modernidade líquida” (Bauman, 2001), notadamente as que põem em xeque a segurança das ocupações laborais e a certeza da solidez de uma carreira profissional. Bauman (2001) reflete sobre o atual momento da sociedade, marcado por demissões em massa, redução de postos de trabalho e, por consequência, produção de refugo humano. Para o autor, esse refugo não é fruto do desemprego na forma como se compreendia, tendo em vista que, anteriormente, o desempregado cumpria a função de compor os exércitos industriais de reserva e, agora, a desocupação forçada tende a não oferecer perspectivas. De tal maneira, ressalta, “[...] os desempregados da sociedade de produtores (incluindo aqueles temporariamente ´afastados da linha de produção´) eram desgraçados e miseráveis, mas seu lugar na sociedade era seguro e inquestionável”. (Bauman, 2001, p. 22). A sociedade contemporânea assiste a transformações na natureza do trabalho que refletem a modernidade líquida que se instalou na sociedade atual. Na verdade, as certezas nas quais a sociedade se apoiava já não podem ser asseguradas nessa nova era. Se uma boa formação garantia uma boa ocupação, o atual momento aponta para um questionamento estrutural do modelo de empregabilidade engendrado ao longo do século XX. De fato, independentemente do grau de desenvolvimento dos países, percebe-se que a crise do trabalho no mundo capitalista se alastra ferozmente, derrubando os postos de trabalho e estabelecendo novas relações entre capital e trabalho, reforçando a vigência de uma sociedade do desemprego estrutural (Antunes, 2005). No Brasil dos últimos anos, o emprego formal cresceu de modo surpreendente, e o País aponta para bons índices de crescimento, registrando 44 milhões de empregos formais em 2010, o maior nível da história. Só nesse ano, foram gerados 2,860 385 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ... milhões de vagas com carteira assinada, apresentando um crescimento de 7% em relação a 2009; no entanto, parece que a informalidade cresceu no mesmo passo. As crises mundiais interferem de forma contundente no mercado de trabalho, e o desemprego, a rotatividade e precarização constituem o fantasma para muitos trabalhadores que, desde os anos 1970, conhecem e provam a ruptura do paradigma produtivo fordista que deu lugar ao que Harvey (2006) chamou de acumulação flexível. No âmbito dessa reorganização produtiva, há a implantação de um sistema político e ideológico de retirada do Estado da execução e guarda de suas funções sociais, um claro retorno, agora com maior ênfase do que outrora, a uma era de prevalência do livre mercado em detrimento dos sujeitos. Tal reestruturação tem provocado a intensificação da informalidade e o aprofundamento da precarização das relações de trabalho (Alves, 2007). Todo esse contexto parece justificar o surgimento de novas (ou nem tanto) formas de trabalho precário como modo de sobrevivência para desfiliados do mercado formal de trabalho. Assim é que muitos indivíduos se veem sem escolha entre não ter trabalho (o que significa não ter um meio de subsistência) e exercer um trabalho precário. Nesses casos, em que os catadores de lixo são exemplos, a necessidade de sobreviver fala mais alto do que o leque de benefícios que um trabalho formal poderia oferecer, principalmente entre os ex-detentos, para os quais a opção de uma ocupação formal é praticamente nula. A atividade do catador vai além das especificidades da economia informal, por lidar com o produto expurgado pela sociedade e, por isso, identificado pelos sujeitos da pesquisa como semelhantes a sua recente condição de ex-detentos. Ainda assim, o desenvolvimento dessa atividade, que lida com o refugo da sociedade, pode contribuir para a ressocialização, sobretudo porque há identificação com o produto que trabalham. De fato, Jaques (1996), ao referir que as estruturas sociológicas influenciam as representações que os indivíduos fazem de si, como representação do eu, ressalta a associação do prestígio ou desprestigio so- cial à qualificação e/ou desqualificação do eu a partir das especificidades próprias de alguns espaços de trabalho e/ou categorias profissionais. Ao mesmo tempo que essa característica é realçada, presencia-se uma extrema precarização dessa atividade. A precarização observada no trabalho de catação e no ambiente de trabalho permite defrontar-se com uma atividade laboral que violenta a reconstituição do eu trabalhador pela subsistência com base no que já foi refugado pela sociedade. Nessa perspectiva, a reconstrução de uma identidade no trabalho, na concepção de Sainsaulieu (1977), está intrinsecamente relacionada à ligação do indivíduo com os outros e ao reconhecimento que ele tem nessa relação. Ora, mediante condições desumanamente precárias de trabalho, em que a relação com o deposeiro é permeada pelo autoritarismo e exploração, e as relações com os colegas de trabalho e população em geral são de indiferença e preconceito, a inclusão desses trabalhadores no mundo do trabalho tende a se refletir na sua identidade de trabalhador, com traços de sujeição, precariedade e preconceito, no lugar de reconhecimento e estímulo para melhoria de vida pelo trabalho; é submeter-se à precarização, estando já no limite máximo de precariedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS As informações obtidas por meio das observações e entrevistas com os catadores levam a concluir que as motivações imediatas para o início deste trabalho se referem à necessidade de manutenção material da vida, mas percebe-se que a escolha da atividade de coleta de resíduos sólidos se dá, principalmente, pela dificuldade de inclusão no mercado formal. Os ex-presidiários informam uns aos outros da possibilidade de ganho com essa atividade que não apresenta dificuldade de inserção. Em razão, porém, dessa inflexão, será possível criar estratégias (materiais e simbólicas) capazes de fazer frente à precarização da catação e seus efeitos na vida desses catadores? Os resultados obtidos apontam para a construção subjetiva de 386 uma identidade de trabalhador tal como a ideia de, pelo menos, poder subsistir, sem ter que roubar, por meio do trabalho. Mesmo se constituindo em uma estratégia defensiva de mediação ante a precariedade da vida, é um indício de construção de uma identidade. Para isso, no entanto, os trabalhadores se submetem a condições e organização de trabalho bastante precárias, como se fosse única alternativa de (re)inserção social. Por outro lado, Meireles (2009) observa que, embora trabalhem em condições precárias, os catadores associados gozam de melhores condições de trabalho. Essas melhores condições podem ser percebidas na infraestrutura de cunho material, evidenciadas pelo melhor asseio no depósito pertencente às associações, pela existência de instalações sanitárias (inexistentes no depósito visitado), eletrodomésticos em bom estado que permitem preparar refeições, locais para descanso, sala de reuniões, bem como existência de parcerias que garantem o aporte de grande volume de material sem que seja necessária a saída do catador. Há, também, uma série de diferenças que propiciam uma melhoria nas condições de trabalho na Associação, como participação em instâncias de discussão sobre os problemas ligados à atividade – além de amplas temáticas relacionadas à pauta de atuação de vários movimentos sociais – formação de lideranças, conscientização política, maior autonomia no que tange ao processo produtivo do trabalho, laços grupais mais sólidos, de forma que os catadores representam a atividade não como um processo somente individual, mas inserida no contexto social de que fazem parte, propiciando maior conscientização a respeito do trabalho que realizam, que ganha contornos de motivações para além daquelas imediatas que levaram os trabalhadores para esse tipo de atividade. A isto o autor chama de “desprecarização simbólica”, incluindo aí a mudança de catador para “agente ambiental”. Assim, uma política que, possivelmente, proporcionaria melhorar as condições de trabalho e de vida dos catadores seria a instituição e o acompanhamento de associações e cooperativas desses trabalhadores. Dentro dessa mesma perspectiva, compreende-se que a coleta de lixo deveria ser regularizada pelos governos locais, evitando a exploração indevida dos donos de depósitos avulsos, que operam de modo a desconsiderar a história de cada trabalhador, assumindo uma posição bastante autoritária, e que se aproveitam da vulnerabilidade da condição de ex-presidiário para contratação de furtos a transeuntes, incentivo ao tráfico de drogas e arbitramento dos valores pagos pelo material coletado, anulando qualquer possibilidade de barganha e de autonomia dos trabalhadores, e, muitas vezes, pagando com a própria droga. Se um trabalhador que não teve a experiência de carceragem se revolta frequentemente com os desmandos que ocorrem nas instituições, o que dizer de ex- presidiários que estão tentando se reinserir mediante uma situação de extrema precarização? Ouvindo a todo instante o argumento de que, depois de terem sido presos, não conseguirão emprego decente, respondem a essa retórica com “recaídas” que se traduzem em pequenos furtos para aumento dos seus ganhos. Assim, uma política séria de reinserção de ex-presidiários, especificamente no trabalho de catação de lixo, deve incluir: a organização dos catadores em grupos de produção; a fiscalização dos depósitos avulsos, exigindo-se condições necessárias ao desempenho do trabalho; os processos de qualificação desses catadores no que se refere à forma de coletar, evitando sujar as ruas, ao mesmo tempo em que são imprescindíveis as campanhas de coleta seletiva de lixo para a população de modo geral, permitindo o reconhecimento do material exposto para coleta pelo catador, sem a necessidade de rasgarem os sacos para selecionar o que interessa coletar. São estas, portanto, iniciativas que servem para se contrapor à precarização, caracterizadas por atuar não apenas no cenário concreto da precarização, destacando-se os fatores de reconstituição da identidade desses sujeitos precarizados como trabalhadores com base no autorreconhecimento da importância do trabalho desempenhado, da inserção em grupos organizados de formação social e política, que repercutem 387 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ... materialmente na vida dos agentes. Isso poderia favorecer a autoestima e reforçar o processo de desprecarização simbólica. O trabalho é mais do que uma forma de satisfação das necessidades materiais, sendo, ainda, responsável pela inscrição do sujeito em um lugar social. Conferir, porém, ao sujeito um lugar social estigmatizado é marcá-lo do estigma atribuído ao seu trabalho. É a ligação do trabalho a valores como a defesa do meio ambiente, ora em voga, que permite mitigar o estigma (Goffman, 1982). Mais do que a autonomia limitada à barganha de preço, a organização dos catadores, além da interlocução de experiências por meio de movimentos em nível local, nacional e global, permite aos catadores uma autonomia da representação que a sociedade constrói sobre o seu trabalho. Conferir um sentido ao trabalho, além do contido nas motivações primeiras e contingenciais, enseja uma relevante ressignificação dele, que atua minimizando os efeitos desgastantes desse mesmo trabalho. Assim, a atividade passa a ser incrementada com um novo sentido, que culmina em um maior reconhecimento social. Dejours (1999) assevera que o reconhecimento do indivíduo e de seu trabalho em âmbito social é relevante para a transformação do sofrimento do trabalho em prazer pelo desempenho do ofício, embora o processo nunca se finalize. Recebido para publicação em 19 de abril de 2012 Aceito em 05 de outubro de 2012 BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. 21ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. BONNER, C. Waste pickers without frontiers. South African Labour Bulletin, v. 32, n. 4, p. 7-9, 2008. Disponível em: h t t p : / / w w w. w i e g o . o r g / p a p e r s / 5334%20SALB20Waste%20Pickers.pdf. Acesso em 22 de fevereiro de 2009. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. CIAMPA, A. C. 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São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Governo Estadual do Ceará, 2000. 389 RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ... EX-COM TRASH PICKERS CREATE A NEW WORKER IDENTITY RECONQUÊTE D’UNE IDENTITÉ DE TRAVAILLEUR PAR D’ANCIENS DETENUS QUI FAISAIENT LES POUBLELLES João Bosco Feitosa dos Santos Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel Tereza Glaucia Rocha Matos João Bosco Feitosa dos Santos Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel Tereza Glaucia Rocha Matos The goal of this paper is to reflect on and understand how ex-con trash pickers in the city of Fortaleza established a new worker identity through socially stigmatized unstable employment. Both bibliographical-documentary research and an ethnographical inspiration study were carried out, using direct observation and semi-structured interviews as tools. The results indicate unstable working conditions and conflicts with the “deposeiros” (recycling center owners), who exploit the trash pickers in every way possible. People regard these workers as dangerous, dirty bums, and their working and living conditions are riddled with exploitation, conflict and prejudice. The narratives of these recycled people for justice reveal a strong identity with the refuse that they collect. In their quest for reentry to society and reconstruction of identity, some of them admitted to illicit practices or recidivism, thereby demonstrating the fragility of the system, which attempts to recycle them and include them in a precarious manner. L’objectif de ce travail est de mener une réflexion qui permette de comprendre comment les personnes qui font les poubelles, ex-prisonniers de Fortaleza, retrouvent une identité de travailleurs en se basant sur une activité précarisée et stigmatisante socialement. Une recherche bibliographique et documentaire ainsi qu’une étude d’inspiration ethnographique par l’observation directe et par des interviews semi-structurées a été réalisée. Les résultats indiquent des conditions précaires de travail et des conflits avec les propriétaires de dépôts qui exploitent les personnes qui font les poubelles à tous les niveaux. Perçu par la population comme des marginaux, dangereux et sales, leurs conditions de travail et de vie sont marquées par l’exploitation, les conflits et les préjugés. Les narrations de ces recyclés par la justice montrent une forte identification avec les déchets qu’ils ramassent. A la recherche d’une réinsertion sociale et de la reconstruction d’une identité, certains admettent pratiquer des actes illicites ou faire des rechutes, signes d’une fragilité du système qui essaie de les recycler et de les insérer de manière précaire. