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www.spbancarios.com.br nº 108 | janeiro de 2006 FILAS OS BANCOS À MARGEM DA LEI TOM ZÉ NOVAS IDÉIAS PARA VELHOS PROBLEMAS BRINQUEDO TUDO TEM CONSERTO DÍVIDA DE SANGUE Apesar das ações recentes contra a desigualdade racial, o Brasil ainda tem um longo caminho a trilhar Casal de idosos do quilombo Tapuio (PI) CARTAAOLEITOR Publicação mensal do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região – Rua São Bento, 413, Centro, São Paulo, CEP 01011-100, ☎ (11) 3188-5200. www.spbancarios.com.br Presidente Luiz Cláudio Marcolino Diretor de Imprensa Hugo Tome Aquino Diretoria Adozinda Praça de Almeida, Adriana Oliveira Magalhâes, Aladim Takeyoshi Iastani, Alexandre de Almeida Bertazzo, Alexandro Tadeu do Livramento, Ana Paula da Silva, Ana Tércia Sanches, André Luis Rodrigues, Antonio Alves de Souza, Antônio Inácio Pereira Junior, Antonio Joaquim da Rocha, Antonio Saboia Barros Junior, Bruno Beneduce Padron, Camilo Fernandes dos Santos, Carlos Miguel Barreto Damarindo, Clarice Torquato Gomes da Silva, Claudio Luis de Souza, Cleuza Rosa da Silva, Daniel Santos Reis, Daniela Santana da Costa, Edison José de Oliveira, Edson Carneiro da Silva, Edvaldo Rodrigues da Silva, Elaine Cutis Gonçalves, Elias Cardoso de Morais, Ernesto Shuji Izumi, Flavio Ferraz Dutra, Flávio Monteiro Moraes, Irinaldo Venancio de Barros, Ivone Maria da Silva, Jackeline Machado, João de Oliveira, João Gomes da Silva, João Paulo da Silva, João Vaccari Neto, José do Egito Sombra, José Osmar Boldo, Jozivaldo da Costa Ximenes, Juarez Aparecido da Silva, Juvandia Moreira Leite, Karina Carla Pinchieri Prenholato, Leandro Barbosa da Silva, Leonardo Martins Pereira, Luiz Carlos Costa, Manoel Elidio Rosa, Marcelo Defani, Marcelo Gonçalves, Marcelo Peixoto de Araujo, Marcelo Pereira de Sá, Marco Antonio dos Santos, Marcos Antonio do Amaral, Marcos Roberto Leal Braga, Maria Cristina Castro, Maria Cristina Corral, Maria do Carmo Ferreira Lellis, Maria Helena Francisco, Maria Selma do Nascimento, Mario Luiz Raia, Marta Soares dos Santos, Mauro Gomes, Neiva Maria Ribeiro dos Santos, Nelson Ezidio Bião da Silva, Nelson Luis da Silva Nascimento, Onísio Paulo Machado, Osmar Rodrigues de Carvalho Junior, Paulo Roberto Salvador, Paulo Rogério Cavalcante Alves, Rafael Vieira de Matos, Raimundo Nonato Dantas de Oliveira, Raquel Kacelnikas, Ricardo Correa dos Santos, Ricardo de Almeida Sartori, Rita de Cassia Berlofa, Rogerio Castro Sampaio, Roseane Vaz Rodrigues, Rubens Blanes Filho, Sandra Regina Vieria da Silva, Tania Teixeira Balbino, Vagner Freitas de Moraes, Valdir Fernandes, Vera Lucia Marchioni, Walcir Previtale Bruno, Washington Batista Farias, William Mendes de Oliveira Diretores honorários: Ana Maria Érnica, José Ricardo Sasseron, Maria da Glória Abdo, Sérgio Francisco da Silva Editores Paulo Donizetti de Souza - MTb 20.198 Vander Fornazieri - MTb 20.301 Impressão Bangraf ☎ (11) 6947-0265 Capa Foto de Olanise/Seppir Tiragem 100 mil exemplares. Distribuição domiciliar gratuita aos associados AGÊNCIA BRASIL Telefones Sede: 3188-5200. Oeste: 3814-2583. Norte: 6979-7720. Leste: 6191-0494. Sul: 5641-6733. Paulista: 3284-7873. Osasco: 3682-3060. Centro: 3188-5295 “PAÍS DE TODAS AS RAÇAS” Ainda falta muito para alcançarmos essa condição erá possível reparar os estragos causados à população negra por séculos de escravidão, humilhações e o mais severo nível de exclusão e pobreza encontrado na pirâmide social brasileira? Por mais complexa que seja essa questão, parece que o Estado brasileiro tenta encará-la. O movimento negro vê essa ações com críticas e reservas, mas boa parte dele reconhece as diferenças, como mostra matéria de capa desta edição. Aliás, o papel dos movimentos sociais é mesmo reivindicar, propor, fiscalizar, cobrar. Do desempenho desse papel dependerá, inclusive, que nação resultará deste Brasil que está sendo passado a limpo. Em tempo de balanços e planos, cabe a todos que sempre lutamos e sonhamos com um mundo melhor dar novos passos em direção ao lugar em que queremos viver. Isso passa pela forma como tratamos o nosso planeta, como usamos nossa água, como dispensamos o nosso lixo, a responsabilidade com que consumimos. A natureza está no limite e tem dado mostras inegáveis do seu cansaço. Precisamos agir com responsabilidade todo dia, e não com responsabilidade virtual à qual se adere por modismo – não é mesmo, senhores banqueiros? O Brasil que queremos, o da apuração e da depuração de todas as sujeiras, não tem espaço para que sobressaiam os que esquecem a ética, que abandonam ideais, que desistem da luta. Que 2006 seja o ano das boas intenções transformadas em ações, em verdade, em vida, sem espaço para que a história ande para trás. A diretoria S [email protected] REVISTA DOS BANCÁRIOS | 3 D E S TA Q U E Depois de intensa mobilização do Sindicato, FetecCUT/SP, CNB-CUT e Afubesp, a direção do Grupo Santander Banespa assumiu compromisso de que não haverá mais demissões em massa na empresa e que dispensas consideradas irregulares seriam revistas. As negociações foram iniciadas depois de atividades de protestos no Casa (unidades 1, 2 e 3) e em agências da região central da cidade. Os bancários mantêm-se em estado de atenção sobre possíveis novas demissões e para que o banco atenda reivindicações específicas. Além das manifestações, as entidades lançaram campanha de denúncias junto à opinião pública em outdoors e rádio. O assunto foi também tema de reunião no Ministério do Trabalho e Emprego. Mundo afora Já no dia 21 de novembro, MAURICIO MORAIS LUTA CONTRA DEMISSÕES NO GRUPO SANTANDER BANESPA Muitas manifestações e negociações rolaram durante o mês de dezembro para evitar as demissões começaram as atividades sindicais da Jornada Internacional de Luta, com objetivo de construir Acordos Marcos, tendo como parâmetro as convenções da Organização Internacional do Trabalho MAURICIO MORAIS Leci: carisma e competência, no samba e na luta contra o preconceito 4 | REVISTA DOS BANCÁRIOS (OIT) e o respeito às legislações e acordos locais. A campanha começou pelo BBVA, que não está mais presente no Brasil, e prosseguiu no dias seguintes no ABN e no HSBC, com atividades realizadas no Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile. No dia 24, foi a vez do Grupo Santander Banespa. Em seguida, o Banco do Brasil. Nas atividades foram distribuídos informativos em inglês, espanhol e português. CONSCIÊNCIA NEGRA A sambista Leci Brandão comandou o show na Quadra do Sindicato que encerrou o mês da Consciência Negra. Ela bateu duro no preconceito: “Hoje as pessoas não podem ser gordas, não podem envelhecer, não podem ser negras. Se estiverem nessas condições enfrentam situações muito mais difíceis”, afirma. Os convites para o show foram trocados por alimentos não perecíveis, depois distribuídos a entidades assistidas pelo Comitê Betinho dos Funcionários do Santander Banespa. O mês de novembro também foi marcado pela Marcha Zumbi+10 Contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida, que reuniu milhares de manifestantes na Esplanada dos Ministérios. de novembro, após longo período de negociações com a federação patronal. A data-base dos financiários é em 1º de junho. A PLR deve ser paga até 14 de janeiro. FINANCIÁRIOS TÊM REAJUSTE DE 7,5% Abono de R$ 650 e PLR de 80% do salário mais R$ 600, além do reajuste, fazem parte do acordo aprovado no dia 7 BANCÁRIO CONQUISTA “JABACULÊ” NO ITAÚ Seria creditada até o último dia 23 de dezembro a suada complementação de Participação nos Lucros e Resultados dos funcionários do Itaú. O “plus” de R$ 850 para todos os funcionários foi resultado da campanha “Queremos nosso Jabaculê de Natal”, que pressionou a direção do banco com manifestações no Centro Empresarial Itaú Conceição (Ceic-Itaú) e no Centro Técnico Operacional (CTO), com direito a jabá com abóbora aos funcionários. No dia 22 de novembro as negociações entre banco, Sindicato, CNB-CUT e Comissão de Empresa foram abertas; a decisão foi anunciada no último dia 19, quando foi fechada esta edição. PARCELA PREVI É REDUZIDA NO BB Os participantes da Previ – fundo de previdência complementar do pessoal do Banco do Brasil – aprovaram no final de novembro a redução da Parcela Previ de R$ 2.200,00 para R$ 1.468,00. Com a decisão, acompanhada do manejo de recursos do Fundo Paridade, melhoram a situação atuarial da Previ e também as futuras complementações de 45 mil bancários hoje da ativa, além de cerca de 20 mil AUGUSTO COELHO DEZ ANOS DE PLR EM CONVENÇÃO COLETIVA A obrigatoriedade de patrões e empregados negociarem a estipulação de PLR surgiu por medida provisória em 1994 e não assegurava participação de sindicatos na conversa. Até hoje existem setores e empresas que não falam sobre o assunto. Os bancários fizeram fazer valer o seu direito independentemente da MP. Com muita mobilização, a conquista da primeira PLR num acordo nacional de trabalho aconteceu na campanha salarial dos bancários de 1995, então com o valor de 72% do salário mais R$ 200. Delegação do Sindicato acompanhou pelo 2º ano a marcha por uma política de valorização do salário mínimo aposentados desde 1997. A redução foi aprovada por 86,79% dos participantes do Plano 1 – aposentados, pensionistas, participantes e contribuintes externos – dos quais 79,75% dos bancários em atividade. Os funcionários do Banco do Brasil ainda estão na batalha por uma nova proposta de custeio da Cassi. E devem recorrer à Justiça caso o banco mantenha a postura de não cumprir a isenção de tarifas, prevista em acordo coletivo – a direção do BB foi notificada disso no último dia 22. POR UM IR MENOR E UM SALÁRIO MÍNIMO MAIOR A 2ª Marcha Nacional em defesa da valorização do salário mínimo e pela correção da tabela do imposto de renda, convocada pelas centrais sindicais, reuniu cerca de 15 mil trabalhadores em Brasília, no dia 29 de novembro. No mesmo dia, lideranças sindicais e ministros da área econômica e social do governo debateram propostas para 2006. Os sindicalistas pediam aumento superior aos R$ 321 previstos no orçamento e correção de 13% na tabela. Na quar- ta, 30, foi criada comissão para discutir uma política de valorização permanente do salário mínimo. Outros dois encontros aconteceram nos dias 15 e 21 de dezembro. Até o fechamento desta edição, não estavam definidos percentuais de correção do salário mínimo e da tabela do IR.“Queremos mais. Não vamos desistir de tornar mais justa a questão tributária. O mínimo deve cumprir sua função social”, avalia o presidente do Sindicato, Luiz Cláudio Marcolino, que participou de todo o processo de negociação. “Nenhuma sensação de constrangimento é comparável ao sentimento de pavor ao ter uma arma apontada para sua cabeça”, essa é uma das muitas manifestações enviadas por bancários ao Sindicato, durante a campanha pelo veto à lei que proibia a utilização de portas com detector de metais nas agências bancárias da cidade. De autoria do vereador Dalton Silvano (PSDB), a lei, aprovada em 23 de novembro pela Câmara de Vereadores, colocava em risco a vida de clientes e funcionários de bancos e deixou o Sindicato em alerta. No dia 15 de dezembro, a entidade entregou documento à Se- cretaria de Governo da Prefeitura, com toda a sustentação jurídica necessária ao veto. O documento foi sugerido pelo próprio secretário de governo, Aloysio Nunes Ferreira Filho, em audiência com o presidente do Sindicato, Luiz Cláudio Marcolino, em 7 de dezembro. O Sindicato apresentou um histórico do movimento realizado pelos bancários na década de 1990 e que resultou na conquista das portas como medida de segurança. O veto do prefeito José Serra, publicado no dia 16 de dezembro, voltou à Câmara, que pode mantê-lo ou derrubá-lo. Não há um prazo determinado para essa apreciação. MAURICIO MORAIS FIM DAS PORTAS DE SEGURANÇA É VETADO Luiz Cláudio em audiência com o secretário de governo, Aloysio Nunes (dir.) REVISTA DOS BANCÁRIOS | 5 BANCOS ÉTICA NO FIM DA FILA Para respeitar os consumidores e ter uma relação ética com bancários e clientes os bancos não precisam sacrificar seus lucros astronômicos. Precisam apenas tornar o seu capitalismo menos selvagem e pôr em prática o discurso da responsabilidade social Por Paulo Donizetti de Souza o último mês de novembro, o Itaú deu um “presente” ao cliente Eraldo Costa, recémmigrado do Banco do Brasil por decisão do prefeito de São Paulo. O servidor público municipal recebeu três cartões, dois deles de crédito, e foi surpreendido com um limite de crédito de 900 reais. “Os cartões eu vou devolver, vindo de banco, nada