dossiê - UAM-I

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dossiê - UAM-I
A ATUALIDADE DO DEBATE SOBRE TRABALHO E
DESENVOLVIMENTO
INTRODUÇÃO
DOSSIÊ
José Ricardo Ramalho,
Roberto Véras de Oliveira
Uma das questões mais importantes do debate contemporâneo sobre o trabalho tem sido a
demanda por explicações teóricas e por pesquisas
empíricas mais consistentes acerca de sua manifestação em países com situações permanentes de
pobreza e deficit de cidadania. Discutir o trabalho
nessa perspectiva requer uma ampliação dos horizontes de investigação, uma revisão de conceitos
clássicos e uma abertura de novas frentes de reflexão. Foi com esta intenção que reunimos o conjunto de artigos desse Dossiê, articulando a problemática atual do trabalho com a retomada do tema
do desenvolvimento.
A discussão sobre desenvolvimento ganhou
centralidade nas Ciências Sociais brasileiras e lati* Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) e pósdoutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Largo de São Francisco 1, sala 418, Centro. Cep: 20051070
– Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]
** Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). [email protected]
no-americanas desde a metade do século XX. Suscitou diversas interpretações sobre as dinâmicas
econômicas e sociais alteradas pela ação do Estado
em uma perspectiva nacional-desenvolvimentista,
que se voltaram para a “modernização” com ênfase
na industrialização, para projetos de infraestrutura
e para a constituição de um sistema de regulação jurídica face a um mercado de trabalho pouco estruturado
e pouco adaptado ao emprego industrial.
Tida como uma “década perdida”, quando
analisada pelo ângulo estrito da economia, a década de 1980, em perspectiva política, esteve marcada
por uma maior participação de setores populares
e de trabalhadores no debate sobre democracia, na
luta por direitos, quando, por essa via, se “constituiu a base fundamental para a emergência de uma
nova noção de cidadania” (Dagnino, 1994, p. 104).
Na virada dos anos 1990, no entanto, os impactos sociais da globalização econômica e das políticas neoliberais se fizeram sentir nas sociedades latino-americanas. Observou-se “uma desconcentração
do poder do Estado nacional, reorientado por reformas em favor do mercado”. Tal perspectiva
aprofundou a ruptura do pacto nacional-
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013
José Ricardo Ramalho*
Roberto Véras de Oliveira**
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013
A ATUALIDADE DO DEBATE SOBRE TRABALHO ...
desenvolvimentista (entre Estado, elites empresariais e trabalhadores assalariados urbanos), que tinha vigorado até os anos 1970 (Ivo, 2012, p. 198).
Se, nos anos 1980, tendo o caso brasileiro como
emblema, a questão social foi ressignificada na
perspectiva dos direitos de cidadania, na década
seguinte o que se viu foi um movimento de
“refilantropização da pobreza” (Yazbek, 1995). A
dívida social cresceu com o desemprego elevado,
o aumento da informalidade e da vulnerabilidade
das mulheres e dos jovens trabalhadores, o esvaziamento das negociações coletivas e das ações sindicais, a “precarização” das relações de trabalho
(DIEESE, 2001).
As dinâmicas socioeconômicas e políticas
se alteraram ao longo da década de 2000. Segundo
Boschi e Gaitán (2008, p. 305 e 306), ocorre, nesse
período, “o enfraquecimento da hegemonia
neoclássica e uma retomada de trajetórias de intervenção estatal na economia, observando-se uma
diversidade de caminhos neodesenvolvimentistas”.
O principal desafio dos países latino-americanos
passou a ser o de “quebrar um círculo vicioso e
reverter as trajetórias prévias sinalizadas pelo subdesenvolvimento, pelo atraso relativo e pela desigualdade na distribuição de renda” (Idem, p. 305).
Na retomada do debate sobre o tema do desenvolvimento, a dimensão social tem sido mais
enfaticamente reivindicada. É o caso de
Kerstenetsky (2011), que propõe uma articulação
entre as propostas de desenvolvimento e o estado
do bem-estar social, de modo a compatibilizar crescimento econômico e equidade social. Para Ivo
(2012, p. 206), a relevância social da agenda de
desenvolvimento deve ser considerada para além
das políticas de transferência de renda, visto que
o enfrentamento das desigualdades sociais não
pode prescindir de “políticas vigorosas de proteção e integração social”, as quais “dependem das
condições estruturais da distribuição, da qualidade das políticas públicas e da qualidade de inserção dos indivíduos na esfera do trabalho...”.
A problemática atual do trabalho, referida à
retomada de um discurso desenvolvimentista, ganha particular relevância quando associada, seja
às diversas experiências de participação política e
institucional dos trabalhadores e dos movimentos
sociais nas últimas décadas, seja ao modo como
políticas de desenvolvimento lidam com estratégias empresariais de flexibilização e precarização das
relações de trabalho, de desrespeito à legislação
protetiva do trabalho, de descaso com as
consequências ambientais e seu impacto sobre diferentes setores da população.
Os estudos sobre o trabalho em um cenário
de globalização, em contextos de países periféricos, trouxeram desafios de interpretação, tendo em
vista substantivas diferenças no perfil do mercado
de trabalho e nas estratégias empresariais com relação às condições de emprego e à reestruturação
das atividades produtivas. As mudanças no mundo do trabalho, originadas nos processos de
reestruturação produtiva; a introdução de um padrão flexível na organização dos processos de trabalho, como forma de lidar com as novas
tecnologias e, ao mesmo tempo, estabelecer novos
parâmetros para as relações salariais; a capacidade
de deslocamento geográfico das empresas e sua
estruturação em rede, como forma de obter vantagens comparativas; todos esses elementos aparecem de forma diferenciada na realidade econômica
e social dos países da America Latina (Ramalho,
2000). Na tradição crítica do pensamento sociológico brasileiro e latino-americano, os destacados
aspectos da flexibilização foram objeto de
questionamento e valorizou-se uma linha de interpretação que mostrava as consequências sociais
desse processo, a “precarização” do trabalho e seus
efeitos sobre a organização da sociedade. Tal perspectiva, ao mesmo tempo em que ressalta a importância de identificar as situações de “precarização
social”, demonstra as contradições entre os processos de modernização percebidos como progresso e
processos de regressão social cada vez mais visíveis.
A proximidade política da reestruturação
das empresas e da expansão das redes globais de
produção com os modelos de política econômica
de perfil neoliberal tiveram um impacto imediato
nas dinâmicas do trabalho no Brasil. As pesquisas
realizadas sobre o período que se inicia nos anos
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1990 identificaram efeitos sociais que fragilizaram
trabalhadores e desempregados. A flexibilização
das empresas através da “terceirização”, por exemplo, reduziu direitos, rebaixou salários e tornou
instáveis os empregos. O alto grau de
informalização do mercado de trabalho e a presença da exclusão e da pobreza permaneceram como
traços marcantes. Esse perfil do trabalho se manteve também nos anos 2000, quando uma maior
ênfase no crescimento econômico se consolidou
no cenário político. Tal retomada resultou em um
maior incremento das políticas sociais, com mudanças relevantes nos indicadores sociais e do trabalho, sem, no entanto, trazer alterações de tipo
mais estruturais (Pochmann, 2012).
Toda uma linhagem especialmente delimitada pela noção de “economia solidária” se estabeleceu, enquanto ação coletiva e política pública,
recolocando em cena as experiências associativas e
solidárias nos campos da produção, comercialização,
crédito e trabalho. Por outro lado, o novo contexto
de desenvolvimento tem exigido uma necessária ligação da temática do trabalho com os contextos específicos dos “territórios produtivos”, as estratégias de investimento das cadeias produtivas e as políticas de desenvolvimento local e regional.
Por tudo isso se justifica um olhar
direcionado para as implicações recíprocas entre a
nova agenda de desenvolvimento e as novas dinâmicas do trabalho. De um lado, a necessidade de
investigar as consequências das novas políticas de
desenvolvimento para as relações de trabalho. Em
que medida e de que modo as pressões mundiais
pela flexibilização e precarização das relações de
trabalho se aplicam ao Brasil e a outros países da
América Latina? De outro lado, até que ponto os
movimentos sociais, o sindicalismo e outras formas de ação coletiva, referidas ao mundo do trabalho e às questões sociais e ambientais, vêm conseguindo influenciar os padrões de desenvolvimento que se estabelecem?
A proposta deste Dossiê não é o de cobrir
todo esse conjunto de considerações e questões,
mas de demonstrar, através dos artigos escritos e
diferentes abordagens, um campo possível de arti-
culação entre as temáticas do trabalho e do desenvolvimento, sinalizando a sua complexidade para
os estudos sociológicos.
Começamos com um estudo sobre como uma
das expressões de maior destaque do sindicalismo
brasileiro vem tematizando a questão do desenvolvimento, justo na região de maior tradição industrial do país. No texto “Sindicato, desenvolvimento e trabalho: crise econômica e ação política no
ABC”, José Ricardo Ramalho e Iram Jácome
Rodrigues, a partir da atuação do sindicato dos
metalúrgicos do ABC paulista nas últimas duas décadas, especialmente durante a crise de 2008, discutem e problematizam o envolvimento direto de entidades de representação de trabalhadores em espaços
não-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvimento e seus desdobramentos em contextos regionais. O texto revela as diferentes inserções e perspectivas dos atores sociais locais, regionais e nacionais na busca de alternativas para a crise econômica
mundial e demonstra como, através de um evento
público, sem apagar as contradições e os conflitos de
uma realidade social marcada pela assimetria de posições na estrutura social, o sindicato exerceu seu
poder de mobilização e criou alternativas concretas
para enfrentar o desemprego e as ameaças de uma
conjuntura hostil aos trabalhadores.
Na sequência, em contraste com o caso anterior, trazemos uma abordagem sobre os conflitos
do trabalho e a ação sindical em um território na
periferia do país, onde vem ocorrendo um boom
de industrialização, induzido por políticas
desenvolvimentistas. No texto “Suape em construção, peões em luta: o novo desenvolvimento e
os conflitos do trabalho”, Roberto Véras de Oliveira analisa a emergência de uma nova agenda de
desenvolvimento no Brasil através da ótica do trabalho e de seus conflitos. Tomando como exemplo a construção de empreendimentos industriais
no Complexo Industrial Portuário de Suape, em
Pernambuco, e enfocando, principalmente, as revoltas e greves de trabalhadores envolvidos nas
obras de construção das principais plantas industriais, o autor mostra como tais conflitos permitem
apreender os processos desencadeados (conflitos,
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José Ricardo Ramalho,
Roberto Véras de Oliveira
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mediações e negociações) e o que está em disputa
(com as demandas dos trabalhadores e os discursos e práticas governamentais, empresariais e sindicais). A questão que se coloca ao final é se essas
mobilizações, além de ganhos imediatos para os
trabalhadores, são capazes de lhes dar reconhecimento como legítimos portadores de demandas
sociais. E se tais demandas não colocam em xeque
os termos do novo discurso desenvolvimentista.
Um elemento em evidência nesse novo arranjo discursivo se refere à sua associação com a
questão ambiental. Neste particular, um dos aspectos mais controversos diz respeito ao modo como
se articulam os temas da “energia limpa” e da produção de etanol. No texto “A imagem do etanol como
“desenvolvimento sustentável” e a (nova) morfologia
do trabalho”, Maria Aparecida Moraes e Silva et al
analisam as relações e condições de trabalho nos
canaviais paulistas e alagoanos, resultantes de um
processo de reconfiguração do trabalho pela intensificação da mecanização do corte de cana. A proposta é mostrar, criticamente, como a ideologia
desenvolvimentista relacionada a essas mudanças,
introduzidas pelas empresas sucroalcooleiras e estimuladas pelo Estado, tem resultado em uma intensificação da exploração da força de trabalho no
quadro de uma (nova) morfologia que combina
tecnologias avançadas com um aumento da
desqualificação dos trabalhadores.
Discutir modelos de desenvolvimento implica, também, abordar as mudanças no mercado
de trabalho e no modo como se tratam questões
como a flexibilização dos empregos e a manutenção de direitos. Em “A retomada do desenvolvimento e a regulação do mercado de trabalho no
Brasil”, Paulo Baltar e José Dari Krein argumentam
que a retomada do crescimento da economia brasileira permite redefinir os termos do debate sobre o
trabalho. Sob tal pressuposto, estabelecem uma
relação entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo e os desafios de uma regulação pública
do trabalho. Ressaltam que a crise econômica mundial abre a possibilidade de o Estado ter um papel
mais ativo nas políticas de desenvolvimento e
alertam, no caso brasileiro, para os desdobramen-
tos do aumento do peso da PEA adulta, em relação ao funcionamento do mercado de trabalho. Os
autores identificam, nesse contexto, um embate
entre os que defendem uma estruturação do mercado de trabalho com implicações na qualidade
das relações sociais e os que destacam a necessidade de uma maior flexibilização na contratação,
no uso e na remuneração do trabalho. E associam
estas diferentes posições ao modelo de desenvolvimento e às políticas públicas do trabalho que o
país vem implementando.
O texto seguinte se dedica às possibilidades de uma regulação pública do trabalho, mais
especificamente à relação entre o segmento de trabalhadores jovens sem escola e sem trabalho e a
reprodução da pobreza. Em “Juventude, trabalho
e desenvolvimento: elementos para uma agenda
de investigação”, Adalberto Cardoso discute a situação dos jovens que não estudam nem trabalham,
fenômeno que vem chamando a atenção no contexto pós-crise econômica de 2008, especialmente
na Europa. O autor argumenta que, no Brasil, a condição “nem nem” é estrutural, e propõe um modelo
analítico de explicação das transformações ocorridas
entre 2000 e 2010. Sugere que as mudanças estruturais por que passou o país e as políticas públicas de
redução de barreiras ao acesso à escola e ao mercado
de trabalho reduziram o impacto das desigualdades
regionais e aumentaram o peso da pobreza na explicação da condição “nem nem” dos jovens.
O último texto, de cunho mais teórico, trata
da adequação das interpretações sobre as tendências e os sentidos do trabalho na sociedade capitalista contemporânea a partir da especificidade da
realidade latino-americana. No artigo “Trabajo no
clásico y flexibilidad”, Enrique de la Garza Toledo
faz um balanço dessa literatura e atribui destaque
a uma dimensão insuficientemente explorada da
teoria através do uso do conceito de “trabalho não
clássico”. No texto, ele relaciona esse tipo de trabalho com as atividades de serviço, que adquirem
importância nas economias capitalistas centrais,
mas também nas economias menos desenvolvidas.
E, ao recapitular a discussão sobre flexibilidade,
reivindica a sua ampliação para incluir os traba-
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José Ricardo Ramalho,
Roberto Véras de Oliveira
lhos não-clássicos, em especial a subcontratação. REFERÊNCIAS
O autor finaliza com a discussão sobre a fragmenRenato; GAITÁN, Flavio. Intervencionismo estação de identidades e a servidão voluntária e seus BOSCHI,
tatal e políticas de desenvolvimento na América Latina.
vínculos com o trabalho não-clássico e sugere aten- Caderno CRH. Salvador: EDUFBA, v. 21, n. 53, p. 305322, Maio/Ago, 2008.
ção à possibilidade de constituição de sujeitos do
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: DAGNINO, E.
trabalho mesmo nestas condições.
(Org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo:
Ao final, esperamos que as questões apre- Brasiliense, p. 103-115. 1994.
sentadas e discutidas nesse Dossiê tragam novos DIEESE. A situação do trabalho no Brasil. São Paulo:
elementos para o debate sobre a centralidade do Dieese, 2001.
IVO, Anete B. L. O paradigma do desenvolvimento: do
trabalho na sociedade contemporânea e para uma mito fundador ao novo desenvolvimento. Caderno CRH.
reflexão mais aprofundada sobre os diferentes des- Salvador: EDUFBA, v. 25, n. 65, p. 187-210, Maio/Ago.
2012.
dobramentos que envolvem os processos de de- KERSTENETZKY, Celia Lessa. Welfare state e desenvolsenvolvimento econômico, com ênfase na necessi- vimento. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 129-156,
2011.
dade da participação da sociedade e dos trabalhaPOCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na
dores na sua formulação e na distribuição dos seus base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo,
2012, 128p.
resultados.
RAMALHO, José Ricardo. Trabalho e sindicato: posições
em debate na sociologia hoje. Dados, Rio de Janeiro, v.43,
n. 4, p. 761-777, 2000.
YAZBEK, Maria Carmelita. A política social brasileira nos
anos 90: refilantropização da Questão Social. In: Cadernos ABONG, n. 11, 1995.
José Ricardo Ramalho - Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pósdoutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular do
Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPQ. Sua atuação acadêmica está mais voltada para a área
da Sociologia do Trabalho e seus principais temas de pesquisa são: relações de trabalho na indústria; sindicato e sindicalismo; reestruturação produtiva e distritos industriais; trabalho, emprego e desenvolvimento
econômico regional e local; identidade operária. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicas
e livros. Entre estes, Estado Patrão e Luta Operária: o caso FNM. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Trabalho
e Sindicato em antigos e novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007.
Roberto Véras de Oliveira - Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia da UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). Pesquisador do CNPQ. Preferencialmente, orienta seus estudos
e pesquisas para os campos da Sociologia do Trabalho e da Sociologia Política. Tem concentrado sua atenção
(na forma de publicações, orientações e participação em eventos) sobre temas como sindicalismo, relações de
trabalho, qualificação profissional, políticas públicas de trabalho, emprego e renda, economia solidária,
diálogo social, cidadania, entre outros. É autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros.
Entre estes, Sindicalismo e Democracia no Brasil – do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. São Paulo:
Annablume, 2011.
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013
Recebido para publicação em 14 de junho de 2013
Aceito em 26 de junho de 2013
SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO: crise
econômica e ação política no ABC
José Ricardo Ramalho*
Iram Jácome Rodrigues**
DOSSIÊ
José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
A intervenção de sindicatos no debate sobre estratégias de desenvolvimento econômico no
Brasil pode ser considerada uma novidade no elenco das habituais demandas associadas às questões
salariais e às condições de trabalho. A tentativa de
trazer para o espaço público as decisões normalmente tomadas em esferas privadas e a preocupação em avaliar os efeitos sociais dos projetos de
investimento que atingem localidades e regiões têm
exigido das entidades sindicais, com acúmulo
político no mundo do trabalho, uma ação diferenciada de engajamento em disputas de poder e experiências institucionais inovadoras.
O sindicato dos metalúrgicos do ABC
paulista, pelo protagonismo que exerceu na luta
* Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) e pósdoutorados na Universidade de Londres – UK – e na
Universidade de Manchester – UK. Professor titular do
Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Largo de São Francisco 1, sala 418, Centro. Cep: 20051070
– Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]
** Doutor em Sociologia e pós-doutoramento pela Universidade de Cambridge – UK. Professor Associado (Livre-Docente) do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade de São Paulo (PPGS-USP).
[email protected]
de resistência política à ditadura civil-militar instaurada em 1964, e pela experiência histórica de
reivindicação por melhores salários e empregos
desde o final dos anos 1970, é um bom exemplo
de como usar legitimidade e poder de convocação
para atuar em instâncias de discussão sobre os
problemas criados pelas crises econômicas regionais e para exigir das empresas e dos governos
soluções em favor da sociedade local e de seus
trabalhadores.1
Pelo fato de ser um complexo distrito industrial, berço da indústria automotiva brasileira
e com uma concentração de empresas
multinacionais e suas redes de fornecedores, o
ABC, como território produtivo, foi atingido, nas
últimas duas décadas, em especial nos primeiros
anos dos 1990 e nos anos finais dos 2000, por
crises mundiais (Ramalho e Rodrigues, 2010 e
2007; Ramalho, Rodrigues e Conceição, 2009).
Cenários de recessão e diminuição de atividades
1
Os dados, informações e entrevistas que sustentam o
texto são resultados parciais de projetos de pesquisa em
andamento, que vêm sendo desenvolvidos pelos autores, apoiados pelo CNPq e pela Faperj (Programa Cientistas do Nosso Estado).
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
O objetivo deste texto é discutir e problematizar as novas práticas sindicais dos metalúrgicos do
ABC paulista, que implicam o envolvimento direto de entidades de representação de trabalhadores em espaços não-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvimento e seus desdobramentos em contextos regionais de uma economia globalizada. Vamos analisar a ação sindical
tomando como base dois períodos distintos – décadas de 1990 e 2000 – , e colocar em foco, como
síntese desse processo, a realização de um evento político organizado pelo sindicato dos
metalúrgicos em 2009, o Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, que revela as
diferentes inserções e perspectivas dos atores sociais locais, regionais e nacionais na busca de
alternativas para a crise econômica mundial de 2008. Trata-se de um exemplo de reunião
pública que, sem apagar as contradições e os conflitos de uma realidade social marcada pela
assimetria de posições na estrutura social, criou um momento de consenso provisório diante
das ameaças de uma conjuntura hostil aos trabalhadores.
PALAVRAS CHAVE: Ação sindical. Desenvolvimento regional. ABC paulista. Crise econômica
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ...
econômicas são conhecidos dos trabalhadores e
dos sindicatos: em geral resultam em aumento do
desemprego e pressão empresarial por redução de
salário e flexibilização de direitos trabalhistas. A
essa intimidação conjuntural, a reação habitual dos
sindicatos tem sido a da busca de mecanismos de
defesa do emprego, evitando abrir mão de avanços
já consolidados. No caso dos metalúrgicos do ABC
não foi diferente, e o sindicato adotou uma linha
de ação pró-ativa para atenuar os efeitos negativos
das crises e não se furtou a fazer valer o seu poder
político para, junto com outros setores, como os
pequenos e médios empresários e a administração
pública local, discutir propostas de ativação da
economia e do emprego regional.
O objetivo deste texto é discutir e
problematizar as novas práticas sindicais dos
metalúrgicos do ABC, que implicam o envolvimento
direto de entidades de representação de trabalhadores em espaços não-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvimento e seus desdobramentos
em contextos regionais de uma economia
globalizada. Vamos analisar a ação sindical, tomando como base esses dois períodos distintos (décadas de 1990 e 2000), e colocar em foco, como síntese desse processo, a realização de um evento político organizado pelo sindicato dos metalúrgicos em
2009, o Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, que revela as diferentes inserções e perspectivas dos atores sociais locais, regionais e nacionais na busca de alternativas para a crise econômica
mundial de 2008. Trata-se de um exemplo de reunião pública que, sem apagar as contradições e os
conflitos de uma realidade social marcada pela
assimetria de posições na estrutura social, criou um
momento de consenso provisório diante das ameaças de uma conjuntura hostil aos trabalhadores.
O contexto de crise nos anos 1990 e anos
2000 no ABC paulista apresentou diferenças de
formato e de impacto sobre a região, assim como
encontrou motivações distintas por parte dos governos federais. Em 2008, por exemplo, a presença de Lula na presidência da república desobstruiu
os canais de interlocução do governo federal com
a região e com o sindicato dos metalúrgicos. Da
mesma forma, a participação diferenciada das administrações municipais nos dois períodos é motivo para uma reflexão, tendo em vista que os prefeitos ligados ao Partido dos Trabalhadores inauguraram novas práticas institucionais ao reunir
atores sociais diversos, com heranças históricas
diversas, em combinações políticas que sinalizaram caminhos pouco explorados de associação e
de debate na esfera pública.
UMA DISCUSSÃO TEÓRICA SOBRE MOVIMENTO SINDICAL
A estratégia sindical implementada no ABC
traz desafios para os trabalhadores, seus representantes e para os estudiosos do tema do sindicalismo.
Como explicar uma postura política que implica
cooperação institucional com empresários e administração pública, quando, em termos da estrutura
social, permanecem inalteradas as contradições
irreconciliáveis do capitalismo e as assimetrias que
marcam as relações capital/trabalho nas fábricas?
O sindicato teria esquecido sua função de representante de classe e deixado de lado a veia de contestação, característica de sua ação nos anos 1970/
1980? Existem argumentos para justificar essas
novas práticas? Houve benefícios concretos para a
população trabalhadora do ABC?
O sindicalismo metalúrgico do ABC tornouse, durante os anos 1980, um exemplo do que, no
debate mundial sobre novas formas de ação coletiva na área trabalhista, ficou conhecido como
“sindicalismo de tipo movimento social” (social
movement unionism, conforme o original em inglês), por suas características de contestação política e de associação com outros movimentos sociais (entre outros Moody,1997; Waterman, 1998,
2008; Munck, 2002; Seidman, 1994). Ao longo dos
anos 1990, no entanto, com a globalização dos
mercados e a imposição de uma reestruturação da
produção, este sindicato foi obrigado a adotar uma
estratégia defensiva, evoluindo de uma fase mais
marcada pelo conflito aberto com as empresas para
um processo de “cooperação conflitiva” (Rodrigues,
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José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
[...] se projetar para além das negociações diretas
com as empresas”, a buscar “uma nova forma de
inserção na sociedade, diversificando sua agenda
de preocupações, ampliando sua participação em
espaços públicos, instituindo novas frentes de
ação2 (Véras de Oliveira, 2011, p. 286 e 287).
Um modo de problematizar a ação sindical
no ABC, tomando como base as várias interpretações existentes na literatura sobre as diferentes fases do sindicalismo, é o de avaliar essas práticas,
levando em consideração as particularidades dos
contextos sociais, econômicos e políticos, das tradições políticas incorporadas historicamente, das
conjunturas econômicas globais e nacionais e seus
desdobramentos sobre o mercado de trabalho. Mas,
além disso, perceber que os sindicatos estão permanentemente sob pressão de um dualismo universal entre ser uma “organização de negócios” ou
uma “expressão e veículo do movimento histórico
das classes trabalhadores subalternas” (Fairbrother;
Webster, 2008, p. 309-313; Hyman, 2001).
Na avaliação de Fairbrother e Webster (2008,
p. 309-313), por exemplo, “os sindicatos são um tipo
de movimento social que contém dimensões progressistas e acomodativas” e a questão que se coloca para
os analistas é identificar “como e em que circunstâncias os sindicatos podem desafiar e questionar a relação capital/trabalho”. Para esses autores, cabe aos sindicatos, como associações de trabalhadores, regular
a relação salário-trabalho e, por essa razão, não podem ignorar o mercado. Mas os sindicatos “são também parte da sociedade, coexistindo com outras instituições e outras constelações de interesses”.
2
Para Véras de Oliveira (2011, p. 270), o I Congresso dos
Metalúrgicos do ABC, ocorrido em 1993, foi uma marca
importante quando “aprovou-se a participação do Sindicato na campanha denominada Ação da Cidadania contra a Miséria e Pela Vida, que ganhava visibilidade e mobilizava a sociedade”. Embalado pelo apelo da campanha
ao resgate da cidadania, a resolução do Congresso soou
como um manifesto do “sindicato cidadão”.
Discutir essas estratégias sindicais pós-ditadura, em comparação com exemplos de outros países, é uma boa oportunidade para examinar as
especificidades de tempo e espaço, as conjunturas
particulares com suas próprias dinâmicas e, ao
mesmo tempo, identificar dilemas e práticas que
aproximam as ações sindicais diante de conjunturas econômicas desfavoráveis. A contribuição teórica de Hyman (2001, p. 3), ao analisar a experiência
europeia diante da reestruturação produtiva, parece-nos adequada para o caso do ABC. Sua sugestão
de investigar a ação sindical a partir do triângulo
mercado/sociedade/classe, também se aplica ao contexto brasileiro das duas últimas décadas. Para este
autor (2001, p. 3-5), todos os sindicatos estão referidos a cada ponto do triângulo: “[...] sindicatos de
negócio focam, no mercado; sindicatos integradores,
na sociedade; sindicatos de oposição radical, na
classe”. No entanto, afirma Hyman, os exemplos
históricos mostram que os sindicatos, com base em
apenas um vértice, ficam instáveis:
[...] sindicalismo de negócio puro raramente ou
nunca existiu. Mesmo com a atenção principal
voltada para o mercado de trabalho, os sindicatos não podem [...] negligenciar o amplo contexto social e político das relações de mercado. [...].
Do mesmo modo, como veículos de integração
social, os sindicatos podem sustentar uma
rationale que justifica sua existência como instituições autônomas, mas essa postura esbarra no
fato de que seus membros, como empregados, têm
interesses econômicos distintos, “o que pode se
chocar com os interesses de outros setores da sociedade”. Por outro lado,
[...] os sindicatos que abraçam uma ideologia de
oposição de classe precisam ao menos conseguir
uma acomodação tácita com a ordem social existente; e devem também considerar o fato de que
normalmente seus membros esperam que seus
interesses econômicos de curto prazo sejam adequadamente representados.
Sem desconsiderar a perspectiva macro de
análise, que problematiza a estrutura de classes da
sociedade capitalista e as estratégias das empre-
219
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
1995), situação na qual os trabalhadores, sem abdicar das marcas e diferenças de classe, se viram
obrigados a “negociar” as transformações na esfera
da produção. A luta pela preservação do seu espaço, enquanto instituição de representação dos trabalhadores nesse novo contexto, levou o sindicato a
SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ...
sas, a intenção do nosso texto é enfatizar a capacidade de agência dos trabalhadores organizados e o
seu poder coletivo de alterar disputas políticas em
arenas locais. Embora as empresas multinacionais
tenham sua lógica de acumulação articulada globalmente, os territórios produtivos, que constituem seus elos locais, são arenas políticas de disputa de poder, onde os atores sociais exercem sua
capacidade de contestar decisões de investimento
e projetos de desenvolvimento econômico. Como
Olivier de Sardan (2005, p. 183-186), consideramos que estes atores têm “recursos de poder desiguais e desequilibrados”, mas não estão, nunca,
“destituídos de poder”.
menos interromper o curso natural do que seria
o investimento do capital. Mas estamos preocupados também com o desenvolvimento que é na
sequência a contrapartida de geração de emprego, de recolocação de pessoas e de ampliação do
próprio mercado. Isso é o que tem nos levado a
uma preocupação com política industrial, com
políticas setoriais, com desenvolvimento local
(José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, 18/06/2004).
No entender de Abrucio e Soares (2001, p.
152-156), a crise no ABC dos anos 1990 fez com
que os atores locais fossem “tomando uma postura de organizar-se regionalmente”. Segundo esses
autores,
[...] nem todos os grupos atuaram (com a) mesma
intensidade, [...] bem como nem todas as questões tiveram o mesmo potencial agregador”. Mas
as dificuldades econômicas colocaram a região
sob um dilema: “ou reagia coletivamente, ou se
corria o risco de todos perderem, em proporções
diferentes, porém com um impacto de soma-negativa no geral.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
UMA VOLTA AO PASSADO RECENTE: a crise
dos anos 1990 e a reação sindical
A participação do sindicato dos metalúrgicos
na organização e liderança de uma iniciativa do tipo
Esse processo coincide, também, com as
do Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, na verdade, permite remontar a uma histó- mudanças resultantes das eleições municipais de
ria que começa no início dos anos 1990. O ABC, 1988, com a posse de novos grupos políticos, especialmente aqueles ligados ao Partido dos Trabanesse período, segundo Conceição (2008),
lhadores.3 Para o ex-prefeito do PT, Celso Daniel
[...] vivenciou, de modo mais agudo que no res- (2001b, p. 78 e 79), o principal formulador e realitante do país, a reestruturação industrial, cujo
zador das novas propostas de articulação para o
resultado foi, entre outros, a desnacionalização
do capital, a falência de inúmeras empresas, a desenvolvimento regional,
desativação de várias fábricas de grande, médio
e pequeno porte, a redução de cerca de 50% dos
postos de trabalho.
[...] a crescente consciência coletiva da crise estrutural do Grande ABC – em substituição à ausência de tal consciência na década de 1980 –
criou condições para a constituição de complexa
institucionalidade regional.
E a crise serviu para que empresários justificassem o deslocamento para outras regiões, especialmente por causa do “regime automotivo” de 1995,
Para Daniel, a superação da crise não podee colocassem a responsabilidade exatamente na inria estar baseada em decisões exógenas à região e
tensidade da atividade sindical.
fazia-se necessário
O processo de reestruturação produtiva é extremamente perverso quando não acompanhado
por um movimento sindical que procure
minimizar os seus efeitos redutores de mão de
obra e de mercado. A ausência de crescimento
econômico é o pior dos mundos. Você vive a demissão da reestruturação aliada a não geração de
emprego pela ausência de crescimento econômico. Então discutimos a reestruturação produtiva para minimizar seus efeitos ou buscar ao
3
“É bom recordar, ainda, que o diagnóstico sobre a situação
regional não era o ponto mais importante no discurso dos
petistas [...]. Foi com a assunção ao poder e o
enfrentamento de seus problemas, numa época marcada
pelo acirramento e conscientização de dimensão da crise
econômica e social do ABC, atingindo em cheio um modelo de desenvolvimento bem sucedido por trinta anos,
que os prefeitos petistas procuraram atuar em prol da
temática regional“ (Abrucio e Soares, 2001, p. 152-156).
220
José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
uma proposta alternativa de desenvolvimento região, em movimento que ficou conhecido como
local endógeno, isto é, calcado, sobretudo em
decisões tomadas internamente à região, pelos “vote no Grande ABC” (Petrolli, 2000; Horta,
seus protagonistas, ou ao menos fortemente in- 2003).5 O Fórum se institucionalizou em seguida
fluenciadas por estes últimos”.4
4
Para Abrucio e Soares (2001, p. 128 e 129), embora a
região do ABC apresentasse as características principais
das metrópoles brasileiras, com o seu desenvolvimento
industrial e urbano desordenado, desigual e concentrado, houve, também, razões para a consolidação de uma
identidade regional devido: “a) fator histórico – até meados do século XX todo o território que abriga hoje o
ABC era apenas um município; b) fator geográfico – [...]
como fator agregador a situação da área de mananciais,
que abrange todos os municípios e ocupa mais de 50%
do território regional; c) fator econômico – a industrialização nas décadas de 1960 e 70 definiu um perfil econômico para a região, assim como a crise a partir da década
de 1980 [...] impacta de forma direta ou indireta, todos
os municípios do ABC; d) fator social e político – os
movimentos sociais, o novo sindicalismo e o nascimento do PT nas décadas de 1970 e 80 enfatizaram uma
cultura associativista e politizada; e) fator cultural – ao
longo dos últimos anos vem se reforçando o sentimento dos atores sociais de pertencerem a uma região, de
compartilharem uma identidade regional”.
A Agência de Desenvolvimento Econômico, hoje,
é a entidade mais forte, abaixo do Consórcio
[Intermunicipal], que faz gestão de projetos, pro5
Nas eleições de 1994, a Região do ABC elegeu cinco
deputados federais e oito deputados estaduais, o que foi
a maior representação parlamentar observada em sua
história até aquele momento.
6
Os componentes da Câmara Regional do ABC, na segunda metade da década de 1990, foram: o Governo do Estado de São Paulo, o Consórcio Intermunicipal (sete prefeituras), os legislativos municipais, os parlamentares
do ABC na Assembleia Legislativa e no Congresso Nacional, o Fórum da Cidadania, as associações empresariais
e os sindicatos de trabalhadores.
7
A Agência tem como sócios o Consórcio Intermunicipal
(que envolve as sete Prefeituras); as quatro diretorias
regionais do Centro de Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP); as Associações Comerciais e Industriais dos
sete Municípios; os Sindicatos de Trabalhadores (Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sindicato dos Químicos
do ABC, Sindicato das Costureiras, Sindicato da Construção Civil); o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE), as empresas do pólo petroquímico
regional (Petroquímica União, Solvay, Cabot, Polietilenos
União, Polibrasil, Crevron, Oxicap e Petrobrás) e as universidades (IMES, UNI-A, Fundação Santo André,
UNIBAN, UNIABC, Metodista, FOCO).
221
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
Uma primeira reação institucional à crise
da indústria no ABC foi a criação da Câmara Setorial
da Indústria Automobilística pelo governo federal
(entre outros, Arbix, 1996 e 1997; Oliveira, 1992 e
1993; Diniz, 1993; Cardoso e Comin, 1995 e Cardoso, 1999a; Bresciani e Benites Filho, 1995;
Anderson, 1999; Silva, 1997). Experiência nova,
pelo exercício de um mecanismo democrático de
gestão pública setorial, que reuniu sindicatos,
empresas e governo para elaborar saídas para a
redução das atividades do setor e para o desemprego, representou um aprendizado para o sindicato dos metalúrgicos.
Entre as diversas iniciativas articuladas na
região do ABC destaca-se, inicialmente, o papel desempenhado pelos prefeitos na organização do Consórcio Intermunicipal do ABC, de 1990, reunindo
sete municípios, com o objetivo de atuar de modo
integrado no tratamento dos temas de interesse comum, em especial no que tange à infraestrutura, desenvolvimento econômico e meio-ambiente (entre
outros Daniel, 2001a; Abrucio & Soares, 2001; Reis,
2005; também http://www.consorcioabc.org.br).
O outro exemplo foi a criação, em 1994, do
Fórum da Cidadania do Grande ABC, que articulou setores da sociedade civil regional para priorizar,
nas eleições municipais, o voto nos candidatos da
e agregou cerca de 80 entidades (associações empresariais da indústria e do comércio, sindicatos
de trabalhadores, representações da mídia local,
organizações não governamentais etc.), com o objetivo de produzir subsídios para resolver os problemas regionais.
Mas a experiência mais completa e reveladora
da busca institucionalizada de alternativas para a
crise econômica trazida pela reestruturação industrial ocorreu com a constituição da Câmara Regional do ABC, em 1997, diferenciada do Consórcio
Intermunicipal e do Fórum da Cidadania pela tentativa de juntar em uma mesma instância de discussão atores públicos e da sociedade civil (entre
outros, Daniel & Somekh, 1999 e 2001; Gomes,
1999; Leite, 1999; Guimarães, Comim e Leite, 2001;
Boniface, 2001; Klink, 2000 e 2001; Albuquerque,
2001; Camargo, 2003; Bresciani, 2004).6
O desdobramento das atividades da Câmara
Regional resultou na constituição, em 1998, da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC,
uma instituição não governamental, sem fins lucrativos, com a missão de dar suporte institucional aos
acordos debatidos dentro da Câmara.7
SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ...
xual de criança e adolescente... [...] Então um
sindicato voltado pra uma concepção de plenitude cidadã. Então eu diria que nós continuamos
alicerçados num forte processo de organização,
capacidade e mobilização, de clareza com relação às nossas lutas, nossas maneiras, nossos objetivos e, envolvidos com a comunidade, com as
necessidades da cidadania e, sintonizado com a
necessidade de desenvolvimento que a região
precisa, que o Brasil precisa e que resulta em
emprego (José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 18/06/2004).
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
move o debate, que recebe os setores... A Agência é composta por trabalhadores, por empresários, por universidades, e pelos prefeitos. O Consórcio tem 49% do direito a voto na Agência... .
Os demais setores: universidades, empresários e
trabalhadores têm os outros 51% (Rafael Marques, Vice-Presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010).
Essas iniciativas podem ser vistas como um
esforço coletivo de fugir da decadência econômica
e apresentaram alguns desdobramentos positivos.
Nos anos 2000, verificou-se uma retomada dos
níveis de produção e da atividade econômica no
setor metalúrgico. Menos fábricas foram fechadas
e reduziu-se o deslocamento de empresas para
outros municípios. O emprego formal cresceu em
cerca de 35%, entre 1999 e 2005, e em 16%, no
caso específico do setor industrial , segundo dados da RAIS-CAGED; e a taxa de desemprego caiu
do patamar de 21% em 1999, para 16% em 2005
(PED/SEADE/DIEESE).
Todo esse processo de renovação
institucional teve a participação decisiva dos sindicatos da região, em particular do sindicato dos
metalúrgicos. Para Abrucio e Soares (2001, p. 152156), “ao longo da transição e redemocratização do
país, os sindicatos tornam-se o principal personagem da cena política da região e estabelecem uma
feição muito peculiar, de contínua mobilização, a
este espaço político territorial [...]”.
De fato, o sindicalismo do ABC inaugurava
uma prática sindical nova ao incluir nas suas preocupações políticas as questões sociais que afloravam
com a crise econômica regional. Desse contexto surgiu, inclusive, a denominação de “sindicato cidadão” (Véras de Oliveira, 2011, Rodrigues, 2006 e
2011, entre outros) para definir essas atividades sindicais, além de ter se transformado em referência
no debate político da principal central sindical do
país, a Central Única dos Trabalhadores – CUT.
E o sindicato está voltado hoje para as ações de
cidadania, ou seja, pensar trabalhador e trabalhadora como cidadão [...]. Ser trabalhador e trabalhadora é parte do tempo. A integralidade do
tempo é cidadania. Então, meio ambiente, política de gênero, raça, questão de etnia, [...] contra
o trabalho infantil, exploração sexual, abuso se-
A novidade desse processo está na inclusão da economia como um todo e dos projetos de
desenvolvimento regional em particular, como temas importantes da pauta sindical e na ampliação
e responsabilidade dos sindicatos sobre os destinos do território produtivo e dos trabalhadores.
Nesse contexto, ocorreu a incorporação da discussão sobre a “regionalidade”, ou seja, a introdução
de uma preocupação com as consequências das
políticas macroeconômicas para a vida dos trabalhadores do ABC. Segundo Conceição (2008),
nesse processo o Sindicato dos Metalúrgicos do
ABC criou o entendimento de que era necessário
empreender esforços para influir na área das
políticas públicas, tendo em vista sua importância no nível de produção e emprego. [...] Um dos
marcos da ação sindical em relação ao tema da
região foi a elaboração, em novembro de 1995,
da publicação “Rumos do ABC: a economia do
ABC na visão dos metalúrgicos”.
Neste trabalho, elaborado pela Subseção do
DIEESE do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,
realizou-se diagnóstico de alguns dos obstáculos
enfrentados pela economia local e foram apresentadas algumas diretrizes gerais para uma política
de desenvolvimento da Região (Camargo, 2003;
Bresciani, 2004.).
A CRISE ECONÔMICA DOS ANOS 2000
A segunda crise econômica a atingir a região do ABC e seu parque industrial, em 2008,
teve características diferentes daquela ocorrida ao
longo da década de 1990, e o corte nos empregos
deveu-se a uma falência dos mecanismos do capi-
222
José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
tal financeiro internacional, com desdobramentos
prejudiciais para a economia das empresas, especialmente as da indústria. Os atores políticos da arena regional eram os mesmos, mas, nesse novo contexto, o protagonismo dos sindicatos, especialmente do sindicato dos metalúrgicos (o mais atingido
pelas demissões) foi decisivo para uma mobilização
em busca de alternativas para reverter o desemprego. Isto se deveu, não só ao acúmulo de práticas de
discussão em instâncias como a Agência de Desenvolvimento Regional do ABC, mas, também, à proximidade política dos dirigentes sindicais
metalúrgicos com a administração pública regional
e nacional que viabilizaram iniciativas como o Seminário ABC do Diálogo e do Desenvolvimento.
A participação no debate sobre desenvolvimento e economia regional foi definitivamente incorporada à pauta sindical e se traduziu em documentos como
o do VI Congresso dos Metalúrgicos do ABC (Construindo um Brasil justo e democrático: emprego e trabalho decente), ocorrido em maio de 2009:
elementos básicos devem ressaltar: aquele que,
primeiro combina crescimento econômico com
inclusão social e proteção ao meio ambiente; segundo, que promove uma nova cultura empresarial, baseada na democratização das relações
capital-trabalho e na responsabilidade social das
empresas; terceiro, que estimula formas inovadoras de mobilização dos recursos econômicos
através de redes de pequenas empresas, cuja
sustentabilidade (social, técnica e institucional)
é assegurada a partir dos efeitos sistêmicos (aglomeração e proximidade) proporcionados pelos
territórios em que as redes operam (Construindo
um Brasil justo e democrático: emprego e trabalho decente – VI Congresso dos Metalúrgicos do
ABC. Caderno de teses, 2009, p.42).
Se, por um lado, houve um maior
envolvimento dos trabalhadores, através do sindicato, na cruzada por alternativas para o modelo de
desenvolvimento estabelecido e origem da crise
econômica, o mesmo não pode ser dito do setor
empresarial, dividido em termos de estratégias
gerenciais e tamanho do negócio. Pode-se dizer que
houve uma variação significativa de perspectivas.
Assim, enquanto os pequenos e médios empresá-
Há uma dificuldade em convencer esse
empresariado multinacional. [...] As montadoras
não têm uma concepção regional, elas não acreditam nisso. Preferem não ter essa concepção
para não ficar amarradas a uma determinada
região. Elas querem ter a liberdade de transitar –
hoje não mais pelo país, mas pelo mundo do jeito
que quiser. Então hoje, as montadoras, a gente
não consegue trazer eles para o debate. Para elas
[...] é tudo como se fosse uma concessão. O emprego é uma concessão, o ICMS, os impostos
municipais, estaduais que ela paga, é um favor
que ela está prestando a sociedade. Essa é a visão
que elas têm (Wagner Santana, Secretário Geral
do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 2013).
O poder de convocação investido no sindicato nesse contexto lhe confere legitimidade para
acionar outras instituições e atores que são essenciais para a construção de uma proposta de desenvolvimento regional. É o caso da relação com a
recentemente criada Universidade Federal do ABC:
223
As universidades participam, mas não com todo
o potencial que elas têm. Mas algumas estão se
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
rios, que têm menos mobilidade e dependem dos
arranjos produtivos locais para o sucesso dos seus
negócios, tiveram um engajamento efetivo nas novas articulações, as empresas multinacionais, habitualmente não envolvidas em negociações e planos desenvolvidos a partir do espaço regional ou
local, mas beneficiadas pelas medidas de incentivo
fiscal estabelecidas pelo governo federal como forma de reativar a economia industrial e preservar os
empregos, tiveram uma atuação tímida diante das
novas iniciativas. Na verdade, a discussão sobre a
revitalização industrial do ABC exigiu um compromisso que questionava as diretrizes estabelecidas
pelas matrizes localizadas fora do Brasil.
As dificuldades no relacionamento com as
multinacionais da indústria automotiva permanecem e demonstram uma divergência de perspectiva empresarial no que diz respeito aos vínculos e
ao enraizamento no território produtivo. As iniciativas locais e regionais de discutir alternativas para
as crises econômicas acabaram por criar situações
de constrangimento ao demandar um compromisOs atores regionais, entre eles os sindicatos, devem colocar em debate o próprio modelo de de- so em termos de participação e de contrapartidas
senvolvimento que se quer para a região, cujos econômicas e sociais.
SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ...
incorporando mais, o que pode ajudar. [...] Olha
que a UFABC é nova aqui na região, mas nós
estamos forçando a UFABC. Eu faço parte também de conselho universitário, e quando consigo
ir nas reuniões, o meu discurso é: a Federal tem
que se relacionar com a sociedade. [...] Então está
se criando essa massa crítica importante na
UFABC, que pode gerar bons frutos para a região
(Rafael Marques, Vice-Presidente do Sindicato
dos Metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010).
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
A articulação sindical, se ainda carece de
políticas regionais mais estáveis, proporcionou
uma reação ao desemprego ocasionado pela crise.
Segundo o jornal ABCD Maior,8 o ABCD tinha criado, já em agosto de 2009, mais de cinco mil novos postos de trabalho, revertendo a queda dos
meses anteriores. E, para confirmar essa inserção
regional, o atual presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, foi eleito
em 2013 para o cargo de presidente da Agência de
Desenvolvimento Econômico do Grande ABC.
É a primeira vez que um sindicalista assumirá a
direção da agência, criada em 1998 a partir da
união entre instituições públicas e privadas dos
sete municípios da região [...]. O vice-presidente
na próxima gestão, representante do meio acadêmico, será o [...] pró-reitor de extensão da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. [...]
O presidente eleito destacou o fato inédito de um
representante do movimento sindical assumir a
presidência pela primeira vez. “E assumimos
numa composição tão importante, pioneira, junto com a universidade. Uma união do trabalho
com o conhecimento, ambos fundamentais para
o desenvolvimento econômico”, afirmou [...]”.
(“Metalúrgico assumirá comando da Agência de
Desenvolvimento Econômico do ABC”, Rede Brasil Atual, 26/03/2013).
O SEMINÁRIO “ABC DO DIÁLOGO E DO
DESENVOLVIMENTO”
O Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, ocorrido em março de 2009, em São
Bernardo do Campo (SP), idealizado e convocado
pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC, sintetiza
o engajamento institucional de duas décadas de
iniciativas políticas de enfrentamento da questão
do desemprego e da precarização das condições
de trabalho. Uma breve descrição desse evento,
com seus protagonistas, suas propostas e seus resultados, serve como um retrospecto elucidativo
das dinâmicas, conflitos e consensos que se produziram na arena política desse distrito industrial, em função de contextos de crise econômica.
O Seminário realizou-se logo após a
deflagração de uma das mais graves crises econômicas do capitalismo mundial, que atingiu as atividades industriais no Brasil ao final de 2008. O
desemprego que se confirmou nos meses posteriores a outubro desse mesmo ano alertou os dirigentes
do sindicato dos metalúrgicos para a necessidade de
interferir na lógica do processo de desenvolvimento
econômico regional. Na verdade, o estopim para esta
mobilização se deu a partir dos protestos organizados pela base sindical nas portas de fábrica do ABC
e nas ruas do município de São Bernardo do Campo
(SP), o que, segundo o vice-presidente do sindicato
na época, chegou a mobilizar “mais de 18 mil companheiros”, que “declararam guerra contra demissões e redução de salários”.
O Seminário não nasceu inicialmente do sindicato. Nasceu em frente à RW, em Diadema, em
um protesto contra as demissões. [...] E começamos a discutir com a diretoria, [...] precisamos
lançar uma proposta de seminário para mais
pessoas... outros grupos se integrarem (Rafael
Marques, vice-presidente do sindicato dos
metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010).
8
“Os dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados), divulgados nesta quarta-feira (16/09/
2009) pelo Ministério do Trabalho, representam um salto
na criação de emprego na Região, já que em julho o resultado ainda era negativo [...]. Agosto [...] marcou a recuperação do emprego nas indústrias de transformação da
Região. [...] Vale destacar que as principais atividades econômicas apresentaram [resultados positivos] na geração
de emprego [...].” (“Criação de emprego dispara no ABCD
em agosto”, Jornal ABCD Maior, 16/09/2009).
Esse contexto permitiu, então, não só recuperar pautas e práticas sindicais anteriores,
exercidas pelo sindicato no ABC dos anos 1990,
como, também, acionar diretamente um dos seus
principais aliados e ex-dirigente, o Presidente da
224
José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
do demandas e pedindo soluções.9
Após o evento, as avaliações foram, majoritariamente, no sentido de reconhecer avanços: em
políticas públicas; no exercício de mecanismos de
pressão sobre as administrações municipal, estadual e federal; na possibilidade de acordos mais
compreensivos sobre a manutenção de empregos
com empresários; no estímulo aos arranjos produtivos locais envolvendo pequenas e médias
empresas; na preocupação com a qualidade do trabalho e na formação mais eficiente do jovem trabalhador. Segundo o presidente, à época, do sindicato dos metalúrgicos, Sérgio Nobre,
a gente sabia que o seminário não apontaria uma
saída imediata para a crise. Seu grande mérito
foi juntar atores econômicos e políticos em torno
de uma agenda de negociação. A maior parte das
propostas apresentadas depende de ações do setor público e esse é o foco da Câmara Regional.
Temos a chance de uma participação efetiva, não
só para discutir como superar a crise, mas também discutir como é possível melhorar o ABC.
[...] Não é qualquer um que consegue juntar tantas pessoas com tamanha representatividade –
empresários, trabalhadores e três esferas do poder público – para discutir problemas comuns.
Nós conseguimos (Tribuna Metalúrgica – Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 17/03/2009).
O grande diferencial do governo Lula foi trazer
estes atores para dentro da vida do País, abrir o
diálogo e construir políticas conjuntas. No ABCD,
nós conquistamos esta autoridade. O Sindicato
dos Metalúrgicos do ABC é uma instituição da
Região, a comunidade nos entende e quer nos
ouvir. Nós criamos historicamente espaços de
diálogo de onde surgiram sugestões importantes
mesmo em momentos de crise (Para Sérgio Nobre, valorizar salário é garantir desenvolvimento, ABCD Maior, 03/08/2009).
A ação sindical envolveu, também, a administração pública regional. O fato de o prefeito de
São Bernardo do Campo ser um ex-sindicalista
metalúrgico, e com experiência adquirida como
dirigente sindical durante a crise econômica dos
anos 1990 no ABC, consolidou o apoio à ideia
desse evento.
O Seminário contou com a presença de mais
de 1.500 pessoas. Foi estruturado em grupos de
debate sobre os principais problemas da região e
refletiu a complexidade de interesses dos diversos
setores econômicos ali presentes: problemas de
crédito; acesso a mercados e potencialidades regionais com vistas à geração de empregos, e aumento da renda e da competitividade local; tributos e
questão fiscal; desemprego; e relações de trabalho
e trabalho decente. Ao final, uma carta resumo foi
enviada ao Presidente da República, apresentan-
9
Trechos da carta: Exmo. Sr. Luiz Inácio Lula da Silva Presidente da República Federativa do Brasil
A Região do Grande ABC, que vem mantendo diálogo
constante com Vossa Excelência desde o início de seu
primeiro mandato, volta a solicitar sua atenção em um
momento em que o Brasil começa a superar os efeitos da
crise econômica internacional. [...].
A Região vem sendo beneficiado por várias medidas do
Governo Federal desde 2003. Diversos pleitos regionais
foram atendidos [...].
Entre os anos de 2003 e 2008, foram gerados na região
173 mil novos postos de trabalho formais, revertendo a
tendência anterior e levando a taxa de desemprego no
período a quase metade, de 18,1% a 10,0%.
Apesar da evolução positiva dos indicadores
socioeconômicos regionais no período citado, a partir de
outubro de 2008 os efeitos da crise internacional se fizeram sentir no Grande ABC [...].
O Grande ABC não está inerte. Face ao novo contexto,
mostrou-se mais uma vez capaz de agir como arranjo
social articulado em busca de alternativas de
enfrentamento das dificuldades. Esse foi o motor do
Seminário “O ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”
[...]. Soluções criativas e compromissos comuns foram
adotados na ocasião e estão em andamento. Dando continuidade a esse processo, os representantes da região
dirigem-se a V. Excia., resgatando as demandas ainda
pendentes e complementando-as. [...]
O Grande ABC conta, mais uma vez, com a atenção e o
apoio de V. Excia. Consórcio Intermunicipal do Grande
ABC (25 de agosto de 2009).
225
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
República, Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez, por
essa razão, o poder de mobilização sindical tenha
ultrapassado a esfera regional e o evento ganhado
outra dimensão ao propor um amplo debate sobre
os efeitos da crise econômica no país. Importantes
atores políticos foram convocados e compareceram
ao Seminário, como a ministra-chefe da Casa Civil, à época, Dilma Rousseff, o então governador
de São Paulo, José Serra e outros membros da administração pública estadual e federal. O Seminário contou, também, com a adesão de atores políticos regionais: a Universidade Federal do ABC,
associações, centros comerciais e industriais da
região, a Agência de Desenvolvimento Econômico
do ABC, a associação das empresas do Polo
Petroquímico, além da ANFAVEA e do Sindipeças,
representando o setor automotivo.
SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ...
Para o vice-presidente do sindicato, o Seminário teve o efeito de recuperar atividades voltadas para o desenvolvimento regional, que vinham
passando por diversos ciclos de vitalidade em função das diferenças políticas das administrações
públicas ao longo da década de 2000.
Nos últimos cinco anos, seis anos, houve um recuo da integração regional por conta das lideranças que acabaram se consolidando no ABC nas
eleições municipais. [...] Uma das propostas do
seminário foi rearticular a Câmara Regional
(Rafael Marques, 24/02/2010).
Os resultados desse esforço foram incorporados à dinâmica local, e a ênfase regional parece
ter se transformado em ponto fundamental nas
concepções econômicas e políticas das administrações públicas.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
Existe um conceito hoje na região, para qualquer
administrador que seja mais ou menos sério, de que
ele não pode correr do debate sobre regionalidade.
[...] E aquele momento [do seminário] foi importante para criar unidade em torno dessa questão,
de que não existe saída para nenhum município
ou para nenhuma gestão independente de que
partido seja, sozinho (Wagner Santana, Secretário Geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,
26/02/2013).
Passados quatro anos da realização do Seminário, já é possível identificar alguns dos seus
desdobramentos concretos. No final de 2009, a
agenda do trabalho decente foi implantada como
fruto do evento.
A primeira Agenda Regional do Trabalho
Decente no Brasil começou a ser desenhada no
ABC [...], com a assinatura da carta de compromisso e a criação de um grupo de trabalho tripartite
formado pelo poder público, sindicatos e empresários para tratar do assunto. [...] O assunto foi
para a agenda regional com o seminário O ABC do
Diálogo e do Desenvolvimento, realizado em março, diante da conclusão de que trabalho de qualidade e com direitos é uma maneira de combate à
crise e de estímulo ao desenvolvimento social e
econômico (Tribuna Metalúrgica - Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, 08/12/2009).
Avaliação mais recente confirma o êxito des-
sa iniciativa e sua incorporação às práticas de
contratação regionais. O secretário-geral do sindicato dos metalúrgicos do ABC, Wagner Santana
(2013), em entrevista, ressalta o fato “da agenda do
trabalho decente ter sido adotada pela Câmara Regional (do ABC)”, e de que as administrações públicas regionais precisarem “ter aquela agenda em
mãos nas suas contratações de terceiros”.
Outro empreendimento que se desenvolveu
a partir do Seminário de 2009 foi a constituição de
um Polo Tecnológico e o incentivo à criação de
“Arranjos Produtivos Locais”. A interferência local na lógica do sistema produtivo se coloca na
tentativa de criar condições para viabilizar a competição das empresas da região com empresas estrangeiras e habilitar o produtor do ABC para a
disputa por melhores produtos e qualidade, como
é o caso da ferramentaria e das autopeças. Sobre a
ferramentaria, diz Wagner Santana (2013), atual
secretário geral do sindicato, “conseguimos
estruturar uma APL de um setor que estava sendo
terceirizado para a China, para a Coréia, para a
Alemanha” e sobre as autopeças:
Queremos fazer um debate sobre as autopeças
da região, aquelas não sistemistas, que empregam 40 mil trabalhadores, e que condições – aí
precisa da intervenção do poder público mesmo
– a gente consegue criar para que as empresas
brasileiras se tornem competitivas diante das
grandes multinacionais fornecedoras.
CONCLUSÃO
A inclusão do debate sobre desenvolvimento
(regional e nacional) à pauta do sindicato dos
metalúrgicos do ABC e, mais ainda, a participação
efetiva da entidade sindical em instâncias de
mobilização institucional e política fora das fábricas e na formulação de alternativas para as crises
produzidas pelas falhas do sistema capitalista com
repercussão sobre a vida dos trabalhadores, a nosso ver, constitui uma inovação no contexto do
sindicalismo brasileiro das duas últimas décadas
por significar uma percepção e um posicionamento
que reúne os três pontos da geometria sindical da
226
José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
10
Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, a representação sindical no ABC garante, não só melhores salários, como uma série de benefícios e segurança aos trabalhadores. “O sindicato conseguiu segurar as demissões
na Mercedes em 2012, quando a produção de caminhões
despencou. Fechamos um turno de trabalho, mas ninguém foi demitido”, diz Wilson José da Silva (montador
que trabalha há 18 anos na fábrica da Mercedes-Benz em
São Bernardo do Campo). O piso salarial dos metalúrgicos
do ABC está em R$1.560. Esse valor é 131% maior que o
piso dos metalúrgicos no Amazonas, por exemplo, que
está em R$ 675 (Piso do ABC é 131% maior do que na
Amazônia, Valor, 04/02/2013).
volvimento regional. O termo “sindicato cidadão”,
criado no início dos anos 1990, reflete, em parte,
essa preocupação. Diríamos que hoje, com o exemplo do Seminário, o debate sobre desenvolvimento e “regionalidade” acrescentou outros elementos
às práticas sindicais já voltadas às demandas por
melhores condições de habitação, saúde e educação. Está em jogo uma relação mais complexa do
sindicato com o território produtivo do qual faz
parte, ao se colocar na arena política local como
um ator social que reivindica a participação em
espaço público nas decisões econômicas e políticas que afetam o bem comum e que contesta, no
caso das crises, as justificativas econômicas “moralmente” insustentáveis de atribuir aos trabalhadores os custos dos equívocos do sistema.
A minha tese é que o desenvolvimento econômico
é local, tem a sua limitação macroeconômica, é
óbvio, taxa de juros, câmbio, política industrial,
tem essa limitação macro, mas o território deve,
pode fazer muito pelo seu desenvolvimento. Acredito que a mobilização da comunidade é fundamental, ter vários atores, lideranças interessadas
em promover o desenvolvimento. Perceber que o
desenvolvimento é uma relação ganho a ganho, onde
o público ganha a arrecadação, o trabalhador ganha porque gera mais emprego e o empresário ganha porque gera um ambiente mais favorável para
o seu negócio (Paulo Eugênio Pereira Júnior, Secretário Executivo da Agência de Desenvolvimento
Econômico do Grande ABC. 27/07/2004).
Se os dados empíricos fornecem elementos
para uma interpretação com um caráter de
positividade para esta e outras experiências do sindicato dos metalúrgicos do ABC, não há dúvida de
que os dilemas presentes na atividade sindical mundial e brasileira permanecem e apontam questões
que merecem ser mais discutidas pelos próprios
sindicalistas, técnicos e pesquisadores. A produção de conhecimento neste campo de estudos sempre esteve marcada por disputas políticas de interpretação, e as práticas sindicais passam sempre,
necessariamente, pelo crivo da luta política e das
ênfases variadas que se adequam às concepções do
papel que deve desempenhar a instituição sindical
no contexto do capitalismo contemporâneo.
A postura pró-ativa do sindicato do ABC,
de buscar envolver empresários e administração
227
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
formulação de Hyman (2001), ou seja, uma sensibilidade e uma ação equilibrada na relação com a
classe, com o mercado e com a sociedade.
Sem deixar de ser uma agência de classe,
confirmada pela permanente manifestação de descontentamento com as empresas em manifestações
públicas de protesto e greves, o sindicato dos
metalúrgicos negociou, nos contextos de crise e
reestruturação produtiva, não só a preservação de
empregos, e obteve até mesmo aumentos reais de
salário,10 como, também, voltou suas atividades e
preocupações também para a sociedade, para as
questões sociais como um todo, reivindicando do
Estado, através das administrações e suas políticas públicas, uma mudança de foco visando à
melhoria das condições de vida da população.
O Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, por ter sido uma iniciativa sindical e
por ter demonstrado um poder de convocação dos
diversos setores e interesses da sociedade local e
regional para debater uma crise que atingia, mesmo que de forma diferenciada, a todos, confirma
um estilo único de sindicalismo, que reúne e combina o acúmulo de um histórico de lutas e de experiências de confronto político de classe, em variados períodos de tempo ao longo do processo de
industrialização brasileiro, com uma estratégia de
conversão desses recursos políticos em uma
expertise para negociar com o mercado e as empresas as questões salariais e de reestruturação produtiva impostas pelas crises do sistema.
A novidade das últimas duas décadas foi a
aproximação com as demandas sociais mais amplas da sociedade, ultrapassando os limites da
corporação e atuando nas instâncias de decisão
sobre políticas sociais e sobre projetos de desen-
SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO ...
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
pública na constituição de instâncias de debate
sobre desenvolvimento, por exemplo, mantém
inalteradas as contradições capital/trabalho e as
assimetrias insuperáveis do capitalismo, e poderia significar o abandono da perspectiva de contestação dos anos 1970/1980. As greves e manifestações de protesto, ocorridas na década de 2000
no ABC, não confirmam esta interpretação, além
do que, houve ganhos reais de salário, acima da
média de outras categorias nesse período.11 Ao
mesmo tempo, o fortalecimento da instituição sindical ao longo dessas décadas, o que leva a algum
tipo de “acomodação”, se comparado com épocas
de autoritarismo e confronto político, e que implicaria o descaso com o trabalho de base fabril, também não se confirma. São várias as manifestações
de dirigentes sindicais metalúrgicos enfatizando a
importância e a legitimidade alcançada pelo trabalho de base, através das comissões de fábrica e
comissões sindicais de empresa.
Um ex-presidente do sindicato dos metalúrgicos,
com mandato durante a década de 2000, ao ser
entrevistado, atribuiu grande significado ao trabalho de base, à proximidade com os trabalhadores
dentro das fábricas, pelo fato de ser elemento essencial para manter a confiança e respeitabilidade
da instituição sindical.
Entendemos que a estrutura sindical hoje é absolutamente inadequada, cada vez menos capaz de
responder à geografia econômica dos setores econômicos e se torna também incapaz de responder
às demandas surgidas nas bases dos sindicatos. E
nós, nesta filosofia de um sindicato organizado
dentro do local de trabalho, fomos à prática. Então
na década de 1980 conquistamos as primeiras
comissões de fábrica, o modelo se espalhou. Depois avançamos de modo que a composição da
diretoria fosse iniciada pela eleição de comitês
11
“Numa década governada em 80% do tempo por um exlíder sindical dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP), as negociações salariais envolvendo os operários das quatro montadoras da região do ABC paulista
registraram o avanço mais expressivo num grupo de
quatro categorias tradicionais. Enquanto os petroleiros
da Petrobras acumularam ganhos de 1,3% acima da inflação registrada entre 2000 e 2010 e os bancários viram
seus rendimentos reais crescerem 3,4%, os operários
das montadoras do ABC registraram ganho real de 37,4%,
mais que o dobro do já expressivo resultado alcançado
pelos químicos - 15,2% acima da inflação no período
[...]“. (Com Lula em Brasília, reajuste real foi mais elevado no ABC, Valor Econômico, 19/01/2011).
sindicais de empresa; hoje temos, 85% da categoria com representação no local de trabalho. Esta
proximidade cotidiana na fábrica nos permite a
observação de como está a produção e a economia
do nosso setor. Então, de quem a gente compra,
para quem a gente vende, os novos modelos de
gestão, de tecnologia que vão sendo introduzidos
no local de trabalho e as suas consequências. Este
foi um dos primeiros sindicatos a discutir para
valer os novos métodos de trabalho e a introdução
de novas tecnologias. [...] E tínhamos que tomar
uma decisão; ou as empresas farão essa
reestruturação como bem entenderem, ou o sindicato vai interferir. E nós optamos por interferir
(José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, 18/06/2004).
Para Bresciani (2004, p. 8), o sindicalismo
do ABC se reinventa, sua atuação política se diversificou ao longo dos últimos 25 anos e sua capacidade política, no debate e coordenação da agenda regional do desenvolvimento econômico, apresenta um “adequado equilíbrio no que diz respeito à presença sindical na microesfera do cotidiano
produtivo” e na participação dos trabalhadores na
transformação dos seus locais de trabalho. Para este
autor, a sintonia fina da política sindical, que
enfatiza o vínculo entre as duas esferas, a região e
o local de trabalho, é que coloca os maiores desafios às lideranças dos trabalhadores na “perspectiva
concreta de um desenvolvimento regional efetivamente democrático e inclusivo”.
Na sua função de regular a relação de trabalho, o sindicato permanece exercendo sua função
de representação, já que não pode “ignorar o mercado”. E, como parte da sociedade, necessita, para
sua sobrevivência, coexistir com outras instituições e outras constelações de interesse (mesmo com
aquelas que certos sindicatos proclamam um antagonismo imutável) (Hyman, 2001, p. 3-4). No caso
do ABC, no entanto, o sindicato não pode deixar
de ser uma “agência de classe” ao se distinguir
dos empregadores pelo fato de incorporar, em sua
concepção institucional, os interesses coletivos dos
trabalhadores e reafirmar sua identidade coletiva.
Em resumo, podemos dizer que a ação sindical
dos metalúrgicos do ABC, voltada para a participação política na discussão sobre projetos de desenvolvimento econômico regional (e nacional),
contestando decisões que prejudicam a criação e
228
José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
manutenção de empregos e que afetam o bem estar
e as condições de vida da população em geral,
aproxima a instituição das demandas da sociedade e reforça sua legitimidade como instância de
representação dos interesses dos trabalhadores.
Recebido para publicação em 30 de março de 2013
Aceito em 14 de junho de 2013
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Rafael Marques, Vice-presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010.
José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos
do ABC, em 18/06/2004.
Paulo Eugênio Pereira Júnior, Secretário Executivo da
Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC,
em 27/07/2004.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
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2006.
ENTREVISTAS
230
José Ricardo Ramalho, Iram Jácome Rodrigues
UNIONS, DEVELOPMENT AND WORK:
economic crisis and political action in the ABC
Region
SYNDICAT, DÉVELOPPEMENT ET TRAVAIL:
la crise économique et l’action politique dans la
région de l’ABC
José Ricardo Ramalho
Iram Jácome Rodrigues
José Ricardo Ramalho
Iram Jácome Rodrigues
The goal of this text is to discuss and
problematize the new practices by the metal worker
unionists in São Paulo’s ABC region, which
implies the direct involvement of the entities which
represent workers outside the actual factory in the
debate regarding development strategies and their
ramifications in the regional context of a global
economy. We will analyze union actions during
two different periods (the 1990s and 2000 – 2009)
and as a synthesis of this process, we will focus
on a political event organized and held by the metal
workers’ union in 2009, a seminar called “The ABC
of Dialog and Development”, which reveals the
different insertions and perspectives of the social
actors at the local, regional and national levels in
the search for alternatives regarding the worldwide
economic crisis of 2008. The event exemplifies a
public meeting which despite not doing away with
the contradictions and conflicts of a social reality
marked by the asymmetry of positions in the social structure, created a moment of temporary
consensus regarding the threats of a setting hostile
to workers.
L’objectif de cet article est de discuter et de
remettre en question les nouvelles pratiques
syndicales des métallurgistes de la région de l’ABC
pauliste. Ceci fait que les organes représentatifs
des travailleurs non-manufacturiers sont
directement concernés et mène à un débat sur les
stratégies de développement et leurs conséquences
dans les contextes régionaux d’une économie
mondialisée. Nous analyserons l’action syndicale
sur deux périodes distinctes (les décennies de 1990
et 2000) et nous mettrons en évidence, comme une
synthèse de ce processus, la réalisation d’un
événement politique organisé par le syndicat des
métallurgistes en 2009, le Séminaire “L’ABC du
Dialogue et du Développement”, qui révèle les
différentes insertions et perspectives des acteurs
sociaux locaux, régionaux et nationaux dans la
recherche d’alternatives à la crise mondiale de 2008.
C’est un exemple de réunion publique qui, sans
éliminer les contradictions et les conflits d’une
réalité sociale marquée par des positions
asymétriques dans la structure sociale, a créé un
moment de consensus provisoire face aux menaces
d’une conjoncture hostile aux travailleurs.
José Ricardo Ramalho – Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pósdoutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular do
Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPQ. Sua atuação acadêmica está mais voltada para a área
da Sociologia do Trabalho e seus principais temas de pesquisa são: relações de trabalho na indústria; sindicato e sindicalismo; reestruturação produtiva e distritos industriais; trabalho, emprego e desenvolvimento
econômico regional e local; identidade operária. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicas
e livros. Entre estes, Estado Patrão e Luta Operária: o caso FNM. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Trabalho
e Sindicato em antigos e novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007.
Iram Jácome Rodrigues – Doutor em Sociologia. Professor Associado (Livre-Docente) do Departamento de
Economia da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de
São Paulo (PPGS-USP). Atua na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Trabalho, principalmente
nos seguintes temas: ação coletiva, sindicalismo e desenvolvimento regional; relações de trabalho e organização de interesses; sindicalismo e política; trabalho e sindicalismo; emprego, desenvolvimento econômico
local e regional. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Sindicalismo
e Política: a trajetória da CUT (1983-1993). 2º. ed. São Paulo: LTr, 2011; Trabalho e Sindicato em antigos e
novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007.
231
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 217-231, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Union Action. Regional Development. MOTS-CLÉS: Action syndicale. Développement
régional. Région de l’ABC pauliste. Crise
São Paulo’s ABC. Economic Crisis.
économique.
SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA: o novo
desenvolvimento e os conflitos do trabalho1
Roberto Véras de Oliveira*
DOSSIÊ
Roberto Véras de Oliveira
INTRODUÇÃO
Este artigo discute, pela ótica do trabalho e de
seus conflitos, a emergência de uma nova agenda de
desenvolvimento no Brasil. Tem como foco as revoltas e greves dos trabalhadores que atuam na construção de dois dos principais empreendimentos do
Complexo Industrial Portuário de Suape, a Refinaria
Abreu e Lima e a Petroquímica Suape, durante os
anos de 2011 e 2012. Busca problematizar, a partir
deste caso, a reedição de uma construção prático
discursiva de teor desenvolvimentista no País.
* Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba –
UFPB – e membro do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFPB – PPGS– e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Campina Grande – PPGCS/UFCG.
Av. Washington Luis, 268, apto 201, Bessa. Cep: 58035-340.
João Pessoa – Paraíba – Brasil. [email protected]
1
Este artigo resulta de reflexões realizadas a partir do
projeto “O novo desenvolvimentismo no Brasil visto a
partir de suas implicações sociais no Nordeste”, desenvolvido no âmbito do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Políticas Públicas e Trabalho – LAEPT/UFPB,
em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ
e o Observatório PE – UFPE. Ao mesmo tempo em que
agradeço as contribuições dos colegas, assumo toda responsabilidade pelo seu conteúdo. Agradeço, ainda, as
importantes contribuições dos pareceristas anônimos.
O Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros – Suape, ou CIPS, está situado na Região Metropolitana de Recife – RMR,2
Litoral Sul de Pernambuco, nos municípios de
Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho, abrangendo
uma área de 13,4 mil hectares. A partir da primeira edição do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, em 2007, se constituiu em um dos
maiores polos de investimentos do país.
Pernambuco vive um boom econômico, após
um período de declínio. A economia regional esteve, por décadas, sob forte impacto dos incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE. De 1963 a 1969, o estado foi o principal beneficiário dessa política, recebendo 36,9% dos incentivos (seguido da Bahia,
com 32,8%). Tal participação caiu, entre 1970 a
1974, para 25,7% e, de 1975 a 1984, para 16,6%.
Acompanhando a evolução dos investimentos incentivados pela Sudene, o PIB estadual cresceu
2
A RMR inclui os municípios de Abreu e Lima, Araçoiaba,
Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Igarassu, Ipojuca,
Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata.
233
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
Este artigo discute, pela ótica do trabalho e de seus conflitos, a emergência de uma nova agenda
de desenvolvimento no Brasil. Tem como foco as revoltas e greves dos trabalhadores que atuam
na construção de dois dos principais empreendimentos do Complexo Industrial Portuário de
Suape, a Refinaria Abreu e Lima e a Petroquímica Suape, durante os anos de 2011 e 2012. Esta
abordagem pretende apreender os processos desencadeados pelos conflitos, mediações e negociações e o que tem estado em disputa, com as demandas dos trabalhadores e os discursos e
práticas governamentais, empresariais e sindicais. Perguntamo-nos se essas mobilizações, além
de trazerem ganhos imediatos para os trabalhadores, têm permitido que estes se façam reconhecer como legítimos portadores de demandas sociais. E em que medida tais demandas vêm
sendo não só objeto de denúncia pública, mas, também, um modo de problematizar os termos
que dão sustentação ao novo discurso desenvolvimentista.
Palavras-chave: Desenvolvimento. Trabalho. Sindicalismo. Construção civil. Suape.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
10,6% ao ano de 1970 a 1975, 6,6% de 1975 a
1980 e 2,4% de 1980 a 1985, invertendo sua relação com o PIB regional (com médias anuais, respectivamente, de 10,2%, 7,2% e 4,4%). Após alguma recuperação no final dos anos 1980,
Pernambuco cresceu, na década de 1990, com
médias anuais de 2,0% e o Nordeste, com 3,0%.
Concorreu para tal evolução a exclusão do estado
do II Plano Nacional de Desenvolvimento – PND,
lançado em 1975, o qual previu investimentos para
a Bahia (Pólo Petroquímico de Camaçari), Alagoas
e Sergipe (Complexo Cloroquímico), Maranhão
(Pólo Minerometalúrgico) (Lima e Katz, 1993).
A proposta do Porto de Suape surgiu nos
anos 1960, inspirando-se nos complexos industrial-portuários de Marseille-Fos, na França, e de
Kashima, no Japão (Suape/Governo Pernambuco,
2010).3 Ainda durante os procedimentos preliminares, em 1975 foi publicado um manifesto assinado por intelectuais pernambucanos, liderados
pelo economista Clóvis Cavalcanti, em um protesto (sobretudo de teor ambiental) à construção do
porto,4 evidenciando a relevância pública que o
projeto já havia adquirido, assim como o seu caráter controverso (Cavalcanti, 2008). O processo, no
entanto, seguiu. Em 1977, foi realizada a desapropriação da área e foram iniciadas as obras de
infraestrutura (porto, sistema viário, abastecimento d’água, energia elétrica e telecomunicações). Em
1978, foi formalizada a criação da empresa pública
estadual “com a finalidade de administrar a implantação do distrito industrial, o desenvolvimento das obras e a exploração das atividades portuárias” (Suape/Governo Pernambuco, 2010). Quanto
às comunidades locais, estabeleceu-se um misto
de esperança e medo, conforme apurou o relatório
que deu suporte ao Plano Diretor de preservação e
revitalização do Cabo de Santo Agostinho, Vila de
3
A ideia originou-se de um estudo realizado pelo Padre
francês Louis Lebret, para a Comissão de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, o qual foi publicado
em Lebret (1955). Isso sugere o quanto o projeto Suape,
desde suas mais remotas origens, se encontra associado
ao pensamento e às políticas desenvolvimentistas.
4
O “Manifesto Suape” foi publicado no semanário Jornal
da Cidade (ano II, n. 24, 6, 12/4/75). Encontra-se disponível em: http://cloviscavalcanti.blogspot.com.br/p/manifesto-suape.html (Acesso em 25/06/2012).
Nazareth, povoados de Baibu e Suape, realizado
por Sena Caldas & Polito Arquitetos Associados
Ltda (1980, apud Rocha, 2000).
O Complexo de Suape começou a funcionar com a incorporação, em 1986, da BR Distribuidora, Shell, Texaco e Esso, oriundas do Porto
do Recife. Em 2005, foi anunciado o projeto da
Refinaria Abreu e Lima, produto, inicialmente, de
uma negociação entre a Petrobras e a Petróleo de
Venezuela S.A. – PDVSA. Conforme Santos (2012),
até esse momento, “Suape se caracterizaria por
investimentos no porto e na instalação de empresas de médio porte, com baixa complexidade
tecnológica, pouca exigência de qualificação profissional e limitada capacidade de irradiação na
economia regional”. A partir de 2007, com o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, o Complexo passou a atrair grandes investimentos públicos e privados, convertendo-se, desde então, com
seu entorno, em um gigantesco “canteiro de obras”.
Os investimentos públicos no CIPS passaram de
R$ 155 milhões (entre 1995 e 1998) para R$ 136
milhões (1999 a 2002) e R$ 147,6 milhões (2003 a
2006); enquanto, entre 2007 e 2010, pularam para
R$ 1,46 bilhões. Quanto aos investimentos privados, totalizaram US$ 2,2 bilhões até 2006; sendo
que, de 2007 a 2010, reuniram US$ 17 bilhões
(Suape/Governo Pernambuco, 2010).
O Complexo, na atualidade, compreende
mais de 100 empresas instaladas e dezenas de outras em fase de instalação. Alguns destaques: Refinaria Abreu e Lima e Petroquímica Suape (Petrobrás);
Estaleiro Atlântico Sul – EAS; Energética Suape
(termelétrica); Impsa Wind Power (fabricação de geradores eólicos); Bunge (refinaria de óleos vegetais,
fabricação de margarinas e moinho de trigo); Tecon
Suape (logística do porto). Oficialmente, estima-se
em 25 mil o número de empregos diretos projetados
para as empresas instaladas e em instalação (Suape/
Governo Pernambuco, 2010). A Refinaria representa, de longe, o maior investimento, estimado em
US$ 13 bilhões. A previsão oficial é que gerará 1,5
mil empregos diretos e algo em torno de 130 mil
indiretos. As obras de construção tiveram início
em 2007, com previsão inicial de conclusão para
234
2011, sendo adiada para 2012 e, depois, para 2013.
O número de trabalhadores envolvidos na construção da Refinaria e da Petroquímica foi avaliado
em cerca de 50 mil no final de 2012 (Santos, 2012).
Para Moutinho et al (2011), o bom momento da economia pernambucana resultou, sobretudo, de definições estratégicas de desenvolvimento
nacional e regional, materializadas nos grandes
investimentos do PAC, nos quais se destacam, além
de Suape: a Ferrovia Nova Transnordestina, a
Transposição do Rio São Francisco, o Pólo
Farmacoquímico. Acrescente-se a esses: a fábrica
da Fiat, a Cidade da Copa, entre outros.5 Com isso,
o projeto Suape adquiriu peso nas agendas do
Governo do Estado e dos governos municipais do
entorno, ganhou posição de destaque na mídia local
e no imaginário dos pernambucanos. No discurso
de Eduardo Campos, o tom é sempre eufórico e o
conteúdo, desenvolvimentista:
Pernambuco vive um momento muito especial
em sua economia. Investimentos públicos e privados estão tirando do papel empreendimentos
importantes, que transformam a sociedade e a
vida dos pernambucanos de uma maneira nunca
vista em sua história [...] Nesse contexto,
Pernambuco, que é destaque no País, centraliza
as atenções dos investidores, sendo Suape a mola
propulsora desse desenvolvimento (Suape/Governo Pernambuco, 2010).
As críticas às consequências ambientais e
sociais do projeto estiveram presentes desde as
suas origens (Cavalcanti, 2008). Contudo, o empreendimento seguiu. Especialmente, ganhou maior legitimidade e força quando da retomada de uma
agenda desenvolvimentista no país e na região. De
algum modo, se estabeleceu incorporando elementos da crítica, em um esforço de justificação.6 Foi
5
6
As conexões entre a trajetória histórica do Complexo
Suape e as economias estadual, regional e nacional, sobretudo no que se refere ao seu momento atual, com os
investimentos do PAC em Pernambuco, no Nordeste e
no país, assim como com os investimentos públicos,
privados e mistos, impulsionados a partir de então, não
podem ser menosprezados. Trata-se da atualização da
inserção do Nordeste e de Pernambuco na divisão regional do trabalho, que se consumou com forte base na
implementação do projeto da Sudene (Oliveira, 1981).
Usamos o termo em um sentido próximo ao atribuído
por Boltanski e Chiapello (2009, p. 52-53): “Já lembramos a importância que tem, para o capitalismo, a possibilidade de apoiar-se num aparato justificativo adaptado
assim que o novo Plano Diretor Suape 2030, publicado em 2011, buscou compatibilizar suas razões econômicas (portuário-industriais) com demandas ambientais, culturais, sociais. Em destaque, incorporou uma ampliação da Zona de Proteção Ecológica, de 48% para 59% da área total (Folha de Pernambuco, 30/09/2011). O adjetivo “sustentável” ganhou importância crescente nos discursos dos agentes estratégicos de Suape. Em maio
de 2008, empresários e políticos se reuniram na
sede da Federação das Indústrias de Pernambuco
para tratar do tema do “Desenvolvimento Sustentável do Território Estratégico de Suape”. Na ocasião, o BNDES apresentou um projeto para a região, prevendo apoio a ações em: controle urbanoambiental; tratamento de resíduos sólidos; articulação de arranjos produtivos locais; sistema viário; transporte público; educação; qualificação profissional; preservação do patrimônio histórico, turístico e cultural (JC,7 17/05/2008). Entretanto, o
convênio só foi firmado em setembro de 2010, com
a denominação de Programa Especial de Controle
Urbano-Ambiental no Território Estratégico de
Suape, com recursos não reembolsáveis de R$ 10,9
milhões. O representante do BNDES em
Pernambuco, Paulo Guimarães, em declaração ao
JC (12/08/2011), deixou escapar um elemento de
compensação nessa iniciativa: “temos uma grande
preocupação com o desenvolvimento social do território, porque o banco financiou os principais
grandes empreendimentos instalados em Suape”.
