Untitled - Humanitas Vivens
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2 // Problemas da jurisdição contemporânea... IMAGEM DA CAPA: Unicesumar – Centro Universitário Cesumar de Maringá Prefácio 3 Daniela Menengoti Ribeiro Rodrigo Valente Giublin Teixeira (Organizadores) AUTORES: Alessandro Severino Valler Zenni / Alexandre Ribas de Paulo / Ana Luísa Moreli Pangoni / Andryelle Vanessa Camilo Pomin / Caroline Christine / Mesquita / Daniela Menengoti Ribeiro / Danilo Zanco Belmonte / Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade / Edgar Dener Rodrigues / Fabiola Cristina Carrero / Fernanda Roberta Sasso Mello / Franciele de Oliveira Rahmeier / Francielle Lopes Rocha / Hadassa Melo Paulino / Ivan Aparecido Ruiz / Jaime Leônidas Miranda Alves / Jeane Genara Volpato / João Paulo Sales Delmondes / Jodascil Gonçalves Lopes / Jonatas Cesar Dias / Juliano Miqueletti Soncin / Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli / Lauro Ishikawa / Luciana Lupi Alves / Luciane Pussi / Malu Romancini / Márcia Fátima da Silva Giacomelli / Marco Antônio César Villatore / Maria Priscila Soares Berro / Marta Beatriz Tanaka Ferdinandi / Martinho Martins Botelho / Milaine Akahoshi Novaes / Milton Roberto da Silva Sá Ravagnani / Mithiele Tatiana Rodrigues / Muriana Carrilho Bernardineli / Nilson Tadeu Reis Campos Silva / Osmar Gonçalves Ribeiro Junior / Paulo Gomes de Lima Júnior / Rodrigo Valente Giublin Teixeira / Rosani Borin / Roseli Borin / Sarah Tavares Lopes da Silva / Tais Zanini de Sá Duarte Nunes / Taniara Andressa Braz Rigon / Tiago Bunning Mendes / Valine Castaldelli Silva / William Artur Pussi PROBLEMAS DA JURISDIÇÃO CONTEMPORÂNEA E AS TENDÊNCIAS DOS INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Primeira Edição E-book Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida! Maringá – PR – 2015 4 // Problemas da jurisdição contemporânea... Copyright 2015 by Daniela Menengoti Ribeiro; Rodrigo Valente Giublin Teixeira EDITORA: Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL: Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dra. Lorella Congiunti – PUU - Roma Dr. Ivan Dias da Motta - UNICESUMAR REVISÃO ORTOGRÁFICA: Prof.ª Malu Romancini CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Bruno Macedo da Silva Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) P962 Problemas da jurisdição contemporânea e as tendências dos instrumentos de efetivação dos direitos da personalidade. / organizadores Daniela Menengoti Ribeiro , Rodrigo Valente Giublin Teixeira; autores, Alessandro Severino Valler Zenni ... [et al]. – 1. ed. e-book – Maringá, PR: Vivens, 2015. 416 p. Modo de Acesso: World Wide Web: <http://www.vivens.com.br> ISBN: 978-85-8401-057-8 1. Direito. 2. Direitos da personalidade. I. Título. CDD 22. ed. 346.013 Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610 Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (44) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected] SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.............................................................................................. 09 I = A INDENIZAÇÃO GLOBAL NA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO MEIO DE PROTEÇÃO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE DE ÍNDIOS E NÃO ÍNDIOS Tiago Bunning Mendes João Paulo Sales Delmondes Jodascil Gonçalves Lopes.................................................................................. 11 II = A OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DECORRENTE DO TRABALHO ESCRAVO NA CONTEMPORANEIDADE: PROPOSTAS PARA SUA ERRADICAÇÃO Muriana Carrilho Bernardineli............................................................................. 27 III = A PERDA DE UMA CHANCE E A TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Fernanda Roberta Sasso Mello Osmar Gonçalves Ribeiro Junior........................................................................ 45 IV = A PROTEÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA VERSUS A PROTEÇÃO AMBIENTAL EUROPEIA Malu Romancini Mithiele Tatiana Rodrigues................................................................................. 63 V = A PROTEÇÃO DA PERSONALIDADE DO IDOSO FRENTE AOS PROCESSOS DE INTERDIÇÃO E INABILITAÇÃO Taniara Andressa Braz Rigon Luciana Lupi Alves.............................................................................................. 81 VI = A REPERCUSSÃO GERAL NOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS UM MECANISMO DE REDUÇÃO DE DEMANDAS PARA PROMOÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA Edgar Dener Rodrigues Danilo Zanco Belmonte....................................................................................... 103 VII = ADMISSIBILIDADE DA PROVA ILÍCITA PARA A TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Ana Luísa Moreli Pangoni Milaine Akahoshi Novaes.................................................................................... 117 6 // Problemas da jurisdição contemporânea... VIII = AS INFORMAÇÕES COLHIDAS POR INTERMÉDIO DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA ILÍCITA E O PROCEDIMENTO DE DESENTRANHAMENTO E INUTILIZAÇÃO DAS MESMAS NO SISTEMA DO PROJUDI DO PARANÁ Alexandre Ribas de Paulo Valine Castaldelli Silva........................................................................................ 135 IX = CRIANÇA E ADOLESCENTE VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR: ESCUTA ESPECIAL, O MELHOR CAMINHO PARA EVITAR A REVITIMIZAÇÃO? Márcia Fátima da Silva Giacomelli...................................................................... 147 X = DA INEFICIÊNCIA NA CONCRETIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR NO MUNICÍPIO DE MARINGÁ-PARANÁ Ivan Aparecido Ruiz Tais Zanini de Sá Duarte Nunes......................................................................... 161 XI = DA INTERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE COM O DIREITO DO CONSUMIDOR Franciele de Oliveira Rahmeier Juliano Miqueletti Soncin.................................................................................... 185 XII = DA PESSOA TRANSEXUAL E DA PESSOA HOMOSSEXUAL: DA PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO E VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Sarah Tavares Lopes da Silva Francielle Lopes Rocha......................................................................................201 XIII = LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E PRIVACIDADE: CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Milton Roberto da Silva Sá Ravagnani Rodrigo Valente Giublin Teixeira........................................................................223 XIV = O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO BRASIL Paulo Gomes de Lima Júnior Marta Beatriz Tanaka Ferdinandi........................................................................ 243 XV = O FIM DO REGIME DE INCAPACIDADE CIVIL Nilson Tadeu Reis Campos Silva.......................................................................263 Prefácio 7 XVI = O HUMANISMO E A FRATERNIDADE COMO CATEGORIAS CONSTITUCIONAIS Lauro Ishikawa Luciane Pussi William Artur Pussi.............................................................................................. 281 XVII = O PAPEL DA PROPAGANDA ELEITORAL NA CONDUÇÃO DO PROCESSO DEMOCRÁTICO EM FACE DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Jeane Genara Volpato Fabiola Cristina Carrero Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade........................................................... 299 XVIII = O RECONHECIMENTO JURISPRUDENCIAL DOS ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS COMO MEIO DE RESTABELECER O EQUILÍBRIO SOCIOECONÔMICO ENTRE EX-CONSORTES Jaime Leônidas Miranda Alves Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli........................................................................ 313 XIX = POLITICAS PUBLICAS EDUCACIONAIS À LUZ DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Jonatas Cesar Dias............................................................................................. 327 XX = POLÍTICAS PÚBLICAS, LIAME QUE GUARDA UMA JUSTIÇA ALICERÇADA NA VIDA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Alessandro Severino Valler Zenni Caroline Christine Mesquita Daniela Menengoti Ribeiro.................................................................................. 335 XXI = REFLEXÕES DA APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA QUANTO À AÇÃO PENAL NA AGRESSÃO CONTRA MULHER NO MUNICÍPIO DE JI-PARANÁ Maria Priscila Soares Berro Rosani Borin Roseli Borin......................................................................................................... 351 XXII = TUTELA DO CONSUMIDOR NA HIPÓTESE DE SUPERENDIVIDAMENTO: DILEMA CONTEMPORÂNEO Andryelle Vanessa Camilo Pomin Hadassa Melo Paulino........................................................................................ 375 8 // Problemas da jurisdição contemporânea... XXIII = UMA ALTERNATIVA PARA O ACESSO E A DISTRIBUIÇÃO DA JUSTIÇA NOS MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSES CONCRETIZANDO OS DIREITOS DA PERSONALIDADE Marco Antônio César Villatore Martinho Martins Botelho.................................................................................... 399 APRESENTAÇÃO O livro “Problemas da jurisdição contemporânea e as tendências dos instrumentos de efetivação dos direitos da personalidade” reforça a importância e o empenho por parte da academia científica em contribuir para o tema. Conscientes dos problemas que norteiam tais direitos e empenhados na incessante luta para sua concretização, pesquisadores especializados na área debruçaram-se em estudos apresentados nos 23 capítulos da obra, que exploram experiências do contexto jurídico brasileiro e estrangeiro. Em suas contribuições, os autores abordaram temáticas convergentes à jurisdição contemporânea e os instrumentos de efetivação dos direitos da personalidade, destacando-se as seguintes: tutela jurisdicional, tutela do consumidor, proteção ambiental, direitos sociais, direitos da personalidade, políticas públicas e inclusão social. O Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar adotou, de forma exclusiva no Brasil, como área de concentração dos estudos do programa, os direitos da personalidade, tornando-se, desta forma, uma referência sobre as inovações normativas, institucionais, jurisprudenciais e as mais recentes literaturas na área. Por tal razão, a presente obra possui uma expressiva participação de docentes e discentes da Unicesumar, mas também contou com uma significativa contribuição de autores de outras instituições brasileiras. Os estudos apresentados pelos autores revelam-se, assim, uma rica troca de conhecimento e experiência acadêmica, e com produtivas reflexões, que seguramente colaboram para aprimorar o debate científico e promove a consciência cidadã. Neste sentido, os coordenadores agradecem as excelentes considerações trazidas pelos autores Alessandro Severino Valler Zenni, Alexandre Ribas de Paulo, Ana Luísa Moreli Pangoni, Andryelle Vanessa Camilo Pomin, Caroline Christine Mesquita, Daniela Menengoti Ribeiro, Danilo Zanco Belmonte, Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade, Edgar Dener Rodrigues, Fabiola Cristina Carrero, Fernanda Roberta Sasso Mello, Franciele de Oliveira Rahmeier, Francielle Lopes Rocha, Hadassa Melo Paulino, Ivan Aparecido Ruiz, Jaime Leônidas Miranda Alves, Jeane Genara Volpato, João Paulo Sales Delmondes, Jodascil Gonçalves Lopes, Jonatas Cesar Dias, Juliano Miqueletti Soncin, Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli, Lauro Ishikawa, Luciana Lupi Alves, Luciane Pussi, Malu Romancini, Márcia Fátima da Silva Giacomelli, Marco Antônio César Villatore, Maria Priscila Soares Berro, Marta Beatriz Tanaka Ferdinandi, Martinho Martins Botelho, Milaine Akahoshi Novaes, Milton Roberto da Silva Sá Ravagnani, Mithiele Tatiana Rodrigues, Muriana Carrilho Bernardineli, Nilson Tadeu Reis Campos Silva, Osmar Gonçalves Ribeiro Junior, Paulo Gomes de Lima Júnior, Rodrigo Valente Giublin Teixeira, Rosani Borin; Roseli Borin, Sarah Tavares Lopes da Silva, 10 // Problemas da jurisdição contemporânea... Taís Zanini de Sá Duarte Nunes, Taniara Andressa Braz Rigon, Tiago Bunning Mendes, Valine Castaldelli Silva e William Artur Pussi. Registra-se especial agradecimento à Unicesumar nas pessoas dos queridos professores Wilson Matos Silva, Claudio Ferdinandi e Ludhiana Ethel Kendrick Silva por não medirem esforços para a realização da pesquisa científica em nossa instituição, e do professor José Sebastião de Oliveira, coordenador do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas. Por fim, reiteramos o prazer em participar como organizadores desta obra e a nossa firma convicção da importância do exercício da investigação científica na busca da efetivação dos direitos e de uma sociedade mais justa e solidária. “Nada de grandioso no mundo foi realizado sem paixão” Georg Wilhelm Friedrich Hegel Maringá, 15 de dezembro de 2015. Organizadores: Profª. Drª. Daniela Menengoti Ribeiro Prof. Dr. Rodrigo Valente Giublin Teixeira =I= A INDENIZAÇÃO GLOBAL NA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO MEIO DE PROTEÇÃO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE DE ÍNDIOS E NÃO ÍNDIOS Tiago Bunning Mendes* João Paulo Sales Delmondes** Jodascil Gonçalves Lopes*** 1.1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por escopo demostrar, detalhadamente, o procedimento de demarcação de terras indígenas no ordenamento jurídico brasileiro e propor uma possível solução para esses conflitos com uma alteração na forma de pagamento das indenizações das terras envolvidas. A problemática traz uma colisão de Direitos da Personalidade das duas partes envolvidas no conflito, índios e não índios. Há o Direito consagrado constitucionalmente do indígena de se reestabelecer nas terras que são consideradas tradicionalmente suas e há de outra banda o Direito dos não indignas proprietários da terra, que as adquiriram, de forma legitima e legal, conforme os ditames e com homologação e registro do Estado. Assim o que propõem o artigo é a solução do conflito entre as duas etnias coabitantes no território brasileiro, índios e não índios - divisão apenas de caráter social que não resiste a rigidez antropológica -, acabando com a guerra fraticida entre elas, com um modelo de indenização mais adequado, que pressupõem a não negligencia do Governo e pagamento de indenização no valor global. O Decreto n. 1.175, de 08 de janeiro de 1996 e a Lei 6.001/1973 intitulada de Estatuto do Índio, são os responsáveis pelas providências necessárias para tal demarcação. Entretanto, com o passar do tempo não inovaram no que diz respeito aos entraves nos pagamentos das indenizações, notadamente, no que diz respeito ao valor e a ser indenizado. * Advogado em Campo Grande/MS. Mestrando em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Pós-Graduando em Direito Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. E-mail: [email protected]. ** Advogado em Campo Grande/MS. Mestrando em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito – EPD. Graduado em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. E-mail: [email protected]. *** Advogado em Campo Grande/MS. Mestrando em Direitos da Personalidade pela UNICESUMAR. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Damásio de Jesus e especialista em Direito penal também pela Faculdade Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. E-mail: [email protected]. 