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Work. Identity. Instability. Trash MOTS-CLÉS: Travail. Identité. Précarité. Personnes qui font les poubelles. Ex-détenus. Pickers. Ex-Cons. João Bosco Feitosa dos Santos – Doutor em Sociologia. Professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará – UECE – no curso de Ciências Sociais e no Mestrado de Políticas Públicas e Sociedade. Coordena a Estação Observatório de Recursos Humanos em Saúde CETREDE/UFC/UECE onde desenvolve projetos na área de mercado de trabalho em saúde. Atua principalmente nos seguintes temas: Mundo do Trabalho, Relação Trabalho e Saúde, Globalização e Reestruturação Produtiva, Economia Solidaria, Precarização do Trabalho, Pobreza e Consumo. Publicações recentes: Por uma produção sociológica: entre a Narrativa Histórica e o Saber Racional. Revista de Ciências Sociais (UFC), v. 2, p. 52, 2012; Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade. O Público e o Privado (UECE), v. 17, p. 25-38, 2011. Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel – Doutora em Psicologia Experimental. Professora titular da Universidade de Fortaleza e adjunta da Universidade Estadual do Ceará. Experiência principalmente nos temas: ergonomia, condições de trabalho e saúde do trabalhador. Principais publicações: Afastamentos por transtornos mentais entre professores da rede pública do estado do Ceará. O Público e o Privado (UECE), v. 19, p. 167-178, 2012; Multiplicidade de vínculos de médicos no Estado do Ceará. Revista de Saúde Pública, São Paulo: USP, v. 44, p. 950-956, 2010; Ports modernization and its influence on trade unions. Work (Reading, MA), v. 41, p. 5775-5777, 2012. Tereza Glaucia Rocha Matos – Doutora em Psicologia. Professora na graduação e no programa de pósgraduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Atua na área de Psicologia Social e do Trabalho. Participa do Laboratório de Estudos sobre o Trabalho - LET. Os estudos estão direcionados para a produção da subjetividade, trabalho, escolha profissional, identidade, carreira e saúde. Publicações recentes: Catadores de material reciclável e identidade social: uma visao a partir da pertença grupal. Interação em Psicologia (Online), v. 16, p. 239-247, 2012; Precariedade do trabalho e da vida de catadores de reciclaveis em Fortaleza-Ce. Arquivos Brasileiros de Psicologia (UFRJ. 2003), v. 63, p. 85-99, 2011. 390 Agnaldo Sousa Barbosa* Ao longo das últimas cinco décadas, diferentes tradições interpretativas se ocuparam da tarefa de buscar explicar a gênese do empresariado industrial brasileiro e analisar seu padrão de conduta do ponto de vista do empreendimento econômico e, por outro lado, diante das principais questões políticas do país. Não obstante ser esse um tema pulsante, tendo em vista a centralidade do papel a ser desempenhado por esse ator social na urdidura dos fios e tramas do processo de modernização capitalista do país no século XX, seu estudo não é objeto de uma produção profícua, ao contrário do que acontece, por exemplo, com as investigações sobre a classe operária. Este trabalho realiza um breve balanço do que julgamos constituir as mais expressivas dentre as variáveis possíveis na interpretação da experiência de classe do empresariado industrial, reivindicando a complexidade inerente ao tema em contraponto à generalização simplificadora recorrente na maioria dos trabalhos sobre o assunto. PALAVRAS-CHAVE: Empresariado industrial. Classe Social. Comportamento Empresarial. Industrialização Brasileira. Pensar o empresariado industrial brasileiro não é tarefa fácil. O primeiro desafio a ser enfrentado é o reduzido volume de estudos sobre o assunto. É evidente a preferência das Ciências Sociais do país pelo conhecimento da experiência de classe dos “oprimidos” – a classe operária – em comparação com a compreensão da história dos “dominantes”. Por outro lado, durante muito tempo, insistiu-se muito mais na discussão sobre o que essa classe social não era, em uma perspectiva orientada pela experiência das nações de capitalismo avançado, do que se procurou refletir acerca do real significado de seu comportamento em face de suas possibilidades concretas de atuação – ou seja, levando em consideração sua condição periférica. Deste modo, dos anos 1940 até fins dos anos 1970, prevaleceu uma visão essencialmente negativa do empresariado industrial, resultado de aná* Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Depto. de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Universidade Estadual Paulista (Campus de Franca). Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e coordena o LabDES – Laboratório de Estudos Sociais do Desenvolvimento e Sustentabilidade. Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14.409-160, Franca, SP, Brasil. [email protected] lises que tiveram, na história de suas congêneres europeia e norte-americana, o paradigma de configuração da classe. Por um longo período, foi hegemônica, na literatura acadêmica, a ideia de que, entre nós, as principais características dessa classe teriam sido o pouco vigor empreendedor, a mentalidade pré-capitalista (com destaque para o seu arraigado patrimonialismo), a deficiência organizativa, a imaturidade ideológica e a fragilidade/passividade política – elementos esses facilmente associados à origem social “aristocrata” de industriais advindos da classe dos latifundiários. Tais fatores são recorrentemente apontados como responsáveis pelo fato de o empresariado industrial não ter alcançado o status de força hegemônica na sociedade brasileira e conquistado, consequentemente, o poder político. Neste trabalho realizamos um breve balanço das principais correntes interpretativas que buscaram compreender e explicar a formação social, o pensamento e a atuação econômico-política do empresariado industrial brasileiro. A intenção, aqui, foi elaborar um painel do que entendemos ser as principais abordagens que tiveram lugar nas Ciências Sociais do país da década de 1940 até os nossos dias. 391 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO INDUSTRIAL BRASILEIRO: dilemas e controvérsias RESENHA TEMÁTICA Agnaldo Sousa Barbosa REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 AS HIPÓTESES SOBRE A ORIGEM DO EMPRESARIADO INDUSTRIAL BRASILEIRO É, certamente, inevitável a relação entre os primórdios da industrialização no Brasil e a acumulação de capitais advinda da economia cafeeira. Em virtude da importância desta discussão, este capítulo tem na relação entre a cafeicultura e indústria a sua problemática inicial. Desde a década de 1940, tornou-se praticamente consensual na bibliografia sobre o tema da industrialização o estabelecimento de vínculos inescapáveis entre café e indústria, não raro concebendo, por extensão, a burguesia cafeeira como a matriz da burguesia industrial brasileira. Em obras dos anos 40 e 50, autores de estudos que se tornaram clássicos, como Caio Prado Jr. e Celso Furtado, já tratavam a questão dando significativa ênfase à relação entre cafeicultura e indústria.1 Porém, foi em um texto de Fernando Henrique Cardoso, escrito em 1960, que tal abordagem ganhou contorno mais abrangente e adquiriu o status de interpretação hegemônica no âmbito da literatura acadêmica. Em “Condições sociais da industrialização: o caso de São Paulo”, Cardoso (1969, p. 188)2 propôs, de forma pioneira, uma explicação da industrialização brasileira que ultrapassava o terreno das considerações meramente econômicas acerca desse processo. Conforme argumenta, qualquer que fosse a realidade investigada, um estudo sobre o tema deveria supor, também, como requisito básico, “a existência de certo grau de desenvolvimento capitalista” e, mais especificamente, supor “a pré-existência de uma economia mercantil”, o que, logicamente, implicaria conceber a existência “de um grau relativamente desenvolvido da divisão social do trabalho” na sociedade em questão. Seguindo essa linha de raciocínio, Cardoso observa que a transformação do regime social de produção, que possibilitou o advento da ativida- de industrial no país, ocorreu no bojo da expansão cafeeira rumo ao oeste paulista, resultando na intensificação da organização capitalista da vida econômica. No interior desse processo, três constatações merecem destaque: 1) a substituição do trabalho escravo pela mão-de-obra livre contribuiu para o surgimento de uma estrutura mercantil generalizada; 2) a racionalização da empresa econômica cafeeira forçou a conversão dos antigos senhores em empresários de mentalidade capitalista; e 3) o financiamento e circulação da produção cafeeira exigiram empreendimentos de infraestrutura (bancos, ferrovias, portos, estradas, etc.) que foram essenciais para o posterior estabelecimento da indústria. Em outros estudos de referência dos anos 1960, 1970 e início dos 1980, autores como Octávio Ianni (1963), Warren Dean (1971), Maria da Conceição Tavares (1972), Wilson Cano (1998),3 Sérgio Silva (1976), José de Souza Martins (1986)4 e João Manuel Cardoso de Mello (1984),5 entre os mais importantes, assumiram e aprofundaram, ainda que com algumas variações, a perspectiva do capital cafeeiro como núcleo dinamizador da indústria no país. Na análise de Wilson Cano, por exemplo, o café tem um significado amplo, assumindo o papel de elemento que orienta a economia interna e externamente e cria as condições para a intensificação do processo de desenvolvimento capitalista. Segundo afirma esse autor: O café, como atividade nuclear do complexo cafeeiro, possibilitou efetivamente o processo de acumulação de capital durante todo o período anterior à crise de 1930. Isto se deveu, não só ao alto nível de renda por ele gerado, mas, principalmente, por ser o elemento diretor e indutor da dinâmica de acumulação do complexo, determinando inclusive grande parte da capacidade para importar da economia brasileira no período. Ao gerar capacidade para importar, o café resolvia seu problema fundamental que era o da subsistência de sua mão-de-obra, atendia às exigências do consumo de seus capitalistas, às necessidades de insumos e de bens de capital para a 1 As referências, nestes casos, são Prado Jr. (1993), cuja primeira edição é datada de 1943, e Furtado (2000), editado pela primeira vez em 1959. 2 Tal texto foi publicado originalmente na Revista Brasiliense, n. 28, São Paulo, março-abril/1960. Utilizamos aqui a referência de sua publicação no livro Mudanças Sociais na América Latina, de 1969. 3 A primeira edição é datada de 1977. Foi originalmente apresentado em 1975 como tese de doutoramento. 4 A primeira edição é datada de 1979. 5 Originalmente apresentado como tese de doutoramento em 1975. 392 Agnaldo Sousa Barbosa Partindo dos mesmos pressupostos, João Manuel Cardoso de Mello argumenta, ainda, que foi o “vazamento” de excedentes de capital da cafeicultura para outros negócios que permitiu a maior parte das inversões na atividade industrial a partir das duas décadas finais do século XIX. Conforme ressalta o autor, os lucros gerados pelo complexo cafeeiro não encontravam espaço nesse mesmo núcleo produtivo para a sua plena reaplicação;6 desta forma, [...] havia um “vazamento” do capital monetário do complexo exportador cafeeiro porque a acumulação financeira sobrepassava as possibilidades de acumulação produtiva. Bastava, portanto, que os projetos industriais assegurassem uma rentabilidade positiva, garantindo a reprodução global dos lucros, para que se transformassem em decisões de investir (Mello, 1984, p. 144). Em face deste quadro interpretativo, a constatação de que o empresariado industrial teve sua origem, sobretudo no grande capital cafeeiro, foi uma consequência natural7. A concepção, segundo a qual a diversificação dos investimentos e a complexidade alcançada na gestão dos negócios transformaram muitos “homens do café” em industriais proeminentes encontrou eco em exemplos como os de Antonio da Silva Prado e Elias 6 Segundo Mello (1984, p. 143), três razões em especial contribuíram para o direcionamento dos excedentes do capital cafeeiro para a atividade industrial: “1) o ritmo de incorporação de terras está adstrito a determinadas exigências naturais, como tempo de desmatamento, época de plantio, etc.; 2) a acumulação produtiva, uma vez plantado o café, é em grande medida ‘natural’; e 3) as despesas com a remuneração da força de trabalho reduzem-se, entre o plantio e primeira colheita, praticamente ao pagamento da carpa; não o encontravam, do mesmo modo, nas casas importadoras, porque a capacidade de importar cresceu, seguramente, menos que as margens de lucro, transformando a produção industrial interna na única aplicação rentável para os lucros comerciais excedentes”. 