Daí derivou o Programa Suape Sustentável, lançado em 2011, envolvendo os gestores do CIPS, oito
secretarias de estado, prefeituras, as empresas instaladas em Suape, o BNDES, o Banco do Nordeste, ente outros. Declarou-se, com o referido Pro-
7
às formas concretas assumidas pela acumulação do capital em determinada época, o que significa que o espírito do capitalismo incorpora outros esquemas, que não
os herdados da teoria econômica (...) Mas o capitalismo
não pode encontrar em si mesmo nenhum recurso para
fundamentar motivos de engajamento e, em especial,
para formular argumentos orientados para a exigência
de justiça (...) A justificação do capitalismo, portanto,
supõe referência a construtos de outra ordem, da qual
derivam exigências completamente diferentes daquelas
impostas pela busca do lucro”.
Utilizamos as siglas “JC”, para Jornal do Commercio, e
“DP”, para Diário de Pernambuco.
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
Roberto Véras de Oliveira
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
grama, o propósito de transformar o Complexo
Suape e seu Território Estratégico em um modelo
de “desenvolvimento sustentável”, “equilibrando
o crescimento econômico, a inclusão social e a
preservação do meio ambiente” (http://
www.suape.pe.gov.br).
Um esforço de justificação das atuais políticas de desenvolvimento parece estabelecido no
construto discursivo dos agentes estratégicos de
Suape, o que não tem ocorrido senão sob uma contraditória composição entre racionalidades de teor
econômico, social e ambiental. Quanto ao lugar
do trabalho no novo discurso desenvolvimentista
em Pernambuco e Suape, ao que tudo indica, tem
se fixado em dois pontos principais: na capacidade dos empreendimentos gerarem empregos e no
crescente desafio de qualificar e incorporar os trabalhadores pernambucanos em mão de obra apta a
ocupar os agora exigentes postos de trabalho. Uma
declaração de Eduardo Campos ao JC (01/01/2012),
no início do seu segundo mandato, é ilustrativa
quanto a isso:
Tivemos um tempo em que tínhamos pessoas preparadas e não tínhamos oportunidades. Isso era
constrangedor. Agora, em cinco anos se gerou quase
500 mil empregos, o desemprego caiu [...] As oportunidades estão chegando e os pernambucanos
estão entrando nessas oportunidades. Vamos ler
os números como eles são! Nós tínhamos 15% de
desemprego. Reduzimos dois terços em cinco
anos. Estamos fazendo um grande esforço na educação, que não se muda de um ano para o outro,
mas sim de uma geração para outra.
Entretanto, a eclosão de uma onda de conflitos, protagonizada pelos peões8 dos canteiros de
obra de Suape, realçou outros aspectos, produzindo deslocamentos nas dinâmicas das relações de
trabalho, com repercussões econômicas e políticas. Especialmente a partir de 2011, revoltas, paralisações e greves, acompanhadas por confusos e
tensos processos de negociação social e sindical,
envolvendo os próprios peões, sindicatos, empre8
Não se sabe, precisamente, onde e quando a expressão
“peão” passou a ser usada, no Brasil, com o sentido de
operário pouco ou sem qualificação. Um dos primeiros
estudos a incorporar o termo com tal conotação foi o de
Rainha (1980).
sas, governos estadual e municipais, Ministério
Público do Trabalho – MPT, Ministério do Trabalho e Emprego, Justiça do Trabalho, órgãos de
mídia, entre outros, vêm marcando fortemente a
cena da região.
Uma abordagem com foco em tais conflitos
nos permitirá apreender os processos desencadeados (conflitos, mediações e negociações) e o que
tem estado em disputa em tais processos (com as
demandas dos trabalhadores e os discursos e práticas governamentais, empresariais e sindicais).
Perguntamo-nos se, com essas mobilizações, para
além de estarem conseguindo trazer ganhos imediatos para os trabalhadores, estes têm sido capazes de se fazer reconhecer9 como legítimos portadores de demandas sociais. Em que medida tais
demandas vêm sendo não só objeto de denúncia
pública, mas, também, de alguma elaboração, de
modo a problematizar os termos com base nos quais
emergiu uma nova perspectiva desenvolvimentista
em Pernambuco e no país?10
9
Aqui, usamos a noção em um sentido mais próximo de
Nancy Fraser (2008), em sua polêmica com Axel Honneth,
a qual prefere tratar “reconhecimento” (dimensão cultural, simbólica) em associação com “redistribuição” (dimensão social). Quanto à situação que aqui analisamos,
realçamos o quão imbricados, embora distintos, se encontram esses dois movimentos.
10
Tanto quanto no contexto de implementação do projeto da Sudene, também agora, com o PAC e outras iniciativas de políticas de desenvolvimento do Governo Federal, a dinâmica econômica do Nordeste e de Pernambuco
se encontram sob fortes vínculos com tais políticas.
Mesmo se efetivando uma dissidência na coalizão de
forças que dá sustentação ao Governo Dilma,
protagonizada pelo Governador de Pernambuco, Eduardo Campos (questão essa que não será tratada aqui),
consideramos que a orientação desenvolvimentista não
só foi marcante no seu primeiro mandato (embalado
pela proximidade política com Lula), como essa continua sendo uma referência no seu mandato atual (quando o mesmo tem mantido certa ambiguidade entre o
apoio ao Governo Dilma e a assunção de uma posição de
oposição). As obras do PAC, os projetos “estruturantes”,
os investimentos em Suape, os vinculam fortemente a
um realce desenvolvimentista, não obstante certas
nuances diferenciadoras entre ambos os projetos políticos e as possíveis divergências que venham a ser
explicitadas entre seus expoentes (veja-se, por exemplo,
polêmica entre Eduardo Campos e o Governo Dilma,
quando da publicação da Medida Provisória 595, conhecida como MP dos Portos, em dezembro de 2012, tida
para o primeiro como ameaça de perda de autonomia do
Governo pernambucano sobre o Porto de Suape (JC, 26/
03/2013). A análise das diferenciações práticas e
discursivas aí implicadas certamente será de muita importância para o aprofundamento dessa reflexão.
236
A VOLTA DO DESENVOLVIMENTISMO: agenda e debate
O emblema maior do novo discurso
desenvolvimentista do Governo Federal tem sido
o PAC, lançado em 2007. O Governo Lula passou
a incorporar o referencial do papel indutor do Estado com vistas ao crescimento econômico, realçando, ao mesmo tempo, o seu compromisso com
a geração de emprego e renda e a estabilidade
macroeconômica (Pêgo; Campos Neto, 2008).
Objetivou-se, por meio de investimentos, principalmente em infraestrutura, aumentar a produtividade das empresas, estimular investimentos privados, gerar emprego e renda e reduzir as desigualdades regionais. Até 2010, segundo dados oficiais, foram investidos mais de R$ 600 bilhões,
oriundos do Governo Federal, de empresas estatais e
do setor privado, com destaque para os setores de
energia, transporte, habitação, saneamento, recursos
hídricos, além de programas de impacto social, como
o “Minha Casa Minha Vida” (habitação) e o “Luz
para Todos” (distribuição de energia elétrica). A participação do investimento total no PIB passou de
16,4%, em 2006, para 18,4%, em 2010 (Brasil, 2010).
Em 2010, foi lançado o PAC 2, redefinindo, mas,
sobretudo, confirmando, os eixos estruturantes da
sua primeira edição (Brasil, 2012). Para Batista Jr.
(2007), não obstante as críticas, ocorreu “uma mudança na orientação da política econômica”, onde
essa “pode ser excessivamente cautelosa ou lenta,
mas ela é significativa. O governo Lula está migrando, aos poucos, para o desenvolvimentismo, talvez
um desenvolvimentismo ‘light’”.
Os indicadores econômicos e sociais que, a
partir de 2004, passaram a apresentar tendências
sistematicamente positivas, podem ser creditados
duplamente ao novo dinamismo econômico e às
novas condições políticas, nas quais se estabeleceu um certo patamar de lutas salariais e sindicais. Em balanço recente, Krein et al (2012, p. 119)
admitem que, na Era Lula, não só devem ser computados “os impactos positivos do aumento progressivo do dinamismo econômico sobre o mercado e as relações de trabalho no Brasil”, mas, tam-
bém, é preciso que sejam destacadas que “as políticas públicas e as lutas e conquistas do movimento sindical foram decisivas para acrescentar
melhorias ao mercado de trabalho brasileiro”. Especialmente para os segmentos ligados à Central
Única dos Trabalhadores – CUT, constituída sob
relações históricas com o Partido dos Trabalhadores, prevaleceu, nesse momento, a adoção de uma
estratégia ambivalente, que reforçou uma situação
já presente nos anos 1990: a perda de protagonismo
político do sindicalismo no cenário nacional, ao
mesmo tempo em que o mesmo se manteve presente e atuante (Araújo; Véras de Oliveira, 2011).
Ao lado da emergência de uma nova agenda
e um novo discurso político orientado ao desenvolvimento, ressurgiu um debate acadêmico sobre
o tema. O primeiro a utilizar a expressão “novo
desenvolvimentismo” foi Bresser-Pereira (2003),
para quem o fracasso da “ortodoxia neoliberal” em
garantir estabilização macroeconômica e crescimento coloca a possibilidade de uma nova política econômica, na América Latina. Em contraste com o
“populismo da esquerda burocrática e sindical”
(herdeira do nacional desenvolvimentismo), propõe uma estratégia nacional de desenvolvimento
sem protecionismo e com rigor fiscal e monetário,
baseada em uma indústria competitiva, voltada à
exportação. Requer Estado e mercado fortes, políticas públicas permanentes e flexibilização das relações de trabalho (Bresser-Pereira, 2006). Sicsú et
al (2007) apostam no fortalecimento do
“empresariado nacional” como “núcleo endógeno”
do desenvolvimento, associado a um “Estado forte” e a um “pacto nacionalista”, mas sem que se
trate de um retorno à política de substituição de
importações, ao protecionismo e ao Estado empresa. Atribuem maior ênfase, comparativamente a
Bresser-Pereira, à compatibilização entre crescimento econômico e equidade social.
Ridenti (2009) questiona a pertinência do retorno do desenvolvimentismo, tão criticado no passado. Lembra que, sob tal referência, omitiram-se as
contradições de classes, ao priorizarem-se as contradições entre nações. Por isso, é preciso não deixar de
se perguntar: a quem serve o desenvolvimento? Isso,
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
Roberto Véras de Oliveira
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SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
sob pena de serem reeditados os mesmos problemas
do passado. Quanto a Fiori (2012a e 2012b), pergunta-se: por que o “desenvolvimentismo de esquerda”, ressurgido recentemente, estreitou-se tanto no
seu “horizonte utópico”, tornando-se uma “ideologia tecnocrática”, sem capacidade de mobilização
social, não sendo, também, capaz de construir uma
nova base teórica? Na sua crítica, o autor argumenta
que a “Escola Campineira”, embora surgida de uma
crítica ao paradigma cepalino, teria sido sufocada,
mais recentemente, com a crise socialista e a onda
neoliberal, tendo perdido sua capacidade teórica e
seu conteúdo político. Com a retomada do discurso
desenvolvimentista, restaria a sensação de um “horizonte utópico” estreito, sem poder de mobilização.
Em resposta a Luis Fiori, Carneiro (2012) propõe
que o “novo desenvolvimentismo” é uma formulação da equipe da Fundação Getúlio Vargas – FGV/
SP, que privilegia as políticas macroeconômicas, subordinando a essas as políticas sociais,
condicionando ganhos salariais à elevação da produtividade. Enquanto o “desenvolvimentismo de
esquerda”, centrado na UNICAMP (“Escola
Campineira”) e na UFRJ, priorizaria a dimensão
social do desenvolvimento.
Boschi (2011), discutindo o retorno do
intervencionismo estatal na América Latina, insiste na dimensão social como fator de desenvolvimento e no papel estratégico do Estado como seu
indutor e garantidor de inclusão social. Coloca,
assim, em evidência a política, o projeto nacional,
a necessidade de constituição de coalizões de apoio
a um novo compromisso desenvolvimentista. Também para Pochmann (2012), a condição para um
salto no desenvolvimento da América Latina é a
constituição de uma “nova maioria política”. Sobre o Brasil, haveria duas alternativas: uma orientada à exportação de commodities e a outra, a investimentos em valor agregado e em conhecimento. Apenas com investimentos nesta direção seria
possível superar o subdesenvolvimento.
Para outros, a retomada de políticas de desenvolvimento justifica um novo ciclo de pesquisas sobre o tema. Eli Diniz (2011) destaca que, no
mundo, vem ressurgindo um pensamento crítico
ao liberalismo, assim como retorna a referência do
desenvolvimento, com nova ênfase no papel do
Estado, nas liberdades substantivas (Amartya Sen),
na questão ambiental. Quanto ao Brasil, o crescimento e o emprego ganham importância. Observa,
ainda, que, no debate atual, embora com diferenças, em geral se busca associar mercado e Estado,
o econômico e o social, ganhos salariais e elevação
da produtividade. Mas admite que ainda não se
constituiu uma articulação de forças capaz de dar
sustentação a um projeto desenvolvimentista. Draibe
e Riesco (2011) propõem a adequação dos referenciais
analíticos ao estudo das mudanças recentes nas políticas econômicas e sociais na América Latina, para
melhor se avaliar sobre se está em gestação um novo
desenvolvimentismo na região. Formulam a noção
de Estado Latino-Americano Desenvolvimentista de
Bem Estar – ELADBES, visando realçar a relação entre economia e política social. Sugerem que as atuais
políticas desenvolvimentistas estariam repondo as
articulações entre os dois âmbitos. Acrescentam,
ainda, que, embora haja sinais de esgotamento do
ciclo neoliberal, não parece se tratar de mero retorno ao desenvolvimentismo, nem simples
reafirmação do neoliberalismo. O rumo a seguir
será decidido no campo da política. Kerstenetzky
(2011) também evidencia a relação entre desenvolvimento e equidade. Após constatar uma
segmentação entre tais termos, propõe a sua conciliação, opondo-se ao argumento de que a possibilidade de construção de um Estado do bem estar social
requer a existência prévia de desenvolvimento e de
que o gasto social é, por si só, economicamente
ineficiente. Defende como condição para tanto que as
políticas sociais sejam economicamente orientadas e
as políticas econômicas, socialmente orientadas.
O debate, aqui brevemente mapeado, alimenta-se de uma agenda que vem se estabelecendo, no
Brasil e na América Latina, sob um novo discurso
desenvolvimentista. As diversas posições em geral reconhecem o retorno a um papel mais central
do Estado na economia. Muitas vezes, sugerem
alguma compatibilização entre desenvolvimento e
equidade. Mas o modo de conceber essa relação é
um aspecto de importante diferenciação entre as
238
Roberto Véras de Oliveira
perspectivas adotadas. Destacar o lugar do social
requer dar um realce especial ao momento da política, assim como tomar esta para além da discussão sobre o papel do Estado. Para Boschi (2011, p.
16), “as diversas políticas que se busca colocar em
prática mobilizam atores e interesses que enfrentam um jogo de estratégias, uma dinâmica que, por
natureza, é incerta”. Pôr em evidência a dimensão
social do desenvolvimento requer tratar com
centralidade a problemática do trabalho referida à
questão da cidadania. Com Ivo (2012, p. 206):
É nesse registro que pretendemos discutir
Suape (considerando seus vínculos com a nova
agenda e discurso desenvolvimentistas em
Pernambuco e no país) pela ótica dos conflitos do
trabalho que lá vêm tendo lugar mais recentemente (com suas implicações recíprocas frente a tal
agenda e discurso).
Da minha perspectiva, considero que avaliar a
relevância da agenda social do desenvolvimento
hoje implica analisar um padrão decisivo do Estado na distribuição e no enfrentamento da dimensão estruturante e qualificada de inserção
pelo mercado de trabalho e na proteção sustentada em direitos sociais, ou na regulação das relações não mercantis (base de que tratam as políticas sociais).
Evidências de um desenvolvimento contraditório
[...] se, na era nacional-desenvolvimentista, o trabalho assumiu um papel central na constituição
de identidades coletivas e formas de participação política, como repensar a articulação entre
esses elementos quando se retoma o debate sobre o desenvolvimento em um novo contexto?
(Idem, p. 10).
É evidente o excelente momento da economia pernambucana. Enquanto o PIB do Brasil cresceu, de 2005 a 2012, a taxas anuais de 2,9%, 3,8%,
5,4%, 5,1%, -0,2%, 7,5%, 2,7% e 0,9%, respectivamente; o de Pernambuco, na mesma sequência
de anos, teve um melhor desempenho: 4,2%, 5,1%,
5,4%, 5,3%, 5,2%, 9,3%, 4,5% e 2,3% (IBGE, 2005
a 2012). Tal performance se reflete nos indicadores econômicos de Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho, graças a Suape. Em 2003, Ipojuca já detinha o quarto maior PIB de Pernambuco (5,9%), com
Cabo em terceiro (6,2%), Jaboatão em segundo
(8,5%) e Recife em primeiro (33,3%). Em 2005, o
PIB per capita de Ipojuca se tornou o maior do
Estado, representando mais de 4,6 vezes o da cidade de Recife. Em 2007, o PIB de Ipojuca passou
a terceiro, invertendo sua posição com Cabo. Em
2010, chega ao segundo lugar (com 9,6% do PIB
estadual), alcançando um PIB per capita de 5,8
vezes o da capital (IBGE, 2003 a 2010). O crescimento populacional em Cabo e Ipojuca também
teve evolução expressiva, sendo de 21,0% e 36,0%,
respectivamente, em 2000 e 2010; enquanto o Nordeste e Pernambuco cresceram no mesmo período, correspondentemente, 11,1% e 10,9% (IBGE,
2000 e 2010).
Entretanto, a problemática social persiste.
Enquanto Ipojuca registrou um PIB per capita, em
2010, a preços correntes, de R$ 112.924,25, o valor do rendimento nominal médio mensal per capita
dos domicílios particulares permanentes, para o
239
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
Para os estudiosos do trabalho, por seu lado,
está posto o desafio de levar em conta as implicações da retomada das políticas de desenvolvimento quanto às condições, relações e ações coletivas
laborais. É o que, por exemplo, se traduz em
Ramalho e Fortes (2012, p. 09), quando se detêm
sobre as experiências de desenvolvimento da Baixada e Sul fluminense, sob a perspectiva de “pensar as regiões como espaços sociais e históricos,
com organizações políticas e identidades próprias, buscando nas particularidades regionais elementos que possam influenciar na construção de
novos projetos de desenvolvimento e seus impactos sociais e econômicos”. Entra, aqui, o elemento
do território. A abordagem desses espaços regionais se faz com um foco nas questões do trabalho,
sob a referência dos seus nexos com os modelos de
desenvolvimento implementados no país ao longo
do século XX e na passagem para o século XXI:
TRABALHO E TRABALHADORES NA CONSTRUÇÃO CIVIL EM SUAPE
SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
mesmo ano, ficou em R$ 416,18 – abaixo do Salário Mínimo, que, na época, era de R$ 510,00 (IBGE,
2010). Em Ipojuca, a taxa de analfabetismo, embora tenha caído, entre 2000 e 2010, de 28,7% para
19,2%, manteve-se acima das verificadas para
Pernambuco, 18,0%, Nordeste, 19,1%, e Brasil,
9,6% (IBGE, 2000 e 2010). Uma já comprometida
infraestrutura urbana e de serviços passou a sofrer
uma forte pressão com o extraordinário fluxo migratório para a região (Monteiro, 2011).
Nessa fase de implantação dos maiores empreendimentos de Suape, ganham destaque os
impactos da construção civil nas dinâmicas econômica e social da região.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
Emprego na RMR e na construção civil em
Cabo e Ipojuca
Entre fevereiro de 2003 e de 2013, a taxa de
desocupação da RMR caiu de 12,1% para 6,5%.
No mesmo período, os empregados com carteira
de trabalho assinada no setor privado passaram de
35,0% para 47,1% do total e os empregados sem
carteira de trabalho assinada no setor privado, de
15,1% para 10,0%. Um claro sinal de melhora no
perfil da ocupação da região, mesmo considerando-se que esta passou a receber significativos fluxos migratórios, invertendo-se a direção histórica
dos mesmos. Quanto ao rendimento médio real
11
Para a construção da planta da Refinaria Abreu e Lima, a
Petrobras firmou contratos com cinco consórcios, no
valor global de R$ 8,9 bilhões: Camargo Corrêa – CNEC
(R$ 3,4 bilhões); Conest-UHDT, formado pelas empre-
habitual da população ocupada, para o mesmo
período, também cresceu, passando de R$ 1.057,25
para R$ 1.376,00, embora sempre se mantendo em
patamares mais baixos, quando comparados ao
conjunto das RM pesquisadas (que passou de R$
1.555,33 para R$ 1.849,50, no mesmo intervalo)
(IBGE/PME, 2003 a 2013).
Nesse contexto, o setor da construção civil
na RMR, observado pela distribuição da população ocupada, ganhou crescente participação, com
estoques de ocupação cada vez maiores. Passou de
5,7%, em fevereiro de 2005, para 7,6%, em fevereiro de 2007 e 7,8%, em fevereiro de 2013. Entre
fevereiro de 2005 e de 2013, os empregados com
carteira de trabalho assinada no setor privado tiveram aumento expressivo, passando de 24,7% para
42,5% do total de ocupados no setor, respectivamente. Isso, enquanto os empregados sem carteira
de trabalho assinada no setor privado passaram de
24,9% para 13,5% e os “por conta própria”, de
43,9% para 37,2% (IBGE/PME, 2005, 2007 e 2013).
Para o município de Ipojuca, a Tabela 1
mostra a evolução da dinâmica do emprego formal
na Construção Civil, de janeiro de 2006 a março
de 2013. Destaque-se a elevação do nível de
contratação em 2009 (coincidindo com o início das
obras de terraplanagem da Refinaria e da
Petroquímica), assim como em 2010 (quando começaram as obras de construção das duas plantas
industriais11). Mas o grande salto no nível de
sas Odebrecht e OAS (R$ 3,19 bilhões); RNEST - Conest,
constituído pela Odebrecht e OAS (R$ 1,48 bilhão); Conduto – Egesa (R$ 649 milhões); Construcap – Progen
(R$ 120 milhões) (Revista Grandes Construções, 2010).
240
Roberto Véras de Oliveira
Qualificação como necessidade, oportunidade e justificação
Em reportagem da Revista Exame (07/04/
2010), evidenciando o descompasso entre o crescimento econômico e a disponibilidade de mão de
obra qualificada, Marcelo Odebrecht, presidente
do grupo que leva seu nome, comentou: “a falta
de gente qualificada é uma de nossas piores fraquezas, pois impede que o país cresça por vários
anos seguidos”. Órgãos de mídia, em tom sensacionalista, têm falado de “apagão de mão de obra”.13
Estudo de Moutinho et al (2011), diante da crescente carência de trabalhadores qualificados para
12
Isso, provavelmente, se deve a causas diversas. Entre as
quais, podemos considerar: essa é uma característica do
setor (contratações por empreitadas e alto grau de
subcontratação); trata-se de uma estratégia empresarial
recorrente na gestão do emprego no Brasil, com o fim de
rebaixar salário; pode ser um recurso usado pelos trabalhadores, em condições de demanda de mão de obra
aquecida, com o propósito de barganhar melhores salários e condições de trabalho. No caso em particular, avaliamos que tal questão merece análise mais detida, ao
mesmo tempo em que admitimos que o primeiro elemento tem tido um peso mais decisivo.
13
Ver, por exemplo, matéria do Jornal Nacional, no site
Globo.com (http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/
2012/08/dificuldade-de-encontrar-mao-de-obra-qualificada-afeta-economia-brasileira.html).
os diversos novos segmentos produtivos em
Suape, evidenciou o desafio de converter trabalhadores com baixa escolaridade em operários qualificados. Também Monteiro (2011) comentou que
as elevadas exigências de qualificação profissional
contrastavam com o perfil da mão de obra disponível na região, destacando esse como um grande
problema para os novos empreendimentos.
Essa questão se tornou, assim, um decisivo
desafio da política de desenvolvimento no Brasil e
em Pernambuco, ao se situar entre, de um lado, as
demandas empresariais (para que seja
disponibilizada mão de obra que atenda às suas
necessidades de qualificação e em quantidade suficiente para que os salários possam ser mantidos
em padrões competitivos) e, de outro, as demandas dos trabalhadores (para que agora sejam criadas – especialmente para os pernambucanos –
oportunidades de uma melhor inserção no mercado de trabalho). A legitimação das políticas públicas de qualificação profissional dependem, nesse
contexto, de sua capacidade de se colocarem como
centrais, para ambas as demandas, ao mesmo tempo em que as venham atender, em alguma medida.
Notamos, quanto a esse aspecto, um quê de
ambiguidade discursiva. No caso aqui em tela, nas
palavras de Eduardo Campos, diante do sucesso
econômico de Suape,
[...] o desafio agora é capacitar a população para a
nova realidade do nosso mercado de trabalho. Parcerias, convênios e contratos estão promovendo
uma inédita mobilização em prol da formação e
especialização da mão de obra pernambucana
(Suape/Governo Pernambuco, 2010).
O elemento de ambiguidade, para fins de
justificação, requer que os agentes estratégicos da
agenda desenvolvimentista, governantes e empresários, afinem o discurso. Neste, as demandas acima referidas tendem a ser enunciadas como (quase) uma mesma questão. Não fica suficientemente
explícito no discurso governamental, como indica
o fragmento acima, que a ação do Estado nessa
área não pode, necessariamente, deixar de lidar
com, pelo menos, essas duas visões do problema,
diferentes nos seus sentidos, podendo implicar
241
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
contratação ocorreu a partir de 2011, quando as
referidas obras ganharam ritmo. Sobressai, ainda,
a rotatividade no emprego, atingindo em 2012 as
impressionantes marcas de 36.992 admissões e
29.451 demissões.12
Ainda sobre o perfil do emprego formal na
construção civil em Ipojuca, entre janeiro de 2008
e de 2013, destaca-se, pelo elevado volume de contrações, baixo nível salarial e extraordinária
rotatividade no emprego, o segmento de serventes
de obras (17.612 admissões, 10.428 desligamentos, 7.184 de saldo, com salário médio de admissão de R$ 637,05). Mas, de outra parte, evidenciase, também, a elevada e diversificada demanda por
ocupações com maiores exigências de qualificação
profissional (exemplos: instalador de tubulações,
montador de estruturas metálicas, soldador, entre
outros) (MTE/CAGED, 2003 a 2013).
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
diversas formas de conflitos de perspectivas, assim como de acertos, composições.14 Entretanto,
como o encaminhamento do problema não tem
implicado uma franca explicitação dessas diferenças de perspectiva, nem o reconhecimento público dos conflitos que implicam, a questão não tem
sido posta claramente em termos de contratação
social, mas de atendimento, por parte do Estado
(monologicamente), da demanda da sociedade.
O encaminhamento prático da questão, no
entanto, ao mesmo tempo em que confirma essa
perspectiva, problematiza-a parcialmente. A primeira
grande ação de qualificação profissional no território de Suape foi, segundo Arioneide Belém, da
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego
de Pernambuco – SRTE/PE (entrevistada pelo autor em março de 2013), a realização do Plano Setorial
de Qualificação – PLANSEQ da Construção Civil,
contando com recursos do Fundo de Amparo ao
Trabalhador – FAT e das empresas beneficiadas.
Uma edição esteve voltada à qualificação para máquinas pesadas (de 2007 a 2010), e outras duas para
segmentos mais leves (2007-2008 e 2010-2011). Em
ambas foram constituídas Comissões de
Concertação, reunindo empresas, sindicatos, SRTE,
Senai, e outras instituições. Destacou a entrevistada que, diante da baixa escolarização dos trabalhadores da região, foi preciso diminuir as exigências
inicialmente estabelecidas, de modo a ampliar o
número de cursistas. Para a Secretária Executiva de
Trabalho e Qualificação de Pernambuco, Angela
Mochel (entrevistada pelo autor e equipe da Fundaj,
em dezembro de 2012), o Estaleiro Atlântico Sul –
EAS foi um marco no perfil da demanda por mão
de obra no estado. Intenso processo de discussão
se estabeleceu em torno do cadastramento, seleção
e treinamento, envolvendo o Estaleiro, as Agências
do Trabalho, prefeituras da região de Suape, Senai.
Segundo informações do Senai-Pe (O Estado de São
Paulo, 30/08/2010), o número de alunos formados
14
Vista como construção social, em perspectiva relacional,
enquanto produto das disputas sociais e dos aspectos
valorativos que se encontram na base dos julgamentos e
classificações sociais sobre o trabalho, a noção de qualificação se refere às possibilidades trazidas com as diversas
condições sociais, econômicas, políticas e culturais (ver
quanto a isso a clássica abordagem de Naville, [1956] 2012).
pela instituição passou, de 19,4 mil para 48,6 mil,
entre 2003 a 2010. Com as demandas do setor de
petróleo e gás, o Senai-Pe executou, em 2009, o Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural – PROMINP (do Ministério
das Minas e Energia em parceria com a Petrobras).
Segundo Soares Júnior e Martins (2010), o orçamento do Proninp/Senai-Pe, para 2009, foi de mais
de R$ 10 milhões, envolvendo 14 cursos, 389 turmas e mais de 6,2 mil alunos. Até 2010, o governo
de Pernambuco havia criado 13 novas escolas técnicas, frente a um total de 16, disponibilizando 13
mil vagas. Outras ações nesse campo se estabeleceram, envolvendo a FIEPE, governos municipais,
Universidades, SEBRAE, BNDES, grandes empresas (Monteiro, 2011; Soares Júnior e Martins, 2010).
Após tantas iniciativas no campo da qualificação profissional, embora tenham sido anunciadas como oportunidades de uma nova inserção
das populações locais no mercado de trabalho, fica
o alerta do ex-prefeito de Ipojuca, Pedro Serafim,
em entrevista para o JC (12/08/2011): “ainda ficamos com os menores salários”. Mesmo havendo
significativa incorporação de trabalhadores locais
aos empreendimentos de Suape (com destaque para
a construção civil) e mesmo considerando que tal
incorporação tem implicado conversão ocupacional
(com os segmentos majoritários sendo oriundos
da lavoura da cana de açúcar), com elevação significativa dos empregos com carteira assinada, isso
não tem significado a instauração de um padrão
salarial e de condições de trabalho muito diferentes dos padrões históricos da região. Os conflitos
que serão analisados denunciam tal situação.
Reconstituições identitárias
A região de Suape tem a marca histórica do
trabalho na cana-de-açúcar, na pesca artesanal e,
mais recentemente, no turismo. Com o Complexo
Suape, estabeleceu-se entre este e as comunidades
locais uma dinâmica de conflitos, intensificados,
nas décadas de 1990 e 2000, com ações de expropriação (Pérez e Gonçalves, 2012). Para Santos
242
Roberto Véras de Oliveira
(2012), existem, ainda, 28 mil pessoas residindo
dentro do perímetro do Complexo. Tais conflitos,
associados à decadência da base produtiva anterior, têm afetado, significativamente, as comunidades locais, em sua reprodução e identidades.15
Quanto aos moradores da região, absorvidos
nos novos empreendimentos, estão vivenciando um
processo de reconversão ocupacional e identitária.16
Em contraste com suas trajetórias ocupacionais
anteriores, veem-se, agora, imersos na rotina de
empresas estruturadas, formais, algumas de grande porte. Para muitos desses, o sentimento é de
melhora de vida e até de euforia, a exemplo de uma
operária citada por Rodrigues (2012, p. 39):
te, são contratados para ocupar os postos de trabalho mais baixos na hierarquia da obra” (Rodrigues,
2012, p. 43). Conforme apurou Rodrigues (2012),
as empresas, em Suape, se utilizaram da estratégia
de treinamento de trabalhadores agrícolas, como
forma de poder dispor de mão de obra barata e
dócil. Entre os trabalhadores oriundos da região e
os “trecheiros”, em Suape, as diferenças de perfil
têm redundado em tensões. Sendo que esses últimos, segundo apurou Rodrigues (2012), têm trazido, de andanças pelo Brasil, não só uma experiência profissional, mas, também, sindical e política.
Sindicatos em Suape
O discurso desenvolvimentista encontra
nesse tipo de manifestação (da parte dos trabalhadores oriundos da região e recém-incorporados aos
novos empreendimentos de Suape) uma percepção que o complementa e o legitima.
Os trabalhadores dos empreendimentos de
Suape são de dois tipos principais: os moradores
da região e os trabalhadores vindos de fora, os
“trecheiros”.17 Quanto aos primeiros, “normalmen15
Em depoimento a Cavalcanti e Rocha (2013, p. 10), um
dos moradores da comunidade Tatuoca, assim se colocou: “tudo que sou tá ligado a Tatuoca! Pra nós, nativos,
SUAPE não trouxe benefício. Tiraram muito da nossa
sobrevivência. Vivo da pesca e de outro giro das frutas
que comercializo. Aqui muitas empresas desmataram,
não deram satisfação à gente. E a gente manteve a terra”.
16
Em depoimento a Cavalcanti e Rocha (2013, p. 13), um
diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca
admitiu: “o trabalhador rural, 60% deles foi trabalhar
em Suape. Quem foi trabalhar em Suape, não volta mais
para o campo, não quer ser mais cortador de cana. Esse
já fez treinamento, já adquiriu outro conhecimento, não
volta mais para ser um cortador de cana”.
17
Para Guedes (2011, p. 182), a origem dos termos “trecho” e “trecheiro” pode ter tido relação com a prática de
divisão, entre empreiteiras, do serviço referente a uma
grande obra de construção de estrada, em “trechos”. Indica que, em trabalhos mais recentes, o termo “trecheiro”
passou a ser usado com um sentido alargado, como
“intinerante”. Propõe que a noção se estabeleça em contraste com a de “migrante”, cujo “trajeto se justifica pelo
ponto que está em seu fim”, enquanto para o primeiro
“a circulação é um objetivo em si mesmo”. Nesse
enquadramento inclui os “peões de obra“.
heterogeneidade no seu perfil; discrepâncias salariais e de condições de trabalho; caráter explosivo
dos conflitos; intensas disputas sindicais. Em geral, os sindicalistas não têm conseguido se legitimar como representantes das demandas dos trabalhadores. Para os principais sindicatos filiados
à CUT, com base na região, o Sindmetal-Pe
(Metalúrgicos), o Sindipetro-Pe/Pb (Petroleiros), o
Sindiquímica-Pe (Químicos), o Sticc/Pe (Construção Civil), prevalece, ainda, uma postura de certa
perplexidade, segundo evidenciou um dirigente
do Sindmetal-Pe (entrevistado pelo autor em março de 2013). Isso tem se traduzido, em geral, em
níveis baixíssimos de sindicalização. Para um dirigente do Sindipetro-Pe/Pb (entrevistado pelo autor em março de 2013), este tem uma situação diferenciada, visto que as empresas da Petrobras, em
Suape, são suas principais bases de atuação. Quanto à Força Sindical, antecipando-se ao boom da
construção civil, trazido com o PAC, criou, em
2000, o Sintepav-Pe (para a construção civil “pesada”), aproveitando-se da desatenção do Sticc/Pe
(conhecido como “Marreta”), criado em 1919 e
filiado à CUT desde os anos 1980. O Sintepav-Pe
passou a representar, legalmente, os trabalhadores
da Construção Civil “pesada” em Pernambuco,
243
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
[...] esse é o meu primeiro emprego. Antes eu era
uma dona de casa, agora sou metalúrgicaPara o sindicalismo, Suape tornou-se um
soldadora do EAS, que vai construir grandes navios. O presidente Lula sabe o que isso significa. Me grande desafio. Requer saber lidar com: grandes
sinto honrada em fazer parte disso, em saber que
empresas; concentrações de trabalhadores;
cada um desses navios terá um pedacinho de mim.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
incluindo Suape. O seu fundador e presidente é o
mesmo que, atualmente, preside a Força Sindical
no estado, Aldo Amaral. A Conlutas também tem
tido atuação em Suape. Embora não detenha representação legal nas empresas do Complexo, essa
Central tem deslocado militantes para atuarem nos
conflitos da região, tendo conseguido conquistar o
direito de participar em assembleias e mesas de
negociação (Rodrigo, 2012).
A atuação sindical no setor da construção
civil no Brasil tem tido, nos processos de
terceirização, um desafio especial. Segundo Cockell
e Perticarrari (2010, p. 635), embora tais práticas
tenham como motivação a busca de serviços
especializados, visam, sobretudo, reduzir custos
trabalhistas, quando são subcontratadas empresas
arregimentadoras de mão de obra, denominadas
“gatos”. As subcontratações podem levar a processos sucessivos, quando subcontratadas subcontratam
outras empresas. As condições de trabalho se diferenciam ao longo dessa cadeia. O mesmo ocorre
em Suape, onde são praticadas diferenças
contrastantes em aspectos como salários, acomodações,18 alimentação, transporte, entre outros
(Monteiro, 2011; Rodrigues, 2012).
Os contrastes salariais e de condições de trabalho entre “trecheiros” e trabalhadores da região e
entre contratados diretos e subcontratados, associados a atrasos em pagamentos, relações com chefias, entre outras situações, têm sido fatores de importantes conflitos nos canteiros de obra em Suape.
AS LUTAS DOS PEÕES DE SUAPE: O QUE
querem dizer?
No processo de construção dos empreendimentos de Suape, os conflitos foram se acumulando no ritmo das obras. Em janeiro de 2008, ocorreu uma paralisação de dois dias dos 2 mil traba18
Os trabalhadores chegados de fora são abrigados em
alojamentos das empresas, hotéis, pousadas,
“puxadinhos” em residências. Os consórcios constituídos para empreenderem as obras de construção civil em
Suape construíam alojamentos. O Conest instalou um
com capacidade para 3.688 trabalhadores, a Camargo
Corrêa, para 3.500, a Odebrecht, para 1.296, a KMA 992,
totalizando 9.476 lugares. (Monteiro, 2011).
lhadores atuantes nos serviços de terraplanagem
da Refinaria. Queixas: não-pagamento de horas
extras, atraso de salários, maus tratos pelas chefes
(Jornal Tribuna Popular, 30/01/2008). No mesmo
ano, ocorreu a primeira greve dos trabalhadores
do EAS, com duração de três dias (Rodrigues,
2012). No início de 2009, os dois mil trabalhadores ainda atuantes nas obras do EAS realizaram
paralisação de um dia, em protesto pelo não pagamento da Participação nos Lucros (DP, 04/03/2009).
Em 2010, os 3 mil trabalhadores do Consórcio
Conest, formado pelas construtoras Odebrecht e
OAS, realizaram uma paralisação de um dia, contra o plano de compensação das folgas de fim de
ano. Em novembro, os mesmos trabalhadores protestaram pelos salários inferiores pagos aos trabalhadores da região, mesmo para funções iguais (A
Verdade, 04/11/2010, www.averdade.org.br).
Revoltas e greves em 2011
Em 25 de janeiro de 2011, os sete mil trabalhadores da Odebrecht, envolvidos na construção
da Petroquímica, paralisaram o trabalho, por aumento de 30% de adicional de periculosidade e
melhorias nas condições de trabalho (DP, 09/02/
2011). No dia 2 de fevereiro, o Tribunal Regional
do Trabalho – TRT decretou a greve ilegal. Na noite
do mesmo dia, em protesto, um alojamento foi
incendiado. Ocorreram demissões e um trabalhador foi preso. Sucederam-se novas depredações
(JC, 03/02/2011). No dia seguinte, foi formada uma
comissão de seis trabalhadores, para representar
suas demandas (JC, 20/02/2011). No dia 9, em
assembleia no pátio de acesso à Refinaria, com mais
de cinco mil trabalhadores, e sob um clima de tensões, o Sindicato defendeu que as reivindicações
deveriam ser remetidas para a data-base da categoria, em agosto. Um conflito se estabeleceu, sendo
protagonizado, de um lado, pelos “baianos”, revoltados com a posição dos sindicalistas e, de outro
lado, por estes, que passaram a desqualificar aqueles como “preguiçosos” e descomprometidos com
o desenvolvimento de Pernambuco. Procurado
244
pelo JC (20/02/2011), o presidente do Sintepav-Pe
não admitiu as “expressões mais fortes”, mas reconheceu que acusou os “baianos” de “falta de
interesse no crescimento econômico do Estado”.
Chamam a atenção três aspectos da participação
do Sindicato no episódio: as dificuldades de afirmação da sua liderança perante os trabalhadores
inquietos; a adoção de uma estratégia divisionista,
alimentando uma tensão latente (entre
“pernambucanos” e “baianos”); o recurso ao argumento do “compromisso com o desenvolvimento
de Pernambuco”, para justificar a desmobilização
dos trabalhadores. Entretanto, os acontecimentos
evoluíram na direção oposta: a revolta uniu
pernambucanos e “forasteiros”. A tensão cresceu,
houve empurra-empurra, e os dirigentes do Sindicato se viram acantonados... Um tiro foi disparado, atingindo um trabalhador baiano. Um segurança do Sintepav-Pe foi preso, acusado de “atirar na
multidão” (JC, 20/02/2011). Grupos de trabalhadores se dirigiram à rodovia PE-60, bloqueando, assim,
a principal via de acesso a Suape. Com a chegada da
polícia, se estabeleceu um momento de negociação.
A principal reivindicação dos manifestantes foi a
“presença da imprensa” (Rodrigues, 2012, p. 54).
Curioso o fato de ter imperado entre os revoltosos,
na ocasião, a necessidade de buscar tornar visíveis,
para a sociedade, as suas demandas. Sintomático que
a superexposição dos assuntos de Suape, do novo
discurso e agenda desenvolvimentistas tenham convivido, até então, com o silêncio dos seus protagonistas (governantes e empresários, mas, também,
sindicalistas), sobre as condições de trabalho de
contingentes tão significativos de trabalhadores.
No dia 14 de fevereiro, previsto para a volta
ao trabalho, o clima era ainda tenso, com policiais
presentes. No pátio de acesso à Refinaria, formouse uma assembleia, com o apoio de militantes da
Conlutas. A paralisação foi mantida, sendo constituída uma comissão de oito trabalhadores
(Rodrigues, 2012). Na versão do presidente do
Sintepav-Pe, as manifestações tinham motivação
política (DP, 15/02/2011). Já para Adalberto Silva,
um dos membros da comissão, o Sindicato defendia “os interesses da construtora e não as necessi-
dades dos trabalhadores” (DP, 15/02/2011). A comissão seguiu para o MPT, que passou a mediar
as negociações. A primeira audiência ocorreu no
dia 16 de fevereiro. Estiveram representados: o
Governo Estadual (Secretarias do Trabalho, Qualificação e Empreendimentos, da Articulação Social
e Regional, da Defesa Social e do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco); os empresários (Conest,
Petrobras, Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada – SINICON, Confederação Nacional
da Indústria e Construção); os trabalhadores
(Sintepav-Pe; Federação Nacional dos Trabalhadores da Indústria da Construção Pesada –
FENATRACOP, Comissão dos Trabalhadores); a
SRTE-PE/MTE; a Prefeitura Municipal de Ipojuca,
entre outros (Rodrigues, 2012). Chamou a atenção
o fato de não haver, ali, uma pauta de reivindicações. A dificuldade (ou indisponibilidade) do Sindicato em atuar como uma agência social19
processadora das demandas dos trabalhadores, e
o caráter incipiente da comissão, mesmo diante de
queixas e exigências que pululavam entre os trabalhadores, é o que, provavelmente, explica tal situação. Nas palavras do Procurador Geral, Fábio
Freitas: “naquele primeiro momento de reivindicação, o Sindicato, praticamente, ele não falou”;
acrescentando: sua presença se justificou pelo “aspecto legal” (depoimento dado a Rodrigues, 2012,
p. 58). Os primeiros resultados das negociações
foram: a suspensão do pedido de dissídio pelo
Sinicon; o reconhecimento da comissão para compor a mesa de negociação e a garantia de estabilidade de 60 dias para seus membros; garantia de
que não seriam descontados os dias parados enquanto durassem as negociações; suspensão imediata do movimento grevista enquanto durassem
as negociações. Para Adalberto da Silva, a audiência legitimou o processo de negociação. Agora, era
preciso validar, junto aos trabalhadores, os acordos firmados: “estamos no processo de convencimento entre nossos companheiros para mostrar
19
Faço uso dessa expressão por alusão ao sentido dado por
Sader (1988, p. 143), ao se referir à emergência entre os
anos 1970 e 1980, no Brasil, de “novas formas de
agenciamento social”, capazes de elaborarem novas “matrizes discursivas”.
245
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Roberto Véras de Oliveira
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
que essa é a melhor maneira encontrada de atingir
nossos objetivos” (DP, 17/02/2011). Para a comissão, em particular, estava sendo travada uma dupla
luta por reconhecimento: de um lado, das demandas dos trabalhadores frente à mesa de negociações;
de outro, de si mesma junto aos trabalhadores.
No dia 23 de fevereiro, na segunda audiência, ainda sem que fosse apresentada uma pauta
de reivindicações, foi formulada uma proposta, a
qual foi assinada pela comissão, Fenatracop e Confederação Nacional da Indústria e Construção, mas
não pelo Sintepav-Pe. Entre os 13 pontos apresentados, constaram: pagamento de 3hs in itinere aos
trabalhadores; estabilidade para a comissão por um
ano; reclassificação dos trabalhadores em desvio
de função, com correção salarial; reajuste do vale
alimentação de R$ 40,00 para R$ 300,00, por mês;
pagamento de adicional de horas extras aos sábados, de 50% para 100%; não desconto dos dias
parados (Rodrigues, 2012). As audiências e o processo de negociação seguiram. Entre uma e outra,
os trabalhadores se reuniam em assembleia. Entretanto, conforme observou Fábio Freitas, o Sindicato estava tão “desprestigiado” que não participou
daquelas assembleias (depoimento dado a
Rodrigues, 2012, p. 63). Embora se tenha chegado,
na audiência no dia 15 de março, a um acordo sobre alguns itens (ajuste no vale alimentação para R$
130,00, estabilidade de um ano para a Comissão,
abono dos dias parados, pagamento de 80% para
horas extras), com outros sendo remetidos a uma
avaliação posterior (pagamento das horas in itinere)
e ou à data base (auxílio residência), os trabalhadores recusaram o valor do auxílio refeição, que não
deveria ser menor do que R$ 160,00, e o percentual
de aumento pelas horas extras, que não deveria ser
menor do que 100% (JC, 18/03/2011). Era mais um
forte indicativo da falta de representatividade do
Sindicato, e mesmo da comissão.
A insatisfação entre os trabalhadores permanecia.20 Um operário do Conest, em depoimen20
Nesse período, a SRTE/PE, com apoio do MPT, realizou
uma Auditoria Fiscal do Trabalho no Complexo Suape
(incluindo o EAS e os canteiros da Refinaria e da
Petroquímica), na qual se registraram “casos de excesso
de jornada, ocorrências de acidentes, falta de registro em
carteira de trabalho, atrasos nos pagamentos e
to ao jornal A Nova Democracia (Ano IX, nº 75,
mar/2011, http://www.anovademocracia.com.br),
comenta: “o governo na televisão fala que Suape é
uma maravilha” (um elemento de fissura na dimensão justificadora do discurso desenvolvimentista?).
A paralisação, agora, havia sido estendida para os
demais canteiros de obras de Suape, envolvendo
cerca de 35 mil trabalhadores. Após outra rodada
de negociações, os trabalhadores, em assembleia,
no dia 25, optaram pela manutenção da greve (JC,
25/03/2011). Na nona audiência, ocorrida no dia 28
de março, o Procurador admitiu que havia chegado
ao limite sua tentativa de mediar as negociações (ATA,
28/03/2011, apud Rodrigues, 2012, p. 65). No dia
29 de março, o TRT declarou a greve ilegal e, ao
mesmo tempo, foram atendidos os 100% no pagamento das horas extras e os R$ 160,00 de vale alimentação (DP, 29/03/2011).
Segundo Adalberto Silva, com vistas à convenção coletiva da categoria, em agosto, era preciso buscar a unificação dos salários e benefícios
entre as empresas em âmbito nacional. No dia 15
de abril, na décima audiência, as negociações foram concluídas sem que as partes chegassem a um
acordo sobre o desconto dos dias parados (Rodrigo,
2012). Nos canteiros de obras, os conflitos continuaram. Os trabalhadores seguiam insatisfeitos:
Quando reclamamos do péssimo tratamento, das
horas extras que quase nunca pagam e das péssimas condições de trabalho, eles gritam com a
gente coisas como: “vocês eram cortadores de
cana, passavam fome e hoje tem profissão e salário, tão reclamando de que? Até fardinha vocês
têm.” Veja que absurdo! (A Nova Democracia,
Ano IX, nº 76, abril de 2011).
Naquele momento, em levantamento feito pelo
DIEESE (UOL Notícias, 04/04/2011), foi estimado em
170 mil o número de grevistas da construção civil
em todo o país, sobretudo envolvendo as obras do
PAC. Em geral, as reivindicações se relacionavam a:
condições de trabalho; salários; alojamentos, pagamento de horas extras; equalização de direitos entre
superlotação de alojamentos” (SINAIT, 25/04/2011 http://www.sinait.org.br). Para Vera Jatobá, que coordenou a missão, chamou a atenção o alto grau de
subcontratação praticado na região (entrevistada pelo
autor em março de 2013).
246
contratantes e subcontratadas, entre outros. Diante
da repercussão das mobilizações, as Centrais Sindicais obtiveram do Governo Federal o compromisso
com uma agenda nacional de negociações, sobre condições de trabalho nas obras do PAC, envolvendo
empresários, Governo e sindicalistas.
Em Suape, nas mobilizações da data-base em
julho, havia um clima de insatisfação com a resistência das empresas em abonar os dias parados na
greve de fevereiro e março. No dia 1º de agosto, foi
aprovado o indicativo de greve. Diante do fato, em
nota oficial, o Sinicon entra com pedido de ilegalidade da greve e justifica, acusando o Sintepav-Pe
de “atropelar as negociações”, quando “vários itens
da pauta de reivindicação já tinham sido concedidos pela categoria patronal” (G1.globo.com, 02/08/
2011 - http://g1.globo.com/economia/noticia/2011/
08/trabalhadores-do-complexo-de-suape-estao-emgreve.html). Segundo o Sintepav-Pe, a proposta
patronal não era suficiente. A luta era por 15% de
aumento, cesta básica de R$ 300,00, abono dos dias
parados na última greve (Força Sindical, 02/08/2011
– http://www.fsindical.org.br). Em 5 de agosto, os
trabalhadores suspendem a greve. Foram negociados: aumento salarial de 11%, cesta básica de R$
200; abono de 50% dos dias parados na greve de
março; abono total da greve de agosto; concessão de
passagens aéreas para os que moram a mais de 1
mil km; redução do tempo de folga de campo (cinco
dias), com 90 dias de intervalo. Desta vez, o secretário de Articulação Social e Regional de Pernambuco
participou das negociações (G1.globo.com, 05/08/
2011). O apelo discursivo do “desenvolvimento de
Pernambuco” ganha, assim, mais evidência. Não à
toa, a advogada do Sinicon introduziu a seguinte
frase: “nós temos um compromisso com o desenvolvimento de Pernambuco” (DP, 06/08/2011).
Em 2012, nova onda de mobilizações
Em fevereiro, os cerca de dez mil trabalhadores da Odebrecht entraram em greve, por pagamento de 150 horas referentes à Participação nos Lucros
e Resultados – PLR – de 2011. Para o presidente do
Sindicato, teria contribuído para a revolta o tratamento desrespeitoso da Odebrecht para com os trabalhadores (JC, 17/02/2012). Seis dias depois, o
movimento foi encerrado, com um acordo firmado
entre a empresa e o Sindicato. Para capitalizar esses
resultados, o presidente do Sintepav-Pe assim se
pronunciou: “venceram os trabalhadores e o bom
senso. Mas é importante lembrar que sem a
mobilização a empresa não aceitaria rever a sua posição” (DP, 23/02/2012). Esses trabalhadores, no
entanto, voltaram a paralisar o trabalho em 18 de
junho, reivindicando cumprimento de normas de
segurança do trabalho e o pagamento do adicional
de periculosidade de 30%. A esses se juntaram 400
trabalhadores do Consórcio Cabeços, revoltados com
um acidente que matou um trabalhador na semana
anterior. As explosões espontâneas continuavam
dando o tom das mobilizações em Suape, com a
ação do Sindicato vindo sempre em seguida (DP,
18/06/2012). No dia 19, houve acordo na greve do
Consórcio Cabeços, pondo fim à paralisação. Entretanto, a greve na Odebrecht continuou. O Sinicon
entrou com pedido de dissídio junto ao TRT, mas
seguiu negociando. No dia 26 de junho a greve foi
encerrada (DP, 26/06/2012).
Em 27 de julho, o Sintepav-Pe assinou acordo com o Sinicon, incluindo: aumento salarial de
10,5%; aumento da cesta básica para R$ 260; equiparação salarial entre trabalhadores de mesma função, nas diversas empresas. O acordo foi homologado em assembleia, em 1º de agosto. Entretanto,
logo após a homologação, houve revolta, sendo
desencadeada uma onda de protestos, com depredações de alojamentos e a paralisação do trabalho (JC, 02/08/2012). Em nota oficial, o Sinicon,
argumentou: “diante desta posição, as empresas
representadas pelo Sinicon analisam a possibilidade de demissão e outras medidas legais, visto
que as negociações já foram encerradas e a convenção já foi assinada junto ao sindicato da categoria” (JC, 02/08/2012). O Sintepav-Pe, em nota
oficial, admitiu que foi tomado de surpresa pelo
movimento, criticou os “atos de vandalismo, documentos apócrifos ou pessoas encapuzadas” e se
disse em defesa dos interesses dos trabalhadores
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
Roberto Véras de Oliveira
SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
(DP, 02/08/2012). Frente às acusações de que a
assembleia que votou o acordo havia sido esvaziada, o presidente do Sindicato justificou que teria
começado a chover na ocasião, com alguns operários tendo deixado o lugar, acrescentando: “mas
quem saiu é como se tivesse assinado uma procuração para quem ficou” (JC, 02/08/2012). Em 6 de
agosto, em sessão de conciliação, realizada no MPT,
não houve acordo. No dia seguinte, o TRT decretou a greve ilegal (JC, 07/08/2012). O Sintepav-Pe
orientou os operários para o retorno ao trabalho e
tentou acordo para evitar o desconto dos dias parados. Mas houve revolta na assembleia do dia 8,
que começou com pedras sendo arremessadas contra os diretores do Sindicato, que tiveram que sair
às pressas. Dali, a revolta se alastrou, com ônibus e
alojamentos sendo depredados. Com a chegada da
Polícia, balas de borracha e bombas de efeito moral
foram detonadas e prisões efetuadas (JC, 08/08/
2012). O Sintepav-Pe divulgou nota, condenando a
“ação de vândalos”, afirmando que realizava uma
“assembleia informativa”, para poder cumprir seu
“papel institucional” de repassar aos trabalhadores
a decisão do TRT. E, na sequência, retorna com o
apelo ao discurso desenvolvimentista:
O Sintepav-Pe chama a atenção de toda sociedade
pernambucana, em especial o Governo do Estado
de Pernambuco, para as consequências de ações
isoladas como as que vêm ocorrendo em Suape
nos últimos dias. Atitudes como as que se viram
hoje afastam novos investimentos, diminuindo
assim o número de empregos e consequentemente
desaquecendo a economia estadual.
Por fim, assegurou seu apoio à “causa dos
seus filiados”, defendeu os meios legais de luta e
recomendou a volta ao trabalho (JC, 08/08/2012).
Nesse contexto, de conflitos explosivos, o Sindicato, que se propunha a se manter em estrito marco institucional e aderente aos termos do discurso
estabelecido, se via em apuros. O Sintepav-Pe escolhe um alvo e parte para o ataque: “O PSTU,
que é ligado ao Conlutas, tenta dividir a categoria,
distribuindo panfletos afirmando que Pernambuco
tem um dos piores salários do Brasil e pleiteando
um reajuste de 15%” (declaração do presidente,
no JC, 08/08/2012). A resposta do Conlutas veio
com a dirigente estadual Cláudia Ribeiro: “O
Sintepav-Pe faz acusações falsas, levianas e mentirosas. O que os trabalhadores querem são melhores condições de trabalho. Tudo que aconteceu foi
gerado por insatisfações da base, que está jogada
em galpões ou em casas onde moram 10, 20 pessoas amontoadas” (JC, 08/08/2012).
No dia 9 do mesmo mês, o retorno ao trabalho foi parcial. Um clima de insegurança se instalou na região, ocupada por policiais. Muitas empresas liberaram os trabalhadores para só
retornarem no dia 13. Diante dos acontecimentos,
a Secretaria de Articulação Social e Regional foi
escalada para atuar no caso (DP, 09/08/2012). No
dia 10, tentativas de retorno ao trabalho encontraram a resistência de piquetes. As empresas decidiram flexibilizar as punições (DP, 10/08/2012). Três
dias depois, muitos não retornam ao trabalho, em
protesto pelo anúncio de desconto dos dias parados e pelo atraso no pagamento do adiantamento
quinzenal. Alguns incidentes foram ainda
registrados. O Sintepav-Pe procurou se afirmar
como condutor das reivindicações, abordando os
trabalhadores e orientando-os a baterem o ponto,
mas sem retornarem ao trabalho. Em nota, a entidade propõe que só haja retorno quando houver
garantias de que as empresas abonarão “todos os
dias da paralisação iniciada no último dia 1º de
agosto” (DP, 13/08/2012). No dia 14, também não
houve retorno ao trabalho. Um acordo só veio ocorrer no dia seguinte: o pagamento da quinzena foi
liberado e as empresas concordaram em abonar
70% dos dias parados (DP, 15/08/2012). As atividades foram retomadas no dia 16 de agosto.
Entretanto, com as notícias de que haveria
demissões e descontos de parte dos dias parados,
retornou um clima de nova paralisação. Novas negociações foram iniciadas, desta vez com a participação de uma comissão de trabalhadores. Houve
retorno ao trabalho, mas ficou no ar uma operação
“braços cruzados” (DP, 16/08/2012). Um novo
impasse se estabeleceu. Os trabalhadores exigiam
100% de abono dos dias parados. Uma expectativa
se criou com a reunião prevista para ocorrer em
248
Roberto Véras de Oliveira
tanto, quanto mais tal desmobilização avança, cuja
previsão é que se estenda até a virada para 2014.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, nos detivemos sobre conflitos
envolvendo os peões e as empresas das grandes obras
de Suape. Vimos que esses conflitos se desdobram e
se articulam sob focos diversos, opondo: peões “forasteiros” e aqueles de origem local; trabalhadores
diretos e terceirizados; trabalhadores e forças policiais; trabalhadores e Sindicato; militantes da Conlutas
e do Sindicato; comunidades locais e gestores públicos e privados de Suape, entre outros.
Pudemos notar que, não obstante a ausência
de uma organização sindical capaz de captar, sistematizar e expressar os interesses e demandas coletivas dos trabalhadores, estes se mobilizaram e obtiveram conquistas relacionadas a salário, vale refeição, horas extras, condições de alojamento, abono
de dias parados, reconhecimento e estabilidade para
comissões de trabalhadores, entre outras.
Para além disso, percebemos que, entrando
em cena, sob formas explosivas e inesperadas, os
peões de Suape e suas condições de existência e
trabalho se tornaram visíveis para a sociedade. Que
questões, com isso, colocam para o novo discurso e
agenda desenvolvimentista? Vimos o quanto elementos das críticas ao projeto Suape foram sendo
incorporados, de algum modo, nos discursos e práticas dos atores estratégicos ali implicados. Não à
toa, em agosto de 2011, no auge das mobilizações
em Suape, o governador assim se pronunciou:
Cresce na nossa consciência a importância de planejar a expansão dessa região. Não queremos repetir desigualdades que se arrastam por quatro séculos de história. Porque de desigualdade esse território de Suape entende. São marcas muito profundas, que começaram com a exploração dos índios e
dos escravos, e não poderão se repetir nesse novo
ciclo de desenvolvimento (JC, 12/08/2011).
Em que medida o discurso estabelecido do
novo desenvolvimentismo, diante dessa dimensão
que se visibiliza com os conflitos, incorpora algo da
crítica como reconhecimento ou tão somente como
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
Brasília, com representantes das empresas, das centrais sindicais e do próprio governo. Na pauta, o
impasse em Suape. Mas os representantes das centrais sindicais não compareceram, não havendo indicações de solução para os impasses (DP, 17/08/
2012). Um representante do MTE foi designado para
iniciar nova rodada de negociações (DP, 18/08/2012).
No dia 20, ainda sem solução, a situação em Suape
voltou a ficar tensa com o anúncio de centenas de
demissões. No dia seguinte, continuaram as demissões “por justa causa” (DP, 21/08/2012). Ocorreu,
no dia 23, a volta ao trabalho (DP, 23/08/2012).
Matéria do JC (26/06/2012) chama a atenção
para o que, na visão do órgão, se deve apreender
com os acontecimentos: “vinte dias deste mês de
agosto abalaram o marco inicial do desenvolvimento
econômico de Pernambuco”; “a paralisação agressiva e sem norte [...] escancarou o despreparo do
sindicalismo local”; a “escassez de mão de obra
qualificada” e os “prazos e orçamentos rígidos para
tirar os empreendimentos do papel” “conferem um
poder de negociação distorcido para os trabalhadores”. Um ator (outsider), ao tentar entrar em cena,
para, assim, poder ser reconhecido como portador
legítimo de demandas sociais, testa os limites da
dimensão justificadora do novo discurso
desenvolvimentista (aqui incluído seu componente
midiático). Até onde vai o seu alcance?
Os conflitos seguem. Ainda em 2012, uma
nova greve geral atingiu os canteiros de obras da
Refinaria e da Petroquímica, com duração de 24
dias (de 30 de outubro a 23 de novembro). Novamente o TRT declarou a greve ilegal. Diversos
mediadores foram convocados para solucionar os
conflitos, entre eles o próprio Brizola Neto, então
Ministro do Trabalho, e o presidente nacional da
Força Sindical, Paulo Pereira da Silva. Mas a greve
só acabou quando o Sinicon e o Sintepav-Pe chegaram a um acordo, com a criação de uma tabela
prevendo novos pisos salariais para 32 categorias
profissionais (O Estado de São Paulo, 23/11/2012).
Os conflitos em Suape seguem no mesmo ritmo em 2013, mesmo com o início da desmobilização
das obras de construção da Refinaria e da
Petroquímica. Um outro cenário se anuncia, no en-
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SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
justificação? Por outro lado, até onde os trabalhadores têm sido capazes de se fazer reconhecer?21 Com
os conflitos aqui sumarizados, sobressai o fato de
que aqueles conseguiram, protagonizando acontecimentos espetaculares, se tornar visíveis. Ao mesmo
tempo, ficou evidenciado que a mediação sindical,
ao contrário de se constituir como um novo
agenciamento social, no sentido de Sader (1988), não
tem sido capaz de processar tais demandas e de se
converter em canal de elaboração de uma nova matriz prático-discursiva. Conversas com sindicalistas
atuantes em Suape e as evidências trazidas com o
desenrolar dos conflitos e negociações nos indicam
o quanto o sindicalismo na região está longe de cumprir esse papel, o que, para tanto, requereria um outro patamar de elaboração estratégica de suas linhas
de ação, de modo a contemplar, entre outros aspectos: consolidação de sua capacidade de representação diante dos trabalhadores; enraizamento e projeção como ator influente no arranjo político e
institucional local; articulação em perspectiva de cadeias produtivas, de modo a compor ações nacionais e internacionais referidas às conexões de Suape
com a economia nacional e global; articulação em
uma perspectiva de ação mais ampla, reportada ao
debate sobre os rumos do desenvolvimento do país.
A abordagem da experiência sindical em Suape, a
partir das dimensões propostas acima, certamente,
pode vir a ser bastante enriquecida quando posta
vis-à-vis experiências outras, de relevância internacional, assim como nacional. Neste caso, sobressai o
caso do ABC Paulista (Véras de Oliveira, 2011;
Ramalho e Rodrigues, neste dossiê).
Na ausência de uma atuação sindical mais
consistente, os trabalhadores de Suape, se têm conseguido dar visibilidade a si e às suas demandas,
não necessariamente têm sido capazes de se fazer
reconhecidos (na sua condição de agentes e portadores de demandas) como parte do empreendimento
desenvolvimentista. Voltamos, assim, ao tema do
jogo de tensões entre as razões econômicas (referi21
Todo o processo da constituição de mesas de negociações, com a mediação do MPT, as dificuldades de representação efetiva por parte do Sintepav-Pe e da comissão
dos trabalhadores, as ameaças empresariais, as sentenças
do TRT, que aqui vimos, ganha relevância quanto a isso.
das a noções tais como eficácia, competitividade,
crescimento, acumulação) e sociais (reportadas à
equidade, redistribuição, proteção social, participação e controle social), enquanto parâmetros para
discutirmos os termos e possibilidades do novo
discurso/agenda desenvolvimentista. Os conflitos
do trabalho, no entanto, continuam; as disputas de
sentidos, também. Migrando desses canteiros a
outros (seja para se integrar a construção da planta
da Fiat, que já se inicia, ou para atuar em outras
grandes obras país afora) e daí aos novos empreendimentos, na medida em que vão entrando em funcionamento (estaleiros, refinaria, petroquímica, siderúrgica, indústria de alimentos e bebidas etc.), as
reconversões identitárias, as disputas sindicais e
os conflitos do trabalho continuarão ganhando novos impulsos e seguirão impactando as dinâmicas
econômicas, sociais e políticas na região. A questão
que fica se refere à capacidade dos trabalhadores e
suas representações sindicais se afirmarem como
protagonistas na construção de um novo padrão de
relações de trabalho e de uma perspectiva de desenvolvimento que venha a ter nos elementos da
equidade social e da sustentabilidade ambiental,
aspectos tão estratégicos como o da eficiência econômica. Isso implicará tensionar e levar ao limite
os termos atuais do padrão de desenvolvimento
embalado na nova edição, em Pernambuco e no Brasil, da agenda e discurso desenvolvimentistas.
Recebido para publicação em 21 de abril de 2013
Aceito em 10 de junho de 2013
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SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...
SUAPE UNDER CONSTRUCTION,
UNSKILLED LABORERS IN STRUGGLE: new
development and labor conflicts
LA CONSTRUCTION DE SUAPE, DES
OUVRIERS QUI LUTTENT: le nouveau
développement et les conflits du travail
Roberto Véras de Oliveira
Roberto Véras de Oliveira
Taking the labor and conflicts point of view,
this article discusses the emergence of a new agenda for development in Brazil. Its focus is the
construction worker protests and strikes at two of
the Suape Port Industrial Complex’s main sites,
the Abreu e Lima Refinery and the Suape
Petrochemical Plant, in 2011 and 2012. Through
the use of this approach we intend to comprehend
the processes touched off by the conflicts,
mediations, and negotiations, as well as what has
been at stake with workers’ demands and also
union, management and government discourse
and practices. We ask ourselves if these
mobilizations, besides giving them immediate
gains, have given workers recognition as legitimate
agents of social demands. We also ask to what
degree such demands have become not only a target
of public outcry but also a way of problematizing
the terms that give sustenance to the new
development discourse.
Cet article examine l’émergence d’un nouveau
programme de développement au Brésil dans
l’optique du travail et de ses conflits. L’accent est
mis sur les émeutes et les grèves des ouvriers qui
travaillent dans la construction de deux des
principales entreprises du Complexe Industriel
Portuaire de Suape, la Raffinerie Abreu et Lima et
l’entreprise pétrochimique Suape, au cours des
années 2011 et 2012. Cette approche se veut
d’analyser les processus déclenchés par les conflits,
les médiations et les négociations et ce qui a été
remis en question, en parallèle aux demandes des
travailleurs ainsi que les discours et les pratiques
des gouvernements, des entreprises et des syndicats.
Nous nous demandons si ces mobilisations ont
permis, au-delà des gains immédiats obtenus par
les travailleurs, que ceux-ci soient reconnus comme
les porteurs légitimes des revendications sociales.
Et dans quelle mesure de telles revendications ne
sont pas seulement l’objet d’une dénonciation publique mais représentent aussi une manière de
remettre en cause les termes du nouveau discours
sur le développement.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 233-252, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Development. Labor. Unionism. Civil MOTS-CLÉS: Développement. Travail. Syndicalisme.
Construction civile. Suape.
construction. Suape.
Roberto Véras de Oliveira – Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB
(PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande
(PPGCS/UFCG). Pesquisador do CNPQ. Preferencialmente, orienta seus estudos e pesquisas para os campos
da Sociologia do Trabalho e da Sociologia Política. Tem concentrado sua atenção (na forma de publicações,
orientações e participação em eventos) sobre temas como sindicalismo, relações de trabalho, qualificação
profissional, políticas públicas de trabalho, emprego e renda, economia solidária, diálogo social, cidadania,
entre outros. É autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Sindicalismo
e Democracia no Brasil – do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. São Paulo: Annablume, 2011.
252
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL” E A (NOVA) MORFOLOGIA DO TRABALHO
Maria Aparecida de Moraes Silva*
Lúcio Vasconcellos de Verçoza**
Juliana Dourado Bueno***
DOSSIÊ
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre a produção açucareira no
Brasil remontam ao início da colonização portuguesa no século XVI. De lá para cá, cronistas, pintores, biólogos, viajantes, literatos, sociólogos, economistas, historiadores, cineastas, inter allia, registraram suas análises e impressões sobre a vida
social, política, cultural e econômica derivada dessa
produção ao longo dos cinco séculos de história.
Essa cultura, aliada à exploração de outros recursos naturais – pedras preciosas – formaram a base
da colonização, que contribuiu para o processo de
acumulação primitiva do capitalismo europeu, por
meio, não somente da apropriação dos excedentes
produzidos pela colônia, como, também, pela sus* Doutora em Sociologia. Professora livre-docente aposentada da UNESP. Professora visitante do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos –
UFSCAR.
Rua Alvarenga Peixoto, 55 Ap/11. Parque Arnold
Schimidt. Cep: 13566-582 São Carlos – São Paulo – São
Paulo. [email protected].
** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCAR. [email protected]
*** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UFSCAR. [email protected]
tentação do comércio de escravos.
A face atual do Brasil, sobretudo desde o
último meio século, vem sendo, em boa parte,
matizada pelas gigantescas áreas cobertas com canade-açúcar, não mais denominada matéria-prima
destinada à metrópole, mas commodity, destinada
aos mercados globais, segundo a lógica da acumulação do capitalismo contemporâneo, no contexto
do novo imperialismo, segundo Harvey (2004). Se,
no passado colonial, os canaviais concentravamse na Zona da Mata nordestina, atualmente, a maioria deles se localiza na região Centro-Sul, sobretudo no território paulista, responsável por quase
dois terços de toda a produção do país.1 São perto
1
Em 1997, foram exportadas 3.844.224 toneladas de açúcar. Dez anos depois, em 2007, este montante passou
para 12.223.221, havendo um acréscimo de quase quatro vezes (IEA, 2009). Segundo dados do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), em 2012,
houve acréscimo de 57,5% na quantidade de etanol exportada, passando de 1,57 para 2,48 milhões de toneladas. No que tange à produção, na safra de 2005-2006,
foram 15.808.184.000 de litros e, em 2010-2011, este
montante subiu para 25.780.404.000, portanto, havendo um acréscimo de quase 70%, num período de apenas
cinco anos. Quanto à produtividade, segundo dados da
UNICA (União da Indústria Canavieira), em 1976, era
necessária uma tonelada de cana para produzir 45 litros
de álcool. Em 2004, esse montante passa para 75 litros,
253
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
O objetivo deste texto é a análise das relações e condições de trabalho nos canaviais, resultantes
do processo de reconfiguração do trabalho, em face do momento atual, caracterizado pela
intensificação do processo de mecanização do corte de cana. Em função da rapidez das mudanças ocorridas no processo de trabalho, considera-se que estas relações de trabalho devam ser
analisadas no contexto da imagem do “desenvolvimento sustentável” produzida pelas empresas sucroalcooleiras e pelo Estado brasileiro. A intensificação da exploração da força de trabalho no quadro de uma (nova) morfologia combina, de um lado, tecnologias altamente avançadas, e, de outro, aumento da desqualificação da força de trabalho. As reflexões procurarão
trazer à superfície a realidade social escondida atrás da ideologia fabricada para sustentar essa
atividade econômica. Visa-se a uma análise crítica da ideologia desenvolvimentista inerente a
essa produção. A metodologia empregada baseia-se na história oral e observação direta nos
canaviais paulistas e alagoanos.
PALAVRAS-CHAVE: Relações de trabalho. Condições de trabalho. Capitalismo no campo. Cana-deaçúcar.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
de seis milhões de hectares distribuídos ao longo
das bacias hidrográficas e das águas subterrâneas
dos aquíferos que atravessam essa região. Se, no
passado colonial, o açúcar era o produto fundamental, hoje, além dele, o etanol utilizado como
combustível constitui-se, não somente em mercadoria, cuja finalidade é movimentar os automóveis flex fluel, como, também, na ideologia do combustível limpo, sustentável, que vem sendo paulatinamente fabricada pelo Estado, visando contemplar os interesses de capitais nacionais e internacionais em busca de lucros e apropriação da
renda da terra (incluindo as águas).2 Trata-se, portanto, de um processo de territorialização do capital, cujas fronteiras estão delimitadas pelos recursos naturais – terra e água – e pela ação do
Estado para garantir, não apenas a logística dessa
produção – estradas, alcoodutos, portos –, como,
também, os subsídios por meio de empréstimos
vultosos para a instalação de usinas e financiamento da produção agrícola em geral (Xavier et
al., 2012). E mais ainda. A criação de normativas
institucionais para regular o mercado e as relações de trabalho, sobretudo na agricultura, analisada mais adiante.
Na conferência Rio-92, oficializou-se a noção de “desenvolvimento sustentável”, definida no
Relatório Brundtland, em 1987, como paradigma
para o desenvolvimento socioeconômico aliado à
conservação dos recursos naturais. O Estado brasileiro e outros países signatários da Agenda 21
Global se comprometeram a adotá-la como orientação para suas políticas de desenvolvimento
(Teixeira, 2005, p. 53). Levando-se em conta os
problemas advindos da expansão produtiva do
capitalismo em várias partes do globo, vários estudos têm mostrado que as práticas relacionadas à
havendo um aumento de 64% (www.unica.com.br acesso em 30/11/2012). Dentre os estados nordestinos,
Alagoas é o maior produtor de cana-de-açúcar. Na safra
de 2011/12, foram 27.705 milhões de toneladas; em São
Paulo esse montante chegou a 304.230 milhões, segundo dados da UNICA. No que diz respeito ao conjunto do
país, foram 551.215 milhões de toneladas
(www.unica.com.br. Acesso em 03/04/2013).
2
Para produzir um litro de etanol são necessários 13 litros
de água (considerando-se apenas a parte industrial do
processo produtivo).
depredação ambiental se chocam com as normativas
dessa Agenda institucional. Nos limites deste artigo, não nos cabe adentrar o debate sobre o conceito e ou noção de “desenvolvimento sustentável”.
Teixeira (2005) faz um balanço desse debate, ressaltando o confronto entre os ambientalistas e os
chamados desenvolvimentistas, apoiados na lógica do crescimento econômico, que veem a conservação ambiental e a sustentabilidade como obstáculos. Por outro lado, há autores que criticam o
conceito de “desenvolvimento sustentável”. Segundo Leis (1999, p. 159, apud Teixeira, p. 54), o conceito de “desenvolvimento sustentável” faz parte
de um processo de “[...] adoção oportunista e instrumental [...]” por parte dos estados e das empresas, de novos valores trazidos pelo ambientalismo,
com o objetivo de garantir a continuidade do sistema produtivo. Nesse caso, haveria um processo
de cooptação das noções do ambientalismo para
justificar a lógica produtivista atual.
Para além da noção de “desenvolvimento
sustentável”, o discurso do desenvolvimento, em
sua concepção mais ampla, tem pautado a discussão sobre a agricultura em diferentes momentos
histórico-sociais no Brasil e também no contexto
internacional. No Brasil, alguns setores da agricultura foram apresentados como verdadeiros motores do desenvolvimento: isso ocorreu no período
da chamada “agricultura moderna”, e também a
partir da década de 1980, com a ascensão da
“agroindústria” e dos Complexos Agroindustriais
– CAI. Estes podem ser caracterizados pela expansão da participação do capital internacional, participação do Estado nas políticas de terras, inovações tecnológicas, pesquisas e implantação de
infraestrutura local e presença de grandes grupos
empresariais e empresas multinacionais (Heredia
et al., 2010).
No que diz respeito, especificamente, à
agroindústria canavieira, o discurso do desenvolvimento promovido pelo setor foi e tem sido bastante acentuado. Silva et al. (2013) demonstram
que o Estado tem um papel fundamental na manutenção desse discurso, na garantia dos padrões
de acumulação dos capitais nacionais e internaci-
254
onais e na construção de uma nova “ideologia do
etanol”. O Estado conta com a colaboração de empresários, representantes dos trabalhadores e meios de comunicação para difundir essa ideologia. A
nova imagem revela os números gigantescos da produção, mas esconde a degradação socioambiental e
as formas de superexploração dos trabalhadores.3
No que tange ao aspecto político, o agribusiness
tem sido o símbolo do desenvolvimento econômico do país, por meio do saldo positivo do comércio exterior, graças ao aumento das exportações,
sobretudo de produtos agrícolas, que vem garantindo, especialmente nos últimos anos, o saldo positivo da balança comercial do país.4
É importante destacar que a lógica
desenvolvimentista, ao evidenciar as questões
ambientais, procura apagar a situação laboral, na
medida em que a tecnologia pressupõe o emprego
de máquinas tão somente. Essa evidência se manifesta no caso brasileiro nos sítios das empresas
canavieiras, nos quais as imagens veiculadas são
as das grandes máquinas colheitadeiras, onde os
operadores das mesmas não aparecem, bem como
os locais onde estão os cortadores manuais, cobertos pela fuligem da cana queimada. Por outro lado,
tais imagens são ancoradas em normativas
institucionais que asseguram ou a invisibilidade
dos trabalhadores ou a visibilidade dos mesmos
inseridos em relações laborais “sustentáveis” soci3
A construção da ideologia carregada de elementos simbólicos foi analisada por Burke (2009), referenciando-se
à fabricação da imagem do poder absoluto do rei Luiz
XIV. Em artigo recente, Bruno (2012) utiliza essa noção
para analisar o habitus das elites agrárias do Brasil por
meio da propaganda midiática SOU AGRO. A “fabricação dessa imagem” está presente na letra do samba-enredo da campeã do carnaval do Rio de Janeiro de 2013,
Vila Izabel, patrocinada pela BASF, uma das maiores
vendedoras de agrotóxicos no Brasil. A homenagem aos
agricultores (familiares?) é sem dúvida uma forma de
confundir e dissimular a maneira de produzir das grandes empresas do agribusiness. A imagem simbiótica do
samba-agricultura é mais uma empreitada das elites para
assegurar suas vendas no exterior, além de cooptar um
dos traços mais importantes da cultura popular.
4
Em recente artigo, Roberto Rodrigues (ministro da Agricultura do governo Lula) defendendo a melhoria dos portos
para escoamento dos grãos, sobretudo da soja, afirmou
que a exportação do agronegócio passou de 24,8 bilhões de
dólares em 2002 para 95,2 em 2012, quase quatro vezes
mais. Sua tese, “meu porto, minha vida” é a de que essa
melhoria traria benefícios não somente para os produtores
como também para todos os brasileiros (Folha de S. Paulo
Tendências/Debates, 29 de mar. 2013, p.3).
al e ambientalmente.
Quanto à degradação socioambiental, muitos estudiosos já apontaram os efeitos negativos
desse monocultivo (Szmrecsány, 1994; Andrade,
2009; Thomaz Jr, 2009; Silva e Martins, 2010).
Além dos males causados pela queimada de cana
(Bosso, 2006; Ribeiro, 2008; Ribeiro, Pesqueiro,
2010, dentre outros), há aqueles relacionados a
outras fases do processo produtivo da cana, sem
contar que os milhares de veículos empregados
nessa atividade – caminhões, tratores, máquinas
colhedeiras, ônibus para o transporte dos trabalhadores etc. – são todos movidos à energia derivada dos combustíveis fósseis. Ainda que tenha
havido o crescimento da mecanização e a proibição das queimadas a partir de 2017 (no estado de
São Paulo),5 nota-se que essa prática ainda continua, pois, ao queimar a palha da cana, diminui-se
em 50% a quantidade de água do caule, resultando em menores custos advindos do transporte e
das operações industriais da transformação da cana
em açúcar ou etanol. Outra fonte de poluição reporta-se à utilização do resíduo gerado no processo de destilação do etanol – vinhoto ou vinhaça –
como fertilizante. A cada litro de etanol, são produzidos de 10 a 18 litros de vinhoto, espalhados
nos canaviais sob o sistema de fertirrigação. Estudos apontam que o poder poluente desse resíduo
chega a ser cem vezes maior do que o esgoto doméstico, além dos danos provocados pela alta temperatura ao sair dos destiladores (70 a 80 graus)
que, ao ser lançado no solo, torna-se prejudicial à
fauna, flora, microfauna, além de contaminar as
águas subterrâneas, quando utilizado em grandes
quantidades e, sobretudo, durante as chuvas (Plácido Jr. et al., 2007; Xavier et al., 2012, p. 44). A
parte que não é utilizada como fertilizante é depositada diretamente no solo. Em décadas passadas,
esse subproduto era lançado nos rios, provocando o desaparecimento de muitas espécies de pei5
Em junho de 2007, o governo do estado de São Paulo
firmou com a UNICA o Protocolo Agroambiental visando ao fim das queimadas até o ano de 2014 nas áreas
mecanizáveis e 2017 nas não mecanizáveis. Houve a
adesão de 127 usinas e 23 associações de fornecedores
de cana. Disponível em: http://homologia.ambiente.sp.
gov.br/estanolverde/listas.asp. Acesso em 28 de mar. 2010.
255
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
xes, sobretudo no estado de São Paulo.
No intuito de desfazer o mito do etanol como
combustível limpo, o estudo de Cardoso et al.
(2008) revela que o nitrogênio ativo com atividade
química e biológica possui potencial para modificar as propriedades físicas do ambiente ou da biota,
pelos seguintes mecanismos: a) arraste pela água
de chuva do nitrogênio contido nos adubos; b)
ação de microrganismos no solo, transformando
parte do adubo em gases; c) produção de nitrogênio ativo por bactérias existentes em raízes de
leguminosas, que transforma o nitrogênio inerte
do ar em nitrogênio ativo; d) formação de gases
nitrogenados como produto da combustão de qualquer combustível.