12 // Problemas da jurisdição contemporânea... Assim, a atual previsão legal de indenização que se restringe ao valor das benfeitorias úteis e necessárias é desarmônica ao ordenamento jurídico pátrio, em analogia as demais hipóteses de limitação ao direito de propriedade privada. Evidente assim um latente desrespeito também aos direitos da personalidade; segurança jurídica e ao direito adquirido. Bem como, um indubitável abandono aos princípios fundamentais da razoabilidade e proporcionalidade, que buscam a convivência prática entre direitos fundamentais e não o sacrifício total de um deles em prol de outro. Destaca-se, ainda, que a implementação de uma indenização justa acarretará efeitos econômicos, políticos e sociais no cenário brasileiro. Por fim, se propõe que a justa indenização, se paga previamente e em dinheiro, possibilita a retirada mais célere do proprietário da terra, evitando assim todo impasse e conflito causado pela demarcação. 1.2 O PROCEDIMENTO DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS Cumpre observar, preliminarmente, que em nosso ordenamento jurídico o procedimento de demarcação de terras indígenas é previsto na Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio), e regulamentado pelo Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996. O Estatuto do Índio determina em seu artigo 19 que as terras indígenas serão demarcadas por iniciativa e sob orientação do Órgão Federal de Assistência ao Índio, mediante procedimento administrativo antecedido de Decreto do Poder Executivo. Nesse sentido, o Decreto 1.775/ 96 estabelece que o procedimento administrativo para Demarcação de Terras Indígenas (conhecidas como TI´s), se subdividi em cinco fases, quais sejam, identificação, declaração, delimitação, homologação e regularização (através do registro). Em ambos os instrumentos normativos a iniciativa para demarcação fica a cargo da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão federal incumbido na representação e assistência dos índios, de acordo o art. 1º da Lei 5.371/67. Para o aludido órgão o procedimento de demarcação também se subdivide em cinco etapas. São elas: Em estudo: Realização dos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação da terra indígena. Delimitadas: Terras que tiveram os estudos aprovados pela Presidência da Funai, com a sua conclusão publicada no Diário Oficial da União e do Estado, e que se encontram na fase do contraditório administrativo ou em análise pelo Ministério da Justiça, para decisão acerca da expedição de Portaria Declaratória da posse tradicional indígena. Declaradas: Terras que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça e estão autorizadas para serem demarcadas fisicamente, com a materialização dos marcos e georreferenciamento. A indenização global... // 13 Homologadas: Terras que possuem os seus limites materializados e georreferenciados, cuja demarcação administrativa foi homologada por decreto Presidencial. Regularizadas: Terras que, após o decreto de homologação foram registradas em Cartório em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União (FUNAI, web). Pois bem. Comungamos do entendimento que o início do procedimento de demarcação se dá na fase de Identificação, a qual o art. 2º, §1º do Decreto 1.775/96, determina que a FUNAI nomeie um antropólogo com qualificação reconhecida que coordenará um grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores (técnicos) do próprio quadro funcional do órgão. Tal grupo será responsável por elaborar estudos complementares de natureza etnohistórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, bem como levantamento fundiário que fundamentarão a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Em 30 dias contados da data de publicação do ato que constitui o grupo técnico, os órgãos públicos tem o dever no âmbito de suas competências de prestarem informações sobre a área objeto da identificação, enquanto as entidades civis não possuem a obrigação de realizar este ato, nos termos do art. 2º, §5º do Decreto já citado. Tais estudos elaborados pelo grupo técnico darão ensejo a um relatório (relatório antropológico) circunstanciado à FUNAI, constando os elementos exigidos pela Portaria nº 14, de 09 de janeiro de 1996 da FUNAI e caracterizando a terra indígena a ser demarcada, conforme art. 2º, §7º do Decreto (FUNAI, web). Este relatório deverá ser aprovado pelo Presidente da FUNAI no prazo de 15 dias, publicado um resumo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da respectiva Unidade Federativa, devendo, ainda, ser afixada a publicação na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel. O parágrafo 8º, art. 2º do mesmo Decreto elucida que no prazo de 90 dias a partir das publicações exigidas no parágrafo 7º do mesmo diploma legal, poderão se manifestar os Estados, Municípios e demais interessados, apresando diretamente à FUNAI suas alegações devidamente comprovadas, cuja finalidade é pleitear indenização em virtude da demarcação ou demonstrar vícios no relatório antropológico. Neste prisma, surge a grande alteração trazida pelo Decreto 1.175/96, em observância ao art. 5º LV da Constituição Federal, possibilitando a ampla defesa e o contraditório mediante contestação de todo interessado, inclusive os Entes Federativos (Estados e Municípios). Em crítica, é necessário observar que o contraditório oferecido aos interessados, Estados e Municípios tem sua ocorrência somente após o término dos estudos e elaboração do relatório realizado exclusivamente pela FUNAI. A respeito dos laudos antropológicos que são o fundamento do relatório elaborado pela FUNAI, à acida crítica de Hildebrando Campestrini: 14 // Problemas da jurisdição contemporânea... Embora despojados de qualquer caráter científico, unilaterais, inflamados às vezes, omissos quando as provas são contrárias, com o discurso subliminar de condenação do proprietário rural, tais laudos antropológicos (que, em verdade não são laudos, porque acalorados e mal fundamentados), constituem o documento vital para justificar a “retomada das terras” (CAMPESTRINI, 2009, p. 51). Entretanto, vale ressaltar que, atualmente, segundo a Portaria n. 2.498/2011 do Ministério da Justiça os Estados e Municípios participam de todas as fases do procedimento administrativo para demarcação, desde os estudos realizados pelo grupo técnico da FUNAI. Contudo, permanece cerceado o direito a ampla defesa e contraditório dos demais interessados, ou seja, os particulares alheios aos Estados e Municípios. Acerca do tema Lorenzo Carrasco aponta: A Portaria 2.498/2011 do Ministério da Justiça, emitida em novembro, estabeleceu a inserção dos estados e municípios nos estudos de demarcação de terras indígenas, em todas as suas etapas, acabando com o monopólio até então exercido pela Funai (CARRASCO, 2013, p. 14). Ademais, não se tem conhecimento ao menos um estudo ou relatório elaborado pelo grupo de técnicos da FUNAI que fora revertido mediante o contraditório administrativo disponibilizado aos particulares, Estados e Municípios. Desta forma, nos 60 dias subsequentes ao término do prazo de razões dos interessados, ou seja, 150 dias após a publicação do relatório antropológico, a FUNAI elaborará pareceres sobre as razões de todos os interessados e encaminhará o procedimento ao Ministro da Justiça. Recebido o relatório pelo Ministro da Justiça, a este será concedido o prazo de 30 dias, nos quais poderão ser tomadas três decisões distintas, conforme art. 2, §10º, incisos I a III do Decreto 1.175/96, a saber: a) desaprovar, mediante decisão fundamentada, o relatório dos estudos e consequentemente a demarcação, pela inexistência de qualquer das quatro características enumeradas pelo §1º do art. 231 da CF; b) expedir Portaria para declarar os limites da TI determinando sua demarcação, ou ainda; c) prescrever diligências que julgue ainda necessárias para sua decisão de aprovação ou desaprovação, a serem cumpridas no prazo de 90 dias. Notadamente, nas situações em que o Ministro da Justiça desaprovar o relatório estará encerrado o procedimento de demarcação de TI, por sua vez, quando determinar diligências a serem cumpridas, após a realização destas fará nova apreciação do relatório. Desta forma, o procedimento de demarcação somente perfaz seu curso natural nas situações em que o Ministro da Justiça expede Portaria declarando os limites da TI determinando sua demarcação, hipótese em que se estará diante da fase de Declaração da TI. A indenização global... // 15 A ocorrência da declaração da TI pelo Ministro da Justiça é considerada o marco da regularização do procedimento, tratando-se da primeira chancela de uma Autoridade Pública Executiva determinando a área indígena. Nos termos do art. 4º do Dec. 1.175/96, publicada a Portaria declarando os limites da TI, cabe a FUNAI proceder a fase de Delimitação realizando a demarcação física da área, ficando a cargo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em procedimento paralelo, proceder o levantamento e avaliação das benfeitorias existentes na área, bem como, o reassentamento dos ocupantes não-índios. Após o término da limitação (demarcação) da área a ser determinada como TI, todo o procedimento administrativo (estudos, relatório, parecer do Ministro da Justiça, e demais atos) deve ser submetido ao Presidente da República que realizará a homologação da demarcação mediante Decreto Presencial/Executivo, conforme art. 5º do Dec. 1.175/96, completando assim a fase de Homologação. Por fim, ultimando o procedimento de demarcação, estabelece o art. 6º do Dec. 1.175/96, na fase de Registro que deve ocorrer no lapso de 30 dias após a publicação do Decreto de homologação, a FUNAI deve proceder o registro no Cartório de Registros de Imóveis da comarca correspondente a TI demarcada, bem como, na Secretaria de Patrimônio da União do Ministério da Fazenda. Destaca-se, ainda, que o registro da TI, em que pese ser obrigação conferida a FUNAI, é feito em nome da União, pois, como é cediço, aos índios cabe apenas o usufruto da área que pertence a União, conforme elucida a Constituição em seu art. 231 e parágrafos. Assim, após implemento de todas as fases do procedimento administrativo e registro da área, estará regularizada a TI. 1.3 A INDENIZAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS DEMARCADAS Demarcada a área como TI, ou ainda em momento anterior, como visto, desde a declaração de seus limites pelo Ministro da Justiça, não resta ao proprietário qualquer alternativa senão buscar seu direito a indenização. A Convenção 169 da OIT (BRASIL, 2004, web) em sua Parte II, art. 16, 5 determina que os proprietários devem ser transferidos, reassentados e sobretudo indenizados de maneira plena por qualquer perda ou dano em consequência da demarcação da TI. Vejamos: Artigo 16 – 5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por qualquer perda ou dano que tenham sofrido como consequência do seu deslocamento. De maneira distinta, a Constituição Federal em seu art. 231, § 6º, in fine dispôs que o direito a indenização do proprietário de boa-fé contra a União se limita as benfeitorias, in verbis: Art. 231. [...] 16 // Problemas da jurisdição contemporânea... § 6º - (...), não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (BRASIL, 1988, web). Chama atenção a relevante desarmonia entre o que determina a Convenção 169 da OIT e a previsão constitucional brasileira, ao passo que enquanto a primeira considera devida indenização plena por qualquer perda ou dano, a segunda prevê que apenas as perdas decorrentes de benfeitorias serão indenizadas. Ademais, nota-se que a referida previsão da Lei Maior se trata de norma constitucional de eficácia limitada, determinando que a indenização das benfeitorias ocorrerá na forma da lei. Contudo, não há ainda instrumento normativo primário que a regulamente. Diante na inexistência de regulamentação legal, é vigente para dispor acerca da indenização das benfeitorias das TI, uma Instrução Normativa da Própria FUNAI de número 02 de 03/02/2012. Primeiramente, vale elucidar que a Instrução Normativa em seu art. 2º enumerou seus fundamentos legais. Porém, observa-se que a Convenção 169 da OIT não está presente neste rol: Art. 2 Esta Instrução Normativa tem como fundamentação legal: I - Artigo 231, § 6º, da Constituição; II - Artigo 29, caput e inciso I, da Lei nº 6.383/1976; III - Artigo 5º, caput, II e IV, artigo 6º, § 1º, e artigo 14, caput e § 1º, da Lei nº 11.952/2009; IV - Artigo 16 da Lei nº 4.771/1965; V - Artigo 4º, II, da Lei nº 4.504; VI - Artigos 59, 69 e 69-A da Lei nº 9.784/1999; VII - Artigo 1º, I, "b", da Lei nº 5.371/1967; VIII - Artigo 2º, IX, e artigo 19 da Lei nº 6.001/1973; e IX - Artigo 21, IX, do Decreto nº 7.059/2009 (BRASIL, 2004, web). Esta primeira análise já demonstra que a Instrução Normativa em decorrência da previsão constitucional, não visa uma indenização global ao proprietário, limitando-se apenas quanto a apreciação das benfeitorias e seu pagamento. O art. 3º da Instrução determina que a FUNAI mantenha Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias, responsável por indicar se a ocupação é de boa-fé, se faz jus a indenização e quais as benfeitorias passíveis de indenização. Toda ocupação que contrariar o ordenamento jurídico será considerada como ilegal ou de má-fé, não cabendo a esta qualquer tipo de indenização. Porém, a Instrução Normativa da FUNAI em seu art. 5º além destas situações comuns que contrariam o ordenamento, traz outras formas de caracterizar a má-fé na ocupação: Art. 5 Caracteriza a má-fé da ocupação, dentre outras situações: A indenização global... // 17 I - a posse violenta, clandestina ou precária; II - o ocupante sabia ou podia saber que se tratava de terra indígena e, ainda assim, apossou-se da área; III - o ocupante prosseguiu na posse ou no esbulho da área, mesmo ciente, por qualquer modo, da irregularidade de sua ocupação; IV - o ocupante tiver se apossado da área, ainda que mediante contrato de compra e venda, após a publicação da respectiva portaria declaratória da lavra do senhor Ministro da Justiça; V - o ocupante já tiver sido beneficiado por programa oficial de assentamento; VI - o ocupante exercer a posse de área de modo a causar a degradação ambiental ou restar caracterizada a exploração predatória dos recursos naturais ou ocupação improdutiva; VII - a ocupação recair sobre imóvel titulado em nome de ente da Federação (União, Estado, Distrito Federal ou Município) ou de suas respectivas entidades; VIII - quando se tratar de terra indígena notoriamente conhecida. Parágrafo único. O disposto no inciso VII não se aplica às terras devolutas (FUNAI, 2012, web). Mais adiante, o artigo 7º determina os critérios nos quais serão pautadas as indenizações das benfeitorias. Este dispositivo acaba por limitar ainda mais o direito a indenização decorrente da demarcação da TI, que já restringido apenas as benfeitorias, se torna ainda menos abrangente. Em nosso entendimento, pode até se contestar a constitucionalidade da Instrução Normativa n. 2 da FUNAI, no que tange ao art. 7º, que apresenta inconstitucionalidade por vicio formal, pois, como enumera o §6º do art. 231 da CF, uma lei em sentido estrito deveria regular a indenização das benfeitorias. Entretanto, como já demonstrado, pela inexistência de lei regulamentadora, uma Instrução Normativa da própria FUNAI, interessada direta e parte da demarcação da TI, vige determinando os critérios para indenização das benfeitorias. Sem maiores discussões quanto aos desacertos da demarcação de TI´s em seu