7 Entenda-se como grande capital cafeeiro a fração da burguesia cafeeira signatária de inversões financeiras que ultrapassavam os limites da lavoura, multiplicando-se em investimentos no comércio (armazéns, casas de exportação e importação), ferrovias, exploração de serviços públicos (água, luz, transporte), bancos e indústrias. Para uma definição do “grande capital cafeeiro”, ver Silva (1976). Para uma análise detalhada da dinâmica do grande capital cafeeiro e sua hegemonia econômica e política em face dos interesses da lavoura ver Perissinotto (1991, v. 1, especialmente o Capítulo 1). vares Penteado (Cia. Paulista de Aniagens), Augusto de Souza Queiroz (Cia. Mecânica e Importadora), Gabriel Silva Dias (Companhia McHardy), além de muitos outros. Warren Dean (1971, p. 54) chegou mesmo a afirmar que “[...] A quase totalidade dos empresários brasileiros veio da elite rural”. E acrescenta: “Por volta de 1930 não havia um único fabricante nascido no Brasil, originário da classe inferior ou da classe média, e muito poucos surgiram depois”. Tal visão é corroborada, por exemplo, por Florestan Fernandes (1987, p. 113), que salienta que, nesse processo, é o fazendeiro de café quem “[...] experimenta transformações de personalidade, de mentalidade e de comportamento prático tão radicais”, convertendo-se em “homem de negócios”.8 A ideia do surgimento de um empresariado industrial associado ao grande capital – sobretudo o cafeeiro – ganhou ainda mais força com a hegemonia, a partir de meados da década de 1970, de certa tradição interpretativa que defende que o capitalismo industrial não tenha conhecido, no país, as fases do artesanato e da manufatura, ingressando já na etapa da grande indústria. Na análise dos que advogam tal interpretação, a característica tardia do capitalismo brasileiro impôs a grande indústria como padrão necessário às exigências do momento histórico em que emergiu a indústria nacional; ao surgir já na fase monopolista do capitalismo mundial, a indústria brasileira teve como imperativo a sua organização em grandes empreendimentos, sob pena de sucumbir, facilmente, à concorrência dos produtos importados aos gigantescos trusts internacionais. Ainda de acordo com esta interpretação, embora a pequena indústria 8 Certa tradição marxista levou essa interpretação às últimas consequências, associando o empresariado industrial nascente a uma elite de caráter aristocrático. Conforme destaca Nelson Werneck Sodré (1967), ao contrário de sua congênere europeia, “tributária da classe dominante”, a burguesia brasileira teria raízes na própria classe dominante, em uma elite senhorial de estirpe aristocrática. Para Sodré, nossa diferença básica em relação à Europa, no que diz respeito ao processo de gestação da burguesia, estaria no fato de que no Brasil não se verificou um “movimento ascensional” das camadas mais baixas da população a fim de compor esta que seria a classe dominante universal. 393 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 expansão da economia, bem como indicava em Pacheco Jordão (Vidraria Santa Marina), Antonio que o Estado podia ampliar seu endividamento de Lacerda Franco (Tecelagem Japy), Antonio Álexterno (Cano, 1998, p. 136). REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ... CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 artesanal tenha sido uma realidade presente até as últimas décadas do século XIX, ela acabou por desaparecer, na medida em que a competição em condições altamente desvantajosas com os novos conglomerados industriais realizou uma espécie de seleção natural entre as unidades fabris. Em O Capitalismo Tardio, de João Manuel Cardoso de Mello (1984, p. 143, grifo nosso), tal concepção subjaz na afirmação do autor de que “[...] a burguesia cafeeira não teria podido deixar de ser a matriz social da burguesia industrial, porque [era a] única classe dotada de capacidade de acumulação suficiente para promover o surgimento da grande indústria”. Outro exemplo emblemático pode ser observado no clássico estudo de Wilson Cano (1998, p. 224-225, grifo nosso) sobre a as raízes da concentração industrial em São Paulo: Nosso processo histórico de formação industrial reveste-se de mais uma peculiaridade importante: aqui não se deu a clássica e gradativa transformação de uma produção manufatureira ou artesanal para uma produção mecanizada. Muito embora nossa história registre a ocorrência de certas atividades artesanais, como algumas produções têxteis ‘caseiras’ realizadas em algumas fazendas, carpintarias, alfaiatarias, joalherias, etc. Muitas destas atividades, efetivamente, eram mais prestadoras de serviços (artífices e artistas) do que produtoras de bens industriais para o mercado. Daí, portanto, sua precária possibilidade de realizar uma acumulação de capital que possibilitasse sua transformação técnica e seu desenvolvimento”. Estas interpretações derivam da tese consagrada por Sérgio Silva (1976), a qual, partindo do exame crítico dos censos industriais de 1907 e 1920, procurou demonstrar, por meio de evidências estatísticas, a carência de legitimidade das análises que enfatizavam a predominância das pequenas empresas industriais voltadas para os pouco significativos mercados locais e regionais no período da hegemonia cafeeira. Conforme Sérgio Silva se esforçou em comprovar, no Brasil, a atividade fabril já nasceu tendo na grande indústria o seu principal sustentáculo econômico. Analisando o levantamento realizado pelo Centro Industrial do Brasil em 1907, Silva fundamenta seu argumento baseado na constatação de que, à época, pelo menos 39 mil operários trabalhavam nas grandes empresas do país, as quais possuíam um capital que se aproximava de 230 mil contos de réis; do total de trabalhadores fabris, mais de 24 mil concentravam-se em empresas com cem ou mais operários e um capital igual ou superior a mil contos. Em São Paulo, mais de 11 mil operários trabalhavam em empresas que empregavam, em média, quatrocentos operários e mais de três mil contos de capital. Na cidade do Rio de Janeiro, mais de 13 mil operários trabalhavam em empresas que empregavam, em média, quinhentos e cinquenta operários e cerca de quatro mil contos de capital. Quanto ao Censo Industrial de 1920, Silva (1976, p. 86-87, grifo nosso) diz o seguinte: O caráter de prevalência do grande capital e das grandes empresas na estrutura industrial brasileira, desde os seus primórdios, nas últimas décadas do século XIX, também é salientado por Renato Monseff Perissinotto (1991, v. 2, p. 218) em importante estudo dos anos 1990: As indústrias que surgiram no período já empregavam um grande número de trabalhadores e um capital de grande valor. Caracterizavam-se também pela profunda mecanização e pela consolidação da separação entre trabalhador e meios de produção – pressuposto fundamental do sistema capitalista. A industrialização brasileira não foi, portanto, precedida por nenhuma fase manufatureira. O seu início, já com plena mecanização do processo de trabalho, foi também uma exigência do próprio momento em que ela surgiu. 394 No que se refere à importância relativa das empresas com 100 ou mais operários, verificamos que, no antigo Distrito Federal, elas empregam 73% do capital e 63% do número total de operários. Em São Paulo, nelas encontramos 65% dos operários. [...] devemos concluir que a importância relativa das empresas industriais com 100 ou mais operários acentua-se entre 1907 e 1920. Fato esse que se destaca quando verificamos que mais de 20 mil operários, no antigo Distrito Federal, e mais de 30 mil, no Estado de São Paulo, trabalham em estabelecimentos industriais que empregam 500 ou mais operários. Afirma-se assim a nossa tese de que são essas empresas – e não as pequenas empresas dispersas pelo país – que melhor caracterizam a estrutura industrial brasileira durante o período estudado [...]. Outras análises apresentam perspectiva distinta da desenvolvida por essa corrente hegemônica, todavia, raramente são lembradas nos trabalhos sobre o tema. Segundo José de Souza Martins (1986), por exemplo, o aparecimento da indústria no Brasil se deu à margem das atividades engendradas pelo complexo agro-exportador e, por conseguinte, esteve vinculado a uma estrutura de relações e produtos que não pode ser reduzida ao “binômio café-indústria”. Conforme argumenta esse autor, muito antes da abolição da escravatura e da grande imigração, a indústria artesanal já se encontrava implantada por toda a província de São Paulo e também em outras províncias. Neste sentido, os grandes grupos econômicos que começaram a surgir no último quartel do século XIX se ocuparam em “[...] substituir a produção artesanal e doméstica ou a produção em pequena escala disseminadas por um grande número de pequenos estabelecimentos tanto na capital quanto no interior” (Martins, 1986, p. 106), e não em substituir importações. Para Edgard Carone (2001), não obstante os limites existentes à formação de um mercado interno no país, desde a primeira metade do século XIX (a qual chama de “primeira fase do processo industrial brasileiro”), mas, especialmente após esse momento, pode-se constatar uma produção artesanal que se intensificou gradativamente e supriu com folga as modestas exigências da grande maioria do público consumidor. Já Luiz Carlos Bresser-Pereira (2002, p. 146), baseado em significativa pesquisa empírica realizada no início dos anos 1960, é enfático ao assinalar “[...] que os empresários industriais do Estado de São Paulo, onde se concentrou a industrialização brasileira, não tiveram origem nas famílias ligadas ao café. Originaram-se em famílias imigrantes principalmente de classe média”.9 Principal nome da vertente que liga a classe média às origens da burguesia industrial brasileira, BresserPereira antecipou em quase uma década a ideia de Warren Dean, segundo a qual o imigrante teve pa9 Nesse artigo, publicado em 2002, Bresser-Pereira retoma, sinteticamente, reflexões desenvolvidas em sua tese de doutoramento publicada com o título de Empresários e Administradores no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1972). pel fundamental na formação da burguesia industrial brasileira. Entretanto, Warren Dean introduziu um diferencial importante na interpretação preconizada por Bresser-Pereira, tornando-a aderente à interpretação que vinculava o surgimento do empresariado industrial no país ao grande capital. De acordo com a análise de Dean (1971, p. 59), os imigrantes que se envolveram na atividade comercial e industrial eram de origem burguesa, muitos dos quais chegaram ao Brasil com alguma forma de capital: “[...] economias de algum negócio realizado na Europa, um estoque de mercadorias, ou a intenção de instalar uma filial de sua firma”. No intuito de destacar esses indivíduos da massa de imigrantes que vieram para Brasil trabalhar nas lavouras de café, Dean os chama de “burgueses imigrantes”, cuja experiência e treinamento os predispunha a se dedicar à indústria ou ao comércio.10 A noção de uma “burguesia imigrante” como elemento de relevo na constituição do empresariado brasileiro é reforçada por Sérgio Silva, que chama a atenção para o caráter errôneo das teses que defenderam a ideia de que imigrantes pobres teriam se transformado em industriais, identificando neles uma espécie de self-made-man. Para Silva (1976), os imigrantes que se estabeleceram como empresários fabris não se confundiam com a massa de imigrantes, constituída, em sua maioria, por trabalhadores braçais. No mesmo sentido, José de Souza Martins vê na figura do industrial de origem imigrante, que ascendeu socialmente, uma espécie de mito – o burguês mítico – que servia à reprodução do capital e legitimava suas formas de exploração. Conforme observa, [...] a industrialização brasileira encontrou no mito do burguês enriquecido pelo trabalho e pela vida penosa um ingrediente vital. [...] Foi a partir daí que a dominação burguesa se apresen10 De acordo com Dean, “[...] em geral os burgueses imigrantes chegavam a São Paulo com recursos que os colocavam muito à frente dos demais e praticamente estabeleceram uma estrutura de classe pré-fabricada”. Essa mesma ideia é retomada por Zélia Cardoso de Mello (1985) em seu estudo sobre a formação da riqueza em São Paulo no contexto da economia cafeeira da segunda metade do século XIX. 395 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 Agnaldo Sousa Barbosa CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ... tou como legítima para o operário. O enriquecimento do burguês foi entendido como resultado do seu próprio trabalho, das suas privações e sofrimentos, e não como produto da exploração do trabalhador. A dominação e a exploração burguesas passaram a ser concebidas como legítimas porque a riqueza não seria fruto do trabalho proletário, mas sim do trabalho burguês. (Martins, 1986, p. 149).11 É inegável a pertinência das análises que vinculam a industrialização brasileira à dinamização dos excedentes econômicos da cafeicultura. Todavia, pensamos que tal relação econômica não deva ser assumida, de antemão, como a única explicação para os diferentes processos de desenvolvimento industrial que tiveram lugar no país e, tampouco, para a questão do surgimento da burguesia industrial brasileira. Há mais de três décadas, em um texto intitulado “O café e a gênese da industrialização em São Paulo”, José de Souza Martins (1986, p. 98) escreveu que “[...] Apesar de todos os esforços, a história e a análise históricoconcreta da industrialização brasileira ainda estão por ser feitas. De fato, temos hoje, infelizmente, mais interpretação e generalização do que a pesquisa empírica realizada permitiria”.12 Por mais que tenham avançado as discussões acerca do tema da industrialização e das origens do empresariado industrial no Brasil, passadas três décadas, o conteúdo crítico de tal ponderação não perdeu, totalmente, a razão de ser. No caso da dinâmica de industrialização de São Paulo, por exemplo, a ideia de um processo de surgimento e expansão da estrutura fabril, baseado no binômio café/indústria, continua sendo, como na essência da crítica de Martins, o referencial predominante para a maioria dos estudos realizados. O problema não se situa, certamente, na validade explicativa da interpretação, mas na sua apli11 Na formulação de sua tese, Martins tem em mente, em especial, o caso de Francisco Matarazzo, “o burguês mítico