As considerações precedentes compõem um
dos retratos da produção sucroenergética brasileira e visam desmistificar a imagem de energia limpa, sustentável, exportada para o mundo
globalizado e também para os consumidores internos. Outro aspecto da insustentabilidade dessa
produção, pouco levada em conta em muitos estudos, reporta-se à acumulação por espoliação por
meio da ocupação das terras. A fim de aprofundar
nossas reflexões sobre o conceito de acumulação
por espoliação, abordaremos, nos próximos itens,
o caso recente da ocupação de terras pela
agroindústria canavieira alagoana e a destruição das
florestas de babaçu no Maranhão.
ACUMULAÇÃO POR ESPOLIAÇÃO NAS
TERRAS ALAGOANAS
Segundo Lima (2006, p. 101), a evolução
da agroindústria canavieira alagoana, entre o período de construção do Instituto do Açúcar e do
Álcool – IAA até 1990 está constituída por três
etapas: “[...] a da consolidação do parque usineiro
(1930-1950), a do processo de expansão e modernização (1950-1975) e a de um segundo surto expansivo ligado ao Proálcool (1975-1989)”. De acordo com o mesmo autor, no que tange a todo esse
longo período, a decisão de expandir as lavouras
de cana para os tabuleiros (na década de 1950) foi
o fato “mais importante para moldar a estrutura
produtiva alagoana” (idem, p.101). Mas o que são
os tabuleiros? Por que eles foram tão decisivos para
os rumos da agroindústria canavieira alagoana?
O geógrafo Manuel Correia de Andrade
(1959) descreve os tabuleiros como zonas que se
estendem desde o pediplano de Arapiraca (município localizado no Agreste Alagoano) até as formações do litoral, possuindo em Alagoas muito
maior largura do que em Pernambuco. “Acha-se
inclinada, grosso modo, em direção ao mar, alcançando quase 200m de altitude a Oeste de Arapiraca,
para descer até os 40 ou 50m nas proximidades da
praia onde forma abruptas falésias” (p. 24).
A subida dos canaviais alagoanos para os
tabuleiros (até o início da década de 1950 os canaviais eram tradicionalmente concentrados nas várzeas dos vales úmidos) está relacionada a um conjunto de fatores que acarreta economia para a usina, como: “por ser plano, é o tabuleiro menos atingido pela erosão, facilitando, por conseguinte, a
mecanização, o tratamento e a colheita da lavoura
[...]; nos tabuleiros as canas suportam melhor a
estiagem, são mais uniformes e menos sujeitas a
doenças.” (Idem, ibidem, p. 56). A iniciativa pioneira foi da usina Sinimbu que, por meio de uma
adubação adequada, logrou êxito na incorporação
dos tabuleiros (Andrade, 1959 e 1994; Loureiro,
1969; Sant’Ana, 1970). Essa experiência bem sucedida (do ponto de vista do usineiro) foi seguida
por outras usinas do estado. Assim, os tabuleiros
possibilitaram uma drástica expansão da fronteira
agrícola da cana, sendo hoje a principal área produtora dessa cultura em Alagoas.
Apesar de as áreas dos tabuleiros se estenderem do Rio Grande do Norte ao estado de Sergipe
(Andrade, 1994), elas se destacam em Alagoas por
serem, em geral, mais largas e compridas, quando
comparadas às dos outros estados. No entanto, elas
não são homogêneas: ao sul de Alagoas, os tabuleiros se caracterizam por sua maior dilatação de
largura e profundidade, enquanto ao norte, são
menos extensos (Lima, 2006). Por isso, atualmente a maior concentração de usinas de Alagoas está
na microrregião dos tabuleiros de São Miguel dos
256
Campos, ao sul do estado.6
Consideramos que essa breve contextualização do papel dos tabuleiros na expansão dos
canaviais seja fundamental para compreendermos
por que, atualmente, Alagoas é líder nordestina de
produção dessa matéria-prima. Todavia, é impossível compreender tal liderança se nos limitarmos
apenas às potencialidades dos aspectos geográficos. Por trás do período “de expansão e modernização” (Lima, 2006) dessa agroindústria em
Alagoas, estão, dentre múltiplos aspectos, vários
episódios de expropriação. Comecemos investigando as expropriações dos pequenos produtores.
No livro Açúcar: notas e comentários,
Osman Loureiro, que foi usineiro e ex-governador
do Estado, comete um “ato falho” ao revelar aquilo
que ele próprio queria esconder. Vejamos o seguinte trecho:
A esta primeira primazia quanto à posse de trecho geográfico especial, é preciso adir-se a zona
dos chamados tabuleiros [...] esses altiplanos, tidos e havidos de velha data como impróprios à
cultura da cana, e apenas admitindo as pequenas lavouras de subsistência, como a mandioca,
a batata e algumas frutas, serviam, entretanto,
por igual, para a grande lavoura. Tudo era
contemperá-los [sic] com adubação adequada.
As experiências, por eloqüentes, tiveram seguidores. Em breve, vastos canaviais começaram a
desertar-se por esses chapadões, outrora relegados por inadequados, e hoje avocados ao serviço
de nossa cultura maior. [...] Para quem atravessou
essas solidões semidesérticas e hoje entresachadas
[sic] de vigorosos canaviais, o coração se lhe desaperta na antevisão do futuro que nos aguarda (Loureiro, 1969, p. 244 e 245, grifos nossos).
Nessa passagem, Loureiro descreve os tabuleiros de duas formas: a primeira é como área
das pequenas lavouras de subsistência, enquanto a
segunda é como espaço das solidões semidesérticas.
Ora, se esses espaços admitiam as pequenas lavouras de subsistência como poderiam ser solidões semidesérticas? Então, era insignificante o
número de pequenos produtores nessas áreas? Essa
questão é de suma importância, pois, se aceitar6
A microrregião dos Tabuleiros de São Miguel dos Campos é formada pelos seguintes municípios: São Miguel
dos Campos, Roteiro, Jequiá da Praia, Boca da Mata, Campo Alegre, Anadia, Junqueiro, Teotônio Vilela e Coruripe.
mos a premissa das solidões semidesérticas, a expropriação dos pequenos produtores nessas áreas
teria sido quase nula. Por outro lado, recusando
essa premissa – e adotando a de que seriam áreas
ocupadas por pequenas lavouras de subsistência
–, a vertiginosa expansão da cana nos tabuleiros
só poderia ter ocorrido por meio de um “xeque
mate” nos pequenos produtores.
Heredia (2008) foi a pesquisadora que se
aprofundou de forma mais minuciosa nessa
temática, em estudo realizado no fim da década de
1970 e início dos anos 1980, que incluía pesquisas de campo em parte da área que deu origem ao
município de Teotônio Vilela (situado na
microrregião dos tabuleiros de São Miguel dos
Campos). A autora mostra que os pequenos produtores, inclusive os proprietários, faziam uso
dessas áreas situadas fora da grande propriedade,
denominando-as terras de “hereu” ou “terras sem
donos”, onde plantavam para a sua subsistência e
essa prática passou para as distintas gerações
(Heredia, 2008, p. 60).
Nessa pesquisa, Heredia conseguiu reunir
diversos depoimentos, além de outras evidências
que comprovam que a expansão da cana para os
tabuleiros só foi possível por meio da expropriação dos pequenos produtores.7 Dentre os mecanismos de expropriação identificados pela autora,
destacamos os seguintes: 1) boatos de que os
usineiros tomariam as terras daqueles que não tinham o documento que comprovasse a posse resultaram em vendas de terras por um preço muito
7
Conforme o Censo agrícola de 1920, no município de
Coruripe (que faz fronteira com Teotônio Vilela), as lavouras do coco (1.217 ha.), de feijão, milho e mandioca
(1.102 ha.) ocupavam uma área plantada superior à da
cana-de-açúcar (863 ha.) (Heredia, 1988, p. 49). Noventa
anos após o Censo de 1920, a área do plantio de feijão,
milho e mandioca foi reduzida pela metade (restando,
atualmente, o equivalente a 650 ha, segundo levantamento das lavouras do IBGE em 2009), enquanto a da
cana-de-açúcar cresceu vertiginosamente, de 863ha para
52.238 ha. No tocante à produção agrícola do município
de Teotônio Vilela, segundo o levantamento do IBGE sobre as lavouras (realizado 2009), a plantação de cana-deaçúcar é líder, com aproximadamente 1 milhão de toneladas de cana colhidas numa área plantada de 15.500 hectares. A esmagadora liderança só se torna evidente quando
comparamos esses números com os dos cultivos de outros produtos: o que mais se aproxima da cana-de-açúcar
é o do feijão, que ocupa apenas 200 hectares de área plantada, seguida do milho, com 100 hectares e da mandioca,
com inexpressivos 55 hectares de área plantada.
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
abaixo do valor de mercado; 2) as usinas compravam o lote de um herdeiro, mas, por fim, registravam como se a compra fosse da área total de todos
os herdeiros; 3) aqueles que não vendiam sua terra, muitas vezes ficavam cercados por grandes propriedades e sofriam diversos tipos de pressão, que
iam desde fechamento da saída da propriedade,
até a invasão paulatina de parte de sua terra (Idem,
1988 e 2008).
Essas formas fraudulentas de acumulação e
expropriação remetem ao conceito de “acumulação por espoliação,” proposto por Harvey (2004,
p. 120-121), ao analisar as formas contemporâneas de acumulação. Para este autor, traços característicos daquelas formas de acumulação, descritas
como restritas ao período da “Acumulação Primitiva do Capital” (Marx, 1985), não se extinguiriam
ao longo da consolidação e expansão mundial do
capitalismo, muito pelo contrário: formas de acumulação baseadas no uso de fraudes e da violência seriam intrínsecas ao capitalismo.
Mecanismos de expropriação e acumulação
muito semelhantes aos descritos por Heredia também ocorreram (e ainda ocorrem) em nível nacional. O período estudado por Heredia foi marcado,
nacionalmente, pelo processo de “modernização
trágica” (Silva, 1999) da agricultura brasileira, que
intensificou diversas formas de expropriação de
pequenos produtores e alterou as relações de trabalho. Como demonstrou Silva (1999), esse processo não pode ser entendido somente como impulsionado pela lógica da acumulação do capital
agroindustrial. O papel do Estado, por exemplo,
foi fundamental para a sua consolidação. Por meio
da análise do Estatuto da Terra (ET) e do Estatuto
do Trabalhador Rural (ETR), a autora demonstra
como estes mecanismos, que aparentemente poderiam representar algum avanço para os trabalhadores, no fundo regulamentaram a intensificação
da exploração da força de trabalho (Idem). Na análise do processo de expropriação dos pequenos
produtores alagoanos também não podemos negligenciar o papel desempenhado pelo Estado.
A incorporação das terras dos tabuleiros
pelas usinas recebeu o estímulo direto do Estado,
por meio do IAA e de diversos programas8 que,
naquele momento, objetivava elevar a produtividade do setor e reduzir os custos da produção.
Nesse contexto, foram adotadas diversas medidas
que acabaram beneficiando as principais
agroindústrias canavieiras do estado, dentre estas
se destacam: financiamento público para a compra de terras, melhoramento genético da cana e
isenção de impostos para importação de
maquinários (Heredia, 2008; Lima, 2006; Mello,
2002). Essa conjuntura possibilitou uma vertiginosa expansão dos canaviais alagoanos, sobretudo na microrregião dos tabuleiros de São Miguel
dos Campos.9
No momento presente, a invasão da canade-açúcar nas áreas dos tabuleiros está consolidada. O fato de a atual usina líder nordestina em
produção de cana, situada no município de
Coruripe, ter 90% de seus canaviais em terras de
tabuleiros10 ilustra bem esse processo. Mas engana-se quem imagina que, após a expropriação dos
tabuleiros, tenha acabado o processo de expropriação nos canaviais alagoanos, pois os trabalhadores continuam sendo expropriados pelas usinas –
seja em canaviais das terras planas, das várzeas
encharcadiças, ou das encostas de grotas e serras.
Nessa agroindústria, o trabalho não pago assume
taxas altíssimas. A acumulação por espoliação não
se realiza, apenas, quando a terra é espoliada do
pequeno produtor, mas continua em cada metro
cortado subtraído do salário do cortador de cana,
em cada caso de “canguru” ou “birôla”,11 decorrente do excesso de trabalho para atingir as metas
8
Dentre os principais programas do Estado nesse período
estão: 1) Plano de Expansão da Agroindústria Canavieira
(1963); 2) Programa de Racionalização de Agroindústria
Canavieira (1971); 3) Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-açúcar (1971); 4) Programa Nacional
do Álcool (1975). Para uma leitura detalhada dessas políticas, ver Lima (1998).
9
É válido ressaltar que essa expansão também provocou
destruição da vegetação nativa dos tabuleiros.
10
Conforme depoimento do chefe do setor de recursos
humanos da referida usina. Entrevista realizada no dia
21 de março de 2013, no município de Coruripe/AL.
11
“Canguru” e “birôla” são expressões regionais cunhadas
pelos canavieiros em Alagoas e São Paulo, respectivamente. Significam o momento em que, em razão dos altos
níveis de sudorese, provocados pelo calor, eles são acometidos por câimbras por todo o corpo, podendo, até mesmo,
levá-los, em alguns casos, à morte, como ocorreu a 23
trabalhadores no período de 2004 a 2011 em São Paulo.
258
mínimas diárias de produtividade, em cada traba- dos ao comércio, agricultura e indústria no Norlhador demitido por ter a sua força de trabalho deste. No Maranhão, esta empresa possui extendesgastada prematuramente.
sas áreas com pecuária.
Os camponeses não resistiram a este ato de
violência, pois, caso contrário, seriam mortos, seACUMULAÇÃO POR ESPOLIAÇÃO NAS
gundo vários depoimentos. Muitos ainda não reFLORESTAS DE BABAÇU MARANHENSES E A correram à Justiça em razão do medo de represáliTERRITORIALIZAÇÃO DO CAPITAL
as por parte da empresa expropriadora. Ademais
da expropriação, a empresa destruiu as florestas
Outro exemplo de acumulação por espolia- de babaçu por meio de máquinas e do fogo. Em
ção, embora fora das fronteiras geográficas da pro- seguida, foi semeado capim para o gado. O fogo
dução canavieira, porém dela resultante, reporta- representa o apagamento dos vestígios, das marse à destruição das florestas de babaçu no sudoes- cas da cultura e do modo de vida. Por esta razão,
te maranhense. Em pesquisa levada a cabo nessa trata-se de uma prática empregada pelos pistoleiros
região em 2007,12 constatou-se um processo de sob o mando das grandes empresas e dos latifunexpropriação de camponeses que aí viviam na con- diários. Quanto aos camponeses expropriados de
dição de ocupantes, rendeiros e moradores, por outra fazenda, denominada Campestre, de 40 mil
meio de toda sorte de violência. Ademais da coleta hectares, os depoimentos revelam que a violência,
dos depoimentos com homens e mulheres (70 além da destruição material e até mesmo impingindo
depoentes), foram analisados 85 processos jurídi- a morte aos camponeses, produz-lhes o medo, cuja
cos movidos por camponeses expulsos de suas durabilidade impede a ação de resistência, em muiterras por meio do uso da violência e ameaças de tos casos. No caso dessa fazenda, em razão do momorte, muitos dos quais passaram a viver nas pe- vimento de resistência, uma área de 14.402 hectariferias de Timbiras e Codó, cidades maranhenses, res foi desapropriada pelo INCRA e o Assentamenhoje fornecedoras de mão de obra para as usinas to em 2007 estava se iniciando (Silva, 2010).
de São Paulo. Analisando os processos jurídicos
Esses fatos são fundamentais para a commovidos por 85 camponeses expropriados em 2004 preensão do processo de acumulação por espolianos municípios de Coroatá, Timbiras e Codó, cons- ção, tendo em vista que a maioria dos camponeses
tatou-se que essas famílias eram constituídas de expropriados se transforma, de um dia para oumoradores que pagavam a renda em produto ao tro, em migrantes e cortadores de cana em São Paudono da terra. Plantavam arroz, feijão, milho, man- lo. Por outro lado, as áreas, antes destinadas à pedioca e frutas. Além disso, viviam da economia cuária do estado de São Paulo, em virtude do auextrativista do coco babaçu, atividade essencial- mento da renda da terra, são vendidas ou arrendamente desenvolvida pelas mulheres. Viviam em das para a produção de cana, por meio do movicasas de taipa cobertas de folhas da palmeira do mento de territorialização do capital, no qual “[...]
babaçu. No ano de 2004, homens armados desalo- o gado paulista sobe, enquanto os homens do norjaram 100 famílias da Fazenda São Raimundo, deste descem” (Silva, p. 77-78, 2008).
No que tange, ainda, ao processo de
pertencente a José Ribamar Thomé. Os homens
eram mandantes de Ricardo Reis Vieira, que, por territorialização, observa-se que, com a instalação
intermédio de escrituras falsas, afirmava ser o legí- de usinas, sobreleva-se o preço das terras, e até
timo proprietário da terra. Segundo relatos de cam- mesmo a impossibilidade de muitos pequenos
poneses, a queima das casas foi feita pela Empresa proprietários se dedicarem a outras atividades agrído Grupo Maratá, que possui negócios relaciona- colas, forçando-os ao arrendamento ou à venda das
mesmas. Em estudo recente, Melo (2012) consta12
Pesquisa financiada pelo CNPq e coordenada por Maria
Aparecida de Moraes Silva.
tou que muitos sitiantes da região nordeste do es-
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
tado são obrigados a isso, em virtude de problemas como a proliferação da “mosca do estábulo”;
o abandono da manutenção das estradas rurais pela
usina durante os períodos de entressafra; os problemas causados às pequenas propriedades vizinhas às plantações de cana, cujos pastos são afetados tanto pelo depósito de poeira como do
agroquímico que é aplicado nos canaviais para
maturação do cultivo e que, ao atingir os pastos,
tem o efeito de secá-los. Com o pasto comprometido, o gado perdendo peso e diminuindo os rendimentos obtidos com o leite ou com a carne, muitos sitiantes se viram forçados a arrendar sua pequena propriedade.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
A (NOVA) MORFOLOGIA DO TRABALHO
As reflexões à luz da crítica do “desenvolvimento sustentável” da produção sucroenergética
brasileira, a partir de nossos achados de pesquisa
em São Paulo e Alagoas, conduzem-nos, igualmente, a outro viés crítico referente às relações de trabalho. Para esse intento, incorporamos alguns estudos realizados em outros países, a fim de
aprofundar a compreensão da lógica da acumulação do capitalismo contemporâneo globalizado.
Ao cotejarmos a realidade brasileira com
aquela de outros países, observamos que há vários pontos em comum, ainda que nesses últimos
os trabalhadores sejam imigrantes, portanto, tratase da mobilidade internacional do trabalho. Tanto
em países da América Latina, tais como Argentina
e México, como na Espanha, observa-se que a
reestruturação produtiva no campo seguiu a via
da flexibilização produtiva e das relações de trabalho (De La Garça, 2000). Há a mesma lógica imposta pelo modelo agroalimentar globalizado, onde as
agriculturas intensivas ou enclaves de exportação
utilizam mão de obra migrante ou imigrante, por
meio de contratos temporários regulados pelos respectivos Estados (Flores, 2010). No que tange às
condições de trabalho, verificam-se os mesmos traços: precarização, salários baixos, flexiblização,
etnificação, discriminação de gênero, precarieda-
de das condições de moradia (Grammont; Flores,
2010). Há, assim, impedimento da vida em família, haja vista que o contrato é individual, além do
controle policial exercido sobre os imigrantes para
que retornem aos seus lugares de origem no final
do contrato.
O dossiê da Revista Regiones (2012),
publicada na Espanha, sob o título Mercados de
trabajo en la agricultura mediterrânea, reúne artigos que tratam das questões acima analisadas nas
plantações de hortaliças e morango nas regiões de
Murcia e Andalucía. A produção é destinada à
exportação para os demais países europeus. Empregam-se basicamente imigrantes – as mulheres
são em maioria – provenientes do Leste Europeu,
da África Central, Marrocos, Equador e Bolívia.
As relações de trabalho nessas plantações, segundo os autores, segue o modelo californiano, isto é,
precariedade combinada ao avanço tecnológico e à
reestruturação produtiva (Cánovas, 2012, p. 1620). Essas imigrações são ordenadas e as
contratações em geral são feitas na origem. O governo espanhol, visando resolver os problemas da
demanda de mão de obra, em 2000, implantou o
sistema de Contratação na Origem, pelo qual os
países da Europa do leste eram os principais fornecedores de trabalhadores para a região de
Andalucía. Em 2007, os maiores fluxos eram provenientes de Marrocos. A investigadora Reigada
(2012, p. 22-26) mostra que a preferência por mulheres marroquinas deu-se em virtude de se tratar
de uma força de trabalho mais barata. No entanto,
no período de 2008 a 2010, em razão da crise econômica na Espanha e o regresso de famílias
andaluzes ao campo, houve a diminuição da presença do número de imigrantes marroquinos e
subsaarianos. Para os empresários, governo e representantes sindicais, esse modelo de imigração
ordenada e temporária é o ideal, pois evita a presença dos ilegais e resolve a questão da demanda
de força de trabalho nessas plantações.
A política estatal de Contratação na Origem
é uma forma evidente de controlar o quantum de
trabalhadores necessários à execução de tarefas temporárias, por meio de critérios seletivos como gê-
260
nero, etnia, idade e, também, garantir o retorno ao
país de origem após o final dos contratos de trabalho. No caso das mulheres, há a preferência por
aquelas com filhos, pois o retorno ao país de origem é mais garantido, em razão do reencontro com
os filhos, vis-a-vis os empresários espanhóis.
Reigada (2012, p. 25) critica a imagem e o discurso
dos empresários de que a Contratação na Origem,
com a obrigatoriedade de firmar o compromisso
de retorno, se apresente sob uma “gestão ética e
humana da imigração”.
Por outro lado, a pesquisa de Rodriguez
(2011) revela o papel de outro agente importante
neste processo de regulação, o sindicato. Nas plantações de frutas catalãs, o sindicato agrícola Unió
de Pagesos é o responsável pelo recrutamento de
trabalhadores imigrantes na origem e também pelo
controle despótico exercido sobre os mesmos nos
alojamentos nas áreas agrícolas da Catalunha. A
autora, baseando-se nas reflexões foucaultianas,
desenvolveu uma singular pesquisa etnográfica nos
alojamentos, concluindo que os encarregados,
nomeados pelo sindicato para exercerem o controle e a disciplina, assemelham-se aos capatazes de
escravos da época da Roma antiga. Na verdade, o
ajuntamento dos imigrantes nos alojamentos cria
as condições para o exercício do poder coletivo
sobre eles, tornando-os dóceis e domesticados para
a aceitação das regras impostas pelos empresários.
Os alojamentos se assemelham às prisões, onde
ocorre a “gestão fordista dos homens”, produzida
pelo Sindicato. Essa autora se refere ao alojamento
como exemplo de Instituição Total descrita por
Goffman.13 Para aqueles que resistem, a única saída é a fuga, transformando-se em ilegais, sujeitos à
perseguição policial. Caso sejam aprisionados,
antes de serem extraditados para seus países de
origem, são submetidos às leis do estatuto do estrangeiro irregular, pelas quais são enviados a tra13
A análise dos alojamentos como forma de controle e
disciplina da força de trabalho no tempo de trabalho e de
não trabalho foi realizada por Menezes (2002) para o
caso dos trabalhadores migrantes do Estado da Paraíba
em usinas do Estado de Pernambuco. Análise similar foi
elaborada por Cover (2011) para alojamentos de trabalhadores migrantes paraibanos em usinas da Região de
Campinas e Piracicaba, Estado de São Paulo.
balhos forçados nos setores produtivos menos rentáveis da economia. Assim, essas práticas, aprovadas pelo Parlamento Europeu, resultam da debilidade do estado Social e Democrático de Direito
imperante na Espanha. Com isso, o Estado elimina a figura do estrangeiro nômade, que circulava
em busca de trabalho nos municípios frutícolas,
cerceando o direito de ir e vir consagrado na Constituição burguesa desde a Revolução Francesa nos
finais do século XVIII.
Cada vez mais essas normativas vão se configurando como um fenômeno global. Outro país
onde a regulação das relações de trabalho pelo estado tem sido posta em prática nas últimas décadas é o México. Vários programas foram assinados
entre os governos do México, EUA e Canadá, tais
como: H2-A (entre México e EUA); o Programa de
Trabalhadores Agrícolas Temporários – PTAT –,
firmado entre México e Canadá em 1974 (Binford
et. al., 2004). Contrariamente ao que ocorre com
as migrações desreguladas internas e as
indocumentadas aos EUA, as migrações para o
Canadá são estritamente reguladas para impedir
desajustes entre oferta e procura de mão de obra.
Diferentemente do Programa Bracero (1942-1964)
entre México e EUA, cujas falhas ocorreram em
razão da deserção dos trabalhadores, o Programa
com o Canadá possui as seguintes características:
retorno da maioria dos imigrantes a seus locais de
origem; provimento da agricultura canadense de
mão de obra barata, flexível e temporária (Quintana,
2003, p. 1). Trata-se, portanto, de uma imigração
controlada e temporária, cujo crescimento foi expressivo com o passar dos anos. Esse mercado de
trabalho não somente é regulado quantitativamente,
como, também, por meio de critérios seletivos relativos ao gênero e etnia. As mulheres viúvas e
mães solteiras são as preferidas pelos empresários
canadenses, sem contar a discriminação que homens e mulheres sofrem pelo fato de desconhecerem os idiomas francês ou inglês e por não serem
brancos. O processo de trabalho é rigorosamente
controlado; as condições de trabalho são marcadas
pelo desgaste físico em razão da postura corporal,
pois recolhem o morango agachadas ou sentadas
261
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
no chão durante jornadas de 10 a 12 horas por
dia. Nos alojamentos, há o controle de hábitos,
moral e sexualidade (Quintana, 2006). Após o trabalho de três a cinco meses, os (as) trabalhadores
(as) são obrigados (as) a retornar aos seus locais de
origem para, em seguida, imigrarem no ano seguinte, configurando-se, assim, a imigração permanentemente temporária. Em razão do tempo de duração desse fenômeno, há, por parte dos empresários, a preferência pelos (as) mesmos (as) trabalhadores (as), cujas condutas lhes são condizentes,
selecionando-os (as) pelos respectivos nomes. Esse
é mais um fator para a garantia da oferta de trabalho, segundo suas necessidades, sem, contudo,
arcarem com os custos de reprodução dessa força
de trabalho, haja vista que esses homens e mulheres não possuem os mesmos direitos sociais e
laborais vigentes no Canadá.
Flores (2008) mostra que a ação sindical é
praticamente nula no processo migratório no México. Ademais, no mesmo estudo, a autora questiona a existência do trabalho decente no México,
mostrando, ao contrário, que lá predominam traços de vulnerabilidade, precarização e eterna circulação nacional e internacional de trabalhadores
para os enclaves agroalimentares globais.
Outros autores têm demonstrado que o
modelo de agricultura intensiva de exportação continua sendo considerado como elemento de desenvolvimento e modernização (Ramirez e Olaizola,
2012, p. 5), ao mesmo tempo em que oculta as
transformações nas cadeias agrícolas globais e suas
consequências em diferentes âmbitos: a estrutura
do mercado de trabalho, a relação com o território,
os movimentos migratórios e as formas de organização da vida social.
As referências, ainda que incompletas, da
realidade laboral de outros países, reforçam o argumento de que a lógica da acumulação do capitalismo contemporâneo é a mesma nos diferentes
países, ainda que as particularidades históricas
sejam diferentes. Assim sendo, notamos que o
princípio da contratação na origem dos trabalhadores migrantes é fundamental para garantir a força de trabalho imigrante ou migrante nos enclaves
produtivos, com o aval dos Estados.
No caso brasileiro, a normativa institucional
que rege a contratação na origem é o Compromisso
Nacional para Aperfeiçoar as Condições do Trabalho
na Cana de Açúcar, firmado em 2009 pelo governo
federal, representantes dos trabalhadores rurais e das
usinas. Este documento revela que, nos canaviais
brasileiros, se estabelece o controle do mercado de
trabalho e da gestão das relações de trabalho pelo
estado e pelas empresas, consubstanciando-se o
declínio do poder sindical. Pelo Compromisso, a
fiscalização das relações de trabalho cabe às próprias empresas, retirando dos representantes dos
trabalhadores essa função, haja vista que, sequer
podem adentrar os locais de trabalho sem
credenciamento ou prévia autorização dos patrões,
buscando soluções conjuntas para possíveis problemas. Consubstancia-se, assim, o rearranjo das
relações de força e dos conflitos, caracterizado não
somente pelo enfraquecimento do poder dos sindicatos, mas, também, pela desconstrução dos conflitos de classe, agora tratados em mesas de diálogos e
de negociações tripartites. Ao invés da verticalização,
observa-se a horizontalidade das relações de classe,
por intermédio da fabricação de novas matrizes
discursivas e novas práticas. E mais ainda: esse
“modelo” horizontal deveria servir de exemplo para
outros países da América Latina produtores de açúcar e etanol.
O item referente à contratação na origem
corrobora o controle do mercado laboral pelas
empresas e impede que as famílias dos trabalhadores também migrem, posto que o contrato é individual. Após serem selecionados, os trabalhadores são transportados pelas usinas e destinados
aos alojamentos (nas áreas da cana) ou nas chamadas “casas da usina” (nas cidades), onde a presença das famílias é proibida.
Uma vez apresentado o debate sobre as relações de trabalho no contexto da agricultura
globalizada, retomaremos o caso brasileiro para dar
visibilidade aos trabalhos desenvolvidos em diversas frentes nos canaviais paulistas e alagoanos.
Tanto o modelo de agricultura intensiva de exportação, como a nova “ideologia do etanol” brasilei-
262
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
Lúcio: Pensando no tema do corte manual, a gente vê que cada vez tem menos cortadores de cana...
Cleiton:14 A tendência é acabar. Acabar não. Ano
que vem, provavelmente, a maioria das usinas
estarão 100% mecanizadas. Nós vamos ser mesmo uns dos que vai estar. Ou até a partir de agosto, 100% mecanizado (...). A tendência é essa, a
mão de obra está muito difícil e caro de se trabalhar. Qualquer coisinha o pessoal faz greve aqui,
greve ali... E outra coisa, tem que respeitar as
NRs 31,15 as leis trabalhistas... Então hoje é mecanização. E outro fato: não vai poder queimar.
Pode queimar só as canas que você já tinha antiga. Você faz uma programação, manda pra Secretaria do Meio Ambiente, pede autorização pra
queimar. Nós não fazemos nada sem autorização
do Meio Ambiente. Nada. Tem que pedir antecipada a autorização com 72 horas, eles liberam,
você tem que ver temperatura, umidade relativa
do ar... Então é uma coisa bem criteriosa (Entrevista realizada em julho de 2012, no escritório
de uma usina na região de Fernandópolis/SP).
No transcorrer da narrativa do gerente da
usina, fica claro, não só o discurso da colheita totalmente mecanizada, como, também, a preocupação com a questão ambiental, que levaria a empresa a tomar a decisão de interromper o corte manual de cana-de-açúcar. Entretanto, no mesmo trecho
destacado de sua narrativa, é possível encontrar
outras justificativas que passam pela questão financeira e os custos de se manter uma quantidade
grande de trabalhadores, fazendo cumprir as legislações trabalhistas. Em outro momento da conversa, o gerente da usina afirma que, segundo cálculos realizados pela empresa, o trabalho mecanizado representa uma economia de três a quatro reais
14
Os nomes das pessoas entrevistadas durante a pesquisa
de campo que são citados nesse texto são fictícios.
15
Norma Regulamentadora 31 - Dispõe sobre a segurança
e saúde no trabalho na agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura.
por tonelada quando comparado ao corte manual
da cana. Na narrativa de Cleiton, os trabalhadores
empregados na colheita manual são invisibilizados,
assim como os migrantes:
Lúcio: Tem outra coisa que a gente queria saber:
os cortadores de cana não estão mais encontrando trabalho e a gente queria saber se essa migração diminuiu ou se eles continuam migrando,
mas agora para outras atividades.
Cleiton: Olha, eu posso falar da nossa região. Nós
temos três municípios que trabalham com a gente. O operador, esse pessoal que tá no corte aí, é
pessoal da região, pessoal antigo que está aqui
com a gente.
Lúcio: Ah, é pessoal daqui mesmo da região. Tem
essa característica, então?
Cleiton: É. Não temos ninguém de fora. (Entrevista realizada em julho de 2012, no escritório
de uma usina na região de Fernandópolis/SP).
Os migrantes empregados no corte manual
de cana-de-açúcar não são os únicos a serem
invisibilizados no contexto do “desenvolvimento”
promovido pelo agronegócio sucroenergético, o
trabalho das mulheres também é ocultado nesse
setor. Esse contexto tem sido apresentado e denominado por Silva (2011) como o “trabalho oculto
das mulheres nos canaviais”. Entre outras reflexões, a autora mostra que as mulheres têm sido
alijadas do trabalho no corte manual da cana-deaçúcar. Muitas delas estão empregadas em atividades que são ainda mais invisibilizadas que aquelas realizadas pelos homens nos eitos dos canaviais. Muitas das mulheres que são expulsas do corte manual de cana-de-açúcar permanecem no setor
canavieiro, sendo empregadas como “faxineiras dos
canaviais” (Silva, 2011, p. 28), em atividades como
a bituca, abrir eito e o recolhimento de pedras nos
canaviais. Bituqueiras são as trabalhadoras que
recolhem, no chão, os restos da cana deixados após
o corte manual e o carregamento pelo guincho. As
mulheres trabalham em dupla, carregando as
“bitucas” de cana para a “rua do monte”, de onde
serão levadas para a usina. “Abrir eito significa cortar
as fileiras de cana que estão sobre as curvas de
nível – sulcos feitos para a drenagem das águas
fluviais – antes da utilização das máquinas, pois
estas só cortam as canas em terras planas” (Silva,
263
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
ra, reforçam, em seu discurso, o uso intenso de
alta tecnologia nos maquinários empregados nos
campos. No que diz respeito ao emprego das máquinas para o corte de cana-de-açúcar, em ocasião
da entrevista com o gerente de usina de álcool do
interior paulista, foi possível identificar o discurso do elevado emprego de maquinaria na colheita
da cana-de-açúcar, como pode ser verificado nas
linhas que seguem:
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
2011, p. 26). As mulheres empregadas na “pedra”
também fazem a limpeza do canavial, retirando as
pedras do campo para que as máquinas
colheitadeiras de cana possam passar pelo terreno
sem obstáculos.
Há, ainda, outras atividades nos canaviais
paulistas que são camufladas no discurso da “ideologia do etanol”, que destaca somente o emprego
de tecnologias elaboradas. Dentre as tarefas realizadas manualmente nos canaviais, podemos citar:
a retirada de cercas e divisões de currais de propriedades arrendadas recentemente para o plantio
de cana-de-açúcar,16 aplicação de veneno utilizando bomba-costal para eliminar as casas de formigas nos canaviais, aplicação de veneno “mata-mato”
para eliminar o colonhão e o cipó,17 plantio e carpa de árvores plantadas pela usina em áreas de
reflorestamento. A realização dessas atividades está
inserida em um contexto hierárquico, na medida
em que as trabalhadoras e os trabalhadores encarregados de executar as tarefas manuais não recebem os mesmos direitos que as demais categorias
de trabalhadores da usina – aqueles são excluídos, por exemplo, do convênio médico pago pela
empresa com uma cooperativa de saúde, além de
receber o “vale alimentação” com valor inferior ao
dos demais trabalhadores. Outras irregularidades
persistem na execução das atividades manuais:
Os trabalhadores da Turma do Veneno realizam
suas refeições vestidos com as mesmas roupas
com as quais aplicam os herbicidas, o que apresenta nítidos riscos de contaminação. As turmas
do trabalho manual cumprem um regime de trabalho de 6X1 (trabalham de segunda a sábado, e
folgam apenas aos domingos), enquanto todas as
outras categorias cumprem um regime de trabalho de 5X1. Sendo o trabalho agrícola manual
praticamente o único para o qual mulheres são
contratadas (em menor número também trabalham no Posto de Gasolina da Usina e no
almoxarifado), e sendo as mulheres frequentemente as únicas responsáveis pelo trabalho do16
Essas tarefas foram encontradas durante incursão em
campo empírico na região de Fernandópolis/SP e descritas
pela pesquisadora Beatriz Medeiros de Melo, membro da
pesquisa “Novas configurações do trabalho nos canaviais. Um estudo comparativo entre os estados de São Paulo e Alagoas”, coordenada pela professora Maria Aparecida
de Moraes Silva, com o apoio financeiro do CNPq.
17
Tais plantas são consideradas agressivas para o desenvolvimento da cana-de-açúcar.
méstico e o cuidado dos filhos, resulta que a reprodução social das famílias destes trabalhadores
é prejudicada e precarizada. As consequências
inevitáveis deste quadro são: (a) as mulheres ocupam todo o domingo com as atividades domésticas, não lhes restando tempo para o lazer, a sociabilidade, o acompanhamento da vida de seus
filhos... (b) como as creches municipais não funcionam aos sábados, aquelas mulheres que não
podem deixar seus filhos sob os cuidados de parentes ou outra pessoa de sua rede de sociabilidade e confiança, se veem obrigadas a pagar uma
babá para realizar este trabalho, então, remunerado, e, desse modo, reduz-se ainda mais seus
parcos ganhos. Por estas e outras razões é frequente, no discurso das mulheres, a comparação
de sua situação como de “escravidão”, já que “vivem para a Usina” (Trecho do diário de campo
de Beatriz Medeiros de Melo, julho de 2012).
A sensação de viver como “escravo” também foi descrita pelos trabalhadores e trabalhadoras do corte manual de cana na usina onde Cleiton
trabalha. Ao contrário do que diz o gerente, a maioria das pessoas empregadas no corte manual da
cana é proveniente de outros estados brasileiros,
como Bahia, Maranhão, Piauí e Alagoas. Muitos
dos quais receberam, antes de realizar a viagem
para o interior de São Paulo, promessas por parte
da empresa de que ficariam em alojamentos providenciados pela usina, sem necessitar pagar as despesas com aluguel. Entretanto, quando chegaram
à região de Fernandópolis se depararam com outra
realidade. Muitos despendem um valor de aproximadamente 250 reais para viver em uma residência com instalações bastante precárias, sem camas,
com espaço bastante reduzido.
Na ocasião em que as entrevistas foram realizadas, em julho de 2012, encontramos algumas
turmas em greve em razão das inúmeras irregularidades encontradas na execução da atividade. Uma
das trabalhadoras nos apresentou o seguinte relato: “o povo diz que a escravidão acabou, mas ainda não acabou”. A caracterização do trabalho como
escravidão se dá não só pelo fato de a remuneração ser bastante reduzida (na safra de 2012 a turma chegou a receber apenas seis centavos pelo
metro de cana cortada; em outros períodos a turma recebeu de nove a doze centavos pelo metro da
cana embolada), mas, também, pela forma
264
desumanizadora como os fiscais tratam os trabalhadores e as trabalhadoras, comparando-os com
animais. Na imagem do recibo (Figura 1) de uma
das trabalhadoras empregadas no corte manual de
cana-de-açúcar é possível visualizar o valor extremamente reduzido pago pela metragem da cana.
Há dias em que a trabalhadora recebeu apenas R$
7,00.
Os trabalhadores grevistas denunciaram,
ainda, as seguintes irregularidades: preço reduzido do vale-alimentação (60 reais por mês); a empresa fazia descontos salariais e do vale-alimentação mesmo quando a falta do trabalhador era
justificada com atestado médico; alguns trabalhadores tinham que iniciar o corte da cana poucos
minutos após a queima do canavial, o que implicava a realização do labor sob um calor extremamente excessivo. Em razão da intensa mecanização, é possível constatar que as melhores plantações são destinadas às máquinas. Por sua vez, as
canas que estão “deitadas”, desalinhadas, que crescem na curva de nível são destinadas aos homens
e mulheres que têm ao seu lado somente o facão
para “enfrentar” tal atividade, que os suga física e
emocionalmente – ao contrário do “palco” preparado para a atuação das máquinas, que passam pelos
canaviais planos, com o terreno livre das pedras
que as mulheres recolheram anteriormente.
Tamanha intensificação e exploração da for-
ça de trabalho (Silva, 1999, 2004 e 2011; Alves,
2007; Verçoza, 2012) ocasionaram inúmeros acidentes de trabalho e doenças advindas da atividade no corte manual da cana. Um dos trabalhadores relatou a ocasião em que se feriu gravemente ao
cortar o próprio dedo com o facão e recebeu por
parte da empresa um atendimento após horas de
sangramento. Ao receber o atendimento, seus colegas relataram ao enfermeiro da
usina o que tinha acontecido e
que o sangramento estava muito intenso. Ao ver o desespero
do trabalhador e seus colegas,
o enfermeiro lhes disse: “Cortou o dedo, não foi a cabeça”.
O descaso com problemas de saúde ocasionados
pela atividade também foi relatado por uma das trabalhadoras: após realizar um exame em razão de dores intensas na coluna e levar o resultado para o médico, recebeu
como resposta a seguinte sentença: “você vai morrer com esse desvio na coluna”, sem receber a recomendação de qualquer tipo
de tratamento ou encaminhamento a um afastamento por doença adquirida no trabalho.
Durante a realização do corte manual da
cana-de-açúcar, muitos trabalhadores são acometidos pela chamada “câimbra de nó”.18 Um dos trabalhadores apresentou a seguinte descrição da sensação provocada pela câimbra de nó: “a dor vai
entrando pelo pé e aos poucos vai subindo por
dentro do corpo como se fosse um inseto. Eu sinto como se tivesse um bolo se formando no estômago, por isso chamam de câimbra de nó”. Um
deles sentiu uma câimbra intensa durante o corte
e percebeu que “a morte estava perto e que ela tinha uma cara feia”. Seus colegas interromperam o
trabalho, solicitando que ele fosse levado para o
hospital, mas isso não aconteceu. Alguns dos trabalhadores estiveram presentes nos canaviais em
18
Outra expressão para se referir às câimbras, além das do
“canguru” e “birôla”.
265
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
outros municípios paulistas quando colegas de
trabalho faleceram no eito do canavial após sentir
a “câimbra de nó”. Um deles acompanhou um
colega que perdeu a vida em 2010 no município
de Monte Alegre:19 “meu colega foi encontrado em
pé, morreu abraçado com a cana”.
Em meio às narrativas que demonstravam a
situação de humilhação no ambiente de trabalho,
o tratamento desumanizado era o fio condutor da
conversa. Esse teor ficou bastante claro quando as
seguintes frases apareceram: “a ordem é acabar com
o povo”; “O sonho foi entrando por água abaixo”;
“O ‘gato’ da usina só quer que a gente morra”; “A
usina só quer ferrar o pobre”; “Ninguém aqui é
escravo, ninguém aqui é bicho”.
O cenário de humilhação e desrespeito é
configurado, também, a partir da relação que se
estabelece com os fiscais de turma. Um dos trabalhadores contou que o fiscal de turma os tratava
de forma bastante hostil, exigindo que intensificassem o ritmo da produção. Esse mesmo fiscal
ameaçou um trabalhador maranhense de morte,
dizendo a ele que, se não trabalhasse direito, voltaria para sua terra “com o paletó de madeira”.
Assim, os elementos apresentados pelos trabalhadores e trabalhadoras, tais como a elevada
exploração da força de trabalho, o tratamento desumano, a humilhação nos eitos de cana e a comparação com animais e escravos, nada disso parece combinar com a imagem de grandeza e a
“sustentabilidade” que caracterizam o “desenvolvimento” gerado pelo setor sucroalcooleiro. Nas
próximas linhas, recorreremos à realidade dos canaviais alagoanos para trazer mais experiências que
destoam da grandeza da “ideologia do etanol”.
No tocante aos canaviais de Alagoas, na safra
2012/2013, a agroindústria canavieira alagoana contou com o uso de 50 máquinas colheitadeiras (todas
operando em parte das terras planas dos tabuleiros).20
O processo de mecanização do corte encontra-se em
fase embrionária quando comparado ao de São Pau19
No município de Monte Alegre a média mínima que
cada trabalhador deveria cortar por dia era de 12 toneladas e meia de cana.
20
Conforme informação concedida pelo coordenador de
planejamento e administração rural de uma usina loca-
lo.21 O plantio de cana em vastas áreas de topografia
acidentada – sobretudo no norte do estado – é um
dos fatores que dificulta (ou inviabiliza) um maciço
processo de mecanização da colheita em curto prazo.
Em algumas dessas áreas, consideradas até o momento como inacessíveis às modernas máquinas
colheitadeiras (guiadas por GPS, equipadas de ar
condicionado e movidas com tração por esteiras),
ainda transitam burros e mulas carregando cana (guiados por cambiteiros, que se abanam com o chapéu,
e movidos por tração animal). O cambiteiro é o trabalhador “que vem com um burro com cangalha, e leva
a cana até onde o caminhão está, e depois o caminhão leva para a usina”.22
O serviço de cambitagem, que, com a decadência dos engenhos, parecia condenado à extinção,
continua usual em algumas encostas de Alagoas.
Como um transporte que ainda requer amarração
de feixes de canas cortadas, que, em cada viagem
até o caminhão, leva apenas aproximadamente entre
20 e 30 feixes de cana no lombo do burro (em
torno de no máximo 100 kg de cana) pode sobreviver na contemporaneidade? Talvez (a) (o) leitor (a)
imagine que esse tipo de transporte sobreviva no
século XXI por ser essa cana destinada a alguma
produção artesanal de cachaça, à produção de uma
mercadoria inserida em um pequeno mercado deveras específico, que, por não encontrar concorrentes, seria competitiva. No entanto, não é disso
que se trata. A cambitagem em questão não leva a
cana para um engenho que produz alguma cachaça especial, ela transporta parte da cana que é
esmagada por uma usina de médio porte de
Alagoas.23 A cana transportada nesse serviço de
cambitagem é transformada em açúcar para ser exlizada na região dos tabuleiros de São Miguel dos Campos, em entrevista realizada no dia 21 de março de 2013.
21
Segundo estimativa do Sindaçúcar/AL, em 2011 o corte
mecanizado correspondia a 20% da colheita de cana
alagoana (Padilha, 2011), enquanto em São Paulo, de
acordo com a União da Indústria da Cana de Açúcar
(UNICA), mais 60% da colheita já era mecanizada no
mesmo ano.
22
Conforme relato de Iracema, no município de Ibateguara/
AL, em 14/06/2012, durante entrevista concedida para a
equipe da pesquisa, ”Novas configurações do trabalho nos
canaviais. Um estudo comparativo entre os estados de São
Paulo e Alagoas”, mencionada na nota 15 deste artigo.
23
A referida usina fica localizada na Microrregião Serrana
do Quilombo dos Palmares, área marcada pela grande
266
Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
do um bolo de cana cada vez mais pesado. Próximo ao pé do morro o esforço é ainda maior. A
embolada termina quando o bolo de cana chega ao
local acessível para os animais ou máquinas. Após
o término da embolada, o trabalhador sobe o morro para embolar mais cana. A jornada de
trabalho segue em desce e sobe, em agacha e levanta, em puxa e empurra. Esse
ciclo se repete até acabarem as canas de
embolada.
Em pesquisa de campo realizada
em Ibateguara, município localizado ao
norte de Alagoas, pudemos acompanhar
o dia de trabalho de uma frente de corte,
transporte e carregamento da cana.24 Os
canaviais queimados estavam em morros
imensos, alguns trechos eram tão íngremes que, como bem expressou um trabalhador canavieiro: “para subir a rampa,
tem que subir de quatro, tem quadra que
aconteceu isso, que o trabalhador não tem
condições de subir cortando, que é mui-
se aproximam –, existe, nas encostas mais
íngremes, a embolada da cana. Esse serviço consiste em emaranhar as canas que
foram cortadas por outros trabalhadores
para rolá-las ladeira abaixo, de modo que
elas cheguem até uma área que possa ser
acessada por máquinas carregadeira ou
por animais de tração. Para tal tarefa, o
trabalhador utiliza um longo cabo de madeira que serve como alavanca para levantar as canas, que se amontoam cada vez
mais a cada levantada. A atividade consiste em se agachar, colocar o cabo de
madeira embaixo do monte de canas, e
puxar o cabo para cima, de modo que o
monte de cana seja empurrado para baixo. À medida que o trabalhador segue
avançando morro abaixo, vai se formanquantidade de morros e serras. Durante a pesquisa de
campo, uma trabalhadora nos informou que todas as
fazendas da usina possuem criação de burros. Um morador de uma das fazendas da usina nos relatou que o
serviço do cambiteiro é desempenhado por alguns trabalhadores canavieiros específicos que são deslocados para
cambitagem quando existe necessidade desse serviço.
24
A referida pesquisa de campo ocorreu no dia 21 de janeiro de 2013, no âmbito da pesquisa “Novas configurações do trabalho nos canaviais. Um estudo comparativo
entre os estados de São Paulo e Alagoas”, mencionada
na nota 15 deste artigo.
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
portado para países de outros continentes, vira
álcool, que é vendido nos postos de combustível.
Além do trabalho de cambitagem – que é
requisitado em áreas de difícil acesso, onde nem a
máquina carregadeira de cana e nem o caminhão
A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...
to alto”.25 O risco de quedas era grande, não só
pela inclinação acentuada ao extremo, mas, também, devido aos trechos de erosões e cortes nos
morros. Em determinados casos, essas erosões
podem ultrapassar 4 metros de altura. Alguns
cortadores de cana nos falaram de amigos que já se
machucaram em quedas nesses paredões. Os canaviais se estendem até à beira dessas aberturas.
Nessas condições, é preciso ter muito equilíbrio e
perícia para manusear os facões. Além disso, não
basta ter esses requisitos, é preciso cortar no mínimo 5,2 toneladas para manter-se empregado nessa
usina. O calor era enlouquecedor, não havia uma
sombra. O ambiente era tão hostil que tornava extenuante até a simples tarefa de subir e descer o
morro acompanhando o trabalho alheio. A fuligem se misturava à poeira que se misturava ao suor.
Imagine para aqueles que estavam cortando cana!
Imagine para os que as embolavam!
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
À GUISA DE CONCLUSÃO
gem do desenvolvimento sustentável dessa produção, bem como a miséria do trabalho que se esconde atrás das cortinas desse palco. Vimos, também, que essa miséria se estende a outros países,
não sendo, portanto, uma exceção, porém, fazendo parte da lógica da acumulação por espoliação
do capitalismo contemporâneo.
As condições de trabalho nos canaviais não
podem ser simplesmente consideradas precárias,
o que seria eufemismo. Consideramos o trabalho
sem as máscaras “protetoras” do Estado brasileiro,
signatário das Convenções internacionais do chamado “trabalho decente”. Não adjetivamos esse
trabalho. Apenas revelamos as cruezas de sua essência. Esse trabalho nos canaviais das grotas,
morros e serras alagoanas e nos planaltos paulistas
nos remete ao mito de Sísifo, personagem que foi
condenado por Zeus a empurrar uma enorme pedra morro acima, porém, ao alcançar o topo, a pedra invariavelmente rolaria morro abaixo, fazendo
com que o esforço de Sísifo fosse sem fim. Tanto o
mito de Sísifo, quanto o labor nesses canaviais,
apontam quão degradantes são determinadas formas de trabalho. No entanto, existe uma grande
diferença entre ambos: enquanto o mito de Sísifo é
proclamado ao longo de muitos séculos como
exemplo de trabalho abominável, a imagem mascarada do labor nos canaviais brasileiros é mais
uma das falácias que compõe o mito do “desenvolvimento sustentável” do etanol. Resta-nos perguntar: “Desenvolvimento” de quê? “Sustentável”
para quem?
Buscamos, nesse texto, fazer vibrar uma voz
destoante da “ideologia do etanol”. Na introdução
de nosso argumento, remontamos à realidade brasileira do século XVI para mostrar as interfaces da
produção de açúcar, a escravização de africanos e
o desenvolvimento de uma cultura para o enriquecimento da metrópole. No desenrolar de nossas reflexões, procuramos mostrar que alguns elementos, tais como o incentivo do Estado na perpetuação de interesses do capital nacional e internacional, a superexploração da força de trabalho e
Recebido para publicação em 05 de abril de 2013
o discurso do desenvolvimento gerado pelo setor
Aceito em 11 de junho de 2013
persistem e marcam a história da produção
sucroalcooleira.
Trouxemos algumas reflexões sobre a (nova)
morfologia do trabalho nos canaviais paulistas e REFERÊNCIAS
alagoanos no contexto do processo de acumulação
do capital globalizado. Nosso intento foi no senti- ALVES, F. Migração de trabalhadores rurais do Maranhão
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Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa de Pósgraduação em Sociologia da Universidade Federal de São
Carlos, 2012.
XAVIER, C. V. et al. Monopólio na produção de etanol no
Brasil. A fusão Cosan-Shell. São Paulo: Editora Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2012.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
SILVA, M. A. M.; MARTINS, R. C. A degradação social do
trabalho e da natureza no contexto da monocultura
canavieira paulista. Revista Sociologia, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ano 12, n. 24,
p.196-241, maio/ago. 2010.
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Maria Aparecida de Moraes Silva, Lúcio
Vasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno
THE IMAGE OF ETHANOL AS
“SUSTAINABLE DEVELOPMENT” AND THE
(NEW) MORPHOLOGY OF LABOR
L’IMAGE DE L’ÉTHANOL EN TANT QUE
“DÉVELOPPEMENT DURABLE” ET LA
(NOUVELLE) MORPHOLOGIE DU TRAVAIL
Maria Aparecida de Moraes Silva
Lúcio Vasconcellos de Verçoza
Juliana Dourado Bueno
Maria Aparecida de Moraes Silva
Lúcio Vasconcellos de Verçoza
Juliana Dourado Bueno
The aim of this text is to analyze labor
relations and conditions in sugar cane fields which
have resulted from the labor reconfiguration process
as related to the current situation of intensified
mechanization of the sugar cane harvest. Due to
the rapid changes which have occurred in the
harvest, we feel that these labor relations must be
analyzed within the context of the “sustainable
development” image projected by sugar and ethanol
companies and by the Brazilian government.
Intensification of the exploitation of the work force in the setting of a (new) morphology combines
highly advanced technology with increasing underqualification of the labor force. These reflections
will aim to bring to the surface the social reality
hidden behind the ideology fabricated to sustain
this economic activity. We seek a critical analysis
of the developmentalist ideology inherent to this
type of production. The methodology employed
is based on oral history and direct observation in
the sugar cane fields of the states of São Paulo and
Alagoas.
Le but de ce texte est d’analyser les relations
et les conditions de travail dans les plantations de
canne à sucre, suite au processus de reconfiguration
du travail et au moment actuel, caractérisé par
l’intensification du processus de mécanisation de
la coupe de la canne à sucre. En raison de la rapidité
des changements dans le processus de ce travail, il
s’avère que ces relations de travail doivent être analysées
dans le contexte de l’image de “développement
durable” produite par les fabriques de sucre et d’alcool
et par l’Etat brésilien. L’intensification de l’exploitation
de la main d’œuvre dans le cadre d’une (nouvelle)
morphologie associe, d’une part, des technologies
de pointe et, d’autre part, l’augmentation d’un manque de qualification de la main d’œuvre. Les
réflexions faites essaient de mettre en lumière la
réalité sociale qui se cache derrière une idéologie
fabriquée pour soutenir cette activité économique.
On cherche à faire une analyse critique de l’idéologie
du développement liée à cette production. La
méthodologie utilisée se base sur la tradition orale
et l’observation directe dans les plantations de canne
à sucre des états de São Paulo et d’Alagoas.
Maria Aparecida de Moraes Silva – Doutora em Sociologia. Professora livre-docente aposentada da UNESP.
Professora visitante do Departamento de Sociologia da UFSCAR. Pesquisadora (1A) do CNPq. Autora, entre
outros, do livro Errantes do fim do século, publicado pela EDUNESP. As linhas de pesquisa se encaixam na
Sociologia Rural e na Sociologia do Trabalho Rural. Os temas versam sobre trabalho, memória, migração,
gênero e raça/etnia, referentes à realidade rural do estado de São Paulo e outras regiões do país.
Lúcio Vasconcellos de Verçoza – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de São Carlos. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Membro dos
Grupos de Pesquisa “Terra, Trabalho, Memória e Migração” e “Trabalho e Capitalismo Contemporâneo”. Em
sua dissertação de mestrado, analisou o processo de exploração-dominação do trabalho e as formas de
resistência construídas pelos trabalhadores nos canaviais de Alagoas. Publicou um capítulo no livro Trabalho
e Capitalismo Contemporâneo. Atualmente, se dedica ao estudo da relação entre trabalho e saúde no universo canavieiro.
Juliana Dourado Bueno – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos. Membro do Grupo de Pesquisa Terra, Trabalho, Memória e Migração, coordenado por
Maria Aparecida de Moraes Silva. Desde 2004, desenvolve pesquisa no interior do grupo na temática do
trabalho rural e relações de gênero. Em sua dissertação de Mestrado pesquisou as trajetórias laborais de
mulheres e homens empregados em um abatedouro de frangos no interior de São Paulo. Publicou um capítulo
no livro Questão Agrária e Saúde dos Trabalhadores: desafios para o século XXI. Atualmente, desenvolve
pesquisa sobre as experiências de trabalho no processo de produção de flores na região de Holambra (SP).
271
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 253-271, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Labor relations. Working conditions. MOTS-CLÉS: Relations de travail. Conditions de
travail. Capitalisme à la campagne. Canne à sucre.
Capitalism in the fields. Sugar cane.
A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO DO
MERCADO DO TRABALHO NO BRASIL
Paulo Eduardo de Andrade Baltar*
José Dari Krein**
DOSSIÊ
Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
INTRODUÇÃO
As discussões sobre mercado e relações de
trabalho no Brasil envolvem velhas e novas questões. As velhas questões referem-se à história do
trabalho no país, em que o processo de
assalariamento não constituiu um sistema universal de direitos. A proteção social tem sido uma
realidade apenas para segmentos da sociedade,
dado o excedente estrutural de força de trabalho, o
significativo número de trabalhadores sem registro em carteira profissional, o elevado contingente
de autônomos sem acesso à seguridade social e a
expressiva fração da população ativa trabalhando
sem remuneração em negócios de outros membros
da família. Ou seja, o mercado de trabalho assalariado é pouco estruturado e a proteção social ainda está em construção. As questões novas do debate sobre trabalho e proteção social decorrem da
* Doutor em Ciência Econômica. Professor Associado da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
Cidade Universitária Zeferino Vaz Barão Geraldo. Cep:
13083970 – Campinas – São Paulo – Brasil – Caixa-postal:
6135. [email protected]
** Doutor em Economia Social e do Trabalho. Professor da
Universidade Estadual de Campinas. [email protected]
forma como o Brasil se inseriu recentemente no
processo de globalização e internacionalização das
atividades produtivas e de como as mudanças
provocadas pela abertura econômica e financeira
redefiniram a agenda de discussão sobre mercado
e relações de trabalho.
O impacto inicial da abertura da economia
sobre o emprego foi muito forte. Devido à crise da
dívida externa na década de 1980, o consumo foi
contido, o investimento diminuiu, a importação
restringiu-se a um mínimo e o país ficou fora da
construção das cadeias internacionalizadas de produção de bens manufaturados. Ao abrir-se ao comércio e à finança internacional em um momento
de grande interesse por aplicações financeiras em
mercados emergentes, o desempenho da economia foi beneficiado, aumentando o consumo e diminuindo a inflação, com forte aumento de importações de bens manufaturados. A valorização
da moeda nacional ajudou a baixar a inflação, mas
acentuou os efeitos destrutivos da abertura sobre a
produção manufatureira doméstica, rompendo elos
das cadeias produtivas existentes, e o país continuou fora das principais cadeias internacionaliza-
273
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
O artigo estabelece uma relação entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo no Brasil e os
desafios para a discussão de uma regulação pública do trabalho. O debate no Brasil considera
os seguintes aspectos: 1) as mudanças no capitalismo contemporâneo vêm apresentando implicações desfavoráveis à regulação pública do trabalho e à ação coletiva dos trabalhadores; 2) a
retomada do crescimento da economia possibilitou redefinir os termos do debate do trabalho
no Brasil; 3) a crise atual coloca em discussão a possibilidade de o Estado ter um papel mais
ativo no desenvolvimento da economia; 4) as tendências demográficas vêm aumentando o peso
da PEA adulta, o que traz implicações para o funcionamento do mercado de trabalho. As
posições se localizam entre dois polos: 1) a defesa de uma estruturação do mercado de trabalho
com implicações na qualidade das relações sociais; 2) a afirmação dos negócios, que destaca a
necessidade de maior flexibilização na contratação, no uso e na remuneração do trabalho.
PALAVRAS CHAVES: Trabalho. Regulação. Economia e desenvolvimento. Flexibilização.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
das de bens manufaturados. As crises financeiras
dos mercados emergentes (México em 1994/1995,
países da Ásia em 1997, Rússia em 1998 e Brasil em
1999) agravaram a deterioração do mercado de trabalho, porque levaram o governo a estabelecer uma taxa
de juros elevada e a conter a atividade econômica.
O aumento do desemprego aberto, a redução do emprego formal, principalmente nas grandes empresas, a ampliação do número de assalariados sem carteira profissional, notadamente nas
empresas menores e no serviço doméstico remunerado, a elevação da participação das pessoas ativas no trabalho por conta própria e no trabalho
não remunerado, dominaram a agenda de debates
sobre mercado e relações de trabalho na década de
1990. A posição de resistir à inserção passiva na
globalização, com uma interferência estatal mais
firme na economia, para ter uma melhor evolução
do emprego e da renda do trabalho foi vencida
pela posição que enaltecia os efeitos de uma abertura brusca e indiscriminada para acirrar a competição e promover a eficiência no uso dos recursos
existentes. O predomínio dessa posição restringiu
a agenda de discussões sobre mercado e relações
de trabalho à questão da adaptação das normas e
instituições à abertura da economia, sob o argumento de que essas normas e instituições teriam
sido construídas para uma economia fechada e
estariam prejudicando a incorporação dos efeitos
virtuosos da abertura sobre a concorrência e um
melhor uso dos recursos.
A abertura comercial e financeira, entretanto, expôs o país às vicissitudes do sistema financeiro globalizado, marcadas pela instabilidade da
década de 1990, quando se incorporou os diversos mercados emergentes. A alternância de fortes
entradas e saídas de capital perturbou o funcionamento da economia brasileira, motivando intensas flutuações nas taxas de juros e de câmbio, agravando os efeitos da abertura sobre o emprego e a
renda do trabalho. Na visão predominante, porém,
o mau desempenho do emprego e da renda do
trabalho foi atribuído à inadequação das normas e
instituições que regem a contratação, o uso e a remuneração da força de trabalho, que não estariam
induzindo a um comportamento apropriado de
trabalhadores e empregadores, prejudicando os
efeitos da abertura e de maior eficiência no uso
dos recursos.
Os equívocos desta posição nos debates
sobre mercado e relações de trabalho no Brasil tornaram-se evidentes quando a situação internacional ficou mais favorável às exportações, a partir de
2003. O crescimento do PIB levou a um aumento
do emprego formal, diminuindo a participação na
absorção das pessoas ativas do emprego sem carteira profissional e dos trabalhos por conta própria e não remunerado. Neste quadro de melhora
do mercado de trabalho, a queda da inflação foi
acompanhada de um aumento do poder de compra da renda do trabalho. Tudo isso ocorreu sem
mudanças nas normas e instituições que regem a
contratação, o uso e a remuneração do trabalho.
Em um ambiente político mais favorável aos
trabalhadores, os efeitos positivos do desempenho
da economia sobre o emprego e a renda do trabalho foram ampliados pela valorização do salário
mínimo e pela implementação de um amplo conjunto de políticas sociais. Entretanto, as mudanças recentes na organização da produção, que tendem a uma maior desverticalização e flexibilidade,
colocam uma série de desafios novos a serem enfrentados pela regulação pública do trabalho. O
equacionamento adequado desses problemas foi
prejudicado pelos acontecimentos da década de
1990. O mau desempenho do mercado de trabalho e o quadro político existente enviesou a discussão sobre regulação do trabalho. A crise mundial recolocou a questão da necessidade de interferência estatal para construir uma economia mais
sólida e poder ter uma melhor evolução do emprego e da renda do trabalho.
A redefinição da agenda de debates sobre
mercado e relações de trabalho no Brasil é o objeto
deste artigo. O texto contém três partes, além da
introdução e das considerações finais. Na primeira
parte, é apresentado, brevemente, o padrão mais
regulado de relações de trabalho dos países desenvolvidos e as alterações que ocorreram no centro do
capitalismo, a partir da reorganização da economia
274
mundial após a crise da década de 1970. Este quadro de mudanças constituiu um ambiente desfavorável às ações coletivas dos trabalhadores, em
consequência da descentralização1 e flexibilização
das relações de trabalho. A segunda parte aborda
as mudanças na economia brasileira a partir da
inserção na globalização. Foi nesse contexto que a
agenda da descentralização e flexibilização das relações de trabalho foi introduzida no debate nacional. O quadro de crescente desemprego foi agravado pelo aumento da ilegalidade na contratação da
força de trabalho. Os termos do debate, então, foram marcados pelo mau desempenho do emprego
e da renda do trabalho. A posição que predominou privilegiou a questão das mudanças nas normas e instituições que regem a contratação, o uso e
a remuneração da força de trabalho. A terceira parte, finalmente, trata da redefinição dos termos desse debate com a volta do crescimento econômico e
melhora dos indicadores do mercado de trabalho.
As mudanças na organização da produção colocam
desafios para a regulação pública do trabalho, que
precisa ser capaz de fazer com que essas novas tendências não resultem em precarização das condições de emprego, permitindo dar continuidade à
melhoria dos indicadores do mercado de trabalho.
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: implicações desfavoráveis aos trabalhadores
As implicações desfavoráveis aos trabalhadores das mudanças observadas no capitalismo
desde meados da década de 1970 são ressaltadas
pelo contraste com o que se verificou nos países
desenvolvidos, especialmente da Europa, ao longo dos anos 1950 e 1960, quando ocorreu um círculo virtuoso de avanços na economia e no social.
Nesse círculo virtuoso de avanços econômicos e
sociais destacou-se a atuação de estados nacionais,
apoiando o desenvolvimento da produção de bens,
1
Descentralização das relações de trabalho em que a determinação das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho tende a ser realizada no âmbito das
empresas, em detrimento das negociações gerais por setor econômico.
a construção de grandes aparelhos de prestação
de serviços em áreas como educação, saúde e
seguridade social e a constituição de uma regulação
pública do trabalho2 (Oliveira, 1994).
O desenvolvimento de sistemas nacionais
de produção de bens, acarretando aumentos expressivos de produtividade, foi fundamental para
viabilizar a ampliação do consumo privado e público de bens e serviços. Nesse avanço dos sistemas nacionais de produção, o comércio com outros países desempenhou papel complementar,
acentuando os ganhos de produtividade e mantendo relativo equilíbrio nos aumentos de exportação e importação. Para esse desenvolvimento da
produção nacional com equilíbrio no comércio com
outros países foi importante a estabilidade, em nível adequado, das taxas de câmbio entre as moedas dos diferentes países (Belluzzo, 2004).
O desenvolvimento da produção de bens e
serviços ocorreu com crescente participação dos
serviços na absorção de força de trabalho e na apropriação da renda. A construção e utilização dos
grandes aparelhos de prestação de serviços sociais
(educação, saúde e seguridade social) foram fundamentais para a existência de baixas taxas de desemprego da população ativa nos anos 1950 e 1960
(Gimenez, 2003).
O crescimento do PIB – bem acima do crescimento do emprego – e a ampliação da carga tributária fizeram o aumento da arrecadação dos impostos acompanhar as despesas do Estado, evitando déficit fiscal e aumento da dívida pública.
Além da ampliação do consumo público de
bens e serviços, houve aumento do consumo privado. A segurança proporcionada pelo acesso aos
serviços públicos, pelo pleno emprego e pelos
aumentos no poder de compra da renda do trabalho, apoiado pela regulação pública do trabalho,
levaram as famílias a antecipar as compras de bens
2
Por regulação pública do trabalho compreende-se que a
determinação das regras e normas que regem a relação de
emprego é realizada pelo Estado e/ou pela negociação
coletiva entre os agentes sindicais de trabalhadores e
empregadores. Em contraposição, há a regulação privada, em que a determinação realiza-se pelo mercado ou
pelo poder discricionário do empregador (Krein, 2007;
Dedecca, 1999).
275
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
de consumo, através do endividamento. O baixo
nível das taxas de juros e o aumento de renda no
ciclo de vida das pessoas facilitaram a ampliação
do grau de endividamento das famílias e a manutenção de baixos níveis de inadimplência. A
regulação pública do sistema financeiro, procurando preservar baixas taxas de juros, foi fundamental para que os financiamentos, não somente do
consumo, mas também da produção e do investimento, ocorressem em moedas nacionais e com
prazos e taxas adequadas.
A atuação dos Estados nacionais foi, então,
fundamental para o círculo virtuoso de avanços
sociais na Europa, depois da Segunda Guerra
Mundial. A ordem econômica, constituída depois
de Bretton Woods e em meio à guerra fria, permitiu
expressivo grau de autonomia de ação aos Estados
Nacionais. Na Europa, essa capacidade de ação
autônoma do Estado Nacional se materializou positivamente para o avanço econômico e social constatado, porque coalizões políticas domésticas respaldaram aquela atuação, mesmo quando se sucederam governos articulados por diferentes forças
políticas (Belluzzo, 2004).
Uma vez completadas as construções dos
sistemas nacionais de produção e dos aparelhos
de prestação de serviços sociais, os ritmos do investimento e do crescimento do PIB tenderam a
diminuir, problematizando a continuidade do círculo virtuoso do pós-guerra. Na culminação dessa
onda de crescimento e antes do seu arrefecimento,
os protestos sociais, do final da década de 1960,
evidenciaram a insatisfação, principalmente, de
uma juventude bem mais educada do que a geração anterior, com os valores e padrões de comportamento que se consolidaram em uma sociedade
de massa mais regulada e burocratizada. Simultaneamente, houve uma deterioração nas relações
entre estados nacionais que levou a uma ruptura
da ordem internacional construída a partir de
Bretton Woods.
A desaceleração do PIB em meio à crescente
desordem internacional, acompanhada do aumento
de preços das commodities – destacando-se a
quadruplicação do preço do petróleo –, levou ao
aumento do desemprego e da inflação, minando,
na década de 1970, a base das coalizões políticas
que sustentaram a ação dos Estados Nacionais nas
décadas anteriores. A desordem internacional abalou a hegemonia americana no concerto das nações ocidentais. A maneira como os Estados Unidos reagiram ao enfraquecimento de sua hegemonia,
no final dos anos 1970, impulsionou a globalização
financeira e internacionalização da produção, em
meio a importantes avanços técnicos e mudanças
na organização da produção de bens e prestação
de serviços (Belluzzo, 2004).
A nova ordem internacional, que resultou da
reafirmação da hegemonia dos Estados Unidos através da globalização financeira e internacionalização
do sistema de produção, reduziu para a maioria
dos países o grau de autonomia de ação dos Estados Nacionais. Em particular, a facilidade de deslocamento entre países de fundos aplicados no
mercado financeiro instabilizou as taxas de câmbio das moedas dos países, e o comércio entre
nações tornou-se desequilibrado e deixou de ser
mero complemento do desenvolvimento de sistemas nacionais de produção.
O déficit de comércio dos Estados Unidos
impulsionou a internacionalização da produção de
bens manufaturados, especialmente o desenvolvimento da produção asiática, inicialmente no Japão
e, posteriormente, na Coréia do Sul, Taiwan, na
China e em outros países. A Ásia tornou-se o grande fornecedor mundial de produtos manufaturados, contribuindo para a redução de seus preços
relativos e ajudando a manter baixa a inflação.
Em outros países, que não os asiáticos e
seus fornecedores de matéria prima, o PIB passou
a crescer de forma mais lenta e a carga tributária
deixou de aumentar. A arrecadação de impostos,
então, reduziu o ritmo de ampliação. As despesas
do Estado continuaram aumentando em ritmo forte com a ampliação e diversificação das demandas
por serviços sociais, através das alterações na composição etária da população, das mudanças na estrutura familiar devido à crescente participação feminina no mercado de trabalho, do aumento do
desemprego, da diminuição do nível e ampliação
276
da dispersão dos salários e da proliferação de reivindicações vindas de novos movimentos sociais.
Os recursos públicos se mostram insuficientes para
atender às demandas e cresceram os déficits fiscais.
A dívida pública aumentou e as despesas financeiras dos Estados agravaram o déficit do fisco.
Os problemas de financiamento do Estado
foram, inicialmente, contornados pelo crescimento dos mercados financeiros com a globalização.
Nesse contexto, a inflação diminuiu e o crescimento do PIB mostrou-se muito irregular e com tendência a ser relativamente pouco intenso. A taxa
de desemprego continuou elevada e aumentou a
fração de ocupações não submetidas à regulação
pública do trabalho. Esta, por sua vez, tendeu a
descentralizar, voltando-se para questões mais
pontuais ao nível da relação de emprego, notando-se uma diferenciação de condições de trabalho
e de remuneração dos trabalhadores (Mattos, 2009).
As mudanças na absorção da população ativa e na regulação do trabalho são manifestações de
um contexto econômico de maior instabilidade,
menor crescimento e ampliação da exposição à
concorrência internacional. Nestas condições, os
empregadores passaram a reivindicar maior liberdade de ação, o que facilitou a prevalência das teses neoliberais e sua difusão na sociedade e no
aparelho do Estado.
A demanda pela liberdade do capital para
determinar as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho ocorreu em simultâneo a
uma desverticalização da produção de bens e serviços, em um quadro de intenso avanço das
tecnologias de informação e comunicação. A
financeirização da economia obrigou a racionalizar
a produção, visando aumentar a rentabilidade do
capital aplicado, mantendo somente os ativos estratégicos para o desenvolvimento da empresa e
recorrendo mais intensamente a serviços de terceiros (Braga, 2009).
No contexto dessa reorganização econômica e em um quadro político desfavorável aos trabalhadores organizados, ocorreram transformações na
regulação do trabalho, reforçando a tendência de
flexibilização e de descentralização das condições
de contratação, uso e remuneração do trabalho. O
capitalismo globalizado é mais instável e acirra a competição. A empresa reclama por maior liberdade de
ação para poder competir, exigindo mais e comprometendo-se menos com o bem estar de seus empregados (Sennett, 1999; Uriarte, 2000; Krein, 2007).
A demanda empresarial por liberdade de
ação ocorreu em um contexto de desverticalização
da produção. Paradoxalmente, com a globalização
financeira e a internacionalização da produção, fusões e aquisições de empresas levaram a uma
estruturação mundial da competição, com estratégias que consideram o conjunto de mercados nacionais e não mais cada um deles separadamente. Cada
unidade da empresa, entretanto, mantém somente
os ativos estratégicos para o seu desempenho e recorre a serviços de terceiros. A busca da flexibilidade e a descentralização dificultaram ações coletivas
mais amplas dos trabalhadores e corroeram as bases da regulação pública do trabalho, que se consolidaram no pós-guerra nos países desenvolvidos.
Esses efeitos da reorganização da economia
afetaram os empregados permanentes e temporários. Quanto aos permanentes, os empregadores
buscaram a flexibilidade funcional, ampliando sua
liberdade para determinar os elementos centrais
da relação de emprego, tais como a alocação de
tarefas, a jornada e a remuneração do trabalho.
A liberdade para alocar a força de trabalho
refere-se à determinação, sem amarras, das funções
a serem exercidas pelos empregados, exigindo mais
polivalência. A tendência é exigir multifuncionalidade dos empregados permanentes, controlando
suas atividades por meio de metas e projetos, definidos pela empresa, debilitando a relação entre
profissão, tarefas a realizar e remuneração, marcadas
no passado por negociação coletiva mais ampla de
contratos de trabalho, frequentemente envolvendo a interferência do Estado.
A remuneração do trabalho tendeu a ser mais
variável, ficando cada vez mais vinculada ao desempenho do trabalhador, individualmente ou em
pequenos grupos na empresa. Programas de participação nos lucros e/ou resultados e remuneração
por comissão passaram a ser uma prática corrente
277
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
nos segmentos empresariais mais dinâmicos. Com
isso, esvaziou-se a determinação da remuneração por
negociação coletiva mais ampla (Freyninnet, 2006).
A regulação do tempo de trabalho também
tendeu a ficar mais flexível e adaptada às peculiaridades da empresa, com a modulação da jornada
e o descanso não coincidindo, necessariamente,
com os fins de semana. A tendência tem sido afastar-se da jornada padrão de 8 horas por dia e 5
dias por semana, que contribuiu para estruturar
as políticas públicas e a vida das pessoas em sociedade. Atualmente, prevalece o interesse das empresas, que ajustam a jornada de acordo com suas
necessidades. O tempo de trabalho não se separa
mais tão claramente do tempo livre das pessoas e
os trabalhadores tendem a ficar mais conectados
ao trabalho, mesmo fora dele (Dedecca, 1999).
A flexibilidade funcional dos empregados
permanentes diz respeito ao núcleo estratégico da
empresa. A empresa exige o envolvimento desses
empregados na vida da organização, aumentando
o desgaste emocional decorrente da pressão por
resultados, em uma situação econômica marcada
pela instabilidade e acirramento da competição
entre empresas. As consequências referem-se tanto à insegurança quanto ao futuro profissional como
à proliferação de novas doenças profissionais
(Barreto, 2003).
Para a maior parte dos empregados, entretanto, prevalece a flexibilidade quantitativa, em que
a empresa contrata para a prestação de serviços específicos e o contrato dura tanto quanto a necessidade desses serviços. A variedade de situações tem
levado a uma ampla diversidade de contratos (a termo, part time, temporário, subcontratados, especial para segmentos da força de trabalho, etc.), aumentando, expressivamente, a heterogeneidade dos
assalariados. Essa heterogeneidade é alavancada
pelo avanço da subcontratação e crescente uso de
terceiros. Freyssinnet (2006) mostrou como essas
novas modalidades de contratação proliferam na
Europa desde os anos 1980. Assim, a flexibilização
quantitativa proporciona graus adicionais de liberdade às empresas, ao facilitarem o ajustamento do
“volume do pessoal empregado às flutuações da
demanda por seus produtos”. A pressão da concorrência por maior racionalização da produção
leva, simultaneamente, a ampliar a flexibilidade
funcional dos empregados permanentes e a flexibilidade quantitativa dos empregados temporários. Nos dois casos, aumenta-se a intensificação
do trabalho, acentuando a redução do custo da
produção (Leal Filho, 1994, p.39). A flexibilidade
quantitativa é ainda mais importante em setores
de atividade com expressiva sazonalidade. Em
todo caso, a atividade das empresas tende a ser
mais instável, em decorrência da maior instabilidade da demanda dos produtos e do próprio acirramento da competição entre empresas. O elevado
desemprego no quadro político hegemônico desfavorável aos trabalhadores organizados tem
diversas implicações: 1) aumenta a pressão das
empresas sobre os empregados permanentes para
que obtenha melhores resultados; 2) amplia a fração de postos de trabalho correspondentes a empregos temporários; 3) incrementa as diferenças
entre os empregados permanentes e temporários.
Esta segmentação da classe trabalhadora atinge mais
contundentemente os jovens e as mulheres.
A desverticalização da produção e a
flexibilização do trabalho foram acompanhadas de
outros dois fenômenos com efeitos desfavoráveis
à situação dos trabalhadores. De um lado, a ampliação e diversificação das demandas de proteção
social não foram acompanhadas pela elevação dos
recursos necessários para o atendimento dessas
demandas. Uma parte dessas demandas foi canalizada para o sistema privado de proteção social,
que se desenvolveu como desdobramento do sistema financeiro (por exemplo, os planos de saúde
e fundos de pensão). De outro lado, os sindicatos
tiveram dificuldade para encaminhar soluções aos
novos problemas trabalhistas, notando-se uma redução do poder de barganha dos sindicatos na
maioria dos países (Baglioni, 1994). No pós-guerra, a contratação coletiva do trabalho foi parte de
um processo virtuoso de estruturação mais ampla
da sociedade, contribuindo para evitar que a
heterogeneidade dos empregos gerados se refletisse em amplas diferenças de renda do trabalho e
278
estilos de vida dos trabalhadores.
As leis do trabalho, o sistema de proteção
social e os sindicatos interagiram positivamente
no pós-guerra, ajudando a dar legitimidade à atuação do poder público a favor do desenvolvimento
do sistema nacional de produção de bens e serviços. Esta construção política da regulação pública
do trabalho fez com que a compra e venda da força
de trabalho fosse bastante diferente de uma bolsa
de mercadoria.3 Oliveira (1994) acrescenta que a
regulação pública das relações de trabalho e a elevação do padrão de vida dos assalariados são testemunho de que foi possível encaminhar, positivamente, a luta de classe, compatibilizando o lucro das empresas com a melhora de condições de
vida dos trabalhadores.
A desregulação da economia, o acirramento
da concorrência e a hegemonia política neoliberal
colocaram a agenda de flexibilização do trabalho
invertendo a lógica de regulação pública anteriormente prevalecente nos campos econômico, político e trabalhista. De fato, os anos 1980 representaram uma ruptura da regulação social do mercado e
das relações de trabalho, procurando restabelecer
o livre arbítrio dos empregadores na contratação e
na determinação das regras de uso e remuneração
da mão-de-obra (Krein, 2007; Dedecca, 1999).
A flexibilização do trabalho não somente colocou em xeque o padrão de relações de trabalho
construído no pós-guerra, mas descortinou uma
perspectiva de fortalecimento da lógica de mercado
na contratação de força de trabalho, que tem se tornado mais parecida a uma bolsa de mercadoria.4
trabalhadores trazidos com as mudanças na organização da produção, promovidas pelo acirramento da competição, levando à internacionalização
de importantes cadeias produtivas. As vendas dos
produtos finais dessas cadeias internacionalizadas
foram as que apresentaram maior ritmo de crescimento no capitalismo contemporâneo, sendo expressão do avanço técnico que permitiu a criação
de uma série de novos produtos. A crise da dívida
externa e o modo como ela foi enfrentada paralisou
a acumulação de capital no país, que ficou defasado diante das grandes mudanças ocorridas na organização de bens, ao longo da década de 1980.
A internacionalização dessas importantes
cadeias de produção de bens fez com que o desempenho das economias nacionais, abertas ao
comércio e às finanças entre países, dependesse
muito da evolução de suas exportações, mesmo
quando estas são relativamente pequenas em comparação com o consumo e o investimento. Para usufruir, plenamente, da redução de custo que a
internacionalização da produção de bens trouxe, é
necessário que o país tenha capacidade para ampliar as suas exportações, de modo a manter sólido o
balanço de pagamentos. O contexto pós-abertura,
em que a ampliação do consumo e do investimento
continuam sendo os principais determinantes de
crescimento do PIB, acarreta forte aumento da importação. Além disso, o financiamento internacional da economia implica expressivos déficits na
conta renda financeira do balanço de pagamentos
(Baltar, 2003).