todo, vejamos o que dispõe o artigo 7º: Art. 7º A indenização de que trata esta Instrução Normativa é pautada pelos seguintes critérios: I - apenas as benfeitorias úteis e as necessárias serão indenizadas, podendo o ocupante levantar as voluptuárias, desde que sem detrimento da coisa; II - a partir do momento em que a ocupação perder o caráter de boa-fé, não serão consideradas indenizáveis quaisquer benfeitorias implantadas, inclusive as necessárias, ainda que destinadas à conservação e à manutenção das demais benfeitorias indenizáveis, salvo as imprescindíveis para evitar a ruína de prédio urbano ou rural; III - não serão considerados como benfeitorias os melhoramentos ou acréscimos sobrevindos sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor; 18 // Problemas da jurisdição contemporânea... IV - as normas de limitação de uso da propriedade rural (reserva legal) serão consideradas, inclusive quando se tratarem de benfeitorias reprodutivas, tais como pastagens, plantios florestais e de frutíferas; V - as benfeitorias, para as quais tenha sido necessária a supressão da vegetação nativa, somente serão passíveis de indenização se o ocupante tiver licença de desmatamento expedida pela autoridade competente, salvo se a autorização houver sido concedida em manifesta afronta à legislação ambiental, má-fé ou conluio; VI - as benfeitorias implantadas ou edificadas em áreas de preservação permanente, conforme estabelecido na legislação federal, somente serão passíveis de indenização se respeitados os requisitos legais; VII - as benfeitorias compensam-se com os danos causados pelo ocupante às terras indígenas ou às suas comunidades e ao meio ambiente da respectiva área. § 1º Para fins de aplicação do inciso II, considera-se a publicação da portaria declaratória da terra indígena como marco temporal para caracterização da boa-fé da ocupação, se outro não for o momento anterior a presumir a sua má-fé. § 2º Fica ressalvado que as transações posteriores à publicação da portaria declaratória não impedem a indenização de eventuais benfeitorias erigidas pelo ocupante anterior, ao tempo da boa-fé, que sejam consideradas passíveis de indenização, desde que essa situação esteja devidamente comprovada nos autos do processo (FUNAI, 2012, web). Com efeito, apenas as benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas, podendo o proprietário levantar as voluptuárias sem causar deterioração à propriedade. O dispositivo ainda determina que caso a ocupação perca o caráter de boa-fé, a partir deste momento não serão indenizáveis nenhuma das benfeitorias implantadas, ressalvadas aquelas destinadas a evitar a completa deterioração da propriedade. Em relação ao procedimento para o pagamento das benfeitorias, o artigo 8º da Instrução Normativa enumera sete fases. São elas: a) vistoria da propriedade e suas benfeitorias; b) avaliação; c) análise técnica preliminar; d) deliberação; e) recurso; f) julgamento; g) pagamento. A Vistoria da propriedade e suas respectivas benfeitorias serão realizadas pela Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias da FUNAI logo após a publicação da portaria do Ministro da Justiça, consistindo em visita in loco realizada pelos membros técnicos da Comissão (art. 9º da Instrução). A Avaliação consiste na elaboração de laudo da vistoria pela Comissão mediante arrolamento das benfeitorias juntamente com seus valores de mercado (artigos 10 e 11 da Instrução). O laudo de vistoria será remetido ao técnico de Direito de Proteção Territorial da FUNAI que realizará a Análise Técnica Preliminar elaborando seu relatório (artigos 12 e 13 da Instrução). O processo de levantamento das benfeitorias já instruído de relatório será retomado à Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias que irá A indenização global... // 19 Deliberar determinando o caráter da ocupação e quais as benfeitorias passíveis de indenização, devendo a FUNAI baixar Resolução publicando-a no DOU e encaminhando-a a Prefeitura do local da situação do imóvel para que também divulgue a Resolução (art. 14 a 17 da Instrução). Contra a decisão da Comissão caberá Recurso, sem efeito suspensivo, no prazo de 30 dias, a partir da publicação no DOU. Os recursos serão encaminhados para Comissão que irá elaborar parecer conclusivo, bem como, à Procuradoria da República especializada para manifestação sobre a regularidade do procedimento, submetido pôr fim ao julgamento pela Presidência da própria FUNAI (art. 18 a 21 da Instrução). Após julgamento ou não havendo recurso, será realizado, através da Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI o pagamento da indenização do valor aferido e a notificação pessoal dos proprietários da área demarcada como TI para que se retirem do local em 30 dias, retirada esta que caso não cumprida espontaneamente pode insurgir o auxílio da Policia Federal (art. 22 da Instrução). Vale ressaltar que, as benfeitorias somente serão indenizadas caso ainda existam no momento do seu pagamento, após os trâmites determinados pela Instrução Normativa, ficado o valor limitado ao estado de conservação em que se encontrarem as benfeitorias. Demonstrado o que se trata por terra indígena, bem como, analisada as nuances do procedimento de demarcação de terra indígena, seus efeitos e sua indenização, cabe então a apontar as necessárias mudanças na indenização da TI´s. 1.4 A MOTIVAÇÃO DOS CONFLITOS AGRÁRIOS E OS REFLEXOS DA ATUAL INDENIZAÇÃO NA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS Segundo dados fornecidos pela FUNAI, atualmente existem 543 (quinhentas e quarenta e três) terras tradicionalmente demarcadas como indígenas, sendo que apenas 426 (quatrocentos e vinte e seis) encontram-se regularizadas, ou seja, homologadas por Decreto Presidencial e submetidas ao registro em Cartório e na Secretária de Patrimônio da União (FUNAI, web). Ainda segundo a FUNAI, existem hoje 117 (cento e dezessete) áreas em processo de demarcação, das quais 37 (trinta e sete) encontram-se delimitadas, 66 (sessenta e seis) em fase de declaração e 14 (quatorze) homologadas pelo Presidente da República. As 543 (quinhentas e quarenta e três) terras indígenas tradicionalmente ocupadas correspondem a 111.961.753,5060ha (hectares) que satisfaz 13% (treze por cento) de todo território físico brasileiro, sendo este de 851.196.500ha (hectares). Ademais, existem ainda 129 (cento e vinte e nove) áreas que se encontram em fase de estudos antropológicos destinados a sua futura demarcação. Todavia, a dimensão territorial destas não é divulgada pelo órgão. 20 // Problemas da jurisdição contemporânea... Sabidamente o atual procedimento de demarcação de TI´s e a indenização do proprietário de imóvel rural demarcado são os grandes responsáveis que servem de estopim aos conflitos no campo entre índios e não índios. De acordo com números disponibilizados pela Comissão Pastoral da Terra – CPT (CPT, web) que realiza relatórios anuais desde 1985, neste período ocorreram cerca de 1.614 (mil seiscentas e quatorze) mortes no território brasileiro em virtude de conflitos agrários. Outro número que assusta é que de todos os casos apenas 91 (noventa e um) foram julgados resultando na condenação criminal de 93 (noventa e três) sujeitos, entre mandantes e executores. Destaca-se, ainda, que no ano de 2013 bateu-se o recorde de mortes ocorridas no campo em consequência dos conflitos agrários, fato que demonstra a terrível ascensão dessa problemática no território brasileiro. No ano de 2013 foram assassinadas 34 (trinta e quatro) pessoas, sendo 15 (quinze) o índios e 19 (dezenove) vítimas que se dividem entre produtores rurais, integrantes do movimento sem-terra, assentados, trabalhadores rurais, posseiros e outros. É evidente que os indígenas ao ocuparem as terras com procedimento de demarcação em trâmite antes mesmo de sua regularização, desrespeitam ordens judiciais de reintegração de posse e muitas vezes cometem crimes resguardados em sua inimputabilidade silvícola. Desta forma, acabam sendo os próprios indígenas as maiores vítimas do conflito agrário em confronto com a Polícia ou com os proprietários rurais. Contudo, principal responsável dos conflitos agrários é a atual forma de indenização, pois, ainda que a propriedade restasse ocupada pelos indígenas, se então houvesse uma prévia e justa indenização ao proprietário do imóvel, certamente, restaria solucionado o conflito no campo e no Judiciário. Para a advogada e antropóloga Luana Ruiz Silva: Nenhum produtor rural é contra a demarcação de terras para indígenas, o que não podemos admitir é a garantia de um suposto direito territorial mediante o confisco de nossas propriedades. Enfrentamos um Governo Federal que quer nos roubar na mão grande e isso não podemos admitir. Aqueles que defendem a relativização do direito de propriedade rural, cuidado! Amanhã poderão relativizar seu direito de propriedade territorial urbano, propriedade do salário, propriedade da poupança. Ademais, se existe uma dívida com os índios, essa dívida é de todo cidadão brasileiro, e não de um ou outro produtor rural, como se os índios nunca houvessem perambulado a Praça da Sé ou a Baía de Guanabara (SILVA, web). Não menos requintadas, são as lições de Hildebrando Campestrini: Um outro ponto, de inquestionável gravidade, é o fato de o governo federal não aceitar indenizar no justo valor a terra nua, pressupondo, equivocadamente, que a terra “retomada” já era dos índios. Admite pagar somente as benfeitorias. (...) A indenização global... // 21 Mais: a terra nua hoje tem valor inestimável, por razões econômicas e sociais. Já foi o tempo em que se trocava uma grande área por arma de fogo ou cavalo marchador (CAMPESTRINI, 2009, p. 74). Logo, conclui-se que a resposta para a atual problemática dos conflitos étnicos e sociais no ambiente rural brasileiro se encontra no pagamento das indenizações. 1.5 OS FUNDAMENTOS PARA UMA INDENIZAÇÃO GLOBAL DO IMÓVEL Conforme demostrado alhures, a terra indígena que apresente os requisitos do §1º do art. 231 da Constituição, será submetida ao procedimento que ter por objeto sua demarcação, declaração como de propriedade da União, usufruto indígena e, consequentemente, expropriada do patrimônio particular. Em decorrência disso aquele que detinha a “ocupação” de boa-fé, possui direito apenas a indenização pelas benfeitorias úteis e necessárias nos termos do art. 231, §6º da Constituição e regulamentação trazida pela Instrução Normativa n.º 3 da FUNAI de 2003. Partindo dessa interpretação estamos considerando nulo o justo título do proprietário da área a ser demarcada como TI, ainda que de boa-fé, admitindo-se que a população indígena possui o direito originário as terras tradicionalmente ocupadas (art. 231), precedente ao direito daquele que estaria no imóvel como simples ocupante. Ora, aquele que possuía o justo título do imóvel, que lhe foi concedido e registrado em total obediência ao art. 1.245 do Código Civil e pela ótica de todo restante de nosso ordenamento jurídico, alheio ao art. 231 da Constituição, quando expropriado deste imóvel faz jus a indenização. Notadamente, o que se tem hoje na demarcação de TI não pode sequer ser tratado como indenização, mas sim como mero levantamento das benfeitorias úteis e necessárias, como àquela concedida ao devedor pelo artigo 242 do Código Civil, ou ainda a retenção facultada ao locatário, conforme art. 578 do mesmo códex. Ademais, nota-se que pelo contexto protecionista da propriedade o código civil resguarda até ao possuidor de má-fé o ressarcimento pelas benfeitorias necessárias, nos termos do art. 1.220. Todo demonstrado visa tão somente aquiescer o quão exagerado, desproporcional e irrazoável o tratamento e indenização das TI´s, bem como, a afronta e abandono total ao direito de propriedade que detém o proprietário da área demarcada como TI. E o Poder Judiciário já se manifestou quanto à latente violação de direitos adquiridos e ao direito de propriedade, ocasionados pela demarcação de terras indígenas, que ocorre sem justa indenização e ainda considera nulos os atos acerca daquela propriedade: AGRAVO DE INSTRUMENTO. TERRAS INDÍGENAS. IDENTIFICAÇÃO E DEMARCAÇÃO. CONTESTAÇÃO DE TERCEIROS. TÍTULO DE DOMÍNIO. I - A identificação e demarcação de terras indígenas configura ato 22 // Problemas da jurisdição contemporânea... administrativo que, como tal, deve constituir-se de objeto lícito, o que não ocorrerá se incidir em área de domínio alheio, destarte padecendo, nesta hipótese, de nulidade suscetível de declaração pelo Judiciário. II - Hipótese que não é de localização permanente de índios mas de posse de terceiros embasada em título de domínio. Exigência de apuração de possível violação às normas jurídicas de proteção da posse indígena vigentes na origem do encadeamento de sucessão entre os membros das outras etnias. III - A proteção constitucional da posse indígena não pode ter o alcance de nulidade de atos válidos segundo a legislação à sua época em vigor, sob pena de incoerência na perspectiva das garantias dos direitos adquiridos e do direito de propriedade contra a desapropriação sem justa indenização. IV - Recurso desprovido. (TRF-3. QUINTA TURMA. AI 00879034420064030000 AI – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 278365 – REL. DESEMBARGADOR FEDERAL PEIXOTO JUNIOR. DJF3 DATA:09/09/2008) Pois bem, no direito brasileiro o simples ressarcimento de benfeitorias é inclusive direito do locatário, o qual nunca teve a propriedade do imóvel, do devedor e até do possuidor de má-fé, sujeitos alheios e que não resguardam singularidade ao proprietário de boa-fé de imóvel que resta demarcado como TI. Da maneira que já foi abordado, o 5º, inciso XXIV da Constituição determina que em caso de desapropriação, e, entendemos, em qualquer outra forma de expropriação de imóvel daquele que detém justo título e boafé na posse o proprietário deve ser indenizado. A desapropriação para fins de reforma agrária, ora utilizada como paradigma para indenização na demarcação de TI, limita e expropria o direito de propriedade com a consequente indenização global do imóvel, bem como de suas benfeitorias úteis e necessárias. Ora, nem mesmo na desapropriação sancionatória, em que o particular não da destinação econômica à seu imóvel rural, subutilizando-o ou não utilizando-o, a expropriação da propriedade somente ocorrerá após duas medidas antecedentes, quais sejam, o parcelamento ou edificação compulsório e a aplicação do imposto progressivo no tempo. Sendo assim, na ocorrência de demarcação de terra indígena, não havendo previsão legal para qualquer medida antecedente em face da declaração de se considerar a terra direito originário dos povos indígenas, o mínimo que se espera é uma justa indenização ao proprietário do imóvel. Qualquer tratamento diverso, assim como ocorre na atualidade, valora de maneira errônea aquele que proprietário um imóvel rural improdutivo em descumprimento com a função social desta, em desfavor daquele que proprietário de imóvel rural produtivo, detentor de justo título e boa-fé, vê sua terra demarcada como indígena em contraprestação tão somente o ressarcimento de suas benfeitorias úteis e necessárias. Uma expropriação de propriedade imóvel particular sem a indenização de sua terra nua se assemelha, indevidamente, a desapropriação de caráter confiscatório decorrente da prática criminosa do plantio ilegal de culturas psicotrópicas, prevista no artigo 243 da Constituição. A indenização global... // 23 A existência de uma indenização justa acarretará efeitos econômicos e políticos no cenário brasileiro. A