por excelência”, não obstante entender que outros burgueses imigrantes também tivessem contribuído para a elaboração desse mito. 12 Tal texto foi publicado originalmente em: Contexto, n. 3, São Paulo, Hucitec, julho de 1977. Posteriormente, foi republicado como um dos capítulos do clássico O Cativeiro da Terra (não obstante utilizarmo-nos da edição publicada em 1986, a primeira edição é datada de 1979). cação de forma quase exclusiva na análise dos mais diversos processos de industrialização que tiveram lugar no território paulista ao longo do século XX. Neste aspecto, o risco de que a evidência empírica venha a sucumbir à força de uma teoria já consagrada é uma possibilidade que, muitas vezes, se comprova na prática, numa patente subversão da máxima apregoada por Giovanni Sartori (1982), segundo a qual “a lógica não pode substituir a evidência”. As generalizações já consagradas, certamente, exercem grande influência sobre os que se debruçam sobre o assunto e acabam por inibir explicações que se arrisquem a ir além daquelas circunscritas no âmbito das teorias hegemônicas. Por outro lado, o esforço de pesquisa, exigido por uma investigação empírica rigorosa, pode desestimular a aventura pelo território das vivências histórico-concretas dos atores sociais, gerando a acomodação em face dos referenciais recorrentes. Estas nos parecem ser as justificativas mais prováveis para a sensação de ausência de realidades distintas daquela de um empresariado industrial originário do grande capital cafeeiro ou de uma “burguesia imigrante”. AS INTERPRETAÇÕES SOBRE O COMPORTAMENTO ECONÔMICO-POLÍTICO DO EMPRESARIADO INDUSTRIAL BRASILEIRO Estudos como os de Oliveira Vianna (1987),13 Fernando Henrique Cardoso (1963), Luciano Martins (1968), Florestan Fernandes (1987)14 e Nelson Werneck Sodré (1967) compartilharam, embora com variações, a visão de que o empresariado industrial brasileiro padecia de males como a deficiência organizativa, a imaturidade ideológica e a fragilidade/passividade política. Com exceção dos escritos de Octávio Ianni (1989),15 a oposição sistemática, em maior ou menor grau, a tais concepções veio surgir, apenas, no crepúscu13 Não obstante ter sido editada apenas nos anos 80, tal obra foi escrita na década de 1940. 14 A primeira edição da obra é datada de 1975. 15 A primeira edição da obra é datada de 1965. 396 Agnaldo Sousa Barbosa 16 Tal obra foi originalmente concebida como tese de doutorado defendida pela autora em 1984, na Universidade de Oxford – Inglaterra. 17 Para Vianna (1987), era bastante representativo desse predomínio das empresas familiares na estrutura industrial brasileira o fato de que a maior organização do país – as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo – pertencia à família da personalidade cujo nome traz. tos não tinham o significado capitalista de um meio para a busca da riqueza ad infinitum, mas “[...] o objetivo modesto de apenas assegurar aos seus proprietários e dirigentes, possivelmente a riqueza, mas principalmente os meios de subsistência e também uma classificação social superior – a do status de ‘industrial’” (Vianna, 1987, p. 194); para o autor, isto seria a demonstração notória de uma “mentalidade de pré-capitalismo”. De acordo com Vianna (1987, p. 195-196), mesmo entre os empresários paulistas, não obstante terem já alcançado um elevado nível técnico em meados do século XX, quanto aos seus padrões de valores éticos era possível se constatar que [...] ainda estão num proto-capitalismo psicológico, guardando muito da velha mentalidade dos paulistas das classes ricas do século passado, com sua economia de status, o seu apreço ainda muito vivo dos valores espirituais e culturais, as suas preocupações genealógicas, a sua distinção de maneiras e sentimentos. Ainda no que diz respeito à questão da “mentalidade” capitalista do empresariado industrial brasileiro, Fernando Henrique Cardoso (1963) parece aprofundar as observações críticas feitas por Oliveira Vianna. Neste sentido, a fim de sistematizar sua abordagem, Cardoso dividiu os empresários em duas categorias: a) “capitães de indústria” e b) “homens de empresa”. Grosso modo, os primeiros seriam aqueles cuja forma de dirigir suas empresas obedeceria a critérios estritamente pessoais e suas práticas administrativas estariam longe de expressar a racionalidade exigida pelo empreendimento capitalista, e os segundos representariam os modernos executivos profissionais, cuja atividade era caracterizada pela impessoalidade e pela racionalidade administrativa em busca do lucro – a exemplo dos managers, top executivies ou heads of organization do capitalismo norte-americano. Segundo Cardoso (1963), predominava no Brasil a categoria dos “capitães de indústria”, senhores absolutos dos rumos tomados por seus negócios, pouco afeitos a inversões substanciais, visando à melhoria da base técnica de suas empresas e bastante propensos a se guiarem no mercado “pela 397 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 lo dos anos 70 e início dos anos 80, em trabalhos como os de Eli Diniz (1978), Renato Raul Boschi (1979), Fernando Prestes Motta (1979) e Maria Antonieta Leopoldi (2000).16 A despeito de suas diferentes ênfases, tais autores se empenharam em trazer à luz elementos que comprovassem a existência de uma ideologia burguesa coerente com os interesses da classe dos industriais, a agressividade e organização na luta por seus anseios e, ademais, o importante papel exercido pelo empresariado na tarefa de dinamizar a industrialização do país, contestando a exclusividade do Estado como promotor único das profundas mudanças em curso a partir de 1930. Em pesquisa um pouco mais recente, Márcia Maria Boschi (2000) propôs alguns avanços em relação ao tema, procurando explicar questões que permaneciam cambiantes nos trabalhos anteriores. Começamos pela discussão acerca de uma provável mentalidade arcaica, assim como do que poderíamos chamar de uma “anemia schumpeteriana”, por parte do empresariado brasileiro. Essas questões foram abordadas, em especial, por Oliveira Vianna e Fernando Henrique Cardoso. Escrevendo na década de 1940, Vianna percebeu diversos traços pré-capitalistas que distinguiam o empresariado industrial do país. Conforme observa, em uma época em que o “supercapitalismo” norte-americano e europeu se notabilizava por uma radical busca do lucro, entre os industriais brasileiros ainda persistiam tradições econômicas e sociais que obstaculizavam a otimização dos investimentos, a reprodução do capital em grande escala. Para Vianna (1987, v. 2, p. 49), o pequeno número de sociedades anônimas em nossa estrutura industrial e o predomínio das empresas de organização familiar, nas quais a figura do patriarca prevalecia sobre a do empresário, era o exemplo típico da “refratariedade das nossas burguesias do dinheiro aos métodos e técnicas do grande capitalismo industrial”.17 Segundo afirma, aqui os empreendimen- CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ... ram influência política [...]. É o que bem indica a experiência” antes que pelo planejamento raciosua fácil submissão à política anti-capitalista da nal. Para esse autor, a prevalência desse tipo de Revolução de 30; política planejada por uma elite de praticantes de profissões liberais – por uma administração rigorosamente pessoal – ou, no lielite de “doutores” (Vianna, 1987, p. 197). mite, familiar – das empresas acabou por gerar vicissitudes e impor restrições ao ritmo do processo De igual modo, Cardoso (1963) enfatiza a de industrialização em curso desde o início dos falta de espírito de classe entre os industriais, raanos 30. Conforme observa, zão ainda de sua débil ascendência nos assuntos [...] os efeitos negativos desta situação fazem-se do Estado. Para ele, o excessivo apego desse sentir tanto sobre o ritmo da expansão industrial empresariado aos interesses pessoais, em detrimenquanto sobre a capacidade de concorrência das to do pensamento no coletivo, da atenção aos claindústrias controladas desta maneira. Existe larga margem de ‘capacidade empresarial’ mores gerais do país, acabou por delinear uma desperdiçada pelos industriais paulistas, que to- ideologia burguesa inequivocamente pragmática, lhem seus projetos de expansão pela crença na necessidade do controle direto dos negócios (Car- cega para uma visão mais ampla dos interesses do doso, 1963, p. 119-120). capitalismo brasileiro e, com isso, incapaz de se tornar hegemônica e guiar os destinos da Nação. O patrimonialismo e o “espírito aventurei- De acordo com Cardoso (1963, p. 209), ro” seriam, ao invés das virtudes burguesas típicas, os principais traços da personalidade econô[...] isto quer dizer que qualquer teoria objetiva do papel da burguesia no processo de desenvolmica desse tipo de empresário. De acordo com vimento e do próprio desenvolvimento acaba Cardoso, entre esses típicos “capitães de indúsapontando um beco sem saída e que, portanto, a tria” brasileiros, os empreendimentos seriam estiação econômica dos industriais termina tendo de ser orientada antes pela opinião do dia-a-dia, mulados mais pela obtenção de financiamentos ao sabor do fluxo e refluxo dos investimentos governamentais de longo prazo que pela iniciativa estrangeiros e da política governamental, do que por um projeto consciente que permita fazer coparticular de “desbravar” novos caminhos, assim incidir, a longo prazo, os interesses dos industricomo o comportamento anti-empresarial da ostenais com o rumo do processo histórico. tação exagerada e do desvio dos lucros para compra de imóveis e/ou remessas de dinheiro ao exteAs avaliações de Luciano Martins e rior, constituíam procedimentos comuns. Florestan Fernandes quanto ao papel desempenhaMesmo separados por tradições intelectudo pelo empresariado industrial brasileiro se asseais distintas, as opiniões de Oliveira Vianna e melham, em essência, à perspectiva esboçada por Fernando Henrique Cardoso convergem quanto à Vianna e Cardoso. Na opinião de Martins (1968), constatação de sérias deficiências do empresariado no Brasil, essa classe seria política e ideologicaindustrial no que diz respeito à sua organização mente desarticulada, subordinada que estava aos política e enquanto classe. Vianna (1987), por desígnios de um Estado controlado por elites agráexemplo, observa que, embora nos anos 40 já se rias, em face das quais não manifestava sinais apavivenciasse no Brasil o que ele chama de rentes de contradição. Para este autor, “[...] a per“supercapitalismo”, o empresariado industrial aincepção de conflito com o setor agrário, portanto, da não havia se constituído, aqui, em classe domipouco ou nada influi no comportamento dos ménante, como nos Estados Unidos e na Inglaterra, dios e grandes industriais quando da escolha das onde ela se mostrava unida e solidária em sua consalianças políticas” (Martins, 1968, p. 137); disso ciência de grupo e na dominação do Estado. Na resultou a submissão das suas possíveis divergênótica desse autor, cias econômicas aos interesses de classe que lhes são comuns, o que, não raro, significou entraves [...] entre nós, ao contrário, estas burguesias capitalistas da indústria e do comércio nunca tive- ao desenvolvimento do país. Por esta razão, Martins 398 compreende que, não apenas o empresariado industrial não conseguiu assumir uma posição hegemônica na sociedade brasileira, como também não tinha a intenção de obter tal façanha. Essas indicações de fraqueza e dependência foram, na ótica de Martins, o principal motivo pelo qual o empresariado não se constituiu como protagonista de um possível projeto de industrialização autônoma para o Brasil; conforme observa, coube ao Estado, por meio de sua burocracia, cumprir o papel de agente central do processo de modernização, ora pairando acima dos interesses exclusivos das classes, ora agindo sob o peso do constrangimento externo, na definição de sua política de desenvolvimento. Em sua análise de um virtual processo de revolução burguesa no Brasil, Florestan Fernandes apontou a tendência à composição entre o empresariado industrial e as oligarquias terratenentes – a fusão entre o “velho” e o “novo” – como o fator responsável pelo malogro de um processo de mudança com características verdadeiramente revolucionárias no país; obviamente, Fernandes pensava na possibilidade de promoção de uma “revolução democrática” pela burguesia brasileira. Comentando a aliança entre as elites agrárias (arcaico) e o setor industrial (moderno), Florestan Fernandes (1987, p. 205) observa que “[...] o conflito emergia, mas através de discórdias circunscritas, [...] ditados pela necessidade de expandir os negócios. Era um conflito que permitia fácil acomodação e que não podia, por si mesmo, modificar a história”. Assim, para Fernandes (1987, p. 204-205), a própria estratégia empresarial limitou o impacto das transformações decorrentes do estabelecimento do capitalismo industrial como estrutura econômica prevalecente no país: [...] não era apenas a hegemonia oligárquica que diluía o impacto inovador da dominação burguesa. A própria burguesia como um todo (incluindo-se nela as oligarquias), se ajustara à situação segundo uma linha de múltiplos interesses e de adaptações ambíguas, preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa, intransigente e avassaladora. Conforme ressalta esse autor, no Brasil, o empresariado não conseguia enxergar além do muro de suas próprias fábricas, fronteira a qual estaria circunscrito o seu moderado espírito modernizador, por isso nunca se mostrava propenso a “empolgar os destinos da Nação como um todo”. Na visão de Fernandes (1987), a ruptura do empresariado com a dominação conservadora, levada a efeito pela oligarquia agrária, seria um imperativo incontornável para o desenvolvimento pleno do capitalismo no país, empreitada para a qual deveria se unir politicamente com a classe trabalhadora. Não tendo cumprido essa, que seria uma de suas tarefas históricas, o empresariado industrial demonstrou não ter consciência do seu papel como classe que almejava alcançar a hegemonia na sociedade brasileira e, consequentemente, deixou evidente que as transformações que preconizava se limitavam, meramente, à dimensão econômica. Em sua História da Burguesia Brasileira, Nelson Werneck Sodré (1967) tende, igualmente, a classificar o empresariado industrial brasileiro como uma classe débil, vacilante, que fugiu ao compromisso histórico de realizar, no país, a revolução democrática e anti-imperialista. A interpretação de Sodré segue a linha preconizada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), fiel aos ditames da III Internacional, caracterizada por atribuir ao empresariado industrial tarefas próprias de uma “burguesia nacional”, que, além do ímpeto industrializante, deveria demonstrar um comportamento economicamente moderno e socialmente progressista. Neste sentido, para Sodré, no Brasil, a burguesia desperdiçou todo o seu potencial revolucionário ao deixar de se aliar à classe operária, a fim de promover a libertação nacional, e, aliando-se ao latifúndio, quando deveria antagonizá-lo. O resultado desse padrão de conduta teria sido a “derrota” da burguesia para as forças conservadoras em 1964. Tendo em vista tais demonstrações de fraqueza e inconsistência ideológica, Sodré (1990, p. 30-31) traça um perfil da burguesia brasileira extremamente negativo: “[...] uma burguesia tímida, que prefere transigir a lutar, débil e por isso tímida, que não ousa apoiar-se nas forças populares senão episodicamente, que sente a pressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, pois receia a pressão proletária”. 