A entrada na globalização, de modo a favorecer o país, exigia a promoção do desenvolvimento
de seu sistema de produção de bens, que tinha
INSERÇÃO BRASILEIRA NA GLOBALIZAÇÃO ficado defasado na década de 1980, de modo a
garantir as possibilidades de ampliação da exporA maneira como o Brasil se inseriu na tação e de competição com a importação, para que
globalização agravou os efeitos desfavoráveis aos esta última não aumentasse desproporcionalmente,
fazendo com que um expressivo crescimento do
3
Nas palavras de Esping-Andersen (Hyman, 2005), hou- PIB pudesse ocorrer com um balanço de pagamenve uma “desmercantilização“ da força de trabalho.
4
A visão de que a humanidade estava caminhando para to sólido. Isto não foi feito. As cadeias internaciom processo de “desmercadorização” da força de traba- nais de produção de bens foram estruturadas por
lho, na expressão de Esping-Andersen (1990), perdeu
sentido, pois tem havido uma fragilização do sistema de grandes empresas transnacionais. A liberalização
proteção social e da contratação coletiva do trabalho
da importação no Brasil foi indiscriminada e sem
(Hyman, 2005).
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
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A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
exigir dessas grandes empresas contrapartida na
exportação de produtos manufaturados pelo país.
Além disso, a entrada de capital não foi controlada e permitiu-se a valorização da moeda nacional,
que dificultou, ainda mais, o desenvolvimento da
produção e a capacidade de exportação e de competição com a importação (Santos, 2013).
Na realidade, a entrada na globalização foi
precipitada e passiva, porque foi usada para reduzir a inflação, que tinha ficado muito alta com a
crise da dívida externa e o modo como ela foi enfrentada. A ilimitada importação barata de produtos manufaturados, coberta pela entrada de capital, ajudou a baixar a inflação, mas agravou os efeitos da falta de ação do poder público para desenvolver o sistema de produção de bens de modo a
ampliar a exportação e evitar o aumento desproporcional da importação.
Além disso, o país ficou muito exposto à
instabilidade do sistema financeiro internacional.
A crise do México, logo depois da implantação do
Real, ameaçou a eficácia do plano de estabilização,
que dependia da preservação do nível da taxa nominal de câmbio. Para evitar o aumento da taxa de
câmbio, com a fuga de capital, o governo aumentou a taxa de juros, prejudicando todos que usavam o crédito em moeda nacional, particularmente o próprio governo, que precisa administrar o
refinanciamento da dívida pública. Imobilizado
pelo ônus do refinanciamento da dívida pública
com altas taxas de juros e sem mais contar com as
empresas estatais que foram privatizadas, o Estado brasileiro perdeu grande parte de sua capacidade para coordenar a realização dos investimentos
públicos e privados necessários para ampliar a
infraestrutura e desenvolver o sistema produtor
de bens e para viabilizar o crescimento continuado da economia. O PIB cresceu lentamente, a taxa
de investimento pouco aumentou e houve déficit
no comércio com outros países, agravando o déficit de conta corrente do balanço de pagamentos,
associado, basicamente, às contas de serviços e
especialmente dos serviços financeiros.
A produção industrial foi especialmente
prejudicada e sua interrelação com a prestação de
serviços é fundamental para a geração de empregos de melhor qualificação e renda. A escassa criação desses empregos foi um aspecto importante
do agravamento das consequências deletérias gerais das novas formas de organização da produção
sobre os trabalhadores. As novas formas de organização da produção dificultaram a construção de
empregos de nível de renda intermediário e também fizeram proliferar os empregos de baixo nível
de renda. Já os efeitos da maneira como o Brasil
entrou na globalização limitaram, também, o
surgimento de empregos de alta renda (Quadros,
2008; Baltar, 2003).
As repercussões negativas da inserção do
Brasil na globalização sobre os trabalhadores aparecem na condição de atividade da população, na
posição das pessoas na ocupação e no tipo dessas
ocupações. (Baltar et al, 2010) O crescimento da
população economicamente ativa (PEA) continuou
muito intenso ao longo da década de 1990. A crescente participação das mulheres adultas na atividade econômica foi a principal responsável pela
continuidade desse crescimento da População Economicamente Ativa – PEA, pois o declínio do crescimento demográfico, que vem ocorrendo desde o
final da década de 1960, já estava começando a reduzir o contingente de população que alcança a idade ativa. A economia brasileira não gerou oportunidades para ocupar essa crescente população ativa e
a taxa de desemprego, no final da década, ficou mais
do que o dobro da que prevaleceu no final da década anterior (Pochmann, 2001; Santos, 2013).
O emprego na agropecuária diminuiu ao
longo da década de 1990 apesar da expressiva
ampliação da produção. A elevação da produtividade e as mudanças na composição da produção
por tipo de bens agrícolas explicam essa redução
na geração de oportunidades de emprego neste setor
de atividade. No conjunto das demais atividades
da economia, a ocupação de pessoas aumentou,
porém em ritmo bem menor do que no passado,
menor, inclusive, do que a década de 1980, quando a crise da dívida paralisou a economia brasileira. A produção dessas atividades não-agrícolas
continuou com um medíocre crescimento e os se-
280
tores com produtos suscetíveis de comércio com
outros países, seja exportação ou importação, perderam a capacidade de geração de emprego e renda, em consequência da globalização. Foi notável a
redução do emprego nas grandes empresas, especialmente as da indústria de transformação, construção civil, serviços de utilidade pública, finanças e transporte. Nem toda a redução do emprego
nas grandes empresas foi eliminação pura e simples de postos de trabalho. Foi intensa a contratação
de serviços de terceiros, que deslocou emprego das
grandes empresas para as menores, além de provocar a ampliação do trabalho por conta própria. O
crescimento do emprego continuou expressivo no
comércio, em serviços de apoio às empresas e nas
atividades sociais do tipo educação, saúde, previdência e assistência social (Baltar, 2003).
O crescimento do emprego em estabelecimento econômico, entretanto, foi muito pequeno,
proporcionalmente bem menor do que a ampliação do emprego no serviço doméstico remunerado
e no trabalho por conta própria. Além disso, o
número de empregadores também aumentou muito com a proliferação de pequenas empresas. Essas mudanças na composição das oportunidades
para ocupar a PEA em atividades não-agrícolas
foram acompanhadas de forte redução na proporção dos empregos formalizados em conformidade
com a legislação trabalhista (Baltar, 2003).
A proliferação de empregos que desrespeitam as leis do trabalho foi uma manifestação peculiar dos anos 1990, evidenciando os efeitos deletérios sobre os trabalhadores da inserção brasileira
na globalização e teve a ver com um relaxamento
na imposição dessas leis, por um governo que estimulou a iniciativa privada, diante de um quadro
de forte estreitamento do mercado de trabalho e
com uma PEA que continuou aumentando fortemente (Baltar, 2003).
No sistema brasileiro de relações de trabalho, as leis são muito importantes na definição das
regras e normas que estabelecem a relação de emprego e proteção social. A legislação é detalhada,
mas o empregador tem muita liberdade para dispensar força de trabalho e, no caso dos empregos
onde é elevada a rotatividade, os salários podem
ser alterados em função das empresas, sem desrespeitar a legislação. Nesses empregos de alta
rotatividade não se acumula tempo de serviço e,
portanto, o montante da indenização ao dispensado é relativamente pequena.
Não obstante, a proliferação de pequenos
negócios na década de 1990 foi acompanhada de
crescente ilegalidade, com ausência do registro da
empresa no CNPJ e o não cumprimento das leis
do trabalho e da previdência social. A ilegalidade
prejudicou os trabalhadores e a arrecadação de
impostos e contribuições sociais, mas a reação do
poder público não foi impor a lei, mas criar um
sistema (SIMPLES) que não somente simplificou,
mas também diminuiu os encargos trabalhistas das
micro e pequenas empresas (MPE). Os efeitos desse sistema na formalização das MPE e de seus contratos de trabalho aumentou somente depois que o
governo de orientação neoliberal teve que reforçar a
arrecadação de impostos e contribuições sociais,
quando foi obrigado a obter superávit de arrecadação em relação às suas despesas não financeiras,
para absolver no orçamento uma parte importante
dos juros pagos pela crescente dívida pública.
Ocorreram, nos anos 1990, diversas iniciativas governamentais para promover alterações
pontuais nas leis do trabalho e da previdência social. Essas mudanças pontuais proporcionaram
ainda mais liberdade de ação aos empregadores na
contratação e na definição da jornada e da remuneração. Ampliaram-se as possibilidades do contrato temporário, para além das excepcionalidades
previstas na legislação anterior, criou-se o contrato
por tempo determinado, antes proibido pela legislação e facilitou-se a contratação como pessoa jurídica (PJ) – que não contrata nenhum empregado , além de facilitar a existência de cooperativas de
mão-de-obra. Quanto à jornada de trabalho, permitiu-se o trabalho aos domingos no comércio e
instituiu-se o banco de horas para facilitar a modulação da jornada trabalhada, evitando o pagamento de adicional por horas extras. Finalmente,
quanto à remuneração, proibiu-se a indexação dos
salários e facilitou-se o uso da remuneração variá-
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
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A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
vel, que não é considerada salário, e, portanto, varia
mais facilmente e nela não incidem os encargos
trabalhistas. Além dessas mudanças pontais na
legislação, tentou-se, sem êxito, alterar o conjunto
da legislação trabalhista ao estabelecer que o negociado pelas partes prevalecesse sobre o determinado pela legislação (Krein, 2007).
Num quadro de desemprego e ilegalidade
das relações de trabalho e com uma posição do
governo relutante na imposição da lei e promovendo alterações visando a dar maior liberdade de
ação aos empregadores, observou-se uma tendência da negociação coletiva se descentralizar, predominando acordos por empresas em relação à convenção coletiva. Nesses acordos por empresa, tendeu a prevalecer uma estratégia defensiva de fazer
concessões, procurando preservar os empregos
existentes ou buscando compensar a dificuldade
da negociação salarial na convenção por acordos
de participação nos lucros e resultados.
O quadro se modificou e ficou mais desfavorável aos trabalhadores quando, depois da crise
da Ásia e da Rússia, o Real se desvalorizou no
início de 1999, gerando como consequência o aumento da inflação e a diminuição do poder de compra dos salários. A fuga de capital, provocada pela
repercussão no mercado financeiro internacional
das crises dos mercados emergentes, paralisou o
crescimento do PIB e aumentou o desemprego. Sem
crescimento do PIB, com aumento do desemprego
e da inflação, os reajustes da grande maioria das
categorias profissionais não conseguiram impedir
a queda no poder de compra dos salários. O governo, entretanto, aumentou o valor do salário
mínimo acima da inflação, de modo que a queda
da renda do trabalho, ocorrida entre 1999 e 2004,
foi acompanhada pela redução nas diferenças de
renda entre os trabalhadores.
O aumento do poder de compra das remunerações mais baixas já vinha ocorrendo desde
meados da década de 1990, acompanhando a elevação do valor do salário mínimo e o aumento da
idade das pessoas nessas ocupações de baixa remuneração. Apenas em categorias ocupacionais de
renda muito baixa como o emprego agrícola sem
carteira, o trabalho familiar na prestação de serviços para as indústrias de calçados e confecções no
nordeste e empregos domésticos de pessoas muito jovens sem carteira de trabalho não foram beneficiados pelo aumento no valor do salário mínimo, que aconteceu desde 1995 e que se encontrava em um nível muito baixo.
Na década de 1990, entretanto, a posição
predominante no debate sobre o trabalho no Brasil deu como dado a continuação do lento crescimento da economia e centrou a discussão na necessidade de redefinir as regras e normas que regem a relação de emprego para dar liberdade de
ação às empresas (Krein, Santos e Nunes, 2011).
Os aumentos do desemprego e da ilegalidade dos
contratos de trabalho evidenciaram a deterioração
do mercado de trabalho. Para aqueles que opinam
não haver alternativa a uma inserção passiva na
globalização, duas posições diferentes sobressaíram quanto à agenda de problemas a ser enfrentada na área trabalhista. Uma dessas posições
(Pastore, 1995; Zylbertjan, 1988) destacou a necessidade de acabar com a rigidez provocada pelas
regras que regulam a relação de emprego, que, no
Brasil, são fortemente marcadas por um arcabouço
legal muito detalhado, que estabelece direitos e
obrigações, deixando pouco espaço de adaptação
em negociação direta das partes da relação de emprego. Ou seja, conforme essa posição, as leis teriam que ser modificadas para permitir maior flexibilidade na contratação, uso e remuneração do trabalho. Empresas e empregados teriam mais liberdade para se adaptar à realidade da economia
globalizada e de produção internacionalizada. A
empresa pagaria estritamente pelas horas trabalhadas e não teria tantos encargos associados à
contratação de mão-de-obra e o salário pela hora
trabalhada seria negociado diretamente pelas partes
em função das circunstâncias enfrentadas pela empresa, levando em conta as dificuldades de recrutamento e de adaptação dos trabalhadores aos postos
de trabalho. Nessa perspectiva, portanto, a agenda
é a de desconstrução das leis do trabalho, deixando
para as partes a negociação dos contratos, sem previsão dos mecanismos que viabilizassem uma
282
Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
põem a competitividade do empregador.
As duas posições mencionadas destacam
as virtudes da abertura, no sentido de promover a
iniciativa privada e a competição, e, se levaram a
resultados negativos de emprego e renda, foi porque o ambiente legal e institucional não se mostrou adequado para uma resposta positiva de empresas e empregados aos estímulos do acirramento da competição. O debate, então, deveria se
centrar na necessidade de modificar o arcabouço
legal e institucional. Uma terceira posição (Cardoso, 1999), menosprezada ao longo da década de
1990, destacou a própria maneira como se fez a
abertura da economia na globalização financeira e
internacionalização da produção e não os
condicionantes legais institucionais do comportamento de empregadores e empregados na
contratação, uso e remuneração do trabalho. As
mudanças na organização da produção, com lento
crescimento do PIB, aumentaram o desemprego e
a ilegalidade dos contratos de trabalho e as alterações pontuais no arcabouço legal institucional apenas agravaram a precariedade do trabalho (Krein,
Santos e Nunes, 2011).
A REDEFINIÇÃO DOS TERMOS DO DEBATE
SOBRE TRABALHO NO BRASIL COM A
RETOMADA DO CRESCIMENTO ECONÔMICO
EM 2004
A maneira como o Brasil fez a abertura deixou a economia extremamente dependente da situação internacional em termos de finanças e comércio. Assim, as crises da Ásia e da Rússia em
1997 e 1998 provocaram fuga de capital, deteriorando ainda mais a situação do mercado de trabalho como mostra a elevação da taxa de desemprego e a queda expressiva do poder de compra da
renda do trabalho entre 1998 e 2003. O desemprego aumentou com a queda na taxa de crescimento
do PIB. A combinação de aumentos do desemprego e da inflação provocou uma diminuição substantiva do poder de compra da renda do trabalho
(Baltar et al, 2008).
283
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
contratação coletiva, mesmo que estritamente ao
nível do local de trabalho.
A outra posição (Camargo; Amadeo, 1996),
que também valoriza o efeito da abertura da economia, no sentido de liberar a iniciativa privada e
intensificar a competição, achando inconveniente
uma interferência pública para melhorar o desempenho da economia e geração de emprego e renda,
destaca, na raiz do aumento do desemprego e da
ilegalidade dos contratos de trabalho, problemas
de adaptação das empresas ao acirramento da competição, que não estaria induzindo comportamentos adequados de patrões e empregados na direção de um maior compromisso no local de trabalho, que favoreceriam o aumento da produtividade e da competitividade. Esta posição tem uma
opinião diferente sobre o arcabouço legal
determinante das normas de contratação, uso e
remuneração do trabalho. A lei não impediria a
liberdade de ação da empresa, mas aspectos importantes do arcabouço legal tendem a induzir comportamentos inadequados de trabalhadores e empregadores, prejudicando aquele compromisso favorável à produtividade e à competitividade. Assim, por exemplo, FGTS e seguro-desemprego generoso e com base em impostos estimulam comportamentos oportunistas de trabalhadores e empregadores, contribuindo para a existência de um
regime de trabalho em que se evita o ônus de uma
seleção mais criteriosa na contratação à custa da
duração dos vínculos de emprego, em prejuízo da
adaptação dos trabalhadores às características dos
postos de trabalho e ao desenvolvimento de compromissos favoráveis à produtividade. A lei pressupõe que os contratos de trabalho têm duração
indefinida e impõe penalidades e indenizações
pela ruptura dos contratos, mas a reclamação dos
direitos na Justiça do Trabalho pressupõe o desligamento dos empregados e a morosidade da Justiça termina estimulando acordos entre as partes que
negociam o montante das indenizações. O próprio
sindicato, mantido com recursos decorrentes de
impostos e contribuições obrigatórias, não é induzido a buscar uma verdadeira representação dos
empregados, cujo emprego e remuneração pressu-
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
A situação se reverteu completamente com
os efeitos sobre a economia brasileira do crescimento da demanda e aumento dos preços internacionais das commodities, a partir de 2003. O crescimento do PIB ficou mais forte, a inflação diminuiu, cresceu muito o emprego formal e recuperou-se o poder de compra da renda do trabalho.
Fortes aumentos do valor do salário mínimo e reajustes das categorias profissionais maiores do que
a inflação fizeram com que a elevação do poder de
compra da renda do trabalho acontecesse com diminuição das diferenças entre trabalhadores. Foi a
primeira vez, desde 1960, que um aumento substantivo da renda do trabalho ocorreu com diminuição do índice de GINI. O crescimento do PIB, a
diminuição do desemprego, o aumento do poder
de compra da renda do trabalho e a queda da inflação, e tudo isso ocorrendo com ampliação das reservas internacionais em relação à dívida externa
do país, criaram um clima na economia brasileira
em que as famílias passaram a se endividar para
ampliar o consumo, apesar das elevadas taxas de
juros, e os bancos atenderam a essa maior demanda de crédito. O intenso crescimento do consumo
foi fundamental para o bom desempenho da economia brasileira e a melhora dos indicadores do
mercado de trabalho desde 2004 (Baltar et al, 2008).
Esse quadro de crescimento da economia e
de melhora dos indicadores do mercado de trabalho redefiniu os temas da agenda de debates na
área trabalhista. A melhora nas condições de funcionamento da economia brasileira, permitida pela
expansão das exportações, viabilizou a simultaneidade de intensos aumentos de emprego e de salários com redução da inflação, contrariando opiniões pessimistas que costumam relacionar, inversamente, os níveis de emprego e salário, e, diretamente, o aumento dos salários e inflação. Essa simultaneidade de indicadores positivos da produção, do emprego, do salário e dos preços ocorreu
sem qualquer alteração mais substantiva do
arcabouço legal institucional que determina as condições de uso, contratação e remuneração do trabalho, mostrando a precipitação das conclusões
das duas vertentes predominantes do debate da
área trabalhista nos anos 1990, que minimizaram
o papel de tentar influir nas condições de funcionamento da economia, destacando, exclusivamente, as alterações no arcabouço legal institucional
da regulação pública do trabalho, adequando-o,
enviezadamente, às mudanças na organização da
produção, de modo a facilitar a flexibilização do
trabalho e a liberdade de ação das empresas.
A experiência dos anos 1990 e 2000 mostrou que os temas relevantes da discussão sobre
regulação do trabalho são muito afetados pela maneira como evoluíram a produção, os preços, o
emprego e os salários. As transformações na organização da produção, com sua internacionalização
nos anos 1990, colocam problemas novos para a
regulação pública do trabalho ao apontar para uma
ampliação, como mencionado, da flexibilidade funcional e quantitativa. Nas condições políticas e de
mercado de trabalho em que essas transformações
ocorreram, na década 1990, a flexibilização foi sinônimo de precarização do trabalho, resultando
em simples ampliação da liberdade de ação da
empresa em um contexto desfavorável aos trabalhadores. No entanto, em uma situação política e
de mercado de trabalho mais favorável aos trabalhadores, como nos anos 2000, os problemas novos, decorrentes das mudanças na organização da
produção, poderão ser enfrentados pela regulação
pública (leis e contratos coletivos), de um modo
que não resulte em precarização do trabalho e, ao
contrário, contribua para uma melhor estruturação
do trabalho assalariado diante das novas tendências na organização da produção (Krein, Santos e
Nunes, 2011).
Uma das principais alterações na organização da produção foi o crescente uso de terceiros
(terceirização). A terceirização coloca sérios problemas e tem sido uma fonte de precarização do
trabalho. Em uma situação econômica mais favorável, é possível realizar um debate mais relevante
acerca da terceirização. Esse debate tem, pelo menos, os seguintes aspectos: que atividades podem
ser terceirizadas; proibição da atividade que seja
simplesmente a alocação de mão-de-obra por parte
de outra empresa; a representação dos terceirizados
284
seja a mesma que a dos empregados da empresa e,
portanto, que ambos sejam protegidos pelo mesmo instrumento normativo;e responsabilidade solidária da contratante em relação à contratada, caso
não sejam respeitados os instrumentos normativos.
A regulamentação da terceirização deveria garantir
essas condições no uso de terceiros para evitar que
conduza à precarização do trabalho.
As mudanças na organização foram acompanhadas pela proliferação de novas formas de
contratos de trabalho. Algumas dessas formas de
contratação não aparecem como relação de emprego, ou seja, a relação de emprego fica disfarçada: o
uso abusivo de estagiários substituindo profissionais, as falsas cooperativas de trabalho, empregados contratados como autônomos ou pessoa jurídica. Essas modalidades de contratação buscam
burlar a legislação vigente para diminuir despesas, constituindo fraudes que devem ser duramente
reprimidas. No caso das contratações em que aparece o vínculo de emprego, destacam-se os diferentes tipos de contratos temporários (setor público e privado), por obra certa, safra, por prazo determinado. O que chama atenção é a ampliação da
frequência e continuidade destes tipos de contratos. No caso das fraudes, é preciso fortalecer os
instrumentos de fiscalização e as punições. No caso
das contratações temporárias, é preciso melhorar
sua regulamentação para evitar os abusos de contratos temporários em relação de emprego que poderia ser mais duradora.
As mudanças na organização da produção
têm levado a uma diminuição do corpo permanente dos empregados da empresa, intensificando
a flexibilidade funcional dos permanentes e a flexibilidade quantitativa dos demais. Para muitos
empregados, o próprio local de trabalho fica indefinido como no caso do teletrabalho. Além da proliferação dos contratos atípicos, observa-se a continuidade de altas taxas de rotatividade dos contratados por tempo indefinido. A rotatividade é
agravada pela inexistência ou pela inoperância de
mecanismos contra a dispensa imotivada e a debilidade da organização dos trabalhadores no local
de trabalho. O fortalecimento desses mecanismos
e organizações é fundamental para a redução da
rotatividade, que prejudica uma melhor adaptação
da força de trabalho às peculiaridades dos distintos postos de trabalho.
A internacionalização da produção coloca a
necessidade de uma ampla revisão do sistema de
impostos e contribuições para a seguridade social.
Nesse contexto, coloca-se a questão da desoneração
da folha de salários, de modo a não penalizar a
produção, que gera mais emprego sem prejudicar
a arrecadação de recursos públicos. A discussão
refere-se, explicitamente, à forma de cobrar os impostos e não à magnitude da carga tributária, hoje
em 35% do PIB, sendo fundamental para a consolidação das políticas sociais definidas na Constituição Federal de 1988.
As mudanças na organização da produção
têm implicado em aumentos tão expressivos de
produtividade que se coloca a discussão de como
aproveitar esse avanço em termos de favorecer o
bem estar da população. Nesta perspectiva, podese fazer uma contraposição entre ampliar o consumo privado de bens e serviços, ampliar os serviços públicos ou reduzir a jornada de trabalho em
sentido amplo, que envolve, não apenas a jornada
diária e semanal, mas também as férias e feriados,
a aposentadoria, o retardamento da entrada dos
jovens no mercado de trabalho. A opção na forma
de como aproveitar os ganhos de produtividade
tem diferentes implicações na regulação do trabalho. Por exemplo, a ampliação dos serviços públicos coletivos exigirá maior carga tributária. A opção
de reduzir jornada e produção de bens e serviços
tem implicações no sentido de diminuir a utilização de recursos naturais com benefícios ecológicos.
As mudanças na organização da produção,
com tendência de flexibilização e descentralização,
têm implicado a intensificação do trabalho com
efeitos deletérios sobre a saúde dos trabalhadores.
O debate deste assunto é extremamente importante para informar a regulação pública do trabalho e
ampliar as políticas de proteção social.
A tendência de flexibilidade funcional tem
sido acompanhada do aumento do peso da remuneração variável e constituído formas diferencia-
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A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
das de organização da jornada de trabalho (modulação, turnos, escalas). Estas duas tendências têm
provocado uma enorme diversidade de situações
entre os trabalhadores, problematizando a própria
existência da regulação pública do trabalho, que
terá que contemplar a remuneração variável e a
organização da jornada para delimitar a variedade
de situações dos trabalhadores que dificulta a
regulação pública do trabalho.
As atuais tendências de flexibilização e de
descentralização da produção colocam desafios para
a regulação pública do trabalho, que terá que aperfeiçoar as normas, desde o marco legal até os apoios para fortalecer as instituições (públicas/estatais e
entidades classistas) que produzem e fazem cumprir as normas do trabalho. Neste particular, hoje é
mais necessário do que nunca o fortalecimento da
organização dos trabalhadores no local de trabalho.
Deste modo, uma evolução mais favorável
aos trabalhadores da produção, emprego, salários
e preços permitiu colocar, de modo mais adequado, as novas questões que devem ser enfrentadas
pela regulação pública do trabalho, levantadas pelas tendências de mudanças na organização da
produção. Essa evolução da produção, emprego,
salário e preços ocorreu sem mudanças significativas na forma de inserção do país na economia
mundial, mas esta última se comportou de modo
mais favorável ao desempenho econômico do país.
Esta realidade vem se modificando a partir da crise mundial.
A melhora nos indicadores do mercado de
trabalho no Brasil vem ocorrendo desde 2004 e
não foi interrompida pela crise mundial. Com reserva internacional e com pouca dívida indexada
ao dólar, a reação do governo ao impacto inicial da
crise foi eficaz. A desvalorização do Real, em vez
de piorar, melhorou as contas públicas ao aumentar o valor em reais das reservas internacionais.
Dispondo de recursos, o governo pode agir para
amortecer o impacto da crise. Reduziu, temporariamente, impostos indiretos sobre produtos, manteve a programação dos investimentos públicos,
continuou aumentando o salário mínimo e fortaleceu os bancos públicos para que pudessem com-
pensar a retração dos privados no atendimento da
demanda de crédito.
O PIB caiu somente 0,3% em 2009 e aumentou 7,5% em 2010. A intensidade da recuperação fez o novo governo, em 2011, atuar no sentido de conter a atividade da economia. Isto prejudicou a continuação dos investimentos públicos e
a sustentação do crescimento do consumo. Diante
desse quadro e dada a incerteza da situação internacional, o investimento privado, que tinha se recuperado fortemente em 2010, perdeu muito do
seu ímpeto. O crescimento do PIB foi de somente
2,7% em 2011, evidenciando os efeitos da estratégia de conter o ritmo da recuperação neste ano. O
governo, então, procurou reanimar a economia,
mas o resultado foi muito menor do que o observado em 2010, e o crescimento do PIB foi somente
0.9% em 2012. Os estímulos determinados pelo
governo contiveram a desaceleração do consumo,
mas não impediram a queda do investimento que,
em 2012, foi menor do que 2011.
Existe um relativo consenso de que, atualmente, um crescimento mais forte do PIB requer a
ampliação da taxa de investimento. O país não
pode contar mais com uma evolução favorável dos
termos de troca do comércio internacional que favoreceu o desempenho da economia brasileira em
2007 e 2008. Atualmente, é preciso aumentar a
produtividade da economia para continuar melhorando a condição socioeconômica da população e
isto requer investimento em infraestrutura e no
fortalecimento da competitividade da produção
manufatureira existente no país.
A crise mundial prejudicou a atividade econômica nos países desenvolvidos e acirrou a competição internacional pela demanda de produtos
manufaturados. A sustentação do crescimento do
consumo no Brasil tem provocado um forte aumento da importação de produtos manufaturados
em detrimento da produção doméstica, que chegou a diminuir em 2012. O déficit de comércio
exterior com produtos manufaturados que tinha
fica muito grande em 2008, multiplicou por 2,5
em 2011 e se repetiu em 2012.
O comércio internacional de produtos ma-
286
nufaturados é, em grande medida, no interior das
próprias empresas transnacionais. O Brasil ficou
fora das cadeias de produção internacionalizadas e,
mesmo onde não é grande essa internacionalização,
as empresas multinacionais têm optado por importar partes e componentes da matriz ou de outras filiais onde apresenta grande capacidade ociosa, em vez de investir na ampliação da capacidade
de produção instalada no Brasil. Esse movimento
comercial reflete a estratégia das matrizes para enfrentar os efeitos da crise mundial e se mostrou
pouco afetado pelo aumento da taxa de câmbio no
Brasil. É preciso reverter esse movimento, negociando com as empresas investimentos no Brasil,
como pré-condição para o acesso ao crescente mercado doméstico (Sarti; Hiratuka, 2011).
A desaceleração do PIB em 2011 e 2012
mostrou as dificuldades encontradas para aumentar a taxa de investimento no quadro de crise mundial. A partir de então, existe um debate na sociedade brasileira sobre o papel do Estado para aumentar a taxa de investimento. Por um lado, o governo tem tomado uma série de medidas para estimular o investimento, tais como: a redução da taxa
básica de juros, a elevação da taxa de câmbio, a
redução do preço da eletricidade, a criação de
empresas estatais para coordenar os investimentos privados em infraestrutura realizados por meio
de concessões, entre outros. Por outro lado, é crescente a crítica a essas ações por parte dos setores
conservadores e neoliberais, estabelecendo, em
articulação com a grande mídia, um contraponto
na perspectiva de reduzir o papel do estado e ampliar a liberdade de ação da iniciativa privada. É
um embate que começa com o PAC e o fortalecimento dos bancos públicos, a partir de 2006. Essa
é uma questão vital para a retomada do desenvolvimento da economia brasileira.
A política econômica, entretanto, tem conseguido preservar a melhora nos indicadores do
mercado de trabalho, amortecendo a desaceleração
que tem ocorrido no crescimento do consumo. Este
cresceu em média 5,4% ao ano em 2007 e 2008,
manteve a média de 5,5% ao ano em 2009 e 2010 e
se ampliou em média 3,2% ao ano em 2011 e 2012.
A comparação dos períodos 2003/2008 e
2008/2012 mostra que o crescimento do PIB
desacelerou da média de 4,8% ao ano para 2,6%.
A desaceleração do crescimento da população ocupada, calculada pela PME/IBGE, foi menor ao passar da média anual 2,7 para 2.1%. O PIB por pessoa ocupada aumentou mais em 2003/2008 do que
em 2008/2012, mas o poder de compra da renda
média do trabalho continuou aumentando, apesar
do aumento da inflação. O aumento nominal da
renda média do trabalho foi maior do que a inflação. Contribuiu para isto tanto a ampliação dos serviços que explicam o aumento do emprego, apesar
da desaceleração do PIB, quanto o enorme déficit
de comércio externo de produtos manufaturados.
O déficit de comércio externo de produtos
manufaturados foi coberto pelo superávit de
commodities, mas ocorreu expressivo déficit de
conta corrente de balança de pagamento por causa
dos serviços, especialmente a remessa de lucros e
dividendos. O déficit de conta corrente foi coberto
por entrada de capital, especialmente investimento direto estrangeiro. Porém a continuidade desta
situação exigiria manter forte aumento das exportações, que até agora tem ocorrido com os altos preços
das commodities. Estes, provavelmente, não reverterão no futuro próximo, mas não continuarão aumentando com tanto vigor como no passado recente.
Portanto, a continuação da melhora nos indicadores no mercado de trabalho pressupõe o
aumento da taxa de investimento, que aceleraria o
crescimento do PIB e aumentaria mais fortemente
o PIB por pessoa ocupada. O governo tem atuado
nesta direção, como mencionado acima. É, entretanto, fundamental para o aumento da taxa de investimento a ampliação dos investimentos públicos e a negociação com as empresas multinacionais
para que ampliem o investimento no Brasil e moderem a importação de partes e componentes de
seus produtos. O crescimento mais vigoroso do
PIB viabilizaria o crescimento mais robusto do consumo, ajudando a preservar o crescimento do número de pessoas ocupadas e mantendo a taxa de
desemprego relativamente baixa.
A PME indica que o número de desempre-
287
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A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
gados, que tinha atingindo o equivalente a 19,2%
dos empregados assalariados em 2003, diminuiu
para 11,3% em 2008 e alcançou 7,5% em 2012. A
taxa da rotatividade do emprego assalariado formal é 4,5% ao mês. Para aumentar em 2% o emprego em um ano, é preciso contratações mensais
da ordem de 4,7% do total do emprego assalariado. A existência de um número de desempregado
equivalente a 7,5% do emprego assalariado não
parece indicar que a economia esteja operando em
pleno emprego.
As empresas que estão aumentando o emprego não reclamam da dificuldade de encontrar trabalhadores disponíveis, mas sim, da inadequação dos
trabalhadores às características dos postos de trabalho. Esse tipo de problema não tem tanto a ver com a
baixa taxa de desemprego quanto reflete a existência
de altas taxas de rotatividade no emprego.
As empresas alegam que alta rotatividade
reflete a inadequação dos trabalhadores disponíveis para os postos de trabalho. Porém, esse problema é reflexo da desestruturação do mercado de
trabalho, devido, principalmente, à excessiva liberdade de ação dos empregadores que, além de
pagar mal frente à sofisticação já alcançada do aparelho produtivo existente no país, dispensa o empregado logo que já não precisa dele. Não tem que
justificar a ninguém a causa da dispensa, bastando indenizar o dispensado, sendo que essa indenização é pequena para quem não tem como acumular tempo de serviço.
A rotatividade no emprego aumenta quando
melhora o mercado de trabalho por iniciativa dos
empregadores e dos próprios empregados. Isto coloca problemas no recrutamento e esses problemas
ficam ainda mais graves com as tendências
demográficas que vêm alterando, substancialmente, a composição da população brasileira por idade.
No passado, enquanto a industrialização
provocava forte crescimento do PIB e intensa expansão do mercado de trabalho, a elevada
rotatividade no emprego renovava, constantemente, a força de trabalho assalariada. A parcela de
empregados jovens continuava muito grande,
realimentada por rápido crescimento da popula-
ção, que, com baixa escolaridade, entrava precocemente no mercado de trabalho. Os jovens transitavam por empregos sem vínculo estável e, com a
idade, encontravam crescentes dificuldades de
recolocação, tendendo a ser expulsos do mercado
de trabalho. Isto provocava uma alta fração da PEA
adulta em trabalhos por conta própria. O adulto
expulso do mercado de trabalho tinha que inventar um negócio próprio tivesse ou não condição
para fazê-lo. Isto provocava uma dispersão de renda do trabalho por conta própria que era ainda
maior do que a dos salários dos empregados.
A população jovem está diminuindo e o
aumento de sua escolaridade tem levado ao adiamento da entrada no mercado de trabalho. Isto tem
mudado rapidamente a composição da PEA por
grupo de idade. Uma força de trabalho assalariada
mais adulta é menos maleável, tendendo a aumentar as reclamações dos empregadores quando há
inadaptação dos trabalhadores disponíveis às características dos seus postos de trabalho.
O que deve ser corrigido é a alta rotatividade
no emprego, estruturando o trabalho assalariado,
com as pessoas se vinculando a determinados
postos de trabalho. O momento oportuno para essa
correção de rumo é, justamente, quando a economia está crescendo e ampliando o mercado de trabalho. Não tem sentido a proposta de conter a atividade da economia na espera que melhore a oferta de trabalho. Ao contrário, uma economia crescendo cria as condições necessárias para construir
o seu mercado de trabalho.
Não nos parece adequado aumentar o montante da indenização visando reduzir a rotatividade.
É mais eficaz fortalecer os instrumentos institucionais
de controle da dispensa imotivada. A exigência de
ter que justificar a dispensa perante um inspetor
do trabalho ou um sindicato significa uma rigidez,
mas, nesse caso, é, justamente, a extrema flexibilidade que está prejudicando o funcionamento do
mercado de trabalho.
Quando se trata da inadaptação da força de
trabalho aos postos de trabalho, muitos remetem o
problema ao baixo nível de qualificação profissional. Alguns chegam a pensar que esse baixo nível
288
de qualificação profissional tem a ver com baixo
grau de escolaridade da força de trabalho. Esse tipo
de questionamento, entretanto, diz respeito a uma
pequena parcela da força de trabalho assalariada,
que é altamente especializada e relativamente bem
remunerada. A inadequação dos empregados aos
postos de trabalho é uma questão muito mais ampla e atinge, também, postos de trabalho que não
têm tantas exigências de qualificação profissional.
Para essa grande maioria, o problema principal é a alta rotatividade, que impede a fixação
dos trabalhadores no entorno de determinados
postos de trabalho, que ajudaria os assalariados a
se adaptarem às características dos empregos existentes. Caso isso acontecesse, as empresas passariam a contar com empregados profissionalmente
melhor capacitados e os trabalhadores teriam melhores condições para se organizar e construir posições de barganha, na perspectiva de reivindicar,
coletivamente, uma melhor participação nos aumentos de produtividade, reduzindo as enormes
taxas de exploração que ocorrem no Brasil.
A continuidade da melhora do mercado de
trabalho pressupõe aumentar a taxa de investimento, o crescimento do PIB e o aumento da produtividade do trabalho na indústria e nos serviços funcionalmente relacionados ao desenvolvimento da
indústria. Isto, provavelmente, aumentará a fração
da força de trabalho que é mais especializada e
melhor remunerada. Nesse caso, será fundamental estruturar o conjunto da força de trabalho assalariado, reforçando os mecanismos institucionais
que reduzem a rotatividade e promovem aumentos mais generalizados da renda do trabalho (salário mínimo e reajustes das categorias profissionais),
para que o aumento do poder de compra da renda
do trabalho prossiga com redução das diferenças
entre os trabalhadores.
estar coletivo da população. Essa experiência ressaltou. não somente os efeitos positivos da construção da regulação pública do trabalho, mas também os efeitos deletérios da perda de eficácia desta
regulação. De um lado, a regulação pública do trabalho, junto com a proteção social, estruturou a compra e venda da força de trabalho de modo a contribuir para estabilizar e reforçar a tendência de crescimento da produção e do emprego. De outro lado,
mudanças contemporâneas no capitalismo desafiaram a regulação pública do trabalho e a ação coletiva
dos trabalhadores. A perda de eficácia desta regulação
ajudou a reforçar a instabilidade e a redução da tendência de crescimento da produção e do emprego,
implicando desemprego e aumento das diferenças
socioeconômicas entre os trabalhadores.
A globalização financeira e a internacionalização
da produção de bens e serviços estão no cerne das
transformações contemporâneas no capitalismo. A
organização da produção se modificou com tendência à descentralização e flexibilização do trabalho. O quadro político gestado pela predominância do neoliberalismo, não somente promoveu essas mudanças, mas também ajudou a ampliar o
impacto desfavorável na regulação pública do trabalho, que, em vez de moldar as mudanças de
maneira a evitar a precarização das relações de
emprego, reforçou esses efeitos, apoiando a liberdade de ação dos empregadores para se adaptarem
ao ambiente de acirramento da competição.
A maneira como o Brasil entrou na
globalização financeira e internacionalização da
produção reforçou os efeitos deletérios sobre a
regulação pública do trabalho. O oportunismo de
aproveitar a globalização para diminuir, rapidamente, a inflação prejudicou o fortalecimento da economia na perspectiva de aumentar a exportação e
a competitividade da produção doméstica diante
da importação. O Brasil, que não tinha participado da internacionalização das cadeias de produCONSIDERAÇÕES FINAIS
ção, continuou fora delas e com um sistema de
produção voltado, fundamentalmente, para o merA experiência dos países desenvolvidos cado doméstico.
mostrou a importância da regulação pública do traO desempenho da economia brasileira, em
balho para a estruturação da sociedade e o bem termos de crescimento do PIB e inflação, ficou
289
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Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
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A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
muito dependente da situação do comércio e das
finanças internacionais. Na década de 1990, o comércio e as finanças internacionais foram desfavoráveis ao desempenho da economia brasileira e
aumentou muito o desemprego e a ilegalidade dos
contratos de trabalho.
No debate sobre trabalho duas posições básicas se confrontaram: (1) a que valoriza os efeitos
da abertura da economia, aumentando a competição entre empresas e advogando por uma mínima
interferência estatal e; (2) a que destaca a importância desta última interferência para fortalecer a
economia nacional, o que é particularmente importante diante da abertura que expõe essa economia à competição internacional. A primeira posição avalia o marco regulatório em função dos estímulos ao comportamento de empregadores e empregados, contribuindo, de modo consistente, para
o uso eficiente dos recursos diante do aumento da
competição provocado pela abertura. Deste ponto
de vista, a flexibilidade do trabalho seria parte de
uma acomodação da maneira de realizar os negócios sob intensa competição internacional, permitindo o aproveitamento das oportunidades existentes. A segunda posição, ao contrário, destaca a
interferência do poder público para garantir a
regulação pública do trabalho, na perspectiva de
que as oportunidades de negócios sejam mais
amplas e aproveitadas de um modo que ajude a
construir relações de trabalho que contribuam para
uma estruturação melhor da sociedade, legitimando a atuação do Estado.
O comércio e a finança internacional favoreceram o desempenho da economia brasileira na
primeira década dos anos 2000. Sem grande interferência estatal para fortalecer a economia nacional, foi possível um crescimento mais forte do PIB,
gerando mais empregos formais, a inflação diminuiu e a renda do trabalho aumentou. Um quadro
mais favorável aos trabalhadores reforçou a melhora nos indicadores do mercado de trabalho e
intensificou o crescimento do PIB. Destacaram-se
o aumento do valor do salário mínimo, os reajustes das categorias profissionais acima da inflação e
a implementação de um sistema de proteção social
em conformidade com os ditames da Constituição
Federal de 1988.
A melhora dos termos de troca do comércio
exterior do país, favorecida pelos preços internacionais das commodities, desempenhou um papel
análogo ao correspondente aumento da produtividade, sem que tivesse havido um aumento mais
substantivo da taxa de investimento. No auge do
crescimento, em 2007 e 2008, a produção industrial chegou a aumentar em ritmo significativo,
apesar da explosão de produtos manufaturados.
A ampliação do consumo e do investimento deu
oportunidade para desenvolver a produção mais
competitiva com importações. A crise mundial, que
atingiu o Brasil no final de 2008, mostrou que o
quadro internacional deixou de ser tão favorável
ao desempenho da economia brasileira. É, então,
necessário fortalecer a economia, ampliando a taxa
de investimento para que o aumento da produtividade permita a continuação da melhora dos indicadores do mercado de trabalho e o PIB volte a
crescer mais forte em benefício do conjunto da
população brasileira. Isto, entretanto, pressupõe o
aperfeiçoamento da regulação pública do trabalho
de modo a impedir que as mudanças na organização da produção levem a uma precarização do trabalho. A retomada do crescimento, com maior taxa
de investimento e o maior aumento da produtividade, deve aumentar a proporção de ocupações
mais especializadas e melhor remuneradas. Neste
contexto, é fundamental melhorar a regulação pública para reduzir a rotatividade, elevar o salário
mínimo e ter reajustes das categorias profissionais
compatíveis com a maior produtividade, evitando
que a ampliação da fração de ocupações mais
especializadas resulte em aumento da dispersão
dos salários.
O momento que o país atravessa é crucial
na definição das possibilidades de desenvolvimento futuro da economia e da sociedade. As posições no debate se localizam entre dois polos: 1) a
defesa de uma estruturação do mercado de trabalho com implicações na qualidade das relações
sociais; 2) a afirmação dos negócios, que destaca a
necessidade de maior flexibilização na contratação,
290
Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein
no uso e na remuneração do trabalho. O embate
dessas posições na sociedade se reflete no conteúdo e na forma das políticas públicas do trabalho e
no modelo de desenvolvimento do país. Nesta avaliação mais ampla, não é possível desvincular a discussão da regulação ou estruturação do mercado de
trabalho das questões centrais que definem qual será
o modelo de desenvolvimento do país.
Recebido para publicação em 06 de abril de 2013
Aceito em 11 de junho de 2013
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REFERÊNCIAS
A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...
RESUMPTION OF DEVELOPMENT AND THE
REGULATION OF THE LABOR MARKET IN
BRAZIL
LA REPRISE DU DÉVELOPPEMENT ET LA
RÉGULATION DU MARCHÉ DU TRAVAIL AU
BRÉSIL
Paulo Eduardo de Andrade Baltar
José Dari Krein
Paulo Eduardo de Andrade Baltar
José Dari Krein
This article establishes a relationship
between the dynamics of contemporary capitalism
in Brazil and the challenges of discussing public
regulation of labor. The debate in Brazil takes into
consideration these aspects: 1) changes to
contemporary capitalism have led to implications
which are unfavorable to public regulation of labor and to collective action by workers; 2) the
resurgence of economic growth has made it possible
to redefine the terms of the debate on labor in Brazil;
3) the current crisis brings into discussion the
possibility of the State taking a more active role in
economic development; 4) demographic trends
have increased the weight of the adult EAP, which
has implications in the functioning of the labor
market. The positions are polarized thus: 1) the
defense of structuring the work market with
implications in the quality of social relations; 2)
business affirmation, which stresses the need for
more flexibility in hiring, duties and pay for work.
L’article établit une relation entre la
dynamique du capitalisme contemporain au Brésil
et les défis concernant la discussion pour une
régulation publique du travail. Le débat au Brésil
prend en considération les aspects suivants: 1)
les transformations du capitalisme contemporain
démontrent avoir des implications négatives pour
la régulation publique du travail et pour l’action
collective des travailleurs; 2) la reprise de la
croissance économique a permis de redéfinir les
termes du débat sur le travail au Brésil; 3) la crise
actuelle remet en question la capacité de l’Etat à
jouer un rôle plus actif dans le développement de
l’économie; 4) les tendances démographiques sont
en train d’augmenter le poids de la population
économiquement active adulte, ce qui a des
conséquences sur le fonctionnement du marché
du travail. Les positions se situent entre deux
tendances: 1) la défense d’une structuration du
marché du travail avec des implications pour la
qualité des relations sociales; 2) la déclaration des
entreprises qui met en évidence le besoin d’une
plus grande flexibilité au niveau des contrats, de
l’utilité et de la rémunération du travail.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 273-292, Maio/Ago. 2013
Key words: Labor. Regulation. Economy and MOTS-CLÉS: Travail. Régulation. Économie et
développement. Flexibilité.
development. Flexibilization.
Paulo Eduardo de Andrade Baltar – Doutor em Ciência Econômica. Professor Associado da Universidade
Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia do Bem-Estar Social.
Entre várias publicações em periódicos e livros, é coorganizador (com José Dari Krein e Carlos SALAS) de
Economia e trabalho: Brasil e México. 1ª ed. São Paulo: LTr, 2009. v. 7. 271p. Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Economia, Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho.
José Dari Krein – Doutor em Economia Social e do Trabalho. Professor da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Emprego, Relações de Trabalho,
Sindicalismo e Negociação Coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: flexibilização, legislação
trabalhista, reforma, sindicalismo, trabalho, reestruturação produtiva, emprego, tecnologia, trabalho, salário
mínimo e desenvolvimento econômico. Publicou, entre artigos e livros, As relações de trabalho na era do
neoliberalimo no Brasil. 1a. ed. São Paulo: LTR, 2012, v. 8, 319p. Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Economia.
292
JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO: elementos
para uma agenda de investigação
Adalberto Cardoso*
DOSSIÊ
Adalberto Cardoso
APRESENTAÇÃO
A crise econômica iniciada em 2008, que
completa seu quinto ano enquanto escrevo, acendeu a luz vermelha nos países mais ricos do mundo no que respeita às chances de inserção dos jovens no mercado de trabalho. Uma situação que
era pensada como típica dos países do sul da Europa (em especial Espanha, Itália e Portugal) disseminou-se pelo continente. Refiro-me à condição
“ni ni”, denominação espanhola para os jovens
que não estão nem na escola nem trabalhando.
Dados para os 34 países da Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico –
OCDE – revelam que 16% dos jovens de 15 a 29
anos estavam nessa condição em 2010,1 sendo que
* Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – IESP-UERJ –, Pesquisador Associado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento e
do Warwick Institute for Employment Research, Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e Pesquisador 1 do CNPq.
Rua da Matriz, 82. Cep: 22260-100. Botafogo – Rio de
Janeiro, RJ – Brasil. [email protected]
1
A OCDE utiliza o acrônimo NEET (Neither Employed,
nor in Education and Training) para designar o fenômeno dos jovens que não estudam nem trabalham. Ver
OCDE (2012).
a taxa era de 18% entre as mulheres e 14% entre
os homens (OCDE, 2012, p. 382).
Em razão da disposição militante dos jovens, depois da crise de 2008, esse quadro de 2010
foi tratado por muitos como crítico, isto é, fruto de
surpreendente dissolução das estruturas anteriores de probabilidade de acesso a posições na escola ou no mercado de trabalho. Contudo, olhando
os dados da OCDE em mais detalhe, descobre-se
que a incidência do fenômeno é bem mais disseminada e extensa no tempo, isto é, a “condição
nem nem” não é uma novidade nas dinâmicas
social e econômica contemporâneas. Tomando-se
o período de 1997 a 2010, entre os jovens de 20 a
24 anos a média de “nem nem” naqueles países
mais ricos nunca foi inferior a 13%, atingindo o
pico de 17,6% em 2010.2 A novidade, então, parece ser o aumento importante da intensidade do
fenômeno, concentrado num período muito curto
de tempo, que lhe deu estatura de problema social e político de monta.
Neste artigo, não se pretende analisar o fe2
Ver a tabela total em http://dx.doi.org/10.1787/888932667520.
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
A crise econômica pós-2008, acompanhada de grandes protestos sociais em toda parte, acendeu a luz vermelha nos países mais ricos quanto às oportunidades de trabalho e estudo dos
jovens. Aumentou muito a proporção daqueles que não estudam nem trabalham, em especial
na Espanha e na Grécia, mas o fenômeno é disseminado nos países mais ricos. O artigo mostra
que, no Brasil, a condição “nem nem” é estrutural, e propõe um modelo analítico de explicação
das transformações ocorridas entre 2000 e 2010. Sugere que as mudanças estruturais por que
passou o país e as políticas públicas de redução de barreiras ao acesso à escola e ao mercado de
trabalho reduziram o impacto das desigualdades regionais e aumentaram o peso da pobreza na
explicação da condição “nem nem” dos jovens.
PALAVRAS CHAVE: Juventude. Mercado de trabalho. Mudanças estruturais. Condição “nem nem”.
Modelos causais.
JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ...
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
nômeno nos países mais ricos, e sim, tomá-los
como referência para a análise do caso brasileiro.
Por que, entre nós, o problema, também geral e
extenso no tempo, não tinha ganhado, até pelo
menos meados de 2013, as mesmas tintas explosivas? Depois de comparar as duas realidades e elaborar teoricamente a persistência do problema
geracional no mundo contemporâneo, procuro responder a essa pergunta construindo um modelo
logístico de explicação da probabilidade de um
jovem estar na condição “nem nem” no país, comparando 2000 e 2010 a partir dos dados dos cen-
sos demográficos do IBGE. Argumento que a “condição nem nem” é fruto da conjunção de dois feixes de determinantes: de um lado, os contextos
de inserção social dos jovens (a família, o sistema
escolar e o mercado de trabalho); e, de outro, as
trajetórias dos indivíduos. Os dois feixes são marcados por desigualdades de todo tipo, e o objetivo
da análise é identificar tendências e mudanças no
tempo, formular hipóteses sobre a direção dessas
mudanças e seu efeito na relação dos jovens com a
condição “nem nem”, e, por fim, levantar questões de pesquisa e de políticas públicas para o país,
relacionadas ao problema da
juventude e sua relação com
o trabalho e o desenvolvimento. Um dos principais
argumentos sustentados
aqui é o de que o caráter estrutural do fenômeno “nem
nem” no Brasil é um dos elementos centrais da também
estrutural resistência à queda dos indicadores de desigualdade econômica e social, o que abre os horizontes
do combate à desigualdade
para a inclusão desse fenômeno, estrutural e persistente, na agenda das políticas
públicas e da pesquisa social por aqui.
UM FENÔMENO ESTRUTURAL
Desdobremos os dados disponíveis para alguns
países ricos segundo o sexo.
O Gráfico 1 ilustra a evolução da proporção de homens
e mulheres entre 15 e 29
anos de idade que não estavam nem estudando nem
trabalhando nos 21 países da
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União Europeia,3 para o período 1997-2010, segundo faixas etárias. Chama a atenção a dessemelhança
segundo o sexo, tanto nas proporções quanto no
movimento das curvas temporais das diversas faixas etárias. As proporções de homens “nem nem”
são sempre menores do que as de mulheres, e o
impacto da crise de 2008 foi muito mais intenso
no caso deles, que viram a taxa de exclusão da
escola e do trabalho subir mais de 3 pontos
percentuais nos dois anos posteriores ao estouro
da bolha imobiliária norteamericana, contra 1 ponto
percentual no caso delas.
Descendo aos detalhes, a linha micropontilhada
expressa o total da população analisada (15 a 29
anos) de cada sexo. Por ela vemos que, entre 1997
e 2008 a taxa de mulheres “nem nem” caiu quase
constantemente (ficando estável entre 2003 e 2005),
saindo de pouco mais de 20% para atingir 15% ao
final do período de 12 anos, voltando a aumentar
um ponto percentual de 2008 a 2010. O ano de
2008, pois, foi momento de inflexão num processo contínuo de redução do que eu denominarei
aqui, provisoriamente, de “taxa nem nem de exclusão” das mulheres. Esse movimento pode ser
explicado pela também contínua entrada delas no
mercado de trabalho, processo cujas raízes remontam, na Europa, aos anos 1960, mas que, aparentemente, ainda não se completou.4 Note-se que a
3
A OCDE inclui os países mais ricos, como os da União
Europeia, Estados Unidos, Japão, Austrália e Canadá,
além de países de renda média como México e Chile. A
maior diversidade interna à OCDE justifica um olhar
mais refinado nos países europeus, que, ademais, sofrem de maneira muito pronunciada os efeitos da crise
de 2008 sobre o emprego dos jovens.
4
Para análise de longo curso sobre o processo de inclusão
das mulheres no mercado de trabalho na Europa como
um todo, ver Crouch (1999) e também Costa (2000). A
vasta literatura sobre o tema enumera uma série de explicações, concomitantes ou concorrentes segundo o
caso, tais como a redução da taxa de fecundidade, dos
encargos com filhos (assumidos pelos Estados de Bem
estar, como creches e escolas), maior duração das licenças maternidade e paternidade (que reduzem a incompatibilidade entre ter filho e manter o emprego), mudanças
de mentalidade quanto à divisão sexual do trabalho no
mundo doméstico, mudanças na divisão social do trabalho por sexo, redução do emprego industrial e aumento do emprego nos serviços e comércio, políticas ativas
de emprego em favor das mulheres, expansão de formas
flexíveis e temporárias de emprego (como mostrado em
OCDE, 2002), atraentes para mulheres com filhos e os
desempregados, dentre as mais importantes. Para estudos comparativos mais recentes numa literatura sempre
em expansão, ver Thevenon (2009) e, numa perspectiva
econométrica, Cipellone et al (2012).
queda mais intensa ocorreu junto às mulheres entre
25 e 29 anos, seguidas pelas de 20 a 24. No primeiro grupo, boa parte, senão a maioria delas, já
havia completado seus estudos. Logo, o que está
sendo ilustrado é um processo constante de troca,
pelas mulheres, de formas de inscrição social
centradas no mundo doméstico, pelo mercado de
trabalho. A queda na faixa de 20 a 24 anos também é expressiva (7 pontos percentuais até 2008) e
denota o mesmo processo de incorporação ao mercado de trabalho, elemento menos presente na faixa etária mais jovem (15 a 19 anos), cujas proporções das que estavam na escola ainda eram muito
altas. Na verdade, segundo a mesma fonte de dados, para essas adolescentes a redução da proporção de “nem nem” se deveu não à entrada no mercado de trabalho, mas, sobretudo, ao aumento da
proporção que continuou estudando.
No caso dos jovens homens, os movimentos são menos intensos até 2008, e mais abruptos
a partir de então. A linha micropontilhada (que
ilustra toda a amostra de 15 a 29 anos) revela pequena variação em torno da média de 11% entre
1997 e 2004, caindo mais fortemente até 2008 para,
então, crescer de forma importante até 2010, atingindo quase 14% de “nem nem”. Tal como no caso
das mulheres, as maiores taxas de exclusão do
binômio escola-trabalho se deram na faixa de 20 a 24
anos e de 25 a 29 anos (ambas com crescimento de 5
pontos percentuais, ou mais, em apenas dois anos),
e as proporções foram bem maiores no caso deles.
É importante notar que, tanto no caso dos
homens quanto no das mulheres nessas faixas
etárias, entre 2008 e 2010 aumentou um pouco a
proporção dos que permaneciam na escola (com
isso adiando sua entrada no mercado de trabalho),
o que quer dizer que o aumento dos “nem nem”
deveu-se, quase exclusivamente, ao desemprego
de jovens antes ocupados, e que já tinham deixado a escola. E o processo é mais intenso para os
homens do que para as mulheres.5
5
A literatura econômica sobre a entrada das mulheres no
mercado de trabalho tem chamado a atenção para o fato
de que elas competem, sobretudo, com os homens mais
jovens, com isso contribuindo para aumentar sua taxa
de desemprego (Pissarides et al., 2003).
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Adalberto Cardoso
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Desse ponto de vista, parte do fenômeno
midiaticamente tratado como novo, que estaria afetando de forma diferenciada uma geração específica, agora rotulada de “geração nem nem”, na verdade é desemprego juvenil em larga escala, ocorrendo entre jovens que já haviam deixado a escola
para trabalhar e que, diante da redução das perspectivas do mercado de trabalho, já não conseguem
emprego, ou decidiram, ou estão em condições (tendo em vista as salvaguardas dos estados de bem
estar na Europa ou as redes de proteção familiar)
de esperar por uma ocupação num futuro melhor.6
Pequena parte dos afetados pela crise retomou os
estudos, enquanto outra pequena parte dos que,
de outro modo, teriam deixado a escola, decidiu
permanecer nela, aspecto mais saliente entre as
mulheres de 15 a 24 anos. Mas proporção elevada
dos jovens europeus (mais de 18% dos jovens de
20 a 29 anos, valor que chegou a 22% na Grécia e
28% na Espanha em 2010, segundo a mesma fonte do Gráfico 1) simplesmente não tinha emprego
para si, já tendo abandonado a escola.7
O mais importante a reter desses dados,
contudo, é que estamos diante de um fenômeno
estrutural, que atinge proporções relevantes de
homens e mulheres jovens há muito tempo (portanto, devemos falar de gerações sucessivas de “nem
nem”), tendo-se agravado depois de 2008, a ponto
de provocar uma crise social de proporções continentais, colocando os jovens, uma vez mais, no
centro da contestação à ordem econômica global e
suas instituições de sustentação, nacionais e
supranacionais.8 O agravamento do fenômeno
transformou-o de questão estrutural em problema
6
Para os regimes mistos de bem estar na Europa e na
América Latina, ver Dombois (2012).
7
Estudo importante da condição “nem nem” no Japão é
Brinton (2011). A autora mostra como a crise dos anos
1990 rompeu o padrão de transição de escola para o trabalho naquele país, principalmente, mas não exclusivamente, entre as classes mais baixas, tornando o termo
NEET corrente na literatura dos anos 2000, algo
impensável nos 20 anos anteriores.
8
Os movimentos sociais contra a crise não são objeto
desta análise, e, obviamente, não se restringiram aos
protestos de jovens “nem nem”. Mas não há dúvida de
que sua energia contribuiu para radicalizar os movimentos. Ver, por exemplo, Givans e Soule (2011), os vários
artigos em Gohn e Bringel (2013), além de Estanque et
al. (2013).
social e inflamou a disposição militante de jovens
por todo o mundo desenvolvido.
É uma trivialidade sociológica afirmar que a
entrada na vida adulta, enquanto realização de
projetos de inscrição social e afirmação de identidades, não tem o mesmo significado para homens
e mulheres. Mas o esquecimento dessa trivialidade pode levar a interpretações equivocadas, cegas
em relação às diferenças de gênero. É preciso insistir, pois, que, no caso das mulheres, estar fora
da escola e do trabalho não necessariamente denota frustração de expectativas ou desestruturação
de projetos de vida, como pode ser o caso para a
maioria dos homens, em especial os mais velhos
entre os jovens. Uma proporção significativa delas
estará, na verdade, realizando projetos de maternidade ou de casamento (em especial entre as mais
velhas), com isso adiando sua entrada no mercado de trabalho, embora já tenham completado o
ciclo escolar. Mas a proporção do fenômeno no
continente europeu permite suspeitar que, também
no caso delas, a crise afetou parte significativa das
que tinham projetos de vida centrados no mundo
do trabalho.
GERAÇÕES “NEM NEM” NO BRASIL
O Brasil viveu momento semelhante ao que
se viu na Europa em anos recentes, tanto no que
se refere ao desemprego juvenil quanto na proporção de “nem nem” na população mais jovem. Mas,
aqui, os movimentos têm sido bem menos intensos. Em primeiro lugar, como na Europa, as mulheres vêm deixando cada vez mais a condição de
“nem nem” rumo ao mercado de trabalho, mas em
ritmo mais brando. Como mostra o Gráfico 2, em
1999, 30,5% das jovens entre 15 e 29 anos (linha
pontilhada superior do gráfico das mulheres) estavam nessa condição, proporção que atingiu pouco
menos de 27% em 2008, subindo um ponto
percentual daí a 2011. E, tal como no caso europeu, a queda mais acentuada ocorreu na faixa etária
de 25 a 29 anos (queda de 40% para 33% de “nem
nem”), portanto de mulheres entrando na maturi-
296
dade e que, mesmo estando em sua maioria já casadas ou com filhos (segundo a mesma fonte do
gráfico), passaram a estar mais intensamente
engajadas no mercado de trabalho (e estudando
em menor proporção). Aqui, como na Europa, a
redução da proporção de mulheres fora da escola
e do mercado de trabalho expressa a crescente procura por inserção produtiva por parte delas, e não
tanto o retorno à escola para retomada dos estudos. Ainda assim, a proporção de jovens mulhe-
res “nem nem” no Brasil
foi de pelo menos 13
pontos percentuais acima
da média europeia ao
longo do período.
Aqui, ao contrário
da Europa, não podemos
falar numa “geração nem
nem”, ou de um grupo
etário específica e intensamente afetado pela crise de 2008. A linha pontilhada do gráfico relativo aos homens de 15 a
29 anos deixa clara a pequena variação em torno
da média de 11,2% (desvio padrão de apenas 0,3
pontos percentuais) de
jovens excluídos do trabalho e da escola ao longo dos 12 anos retratados
aqui. A partir de 2008,
houve pequeno aumento na taxa, de 10,8% para
11,9%, mas não a ponto
de provocar uma “explosão” de exclusão capaz,
por exemplo, de ser percebida como crítica. A
inflexão observada ocorreu no interior da zona de
variação (em torno da média) típica da década anterior. E, vale notar que
esse comportamento médio, isto é, relativo a todo o
grupo de 15 a 29 anos, se repetiu em cada faixa
etária em particular, com possível exceção dos mais
jovens entre eles (15 a 19 anos). Aqui, o desvio
padrão foi um pouco maior (0,6 pontos percentuais),
com crescimento de 10% para 11,4% na taxa “nem
nem” de exclusão entre 2008 e 2011. Ainda assim,
trata-se de crescimento longe de poder ser considerado explosivo, mesmo se imaginarmos que, nessa
faixa etária, quando fora dos ambientes de sociali-
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zação secundária mais importantes (a escola e o local de trabalho), os jovens estão em posição mais
vulnerável vis-à-vis o que se poderia denominar “os
apelos do mundo”, isto é, as redes sociais concorrentes que convocam constantemente seu
engajamento.9
O caso das mulheres é algo diverso, porque
a queda na taxa “nem nem” de exclusão vinha ocorrendo de maneira lenta, mas contínua, queda que
foi interrompida bruscamente em 2008. Ainda assim, a interrupção, aparentemente, não foi tal que
tivesse potencial para gerar a percepção de que se
estava vivendo uma crise social.10
Esse rápido quadro mostra que a faixa etária
escolhida pela OCDE apresenta problemas analíticos importantes. Idades entre 15 e 29 anos expressam momentos biográficos muito distintos. Aos
quinze anos, estar fora da escola é uma “anomalia”
que diz muito sobre o sistema escolar, que deveria
ser o destino de todos eles, ainda mais na nova
configuração do Ensino Fundamental no Brasil,
com duração de 9 anos ou séries. Aos 15 anos, a
totalidade dos(as) jovens deveria estar estudando,
de preferência na nona série (num currículo normal, sem atrasos ou repetência), enquanto outra
parte poderia estar no primeiro ano do Ensino
Médio.11
Na outra ponta do espectro etário sugerido
pela OCDE (que mantive para efeito desta comparação), os/as jovens de 29 anos, em princípio, já
deram início à sua vida produtiva, e, ao contrário
dos muito jovens, deles deve-se esperar que estejam procurando emprego ou trabalhando em sua
maioria ou, no caso das mulheres, em parte viven9
Refiro-me ao mundo do crime, ao ócio improdutivo, às
redes sociais reais (as gangs, turmas e galeras) ou virtuais, e, também, o mundo religioso etc.
10
Os movimentos coletivos de junho de 2013 no Brasil
não parecem ter sido detonados pela crise de desemprego juvenil. O estopim da mobilização foi o Movimento
pelo Passe Livre (MPL), uma organização estudantil, e,
na infinidade de demandas difusas propostas pelos jovens nas ruas, não estava o fim do desemprego, como
foi o caso na Europa, muito especialmente em Portugal
e na Espanha.
11
E, de fato, 92% dos jovens daquela faixa etária estavam
estudando em 2011, segundo a mesma fonte do Gráfico
2. Mas 8,3% dos homens e 7,8% das mulheres já não
estavam na escola. E dois terços desses jovens tampouco
estavam no mercado de trabalho, seja empregados ou
procurando emprego.
do projetos de construção familiar.12 Em todo caso,
ainda que ter filho estivesse associado à maior proporção de mulheres adultas “nem nem”, as que
trabalhavam eram a maioria (62% das mães e 76%
das que não tinham filho), e uma pequena proporção apenas estudava.
Isso recomenda parcimônia na delimitação
do espectro etário relevante para a análise da condição “nem nem”. Abro, então, um parêntese para
avaliar o problema com maior rigor.
SOBRE JUVENTUDE E GERAÇÕES
Num momento dado da biografia de uma
pessoa (indivíduo de uma geração determinada), ela
é o produto de sua trajetória, o resultado acabado,
até aquele ponto, de suas escolhas e ações passadas
ou, quando muito jovens, das escolhas, ações e
omissões (mais ou menos restritas ou favorecidas
pela classe social ou trajetória de vida) de seus pais
ou responsáveis quanto a em que escola estudar,
em que bairro morar, que atividades físicas ou artísticas desenvolver, que amigos favorecer ou evitar
etc. Como ponto de chegada de biografia mais ou
menos escolhida, mais ou menos vivida como resíduo das escolhas de outros, ou seu resultado, a
pessoa é, também, um conjunto multidimensional
de possibilidades, cuja finitude é função dos recursos socialmente disponíveis, disponibilidade que
está, desde logo, desigualmente distribuída. As pessoas não nascem iguais em suas potencialidades e
possibilidades. A desigualdade está inscrita no território de nascimento (campo ou cidade, cidade grande ou pequena, o Brasil ou a Suécia), na existência
ou não de hospitais e condições adequadas de salubridade do local de nascimento, nos recursos financeiros e culturais das famílias, no acesso à saúde pré-natal da mãe e do bebê etc., e nada disso está
igualmente distribuído. Isso é uma trivialidade sociológica, e serve apenas para deixar claro, desde
12
Na verdade, ter tido um filho impacta mais intensamente as mulheres mais jovens. Nada menos que 70%
das mães de 15 anos eram “nem nem”, taxa que caía a
35% no caso das mães que tinham 29 anos. Entre as
mulheres sem filhos nesta faixa etária, a proporção de
“nem nem” caía para 21%.
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logo, que as pessoas não são potencialidades
indeterminadas ao nascer. Seus caminhos possíveis
configuram um conjunto de probabilidades de destino em etapas sucessivas da vida que apenas muito tardiamente são vividas pela pessoa como propriamente fruto de escolhas suas.13
Num momento determinado da vida, pois, a
pessoa é o ponto de chegada de potencialidades
desiguais no ponto de partida tornadas, na trajetória de vida, corpos desiguais, habilidades físicas e
mentais desiguais, recursos socioeconômicos desiguais inscritos em redes institucionais e de interação
que configuram capitais econômico, cultural e social desiguais. Toda pessoa, queira ou não, saiba disso ou não, traz consigo o seu passado. Mas ela é,
também, um conjunto de potencialidades que não
estão jamais inscritas inteiramente em seu passado
como campo de determinações já realizadas em seu
corpo e em sua mente. O que a pessoa é (na totalidade finita de suas determinações atuais em termos
de recursos econômicos, habilidades cognitivas,
disposições físicas, constituição emocional, preferências, projetos de vida e padrões éticos) nos permite tecer hipóteses bastante plausíveis sobre suas
oportunidades de vida no futuro, mas essas hipóteses estão destinadas a ser negadas em boa parte.
Isso porque a sociedade moderna é aberta até certo
ponto,14 fluida até certo ponto, obviamente de maneira diversa para as diversas classes sociais, mas é
indubitável que está em constante transformação,
sendo esta uma característica definidora da
modernidade (Giddens, 1991). Se o médio prazo
está sendo parido nas entranhas do presente, e terá
dele aquilo que, em toda sociedade, é acomodação
de processos de história lenta (as mudanças
populacionais, as transformações na estrutura produtiva, a configuração institucional do Estado, nela
13
Bourdieu (2007[1979]) chamou a atenção para o caráter
sistemático e de classe das probabilidades de trajetórias
de vida. Uma crítica interna ao constructo bourdieusiano
é Lahire (2001), que recusa a ideia de habitus como
corporificação das trajetórias pessoais. Sua noção de disposições é mais próxima do que proponho aqui.
14
É conhecida a formulação “tudo que é sólido desmancha no ar” de Marx no Manifesto Comunista, apropriada
por Marshall Berman em seu livro de mesmo nome, no
qual a modernidade é apresentada como uma era fáustica.
O próprio Berman (1982) sugere que o faustianismo da
modernidade bebe do sangue dos trabalhadores.
o sistema educacional etc.), permitindo, com isso,
grande previsibilidade dos movimentos em grande
escala, por outro lado, é muito difícil prever, com
segurança, o destino de um indivíduo em particular
e mesmo de comunidades inteiras. Quando as comunidades imaginadas que são as nações (Anderson,
1993) atingem certo patamar de renda e riqueza, o
mundo de possibilidades e oportunidades abertas a
seus membros deixa de ser um conjunto de impossibilidades ou barreiras à mobilidade ou à fruição dos
recursos socialmente disponíveis, e isso para parcela crescente dos concidadãos. Isso porque o crescimento econômico, em toda parte, ganha a forma,
dentre outras coisas, de recursos materiais e simbólicos públicos, mesmo quando destinados a favorecer
a atividade econômica e a acumulação de capital. Rodovias, ferrovias, energia e os muitos serviços de comunicação são apenas alguns exemplos desses meios e recursos que, criados pela e para acumulação
capitalista, melhoram as condições de vida de parcelas crescentes da população. A materialização desses
recursos no território lhes dá durabilidade, e, uma
vez materializados, eles mudam as probabilidades
de percurso de grupos inteiros de indivíduos, com
isso dificultando a construção de prognósticos plausíveis sobre sua vida no futuro.
O acesso a esses recursos é desigualmente
distribuído, claro, e um dos marcadores centrais
dessa desigualdade é, justamente, a idade. Mais
ainda quando se miram os mercados de trabalho e
escolar. Mudanças sociais ocorrendo num período específico não afetam da mesma maneira as diferentes gerações. Uma crise no mercado de trabalho que reduza de forma importante as chances de
emprego dos mais jovens (como o que ocorre hoje
na Europa e muito especialmente na Grécia e na
Espanha) tem efeitos sobre todos, mas os jovens
terão comprometidas suas chances de vida por
muitos anos, provavelmente para o resto de suas
vidas.15 Do mesmo modo, uma hecatombe nuclear
15
A literatura sobre impactos de eventos de desemprego
juvenil na vida produtiva posterior tem longa história na
Europa, onde pesquisas longitudinais são comuns. Para
comparações entre vários países, ver Russel e O’Connell
(2001), Bradley e van Hoof (2005) e Wolbers (2007). Perspectivas de longo prazo são Steijn (2006), sobre a Holanda,
e Vanttaja e Järvinen (2006) sobre a Finlândia. Ver ainda
Shildrick e MacDonald (2007) sobre as trajetórias de exclusão dos mais pobres na Inglaterra.
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Adalberto Cardoso
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tem o mesmo efeito sobre a saúde de todos, mas o
efeito é mais duradouro para os mais jovens, que
precisarão construir suas vidas com um handicap
sanitário que terá duração mais curta para os mais
velhos, muitos deles já aposentados. As gerações
chegadas ao sistema educacional num momento
de universalização da oferta ou de melhoria generalizada de sua qualidade terão condições melhores de acesso a melhores posições no mercado de
trabalho do que gerações imediatamente posteriores, ou eventualmente anteriores, que sofram com
momentânea, mas duradoura (tendo em vista as
janelas temporais de suas vidas) crise do ensino
no futuro (por exemplo por desinvestimento, como
ocorreu na Argentina nos anos 2000 e tende a ocorrer na Grécia e na Espanha hoje, fruto da falência
dos estados de bem estar nos dois países). Guerras
civis têm efeito semelhante, e assim por diante.
Além disso, as sociedades demarcam barreiras à entrada em dimensões institucionais que
são, muitas vezes, em parte ou exclusivamente
etárias: classificação etária de eventos culturais, por
exemplo, com fronteiras rígidas (proibindo a entrada de menores de 18 anos – como nos cinemas
ou casas noturnas) ou mais latas, mas, ainda assim, importantes, como a proibição do trabalho
para menores de 14 ou 16 anos, dependendo do
país, a obrigatoriedade de aposentadoria a certa
idade etc. Se essas barreiras se aplicam a todos os
membros de uma certa idade em qualquer tempo
(desde que as regras não mudem), num momento
dado do tempo é uma geração específica que as
vivencia, aquela que tem 14 ou 16 anos ou a idade
obrigatória de aposentadoria, por exemplo. No ano
seguinte, serão outras pessoas etc., mas é um grupo específico de pessoas a cada vez que vive a
mesma experiência e ao mesmo tempo.16
16
O problema das gerações frequenta a discussão sociológica de tempos em tempos, sem nunca deixar a cena
teórica ou de pesquisa. Os trabalhos pioneiros são, obviamente, Ortega y Gasset (1987) e Manheim (1928), mas
crises periódicas, que afetam gerações de jovens, colocam de novo o tema em evidência. Foi o caso com o
movimento estudantil de 1968 no mundo e é o caso
agora, na discussão da “geração nem nem”. Para o maio
de 1968, analisado do ponto de vista geracional, ver
Eisenstadt (2002). Domingues (2002) é uma boa sistematização do debate teórico sobre o tema.
É nesse sentido que é possível falar-se numa
geração “nem nem” em certos países europeus,
um grupo etário que trará consigo uma marca coletiva e comum a todos os seus membros, de dificuldade ou impossibilidade de acesso ao sistema educacional e ao mercado de trabalho num momento crucial de suas trajetórias de vida.
Pois bem, avaliado contra esse pano de fundo, o espectro etário de 15 a 29 anos (utilizado
pela OCDE no estudo apresentado mais acima)
marca momentos muito distintos nas biografias dos
jovens, suas potencialidades e possibilidades. Em
termos substantivos, comparar um/a jovem “nem
nem” de 15 anos com outro/a de 29 não faz sentido, já que boa parte das condições sociais e das
possibilidades biográficas e identitárias dessas idades polares é, a rigor, incomensurável. Na seção
anterior, utilizei a faixa de 15 a 29 anos porque o
interesse era comparar com a situação na Europa,
cujos dados foram tornados públicos quando eu
iniciava a redação deste artigo. Agora, é preciso ser
mais rigoroso na delimitação do escopo empírico
da análise, se o que se tem em mente é compreender, de maneira adequada, a condição “nem nem” e
formular uma agenda de pesquisas para o país, tendo em vista, sempre, determinações e
potencialidades de trajetórias sociais que, de algum
modo, permitam a realização de projetos virtuosos
de inclusão social, isto é, longe das zonas de
vulnerabilidade representadas por empregos precários, desemprego, ausência de proteção social etc.
Proponho como faixa etária de interesse para
o estudo da condição juvenil “nem nem” como
um problema social digno de se transformar em
problema sociológico, aquela entre 18 e 25 anos.
Sustento que, nessa faixa etária, faz sentido usar o
termo “taxa nem nem de exclusão” como uma
medida da vulnerabilidade social dos jovens, tendo em vista que:
1. Aos 18 anos a maioria dos jovens brasileiros já
deixou ou está em vias de deixar o ensino médio.17 Como a taxa de transição para o ensino
17
Ver Leão et al. (2011); Silva et al. (2012). Pesquisa quantitativa importante sobre as mudanças nos padrões de
entrada no mercado de trabalho é Tomás et al. (2008).
300
Adalberto Cardoso
18
No Brasil, como se sabe, é grande a proporção de jovens que
deixa os estudos para trabalhar ou ajudar a família e, depois,
retomam sua formação escolar quando estão em condições
de financiar a universidade, em geral privada. Ver Cardoso
(2013), Ribeiro (2011), Comin e Barbosa (2011).
e 2010 no Brasil. Os modelos foram construídos a
partir dos dados dos Censos Demográficos realizados naqueles anos. Diferentemente do que foi
feito até aqui, a condição “nem nem” será definida
como a totalidade dos jovens de 18 a 25 anos que
não estavam nem na escola nem no mercado de
trabalho, quer dizer, não tinham um emprego e
não estavam em busca de um. Na discussão anterior, incluí os que procuravam trabalho (ação que
define um desempregado) porque o interesse era
comparar com os dados disponíveis para a OCDE.
Agora, interessa a condição “nem nem” purificada
dos jovens que tinham, ao menos, a expectativa de
um emprego, expectativa expressa nas ações que tomaram para conseguir um. Essa definição torna mais
apropriado falar-se em “taxa nem nem de exclusão”,
já que os jovens deveriam estar na escola ou, se fora
dela, ao menos procurando trabalho. Não estando
nem numa nem noutra condição, estão, de fato, excluídos de duas das principais estruturas de socialização e construção de identidades sociais para pessoas nesse estágio de suas biografias.
UM MODELO PARA EXPLICAR A CONDIÇÃO
“NEM NEM”
Partamos da conhecida formulação de Marx
no 18 Brumário: as pessoas fazem sua própria história, mas “não a fazem sob circunstâncias de sua
escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitas pelo passado”
(Marx, 1978, p. 331). Essas circunstâncias estão
materializadas na estrutura dos mercados de trabalho dos locais onde vivem; na rede de estruturas estatais de suporte à vida e à atividade econômica; no conjunto de recursos existentes no território onde as pessoas constroem sua trajetória de
vida. Como já se sugeriu, tudo isso está desigualmente distribuído em termos geográficos. Um modelo de explicação das probabilidades de exclusão da escola e do mercado de trabalho deve ter
em conta essas diferenças. Alguém pode ser “nem
nem” não por escolha ou acaso, mas por morar
num município desprovido de recursos econômi-
301
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
superior é historicamente baixa no país (Pinto,
2004; Comin e Barbosa, 2011, Torche e Ribeiro,
2012), deixar o ensino médio significa, para a
maioria dos jovens, deixar o sistema escolar,
mesmo que provisoriamente.18 No caso das mulheres, por exemplo, a proporção de “nem nem”
saltou de 19% aos 17 anos para 30% aos 18 em
2011 (segundo a PNAD), mantendo-se nesse
patamar ou em nível levemente superior nas idades subsequentes. No caso dos homens, segundo a mesma fonte (PNAD), a proporção saltou
de 11% para 18% entre os 17 e os 18 anos, caindo a partir daí até 11% aos 25 anos, taxa que se
manteve nas idades subsequentes. Trata-se, pois,
de idade (18 anos) marcadora do abandono da
escola e da possível entrada no mercado de trabalho para boa parte dos jovens. Geradora, portanto, das tensões e inseguranças típicas das transições biográficas cruciais, e que resulta em frustração de expectativas de emprego para boa parte deles ou, ainda, de inserção precária e insegura no mercado de trabalho.
2. Aos 25 anos, as taxas de exclusão “nem nem” estão
estáveis para homens e mulheres, em torno de 11%
no primeiro caso e de 32% no segundo. A idade
parece perder influência a partir desse marcador
biográfico. Isto é, parece plausível imaginar que, na
explicação da condição “nem nem”, ganham relevância características multidimensionais,
extraetárias, relativas ao ambiente social mais
geral em que os jovens passam a circular.
Isto posto, voltemos à questão central que
nos guia nesta investigação: o que explica as taxas
“nem nem” de exclusão no Brasil? Por que, por
aqui, elas não provocaram a mesma comoção que
na Europa? Para oferecer respostas tentativas a essas perguntas e extrair delas elementos para uma
agenda de pesquisas e políticas públicas, no que
se segue, apresentarei dois modelos logísticos, tendo a condição “nem nem” de jovens de 18 a 25
anos como variável dependente para os anos 2000
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ...
cos e institucionais, isto é, escola ou emprego para
todos os que queiram estudar ou trabalhar.
Isso delimita a hipótese central a se investigar: a condição “nem nem” é fruto tanto de escolhas e trajetórias individuais quanto de contextos
nos quais as pessoas tomam suas decisões, sobre
os quais elas têm pouca ou nenhuma capacidade
de intervir diretamente, e que, por isso, funcionam como condicionantes mais gerais de suas
oportunidades de vida. Uma pessoa pode escolher mudar de cidade ou estado (ou mesmo de
país) para melhorar suas probabilidades futuras,
mas, num momento dado, essas escolhas já se
materializaram no que estou denominando aqui
de “taxa nem nem de exclusão” e não podem ser
mudadas pelo indivíduo isolado.
A segunda hipótese, derivada da anterior,
sustenta que, no caso do Brasil, a persistência de
taxas elevadas de jovens “nem nem” (que dá caráter estrutural a essa condição) vem sendo
contrabalançada por mudanças na direção oposta
às observadas na Europa. Por aqui, o contexto econômico era, em 2010, bastante mais favorável do
que o de dez anos antes, com isso renovando os
horizontes de expectativa dos jovens e tornando
críveis as perspectivas de inclusão no futuro.