é de graça. E o limite também não é para o meu bico, pois não ganho nem 1.000 reais por mês”, disse o cliente. A recepcionista Daniela Santos, que trabalha num laboratório clínico, também foi agraciada pelo Bradesco em novembro. Ganhou limite de 600 reais, quase do tamanho do seu salário de 750, e um novo débito em seu extrato, de 22 reais: “tarifa cheque especial”. Os casos de Eraldo e Daniela estão cheios de coincidências. São clientes dos maiores bancos do país. Não têm a conta por livre escolha, mas de seus empregadores. Nada do N 6 | REVISTA DOS BANCÁRIOS que receberam desses bancos foi pedido e têm uma conduta rara entre os brasileiros, o de não querer crédito maior que as pernas, pois sabem que mais tarde ou muito cedo os bancos cobrariam pelos tais “presentes”. A famosa tática “se-colar-colou” consiste em empurrar produtos e, caso o cliente não reclame, manda-se a conta depois. Com o limite de crédito, por exemplo, a conta deixa de ser uma simples conta-salário e passa a desfrutar de um serviço tarifado, como constatou a recepcionista. Outro ponto em comum entre esses personagens: para dispensar os presentes tiveram de perder seu precioso tempo. Daniela telefonou para a agência no dia em que viu o estranho débito: “Eu não quero isso”, chiou. “Então vá à agência e converse com o gerente”, recebeu como resposta. O funcionário público Eraldo também passou aborrecimentos com o Itaú. Depois de ter perdido muito mais que meia hora para migrar sua conta para o banco, voltou a ter dor de cabeça só para dizer ao banco que a tática, para ele, não colou. Assim, além de cometer o mais comum dos desrespeitos ao Código de Defesa do Consumidor, os bancos inauguraram a versão paulistana da Lei das Filas, ou Lei dos 15 minutos, com o mesmo desdém. Questão de tempo Embora a Febraban tenha orientado seus representados a se adequar – os bancos tiveram quatro meses para isso –, para eles a lei é só uma questão de tempo (com o perdão do trocadilho): a tendência é o setor tentar barrar na Justiça a aplicabilidade da lei, como tem conseguido, por meio de liminares, em várias das cidades do país que já haviam estipulado a regra. Enquanto isso, todo banco tem de cumpri-la – sob pena de receber multa de 564 reais a cada autuação, dobrada em caso de reincidência. Nas primeiras semanas da lei, em vigor desde 29 de setembro, em agências de MAURICIO MORAIS Fila para fora da agência. A nova moda dos bancos JAILTON GARCIA ESPERTALHÕES A LEI É PARA TODOS Atividade do Sindicato, em parceria com o Idec, contra a tentativa dos bancos de não obedecer ao Código de Defesa do Consumidor. A ação está em julgamento no STF maior movimento ou visibilidade houve obediência. Mas na maioria, nos bairros e na periferia, não. O supervisor de caixas de uma agência do Bradesco na zona Oeste, Adilson Moreira, afirma que respeitar os 15 minutos é utópico. “Em dias mais críticos não há espera menor que meia hora. E ainda fazemos triagem para, antes de dar a senha ao cliente e contar o tempo, ver se o assunto não pode ser resolvido no auto-atendimento. Abrimos um caixa só para os ‘boys’. Tem boy que sozinho consome os 15 minutos”, relata o bancário, lembrando que os caixas ainda sofrem pressão para convencer as pessoas a aderir ao débito automático, utilizar o auto-atendimento, ter cartão de crédito. “Para piorar, não é raro você estar atendendo e de repente o equipamento travar. Trabalhamos com gambiarras recicladas”, reclama. A contar com o potencial dos bancos em descumprir a lei das filas, a prefeitura faturaria alto com multas. Mas se depender da capacidade de fiscalização, as autuações não farão nem cócegas nos banqueiros. A Secretaria de Coordenação das Subprefeituras, encarregada de fazer a lei pegar, conta com 700 fiscais para toda a cidade, onde existem mais de 2 mil pontos de atendimento. E esse contingente, convocado para um esforço concentrado enquanto a lei está na mídia, é o mesmo que tem de atender a todas as outras irregularidades praticadas contra o município – ambulantes, poluição do ar, sonora e visual, obras irregulares, enfim, coisas nada raras na cidade. Raros, aliás, serão os clientes encorajados a denunciar. Do início de outubro até o último dia 15 de dezembro, segundo a Secretaria, houve apenas 1.152 queixas. No mesmo período, o esforço concentrado de fiscalização conseguiu aplicar 324 multas. A federação dos banqueiros considera que as agências irão se adaptar aos poucos, já que, apesar dos enormes investimentos em tecnologia para manter os clientes longe do caixa, muita gente não abre mão de ter sua conta paga, depósito ou movimentação autenticados por um profissional treinado para isso. Segundo a Febraban, o aumento no número de clientes também dificulta a meta de melhorar o atendimento. Há cinco anos, havia 56 milhões de correntistas; hoje são mais de 75 milhões. De acordo com o Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, esse volume representa uma média de 187 contas por bancário, três vezes mais do que há uma década. O presidente do Sindicato, Luiz Cláudio Marcolino, considera positiva toda a legislação orientada para uma relação mais ciREVISTA DOS BANCÁRIOS | 7 vilizada entre os bancos e a população. “Em vez de os bancos ficarem procurando brechas legais para validar suas atitudes ilegítimas, deveriam mudar sua mentalidade em relação ao público”, afirma. “O número de funcionários na ponta, no atendimento, diminuiu em escala muito maior que a redução da categoria como um todo. A introdução do regime de trabalho em turnos com ampliação do horário para das 9h às 17h acabaria com os transtornos dos clientes, o estresse dos bancários e abriria cerca de 161 mil postos de trabalho. E o que isso representaria em acréscimo na folha de pagamentos em nada abalaria a sólida e crescente lucratividade do setor.” Dados do Banco Central apontam que o período entre janeiro e setembro deste ano já rendeu perto de 20 bilhões de reais 8 | REVISTA DOS BANCÁRIOS em lucros para os bancos, 39% mais que no mesmo período em 2004. Esse resultado vem das taxas de juros praticadas pelo sistema bancário, que cobra em um mês algo igual ou superior à inflação do ano; ou recupera em três meses um ano de taxa Selic. Vem também das receitas com tarifas e serviços, que bateu nos 30 bilhões de reais até setembro – um salto de 22,5% ante o ano passado. Um dos lados perversos desse resultado, além daquele notado no bolso dos clientes, é sentido no dia-adia dos bancários, no ritmo de trabalho a que são submetidos para dar conta das metas que lhes são impostas. Corda no pescoço A bancária Julia Maria Silva, gerente de atendimento do Bradesco Prime, confirma a prática descrita pelos clientes como rotina nas agências, tanto do varejo quanto no Prime. E explica por quê: tem de haver vários produtos por conta – cheque especial, utilização do limite, crédito “automático” pré-aprovado, cartão de crédito. O objetivo é chegar a seis itens – mais seguro e previdência, por exemplo. “O banco cobra pelo limite e, de preferência, ganha também com alguns dias de saldo negativo do cliente, a gente tem que dar a corda para o cliente se enforcar”, conta Julia. Como nem todo cliente reclama, muitas vezes dá certo. O mesmo vale para o envio de cartão de crédito. “Quando o cliente pede alguma coisa, empréstimo por exemplo, é outra oportunidade de exercitar a ‘empurroterapia’, barganhar um seguro ou, como virou febre nes- OS DOIS LADOS DA MESMA FILA Agência do Banco do Brasil em Carapicuiba: clientes FOTOS: PAULO PEPE espremidos, crianças de colo e muita pressão em cima dos bancários te final de ano, um plano de previdência inteligente que gera dedução do IR”, relata. Segundo a gerente, de tempos em tempos o programa de metas é incrementado por campanhas pontuais, como a da previdência neste final de ano, ou a migração de investimentos para operações que interessam circunstancialmente ao banco. “Temos que dizer que tal aplicação é de preferência sem explicar como funcionam as outras.” Guilherme Ferreira, gerente de conta de pessoas físicas do ABN Real, ratifica a estratégia. “A gente tem de ver o cliente como número. Não tem nada de ética ou responsabilidade social.” Segundo ele, fazer com que 100% dos clientes tenham cheque especial, crédito automático, cesta de serviços e cartão de crédito é o mínimo. “Você é obrigado a ser chato.” Sobre a possibilidade de ter postura diferente, ambos consideram impraticável. “Se a cada três campanhas de produto você não atinge os objetivos, está ameaçado, é rua. Então, não tem como humanizar a relação com o cliente, isso não passa de marketing”, revela Guilherme. “Quando chega o final do dia, a gente vai ser sempre questionada: ‘como é, não vendeu por quê?’ Se ficamos longe das metas, nosso emprego fica ameaçado. Se atingimos, fizemos a obrigação. O banco não vai nem querer saber a que custo, se a gente teve de abordar cliente como se fôssemos uns coitados: ‘pelo amor de Deus, faz uma previdência para me ajudar’. Não vai querer saber se tivemos de iludir o velhinho ingênuo a tirar seu dinheirinho da poupança para botar numa previdência”, dispara Julia. “O foco é o produto. O foco é o lucro.” Grita geral Entidades de defesa do consumidor engrossam o coro dos descontentes com a falta de responsabilidade social dos bancos. O setor costuma ocupar lugar de destaque na lista de queixas do Idec, parceiro dos bancários em diversas frentes de batalha por uma nova conduta do sistema financeiro. A mais recente é pelo julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelos bancos pedindo para serem “café-com-leite” diante do Código de Defesa do Consumidor. A ação já tem dois votos contra os bancos no STF, mas o julgamento vem sendo sucessivamente adiado desde 2002. O último adiamento, dia 14 último, empurrou a decisão para fevereiro do ano que vem. Nos bastidores, é sempre notada forte presença dos advogados dos bancos no Supremo. “Não entender a relação de cliente bancário como relação de consumo é um grande retrocesso. Se um banco aluga um imóvel para instalar uma agência o contrato é baseado na lei de inquilinato, não há norma específica. O mesmo vale para cessão de crédito e venda de produtos dos bancos para os consumidores de seus serviços”, defende a advogada do Idec, Maíra Feltrin. A entidade tem promovido diversas campanhas em parceria com o Sindicato para conscientizar a população e mobilizar a sociedade contra os abusos praticados pelos bancos. Na mais recente, em dezembro, mais de duas mil pessoas enviaram mensagens aos ministros do STF pedindo respeito ao Código. Antes, em novembro, a Confederação Nacional dos Bancários (CNB-CUT) promoveu seminário para discutir soluções para o atendimento bancário. Participaram representantes do Banco Central, Ministério do Trabalho, sindicatos, entidades de consumidores e do Instituto Observatório Social. Os banqueiros, convidados, não deram as caras. Para o presidente do Sindicato, Luiz Cláudio Marcolino, os bancos respeitarem relações básicas como os direitos dos consumidores e a lei das filas é ponto de partida para começar a “limpar” sua imagem e a pôr em prática um pouco do discurso de responsabilidade social de que tanto falam. “Numa relação ética não haveria espaço nem para pressões indecentes por metas nem para exploração dos clientes”, acredita. ❚ Nota da Redação: foram empregados alguns nomes fictícios para preservar a identidade de bancários e clientes. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 9 C APA REPARAÇÃO AINDA QUE TARDIA O país tem bom desempenho no combate à discriminação e na promoção da igualdade racial. Mas diante do tamanho da dívida social com a população negra, ainda há muito a ser feito Por Rose Silva 10 | REVISTA DOS BANCÁRIOS líder comunitária Maria Rosalina dos Santos nasceu em Queimada Nova (PI), na comunidade quilombola de Tapuio, onde vivem 138 habitantes, entre eles 46 crianças. Para concluir o ensino fundamental, há duas décadas, ela caminhava 24 quilômetros diariamente. Uma geração depois, pouco mudou na vida cotidiana. As crianças continuam caminhando oito quilômetros para ir à escola, não há energia elétrica, água encanada, saneamento, telefone ou posto de saúde. Em época de chuva a comunidade fica isolada pelos riachos que circundam o local, na seca os moradores devem cavar a A areia ou andar grandes distâncias para obter a água utilizada para lavar roupas. Um dos exemplos mais gritantes da exclusão social brasileira que afeta particularmente a população negra rural. Essa realidade começou a ser enxergada e modificada pelo programa Brasil Quilombola, coordenado pela Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e executado em parceria com 21 ministérios. Criado justamente para melhorar a qualidade de vida das comunidades remanescentes de quilombos, o programa tem investimento de 130 milhões de reais previsto até 2007. Em agosto, o quilombo Tapuio foi contemplado com um projeto citação de 200 pós-graduandos e gestores públicos federais no tema, o financiamento de 23 milhões de reais para pesquisas que enfocam a saúde dos afro-descendentes, o recente lançamento de uma campanha nacional que enfatiza a relação entre o racismo e a vulnerabilidade dos negros à Aids e a concessão de bolsas de iniciação científica do Projeto Afro-Atitude a 550 negros cotistas de universidades públicas. A segunda edição do livro Saúde Brasil: uma Análise da Situação de Saúde, este ano, incluiu pela primeira vez o recorte racial. A publicação explora informações dos sistemas do Sistema Único de Saúde (SUS). Para o gestor e especialista em saúde pública Luiz Antônio Nolasco, a inclusão desses dados em uma publicação oficial é um grande avanço. “A legitimação dessas informações é a base para o Estado assumir que existem diferenças com base na exclusão social e econômica, que geram discriminação e precisam ser sanadas”, afirma. Ações integradas Na educação, um marco foi a aprovação da lei 10.639, em 2003, que obriga o ensino de história afro-brasileira nas escolas. Entre as iniciativas tomadas para garantir que essa lei seja de fato implementada, destaca-se o projeto A Cor da Cultura, que produziu 56 programas sobre cultura afrobrasileira. Os vídeos farão parte de kits educativos que chegarão a 2 mil escolas em 2006, com a capacitação de 4 mil professores, em sete estados brasileiros. O Ministério da Educação desenvolve atualmente quarenta ações voltadas à pro- moção da igualdade racial, destacando-se o programa Universidade para Todos (ProUni), que beneficia 112 mil alunos, dos quais 38 mil são negros. Cerca de 36 mil afro-descendentes receberam financiamento do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior para concessão de crédito a estudantes de cursos superiores não gratuitos, com o estabelecimento do recorte racial. No ensino público, 11 mil negros foram incluídos pelo programa de cotas adotado em dezoito universidades estaduais e federais. A representante do Ministério do Trabalho no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Eunice Lea de Moraes, avalia que houve um grande avanço desse tema com a atuação da Seppir. “A própria criação do Conselho demonstra isso, pois ele não trata apenas das questões negras, mas das várias raças e etnias, indígenas, judeus, árabes, ciganos – uma população que também é discriminada”, afirma. Outro ponto importante para ela é a transversalidade entre os ministérios. “Os programas já existentes na área de igualdade racial e de gênero foram ampliados, e temos hoje vários novos programas no Ministério do Trabalho”, diz. Eunice exemplifica com a área que coordena, de qualificação profissional. De 142,3 mil pessoas inseridas no Plano Nacional de Qualificação, 62% são negros e descendentes de indígenas. Essa proporção de atendimento ocorre também nos Consórcios Sociais da Juventude, que desenvolve ações de qualificação voltadas para encaminhamento de jovens ao primeiro emprego. AGÊNCIA BRASIL INCLUSÃO DIGITAL Matilde Ribeiro acompanha a entrega de computadores na comunidade do Engenho II VALTER CAMPANATO/ABR de desenvolvimento sustentável no valor de R$ 700 mil, em parceria com a Petrobrás, no apoio à atividade de beneficiamento de cerâmica vermelha. Essa é apenas uma das ações desencadeadas no Brasil após a criação da Seppir, há quase três anos. Vinculada à Presidência da República, essa secretaria especial tem a missão de integrar ações, junto aos organismos do governo federal, voltadas à inclusão da população negra. Desde a sua criação, por exemplo, foram implantadas 70 medidas de ações afirmativas dentro do Programa Nacional de Saúde da População Negra. Entre as principais, a capaREVISTA DOS BANCÁRIOS | 11 Identidade quilombola O Programa Brasil Quilombola tem desenvolvido uma série de ações que podem transformar a vida dessas comunidades em todas as regiões do país. Segundo a Seppir, desde 2003 foram instaurados pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário 270 processos de regularização fundiária para os quilombolas – que, como outros trabalhadores rurais, são vítimas de violência no campo por não possuírem a documentação que comprova a posse da terra. Mas não basta regularizar a posse da terra, é preciso enfrentar as carências decorrentes da ausên12 | REVISTA DOS BANCÁRIOS EM BUSCA DA CIDADANIA Crianças negras vivendo na miséria ou à procura de trabalho, como o engraxate abaixo, atestam o longo caminho a trilhar. “O Brasil tem uma dívida social muito grande com a população negra. É preciso avançar nas políticas sociais compensatórias e reparatórias”, alerta Neide Fonseca, do Inspir AGÊNCIA BRASIL O Relator Especial sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Doudou Diène, que visitou o Brasil recentemente a convite da Seppir, comentou em reunião da ONU o engajamento do Brasil no combate ao racismo e à xenofobia: “Em que pese a persistência de resistências fortes a essa mudança histórica, sobretudo por parte do setor privado, há uma verdadeira vontade política para superar o racismo e a discriminação”. Segundo a ministra Matilde Ribeiro, responsável pela Seppir, é necessário tornar esta política cada vez mais viável, assimilada no planejamento, na definição do orçamento e na ação cotidiana das administrações públicas em todo o país. A 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial – realizada este ano – mobilizou 95 mil pessoas em sua fase preparatória e reuniu em Brasília 1.019 delegados dos 26 estados da federação e do Distrito Federal. Pela primeira vez a sociedade civil e os governos municipais, estaduais e federal foram convocados para discutir e encaminhar políticas que combatam desigualdades relacionadas às etnias de origem negra, indígena, cigana, árabe, palestina e judia. Para a ministra, essa atuação só é possível por meio da parceria entre os vários segmentos, ministérios, fundações, instituições governamentais e não governamentais, organismos internacionais. Dentro dessa perspectiva, foram criados o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, de caráter consultivo, composto por vários ministérios e instituições da sociedade civil, e o Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial, que conta atualmente com 400 adesões de estados e municípios e tem a missão de planejar, executar e monitorar políticas públicas voltadas à inclusão social de negros. Os resultados desse trabalho na política pública se traduzem em termos de cooperação, capacitações profissionais e convênios, que beneficiam famílias de comunidades quilombolas e urbanas. cia secular do Estado nessas regiões. Nessa direção a secretaria lista alguns exemplos. Na comunidade do Engenho II, em Goiás, estão sendo investidos 4 milhões de reais em construção de moradias, infra-estrutura, saneamento básico, eletrificação e informatização de escola. Em Garanhuns (PE), foram instaladas pelo governo federal cinco tele-salas para a educação de jovens e adultos nos quilombos Castainho, Estrela, Estiva, Timbó e Kaluete. E também celebrado um consórcio dos municípios do agreste pernambucano para o atendimento de dezenove outras comunidades. Em Campinho da Independência, Parati (RJ), foram investidos recursos em atividades de turismo e artesanato e está em andamento o programa Cultura Viva, que inclui cursos de cestaria, cerâmica, capoeira, confecção de tambores, jongo (dança tradicional) e percussão voltados para geração de trabalho e renda. “As comunidades conseguiram ampliar o diálogo com o poder público e participam da definição das prioridades em suas regiões”, diz o líder comunitário Vagner do Nascimento. Maria Rosalina, do quilombo Tapuio AGÊNCIA BRASIL manejo de mudas, artesanato, piscicultura, criação de búfalo, suinocultura, construção de casa de farinha, fruticultura e outras. Os moradores aprenderam em uma oficina a definir e estruturar seus próprios projetos, patrimônio que permanecerá com eles para o futuro, como destaca Pedro Alencar, da comunidade local. “Não estamos criando nada de estranho e sim resgatando o que já foi feito no passado e estava perdido, trazendo de volta o trabalho que dava resultados e nos desfazendo de outros que eram fantasias, apenas”, diz. A PRESENÇA FAZ A DIFERENÇA VALTER CAMPANATO/ABR Sandra de Sá no quilombo Tapuio (PI): “nos sentimos fortalecidos”, diz a líder comunitária Maria Rosalina (dir.) (PI), recebeu em agosto a visita de integrantes da Seppir acompanhados da cantora Sandra de Sá, com o objetivo de fazer intercâmbio cultural e uma posterior produção artística, dentro do projeto Quilombo Axé, idealizado para difundir a cultura dos quilombolas a partir de incursões de artistas consagrados em várias comunidades do país. “Um dia antes havíamos sido agredidos pela polícia porque reagimos à retirada de água da fonte da comunidade de Sumidouro, que é a única da região. Nos sentimos fortalecidos com a presença destas pessoas, mostra que não estamos sozinhos. Foi um dia de sonho”, relata. Uma parceria com a Eletronorte, no Amapá, possibilitou destinar 2,2 milhões de reais a 24 projetos de desenvolvimento sustentável preparados por mais de uma dezena de comunidades, onde vivem cerca de 15 mil quilombolas. A partir de janeiro, serão incrementadas atividades de Coragem para melhorar Há um reconhecimento por parte de setores do movimento negro quanto aos esforços do governo nesse tema. Mas também há críticas. Entre as principais, que a capacidade de influência dos movimentos sociais nas decisões poderia ser maior. O ritmo do que chamam de “transversalidade” (integração de ações entre os vários órgãos públicos visando a otimizar resultados – uma das finalidades da criação da Seppir) também é menos efetivo do que esperam as entidades. De acordo com Neide Fonseca, presidenta do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial (Inspir), o governo Lula fez mais do que qualquer outro em termos de políticas afirmativas de promoção da igualdade e combate à discriminação. “Mas precisa fazer mais. O Brasil tem uma dívida social muito grande com a população negra. É preciso avançar nas políticas sociais compensatórias e reparatórias até que se criem oportunidades de inclusão e acesso à cidadania para que cada um, numa sociedade mais igual, possa caminhar e se desenvolver de acordo com suas competências e habilidades”. Uma grande oportunidade de consolidar os avanços até agora alcançados, segundo ela, está agora nas mãos do Congresso e depende de empenho do governo: o Estatuto da Igualdade Racial, que passou em primeira votação na Câmara: “Se o Estatuto previr a definição de fundos públicos e autonomia de ação, não precisa de mais nada, será um passo irreversível. Se não, sua aplicação será limitada”, alerta Neide, que é também secretária de Relações Sociais da Confederação Nacional dos Bancários (CNB-CUT). “Um Estatuto da Igualdade Racial, com autonomia orçamentária, pode vir a ser a verdadeira ‘carta de alforria’.” O problema é o futuro do Estatuto, com fundos públicos, que ainda precisa vencer a política “mãofechada” da equipe econômica. ❚ Colaborou Isabel Clavelin REVISTA DOS BANCÁRIOS | 13 E N T R E V I S TA TO M Z É 14 | REVISTA DOS BANCÁRIOS O TROPICALISTA QUE SE REINVENTA Cantor, compositor, tropicalista... Há muitos rótulos aplicados a Tom Zé, mas nenhum deles mostra o criador original que não pode ser classificado em nenhum estilo musical, até porque ele vive mudando em busca de seu caminho, a singularidade Por Frédi Vasconcelos Fotos de Augusto Coelho REVISTA DOS BANCÁRIOS | 15 oucas vezes uma entrevista precisou contar tanto com o acaso para acontecer. Pautado pela Revista dos Bancários para entrevistar o músico baiano, entrei em contato com sua mulher, Neusa, que também é sua empresária. Estava difícil, a agenda carregada de viagens no período em que deveria acontecer a conversa. A opção dada foi enviar as perguntas por e-mail para que ele, “numa madrugada em que fica no computador”, nas palavras dela, pudesse responder. Teria que me conformar com a opção, no lugar de uma entrevista feita com contato pessoal. Aí entrou o acaso. Numa viagem a Brasília a trabalho, na sala de embarque estavam Tom Zé e sua banda, que fariam show à noite na capital e embarcariam no mesmo vôo. Me aproximei e expliquei minha pauta. Ele foi receptivo, mas ainda assim manteve a solução dada por Neusa: mandar por e-mail. Ao entrar no avião, porém, mudou de idéia: “A gente não vai fazer nada mesmo na próxima hora e meia, vamos conversar.” Troquei meu cartão de embarque com um de seus músicos e assim saiu esta entrevista. “Mas estou sem gravador”, ressalvei. “Não tem problema, falo bem devagarinho e você anota tudo”, concordou Tom Zé, baiano que, em 2006, faz 70 anos. Difícil acreditar para quem vê a vontade e a energia com que compõe, enfrenta o palco e discursa sobre qualquer assunto. Veja a seguir os principais trechos dessa conversa permitida pelo acaso. P Quando a cada significado há uma etimologia, quando tudo que dá à palavra valor desaparece, o que adianta dizer alguma coisa ? 