399 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 Agnaldo Sousa Barbosa REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ... Dentre as interpretações elaboradas entre os anos 40 e fins dos anos 70, a de Octávio Ianni (1989) é a única que se destaca, por entender que a participação do empresariado industrial nos assuntos da política nacional foi, inegavelmente, ativa após 1930. Curiosamente, o trabalho de Ianni é pouco mencionado entre os estudiosos do tema. Segundo Ianni (1989, p. 91), “[...] depois de uma fase em que os seus representantes estiveram quase totalmente fora do poder, após 1930 ela ganhou paulatinamente ascendência sobre os governantes e fez-se ouvir nas decisões da política econômica”. Para este autor, o Estado se manteve como o “mais importante centro de decisão” na política de desenvolvimento nacional, contudo, longe de demonstrar passividade em sua relação com as esferas de poder e por não almejar a conquista da hegemonia no interior da sociedade brasileira, o empresariado fabril se empenhou na tarefa de impor a sua dominação de classe ao conjunto social. Conforme observa Ianni (1989, p. 92), CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 [...] essa burguesia não está ausente na formulação das diretrizes governamentais, para incentivo direto e indireto da economia. Ainda que muitas vezes aparentando timidez ou falta de discernimento, a burguesia industrial assume de modo crescente as suas possibilidades de atuação sobre a política econômica estatal. Desta forma, o empresariado industrial “define de modo claro suas relações com o Estado”, às vezes infiltrando-se no aparelho estatal, outras, fazendo-o operar em seu benefício, procurando converter as relações de produção em relações de dominação de classe. Ianni (1989) observa, também, que a marcante presença do Estado na economia brasileira seria, ademais, algo desejado pelo empresariado industrial, que via o planejamento e a disciplinarização econômica exercidos pelos órgãos oficiais como fatores em si positivos para a produção;18 tal argumento afasta a hipótese, defendida por alguns autores, de que a ingerência esta18 De acordo com Ianni (1989, p. 94-95), um dos primeiros apelos coletivos do empresariado, com o fim de preconizar a ampliação da participação direta e indireta do Estado na economia, aconteceu em 1943, quando se realizou o I Congresso Brasileiro de Economia, que reuniu lideranças da indústria, do comércio e técnicos do governo. tal teria se dado pela imposição da orientação burocrática em face da fragilidade burguesa. Para Ianni (1989, p. 94), a expansão do capitalismo industrial no país não foi um processo forjado monoliticamente pelo Estado; pelo contrário, teria sido [...] o resultado de um largo e crescente convívio entre a burguesia industrial e o poder público. Depois da Revolução de 1930, paulatinamente, os membros dessa burguesia nascente procuraram interferir nas decisões do governo, no sentido de estimular-se a industrialização e planificar-se o desenvolvimento econômico nacional. Quando as transformações da estrutura econômica abriram possibilidades de ampliação e diversificação da produção industrial, a burguesia industrial nascente, os técnicos e o governo perceberam que o aparelho estatal precisava ser convertido em conformidade com a nova situação, favorecendo-a. As possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas somente poderiam ser aproveitadas em maior escala através da reorientação da política econômica do Estado. E foi o que preconizou a própria liderança empresarial, juntamente com os governantes. A tendência em ver na atuação do empresariado, dentro e fora da esfera política, um fator crucial para a consolidação do capitalismo industrial no país foi reforçada em estudos do final dos anos 70. Em Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil, por exemplo, Eli Diniz (1978, p. 95) salienta que [...] se a burguesia não deteve a hegemonia do processo de instauração da ordem econômica e social, foi um ator estratégico do esquema de alianças que permitiria a consolidação e o amadurecimento. Sua participação seria particularmente significativa no que diz respeito ao processo de definição de um projeto econômico voltado para a industrialização do país e de conscientização crescente do esgotamento do modelo primário-exportador. Todavia, não obstante essa autora assumir uma perspectiva crítica em relação às análises que caracterizam o empresariado brasileiro como um grupo fundamentalmente passivo, dotado de reduzida capacidade de articulação e organização, suas ressalvas quanto à insuficiência política e falta de autonomia da classe industrial não podem ser desprezadas. Se, por um lado, Diniz aponta uma significativa influência do empresariado nas 400 Agnaldo Sousa Barbosa situado pela ciência política nacional “como um grupo fraco e passivo”. Conforme argumenta, essa visão negativa em relação à atuação empresarial deriva de investigações acerca do desenvolvimento capitalista no Brasil, orientadas por “tipos ideais” baseados nas experiências das potências ocidentais. Segundo Boschi (1979, p. 18-19), tal perspectiva “integrada” apresentaria a vantagem de buscar explicar de que forma “[...] a atuação dos grupos privados pode favorecer ou de fato produzir diferentes tipos de interação com segmentos do aparato do Estado”, indo, assim, além das interpretações parciais do fenômeno do poder. Nesse sentido, Boschi (1979, p. 53-54) compreende que apesar da dependência dos grupos industriais nacionais em relação ao Estado, os empresários puderam estabelecer um estilo de interação entre os setores privado/público abrindo um espaço à participação direta em questões-chave relacionadas aos seus interesses enquanto classe. Para o autor, com efeito, tal atuação junto ao poder se daria muito mais pela via da estrutura corporativa que pelos meios políticos convencionais, isto é, via partido ou Parlamento. De toda forma, Boschi demonstra-se convencido de que o empresariado industrial brasileiro seria organizado e politicamente ativo, além de coerente, do ponto de vista ideológico, a despeito de não assumir uma postura liberal favorável à participação dos trabalhadores no processo político. O equívoco estaria, para Boschi (1979, p. 175), em pensar a essência ideológica da elite industrial como liberal, quando, na verdade, “[...] os valores políticos do empresariado revelam traços francamente autoritários”; ou seja, a burguesia estaria muito mais propensa à defesa da supressão do conflito de classes, tendo em vista a manutenção da ordem, que à sua institucionalização. Assim como Eli Diniz, Boschi salienta que a principal deficiência do empresariado industrial seria a incapacidade de incorporar ao seu discurso e à sua luta política anseios diversos daqueles estritamente vinculados aos seus interesses econômicos, razão pela qual não teria conseguido se estabelecer como força hegemônica. De acordo com Boschi 401 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 decisões do governo, sobretudo em instâncias econômicas importantes como o Conselho Federal de Comércio Exterior (CFCE) e o Conselho Técnico de Economia e Finanças (CTEF), o que demonstra o poder de organização da classe em torno de seus interesses específicos, por outro, a autora deixa claro que, em termos ideológicos, o empresariado industrial mostrava-se ainda em processo de amadurecimento, incapaz que era de ir além de uma visão meramente unilateral e particularista dos problemas nacionais. Nesse sentido, Diniz (1978, p. 242) afirma que a imaturidade política do empresariado industrial não se explicitaria nos pleitos protecionistas, ou mesmo por reserva de mercado ou controle do comércio exterior, “[...] mas pela resistência a medidas combinadas para evitar o custo social de vantagens desproporcionalmente distribuídas”. No que diz respeito aos vínculos existentes entre a fração industrial e os setores agrários dominantes, Eli Diniz (1978, p. 121) pondera que tal aliança se efetivaria não em virtude da ausência de consciência de classe por parte do empresariado, mas por motivos estratégicos, que serviriam ao fim de garantir o atendimento às demandas imediatas do setor fabril. De acordo com a autora, a natureza pragmática dessa solidariedade de classe era evidente; conforme observa, “[...] a cada sinal de autonomia no processo de percepção de seus interesses, seguia-se uma justificativa para manter a imagem da identidade do empresariado industrial com os demais grupos econômicos dominantes”. Porém, o exagero quanto à autonomia do empresariado industrial seria uma interpretação tão equivocada quanto àquelas que enfatizam sua dependência em face dos setores agrários; conforme faz questão de lembrar, “[...] os industriais de São Paulo jamais romperiam suas ligações com o Partido Republicano Paulista (PRP), sabidamente, o partido dos interesses cafeeiros” (Diniz, 1978, p. 243). A abordagem de Renato Raul Boschi aproxima-se bastante da levada a efeito por Eli Diniz. Propondo uma “abordagem integrada” para a análise do problema em questão, Boschi (1979) busca superar o reducionismo característico dos estudos acerca do empresariado brasileiro, consensualmente CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ... (1979, p. 230), em fins da década de 1970, uma das condições básicas para a hegemonia do empresariado industrial no Brasil estava ainda por ser alcançada: “[...] a possibilidade de ampliar o âmbito do consenso em torno de uma definição substantiva de um programa democrático que transcenda a satisfação imediata das demandas empresariais”. Das análises elaboradas nos anos 70, a de Fernando Prestes Motta é a que parece ir mais longe quanto ao entendimento do avanço da hegemonia burguesa no Brasil. De acordo com Motta (1979, p. 10), até o final da década de 1970 o empresariado industrial não havia, ainda, logrado converter-se de classe dominante em classe dirigente de pleno direito, todavia, era uma força social em plena ascensão. Conforme observa, faltavalhe hegemonia política, “[...] mas sua hegemonia ideológica é clara. Ela domina os principais aparelhos ideológicos da sociedade: escola, imprensa, o rádio e a televisão, os partidos políticos, as associações profissionais e culturais, os tribunais”. Segundo Motta, o impensável, no Brasil, seria a realização de uma revolução burguesa “à francesa” ou “à americana”, entretanto, tal constatação não implica admitir que o empresariado industrial não teria capacidade de mobilização e articulação. Do mesmo modo, esse autor caracteriza como questionável o argumento segundo o qual o empresariado brasileiro não teria, em seu horizonte político, a conquista da hegemonia. Neste sentido, observa: [...] imaginar que uma classe ascendente não tenha um projeto hegemônico é ignorar a própria natureza da luta de classes. O projeto pode não ser claro e geralmente não o é, pode ser aleatório e geralmente o é, mas isto não implica a sua inexistência, a menos que o pensemos em termos de planejamento estratégico formal (Motta, 1979, p. 106). Coerente com tal raciocínio, Motta (1979, p. 131) argumenta que “[...] na verdade, a burguesia chamou o Estado em seu socorro, em benefício de seu projeto”. Ademais, este autor mostra-se extremamente crítico em relação às interpretações que tendem a subestimar a capacidade de organi- zação social e política do empresariado fabril, assim como a exagerar a complementaridade e harmonia de interesses entre o setor industrial e as elites rurais; Motta (1979, p. 104) assinala que “[...] o perigo que se pode incorrer neste tipo de análise é a perda de vista do processo real de diferenciação de interesse, através do qual a burguesia progressivamente definiria a sua própria identidade”. Para Fernando Prestes Motta (1979, p. 53), o empresariado industrial brasileiro também não pode ser considerado politicamente imaturo por ter aceitado a associação com o capital estrangeiro, pois, segundo argumenta, tratava-se de uma questão de escassez de possibilidades. Nesse aspecto, esclarece: A aceitação do capital estrangeiro pode ter sido a saída conjuntural para a burguesia nacional. Na medida em que um projeto hegemônico é marcado pela articulação, desarticulação e rearticulação de interesses, a associação pode ser vista como parte desse projeto, o que não implica dizer que ela tenha sido a melhor tomada de posição por parte da burguesia ascendente. Na visão de Motta, a construção de uma frente popular desenvolvimentista de modo algum se colocava como opção exclusiva para a ação burguesa no país. Pelo contrário, a aliança entre empresariado industrial e capital internacional, tendo em vista a conquista do poder de Estado, configurou-se como um caminho perfeitamente possível e que encontrou acolhida em parte significativa do empresariado. E tal associação não se traduziu, necessariamente, em enfraquecimento da classe; de acordo com Motta (1979, p. 108), no contexto dos anos 70, a burguesia industrial-financeira continuava “[...] desempenhando um papel indiscutível no sistema produtivo, que se reflete num papel político, que não pode ser meramente desprezado”.19 O trabalho de Maria Antonieta Leopoldi é outro a contestar, enfaticamente, o argumento segundo o qual o empresariado industrial foi mero expectador das mudanças em curso a partir de 19 Conforme observa Fernando Prestes Motta, ainda que, nesse período, a atuação dos grupos estrangeiros fosse predominante em setores cruciais do mercado interno, o capital nacional continuava dominando boa parte do sistema produtivo. 