A Tabela 1 apresenta os dados agregados
para o Brasil nos dois pontos no tempo, isto é, a
distribuição da taxa “nem nem” de exclusão, que
é, também, a variável dependente dos modelos
propostos. A proporção total variou pouco, de
perto de 21% para perto de 20% de “nem nem”
em 10 anos. Estamos falando de 5,5 milhões de
jovens em 2000 e 5,3 milhões em 2010. Essa aparente estabilidade esconde mudanças importantes
segundo o sexo. Confirmando a tendência detectada nos dados da PNAD, a taxa “nem nem” de
exclusão das mulheres caiu quase 4 pontos
percentuais, enquanto a dos homens cresceu 1,6
ponto. Havia 4 milhões de mulheres “nem nem”
em 2000, e 3,5 milhões em 2010, enquanto eles
subiram de 1,5 para 1,8 milhão de excluídos. Em
2000, as mulheres representavam 72% do total dos
“nem nem”. Em 2010, 66%. A “taxa nem nem” de
exclusão continua a ser muito mais alta entre as
mulheres, mas a mudança detectada permite alimentar a hipótese de que o efeito das variáveis
selecionadas não será o mesmo nos dois pontos
no tempo, tanto pelo aumento da proporção de
homens quanto pela queda das mulheres. Isso
porque sabemos que homens e mulheres têm destinos sociais distintos quando deixam a escola, em
grande parte condicionados pelas hierarquias socialmente construídas com base nas relações de
gênero (Hirata, 2002). E, também, porque ocorreram muitas mudanças nos padrões familiares e
comportamentais nos 10 anos que separam os dois
recenseamentos,19 para não falar das mudanças
econômicas discutidas mais abaixo.
A condição social de interesse é fruto de
história, circunstâncias atuais e escolhas que não
são adequadamente mensuradas nas pesquisas
domiciliares. Qualidade do ambiente familiar, estrutura do mercado de trabalho, estrutura da oferta educacional, preferências pessoais ou projetos
de vida, nada disso é coberto pelos censos
demográficos. Tudo o que podemos fazer é construir medidas aproximadas a partir dos dados disponíveis, e tecer, a partir dessas aproximações,
hipóteses sobre as condições subjacentes às práticas dos jovens (como a disposição para se mobilizarem ou não para mudar o destino coletivo de
uma eventual “geração nem nem”).
Um modelo multivariado apresenta muitas
vantagens, porque permite mensurar o impacto
independente de uma variável, num ambiente complexo em que múltiplos determinantes atuam ao
mesmo tempo. O modelo proposto mescla indicadores de contexto (familiar e municipal) com indicadores de trajetória pessoal dos jovens de 18 a 25
19
Extensa discussão sobre as mudanças na composição
das famílias é encontrada em Alves e Cavenaghi (2012).
E, ainda, em Leoni, Maia e Baltar (2010).
302
anos. Trata-se, portanto, de modelo multinível, que
opera com variáveis enquanto agregados construídos
a partir das informações sobre os indivíduos, e com
variáveis propriamente individuais. Três agregados
foram construídos para dar suporte à hipótese de
que diferentes contextos oferecem chances diversas
de inserção social dos jovens:
1. Tamanho do município. Variável fruto do agregado dos moradores do município. Os municípios
foram agrupados em faixas de tamanho, como se
verá. Espera-se encontrar menos “nem nem” quanto maiores os municípios, na hipótese de que eles
oferecem maiores oportunidades de emprego e,
também, é a maior a oferta escolar;
2. Mercado de trabalho municipal. Foi construído
um proxi da capacidade de o município oferecer
empregos, composto da taxa de participação das
pessoas de 10 anos ou mais na PEA, ou seja, a
proporção de pessoas com essa idade que estava
empregada ou procurando emprego. A variável
assume o mesmo valor para todos os moradores
do mesmo município. Logo, ela distingue não
as pessoas, mas os próprios municípios, uns
em relação aos outros, como ambientes em que
se gera ou não empregos. Para tornar-se
operacionalizável e comparável nos dois pontos
no tempo, transformei a distribuição em decis.
Em 2000, os primeiros 10% tinham taxa de participação na PEA de até 39,09%, enquanto os
10% de maior participação tinham taxa de
60,79% ou mais. Em 2010, os números eram
superiores a esses (47,61% e 64,67% respectivamente), como era de se esperar, já que foi um
ano de boom econômico e de geração de empregos, o que contribuiu para elevar a taxa de participação, sobretudo das mulheres. A hipótese,
aqui, é a de que, quanto maior a taxa de participação na PEA, menor a proporção de “nem nem”
na população mais jovem.
3. Oferta escolar municipal. Trata-se, também, de
um proxi. Definiu-se como indicador aproximado da existência de uma rede municipal de ensino a proporção de pessoas com idade entre 7 e
17 anos que estava fora da escola no município.
Evitou-se incluir jovens de 18 anos porque essa
faixa etária define a população de interesse (jovens de 18 a 25 anos), o que geraria um problema de autocorrelação. Aqui, também, a variável
assume o mesmo valor para todos os moradores, distinguindo, portanto, os municípios em
sua capacidade de manter os jovens na escola
antes dos 18 anos. A variável também foi transformada em decis de sua distribuição, pelas mesmas razões da variável anterior. A hipótese a se
testar é a de que quanto mais jovens estejam fora
da escola num município (expressão da baixa
capacidade de investimento municipal), maior a
chance de que um jovem de 18 a 25 anos seja
“nem nem”.
4. Região do país. Ainda como tentativa de controle das diferenças geográficas, incluí a região do
país no modelo. Explorações iniciais do problema mostraram que as regiões Norte e Nordeste
apresentam as maiores taxas “nem nem” de exclusão, e a região Sul, as menores.
5. Mora na cidade. Esse indicador complementa
aquele sobre tamanho do município, ao distinguir os que moram na cidade e no campo. A
hipótese é que o campo terá menor proporção
de “nem nem” do que a cidade, tendo em vista a
tradição brasileira de trabalho precoce no mundo rural.
Os indicadores de contexto familiar são, em boa
parte, oferecidos pelos censos demográficos, alguns sendo perguntados diretamente (como a
renda e o número de moradores do domicílio),
outros sendo construídos depois pelo IBGE.
Além dessas, criei outras para dar mais substância à hipótese da importância da família nas decisões e oportunidades dos jovens.
6. Renda familiar per capita. Utilizei a informação
que veio originalmente nos censos, transformando-a em decis de sua distribuição, também para
facilitar a comparabilidade. A hipótese é a de
que quanto mais pobres as famílias, maior a taxa
“nem nem” de exclusão, já que é potencialmente menor a capacidade das famílias sustentarem
seus filhos na escola, menor a escolaridade média destes e menores as chances de emprego,
dada a baixa qualificação.
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
Adalberto Cardoso
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JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ...
7. Tamanho da família. O número de membros da
família não terá impacto direto, supõe-se, mas pela
mediação da renda (de modo que famílias grandes
com renda baixa terão chances diversas de famílias grandes com renda alta) e das condições estruturais dos municípios. Ainda assim, quis-se averiguar se essa variável tem impacto independente
desses outros determinantes e em que direção.
8. Número de filhos de 4 anos ou menos na família. Essa é uma variável típica dos estudos sobre
determinantes da renda pessoal ou da participação no mercado de trabalho. A hipótese é que
um filho pequeno na família aumenta as chances
de jovens mulheres deixarem os estudos e o trabalho (seja porque são as mães dessas crianças,
seja porque são instadas a cuidar das crianças
da família enquanto os adultos trabalham).
9. Há outro “nem nem” na família. Essa variável
foi incluída na suposição bastante plausível de
que, se há um jovem na família em condição vulnerável, haverá outros na mesma condição. A
variável apresenta dificuldades, já que a pessoa
que é “nem nem” está contida em sua definição,
isto é, onde há dois “nem nem”, há, necessariamente, um. Ao transformar a informação numa
característica familiar, o problema é, em parte, solucionado, sobretudo num modelo multivariado
em que outras variáveis familiares ou contextuais
estão em operação. É um problema de
colinearidade, mas decidi pagar o “preço estatístico” para ganhar em compreensão do problema
como algo que parece estar para além dos próprios indivíduos, embora seja vivenciado por eles.
Além dessas variáveis de contexto, geradas secundariamente a partir das informações sobre as
pessoas, o modelo inclui indicadores individuais sobre os jovens, suas características inatas e
aspectos de sua trajetória pessoal. Já vimos que
as probabilidades de se estar na condição “nem
nem” são diversas segundo o sexo e a idade.
Mas há outras dimensões relevantes disponíveis
nos censos demográficos.
10. Sexo. O modelo toma as mulheres como referência, isto é, mede o efeito de ser homem na
probabilidade de ser “nem nem”, por compara-
ção com ser mulher. Espera-se efeito negativo (redução da probabilidade), já que esse resultado
já foi apresentado na Tabela 1.
11. Cor. Agregou-se a informação dos censos numa
dummy distinguindo brancos e não brancos. Os
não brancos são a referência da regressão. Sigo,
aqui, a sugestão de Hasenbalg e Silva (2003), que
mostraram que as probabilidades de pretos, indígenas e pardos distam consistentemente das
de brancos e amarelos, e são muito próximas
entre si, tendo em vista o acesso à renda, à educação e ao mercado de trabalho.20
12. Escolaridade. Trata-se de outra dummy agrupando os que tinham escolaridade menor do que
ensino fundamental completo (8 anos ou menos),
e a referência na regressão são os com mais escolaridade do que isso. Espera-se que os menos
escolarizados sejam “nem nem” em maior proporção, já que, tendo 18 anos ou mais, é grande a
probabilidade de que estejam fora da escola. Com
baixa qualificação formal, terão, por hipótese, maior chance de estar também fora de um emprego.
13. Tem uma restrição física grave. Trata-se de uma
dummy que indica se a pessoa tem dificuldade
permanente de enxergar, ouvir, caminhar ou tem
uma doença mental. Supõe-se que qualquer dessas dificuldades impõe restrições à atividade
escolar ou de trabalho.
14. Mulher com filho. Outra dummy, agora distinguindo as que têm e não têm filho. É sabido que
os filhos são os principais determinantes da saída das mulheres do mercado de trabalho, e sabemos, pelos dados do próprio censo, que eles
afetam, também, a frequência à escola.
15. Vive com os pais ou padrastos. Supõe-se que
jovens vivendo em família têm maior probabilidade de permanecer estudando, reduzindo as
chances de que sejam nem nem.
16. Tem ou teve cônjuge. A vida conjugal, presente ou passada, é outro determinante importante
das chances das mulheres (e em menor parte
dos homens), resultando, frequentemente, no
abandono da escola e do trabalho.
17. Morou em outro município além do atual. A
20
Ver também Cardoso (2013: cap 3).
304
migração dos jovens, para acompanhar os pais
ou por si mesmos, em geral se acompanha de
incerteza quanto à inserção escolar e por vezes
empregatícia. Procurou-se mensurar o efeito de
ter migrado, ainda que sem o controle do período em que essa migração ocorreu, e espera-se
que ele seja positivo, quer dizer, aumente a probabilidade de ser “nem nem”.
18. Idade. Vimos que a probabilidade de ser “nem
nem” varia com a idade, e pretende-se medir a
direção do efeito independente desse indicador.
DISCUSSÃO
Os modelos para os anos 2000 e 2010 são
apresentados na Tabela 2. Ela traz os efeitos líquidos de cada indicador, isto é, tem-se o quanto a
probabilidade de ser “nem nem” aumenta ou diminui quando a condição ocorre, por comparação
com a categoria escolhida como referência em cada
variável, mantidos constantes os efeitos de todos
os outros indicadores. Com exceção do número
de componentes do domicílio e do número de crianças com 4 anos ou menos, todas as variáveis de
interesse foram transformadas em dummies (assumem o valor 0 ou 1), e o efeito de cada categoria de
uma variável se mede em relação à probabilidade
da categoria de referência. Por exemplo, no caso
da renda familiar, se o jovem morava numa família
entre as 10% mais pobres em 2000, a probabilidade de ser “nem nem” era 232,9% maior do que a
de um jovem de família entre as 10% mais ricas,
categoria de referência selecionada no modelo,
mantida constante (pela média) a probabilidade de
ser “nem nem” em todas as outras variáveis. Em
2010, essa probabilidade havia saltado para 797,5%.
Com exceção dos indicadores marcados com
(**), todos os outros são estatisticamente significativos em pelo menos 0,01, a maioria superior a
0,001, sendo, portanto, muito robustos. Além disso, os modelos apresentam falsos R2 de 0,39 em
2000 e 0,36 em 2010, indicando que 36% ou mais
da variância da taxa “nem nem” de exclusão são
explicados por eles.
Os modelos confirmam a hipótese geral sobre os efeitos de contexto e trajetória, e, com poucas exceções, as hipóteses específicas sobre os efeitos de cada indicador também se confirmam. E
houve mudanças importantes no impacto independente de cada indicador, entre 2000 e 2010, tendo
em vista as profundas transformações por que passou o país no período. Desçamos, então, a alguns
detalhes desse quadro geral.
Os contextos familiar e municipal se mostraram preditores poderosos das taxas “nem nem”
de exclusão. Tomando-se o tamanho da família,
cada novo membro adicionado reduzia entre 8 a
11% as chances de um jovem de 18 a 25 anos ser
“nem nem” em 2000 e 2010. Vale marcar que a
redução é contraintuitiva, já que a proporção de
“nem nem” é sempre maior quanto maior o grupo
doméstico, quando se trabalha com essa variável
fora do modelo.21 Isso significa, como sugerido,
que o efeito do tamanho da família se dá pela mediação de outros indicadores. E, de fato, se ajustamos o modelo passo a passo, adicionando uma
variável de contexto por vez, o efeito do tamanho
da família é sempre positivo até a inclusão da renda. É o controle pela renda familiar que inverte o
sinal. Ou seja, o contexto familiar, de fato, configura-se como um campo onde interagem diversas
dimensões, e não faz sentido tratar cada variável
individualmente, sendo a renda a dimensão mais
importante, mediadora dos demais indicadores.
O número de crianças de 4 anos ou menos
no domicílio também mostrou-se relevante, com
cada criança a mais reduzindo, em quase 10%, a
probabilidade de um jovem “nem nem” na família. A queda do impacto desse indicador entre 2000
e 2010 ocorreu no interior do intervalo de confiança dos parâmetros, portanto, não é significativa
em termos estatísticos. Seria de se esperar mudanças mais pronunciadas, tendo em vista, por exemplo, que, em 2000, 2,6% das famílias tinham um
neto ou bisneto residindo no domicílio. Em 2010,
a proporção subira para 4,8%. Isto é, havia au21
Uma regressão linear, contendo apenas a proporção de
“nem nem“ segundo o número de membros da família,
gera um R2 de 0,899 em 2010, com cada membro a mais
gerando um aumento médio de 4,3% naquela proporção.
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mentado a proporção de convivência de mais de
uma geração no mesmo espaço doméstico, com filhas (e filhos em menor medida) morando com os
pais, sendo elas mesmas mães precoces. Mas essa
mudança não aumentou o efeito independente de
ter criança em casa. E, como no caso do número
de membros da família, é a mediação da renda familiar que inverte o sinal do efeito, de outro modo
positivo. Isto é, famílias mais ricas com crianças
têm menor probabilidade de ter um jovem “nem
nem” do que famílias pobres com crianças. Volto a
isso na conclusão.
E, como esperado, a inclusão do indicador
“tem outro nem nem na família” mostrou-se es-
sencial na construção do contexto familiar. O
parâmetro está enviesado, já que há um problema
de colinearidade (o indicador “tem outro jovem
nem nem no domicílio” contém a variável dependente), e é o que explica o elevado impacto independente dessa variável. Mas ela é teoricamente
relevante, além de empiricamente consistente: em
2010, por exemplo, nas famílias com mais de um
jovem com idade entre 18 e 25 anos de idade, se
um deles era “nem nem”, a chance de que o segundo também fosse era de espantosos 32%, segundo o mesmo censo demográfico. Havendo um
segundo “nem nem” nas famílias, com três ou mais
jovens da mesma idade, a chance de haver um
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
Adalberto Cardoso
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terceiro era ainda maior, de 41% (em 2000 as proporções eram de 21% e 32% respectivamente).
Logo, haver um “nem nem” na família é um
preditor poderoso das chances de haver outro,
sendo a condição “nem nem” um indicador da
vulnerabilidade diferencial das famílias.
O mais importante a reter nessa dimensão é
que os efeitos das variáveis contextuais foram muito
semelhantes nas duas pontas do tempo, com exceção da renda. Sabemos, pela literatura já citada, que
as famílias passaram por mudanças importantes em
sua estrutura no período, com aumento de famílias
unipessoais, famílias conviventes, mães solteiras,
homens vivendo sozinhos, famílias homoafetivas, etc.
Mas os efeitos dos indicadores de morfologia da família se mantiveram quase constantes. A mudança
mais importante ocorreu no impacto da renda familiar, com crescimento substancial do risco entre as famílias mais pobres em 10 anos. Em 2000, famílias
entre as 10% mais pobres tinham 233% mais chances
de ter um “nem nem” entre os seus do que famílias
entre os 10% mais ricos. Em 2010, esse valor havia
aumentado para quase 800%. Isto é, a disponibilidade de recursos familiares, tal como expressa pela renda enquanto capacidade de aquisição de bens como
saúde e educação para seus membros, por exemplo,
confere um caráter de classe às mudanças ocorridas
no período, com aumento da vulnerabilidade dos
mais pobres. Isto é, é maior a proporção de “nem
nem” em 2010 entre as famílias que, em termos relativos, tinham menores condições materiais de dar
respaldo a eles.
Na outra ponta, o contexto extrafamiliar também se mostrou relevante, mas em menor proporção do que a família. Os indicadores selecionados
de infraestrutura municipal são quase todos estatisticamente significativos, mas apenas o indicador de robustez do mercado de trabalho local (taxa
de participação de pessoas de 10 anos ou mais na
PEA) tem incidência incontestável, ainda que tenha perdido intensidade entre 2000 e 2010. Essa
perda parece estar associada à melhoria nas condições dos mercados de trabalho municipais, já que
cresceu de forma importante a taxa de participação
no tempo. Por exemplo, o valor de corte do pri-
meiro decil foi de perto de 37% em 2000, subindo
para quase 48% em 2010. A diferença entre o primeiro e o nono valor de corte foi de 24 pontos
percentuais no primeiro ano, caindo para 17 pontos em 2010. Ou seja, a desigualdade entre os
mercados de trabalho municipais foi reduzida de
maneira importante, muito em função do aumento
da taxa de participação das mulheres (Nonato et
al., 2012), e isso explica boa parte da perda de
intensidade do efeito da variável. Ainda assim,
morar num município no primeiro decil de taxa
de participação, aumentava em 56% a chance de
um jovem ser “nem nem” em 2010, em comparação com um município no topo da distribuição
(65% ou mais de pessoas na PEA).
Perdeu intensidade, também, o indicador
de investimento municipal na rede escolar, e pela
mesma razão, isto é, houve melhoria nas condições de escolaridade da maioria dos municípios
brasileiros, com isso reduzindo a desigualdade
entre eles e, por conseguinte, o efeito diferencial
nas chances de um jovem ser “nem nem”. Em 2000,
o valor de corte do primeiro decil foi de 6,11% de
jovens entre 7 e 17 anos fora da escola, proporção
que caiu para 3,25 em 2010 (queda de 2,86 pontos
percentuais). No topo (nono decil), a queda foi mais
intensa, de 5,37 pontos percentuais (os valores
estão entre parênteses na tabela). Isso aproximou
as características municipais, reduzindo o impacto independente dessa variável.
Os demais indicadores de contexto têm efeito mais brando sobre as taxas “nem nem” de exclusão. Morar na Região Sul tornou-se um pouco
mais vantajoso em 2010, por comparação com
2000, e no Nordeste, um pouco menos. O sinal do
efeito de se morar no Sudeste mudou de negativo
para positivo, mas numa faixa muito pequena de
variação. O tamanho do município, por sua vez,
ganhou maior relevância no tempo, com os menores municípios apresentando condições mais vantajosas em 2010 do que os maiores, por comparação com 2000. Isso também deve ser creditado à
melhoria geral das condições dos mercados de trabalho no interior do Brasil, como vem mostrando
a literatura especializada (IBGE 2012).
308
A terceira dimensão de interesse é a trajetória individual, que, no censo demográfico, é apreendida a partir de uma série de indicadores sobre
as características atuais das pessoas, boa parte delas fruto de escolhas, decisões e ações passadas. O
ponto mais importante a se salientar é que, com
exceção da idade dos jovens, todos os outros indicadores de trajetória perderam intensidade no tempo, ainda que permaneçam estatisticamente significativos. Ter uma restrição física grave, por exemplo, aumentava a chance de um jovem ser “nem
nem” em 407,6% em 2000, por comparação com
os que não tinham uma restrição. O efeito foi reduzido a menos de 117% em 2010. Efeito ainda
importante, claro, mas a queda estará, com certeza, associada ao impacto das políticas de ação afirmativa para portadores de necessidades especiais,
que obrigam empresas a contratá-los numa proporção de sua força de trabalho e as escolas a desenvolverem mecanismos de inclusão de deficientes visuais, auditivos ou físicos. A adaptação das
escolas para cadeirantes e o aumento da acessibilidade no espaço urbano são políticas com efeitos
semelhantes: reduzir as restrições de acesso dessas pessoas aos espaços da escola e do trabalho. A
persistência do efeito na casa dos 117% é indicador de que se está muito longe de universalizar a
acessibilidade, e esse é, certamente, um tema importante para uma agenda de pesquisas e políticas
públicas de desenvolvimento que tenha no horizonte a emancipação da maioria.
A redução do efeito da cor deve ser creditada ao mesmo processo de mudança nas relações
sociais no país, fruto de políticas públicas e de
redução da desigualdade daí decorrente. As políticas de ação afirmativa para negros estão longe de
resolver o problema secular que é a persistência e
reprodução da desigualdade racial, mas parecem
estar reduzindo a distância entre os jovens no que
respeita às chances de serem “nem nem”. Os brancos tinham quase 16% de chances de estarem nessa condição, por comparação com os não brancos
(tudo o mais permanecendo constante), efeito que
caíra a 2% em 2010. Lembre-se: está-se falando do
efeito, independente da cor, num ambiente em que
várias outras dimensões atuam ao mesmo tempo.
Logo, a cor não-branca, que, tomada individualmente, aumenta a probabilidade de um jovem ser “nem
nem”, por outro lado, quando controlada pelos efeitos de contexto, inverte o sinal. Ainda assim, o que
importa para nossa discussão é que a cor perdeu
intensidade no tempo como componente explicativo
da probabilidade de um jovem ser “nem nem”.
Os filhos, como previsto, aumentam muito
a probabilidade de as mulheres jovens serem “nem
nem”, embora, como no caso das variáveis anteriores, tenha havido queda no efeito desse indicador no tempo. Em 2000, ter filho aumentava em
300% a chance de uma mulher jovem ser “nem
nem”, por comparação com as que não tinham.
Em 2010, a probabilidade caíra para pouco mais
de 170%. A queda é importante e indica redução
do peso dos filhos como elemento de ruptura nas
trajetórias escolar e empregatícia das mulheres, o
que pode estar associado à melhoria das condições econômicas de suas famílias (que permitem
acesso a creches privadas), aumento da oferta de
creches públicas ou escolas maternais etc. Retomo
o ponto na conclusão.
Viver ou ter vivido com um cônjuge perdeu
muito de seu impacto de um ano ao outro. O casamento (efêmero ou duradouro) tem, historicamente, maior efeito de ruptura para as mulheres do
que para os homens. Esse efeito vem caindo, com
o tempo, para as faixas etárias mais velhas entre os
jovens. Mulheres casadas estão mais inseridas no
mercado de trabalho hoje do que em 2000, fruto
do processo já mencionado de transformação (embora lenta) das relações de gênero. E homens jovens experimentam relações conjugais precoces
mais intensamente hoje do que há dez anos, ainda
que não duradouras. A conjugação desses vetores
de mudança deve estar contribuindo para explicar
boa parte da anulação do efeito dessa variável entre os dois censos demográficos.
Por fim, e ao contrário do que seria de se
esperar, viver com os pais ou padrastos aumenta
as chances de o jovem ser “nem nem”, por comparação com os que não vivem. Aqui, também, o efeito
da variável se dá mediado por outros indicadores
309
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
Adalberto Cardoso
JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ...
da família, sobretudo a renda. Isso porque, tomado isoladamente (fora do modelo), há mais jovens
“nem nem” entre os que não estão morando com
os pais do que entre os que vivem em família. Ao
se controlar pela renda familiar, porém, o efeito
muda de sinal, sugerindo que morar com os pais
reduz o risco de ser “nem nem” apenas em determinadas condições de bem estar econômico familiar. Como há mais “nem nem” nas famílias mais
pobres, morar com os pais, nessas condições, aumenta a chance de ser “nem nem”. É o que explica
a mudança de sinal, ainda que a uma taxa não
muito alta (em torno de 10%).
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
CONCLUSÃO
A condição “nem nem” dos jovens é um
problema social de monta. Na Europa, ela adquiriu proporções explosivas, em parte por ter afetado diretamente jovens de classe média, que viram
ruir seus projetos de inserção social em condições
equivalentes ou melhores do que a de seus pais.
A condição “nem nem” é um problema geracional
e de classe por lá, e é vivida, em parte, como traição das promessas de emancipação pelo mercado,
tendo, portanto, a forma da luta contra o
neoliberalismo.22 No Brasil, a recorrência no tempo da taxa “nem nem” de exclusão (que lhe confere um caráter estrutural) não produziu os mesmos
protestos que na Europa, em parte porque ela afeta
mais as classes subalternas e as famílias mais pobres. E é exatamente por essa razão que o país não
pode considerar normal ou aceitável que um em
cada dez de seus jovens do sexo masculino entre
18 e 25 anos esteja fora da escola e do mercado de
trabalho. Essa proporção não é homogeneamente
distribuída no território, sendo muito pior nas regiões e municípios mais pobres do país e, mais
ainda, nas famílias de baixa renda. Isto é, a taxa
“nem nem” de exclusão é maior nas regiões e famílias mais vulneráveis, e, nesse sentido, deve ser
22
Ver os importantes artigos sobre os novos movimentos
sociais em Gohn e Bringel (2013) e também Estanque et
al. (2013).
tratada como um dos elementos centrais dessa
vulnerabilidade. Isso quer dizer que o país está
transmitindo a vulnerabilidade de uma geração a
outra em proporção significativa. A taxa “nem nem”
de exclusão, por ser estrutural e muito resistente à
queda, configura-se, então, como um dos elementos estruturantes da persistência das desigualdades entre nós. Proporções sempre altas de jovens
(que variaram pouco em torno da média de 11% no
caso dos homens nos últimos 15 anos e, mais ainda,
no caso das mulheres) carregarão para o resto de suas
vidas o peso de ter deixado cedo a escola, com isso
reduzindo suas chances no mercado de trabalho.
O problema é importante, também, no caso
das mulheres. Mesmo que parte significativa delas
seja “nem nem” porque constituiu família, a instabilidade dos laços afetivos no mundo contemporâneo torna mais do que provável a tentativa de
retorno delas seja ao mercado de trabalho, seja à
escola, caso os casamentos por ventura se desfaçam. A instabilidade dos vínculos empregatícios
dos maridos menos qualificados também pode levar a que elas procurem inserção ocupacional no
futuro, e isso se fará em condições de desvantagem vis-à-vis aquelas de sua geração que se qualificaram. Essa circunstância torna mais resistentes
à queda as desigualdades de gênero no mercado
de trabalho e, também, as desigualdades de renda
para mulheres de uma mesma geração. A taxa “nem
nem” de exclusão, pois, é um dos mecanismos
recônditos da persistência secular das desigualdades no Brasil. Atacar a condição “nem nem” é atacar, insisto, um mecanismo gerador de exclusão e
desigualdade a longo prazo.
Os modelos ajustados para a explicação das
taxas “nem nem” de exclusão, e as mudanças encontradas nos dois pontos no tempo sugerem elementos para uma agenda de pesquisas e políticas
públicas de desenvolvimento. O crescimento econômico e o maior acesso à renda têm efeitos
multiplicadores importantes num país em que os
serviços públicos de melhor qualidade são
mercantilizados, como é o caso do Brasil. Há educação e saúde públicas, mas o acesso a elas tem
nítido corte de classe, já que os serviços são consi-
310
derados de má qualidade. A melhoria na renda
leva as famílias a procurar serviços melhores no
mercado (escolas privadas, incluindo creches, planos privados de saúde, automóvel em lugar do
transporte público etc.), com isso reduzindo, em
parte, o peso das desigualdades de acesso à
infraestrutura urbana. O adensamento da malha
escolar pública e sua extensão a novas áreas geográficas no interior das regiões mais pobres do país
tem o mesmo efeito redutor de desigualdades regionais, abstraindo-se, para efeitos dessa discussão,
a qualidade dos serviços ofertados.
O fato de as taxas “nem nem” de exclusão
serem muito mais altas nas famílias de baixa renda
revela a importância das políticas de distribuição
de renda, sejam os programas de transferência condicional (tipo bolsa família), seja a política de valorização do salário mínimo. Essas políticas miram
o curto prazo, isto é, dar acesso imediato ao mundo dos serviços públicos que as décadas de
desinvestimento estatal acabaram transferindo ao
mercado. No longo prazo, a melhoria dos serviços
públicos oferecidos pelo Estado, decorrente do
aumento do investimento hoje em curso,23 tornará
menos relevante, espera-se, esse aspecto
mercantilizado das relações sociais, reduzindo,
ainda mais, as desigualdades que sustentam as
diferentes probabilidades de um jovem ser “nem
nem”. Nesse sentido, estão corretos os que insistem no caráter estratégico de uma educação pública e universal de qualidade.
Políticas de estímulo à manutenção dos jovens mais pobres na escola, a partir dos 18 anos,
também são absolutamente cruciais. As políticas
de cotas para estudantes em escolas públicas e para
negros no ensino superior podem ter esse efeito
no médio prazo, e devem ser intensificadas e
universalizadas no território nacional. Aspecto
decisivo, e não atentado pelas discussões sobre o
tema, é o de que alunos do ensino médio público
que hoje o abandonam adotam atitude perfeitamen23
O investimento por aluno no ensino médio atingiu 20%
do PIB per capita in 2009, contra 25% nos países da OCDE.
Isso representa o dobro da média dos anos 1990, que
girou em torno de 10%. Dados do Banco Mundial em
http://data.worldbank.org/indicator/SE.XPD.SECO.PC.ZS.
te racional. As chances de admissão no vestibular
das melhores universidades, em sua maioria públicas, são diminutas, já que não há vagas para
todos e a concorrência com jovens de classe média, oriundos de escolas privadas, é grande e desleal. O acesso ao ensino superior para aqueles jovens (em geral de classes sociais mais baixas) depende, em geral, do investimento no custeio dos
estudos por parte do próprio estudante. Isso requer a entrada no mercado de trabalho, o que se
dá em condições de competição também muito
ruins: jovens de 18 anos, saídos do ensino médio
de má qualidade, competem em condições muito
desfavoráveis com os que já estão empregados e
os que demandam emprego ao deixar a universidade. É isso que explica o salto na taxa “nem nem”
de exclusão entre os 17 e os 18 anos, que vimos
antes, para homens e mulheres igualmente. Parte
substancial deles e delas se torna “nem nem” por
não ter condições de acesso ao ensino superior, e
por não ter poder de barganha no mercado de trabalho. Para esses jovens, a sociedade brasileira se
apresenta como um ambiente enclausurado, condenando seu futuro.
As políticas de cotas, nessas condições, têm
grande potencial transformador das chances de
vida dos jovens das classes mais baixas. A perspectiva de entrar numa universidade pública, mesmo quando oriundos do ensino público, é um incentivo para a redução da evasão, ainda muito alta,
que ocorre na passagem dos jovens das classes
mais baixas do ensino fundamental para o médio.24
E a dedicação à própria qualificação média muda
de sinal se há perspectivas reais de progressão nos
estudos rumo ao ensino superior de qualidade.
Um dos efeitos disso pode ser o aumento da pressão dos pais e dos próprios alunos para a melhoria
do ensino público, pressões até aqui vistas como
inócuas, já que a mobilidade escolar dos mais pobres encontrava no ensino médio um beco sem
saída. Isso permite prever o aumento da pressão
popular por melhoria do ensino público em geral.
No caso específico das mulheres jovens, é
24
Estudos importantes dessas transições são Hasenbalg
(2003); Torche e Ribeiro (2012).
311
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
Adalberto Cardoso
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ...
hora de se discutir a criação de creches nas escolas públicas do ensino médio. A incidência de
“nem nem” entre as jovens de 15 anos com filhos
é de mais de 70%, e esse evento continuará cobrando seu preço no futuro dessas adolescentes.
Educação sexual é, obviamente, crucial, mas ela
não parece capaz de evitar a gravidez precoce nas
camadas populares. Uma rede local de creches
públicas, oferecida pelas prefeituras, poderia cumprir essa função, dando prioridade para crianças
de jovens em idade escolar. Uma pesquisa que
dimensione o problema em escala municipal, atenta às regiões do país, é estratégica para orientar
uma política dessa natureza.
Inclusão emergencial via mercado, por meio
de políticas de renda; investimentos na qualidade
dos serviços públicos de educação, visando ao
longo prazo; incentivos aos jovens para que permaneçam na escola (mesmo quando esta apresenta má qualidade no momento), como as políticas
de cotas para o ensino superior (e também ao ensino técnico) e as de acessibilidade para jovens portadores de necessidades especiais; educação sexual para as adolescentes; num ambiente de incentivos ao crescimento econômico e à geração de empregos de qualidade: eis uma agenda de políticas
públicas com potencial para desativar esse mecanismo gerador de desigualdades de longo prazo
que é a taxa “nem nem” de exclusão.
Sugiro que essa taxa não produziu explosão
social no país em razão da combinação entre caráter
estrutural do problema e melhoria nas condições dos
mercados de trabalho e educacional nos últimos anos.
As variáveis de contexto, nessas duas dimensões,
perderam muito de sua incidência, o que indica redução real de desigualdades intermunicipais e regionais. A hipótese, aqui, é a de que a melhoria das
condições materiais de vida, ao se disseminar pelo
país, contribuiu para reduzir a percepção de
clausura das condições de mobilidade social, ampliando o horizonte de expectativas de inclusão
dos jovens “nem nem”, em especial as mulheres.
Ao contrário, pois, de aparecer como deterioração
de condições antes favoráveis e, portanto, como
frustração de suas expectativas, como é hoje o caso
de vários países europeus.
Por fim, mesmo correndo o risco de ver o
diagnóstico negado pela história, expresso minhas
dúvidas quanto ao fato de a população diretamente beneficiada pelas políticas públicas de inclusão
em curso se sentir representada nos movimentos
iniciados em junho de 2013, que apresentam nítido recorte de classe média, e, mais ainda, estudantil. Logo, não parece ser alimentada pela juventude “nem nem”, hoje concentrada nas regiões
e famílias mais pobres do país.
Recebido para publicação em 4 de maio de 2013
Aceito para publicação no dia 21 de junho de 2013
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YOUTH, WORK AND DEVELOPMENT:
elements for an investigation agenda
JEUNESSE, TRAVAIL ET DÉVELOPPEMENT:
éléments pour un programme d’investigation
Adalberto Cardoso
Adalberto Cardoso
The post-2008 economic crisis, accompanied
by large social protests everywhere, turned on a
stop light in the richer countries in terms of work
and study opportunities for young people. The
number of youth who neither study nor work
increased greatly, especially in Spain and Greece,
but this phenomenon has spread to the wealthier
countries. This article shows that in Brazil the “nem
nem” (neither nor) condition is structural and it
proposes an analytical model to explain the
transformations that occurred from 2000 to 2010.
It suggest that the structural changes that the
country went through and the public policies to
lower the barriers to enter schools and the labor
market reduced the impact of regional inequalities
but increased the burden of poverty in explaining
the “nem nem” condition of young people.
La crise économique d’après 2008,
accompagnée un peu partout de grandes
protestations sociales, a déclenché un signal
d’alarme dans les pays plus riches quant aux
opportunités de travail et d’étude pour les jeunes.
Le nombre de ceux qui n’étudient ni ne travaillent
a beaucoup augmenté, tout spécialement en
Espagne et en Grèce, mais le phénomène s’est très
répandu dans les pays riches. L’article montre
qu’au Brésil la condition « ni-ni » est structurelle
et propose un modèle analytique pour expliquer
les changements survenus entre 2000 et 2010. Il
montre que les changements structuraux subis par
les pays et les politiques publiques de réduction
des barrières d’accès à l’école et au marché de travail
ont réduit l’impact des inégalités régionales et ont
augmenté le fardeau de la pauvreté capable
d’expliquer la condition de « ni-ni » des jeunes.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 293-314, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Youth. Labor market. Structural M OTS - CLÉS : Jeunesse. Marché du Travail.
changes. “Nem nem” condition. Causal models. Changements structuraux. Condition “ni ni”.
Modèles de causalité.
Adalberto Cardoso – Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos
da UERJ (IESP-UERJ). Pesquisador Associado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento e do Warwick
Institute for Employment Research. Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e Pesquisador 1 do CNPq. Atualmente coordena três projetos de pesquisa (dentre eles um PRONEX) e atua em diversas áreas da Sociologia do
Trabalho, da Sociologia Urbana (incluindo desigualdades sociais) e da Teoria Social. Sua produção mais
recente inclui “Ensaios de sociologia do mercado de trabalho”, Rio de Janeiro, FGV, 2013, e “Brazil Emerging:
inequality and emancipation”, New York, Routledge, 2013 (organizado com Jan Nederveen Pieterse).
314
Enrique de la Garza Toledo
Enrique de la Garza Toledo*
DOSSIÊ
TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD
INTRODUCCIÓN
El concepto clásico de trabajo, en el sentido
de la forma teórica que adoptó en muchas ciencias
sociales este tipo de actividad, se vincula con la
Revolución Industrial (Thompson, 1972), cuando
el capitalismo adquirió una forma moderna y
cuando en algunos procesos productivos centrales
fueron introducidas las máquinas para la
realización de la transformación de la materia prima, impulsadas no por la fuerza de los obreros
sino, inicialmente, por la del vapor. Es lo que Marx
llamó la fase maquinista de la transformación de
los procesos productivos capitalistas. Estos
procesos productivos implicaban también el uso
de trabajo asalariado por el capital, la subsunción
real del primero no solo al capital sino al ritmo de
las máquinas; también la segmentación espacial (la
fábrica) y temporal (jornada de trabajo) entre el
* Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Autônoma Metropolitana, Departamento de Sociologia. Professor visitante da Universidade Autônoma de Barcelona, Universidade de Cornell e de Evry (França).
Caixa Postal 55536, 09340, México, D.F., Purísima y Michoacán,
Col. Vicentina, Edificio H-141 [email protected]
mundo del trabajo y otros mundos de vida de los
trabajadores (Moore, 1995). Este tipo de trabajo
sirvió de basamento empírico a teorías muy diversas en cuanto a los conceptos de lo que es trabajo,
producción, producto, relación laboral. Por
ejemplo, para la teoría neoclásica solo sería trabajo
el que produce para el mercado, con esto se incluye
al trabajo no asalariado que produce para el mercado, pero el eje de la teorización sería la
producción capitalista fabril. Otro tanto sucede en
el marxismo, con el añadido de que trabajo no es
solo transformación de objetos de trabajo a través
del trabajo para el mercado sino que también puede
incluirse el que produce para el autoconsumo. Sin
embargo, casi toda la teorización de El Capital sin
duda que tiene como referente a la producción
capitalista maquinizada. En su forma más
desarrollada, en torno del capital los conceptos de
valor, valor de uso, mercancía y dinero, excepto
observaciones al margen, los conceptos de esta obra
se refieren a dicha producción (capital constante,
variable, plusvalía, acumulación de capital,
rotación, etc.). Implicaba también una separación
temporal y espacial entre producción (fábrica),
315
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013
En este ensayo presentaremos el concepto de trabajo no clásico (De la Garza, 2010), como un
intento de dar cuenta no solo de las diferencias en los tipos de trabajo, sino de dimensiones
amplias de lo laboral incluidas en forma parcial en otras teorizaciones (Thompson, 1983).
Buscaremos precisar el concepto y su alcance, así como las relaciones con las actividades de
servicios, que se han vuelto cada vez más importantes en las economías modernas, sin olvidar
su peso en las menos desarrolladas. Entraremos a recapitular sobre el concepto clásico de
flexibilidad (Durand, 2004) y la ampliación que sería pertinente al incluir trabajos no clásicos.
En particular incluiremos una forma de flexibilización que probablemente se esté convirtiendo
en dominante en el capitalismo luego de la última gran crisis económica, la subcontratación
(Moncada y Monsalvo, 2000) y sus vínculos con el trabajo no clásico. Finalmente, discutiremos
las tesis de la fragmentación de identidades (Sennet y Coob, 1972) y la servidumbre voluntaria
(Durand, 2006) al calor del enfoque mencionado de trabajo no cásico, para culminar con
consideraciones acerca de la posibilidad de constitución de sujetos laborales en estas condiciones.
PALABRAS CLAVE: Trabajo. Trabajo clásico. Trabajo no clásico.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013
TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD
circulación con puntos de venta fuera de la fábrica
y consumo en otras empresas o en los hogares (De
la Garza, 2011). Es decir, el cliente aparecía en el
mercado y en el consumo pero no directamente en
el proceso productivo. Este implicaba un
acercamiento que solo permitía la relación directa
entre dos sujetos y sus representantes, el del trabajo
y el del capital.
Otro tanto podríamos decir de las teorías
originarias de la Sociología del Trabajo (Mayo,
Friedman, Touraine, Naville, Golthorpe, Panzieri,
Braverman) centradas en el proceso de producción
capitalista de tipo industrial; o bien las teorías de
organizaciones o la psicología del trabajo (De la
Garza, 2006).
La apuesta a ver a la producción industrial
capitalista, inicialmente maquinizada, como el
paradigma de toda producción no era gratuito.
Mostraba que efectivamente, hasta los años sesenta
del siglo XX, decir capitalismo era casi sinónimo
de industrialización. En esta medida fueron creados
los conceptos centrales de las teorías que analizan
el trabajo teniendo como referencia al sector industrial y sus transformaciones. Hubo diversas
formas de conceptualizar las transformaciones del
trabajo capitalista al industrial, pero una de las
más simplificadas era la que distinguía etapas históricas en el desarrollo de los modelos de
producción capitalistas. Comenzando por el trabajo
de oficio capitalista – no hay que confundirlo con
el artesanal puesto que se realizaría con
trabajadores asalariados del capital – en procesos
que Marx llamó “de cooperación simple y
manufactureros” (Offe, 1998). No se entendía por
tales, como ahora la economía hegemónica, un
sector de la economía, sino procesos capitalistas
no maquinizados dependientes de las habilidades
de los trabajadores. Luego vendría el trabajo subordinado a las máquinas y, posteriormente, con
la introducción primero del Taylorismo y luego
del Fordismo, se completaría la subsunción real
del obrero al capital, pero no solo a la máquina
sino también a la organización del trabajo (obrero
masa, descalificado, que realiza trabajo segmentado, rutinario, monótono). La Gran Crisis de los
Setenta del siglo XX habría conducido a una profunda reestructuración de las grandes empresas,
primero en el sentido del Toyotismo (reintegración
de tareas a través de la polivalencia, el trabajo en
equipo, la calidad total, el control estadístico del
proceso y el justo a tiempo, trabajadores
recalificados, involucrados, con iniciativa en la
toma de decisiones en el puesto de trabajo)
(Burawoy, 1979), junto con la introducción de la
computación en el control del proceso productivo
y de toda una planta o conjunto de plantas;
primero en las tareas productivas, luego también
en diseño, compras, ventas, contabilidad, finanzas.
Todo esto sin olvidar la importancia que algunos
autores dan en este proceso a la formación de
clusters y otras redes entre empresas.
Con diferentes conceptos y salvedades acerca de cómo definir las etapas, esta sería más o menos la línea de desarrollo clásico de la producción
industrial, a veces extendida a servicios modernos
e incluso a una parte de la agricultura.
Este trabajo clásico siempre convivió con
otras formas laborales (artesanal, de oficio, en
servicios, agricultura no industrial), pero se pensó
que en el PIB la parte más importante iría
correspondiendo a la industria e incluso en el
empleo. Y así fue hasta 1950. Sin embargo, a partir
de este año en los Estados Unidos y otros países
europeos los servicios comenzaron a crecer y
actualmente en la mayoría de estos representan la
mayor parte del PIB y del empleo. En países no
desarrollados la importancia de los servicios no es
nueva, pero una parte muy elevada de estos
corresponde a los servicios precarios, incluso
informales que existían de larga data. Es decir, lo
clásico o lo no clásico no se relaciona con su
importancia en el empleo o en el producto, tampoco
con su antigüedad histórica (Handy, 1986).
Muchos conceptos se han propuesto como
alternativos a lo que llamamos trabajo no clásico
(García, 2006). Uno de los primeros fue el de trabajo
informal (Portes, 1995; Tokman, 1987), que en su
acepción original (misión de la OIT a Africa en los
setenta del siglo pasado) apuntaba a un concepto
colindante con el más actual de modelo de
316
producción porque incluía tecnología,
organización, relaciones laborales, características
de la mano de obra, relación con la unidad doméstica. Esta línea, desde nuestro punto de vista,
hubiera sido más fructífera que las actuales,
enfrascadas en cómo medir la informalidad, que
las ha llevado a simplificar lo que empezó como
un concepto muy complejo. Las dos definiciones
más socorridas actualmente son: sector informal,
que no lleva una contabilidad racional separando
las cuentas de las familia de las del negocio, que
no está registrada y que no paga impuestos; y la de
relación laboral informal, relativa a los trabajadores
con los que no se cumplen las protecciones de las
leyes laborales, específicamente derecho a la salud
por ser trabajador y a la pensión. Es decir, estas
definiciones están centradas en la relación de la
unidad económica o del trabajador, con
instituciones externas al trabajo (fisco y seguro
social), pero no en el contenido del trabajo que es
lo que nos interesa destacar, como veremos con el
concepto de trabajo no clásico (Salas, 2006).
Otro tanto sucede con los conceptos de trabajo
no estructurado, concepto poco acertado puesto que
las estructuraciones del trabajo no pueden quedar
reducidas al cumplimiento de regulaciones legales.
Trabajo atípico (Senise, 2001), nuevamente se centra
en el cumplimiento o no de las regulaciones laborales.
Precario, muy centrado en variables sociolaborales
(inestabilidad, inseguridad o falta de protección social, vulnerabilidad social y económica) más que en
el contenido del trabajo, trabajo no estándar (Reglia,
2003), que mira hacia protecciones legales o no.
Trabajo decente, con el que se amplía la mirada de
las protecciones hacia el derecho a sindicalizarse, a
firmar contratos colectivos, seguridad social, diálogo
social. Exclusión, vulnerabilidad e inseguridad,
apuntan no tanto a derechos no cumplidos sino a la
relación del trabajador con la sociedad,
desarticulación de relaciones sociales entre
individuos, pérdida de solidaridad, fragilidad del
vínculo social; el trabajo deja de articular el tiempo
cotidiano. Estos últimos conceptos colindan con los
que criticaremos más delante de fragmentación de
las identidades.
Es decir, ninguno de estos conceptos,
acuñados en los últimos tiempos – el de
informalidad es el más antiguo – nos ayuda a dar
cuenta del cambio en los contenidos del trabajo,
del producto, de las relaciones sociales en el trabajo,
independientemente de que se cumpla lo dispuesto
en las leyes laborales.
El concepto más antiguo que sirve de
inspiración al de trabajo no clásico es el de Marx
asociado a la producción inmaterial. En la Historia
Crítica de las Teorías sobre la Plusvalía Marx acuña
con gran perspicacia este concepto, notando desde su época que hay trabajos que no se ajustan
exactamente a su propia teorización sobre el trabajo
industrial. Un ejemplo que utiliza es la
representación de una obra de teatro en donde el
teatro es propiedad de un capitalista, los actores
son asalariados y el público paga por el espectáculo
y el negocio debe generar ganancias para sostenerse
y acumular capital. Según Marx, en este tipo de
producción, primero el producto es inmaterial y
no material como lo es en la industria. Marx como
buen filósofo no entendía por material solo lo físico material, que está diferenciado del productor y
puede ser observado a través de los sentidos, sino
entiende por material lo objetivado; es decir que,
aunque es producto del trabajo humano adquiere
una existencia separada de su productor. Sin embargo, en la obra de teatro en un solo acto se
produce el espectáculo (que no es sino una
configuración de símbolos que adquieren significados para los espectadores), al mismo tiempo se
circula como mercancía hacia los compradores que
son los espectadores y se consume en el mismo
teatro por estos. Es decir, la producción simbólica
que es la obra termina subjetivándose en el espectador y no puede ni almacenarse ni revenderse. El
producto no se objetiva sino se subjetiva. Para
nosotros este sería un primer tipo de trabajo y
producción no clásica, pero que no lo agota.
También puede haber una producción puramente
simbólica objetivada, es decir, los símbolos
generados adquieren una existencia separada de
su productor (el diseño de software, el film, el
libro, etc.). De acuerdo con el concepto de
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Enrique de la Garza Toledo
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TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD
materialidad expuesto, esta producción no sería
inmaterial sino material pero eminentemente simbólica – por supuesto que a toda producción eminentemente simbólica siempre se le asocia algo físico material, la depreciación del teatro, el CD, el
costo del material del libro, pero esta parte de su
valor no es lo que lleva a ser comprado sino su
contenido simbólico.
Dentro del trabajo no clásico también
estamos incluyendo el trabajo eminentemente
interactivo en el sentido no de que se interacciona
para trabajar (esto es propiedad de todos los
trabajos sean cara a cara o virtuales), sino que la
interacción es la condición para producir y, al
mismo tiempo, lo más importante del producto.
Trabajo interactivo lo llaman algunos, válido
siempre y que se acote que todos lo son, pero no
en todos es parte de lo que se vende (cuidado de
bebés, de ancianos, educación tradicional, cuidado en hospitales, parte importante en las ventas
directas al cliente, en el trabajo de call centers, en
comida rápida, el del taxista, etc.). Si en cierto tipo
de trabajos es muy importante la forma de
interacción con el cliente, esta triada puede
ampliarse a más sujetos, especialmente cuando se
trabaja en el espacio público (taxistas que
interaccionan con el pasajero, con agentes de
tránsito, automovilistas, peatones). Estas
interacciones pueden ser cara a cara o virtuales a
través de teléfono, internet. Habría que añadir que
toda interacción entre sujetos es simbólica pues
implica la generación e intercambio de símbolos
que son transformados en significados en la
subjetividad de los involucrados. En otras
palabras, el trabajo interactivo es también trabajo
de generación y transmisión de símbolos y de allí
las dificultades del consenso en lo que se quiso
decir. Es decir, una parte del trabajo es creación de
símbolos comprensibles para el otro, que impacta
nuevas calificaciones de los trabajadores para
lograrlo e implica a un externo a la relación capital trabajo, clásica en esta actividad. En esta medida, en el trabajo no clásico, por su énfasis en lo
simbólico – no reducido a lo cognitivo sino que
implica además lo emocional, moral, estético-, con
mayor razón cuando es interactivo, el concepto de
trabajo – que es trabajar, como se trabaja y que se
produce – tiene que implicar cómo se generan los
símbolos, y cómo interviene el cliente u otros
sujetos como en el caso del taxista en esa
construcción simbólica. La Sociología del Trabajo,
al menos desde inicios de los ochenta, acepta el
concepto de trabajo emocional; de fines de los noventa el de trabajo estético y con mayor facilidad
aceptó el de trabajo cognitivo relacionado con la
ciencia y la tecnología y la innovación (Micheli,
2006). Si bien estas denominaciones indican énfasis
en el tipo de códigos o símbolos producidos, nunca pueden presentarse solos, lo que habla de la
necesidad no de tipologías de trabajo no físico material sino de cómo se combinan en diferentes
configuraciones y con énfasis diversos los códigos
cognitivos, emocionales, estéticos, morales y se
conforman en red (configuración) (De la Garza, 2001)
a través de formas de razonamiento lógico formal,
pero también del razonamiento cotidiano (metáfora, analogía, regla práctica, hipergeneralización, retórica, etc.). Es decir, cómo, para la actividad concreta de trabajar, se construyen configuraciones
concretas de códigos o símbolos que no dependen
solo del trabajador sino también de la actividad y
consenso del cliente o de otros actores, según el
caso. Es decir, el cliente en estos trabajos no clásicos
no puede verse como un ente pasivo que compra
y consume, porque lo que compra no se llega a
generar sin su propia actividad. A pesar de no ser
asalariado de la empresa que le vende, en esta
medida, dentro de la idea de extensión de
conceptos habría que considerar en este tipo de
trabajos el del cliente (Jurgens, 1995). Trabajo no
asalariado que si no se realiza no se tiene el
producto: la compra en supermercados, en un restaurante de hamburguesas. Por esta razón, en los
diseños organizacionales de cadenas de supermercados, cines, comida rápida, se contempla la
actividad del cliente como parte de lo que permitirá la generación del servicio.
Una última dimensión del trabajo no clásico
(simbólico, interactivo) es el tema de los traslapes
entre espacio convencional del trabajo y otros
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Enrique de la Garza Toledo
es indispensable para que se realice la producción
y se tenga el producto. Ya sea porque se generan
símbolos y se transmiten al cliente, o porque el
producto es la interacción misma. La intervención
del cliente implica interacción con los trabajadores
clásicos y, a veces, con otros actores aparentemente ajenos a dicho trabajo, e intercambios simbólicos entre los sujetos del trabajo, incluyendo al cliente. Esto porque parte importante del trabajo no
clásico es la producción e intercambio de símbolos (cognitivos, emocionales, morales, estéticos).
En última instancia el concepto de trabajo
no clásico puede ser más que un tipo de trabajo,
un enfoque de análisis.
LOS SERVICIOS
En el centro de los trabajos no clásicos están
los servicios, aunque puede incluir trabajos en la
industria y la agricultura. Su definición sigue
siendo objeto de controversia. Sin embargo, las
dificultades de la definición dependen también del
enfoque de análisis del fenómeno laboral que se
adopte. En el enfoque sociodemográfico y
económico, en el que se trata de relacionar variables
propias de cualquier tipo de trabajo (edad,
escolaridad, nivel educativo, estado civil, duración
de la jornada laboral, antigüedad en el trabajo,
salario, disposición de prestaciones, etc. ) no
importaría si la producción fuera material o
inmaterial, física o simbólica, interactiva con
creación de significados, pues las variables solo se
diferenciarían en nivel entre los diversos trabajos,
de tal manera que la diferenciación entre trabajo
clásico y no clásico sería ociosa. Así mismo, para
la perspectiva jurídica lo fundamental es la
observancia de la norma, independientemente del
tipo de trabajo, salvo excepciones contempladas
en la misma Ley. De tal manera que las diferencias
mencionadas en el Apartado I serían irrelevantes.
En cambio en las tradiciones de la Sociología
del Trabajo, la Antropología, la Psicología, Las
Relaciones Industriales, la Administración y las
Organizaciones es, o puede ser, muy importante
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mundos de vida, sea del propio trabajador, de los
clientes o de otros actores que intervienen, sin ser
trabajadores ni compradores, en el proceso de
trabajo (De la Garza, 1997). Es el caso del trabajo a
domicilio, sea tradicional (costurera) o moderno
(teletrabajo en casa). Trabajar es también poner en
juego la imbricación de espacios, de tal forma que
el espacio y el tiempo de trabajo no se pueden
separar de esas imbricaciones (para el taxista
detenerse a comer durante la jornada en un restaurante es parte de su jornada y de las actividades
laborales) (Pogliaghi, 2011).
El concepto no clásico de trabajo debe ser
considerado como un concepto ampliado, tanto
en el nivel de la valorización como en nivel del
proceso de trabajo. Desde este último nivel habría
que pensar en ampliar, como hemos mencionado,
el concepto de que es trabajar y quien trabaja, pero
también el de control sobre el trabajo. Al estar en
interacción con no asalariados (el cliente, pero
también pueden ser otros actores dependiendo de
cual trabajo se trate) estos también ejercen control
sobre el trabajo del asalariado, además del patrón.
En esta medida se impacta también el concepto de
relación laboral – entendida estrictamente como
relación social en la producción - que en el clásico
queda reducida, cuando se trata de trabajo
asalariado, a la del capital con el trabajo, pero en el
no clásico esta relación puede ser tríadica (inclusión
del cliente) o poliádica (interviene otros agentes
favoreciendo u obstaculizando el trabajo)
(Muckenberger, 1996). Y se impacta también el
concepto de construcción social de la ocupación,
que no depende solo de quien quiere trabajo y
quien necesita trabajadores (oferta y demanda de
trabajo) sino que pueden intervenir otros actores,
redes sociales, además de la propia subjetividad
de los que intervienen (Zucchetti, 2003). Finalmente la imbricación de espacios de relaciones
puestas en juego, al mismo tiempo que se trabaja,
puede requerir conceptos bisagra que den cuenta
de esos espacios, a la vez que ya no aparecen segmentados ni espacial ni temporalmente.
En síntesis entendemos por trabajo no
clásico aquel en el que la intervención del cliente
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TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD
analizar el trabajo como actividad por la cual se
transforma una materia prima, a través de la fuerza
de trabajo, utilizando ciertos medios de
producción (Korezynski, Hodson y Edwards,
2006). Es la perspectiva de analizar el trabajo en
acción en el proceso de trabajo, la cual puede tener
importancia para entender el comportamiento
productivo de las empresas, así como para aquellos
que piensan que el trabajo no es un simple factor
de producción o costo laboral, sino sujetos en
acción dotados de subjetividad que interaccionan
en los procesos de trabajo y generan productos.
En esta medida, cuanto trabajo incorporado al
producto generará la fuerza de trabajo, no está determinado por su salario. El trabajador puede generar
más valor de lo que su fuerza de trabajo cuesta. De
tal manera que su productividad se defina en las
relaciones cotidianas de producción, día por día,
dependiendo de la resistencia o cooperación del
trabajador con la gerencia. Pero, la perspectiva de
análisis del trabajo en el proceso de trabajo puede
también orientarse en cuanto a la posible formación
de sujetos colectivos de trabajadores, como veremos en la última parte de este ensayo.
En esta tesitura, los servicios han sido
primero definidos como un residuo, lo que queda
en el producto nacional luego de descontar a la
industria, agricultura, pesca, silvicultura, ganadería.
Los que han tratado de darle contenido analítico a
la definición de servicios han comenzado por
considerarlo como el sector de producción de
intangibles. El concepto de intangible a estas alturas resulta muy elemental para dar cuenta de la
complejidad de los servicios. Primero, porque
remite a uno sólo de los sentidos del cuerpo, el
del tacto, lo que se puede o no tocar, por ejemplo,
la música se oye pero no se toca. Sin embargo, la
comida en el restaurante si se puede tocar y se
considera servicio, aunque el buen trato del
personal “no se puede tocar”. El ejemplo lo que
indica es que los servicios comúnmente combinan
producto material con inmaterial, aunque con un
peso importante de lo inmaterial, de lo simbólico
y/o de lo interactivo. Otros han tratado de reducir
los servicios a los que están basados en el
conocimiento. Nuevamente, no podríamos encontrar aislado conocimiento de emoción, moral y estética, por decir algo, aunque uno de estos campos
simbólicos podría tener más peso. En todo caso,
en el placer por la música lo más importante no es
el conocimiento sino la emoción y lo estético.
También hay quienes han definido los servicios
como interactivos directamente, y hay muchos
servicios así (restaurante, concierto en vivo). Pero,
hay servicios sin interacción directa entre
trabajadores y clientes, como en buena parte de
las telecomunicaciones. Finalmente, se les ha definido como productos no almacenables, aunque
los paquetes de cómputo si lo son.
En otras palabras: puede haber intangibles
objetivados (software); servicios que ofrecen un
tangible (comida en restaurante); tangibles con fases intangibles en su producción (diseño en
automotriz); intangibles observables (concierto); la
percepción de tangibles es, a su vez, un intangible;
una parte de lo material es intangible. Resultan más
pertinentes, ante estas confusiones, las diferencias
entre material e inmaterial, observable e inobservable,
interactivo cara a cara y mediatamente.
Es decir, resulta más conveniente una
definición bidimensional de lo que es un servicio:
producción eminente de símbolos y/o producción
de interacciones con los clientes y otros actores
con significado, es decir, el centro del trabajo no
clásico estaría en los servicios definidos de esta
manera. Aunque una parte de la producción material puede ser no clásica al crecer la importancia
del cliente y de las interacciones como en la
preparación de hamburguesas en un McDonald’s.
FLEXIBILIDAD Y TRABAJO NO CLÁSICO
El tema de flexibilidad del trabajo se ha
vuelto un lugar común a partir de la última década
del siglo pasado para analizar las relaciones
laborales. La gran crisis capitalista de mediados
de los setenta de dicho siglo fue atribuida por
sectores pro empresariales a la rigidez de las relaciones laborales, resultado del largo período de
320
Estado benefactor y keynesiano, que implicó pactos entre Estado, sindicatos y empresas. En esta
medida había que flexibilizar el mercado laboral.
Aunque el término de flexibilización no era usado
en la economía neoclásica, resultaba fácil asimilarlo
al concepto de eliminar rigideces al libre encuentro
entre oferta y demanda de trabajo. Es decir, el centro estaba en el mercado de trabajo. Sin embargo,
las primeras reestructuraciones productivas no
fueron tanto al mercado sino al proceso de trabajo,
rescatando la tradición de las grandes empresas
automotrices japonesas y que luego se llamaría el
Toyotismo. En otras palabras, aunque parecieran
referirse a lo mismo los que hablan de flexibilizar el
mercado y el proceso de trabajo, las connotaciones
son diferentes. Entre estas dos posiciones
empresariales se encontraba la idea de flexibilizar
el sistema de relaciones industriales. La primera y
la tercera fueron asimiladas por las propuestas
neoliberales al coincidir con la economía
neoclásica, siendo traducidas como eliminar
rigideces (protecciones) contenidas en las leyes
laborales y en la contratación colectiva, así como
establecer limitaciones a los pactos con los sindicatos, en especial marginarlos del diseño de políticas económicas, laborales o sociales. En otras
palabras, se trataba de flexibilizar un sistema de
relaciones industriales relativamente benefactor del
trabajo y, de esta manera, permitir que salarios y
empleo se fijasen por productividad marginal del
trabajo y oferta y demanda del mismo. Aunque
relacionada con la flexibilidad en el proceso de
trabajo, desde el momento en que este obedecía a
normas de las relaciones laborales internas y externas de la ley laboral, se trataba de facilitar el
empleo y el despido (flexibilidad numérica), la
movilidad interna de los trabajadores entre
puestos, categorías, departamentos (flexibilidad
funcional) y poner el salario en función de la
productividad (la calidad, la puntualidad y
asistencia, el tener menos desperdicios), a las que
habría que añadir la flexibilidad a través del
outsourcing (Uriarte y Tusso, 2009; Novella et al.,
2007; Martínez, 2008).
Todo esto fue pensando directamente para
el sector industrial, aunque extendido a los
servicios. En la doctrina estrictamente toyotista,
como era importante la identidad con la empresa,
el trabajo en equipo, el involucramiento y la
participación de los trabajadores para aumentar la
productividad, no necesariamente la máxima
flexibilidad daría la máxima productividad; la
nueva cultura laboral se consideraba muy importante, en particular cuando entraba a jugar, además
de la productividad, la calidad. Estas concepciones,
especialmente las neoclásicas, de entender la
flexibilidad como desregulación, han estado presentes en el centro de las disputas entre el capital
y el trabajo en el nivel internacional desde los años
ochenta hasta la actualidad.
El problema es que los conceptos de
desregulación y de flexibilidad neoclásica y
toyotista fueron creados mirando al sector industrial (Piore y Sabel, 1988). El problema es cómo se
presenta para el trabajo no clásico que implica
producción eminente de símbolos con intervención
inmediata o mediata del cliente (además de otros
posibles actores) y la interacción entre estos. En el
caso de la producción físico material clásica la disputa directa puede ser capital-trabajo en torno a
obligar o convencer al trabajador de ser más
productivo (valor agregado/hora-hombre). En este
caso el trabajador se puede resistir o cooperar. En
la producción no clásica el problema es que el cliente que intervine no puede ser controlado
estrictamente por la gerencia, como se intenta con
el trabajador por estar este al mando del capital. El
cliente puede cooperar o no, pero también puede
imponer durante la interacción productiva
variaciones no estandarizadas que rompen la rutina
y pueden afectar la productividad y la calidad. En
esta medida una extrema rigidez en los
ordenamientos de cómo trabajar puede ser contraproducente para la productividad y sobre todo para
la calidad. Asimismo, la producción de símbolos
compartidos entre trabajador y cliente pueden entrar en desacuerdo más allá de que el trabajador se
comporte de acuerdo con la normatividad empresarial (Hochschild, 1983). Además, se presenta el
problema de qué tanto puede estandarizarse la
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Enrique de la Garza Toledo
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TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD
producción y el intercambio de símbolos, en parte
porque el cliente no es estrictamente controlado,
pero también porque no hay cadenas de montaje
de símbolos para formar configuraciones, ni mucho
menos tiempos estándar para genera un símbolo
compartido. En el caso de la producción objetivada
de símbolos (producción de software), sin
intervención directa del cliente (aunque puede
intervenir directamente en el llamado software a la
medida), el problema es nuevamente si se puede
estandarizar las operaciones cognitivas y fijar
tiempo estándar de producción. Ilustraremos este
caso con la producción de software:
El diseño de software es un ejemplo de
producto simbólico objetivado: el programa existe
al margen de su creador y sus consumidores
pueden intervenir directamente en el proceso de
trabajo (software a la medida) o bien a través de la
demanda; se puede almacenar y revender; el
proceso de trabajo usa como insumos símbolos o
vocablos del lenguaje de programación y
algoritmos; las operaciones más importantes de
transformación se dan en la subjetividad del programador y son de carácter cognitivo; se producen
en un campo de interacciones entre gerencia, líder
del proyecto y programadores. Lo que implica consensos acerca de cuál camino seguir, aunque es el
programador el que decide la secuencia de códigos a utilizar para resolver el problema. Es decir,
en la solución del problema influye la habilidad
del programador, la cual es de resolución simbólica de problemas, aunque supone colaboración
con líderes y gerencia, también con probadores de
la calidad e incluso con comunidades virtuales de
programadores que se ayudan más allá de las
fronteras de la empresa. Las metodologías que sigue
el programador no son lineales, no aceptan en general su asimilación a reglas burocráticas y siempre
hay incertidumbre en cuanto a si se tendrá la
solución, si habrá errores y sobre todo respecto al
tiempo de producción. En esta medida, para evitar la “aflicción de software” (errores en el mismo
y falta de tiempos estándar) aparecen propuestas
de estandarización y rutinización en el diseño como
la Ingeniería del Software. Es una propuesta aná-
loga a la de la administración científica del trabajo
de Taylor para la manufactura, aunque en este caso
el intento es estandarizar tiempos y pensamientos
y no movimientos. Esta perspectiva se enfrenta a
las limitaciones que provienen de la incertidumbre
del proceso que no se reduce al ensamble de partes de cadenas de códigos, las soluciones están
muy relacionadas con las habilidades “artesanales”
de los programadores y las soluciones muchas
veces no son generalizables sino son ad hoc.
También se enfrenta la estandarización al hecho
de que los programadores no documentan en forma suficientemente explícita la manera como
diseñaron software previos, a veces por la lucha
por el saber-pensar y el intento del monopolio del
conocimiento por parte del diseñador. Por estas
razones el diseño de software se ha resistido a su
estandarización y al establecimiento estricto de
tiempos estándar para su producción. Una solución
paralela para lograr la estandarización en el diseño
de software ha sido la separación entre lo más importante de la concepción del diseño a cargo de la
gerencia, dejando las tareas menores de
codificaciones de logaritmos a los programadores.
Todos estos intentos solo han fructificado parcialmente y la incertidumbre sigue en esta actividad.
En este ejemplo se puede observar que la
producción de símbolos tiene una parte de
creatividad en la concepción que no puede
reducirse a rutinas, sino que depende de las habilidades subjetivas de este tipo de trabajador, así
como de las relaciones que se entablen con la
jerarquía, de cooperación o conflicto con la empresa. Estas circunstancias marcan límites no solo
a la estandarización sino al control de la empresa
de los tiempos de producción e incluso de la
calidad del producto. No es posible estandarizar
radicalmente las redes neuronales – además de que,
si existieran estas es imposible ubicarlas con
precisión y mucho menos reconfigurarlas
planeadamente para producir diseños en menos
tiempo y de mejor calidad – que supuestamente
se pondrían en funcionamiento para el diseño;
ellas tienen que ver con la biología y la experiencia,
con el conocimiento pero también con otros cam-
322
pos de la subjetividad del diseñador, así como con
estructuras y relaciones. En el caso de trabajo no
clásico es difícil pensar en la taylorización de la
asimilación de códigos y la creación de significados estrictamente a voluntad, así como el
establecimiento de interacciones proactivas
siempre, erradicando el conflicto y la competencia
entre los propios trabajadores o con los mandos.
No es posible separar tajantemente concepción y
ejecución en el trabajo simbólico pues todo trabajo
simbólico implica concepción y mucho menos
reducirlo a microoperaciones simbólicas de
transformación claramente identificable, todo lo
cual dificulta la aplicación de estandarización,
rutinización, simplificación de las tareas de
simbolización y también la constitución de cadenas
de montaje de símbolos, estrictamente sincronizadas. En estas actividades de creación de símbolos
puede ser importante el trabajo en equipo, pero
cada uno de sus miembros tendrá funciones menos claras que en la producción material; en estas
relaciones juegan más las interacciones simbólicas
para lograr la cooperación, de tal forma que el
control total de la calidad, muchas veces no puede
funcionar para operaciones parciales sino para resultados y el justo a tiempo puede ser un concepto
exótico por lo que mencionamos. Es decir, en este
tipo de producción no basta, aunque importa, el
Toyotismo, para lograr productividad y calidad, y
la tecnología es un instrumento que no resuelve
los problemas principales. En cambio, la
dependencia del producto y del proceso respecto
al trabajador y sus cualidades, potencia sus capacidades de resistencia. En el diseño de software
los programadores pueden ocultar códigos, es decir
no explicar con detalle cómo llegaron a la solución,
lo que les da el monopolio sobre ese conocimiento
y los hace menos sustituibles. De la misma manera,
la formación de redes virtuales de solidaridad
posee componentes personales que no son
estrictamente transferibles a otros.
Cuando en la generación de software
interviene el cliente, como en el llamado software
a la medida, la situación se complica. El cliente se
encuentra en interacción en varios momentos con
el programador durante el diseño del software. En
este caso, se amplían las interacciones,
cooperaciones o conflictos con un tercero en
discordia que no es empleado ni directivo. Estas
relaciones influyen en las soluciones, en los
tiempos y calidades, así como en el control del
proceso de trabajo, complicando la relación social
de trabajo a tres partes.
Otra situación de trabajo no clásico es el
restaurante de hamburguesas (McDonald’s). Este
es un caso que combina un trabajo interactivo y
significativo con otra parte de producción físico
material. La segunda es propiamente la preparación
de la hamburguesa que sigue un proceso
taylorizado y maquinizado, con participación lateral del sistema informático para transmitir las
órdenes. El trabajo de los empleados es poco
calificado, rutinario (se producen pocos productos
estandarizados, sencillos, en masa, para su venta
al menudeo, se trabaja en condiciones precarias).
Esta parte no se diferencia de la producción de
ropa en maquiladoras. Sin embargo, la parte
manufacturera está íntimamente imbricada con la
del servicio de venta en el propio restaurante y el
consumo en el mismo, puesto que el producto se
genera por pedido del cliente y no se almacena.
Para ser atendido el cliente tiene no solo que pagar, sino escoger, formarse, ordenar con precisión
(siguiendo ciertas frases ya hechas por la empresa), esperar a que se surta su orden, tomar el
producto, sentarse, consumir y depositar los
desperdicios en recipientes para tal efecto. Es decir,
aunque el cliente no es un empleado, ni tampoco
un directivo tiene que “trabajar” para lograr la compra y el consumo. De tal forma que la empresa
hace diseños organizacionales que incluyen al cliente que no es su empleado: mostrador y caja registradora especialmente diseñada para que el cliente haga una fila, pizarrones con la lista limitada
de productos para que no se pierda el tiempo usando otro lenguaje que confunda al empleado o evitar las preguntas ambiguas como “¿Qué hay de
comer?”. Los asientos donde se consume están
diseñados para no hacer agradable permanecer
mucho tiempo y los contenedores de desperdicios
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TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD
se diseñan para que se depositen estos con
facilidad e inmediatamente las charolas. Es decir,
se hace un diseño del espacio, de los instrumentos de acarreo de las hamburguesas y para el depósito de desperdicios que ahorran tiempo de trabajo
del cliente. Esto es porque si el cliente no trabaja
no se realiza el servicio o si lo hace en forma torpe
o perezosa ocupa espacio y tiempo que afecten la
eficiencia del restaurante. En otras palabras, el
trabajo en este tipo de negocios no puede
desentenderse del cliente. Este trabaja en los pedidos, circulación y consumo que normalmente se
realizan en el mismo espacio que se da la
producción de la hamburguesa. En este proceso
importan las interacciones entre el cliente y algunos
de los empleados, al momento de ordenar y pagar;
interacciones superficiales y estereotipadas que,
sin embargo, pueden sufrir de muchas
disrupciones imprevisibles y afectar con esto al
proceso global de producción-circulación y consumo de la hamburguesa. Es decir, el empleado
puede ser controlado en forma más o menos estricta
por la gerencia en cuanto a la fase de producción
físico material, a través de gerentes de restaurante,
supervisores o el cliente misterioso, pero no puede
controlar estrictamente la interacción del empleado
con el cliente, porque no depende solo del primero,
que puede estar muy bien capacitado para
estandarizar dicha interacción, porque el cliente
puede salirse del guión y en el peor de los casos la
consecuencia puede ser que no sea atendido. Lo
mismo sucede con cada operación que el cliente
tendría que realizar con su trabajo para que el
servicio se realice con eficiencia (el cliente puede
no depositar los desperdicios en el recipiente
adecuado). El empleado sufre la presión de la empresa a través de gerentes y supervisores, pero
también del cliente que puede protestar si considera deficiente el servicio. Es decir, el cliente en parte
controla al empleado y en parte es controlado por la
empresa en el intento de taylorizar su trabajo.
En este caso, como en el del diseño del
software, la relación de trabajo se complica con
respecto del trabajo clásico, en esta relación
interviene el cliente en varios momentos y se
convierte en una tríadica entre asalariado, directivo
y cliente. Otro tanto pasa, como decíamos con el
control y quien controla al trabajador. El taylorismo
es una realidad en la fabricación de la hamburguesa,
se puede combinar con principios de toyotismo,
pero la relación del cliente es de una persona con
un trabajador, comúnmente el que recibe los pedidos y cobra. Aunque se presiona al cliente para
que emplee poco tiempo en el consumo esto no
puede garantizarse y no hay circulación y consumo justo a tiempo, ni tampoco se puede garantizar
con el establecimiento de palabras y frases estándar
la compresión mutua entre cliente y empleado. El
empleado es en buena medida, en cuanto a la
transformación físico material de la carne en
hamburguesa un obrero masa poco calificado, pero
el trabajo del cliente se parece más al artesanal que
incluso trabaja con sus manos, lo que dificulta la
estandarización del tiempo global de prestación del
servicio (producción-circulación-consumo). Así
mismo, el concepto de resistencia del trabajador
debería ampliarse y no referirse solo a la gerencia
sino al mismo cliente. Esta última forma de
resistencia toma una forma eminentemente simbólica (Hall, 1997).
En cuanto a la flexibilidad: en el diseño de
software, a causa de la dependencia del diseño de
las habilidades del trabajador, se dificulta la
flexibilidad numérica; en cambio en el McDonald’s,
el trabajo taylorizado en la parte propiamente de
fabricación de la hamburguesa la facilita, no así en
la venta. Por lo que respecta de la flexibilidad funcional, está se presenta como flexibilidad cognitiva
en el software porque el diseñador puede participar simultáneamente en varios proyectos sin cambiar de puesto o departamento; en los McDonald’s
se facilita por la simplificación de las tareas y porque los empleados son capacitados para desarrollar
cualquiera de estas; la presencia de bonos puede
estar presente en ambos.
En síntesis la producción capitalista que
implica trabajo no clásico históricamente ha encontrado obstáculos para su estandarización, por
las dificultades de estandarizar la producción de
símbolos, la propia interacción del empleado con
324
el cliente y el trabajo del cliente. De tal forma que,
paradójicamente, en el momento actual habría dos
estrategias del capital en este tipo de trabajador,
una la de estandarizar aquello que no había sido
posible y otra arriesgarse a dar más poder de
decisión al empleado que a su contrapartes en el
trabajo físico material de la industria y agricultura.
TRABAJO NO CLÁSICO Y
SUBCONTRATACIÓN
Cuando se inició en la década del ochenta
la discusión actual sobre la flexibilización del
trabajo, la subcontratación aparecía como un anexo de la misma; el acento se ponía al interior del
proceso de trabajo. Para los noventa la
subcontratación pasó al primer plano de la
flexibilidad, relacionada con el concepto de empresa red y también con el de cadena de valor,
clúster y distrito industrial. La subcontratación se
ha facilitado desde los noventa por la
informatización (Taylor, 2005). En la actualidad se
debate si la subcontratación es el paradigma
productivo que nacerá de la crisis actual. Por
supuesto que hay varias circunstancias de
subcontratación: la de tareas complementarias a la
principal actividad de transformación de la empresa, tanto en bienes como en servicios – la
contabilidad, el diseño, la comercialización, el cosido de pantalones, etc. – o bien si se subcontratan
tareas del core de las actividades que definen a
una industria. Hay quienes plantean que solo
conviene a la empresa lo primero y debería de dirigir directamente a los trabajadores en el segundo
caso para garantizar calidad, productividad, lealtad,
identidad con la empresa. Un problema
complementario es el uso de agencias de
contratación de personal, que no dirigen a los
trabajadores productivamente sino que los
seleccionan, los contratan como si fueran de la
propia agencia y los destinan a trabajar en la
compañía que subcontrata con esta. Las
consecuencias generales de la subcontratación
serían la precarización de los empleos y la pérdida
de fuerza de los sindicatos. Los trabajadores
subcontratados en general tendrían jornadas
laborales y riesgos en el trabajo mayores y una
pérdida de derechos e identidad con la empresa
(García, Mertens y Wilde, 1998).
Por supuesto que el trabajo no clásico se
puede subcontratar, sin embargo, como es menos
controlable, al depender la forma de la interacción
y la creación de símbolos compartidos en buena
medida del trabajador en su relación con el cliente, la subcontratación podría implicar una menor
satisfacción del cliente (menor calidad del servicio)
lo que marcaría limites a esta forma de
flexibilización o bien la necesidad de que la empresa que subcontrata destine personal de
supervisión directamente en las instalaciones de
la subcontratada. Es el caso de call centers
subcontratados por grandes corporaciones en donde estas llegan a establecer oficinas cerca de las
mesas de trabajo combinando su supervisión con
las de la empresa de call centers, lo que puede
originar conflictos y órdenes que se contraponen.
Cuando sea posible estandarizar las interacciones
o la comunicación con clientes resultará más
factible la subcontratación que en trabajos más sofisticados de creación de confianza con el cliente o
de códigos o configuraciones simbólicas más profundas. Es decir, la “fábrica de sonrisas” tiene
también su límite en la percepción de la sinceridad
que puede no lograr la confianza del consumidor
en la oferta del producto.
SUJETOS NO CLÁSICOS, IDENTIDAD Y
FRAGMENTACIÓN ¿SERVIDUMBRE
VOLUNTARIA?
A mediados de los noventa surgió una teoría
que, derivada de la del fin del trabajo de la década
anterior y de la postmodernidad, planteó en términos sociológicos – supuestamente demostrable
empíricamente – que la inestabilidad de las
ocupaciones en la Nueva Economía se traducía en
trayectorias laborales fragmentarias – ocupaciones
desvinculadas y fugaces –, como nueva caracterís-
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TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD
tica del mercado laboral y que la decadencia del
Estado benefactor junto con sus sistemas de relaciones industriales, implicaría una pérdida de
identidad con el Trabajo (Dubar, 2001; Dubar 2002).
En esta medida ya no serían concebible la
conformación de sujetos laborales amplios, ni
organizaciones ni proyectos de transformación de
la sociedad (Geiser, 1997; Kirk y Wall, 2011).
Un problema de esta tesis es que en lo fundamental hace derivar la identidad colectiva y
personal de la posición en la ocupación (Parsons,
1968), es decir, ante la heterogeneidad de las
ocupaciones resulta una no identidad, y ante
trayectorias ocupacionales zigzagueantes, no
coherentes, tampoco habría identidad a nivel individual con algún tipo de trabajo en particular
(Dreher et al., 2007; Dubar, 1991). Sin embargo,
hacer depender la identidad de la ocupación remite
a un pasado artesanal ya muy lejano. En las grandes
empresas, desde la revolución industrial, la identidad
no tenía que ver con cada ocupación en particular,
mucho menos con la extensión del taylorismofordismo (Bizberg, 1989; Burke et al. 2009; Cerullo,
1997). Cuando llega el toyotismo y la automatización,
por el contrario, la propia empresa busca inducir
identidad colectiva con ella y el trabajador
automatizado, computarizado e informatizado es
posible que haya reeditado en términos modernos
un orgullo de trabajar con tecnologías de punta (De
la Garza, 2007; Dubet, 1989).
Es decir, la identidad colectiva de los
trabajadores no terminó con el obrero de oficio, se
siguió en casi todo el siglo XX con identificaciones
no siempre con el producto o la actividad realizada sino con sus compañeros, sus organizaciones
o sus partidos. Además, es probable que sobre la
identidad de los trabajadores no solo influya la
actividad laboral desarrollada, sino otros espacios
de la vida no laboral como la familia, el ocio, la
religión, el espacio urbano o rural (Beriani y Pataxi,
1996; Eagleton, 2006; Giddens, 1991). Por otro lado,
la identidad debería de considerarse como una forma de la subjetividad (Gimenez, 2008, 1992, 1996;
Hogg, Terry y White, 1995; Howard, 2000), en tanto proceso de crear el sentido de identificación, pero
situado en ciertas estructuras y en determinadas
interacciones con otros actores (Linhart, 2008;
Melucci, 2001). Vista como subjetividad podría ser
pensada como una configuración de códigos
cognitivos, morales, emotivos, estéticos y formas de
razonamiento cotidiano que permiten dar identidad
por y para (Schutz, 1996, 2003, 2003a). Entre el
puesto de trabajo y la identidad se encuentran otras
estructuras (al interior de la empresa,
organizacionales, tecnológicas, de relaciones
laborales, de ocupaciones, de calificaciones,
culturales; al exterior de cadenas entre clientes y
proveedores, del mercado de trabajo, del mercado
del producto, cadenas productivas). El trabajador
en un puesto se encuentra en interacción con sus
compañeros, supervisores y jefes. Finalmente, el
proceso de creación de identidad pone en juego
códigos como los mencionados provenientes de la
cultura (Taylor, 1989; Portal, 1991), pero los sujetos
obreros construyen las configuraciones específicas de sentido para situaciones concretas
(Sainssaulieu, 1977). Estas pueden cambiar en
función de estructuras como las mencionadas pero
también de experiencias (Sewell, 1992). En otras
palabras, sobre la formación de identidad influyen
procesos más complejos que las simples características del puesto de trabajo (Taylor, 1992; De
Gaulejac, 1993).