16 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Revista dos Bancários – Na atual crise política, os intelectuais foram cobrados por ficarem em silêncio, diferentemente de outros momentos. O que está acontecendo? Tom Zé – Neste ano, o Caderno Mais da Folha de S.Paulo publicou crônicas falando como uma coisa pode se transformar em narrativa... numa cultura secularizada onde não há mais um Deus vingativo. Inicialmente a imprensa não sabe nem noticiar evento. Para os intelectuais, o cataclismo do esfacelamento dos valores tem sido tão radical, que ele fica incapaz de abrir a boca. Quando a cada significado há uma etimologia, quando tudo que dá à palavra valor desaparece, o que adianta dizer alguma coisa? Democracia, por exemplo, o que democracia quer dizer agora? É bom que se cobre, mas a resposta mais intelectual que teve até agora não veio dos intelectuais, veio da facção do PT que saiu para formar o PSOL. RdB – Já que estamos falando de política com um baiano, como é possível a permanência até hoje de coronéis como Antônio Carlos Magalhães posando de moralista junto com seu neto nas CPIs? Tom Zé – A ocasião faz o santo. Quando o grupo representado por José Serra e pelo PSDB queria destruir Magalhães, transformou-o no bode, não deu certo. Ele não era o bode, mas o diabo em pessoa. Ele aceitou esse papel humilde que agora representa como estratégia para canalizar a força na direção dos netos. RdB – Há muitas histórias do tempo em que vo- cê estava no ostracismo, não fazia sucesso. Uma delas é que iria voltar para Irará, a cidade em que nasceu na Bahia, e virar gerente de posto de gasolina, é verdade? Tom Zé – É verdade, o posto está lá até hoje, é do meu sobrinho, Deguinho, outro dia mesmo abasteci o carro lá. Para entender melhor, não tenho estrutura para aceitar um cargo de favor numa secretaria de cultura. Preferia um trabalho igual ao da minha infância. Até a universidade trabalhava no balcão da loja de meu pai. RdB – E como aconteceu a virada, dizem que o David Byrne (ex-Talking Heads) entrou numa loja procurando discos de samba e comprou um LP seu por engano, o Estudando o Samba, que de samba tradicional não tem nada. Onde isso aconteceu? Tom Zé – Foi numa loja do Rio de Janeiro que ele não lembra o nome. Quando voltou para Londres, botava um disco por dia para ouvir. Quando escutou o Estudando o Samba botou para tocar de novo. Anteontem mesmo (em setembro, nota da redação) li numa revista francesa que ele disse que parecia uma banda pós-moderna de Nova York. Aí ele telefonou para o Arto Lindsay (músico brasileiro, compositor e arranjador), que sabia quem eu era. O Matinas Suzuki foi entrevistar o Byrne no apartamento dele, que cheguei a conhecer, e viu num papel em cima da mesa: no Brasil, procurar Tom Zé. O Matinas publicou isso na entrevista e nós lemos. Quando veio para cá, um mês depois, falou no Jornal do Brasil que ia a São Paulo me encontrar. Sem saber o que fazer, ligou para o Matinas, que montou o encontro. RdB – (Neste momento Tom Zé, lembrando que estava falando para a Revista dos Bancários, começa a falar espontaneamente) Tom Zé – Na época do CPC (Centro Popular de Cultura, que funcionava ligado à UNE antes do Golpe de 1964), ia para o Sindicato dos Bancários da Bahia, cantar, fazer teatro, cordel. Nas passeatas, já tinha música para cantar. Em 1962 participei de uma greve lá na Bahia. Me senti tão útil, foi tão impressionante, trabalhando o dia inteiro para manter o sindicato vivo, ficando no plantão na greve. RdB – Voltando à sua carreira internacional, que disco foi lançado primeiro no exterior? Tom Zé – Foi em 1990, o The Best of Tom Zé, que a revista Rolling Stones considerou um dos cem melhores da década. Em 1993, lancei o Ancas da Tradição, em 1997, o Com Defeito de Fabricação. RdB – É desse CD que as gêmeas Isabela e Carolina tiraram a música que usaram na apresentação de nado sincronizado nos Jogos Pan-americanos de Winnipeg, no Canadá, onde ganharam medalha de bronze... Tom Zé – A música é Xique-Xique, e elas foram para lá e nem avisaram, foi uma surpresa. Voltando aos discos, o Jogos de Armar não foi lançado fo- ra por causa de desentendimento entre gravadoras, a Waka Bop (de David Byrne) se desligou e aí a França passou a ser o centro de atração maior. Agora, o Estudando o Pagode a França já lançou e a Waka Bop se interessou e deve lançar. Mas, lembrando, quando os Estados Unidos receberam o The Best, ele entrou na parada da Bill Board e fez o maior sucesso no mundo cult. Aí não pude mais voltar para Irará. RdB – Você lançou neste ano o CD Estudando o Pagode, o que acha que vai acontecer com um fã de pagode que leve por engano o seu CD para casa, ele vai entender alguma coisa? Por que me parece que não tem muito a ver com pagode, como o Estudando o Samba não tinha com o samba mais popular. Tom Zé – Não dá para calcular antes como as pessoas vão entender o Estudando o Pagode, mas é preciso levar em consideração que no Brasil as classes mais pobres não podem ser confundidas com as classes mais estéreis esteticamente. No Estudando o Samba, a situação era semelhante. Em 1974, 1975 (o disco é de 1976), o samba estava denegrido, vilipendiado, posto no ostracismo, recusado, igual ao que acontece com o pagode agora. Pode ser que lá nas classes desprotegidas algum garoto faça uma viração para o pagode e de repente a gente ouça aí algo proteínado, que inverta a Segunda Lei da Termodinâmica, que oficializou a entropia – o enfraquecimento estético do estilo. RdB – Num show a que assisti, você contou a história que nos anos 70 fez sucesso com uma música e foi acusado de plágio, depois, só de sacanagem, pegou trechos de várias outras músicas, fez o plágio e ninguém percebeu. Que música era essa e de quem você pegou as frases? Tom Zé – Era Se o Caso é Chorar. Na letra tinha esses versos: “Hoje quem paga sou eu”, que é de um tango do Nelson Gonçalves; “O Remorso Talvez”, de uma música do Lupicínio; “As estrelas do Céu”, letra do Nelson Gonçalves; “Também refletem na Cama”, inversão de uma letra do Caetano; “de noite na lama”, do Caetano, “no fundo do copo”, Ari Barroso em Risque; “rever os amigos/me acompanha/o meu violão”, Boêmia, de Nelson Gonçalves. A melodia era uma imitação de Antonio Carlos e Jocafi, que já imitavam o Chico Buarque. Mas só o Caetano percebeu. RdB – Você falou do Caetano, mas não houve uma divisão entre os que continuaram fazendo sucesso e os outros que, como você, ficaram um tempo no ostracismo? Tom Zé – Nunca fui tolo para transformar em queixa a morte a que fui submetido na divisão do espólio do Tropicalismo, quando fui enterrado vivo. Isso que é não fazer queixa (risos)! Mas fui um defunto bem procedido, não apareci nem para fazer queixa em sessão espírita. RdB – Mas essa fase passou e você hoje faz muito sucesso com os jovens, como explica isso? Tom Zé – Talvez seja porque quando um estilo musical morre, em vez de me enterrar com ele, aborrecido e queixoso, mergulho no zero e vou aprender de novo. RdB – Muitas de suas músicas parecem crônicas, contam histórias, é isso mesmo? Tom Zé – Comecei a fazer crônicas porque muito cedo, ao tentar fazer a primeira música, descobri que era péssimo músico, cantor e compositor, péssimo tudo. Essas deficiências é que me ajudaram a construir o caminho que percorri, a singularidade. Aliás, me lembrei, e isso é importante numa revista de bancários, que em 1959, trabalhei no Banco Nacional, na Cidade Baixa, em Salvador. RdB – Como é sua relação com a mídia. Ela também esqueceu Tom Zé no período de ostracismo? Tom Zé – Não, sempre fui muito carinhado, não tenho queixa de porra nenhuma. Mas as pessoas não podiam resolver meus problemas, engabelado que estava com meia dúzia de idéias que não estavam prontas. O Estudando o Samba teve boa crítica, mas como ninguém lê, não vende disco. Na época esse disco foi uma coisa ridícula de venda. Agora, a Warner relançou e acabou na hora, no sebo custa uma fortuna. RdB – Você tem várias músicas que falam de São Paulo, como São Paulo Meu Amor, A Briga do edifício Itália contra o Hilton Hotel, Augusta, Angélica, Consolação, entre outras. Por quê? Tom Zé – O Assis Ângelo, que faz o programa, São Paulo Capital Nordeste, na Rádio Capital diz que eu sou o compositor que mais tem músicas sobre a cidade, não sei se é... Mas faço música com o que está em volta, e isso mostra minha incapacidade para lidar com temas contemplativos. E a música para mim é como um apostolado, um vício. Sou aquilo que se chama de workaholic, se parar de trabalhar eu morro. RdB – Mas você trabalha ainda como jardineiro do seu prédio? Tom Zé – É, e eles até subiram meu salário de jardineiro para dois mínimos por causa do diploma universitário. RdB – Dá para ver na viagem que você tem uma boa relação com a banda... Tom Zé – Essa banda são os meus herdeiros, minha família, meus amigos, as viagens são uma alegria, são pessoas ótimas, é uma felicidade viajar com eles. Mas só dá para ter essa convivência nas viagens (faz questão de dizer o nome de todos). Até pensei em um dia morar todo mundo junto no mesmo prédio. Pensei também em chamar todo mundo para fazer uns almoços lá em casa, mas ainda não deu certo. RdB – Isso foi quando? Tom Zé – Faz uns cinco anos. ❚ A música para mim é como um apostolado, um vício. Sou aquilo que se chama de workaholic, se parar de trabalhar eu morro REVISTA DOS BANCÁRIOS | 17 ECOLOGIA ANO DE FÚRIA SOBRE A TERRA Enquanto sobreviventes do tsunami reconstroem suas vidas em meio ao desemprego e ao cenário de guerra, o planeta continua enviando recados aos mortais quanto ao mau uso de seus recursos e o desrespeito aos seus limites naturais Por Moacir Assunção os poucos, um ano depois da tragédia do tsunami – que atingiu treze países asiáticos e pode ter matado mais de 220 mil pessoas em dez deles – a população vai lutando para retomar sua vida. Ainda há, é claro, muitas marcas da onda gigantesca com a incrível velocidade de 800 quilômetros por hora que, de repente, por causa de um abalo submarino de 9,1 graus na costa de Sumatra, surgiu em frente a turistas, pescadores e moradores de países como Indonésia, Tailândia, Sri Lanka e Paquistão, arrastando tudo o que havia pela frente. Em uma praia na costa ocidental sul da Tailândia, uma lancha da polícia costeira daquele país permanece plantada na areia, – segundo relato do jornalista Francis Deron, A 18 | REVISTA DOS BANCÁRIOS do jornal francês Le Monde –, como um “monumento” a lembrar o dia 26 de dezembro do ano passado quando morreram 135 turistas estrangeiros e 54 empregados tailandeses que inauguravam uma nova estação balneária. Ao todo, o tsunami deixou 5.400 mortos identificados, metade deles visitantes, e 2.800 desaparecidos no país oriental, famoso pelas praias paradisíacas. Foram instalados grandes postos dotados de alto-falantes em 16 pontos de alto risco da orla. A maior preocupação local é o desemprego. “Para este mês de dezembro, temos um faturamento previsto inferior em 30% ao do ano passado. Para este Natal também. Mas a partir de 28 de dezembro e para o Ano Novo, nos dias que se seguirão ao ‘aniversário’ estamos lotados... de reservas”, diz Rudolf Borgesius, o patrão holandês do Le Méridien, um dos hotéis chiques da praia de Patong. De acordo com a cônsul da Tailândia em São Paulo, Thassanee Wanick, a tragédia ao menos fez com que os tailandeses percebessem a importância da sustentabilidade nas construções. “A reconstrução está andando devagar, mas sempre. No começo, pensávamos que os recursos internacionais deveriam ir para países mais atingidos como Indonésia e Sri Lanka, mas percebemos que precisávamos, também, de toda ajuda possível”, conta. Segundo ela, a Tailândia, assim como o Brasil, é um país que não registra desastres naturais como erupção de vulcões e