justa indenização, se paga previamente e em dinheiro, possibilita a retirada rápida do proprietário da terra, evitando assim todo impasse e conflito causado pela demarcação, onde indígenas visando uma prévia garantia de seus direitos ocupam precipitadamente a terra e não índios proprietários visando garantir seu sustento fruto da produtividade rural atalham a ocupação da terra. Ademais, a justa indenização de nada afeta o direito originário dos povos indígenas pelas terras que tradicionalmente ocupam (art. 231), bem como, preserva o direito de propriedade (art. 5, XXII) daquele que detém a propriedade respaldada em justo título e boa-fé. Vale trazer à baila mais uma lição de Hildebrando Campestrini, desvinculada do mérito a respeito dos indígenas ou das propriedades rurais: Encerrando fica a seguinte reflexão: quem quer o diálogo, a superação do conflito pelo entendimento, não pode usar de discurso exaltado, condenando a outra parte, impondo a própria verdade; o diálogo (necessariamente dialético) pressupõe, imperativamente, ouvir e entender o outro, para que, com mútuas renúncias, seja encontrada a solução mais adequada ao problema (CAMPESTRINI, 2009, p. 92). Em suma, precisamos dar equilíbrio entre direitos fundamentais, concedendo ao indígena o direito originário a terra tradicionalmente ocupada, mas, garantindo ao proprietário da área rural uma justa indenização que o possibilite haver sua produção e investimentos ainda que noutra propriedade. Possíveis alterações legislativas e políticas que visam a indenização do proprietário de área demarcada como TI. Conforme apresentamos no tópico anterior, entendemos como à melhor e mais justa resolução do conflito, se dar através de uma indenização global do imóvel, não somente em relação às benfeitorias, mas principalmente o valor de mercado da terra nua. Neste sentido, caminha o Poder Legislativo brasileiro que desde 2004 através da PEC 3/04, por ora arquivada, propunha a inserção de novo parágrafo ao art. 231 da Constituição Federal, permitindo que o Poder Público desapropriasse a terra, demarcando-a em favor da comunidade indígena mediante a indenização do proprietário pela terra nua, vejamos: §8º O disposto no §6 deste artigo não se aplica aos títulos de domínio expedidos e devidamente registrados, com posse mansa e pacífica por mais de dez anos consecutivos, cujas terras poderão ser desapropriadas para demarcação em favor da comunidade indígena na forma da Lei. (...) O §6º, do art. 231 da Constituição Federal proíbe essa desapropriação de terras, permitindo apenas a indenização quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. Desejando o poder público da solução de resgate histórico e antropológico aos índigos, em lugar de fazer cumprir as reintegrações de posse, o projeto permiti, intervir no processo, declarando a 24 // Problemas da jurisdição contemporânea... área particular de interesse público para efeito de desapropriação. Servirá de instrumento legal para a ampliação de aldeamentos, em áreas densamente povoadas por índios, sem prejuízos maiores para os proprietários com título de domínio e posse mansa e pacífica por mais de dez anos (SENADO FEDERAL, 2004, web). Vislumbra-se que a PEC supracitada interpreta a demarcação TI como medida expropriatória, evitando prejuízos ao então proprietário. Na mesma linha, o Diário Oficial da União publicou um Decreto Presidencial de n. 13.866 de 13 de março de 2014, declarando a desapropriação para fins de interesse social de área a ser demarcada como terra indígena à Comunidade indígena de Tuxá de Rodelas, no Município de Rodelas no Estado da Bahia, mediante justa e prévia indenização. Assim, o governo atual em vez de seguir o procedimento previsto no Decreto 1.175/96, mostrou preferência em desapropriar a área para posteriormente destiná-la ao usufruto de comunidade indígena evitando o moroso procedimento de demarcação de TI e os decorrentes conflitos agrários que sempre se eclodem. Na análise de Ilmar Galvão, trata-se de um marco dos mais importantes no trato governamental das questões suscitadas pela presença de indígenas no território brasileiro (MIGALHAS, web). Outra solução, por meio da indenização, permanecendo o procedimento de demarcação de TI é proposta pelo Projeto de Lei 5.919/2013 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2013, web), o qual pretende alterar o art. 19 do Estatuto do Índio (Lei. 6.001/73), visando garantir além da indenização da terra nua, além das benfeitorias, garantindo ainda ao proprietário de boa-fé permanecer na área até a data do pagamento integral da indenização. Desta maneira, restou demonstrado que a indenização do proprietário de terra demarcada como TI, derivada de uma desapropriação por interesse social ou mesmo mediante uma alteração do atual procedimento administrativo de declaração de TI, mostra-se imprescindível para se resguardar o direito de propriedade como direito fundamental, bem como, colocar fim ao conflito agrário que se estende em todo território nacional. 1.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Contata-se que o atual procedimento de demarcação de terras indígenas, especificamente no que tange a forma de sua indenização (art. 231, §6º da CF/88), provoca enorme desproporcionalidade entre as partes envolvidas (proprietário rural versus comunidade indígena), colocando em choque direitos de personalidade e garantias fundamentais que carregam um fardo histórico em nosso ordenamento jurídico. O conflito fraticida entre as etnias indignas que buscam a demarcação de suas terras tradicionais e as demais etnias não indígenas que porventura tenham o Direito de propriedade sobre as mesmas terras, por justo título espedido pelo Governo, não se encaixam no reducionismo dualista A indenização global... // 25 de mocinhos e bandidos ou certos e errados. Existem Direitos da Personalidade de ambas as partes envolvidos. Os Direito a retomada por parte dos indignas de suas terras tradicionais como imperativo de manutenção e sobrevivência de sua história cultura e existência e o Direito de propriedade do não índio que muitas e muitíssimas das vezes construiu o patrimônio rural sobre a pena de gerações de suas famílias trabalhando de forma legal, justa e moral, pagando os duros tributos deste pais, sempre com a melhor fé. O que concluímos é que quando ambas as partes encontram seus direitos lesados nenhuma delas ira ceder, continuando a existir esta guerra que já vitimou milhares de compatriotas. Está a solução para a pacificação da situação nas mãos do Governo Federal, com a indenização do valor global da propriedade para que os indignas possam receber suas terras tradicionais e os não indignas proprietários das terras, possam reconstruir dignamente suas vidas. Ainda caminhamos em passos lentos, mas, com acerto, o Poder Legislativo e Poder Executivo já sinalizaram nesse sentido, conforme os projetos de lei que visam uma indenização global do imóvel, bem como, Decretos expedidos pela Presidência da República determinando a desapropriação de propriedade rural, mediante pagamento de justa indenização, para posterior demarcação de terra indígena. 1.7 REFERÊNCIAS BARBIERI, Samia Roges Jordy. Os direitos constitucionais dos índios e o direito à diferença, face ao princípio da dignidade da pessoa humana. Coimbra: Edições Almeida, 2008. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 06 jul. 2014. _______. Decreto n.º 1.175/1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm>. Acesso em: 07 ago. 2014. _______. Decreto n.º 5.051/2004. Disponível em: <http://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=237202>. Acesso em: 07 ago. 2014. CAMPESTRINI, Hildebrando. Mato Grosso do Sul: conflitos étnicos e fundiários. Campo Grande: 2009. CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Almedina, 1982. _______. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002. CARRASCO, Lorenzo. Quem manipula os povos indígenas contra o desenvolvimento do Brasil: um olhar nos porões do Conselho Mundial de Igrejas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Capadex, 2013. 26 // Problemas da jurisdição contemporânea... COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – CPT. Conflitos no campo Brasil. Disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/conflitos-nocampo-brasil>. Acesso em: 07 ago. 2014. FUNAI. Índios no Brasil. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas>. Acesso em: 07 ago. 2014. FUNAI. Portaria 14. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/dpt/pdf/portaria14funai.pdf>. Acesso em: 07 ago. 2014. MENDES, Gilmar Ferrreira. Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. MIGALHAS. A desapropriação de áreas destinadas à instituição de reservas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI197379,71043A+desapropriacao+de+areas+destinadas+a+instituicao+de+reservas>. Acesso em: 07 ago. 2014. CÂMARFA DOS DEPUTADOS. PROJETO DE LEI N.º 5.919-B, DE 2013. 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Acesso em: 24 jul. 2014 = II = A OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DECORRENTE DO TRABALHO ESCRAVO NA CONTEMPORANEIDADE: PROPOSTAS PARA SUA ERRADICAÇÃO Muriana Carrilho Bernardineli* 2.1 INTRODUÇÃO O presente artigo visa analisar as ofensas aos Direitos da Personalidade decorrentes do trabalho escravo na contemporaneidade. Para tanto será realizado um apanhado histórico do trabalho desde o período escravocrata, passando por conquistas trabalhistas relevantes até chegar-se ao que atualmente denomina-se Direito do Trabalho. Primeiramente, imprescindível conceituar a expressão “meio ambiente do trabalho”, pois este reflete não apenas na vida profissional, mas também pessoal do trabalhador. E nesta sequência, expor o paradoxo entre a promoção de um ambiente laborativo decente e os reiterados casos de escravidão na modernidade. Nesse diapasão, verificar-se-á o ordenamento jurídico vigente em consonância com o entendimento de organizações internacionais, como OIT, relacionando o paradoxo entre a criação de dispositivos legais, convenções e a efetividade de sua aplicação. Os Direitos da Personalidade em decorrência de sua fundamental importância requerem proteção especial, enfaticamente no ambiente de trabalho em que violações são frequentes e causam prejuízos imensuráveis à pessoa humana. Assim, nítida é a violação aos Direitos da Personalidade quando da ocorrência do trabalho escravo, promotor de degradação humana sem precedentes. Quanto ao trabalho forçado serão realizados apontamentos de casos concretos, dentre os quais vale ressaltar àqueles perpetrados em empresas de grande renome, que na acelerada busca por uma colocação no mercado, não mensuram os danos advindos de suas práticas e descumprem direitos pessoais e trabalhistas. Por fim, serão apresentadas propostas para a erradicação da escravidão moderna, almejando assim eliminar prática tão repudiada por toda a sociedade e ao mesmo tempo tão recorrente nos dias atuais. * Advogada. Bacharel em Direito pela UEM – Universidade Estadual de Maringá. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo IDCC – Instituto de Direito e Cidadania em parceria com UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná. Mestranda em Direitos da Personalidade pela UNICESUMAR – Centro Universitário de Maringá. Docente do curso de Graduação em Direito da Faculdade Alvorada em Maringá – PR. 28 // Problemas da jurisdição contemporânea... Consigna que para o desenvolvimento do presente artigo foram utilizados os métodos histórico e dedutivo, de cunho qualitativo, através da pesquisa teórica direcionada a consultas e pesquisas em livros, artigos, periódicos, revistas, documentos físicos e eletrônicos, além de análises legislativas e casos concretos, com o fim de abranger a problemática e apresentar propostas que possam alterar o crescimento exponencial do trabalho escravo na sociedade moderna. 2.2 BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA: DA ESCRAVIDÃO À PROTEÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS A escravidão foi a primeira forma de trabalho e neste contexto, o escravo era considerado apenas uma coisa, não tendo qualquer direito, muito menos trabalhista, ou seja, o escravo nem mesmo era tido como pessoa, contrariamente era propriedade dominus, perdurando esta condição de escravidão por tempo indeterminado (MARTINS, 2014, p. 4). Na Grécia antiga entendia-se que os escravos faziam o trabalho duro, enquanto os outros poderiam ser livres, não possuindo assim a significação do trabalho como realização pessoal. Em Roma o trabalho também era realizado pelos escravos, sendo que a Lex Aquilia (284 a. C.) considerava o escravo como coisa e o trabalho, algo desonroso (MARTINS, 2014, p. 4). Em seguida, no feudalismo passa a vigorar o sistema de servidão, sendo que os senhores feudais protegiam militar e politicamente os servos, e em contrapartida estes ficavam ligados a terra, como se escravos fossem, pois tinham a obrigação de entregar parte da produção rural como preço pela fixação na terra e pela defesa que recebiam, e por isso nunca quitavam suas dívidas com os senhores (NASCIMENTO, 2011, p. 43), demonstrando condição análoga à escrava. Posteriormente, surgem as corporações de ofício, contudo, somente com a Revolução Industrial principia o que atualmente entende-se por Direito do Trabalho. Na Europa, por volta do século XVIII, a Revolução Industrial trouxe consigo a imposição de condições degradantes de trabalho, dentre as quais estavam: a exigência de excessivas jornadas de trabalho, a exploração de mulheres e crianças consideradas mão-de-obra mais barata, os acidentes de trabalho, baixos salários, dentre outros. Tais violações eram recorrentes e demonstraram a necessidade em coibir os abusos perpetrados contra o proletariado e, mais diretamente, a exploração do trabalho dos menores e mulheres, o que desencadeou no surgimento das primeiras leis trabalhistas (NASCIMENTO, 2011, p. 45-46). Neste cenário, somente o patrão estabelecia as condições de trabalho a serem cumpridas pelos empregados e não havia leis regulamentando, o que tornava os trabalhadores vulneráveis as imposições dos empregadores. Desta forma, a pressão do movimento operário conjuntamente aos movimentos internacionais em defesa dos direitos do ser humano e a atuação da Igreja, encontrou campo fértil para a intervenção do Estado na relação A ofensa aos direitos... // 29 contratual privada, a fim de proteger a parte mais fraca da relação de emprego, o trabalhador, visto que até então no contexto do liberalismo havia constante abuso e exploração do trabalho (RESENDE, 2013, p. 2). Assim, a população começou a se organizar e delegar poderes ao Estado, que passou a assumir o papel de distribuidor da justiça, colocandose no lugar do ofendido, apenando o agressor para, em nome da harmonia social, garantir o bem-estar coletivo, regulamentando a garantia de condições mínimas de um trabalho mais digno (MELO, 2012, p. 3), pois nesta conjectura, a crescente exploração do proletariado na busca desmedida pela riqueza dos donos dos meios de produção gerou a necessidade de intervenção estatal, com o intuito de proteger a parte mais fraca na relação de trabalho. A Inglaterra, como mãe da industrialização, trouxe as primeiras contribuições, através do Lord Campbell’s Act (1846), referente aos acidentes nas estradas de ferro, e do Workmen’s Compensation Act (1897), que tratava da indenização às vítimas de acidente de trabalho, seguida por países como Alemanha e França que também demonstraram preocupação em proteger o trabalhador (CASILLO, 1994, p. 39). Em 1891, o Papa Leão XIII apresenta a Encíclica Rerum Novarum (coisas novas), que traça regras para a intervenção estatal na relação entre trabalhador e patrão, com o fim de “Não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital” (Encíclica Rerum Novarum, Capitulo 28) (MARTINS, 2014, p. 8), demonstrando o crescimento do ideal valorativo do trabalho como propulsor humano e não mais como pena ou prática desonrosa. Com o fim da Primeira Guerra Mundial surge o chamado de constitucionalismo social, o qual se refere a “[...] inclusão nas constituições de preceitos relativos à defesa social da pessoa, de normas de interesse social e de garantias de certos direitos fundamentais, incluindo o Direito do Trabalho” (MARTINS, 2014, p. 9), pois que os horrores da guerra transformou o pensamento das pessoas que passaram a reivindicar direitos. Neste período, acirrou-se o intervencionismo estatal e começaram a surgir as primeiras constituições que previam a proteção ao trabalhador (MANSUR JÚNIOR, 2010, p. 246), sendo que a efetivação de maiores garantias ao trabalhador deu-se com a Segunda Guerra Mundial, a qual foi marcada pelo surgimento da tecnologia de ponta, incremento nas telecomunicações, inovações na informática e outros fenômenos que desencadearam a globalização (NUNES, 2011, p. 59). No Brasil, a Lei do Ventre Livre de 28/09/1871 dispôs que a partir desta data os filhos de escravos nasceriam livres, sendo em 28/09/1885 aprovada a Lei Saraiva-Cotegipe, chamada Lei dos Sexagenários, libertando os escravos com mais de 60 anos de idade e em 13/05/1888 foi assinada pela Princesa Isabel a Lei Áurea (Lei nº 3.353) que abolia a escravatura. A Constituição Federal de 1891, por sua vez reconheceu o direito de associação e em 1934, no Brasil foi promulgada a primeira Constituição a tratar do Direito do Trabalho e assegurar direitos mínimos aos trabalhadores como a jornada de oito horas diárias, férias anuais remuneradas, salário 30 // Problemas da jurisdição contemporânea... mínimo. E em 01/05/1943 é promulgado o Decreto-Lei nº 5.452 que aprova a Consolidação das Leis Trabalhistas, impondo medidas protetivas aos direitos do trabalhador. Com o fenômeno da globalização houve a facilitação na migração das unidades de produção para áreas periféricas e países em desenvolvimento, onde os custos da produção são visivelmente menores. Em decorrência da busca por unidades de produção de baixo custo, a solução vislumbrada por alguns países foi a flexibilização das relações de trabalho, como forma de diminuir os custos das empresas que pretendiam instalar-se nos países em desenvolvimento. De modo que, a constante evolução do mercado está demonstrando uma tendência não apenas de flexibilização, e sim de desregulamentação completa dos direitos trabalhistas (RESENDE, 2013, p. 2), com o intuito de tornar os países mais competitivos. A desregulamentação de leis trabalhistas mostra-se como um retrocesso aos direitos adquiridos, e nessa acepção, contrariamente à tendência mundial, o Brasil promulgou a Constituição Federal de 1988, a qual trouxe garantias de direitos ao trabalhador, denominados como mínimo existencial. Em 2002 é aprovado o novo Código Civil que juntamente a Constituição Federal, Consolidação das Leis Trabalhistas, legislações esparsas, entendimentos jurisprudenciais, tratados e convenções internacionais, respaldam e complementam os direitos trabalhistas. Não obstante a aplicação das garantias dos direitos mínimos dos trabalhadores levados a efeito pela Constituição de 1988, o fato é que o capitalista continua atuando no sentido da desregulamentação trabalhista, sugerindo, em posição extrema, o velho dogma liberal de que a relação de trabalho deveria ser regida por um simples contrato de prestação de serviços, nos moldes do direito comum (RESENDE, 2013, p. 3). E, neste contexto não apenas a desregulamentação mostra-se iminente, mas também o trabalho escravo ainda alastra-se na contemporaneidade, refletindo um processo histórico da escravidão, em que o trabalho é utilizado para lucro de poucos, em contrapartida ao trabalho forçado de muitos, demonstrando que o ideal escravocrata na prática, ainda não foi efetivamente abolido. Nesta acepção, insta consignar que o combate ao trabalho escravo é preconizado por organismos nacionais e internacionais, contudo ainda há um longo caminho a percorrer para efetivamente garantir a proteção aos direitos personalíssimos e trabalhistas. A ofensa aos direitos... // 31 2.3 MEIO AMBIENTE DO TRABALHO 2.3.1 Conceito legal e doutrinário de meio ambiente do trabalho Dispõe a Lei 6.938/81 sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, conceituando meio ambiente como [...] o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3°, inciso I), sendo que a recuperação da qualidade ambiental propícia à vida apresenta-se como a forma de promover o desenvolvimento socioeconômico e a proteção à dignidade humana, com o fim de prezar pelo equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo e o acompanhamento do estado da qualidade ambiental (art. 2°, “caput” e inciso I). O conceito de meio ambiente abrange “[...] toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico” (SILVA, 2013, p. 20). A expressão “meio” refere-se a um dado contexto físico ou social, um recurso ou insumo para alcançar ou produzir algo, já “ambiente” pode representar um espaço geográfico ou social, físico ou psicológico, natural ou artificial (MILARÉ, 2007, p. 110). O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para presentes e futuras gerações encontra-se expressamente previsto no art. 225, “caput” da Lei Maior, o qual tem o intuito de promover a sadia qualidade de vida à população. O caráter patrimonial do meio ambiente “[...] parte de uma conceituação fisiográfica ao fundamentá-lo sobre o equilíbrio ecológico e a sadia qualidade de vida” (MILARÉ, 2007, p. 113). De modo que, a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado reflete “[...] a preocupação com a própria necessidade de sobrevivência do Ser Humano e da manutenção das qualidades de salubridade do meio ambiente, com a conservação das espécies” (ANTUNES, 2014, p. 5), pois é nítido que sem o meio ambiente, habitat do homem, a vida humana torna-se inviável. Nessa acepção, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está diretamente relacionado ao direito à vida e por isso, considerado fundamental e intimamente ligado ao direito social de busca da felicidade (SIRVINSKAS, 2014, p. 156), razão pelo qual deve ser garantido à coletividade. O direito ambiental pretende justamente identificar condições que promovam a estabilidade da vida humana, apresentando regras que possam prevenir ou reparar o desequilíbrio (MACHADO, 2014, p. 63), pois “[...] o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem jurídico, que muito contribui para uma melhor qualidade de vida e bem estar de todas as pessoas” 32 // Problemas da jurisdição contemporânea... (SOUZA, 2010, p. 12), razão pelo qual merece especial proteção de órgãos governamentais e sociedade como um todo. O conceito de meio ambiente deve ser estendido ao meio ambiente de trabalho com o intuito de garantir a sadia qualidade de vida do trabalhador no ambiente laboral, considerando estar expressamente prevista a extensão do termo “meio ambiente” ao trabalho, no art. 200, inciso VIII da Constituição Federal de 1988. Assim sendo, de acordo com a Convenção n° 155 da Organização Internacional do Trabalho, “[...] a expressão ‘local de trabalho’ abrange todos os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou onde têm que comparecer, e que estejam sob o controle, direto ou indireto, do empregador” (OIT, 1981). Leda Maria Messias da Silva define meio ambiente de trabalho como: [...] não só o local onde o trabalhador presta serviço, mas também como parte do meio ambiente do trabalho, todos os fatores internos e externos que possam interagir com o trabalho e influenciar de alguma forma esse meio ambiente, contribuindo para seu equilíbrio ou desequilíbrio. (SILVA, 2008, p. 1121). O meio ambiente do trabalho merece atenção especial, pois é o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, de modo que a qualidade de vida está intimamente relacionada a este ambiente, razão pelo qual se transforma em um bem, cuja preservação “[...] recuperação e revitalização se tornaram um imperativo do Poder Público, para assegurar uma boa qualidade de vida, que implica boas condições de trabalho, lazer, educação, saúde, segurança enfim, boas condições de bem-estar do homem e de seu desenvolvimento” (SILVA, 2013, p. 23-25). Em âmbito laborativo, o bem ambiental envolve a vida do trabalhador como pessoa e integrante da sociedade, devendo ser preservado por meio da implementação de adequadas condições de trabalho, higiene e medicina do trabalho, cabendo primeiramente ao empregador à obrigação de preservar e proteger o meio ambiente de trabalho e ao Estado e à sociedade fazer valer a incolumidade do referido bem (MELO, 2013, p. 34-35). No meio ambiente de trabalho, o empregador tem o direito de exerce o poder diretivo, conforme expressamente consignado no art. 2º da Consolidação das Leis Trabalhistas, contudo é necessário considerar que tal poder deve sofrer limitações, dentre os quais está a proteção aos Direitos da Personalidade do empregado. Nesta acepção, encontra-se o entendimento apresentado por Gisele Mendes de Carvalho, Erica Mendes de Carvalho, Leda Maria Messias da Silva e Isadora Vier Machado: O empregador deve exercer seu poder diretivo, quer seja de organização, de controle ou disciplinar, com bom-senso e nos estritos termos do contrato de trabalho, e zelar para que todos os seus prepostos assim o façam, ou seja, com respeito à figura do empregado como pessoa digna e merecedora de ter A ofensa aos direitos... // 33 direitos personalíssimos de todos os envolvidos (CARVALHO; CARVALHO; SILVA; MACHADO, 2013, p. 93). Por isso, deve-se primeiramente considerar os Direitos da Personalidade de qualquer ser humano, pois que são limitadores ao exercício de outros direitos, como o poder diretivo do empregador no meio ambiente de trabalho, considerando que a violação a garantias concedidas aos trabalhadores é o grande propulsor do trabalho escravo na contemporaneidade. 2.3.2 OIT e a promoção do trabalho decente A Organização Internacional do Trabalho foi criada com o intuito de promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem estar, sendo composta de três órgãos: a Conferência ou Assembleia Geral, o Conselho de Administração e a Repartição Internacional do Trabalho (MARTINS, 2014, p. 81). A OIT, no ano de 1988 editou a Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, visando manter o vínculo e equilíbrio entre progresso social e crescimento econômico, garantindo os direitos fundamentais no trabalho e assegurando aos próprios interessados a possibilidade de reivindicar livremente uma participação justa nas riquezas produzidas, desenvolvendo plenamente o potencial humano (MELATTI, 2011, p. 115). Na Declaração supramencionada ficou consignado no art. 2º que todos os Estados-membros têm um compromisso de respeitar os princípios relativos aos direitos fundamentais previstos nas normas internacionais emanadas da OIT que promovem a liberdade sindical, o reconhecimento da negociação coletiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, a abolição efetiva do trabalho infantil e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação (MELATTI, 2011, p. 115116). Os princípios fundamentais norteadores das atividades da OIT foram acolhidos pela Constituição Federal/88, dentre os quais vale ressaltar a livre associação sindical (art. 8°); trabalhos forçados (art. 5°, XLVII); “[...] proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência” (art. 7°, XXXI); “[...] proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos” (art. 7° XXXIII). A OIT por meio de seus preceitos busca efetivar a promoção do trabalho decente, o qual de acordo Sergio Pinto Martins tem os seguintes objetivos: [...] promover o diálogo social, proteção social e criação de empregos. Esclarece que o trabalho não é mercadoria, pois não pode ser negociado pelo maior lucro ou pelo menor preço. Deve haver política de resultados nos 34 // Problemas da jurisdição contemporânea... países, com distribuição de renda, fiscalização trabalhista, permitindo que as pessoas possam trabalhar com dignidade (MARTINS, 2014, p. 86). Assim, o trabalho não pode ser considerado mercadoria, devendo promover a dignificação do homem, pois a colocação do ser humano como “coisa” demonstra o retrocesso aos direitos trabalhistas e a perpetração do sistema escravocrata. De acordo com a Agenda Nacional do Trabalho Decente, a promoção do trabalho decente no Brasil, passou a ser um compromisso assumido entre o Governo brasileiro e a OIT a partir de junho/2003, constando dentre as prioridades a implementação de uma Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador em consonância com as normas internacionais do trabalho sobre a matéria, a identificação de mecanismos e desenvolvimento de ações voltadas à garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável (CARLESSO, 2008, p. 215-216). A Convenção n° 29 trata especificadamente sobre o trabalho forçado e/ou obrigatório (OIT, 1930), encontrando no mesmo sentido a Convenção n° 105, a qual pretende a abolição do trabalho forçado (OIT, 1957), considerando tal prática criminosa, pois violadora de Direitos Humanos. Na Convenção n° 182 consta como as piores formas de trabalho infantil, a escravidão ou práticas análogas à escravidão, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança, e por isso, propõe a implementação pelos Estados-Membros de medidas para a erradicação de tais espécies laborativas (OIT, 1999). As normas jurídicas condutoras da OIT tem a finalidade de universalização de preceitos mínimos de proteção ao trabalho e com o fim de promover a incorporação destas ao direito positivo dos Estados-membros (MELATTI, 2011, p. 115), considerando que a força de trabalho não pode ser manipulada como meio de alcançar fins meramente econômicos, devendo também garantir a proteção aos Direitos da Personalidade do trabalhador. Por esta razão, as Conferências realizadas pela OIT direcionam seus esforços para a promoção da garantia de um trabalho decente através da efetivação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e proteção ao trabalhador, tido como parte hipossuficiente na relação de trabalho. Assim, o trabalho decente em um meio ambiente laborativo digno cumpre a função social do contrato, tornando o trabalhador sujeito de direitos e, consequentemente evitando a promoção do trabalho análogo ao escravo na contemporaneidade. 