Por otro lado, los procesos colectivos de
identificación no conducen a formas que deban
permanecer; ya quela identidad puede crearse, ser
contradictoria y parcial (Recour, 1992; Pizzorno,
1983; Mead, 1972) y a la vez desestructurarse;
cuando esto sucede no significa que esta situación
llegó para quedarse, como plantea Sennet. En el
caso de los trabajadores asalariados del capital,
además de las estructuras, subjetividades,
interacciones en el trabajo y la influencia de otros
espacios de la vida (Gayosso, 2011), no hay que
olvidar que el eje es la acumulación del capital y,
en esta medida, pueden entrar en contradicción
dicha acumulación con las aspiraciones, con lo
que consideran un trabajo legítimo los propios
trabajadores y desencadenar un proceso que afiance la identidad e incluso la constituya desde
326
Enrique de la Garza Toledo
de símbolos (por ejemplo los artistas exclusivos
que muchas veces se adhieren a causas que
consideran justas), aunque la alta especialidad si
mueve hacia el individualismo en las soluciones
laborales y de la vida, aunque tampoco hay
determinismo en este sentido: en determinadas
coyunturas el individualismo puede sumergirse
frente a eventos impactantes socialmente como ha
sucedido durante las revoluciones.
En síntesis, la importancia actual de los
trabajos no clásicos tendría que llevarnos a revisar
el concepto de clase social, de conflicto de clases,
de sujetos trabajadores, de organizaciones y de
proyectos (Dubet, 1999), en lugar de suponer en
forma superficial que entre estos ya no son posibles
las solidaridades, acciones y organizaciones
colectivas (De Jours, 1998; Linhart, 2009) y que el
futuro queda determinado por la sumisión
voluntaria (aceptación del control empresarial del
trabajo por voluntad del proprio trabajador, sin
coersión).
Recebido para publicação em 18 de janeiro de 2013
Aceito para publicação em 27 de maio de 2013
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formas muy ambiguas en torno del propio
movimiento (Retamozo, 2006).
El trabajo en los servicios puede implicar
relaciones individualizadas con el cliente, la
generación de interacciones y de símbolos compartidos, depender en buena medida del trabajador
y en este sentido dificultar la construcción de
identidad colectiva. Esta sería otra forma de la
conocida tesis de Bauman de fragmentación de
identidades, que en última instancia dependería
de las características del puesto de trabajo. Sin
embargo, la “fábrica de sonrisas” iría desde la alta
especialización en interacción con clientes y
creación de símbolos cognitivos, morales, emotivos
o estéticos compartidos, hasta el acercamiento a la
estandarización de dichas interacciones y símbolos sin mayor profundidad en las relaciones (por
ejemplo la oferta de un producto por teléfono
puede hacerlo una grabación o cuando lo hace un
trabajador usar frases ya hechas y tener respuestas
estandarizadas, aunque, como mencionamos al
entablarse la interacción, el cliente puede fácilmente
salirse del guión que ante un trabajador poco hábil la interacción puede salirse de control).
Entre los trabajadores no clásicos de alta
calificación, esta puede significar capacidades técnicas para resolver un problema, pero también
calificación en cómo lograr una interacción y
simbolización que lleven al cliente a aceptar el
producto o la explicación que se le ofrece. Entre
los de baja calificación – cajeros y acomodadores
de Wal Mart, empleados de restaurante de
McDonald’s, trabajadores de call centers, cajeros
de bancos), aunque de ellos depende finalmente
la venta o generación del servicio , este puede estar de tal forma estandarizado que la actividad se
vuelva rutinaria, estándar, simple y de baja
remuneración ,y la construcción social de la
identidad, puede basarse en el reconocimiento
compartido de su situación de precariedad
(Lomnitz, 1998; Ramírez, 2005); es decir, no resultar solo del puesto de trabajo sino de una en
compleja configuración como ya hemos explicado. Tampoco resulta imposible la identificación de
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NON-CLASSICAL LABOR AND FLEXIBILITY
TRAVAIL NON CLASSIQUE ET FLEXIBILITÉ
Enrique de la Garza Toledo
Enrique de la Garza Toledo
In this article we will present the concept
of non-classical labor (De la Garza, 2010) in an
attempt to explain not only the differences among
types of work, but also to address broader
dimensions, which are partially included in other
theories (Thompson, 1983). We will attempt to
clarify the concept and its scope, as well as the
relations with the services activities, which have
gained constantly increasing importance in modern
economies, even in less developed ones. We will
recall the classical concept of flexibility (Durand,
2004) and the extent to which it would be pertinent
to include non-classical labor. More specifically,
we will include a form of flexibilization which has
probably become dominant in capitalism since the
most recent great economic crisis, outsourcing
(Moncada e Monsalvo, 2000) and its connections
with non-classical labor. Lastly, we will discuss
the thesis of fragmented identities (Sennett e Cobb,
1972) and voluntary servitude (Durand, 2006) in
the vein of the approach mentioned in the nonclassical article, culminating in considerations on
the possibility of training subjects who work under
these conditions.
Nous présentons dans cet article le concept
de travail non-classique (De la Garza, 2010), pour
essayer d’expliquer non seulement les différences
entre les types de travail mais aussi d’étudier les
larges dimensions inclues, en partie, dans d’autres
théories (Thompson, 1983). Nous essayons
d’expliquer le concept et ses portées ainsi que les
relations avec les activités de service, qui sont
devenues de plus en plus importantes dans les
économies modernes, sans oublier son poids dans
celles moins développées. Nous rappelons le
concept classique de flexibilité (Durand, 2004) et
l’extension qu’il serait bon d’inclure dans le travail
non-classique. Nous introduirons tout
particulièrement une forme de flexibilité qui va
probablement devenir dominante dans le
capitalisme, suite à la dernière grande crise
économique, les prestations de services (Moncada
et Monsalvo, 2000) et leurs liens avec le travail
non-classique. Au final, nous discuterons de la
thèse des identités fragmentées (Sennett et Cobb,
1972) et de la servitude volontaire (Durand, 2006)
en fonction de l’approche mentionnée du travail
non-classique pour en arriver à des considérations
sur la possibilité de formation des personnes qui
travaillent dans ces conditions.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 315-330, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Work. Classical labor. Non-classical MOTS-CLÉS: Travail. Travail classique. Travail non
classique.
labor.
Enrique de la Garza Toledo – Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Autônoma Metropolitana do
México, Departamento de Sociologia. Professor visitante da Universidade Autônoma de Barcelona, Universidade de Cornell e de Evry (França). Pesquisador da Posgraduação em Estudios Laborales de la Universidad
Autónoma Metropolitana en México. Publicações recentes: La revitalización del debate del proceso de
trabajo. Revista Latinoamericana de estudios del trabajo. v. 16, n. 26, 2012; El trabajo no clásico y la ampliación
de los conceptos de la Sociología del Trabajo. Revista de Trabajo. Dinámica del trabajo en el marco de la
incertidumbre global, v 8, n. 10, Nueva Época, Buenos Aires, Argentina.2012
330
Paulo Henrique Martins
AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL SISTEMA-MUNDO
EN LA ORGANIZACIÓN DE LOS MODELOS DE DESARROLLO
Paulo Henrique Martins*
INTRODUCCIÓN
Desde que logramos incorporar la idea de
América Latina como manifestación particular del
sistema mundo, podemos proponer un segundo elemento, a saber, que los cambios históricos, sociales,
políticos, culturales, tecnológicos, estéticos e
institucionales verificados aquí siguen una lógica de
tiempo lineal producida por configuraciones o
patrones de desarrollo propios.1 Estos procesos
también no son homogéneos y revelan diferentes
movimientos sistémicos y alter-sistémicos que
expresan las transformaciones de los patrones de
poder sobre los territorios nacionales y entre los
espacios transnacionales.2 Por consiguiente, la
*
Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociología da
Universidade Federal de Pernambuco (Brasil).
Rua Acadêmico Hélio Ramos s/n. Cidade Universitária.
Cep: 50679-900 - Recife, PE - Brasil. [email protected]
1
Se trata de entender el desarrollo como fenómeno temporal dinámico del sistema mundo que articula sus diversas
manifestaciones capitalistas y anticapitalistas. Los procesos
de desarrollo son dominados por una lógica de temporalidad
histórica lineal que L. Tapia llama de una flecha del tiempo
lanzada hacia adelante y sustituyendo concepciones cíclicas
o circulares del tiempo (Tapia, 2011, p. 20-21).
2
Recordando la afirmación de I. Wallerstein que “lo que
se desarrolla no es un país sino un patrón de poder”
(Wallerstein, 1996, p. 195-207), Quijano aclara este
relación entre sistema mundo y desarrollo, de modo
general, o de sistema mundo latino-americano y
patrones de desarrollo de modo particular, no puede
ser conjugada en lo singular sino en lo plural. En
esta dirección es más correcto proponer la existencia
de diversos sistemas mundos y procesos de
desarrollos que manifiestan diferentes configuraciones
de poder y de modalidades de transformación de
las estructuras sociales.
entendimiento afirmando que el patrón de poder capitalista no existe de modo homogéneo en el espacio mundial: […] este patrón de poder es mundial, no puede
existir de otro modo, pero se desarrolla de modos diferentes y en niveles distintos en diferentes espaciostiempos o contextos históricos” (Quijano, 2000, p. 75).
Sin embargo, para profundizar el desarrollo desde la perspectiva de los patrones de poder nos parece importante
señalar que el poder económico capitalista es solo parte
de configuraciones de poder más amplias que revelan
cuestiones filosóficas complejas respecto el trabajo
creativo del ser humano en la organización de su mundo. El poder capitalista no es auto-evidente y no funciona solo. Como lo nos explica M. Weber no hay “leyes
económicas” en el sentido de conexiones “regulares” de
fenómenos en el sentido estricto de las ciencias de la
naturaleza pero “conexiones causales adecuadas”
expresas en reglas y, luego, que pueden aparecer como
“posibilidad objetiva” (pero no como imposición
necesaria de la realidad). Pues, aclara él, el número y la
naturaleza de las causas que determinan cualquier
acontecimiento individual son siempre infinitos y este
caos solo puede ser ordenado cuando un hecho específico tiene interés y significado para nosotros y se
encuentra en relación con las ideas de valores culturales
como abordamos la realidad (Weber, 1979, p. 94-95)
331
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013
Nuestra idea es que la definición de América Latina como manifestación particular del sistema
mundo es importante para aclarar el entendimiento de las innovaciones teóricas, sociales, culturales,
tecnológicas, estéticas e institucionales verificadas en la región desde el final de la segunda guerra
mundial. Sin embargo, el carácter de esta definición depende directamente de un entendimiento
anterior respecto a lo que significa el sistema mundo y el desarrollo. Porque si definimos el sistema
mundo como una unidad homogénea no tiene sentido hablar de manifestaciones particulares de
este sistema; por otro lado, si limitamos el sistema mundo al sistema capitalista, la idea de
particularidad de América Latina también queda complicada cuando pensamos la región como
base de procesos políticos y culturales liberatorios y propios. En fin, recordamos que este análisis se
inspira en contribuciones inestimables de la Comisión Económica para América Latina y Caribe –
CEPAL – que ha planteado de modo pionero innovaciones importantes sobre el tema del desarrollo,
contribuyendo con la ruptura del ideario colonial.
PALABRAS-CLAVES: América Latina. Sistema-Mundo. Desarrollo.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013
AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ...
Sin embargo, tales diferencias de patrones
solo pueden ser percibidas desde que reflexionamos
sobre el entendimiento del sistema mundo (y de
los patrones de desarrollo) como movimientos
sistémicos abiertos a expresiones y significaciones
variadas desde las luchas involucrando intereses
mercantilistas y anti-mercantilistas.
Para el avance de nuestra reflexión
necesitamos diferenciar tres nociones de sistema
mundo que de modo amplio dominan los
imaginarios de las ciencias sociales y que influyen
sobre la discusión sobre desarrollo, tipos de
desarrollo y superación del desarrollo. La primera
noción busca reducir el sistema mundo al sistema
capitalista; aquí los términos se anulan: globalización
significa capitalismo y vice-versa. La segunda, diferencia sistema mundo y capitalismo y propone
que el primer término es más amplio que el segundo. Sugiere que al ampliarse la noción de sistema
mundo más allá del sistema capitalista tenemos
que incorporar elementos no económicos de los
cambios institucionales, tenemos que reconocer
que existen varios sistemas mundos o movimientos
sistémicos dentro del sistema mundo. Sin embargo, esta tesis continúa proponiendo que el
eurocentrismo es el centro de las diversas formas
de organización de movimientos a favor y contra
el capitalismo.
La tercera noción, partiendo del supuesto
de la amplitud histórica del sistema mundo y de
su existencia más allá del sistema capitalista,
cuestiona radicalmente el eurocentrismo – la idea
de Europa y su extensión, los EUA, como centro
del sistema mundial. Esto tiene como implicación
directa el reconocimiento que hay varios centros
y/o centros potenciales de impulso del mundo que
conocemos (los márgenes como centros) y que
también hay varios movimientos sistémicos y altersistémicos que mueven los impulsos para adelante.
Esta tercera noción es fundamental para elaborar
la tesis de la América Latina como una expresión
particular del sistema mundo donde se manifiestan
diversos tipos de patrones de poder.
A partir del entendimiento de esta pluralidad
de concepciones sobre el sistema mundo, pode-
mos avanzar con la idea de América Latina como
manifestación particular del sistema mundo y como
espacio de luchas entre fuerzas capitalistas y
neocoloniales, por un lado, y fuerzas anti-capitalistas y decoloniales, por otro. Para este avance, es
fundamental incluir la idea de desarrollo como
patrón de poder, en primer lugar, y la idea de
desarrollo como pluralidad de posibilidades de
cambios sociales e históricos, lo que depende de
los acuerdos y luchas políticas.
LAS TRES INTERPRETACIONES DEL SISTEMA MUNDO PRIMERA INTERPRETACIÓN: el
sistema mundo es igual al sistema capitalista
En esta interpretación, que es la base de la
doctrina neoliberal y también del marxismo más
ortodoxo, sistema mundo y sistema capitalista se
identifican. El liberalismo y el marxismo en esta
interpretación aparentan ser opuestos en la medida
que proponen lecturas distintas de las bases causales
de la solidaridad social. Pero, ellas confluyen en el
campo epistemológico cuando valoran la
anterioridad fenoménica del interés económico. El
fundamentalismo económico define la marcha del
progreso de todos los países y las alternativas se
limitan a dos opciones: desarrollo con crecimiento
económico o desarrollo con recesión económica y
crisis. Aquí las transformaciones del capitalismo
definen las del sistema mundo tanto en las etapas
de crisis como las de prosperidad y las soluciones
son las de reforma – para los sistemas políticos
liberales – o de revolución – para los sistemas políticos marxistas, que se proponen “antisistémicos”.
Para el liberalismo la sociedad es fruto de
un contrato interesado entre individuos libres cada
uno buscando maximizar su posibilidades de
placer y de minimizar las perdidas como fue difundido por la filosofía utilitarista inglesa (Caillé,
1989) y que funda el mercantilismo colonial como
valor natural. En esta primera interpretación
restrictiva el entendimiento de sistema-mundo es
limitado por la presencia de un patrón de
dominación económica capitalista determinado por
332
la economía de mercado, como vemos entre los
liberales, y en particular por la preocupación con
el consumo, como con los marginalitas.
Por su lado, para los marxistas, la sociedad es
fruto de las luchas entre clases sociales por el control
de los medios de producción colectivos económicos.
Desde la perspectiva marxista, como vemos en
Wallerstein (2003), el sistema capitalista se confunde
con el sistema mundo; por consecuencia, la alternativa al capitalismo es la expectativa que sus
contradicciones generen su crisis y reacciones organizadas a tal crisis, lo que es muy problemático
cuando hacemos la retrospectiva de la historia
reciente del capitalismo. Pues cuando hacemos este
balance verificamos que los momentos dramáticos
del imperialismo eurocéntrico ocurrieron cuando
él tuvo que confrontarse con resistencias políticas
y culturales apuntando para otras modalidades
sistémicas y no por causa de crisis mecánica de
regulación en el proceso de mercantilización.
Sin embargo, ambas corrientes, liberal y
marxista, están del mismo lado al considerar que
el motivo central – de los acuerdos espontáneos o
de las luchas sociales – son de naturaleza
económica, como si el elemento económico pueda
aparecer como una referencia meta-histórica con
existencia propia e independientemente de las
significaciones culturales que imprimimos a la
realidad. En esta dirección, muchos actores indican
que las dos tesis no rompen con el paradigma
utilitarista moderno (Caillé, 1989) en la medida en
que el análisis de las sociedades contemporáneas
se limita al análisis de clases sociales definidas por
los conflictos económicos (los marxistas), o por
motivaciones económicas utilitaristas e individuales
(los liberales), sin considerar las significaciones
morales, políticas y culturales que también
contribuyen por la objetivación de la realidad.
En esta lectura la discusión sobre política y
cultura queda subordinada a la determinación
económica principal y los análisis de la crisis actual
no logran comprender la complejidad de cambio
del sistema mundo, pues quedan prisioneros de
previsiones sobre la crisis inminente del capitalismo. Los análisis devalúan las perspectivas de los
contextos históricos y culturales particulares dentro del sistema mundo o entienden que la crisis es
solo una desregulación provisoria del sistema capitalista a ser corregido mecánicamente por el
progreso económico y financiero. Si aceptamos que
la globalización capitalista involucra el sistemamundo como sugieren los neoliberales y los marxistas más ortodoxos, entonces somos obligados a
aceptar una jerarquía cognitiva en que las
determinaciones económicas subordinan las luchas
por otros modelos sociales y económicos y por
justicia social.
A nosotros, sin embargo, esta jerarquía nos
parece ilusoria pues esconde el hecho de que hay
varios dispositivos políticos, culturales, morales
y estéticos que influyen sobre la reproducción del
sistema mundo y del sistema capitalista en su interior. En esta dirección, si ampliamos el abordaje
economicista para incluir a elementos políticos,
culturales y simbólicos ampliando la teoría de las
clases y de la dominación con la inclusión de
teorías del reconocimiento y teorías implicadas en
la desconstrucción del patriarcalismo, entonces
podemos organizar un entendimiento más
complejo del sistema mundo. Este entendimiento
debe considerar que las manifestaciones regionales
del sistema mundo operan sobre territorios
políticamente movilizados por actores conectados
con la esfera económica y mercantil pero igualmente
con las esferas raciales, étnicas, identitárias,
patrimoniales, estatutarias, eco-sociales entre otras
que contribuyen para demostrar la complejidad de
las luchas y de las acciones colectivas en los
territorios políticamente organizados.
Contra esta lectura determinista del sistema
capitalista, preferimos considerar que el sistema
mundo es más amplio que el capitalista y que las
luchas contra él son dirigidas por movimientos
“alter-sistémicos” que no quedan sometidos a una
jerarquía comandada por las determinaciones
económicas. Por eso, tales movimientos apuntan
para heterotopías (Foucault, 2010), como las de
“alterglobalizacion” o de “alterdesarrollo”, por
ejemplo, que objetivan abrir el entendimiento humano para otros imaginarios socio-históricos. Así,
333
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013
Paulo Henrique Martins
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013
AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ...
nos parece importante caminar por nuevos
senderos epistemológicos que nos faciliten el
rescate de la complejidad histórica, social y cultural del sistema-mundo. Aquí, admitimos que el
sistema capitalista tuvo gran importancia para su
éxito, pero también aceptamos que este sistemamundo es algo más amplio y complejo que la
modernización capitalista y que el desarrollo es
un concepto que se desplaza entre diversos pactos de poder posibles.
El pensamiento latinoamericano incorporó
históricamente las dos corrientes. La visión liberal
está en la base de las teorías de la modernización
que sugieren etapas de desarrollo en América Latina y que fueron divulgadas por las universidades
norteamericanas (Rostow, 1993). La visión marxista, por su lado, ha inspirado grandes intelectuales
latinoamericanos como José Carlos Mariátegui y
Florestan Fernandes, que buscaron adaptar las tesis
eurocéntricas del marxismo a la realidad de América Latina. El esfuerzo de integrar elementos no
económicos y contextualizados como el de la
racialidad, para explicar la realidad compleja regional es prueba del esfuerzo de estos intelectuales.
En esta dirección los marxistas son más profundos que los liberales que quedan prisioneros de
una teorización muy abstracta. Así, podemos concluir que unos y otros, al final, reducen el sistema
mundo al sistema capitalista.
SEGUNDA INTERPRETACIÓN: el sistema mundo
es más amplio que el sistema capitalista
La segunda noción propone que el sistema
mundo es más amplio que el sistema capitalista y
que, por consecuencia, las transformaciones del
sistema mundo exigen marcos interpretativos más
complejos que los ofrecidos por las teorías
económicas. Este entendimiento más amplio del
sistema mundo se apoya en un conjunto de críticas anti-utilitaristas y anticapitalistas. Al
proponerse que el sistema mundo es más amplio
que el sistema capitalista, obligatoriamente somos
invitados a reflexionar sobre que otros elementos
no-capitalistas por naturaleza deben ser apuntados
como necesarios para explicar esta amplitud del
sistema mundo. De inmediato, nos parece importante subrayar que no siendo el mundo conducido
solo por intereses capitalistas y utilitaristas entonces
se explica la variedad de movimientos sistémicos
estimulados por diversos motivos y por otros usos
del poder político.
Aquí el pensamiento crítico avanza en la
discusión moral de la modernidad eurocéntrica con
énfasis en la búsqueda de racionalidad comunicativa en la modernidad inacabada (Habermas, 2003),
de la exigencia de ética en la civilización tecnológica
(Jonas, 1997), de la emancipación de un self moderno expresivo que cuestiona el self instrumental (Taylor, 1997), del reconocimiento moral y
afectivo de los sujetos del cotidiano, de la crítica al
fatalismo económico (Caillé, 2005) y de la revisión
de la idea de desarrollo como un proceso técnico
(Latouche, 1986). Aquí, el sistema mundo aparece
como una estructura cultural y humana compleja
más amplia que el capitalismo que todavía continua a ser impulsado – en el buen y en el mal sentido – por el eurocentrismo.
Así, el sistema mundo y el desarrollo como
expresión concreta del cambio histórico del sistema en la orientación del tiempo lineal, siempre
pueden ser vistos desde dos lados: de la
dominación de los intereses económicos sobre el
conjunto de motivaciones humanas y las reacciones
más diversas contra este reduccionismo. Pues lo
que caracteriza, de hecho, la complejidad del sistema-mundo, hoy, es la imposibilidad de reducirlo
a una única cosa: a una empresa económicofinanciera, al único patrón de poder, a una cultura
de consumo uniformizada o a una única lengua.
La contribución francesa es evidente y ella
se revela en tres dimensiones. La primera y más
conocida es la representada por las tesis que acercan
las ciencias sociales a las teorías del lenguaje, organizadas por nombres como Foucault (1999) y
Derrida (1967). La segunda se revela por las
contribuciones de la filosofía política del grupo de
la Revista Civilización y Barbarie, dirigida por C.
Lefort (1986) y C. Castoriadis (1975) que han
334
Paulo Henrique Martins
movimientos sociales, culturales y étnicos, las
luchas democráticas y por justicia social, la
ciudadanía republicana, la creatividad humana y
las experiencias de solidaridad quedan
necesariamente dependientes de la idea de una
solución económica en primer lugar aunque articulada con otros elementos no económicos.
Sin embargo, si la crítica teórica en el Norte
fue importante para ampliar el entendimiento del
sistema mundo para allá del sistema capitalista,
tal crítica no es aún bastante para explicar que la
relación centro versus periferia no se limita a
determinaciones geográficas o históricas que ubican
a Europa como centro y a la no-Europa como periferia. La crítica radical a esta ecuación jerárquica
es, todavía, promovida por la crítica descolonial
como vamos ver a seguir.
TERCERA INTERPRETACIÓN: el sistema
mundo es más amplio que el sistema capitalista y se mueve desde varios centros de
poder que cuestionan el eurocentrismo
La difusión de interpretaciones que
cuestionan con radicalidad las ideas de sistema
mundo y de desarrollo están relacionadas con el
avance del pensamiento postcolonial y, en los últimos años, del pensamiento decolonial. La
decolonialidad es una variable crítica de las tesis
postcoloniales que problematizan la ecuación centro y periferia como una realidad dada
históricamente. Si las tesis poscoloniales como las
cepalinas problematizan la colonialidad sin romper con el dogma del progreso económico, las
descoloniales buscan desconstruir la propia idea
de colonialidad y de progreso económico como
un reto incuestionable. Las tesis decoloniales de
Dussel, 1993; Lander, 2003; Mignolo, 2005; Castro Gomes e Grosfoguel, 2007; Escobar, 2008;
Abellán, 2009; Farah y Wanderley, 2011; Quijano,
2012; Martins, 2012 entre otros, avanzan en esta
dirección de problematizar el capitalismo desde la
crítica de un patrón de poder que se refiere
simultáneamente – y sin subordinación jerárquica
335
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013
avanzado elementos importantes para el
entendimiento de los fundamentos no económicos
de las experiencias democráticas. La tercera es representada por los activistas de la Revue du MAUSS
(Movimiento AntiUtilitarista en las Ciencias
Sociales) (MAUSS, 2010) que exploran la crítica
moral del capitalismo desde contribuciones
inestimables de autores como M. Mauss y K.
Polanyi (Caillé, 1989), para proponer otros modos
de pensarse la economía (Revue du MAUSS, 2007).
Este movimiento constituye una de las bases
centrales de la discusión sobre economía solidaria
(França Filho, Laville, Medeiros y Magnen, 2006).
La fuerza de la crítica francesa a la
globalización económica no es aleatoria pero debe
ser entendida como expresión de la tradición republicana e iluminista del campo intelectual en
este país que siempre reaccionó contra la propuesta
utilitarista anglosajona de mercantilización del
mundo, propuesta que a ellos, los franceses,
siempre recordó una amenaza directa al
republicanismo liberal. Tal vez, aquí, tenemos uno
de los puntos de diferencia entre el eurocentrismo
de inspiración francesa que articula el universalismo
cognitivo y la política, y el de inspiración
anglosajona que es más directamente comprometido con la mercantilización del mundo y menos con
los modelos de gobernabilidad política que se
preocupan de la articulación de Estado y Nación.
En América Latina, esta interpretación del
sistema mundo es representada sobre todo por los
teóricos de la dependencia que entienden que las
reacciones políticas posibles al capitalismo se hacen
necesariamente desde el reconocimiento del imperialismo como un centro motor incuestionable. A
pesar de los cambios históricos esta interpretación
dependientista se actualiza como verificamos en
los análisis recientes de autores importantes de la
teoría de la dependencia como Theotonio dos Santos, cuando explica las perspectivas de los sistemas regionales como América Latina, en el sistema mundo en el contexto contemporáneo (Santos,
2012). De hecho, cuando la internacionalización
del capitalismo es priorizada en la jerarquía
cognitiva del sistema mundo, entonces los
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013
AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ...
de los elementos a un factor prioritario – a la
economía, a la política, a la cultura, a la historia,
finalmente, a la diversidad de narrativas modernas que se combinan desde patrones interpretativos
diferenciados.
El avance de la crítica deconstruccionista
está también contribuyendo para la complejidad
de la crítica teórica al subrayar que la colonialidad
se refiere simultáneamente al capitalismo y al
patriarcalismo. Al capitalismo, la colonialidad se
refiere para organizar la dominación por la
clasificación por clases sociales; al patriarcalismo,
ella se refiere para organizar la dominación por la
clasificación por elementos de raza, género, sexo y
control de la naturaleza (Lugones, 2010). Así, la
dominación colonial se hace por la exploración
del trabajo pero igualmente por la exploración del
deseo, de los sentimientos, de la reproducción
humana, y, sobretodo, de la alienación del ser
humano respecto a su complejidad como ser vivo.
Por eso, E. Dussel (1993, p. 188) sugiere que la
modernidad eurocéntrica se define por su
emancipación racional y cognitiva respecto a
“nosotros” pero igualmente por su carácter míticosacrificial de los “otros”.
Este raciocinio nos parece adecuado para
plantear con más detalles tanto el entendimiento
teórico de la diferencia entre sistema mundo y sistema capitalista como de la profundización teórica
de los patrones de dominación actuales,
subrayando los aspectos epistemológicos y las
condiciones culturales particulares de las realidades locales, nacionales, continentales y globales.
Aquí, las críticas proponen que el sistema mundo
se mueve bajo varios movimientos sistémicos
destacándose el movimiento capitalista – que nos
habla de la reflexión anti-sistémica del marxismo
–, el movimiento del patriarcado – a que se refiere
el movimiento anti-sistémico feminista –, y el
movimiento colonial – que nos ha explicado por
las movilizaciones anti-sistémicas postcoloniales.
Pues se trata de demostrar que el sistema
mundo revela la influencia de patrones de poder
que existían antes del capitalismo moderno, como
el del patriarcalismo o de las culturas no europeas
o que fueron producidas en los últimos siglos al
lado y contra el capitalismo mercantilista. En esta
segunda interpretación el desarrollo no se pronuncia en singular y si en plural y en relación con los
patrones de poder establecidos históricamente. Así,
nos aclara I. Farah y F. Wanderley que contra una
visión restrictiva del desarrollo que valora solo las
estrategias de dirección de los procesos económicos
hay que incluir las perspectivas de género,
generación, ambientales, entre otras, así como
temáticas como justicia, derechos humanos,
participación y deliberación, ciudadanía y control
social (Farah y Wanderley, 2011, p. 11).
Esta no es solo una sugerencia metodológica.
Es sobre todo una ruptura metodológica con impactos en la política. Se trata de entender por las
variadas y complicadas actividades del modo de
producción, reproducción y consumerismo
“glocales” lo que está directamente conectado a las
estrategias de sobrevivencia de las élites económicofinancieras centrales y coloniales, por un lado, y a
las reacciones sistémicas, sociales, culturales e históricas de las más variadas que revelan que la característica central del sistema-mundo nos es su
tendencia para la uniformización planetaria pero
su ambivalencia constitutiva (Martins, 1999) entre
unicidad y diversidad, por otro.
Estos comentarios son importantes para el
avance de nuestra tesis en esto texto que, recordamos, se funda sobre dos puntos: primero, el
desarrollo es un concepto que se apoya sobre una
variedad de motivos, incluso el económico, pero
no solo; en esta dirección el desarrollo se apoya
sobre la producción y la circulación del capitalismo pero igualmente desde la tradición patriarcalita
que es anterior al capitalismo europeo y, en el lado
contrario, desde las reacciones anti-sistémicas contra el capitalismo, contra el patriarcalismo y contra
la colonialidad, fundadas en las tradiciones históricas no europeas. En segundo lugar, considerando la complejidad del fenómeno, hemos de pensar en la posibilidad de varios tipos de desarrollo
que espejan diferentes modalidades de patrones
de poder y diversas modalidades de inserción de
las sociedades nacionales en el contexto dinámico
336
Paulo Henrique Martins
3
Tuve esta comprensión al observar las diferentes modalidades de hablar inglés cuando sucedió el fórum organizado por la Internacional Sociological Asociation – ISA – en
Buenos Aires, en agosto de 2012. Conversando con una
colega ilustre de India, la socióloga Sujata Patel, ella
reclamaba al no entender casi nada de la traducción del
castellano para el inglés que había sido hecha por una
traductora argentina. Por otro lado, varios colegas y
estudiantes de lengua española y portuguesa reclamaban
por las dificultades para entender el inglés de los indianos
y de los chinos. Claro, esto es un pequeño ejemplo que
necesita ser profundizado pero que sugiere que la lengua
inglesa está conociendo mutaciones fonéticas y
semánticas importantes al ser apropiada por individuos
de otras estructuras lingüísticas. En verdad, lo mismo ya
pasó antes con el latín a lo largo del proceso de colonización
pues el portugués que se habla hoy en Brasil o Angola no
es el mismo portugués originario de Portugal. También
podemos recordar, en esta dirección, que, hoy, el inglés
que se habla en los Estados Unidos no es el mismo que se
habla en Inglaterra. La particularidad ahora del inglés es
que él pasa a ser apropiado como dispositivo de traducción
simbólica y cultural por individuos que mantienen sus
estructuras lingüísticas originales. Este sencillo ejemplo
nos revela a complejidad histórico-cultural del sistemamundo en la actualidad. Y podemos tomar muchos otros
ejemplos en las danzas, las fiestas, los rituales, las
economías entre otros para demonstrar que las
mediaciones lingüísticas son extremamente complejas y
que la transmodernidad de la que nos habla E. Dussel
(2012) es fabricada por experiencias y practicas variadas
que se comunican pero no se disuelven en un patrón
histórico y cultural uniformizado.
estamos presenciando por los conflictos religiosos
en la actualidad), y que el desarrollo es un concepto
elástico que revela las tensiones constitutivas del
sistema mundo en la dinámica del tiempo lineal,
que es el del progreso tecnológico, por un lado, y
del tiempo circular, que es el de la reproducción
de los sistemas vivos, incluso de las culturas y de
las familias de los humanos, por otro.
Así, podemos avanzar con otra cuestión:
entender la diversidad-particularidad de América
Latina dentro del sistema-mundo a partir del
reconocimiento que la relación centro-periferia no
es solo un sistema mecánico producido por el flujo
económico internacional sino un proceso político
de dominación colonial que revela las tensiones
sistémicas más amplias y que solo pueden ser enfrentadas políticamente. Esto es el aprendizaje que
nos legó la Comisión de Estudios de América Latina y Caribe – CEPAL – y que marca el desarrollo
particular del pensamiento crítico postcolonial y
decolonial después de la segunda gran guerra
mundial. Es lo que vamos a discutir a seguir.
La liberación de América Latina como sistema-mundo particular
Al analizar el rol de la CEPAL en la formación
del pensamiento latinoamericano, constatamos que R.
Prebisch (1949) planteó una reflexión sobre el sistema-mundo que tiene mucho más valor sociológico
que la mirada de los economistas en su época. Queremos decir que el momento en que Prebisch y colegas
como C. Furtado (1961, 1964) entienden que el deterioro del intercambio económico internacional entre
países productores de manufacturas y países
proveedores de materias primas agrícolas y minerales
estaba profundizándose y que no había solución para
los países “subdesarrollados” dentro de la lógica
económica de las “ventajas comparativas”, ellos logran
producir desde América Latina, un entendimiento
económico político más amplio del sistema mundo
que tuvo importantes impactos prácticos.
En el campo del pensamiento podemos
decir que la CEPAL introduce un hecho nuevo
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de la matriz centro-periferia mundial.
La presencia del inglés en el sistema-mundo es curiosa. Aparentemente, esta presencia
contradice lo que decimos aquí en la medida en
que esta lengua es hoy un sistema universal de
organización del diálogo cultural mundial y el eje
lingüístico de la dominación capitalista. Pero en la
práctica lo que observamos es que el inglés tradicional, que tiene sus orígenes en el mundo
anglosajón, está conociendo mutaciones muy importantes en su estructura en la medida en que
está siendo apropiado y adaptado por diversas
culturas. Esto nos hace recordar la historia del latín
en los siglos pasados que se desplegó en variadas
lenguas como el portugués, el español, el francés,
el italiano entre otros. Cuando analizamos la
adaptación del inglés en otras culturas como la
ibérica, la indiana o la china en esto momento entendemos que el avance del inglés se hace
simultáneamente a las mutaciones que sufre su
estructura fonética abriéndose a varios dialectos.3
Para sintetizar la discusión de esta sección
podemos decir que el sistema-mundo es una
realidad humana variada y constituida por elementos muchas veces irreductibles unos a otros (como
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AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ...
para pensar el sistema mundo por testimoniar claramente los desplazamientos de centros de
producciones de ideas sobre el desarrollo de centro para centro – desplazamiento del imperialismo
de Europa para Estados Unidos – y de centro para
periferia – nacimiento de un pensamiento crítico
en los márgenes, que contrariaba las tesis de las
teorías de la modernización defendidas por autores como Rostow (1993).
Las teorías de la modernización se basaban y
en la idea que la posibilidad de éxito para los países
“subdesarrollados” dependía de seguir los pasos del
crecimiento económico de los países “desarrollados”.
Las tesis desarrollista y anticomunista de Rostow
(1993) reveladas en su libro Etapas del crecimiento
económico son las más conocidas. Proponían que
cada país debería pasar por cinco etapas: sociedad
tradicional, transición (condiciones previas para
el “despegue económico”), el despegue económico,
camino de la madurez y consumo a gran escala.
En las universidades norte-americanas se
discutirán mucho los usos de las teorías de la
modernización en América Latina en la post-guerra. Según esta ideología del desarrollo la posibilidad
de superación de la condición del “subdesarrollo”
dependía de la capacidad de los dirigentes y
empresarios de los países subdesarrollados de
copiar los modelos exitosos de los países
“desarrollados”, apareciendo los Estados Unidos
como el modelo ejemplar.
En paralelo y contra esta lectura evolucionista
de la modernización, la CEPAL estimuló reacciones
antiimperialistas y también anticapitalistas que van
a manifestarse en las reformas de los estados de la
región, en las luchas por nuevas políticas públicas,
y en la liberación de las tesis poscoloniales. Tales
reacciones están presentes en la teoría estructuralista
cepaliana, en las teorías de la dependencia, en las
teorías de la colonialidad, en las teorías de la
liberación y en las teorías de la decolonialidad.
En esta dirección, podemos sugerir que
América Latina desde los años cincuenta se mueve
desde dos campos de ideas: por un lado las teorías
de la modernización estimuladas por las universidades norte-americanas para combatir el comunis-
mo y por el avance del imperialismo norte-americano que reconfigura el eurocentrismo; por otro,
las teorías antiimperialistas (que niegan la distancia estructural entre países desarrollados y
subdesarrollados) y que entienden que América
Latina pasa a ser desde entonces también un nuevo
centro de organización del sistema mundo.
Teorías imperialistas del desarrollo
Este es un punto importante para el avance
de nuestra reflexión y que debe ser explicado para
no haber exagero sobre el alcance de la ruptura
crítica producida por la CEPAL. O sea, la crítica
cepalina solo rompió con un aspecto de la
colonialidad, lo representado por la tesis equivocada del encubrimiento de la matriz centro-periferia del sistema-mundo por la ideología del equilibrio
espontáneo del mercado. Hay sin embargo otro
aspecto de la colonialidad que no se rompió con la
crítica cepalina: la de la ideología del progreso
económico por etapas que fue sugerida por las
teorías de la modernización. Esto significa que los
teóricos cepalinos entendieron que la teoría liberal
del libre mercado económico era falsa pero no
lograron romper los dogmas evolucionistas de la
teoría de la modernización.
Seguramente, necesitamos considerar los
límites del contexto cepalino para entender las
posibilidades de avance, pues los movimientos
sociales e intelectuales solo se liberan dentro de
ciertas condiciones históricas dadas. No es posible
concebir la creatividad intelectual fuera del espacio
y del tiempo (Castoriadis, 1975, Santos, 1979). En
esta dirección podemos entender que la descubierta
cepalina tuvo sus límites objetivos dados por las
tensiones entre la postcolonialidad y el imperialismo. La revolución cubana, por un lado, las
dictaduras militares, por otro, revelan la intensidad
de las tensiones políticas en América Latina en
este contexto de conciencia de la importancia de
una praxis de los márgenes. Estos hechos prueban
la existencia de límites al pensamiento poscolonial
crítico que fueron impuestos tanto externamente,
338
por el imperialismo norteamericano como internamente, por las fuerzas oligárquicas de base rural.
Hay que subrayar en esta dirección, por
consecuencia, que la incapacidad de los cepalinos
de romper con la ideología del crecimiento
económico ilimitado no fue solo una dificultad
teórica de los académicos de criticar la teoría de la
modernización por etapas. Los movimientos
intelectuales tenían que enfrentar dos tipos de
presiones políticas importantes: de los intereses
norteamericanos y de las oligarquías conservadoras. Así, las resistencias de estas oligarquías contra los cambios de los regímenes de propiedad y
de uso colectivo de las tierras inexploradas
económicamente revelan el cuadro de las relaciones de fuerzas presentes.
Las tentativas de implementación de las
políticas de reforma agraria apuntan para las
dificultades de implementar reformas estructurales
en el sistema de propiedad de base oligárquica y
en las políticas públicas controladas por el
autoritarismo burocrático. Esta tesis queda más
clara cuando consideramos que interesaba a los
cepalinos interferir sobre las reformas del aparato
estatal y sobre las políticas públicas y económicas.
O sea, si las políticas cepalinas fueron, por un
lado, audaces para la época confrontando incluso
los intereses oligárquicos con los planos de reforma agraria, por otro, ellas fueron conservadoras
por limitar tales reformas al proyecto de
organización de mercados internos nacionales de
consumo proyectados dentro de la matriz del
crecimiento económico lineal y evolutivo.
De esta forma, las teorías de la modernización,
pensadas desde la importancia de los EUA de limitar la influencia soviética sirvieron claramente
para actualizar los pactos conservadores
involucrando a oligarquías tradicionales y los
intereses capitalistas internacionales. Y esta
ecuación de las tesis de la modernización por etapas continua siendo de gran importancia en la
actualidad. Ella fue la referencia por la penetración
de las ideas neoliberales desde los años 80
(Martins, 2012). Por consecuencia, no es exagero
afirmar que la tesis neoliberal de disolución de la
ecuación centro y periferia tuvo un efecto desastroso sobre las creencias post-coloniales que
legitimaban el modelo del Estado desarrollimentista
centralizado.
En varios países de América Latina, en los
contextos de movimientos de redemocratización en
la década de ochenta, como fue el caso de Brasil,
los economistas de “izquierda”, legítimos herederos
de la tradición cepalina, no tuvieron éxito en las
tentativas de reforma del aparato estatal para asegurar
simultáneamente redistribución de ingresos y
democratización social. No es exagero pues afirmar
que el neoliberalismo contribuyó para desorganizar
profundamente una parte de la izquierda intelectual, sobre todo académica, que interpretaba la
coyuntura de las sociedades nacionales periféricas
desde las relaciones conflictivas entre el Estado, el
Poder Central desarrollimentista y los diversos
intereses presentes en el escenario político y
partidario (Martins, 1992).
Así, el pensamiento crítico latinoamericano
que había sido estimulado entre las décadas de 50
y 70 por la crítica poscolonial, estructuralista
cepalina y postdependientista, conoció cierta
recolonialidad desde los años 90 del siglo XX
provocada por decisiones políticas más interesadas
en los indicadores de productividad académica que
en la construcción de una ciencia adecuada para
apoyar los procesos de liberación social. Esta
recolonialidad pasó en Brasil, pero también, bajo
diversos senderos, en México, Argentina, Chile y
varios otros países de la región.
Por consecuencia, el pensamiento académico
y universitario latinoamericano, hoy, está muy marcado por procesos de recolonialidad del saber que
se materializaron bajo la profesionalización de los
estudios universitarios. Este hecho contribuyó para
estrechar las cooperaciones entre universidades
latinoamericanas, europeas y norteamericanas,
fragilizando la cooperación universitaria entre las
sociedades latinoamericanas. En muchos países se
olvidó de algún modo la memoria de América Latina como una comunidad de destino, siendo Brasil un caso emblemático de esta alienación
académica (Martins, 2012).
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AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ...
La traducción de la ideología de la
globalización en el glosario poscolonial fue lo de
la disolución de la tensión centro y periferia dentro del sistema mundo. Muchos postcolonialistas
de izquierda se convirtieron al fascínio del
pensamiento único. Pues lo que ellos más
ambicionaban - la realización del desarrollo en
condiciones de periferia – les pareció arreglado de
súbito por el aparente desaparecimiento de la
tensión centro y periferia, lo que igualmente para
muchos significaba que el Estado centralizado e
interventor no era más necesario. Hemos de
reconocer, entonces, que parte del pensamiento
académico heredero de la crítica poscolonial quedó
pasivo y fue absorbido por los nuevos dispositivos
de colonialidad producidos la ideología de la
globalización económico uniforme que fue articulada dentro del campo académico neoliberal,
impactando sobre los destinos de parte de las ciencias
sociales regionales. El proceso de recolonización del
saber por políticas de profesionalización universitaria
que valoran la subordinación del conocimiento al
eurocentrismo se verificó bajo procesos de
recolonialidad del poder destinados a asegurar los
cambios en el patrón de poder dominante para
permitir el avance del capitalismo económico y
financiero en el interior de los Estados
desarrollimentistas. En Brasil, por ejemplo, hay
varios departamentos de economía que no
incluyen, en sus contenidos estratégicos para la
enseñanza, asignaturas como sociología y
antropología; y muchos estudiantes reclaman por
la ausencia de estudios sobre la CEPAL y sobre el
rol de Celso Furtado para las teorías del desarrollo.
Paralelo a estos procesos debemos registrar
el avance de la crítica descolonial, o decolonial,
que ha progresado de modo incierto y casi siempre
fuera de la academia. Tales críticas se apoyan principalmente sobre el avance de la sociedad civil
compleja que cuestiona las estructuras de
colonialidad desde abajo, desde el mundo de la
vida, desde los conflictos urbanos y rurales, desde los nuevos movimientos sociales conectados a
las luchas, de las mujeres, de los sin tierras, de las
personas sin hogar, de los sin ciudadanía, de los
ambientalistas entre otros. En Brasil, esta nueva
mirada es planteada por autores como M.G. Gohn
(2000), B. Bringel (2010) y I. Scherer-Warren y L.H.
Hahn Luchmann (2011), sin embargo hay una
producción importante de estudios y redes en
Latinoamérica que están a mapear las reacciones
altersistémicas (Mato, 2004; Quiroz, Jonas, Pereira
e Nagata, 2006; Escobar, 2008 ).
La invención de la CEPAL fue en suma una
experiencia de descolonialidad. Pero, tenemos aquí
una revisión parcial que no rompió con la idea de
centro versus periferia como una ecuación de validad
ontológica, y, por consecuencia, con la idea de
crecimiento económico ilimitado. Por otro lado, la
idea de decolonialidad se refiere a un cuestionamiento
de la validad ontológica de la ecuación centro y
periferia, liberando los márgenes para movilizarse
como centros autónomos y creativos de
producción de conocimiento sobre el desarrollo e
igualmente sobre la vida y los derechos humanos
(Martins, 2012).
Este es pues el contexto en que vamos a
presenciar el surgimiento al lado de las teorías
postcoloniales, del movimiento teórico decolonial
que objetiva deconstruir radicalmente la
colonialidad desde otros marcos interpretativos que
cuestionan la idea misma de centro y periferia;
cuestionamientos que proponen liberar la periferia de una posición dependientita en el sistemamundo para que aparezca como nuevos lugares de
producción de saberes y experiencias del mundo.
Teorías antiimperialistas del desarrollo
El cuestionamiento político de la ecuación
centro versus periferia que tiene como marco la
CEPAL tuvo impactos sobre el surgimiento de un
pensamiento crítico en los márgenes del sistema
mundial que se abrió en variados senderos: el
estructuralismo cepalino, las teorías de la
dependencia y de la liberación entre otros. Pero
también sobre innovaciones institucionales y políticas como las reformas de los mecanismos del
Estado modernizador y sobre las reacciones alter-
340
sistémicas de la sociedad movilizada como la
sugerencia de diversos estilos de desarrollo (Faletto,
2009). El desplazamiento de la mirada crítica sobre los centros de producción del sistema mundo
a través del estructuralismo cepalino se materializó
desde entonces por iniciativas políticas intencionadas para organizar el desarrollo nacional: estimular la industrialización nacional y la expansión
del mercado interno. Las reformas del sector estatal se hicieron primeramente en los mecanismos
cambiales y avanzaron en iniciativas más profundas de reformas institucionales, fiscales y financieras
(Faletto, 2009) que fueron bien detalladas en el caso
brasileño por Luciano Martins (1968).
Sin embargo, las tensiones generadas en este
momento histórico de postguerra no se limitaron
al debate académico como el de la CEPAL,
desplazándose para la vida política y para las calles,
apareciendo en varios momentos sentimientos
colectivos antiimperialistas. La campaña “el petróleo es nuestro” en Brasil a inicios de la década de
cincuenta generó reacciones nacionalistas importantes que legitimaron la creación de la
PETROBRAS (Petróleo Brasileiro) en 1953. Varios
ejemplos pueden ser recordados en esta dirección.
No obstante, es más importante subrayar el hecho
que la crítica inicialmente de razones económicas
de las relaciones centro-periferia se pasaron para
el plano de la política generando sentimientos
anticoloniales significativos. Hubo entonces una
ruptura epistemológica importante en este momento y que es fundamental para entender el desarrollo
del pensamiento crítico postcolonial y contextual
en Latinoamérica y lo que le diferencia de otros
continentes. Esta observación es interesante para
entender que lo que llamamos genéricamente de
sistema mundo es un fenómeno organizado desde
varios movimientos sistémicos, desde varias lógicas de organización de un mundo humano que
está siempre moviéndose en direcciones
hegemónicas y contra hegemónicas.
Esta ruptura de entendimiento respecto a la
colonialidad tiene, luego, valores epistémicos y
políticos inestimables, contribuyendo para
desplazar para el sistema político y para las
movilizaciones sociales lo que los colonizadores
planetarios querían limitar a un simple problema
económico a ser arreglado a largo plazo por el “libre
juego de mercado”.
La ruptura epistémica y epistemológica con
efectos en la política y en la organización del Estado, en particular en la organización del Estado
Desarrollimentista, se reveló tanto por el
entendimiento de que las ciencias sociales son un
conjunto de saberes articulados por un imaginario
histórico compartido y que la disciplina económica
exige su permanente evaluación política y social
como por el hecho de que el sistema mundo es
constituido por tensiones de centralización y
descentralización o de centro-periferia. O sea, la
descubierta cepalina generó además de rupturas
epistemológicas con impactos sobre el modelo de
Estado y las políticas de modernización regionales,
una importante ruptura epistémica respecto a la
desconstrucción del imaginario de la colonialidad
y la emergencia del otro, postcolonial que
problematizó la dependencia económica y política.
O sea, el discurso capitalista colonial – el
de las teorías de la modernización que reducía las
relaciones entre naciones “desarrolladas” y
subdesarrolladas” a un problema de desigualdades económicas a ser eliminadas en un futuro
incierto por las leyes espontáneas del mercado -,
fue contestado por otros discursos que entendían
las relaciones internacionales como un problema
político y epistemológico que revelaban las
tensiones entre los movimientos sistémicos del
centro y de las periferias. Las ideas de dependencia
y desarrollo pasan a ser cuestionadas con más
profundidad desde los años 60 y el pensamiento
crítico pasó a resignificar la modernidad como
colonialidad (Schlosberg, 2004).
En esta dirección es importante recordar que
no es mera coincidencia que la creación de la
CEPAL fue seguida de otras iniciativas
institucionales importantes como la creación de la
Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales –
FLACSO –, de la Asociación Latinoamericana de
Sociología – ALAS – que es la más importante
asociación continental del planeta y de centros de
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investigación sobre América Latina, aquí destacando la importancia del sociólogo mexicano Pablo
González Casanova que fue el gran incentivador
del Instituto de América Latina de la Universidad
Nacional Autónoma de México – UNAM – que ya
completó 60 años de existencia. La descubierta
cepalina está pues en el origen de importantes
movimientos teóricos y sociales que se desarrollan
en la región desde los años cincuenta. Y aquí, a
nosotros nos gusta diferenciar, siguiendo
reflexiones de autores de la escuela peruana de
sociología inspirada en la obra de A. Quijano
(Mejia, 2012), entre dos planos de análisis: el del
movimiento teórico pos-colonial y el del
pensamiento descolonial.
La descubierta cepalina, como vimos,
significó una ruptura importante con el imaginario
colonial – liberando las semillas de la heterotopía
de una comunidad de destino solidaria (Martins,
2012) – y con el imperialismo –, desplazando la
discusión de los cambios económicos
internacionales del plano de la economía para la
política. El entendimiento del deterioro de las relaciones económicas significó, así, importante
inauguración de nuevo paradigma interpretativo
con implicaciones prácticas sobre la organización
de un pensamiento latinoamericano particular dentro del sistema mundo, que no tiene similitud en
otros continentes.
CONCLUSIÓN
No hay como negar los avances del
pensamiento crítico latinoamericano desde el momento en que la idea de deterioro de las relaciones
centro y periferia fueron cuestionadas políticamente
por los cepalinos al final de la segunda guerra
mundial. Todas las teorías críticas posteriores son
de algún modo herencias de esta ruptura epistémica
en el interior del sistema mundo y del surgimiento
de fuerzas alter-sistémicas cuestionando el capitalismo desde los márgenes de los países centrales.
Por otro lado, no hay como negar igualmente la
importancia de las teorías de la modernización
fabricadas en las universidades norte-americanas
para el impulso de proyectos modernizadores que
legitimaron la expansión de prácticas capitalistas
en la región y la formación de una élite de economistas que van a articular la neocolonización por
el neoliberalismo al final del siglo XX.
Considerando el contexto del pensamiento
crítico latinoamericano desde la coyuntura actual,
debemos reconocer que hubo varios avances
favorables a una crítica decolonial y a una praxis
de resistencia amplia. Sin embargo, estos avances
teóricos no fueron aún articulados en un sistema
disciplinar o interdisciplinario ampliamente compartido por intelectuales, activistas y movimientos
sociales y culturales, o sea, como fundamento
epistemológico de un pensamiento del sur o de
los márgenes, constituyendo una ruptura de hecho
con el pensamiento eurocéntrico.
La sistematización de esta crítica de los
márgenes es necesaria todavía para profundizar el
entendimiento del sistema latinoamericano como
un conjunto de fuerzas sistémicas y alter-sistémicas
que se mueven entre el tiempo del desarrollo – el
tiempo lineal – y otras modalidades de tiempo a
través la creación de patrones de poder variados
sobre el cambio social, que llamamos de padrones
de desarrollo y que son importantes para el
entendimiento práctico de las luchas actuales entre fuerzas decoloniales y neocoloniales respecto
al futuro de la humanidad y de América Latina.
A nosotros nos parece así, que los impases
de las teorías de la dependencia pueden ser superados desde que entendemos el desarrollo no solo
como un proceso económico definido por clases
sociales sino como procesos simultáneos
económicos y no económicos que generan varias
ecuaciones políticas sobre los territorios
políticamente movilizados. En América Latina, los
diversos patrones de poder se organizan bajo la
dialéctica centro y periferia del sistema mundo y
del capitalismo global y bajo los dislocamientos
de las tensiones de la producción de conocimiento
entre el Norte Global y el Sur Global. En esta
dirección, pensamos sea posible organizar una
tipología provisoria de patrones de desarrollo, ins-
342
pirados en la tesis de M. Weber (1979)4 respecto a
la importancia de la clasificación cognitiva
provisoria para organizar el caos de la realidad.
En principio, nos parece pues que en
Latinoamérica es posible observar cuatros patrones
de desarrollo que necesitan ser más profundizados
en otro momento. Aquí, tenemos: a) Patrón de
desarrollo por retos económico-financieros con
subordinación de lo social al consumo; b) patrón de
desarrollo por retos económico-financieros con
indexación de lo social a los derechos republicanos;
c) Patrón de desarrollo por derechos colectivos
solidarios con apoyo en políticas económicas plurales;
y d) Patrón de desarrollo por derechos igualitarios
con apoyo en políticas económicas colectivistas.
Tales patrones expresan las ecuaciones de
poder que se forman en los territorios nacionales,
regionales, locales y transnacionales a partir de las
diversas fuerzas presentes que pueden ser
económicas – las clases – pero también los grupos
estamentales, étnicos, de género, culturales entre
otros. En la lucha por la apropiación de los
territorios políticamente y socialmente movilizados,
tales fuerzas organizan los sentidos de sus acciones
desde categorías que pueden ser capitalistas – las
clases económicas – pero igualmente patriarcalitas,
religiosas, coloniales y étnicas. Las diversas
matrices que surgen de las combinaciones de
intereses movilizados por categorías cognitivas diferenciadas son la base para la constitución de
patrones de desarrollo que se distribuyen
geográficamente por grupos de territorios – países
– y dentro de los territorios nacionales.
En esta dirección, podemos observar que el
tipo uno sugerido, el de Patrón de desarrollo por
retos económico-financieros con subalternización
de lo social al consumo, impacta horizontalmente
sobre territorios adonde el capitalismo subordinó
lo social como Brasil y México, como dentro de
cada uno de esos países. Este patrón se funda en
4
Pues, aclara él, el número y la naturaleza de las causas
que determinan cualquier acontecimiento individual son
siempre infinitos y este caos solo puede ser ordenado
cuando un hecho específico tiene interés y significado
para nosotros y se encuentra en relación con las ideas de
valores culturales como abordamos la realidad (Weber,
1979, p. 94-95).
la hegemonía de los economistas neoliberales en
la definición de los retos del desarrollo en términos claramente económicos y consumistas. Aquí,
lo social no es percibido como un sistema social
que tiene su propio ritmo sino como un producto
del crecimiento económico. Desarrollo es claramente crecimiento económico y la función del Estado
es apoyar la reproducción del patrón de poder
económico y financiero internacionalista, siendo
la ciudadanía limitada a la inclusión de los
individuos en el mercado de consumo de bienes y
servicios. En el caso brasileño, vemos que el modelo de inserción de los individuos en la sociedad
organizada por el consumo de bienes durables y
no durables contribuyó para un consumo no
reflexionado que impacta negativamente sobre las
condiciones de vida en las grandes ciudades. Por
otro lado, en el caso mexicano, que sigue en líneas
generales el mismo patrón de desarrollo, vemos
que la subordinación de lo social al capitalismo
por el consumo estimuló largamente la expansión
del capitalismo del narcotráfico al lado y en
articulación con el capitalismo liberal tradicional.
O sea, cada patrón de poder tiene impactos
diferenciados según las modalidades de presencia
histórica y cultural de los territorios políticamente
movilizados. En esta dirección, podemos afirmar
que los demás patrones sugeridos también obedecen
a estas determinaciones generales. Así el Patrón de
desarrollo por retos económico-financieros con
indexación de lo social a los derechos republicanos
se funda igualmente en la hegemonía de los economistas como en el caso anterior. Sin embargo la
ambición de clasificar lo social como producto del
crecimiento económico encuentra resistencia en una
memoria de derechos de ciudadanía republicana
(al trabajo, a la libre expresión, a los servicios públicos básicos como educación y salud, etc.) que aún
funciona como dispositivo de resistencia al avance
neoliberal. Los ejemplos más típicos de este patrón
son Chile y Costa Rica.
Por su lado, el Patrón de desarrollo por
derechos colectivos solidarios con apoyo en políticas económicas plurales se basa en articulaciones
amplias de agentes sociales e institucionales, no
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AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ...
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AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL ...
LATIN AMERICA AS AN EXPRESSION OF
WORLD-SYSTEM IN THE ORGANIZATION
OF DEVELOPMENT MODELS
L’AMÉRIQUE LATINE COMME EXPRESSION
DU SYSTÈME-MONDE DANS
L’ORGANISATION DES MODÈLES DE
DÉVELOPPEMENT
Paulo Henrique Martins
Paulo Henrique Martins
Nous partons de l’idée que la définition de
l’Amérique Latine comme manifestation particulière
du système-monde est importante pour clarifier la
compréhension des innovations théoriques,
sociales, culturelles, technologiques, esthétiques et
institutionnelles confirmées dans la région depuis
la fin de la deuxième guerre mondiale. Cependant
le caractère de cette définition dépend directement
d’une compréhension préalable mise en rapport
avec ce que l’on entend par système-monde et
développement. Car si l’on définit le système-monde comme une unité homogène, cela n’a aucun
sens de parler de manifestations particulières de
ce système, d’autre part, si nous limitons le
système-monde au système capitaliste, l’idée de
particularité de l’Amérique Latine se complique,
elle aussi, si nous pensons à la région comme à
une base de processus politiques et culturels
libératoires et propres. Enfin, rappelons que cette
analyse s’inspire des contributions inestimables
de la CEPAL (Commission Économique pour
l’Amérique Latine et les Caraïbes) qui, en tant que
pionnière, a introduit d’importantes innovations
concernant le développement et a apporté une
K EY W ORDS : Latin America. World-system. contribution à l’effondrement des idées coloniales.
Development.
MOTS-CLÉS: Amérique Latine. Système-Monde.
Développement.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 331-346, Maio/Ago. 2013
Our idea is that the definition of Latin
America as a particular manifestation of worldsystem is important for clarifying the understanding
of innovations that have taken place in the region
since the end of World War II, whether they be
theoretical, social, cultural, technological esthetic,
or institutional. Nevertheless, the character of this
definition depends directly on a prior
understanding of the meaning of world-system and
of development. If we define world-system as a
homogeneous unit, it makes no sense to talk about
particular manifestations within this system. On
the other hand, if we limit world-system to the
capitalist system, the idea of Latin America’s
particularity becomes complicated when we think
of the region as a base for political and cultural
processes, both borrowed and original. After all,
we must remember that the inspiration for this
analysis is the inestimable contributions made by
CEPAL (Economic Commission for Latin America
and the Caribbean), which pioneered important
innovations to the theme of development, thus
contributing to a break with the colonial mindset.
Paulo Henrique Martins – Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Professor e Pesquisador dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Saúde Coletiva da UFPE. Presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) (2011-2013). Coordenador
do Núcleo de Cidadania e Processos de Mudança – NUCEM – (UFPE). Bolsista de Produtividade 1B do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tem produção acadêmica na área
de Sociologia, particularmente nas áreas de Teoria Sociológica e Estudos Pós-Coloniais, Estudos sobre a
Dádiva; Sociologia da Saúde e Sociologia do Poder. Publicações recentes: Durkheim, Mauss e a atualidade da
escola sociológica francesa. Sociologias (UFRGS. Impresso), v. 31, p. 70-90, 2013; Revisitando os fundamentos das modernidades periféricas: dádiva, mercado e pacto. Revista Brasileira de Sociologia, v. 1, p. 243-274,
2013; América Latina y el (des)encanto del desarrollo. Revista de Sociología - Universidad Nacional Mayor
de San Marcos, v. 23, p. 115-130, 2013.
346
Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto,
Ricardo Abramovay
ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO DE
BIODIESEL
Yumi Kawamura Gonçalves*
Arilson Favareto**
Ricardo Abramovay***
INTRODUÇÃO
Este texto tem por base um estudo realizado no Semiárido Nordestino,1 no qual foram
investigadas as condições e os bloqueios à inserção dos agricultores familiares no recente mercado
de biodiesel, ao mesmo tempo em que procura
explicitar as contribuições que a sociologia econômica propicia para o entendimento das questões
atuais sobre o Programa Brasileiro de Produção e
Uso do Biodiesel (PNPB), evidenciando que o mercado de biodiesel brasileiro não pode ser compre* Doutora em Energia. Pesquisadora na área de Sociologia
Econômica na Universidade Federal do ABC, Centro de
Ciências Naturais e Humanas.
Rua da Catequese 242. Jardim. Cep: 09090400 - Santo
André, SP - Brasil [email protected]
** Doutor em Ciência Ambiental pela Universidade de
São Paulo. Professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC). [email protected]
*** Doutor em Ciência Econômica. Professor titular do
Departamento de Economia da FEA e do Instituto de
Relações Internacionais da Universidade de São Paulo –
USP. [email protected]
1
Os autores registram especial agradecimento à GTZ (Cooperação Técnica Alemã no Brasil) que financiou este
estudo, aos técnicos daquela organização e da Secretaria
da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário pelas críticas e sugestões recebidas, e aos
endido com um olhar exclusivamente econômico,
assim como a viabilidade dos agrocombustíveis não
pode ser prevista a partir de um viés exclusivamente agronômico.
O mercado do biodiesel no Brasil, que nasce
induzido por um programa governamental, mostra-se hoje, depois de oito anos desde o seu lançamento, como uma realidade controversa e heterogênea. É indiscutível a pujança que o programa gerou
em termos de investimentos privados no setor industrial em praticamente todo o país. Entretanto,
um conjunto de críticas e questionamentos marca o
debate público sobre o PNPB.
Uma delas diz respeito ao contraste entre a
expectativa de diversidade de matérias-primas que
podem ser empregadas na produção deste combustível e a predominância absoluta da soja, importante em cadeias alimentares, e cuja dinâmica
de produção e preço é dada pelo mercado internavários agricultores e membros de organizações sindicais,
governamentais e não governamentais que atuam no
Semiárido Nordestino pela disponibilidade em fornecer
informações e dados sobre o tema aqui analisado. Como
de praxe, os autores permanecem, contudo, os únicos
responsáveis pelo conteúdo aqui expresso.
347
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
O trabalho traz uma análise dos processos favorecidos pelos incentivos e investimentos derivados do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) no Semiárido nordestino. Em
função da importância da produção de mamona na região e da aposta do PNPB nesta oleaginosa
como meio de inserção da agricultura familiar no mercado de biodiesel, o principal objetivo do
estudo consistiu em compreender a estrutura e a dinâmica do mercado da mamona, as mudanças que até agora resultaram dos incentivos do PNPB, e os possíveis entraves aos processos
condizentes com os objetivos sociais do programa. A análise demonstrou que as ações em curso
não têm sido suficientes para alterar as estruturas sociais associadas à pobreza e à dependência
dos agricultores pobres e que a dinâmica empresarial sinaliza importantes incertezas sobre a
continuidade dos processos em curso.
PALAVRAS-CHAVE: Biodiesel. Semiárido. Agricultura familiar. Mamona. Sociologia econômica
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ...
cional.2 A imagem de sustentabilidade vendida
pelo biodiesel também destoa dos problemas
ambientais e trabalhistas presentes nas cadeias
produtivas em que está baseado, estruturadas antes de seu advento, mas que lhe “contaminam”
(como é o caso da produção de soja e sebo bovino,
as duas principais matérias-primas).
Outra crítica corrente sobre o PNPB – uma
das mais contundentes –, é que ele tem sido falho na
inclusão de agricultores familiares mais pobres. Ao
se apoiar na soja para garantir os níveis de produção
estipulados pela mistura obrigatória (em percentuais
crescentes desde 20083), as aquisições de matériaprima têm sido efetuadas junto aos setores mais dinâmicos e capitalizados da agricultura familiar, particularmente no Centro-Oeste e Sul do país. Este texto
se volta para esta questão, examinando os processos
de construção do mercado de biodiesel no nordeste
do país, onde estavam depositadas grandes expectativas em termos dos ganhos sociais do programa.
Duas visões polarizam o debate neste ponto. A primeira delas vê com reticência e ceticismo
as perspectivas deste mercado, uma vez que a
mamona, eleita a estrela da inclusão social do
PNPB, conta (e contava, à época de criação do programa) com mercados consolidados, que envolvem
cadeias de altíssima tecnologia e produtos de alto
valor comercial, o que comprometeria a viabilidade de seu emprego no mercado de biodiesel (Nogueira, 2008). Entretanto, o paralelo feito por críticos da estratégia do programa, de que produzir
mamona para biodiesel seria equivalente a produzir jacarandá para ser queimado como lenha, apesar de forte apelo retórico, desconsidera que a produção e o mercado da mamona são muito mais
maleáveis do que o mercado de uma madeira nobre como o jacarandá. Ademais, sendo verdadeira
a afirmação de que a mamona tem finalidades mais
nobres do que o biodiesel, caberia perguntar por
que, então, a produção de mamona no Nordeste
permaneceu, por décadas, tão rudimentar e tão
fortemente associada à pobreza.
2
Discutido, entre outros, em Kawamura (2012) e
Kawamura, Diniz e Favareto (no prelo).
3
Começando com 2% em janeiro de 2008; e chegando a
5% em 2010.
A outra visão, em contraste, tem como principal argumento que a criação da demanda de mamona
para biodiesel geraria uma concorrência antes
inexistente, elevando os patamares de preço e favorecendo ganhos na renda aos agricultores que já forneciam mamona para a indústria ricinoquímica. Além
disso, os produtores se beneficiariam de maior
segurança na comercialização – propiciando a ampliação da base de agricultores neste cultivo – e de
serviços e incentivos, previstos nas normas do
PNPB, que até então não estavam presentes nos
sistemas produtivos tradicionais. Como decorrência, haveria o aprimoramento dos sistemas produtivos da agricultura familiar, que sustentaria a estratégia de produção de biodiesel no Nordeste e
estimularia a dinamização das economias locais
(Carmélio & Campos, 2009).
A rigor, estas duas visões não são excludentes.
A elevação dos patamares de preços pode estar gerando um aumento nas rendas dos agricultores e
melhorando as expectativas de investimento na sua
produção. Mas pode haver um teto para as aquisições de mamona pela indústria de biodiesel, delimitado pela dinâmica dos usos concorrentes na indústria ricinoquímica que, por operar com produtos de
maior valor agregado, teria maior margem de manobra para compor a estrutura de preços, repassando
custos ao produto final, ou valendo-se da possibilidade de, simplesmente, importar óleo, caso os custos para tanto se mostrem compensadores.
Ocorre que venda do óleo de mamona para
indústria ricinoquímica ou no mercado de biodiesel
envolve muito mais do que a comparação entre os
preços oferecidos neste ou naquele. Uma série de
particularidades não mercantis marca a lógica de
exploração que perpassa a cadeia da mamona. Ao
examinar estas questões, este texto propõe-se a
discutir perspectivas analíticas através das quais o
biodiesel brasileiro é tratado.
Neste sentido, o principal objetivo deste
estudo consistiu em compreender a estrutura e a
dinâmica do mercado da mamona, as mudanças
que até agora resultaram dos incentivos do PNPB,
e os possíveis entraves aos processos condizentes
com os objetivos do programa, especialmente no
348
Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto,
Ricardo Abramovay
4
Para testar esta hipótese, foi visitado um pequeno grupo
de municípios no Semiárido, selecionados com base em
consultas a informantes-chave. Foram visitados municípios em que tivesse ocorrido uma expansão importante
na produção de mamona, impulsionada pelo mercado de
biodiesel e, de outro lado, municípios em que a produção
já estava estruturada (Monsenhor Tabosa, Pedra Branca e
Boa Viagem no Ceará, e Morro do Chapéu, Nova Redenção, Cafarnaum, Irecê e Lapão na Bahia). No total, foram
entrevistadas setenta e cinco pessoas, das quais trinta e
seis agricultores. As entrevistas cobriram, também, comerciantes, agentes financeiros, membros do poder público local, técnicos agrícolas e dos serviços de assistência
técnica e extensão rural, lideranças comunitárias e dirigentes de organizações de agricultores como sindicatos,
associações e cooperativas. Finalmente, foram entrevistados informantes-chave e diretores de empresas de
biodiesel e da indústria ricinoquímica. A pesquisa de campo
ocorreu em 2009 e foi complementada em 2010.
As ideias formuladas por Neil Fligstein (2001) fornecem um quadro de análise interessante para
destrinchar os mecanismos desta estabilização de
relações a um só tempo econômicas e sociais. A
sistematização feita por Abramovay (2008) é bastante útil para os propósitos deste artigo (Box 1).
Dando continuidade à apresentação do tema
proposto, a seção seguinte traz as principais características do mercado internacional e nacional da
mamona, descreve e analisa este mercado no
Semiárido Nordestino, apresentando os principais
agentes, características da produção e da
comercialização, bem como analisa as mudanças
recentes neste mercado, a partir dos incentivos do
PNPB. As conclusões são apresentadas na terceira
parte do texto.
O MERCADO DA MAMONA
Produtos de alto valor agregado, mercado
externo e interno
Os óleos de mamona dão origem a derivados que são empregados em diversas indústrias,
de química fina, compondo produtos como têxteis sintéticos de última geração, vidros especiais,
cosméticos avançados, medicamentos, perfumaria,
lentes de contato, plásticos de alta resistência, lubrificantes, resinas plásticas, próteses ósseas,
poliuretanos com diversas aplicações. No plano
internacional, empresas e grandes grupos empresariais atuam na extração, processamento e
comercialização dos derivados, com mercados em
diversos continentes. É consensual que as perspectivas desse mercado guardam forte potencial
de expansão e uma tendência à continuidade da
diversificação dos usos, com a constante criação
de novos produtos. Na outra ponta, a produção
de matérias-primas no nordeste brasileiro apresenta
um forte contraste com este vigor. A oferta de matéria-prima é pulverizada, organizada em bases tradicionais e marcada por uma severa precariedade.
Desde 1978, o Brasil figura entre os três
maiores produtores de mamona e de óleo de
349
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
que diz respeito ao envolvimento de agricultores
familiares pobres. A hipótese orientadora deste
estudo é que o biodiesel pode ser um elemento
decisivo para alterar a organização daquilo que Frank
Ellis (1988) chamou de mercados incompletos e
imperfeitos, característicos dos produtos típicos
dos segmentos mais empobrecidos da agricultura
familiar. No caso do Semiárido, isso significa a formação de novos circuitos de comercialização, que
estimulem a concorrência e que abram aos agricultores o acesso a um conjunto de serviços que lhes
permita escapar da dependência em que se encontram em relação a comerciantes tradicionais. Entretanto, esse intento depende das estruturas sociais dos mercados que a produção de biodiesel integra e a partir dos quais se viabiliza, sendo que as
ações promovidas pelos principais agentes do
PNPB no Semiárido não têm se mostrado suficientes para transformar tais estruturas, ainda que
sejam capazes de alterar o patamar de renda dos
produtores de mamona por efeito das novas dinâmicas de concorrência que elas inauguram.4
Nessa perspectiva, este trabalho funda-se em
uma abordagem teórica pouco usual quando se trata
de analisar os mercados. À luz da sociologia econômica, os mercados são muito mais do que o resultado do confronto entre oferta e demanda,
protagonizado por agentes livres, e do qual os preços são a expressão última: mercados devem ser
entendidos como estruturas sociais nas quais os
agentes, portadores de interesses, adotam estratégias para garantir melhores posições na estrutura e
estabilizar suas relações com os demais agentes.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ...
mamona, juntamente com Índia e China, países
que concentram, atualmente, nada menos do que
93% da produção mundial. Entre 1978 e 1982, o
Brasil ocupou a primeira posição em produção de
mamona. Já em 2005, o país contribuía com apenas 13% da produção mundial. Trajetórias semelhantes entre os países líderes podem ser observadas no que diz respeito à produção de óleo de
mamona (Santos e Kouri, 2006a).
Dentre as empresas que produzem o óleo a
partir da mamona, há indústrias que processam a
mamona somente para comercialização do óleo, há
indústrias que processam mamona para produção
e comercialização de derivados do óleo, e, ainda,
aquelas que processam a mamona, produzem os
derivados e já os empregam na produção de outros produtos. Segundo Savy Filho (2005, apud
Santos e Kouri, 2006b), havia no Brasil, no meio
da década..??????, uma capacidade instalada para
processamento de 440 mil toneladas/ano de
mamona em baga, o que geraria, aproximadamen-
te, 198 mil toneladas de óleo. Considerando a média
das safras desta década em 110 mil toneladas, segundo os dados da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab (2009), o déficit seria de, aproximadamente, 330 mil toneladas.
Parte importante da indústria ricinoquímica
está em São Paulo, mas na produção nacional da
matéria-prima – a mamona em baga –, a principal
referência é a região nordeste do país, que concentra mais de 90% da produção brasileira. O Estado
da Bahia, sozinho, é responsável por 83% da produção nacional, em média, desde o ano 2000, e é onde
está localizada a principal indústria processadora de
mamona instalada no país. (Conab, 2009).
Algumas das características mais marcantes
desta produção são: (a) a forte oscilação no total de
área plantada de uma safra a outra, com uma forte
retração a partir de meados da década de oitenta, e
uma tímida recuperação na década de 2000; (b) a
heterogeneidade em termos de produtividade nos
diferentes municípios e regiões – no Centro-Sul a
350
Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto,
Ricardo Abramovay
Os fatores mais comumente apontados como
principais influências no preço no mercado interno são o clima e seus impactos na variação da safra; o câmbio, que pode estimular ou frear a opção
pela importação do óleo por parte das indústrias;
e a variação dos preços internacionais – tudo isso
concorre para a definição do preço que a indústria
demandante se dispõe a pagar pela mamona em
cada período. O outro fator que concorre para a
definição desse preço é a estrutura de organização
da oferta, como se verá adiante.
O MERCADO DA MAMONA NA BAHIA E NO
CEARÁ
O mercado da mamona é estruturado em
uma oferta bastante pulverizada, com a produção
apoiada, predominantemente, em agricultores pobres, com sistemas de produção bastante tradicionais. Esta pulverização e os baixos índices de produtividade favorecem a formação de uma cadeia
na qual as estruturas intermediárias, que permitem concentrar a produção dispersa e acessar a
igualmente concentrada indústria processadora,
tornam-se fundamentais. Ademais, por suas características físicas, a baga da mamona pode ser
estocada, e os atores em condições de fazê-lo – em
geral os maiores produtores e os comerciantes –
utilizam este recurso para auferir maiores lucros.
Assim, a oferta de mamona no mercado não depende apenas da colheita. Esta estrutura vem sendo ligeiramente alterada
com a entrada das empresas de biodiesel e os incentivos previstos no
PNPB – e, no caso do Ceará, também nos programas estaduais – vêm alterando as bases de funcionamento deste mercado.
No Semiárido da
Bahia e do Ceará, o cultivo de mamona ocorre há
pelo menos três gerações. Mesmo com a retração
ocorrida nos últimos vinte anos, o cultivo foi mantido, ainda que de forma secundária em relação a
outras atividades. Em ambos os estados, houve
uma recuperação na presente década, ligeiramente
mais acentuada no Ceará, principalmente a partir
de 2003.
351
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
produtividade média é de 1.380 kg/hectare, enquanto no Norte-Nordeste a média é de 670 kg/
hectare (Conab, 2009), ficando em torno de 100
kg/hectare em alguns municípios do Ceará.
Com base nesses dados, uma pergunta que
não pode deixar de ser feita é: por que a demanda
não atendida, o dinamismo do mercado internacional e os usos nobres do óleo da mamona não se
convertem em igual dinamização da produção de
matéria-prima?
Quando se trata da precariedade e da instabilidade da produção nordestina de mamona, um
dos principais argumentos é a instabilidade de
preços do produto. As cotações internacionais na
bolsa de Rotterdam mostraram oscilações da ordem de até 50% entre a segunda metade da década
de 80 e o final da década de 90. Desde 2001, há
uma tendência de alta, acentuada nos últimos anos:
em 2008, o preço mais que dobrou em relação ao
preço de 2001. As cotações de Irecê, principal polo
do mercado de mamona na Bahia e no Brasil, praça onde é definido o valor no mercado interno,
oscilaram ainda mais, com os preços variando em
até 200% nesta década.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ...
A produção de mamona é feita, predominantemente, por pequenos produtores, com mãode-obra quase exclusivamente familiar, em áreas
que variam de dois a quinze hectares e sem orientação técnica.5 As técnicas empregadas pela esmagadora maioria dos pequenos agricultores são, basicamente, as mesmas aprendidas com as gerações
anteriores. É também tradicional o consórcio da
mamona com outros produtos, como estratégia de
intensificação do uso das terras na época do verão, quando ocorrem as chuvas.6 Depois da colheita dos cultivos mais rápidos, a mamona permanece no solo, em produção contínua, durante
dois anos, com colheitas de maior volume entre
setembro e novembro. Assim, por ser uma planta
mais resistente ao stress hídrico dos meses de estiagem, a mamona representa, para grande maioria
dos pequenos produtores, a única fonte de renda
oriunda da agricultura ao longo do ano.
Nos municípios visitados no Ceará, grande
parte das áreas em que se cultiva mamona é arrendada de grandes proprietários pecuaristas. Dada a
toxicidade da mamona, se consumida pelo gado,
estes cultivos são conflitantes, o que restringe a
expansão do cultivo da mamona, visto que a pecuária bovina tem prioridade – e, em áreas arrendadas aos agricultores, os pés de mamona permanecem no solo apenas no primeiro ano – enquanto se forma o capim para o gado – perdendo-se,
assim, os ganhos que ocorreriam no segundo ano.
Assim, quatro são os bloqueios principais
a uma expansão dos cultivos de mamona e a uma
maior produtividade nos segmentos mais pobres
da agricultura familiar na região: disponibilidade
de trabalho para as lavouras (particularmente na
Bahia); disponibilidade de terra (particularmente
no Ceará); técnicas de cultivo inadequadas e ausência ou ineficiência de assistência técnica para
contornar estas inadequações, além de um mercado volátil, instável e que pratica preços baixos na
compra da mamona.
5
Na região de Morro do Chapéu e Irecê, há uma minoria de
médios produtores, com áreas de mais de 150 hectares,
que alcançam produtividades superiores à média da região.
6
Predominam os consórcios com feijão e milho, sendo
frequente, no Ceará, o capim para formação de pasto
para pecuária bovina.
Dentre estes, um dos mais difíceis de solucionar é a escassez de mão-de-obra. A grande maioria dos agricultores afirma contar, apenas, com o
trabalho da esposa ou do marido, e não mais com
o trabalho dos filhos, que preferem buscar oportunidades nas cidades da região ou em centros mais
distantes.7 A ajuda recíproca entre vizinhos é uma
prática comum, mas limitada, pois as principais
atividades na lavoura, como a colheita, por exemplo, coincidem no tempo. A contratação temporária é ainda mais rara, tanto pela reduzida oferta,
quanto pela falta de recursos financeiros para contratar. Tudo isso faz da escassez de força de trabalho um dos principais limites à expansão da cultura da mamona.
Enquanto na Bahia raras são as menções à
falta de área para plantio, no Ceará, esta foi uma
constante. A mamona está, em geral, em posição
secundária na priorização das atividades produtivas locais (mesmo nos estabelecimentos familiares), e em conflito com a principal atividade, que é
a bovinocultura. Grande parte dos agricultores
cultiva áreas arrendadas,8 e vê-se, regularmente,
na dependência de que o proprietário concorde
com o cultivo de mamona. Esta preferência pelo
gado reflete-se, também, na distribuição geográfica:
as áreas de “sertão”, como são chamadas as áreas
planas, são mais ocupadas pela pecuária, enquanto
as áreas de “serra” são as mais utilizadas para cultivo de mamona consorciada com feijão e milho.
Mesmo aí, os cultivos vêm sofrendo a pressão da
expansão dos pastos. Por todos estes motivos, no
Ceará, a expectativa em relação ao aumento de áreas
plantadas de mamona é muito mais contida.
A perda de nutrientes e a compactação dos
solos (principalmente em função do uso de máquinas na Bahia, e em função do pisoteio pelo gado
7
Segundo alguns relatos, os mais jovens conseguem ganhar até doze mil reais numa temporada no corte da
cana em São Paulo, enquanto a renda da família com a
mamona varia, comumente, entre duzentos e três mil
reais anuais.
8
Em Monsenhor Tabosa, a estimativa feita pelas lideranças e técnicos é de que 60% dos agricultores familiares
possuem uma propriedade, enquanto os outros 40%
são moradores em grandes propriedades, e trabalham
em áreas arrendadas. Mesmo os agricultores proprietários frequentemente arrendam outras áreas para completar a renda familiar.