402 1930. Realizando o que entende ser uma análise que combina a tese da fragilidade da burguesia com a da competição interclasse no contexto do capitalismo industrial, Leopoldi (2000, p. 31) defende a ideia de que, “[...] para os industriais, o corporativismo significou antes o acesso à mesa de negociação do que propriamente a submissão ao controle do Estado”. A autora observa que, longe de serem instrumentos arbitrariamente manipulados pelos desígnios da vontade estatal, as entidades da indústria e do comércio demonstraram força suficiente para inviabilizar o “sonho corporativo” do Estado Novo; neste aspecto, ressalta que não apenas a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) comandou a luta contra a “corporativização” dos industriais nos moldes desejados pelo governo, sobrevivendo às imposições autoritárias do regime, como conseguiu, no início dos anos 40, garantir o status de “órgão técnico consultivo”, antes concedido somente às entidades oficiais. Seguindo uma linha francamente inclinada a conceber o empresariado fabril como um grupo autônomo no contexto do processo de construção do capitalismo industrial no país, Leopoldi (2000, p. 86) enfatiza: Os industriais do eixo Rio-São Paulo conviveram com regimes de tipo oligárquico, liberal e ditatorial. Desde 1930, contudo, conseguiram fazer com que o Estado, a despeito de sua presença crescente na economia, respeitasse a sua liberdade de organização em entidades privadas, paralelas ao sindicalismo oficial. Em seu aprofundado estudo acerca da atuação das mais importantes associações de classe do país, Leopoldi assinala, ainda, que os industriais e suas organizações de classe se envolveram ativamente no desenrolar da trama política nacional, não obstante sua tácita omissão nos momentos históricos em que houve mudança de regime.20 Leopoldi apresenta numerosas evidências desse envolvimento dos empresários no mundo da política, com destaque para a presença de industriais de relevo em importantes cargos do governo. No governo Dutra, por exemplo, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi ocupado por Morvan Dias Figueiredo, líder de peso na FIESP; para Leopoldi, não foi por acaso que, nesse período, as entidades dos trabalhadores sofreram um número recorde de intervenções por parte do governo. Entre 1949 e 1953, o Ministério da Fazenda foi ocupado por dois industriais, o carioca Guilherme da Silveira – ligado à Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) – e o paulista Horácio Lafer – ligado à FIESP –, o que ajuda a explicar a proteção da indústria pela política cambial do governo no período. Entre 1951 e 1953, o industrial Ricardo Jafet ocupou a presidência do Banco do Brasil, dando ensejo à expansão do crédito ao setor secundário. Ainda no Segundo Governo Vargas, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) forneceu corpo técnico e cedeu suas instalações e serviços de secretaria para a Comissão de Revisão Tarifária, responsável por formular uma estrutura tarifária que fosse suficientemente flexível para conviver com a inflação interna e as incertezas da economia internacional. Do ponto de vista ideológico, Maria Antonieta Leopoldi chama a atenção para o fato de que o protecionismo econômico – todavia, sem a conotação pejorativa que carrega nos dias atuais – foi o élan a animar as principais lutas do empresariado brasileiro, lutas estas que resultaram em políticas governamentais inequivocamente positivas para a consolidação do processo de desenvolvimento industrial. Leopoldi (2000, p. 87) observa, ademais, que, paralelamente à construção de uma proposta de política industrial amadurecida em décadas de luta pelo protecionismo, o empresariado foi definindo, também, um projeto hegemônico. Conforme salienta, 20 Segundo Leopoldi (2000, p. 27-28), tal omissão se deu porque a estratégia da burguesia industrial “[...] foi exatamente a de não se contrapor aos novos governantes, para poder entrar na coalizão e dali ir se fortalecendo aos poucos. A essa estratégia pode-se dar o nome de pragmatismo”. 403 [...] em nenhum momento recorrendo a um discurso que sugerisse intenções hegemônicas, a liderança da FIESP e CNI foi pondo em prática uma série de medidas, estabelecendo alianças estratégicas com o governo e com os militares, criando formas de controlar o movimento operário, ações que indicavam claramente sua busca de uma hegemonia política. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 Agnaldo Sousa Barbosa CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ... Aprofundando a tendência que procura realçar a autonomia do empresariado industrial e seu protagonismo no processo de desenvolvimento capitalista no Brasil, recentemente, Márcia Maria Boschi empreendeu interessante releitura das abordagens até então realizadas. Ao lançar mão da ideia de que o empresariado brasileiro constituía, de fato, uma burguesia interna e não uma burguesia nacional, M. M. Boschi (2000) buscou superar aquele que, para ela, consistia no principal equívoco na interpretação do modo de agir e pensar dessa classe: a visão de imaturidade e/ou inconsistência ideológica do empresariado industrial por não se fazer defensor, também, dos interesses de outras classes e por não aderir ao projeto de desenvolvimento dos nacionalistas. Inspirada no pensamento de Nicos Poulantzas,21 M. M. Boschi argumenta que, grosso modo, uma burguesia pode ser definida como nacional quando há contradição de interesses econômicos entre os setores que a compõem e o capital estrangeiro em um grau que a torne susceptível de envolver-se em uma luta antiimperialista e de liberação nacional. Nesta situação, a burguesia pode vir a adotar posições de classe que a incluam no “povo”, assim como compor alianças com as massas populares. No caso brasileiro, a burguesia era interna – e não nacional – por ter significativa permeabilidade ao capital estrangeiro, do qual dependia até mesmo com o fim de possibilitar seu progresso tecnológico, e, também, por coexistir com segmentos do empresariado vinculados à importação de manufaturados, setor, aliás, do qual advieram muitos dos membros da burguesia industrial; a despeito disso, segundo M. M. Boschi, essa burguesia não deixava de ter um fundamento econômico e uma base de acumulação próprios no interior de sua formação social. Para a autora, realizadas tais distinções, fica mais fácil entender a dinâmica de atuação de tal classe. Assim, “[...] não era a burguesia brasileira que se recusava a assumir ‘seu papel histórico’ na promoção do desenvolvimento do país, mas era a teoria que não dava conta do comportamento polí- tico e econômico do empresariado industrial” (Boschi, M. 2000, p. 37). Conforme salienta, uma burguesia interna não se inclina ao confronto com a burguesia agrária, nem à formação de alianças com a classe trabalhadora. Ela prefere, antes, formar alianças com outros setores da classe dominante. A burguesia interna também coloca várias restrições ao seu apoio político ao projeto de industrialização reivindicado pelos nacionalistas, pois diferentemente desses, não se preocupa em promover um desenvolvimento econômico que leve à liberação nacional. (Boschi, M. 2000, p. 42). CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, podemos concluir que, especialmente no último quartel do século XX, houve uma considerável evolução na forma de se pensar a atuação do empresariado industrial brasileiro, tendendo a compreendê-lo como um ator social ativo no processo de modernização capitalista pós-1930. Não obstante, pensamos que não há um caminho ideal a ser seguido na análise dessa classe. A nosso ver, a reivindicação da complexidade que engendra a formação e o comportamento do empresariado no Brasil é um imperativo incontornável, que leva à construção de mediações que melhor reflitam a realidade a ser estudada (geral, setorial, local ou regional, etc.), podendo-se abranger o terreno de múltiplas interpretações. Neste sentido, é importante se valorizar a atuação dos empresários fabris como força ativa a impulsionar o processo de desenvolvimento industrial, entretanto, sem superestimar sua autonomia diante da figura de um Estado que se constituiu peçachave na construção do capitalismo no país. É fundamental, enfim, ter em mente que as diversas frações burguesas apresentam historicidade singular, ao contrário da generalização simplificadora que orienta muitas abordagens do tema; neste caso, coloca-se em xeque a ideia de uma burguesia monolítica, que, na verdade, nunca existiu. 21 A referência utilizada pela autora é Poulantzas, N. As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 404 Recebido para publicação em 23 de janeiro de 2012 Aceito em 05 de fevereiro de 2013 Agnaldo Sousa Barbosa REFERÊNCIAS BOSCHI, Renato Raul. Elites industriais e democracia: hegemonia burguesa e mudança política no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. BOSCHI, Márcia Maria. Burguesia industrial no governo Dutra (1946-1950). Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Campinas: IFCH/UNICAMP, 2000. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Empresários e administradores no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1974. ___________. Empresários, suas origens e as interpretações do Brasil. In: SZMRECSÀNYI, Tamás; MARANHÃO, Ricardo. História de empresas e desenvolvimento econômico. 2a. Ed. São Paulo: Hucitec: ABPHE: Edusp: Imprensa Oficial, 2002, p. 143-164. CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 4a. Ed. São Paulo: UNICAMP/IE, 1998. CARDOSO, Fernando Henrique. 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REVISITING THE LITERATURE ON BRAZILIAN INDUSTRIALISTS: dilemmas and controversies RELECTURE DES ÉCRITS CONCERNANT LES ENTREPRENEURS INDUSTRIELS BRÉSILIENS: dilemmes et controverses Agnaldo Sousa Barbosa Agnaldo Sousa Barbosa Over the past five decades several different interpretative traditions have taken on the task of trying to explain the origin of industrialists in Brazil and to analyze their behavior pattern from a business perspective, as well as in response to the country’s biggest political issues. Although this is a stimulating subject, considering the important role to be played by these social actors in weaving the fabric of capitalist modernization in 20th century Brazil, not much of substance has been written about it, in contrast with, for instance, research about the working class. This paper makes a brief assessment of what we believe to be one of the most significant among the possible variables for interpreting the experience of the industrialist class, which demands the complexity inherent to the topic as a counterpoint to the simplified generalization which is recurrent in most writings about this subject. Au cours des cinquante dernières années, différentes traditions interprétatives ont cherché à expliquer la genèse de l’entreprenariat brésilien et à analyser sa manière d’être du point de vue de l’entreprise économique, mais aussi face aux questions essentielles de la politique nationale. Même s’il s’agit d’un thème excitant étant donné l’importance du rôle que doit assumer cet acteur social dans l’élaboration du processus de modernisation capitaliste du pays au XXe siècle, son étude n’est pas objet d’une production abondante contrairement à ce qui se passe, par exemple, pour les investigations concernant la classe ouvrière. Cette analyse fait un bilan succinct de ce que nous jugeons être la plus expressive des variables possibles de l’interprétation de l’expérience de la classe des entrepreneurs industriels qui revendique la complexité inhérente au thème, en opposition à la généralisation simplificatrice habituelle dans la plupart des travaux effectués sur ce thème. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013 KEY WORDS: Industrialists. Social class. Business MOTS-CLÉS: entreprenariat industriel; classe sociale; comportement entrepreneurial; industrialisation behavior. Brazilian industrialization. brésilienne. Agnaldo Sousa Barbosa – Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Universidade Estadual Paulista (Campus de Franca). É professor colaborador do Programa de PósGraduação em Serviço Social e coordena o LabDES – Laboratório de Estudos Sociais do Desenvolvimento e Sustentabilidade, onde, atualmente, supervisiona 4 projetos de pós-doutorado financiados pela FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Autor de Empresariado Fabril e Desenvolvimento Econômico, publicado em 2006 pela Editora Hucitec. Sua publicação mais recente, em co-autoria, é “Mudança de fronteiras étnicas e participação política e descendentes de imigrantes em São Paulo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, p. 135-151, 2012. 