2.4 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE DO TRABALHADOR A personalidade é definida como a propensão de ser titular de direitos e obrigações jurídicas, estando os Direitos da Personalidade vinculados a A ofensa aos direitos... // 35 outros direitos, sem os quais restaria uma suscetibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor concreto, pois mostram-se como direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam sua razão de ser e o indivíduo e a pessoa não existiriam como tal (CUPIS, 2008, p. 19-24). De acordo com Daniela Paes Moreira Samaniego: [...] os Direitos da Personalidade são direitos subjetivos, que têm por objeto os elementos que constituem a personalidade do titular considerada em seus aspectos físico, moral e intelectual. Tem como finalidade proteger, principalmente, as qualidades, os atributos essenciais da pessoa humana, de forma a impedir que os mesmos possam ser apropriados ou usados por outras pessoas que não os seus titulares. São direitos inatos e permanentes, uma vez que nascem com a pessoa e a acompanham durante toda a sua existência até a sua morte [...] (SAMANIEGO, 2000). Direitos da Personalidade são dotados de caracteres especiais que visam proteger de modo eficaz a pessoa humana e seus bens mais elevados, razão pelo qual o ordenamento jurídico não consente que deles se despoje o titular, emprestando-lhes caráter essencial. (BITTAR, 1999, p. 11). Os direitos da personalidade são “[...] bens jurídicos em que se convertem projeções físicas e psíquicas da pessoa humana por determinação legal, que os individualiza para lhes dispensar proteção” (GOMES, 1966, p. 41). Assim são características dos Direitos da Personalidade: [...] direitos inatos (originários), absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes, transcendendo o ordenamento jurídico, porque ínsito à própria natureza do homem como ente dotado de personalidade, independente de relação imediata com o mundo exterior ou outra pessoa, sendo intangíveis pelo Estado ou por particulares (BITTAR, 1999, p. 11). Os Direitos da Personalidade são os direitos à honra, a dignidade, a intimidade, a imagem, vida e integridade física, liberdade, vida privada, entre outros considerados inerentes à condição humana. E, portanto, são denominados inatos, subjetivos, essenciais ou personalíssimos, direitos subjetivos absolutos, incorpóreos e extrapatrimoniais, correspondentes aos atributos físicos, intelectuais e morais da pessoa (BELMONTE, 2002, p. 125). Nas últimas décadas, ocorreram transformações no direito, no sentido de valorizar o ser humano em sua plenitude, com a preservação daqueles direitos que são inerentes à sua personalidade (CAHALI, 2011, p. 521), contudo apesar das inúmeras garantias conquistadas ao longo do tempo, ainda é grande o contingente de violações aos Direitos da Personalidade. Considerando serem os Direitos da Personalidade de suma importância, merecem especial tutela e efetividade, com ênfase ao Direito do Trabalho, que contêm especificidades contratuais. A proteção aos Direitos da Personalidade encontra-se prevista no art. 5°, “caput” da Constituição Federal de 1988, que garante a tutela ao direito à 36 // Problemas da jurisdição contemporânea... vida, liberdade, igualdade e segurança e arts. 11 e 12 do Código Civil de 2002, os quais consignam serem os Direitos da Personalidade, intransmissíveis e irrenunciáveis, podendo reclamar indenização por perdas e danos quando houver ameaça ou lesão. O direito mais importante garantido ao ser humano é o direito à vida, conjuntamente com a integridade física, que deve ser mantida para promover uma vida plena e saudável, o direito a liberdade, também de suma importância, consistindo no direito de ir e vir, e indiretamente garantidor de outros direitos como a livre associação sindical, também previsto no texto constitucional. Desta forma, o contrato de trabalho estabelecido entre as partes deve respeitar direitos personalíssimos do trabalhador, como forma de promover um convívio saudável no ambiente laboral, visto que tal relação contem diretrizes distintas de outras espécies contratuais, como por exemplo, a subordinação do empregado ao empregador e imposição do poder diretivo. O empregador em decorrência de sua posição privilegiada na relação trabalhista, por vezes extrapola o poder diretivo e consequentemente descumpre o estipulado no contrato, desrespeitando a verdadeira função do trabalho que é dignificar o homem. Nas palavras do doutrinador Alexandre Agra Belmonte, a relação entre as partes é definida da seguinte forma: “O empregado e empregador tem deveres recíprocos provenientes das características da bilateralidade, pessoalidade, alteridade, fiduciariedade e sucessividade” (BELMONTE, 2002, p. 107). Por esta razão, práticas abusivas devem ser repudiadas em busca de um trabalho decente que preserve a dignidade do trabalhador e cumpra a função social do contrato, considerando que a proteção à dignidade da pessoa humana está entre os fundamentos preconizados pelo Estado Democrático de Direito, juntamente com os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa (art. 1°, CF/88), complementado pelo art. 170, “caput” da Lei Maior que garante a proteção ao trabalho, registrando ser a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando a todos uma existência digna, nos moldes da justiça social. Ainda, é garantida a igualdade perante a lei, a qual “[...] não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regular da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos” (MELLO, 2014, p. 10). Nítido que um “[...] meio de trabalho não edificante apresenta sérios riscos aos Direitos da Personalidade, visto que tais direitos são inatos e inerentes à pessoa humana de forma perpétua”, razão pelo qual se mostra necessário proteger a saúde do profissional, com o fim de evitar danos à sociedade como um todo (SILVA; PEREIRA, 2013, p. 16). Assim, resta clara a proteção concedida ao trabalhador, contudo também aparente o descumprimento de inúmeras disposições, figurando-se reiteradamente o uso de trabalho escravo nos meios de produção, que na contramão das legislações trabalhistas torna-se cada vez mais recorrente, A ofensa aos direitos... // 37 degradando o meio ambiente de trabalho e causando imensuráveis prejuízos ao trabalhador escravizado e a toda sociedade. 2.5 O TRABALHO ESCRAVO OU ANÁLOGO AO ESCRAVO NA CONTEMPORANEIDADE Nos termos da Convenção n° 29, art. 2°, número 1, a expressão trabalho forçado ou obrigatório compreenderá “[...] todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente” (OIT, 1930), constando ainda a proibição do trabalho forçado na Convenção n° 105, a qual menciona formas de abolir o trabalho escravo (OIT, 1957). De acordo com a OIT “[...] toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro”, o que os diferencia é a liberdade, pois o trabalho escravo cerceia a liberdade dos trabalhadores, utilizando-se de meios como apreensão de documentos, presença de guardas armados ou com comportamento ameaçador, dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga (OIT, 2003). Deve-se ainda considerar o disposto no art. 5°, XLVII da Carta Magna que garante a não aplicação de penas por meio de trabalho forçado, sendo o uso de trabalho análogo ao escravo, objeto de sanção no art. 149 do Código Penal, ou seja, se nem como meio punição pode ser utilizado o trabalho forçado, quanto menos para a aferição de lucros por tomadores de serviços, sem qualquer consciência social. O trabalho escravo ou análogo ao escravo é recorrente em carvoarias, conforme constatado em reportagens midiáticas, nas quais dentre outras informações menciona que cerca de 60% (sessenta por cento) da produção de carvão vegetal do Pará e Maranhão é produzido ilegalmente com o uso de trabalho escravo (CAMARGO, 2006). Ainda, em operação realizada entre o final do ano de 2013 e início de 2014, Polícia Rodoviária Federal (PRF) da região de Atibaia (SP), auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), técnicos do Instituto Florestal, representantes da Advocacia Geral da União (AGU) e da Justiça do Trabalho encontraram trabalhadores dentre os quais estavam crianças e adolescentes sendo explorados no trabalho escravo em carvoarias na região de Atibaia – SP (OJEDA; WROBLESKI, 2014). Mesmo com legislações protetivas, o trabalho escravo ainda mostrase uma praga na sociedade contemporânea, sendo não apenas utilizado em âmbito rural, mas também em fábricas, principalmente de produção têxtil, que em decorrência da globalização, tem demonstrando exorbitante crescimento na utilização desta forma de trabalho, inclusive em renomadas empresas. Recentemente foi constatado o uso de trabalho escravo em confecções da grife Zara, em São Paulo, local em que foram encontrados vários bolivianos escravizados por uma confecção terceirizada da marca, 38 // Problemas da jurisdição contemporânea... sendo que o grupo de trabalhadores era obrigado a produzir sem as mínimas condições de higiene, segurança e, sem qualquer salário, sendo que este caso não se limita a somente uma empresa, pois que as marcas Collins, Sete Sete Cinco, Pernambucanas, C&A e Marisa estão em processo de investigação quanto a tais práticas (SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS E REGIÃO, 2011). Ainda com relação ao uso de trabalho escravo por grandes empresas, ressalta-se a denúncia realizada pelo Ministério Público Federal que em meados de 2014 encontrou em Americanas – SP, bolivianos em condições análogas a escrava, sendo que os referidos funcionários trabalhavam em uma confecção que produzia roupas para grifes como Zara, Ecko, Gregory, Billabong, Brooksfield, Cobra d'Água e Tyrol (SCHIAVONI, 2014). Neste contexto, o trabalhador escravizado é coagido a permanecer no trabalho, considerando que tal imposição pode ocorrer de três formas distintas, sendo elas, moral (trabalhadores normalmente com pouca instrução ficam envolvidos em dívidas com o empregador, comprando inclusive produtos do último em armazéns locais); psicológica (trabalhadores ameaçados com violência para permanecerem trabalhando no local) e física (trabalhadores submetidos a castigos corporais) (MARTINS, 2008, p. 78). O trabalho mesmo sendo direito social garantido no art. 6° da Constituição Federal de 1988, não vem obtendo a efetivação almejada, contrariamente, reiteradas são as violações aos direitos trabalhistas, pois o trabalho escravo afronta Princípios e garantias constitucionais e promove a degradação humana, perpetrando a desigualdade social e colocando a vítima à margem da sociedade, alienada da realidade em que está inserida. A degradação advinda do trabalho escravo demonstra a desumanização na sociedade contemporânea, em que o homem é usado para a concretização de objetivos de outrem, sem qualquer consciência social. Assim, o trabalho escravo é contrário ao preconizado no mundo moderno, em que uma das formas mais diretas de felicidade é o trabalho, meio pelo qual o homem busca o sustento próprio e familiar, razão pelo qual o trabalho deve ser digno, protegido e seguro em termos de riscos ambientais, pois contrariamente se tornará um castigo (MELO, 2013, p. 85). Ademais, prevê o art. 4° da Declaração Universal dos Direitos Humanos que “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” constando ainda no art. 23 da mesma Declaração “Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego” (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1948). Nessa acepção, consigna que a ideia do marchandage, ou seja, exploração do homem pelo próprio homem, não pode existir, devendo o trabalhador ser livre no exercício do seu trabalho (art. 5º, XIII, da Lei Maior) e receber pela prestação dos serviços (MARTINS, 2008, p. 85). A ofensa aos direitos... // 39 A utilização do trabalho escravo ou forçado visa diminuir os custos com a produção, pois ao não pagar salários e não recolher encargos sobre a prestação de serviços aumenta-se o lucro à custa da exploração do trabalhador e da violação dos Direitos da Personalidade. Por isso, o combate ao trabalho escravo deve ser incessante, pois degenera o ser humano, causando males à sua saúde física e mental, além de prejudicial a toda a sociedade. 2.6 PROPOSTAS PARA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO MODERNO Primeiramente, deve-se partir do ideal apresentando por Emmanuel Kant que “[...] todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”, tanto nas suas ações em que se dirige a si mesmo como nas que dirigem outrem (KANT, 2002, p. 68). No contexto do trabalho escravo o homem deixa sua posição de sujeito no ambiente social e passa a ser mero objeto para outros obterem o lucro almejado em contrapartida da degradação do trabalhador. E mais, o paradigma atual é a inclusão social, com respeito às diferenças, com o fim de garantir à plena realização da pessoa (MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 115). Assim, o uso de mão-de-obra escravo não possui qualquer respaldo, sendo, pois considerado uma arbitrariedade em prol do lucro, sem ater-se as consequências causadas aos trabalhadores vítimas de tais práticas. Para a verdadeira erradicação da escravidão moderna, é preciso conscientizar a sociedade, enfaticamente os empregados, para que compreendam a situação de exploração advinda do trabalho forçado e os consumidores, os quais devem ter conhecimento das empresas que se utilizam de trabalho escravo em sua produção, com o intuito de não mais consumir tais produtos. Relevante, a proteção do meio ambiente de trabalho através de “[...] ações coletivas e os termos de ajustamento de conduta – TAC, que promovem a efetividade dos direitos trabalhistas de forma ampla, abrangendo a coletividade”, do mesmo modo fundamental a participação do Ministério Público do Trabalho que desempenha “[...] um papel importante e de destaque no zelo por um meio ambiente de trabalho adequado e digno” (SILVA; ROLEMBERG, 2012, p. 382). Imprescindível também “[...] a atuação de auditores-fiscais do trabalho que por meio de fiscalização exigem a aplicação das normas trabalhista, impondo multas quando verificado o desrespeito ao direito do trabalhador a um ambiente saudável” (SILVA; ROLEMBERG, 2012, p. 384). Concomitantemente, ás medidas fiscalizatórias é preciso punir os promotores do trabalho escravo, para que não venham reiterar na prática de condutas semelhantes, pois que a impunidade ainda é a grande propulsora de condutas similares. A punição a ser arbitrada deve ocorrer por meio de 40 // Problemas da jurisdição contemporânea... multas, pagamento dos direitos trabalhistas suprimidos das vítimas do trabalho escravo e também penalidades de caráter social. Nesse sentido: [...] os juízes possuem poderes para corrigir condutas de desrespeito deliberado, reincidente e institucionalizado na ordem constitucional, e que, caso os juízes não os utilizem, estarão assumindo, querendo ou não, responsabilidade quanto ao resultado que a ineficácia dos provimentos jurisdicionais produz na realidade, significa dizer que estão de acordo com o fato de os agressores reincidentes dos direitos trabalhistas continuarem obtendo vantagens e lucros pela prática da conduta ilegal (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2014, p. 152). Conjuntamente a decisões judiciais deve estar a atuação da sociedade, com o fim de efetivamente buscar a promoção de um meio ambiente de trabalho decente, propulsor do desenvolvimento humano, repudiando toda e qualquer forma de trabalho escravo. 