ciclones. Thassanee, que dirige uma organização não-governamental voltada à proteção de ambientes naturais, diz que as praias da Tailândia es- ARKO DATTA/REUTERS (FOTO VENCEDORA DO WORLD PRESS PHOTO 2004) MORTE, DESTRUIÇÃO E LÁGRIMAS KIMIMASA MAYAMA/REUTERS Mulher indiana chora a morte de um parente pelo tsunami. Abaixo o que restou da cidade de Banda Aceh, na ilha de Sumatra, Indonésia, após a passagem da onda gigante tão mais bonitas do que antes do tsunami. A melhor forma de ajudar, avisa, é aproveitar para conhecer o país. Assim como na Tailândia, a Indonésia também tenta se recuperar. O cônsul honorário do país em São Paulo, Paulo Camiz da Fonseca, afirma que a maior aposta dos indonésios para reconstruir suas vidas é a solidariedade. “A Indonésia já tem a tradição do cooperativismo e da ajuda mútua. O país está sendo refeito pela própria população”, conta. O Brasil mandou 770 toneladas de alimentos e 220 de remédios ao país. A região de Aceh, ao norte de Sumatra, foi a mais atingida pelo tsunami. Na área foram instaladas, em parceria com o governo alemão, bóias especiais de 7 metros de altura que dão alerta via satélite se houver sinais de terremotos no mar. Está preREVISTA DOS BANCÁRIOS | 19 vista a instalação de um sistema de sirenes. Segundo Reinhold Olig, cientista do Ministério de Educação e Pesquisa da Alemanha, acertar na instalação e operação do sistema na Indonésia é crucial. “Esta é a área mais perigosa do Oceano Índico. Então, este projeto que estamos realizando com nossos amigos indonésios tem um papel chave para a segurança das pessoas na região. Esta é a nossa linha de frente.” Todos concordam que a falha geológica na região de Sumatra ainda é instável e pode ocorrer outro terremoto na área. Viver do quê Outro “monumento” à tragédia erguido na ilha tailandesa de Phuket, é descrito pelo repórter do Le Monde: “Um ‘templo’ dotado de tetos pontudos e afiados, projetado no estilo tailandês, com a sua estrutura complexa de múltiplos pavilhões, ergue-se frente ao mar dos Andaman. Ele transmite primeiro a impressão de ter sido assolado por alguma guerra local e então abandonado. Contudo, não se trata de um templo. É o que restou do hotel Sofitel-Khao Lak, que acabava de ser inaugurado, três meses antes do desastre, nesta praia de sonho”. Na Tailândia, narra o jornalista, o tsunami também “criou” milhares de sobreviventes, e a sua condição não é nem um pouco invejável, apesar do esforço sem precedente de solidariedade internacional que se seguiu à catástrofe. A região de Khao Lak passou a abrigar vilarejos dotados de casinhas idênticas, e cujo batismo foi feito de maneira inovadora: cada aldeia leva o nome do principal doador, enquanto as pessoas já começaram a ser chamadas e a se reconhecer por esse nome – iTV, canal de televisão tailandês, os Thai Farmers Bank, os Mercy Foundation, os World Vision, os Samsung... Do lado do governo, a ajuda foi precária. Apenas eletricidade e água (não potável) voltaram a ser fornecidas. Os terrenos foram novamente viabilizados, só que de maneira incompleta. Relata Francis Deron que a ajuda internacional aos sobreviventes não cicatriza as chagas e que o maior problema é o desemprego. Um antigo presidente do Rotary International, o ex-vice-primeiro-ministro tailandês Bhichai Rattakul, ouviu reclamações sem rodeios sobre a questão, quando estava inaugurando uma das aldeias do clube. “É uma bonita casa, mas, daqui para frente, iremos viver do quê?”, indagou um dos novos habitantes da aldeia. A Terra grita Tsunami e terremotos. Tufões, nevascas, ciclones, furacões no Caribe e Golfo do México. Vendavais no Sul do Brasil e seca na 20 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Amazônia, a região mais bem servida de água do mundo. Derretimento das calotas polares e furacão Katrina, nos Estados Unidos. O que está acontecendo, afinal, com a Terra? Praticamente não passa uma semana sem que os habitantes deste frágil planeta tenham notícia de algum fenômeno climático extremo, nome pelo qual os cientistas e ambientalistas designam as mais intensas (e danosas) manifestações da natureza. Os anos de 2004, quando houve o tsunami na Ásia, e 2005, marcado pelo furacão Katrina que afogou Nova Orleans, certamente ficarão na história, mas há na comunidade científica e entre os defensores da natureza muitas dúvidas sobre o que ainda pode ocorrer em um futuro próximo. A questão é saber se essas manifestações temíveis são eventos normais que já ocorreram em outras épocas da história da humanidade ou se as mais catastróficas previsões, de que nos aproximamos perigosamente ou até já ultrapassamos os limites de esgotamento de todos os recursos naturais – principalmente ar e água – com a conseqüente extinção da raça humana, estão se cumprindo. “A seca na Amazônia deve ser entendida como um aviso para pararmos de desmatar e de poluir o ar e as águas”, alerta o especialista em águas subterrâneas do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEAUSP), Aldo Rebouças. Somente nas últimas semanas de novembro a água voltou a cobrir, por conta das chuvas de verão, as áreas ressequidas. Mais cauteloso, o pesquisador Carlos Nobre, do centro de pesquisas climáticas ligado ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), concorda que há muitos eventos extremos ocorrendo ao mesmo tempo, mas prefere esperar um pouco mais para opinar. “Estamos na situação de alguém que atravessou uma porteira, viu um pequeno declive e não sabe o que pode vir pela frente, se a continuação da descida ou o despenhadeiro”, compara. Segundo Nobre, entretanto, muitos cientistas, entre os quais ele próprio, acreditam que os tais fenômenos extremos tendem a se tornar cada vez mais freqüentes. “Podemos estar vivendo a era das mudanças climáticas, em que o planeta se tornará mais quente”, justifica. Não é à toa a A “Floresta Chuvosa”, como é conhecida a Amazônia no exterior, experimentou sua maior seca em 2004. Já o sul dos EUA foi alagado e devastado pelo Katrina Aquecimento global Em um ponto, pelo menos, ambientalistas e cientistas concordam: a temperatura da Terra tem aumentado gradativamente. Chegou a ficar cerca de 1,5 grau Celsius mais quente nos últimos 100 anos, o que ajudou a produzir alguns dos efeitos mais curiosos e preocupantes: o derretimento de gelo em áreas de neves eternas como os picos de montanhas e problemas na produção de alimentos, principalmente nos países pobres. Para complicar um pouco mais, os Estados Unidos de George W. Bush, o maior RICK WILKING/REUTERS A FALTA E O EXCESSO FLÁVYA MUTRAN/FOLHA IMAGEM constatação. O Ártico perdeu 20% de sua cobertura de gelo desde 1979 e a Amazônia foi desfalcada em 700 mil quilômetros quadrados de árvores. O coordenador da organização ambientalista Vitae Civilis, Rubens Born, tem uma visão pessimista. “Estamos em uma situação extremamente crítica. Mesmo que, por um milagre, parássemos de poluir a atmosfera com gases venenosos, o planeta continuaria se aquecendo porque essas substâncias se acumulam”. Born, que participou do encontro de Montreal (CoP 11), no Canadá, uma grande discussão sobre o aquecimento global que ocorreu entre 28 de novembro e 9 de dezembro, diz que alguns impactos na natureza por conta da excessiva queima de combustíveis fósseis (petróleo e carvão, além do gás CFC, usado na fabricação de geladeiras) são irreversíveis. poluidor do planeta, se recusam, de todas as formas, a aderir ao Protocolo de Kyoto, programa internacional que prevê a redução – por parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento – das emissões de gases estimuladores do efeito, discutido em Montreal. O negociador americano Harlan Watson chegou a sair da sala durante uma discussão sobre a proposta do país-sede de estabelecer a data de 2012 para fazer valer as ações contra o efeito estufa. O governo americano alega que prejudicará o desenvolvimento do país se aceitar limites às emissões de poluentes. O expresidente Bill Clinton criticou a atual administração de seu país por se negar a aderir ao acordo. A ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, fez coro. “Preocupa-me a forma como alguns países têm tratado a questão, com base em seus interesses imediatos, de ordem puramente econômica”, reclamou. Ao menos sobrou um dado positivo. Estados do EUA têm feito acordos diretamente com governos estrangeiros. A Califórnia, por exemplo, governada pelo exator Arnold Schwaznegger, fez um acordo independente com o estado de São Paulo para trocar tecnologia de combate à poluição urbana e ao efeito estufa. O Brasil defende a adoção de incentivos da comunidade internacional aos países que conseguirem defender suas florestas. Neste ano, segundo o Ministério do Meio Ambiente, houve uma redução de 31% nos índices de desmatamento na Amazônia. Por outro lado, como muitos desastres climáticos ocorreram nos EUA, Nobre acredita que a parcela da opinião pública que ainda concorda com Bush vai mudar de opinião. “Hoje, seguramente, há muitos mais americanos que acreditam nas conseqüências do efeito estufa do que há alguns meses”, afirma. O fato é que se a humanidade quiser sobreviver terá que mudar seus paradigmas e estilo de vida. Isso inclui usar tecnologias menos poluentes e limpas, diminuir o uso de combustíveis fósseis e reciclar tudo o que for possível. É importante, também, reduzir o desperdício de água. Dono de mais de 12% de toda a água disponível no planeta, o Brasil ainda é campeão de desperdício do mais importante insumo à vida. “Podemos trocar caixas de descarga, que gastam até 20 litros de água pelas modernas que usam seis litros para o mesmo serviço”, diz Rebouças. O tempo pode ser curto, se não se tomarem medidas. “Acredito que as chances de nossa civilização sobreviver até o fim do século não passam de 50%”, avisa o cientista da Universidade de Cambridge, Martin Rees, em seu livro Hora Final. ❚ REVISTA DOS BANCÁRIOS | 21 PERFIL OS DIAS SEGUINTES A bancária Kátia Ito conta como recuperou memória, movimentos, parte da visão e força para enfrentar os desafios. Diz que a sua história não acaba ao final de seu livro, pois todos os dias tem novos limites a superar. Como? Brincando de viver Por Marcelo Santos la olhava no espelho e não se reconhecia. Era uma sensação de imenso vazio; o seu reflexo não representava nada, apenas uma imagem sem legenda que não conseguia decifrar. Foi assim que Kátia Yuriko Ito, de 41 anos, foi apresentada a si mesma, quando encarou o espelho de sua casa no ano de 1983, logo após retornar da Alemanha, onde foi submetida a uma cirurgia no cérebro. “Não sabia quem eu era. Não entendia porque minha cabeça havia sido raspada e o motivo de estar deitada sobre uma maca, sem movimentos”, relembra. Como quem buscasse peças para completar um grande quebra-cabeça, a imagem refletida não se assemelhava em nada às histórias contadas por amigos e parentes que faziam menção a uma garota de 19 anos e cheia de vida. Uma estudante de medicina que quis viver de forma independente, tocava piano, falava inglês, um pouco de japonês e alemão. A Kátia do espelho estava com a cabeça raspada, envolta em ataduras. Não conseguia ler, escrever nem mesmo falar. Vivia deitada e, mesmo cercada por muitas pessoas, estava imersa num mundo sombrio, aprisionada a um corpo que não respondia às ordens de seus pensamentos. O mergulho de um mundo para outro aconteceu num verão de 1983, enquanto nadava na piscina de um clube. Era janeiro e ela acabara de concluir o primeiro ano de Medicina, na Universidade Estadual de Londrina. Havia retornado para São Paulo, onde pretendia passar as férias com a família e o namorado. “Eu cheguei até a borda da piscina e me senti muito cansada. Pedi ajuda e desmaiei”, conta. Foram dez dias de coma e, quando retornou, os médicos aconselharam a família a se preparar para o pior. O diagnóstico apontava o surgimento de um angioma cerebral, uma espécie de má-formação nos vasos sanguíneos e que desencadeou em um sangramento no cérebro, semelhante a um derrame. A súbita doença não lhe dava nenhuma expectativa de vida, mas seus pais não de- E “A vida nos oferece coisas boas e ruins, eu prefiro olhar para as coisas boas” 22 | REVISTA DOS BANCÁRIOS sistiram e resolveram procurar a ajuda de um especialista na Alemanha, um médico brasileiro chamado Mario Brock. Ele lecionava na Universidade Livre de Berlim e era considerado uma das principais referências médicas em neurocirurgias no mundo. Donos de uma barraca de peixes na feira, os pais de Kátia sofreram para conseguir custear a viagem para a Europa. Venderam um imóvel, rifaram um carro e tomaram