406 Tatiana Berringer Tatiana Berringer Qual a relação dos movimentos sociais e sindicais com o governo Lula? Como a política estatal contribuiu para o retorno do crescimento econômico? Qual é o conflito de classes existente hoje no Brasil? De maneira original e muito rigorosa, o livro Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000 procura responder parte destas questões. Ao reunir nove artigos de membros do grupo Neoliberalismo e relações de classe no Brasil, sediado no Centro de Estudos Marxistas (CemarxUnicamp), o livro busca sistematizar, em dois blocos, estudos sobre as classes dominantes, as classes médias e as classes populares. Os autores tratam o conflito de classes como uma luta pela distribuição da riqueza e não como uma disputa entre capitalistas e socialistas, pois entendem que esse tipo de disputa não está colocada na atual conjuntura política e econômica. Neste sentido, reconstituíram alguns elementos importantes do comportamento das classes médias e de frações das classes dominantes durante a década de 1990. Esta reconstituição nos permite perceber os elementos contraditórios que já se manifestavam nos governos anteriores e que foram rearticulados sob uma nova roupagem nos governos Lula (2003-2010). Mastuscelli defende que, apesar da raiz do processo do impeachmant do presidente Fernando Collor ter sido resultado da política econômica, foram os estudantes de classe média que ocuparam a função de agentes substitutos das classes burguesas e proletárias. Isso porque a burguesia brasileira estava acossada pela durante o governo Collor, havia resistências seletivas às políticas neoliberais – manifestações corporativas – como as críticas da burguesia industrial ao aumento das importações e as críticas dos investidores aos confiscos dos ativos financeiros. Entretanto, as insatisfações destas frações das classes dominantes se deram, apenas, de maneira pontual (seletiva) e não se reverteram em uma oposição ao governo, pois, no geral, concordavam com as demais políticas neoliberais, em especial, a flexibilização das leis trabalhistas e o enxugamento da máquina estatal. Para Boito Jr e Sávio Cavalcante, no governo Lula, o Estado convocou a burguesia brasileira a ter uma postura mais ativa. A nova burguesia brasileira (a burguesia interna) é uma fração que reúne diversos setores como grupos industriais, agronegócio, construção civil, minerações e outros. Através do apoio e do financiamento do BNDES, o governo fortaleceu esta fração no interior do bloco no poder em contraposição ao capital financeiro. Esta fração é a força dirigente da frente neodesenvolvimentista que abarca, também, o movimento popular e sindical. Ou seja, com a ascensão do Lula ao cargo de presidente do Brasil, em 2003, muita coisa mudou. Não tanto quanto esperava parte do eleitorado e, em especial, alguns integrantes do próprio PT e muitos intelectuais. Durante o primeiro mandato, as análises acadêmicas (Leda Paulani, Chico de Oliveira, e outros) foram predominantemente negativas, acusava-se o governo de continuidade em relação ao antecessor, em função da manutenção do tripé econômico (superávit primário, juros altos e câmbio valorizado) e criticava-se a reforma da previdência dos servidores públicos e o assistencialismo das políticas sociais, em especial o Programa Fome Zero e o Bolsa Família. A partir de 2005, após a chamada “crise do mensalão” e, especificamente, no segundo mandato do presidente Lula, as políticas neodesenvolvimentistas se tornaram mais intensas e, nesse sentido, o livro enfatiza a clara mudança entre os 409 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 409-411, Maio/Ago. 2013 BOITO JR, Armando; GALVÃO, Andréa (Orgs). Política ofensiva imperialista e pelo forte movimento gree classes sociais no Brasil nos anos 2000. São Paulo: Ed. vista de 1970 e 1980. Os autores afirmam que, Alameda, 2012. 429p. CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 409-411, Maio/Ago. 2013 RESENHA governos FHC e Lula, no que toca à política econômica e social. Cavalcante defende que o setor de telecomunicações é um bom exemplo do neodesenvolvimentismo no governo Lula. A fusão da Oi com a BrT, com o auxílio do BNDES, e o retorno da Telebrás no Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) compõem parte da política de formação da “campeãs nacionais” e o retorno da participação de empresas estatais nos serviços públicos. As “campeãs nacionais” foram as empresas que receberam aportes do BNDES e dos fundos de pensão (Previ, Pretos, etc) para aquisição de novas empresas ou fusão com as concorrentes do ramo, com o objetivo de se tornarem líderes globais no seu segmento; por isso, a maioria destas empresas passou a atuar em outros territórios e passou a monopolizar o mercado interno no seu segmento. Boito Jr adverte que o neodesenvolvimentismo é o desenvolvimento possível nos marcos no neoliberalismo. Segundo ele, o prefixo “neo” indica três grandes diferenças com o desenvolvimentismo do período de 1930-1980: 1) índices mais modestos de crescimento; 2) a aceitação da especialização regressiva, já que a produção se concentra em segmentos de baixa densidade tecnológica; 3) produção voltada para exportação. Para o professor, a eleição de Paulo Skaf, em 2004, para a presidência da Fiesp, com o apoio de Lula, foi uma inflexão na relação da entidade com o governo. Skaf relançou a Revista da Indústria e passou a criticar, com mais ênfase, a política de juros, o spread bancário, etc. Por isso, viu com bons olhos a troca de Palocci por Meireles no Banco Central, em 2005. No que se refere às classes populares, o crescimento econômico trouxe consigo o aumento do número de empregos e do salário mínimo; com isso, houve uma aproximação das duas principais centrais sindicais – Força Sindical e CUT –, a retomada das greves e uma dificuldade de mobilização dos movimentos sociais, cujas bases eram, predominantemente, de desempregados. Por outro lado, a reforma sindical e a reforma da previdência contribuíram para a fusão de algumas antigas centrais e o surgimento de novas organizações como a Conlutas e a Intersindical, estas duas organizações fazem oposição declarada ao governo, estando, respectivamente, ligadas ao PSTU e PSOL. As políticas sociais, em especial o Programa Nacional de Habitação “Minha casa, minha vida”, exerceram, também, um importante papel: atenderam parte das reivindicações dos movimentos de moradia e dos movimentos dos desempregados. Na realidade, Oliveira e Hirata demonstram que as famílias que mais se beneficiaram não estavam entre os 90% de renda de 0 a 3 salários mínimos, o que demonstra que, apesar de ser uma política que atendia aos reclamos dos movimentos de luta por moradia, não privilegiou, exatamente, a parcela mais necessitada. As classes médias, sobretudo o setor com alta escolaridade, foram muito afetadas pelas políticas neoliberais, e, ao que parece, foram as que menos tiraram proveito do neodesenvolvimentismo. Não tiveram muitos ganhos salariais, não houve redução dos pagamentos dos serviços como educação, seguro de saúde, etc. E, sobretudo, os servidores públicos perderam direitos com a reforma da previdência. A principal manifestação destes setores nos anos 2000 foi o Fórum Social Mundial (FSM). Segundo Ana Elisa Corrêa e Santiane Arias, a sua base é, predominantemente, de classe média escolarizada e o conselho internacional é composto, predominantemente, por organizações não-governamentais, esses seriam os principais motivos para o caráter pouco propositivo e apartidário do FSM. Pelo que se pode constatar da leitura do livro, há um limite e um desafio muito grande para a perpetuação do neodesenvolvimentismo no Brasil. O governo teria que aprofundar e modificar algumas políticas sociais, como o Programa Habitacional, a fim de atender à camada mais necessitada e, precisaria, ao mesmo tempo, conceder maiores ganhos às classes médias, sem que, para isso, os ganhos da burguesia interna sejam diminuídos. Não há como atender às demandas da burguesia interna como, por exemplo, a redução dos custos com a folha de pagamento, o aumento das terceirizações e, ao mesmo tempo, ter o apoio 410 Tatiana Berringer melhor, disputam a distribuição dos recursos produzidos pelo crescimento econômico. Afinal de contas, não há como conciliar eternamente interesses contraditórios. Recebido para publicação em 07 de julho de 2013 Aceito em 30 de julho de 2013 Tatiana Berringer - Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Integrante do grupo “Neoliberalismo e Relações de Classe no Brasil”, vinculado ao Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e do Grupo de Estudos e Pesquisas para Alternativas em Relações Internacionais (GARI) vinculado a UnespFranca. Pesquisa: Política Externa Brasileira; Teoria das Relações Internacionais; Teoria do Estado; Classes sociais. [email protected] 411 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 409-411, Maio/Ago. 2013 das classes médias e dos movimentos sindicais e populares. Este é o limite da própria frente neodesenvolvimentista, os diferentes setores concordam com a proteção ao mercado interno, o aumento do crédito, a redução dos juros, mas discordam em relação aos direitos trabalhistas, ou RETRATO DE UMA FIGURA EXEMPLAR: para lembrar o passamento do professor Edmundo Fernandes Dias MEMÓRIA Leonardo Mello e Silva No dia 3 de maio de 2013, faleceu, na cidade de Campinas, São Paulo, o Prof. Dr. Edmundo Fernandes Dias, professor aposentado do curso de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, onde ministrou aulas tanto na graduação quanto na pós-graduação. Vinculado ao Departamento de Sociologia, o Professor Edmundo lecionava Teoria Sociológica e era um profundo conhecedor do pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci. Se fosse o caso de se traçar um perfil do Professor Edmundo, pode-se afirmar que esse se desdobrava em várias facetas: o intelectual, o professor, o militante sindical, o militante político. Em todas essas facetas, um traço comum: o senso de companheirismo inquebrantável, acompanhado de uma profunda aversão às soluções “geniais”, que mal escondem o afã do holofote. A discrição nessa matéria era inversamente proporcional à busca de rigor teórico e à opção visceral pelas soluções cole* Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Sociologia da USP. Foi aluno do Professor Edmundo Fernandes Dias no IFCH da Unicamp, e estudante de pós-graduação na mesma instituição, entre 1985 e 1989. Av. Luciano Gualberto, 315 - sala 212. Cidade Universitária. Cep: 05508-900 – São Paulo, SP – Brasil. [email protected] tivas. Nisso ele era profundamente marcado pela experiência da esquerda radical (no que essa se opunha à postura do PCB nos anos 1970), tendo sido o produto de uma geração. Edmundo era um homem de esquerda, com uma cultura de esquerda e socialista. De sua faceta de intelectual, pode falar muito bem o cultivo de uma biblioteca notável, particularmente rica no tocante aos títulos dedicados às Ciências Sociais e ao marxismo, sendo, por isso, um saboroso convite às pessoas sensíveis a esses dois temas. De sua faceta de professor dedicado e preocupado com os seus alunos, pode falar a lembrança carinhosa de todos aqueles que assistiram às suas aulas ou foram seus orientandos. De sua faceta como militante sindical, basta recordar a atuação marcante e quase contínua, ocupando diversos cargos nas diretorias da Adunicamp (do qual foi um dos fundadores) e da Andes. E, mesmo quando de cargos não se tratava, estava sempre lá, ajudando, discutindo e polemizando de maneira consequente nas instituições representativas dos professores universitários, durante longos anos, sem nenhuma cerimônia ou desconforto por exercer esse papel. Como militante político, é suficien- 413 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 413-417, Maio/Ago. 2013 Leonardo Mello e Silva* CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 413-417, Maio/Ago. 2013 RETRATO DE UMA FIGURA EXEMPLAR ... te mencionar o ativo engajamento na construção do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores, no início dos anos 1980, dos quais mais tarde se afastou, por razões – exatamente – políticas. Seu papel de intelectual público e sua atuação pedagógica junto aos movimentos sociais e ao universo sindical foram muito justamente evocados nas notas que vieram à tona, na imprensa militante, após o seu desaparecimento. Gostaria, contudo, de explorar um outro aspecto de sua personalidade, mais ligado aos assuntos que mobilizam esta revista e a instituição que a anima, isto é, a instituição universitária. Trata-se da profunda fenda que se alargou – e vem se alargando cada vez mais – entre, por um lado, uma personalidade que via a universidade e a sociabilidade companheira que anima a crítica da divisão do trabalho intelectual como um elemento integral da prática acadêmica e, por outro lado, a universidade realmente existente e o modo de convívio entre seus pares. Edmundo acompanhou como que a transição entre esses dois modos de viver a universidade: a universidade em que ele se formou como estudante de ciências sociais, e a universidade em que ele estava trabalhando como professor de ciências sociais. Durante o período de sua prática profissional (que vai dos anos 1970 até meados dos anos 2000), a universidade mudou muito, tornando quase irreconhecível aquele élan que ela carregava em seu tempo, o de pensar o Brasil e mudar o mundo, e onde a integralidade entre ensino, pesquisa e extensão não era ainda um jargão burocrático, mas um projeto político. Essa integralidade foi-se quebrando, pouco a pouco, até opor, de um lado, a “excelência” produtivista feroz e eticamente neutra e, por outro lado, a “visão política”, desvalorizada na mesma medida de sua “confusão” (segundo os porta-vozes dessa visão) entre fins e meios. Edmundo era de uma geração que tinha levado a sério a crítica da divisão do trabalho como um legado para ser aplicado à vida, e não apenas como um tópico para ensinar na sala de aula. Isso ficava evidente em sua prática, e era o que o torna- va, de certo modo, incômodo