2.7 CONIDERAÇÕES FINAIS Os Direitos da Personalidade são inerentes e irrenunciáveis, razão pelo qual devem ser protegidos de toda e qualquer violação, destacando-se a necessidade de garantir estes direitos no âmbito trabalhista. A proteção aos Direitos do Trabalho encontra-se em inúmeros dispositivos legais nacionais e internacionais, no entanto sua efetivação ainda apresenta-se como um desafio na atualidade. Patente que a globalização não trouxe apenas a interligação entre os países, mas também a propagação do trabalho escravo no mundo contemporâneo, cujo combate deve ser incessante. Assim, o trabalho escravo que era praticado comumente no meio rural, com a aproximação advinda do mundo globalizado, alastrou-se para o âmbito urbano e tornou-se prática reiterada principalmente em indústrias têxteis, sendo inclusive utilizado por empresas de renome internacional como Zara, Gregory e Brooksfield. O trabalho escravo é degradante e causa danos incalculáveis aos trabalhadores que tornam-se objeto da relação de trabalho e não mais sujeito de direitos, refletindo não apenas na vida pessoal do trabalhador, mas também na sociedade, que indiretamente pode fomentar o crescimento de tais práticas ao consumir produtos fabricados com a utilização de mão-deobra escrava. Por isso, com o fim de abolir o moderno regime escravocrata e promover o trabalho decente, é necessário conscientizar a população sobre o tema, majorar a fiscalização de meios laborais pelos órgãos competentes e, concomitantemente punir de forma condizente os promotores do trabalho escravo, buscando evitar a reiteração de condutas semelhantes, as quais nitidamente degradam o meio ambiente de trabalho. A ofensa aos direitos... // 41 2.8 REFERÊNCIAS ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 16. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2014. BELMONTE, Alexandre Agra. Danos morais no direito do trabalho: identificação, tutela e reparação de danos morais trabalhistas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. CAMARGO, Beatriz. Produção ilegal de carvão vegetal gera desmatamento e escravidão na Amazônia. 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Para melhor compreender a teoria da perda de uma chance será investigado como aplicar os pressupostos da responsabilidade civil por meio dessa teoria, onde o nexo de causalidade será observado, por meio da aplicação de outras teorias para se saber se a conduta do agente realmente era relevante para a prática da perda de uma chance. Descreverá a teoria da equivalência e da causalidade adequada por meio da comparação entre elas e será destacado qual é a mais aplicada e porque, assim como exemplificará a aplicação do nexo de causalidade para melhor compreendê-lo. Será apresentada a natureza da perda de uma chance, onde estudará se ela possui algum dano efetivo. Descreverá eventuais divergências sobre a efetiva propriedade da perda de uma chance quanto à sua natureza, ou seja, será posto em discussão se há diferença com outros elementos da responsabilidade, qual seja o dano emergente ou não. Abordar-se-á a perda de uma chance pautada em casos práticos comuns que podem surgir, com destaque para a área médica, advocatícia, onde será investigada sua aplicação, com parâmetros para ser mensurada a * Mestranda em Direitos da personalidade da UNICESUMAR. Possui graduação em Direito pela Universidade Paranaense (2008). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, Direito Processual Civil a Práxis Jurídica Após Reformas e Direito Ambiental. ** Mestrando em Direitos da personalidade da UNICESUMAR. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2008) , especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera - Uniderp (2011) e especialização em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá (2013) . Atualmente é Analista Judiciário da Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Tem experiência na área de Direito. 46 // Problemas da jurisdição contemporânea... responsabilidade civil pela perda de uma chance, da forma mais objetiva possível, inclusive será verificada se é possível a aplicação de alguma fórmula, princípios, isto é, todos os elementos necessários para que se consiga descobrir como quantificar esse dano da melhor forma possível. Por fim, serão investigados os direitos da personalidade e sua relação com a perda de uma chance, também será esclarecido como estão sendo tutelados esses direitos com o auxílio dessa teoria. 3.2 CONCEITOS De acordo com Savi (2012) é possível visualizar a existência do dano antes de saber o resultado final dele, sendo que a teoria da perda de uma chance “[...] a concessão de indenização pela perda da possibilidade de conseguir uma vantagem e não pela perda da própria vantagem que não pôde se realizar” (SAVI, 2012, p. 3). Para Savi (2012, p. 3), a chance significa: “[...] a probabilidade de obter um lucro ou de evitar uma chance.” De acordo com Silva (2012), para identificar a perda de uma chance deve-se analisar se o caso demonstra uma possibilidade de ganho, êxito sobre o bem almejado que perdeu, “[...] a total falta de prova de vínculo causal entre a perda dessa aposta e o ato danoso [...] representa uma expectativa necessariamente hipotética”. (SILVA, 2012, p. 12-13). Para Carnaúba a perda de uma chance seria: [...] uma técnica decisória, que, por meio do deslocamento da reparação, visa superar as insuficiências da responsabilidade civil diante dos conflitos envolvendo a lesão a interesses aleatórios. [...] passa a considerar a chance perdida objeto a ser reparado. (CARNAÚBA, 2013, p. 20-21). Venosa (2014, p. 44) aduz que: “Na perda de uma chance ocorre a frustração na percepção desses ganhos [...] constitui efetiva perda patrimonial e não mera expectativa.” A perda de uma chance é uma espécie de responsabilidade civil, que se busca reparar a perda de uma oportunidade de algo importante para a pessoa, que foi frustrada, independentemente de sua vontade, por ação ou omissão de outrem. É voltada para a reparação pecuniária. Observa-se que a perda de uma chance está relacionada com o tempo futuro, que apesar de incerto, conforme se verifica pelo filme A Nova Lei (informação verbal)1, as atitudes podem mudar, ou seja, deve-se sempre se atentar para as possíveis variáveis que podem ocorrer no decorrer do tempo. Isso é percebido nesse filme de ficção científica, passado no ano de 2054, onde o estado de Columbia, nos Estados Unidos aplica um projeto denominado pre-crimes, no qual três pessoas conseguem prever a prática do 1 A NOVA LEI. dirigido por Steven Spielberg. Elenco: Tom Cruise, Colin Farrel, Samantha Morton, Max von Sydow e Scott Franka. Washingtong D. C: produzido por Century Fox, 17 de jun. de 2002, ficção científica. A perda de uma chance... // 47 crime homicídio antes de ele ocorrer, logo, o assassino é preso e condenado antes de praticar efetivamente o crime, no entanto, constata-se que um dos responsáveis pelo projeto, interpretado por Tom Cruise percebe na pele, a falha do sistema, pois deixa de praticar o crime apesar de ter tido vontade de realizá-lo e verifica que entrou em uma armadilha, vez que foi induzido a cometer o homicídio por achar que tal vítima havia matado o filho dele, quando na verdade, de fato, essa pessoa foi subordinada a demonstrar que praticou o assassinato do filho do autor para Tom Cruise ser preso e abandonar o projeto. Constata-se que não há como se ter certeza absoluta de um evento futuro, apenas se tem expectativas de que ele ocorra como o planejado, sendo possível a indenização pela frustração dessa probabilidade, por meio da perda de uma chance. Para Tartuce (2015, p. 460): “A perda de uma chance está caracterizada quando a pessoa vê frustrada uma expectativa, uma oportunidade futura, que, dentro da lógica do razoável, ocorreria se as coisas seguissem o seu curso normal.” Para Gonçalves, a perda de uma chance: Consiste esta na interrupção, por determinado fato antijurídico, de um processo que propiciaria a uma pessoa a possibilidade de vir a obter, no futuro, algo benéfico, e que, por isso, a oportunidade ficou irremediavelmente destruída. (GONÇALVES, 2014, p. 340). De acordo com Guedes: A perda de uma chance aplica-se, portanto, àquela situação em que a vítima se vê privada de uma oportunidade de vir a ganhar determinado benefício ou de impedir um dano, em razão da conduta de terceiro, contra quem poderá, com base nesta teoria, pleitear uma indenização correspondente. (GUEDES, 2011, p. 105). Higa (2012, p. 53) conceitua como derivado do francês “chance”, que significa: “[...] probabilidade de obter lucro ou evitar uma perda”. Sanseverino (2014) menciona que: “Relembre-se que a teoria da perda de uma chance tem aplicação, quando o evento danoso acarreta para alguém a perda de uma chance de obter um proveito determinado ou de evitar uma perda” Para o ministro, a teoria poderia ser aplicada em duas situações, ou seja, em sentido comissivo para conseguir um determinado bem ou, de forma preventiva, para impedir determinada perda. Assim, a perda de uma chance decorre de uma frustração, impedimento de ocorrer algo esperado pela pessoa, uma probabilidade com certo grau de certeza que é interrompida por alguém. 48 // Problemas da jurisdição contemporânea... 3.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA Gonçalves (2014) aborda que a teoria da perda de uma chance iniciou na França, no século XIX, mas apenas na teoria, onde “[...] entende indenizável o dano resultante da diminuição de probabilidade de um futuro êxito” (GONÇALVES, 2014, p. 340). Sanseverino (2014) aduz que: [...] O precedente mais antigo, no direito francês, foi o caso apreciado pela Corte de Cassação, em 17 de julho de 1889, que aceitou indenizar uma parte demandada pela perda provocada pela conduta negligente de um oficial ministerial, que impediu o prosseguimento do procedimento e, consequentemente, a possibilidade de ganhar o processo [...] (STJ, 2014, web). Para o relator, o primeiro caso a aplicar a teoria da perda de uma chance foi na França, no século XIX, no entanto não há relato muito detalhado sobre esse primeiro caso invocado. De acordo com Silva (2012) a perda de uma chance nasceu na França, em 17 de julho de 1889, onde a Corte de Cassação francesa concedeu indenização a uma pessoa que foi prejudicada pela atuação de um oficial ministerial que frustrou qualquer possibilidade de obter vitória em determinado procedimento. Para Higa: Ao contrário do que deveras se escreveu e ainda se escreve, a França do final do século XIX era totalmente refratária à reparação das chances perdidas, já que aplicava, sempre as regras mais estritas de reparação da responsabilidade civil, exigindo, invariavelmente, a prova da certeza do dano (resultado final favorável frustrado), o que, por óbvio, redundava na rejeição dos pleitos dessa estirpe. Os irmãos Mazeud, ao relacionarem decisões em que seria possível indenizar as chances perdidas mencionaram o julgado de 1896, da Corte de Apelação de Limoges, que tratava do pleito indenitário formulado por um proprietário de cavalos contra uma companhia de transporte, pelo fato de o animal não ter chegado a tempo de participar da corrida. O pedido, seguindo a linha do que decidido em primeira instância, fora rechaçado por não haver certeza de que o cavalo venceria o páreo (HIGA, 2012, p. 15). Constata-se, no caso do cavalo, que ainda não se conseguiu convencer a aplicação da perda de uma chance, mas que já se procurava invocar tal teoria para um caso concreto. Segundo Savi (2012), a perda de uma chance foi discutida apenas na teoria, na Itália, em 1940, por Giovanni Pacchioni, o qual a criticou afirmando que, apesar de desagradável, não teria como causar um dano concreto. Segundo Higa, em se tratando da perda de uma chance na Itália, é difícil de ser pesquisado em seus julgados pois: A perda de uma chance... // 49 De todos os países que fez pesquisa jurisprudencial, foi a Itália o que, disparado, trouxe mais dificuldades. Os percalços para encontrar o primeiros julgados referidos nos textos literários são inimagináveis para quem investiga, livremente, as decisões dos mais diversos tribunais brasileiros, sem grandes embaraços, tendo acesso amplo, gratuito e democrático às fontes de Manifestação do Poder Judiciário nacional. Na Corte de Cassação italiana, entretanto, as coisas são bem diferentes. O sítio eletrônico tem pouquíssimo conteúdo de utilidade para um operador do Direito [...] (HIGA, 2012, p. 33). A perda de uma chance foi inicialmente aplicada de fato, de forma cristalina, na França, em 16 de dezembro de 1953, pela Primeira Câmara Civil do Tribunal de La Seine, quando um escritor, em início de carreira foi desclassificado em um concurso de prêmio literário em 1951, após ter sido selecionado entre 07 (sete) candidatos a participar do certame, na primeira fase, sendo que a segunda etapa consistia em apresentar mil exemplares em determinada data, no entanto, a editora não conseguiu imprimir em tal prazo as cópias da obra de referido escritor e este foi desclassificado. Nesse caso o tribunal condenou a editora a reparar a chance perdida do escritor no valor de cem mil francos como perdas e danos, de acordo com Carnaúba (2013). Savi (2012) também afirmou que na França foi onde houve o desenvolvimento da teoria da perda de uma chance, pois foi lá que passou a considerar a perda da chance como verdadeiro dano, sem haver necessidade de ter o resultado final. Aduz ainda que essa teoria influenciou a Corte de Cassação da França. Para Savi (2012) a teoria espalhou-se para outros países da Europa, sendo que na Itália, na maioria das vezes, apenas era utilizada quando atingisse a probabilidade acima de cinquenta por cento de chance de se obter o êxito de algo frustrado. De acordo com Higa (2012), a teoria da perda de uma chance foi primeiramente aplicada em 1991 no Brasil, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual acolheu referida teoria, no caso de um determinado processo previdenciário que havia sido extraviado e o advogado não pleiteou a restauração do processo, nem comunicou sua cliente, logo o referido tribunal aplicou a teoria da perda de uma chance de ganho de causa. A responsabilidade, assim, como a perda de uma chance, surge como instrumento para amenizar os danos sofridos pela pessoa, em especial os direitos da personalidade, o qual pode ser codificado economicamente, conforme descreve Stoco (2013). 3.4 A TEORIA DAS EQUIVALÊNCIAS – NEXOS DE CAUSALIDADE De acordo com Silva (2012), o nexo de causalidade é uma das condições mais importantes para caracterizar a responsabilidade civil, leciona: O fato de a coincidência entre ação e omissão e o dano não ser suficiente para caracterizar a causalidade faz com que se assegure que determinado 50 // Problemas da jurisdição contemporânea... ato ou omissão somente será considerado como causa, se representar uma conditio sine qua non, que também é denominada como condição necessária. (SILVA, 2012, p. 21). A lição de Silva demonstra que o nexo de causalidade será identificado com um simples teste consistente na retirada ou inserção de determinada conduta, ou seja, através do questionamento que deu causa ao fato, se ainda assim, o fato lesivo aconteceria certamente ou não. De acordo com Silva (2012), a causalidade norte americana é dividida em causation as fact e proximate cause e observa: [...] quando causas concorrentes poderiam, operando sozinhas, ter causado o mesmo dano, uma causa faria com que a outra não fosse considerada uma conditio sine qua non, pois cada uma das causas é condição suficiente para causar o dano, fazendo com que a outra não seja mais necessária. [...] em um estudo comparativo, seria possível dizer que o instituto da “proximate cause”está no mesmo espaço que as teorias da causalidade adequada e do dano direto e imediato ocupam em nosso sistema. Também selecionar, dentre as condições necessárias para o surgimento do dano, aquelas que serão consideradas as causas imputáveis (SILVA, 2012, p. 33;36). Segundo as teorias apresentadas pelo autor a causation as fact apesar de determinado fato ser considerado uma condição, mas ainda assim poderá não ser a causa do dano, já na teoria proximate cause verifica se a pessoa deve ou não ser responsabilizada pelo dano causado, por meio de atribuição de valores. Para Rizzardo (2013, p. 67), “[...] é a relação verificada entre determinado fato, o prejuízo e um sujeito provocador.” Observa-se que é uma ligação entre o fato causador do dano e a pessoa que gera o dano. Trata-se de identificação por meio de hipótese. Segundo Silva (2012), a teoria das equivalências nasceu na Alemanha, no século XIX, mas de acordo com o autor essa teoria vem sendo excluída por ser muito abrangente, já que segundo ela, qualquer elemento que fosse retirado e interferisse no resultado seria causa do evento e, portanto, responsável civilmente, o que parece injusto. Por isso, Silva justifica a aplicação da teoria da causalidade adequada, que segundo ele: “[...] um fato pode ser considerado causa de um dano se, de acordo com os dados da ciência e da experiência, no momento da sua produção, fosse possível prever que tal fato geraria o dano [...] busca-se [...] a “possibilidade do resultado”” (SILVA, 2012, p. 23-24). Observa-se que a teoria da causalidade adequada para Silva (2012) é a mais racional, pois usa a probabilidade para identificar o agente causador da responsabilidade civil, sendo obviamente, a teoria mais prestigiada pelos operadores do direito. No mesmo sentido, Carnaúba (2013) aborda as duas teorias ligadas à causalidade: teoria das equivalências de condições e a teoria da A perda de uma chance... // 51 causalidade adequada. Para o autor a teoria das equivalências seria “[...] todo antecedente necessário à realização de um prejuízo, ou seja, todo fato sem o qual esse prejuízo não ocorreria [...]”