empréstimos com familiares. O esforço foi recompensado e a operação salvou a vida da filha. Mas era apenas o começo. Ficaram como seqüelas a amnésia, a perda da capacidade de falar, de andar – já que o lado direito do seu corpo ficou paralisado – e ainda sofria de diplopia, o efeito na visão que duplica as imagens que os olhos tentam focalizar. “Eu ficava muito angustiada, pois não conseguia entender o que as pessoas diziam, da mesma forma que não me entendiam. Era dependente para tudo. Estava em estado vegetativo”, lembra Kátia. Brincar de Viver A angústia quase a levou ao suicídio, mas durante as sessões de fisioterapia descobriu que toda aquela situação não seria um ponto final em sua vida. “Todos os dias, durante a fisioterapia, tocava a música da Bethânia, Brincar de Viver. Eu sempre me emocionava muito”, comenta. A canção-convite da cantora baiana foi aceita pela estudante de medicina. Quase um ano e meio após a primeira sessão de fisioterapia ela conseguia falar, o diplopismo havia regredido, já podia ler e começava a dar os primeiros passos sozinha. Decidiu voltar a estudar, optou por se preparar para cursar Fonoaudiologia e, apesar de sofrer com distúrbios de memória, o que fazia com que esquecesse um texto que acabara de ler minutos antes, Kátia foi aprovada no vestibular da PUC de São Paulo. Parecia viver por música. Retomou os estudos de inglês, japonês e alemão e, como quem quisesse “tomar o mundo todo como se fosse uma garrafa de Outra vez O ano havia sido de muitas conquistas e o calor de um domingo de novembro levou Kátia outra vez ao clube onde o primeiro sangramento cerebral havia ocorrido. Agora com 33 anos de idade, ela olhou para o local onde esteve treze anos antes e preferiu não entrar. Procurou outra piscina que ficava ao lado e mergulhou. “Quando cheguei na borda e olhei para o relógio vi que a imagem estava duplicada e comecei sentir meu lado direito ficar todo paralisado novamente”. Numa terrível coincidência, ela reviveu o mesmo drama de um angioma. Outra vez teve um sangramento e outra vez teve que voltar para a Alemanha às pressas para ser novamente operada. Os prejuízos desta vez foram menores, e Kátia demorou cerca de cinco meses para voltar às atividades que tinha antes. Por conta do novo susto, decidiu contar sua história num livro, Do Outro Lado do Sol, publicado em 2002, pela editora O Nome da Rosa. “Creio que tenho uma missão. Muitas pessoas desanimam diante das dificuldades e, através do livro, posso ajudá-las a viver um pouco melhor”, analisa. No mesmo ano em que publicou seu livro ela ingressou como assessora de câmbio da área internacional do banco Itaú, por intermédio de um programa de contratação de pessoas deficientes – que aliás, por força de lei, toda média e grande empresa deveria ter. São noventa minutos do trabalho até em casa dentro de um ônibus. Mas ela não reclama. Kátia é uma pessoa de sorriso fácil, entusiasmada com os desafios que enfrenta. “A vida nos oferece coisas boas e ruins, eu prefiro olhar para as coisas boas.” Ela fica feliz quando alguém diz ter lido seu livro e se identificado com sua história. Sente-se bem em poder ajudar alguém, apesar de que, para isso, pa- gue um preço alto demais. “Quem lê o meu livro pensa que eu apenas atravessei uma fase difícil. Na realidade, minha história não acaba com o final do livro, eu vou ter que conviver com as limitações para o resto da vida”, diz, enxugando as lágrimas. Ela sabe que a vida nunca será fácil, mas não se resigna. Nem jamais abre mão de brincar de viver. ❚ “Minha história não acaba com o final do livro, eu vou ter que conviver com as limitações para o resto da vida” PAULO PEPE refrigerante”, resolveu se politizar. Afiliou-se a uma organização internacional de jovens profissionais e empreendedores, a Junior Chamber Internacional. Por conta disso, viajou para Porto Rico e para os Estados Unidos, representando o Brasil na Organização das Nações Unidas e chegou a presidir a entidade em São Paulo. Arrumou outros trabalhos, juntou dinheiro e viajou pela Europa. Conheceu Holanda, Dinamarca, França, Inglaterra e retornou para a Alemanha, para rever o palco de seu renascimento. Algumas limitações nunca a abandonaram. Kátia permanecia com o corpo parcialmente paralisado, com dificuldade para falar e sem enxergar do lado direito dos olhos, o que não lhe permitia dirigir. Devido à deficiência visual, quase foi atropelada diversas vezes. Mesmo assim, matriculou-se para cursar a pós-graduação em Administração com especialização em Comércio Exterior na Universidade Mackenzie e concluiu seu mestrado em 1996. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 23 HISTÓRIA 1968 REVISITADO Filhos de imigrantes convidados a construir o desenvolvimento econômico e a levar a vida nos guetos de pobreza desafiam a França de hoje e, como os rebeldes dos anos 60, gritam contra o sistema: liberdade, igualdade e fraternidade para quem? Por Ana Lúcia Santana m 1968, na França como ao redor do planeta, manifestantes liderados por intelectuais da esquerda fizeram valer valores culturais divergentes do establishment. Eles não queriam ser assimilados pelo sistema, nem integrados a um universo padronizado, como o dos tempos atuais, forjados pela globalização. Pode-se dizer que esse também é um de- E 24 | REVISTA DOS BANCÁRIOS sejo dos atuais rebeldes e de todos os imigrantes que habitam o Velho Mundo. Governos de países como França, Holanda, Inglaterra e Bélgica têm elaborado políticas de integração lenta e gradual desses imigrantes, mas interessados menos em preservar e respeitar seus valores do que em anulá-los e enquadrá-los nos padrões culturais vigentes na Europa branca e civilizada. Sacrifica-se a diversidade cultural, a diferença, a multiplicidade em prol da sobrevivência do lema da Revolução Francesa. Afinal, “liberdade, igualdade e fraternidade” para quem? Para o chamado “Poder Branco” ou para os filhos e netos de imigrantes, convidados a construir o desenvolvimento econômico e a levar a vida nos guetos de pobreza? Os movimentos recentes da França, que também ameaçam estender-se para Bélgica, Holanda, Alemanha, tiveram início no subúrbio de Clichy-sous-Bois. Desocupados, ociosos, impedidos de cultivar suas crenças e tradições, sem acesso ao Estado, sem representantes no Parlamento, sem chances de prosseguir nos estudos, para esses filhos e netos de imigrantes foi um pulo buscar proteção na formação de gangues, nos conflitos de ruas com outros grupos – em rituais de auto-afirmação de suas identidades. Em um desses confrontos, ocorrido em 27 de outubro, dois adolescentes muçulmanos fugiam da polícia, dos interrogatórios constantes a que os imigrantes são submetidos, e acabaram eletrocutados em um transformador de energia. Foi o estopim para a onda de incêndios e repressões que duraria semanas. Antecedentes O que mudou desde maio de 68? O que queriam aqueles rebeldes e o que querem os do universo moderno forjado na Europa? A questão do saber sempre foi essencial para os estudantes franceses. As garantias da soberania, da cidadania e dos direitos estão na consciência que se tem deles, perpetuada através da história cultural e da educação. Uma vez preterida a formação de intelectuais disseminadores desta reflexão histórica, dando-se lugar à formação de tecnocratas, esses valores são ameaçados. Em maio de 1968, as universidades corriam o risco de superlotação e de se desviar da sua ênfase humanista. O presidente Charles de Gaule havia posto fim ao regime partidário, a pretexto de buscar solução para a crise instalada desde a desocupação nazista, em 1945, e agravada pela Guerra da Argélia. O autoritarismo e a crise político-social se acentuam. Parte da esquerda, oportunamente, troca ideais e utopias revolucionárias por pretensões eleitorais e sofre deserções em seus quadros. Floresce uma nova esquerda. O quadro é de desgaste dos partidos tradicionais e de repulsa à política “oficial”. Recusa-se o Parlamento, a esquerda ortodoxa, o stalinismo, os profissionais da contestação, os sindicatos aparelhados pelo Partido Comunista – tudo que apresentasse vínculo com os velhos canais de política. O cenário era de salários baixos, 600 mil jovens estão à procura do primeiro emprego, disparidades entre Paris e o interior, entre o salário do homem e o da mulher, semana de 48 horas, proliferação de favelas, falta de infra-estrutura. O contexto atual dos novos rebeldes franceses e suas preocupações são outros. Eles têm em suas mãos não o saber acadêmico, mas o conhecimento de suas tradições culturais, de seus valores, dos laços que os unem às suas comunidades, o que leva ao fracasso toda tentativa do governo francês de criar uma sociedade supostamente laica, pressupondo Estado e Igreja rigidamente separados. O Islã confere a esses grupos identidade, legitimidade, marca claramente sua diferença dos franceses, que se tornam “o outro”. O povo francês foi surpreendido pelo aparecimento repentino de uma corrente que flui nos subterrâneos dos bairros pobres habitados por imigrantes, uma espécie de grupo muçulmano de manutenção da lei e da ordem, um poder paralelo. Talvez o germe de uma zona independente, com leis próprias, independente do Estado. Não era esse o sonho de estudantes e trabalhadores em 68? Um poder à margem de governos, sindicatos, partidos políticos? E também eles não buscavam FALANDO ALTO Encurralados nos guetos, os franceses filhos de imigrantes despertam medo na Europa REVISTA DOS BANCÁRIOS | THOMAS COEX/GETTY IMAGES A REVOLTA MORA AO LADO Para quem acreditou no sonho de bem-estar do primeiro mundo, acordar embaixo de uma ponte do Rio Sena, em pleno centro de Paris, foi um tombo ERIC FEFERBERG/GETTY IMAGES As chamas se multiplicaram, atingindo na 16ª noite de conflitos o índice de 502 veículos incendiados e 206 detenções. O presidente Jacques Chirac e o primeiro-ministro Dominique de Villepin oscilaram do silêncio dos cinco primeiros dias – apostando no desgaste do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, postulante à presidência da França – ao endurecimento do toque de recolher e da proibição de reuniões nos finais de semana. Os manifestantes, ao contrário do maio de 68, não são estudantes e trabalhadores franceses natos, mas filhos de imigrantes da África do Norte e Subsaariana, marginalizados, obrigados a contentar-se com os restos de uma civilização rica e desenvolvida. 25 REG LANCASTER/GETTY IMAGES REBELDES COM CAUSA Em maio de 1968 os estudantes franceses incendiaram Paris com barricadas, carros tombados e pedradas em policiais sua própria identidade? Estão presentes novamente os coquetéismolotov, os atiradores de pedras e um certo fanatismo, mas os rebeldes atuais não têm seus alvos definidos. Podem se voltar contra o Estado, contra suas instituições culturais, como também contra outras comunidades de imigrantes. Um fator comum a essas manifestações, incluindo as de 1968, é o nível de ocupação. Sempre que o subemprego ou o desemprego em massa assustam os jovens, corroem seus sonhos e roubam suas perspectivas, à primeira fagulha o incêndio se alastra. Resta, também, a exclusão dos círculos sociais: pesquisa recente revela que 95% dos britânicos brancos têm apenas amigos brancos e que 37% dos imigrantes também preferem amizades em sua própria comunidade. Dimensão cultural Os loucos anos 60 contagiaram o mundo com uma explosão cultural pouco experimentada em outras décadas. Época da contracultura, do movimento hippie, da ascensão do rock, das “viagens” de LSD, da rebeldia e do amor “livre”. Em meio a um 26 | REVISTA DOS BANCÁRIOS movimento que se desenrolou principalmente nas ruas da França de 1968, a arte, a poesia, a cultura ocuparam o espaço público e se apropriaram da cidade. Os estudantes falavam em revolução cultural. Novos jornais são lançados, revistas, slogans (“somos todos judeus-alemães”), grafites, espetáculos teatrais “selvagens”. O surrealismo quer alcançar uma nova declaração dos direitos do homem. A arte pela arte, dizia Breton, é tão tola quanto a revolução pela revolução – aquele que fala de revolução sem mudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver. O álbum lançado pelos Beatles onze meses antes das barricadas, Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band, é uma espécie de caleidoscópio psicodélico dos anos 60 – cultua as drogas (Lucy in the sky with Diamonds) e faz incursões pela Índia (Within you Without you). O mercado, voraz, percebe a lucratividade dos produtos rebeldes e cria um marketing da rebeldia. Há reação. No despontar de 68, Jean-Luc Godard passa a fazer filmes