para as personalidades intelectuais avessas a essa mistura de cenários - para usar um termo goffmaniano. Não havia, por exemplo, para ele um momento black-tie, porque ele acreditava piamente que não era o hábito que faz o monge, mas sim, o contrário (com a ressalva de que, ao invés de “monge”, por favor leia-se “homem”, no sentido genérico do “gênero humano”). Na radicalidade do exemplo de Edmundo, não havia essa de cenários diferentes, pois a permanência de valores morais deveria se impor quaisquer que fossem as circunstâncias. Era uma postura, no fundo, republicana-radical que, para ser consequente, desorganizava os papéis, ainda bastante estamentais, que fornecem o imaginário de classe média de nossa universidade, em termos de práticas e hábitos inveterados, de gosto e de preconceito. Havia uma clara opção preferencial pela plebe, não como plataforma abstrata, mas como prática de trabalho intelectual. O Prof. Edmundo aplicava o exemplo do movimento operário em sua própria vida, de maneira análoga ao modo como os homens verdadeiramente vocacionados fazem com a sua fé. Edmundo era, pois, um ser profundamente imbuído de vocação política. E ele via a Universidade como devendo funcionar desse jeito, como uma instituição verdadeiramente pública, daí o seu paulatino afastamento do ambiente e das instâncias de consagração do chamado “campo intelectual”, e sua resoluta opção pelo trabalho de difusão educativa outsider. Dessa forma, espontânea mesmo, e como que natural, o Prof. Edmundo acabou cantando a bola do que iria acontecer nos anos 2000, em termos da consolidação de um padrão de universidade elitizada, presa da expansão dos critérios neoliberais de gestão, avaliação e orientação valorativa. Hoje se vê com nitidez aonde foi conduzida a universidade: ao modelo gestionárioempresarial, que consagra a respeitabilidade como antagônica aos movimentos sociais e às suas demandas “políticas”. A cisão entre política e saber foi o produto da ciosa tendência de “proteger” a universidade da influência dita “partidária”, temática essa que 414 calhava perfeitamente, como contraponto, no tipo de elaboração que o pesquisador Edmundo recolhia dos ensinamentos da democracia operária conselhista do bienio rosso de Turim, objeto de seus estudos doutorais: os de que a democracia (o “para todos”) vem, primeiramente, da evocação da parte sobre o todo - o que pode parecer paradoxal, mas expressa bem a percepção marxista de que a classe que tende ao universal (proletariado) está em seu direito de evocar a sua particularidade que acaba, por fim, negando toda a particularidade (sociedade dividida em classes). Assim, pode-se perceber como uma pesquisa, aparentemente apenas teórica, ou específica de uma época histórica determinada (lutas sociais na Itália, final da primeira década do século vinte), pode iluminar contextos bem diversos, guardando, contudo, em certo plano, uma problemática similar. OS INTELECTUAIS E A POLÍTICA E OS INTELECTUAIS NA POLÍTICA Dois casos bem conhecidos pela crônica da vida política brasileira são elucidativos do papel nada desprezível do intelectual de esquerda na condução da direção moral da sociedade – que é a expressão gramsciana, famosa, para referir-se à luta simbólica, conhecida como “guerra de posições”. Na primeira eleição de FHC, em 1994, um intelectual respeitável da universidade – em especial da área de ciências sociais – chegava ao topo da cena política nacional. Muitas pessoas comuns, letradas e progressistas, guardavam, ainda, a imagem do brilhante professor universitário e teórico da dependência, escritor de livros influentes entre estudantes e interessados pela “realidade brasileira”. Movidas por uma certa dívida para com os de sua geração, deram um crédito de confiança ao personagem, embora já estivesse clara, àquela altura, para os mais entranhados no debate público, a profundidade da virada em direção a um liberalismo consequente e pertinaz. É interessante ter em conta esse efeito de inércia que faz perdurar uma ilusão no seio de uma opinião pública infor- mada, típica das metrópoles e dos centros de difusão da cultura. Ao mesmo tempo, é interessante observar, também, o uso estratégico (para os fins práticos da vitória eleitoral), bem pensado e sopesado pelos profissionais de marketing, da preservação de tal patrimônio como um ativo poderoso a ser oportunamente empregado. Até que a ficha caia, são milhares de professores, artistas, espectadores de teatro, de cinema e de artes, jornalistas, publicitários (os famosos “analistas simbólicos”, noção de circulação fácil desde o início dos anos 1990), entre outros, espalhados profissionalmente por entre o ambiente da circulação das ideias, que votam. Cálculo idêntico pode ser percebido décadas depois, quando, nas eleições de 2012 para as prefeituras das capitais, o ex-presidente Lula ungiu dois intelectuais de seu partido para prefeituras de cidades importantes: São Paulo e Campinas. Também ali eram figuras respeitáveis e com capacidade de liderança intelectual sobre um público leitor e crítico. A percepção de um recurso simbólico eficaz na batalha pela opinião pública (e que quase deu certo em ambos os casos) é típica de quem conhece bem o terreno em que está pisando, e é sensível ao clamor difuso das ruas. Sair, como os dois saíram, de um base incólume à pretensa “sujeira” do mundo da política partidária strictu sensu, onde estão abrigados tanto o assessor parlamentar quanto o militante enraivecido, tanto o político profissional quanto o ativista arrivista - eis a mágica tirada de uma boa cabeça estratégica, que vê no neófito o passaporte para “zerar” tudo o que o passado (recente) condena – especialmente quando o ambiente do qual é pinçado, sendo valorizado e cultuado, é inversamente proporcional àquele que apascenta o político tradicional, feito de jogo sujo, mentira e corrupção. Os intelectuais são, sim, importantes no cenário político. Gramsci foi um dos que cedo alertou sobre essa importância simbólica na luta cultural e argumentativa. O Prof. Edmundo, por seu turno, leitor apaixonado e intérprete visceral daquele autor, percebia muito bem o alcance profundo das reflexões do revolucionário sardo quanto a este ponto: o de 415 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 413-417, Maio/Ago. 2013 Leonardo Mello e Silva CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 413-417, Maio/Ago. 2013 RETRATO DE UMA FIGURA EXEMPLAR ... que, longe de deter-se nesse papel de influência e de preservação de sua própria autonomia enquanto intelectual, este último pode agir de forma mais efetiva e certeira, indo como que “direto ao ponto”, isto é, tomando um lado. Intelectual “orgânico”. A sociologia dos intelectuais, hoje praticada nos centros dominantes de pesquisa, limita-se a diagnosticar a autonomia do campo, raramente considerando a hipótese da consciência dessa impossibilidade teórica e da investida resoluta, por parte do intelectual, em um dos lados da luta, em detrimento do outro. O que era mais ou menos plausível no contexto das ideias, nos anos 1980, foi deixando de sê-lo, paulatinamente, na medida em que a Universidade foi se profissionalizando e, ao mesmo tempo, expulsando certos temas de sua pauta, tais como o engajamento e a crítica tanto da “excelência” quanto da “competência”; crítica essa que tinha como pano de fundo o ideal democrático-radical de que “todos os homens são intelectuais”, uma divisa gramsciana hoje esquecida. Isso explica, por parte do Prof. Edmundo, um certo pudor – muitas vezes percebido, quase nunca explicitado – com a afirmação da insígnia universitária como marca de distinção (que ele de resto merecia indiscutivelmente), simultaneamente a um certo anonimato deliberado, profundamente coerente com sua maneira de encarar o mundo. Tanto o engajamento quanto a crítica acabaram migrando do centro do debate acadêmico para fora dele, indo aninhar-se nos movimentos sociais, deixando o cenário “interno” (isto é, da própria Universidade com seus departamentos, faculdades e congregações) entregue ao discurso da eficiência, da produtividade et pour cause, da competitividade. Parece que o Prof. Edmundo percebeu o movimento de fechamento de horizontes e, o que antes era uma tensão dentro da Universidade entre o papel do intelectual na luta no front interno (institucional) e na luta no front externo (público) acabou se resolvendo, na biografia do nosso personagem, em um deslocamento cada vez mais pronunciado em direção ao front externo (o que incluía, como já se fez referência, a participação nas entidades sindicais do professorado, prin- cipalmente a Andes e a Adunicamp). Sua tese de doutorado, defendida na PósGraduação em História Social da USP, em 1984 e, depois, editada em publicação da Unicamp dedicada às teses de seus docentes, no ano de 1987, em dois volumes, com o título de “Democracia Operária”, é um estudo minucioso sobre a formação do pensamento de Antonio Gramsci. Lá estão tematizadas questões fulcrais e da maior relevância, tais como o círculo intelectual em uma sociedade atrasada do ponto de vista europeu, seus deslocamentos e instabilidades; a relação desse círculo com os meios de difusão das ideias, como as revistas; o transformismo como padrão político e ideal na sociedade italiana (podendo ser generalizado como um padrão recorrente toda a vez que os de baixo irrompem na cena política); a decapitação das lideranças que se destacavam nos movimentos sociais como uma estratégia política das elites (assunto a que ele sempre voltava como algo rotineiro na realidade muito concreta das lutas sociais do presente e, também, um índice da fraqueza dos intelectuais em contextos subdesenvolvidos); a descrição encarnada - porque histórica – da luta pela hegemonia e o papel da moderna classe dos trabalhadores nela – a lista de tópicos poderia se estender. De fato, muito do que Edmundo lia, a propósito da Itália do início do novecento, com Gramsci, na verdade mirava o Brasil do período da redemocratização e do surgimento do PT e da CUT, então as grandes esperanças (mencionadas, inclusive, na Introdução de seu doutoramento!). Pode-se ver, assim, a meu juízo, certo tipo de escolha do Professor – escolha ao mesmo tempo profissional e política – que orientou a sua vida nos anos de Unicamp. Escolha profissional porque, sabendo das limitações da manutenção de um papel respeitável (e jamais porque não estivesse à altura dele, muito ao contrário - como todos os seus alunos, colegas e aqueles que com ele conviveram sabem muito bem), optou por ir fundo na experiência da transformação por meio de uma atividade pedagógica direcionada aos que mais sensíveis estão à necessidade de mudanças: aqueles 416 Leonardo Mello e Silva permanente déficit, um certo sentimento de pequenez, como que a dizer que concordávamos com ele, mas que éramos incapazes de manter o mesmo grau de exigência; um sentimento de que deveríamos estar ali, onde ele estava, fazendo o que ele fazia, e que qualquer decisão diferente seria como que abandonar o barco. Mas isso implicava, por suposto, uma certa dureza (vê-se depois, mas apenas muito depois, que essa dureza é a condição daquela coerência). É nesse sentido que o Prof. Edmundo era um exemplo. Não um exemplo pelo convencimento professoral, mas pela prática, como que a dizer, por atos e compromissos, a todos aqueles que lutavam a sua luta, o que, afinal, tinham de fazer e, sobretudo, onde tinham de estar. A prova da vida, por meio de atos exemplares, embora simples, sem nenhuma pompa ou anúncio solene. A ação política estava completamente incorporada na prática de sua vida. Especialmente – e esse é o lado triste, que explica a situação do Professor, sua relativa marginalidade diante dos colegas de profissão, à medida que o tempo ia passando – na Universidade e, dentro dessa última, nos cursos de Ciências Sociais. Relembrar o Prof. Edmundo e seu legado como professor e como intelectual de esquerda significaria tentar erigir um tipo de relação diferente da que é hoje praticada entre o saber e o agir. Leonardo Mello e Silva – Doutor em Sociologia. Professor da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: sindicalismo, reestruturação produtiva e qualificação do trabalho. Publicações recentes: Qualidade de vida, opinião pública e ação de bairro. A trajetória do movimento antiverticalização em São Paulo. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 92, p. 99-123, 2011; Prática de pesquisa e “sociologia pública”: uma discussão em torno de cruzamentos possíveis e outros nem tanto. Sociologias (UFRGS), v. 11, p. 76-99, 2009. 417 CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 413-417, Maio/Ago. 2013 que demandam por elas. Escolha política porque, diferente da política institucional e profissional, esta era uma opção de vida, de quem não consegue, intimamente falando, separar a percepção das urgências da intervenção sobre elas. O relato rememorativo dos próximos, amigos e companheiros de lutas nos fronts onde o Professor atuava – front associativo e dos movimentos sociais, sobretudo, – são unânimes em marcar o entusiasmo com que costumava falar dos assuntos que os atava, sendo que o entusiasmo, longe de se manifestar apenas em vivacidade de espírito, podia deslizar, também, para uma mordacidade ferina ou um desprezo bem calculado. Indiferença e dissimulação, que ninguém esperasse isso dele. Também evitava o entusiasmo que descambasse em um script por sinal bastante frequente e fácil: o do militante chato. Aliás, não havia nada de pedante ou afetado na figura do Professor, muito menos de cálculo racional, no sentido egoísta do termo. Havia, isso sim, uma enorme coerência entre o pensar e o agir, o que era perceptível para todos aqueles que o rodeavam, e que chegava mesmo a ser, para esses, desconcertante, na medida em que, partilhando, como partilhávamos (porém não com a mesma intensidade), de suas convicções, víamo-nos como que incapazes de levar tão a fundo o seu compromisso e, por isso, injetando uma auto-sensação de