352
Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto,
Ricardo Abramovay
agricultores têm, em geral, uma compreensão muito parcial e restrita do mercado como um todo: conhecem o sistema de comercialização regional, mas
muitos não sabem qual o destino do produto fora
da região, e a larga maioria desconhece as aplicações do óleo. Os elos do comércio são feitos pelos
compradores (ou atravessadores) locais e regionais,
que se organizam em diferentes níveis. Em geral,
existem, nas comunidades rurais, um ou dois comerciantes locais, também chamados “bodegueiros”:
são proprietários de pequenos estabelecimentos comerciais aos quais os agricultores recorrem para
comprar a crédito produtos necessários ao consumo cotidiano, ou mesmo pequenos empréstimos
em dinheiro a serem pagos posteriormente, com a
produção da mamona. Como a mamona é a única
lavoura que produz ao longo de todo o ano, é ela,
em geral, a moeda de troca que permite ao produtor “fazer a feira”.9 A estes atravessadores locais,
os produtores vendem pequenas quantidades, comprometendo, aos poucos, sua produção antes da
colheita, prática conhecida como “venda na folha”
ou “venda na palha”.
Esta relação se dá pelo contato direto com o
produtor, ou é intermediada ou monitorada por
As estruturas tradicionais do mercado da
mamona
A Figura 1 traz uma
representação da estrutura tradicional do mercado de mamona. Nela se vê,
na base da cadeia produtiva, um grande número
de agricultores, pequenos e médios, cujos sistemas de produção foram descritos acima. Esses
9
Em geral, as outras produções, como o feijão e o milho,
quando têm destino comercial, passam, também, por
estas vias – com a diferença de que sua colheita é concentrada em dois ou três meses. Em alguns casos, o fato
de que a colheita seja concentrada permite ao agricultor
reunir um volume maior e comercializá-la através de
outros canais, na tentativa de receber melhores preços.
353
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
no Ceará), além da baixa disponibilidade hídrica,
somam-se aos problemas agronômicos descritos em
estudos anteriores (Machado et al, 2006; Santos e
Queiroga, 2008; Negret, 2008; Conab, 2006), como
o pouco uso de técnicas agrícolas básicas como
análise de solo e adubação, pouca disponibilidade de sementes de qualidade e baixa produtividade e custo de produção alto.
Um dos fatores que explica a precariedade
técnica desta produção é a ausência de assistência
especializada. Na avaliação dos técnicos contatados
no estado da Bahia, a orientação técnica adequada
poderia elevar a produtividade, sem aumentar os
custos, e não demandar mais recursos do que dispõe hoje um produtor familiar médio.
Outro fator importante é a descapitalização. A
maioria dos agricultores não procura crédito bancário para custeio das lavouras – é um recurso tradicionalmente distante da realidade dos agricultores
menos favorecidos e, além disso, o histórico de
inadimplência e as regras do financiamento
inviabilizam contratos para a cultura. Apesar disso,
não houve redução de lavouras por falta de financiamento: o custeio é feito com recursos próprios ou,
mais comumente, com o adiantamento realizado pelos compradores locais –
aqui reside um dos fortes
componentes da estrutura
de dependência em que estão enredados os agricultores familiares e que lhes impede de obter maiores ganhos no mercado.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ...
informantes, que levam e trazem informações sobre os preços oferecidos e sobre o andamento da
lavoura, informações que passam, também, pelas
associações comunitárias. O bodegueiro, além dos
adiantamentos, fornece, também, crédito para custeio da lavoura e realiza favores pessoais às famílias de agricultores, mantendo, assim, cativos os
seus fornecedores. Trata-se, em suma, de relações
de dominação profundamente pessoalizadas, sob
o revestimento de relações de solidariedade e fidelidade, alicerçadas no constante endividamento
dos agricultores e na ausência de canais alternativos para acessar o mercado ou para encontrar outras oportunidades de renda.
No nível seguinte da cadeia de comercialização, encontra-se o atravessador ou comerciante com
uma base na sede municipal, para os quais os
atravessadores locais repassam as mercadorias. Em
geral, dois ou três atravessadores na cidade dividem a clientela, sem grande mobilidade: há uma
forte fidelização dos mercados. Os atravessadores
de cada município, por sua vez, vendem a mamona
para os grandes comerciantes ou atravessadores de
Irecê. Atuando em escala regional, existem estes grandes atravessadores, que compram de atravessadores
médios e pequenos. Neste nível, a comercialização é
centralizada em Irecê, e concentrada em três grandes
compradores, que fornecem para indústrias na Bahia
(Bom Brasil) e em São Paulo.
O elo seguinte da cadeia são as indústrias
processadoras, que compram a mamona em baga e
extraem o óleo, sendo que uma delas, a Bom Brasil,
subsidiária brasileira do grupo internacional Nidera,
produz uma série de derivados a partir do óleo. O
segmento de extração do óleo vem diminuindo nos
anos recentes e, segundo informações de empresários do setor, apenas seis ou sete empresas dominam a quase totalidade do mercado de óleo. No
último elo do mercado, estão as indústrias que usam
o óleo em sua produção. São indústrias do setor
químico, farmacêutico e de cosméticos, e, mais recentemente, de biocombustíveis. Como fica evidente
neste desenho, há dois funis na formação dos preços: a indústria de transformação, com destaque
para a Bom Brasil, e os atravessadores, que controlam a comercialização da mamona, particularmente aqueles localizados na praça de Irecê.
Na estrutura do mercado, tal como descrita
acima, vale enfatizar alguns pontos. Em primeiro
lugar, a presença de muitos níveis de atravessadores
entre o produtor da mamona em baga e as indústrias processadoras, que fazem com que os preços
pagos ao produtor sejam diminuídos para permitir lucros dos vários comerciantes envolvidos. Em
segundo lugar, o fato de não haver concorrência
efetiva, nem entre os poucos bodegueiros, nem entre
os donos dos depósitos nas pequenas cidades,
nem entre os atravessadores regionais. Em terceiro
lugar, destaca-se o fato de que os adiantamentos
em dinheiro ou em espécie são o principal meio
354
de fidelização destas relações. Em quarto lugar, por
fim, há o fato de que a formação de preços dá-se,
fundamentalmente, na relação entre os poucos
atravessadores regionais e as indústrias. Tudo isso
com base em uma produção pulverizada e em bases bastante precárias, com fortes restrições à expansão da área ou à melhoria de produtividade.
Estes elementos respondem à pergunta sobre o
contraste entre o dinamismo das indústrias finais
dos derivados, e a situação de fragilidade dos produtores de mamona.
A entrada de novos atores: o mercado da
mamona depois do PNPB
A entrada de novos atores econômicos ligados ao mercado de biodiesel começou em 2003,
quando a Brasil Ecodiesel iniciou os contatos com
os produtores. Naquele ano, era instituído o PNPB
e seus principais mecanismos de funcionamento:
o percentual progressivo e garantido de mistura
do biodiesel ao diesel de petróleo; o Selo Combustível Social (SCS) e seus incentivos como principal mecanismo de favorecimento à compra de matéria-prima de agricultores familiares; e os leilões
de compra como forma de organizar o suprimento
de biodiesel.
A integração de agricultores nesta cadeia,
conforme o previsto nas normas, prosseguiria com
a venda da matéria-prima
pelos agricultores (a preços
previamente acordados),
vinculada ao fornecimento, pelas empresas, de serviços de assistência técnica. O desenrolar do processo, entretanto, não se deu
como o esperado. De forma geral, as aquisições de
mamona para biodiesel ficaram muito abaixo do esperado, como é conhecido.
Os novos atores
econômicos atuando no
mercado desde a instituição do PNPB são as empresas de biodiesel – com destaque, num primeiro momento, para a Brasil Ecodiesel (BED) e, mais
recentemente, para a Petrobras Biocombustíveis
(PBio) – e seus técnicos diretamente contratados, e
as cooperativas, que fazem a intermediação das
relações entre os agricultores e as empresas de
biodiesel, realizando aquisições e prestando assistência técnica.
O desenho a seguir procura esquematizar
as mudanças que estes agentes produziram nas
estruturas de funcionamento do mercado da
mamona. Parte dos agricultores, que antes
comercializavam seu produto através dos mecanismos tradicionais, passou a fornecer para as cooperativas ou para as empresas diretamente. A assistência técnica, que é a contrapartida prevista nos
contratos de biodiesel, passou a ser realizada por
cooperativas conveniadas com as empresas ou por
técnicos diretamente contratados pelas empresas.
A aquisição de mamona feita pelas empresas de biodiesel originou uma concorrência inédita, fazendo o preço subir a partir de 2006. Em 2007,
a BED fez o cadastramento de agricultores, mas de
forma apressada e sem critérios bem estabelecidos,
o que se revelou pouco efetivo em termos de
fidelização e de produção.
Àquele momento, não havia sementes suficientes no mercado, e o serviço de assistência técnica foi pouco eficiente, pois empregou técnicos
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ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ...
sem qualificação, também contratados às pressas.
Naquele ano, a empresa não conseguiu comprar
mamona, porque a concorrência local, em reação,
ofereceu preço melhor e foi mais ágil no momento
das transações. Como resultado, nenhum dos agricultores cadastrados manteve completamente o
contrato com a BED.
No início de 2009, na Bahia, a PBio se fazia
mais presente do que a Brasil Ecodiesel. Nas áreas
visitadas no Ceará, ao contrário, a presença desta
ainda se mostrava mais consolidada e estável, mas
com grande expectativa com a recente entrada da
Petrobras. Em 2010, a atuação destas empresas se
valia, por um lado, de um aprendizado acumulado nos três anos anteriores e, por outro, deparavase com resistências e com o descrédito herdado
dos equívocos ocorridos no período anterior, quando a BED era sinônimo de biodiesel na região.
Nas áreas visitadas, foi possível compreender como, concretamente, operava a concorrência
entre os compradores do mercado tradicional e os
agentes do mercado de biodiesel: além dos contratos e da assistência técnica – que seriam os principais instrumentos para fidelizar o agricultor – no
momento da venda, a cooperativa paga o preço de
mercado sem descontar as impurezas ou a sacaria
utilizada, descontos estes praticados nos canais
tradicionais e, muitas vezes, traz a máquina para
debulha do grão até a propriedade, poupando trabalho ao agricultor.
Ainda assim, muitos agricultores, mesmo
cadastrados pelas empresas de biodiesel, mantiveram as vendas para o atravessador, quando este
ofereceu preço mais alto. Um dos trunfos destes
comerciantes é a reciprocidade que se cria com as
transações recorrentes ano após ano, com a prática
dos pequenos favores e com os adiantamentos em
dinheiro aos agricultores. Mas pesa, também, a
agilidade na transação, pois dispõem das informações sobre a produção – valendo-se de uma estrutura ramificada e enraizada no território – e o fato
de pagarem em dinheiro vivo no momento do recolhimento, ao passo que os pagamentos feitos
pelas empresas de biodiesel tinham um prazo para
se efetivar. É importante ressaltar, ainda, que sem-
pre houve alguma ambiguidade nas relações entre
o mercado tradicional (organizado pelos
atravessadores) e o mercado de biodiesel, comportando uma dose de concorrência e outra de
complementaridade. Desde os primeiros anos, ocorreram compras das empresas de biodiesel junto aos
comerciantes locais, em função das dificuldades de
adquirir quantidades suficientes diretamente dos
produtores. Nos anos mais recentes, diante do fomento às cooperativas da agricultura familiar por
parte da PBio, os comerciantes locais, para manterem sua fatia de comercialização para o mercado de
biodiesel, também formalizaram cooperativas.10
Desta forma, as duas estruturas operam
concomitantemente no mercado da mamona. O
mercado tradicional se mostra ainda vigoroso o
suficiente para manter em funcionamento as velhas estruturas, que envolvem, principalmente, os
agricultores mais precarizados que, nessa condição, não conseguem abrir mão dos adiantamentos
e favores. O segmento organizado pelas empresas
de biodiesel, com a Petrobras hoje à frente, consegue, por sua vez, envolver, sobretudo, os agricultores já organizados em sindicatos e cooperativas.
Dados obtidos em campo, no primeiro semestre de 2010, mostram que a entrada da PBio no
mercado vem corroborando as expectativas iniciais
de ampliar as bases dos contratos de biodiesel no
mercado da mamona. As cooperativas vêm se capitalizando progressivamente e começam a esboçar
alternativas para fazer frente aos mecanismos de
fidelização utilizados pelos comerciantes tradicionais: maior agilidade na compra e adiantamento em
dinheiro para necessidades imediatas, sob a forma
de compras antecipadas. Gradativamente, o lastro
oferecido pela PBio também confere maior
confiabilidade em relação às cooperativas a ela vinculadas. O número de agricultores mobilizados por
essas cooperativas também aumenta significativamente, embora em números absolutos ainda se trate
de um universo relativamente pequeno. Finalmente, o número e a qualidade da assistência técnica
10
Vide, por exemplo, o site http://www.copemai.com.br/,
da cooperativa fundada pelo conhecido Vicente da
Mamona.
356
Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto,
Ricardo Abramovay
do, com grandes dificuldades no campo da assistência técnica e da capitalização dos agricultores.
Vê-se que as limitações quantitativas dos resultados do PNPB no Nordeste, em termos dos contratos de biodiesel e de produção de mamona, estão
diretamente relacionadas às estruturas que caracterizam este mercado, e que os elementos que conformam esta estrutura estão concatenados entre si.
CONCLUSÕES
O objetivo principal da análise era saber se,
com a experiência recente do PNPB, estavam sendo modificadas as bases de funcionamento do tradicional mercado da mamona. O estudo realizado
no Semiárido permitiu lançar um olhar
aprofundado sobre os avanços e as permanências
e, sobretudo, entender os fatores que barram as
mudanças mais amplas.
Pode-se dizer que as mudanças institucionais
promovidas pelo PNPB na produção de oleaginosas no Semiárido geraram ganhos aos agricultores
que participam do mercado de biodiesel, particularmente em função da concorrência (inédita) pela
mamona, que fez elevar os patamares de preço desta
matéria-prima.
Empregando as categorias a partir das quais
se procurou descrever este mercado, é possível
afirmar que as regras de troca presentes no mercado foram alteradas de duas maneiras: a concorrência exercida pelas empresas de biodiesel pressionou os preços, produzindo uma mudança que foi
sentida de forma generalizada por produtores e
comerciantes tradicionais. Os produtores auferiram
ganhos maiores; já sobre os comerciantes tradicionais, não é possível saber se tiveram sua margem
de lucro deprimida ou se isto foi, simplesmente,
repassado para a indústria de transformação. De
toda forma, as condições sob as quais a indústria
ricinoquímica continua viabilizando suas aquisições – passando pelas formas de manter as redes
de fidelização e captação – foram alteradas na medida em que foi necessário incorporar a pressão
da concorrência como novo fator na formulação
357
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
também passam por um incremento, importante
em termos evolutivos, embora tímido em termos
absolutos.
Por outro lado, vale ressaltar uma informação
recente de que o principal atravessador de Irecê criou
uma cooperativa para continuar comercializando com
as empresas de biodiesel, o que revela a versatilidade das estratégias dos atores tradicionais para manterem sua força no mercado.
Mesmo não tendo atingido as metas em relação à integração de agricultores familiares no
Nordeste, nem tendo atingido as expectativas relativas à composição do rol de matérias- primas utilizadas no biodiesel, pode-se dizer que o PNPB
desencadeou algumas mudanças importantes no
mercado. Para os agricultores, destacam-se alguns
elementos inéditos: (a) a criação de uma nova opção de comercialização, diversificando minimamente aquilo que, antes, se restringia aos comerciantes
locais; (b) o agricultor passou a receber assistência
técnica, ainda que muito precária e incerta; (c) e os
contratos monitorados pelas organizações dos agricultores foram introduzidos, o que pode permitir
maior estabilidade e proteção contra variações de
preços. Junto a isso, a entrada das empresas de
biodiesel foi acompanhada de uma razoável recuperação nos preços pagos aos produtores, um fenômeno que não pode ser atribuído, com segurança, somente à maior concorrência, mas que foi,
certamente, influenciado por isso.
Não se trata, a rigor, de um novo mercado,
posto que existe uma convivência entre duas estruturas paralelas – em 2010, a estrutura tradicional era ainda muito maior do que a estrutura montada para a produção do biodiesel. Mas é inegável
que novas bases foram lançadas. Bases cuja
longevidade e alcance esbarram em alguns constrangimentos: (a) a precariedade dos agricultores e
sua dependência dos canais tradicionais de
comercialização, restringindo uma mudança ainda maior nas regras de troca; (b) a baixa produtividade e o alto custo da matéria-prima para as indústrias de biodiesel; (c) e a fragilidade das estruturas de governança criadas para melhorar essas
condições de competitividade e viabilizar o merca-
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ...
de suas estratégias de aquisição e preços.
O outro aspecto novo, relativo às regras de
troca no mercado da mamona, diz respeito às formas pelas quais se define quem comercializa com
quem. Os mecanismos de fidelização do fornecedor no mercado convencional repousam, basicamente, no constante endividamento econômico e
moral dos agricultores em relação aos comerciantes. O mercado de biodiesel introduz um novo
mecanismo de fidelização, que consiste no contrato, com previsão dos serviços e insumos que precedem a colheita e com regras para definição do
preço a ser pago na entrega do produto. Nesse caso,
trata-se, também, de uma mudança parcial, que
não atinge todos os produtores, mas que coloca
no horizonte dos atores uma nova possibilidade
ou uma nova referência em termos de organização
produtiva e comercial. Assim, é possível afirmar
que as regras de troca deixaram de ser ditadas, exclusivamente, pelo grupo de atravessadores locais
e regionais, e passaram a incorporar novas demandas e estratégias alavancadas a partir do PNPB.
Em relação às formas de governança presentes no mercado da mamona no Semiárido, há
uma ambivalência nos seguintes termos: inaugura-se uma forma de governança radicalmente nova
no contexto analisado, se comparada às práticas
tradicionais. O mercado da mamona, que se organizava com base em um único canal de
comercialização do produto – afunilado, na oferta,
pela concentração nos poucos grandes cerealistas
regionais, e, na demanda, pelas poucas empresas
do segmento da indústria ricinoquímica – passa a
experimentar, com a formação do mercado de
biodiesel, impulsionado pelo PNPB, uma mudança significativa, ainda que quantitativamente restrita. Além da diversificação das opções de venda
da matéria-prima, a entrada em cena de empresas
como a BED e a PBio trouxe novas bases contratuais
para o mercado, com a possibilidade – inédita –
de acessar serviços como a assistência técnica, com
a garantia de preço e com o monitoramento dos
contratos por organizações de representação. Por
isso, a mudança não se restringe a uma simples
transferência da mesma relação de dependência
para com outros agentes econômicos.
Por outro lado, as formas tradicionais de
governança permanecem dominantes, o que é claramente indicado pelo fato de a indústria
ricinoquímica permanecer a principal compradora de mamona. Mesmo que se vislumbre o potencial de multiplicação dos contratos para biodiesel,
as formas de governança inauguradas no novo
mercado não são, ainda, suficientes para transpor
amarras tradicionais que envolvem: a necessidade
de antecipação da venda no mercado local (“venda na folha”), como forma de obter adiantamentos
em dinheiro; os fortes laços sociais nos quais estão imersas estas transações; e a agilidade das formas tradicionais de financiamento, que reforçam a
fidelização e as relações de dependência.
Além da relação de compra e venda, e para
além da esfera local, os esforços, no sentido de
prover a agricultura familiar com serviços de assistência técnica, podem ser vistos como ensaios
de novas formas de governança, que envolvem
instituições públicas de apoio. Os resultados, entretanto, são ainda muito tímidos. O caráter parcial da mudança experimentada nas formas de
governança não diz respeito, portanto, somente ao
número de agricultores afetados, mas, também, ao
fato de que, até aqui, atingem, apenas, uma parte
das estruturas sociais do mercado.
No que tange aos direitos de propriedade,
há uma mudança qualitativamente significativa: a
partir do PNPB, a condição de agricultor familiar
passa a ser definidora de direitos de propriedade,
já que se determinam condições de compra que
possibilitam que este segmento capture ganhos que
antes eram apropriados pelos atravessadores locais. Por outro lado, em função do alcance restrito
destes novos mecanismos de compra a uma pequena parcela da agricultura familiar, esta mudança é mais um potencial cuja efetividade dependerá
da consecução do conjunto de ações em curso.
Isso significa que o contraste entre o caráter
desconcentrado da produção e a apropriação altamente concentrada de lucros nas regiões produtoras permanece como estrutura geral.
No Ceará, a propriedade concentrada da ter-
358
ra, que marginaliza grande parte dos agricultores,
e o conflito entre o uso da terra para pecuária ou
para cultivo da mamona configuram, também, bloqueios não só à expansão da cultura, mas à possibilidade de auferir ganhos com o produto.
Finalmente, em relação às concepções de controle – que, conforme a abordagem político-cultural
dos mercados, diz respeito à maneira como os atores usam os recursos de que dispõem e como organizam, internamente, a produção e as relações de
trabalho – não foram identificadas alterações importantes porque, de modo geral, as estratégias de condução das unidades produtivas permanecem
estruturadas segundo os mesmos moldes de antes
do PNPB. Em função do caráter recente e pontual
dos serviços técnicos de apoio à produção, pouca
mudança houve até aqui em relação ao emprego de
tecnologias e à forma como são manejados os recursos naturais envolvidos na produção. Da mesma
forma, os ganhos propiciados pelas mudanças recentes também não afetaram, ainda, as expectativas
de alocação de trabalho nas famílias de agricultores.
Há um potencial de expansão do número
de agricultores com contratos de biodiesel, assim
como há um grande potencial de aumento de produtividade. Os investimentos que vêm sendo feitos pela PBio são um indicativo de que é razoável
esperar um incremento futuro do número de agricultores contratados. Contudo, as estratégias de
condução da maioria das unidades produtivas ainda permanecem estruturadas segundo os moldes
anteriores ao PNPB; a produção da mamona vem
aumentando, mas, ainda, a patamares bastante
baixos,11 pois os entraves estruturais à produção
não foram alterados; e a maior parte dos produtores permanece enredada nos mecanismos de
fidelização tradicionais.
Tais permanências podem ser compreendidas, em primeiro lugar, como resultantes dos constrangimentos que vão além do que as empresas de
biodiesel podem governar, pois têm caráter mais
estrutural. Este é o caso, destacadamente, da baixa
11
Conforme dados da CONAB – Série Histórica. Disponível
em http://www.conab.gov.br/conteudos.php?a=1252&t=,
consultada em novembro de 2012.
disponibilidade de técnicos com boa formação para
serem contratados para atuar junto aos agricultores. É o caso da escassez de terras no caso do Ceará. E é o caso da dificuldade em alocar mão de
obra adicional em novas áreas de produção de
mamona, tanto no Ceará como na Bahia. Portanto,
é possível afirmar que ações implementadas até o
momento não têm sido suficientes para alterar as
estruturas produtivas no sentido de conferir
competitividade e autonomia aos produtores de
mamona, de forma que esta produção ganhe um
dinamismo condizente com os mercados finais aos
quais se destina. É improvável que fossem, considerando que elas ocorrem relativamente isoladas
de outras iniciativas voltadas para este público
específico e se voltam, exclusivamente, à cultura
da mamona12 – o queê remete a uma necessidade de
revisão da estratégia mais geral do PNPB que, portanto, está além da governabilidade das empresas.
Ao mesmo tempo, é preciso refletir sobre
outras duas questões que dizem respeito ao caráter da possível expansão dos contratos das empresas de biodiesel junto aos agricultores familiares.
A questão quantitativa da disponibilidade
de mamona no mercado de biodiesel – que ainda é
uma incógnita e depende da superação dos constrangimentos discutidos acima – já foi central para
a viabilidade do PNPB no Nordeste ou, pelo menos, para sustentação do seu conteúdo social. Com
as alterações na Instrução Normativa, que regula o
SCS, a baixa disponibilidade de matéria-prima
deixou de ser um entrave para manutenção do selo,
porque passaram a ser contabilizados os diversos
gastos com apoio à produção.13 Ao mesmo tempo,
o problema da incompatibilidade entre os preços
elevados da mamona e os custos da indústria de
biodiesel parece ter sido solucionado pela
desvinculação entre aquilo que as empresas gas12
A atenção exclusiva à mamona era justificada, nos primeiros anos, em função de ser esta a matéria-prima que
seria convertida em biodiesel. Hoje, havendo a
desvinculação entre os gastos que empresas efetuam
para manutenção do SCS e a conversão da matéria-prima em biodiesel, torna-se mais difícil justificar esta atenção exclusiva a um único cultivo.
13
Ver Instrução Normativa 01 do Ministério do Desenvolvimento Agrário, publicada no D.O.U. em 25 de fevereiro de 2009 (páginas 71-73).
359
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Ricardo Abramovay
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361
ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO ...
SOCIAL STRUCTURES IN THE SEMI-ARID
REGION AND THE BIODIESEL MARKET
STRUCTURES SOCIALES DANS LA RÉGION
SEMI ARIDE ET LE MARCHÉ DU BIODIESEL
Yumi Kawamura Gonçalves
Arilson Favareto
Ricardo Abramovay
Yumi Kawamura Gonçalves
Arilson Favareto
Ricardo Abramovay
This article provides an analysis of the processes favored by the incentives and investments
derived from the National Program for the
Production and Use of Biodiesel (PNPB) in the
semi-arid region of northeastern Brazil. Due to the
importance of castor bean crops in the region and
to PNPB’s wager on castor bean oil as an
opportunity for family farmers to take part in the
biodiesel market, the main goal of this study is to
understand the structure and dynamics of the castor bean market, the changes that PNPB’s incentives have brought about, and the possible obstacles
to the processes consistent with the program’s
social goals. The analysis has shown that current
actions have not been enough to alter the social
structures linked to poverty and to poor farmers’
dependence, and also that business dynamics mean
significant uncertainties regarding the continuity
of current processes.
Le travail que nous présentons ici consiste en
l’analyse des processus favorisés par les
encouragements et les investissements dérivés du
Programme National de Production et d’Utilisation
de Biodiesel (PNPB) dans la région semi-aride du
Nord-est du pays. En raison de l’importance de la
production de ricin dans la région et du pari du
PNPB que cet oléagineux peut permettre l’inclusion
de l’agriculture familiale dans le marché du biodiesel,
l’objectif principal de cette étude est de comprendre
la structure et la dynamique du marché du ricin, les
changements apportés jusqu’à présent en fonction
des encouragements du PNPB et les obstacles possibles
aux processus liés aux objectifs sociaux du
programme. L’analyse a démontré que les actions en
cours n’ont pas suffi à modifier les structures sociales
associées à la pauvreté et à la dépendance des
agriculteurs pauvres et que la dynamique des
entreprises fait preuve d’importantes incertitudes
quant à la continuité des processus en cours.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 347-362, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Biodiesel. Semi-arid. Family farming. MOTS-CLÉS: Biodiesel. Région semi-aride. Agriculture
familiale. Ricin. Sociologie économique.
Castor beans. Economic sociology.
Yumi Kawamura Gonçalves – Doutora em Energia. Pesquisadora na área de Sociologia Econômica na Universidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas, em temas relativos ao planejamento e
desenvolvimento territorial, conflitos ambientais, políticas públicas e incentivos para o desenvolvimento
rural sustentável. Realiza pesquisa e consultoria para órgãos de governo nos temas mencionados. Publicações
recentes: Mobilizing for democracy. 1. ed. London: Zed books, 2010; Redes e estruturas sociais no semi-árido
nordestino: desafios do Programa Nacional de Produção e uso de Biodiesel. In: XXXIII Encontro Anual da
Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2009, Caxambu. XXXIII Encontro Anual da
ANPOCS, 2009.
Arilson Favareto – Doutor em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo. Professor do Centro de
Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde
coordena o Bacharelado em Ciências e Humanidades, e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento, onde coordena o Núcleo Territórios e Conflitos Socioambientais. Tem realizado pesquisas na
área de sociologia econômica e do desenvolvimento. É autor do livro Paradigmas do desenvolvimento rural
em questão e de vários artigos sobre agricultura, políticas públicas e desenvolvimento territorial.
Ricardo Abramovay – Doutor em Ciência Econômica. Professor titular do Departamento de Economia da
FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq e coordenador do Projeto Temático
FAPESP sobre Impactos Socioeconômicos das Mudanças Climáticas no Brasil. Publicações recentes: Muito
além da economia verde. Ed. Planeta Sustentável, São Paulo, 2012; Desigualdades e limites deveriam estar
no centro da Rio + 20. Estudos Avançados, v. 26, p. 21-33, 2012; Urban evolution in Sao Paulo: employment
growth and industrial location. Regional Science Policy and Practice, v. 4, p. 447-477, 2012.
362
João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei
de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos
RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR POR EXDETENTOS CATADORES DE LIXO1
João Bosco Feitosa dos Santos*
Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel**
Tereza Glaucia Rocha Matos***
INTRODUÇÃO
As transformações do trabalho ocorridas nas
últimas décadas interferem intensamente na quantidade e qualidade do emprego formal que, considerado um “suporte privilegiado de inscrição na
estrutura social” (Santos, 2000, p. 49), garante a
“filiação” (Castel, 1998), um “lugar social” no sentido a que Gaulejac (1991) se refere como meta principal do homem contemporâneo. A condição de trabalhador formal não só possibilita inserção social como,
também, reforça a identidade individual e social por
meio do exercício de determinadas atividades e do
* Doutor em Sociologia. Professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará – UECE no curso de Ciências
Sociais e no Mestrado de Políticas Públicas e Sociedade.
Rua Jabaquara, 344 Castelão. Cep: 60.861-200. Fortaleza
– Ceará – Brasil. [email protected]
** Doutora em Psicologia Experimental. Professora titular da Universidade de Fortaleza e adjunta da Universidade Estadual do Ceará. [email protected]
*** Doutora em Psicologia. Professora na graduação e no
programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. [email protected]
1
Este texto é parte de pesquisa “Saúde, Trabalho e Identidade nos Coletores de Lixo da Cidade de Fortaleza” edital
CNPq/FUNCAP, Proc. nº 09100044-0 - Edital nº 002/2009
– Programa de Pesquisa para o SUS: gestão compartilhada em saúde PPSUS.
convívio com relações sociais que constituem o “modo
de ser” dos indivíduos (Sainsaulieu, 1977), qualificando, assim, os pares como iguais, sem desconsiderar as características específicas de cada um. Portanto, a atividade laboral pode conferir valor social,
reproduzindo o imaginário coletivo de valorização
moral de ser trabalhador.
Na impossibilidade de um emprego formal,
há indivíduos que buscam formas alternativas de
sobrevivência pelo trabalho informal, que nem sempre permitem viver com dignidade. Um exemplo
desse tipo de “trabalho atípico” (Vasapollo, 2005)
e informal é a catação daquilo que a sociedade produz em larga escala e rejeita: o lixo, refugo do consumo na era da descartabilidade. Na verdade, a
catação de recicláveis nas ruas das grandes cidades é uma ocupação informal que desafia a dignidade humana. Reféns do desemprego e, por vezes, do discurso ambientalista, esses refugos humanos recorrem à catação como forma de sobrevivência e inclusão.
O surgimento de indústrias de reciclagem,
amparadas na descoberta do lixo como potencial
gerador de lucros e favorecidas pelo crescente dis-
377
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
O objetivo deste trabalho é refletir e compreender como catadores de lixo ex-detentos de
Fortaleza reconstituem a identidade de trabalhador com base no trabalho precarizado e estigmatizado socialmente. Foram realizados pesquisa bibliográfico-documental e estudo de inspiração etnográfica, tendo como ferramentas a observação direta e entrevistas semiestruturadas.
Os resultados apontam para condições precárias de trabalho e conflitos com o “deposeiro”
(dono do depósito) que explora os catadores em todos os âmbitos. Vistos pela população como
vagabundos, perigosos e sujos, a sua condição de trabalho e de vida é permeada por exploração,
conflito e preconceito. As narrativas desses reciclados pela justiça indicam forte identificação
com o refugo que coletam. Na busca da reinserção social e reconstrução de identidades, alguns
admitiram práticas ilícitas ou recaídas, demonstrando a fragilidade do sistema, tentando
reciclá-los e incluí-los precariamente.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho. Identidade. Precarização. Catadores de lixo. Ex-detentos.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ...
curso ambientalista, tornou possível o crescimento
dessa categoria de trabalhador informal, há poucos
anos bastante inexpressiva e, hoje, constituída por
trabalhadores rejeitados pela lógica do capital: o
catador de lixo nas ruas dos centros urbanos.
Neste texto, procura-se privilegiar um fenômeno identificado em um dos depósitos de lixo
estudados no desenvolvimento de duas pesquisas sobre os catadores de lixo das ruas da cidade
de Fortaleza: a grande incidência de ex-presidiários entre os catadores. O depósito estudado situase no bairro Tancredo Neves, um dos mais pobres
de Fortaleza, e o dono do referido depósito é conhecido por abrigar, entre seus catadores, uma
grande quantidade de ex-detentos. Este grupo de
trabalhadores, em busca de sua reinserção no mercado de trabalho, instigou a elaboração desta reflexão sobre trabalho e identidade. Assim, buscouse averiguar: (1) se esses trabalhadores, provenientes do sistema prisional, percebem a atividade
de catar lixo como uma forma de inclusão no mundo
do trabalho; (2) como eles se percebem nesse processo de reinserção; e (3) qual a influência de sua
condição de ex-detento na reconstrução da sua
identidade de trabalhador. No que se refere às condições de trabalho, procurou-se observar a organização e as condições a que estão submetidos os
trabalhadores desse grupo específico. Com isso, buscou-se refletir sobre a repercussão do trabalho com
dejetos sociais e sobre a reinserção de ex-presidiários, estigmatizados tanto pela sociedade como por eles
mesmos, como refugos humanos da sociedade.
coleta em suas atividades pelas ruas da cidade, bem
como na dinâmica de chegada e negociação da venda do material para o depósito. Dois deles foram
acompanhados durante o dia em duas oportunidades diferentes, e outro durante a noite.
As observações no depósito procuraram verificar a organização do trabalho, da pesagem e venda
dos materiais coletados, do recebimento pelo material, bem como as relações interpessoais estabelecidas
entre os catadores e entre eles e o deposeiro. Ressalte-se, ainda, que foram realizados contatos informais
com catadores por ocasião das sessões de observação. As observações e comentários foram anotados e
sistematizados no diário de campo.
No depósito, foram realizadas, também, entrevistas semiestruturadas com outros catadores,
num total de cinco entrevistas. Essas entrevistas
foram gravadas (com o consentimento dos
catadores) e, posteriormente, transcritas para a realização das análises.
Para subsidiar quantitativamente a situação
do catador em Fortaleza, recorreu-se ao Diagnóstico da Situação Socioeconômica e Cultural dos
Catadores de Materiais Recicláveis de Fortaleza,
realizado pela Prefeitura Municipal (2006), que
apresenta um perfil dos trabalhadores. É importante salientar que o relatório da Prefeitura reflete a
realidade dos catadores em geral, por isso seus
resultados foram utilizados para demonstrar a realidade ampliada do trabalho desses indivíduos.
Na análise das observações e entrevistas, foram realizadas leituras flutuantes e aprofundadas das
falas e diários de campo. Os conteúdos foram submetidos à separação temática para reunir as categoriPERCURSO METODOLÓGICO
as de análise, organizadas à luz de Bardin (1977), e
analisadas com suporte em um diálogo aproximado
Esta análise tem como subsídio metodológico com a literatura revisada para a pesquisa.
procedimentos qualitativos de pesquisa em que foram privilegiadas técnicas de observação e entrevista durante um período de dois anos. Primeiramen- A RECICLAGEM COMO ALTERNATIVA AO
te, foram realizadas observações e entrevistas com o DESPERDÍCIO
dono do depósito, aqui chamado de “deposeiro”.
Em seguida, com inspiração nos estudos
A produção de lixo está intimamente assoetnográficos, foram observados e acompanhados três ciada ao forte estímulo ao consumo e à brevidade
catadores que realizavam roteiros diferenciados de dos ciclos cada vez mais efêmeros de produção,
378
consumo e desperdício. Layrargues (2002) chama
a atenção para a obsolescência planejada como
incentivadora do consumo e da produção de resíduos, na medida em que os produtos são concebidos com vida útil que possibilite constante renovação, decorrendo em maior produção e novo consumo e, consequentemente, mais lixo.
A percepção de que o conjunto de atividades humanas é o principal fator de degradação do
meio ambiente suscita as mais diversas mobilizações, bem como posicionamentos diferentes em
relação ao complexo problema. Para as empresas,
a proteção ao meio ambiente não pode desviar o
foco da produção e do auferimento de lucros. A
posição dos grupos empresariais e dos economistas, que lhes dão suporte, é de que é possível chegar a um ponto ideal de desenvolvimento sustentável. Assim, muito embora o meio ambiente seja
colocado em pauta, defendem seu ponto de vista,
preconizando taxas de crescimento financeiro como
indicadores únicos de seus argumentos. Se, há
alguns anos, muitas empresas eram recalcitrantes
na adesão ao desenvolvimento sustentável, hoje,
cada vez mais, percebem os benefícios financeiros
da adesão a métodos produtivos ambientalmente
corretos. Tais benefícios associam a reciclagem à
agregação de valor à imagem da empresa, um bem
intangível, mas com repercussões financeiras reais (Meireles & Santos, 2008, p. 160-162).
Mesmo com o discurso da reciclagem como
alternativa de lucro para empresários, segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2000), o Brasil produzia, diariamente, 228 mil toneladas de resíduos, porém, dessa
quantidade, apenas 148 mil toneladas eram
coletadas. Desse enorme volume, somente 2,8%
do lixo brasileiro chega a ser reciclado, indo 59%
para os lixões.
Com efeito, as tecnologias de reciclagem
avançaram sobremaneira, contribuindo para um
mercado que movimenta grande volume de capital. Trata-se de um processo produtivo que conta
com o apoio dos fornecedores da matéria-prima,
dos consumidores e produtores de resíduos. Reitere-se o fato de que, nesse processo, o interesse
econômico tem prioridade em detrimento do interesse ambiental. É aí que, muitas vezes, conforme
defende Layrargues (2002), a reciclagem escamoteia seu cinismo. Esse autor denuncia que a
propalada política dos 3 Rs (reduzir, reaproveitar
e reciclar) só é hegemonicamente valorizada em seu
terceiro aspecto, a reciclagem, relegando-se os dois
primeiros, a redução e a reutilização, a um plano
inferior. Assim, a valorização da reciclagem pelo
sistema de produção de objetos e obsolescência
planejada é uma forma de absorver os elementos
compatíveis do movimento de proteção ambiental,
sem abandonar – ao contrário, incrementando – a
lógica de produção e consumo exacerbados.
Apesar da existência de um mercado de
reciclagem em pleno desenvolvimento no Brasil,
movimentando altas cifras, grande parte do volume de material processado nas indústrias é colhido (casqueirado ou catado) por sujeitos que veem,
nos primeiros elos da cadeia produtiva de transformação de resíduos, a alternativa, ainda que deveras precária, à falta de trabalho. Segundo dados
do Banco Mundial, estima-se que 1% da população urbana mundial sobreviva da coleta, separação e venda de materiais recicláveis, seja catando
nas ruas, seja fazendo triagem, ou, ainda, do trabalho direto em lixões (Bonner, 2008). O Movimento Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR, 2009) estima que haja cerca
de dois milhões de catadores no País, mas, desse
total, apenas 200 mil fazem parte do Movimento.
PERFIL DO CATADOR DA CIDADE DE FORTALEZA
Segundo pesquisa da Prefeitura de Fortaleza (2006), presume-se a presença de mais de oito
mil catadores de resíduos sólidos recicláveis realizando seus trabalhos em uma cidade que produz
por volta de três mil toneladas de lixo por dia.
Esses trabalhadores organizam-se, essencialmente, sob duas formas: vendendo seu material para
deposeiros, donos de depósitos de sucata e materiais recicláveis, ou sob o modelo de associações
379
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei
de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ...
ou cooperativas, em que os próprios catadores se
organizam autonomamente. Entre as formas
associativas, há movimentos de congregação de
grupos de cooperados, formando redes de associações (inclusive no plano continental e global), que
discutem questões acerca do trabalho desses homens e mulheres, ampliando o poder de luta desses personagens e atuando fortemente no aumento da sua autoestima.
Os resultados do diagnóstico das condições
socioeconômicas dos catadores da Capital cearense
permitem traçar um perfil desses trabalhadores. A
pesquisa, realizada por meio de questionários aplicados a catadores nas ruas de Fortaleza, envolveu
906 pessoas. Desses, 24,2% eram mulheres e
75,6%, homens. A faixa etária dos entrevistados
foi de 8 a mais de 60 anos, apresentando dois picos: 27,9 % dos catadores estavam na faixa dos 18
a 25 anos e 23,6%, de 31 e 40 anos. Chama a atenção o baixo nível de escolaridade entre os catadores:
95% deles concluíram, no máximo, o ensino fundamental, 22,6% são analfabetos e 90,9% não estão estudando, o que é alarmante, notadamente por
se tratar de uma população jovem. Quanto à necessidade de trabalhar, 68% alegaram como motivo o fato de terem parado de estudar. No que diz
respeito à renda familiar, 71,4% dos catadores responderam que a principal renda da casa é de sua
responsabilidade. O nível de empobrecimento dessa população de trabalhadores é ressaltado pelo
expressivo percentual de 11,3% de catadores que
obtêm alimento no lixo, reforçando a conclusão
de que a catação surge como alternativa extrema à
falta de meios de sobrevivência.
O alto índice de catadores que dizem ter se
iniciado nas atividades da catação por falta de
emprego (82,8%) confirma a hipótese de que esses
indivíduos, na maioria das vezes, se inserem nessa atividade como alternativa ao desemprego. Dessa forma, são emblemáticas as falas dos catadores
entrevistados, demonstrando ser a atividade de
catação a única opção pela falta de possibilidade
de escolha de um emprego formal. Para eles, o lixo
é apontado como última opção, o que difere da
ideia dos empresários, que priorizam o lucro, en-
quanto os trabalhadores enxergam a sobrevivência
e a inserção no mundo do trabalho, mesmo que
precariamente: “Vim pra catação porque não tinha
outra coisa. Emprego hoje em dia não tem mais.
Aí a catação foi a saída que eu encontrei pra continuar vivendo, né?”, afirmou um catador do depósito, com 23 anos de idade.
No contexto geral dos catadores de Fortaleza, tem-se que o carrinho com o qual trabalham,
geralmente, pertence ao deposeiro ou sucateiro
(58,6%). Apenas 16% trabalham com carrinho próprio e 2,5% trabalham com carrinhos de cooperativa. Em relação ao comprador do material recolhido, 91% vendem-no para deposeiros ou sucateiros
e apenas 7,9% vendem-no para cooperativas ou
associações. Esses índices permitem inferir a grande
dependência dos catadores para com os sucateiros
ou deposeiros, que lhes emprestam carrinhos e
aplicam preços inferiores na compra do material
aos aplicados nas cooperativas.
A intermediação de atravessadores, como
os deposeiros, advém da necessidade de acúmulo
de material em uma quantidade suficiente para
vender diretamente à indústria ou a atravessadores
maiores. Assim, a relação com os deposeiros fazse imperativa, porquanto o catador, sozinho, não
tem como juntar grande quantidade de material,
além de deter pouco conhecimento dos aspectos
logísticos da cadeia de reciclagem (Medeiros &
Macêdo, 2007, p. 80). Os deposeiros, portanto,
estabelecem os preços e, muitas vezes, submetem
o catador à sua dependência em troca do uso do
carrinho, considerado, entre os catadores, um objeto conferidor de status e de difícil obtenção, dado
o alto custo para o seu padrão de vida. Resta
estabelecida, desta forma, uma relação autoritária,
que limita a possibilidade de venda do catador para
outros depósitos, submetendo-se aos preços e condições impostos pelo deposeiro. Daí é que vários
autores que diagnosticam o referido problema
(Medeiros & Macêdo, 2007; Wilson et al, 2006;
Medina, 2005) propõem o associativismo como
alternativa à dependência ante o deposeiro.
Indagados sobre quais são as perspectivas
pessoais, 6,7% creem que continuarão catando
380
materiais recicláveis; 51,9% responderam que vislumbram deixar a catação e exercer outra atividade
laboral. Esses dados indicam o grau de insatisfação dessas pessoas com o seu trabalho degradante. Os números permitem delinear um perfil da
categoria, marcada pela pobreza, pela baixa escolaridade, pela falta de opções de trabalho. São indivíduos que desenvolvem uma atividade extenuante, em razão das longas distâncias e do elevado
peso transportado por tração própria e sobre os
quais recai forte estigma social.
CONDIÇÕES DE TRABALHO PRECARIZADAS
E PRECARIZANTES
reciclável e, embora não se tenha um número exato, pelo menos 15 são ex-detentos, que chegam lá
por indicações de amigos de prisão. Percebe-se que
as condições de trabalho são extremamente insalubres e perigosas. Diferente de outros depósitos,
a higiene inexiste, não há sequer um banco para
os catadores sentarem-se, e, após rotas de, em média
20 km por dia, eles têm de separar o material, pesar e vender ao deposeiro ao preço estimado por
este que, em razão do empréstimo do carrinho de
coleta, geralmente mantém uma posição autoritária suficiente para não causar reclamações.
Observa-se que esses trabalhadores já conviveram com situações de precariedade no trabalho anteriores à experiência na catação, refletindo
implicações diretas na inserção desses sujeitos no
universo da catação. De acordo com Alves (2007),
a precariedade já é uma condição socioestrutural
característica do trabalho daqueles que vendem a
força de trabalho e que estão alheios ao controle
dos meios de produção. Dessa forma, a precarização
é um fenômeno que aprofunda ou repõe a condição de precariedade do trabalhador, diluindo alguns benefícios trabalhistas conquistados pelos
trabalhadores ao longo do século XX. Em suma, o
autor compreende precarização como processo e
precariedade como um estado, no contexto
sociometabólico do capital.
Na categoria profissional estudada, de
catadores ex-presidiários, é possível notar a existência de um estado de precariedade anterior ao trabalho da catação, caracterizado pela combinação de
fatores – que ganha dinâmica própria em cada caso
– tais como pobreza, baixa escolarização, trabalho
precoce, experiência em trabalhos informais, participação em delitos e contravenções, prisões ou reclusões passageiras e retorno ao trabalho. Essas experiências não conferem estabilidade nem proporcionam melhor ocupação posteriormente.
A observação direta do local de trabalho dos
catadores, incluindo as rotas pela cidade, e as entrevistas semiestruturadas permitiram refletir mais
detidamente sobre as condições de trabalho a que
esses indivíduos estão submetidos, além de verificar que a precarização associada à catação é precedida de condições de vida já precárias. Assim, a
abordagem acerca das histórias de trabalho dos
catadores aponta remissões ao ingresso precoce no
mundo do trabalho informal, ainda durante a infância ou a adolescência, que, muitas vezes, impediu o acesso regular aos estudos. Já no início da
vida, o trabalho surge como necessidade de manutenção básica.
O depósito selecionado para subsidiar nossa reflexão situa-se num bairro de periferia de Fortaleza, em terreno de 28m por 33m com um muro
de 3m. No interior, existe uma espécie de cômodo
de tijolo aparente e coberto, que o deposeiro considera seu escritório. Não há banheiro, e os
catadores contam, apenas, com uma torneira no
terreno, onde lavam os materiais e enchem as garrafas pet para beberem no percurso de coleta. Foi
observada a presença de duas mulheres, que ficam no depósito, auxiliando o deposeiro, mas não
se consideram catadoras. O número de catadores Os “pequenos delitos”
varia conforme o dia, já que não há uma constância na frequência. Segundo o deposeiro, há cerca
Segundo alguns catadores, há um tráfico de
de 25 catadores diariamente entregando material drogas no local, e o próprio deposeiro costuma
381
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João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei
de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos
RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ...
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
pagar com crack alguns materiais coletados. Nenhum catador, porém, assumiu receber pagamento com a droga ou mesmo afirmou o vício. Esse
discurso sempre se voltava para a acusação de
outrem. Mas o próprio deposeiro afirmou que
muitos catadores, após receberem pelo material
coletado, se dirigem a um “ponto” de drogas próximo ao depósito.
O fato é que as condições de insalubridade
e periculosidade extremas, bem como a relação
conflituosa com o patrão/deposeiro, testemunham
um estado de precarização exacerbado nesse ambiente, que contribui, negativamente, para uma
reinserção social e profissional dos trabalhadores.
Nesse depósito, reproduzem-se a conflitualidade
e a violência na organização do trabalho, de modo
que as práticas gerenciais de desmando e
autoritarismo nada contribuem para a constituição de uma identidade positiva de trabalhador. Daí,
possivelmente, a constatação de que é recorrente a
“recaída” - termo utilizado para demonstrar pequenos golpes que os catadores costumam praticar em
transeuntes ou residências, quando têm chance de
fazê-lo. Essas ações provam que essa atividade em
cenário degradante nada pode contribuir para a
formação de um “novo” trabalhador.
A reinserção social pelo trabalho
Por todas as sujeições aos desmandos do
deposeiro, a catação de materiais recicláveis é posta por alguns entrevistados como última opção,
após todas as buscas por trabalho, no contexto da
“nova morfologia do trabalho” (Antunes, 2005).
Neste contexto, se a vida, desde o início, não favorece um estudo de qualidade, se a necessidade de
sobrevivência é um impedimento para dedicação
exclusiva aos estudos, se a precariedade das condições de vida insiste em diminuir a qualificação,
o ânimo e, sobretudo, o acesso à formação e a empregos de qualidade, só resta se concordar com o
catador entrevistado, quando desabafou: “Eu sonhava em ser alguém na vida, né. Em ser um bombeiro, um doutor... mas não tive chance, fazer o
quê né!?” (Catador, 38 anos). Mesmo considerando o sonho parte da existência, sua realização envolve fatores que nem sempre dependem da teimosia das pessoas em realizá-los.
De fato, a catação surge na exiguidade de
alternativas. Assim, o que se pode observar é a
retroalimentação de um ciclo que se inicia em um
estado de precariedade corrente e que, com o trabalho de catação, é acentuado por estar associado
a uma atividade que, por sua vez, aumenta ainda
mais a precariedade. É obvio que não se pode generalizar a situação a todos os catadores, trata-se
de uma tipificação ideal. Destarte, pode-se tipificar
a catação como atividade mediadora entre dois estados de precariedade a ela associados e que tem
características que transpõem o aspecto material.
As falas dos catadores entrevistados corroboram os dados do diagnóstico da Prefeitura de
Fortaleza (2006) acerca da necessidade de sobrevivência como motivação imediata para o início na
atividade de catação, dentro de um contexto de
vida marcado por uma trajetória instável. A precariedade da vida os levou a cometer delitos e, por
conseguinte, a serem expurgados do meio social.
Na cadeia, são tratados como dejetos humanos em
processo de ‘reciclagem’; ao saírem, não lhes são
ofertadas políticas eficientes que possibilitem a
inclusão tanto no mercado quanto na vida social.
Nesta pesquisa e na realizada pela Prefeitura, foram citados fatores motivacionais imediatos de
ingresso na atividade de catação como a inexistência
de patrão, a flexibilidade da jornada de trabalho e a
liberdade decorrente dessas características. Todavia,
estes se afiguram como fatores secundários, não
narrados pelos catadores como um ato motor inicial, senão como uma vantagem posteriormente descoberta. Há, portanto, que ser salientado que, na
condição de ex-presidiários, a busca pela catação é
uma alternativa importante, também, pela possibilidade de ganho de dinheiro sem a burocracia decorrente de um emprego formal, nos quais, muitas
vezes, eles são barrados antes de assinarem a carteira de trabalho por terem sido ex-detentos.
Apesar das vantagens citadas pelos catadores,
eles narram, também, como desvantagem, a
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João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei
de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos
denota uma perenidade da precariedade pretérita
ao trabalho e seu exacerbamento no ofício de
catador. Vê-se, portanto, que o trabalho da catação
não sanou os mesmos problemas que dificultaram
a entrada no mercado de trabalho, e que o ciclo
explicitado termina, de fato, por se retroalimentar
em um ciclo de precariedade: precariedade da vida
pretérita – precarização do trabalho – precariedade
da vida atual.
Ações de preconceito e solidariedade
A tentativa de reinserção social pelo trabalho de catar lixo confere ao trabalhador um estigma (Goffman, 1982) vinculado ao produto de sua
sobrevivência, o que tem sido unânime entre as
queixas dos entrevistados. Produto do descarte,
destinado à inutilidade, associado à sujeira, aos
expurgos da sociedade de consumo, torna-se signo que se integra ao catador como se ele possuísse
características semelhantes. Indubitavelmente,
outros elementos simbólicos, como a tração humana para puxar os pesados carrinhos por léguas
a fio – que faz lembrar tração animal – as roupas
velhas, as mãos sujas, a pele marcada pela pobreza de quem precisou recorrer ao lixo para sobreviver, ajudam a compor um quadro sobre o trabalho
de catação que repercute diretamente na identidade de trabalhadores e de seres humanos. Assim, a
precariedade da situação em que o catador desenvolve o trabalho de catação interfere, inclusive, na
imagem que ele faz de si: “Tem gente que passa
pela gente “bora, burro, puxa a carroça!” Desse jeito, né, dentro dum carrozão importado” (Catador,
32 anos). Essa situação reforça a construção de uma
identidade negativa de trabalhador, pois nem o
outro nem o próprio indivíduo conseguem ver
positividade na tarefa de catar lixo.
As principais representações do preconceito sofrido pelos catadores associam o trabalho de
catação à criminalidade e à sujeira nas ruas da cidade, além da aparência de miséria que suas
vestimentas denotam. São os catadores considerados responsáveis por rasgarem os sacos dispostos
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
propalada liberdade conferida pelo fato de não
haver figura assemelhada a um patrão: “Mas é assim, se trabalhar ganha, se não trabalhar também
não ganha, né. Isso é uma desvantagem porque o
cara trabalhar tendo aquele ganho certo é melhor”
(Catador, 32 anos). A flexibilidade resultante do
caráter autônomo do trabalho é também objeto de
reflexão de Sousa & Mendes (2006, p. 33), para
quem “[...] essa flexibilidade tem um efeito perverso – a autoimposição de longas e extenuantes cargas de trabalho, num esforço dos trabalhadores para
aumentarem a renda auferida”.
É de se notar que as principais dificuldades apontadas estão relacionadas ao tratamento
dado pela sociedade ao trabalhador da catação, à
incerteza no ganho e à dificuldade, cada vez maior, de obtenção do material, segundo os catadores.
Somam-se, ainda, a crescente percepção do potencial lucrativo do lixo, que aumenta com a concorrência, além do cansaço e pelos longos percursos
feitos na atividade: “A desvantagem da catação é
porque tem dia que não tem né. Às vezes o cabra
anda, anda e não acha nada, aí vem embora sem
nada” (Catador, 53 anos).
A expressão do desejo de exercer outra atividade e incluir nas perspectivas o exercício de
atividade diversa da catação – desejo também endereçado aos filhos – soma-se ao caráter de escolha da catação, reforçando a configuração da precariedade a ela associada, na medida em que reitera a ideia de que a satisfação com o trabalho
remanesce desde que não haja outra forma de garantir o sustento: “Eu gostaria de fazer outra coisa,
né. […] A chance que Deus me desse, um emprego mais digno, que todos nós sonha” (Catador, 35
anos). “Eu espero que meus filhos não caiam nessa sorte de na minha idade, ter um trabalho desse.
Eu espero que eles tenham um bom futuro na vida,
um bom emprego. Porque isso aqui, num dá pra
gente ir pra frente não, dá só pra quebrar o galho,
pra frente dá não” (Catadora, 44 anos).
Dentre os fatores que dificultam a realização
dos desejos de exercer outra atividade, é possível
notar que são da mesma natureza daqueles que os
levaram a entrar no universo da catação, o que
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ...
para o serviço de coleta de lixo. Há casos em que a
ação de rasgar sacos é proposital, após sofrerem
algum tipo de repreensão pejorativa. Não obstante
as queixas, na maioria das vezes, falta ao catador a
consciência de que deveriam utilizar uma sistemática de abrir e fechar os sacos para evitar o aumento da sujeira, doenças, proliferação de insetos etc.
Apesar do preconceito, os catadores também contam com a solidariedade durante suas jornadas de trabalho. Assim, há quem receba comida, objetos de uso pessoal ou doméstico. Os gestos de solidariedade, aos quais os catadores, muitas vezes, atribuem ser fruto da sorte ou da benção
divina, são narrados em paralelo aos casos de preconceito, como que atribuindo a eles uma forma
de compensação. “Tem gente muito boa, cara! É
por isso que eu disse que no meio dos ruins a
gente tira os bons... Compensa” (Catador, 35 anos).
Malgrado todo o estigma sentido no cotidiano de trabalho pelos catadores, muitos estudiosos da temática apontam para sua importância como
agentes ambientais e responsáveis pela coleta de
boa parte do lixo urbano (Medina, 2005; Abreu,
2001). Os próprios catadores, sobretudo aqueles
que têm a oportunidade de participar de debates
acerca do seu trabalho, notadamente os vinculados a associações, salientam a relevância da catação
para além da satisfação de suas necessidades pessoais, ressaltando a importância ambiental da atividade e a contribuição para a gestão de resíduos
sólidos urbanos. Nesses casos, na tentativa de preservarem uma identidade, eles próprios se diferenciam: “Nós não somos ‘lixeiros’, somos
catadores”, afirmou um catador de uma associação. Os catadores do depósito do bairro Tancredo
Neves, porém, não se veem como agentes
ambientais e sequer cogitam essa qualificação. Para
eles, a importância dessa atividade se restringe,
apenas, a permitir sobreviverem com o que ganham
diariamente e recomeçarem suas vidas.
O viés atribuído à relevância socioambiental
não condiz com a precariedade do ofício e com a
forma como seu trabalho é socialmente percebido.
Daí que muitos autores (Magera, 2004; Layrargues,
2002; Medeiros & Macêdo, 2007) assumem uma
posição mais crítica, questionando essa forma de
inclusão que confere um status de importância ao
trabalhador do lixo. Assim, Medeiros & Macêdo
(2007) convidam a refletir sobre a qualidade da
inclusão que está sendo proporcionada a esses
sujeitos que entraram no mercado de trabalho por
vias oblíquas, ou seja, por meio de uma atividade
laboral que não lhes assegura direitos sociais básicos. Por isso, as autoras acentuam que “[...] o
catador de materiais recicláveis é incluído ao ter
um trabalho, mas excluído pelo tipo de trabalho
que realiza” (Medeiros & Macêdo, 2007, p. 82).
Berger e Lukmann (2002) propõem que a
identidade pode se referir à inserção do sujeito no
mundo e à sua relação com o outro, sem perder de
vista, porém, o caráter dinâmico e múltiplo que a
identidade apresenta, na medida em que não só o
mundo do trabalho, mas, também, os indivíduos
se transformam mediante as condições materiais e
históricas dadas (Ciampa, 1998; Santos, 2000). Para
Santos (2000), somos um amálgama de sujeitos
que se combinam em várias subjetividades, com
base em múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas. Portanto, ser catador pode ser, apenas, uma
das únicas opções de (re)inserção desses sujeitos
no mundo, na perspectiva de retomar a relação
com o outro com suporte em um trabalho
precarizante e, sobretudo, estigmatizante.
TRABALHO E IDENTIDADE
A despeito da crítica sobre a centralidade
do trabalho, realçada por Lafargue (1999), Schaff
(1995) e Kurtz (1992), entre outros pensadores,
acredita-se no caráter fundante do trabalho na vida
de cada um, como exposto em Marx (1980) e seus
seguidores. Nessa perspectiva, o trabalho continua sendo uma categoria importante na construção da identidade social dos indivíduos, na medida em que, atuando sobre as coisas, atua também
sobre si. De fato, o pensador alemão inaugurou a
discussão científica do trabalho para além de sua
concretude imediata, inscrevendo-o como um meio
de construção de um componente sui generis en-
384
tre os seres sociais: a dignidade. O trabalho não
alimenta só o corpo, de maneira material e individual, mas é uma forma de buscar a inserção do
sujeito como ser social.
Nessa perspectiva, Weber (2005, p. 133) ressalta que “[...] a visão do trabalho como vocação
tornou-se característica do trabalhador moderno”.
O trabalho, portanto, inscreve o sujeito no mundo
e o grava em um lugar social. Pode-se ir além, alegando que o trabalho significa para o trabalhador
uma forma de afirmar sua identidade por meio de
atribuições individuais referentes à realização da
tarefa. Essa característica, ressaltada por Forrester
(1997), atribui ao trabalho um caráter estruturante
no capitalismo contemporâneo. Além disso, não
seria exagero estabelecer a noção de habitus do
catador no sentido a que se refere Bourdieu (2006).
Esses argumentos se aplicam a diferentes
categorias profissionais, mas cabem perfeitamente
na categoria em estudo aqui, os catadores de materiais recicláveis, quando se constata a importância
do trabalho que ultrapassa um meio de sobrevivência, considerando-o, também, como atividade
subscritora de sua cidadania. Nesse sentido, tomando a acepção de cidadania pensada por Arendt
(1995, p. 22), tem-se que, na sociedade contemporânea, o trabalho assegura a inserção do sujeito
que trabalha num estado de albergue jurídico –
ainda que somente potencial – haja vista que sua
referida centralidade no mundo social lhe confere
caráter de pedra angular no construto social que
garante o “direito a ter direitos”. Para a autora, a
importância do Homo Faber no mundo contemporâneo leva à valorização do papel de trabalhador
na constituição do “ser”.
Tem, pois, o trabalho um caráter fundamental para o acesso à cidadania, que se contrapõe ao
efeito marginalizante do ócio e da desocupação –
muitas vezes forçados. Na fala dos catadores, é
possível constatar a frequência dessa alusão: “Eu
prefiro tá aqui, catando lixo, do que tá vagabundando ou roubando. Porque isso aqui é um trabalho!” (Catador, 38 anos). Reforçando a observação
do catador, cumpre salientar que o ócio já é, de há
muito, reprimido, inclusive com prescrições de
severas cominações para os infratores dessa conduta, e, ainda hoje, a vadiagem é considerada um
ilícito no Brasil.
A despeito de todo o realce em torno do
trabalho como um valor social, ele é bastante desafiado pelas dúvidas expressas pela “modernidade
líquida” (Bauman, 2001), notadamente as que põem
em xeque a segurança das ocupações laborais e a
certeza da solidez de uma carreira profissional.
Bauman (2001) reflete sobre o atual momento da
sociedade, marcado por demissões em massa, redução de postos de trabalho e, por consequência,
produção de refugo humano. Para o autor, esse
refugo não é fruto do desemprego na forma como
se compreendia, tendo em vista que, anteriormente, o desempregado cumpria a função de compor
os exércitos industriais de reserva e, agora, a desocupação forçada tende a não oferecer perspectivas.
De tal maneira, ressalta, “[...] os desempregados
da sociedade de produtores (incluindo aqueles
temporariamente ´afastados da linha de produção´)
eram desgraçados e miseráveis, mas seu lugar na
sociedade era seguro e inquestionável”. (Bauman,
2001, p. 22).
A sociedade contemporânea assiste a transformações na natureza do trabalho que refletem a
modernidade líquida que se instalou na sociedade atual. Na verdade, as certezas nas quais a sociedade se apoiava já não podem ser asseguradas
nessa nova era. Se uma boa formação garantia uma
boa ocupação, o atual momento aponta para um
questionamento estrutural do modelo de
empregabilidade engendrado ao longo do século
XX. De fato, independentemente do grau de desenvolvimento dos países, percebe-se que a crise
do trabalho no mundo capitalista se alastra ferozmente, derrubando os postos de trabalho e estabelecendo novas relações entre capital e trabalho,
reforçando a vigência de uma sociedade do desemprego estrutural (Antunes, 2005).
No Brasil dos últimos anos, o emprego formal cresceu de modo surpreendente, e o País aponta
para bons índices de crescimento, registrando 44
milhões de empregos formais em 2010, o maior
nível da história. Só nesse ano, foram gerados 2,860
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
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de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ...
milhões de vagas com carteira assinada, apresentando um crescimento de 7% em relação a 2009;
no entanto, parece que a informalidade cresceu no
mesmo passo. As crises mundiais interferem de
forma contundente no mercado de trabalho, e o
desemprego, a rotatividade e precarização constituem o fantasma para muitos trabalhadores que,
desde os anos 1970, conhecem e provam a ruptura do paradigma produtivo fordista que deu lugar
ao que Harvey (2006) chamou de acumulação flexível. No âmbito dessa reorganização produtiva, há
a implantação de um sistema político e ideológico
de retirada do Estado da execução e guarda de suas
funções sociais, um claro retorno, agora com maior
ênfase do que outrora, a uma era de prevalência do
livre mercado em detrimento dos sujeitos. Tal
reestruturação tem provocado a intensificação da
informalidade e o aprofundamento da precarização
das relações de trabalho (Alves, 2007).
Todo esse contexto parece justificar o
surgimento de novas (ou nem tanto) formas de trabalho precário como modo de sobrevivência para
desfiliados do mercado formal de trabalho. Assim
é que muitos indivíduos se veem sem escolha entre não ter trabalho (o que significa não ter um
meio de subsistência) e exercer um trabalho precário. Nesses casos, em que os catadores de lixo são
exemplos, a necessidade de sobreviver fala mais
alto do que o leque de benefícios que um trabalho
formal poderia oferecer, principalmente entre os
ex-detentos, para os quais a opção de uma ocupação formal é praticamente nula.
A atividade do catador vai além das
especificidades da economia informal, por lidar
com o produto expurgado pela sociedade e, por
isso, identificado pelos sujeitos da pesquisa como
semelhantes a sua recente condição de ex-detentos.
Ainda assim, o desenvolvimento dessa atividade,
que lida com o refugo da sociedade, pode contribuir para a ressocialização, sobretudo porque há
identificação com o produto que trabalham. De fato,
Jaques (1996), ao referir que as estruturas sociológicas influenciam as representações que os indivíduos fazem de si, como representação do eu, ressalta a associação do prestígio ou desprestigio so-
cial à qualificação e/ou desqualificação do eu a partir
das especificidades próprias de alguns espaços de
trabalho e/ou categorias profissionais.
Ao mesmo tempo que essa característica é
realçada, presencia-se uma extrema precarização
dessa atividade. A precarização observada no trabalho de catação e no ambiente de trabalho permite defrontar-se com uma atividade laboral que violenta a reconstituição do eu trabalhador pela subsistência com base no que já foi refugado pela sociedade. Nessa perspectiva, a reconstrução de uma
identidade no trabalho, na concepção de
Sainsaulieu (1977), está intrinsecamente relacionada à ligação do indivíduo com os outros e ao
reconhecimento que ele tem nessa relação. Ora,
mediante condições desumanamente precárias de
trabalho, em que a relação com o deposeiro é
permeada pelo autoritarismo e exploração, e as relações com os colegas de trabalho e população em
geral são de indiferença e preconceito, a inclusão
desses trabalhadores no mundo do trabalho tende
a se refletir na sua identidade de trabalhador, com
traços de sujeição, precariedade e preconceito, no
lugar de reconhecimento e estímulo para melhoria
de vida pelo trabalho; é submeter-se à precarização,
estando já no limite máximo de precariedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As informações obtidas por meio das observações e entrevistas com os catadores levam a
concluir que as motivações imediatas para o início
deste trabalho se referem à necessidade de manutenção material da vida, mas percebe-se que a escolha da atividade de coleta de resíduos sólidos se
dá, principalmente, pela dificuldade de inclusão
no mercado formal. Os ex-presidiários informam
uns aos outros da possibilidade de ganho com essa
atividade que não apresenta dificuldade de inserção. Em razão, porém, dessa inflexão, será possível criar estratégias (materiais e simbólicas) capazes de fazer frente à precarização da catação e seus
efeitos na vida desses catadores? Os resultados
obtidos apontam para a construção subjetiva de
386
uma identidade de trabalhador tal como a ideia
de, pelo menos, poder subsistir, sem ter que roubar, por meio do trabalho. Mesmo se constituindo
em uma estratégia defensiva de mediação ante a
precariedade da vida, é um indício de construção
de uma identidade. Para isso, no entanto, os trabalhadores se submetem a condições e organização
de trabalho bastante precárias, como se fosse única alternativa de (re)inserção social.
Por outro lado, Meireles (2009) observa que,
embora trabalhem em condições precárias, os
catadores associados gozam de melhores condições
de trabalho. Essas melhores condições podem ser
percebidas na infraestrutura de cunho material,
evidenciadas pelo melhor asseio no depósito pertencente às associações, pela existência de instalações sanitárias (inexistentes no depósito visitado),
eletrodomésticos em bom estado que permitem
preparar refeições, locais para descanso, sala de
reuniões, bem como existência de parcerias que
garantem o aporte de grande volume de material
sem que seja necessária a saída do catador. Há,
também, uma série de diferenças que propiciam
uma melhoria nas condições de trabalho na Associação, como participação em instâncias de discussão sobre os problemas ligados à atividade –
além de amplas temáticas relacionadas à pauta de
atuação de vários movimentos sociais – formação
de lideranças, conscientização política, maior autonomia no que tange ao processo produtivo do
trabalho, laços grupais mais sólidos, de forma que
os catadores representam a atividade não como um
processo somente individual, mas inserida no contexto social de que fazem parte, propiciando maior
conscientização a respeito do trabalho que realizam, que ganha contornos de motivações para além
daquelas imediatas que levaram os trabalhadores
para esse tipo de atividade. A isto o autor chama
de “desprecarização simbólica”, incluindo aí a
mudança de catador para “agente ambiental”.
Assim, uma política que, possivelmente,
proporcionaria melhorar as condições de trabalho
e de vida dos catadores seria a instituição e o acompanhamento de associações e cooperativas desses
trabalhadores.
Dentro dessa mesma perspectiva, compreende-se que a coleta de lixo deveria ser regularizada pelos governos locais, evitando a exploração
indevida dos donos de depósitos avulsos, que
operam de modo a desconsiderar a história de cada
trabalhador, assumindo uma posição bastante autoritária, e que se aproveitam da vulnerabilidade
da condição de ex-presidiário para contratação de
furtos a transeuntes, incentivo ao tráfico de drogas
e arbitramento dos valores pagos pelo material coletado, anulando qualquer possibilidade de barganha e de autonomia dos trabalhadores, e, muitas
vezes, pagando com a própria droga. Se um trabalhador que não teve a experiência de carceragem se
revolta frequentemente com os desmandos que ocorrem nas instituições, o que dizer de ex- presidiários
que estão tentando se reinserir mediante uma situação de extrema precarização? Ouvindo a todo instante o argumento de que, depois de terem sido presos,
não conseguirão emprego decente, respondem a essa
retórica com “recaídas” que se traduzem em pequenos furtos para aumento dos seus ganhos.
Assim, uma política séria de reinserção de
ex-presidiários, especificamente no trabalho de
catação de lixo, deve incluir: a organização dos
catadores em grupos de produção; a fiscalização
dos depósitos avulsos, exigindo-se condições necessárias ao desempenho do trabalho; os processos de qualificação desses catadores no que se refere à forma de coletar, evitando sujar as ruas, ao
mesmo tempo em que são imprescindíveis as campanhas de coleta seletiva de lixo para a população
de modo geral, permitindo o reconhecimento do
material exposto para coleta pelo catador, sem a
necessidade de rasgarem os sacos para selecionar
o que interessa coletar.
São estas, portanto, iniciativas que servem
para se contrapor à precarização, caracterizadas por
atuar não apenas no cenário concreto da
precarização, destacando-se os fatores de
reconstituição da identidade desses sujeitos
precarizados como trabalhadores com base no
autorreconhecimento da importância do trabalho
desempenhado, da inserção em grupos organizados de formação social e política, que repercutem
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
João Bosco Feitosa dos Santos, Regina Heloisa Mattei
de Oliveira Maciel, Tereza Glaucia Rocha Matos
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ...
materialmente na vida dos agentes. Isso poderia
favorecer a autoestima e reforçar o processo de
desprecarização simbólica.
O trabalho é mais do que uma forma de satisfação das necessidades materiais, sendo, ainda,
responsável pela inscrição do sujeito em um lugar
social. Conferir, porém, ao sujeito um lugar social
estigmatizado é marcá-lo do estigma atribuído ao
seu trabalho. É a ligação do trabalho a valores como
a defesa do meio ambiente, ora em voga, que permite mitigar o estigma (Goffman, 1982). Mais do
que a autonomia limitada à barganha de preço, a
organização dos catadores, além da interlocução
de experiências por meio de movimentos em nível
local, nacional e global, permite aos catadores uma
autonomia da representação que a sociedade constrói sobre o seu trabalho.
Conferir um sentido ao trabalho, além do
contido nas motivações primeiras e contingenciais,
enseja uma relevante ressignificação dele, que atua
minimizando os efeitos desgastantes desse mesmo trabalho. Assim, a atividade passa a ser
incrementada com um novo sentido, que culmina
em um maior reconhecimento social. Dejours
(1999) assevera que o reconhecimento do indivíduo e de seu trabalho em âmbito social é relevante
para a transformação do sofrimento do trabalho
em prazer pelo desempenho do ofício, embora o
processo nunca se finalize.
Recebido para publicação em 19 de abril de 2012
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RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR ...
EX-COM TRASH PICKERS CREATE A NEW
WORKER IDENTITY
RECONQUÊTE D’UNE IDENTITÉ DE
TRAVAILLEUR PAR D’ANCIENS DETENUS
QUI FAISAIENT LES POUBLELLES
João Bosco Feitosa dos Santos
Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel
Tereza Glaucia Rocha Matos
João Bosco Feitosa dos Santos
Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel
Tereza Glaucia Rocha Matos
The goal of this paper is to reflect on and
understand how ex-con trash pickers in the city
of Fortaleza established a new worker identity
through socially stigmatized unstable employment.
Both bibliographical-documentary research and an
ethnographical inspiration study were carried out,
using direct observation and semi-structured
interviews as tools. The results indicate unstable
working conditions and conflicts with the
“deposeiros” (recycling center owners), who exploit
the trash pickers in every way possible. People
regard these workers as dangerous, dirty bums,
and their working and living conditions are riddled
with exploitation, conflict and prejudice. The
narratives of these recycled people for justice reveal
a strong identity with the refuse that they collect.
In their quest for reentry to society and
reconstruction of identity, some of them admitted
to illicit practices or recidivism, thereby
demonstrating the fragility of the system, which
attempts to recycle them and include them in a
precarious manner.
L’objectif de ce travail est de mener une
réflexion qui permette de comprendre comment
les personnes qui font les poubelles, ex-prisonniers
de Fortaleza, retrouvent une identité de travailleurs
en se basant sur une activité précarisée et
stigmatisante socialement. Une recherche
bibliographique et documentaire ainsi qu’une étude
d’inspiration ethnographique par l’observation
directe et par des interviews semi-structurées a été
réalisée. Les résultats indiquent des conditions
précaires de travail et des conflits avec les
propriétaires de dépôts qui exploitent les personnes
qui font les poubelles à tous les niveaux. Perçu par
la population comme des marginaux, dangereux et
sales, leurs conditions de travail et de vie sont
marquées par l’exploitation, les conflits et les
préjugés. Les narrations de ces recyclés par la justice
montrent une forte identification avec les déchets
qu’ils ramassent. A la recherche d’une réinsertion
sociale et de la reconstruction d’une identité, certains
admettent pratiquer des actes illicites ou faire des
rechutes, signes d’une fragilité du système qui essaie
de les recycler et de les insérer de manière précaire.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 377-390, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Work. Identity. Instability. Trash MOTS-CLÉS: Travail. Identité. Précarité. Personnes
qui font les poubelles. Ex-détenus.
Pickers. Ex-Cons.
João Bosco Feitosa dos Santos – Doutor em Sociologia. Professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará
– UECE – no curso de Ciências Sociais e no Mestrado de Políticas Públicas e Sociedade. Coordena a Estação
Observatório de Recursos Humanos em Saúde CETREDE/UFC/UECE onde desenvolve projetos na área de
mercado de trabalho em saúde. Atua principalmente nos seguintes temas: Mundo do Trabalho, Relação
Trabalho e Saúde, Globalização e Reestruturação Produtiva, Economia Solidaria, Precarização do Trabalho,
Pobreza e Consumo. Publicações recentes: Por uma produção sociológica: entre a Narrativa Histórica e o
Saber Racional. Revista de Ciências Sociais (UFC), v. 2, p. 52, 2012; Trajetória de políticas habitacionais em
cenários de desigualdade. O Público e o Privado (UECE), v. 17, p. 25-38, 2011.
Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel – Doutora em Psicologia Experimental. Professora titular da
Universidade de Fortaleza e adjunta da Universidade Estadual do Ceará. Experiência principalmente nos
temas: ergonomia, condições de trabalho e saúde do trabalhador. Principais publicações: Afastamentos por
transtornos mentais entre professores da rede pública do estado do Ceará. O Público e o Privado (UECE), v.
19, p. 167-178, 2012; Multiplicidade de vínculos de médicos no Estado do Ceará. Revista de Saúde Pública,
São Paulo: USP, v. 44, p. 950-956, 2010; Ports modernization and its influence on trade unions. Work (Reading,
MA), v. 41, p. 5775-5777, 2012.
Tereza Glaucia Rocha Matos – Doutora em Psicologia. Professora na graduação e no programa de pósgraduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Atua na área de Psicologia Social e do Trabalho.
Participa do Laboratório de Estudos sobre o Trabalho - LET. Os estudos estão direcionados para a produção da
subjetividade, trabalho, escolha profissional, identidade, carreira e saúde. Publicações recentes: Catadores
de material reciclável e identidade social: uma visao a partir da pertença grupal. Interação em Psicologia
(Online), v. 16, p. 239-247, 2012; Precariedade do trabalho e da vida de catadores de reciclaveis em
Fortaleza-Ce. Arquivos Brasileiros de Psicologia (UFRJ. 2003), v. 63, p. 85-99, 2011.
390
Agnaldo Sousa Barbosa*
Ao longo das últimas cinco décadas, diferentes tradições interpretativas se ocuparam da tarefa
de buscar explicar a gênese do empresariado industrial brasileiro e analisar seu padrão de
conduta do ponto de vista do empreendimento econômico e, por outro lado, diante das principais questões políticas do país. Não obstante ser esse um tema pulsante, tendo em vista a
centralidade do papel a ser desempenhado por esse ator social na urdidura dos fios e tramas do
processo de modernização capitalista do país no século XX, seu estudo não é objeto de uma
produção profícua, ao contrário do que acontece, por exemplo, com as investigações sobre a
classe operária. Este trabalho realiza um breve balanço do que julgamos constituir as mais
expressivas dentre as variáveis possíveis na interpretação da experiência de classe do
empresariado industrial, reivindicando a complexidade inerente ao tema em contraponto à
generalização simplificadora recorrente na maioria dos trabalhos sobre o assunto.
PALAVRAS-CHAVE: Empresariado industrial. Classe Social. Comportamento Empresarial. Industrialização Brasileira.
Pensar o empresariado industrial brasileiro
não é tarefa fácil. O primeiro desafio a ser enfrentado é o reduzido volume de estudos sobre o assunto. É evidente a preferência das Ciências Sociais
do país pelo conhecimento da experiência de classe dos “oprimidos” – a classe operária – em comparação com a compreensão da história dos “dominantes”. Por outro lado, durante muito tempo,
insistiu-se muito mais na discussão sobre o que
essa classe social não era, em uma perspectiva orientada pela experiência das nações de capitalismo
avançado, do que se procurou refletir acerca do real
significado de seu comportamento em face de suas
possibilidades concretas de atuação – ou seja, levando em consideração sua condição periférica.
Deste modo, dos anos 1940 até fins dos anos
1970, prevaleceu uma visão essencialmente negativa do empresariado industrial, resultado de aná* Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Depto.
de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –
Universidade Estadual Paulista (Campus de Franca). Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social e coordena o LabDES – Laboratório de
Estudos Sociais do Desenvolvimento e Sustentabilidade.
Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14.409-160,
Franca, SP, Brasil. [email protected]
lises que tiveram, na história de suas congêneres
europeia e norte-americana, o paradigma de configuração da classe. Por um longo período, foi
hegemônica, na literatura acadêmica, a ideia de que,
entre nós, as principais características dessa classe
teriam sido o pouco vigor empreendedor, a mentalidade pré-capitalista (com destaque para o seu arraigado patrimonialismo), a deficiência organizativa,
a imaturidade ideológica e a fragilidade/passividade política – elementos esses facilmente associados
à origem social “aristocrata” de industriais advindos
da classe dos latifundiários. Tais fatores são recorrentemente apontados como responsáveis pelo fato
de o empresariado industrial não ter alcançado o
status de força hegemônica na sociedade brasileira e
conquistado, consequentemente, o poder político.
Neste trabalho realizamos um breve balanço
das principais correntes interpretativas que buscaram compreender e explicar a formação social, o pensamento e a atuação econômico-política do
empresariado industrial brasileiro. A intenção, aqui,
foi elaborar um painel do que entendemos ser as principais abordagens que tiveram lugar nas Ciências Sociais do país da década de 1940 até os nossos dias.
391
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO
INDUSTRIAL BRASILEIRO: dilemas e controvérsias
RESENHA TEMÁTICA
Agnaldo Sousa Barbosa
REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
AS HIPÓTESES SOBRE A ORIGEM DO
EMPRESARIADO INDUSTRIAL BRASILEIRO
É, certamente, inevitável a relação entre os
primórdios da industrialização no Brasil e a acumulação de capitais advinda da economia cafeeira.
Em virtude da importância desta discussão, este
capítulo tem na relação entre a cafeicultura e indústria a sua problemática inicial.
Desde a década de 1940, tornou-se praticamente consensual na bibliografia sobre o tema da
industrialização o estabelecimento de vínculos
inescapáveis entre café e indústria, não raro concebendo, por extensão, a burguesia cafeeira como
a matriz da burguesia industrial brasileira. Em obras
dos anos 40 e 50, autores de estudos que se tornaram clássicos, como Caio Prado Jr. e Celso Furtado, já tratavam a questão dando significativa ênfase à relação entre cafeicultura e indústria.1 Porém,
foi em um texto de Fernando Henrique Cardoso,
escrito em 1960, que tal abordagem ganhou contorno mais abrangente e adquiriu o status de interpretação hegemônica no âmbito da literatura acadêmica. Em “Condições sociais da industrialização: o caso de São Paulo”, Cardoso (1969, p. 188)2
propôs, de forma pioneira, uma explicação da industrialização brasileira que ultrapassava o terreno das considerações meramente econômicas acerca desse processo. Conforme argumenta, qualquer
que fosse a realidade investigada, um estudo sobre o tema deveria supor, também, como requisito
básico, “a existência de certo grau de desenvolvimento capitalista” e, mais especificamente, supor
“a pré-existência de uma economia mercantil”, o
que, logicamente, implicaria conceber a existência
“de um grau relativamente desenvolvido da divisão social do trabalho” na sociedade em questão.