sobre e para a classe operária. O Festival de Cannes é encerrado na marra antes do tempo, com Godard dependurado em sua principal cortina. O movimento que agitava as telas européias na época era a Nouvelle Vague. Seus mais conhecidos representantes seriam Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Agnes Varda, Claude Chabrol, Louis Malle e Jacques Rivette. Os rebelados de novembro de 2005 não construíram as mesmas Barricadas do Desejo que os de 1968 nem teceram a mesma dimensão cultural, mas disseminam a sua influência por toda a Europa, a ponto de alguns americanos começarem a chamá-la de “Eurábia”. Um entre dez cidadãos holandeses nasceu no exterior. Na França, estima-se a presença de mais de 5 milhões de muçulmanos. A revista Time registra o surgimento de uma “Geração Jihad” se formando no continente. Pode ser que a história ande mesmo em círculos, que a era do egoísmo yuppie seja sucedida por uma nova avalanche de jovens idealistas tentando mudar este mundo globalizado – avesso à diversidade –, por outro mais justo, onde prevaleça a multiplicidade cultural, a aceitação do “outro”. Quem sabe algumas das experiências adquiridas no turbilhão de idéias e práticas do Maio Francês sejam recicláveis. ❚ INTELECTUAL ENGAJADO Sartre escreveu livros, ensaios e tratados filosóficos. Fundou uma revista (Le Temps Modernes), um jornal (Liberátion), fez discursos inflamados ao longo de seus 74 anos de vida e influenciou gerações Por Luciana Bento ão foi somente a teoria que marcou a existência do filósofo, dramaturgo e escritor francês Jean-Paul Sartre, cujo centenário de nascimento e 25 anos da morte foram lembrados neste 2005. Para ele, era inadmissível que um intelectual não colocasse em prática, na vida cotidiana, as idéias que pregava. Foi um militante radical, colecionou admiradores e desafetos. Afastou-se de amigos por causa de suas posições políticas. Não por acaso, Sartre esteve na linha de frente das manifestações de maio de 1968, quando milhares de estudantes secundaristas e universitários deixaram, literalmente, Paris em chamas ao enfrentar o governo do general Charles de Gaulle – numa revolta que se tornou símbolo de toda uma geração inconformada com os valores capitalistas e burgueses. Na época, Sartre estava com 62 anos e já havia escrito todas as suas obras fundamentais: A Náusea (1938), O Ser e o Nada (1943) e O Existencialismo é um Humanismo (1946). O que não impediu que seus escritos influenciassem, juntamente com os do filósofo alemão Herbert Marcuse, os agitados líderes de 1968. “Não apenas as manifestações dos estudantes em Paris, mas os jovens que protestavam contra a ditadura no Brasil, o Festival de Woodstock, os movimentos ecológicos, feministas e pacifistas tiveram influência da obra de Sartre, do existencialismo”, diz o professor da PUC-SP Fernando José de Almeida, autor do livro É proibido proibir – Sartre. Para Almeida, o grande mérito do filósofo foi propagar a idéia de que o ser humano não tem originalmente uma essência, mas tem de buscá-la: “Da existência temos que achar nossa essência. Você tem que ser feliz apesar dos J. CUINIERES/GETTY IMAGES N outros e não pôr a culpa em ninguém”. Apesar de sua simbólica participação nos movimentos de maio de 68, o engajamento político de Sartre vinha de muito antes. Já a partir da década de 40, o filósofo não se furtou de tomar partido em situações polêmicas, como a resistência ao nazismo, à Guerra Fria, ao colonialismo – notadamente a ocupação francesa da Argélia –, à Guerra do Vietnã, à invasão da antiga URSS na antiga Tchecoslováquia, entre tantas outras causas que considerava justas. Com a mesma intensidade defendeu a Revolução Cubana e o regime soviético, com quem viria a romper mais tarde, desfiliando-se do Partido Comunista Francês. “Responsabilidade e engajamento são as palavras-chave do pensamento de Sartre sobre o papel do intelectual”, afirma An- nie Cohen-Solal, principal biógrafa do filósofo e professora titular da Universidade de Caen, na França. Para ela, a militância política “só melhorou o rendimento teórico da obra do filósofo”. Intenso, Sartre foi preso pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, teve os seus escritos condenados pelo Santo Ofício, em 1948, esnobou o Prêmio Nobel de Literatura que ganhou em 1964 e manteve uma longa e polêmica relação – para alguns libertária, para outros meramente poligâmica – com a também filósofa e feminista Simone de Beauvoir, ao lado de quem está sepultado no cemitério de Montparnasse, em Paris. Seu enterro, aliás, juntou mais de 50 mil pessoas no dia 29 de abril de 1980, ocasião descrita por muitos como a última manifestação de Maio de 68. ❚ REVISTA DOS BANCÁRIOS | 27 C O M P O RTA M E N TO RESTAURADORES DE PAIXÃO Corrossel em miniatura restaurado pelo Hospital das Bonecas Procuradas por gente de 8 a 80 anos, oficinas recuperam brinquedos e a felicidade de crianças, colecionadores ou daqueles que querem simplesmente resgatar momentos inesquecíveis de sua infância Por Cristina Veiga Judar e Miriam Sanger Fotos de Jailton Garcia s motivos são variados: saudade dos tempos de infância, apego a um objeto adorado, necessidade de fazer economia e até a manutenção de uma coleção particular. Seja qual for, são eles que mantêm viva a tradição das oficinas que, há décadas, se dedicam a recuperar brinquedos e bonecas e conquistaram espaço garantido no mercado – prova viva de que, apesar do consumismo característico dos tempos atuais, nem tudo é tão descartável quanto parece. O Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games é uma destas empresas. Fundado em 1947 pelos imigrantes italianos Primo Cappello e Antonia Cappello, é especializado na reconstrução dos sonhos de infância das centenas de pessoas que, a cada mês, procuram seus serviços. Hoje, quem se encontra à frente do negócio que cresceu e rendeu frutos é Leandro Primo Cappello, 49 anos, neto do casal. A oficina tem três lojas e uma equipe de 33 funcionários que coordenam um hospital de verdade, com centro cirúrgico, pronto-socorro e berçário – local onde muitas crianças buscam suas bonecas “curadas”. A estrutura O 28 | REVISTA DOS BANCÁRIOS não pára aí: o Hospital das Bonecas possui uma frota de sete “ambulâncias”, que retiram em casa qualquer tipo de brinquedo, em todos os cantos da cidade. “Também recebemos brinquedos de outros locais do Brasil, por correio”, afirma Leandro. Apesar de a indústria de brinquedos oferecer um número cada vez maior de opções para todos os bolsos e gostos, há muitos motivos para recuperar os modelos do passado. “Até por uma questão econômica, não jogamos tudo fora, pois, financeiramente, ainda compensa consertar um brinquedo”, explica Leandro. Mas, segundo ele, a principal razão para o seu negócio dar certo é o apego emocional. “O povo brasileiro é muito saudosista, tem amor por suas coisas. Todo mundo tem um brinquedo que não joga fora, pois o valor sentimental daquele objeto é muito grande. Muitas vezes recebo crianças que pedem para que os pais, em vez de comprar um novo, consertem o velho. Também é muito comum os adultos restaurarem seus brinquedos de infância para dar de presente aos filhos. Eu mesmo conservo, até hoje, um cavalinho de lata que o meu pai me deu.” Ao longo dos anos, seu negócio precisou se modernizar para acompanhar todas as mudanças do mercado. “Nossa técnica foi se aprimorando, principalmente devido à influência das novidades tecnológicas, como os videogames e jogos eletrônicos em geral”. Contudo, as bonecas, desde as mais novas às mais antigas, ainda são o produto mais recebido pelo hospital. Normalmente, vêm de senhoras de 70, 80 anos, que confiam a ele a recuperação de algum brinquedo que marcou sua infância. “Nossa responsabilidade é muito grande. Quando recebemos uma boneca antiga para restauração, não podemos deixá-la com cara de nova. Precisamos ter o máximo cuidado e utilizar tintas e tecidos especiais para que ela fique perfeita, como na época em que foi produzida”, explica Leandro. conserva até hoje, inclusive, a primeira boneca que ganhou na vida: aquela que foi pendurada na porta do quarto da maternidade onde nasceu. A partir daí, a coleção não parou de crescer. Sua vocação de colecionadora começou cedo. “Quando criança, não queria ganhar bicicleta nem videogame, só queria mesmo brincar de boneca, o que fiz até os 14 anos. Ao restaurar uma delas, não estou somente consertando um objeto. Estou, na verdade, recuperando algo importante que vivi, como a lembrança inesquecível de um Natal, de um aniversário. É uma parte da minha infância que está sendo preservada”, afirma. Extremamente cuidadosa e dedicada a suas “filhas” – ninguém, além dela, está autorizado a realizar a limpeza das bonecas e pouquíssimas crianças têm permissão para entrar no seu quarto –, ela já utilizou, várias vezes, os serviços de restauração dos hospitais de brinquedos. “Tenho cerca de setenta bonecas de uma coleção espanhola. Trinta delas são originais e as restantes, cópias. Um dia, ao limpá-las, notei que o cabelo das réplicas estava caindo. Imediatamente levei-as a uma oficina de restauração, onde me alertaram que a única solução para o caso seria criar perucas especiais para todas. O único ‘porém’ é que o serviço ficaria muito mais caro do que o valor das bonecas. Não pensei duas vezes: mandei arrumar o cabelo de todas.” Mas às vezes é mesmo a economia – conciliada à questão emocional – que leva as pessoas a deixarem seus objetos aos cuidados desses especialistas. A designer Lílian de Sá, 25, mãe de Gabriel Vinícius, de 5 anos, ficou tão triste quanto o filho ao deparar com o carrinho de controle remoto – presente do pai no primeiro aniversário – quebrado após uma queda. “Era um brinquedo sofisticado, foi trazido de uma viagem do exterior e dificilmente seria encontrado à venda no Brasil”, explica Lílian. A solução foi tentar restaurá-lo. “Leveio a uma oficina de conserto de videogames e brinquedos eletrônicos. Foi perfeito: depois de 10 dias, além de me entregarem o carrinho em perfeitas condições, me DOUTOR EM BRINQUEDOS Leandro Cappello: “Até por uma questão econômica, não jogamos tudo fora, pois, financeiramente, ainda compensa consertar um brinquedo” Perucas de bonecas Não são apenas as pessoas mais idosas que buscam este tipo de serviço – há, em todo o mundo, centenas de colecionadores que elegem um tipo de brinquedo no qual investem tempo, energia e dinheiro para manter. A jornalista Pryscilla Paiva, de 25 anos, que vive em São Paulo, é um exemplo: sua coleção de bonecas já conta com 622 peças, das mais simples às mais sofisticadas. “Já paguei de 1,50 por uma de palha a 1.600 reais por uma de porcelana, exemplar único no mundo”, conta, orgulhosa. Pryscilla REVISTA DOS BANCÁRIOS | 29 passaram dicas importantes sobre cuidados fundamentais para a conservação”. Embora na época Lílian tenha desembolsado pelo conserto um valor razoável, o serviço custou cerca de 20% do valor original da peça. “Depois dessa experiência, e com a orientação do restaurador, o Gabriel aprendeu a ser cuidadoso com o carrinho, com o qual brinca até hoje.” Do ponto de vista financeiro, realmente a recuperação vale a pena. Segundo Bartolomeu de Alencar, de 45 anos, proprietário do Pronto-Socorro das Bonecas, Brinquedos e Games, o conserto de videogames e jogos eletrônicos é mais fácil – e, conseqüentemente, mais barato –, pois as peças originais são facilmente encontradas no mercado. “No caso de games antigos, o preço pode ficar mais alto pela dificuldade de encontrar itens para reposição. Mas, de forma geral, por todos os serviços que realizamos cobramos, em média, 30% do valor do produto”, explica. Já o conserto de bonecas antigas exige mais “cacife” pois, em muitos casos, o restaurador precisa comprar de colecionadores as peças que utilizará para a reposição. “Restauramos exemplares de massa, biscuit e louça, às vezes com mais de 100, 200 anos. Nestes casos, o serviço pode custar de 200 a 1.000 reais, dependendo do estado do brinquedo.” O gerente comercial Gilson Pires, de 45 anos, já deixou a infância bem lá atrás, mas guarda, até hoje, seu Autorama HO com um cuidado todo especial. Há alguns anos, um dos carrinhos e a pista de corrida apresentaram problemas. “Ganhei-o de presente de meu pai quando fiz 10 anos. E como é de um modelo antigo, fora de linha, tive de fazer uma ampla pesquisa para encontrar o local apropriado para a realização desse tipo de serviço, pois já não se encontram no mercado peças originais para reposição. Acabei encontrando uma oficina de confiança. Meu autorama retomou a ‘boa forma’ e está perfeito até hoje.” O brinquedo, inclusive, já está entretendo uma nova geração da família: foi herdado pelos filhos, Gilson Jr. e Marcelo. “Se depender de mim, um dia meus netos estarão se divertindo com ele”, diz. Viagem no tempo Em pleno século 21, os anos 80 estão na moda. E, como não podia deixar de ser, os brinquedos que marcaram essa década também: boneco Falcon, o brinquedo eletrônico Genius, boneca Amiguinha, boneca Guigui, Pega-Vareta, Cai-não-Cai – estes dois últimos de gerações ainda anteriores –, entre tantos outros. “É uma febre. Atualmente temos recebido no hospital vários clientes querendo QUESTÕES DO CORAÇÃO Gilson ganhou o Autorama HO de presente do seu pai quando fez 10 anos. Consertado numa oficina escolhida a dedo, hoje ele faz a alegria de seus filhos Júnior e Marcelo. A recordação dos bons momentos da infância também fez Pryscilla guardar a primeira boneca que ganhou na vida, a que enfeitava a porta do quarto da maternidade onde nasceu. Aos 25 anos, sua coleção conta com 622 peças, que vão desde bonequinhas de 1,50 real a exemplares exclusivos de porcelana de 1.600 reais. Muito cuidadosa, constantemente recorre aos especialistas em reparos de brinquedos 30 | REVISTA DOS BANCÁRIOS consertar os modelos típicos dos anos 80. Esse interesse repentino é justificado pelo fato de que esses brinquedos eram infinitamente melhores. Os de hoje em dia podem até ser mais bonitos, mais modernos, apresentarem funções diferentes. Mas não têm ‘coração’ como os dessa época”, afirma Leandro. Hoje é muito comum encontrar pessoas na casa dos 30 anos, saudosos dos tempos de infância, à procura desses exemplares, que, cada vez mais difíceis de encontrar, muitas vezes são disputados a peso de ouro: um Genius original, funcionando, chega a custar 150 reais. No entanto, esse valor pode ser conside- rado irrisório se comparado ao de objetos ainda mais antigos: em novembro deste ano aconteceu, em Londres, um leilão de uma coleção de robôs e brinquedos espaciais. O lote de mais de setecentas peças foi avaliado em 334 mil dólares (aproximadamente 835 mil reais). Foi arrematado de um colecionador por outro colecionador, uma categoria que ganha adeptos a cada dia. A ponto de criar-se até uma designação para eles: há a categoria dos incard collectors, que mantém seus bonecos nas cartelas, sem nunca abri-los, e dos loose collectors, que abre todos, sem exceção. Ou seja, uma legítima brincadeira para gente grande. ❚ SERVIÇO Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games www.hospitaldasbonecas.com.br. Rua Capitão Avelino Carneiro, 110, Penha, tel. (11) 6647-7516 e 6646-6869. Rua Barão do Triunfo, 368, Brooklin, São Paulo, tel. (11) 5041-6024. Rua Pedroso Alvarenga, 852, Itaim Bibi, São Paulo, tel. (11) 3167-5131. SOS das Bonecas http://sosdasbonecas.vilabol.uol.com.br. Rua da Mooca, 2636, Mooca, tel. (11) 6618-1682. Rua Alfredo Pujol, 91, Santana, tel. (11) 6283-1034. Rua Alonso Calhamares, 17, Tatuapé, São Paulo, tel. (11) 6671-5802. Pronto-Socorro das Bonecas, Brinquedos e Games www.psdasbonecas.com.br. Continental Shopping – Av. Leão Machado, 110, Jaguaré, São Paulo, tel. (11) 3714-5619. Rua Brasília Marcondes Buarque, 173, Jaguaré, São Paulo, tel. (11) 3763-3678. Rua Turiassu, 2137, Pompéia, tel. (11) 3865-6357. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 31 VIAGEM Fraternidade e a cultura gaúcha unem duas cidades de dois países, separadas apenas por uma linha imaginária nos pampas gaúchos Texto e fotos de Gerardo Lazzari FRONTEIRA DA PAZ antana do Livramento e Rivera formam um ponto eqüidistante, cerca de 500 quilômetros, entre Porto Alegre e Montevidéu respectivamente. A fronteira é uma linha imaginária no chão, no Parque Internacional, simbolizada por um obelisco de 30 metros de altura, ladeado pelas bandeiras do Brasil e do Uruguai. Vistas de cima, Livramento e Rivera são a mesma cidade. E a fronteira, ao invés de separar, torna mais estreitos os laços entre as duas cidades. Livramento, com pouco mais de 90 mil habitantes, se auto-intitula “cidade símbolo da integração do Mercosul”. É nesta cidade, fundada em 1823, a partir da construção da capela de Nossa Senhora do Livramento, que todo ano acontece o festival folclórico Um Canto para Martin Fierro. O evento, sempre no mês de dezembro, celebra a reafirmação da cultura gaúcha e a integração dos países que absorvem a extensão do pampa: Brasil, Uruguai e Argentina. O nome do festival é uma homenagem da cidade ao poeta argentino José Hernan- S 32 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Loja na fronteira: cidades e países se confundem des, autor do livro que iniciou o registro do gaúcho na literatura, El gaucho Martin Fierro. Segundo os historiadores, Hernandes esteve exilado em Livramento no período de 1871 e 1872, e morou numa pensão da Rua Rivadávia Correa, esquina com a Rua Uruguai. E teria sido exatamente aí que começou a escrever a obra. As festas e a cultura são compartilhadas, como acontece na Semana Farroupilha, em setembro, quando se monta um galpão binacional no Parque Internacional e representantes de ambos os lados participam. No Carnaval, acontece coisa parecida, só que do lado uruguaio. Na área econômica não é diferente. Rivera, criada em 1823 por decreto do governo local, com o objetivo estratégico de ocupação do território fronteiriço, foi transformada em “zona franca”. Faz a festa de turistas que a invadem atrás de bebidas, produtos eletrônicos e roupas de lã. No inverno, 60% da receita do comércio riverense sai do bolso dos brasileiros. Em contrapartida, os riverenses são responsáveis por 40% das vendas das lojas e supermercados santanenses. Livramento atravessou momentos de prosperidade quando despontaram os grandes lanifícios e frigoríficos. Atualmente, a maior fonte provedora de empregos é a vinícola Almadén. A empresa, hoje, pertence a uma multinacional francesa. Está na região desde 1974, e é considerada pioneira na campanha gaúcha. Estudos encomendados a especialistas norte-americanos identificaram essa região, do paralelo 31, como a mais apta para a produção de vinho no Brasil. Seus 1.200 hectares plantados se estendem por uma paisagem salpi- Cerro Palomas: marco da região FESTA À MODA DOS PAMPAS A semana farroupilha une povos e culturas cada de colinas. A de Palomas serve de marco para as 6 mil toneladas de uvas viníferas produzidas por ano e dá nome ao melhor vinho da marca. Se o assunto é agitação, a melhor escolha é o lado uruguaio. Rivera, nos finais de semana, vê aumentada sua população de 67 mil habitantes. A Avenida Sarandí se transforma num desfile de motos e carros de ambos os países. Muitos estacionam e montam microbares nos porta-malas dos carros, onde não faltam bebidas, música e até banquinhos para se acomodar na calçada. Adultos e crianças também fazem a festa nas ruas, à sua maneira. Até altas horas, o “portunhol” é o idioma dominante nas sorveterias, bares e praças. Para comer, o lado uruguaio também leva ligeira vantagem, sobretudo as “parrillas”, que acabam praticando preços mais generosos. Além de degustar uma cerveja Pílsen brasileira ou uma Patrícia, uruguaia, o visitante pode experimentar diferentes tipos de carne, em cortes clássicos compartilhados pelos gaúchos dos três países, como o “vacilo”, a “tira de assado” ou a “costela de ripa”, e alguns mais usados no Uruguai e na Argentina, como “chinchulines” ou a “morcilla” (tipos de “frios” conhecidos no Brasil como chouriço, o primeiro de origem bovina e o segundo, suína). Enfim, de passagem durante uma viagem ao Sul do país, a visita a esse ponto no mapa da América do Sul vale a pena. Ela desvenda um exemplo de fraternidade entre cidadãos de dois países, fruto de uma identidade em comum, a cultura dos pampas. ❚ REVISTA DOS BANCÁRIOS | 33 ARTIGO DA RUA PARA A CIDADANIA Há dez anos, uma iniciativa pioneira conseguiu reunir em uma só organização setores distintos da sociedade – sindicatos de trabalhadores, bancos, empresas, entidades. Para a Fundação Projeto Travessia o futuro melhor que sonhamos passa pela inclusão de nossas crianças e adolescentes Por Ana Tércia Sanchez Travessia carrega consigo um desafio imenso, marcado pela necessidade de transformação social a partir de objetivos muito bem definidos: garantir os direitos das crianças e dos adolescentes que vivem em situação de risco pessoal e social. Afinal, em que basta ser a 11ª economia do mundo se ainda falta entre nossos iguais, e como falta!, acesso aos pressupostos básicos da cidadania. O melhor espelho dessa realidade foram as ruas e praças do centro da maior metrópole brasileira. Foi por aí que o trabalho se iniciou e ganhou respeitabilidade. A ação com as crianças e adolescentes em situação de risco, mais do que alguns possam imaginar, não passa pela “higienização” do centro ou do local onde eles ou elas estejam. O empenho dos educadores tem sido uma marca da seriedade e do respeito estabelecido na relação existente entre as partes. E esse trabalho não é tarefa fácil. É preciso muita determinação para compreender o universo, os limites e as possibilidades das crianças e adolescentes que, por inúmeras circunstâncias, encontraram na rua o seu espaço. Nas etapas dessa “travessia da rua para a cidadania” não pode haver pressa no trato com essas pessoas tão vulneráveis e não podemos buscar apenas resultados estatísticos. Portanto, é um imenso equívoco retirá-las da rua a qualquer custo pois, por mais que não nos agrade topar com algumas formas de degeneração da integridade da pessoa humana em qualquer rua ou esquina, é necessário ponderarmos sobre suas causas estruturais. Mexer com isso leva tempo e acima de tudo envolve a vontade de diversos atores sociais, sobretudo, do poder público. Quando falamos de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, na maior parte das vezes referimo-nos a pessoas que tiveram em sua trajetória de vida laços sociais e afetivos rom- O Ana Tércia Sanchez é secretária de Estudos Sócio-econômicos do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região e vicepresidenta da Fundação Projeto Travessia (www.travessia.org.br) 34 | REVISTA DOS BANCÁRIOS pidos. Eles, como todo ser humano, buscam sobreviver de alguma forma e, nesse ímpeto, recorrem algumas vezes a meios inadequados. Por isso, no trabalho do Travessia há uma aproximação necessária com esse público, busca-se permissão para entrar na sua vida, pois parte-se do pressuposto de que não são objetos que podem ser retirados ou transportados de lá para cá. Isso não resolveria o problema deles, tampouco o do Brasil. Invariavelmente, nossa idéia de inclusão social é revestida de um simplismo reconfortante, muitas vezes reduzida ao acesso a uma vaga na escola, uma lata de leite, uma pequena quantia em dinheiro ou outra medida paliativa. E não precisamos ser tão duros ao ponto de excluir dessas iniciativas seu caráter real de bondade e vontade de mudança. Mas podemos, a partir de um olhar crítico, checar se essas iniciativas, se desconexas, conseguem dar conta da complexidade do problema social enfrentado por milhares de crianças e adolescentes. A questão dos que vivem na chamada situação de risco passa necessariamente pela família, o que levou o Travessia a ampliar sua atuação e penetrar na vida comunitária nos pontos mais distantes do Centro. Afinal é de lá que partem aqueles que estão mais vulneráveis. A saída de crianças e adolescentes das ruas é um processo que requer envolvimento do menino, da menina, de sua família e por isso leva o tempo que a cada um ou a cada grupo for necessário. Nunca o Travessia se propôs a substituir o poder público e, ao contrário, sempre buscou formas de dar visibilidade ao tema pautando-o na agenda das políticas públicas divulgadas periodicamente pelos governos de plantão. Temos ainda a convicção de que fazemos uma construção coletiva e que nossa ação se inscreve no mesmo cenário em que vários movimentos sociais buscam fazer algo pelo tão almejado futuro melhor. Esse futuro com certeza passa por nossas crianças e adolescentes. ❚ Sindicato, seu melhor lugar 255 mil reais recuperados Para ser mais preciso, o cheque de Manoel Aladir Moraes, ex-bancário do Sudameris, tinha estampado o valor de R$ 255.572,49. Manoel foi à luta em parceria com o Sindicato e numa ação movida pelo departamento jurídico recuperou seus direitos: horas extras, adicional de transferência e multa do FGTS. Se os seus direitos também não estão sendo respeitados pelo banqueiro faça como o Manoel, entre em contato com o Jurídico do Sindicato pelo telefone 3188-5200 e marque uma conversa.