Seguindo essa linha de raciocínio, Cardoso
observa que a transformação do regime social de
produção, que possibilitou o advento da ativida-
de industrial no país, ocorreu no bojo da expansão cafeeira rumo ao oeste paulista, resultando na
intensificação da organização capitalista da vida
econômica. No interior desse processo, três
constatações merecem destaque: 1) a substituição
do trabalho escravo pela mão-de-obra livre contribuiu para o surgimento de uma estrutura mercantil generalizada; 2) a racionalização da empresa econômica cafeeira forçou a conversão dos antigos
senhores em empresários de mentalidade capitalista; e 3) o financiamento e circulação da produção cafeeira exigiram empreendimentos de
infraestrutura (bancos, ferrovias, portos, estradas,
etc.) que foram essenciais para o posterior estabelecimento da indústria.
Em outros estudos de referência dos anos
1960, 1970 e início dos 1980, autores como Octávio
Ianni (1963), Warren Dean (1971), Maria da Conceição Tavares (1972), Wilson Cano (1998),3 Sérgio Silva (1976), José de Souza Martins (1986)4 e
João Manuel Cardoso de Mello (1984),5 entre os
mais importantes, assumiram e aprofundaram, ainda que com algumas variações, a perspectiva do
capital cafeeiro como núcleo dinamizador da indústria no país. Na análise de Wilson Cano, por
exemplo, o café tem um significado amplo, assumindo o papel de elemento que orienta a economia interna e externamente e cria as condições para
a intensificação do processo de desenvolvimento
capitalista. Segundo afirma esse autor:
O café, como atividade nuclear do complexo cafeeiro, possibilitou efetivamente o processo de
acumulação de capital durante todo o período
anterior à crise de 1930. Isto se deveu, não só ao
alto nível de renda por ele gerado, mas, principalmente, por ser o elemento diretor e indutor da
dinâmica de acumulação do complexo, determinando inclusive grande parte da capacidade para
importar da economia brasileira no período.
Ao gerar capacidade para importar, o café resolvia seu problema fundamental que era o da subsistência de sua mão-de-obra, atendia às exigências do consumo de seus capitalistas, às necessidades de insumos e de bens de capital para a
1
As referências, nestes casos, são Prado Jr. (1993), cuja
primeira edição é datada de 1943, e Furtado (2000), editado pela primeira vez em 1959.
2
Tal texto foi publicado originalmente na Revista
Brasiliense, n. 28, São Paulo, março-abril/1960. Utilizamos aqui a referência de sua publicação no livro Mudanças Sociais na América Latina, de 1969.
3
A primeira edição é datada de 1977. Foi originalmente
apresentado em 1975 como tese de doutoramento.
4
A primeira edição é datada de 1979.
5
Originalmente apresentado como tese de doutoramento
em 1975.
392
Agnaldo Sousa Barbosa
Partindo dos mesmos pressupostos, João
Manuel Cardoso de Mello argumenta, ainda, que
foi o “vazamento” de excedentes de capital da cafeicultura para outros negócios que permitiu a
maior parte das inversões na atividade industrial
a partir das duas décadas finais do século XIX.
Conforme ressalta o autor, os lucros gerados pelo
complexo cafeeiro não encontravam espaço nesse
mesmo núcleo produtivo para a sua plena
reaplicação;6 desta forma,
[...] havia um “vazamento” do capital monetário
do complexo exportador cafeeiro porque a acumulação financeira sobrepassava as possibilidades de acumulação produtiva. Bastava, portanto,
que os projetos industriais assegurassem uma
rentabilidade positiva, garantindo a reprodução
global dos lucros, para que se transformassem
em decisões de investir (Mello, 1984, p. 144).
Em face deste quadro interpretativo, a
constatação de que o empresariado industrial teve
sua origem, sobretudo no grande capital cafeeiro,
foi uma consequência natural7. A concepção, segundo a qual a diversificação dos investimentos e
a complexidade alcançada na gestão dos negócios
transformaram muitos “homens do café” em industriais proeminentes encontrou eco em exemplos como os de Antonio da Silva Prado e Elias
6
Segundo Mello (1984, p. 143), três razões em especial
contribuíram para o direcionamento dos excedentes do
capital cafeeiro para a atividade industrial: “1) o ritmo de
incorporação de terras está adstrito a determinadas exigências naturais, como tempo de desmatamento, época
de plantio, etc.; 2) a acumulação produtiva, uma vez plantado o café, é em grande medida ‘natural’; e 3) as despesas
com a remuneração da força de trabalho reduzem-se, entre o plantio e primeira colheita, praticamente ao pagamento da carpa; não o encontravam, do mesmo modo,
nas casas importadoras, porque a capacidade de importar
cresceu, seguramente, menos que as margens de lucro,
transformando a produção industrial interna na única
aplicação rentável para os lucros comerciais excedentes”.
7
Entenda-se como grande capital cafeeiro a fração da burguesia cafeeira signatária de inversões financeiras que
ultrapassavam os limites da lavoura, multiplicando-se
em investimentos no comércio (armazéns, casas de exportação e importação), ferrovias, exploração de serviços
públicos (água, luz, transporte), bancos e indústrias.
Para uma definição do “grande capital cafeeiro”, ver Silva
(1976). Para uma análise detalhada da dinâmica do grande capital cafeeiro e sua hegemonia econômica e política
em face dos interesses da lavoura ver Perissinotto (1991,
v. 1, especialmente o Capítulo 1).
vares Penteado (Cia. Paulista de Aniagens), Augusto
de Souza Queiroz (Cia. Mecânica e Importadora),
Gabriel Silva Dias (Companhia McHardy), além de
muitos outros. Warren Dean (1971, p. 54) chegou
mesmo a afirmar que “[...] A quase totalidade dos
empresários brasileiros veio da elite rural”. E acrescenta: “Por volta de 1930 não havia um único fabricante nascido no Brasil, originário da classe inferior ou da classe média, e muito poucos surgiram depois”. Tal visão é corroborada, por exemplo, por Florestan Fernandes (1987, p. 113), que
salienta que, nesse processo, é o fazendeiro de café
quem “[...] experimenta transformações de personalidade, de mentalidade e de comportamento prático tão radicais”, convertendo-se em “homem de
negócios”.8
A ideia do surgimento de um empresariado
industrial associado ao grande capital – sobretudo
o cafeeiro – ganhou ainda mais força com a
hegemonia, a partir de meados da década de 1970,
de certa tradição interpretativa que defende que o
capitalismo industrial não tenha conhecido, no
país, as fases do artesanato e da manufatura, ingressando já na etapa da grande indústria. Na análise dos que advogam tal interpretação, a característica tardia do capitalismo brasileiro impôs a grande indústria como padrão necessário às exigências
do momento histórico em que emergiu a indústria
nacional; ao surgir já na fase monopolista do capitalismo mundial, a indústria brasileira teve como
imperativo a sua organização em grandes empreendimentos, sob pena de sucumbir, facilmente, à
concorrência dos produtos importados aos gigantescos trusts internacionais. Ainda de acordo com
esta interpretação, embora a pequena indústria
8
Certa tradição marxista levou essa interpretação às últimas consequências, associando o empresariado industrial nascente a uma elite de caráter aristocrático. Conforme destaca Nelson Werneck Sodré (1967), ao contrário de sua congênere europeia, “tributária da classe dominante”, a burguesia brasileira teria raízes na própria
classe dominante, em uma elite senhorial de estirpe aristocrática. Para Sodré, nossa diferença básica em relação à
Europa, no que diz respeito ao processo de gestação da
burguesia, estaria no fato de que no Brasil não se verificou um “movimento ascensional” das camadas mais
baixas da população a fim de compor esta que seria a
classe dominante universal.
393
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
expansão da economia, bem como indicava em Pacheco Jordão (Vidraria Santa Marina), Antonio
que o Estado podia ampliar seu endividamento
de Lacerda Franco (Tecelagem Japy), Antonio Álexterno (Cano, 1998, p. 136).
REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
artesanal tenha sido uma realidade presente até as
últimas décadas do século XIX, ela acabou por
desaparecer, na medida em que a competição em
condições altamente desvantajosas com os novos
conglomerados industriais realizou uma espécie
de seleção natural entre as unidades fabris.
Em O Capitalismo Tardio, de João Manuel
Cardoso de Mello (1984, p. 143, grifo nosso), tal
concepção subjaz na afirmação do autor de que
“[...] a burguesia cafeeira não teria podido deixar
de ser a matriz social da burguesia industrial, porque [era a] única classe dotada de capacidade de
acumulação suficiente para promover o surgimento
da grande indústria”. Outro exemplo emblemático
pode ser observado no clássico estudo de Wilson
Cano (1998, p. 224-225, grifo nosso) sobre a as
raízes da concentração industrial em São Paulo:
Nosso processo histórico de formação industrial
reveste-se de mais uma peculiaridade importante: aqui não se deu a clássica e gradativa transformação de uma produção manufatureira ou
artesanal para uma produção mecanizada.
Muito embora nossa história registre a ocorrência de certas atividades artesanais, como algumas produções têxteis ‘caseiras’ realizadas em
algumas fazendas, carpintarias, alfaiatarias, joalherias, etc. Muitas destas atividades, efetivamente, eram mais prestadoras de serviços (artífices e
artistas) do que produtoras de bens industriais
para o mercado. Daí, portanto, sua precária possibilidade de realizar uma acumulação de capital que possibilitasse sua transformação técnica
e seu desenvolvimento”.
Estas interpretações derivam da tese consagrada por Sérgio Silva (1976), a qual, partindo do
exame crítico dos censos industriais de 1907 e
1920, procurou demonstrar, por meio de evidências estatísticas, a carência de legitimidade das
análises que enfatizavam a predominância das pequenas empresas industriais voltadas para os pouco significativos mercados locais e regionais no
período da hegemonia cafeeira. Conforme Sérgio
Silva se esforçou em comprovar, no Brasil, a atividade fabril já nasceu tendo na grande indústria o
seu principal sustentáculo econômico. Analisando o levantamento realizado pelo Centro Industrial do Brasil em 1907, Silva fundamenta seu argumento baseado na constatação de que, à época, pelo
menos 39 mil operários trabalhavam nas grandes
empresas do país, as quais possuíam um capital
que se aproximava de 230 mil contos de réis; do
total de trabalhadores fabris, mais de 24 mil concentravam-se em empresas com cem ou mais operários e um capital igual ou superior a mil contos.
Em São Paulo, mais de 11 mil operários trabalhavam em empresas que empregavam, em média,
quatrocentos operários e mais de três mil contos
de capital. Na cidade do Rio de Janeiro, mais de
13 mil operários trabalhavam em empresas que
empregavam, em média, quinhentos e cinquenta
operários e cerca de quatro mil contos de capital.
Quanto ao Censo Industrial de 1920, Silva (1976,
p. 86-87, grifo nosso) diz o seguinte:
O caráter de prevalência do grande capital e
das grandes empresas na estrutura industrial brasileira, desde os seus primórdios, nas últimas décadas do século XIX, também é salientado por
Renato Monseff Perissinotto (1991, v. 2, p. 218)
em importante estudo dos anos 1990:
As indústrias que surgiram no período já empregavam um grande número de trabalhadores e um
capital de grande valor. Caracterizavam-se também pela profunda mecanização e pela consolidação da separação entre trabalhador e meios de
produção – pressuposto fundamental do sistema
capitalista. A industrialização brasileira não foi,
portanto, precedida por nenhuma fase
manufatureira. O seu início, já com plena mecanização do processo de trabalho, foi também uma
exigência do próprio momento em que ela surgiu.
394
No que se refere à importância relativa das empresas com 100 ou mais operários, verificamos
que, no antigo Distrito Federal, elas empregam
73% do capital e 63% do número total de operários. Em São Paulo, nelas encontramos 65% dos
operários. [...] devemos concluir que a importância relativa das empresas industriais com 100
ou mais operários acentua-se entre 1907 e 1920.
Fato esse que se destaca quando verificamos que
mais de 20 mil operários, no antigo Distrito Federal, e mais de 30 mil, no Estado de São Paulo,
trabalham em estabelecimentos industriais que
empregam 500 ou mais operários. Afirma-se assim a nossa tese de que são essas empresas – e
não as pequenas empresas dispersas pelo país –
que melhor caracterizam a estrutura industrial
brasileira durante o período estudado [...].
Outras análises apresentam perspectiva distinta da desenvolvida por essa corrente hegemônica,
todavia, raramente são lembradas nos trabalhos
sobre o tema. Segundo José de Souza Martins
(1986), por exemplo, o aparecimento da indústria
no Brasil se deu à margem das atividades engendradas pelo complexo agro-exportador e, por conseguinte, esteve vinculado a uma estrutura de relações e produtos que não pode ser reduzida ao
“binômio café-indústria”. Conforme argumenta esse
autor, muito antes da abolição da escravatura e da
grande imigração, a indústria artesanal já se encontrava implantada por toda a província de São
Paulo e também em outras províncias. Neste sentido, os grandes grupos econômicos que começaram a surgir no último quartel do século XIX se
ocuparam em “[...] substituir a produção artesanal
e doméstica ou a produção em pequena escala disseminadas por um grande número de pequenos
estabelecimentos tanto na capital quanto no interior” (Martins, 1986, p. 106), e não em substituir
importações. Para Edgard Carone (2001), não
obstante os limites existentes à formação de um
mercado interno no país, desde a primeira metade
do século XIX (a qual chama de “primeira fase do
processo industrial brasileiro”), mas, especialmente
após esse momento, pode-se constatar uma produção artesanal que se intensificou gradativamente
e supriu com folga as modestas exigências da grande
maioria do público consumidor.
Já Luiz Carlos Bresser-Pereira (2002, p. 146),
baseado em significativa pesquisa empírica realizada no início dos anos 1960, é enfático ao assinalar “[...] que os empresários industriais do Estado
de São Paulo, onde se concentrou a industrialização brasileira, não tiveram origem nas famílias ligadas ao café. Originaram-se em famílias imigrantes principalmente de classe média”.9 Principal
nome da vertente que liga a classe média às origens da burguesia industrial brasileira, BresserPereira antecipou em quase uma década a ideia de
Warren Dean, segundo a qual o imigrante teve pa9
Nesse artigo, publicado em 2002, Bresser-Pereira retoma,
sinteticamente, reflexões desenvolvidas em sua tese de
doutoramento publicada com o título de Empresários e
Administradores no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1972).
pel fundamental na formação da burguesia industrial brasileira.
Entretanto, Warren Dean introduziu um diferencial importante na interpretação preconizada
por Bresser-Pereira, tornando-a aderente à interpretação que vinculava o surgimento do
empresariado industrial no país ao grande capital.
De acordo com a análise de Dean (1971, p. 59), os
imigrantes que se envolveram na atividade comercial e industrial eram de origem burguesa, muitos
dos quais chegaram ao Brasil com alguma forma
de capital: “[...] economias de algum negócio realizado na Europa, um estoque de mercadorias, ou a
intenção de instalar uma filial de sua firma”. No
intuito de destacar esses indivíduos da massa de
imigrantes que vieram para Brasil trabalhar nas lavouras de café, Dean os chama de “burgueses imigrantes”, cuja experiência e treinamento os predispunha a se dedicar à indústria ou ao comércio.10
A noção de uma “burguesia imigrante” como
elemento de relevo na constituição do empresariado
brasileiro é reforçada por Sérgio Silva, que chama
a atenção para o caráter errôneo das teses que defenderam a ideia de que imigrantes pobres teriam
se transformado em industriais, identificando neles uma espécie de self-made-man. Para Silva (1976),
os imigrantes que se estabeleceram como empresários fabris não se confundiam com a massa de
imigrantes, constituída, em sua maioria, por trabalhadores braçais. No mesmo sentido, José de Souza Martins vê na figura do industrial de origem
imigrante, que ascendeu socialmente, uma espécie de mito – o burguês mítico – que servia à reprodução do capital e legitimava suas formas de exploração. Conforme observa,
[...] a industrialização brasileira encontrou
no mito do burguês enriquecido pelo trabalho e
pela vida penosa um ingrediente vital. [...] Foi a
partir daí que a dominação burguesa se apresen10
De acordo com Dean, “[...] em geral os burgueses imigrantes chegavam a São Paulo com recursos que os colocavam muito à frente dos demais e praticamente estabeleceram uma estrutura de classe pré-fabricada”. Essa
mesma ideia é retomada por Zélia Cardoso de Mello
(1985) em seu estudo sobre a formação da riqueza em
São Paulo no contexto da economia cafeeira da segunda
metade do século XIX.
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
Agnaldo Sousa Barbosa
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REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
tou como legítima para o operário. O enriquecimento do burguês foi entendido como resultado do seu
próprio trabalho, das suas privações e sofrimentos,
e não como produto da exploração do trabalhador.
A dominação e a exploração burguesas passaram a
ser concebidas como legítimas porque a riqueza não
seria fruto do trabalho proletário, mas sim do trabalho burguês. (Martins, 1986, p. 149).11
É inegável a pertinência das análises que
vinculam a industrialização brasileira à dinamização
dos excedentes econômicos da cafeicultura. Todavia, pensamos que tal relação econômica não deva
ser assumida, de antemão, como a única explicação para os diferentes processos de desenvolvimento industrial que tiveram lugar no país e,
tampouco, para a questão do surgimento da burguesia industrial brasileira. Há mais de três décadas, em um texto intitulado “O café e a gênese da
industrialização em São Paulo”, José de Souza
Martins (1986, p. 98) escreveu que “[...] Apesar de
todos os esforços, a história e a análise históricoconcreta da industrialização brasileira ainda estão
por ser feitas. De fato, temos hoje, infelizmente,
mais interpretação e generalização do que a pesquisa empírica realizada permitiria”.12 Por mais que
tenham avançado as discussões acerca do tema da
industrialização e das origens do empresariado
industrial no Brasil, passadas três décadas, o conteúdo crítico de tal ponderação não perdeu, totalmente, a razão de ser.
No caso da dinâmica de industrialização de
São Paulo, por exemplo, a ideia de um processo
de surgimento e expansão da estrutura fabril, baseado no binômio café/indústria, continua sendo,
como na essência da crítica de Martins, o referencial
predominante para a maioria dos estudos realizados. O problema não se situa, certamente, na validade explicativa da interpretação, mas na sua apli11
Na formulação de sua tese, Martins tem em mente, em
especial, o caso de Francisco Matarazzo, “o burguês
mítico por excelência”, não obstante entender que outros burgueses imigrantes também tivessem contribuído para a elaboração desse mito.
12
Tal texto foi publicado originalmente em: Contexto, n.
3, São Paulo, Hucitec, julho de 1977. Posteriormente, foi
republicado como um dos capítulos do clássico O Cativeiro da Terra (não obstante utilizarmo-nos da edição
publicada em 1986, a primeira edição é datada de 1979).
cação de forma quase exclusiva na análise dos mais
diversos processos de industrialização que tiveram lugar no território paulista ao longo do século
XX. Neste aspecto, o risco de que a evidência
empírica venha a sucumbir à força de uma teoria
já consagrada é uma possibilidade que, muitas
vezes, se comprova na prática, numa patente subversão da máxima apregoada por Giovanni Sartori
(1982), segundo a qual “a lógica não pode substituir a evidência”. As generalizações já consagradas, certamente, exercem grande influência sobre
os que se debruçam sobre o assunto e acabam por
inibir explicações que se arrisquem a ir além daquelas circunscritas no âmbito das teorias
hegemônicas. Por outro lado, o esforço de pesquisa, exigido por uma investigação empírica rigorosa, pode desestimular a aventura pelo território
das vivências histórico-concretas dos atores sociais, gerando a acomodação em face dos referenciais
recorrentes. Estas nos parecem ser as justificativas
mais prováveis para a sensação de ausência de realidades distintas daquela de um empresariado
industrial originário do grande capital cafeeiro ou
de uma “burguesia imigrante”.
AS INTERPRETAÇÕES SOBRE O COMPORTAMENTO ECONÔMICO-POLÍTICO DO
EMPRESARIADO INDUSTRIAL BRASILEIRO
Estudos como os de Oliveira Vianna
(1987),13 Fernando Henrique Cardoso (1963),
Luciano Martins (1968), Florestan Fernandes
(1987)14 e Nelson Werneck Sodré (1967) compartilharam, embora com variações, a visão de que o
empresariado industrial brasileiro padecia de males como a deficiência organizativa, a imaturidade
ideológica e a fragilidade/passividade política. Com
exceção dos escritos de Octávio Ianni (1989),15 a
oposição sistemática, em maior ou menor grau, a
tais concepções veio surgir, apenas, no crepúscu13
Não obstante ter sido editada apenas nos anos 80, tal
obra foi escrita na década de 1940.
14
A primeira edição da obra é datada de 1975.
15
A primeira edição da obra é datada de 1965.
396
Agnaldo Sousa Barbosa
16
Tal obra foi originalmente concebida como tese de doutorado defendida pela autora em 1984, na Universidade
de Oxford – Inglaterra.
17
Para Vianna (1987), era bastante representativo desse
predomínio das empresas familiares na estrutura industrial brasileira o fato de que a maior organização do país
– as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo – pertencia à família da personalidade cujo nome traz.
tos não tinham o significado capitalista de um meio
para a busca da riqueza ad infinitum, mas “[...] o
objetivo modesto de apenas assegurar aos seus
proprietários e dirigentes, possivelmente a riqueza, mas principalmente os meios de subsistência e
também uma classificação social superior – a do
status de ‘industrial’” (Vianna, 1987, p. 194); para
o autor, isto seria a demonstração notória de uma
“mentalidade de pré-capitalismo”. De acordo com
Vianna (1987, p. 195-196), mesmo entre os empresários paulistas, não obstante terem já alcançado um elevado nível técnico em meados do século
XX, quanto aos seus padrões de valores éticos era
possível se constatar que
[...] ainda estão num proto-capitalismo psicológico, guardando muito da velha mentalidade dos
paulistas das classes ricas do século passado, com
sua economia de status, o seu apreço ainda muito vivo dos valores espirituais e culturais, as suas
preocupações genealógicas, a sua distinção de
maneiras e sentimentos.
Ainda no que diz respeito à questão da
“mentalidade” capitalista do empresariado industrial brasileiro, Fernando Henrique Cardoso (1963)
parece aprofundar as observações críticas feitas por
Oliveira Vianna. Neste sentido, a fim de sistematizar sua abordagem, Cardoso dividiu os empresários em duas categorias: a) “capitães de indústria” e
b) “homens de empresa”. Grosso modo, os primeiros seriam aqueles cuja forma de dirigir suas empresas obedeceria a critérios estritamente pessoais e
suas práticas administrativas estariam longe de expressar a racionalidade exigida pelo empreendimento capitalista, e os segundos representariam os modernos executivos profissionais, cuja atividade era
caracterizada pela impessoalidade e pela
racionalidade administrativa em busca do lucro – a
exemplo dos managers, top executivies ou heads of
organization do capitalismo norte-americano. Segundo Cardoso (1963), predominava no Brasil a
categoria dos “capitães de indústria”, senhores absolutos dos rumos tomados por seus negócios,
pouco afeitos a inversões substanciais, visando à
melhoria da base técnica de suas empresas e bastante propensos a se guiarem no mercado “pela
397
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lo dos anos 70 e início dos anos 80, em trabalhos
como os de Eli Diniz (1978), Renato Raul Boschi
(1979), Fernando Prestes Motta (1979) e Maria
Antonieta Leopoldi (2000).16 A despeito de suas diferentes ênfases, tais autores se empenharam em trazer à luz elementos que comprovassem a existência
de uma ideologia burguesa coerente com os interesses da classe dos industriais, a agressividade e organização na luta por seus anseios e, ademais, o importante papel exercido pelo empresariado na tarefa
de dinamizar a industrialização do país, contestando a exclusividade do Estado como promotor único
das profundas mudanças em curso a partir de 1930.
Em pesquisa um pouco mais recente, Márcia Maria
Boschi (2000) propôs alguns avanços em relação ao
tema, procurando explicar questões que permaneciam cambiantes nos trabalhos anteriores.
Começamos pela discussão acerca de uma provável mentalidade arcaica, assim como do que poderíamos chamar de uma “anemia schumpeteriana”,
por parte do empresariado brasileiro. Essas questões
foram abordadas, em especial, por Oliveira Vianna e
Fernando Henrique Cardoso. Escrevendo na década
de 1940, Vianna percebeu diversos traços pré-capitalistas que distinguiam o empresariado industrial
do país. Conforme observa, em uma época em que o
“supercapitalismo” norte-americano e europeu se
notabilizava por uma radical busca do lucro, entre os
industriais brasileiros ainda persistiam tradições econômicas e sociais que obstaculizavam a otimização
dos investimentos, a reprodução do capital em grande escala. Para Vianna (1987, v. 2, p. 49), o pequeno
número de sociedades anônimas em nossa estrutura
industrial e o predomínio das empresas de organização familiar, nas quais a figura do patriarca prevalecia sobre a do empresário, era o exemplo típico da
“refratariedade das nossas burguesias do dinheiro
aos métodos e técnicas do grande capitalismo industrial”.17 Segundo afirma, aqui os empreendimen-
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REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
ram influência política [...]. É o que bem indica a
experiência” antes que pelo planejamento raciosua fácil submissão à política anti-capitalista da
nal. Para esse autor, a prevalência desse tipo de
Revolução de 30; política planejada por uma elite de praticantes de profissões liberais – por uma
administração rigorosamente pessoal – ou, no lielite de “doutores” (Vianna, 1987, p. 197).
mite, familiar – das empresas acabou por gerar vicissitudes e impor restrições ao ritmo do processo
De igual modo, Cardoso (1963) enfatiza a
de industrialização em curso desde o início dos
falta de espírito de classe entre os industriais, raanos 30. Conforme observa,
zão ainda de sua débil ascendência nos assuntos
[...] os efeitos negativos desta situação fazem-se do Estado. Para ele, o excessivo apego desse
sentir tanto sobre o ritmo da expansão industrial empresariado aos interesses pessoais, em detrimenquanto sobre a capacidade de concorrência das
to do pensamento no coletivo, da atenção aos claindústrias controladas desta maneira. Existe larga margem de ‘capacidade empresarial’ mores gerais do país, acabou por delinear uma
desperdiçada pelos industriais paulistas, que to- ideologia burguesa inequivocamente pragmática,
lhem seus projetos de expansão pela crença na
necessidade do controle direto dos negócios (Car- cega para uma visão mais ampla dos interesses do
doso, 1963, p. 119-120).
capitalismo brasileiro e, com isso, incapaz de se
tornar hegemônica e guiar os destinos da Nação.
O patrimonialismo e o “espírito aventurei- De acordo com Cardoso (1963, p. 209),
ro” seriam, ao invés das virtudes burguesas típicas, os principais traços da personalidade econô[...] isto quer dizer que qualquer teoria objetiva
do papel da burguesia no processo de desenvolmica desse tipo de empresário. De acordo com
vimento e do próprio desenvolvimento acaba
Cardoso, entre esses típicos “capitães de indúsapontando um beco sem saída e que, portanto, a
tria” brasileiros, os empreendimentos seriam estiação econômica dos industriais termina tendo
de ser orientada antes pela opinião do dia-a-dia,
mulados mais pela obtenção de financiamentos
ao sabor do fluxo e refluxo dos investimentos
governamentais de longo prazo que pela iniciativa
estrangeiros e da política governamental, do que
por um projeto consciente que permita fazer coparticular de “desbravar” novos caminhos, assim
incidir, a longo prazo, os interesses dos industricomo o comportamento anti-empresarial da ostenais com o rumo do processo histórico.
tação exagerada e do desvio dos lucros para compra de imóveis e/ou remessas de dinheiro ao exteAs avaliações de Luciano Martins e
rior, constituíam procedimentos comuns.
Florestan Fernandes quanto ao papel desempenhaMesmo separados por tradições intelectudo pelo empresariado industrial brasileiro se asseais distintas, as opiniões de Oliveira Vianna e
melham, em essência, à perspectiva esboçada por
Fernando Henrique Cardoso convergem quanto à
Vianna e Cardoso. Na opinião de Martins (1968),
constatação de sérias deficiências do empresariado
no Brasil, essa classe seria política e ideologicaindustrial no que diz respeito à sua organização
mente desarticulada, subordinada que estava aos
política e enquanto classe. Vianna (1987), por
desígnios de um Estado controlado por elites agráexemplo, observa que, embora nos anos 40 já se
rias, em face das quais não manifestava sinais apavivenciasse no Brasil o que ele chama de
rentes de contradição. Para este autor, “[...] a per“supercapitalismo”, o empresariado industrial aincepção de conflito com o setor agrário, portanto,
da não havia se constituído, aqui, em classe domipouco ou nada influi no comportamento dos ménante, como nos Estados Unidos e na Inglaterra,
dios e grandes industriais quando da escolha das
onde ela se mostrava unida e solidária em sua consalianças políticas” (Martins, 1968, p. 137); disso
ciência de grupo e na dominação do Estado. Na
resultou a submissão das suas possíveis divergênótica desse autor,
cias econômicas aos interesses de classe que lhes
são comuns, o que, não raro, significou entraves
[...] entre nós, ao contrário, estas burguesias capitalistas da indústria e do comércio nunca tive- ao desenvolvimento do país. Por esta razão, Martins
398
compreende que, não apenas o empresariado industrial não conseguiu assumir uma posição hegemônica
na sociedade brasileira, como também não tinha a
intenção de obter tal façanha. Essas indicações de
fraqueza e dependência foram, na ótica de Martins, o
principal motivo pelo qual o empresariado não se
constituiu como protagonista de um possível projeto de industrialização autônoma para o Brasil; conforme observa, coube ao Estado, por meio de sua
burocracia, cumprir o papel de agente central do processo de modernização, ora pairando acima dos interesses exclusivos das classes, ora agindo sob o peso
do constrangimento externo, na definição de sua
política de desenvolvimento.
Em sua análise de um virtual processo de
revolução burguesa no Brasil, Florestan Fernandes
apontou a tendência à composição entre o
empresariado industrial e as oligarquias
terratenentes – a fusão entre o “velho” e o “novo”
– como o fator responsável pelo malogro de um
processo de mudança com características verdadeiramente revolucionárias no país; obviamente,
Fernandes pensava na possibilidade de promoção
de uma “revolução democrática” pela burguesia
brasileira. Comentando a aliança entre as elites
agrárias (arcaico) e o setor industrial (moderno),
Florestan Fernandes (1987, p. 205) observa que
“[...] o conflito emergia, mas através de discórdias
circunscritas, [...] ditados pela necessidade de expandir os negócios. Era um conflito que permitia
fácil acomodação e que não podia, por si mesmo,
modificar a história”. Assim, para Fernandes (1987,
p. 204-205), a própria estratégia empresarial limitou o impacto das transformações decorrentes do
estabelecimento do capitalismo industrial como
estrutura econômica prevalecente no país:
[...] não era apenas a hegemonia oligárquica que
diluía o impacto inovador da dominação burguesa. A própria burguesia como um todo (incluindo-se nela as oligarquias), se ajustara à situação segundo uma linha de múltiplos interesses
e de adaptações ambíguas, preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização
impetuosa, intransigente e avassaladora.
Conforme ressalta esse autor, no Brasil, o
empresariado não conseguia enxergar além do muro
de suas próprias fábricas, fronteira a qual estaria
circunscrito o seu moderado espírito modernizador,
por isso nunca se mostrava propenso a “empolgar
os destinos da Nação como um todo”. Na visão de
Fernandes (1987), a ruptura do empresariado com
a dominação conservadora, levada a efeito pela oligarquia agrária, seria um imperativo incontornável
para o desenvolvimento pleno do capitalismo no
país, empreitada para a qual deveria se unir politicamente com a classe trabalhadora. Não tendo cumprido essa, que seria uma de suas tarefas históricas, o empresariado industrial demonstrou não ter
consciência do seu papel como classe que almejava alcançar a hegemonia na sociedade brasileira e,
consequentemente, deixou evidente que as transformações que preconizava se limitavam, meramente, à dimensão econômica.
Em sua História da Burguesia Brasileira, Nelson Werneck Sodré (1967) tende, igualmente, a classificar o empresariado industrial brasileiro como uma
classe débil, vacilante, que fugiu ao compromisso histórico de realizar, no país, a revolução democrática e
anti-imperialista. A interpretação de Sodré segue a linha preconizada pelo Partido Comunista Brasileiro
(PCB), fiel aos ditames da III Internacional, caracterizada por atribuir ao empresariado industrial tarefas próprias de uma “burguesia nacional”, que, além do ímpeto industrializante, deveria demonstrar um comportamento economicamente moderno e socialmente progressista. Neste sentido, para Sodré, no Brasil, a burguesia desperdiçou todo o seu potencial revolucionário ao deixar de se aliar à classe operária, a fim de
promover a libertação nacional, e, aliando-se ao latifúndio, quando deveria antagonizá-lo. O resultado
desse padrão de conduta teria sido a “derrota” da burguesia para as forças conservadoras em 1964. Tendo
em vista tais demonstrações de fraqueza e inconsistência ideológica, Sodré (1990, p. 30-31) traça um perfil da burguesia brasileira extremamente negativo: “[...]
uma burguesia tímida, que prefere transigir a lutar,
débil e por isso tímida, que não ousa apoiar-se nas
forças populares senão episodicamente, que sente a
pressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, pois
receia a pressão proletária”.
399
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Agnaldo Sousa Barbosa
REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
Dentre as interpretações elaboradas entre os
anos 40 e fins dos anos 70, a de Octávio Ianni
(1989) é a única que se destaca, por entender que
a participação do empresariado industrial nos assuntos da política nacional foi, inegavelmente, ativa após 1930. Curiosamente, o trabalho de Ianni é
pouco mencionado entre os estudiosos do tema.
Segundo Ianni (1989, p. 91), “[...] depois de uma
fase em que os seus representantes estiveram quase totalmente fora do poder, após 1930 ela ganhou
paulatinamente ascendência sobre os governantes
e fez-se ouvir nas decisões da política econômica”.
Para este autor, o Estado se manteve como o “mais
importante centro de decisão” na política de desenvolvimento nacional, contudo, longe de demonstrar passividade em sua relação com as esferas de poder e por não almejar a conquista da
hegemonia no interior da sociedade brasileira, o
empresariado fabril se empenhou na tarefa de impor a sua dominação de classe ao conjunto social.
Conforme observa Ianni (1989, p. 92),
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
[...] essa burguesia não está ausente na formulação das diretrizes governamentais, para incentivo direto e indireto da economia. Ainda que
muitas vezes aparentando timidez ou falta de
discernimento, a burguesia industrial assume de
modo crescente as suas possibilidades de atuação sobre a política econômica estatal.
Desta forma, o empresariado industrial “define de modo claro suas relações com o Estado”,
às vezes infiltrando-se no aparelho estatal, outras,
fazendo-o operar em seu benefício, procurando
converter as relações de produção em relações de
dominação de classe. Ianni (1989) observa, também, que a marcante presença do Estado na economia brasileira seria, ademais, algo desejado pelo
empresariado industrial, que via o planejamento e
a disciplinarização econômica exercidos pelos órgãos oficiais como fatores em si positivos para a
produção;18 tal argumento afasta a hipótese, defendida por alguns autores, de que a ingerência esta18
De acordo com Ianni (1989, p. 94-95), um dos primeiros
apelos coletivos do empresariado, com o fim de preconizar a ampliação da participação direta e indireta do Estado
na economia, aconteceu em 1943, quando se realizou o I
Congresso Brasileiro de Economia, que reuniu lideranças
da indústria, do comércio e técnicos do governo.
tal teria se dado pela imposição da orientação burocrática em face da fragilidade burguesa. Para Ianni
(1989, p. 94), a expansão do capitalismo industrial
no país não foi um processo forjado monoliticamente
pelo Estado; pelo contrário, teria sido
[...] o resultado de um largo e crescente convívio
entre a burguesia industrial e o poder público.
Depois da Revolução de 1930, paulatinamente,
os membros dessa burguesia nascente procuraram interferir nas decisões do governo, no sentido de estimular-se a industrialização e planificar-se o desenvolvimento econômico nacional.
Quando as transformações da estrutura econômica abriram possibilidades de ampliação e diversificação da produção industrial, a burguesia
industrial nascente, os técnicos e o governo perceberam que o aparelho estatal precisava ser
convertido em conformidade com a nova situação, favorecendo-a. As possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas somente poderiam ser aproveitadas em maior escala através
da reorientação da política econômica do Estado. E foi o que preconizou a própria liderança
empresarial, juntamente com os governantes.
A tendência em ver na atuação do empresariado,
dentro e fora da esfera política, um fator crucial
para a consolidação do capitalismo industrial no
país foi reforçada em estudos do final dos anos 70.
Em Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil, por
exemplo, Eli Diniz (1978, p. 95) salienta que
[...] se a burguesia não deteve a hegemonia do
processo de instauração da ordem econômica e
social, foi um ator estratégico do esquema de alianças que permitiria a consolidação e o amadurecimento. Sua participação seria particularmente significativa no que diz respeito ao processo
de definição de um projeto econômico voltado
para a industrialização do país e de
conscientização crescente do esgotamento do
modelo primário-exportador.
Todavia, não obstante essa autora assumir
uma perspectiva crítica em relação às análises que
caracterizam o empresariado brasileiro como um
grupo fundamentalmente passivo, dotado de reduzida capacidade de articulação e organização,
suas ressalvas quanto à insuficiência política e falta de autonomia da classe industrial não podem
ser desprezadas. Se, por um lado, Diniz aponta
uma significativa influência do empresariado nas
400
Agnaldo Sousa Barbosa
situado pela ciência política nacional “como um
grupo fraco e passivo”. Conforme argumenta, essa
visão negativa em relação à atuação empresarial
deriva de investigações acerca do desenvolvimento capitalista no Brasil, orientadas por “tipos ideais” baseados nas experiências das potências ocidentais. Segundo Boschi (1979, p. 18-19), tal perspectiva “integrada” apresentaria a vantagem de
buscar explicar de que forma “[...] a atuação dos
grupos privados pode favorecer ou de fato produzir diferentes tipos de interação com segmentos do
aparato do Estado”, indo, assim, além das interpretações parciais do fenômeno do poder. Nesse
sentido, Boschi (1979, p. 53-54) compreende que
apesar da dependência dos grupos industriais
nacionais em relação ao Estado, os empresários
puderam estabelecer um estilo de interação entre os setores privado/público abrindo um espaço à participação direta em questões-chave relacionadas aos seus interesses enquanto classe.
Para o autor, com efeito, tal atuação junto ao
poder se daria muito mais pela via da estrutura
corporativa que pelos meios políticos convencionais, isto é, via partido ou Parlamento.
De toda forma, Boschi demonstra-se convencido de que o empresariado industrial brasileiro seria organizado e politicamente ativo, além de
coerente, do ponto de vista ideológico, a despeito
de não assumir uma postura liberal favorável à
participação dos trabalhadores no processo político. O equívoco estaria, para Boschi (1979, p. 175),
em pensar a essência ideológica da elite industrial
como liberal, quando, na verdade, “[...] os valores
políticos do empresariado revelam traços francamente autoritários”; ou seja, a burguesia estaria
muito mais propensa à defesa da supressão do
conflito de classes, tendo em vista a manutenção
da ordem, que à sua institucionalização. Assim
como Eli Diniz, Boschi salienta que a principal
deficiência do empresariado industrial seria a incapacidade de incorporar ao seu discurso e à sua
luta política anseios diversos daqueles estritamente vinculados aos seus interesses econômicos, razão pela qual não teria conseguido se estabelecer
como força hegemônica. De acordo com Boschi
401
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
decisões do governo, sobretudo em instâncias
econômicas importantes como o Conselho Federal
de Comércio Exterior (CFCE) e o Conselho Técnico
de Economia e Finanças (CTEF), o que demonstra
o poder de organização da classe em torno de seus
interesses específicos, por outro, a autora deixa claro que, em termos ideológicos, o empresariado industrial mostrava-se ainda em processo de amadurecimento, incapaz que era de ir além de uma visão
meramente unilateral e particularista dos problemas
nacionais. Nesse sentido, Diniz (1978, p. 242) afirma que a imaturidade política do empresariado industrial não se explicitaria nos pleitos protecionistas, ou mesmo por reserva de mercado ou controle
do comércio exterior, “[...] mas pela resistência a
medidas combinadas para evitar o custo social de
vantagens desproporcionalmente distribuídas”.
No que diz respeito aos vínculos existentes
entre a fração industrial e os setores agrários dominantes, Eli Diniz (1978, p. 121) pondera que tal
aliança se efetivaria não em virtude da ausência de
consciência de classe por parte do empresariado,
mas por motivos estratégicos, que serviriam ao fim
de garantir o atendimento às demandas imediatas
do setor fabril. De acordo com a autora, a natureza
pragmática dessa solidariedade de classe era evidente; conforme observa, “[...] a cada sinal de autonomia no processo de percepção de seus interesses, seguia-se uma justificativa para manter a
imagem da identidade do empresariado industrial
com os demais grupos econômicos dominantes”.
Porém, o exagero quanto à autonomia do
empresariado industrial seria uma interpretação tão
equivocada quanto àquelas que enfatizam sua dependência em face dos setores agrários; conforme
faz questão de lembrar, “[...] os industriais de São
Paulo jamais romperiam suas ligações com o Partido Republicano Paulista (PRP), sabidamente, o partido dos interesses cafeeiros” (Diniz, 1978, p. 243).
A abordagem de Renato Raul Boschi aproxima-se bastante da levada a efeito por Eli Diniz.
Propondo uma “abordagem integrada” para a análise do problema em questão, Boschi (1979) busca
superar o reducionismo característico dos estudos
acerca do empresariado brasileiro, consensualmente
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
(1979, p. 230), em fins da década de 1970, uma das
condições básicas para a hegemonia do empresariado
industrial no Brasil estava ainda por ser alcançada:
“[...] a possibilidade de ampliar o âmbito do consenso em torno de uma definição substantiva de um
programa democrático que transcenda a satisfação
imediata das demandas empresariais”.
Das análises elaboradas nos anos 70, a de
Fernando Prestes Motta é a que parece ir mais longe quanto ao entendimento do avanço da
hegemonia burguesa no Brasil. De acordo com Motta
(1979, p. 10), até o final da década de 1970 o
empresariado industrial não havia, ainda, logrado
converter-se de classe dominante em classe dirigente de pleno direito, todavia, era uma força social em plena ascensão. Conforme observa, faltavalhe hegemonia política, “[...] mas sua hegemonia
ideológica é clara. Ela domina os principais aparelhos ideológicos da sociedade: escola, imprensa, o
rádio e a televisão, os partidos políticos, as associações profissionais e culturais, os tribunais”. Segundo Motta, o impensável, no Brasil, seria a realização de uma revolução burguesa “à francesa” ou
“à americana”, entretanto, tal constatação não implica admitir que o empresariado industrial não
teria capacidade de mobilização e articulação. Do
mesmo modo, esse autor caracteriza como
questionável o argumento segundo o qual o
empresariado brasileiro não teria, em seu horizonte político, a conquista da hegemonia. Neste sentido, observa:
[...] imaginar que uma classe ascendente não tenha um projeto hegemônico é ignorar a própria
natureza da luta de classes. O projeto pode não
ser claro e geralmente não o é, pode ser aleatório
e geralmente o é, mas isto não implica a sua
inexistência, a menos que o pensemos em termos de planejamento estratégico formal (Motta,
1979, p. 106).
Coerente com tal raciocínio, Motta (1979,
p. 131) argumenta que “[...] na verdade, a burguesia chamou o Estado em seu socorro, em benefício
de seu projeto”. Ademais, este autor mostra-se
extremamente crítico em relação às interpretações
que tendem a subestimar a capacidade de organi-
zação social e política do empresariado fabril, assim como a exagerar a complementaridade e harmonia de interesses entre o setor industrial e as
elites rurais; Motta (1979, p. 104) assinala que “[...]
o perigo que se pode incorrer neste tipo de análise
é a perda de vista do processo real de diferenciação de interesse, através do qual a burguesia progressivamente definiria a sua própria identidade”.
Para Fernando Prestes Motta (1979, p. 53), o
empresariado industrial brasileiro também não pode
ser considerado politicamente imaturo por ter aceitado
a associação com o capital estrangeiro, pois, segundo
argumenta, tratava-se de uma questão de escassez de
possibilidades. Nesse aspecto, esclarece:
A aceitação do capital estrangeiro pode ter sido a
saída conjuntural para a burguesia nacional. Na
medida em que um projeto hegemônico é marcado pela articulação, desarticulação e
rearticulação de interesses, a associação pode ser
vista como parte desse projeto, o que não implica
dizer que ela tenha sido a melhor tomada de posição por parte da burguesia ascendente.
Na visão de Motta, a construção de uma frente
popular desenvolvimentista de modo algum se colocava como opção exclusiva para a ação burguesa
no país. Pelo contrário, a aliança entre empresariado
industrial e capital internacional, tendo em vista a
conquista do poder de Estado, configurou-se como
um caminho perfeitamente possível e que encontrou acolhida em parte significativa do empresariado.
E tal associação não se traduziu, necessariamente,
em enfraquecimento da classe; de acordo com Motta
(1979, p. 108), no contexto dos anos 70, a burguesia industrial-financeira continuava “[...] desempenhando um papel indiscutível no sistema produtivo, que se reflete num papel político, que não pode
ser meramente desprezado”.19
O trabalho de Maria Antonieta Leopoldi é
outro a contestar, enfaticamente, o argumento segundo o qual o empresariado industrial foi mero
expectador das mudanças em curso a partir de
19
Conforme observa Fernando Prestes Motta, ainda que,
nesse período, a atuação dos grupos estrangeiros fosse
predominante em setores cruciais do mercado interno,
o capital nacional continuava dominando boa parte do
sistema produtivo.
402
1930. Realizando o que entende ser uma análise que
combina a tese da fragilidade da burguesia com a da
competição interclasse no contexto do capitalismo
industrial, Leopoldi (2000, p. 31) defende a ideia de
que, “[...] para os industriais, o corporativismo significou antes o acesso à mesa de negociação do
que propriamente a submissão ao controle do Estado”. A autora observa que, longe de serem instrumentos arbitrariamente manipulados pelos desígnios da vontade estatal, as entidades da indústria e
do comércio demonstraram força suficiente para
inviabilizar o “sonho corporativo” do Estado Novo;
neste aspecto, ressalta que não apenas a Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) comandou a luta contra a “corporativização” dos industriais nos moldes desejados pelo governo, sobrevivendo às imposições autoritárias do regime,
como conseguiu, no início dos anos 40, garantir o
status de “órgão técnico consultivo”, antes concedido somente às entidades oficiais. Seguindo uma
linha francamente inclinada a conceber o
empresariado fabril como um grupo autônomo no
contexto do processo de construção do capitalismo
industrial no país, Leopoldi (2000, p. 86) enfatiza:
Os industriais do eixo Rio-São Paulo conviveram
com regimes de tipo oligárquico, liberal e ditatorial. Desde 1930, contudo, conseguiram fazer com
que o Estado, a despeito de sua presença crescente na economia, respeitasse a sua liberdade
de organização em entidades privadas, paralelas
ao sindicalismo oficial.
Em seu aprofundado estudo acerca da atuação das mais importantes associações de classe do
país, Leopoldi assinala, ainda, que os industriais
e suas organizações de classe se envolveram ativamente no desenrolar da trama política nacional,
não obstante sua tácita omissão nos momentos
históricos em que houve mudança de regime.20
Leopoldi apresenta numerosas evidências desse
envolvimento dos empresários no mundo da política, com destaque para a presença de industriais
de relevo em importantes cargos do governo. No
governo Dutra, por exemplo, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi ocupado por
Morvan Dias Figueiredo, líder de peso na FIESP;
para Leopoldi, não foi por acaso que, nesse período, as entidades dos trabalhadores sofreram um
número recorde de intervenções por parte do governo. Entre 1949 e 1953, o Ministério da Fazenda
foi ocupado por dois industriais, o carioca Guilherme da Silveira – ligado à Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) – e o
paulista Horácio Lafer – ligado à FIESP –, o que
ajuda a explicar a proteção da indústria pela política cambial do governo no período. Entre 1951 e
1953, o industrial Ricardo Jafet ocupou a presidência do Banco do Brasil, dando ensejo à expansão do crédito ao setor secundário. Ainda no Segundo Governo Vargas, a Confederação Nacional
da Indústria (CNI) forneceu corpo técnico e cedeu
suas instalações e serviços de secretaria para a
Comissão de Revisão Tarifária, responsável por
formular uma estrutura tarifária que fosse suficientemente flexível para conviver com a inflação
interna e as incertezas da economia internacional.
Do ponto de vista ideológico, Maria
Antonieta Leopoldi chama a atenção para o fato de
que o protecionismo econômico – todavia, sem a
conotação pejorativa que carrega nos dias atuais –
foi o élan a animar as principais lutas do
empresariado brasileiro, lutas estas que resultaram
em políticas governamentais inequivocamente positivas para a consolidação do processo de desenvolvimento industrial. Leopoldi (2000, p. 87) observa, ademais, que, paralelamente à construção
de uma proposta de política industrial amadurecida
em décadas de luta pelo protecionismo, o
empresariado foi definindo, também, um projeto
hegemônico. Conforme salienta,
20
Segundo Leopoldi (2000, p. 27-28), tal omissão se deu
porque a estratégia da burguesia industrial “[...] foi exatamente a de não se contrapor aos novos governantes, para
poder entrar na coalizão e dali ir se fortalecendo aos poucos. A essa estratégia pode-se dar o nome de pragmatismo”.
403
[...] em nenhum momento recorrendo a um discurso que sugerisse intenções hegemônicas, a liderança da FIESP e CNI foi pondo em prática
uma série de medidas, estabelecendo alianças
estratégicas com o governo e com os militares,
criando formas de controlar o movimento operário, ações que indicavam claramente sua busca
de uma hegemonia política.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
Agnaldo Sousa Barbosa
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
Aprofundando a tendência que procura realçar a autonomia do empresariado industrial e seu
protagonismo no processo de desenvolvimento capitalista no Brasil, recentemente, Márcia Maria Boschi
empreendeu interessante releitura das abordagens até
então realizadas. Ao lançar mão da ideia de que o
empresariado brasileiro constituía, de fato, uma burguesia interna e não uma burguesia nacional, M. M.
Boschi (2000) buscou superar aquele que, para ela,
consistia no principal equívoco na interpretação do
modo de agir e pensar dessa classe: a visão de imaturidade e/ou inconsistência ideológica do empresariado
industrial por não se fazer defensor, também, dos
interesses de outras classes e por não aderir ao projeto de desenvolvimento dos nacionalistas. Inspirada no pensamento de Nicos Poulantzas,21 M. M.
Boschi argumenta que, grosso modo, uma burguesia
pode ser definida como nacional quando há contradição de interesses econômicos entre os setores que
a compõem e o capital estrangeiro em um grau que a
torne susceptível de envolver-se em uma luta antiimperialista e de liberação nacional. Nesta situação, a
burguesia pode vir a adotar posições de classe que a
incluam no “povo”, assim como compor alianças com
as massas populares. No caso brasileiro, a burguesia
era interna – e não nacional – por ter significativa
permeabilidade ao capital estrangeiro, do qual dependia até mesmo com o fim de possibilitar seu progresso tecnológico, e, também, por coexistir com segmentos do empresariado vinculados à importação
de manufaturados, setor, aliás, do qual advieram
muitos dos membros da burguesia industrial; a despeito disso, segundo M. M. Boschi, essa burguesia
não deixava de ter um fundamento econômico e uma
base de acumulação próprios no interior de sua formação social.
Para a autora, realizadas tais distinções, fica
mais fácil entender a dinâmica de atuação de tal
classe. Assim, “[...] não era a burguesia brasileira
que se recusava a assumir ‘seu papel histórico’ na
promoção do desenvolvimento do país, mas era a
teoria que não dava conta do comportamento polí-
tico e econômico do empresariado industrial”
(Boschi, M. 2000, p. 37). Conforme salienta,
uma burguesia interna não se inclina ao confronto com a burguesia agrária, nem à formação
de alianças com a classe trabalhadora. Ela prefere, antes, formar alianças com outros setores da
classe dominante. A burguesia interna também
coloca várias restrições ao seu apoio político ao
projeto de industrialização reivindicado pelos
nacionalistas, pois diferentemente desses, não se
preocupa em promover um desenvolvimento
econômico que leve à liberação nacional. (Boschi,
M. 2000, p. 42).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, podemos concluir que,
especialmente no último quartel do século XX,
houve uma considerável evolução na forma de se
pensar a atuação do empresariado industrial brasileiro, tendendo a compreendê-lo como um ator
social ativo no processo de modernização capitalista pós-1930. Não obstante, pensamos que não
há um caminho ideal a ser seguido na análise dessa classe. A nosso ver, a reivindicação da complexidade que engendra a formação e o comportamento
do empresariado no Brasil é um imperativo
incontornável, que leva à construção de mediações
que melhor reflitam a realidade a ser estudada (geral, setorial, local ou regional, etc.), podendo-se
abranger o terreno de múltiplas interpretações.
Neste sentido, é importante se valorizar a atuação dos empresários fabris como força ativa a impulsionar o processo de desenvolvimento industrial, entretanto, sem superestimar sua autonomia diante da figura de um Estado que se constituiu peçachave na construção do capitalismo no país. É fundamental, enfim, ter em mente que as diversas frações burguesas apresentam historicidade singular,
ao contrário da generalização simplificadora que
orienta muitas abordagens do tema; neste caso, coloca-se em xeque a ideia de uma burguesia
monolítica, que, na verdade, nunca existiu.
21
A referência utilizada pela autora é Poulantzas, N. As
Classes Sociais no Capitalismo de Hoje. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.
404
Recebido para publicação em 23 de janeiro de 2012
Aceito em 05 de fevereiro de 2013
Agnaldo Sousa Barbosa
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
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industrialização brasileira: as associações industriais, a
política econômica e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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405
REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADO ...
REVISITING THE LITERATURE ON
BRAZILIAN INDUSTRIALISTS: dilemmas and
controversies
RELECTURE DES ÉCRITS CONCERNANT
LES ENTREPRENEURS INDUSTRIELS
BRÉSILIENS: dilemmes et controverses
Agnaldo Sousa Barbosa
Agnaldo Sousa Barbosa
Over the past five decades several different
interpretative traditions have taken on the task of
trying to explain the origin of industrialists in Brazil
and to analyze their behavior pattern from a
business perspective, as well as in response to the
country’s biggest political issues. Although this is
a stimulating subject, considering the important
role to be played by these social actors in weaving
the fabric of capitalist modernization in 20th century
Brazil, not much of substance has been written
about it, in contrast with, for instance, research
about the working class. This paper makes a brief
assessment of what we believe to be one of the
most significant among the possible variables for
interpreting the experience of the industrialist class,
which demands the complexity inherent to the
topic as a counterpoint to the simplified
generalization which is recurrent in most writings
about this subject.
Au cours des cinquante dernières années,
différentes traditions interprétatives ont cherché à
expliquer la genèse de l’entreprenariat brésilien et
à analyser sa manière d’être du point de vue de
l’entreprise économique, mais aussi face aux
questions essentielles de la politique nationale.
Même s’il s’agit d’un thème excitant étant donné
l’importance du rôle que doit assumer cet acteur
social dans l’élaboration du processus de
modernisation capitaliste du pays au XXe siècle,
son étude n’est pas objet d’une production
abondante contrairement à ce qui se passe, par
exemple, pour les investigations concernant la classe ouvrière. Cette analyse fait un bilan succinct de
ce que nous jugeons être la plus expressive des
variables possibles de l’interprétation de
l’expérience de la classe des entrepreneurs
industriels qui revendique la complexité inhérente
au thème, en opposition à la généralisation
simplificatrice habituelle dans la plupart des
travaux effectués sur ce thème.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 391-406, Maio/Ago. 2013
KEY WORDS: Industrialists. Social class. Business MOTS-CLÉS: entreprenariat industriel; classe sociale;
comportement entrepreneurial; industrialisation
behavior. Brazilian industrialization.
brésilienne.
Agnaldo Sousa Barbosa – Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Departamento de Educação,
Ciências Sociais e Políticas Públicas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –
Universidade Estadual Paulista (Campus de Franca). É professor colaborador do Programa de PósGraduação em Serviço Social e coordena o LabDES – Laboratório de Estudos Sociais do Desenvolvimento
e Sustentabilidade, onde, atualmente, supervisiona 4 projetos de pós-doutorado financiados pela FAPESP
– Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Autor de Empresariado Fabril e Desenvolvimento
Econômico, publicado em 2006 pela Editora Hucitec. Sua publicação mais recente, em co-autoria, é
“Mudança de fronteiras étnicas e participação política e descendentes de imigrantes em São Paulo”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, p. 135-151, 2012.
406
Tatiana Berringer
Tatiana Berringer
Qual a relação dos movimentos sociais e
sindicais com o governo Lula? Como a política
estatal contribuiu para o retorno do crescimento
econômico? Qual é o conflito de classes existente
hoje no Brasil?
De maneira original e muito rigorosa, o
livro Política e classes sociais no Brasil dos anos
2000 procura responder parte destas questões. Ao
reunir nove artigos de membros do grupo
Neoliberalismo e relações de classe no Brasil,
sediado no Centro de Estudos Marxistas (CemarxUnicamp), o livro busca sistematizar, em dois blocos, estudos sobre as classes dominantes, as classes médias e as classes populares. Os autores tratam o conflito de classes como uma luta pela distribuição da riqueza e não como uma disputa entre
capitalistas e socialistas, pois entendem que esse
tipo de disputa não está colocada na atual conjuntura política e econômica.
Neste sentido, reconstituíram alguns elementos importantes do comportamento das classes médias e de frações das classes dominantes
durante a década de 1990. Esta reconstituição nos
permite perceber os elementos contraditórios que
já se manifestavam nos governos anteriores e que
foram rearticulados sob uma nova roupagem nos
governos Lula (2003-2010). Mastuscelli defende
que, apesar da raiz do processo do impeachmant
do presidente Fernando Collor ter sido resultado
da política econômica, foram os estudantes de classe média que ocuparam a função de agentes substitutos das classes burguesas e proletárias. Isso
porque a burguesia brasileira estava acossada pela
durante o governo Collor, havia resistências seletivas às políticas neoliberais – manifestações
corporativas – como as críticas da burguesia industrial ao aumento das importações e as críticas
dos investidores aos confiscos dos ativos financeiros. Entretanto, as insatisfações destas frações
das classes dominantes se deram, apenas, de maneira pontual (seletiva) e não se reverteram em uma
oposição ao governo, pois, no geral, concordavam
com as demais políticas neoliberais, em especial, a
flexibilização das leis trabalhistas e o enxugamento
da máquina estatal.
Para Boito Jr e Sávio Cavalcante, no governo Lula, o Estado convocou a burguesia brasileira
a ter uma postura mais ativa. A nova burguesia
brasileira (a burguesia interna) é uma fração que
reúne diversos setores como grupos industriais,
agronegócio, construção civil, minerações e outros.
Através do apoio e do financiamento do BNDES,
o governo fortaleceu esta fração no interior do bloco no poder em contraposição ao capital financeiro. Esta fração é a força dirigente da frente
neodesenvolvimentista que abarca, também, o
movimento popular e sindical. Ou seja, com a ascensão do Lula ao cargo de presidente do Brasil,
em 2003, muita coisa mudou. Não tanto quanto
esperava parte do eleitorado e, em especial, alguns
integrantes do próprio PT e muitos intelectuais.
Durante o primeiro mandato, as análises
acadêmicas (Leda Paulani, Chico de Oliveira, e
outros) foram predominantemente negativas, acusava-se o governo de continuidade em relação ao
antecessor, em função da manutenção do tripé econômico (superávit primário, juros altos e câmbio
valorizado) e criticava-se a reforma da previdência
dos servidores públicos e o assistencialismo das
políticas sociais, em especial o Programa Fome Zero
e o Bolsa Família.
A partir de 2005, após a chamada “crise do
mensalão” e, especificamente, no segundo mandato do presidente Lula, as políticas neodesenvolvimentistas se tornaram mais intensas e, nesse
sentido, o livro enfatiza a clara mudança entre os
409
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 409-411, Maio/Ago. 2013
BOITO JR, Armando; GALVÃO, Andréa (Orgs). Política ofensiva imperialista e pelo forte movimento gree classes sociais no Brasil nos anos 2000. São Paulo: Ed.
vista de 1970 e 1980. Os autores afirmam que,
Alameda, 2012. 429p.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 409-411, Maio/Ago. 2013
RESENHA
governos FHC e Lula, no que toca à política econômica e social. Cavalcante defende que o setor de
telecomunicações é um bom exemplo do
neodesenvolvimentismo no governo Lula. A fusão da Oi com a BrT, com o auxílio do BNDES, e o
retorno da Telebrás no Plano Nacional de Banda
Larga (PNBL) compõem parte da política de formação da “campeãs nacionais” e o retorno da participação de empresas estatais nos serviços públicos. As “campeãs nacionais” foram as empresas
que receberam aportes do BNDES e dos fundos de
pensão (Previ, Pretos, etc) para aquisição de novas
empresas ou fusão com as concorrentes do ramo,
com o objetivo de se tornarem líderes globais no
seu segmento; por isso, a maioria destas empresas
passou a atuar em outros territórios e passou a
monopolizar o mercado interno no seu segmento.
Boito Jr adverte que o neodesenvolvimentismo é o desenvolvimento possível nos
marcos no neoliberalismo. Segundo ele, o prefixo
“neo” indica três grandes diferenças com o
desenvolvimentismo do período de 1930-1980: 1)
índices mais modestos de crescimento; 2) a aceitação da especialização regressiva, já que a produção se concentra em segmentos de baixa densidade tecnológica; 3) produção voltada para exportação. Para o professor, a eleição de Paulo Skaf, em
2004, para a presidência da Fiesp, com o apoio de
Lula, foi uma inflexão na relação da entidade com
o governo. Skaf relançou a Revista da Indústria e
passou a criticar, com mais ênfase, a política de
juros, o spread bancário, etc. Por isso, viu com
bons olhos a troca de Palocci por Meireles no Banco Central, em 2005.
No que se refere às classes populares, o crescimento econômico trouxe consigo o aumento do
número de empregos e do salário mínimo; com
isso, houve uma aproximação das duas principais
centrais sindicais – Força Sindical e CUT –, a retomada das greves e uma dificuldade de mobilização
dos movimentos sociais, cujas bases eram, predominantemente, de desempregados. Por outro lado,
a reforma sindical e a reforma da previdência contribuíram para a fusão de algumas antigas centrais
e o surgimento de novas organizações como a
Conlutas e a Intersindical, estas duas organizações
fazem oposição declarada ao governo, estando, respectivamente, ligadas ao PSTU e PSOL.
As políticas sociais, em especial o Programa Nacional de Habitação “Minha casa, minha
vida”, exerceram, também, um importante papel:
atenderam parte das reivindicações dos movimentos de moradia e dos movimentos dos desempregados. Na realidade, Oliveira e Hirata demonstram
que as famílias que mais se beneficiaram não estavam entre os 90% de renda de 0 a 3 salários mínimos, o que demonstra que, apesar de ser uma política que atendia aos reclamos dos movimentos
de luta por moradia, não privilegiou, exatamente,
a parcela mais necessitada.
As classes médias, sobretudo o setor com
alta escolaridade, foram muito afetadas pelas políticas neoliberais, e, ao que parece, foram as que
menos tiraram proveito do neodesenvolvimentismo. Não tiveram muitos ganhos salariais,
não houve redução dos pagamentos dos serviços
como educação, seguro de saúde, etc. E, sobretudo, os servidores públicos perderam direitos com
a reforma da previdência. A principal manifestação destes setores nos anos 2000 foi o Fórum Social Mundial (FSM). Segundo Ana Elisa Corrêa e
Santiane Arias, a sua base é, predominantemente,
de classe média escolarizada e o conselho internacional é composto, predominantemente, por organizações não-governamentais, esses seriam os principais motivos para o caráter pouco propositivo e
apartidário do FSM.
Pelo que se pode constatar da leitura do livro, há um limite e um desafio muito grande para
a perpetuação do neodesenvolvimentismo no Brasil. O governo teria que aprofundar e modificar
algumas políticas sociais, como o Programa
Habitacional, a fim de atender à camada mais necessitada e, precisaria, ao mesmo tempo, conceder
maiores ganhos às classes médias, sem que, para
isso, os ganhos da burguesia interna sejam diminuídos. Não há como atender às demandas da
burguesia interna como, por exemplo, a redução
dos custos com a folha de pagamento, o aumento
das terceirizações e, ao mesmo tempo, ter o apoio
410
Tatiana Berringer
melhor, disputam a distribuição dos recursos produzidos pelo crescimento econômico. Afinal de
contas, não há como conciliar eternamente interesses contraditórios.
Recebido para publicação em 07 de julho de 2013
Aceito em 30 de julho de 2013
Tatiana Berringer - Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Integrante do
grupo “Neoliberalismo e Relações de Classe no Brasil”, vinculado ao Centro de Estudos Marxistas (Cemarx)
e do Grupo de Estudos e Pesquisas para Alternativas em Relações Internacionais (GARI) vinculado a UnespFranca. Pesquisa: Política Externa Brasileira; Teoria das Relações Internacionais; Teoria do Estado; Classes
sociais. [email protected]
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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 409-411, Maio/Ago. 2013
das classes médias e dos movimentos sindicais e
populares. Este é o limite da própria frente
neodesenvolvimentista, os diferentes setores concordam com a proteção ao mercado interno, o aumento do crédito, a redução dos juros, mas discordam em relação aos direitos trabalhistas, ou
RETRATO DE UMA FIGURA EXEMPLAR: para lembrar o
passamento do professor Edmundo Fernandes Dias
MEMÓRIA
Leonardo Mello e Silva
No dia 3 de maio de 2013, faleceu, na cidade de Campinas, São Paulo, o Prof. Dr. Edmundo
Fernandes Dias, professor aposentado do curso de
Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, onde ministrou aulas
tanto na graduação quanto na pós-graduação. Vinculado ao Departamento de Sociologia, o Professor Edmundo lecionava Teoria Sociológica e era
um profundo conhecedor do pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci.
Se fosse o caso de se traçar um perfil do
Professor Edmundo, pode-se afirmar que esse se
desdobrava em várias facetas: o intelectual, o professor, o militante sindical, o militante político. Em
todas essas facetas, um traço comum: o senso de
companheirismo inquebrantável, acompanhado de
uma profunda aversão às soluções “geniais”, que
mal escondem o afã do holofote. A discrição nessa
matéria era inversamente proporcional à busca de
rigor teórico e à opção visceral pelas soluções cole* Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de
Sociologia da USP. Foi aluno do Professor Edmundo
Fernandes Dias no IFCH da Unicamp, e estudante de
pós-graduação na mesma instituição, entre 1985 e 1989.
Av. Luciano Gualberto, 315 - sala 212. Cidade Universitária. Cep: 05508-900 – São Paulo, SP – Brasil.
[email protected]
tivas. Nisso ele era profundamente marcado pela
experiência da esquerda radical (no que essa se
opunha à postura do PCB nos anos 1970), tendo
sido o produto de uma geração. Edmundo era um
homem de esquerda, com uma cultura de esquerda e socialista.
De sua faceta de intelectual, pode falar muito bem o cultivo de uma biblioteca notável, particularmente rica no tocante aos títulos dedicados
às Ciências Sociais e ao marxismo, sendo, por isso,
um saboroso convite às pessoas sensíveis a esses
dois temas. De sua faceta de professor dedicado e
preocupado com os seus alunos, pode falar a lembrança carinhosa de todos aqueles que assistiram
às suas aulas ou foram seus orientandos. De sua
faceta como militante sindical, basta recordar a atuação marcante e quase contínua, ocupando diversos cargos nas diretorias da Adunicamp (do qual
foi um dos fundadores) e da Andes. E, mesmo
quando de cargos não se tratava, estava sempre lá,
ajudando, discutindo e polemizando de maneira
consequente nas instituições representativas dos
professores universitários, durante longos anos,
sem nenhuma cerimônia ou desconforto por exercer esse papel. Como militante político, é suficien-
413
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 413-417, Maio/Ago. 2013
Leonardo Mello e Silva*
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 413-417, Maio/Ago. 2013
RETRATO DE UMA FIGURA EXEMPLAR ...
te mencionar o ativo engajamento na construção
do Partido dos Trabalhadores e da Central Única
dos Trabalhadores, no início dos anos 1980, dos
quais mais tarde se afastou, por razões – exatamente – políticas.
Seu papel de intelectual público e sua atuação pedagógica junto aos movimentos sociais e ao
universo sindical foram muito justamente evocados nas notas que vieram à tona, na imprensa militante, após o seu desaparecimento. Gostaria, contudo, de explorar um outro aspecto de sua personalidade, mais ligado aos assuntos que mobilizam
esta revista e a instituição que a anima, isto é, a
instituição universitária.
Trata-se da profunda fenda que se alargou –
e vem se alargando cada vez mais – entre, por um
lado, uma personalidade que via a universidade e
a sociabilidade companheira que anima a crítica
da divisão do trabalho intelectual como um elemento integral da prática acadêmica e, por outro
lado, a universidade realmente existente e o modo
de convívio entre seus pares. Edmundo acompanhou como que a transição entre esses dois modos de viver a universidade: a universidade em
que ele se formou como estudante de ciências sociais, e a universidade em que ele estava trabalhando como professor de ciências sociais. Durante o período de sua prática profissional (que
vai dos anos 1970 até meados dos anos 2000), a
universidade mudou muito, tornando quase
irreconhecível aquele élan que ela carregava em seu
tempo, o de pensar o Brasil e mudar o mundo, e
onde a integralidade entre ensino, pesquisa e extensão não era ainda um jargão burocrático, mas
um projeto político. Essa integralidade foi-se quebrando, pouco a pouco, até opor, de um lado, a
“excelência” produtivista feroz e eticamente neutra e, por outro lado, a “visão política”, desvalorizada na mesma medida de sua “confusão” (segundo os porta-vozes dessa visão) entre fins e meios.
Edmundo era de uma geração que tinha levado a sério a crítica da divisão do trabalho como
um legado para ser aplicado à vida, e não apenas
como um tópico para ensinar na sala de aula. Isso
ficava evidente em sua prática, e era o que o torna-
va, de certo modo, incômodo para as personalidades intelectuais avessas a essa mistura de cenários
- para usar um termo goffmaniano. Não havia, por
exemplo, para ele um momento black-tie, porque
ele acreditava piamente que não era o hábito que
faz o monge, mas sim, o contrário (com a ressalva
de que, ao invés de “monge”, por favor leia-se “homem”, no sentido genérico do “gênero humano”).
Na radicalidade do exemplo de Edmundo, não
havia essa de cenários diferentes, pois a permanência de valores morais deveria se impor quaisquer que fossem as circunstâncias. Era uma postura, no fundo, republicana-radical que, para ser
consequente, desorganizava os papéis, ainda bastante estamentais, que fornecem o imaginário de
classe média de nossa universidade, em termos
de práticas e hábitos inveterados, de gosto e de
preconceito. Havia uma clara opção preferencial
pela plebe, não como plataforma abstrata, mas como
prática de trabalho intelectual. O Prof. Edmundo
aplicava o exemplo do movimento operário em sua
própria vida, de maneira análoga ao modo como
os homens verdadeiramente vocacionados fazem
com a sua fé. Edmundo era, pois, um ser profundamente imbuído de vocação política. E ele via a
Universidade como devendo funcionar desse jeito, como uma instituição verdadeiramente pública, daí o seu paulatino afastamento do ambiente e
das instâncias de consagração do chamado “campo intelectual”, e sua resoluta opção pelo trabalho
de difusão educativa outsider.
Dessa forma, espontânea mesmo, e como
que natural, o Prof. Edmundo acabou cantando a
bola do que iria acontecer nos anos 2000, em termos da consolidação de um padrão de universidade elitizada, presa da expansão dos critérios
neoliberais de gestão, avaliação e orientação
valorativa. Hoje se vê com nitidez aonde foi
conduzida a universidade: ao modelo gestionárioempresarial, que consagra a respeitabilidade como
antagônica aos movimentos sociais e às suas demandas “políticas”.
A cisão entre política e saber foi o produto
da ciosa tendência de “proteger” a universidade
da influência dita “partidária”, temática essa que
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calhava perfeitamente, como contraponto, no tipo
de elaboração que o pesquisador Edmundo recolhia dos ensinamentos da democracia operária
conselhista do bienio rosso de Turim, objeto de
seus estudos doutorais: os de que a democracia (o
“para todos”) vem, primeiramente, da evocação da
parte sobre o todo - o que pode parecer paradoxal,
mas expressa bem a percepção marxista de que a
classe que tende ao universal (proletariado) está
em seu direito de evocar a sua particularidade que
acaba, por fim, negando toda a particularidade (sociedade dividida em classes). Assim, pode-se perceber como uma pesquisa, aparentemente apenas
teórica, ou específica de uma época histórica determinada (lutas sociais na Itália, final da primeira
década do século vinte), pode iluminar contextos
bem diversos, guardando, contudo, em certo plano, uma problemática similar.
OS INTELECTUAIS E A POLÍTICA E OS
INTELECTUAIS NA POLÍTICA
Dois casos bem conhecidos pela crônica da
vida política brasileira são elucidativos do papel
nada desprezível do intelectual de esquerda na
condução da direção moral da sociedade – que é a
expressão gramsciana, famosa, para referir-se à luta
simbólica, conhecida como “guerra de posições”.
Na primeira eleição de FHC, em 1994, um
intelectual respeitável da universidade – em especial da área de ciências sociais – chegava ao topo
da cena política nacional. Muitas pessoas comuns,
letradas e progressistas, guardavam, ainda, a imagem do brilhante professor universitário e teórico
da dependência, escritor de livros influentes entre
estudantes e interessados pela “realidade brasileira”. Movidas por uma certa dívida para com os de
sua geração, deram um crédito de confiança ao
personagem, embora já estivesse clara, àquela altura, para os mais entranhados no debate público,
a profundidade da virada em direção a um liberalismo consequente e pertinaz. É interessante ter
em conta esse efeito de inércia que faz perdurar
uma ilusão no seio de uma opinião pública infor-
mada, típica das metrópoles e dos centros de difusão da cultura. Ao mesmo tempo, é interessante
observar, também, o uso estratégico (para os fins
práticos da vitória eleitoral), bem pensado e sopesado pelos profissionais de marketing, da preservação de tal patrimônio como um ativo poderoso a
ser oportunamente empregado. Até que a ficha caia,
são milhares de professores, artistas, espectadores
de teatro, de cinema e de artes, jornalistas, publicitários (os famosos “analistas simbólicos”, noção de
circulação fácil desde o início dos anos 1990), entre
outros, espalhados profissionalmente por entre o
ambiente da circulação das ideias, que votam.
Cálculo idêntico pode ser percebido décadas depois, quando, nas eleições de 2012 para as
prefeituras das capitais, o ex-presidente Lula ungiu dois intelectuais de seu partido para prefeituras de cidades importantes: São Paulo e Campinas. Também ali eram figuras respeitáveis e com
capacidade de liderança intelectual sobre um público leitor e crítico. A percepção de um recurso
simbólico eficaz na batalha pela opinião pública (e
que quase deu certo em ambos os casos) é típica
de quem conhece bem o terreno em que está pisando, e é sensível ao clamor difuso das ruas. Sair,
como os dois saíram, de um base incólume à
pretensa “sujeira” do mundo da política partidária strictu sensu, onde estão abrigados tanto o assessor parlamentar quanto o militante enraivecido, tanto o político profissional quanto o ativista
arrivista - eis a mágica tirada de uma boa cabeça
estratégica, que vê no neófito o passaporte para
“zerar” tudo o que o passado (recente) condena –
especialmente quando o ambiente do qual é
pinçado, sendo valorizado e cultuado, é inversamente proporcional àquele que apascenta o político tradicional, feito de jogo sujo, mentira e
corrupção. Os intelectuais são, sim, importantes
no cenário político. Gramsci foi um dos que cedo
alertou sobre essa importância simbólica na luta
cultural e argumentativa.
O Prof. Edmundo, por seu turno, leitor apaixonado e intérprete visceral daquele autor, percebia muito bem o alcance profundo das reflexões
do revolucionário sardo quanto a este ponto: o de
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que, longe de deter-se nesse papel de influência e
de preservação de sua própria autonomia enquanto intelectual, este último pode agir de forma mais
efetiva e certeira, indo como que “direto ao ponto”, isto é, tomando um lado. Intelectual “orgânico”. A sociologia dos intelectuais, hoje praticada
nos centros dominantes de pesquisa, limita-se a
diagnosticar a autonomia do campo, raramente
considerando a hipótese da consciência dessa impossibilidade teórica e da investida resoluta, por
parte do intelectual, em um dos lados da luta, em
detrimento do outro. O que era mais ou menos
plausível no contexto das ideias, nos anos 1980,
foi deixando de sê-lo, paulatinamente, na medida
em que a Universidade foi se profissionalizando
e, ao mesmo tempo, expulsando certos temas de
sua pauta, tais como o engajamento e a crítica tanto da “excelência” quanto da “competência”; crítica essa que tinha como pano de fundo o ideal democrático-radical de que “todos os homens são
intelectuais”, uma divisa gramsciana hoje esquecida. Isso explica, por parte do Prof. Edmundo,
um certo pudor – muitas vezes percebido, quase
nunca explicitado – com a afirmação da insígnia
universitária como marca de distinção (que ele de
resto merecia indiscutivelmente), simultaneamente a um certo anonimato deliberado, profundamente
coerente com sua maneira de encarar o mundo.
Tanto o engajamento quanto a crítica acabaram migrando do centro do debate acadêmico para
fora dele, indo aninhar-se nos movimentos sociais, deixando o cenário “interno” (isto é, da própria Universidade com seus departamentos, faculdades e congregações) entregue ao discurso da eficiência, da produtividade et pour cause, da
competitividade. Parece que o Prof. Edmundo percebeu o movimento de fechamento de horizontes
e, o que antes era uma tensão dentro da Universidade entre o papel do intelectual na luta no front
interno (institucional) e na luta no front externo
(público) acabou se resolvendo, na biografia do
nosso personagem, em um deslocamento cada vez
mais pronunciado em direção ao front externo (o
que incluía, como já se fez referência, a participação nas entidades sindicais do professorado, prin-
cipalmente a Andes e a Adunicamp).
Sua tese de doutorado, defendida na PósGraduação em História Social da USP, em 1984 e,
depois, editada em publicação da Unicamp
dedicada às teses de seus docentes, no ano de
1987, em dois volumes, com o título de “Democracia Operária”, é um estudo minucioso sobre a
formação do pensamento de Antonio Gramsci. Lá
estão tematizadas questões fulcrais e da maior relevância, tais como o círculo intelectual em uma
sociedade atrasada do ponto de vista europeu,
seus deslocamentos e instabilidades; a relação
desse círculo com os meios de difusão das ideias,
como as revistas; o transformismo como padrão
político e ideal na sociedade italiana (podendo
ser generalizado como um padrão recorrente toda
a vez que os de baixo irrompem na cena política);
a decapitação das lideranças que se destacavam
nos movimentos sociais como uma estratégia política das elites (assunto a que ele sempre voltava
como algo rotineiro na realidade muito concreta
das lutas sociais do presente e, também, um índice da fraqueza dos intelectuais em contextos
subdesenvolvidos); a descrição encarnada - porque histórica – da luta pela hegemonia e o papel
da moderna classe dos trabalhadores nela – a lista de tópicos poderia se estender. De fato, muito
do que Edmundo lia, a propósito da Itália do início do novecento, com Gramsci, na verdade mirava o Brasil do período da redemocratização e do
surgimento do PT e da CUT, então as grandes esperanças (mencionadas, inclusive, na Introdução
de seu doutoramento!).
Pode-se ver, assim, a meu juízo, certo tipo
de escolha do Professor – escolha ao mesmo tempo profissional e política – que orientou a sua vida
nos anos de Unicamp. Escolha profissional porque, sabendo das limitações da manutenção de um
papel respeitável (e jamais porque não estivesse à
altura dele, muito ao contrário - como todos os
seus alunos, colegas e aqueles que com ele conviveram sabem muito bem), optou por ir fundo na
experiência da transformação por meio de uma atividade pedagógica direcionada aos que mais sensíveis estão à necessidade de mudanças: aqueles
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permanente déficit, um certo sentimento de pequenez, como que a dizer que concordávamos com
ele, mas que éramos incapazes de manter o mesmo grau de exigência; um sentimento de que deveríamos estar ali, onde ele estava, fazendo o que
ele fazia, e que qualquer decisão diferente seria
como que abandonar o barco. Mas isso implicava,
por suposto, uma certa dureza (vê-se depois, mas
apenas muito depois, que essa dureza é a condição daquela coerência).
É nesse sentido que o Prof. Edmundo era
um exemplo. Não um exemplo pelo convencimento
professoral, mas pela prática, como que a dizer,
por atos e compromissos, a todos aqueles que lutavam a sua luta, o que, afinal, tinham de fazer e,
sobretudo, onde tinham de estar. A prova da vida,
por meio de atos exemplares, embora simples, sem
nenhuma pompa ou anúncio solene. A ação política estava completamente incorporada na prática
de sua vida. Especialmente – e esse é o lado triste,
que explica a situação do Professor, sua relativa
marginalidade diante dos colegas de profissão, à
medida que o tempo ia passando – na Universidade e, dentro dessa última, nos cursos de Ciências
Sociais. Relembrar o Prof. Edmundo e seu legado
como professor e como intelectual de esquerda significaria tentar erigir um tipo de relação diferente
da que é hoje praticada entre o saber e o agir.
Leonardo Mello e Silva – Doutor em Sociologia. Professor da Universidade de São Paulo. Tem experiência na
área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas:
sindicalismo, reestruturação produtiva e qualificação do trabalho. Publicações recentes: Qualidade de vida,
opinião pública e ação de bairro. A trajetória do movimento antiverticalização em São Paulo. Revista Crítica
de Ciências Sociais, v. 92, p. 99-123, 2011; Prática de pesquisa e “sociologia pública”: uma discussão em
torno de cruzamentos possíveis e outros nem tanto. Sociologias (UFRGS), v. 11, p. 76-99, 2009.
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que demandam por elas. Escolha política porque,
diferente da política institucional e profissional,
esta era uma opção de vida, de quem não consegue, intimamente falando, separar a percepção das
urgências da intervenção sobre elas. O relato
rememorativo dos próximos, amigos e companheiros de lutas nos fronts onde o Professor atuava –
front associativo e dos movimentos sociais, sobretudo, – são unânimes em marcar o entusiasmo com
que costumava falar dos assuntos que os atava,
sendo que o entusiasmo, longe de se manifestar
apenas em vivacidade de espírito, podia deslizar,
também, para uma mordacidade ferina ou um desprezo bem calculado. Indiferença e dissimulação,
que ninguém esperasse isso dele. Também evitava
o entusiasmo que descambasse em um script por
sinal bastante frequente e fácil: o do militante chato. Aliás, não havia nada de pedante ou afetado na
figura do Professor, muito menos de cálculo racional, no sentido egoísta do termo. Havia, isso sim,
uma enorme coerência entre o pensar e o agir, o
que era perceptível para todos aqueles que o rodeavam, e que chegava mesmo a ser, para esses,
desconcertante, na medida em que, partilhando,
como partilhávamos (porém não com a mesma intensidade), de suas convicções, víamo-nos como
que incapazes de levar tão a fundo o seu compromisso e, por isso, injetando uma auto-sensação de