. (CARNAÚBA, 2013, p. 57). Já a teoria da causalidade adequada seleciona os elementos preponderantes que contribuíram para determinado fato, sendo considerados jurídicos apenas esses, de acordo com Carnaúba (2013). Carnaúba (2013) afirma que o nexo de causalidade da perda de uma chance está ligada diretamente com a probabilidade, que faz parte de um conjunto de proposições chamadas de evidências e conclusões, onde “[...] a privação de uma oportunidade pode ser assimilada pela noção de prejuízo” (CARNAÚBA, 2013, p. 77). Um exemplo prático, onde se visualiza o nexo causal com a aplicação da perda de uma chance, foi no julgado citado por Tartuce (2013), do Superior Tribunal de Justiça, consistente em um erro médico por não ter usado a melhor técnica de cura do paciente, gerou a responsabilidade civil pela perda de uma chance. Nesse caso, o Tribunal Superior aplicou o nexo causal direto “[...] entre a conduta (o erro médico) e o dano (lesão gerada pela perda de bem jurídico autônomo: a chance).” (TARTUCE, 2015, p. 464). Quanto à responsabilidade médica Marmitti aconselha: O dano experimentado pelas vítimas não pode servir como fonte de renda. Visando impedir prestação excessiva, ou locupletamento indevido, invoca-se em prol do ofensor o benefício da compensatio lucri cum damno, aplicado à luz da teoria da causalidade. Mas a regra da compensação ficará afastada sempre que o plus defluir de razão estranha ao nexo causal entre o fato ilícito e as perdas e danos (MARMITTI, 2005, p. 350). No mesmo sentido observa-se a aplicação da teoria da perda de uma chance no Supremo Tribunal Federal, em um caso que envolve erro médico, proferido pelo Ministro Dias Toffoli (2012) constatou: Concausalidade entre os fatores que levaram à morte da paciente que, diante da prova colhida, não exclui a aplicação da chamada teoria da perda de uma chance na medida em que o dano ocorreu porque não houve a detenção do processo causal, embora sem se saber ao certo se isso haveria conseguido salvar a paciente, porquanto houve a má prestação do serviço, retirando-se do interessado uma possibilidade eficiente de diagnóstico que lhe poderia ter poupado a vida, ou pelo menos a estendido em algum grau. Aplicação do princípio iura novit curia (STF, 2012, web). Segundo Gonçalves (2005), a teoria das equivalências consiste no fato de que toda conjuntura que corroborou para o dano é considerada causa, o que para o autor pode ser irracional, injusto por ser muito genérica, geral. Gonçalves (2005) traz outra teoria, mais racional e sensata, a teoria da causalidade adequada na qual descreve “[...] como causadora do dano a condição por si só apta a produzi-lo. Ocorrendo certo dano, temos de concluir que o fato que o originou era capaz de lhe dar causa” (GONÇALVES, 2005, p. 538). 52 // Problemas da jurisdição contemporânea... No mesmo sentido aborda Rizzardo (2013) que a teoria das equivalências das condições e da causalidade adequada. Segundo o autor, a teoria das equivalências “[...] estabelece como causa do dano todas as condições sem as quais o mesmo não aconteceria” (RIZZARDO, 2013, p. 70). Trata-se de uma teoria muito abrangente. Para Rizzardo (2013, p. 71): “[...] a causa adequada é a que se mostra capaz de originar o evento.” Por outro lado o autor critica tal teoria, pois afirma que essa teoria assim como a da equivalência é subjetivista quanto a definição da causa que geraria o dano. De acordo com Rizzardo (2013) a teoria efetiva adotada pelo atual Código Civil descreve ser “[...] a causa do dano direto e imediato [...]” assevera que “A responsabilidade do autor direto mede-se de acordo com a natureza da lesão. Pelos eventos que aparecem, provocados por causas outras, o responsável é a pessoa que os originou por sua culpa” (RIZZARDO, 2013, p. 72). Observa-se que sobre a teoria das causalidades, a das equivalências é bombardeada pelos doutrinadores como irracional por ser muito abrangente, já a teoria da causalidade adequada é considerada mais sensata por ser mais seletiva, mas ainda assim sofre crítica por ser um pouco subjetivista para Rizzardo (2013), sendo que o Código Civil adotou a teoria do dano imediato, onde eventuais causas supervenientes, que não estejam diretamente ligadas com a causa originária, devem ser expelidas do causador originário para o secundário. 3.5 ANÁLISE SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE Ressalta-se que para Savi (2012), a perda de uma chance pode ser aplicada tanto em danos morais como materiais, que segundo ele, os tribunais vem aplicando em ambos os casos tal teoria à responsabilidade civil. Importante frisar que Savi (2012) destaca que quando ocorrer os danos materiais, a perda de uma chance será um dano emergente. Para Tartuce (2015, p. 468) a perda de uma chance é fruto da “[...] evolução de consciência da civilística nacional conduz à admissão desses novos danos reparáveis, antes não admitidos”. Para Venosa (2014), a perda de uma chance tem natureza autônoma, ou seja, é uma nova espécie de responsabilidade civil, que difere dos lucros cessantes e danos emergentes. Para o autor supra citado, o dano emergente seria uma diminuição do patrimônio da vítima, já o lucro cessante decorre do que a vítima teria recebido se não tivesse sofrido o dano, já a perda de uma chance é uma projeção voltada para o futuro de expectativa frustrada de um ganho certo. Segundo Carnaúba, a perda de uma chance busca: [...] a recolocar a vítima [...] na situação em que ela se encontrava até o evento em questão. Sabemos que a vítima ostentava uma chance antes da intervenção do responsável, e que, por força dessa intervenção, a chance A perda de uma chance... // 53 desapareceu. É essa chance perdida que deverá ser reparada (CARNAUBA, 2013, p. 168). Destaca-se que a perda de uma chance objetiva a reparação de tal chance, recolocando a pessoa ao estado em que ela se encontrava na expectativa de obter algo. A perda de uma chance pode ser de natureza patrimonial ou não, de acordo com Carnaúba (2013), manifestada como dano emergente. Silva (2012) concorda que a perda de uma chance pode causar tanto danos morais como patrimoniais, sendo que considerado um dano certo, específico. Para Gonçalves (2014), a natureza da perda de uma chance estaria relacionada com o domínio do dano ressarcível, se a chance fosse considerada séria. De acordo com o Relator José Laurindo de Souza Netto, do Tribunal de Justiça do Paraná: [...] Mas não basta a definição da culpa do médico. A responsabilidade pela perda de uma chance exige mais, exige que as chances perdidas sejam sérias e objetivas. E essas chances existiam no caso em julgamento. Ou seja: tinha a vítima chances de sobreviver, de cura, ou ao menos de uma sobrevida menos sofrida, mais digna, se tomadas algumas medidas embora tardiamente após a recidiva. As chances não eram mínimas, mas boas e, por isso, sérias. Não vale dizer que a vítima/paciente morreria de qualquer modo em razão da agressividade da doença. A teoria da perda de uma chance não descarta a possibilidade do evento morte decorrer exclusivamente da doença; ao contrário, trabalha com essa possibilidade, mas sem perder de vista a probabilidade de cura, atuando, a teoria, nas hipóteses em que há dúvidas a respeito da causa adequada do dano. Ela envolve chances perdidas, e apenas isso. É suficiente que existam chances sérias de cura ou de uma sobrevida menos sofrida, perdidas em razão da culpa do médico (TJPR, 2012, web). Leciona o Desembargador (2012) que a responsabilidade civil da perda de uma chance exige que tal perda seja certa, cristalina, séria, como no exemplo de erro médico, onde a paciente foi a óbito e perdeu a chance de cura, ou de ter sofrido menos com a doença, apesar do curto período de vida, mesmo sabendo que sua doença poderia causar a morte. No mesmo sentido Guedes (2011, p. 102) aduz que: “[...] existe aí um dano real, que é constituído pela própria chance perdida, isto é, pela oportunidade dissipada de se obter mais à frente a vantagem, ou de se evitar o prejuízo que veio a acontecer”. A perda de uma chance decorre de um dano certo, palpável. Guedes (2011) acrescenta ainda em relação à natureza da teoria da perda de uma chance, no sentido de que para a jurisprudência nacional tem natureza de lucro cessante, mas para a autora há diferenciação entre a perda de uma chance e o lucro cessante, já que este busca averiguar os lucros que a vítima teria se não tivesse sofrido o prejuízo, todavia, a perda 54 // Problemas da jurisdição contemporânea... de uma chance usa a probabilidade para descobrir o valor da chance perdida, de forma objetiva, matematicamente. Para Higa (2012), a perda de uma chance poderia ser encaixada como um dano emergente, caso houvesse o rompimento do paradigma de que o dano emergente abrange apenas a reparação de danos materiais. Para o autor na perda de uma chance usa-se a álea, o acaso, o risco para mensurar o valor da indenização. De acordo com Costa Filho (2011), a perda de uma chance é uma nova modalidade de dano, a qual se encontra ao lado dos lucros cessantes e dos danos emergentes. Assim, a perda de uma chance é vista como um dano certo, cristalino. Por outro lado, há divergências sobre sua natureza propriamente dita dessa teoria, vez que é considerada um dano emergente, ora como uma nova espécie de responsabilidade civil. 3.6 ASPECTOS FORMAIS E PRÁTICOS DA TEORIA Para que haja a caracterização da perda de uma chance, de forma objetiva percebe-se que há três quesitos essenciais que devem ser levados em conta para aplicar a teoria, conforme leciona o Ministro Sanseverino em ressente julgado do Superior Tribunal de Justiça, no qual mencionou em seu voto o seguinte: Em verdade, não há falar em responsabilidade civil sem dano, fazendo-se necessária a presença de seus três principais elementos - a certeza, a imediatidade e a injustiça do dano. A certeza do dano constitui o principal elemento, significando que a lesão ao interesse do prejudicado deve ser real e efetiva, sem deixar dúvida acerca da sua existência, ficando, assim, excluídos os danos hipotéticos. Essa afirmativa, porém, deve ser relativizada, pois, entre o dano certo e o hipotético, existe uma nova categoria de prejuízos, que foi identificada pela doutrina e aceita pela jurisprudência a partir da teoria da perda de uma chance. Relembre-se que a teoria da perda de uma chance tem aplicação, quando o evento danoso acarreta para alguém a perda de uma chance de obter um proveito determinado ou de evitar uma perda (STJ, 2014, web). Segundo o Ministro Relator Sanseverino (2014), a perda de uma chance só será caracterizada se demonstrar a certeza do dano, de forma cristalina, imediato, eminente e injusto o dano, como no acórdão que aplicou o desrespeito à personalidade da criança, a dignidade da criança que perdeu a oportunidade de futuramente usar suas células tronco, que poderia ter sido extraída do cordão umbilical, para eventual tratamento de saúde que possa necessitar. De acordo com Savi (2012), a corte italiana usou uma fórmula para melhor aplicar a teoria da perda de uma chance consistente em VI= VRF X Y, que significa que o valor da indenização (VI), será igual ao valor do resultado final (VRF) multiplicado pelo percentual de probabilidade de A perda de uma chance... // 55 obtenção do resultado final (Y), ou seja, a área jurídica passou a usar a probabilidade, racionalizando suas decisões. No entanto, segundo Savi (2012) a perda de uma chance no direito italiano, mais precisamente nos tribunais, é necessário atingir, a nível de probabilidade superior a cinquenta por cento, o autor ainda destaca que o valor da indenização nunca poderá ser igual ao benefício que a vítima obteria se não tivesse frustrado sua expectativa, já que nunca é possível ter certeza absoluta que o evento ocorreria. Frisa-se que o filme “A nova lei” (informação verbal) 2 descreve, que ao final, seria injusto condenar alguém com certeza absoluta sobre um evento futuro, mesmo que esse seja certo, nesse mesmo viés pauta a aplicação da perda de uma chance. Carnaúba (2013) aconselha o julgador, quando estiver que decidir sobre a aplicação da perda de uma chance, a analisar todos os elementos sobre o fato, pois: Na realidade, para mensurar o valor da chance perdida, o juiz deve considerar todas as informações de que dispõe no momento em que julga. Os dados a serem empregados nessa avaliação incluem, portanto, tudo aquilo que o magistrado sabe no instante em que profere sua palavra final no litígio. Trata-se, em verdade, de uma regra geral da responsabilidade civil (o prejuízo deve ser avaliado no momento da decisão), regra que adquire um sentido peculiar quando aplicada aos casos de perda de chance (CARNAUBA, 2013, p. 116). Para Tartuce (2015, p. 461) cabe: “[...] ao réu a sua prova e ao juiz o dever de averiguar quão foi efetivamente perdida a chance com base na ciência estatística, recorrendo ao auxílio de perícia técnica”. Mas, com certeza, o caso de maior destaque que o Superior Tribunal de Justiça aplicou à teoria da perda de uma chance foi o chamado caso do “Show do Milhão”, conforme leciona Savi (2012), qual seja, o Resp. n. 788.459-BA, onde a demandante da ação havia participado do programa televisivo “Show do milhão” e perdeu a chance de ganhar considerável quantia, por não responder certa pergunta que foi considerada sem resposta, logo, esta recebeu indenização de vinte e cinco por cento de um milhão de reais em barras de ouro, já que esta seria a probabilidade de acertar a alternativa correta de um total de quatro, decorrente da pergunta, se esta tivesse resposta. Nesse contexto, a responsabilidade civil auxilia a pessoa que teve seus direitos desrespeitados, em especial os direitos da personalidade, já que estes são inatos do homem e visam a proteção da pessoa considerada em si mesma, com atributos físicos e morais em constante desenvolvimento, conforme aduziu Souza (2002). 2 A NOVA LEI. dirigido por Steven Spielberg. Elenco: Tom Cruise, Colin Farrel, Samantha Morton, Max von Sydow e Scott Franka. Washingtong D. C, Century Fox, 17 de jun. de 2002, ficção científica. 56 // Problemas da jurisdição contemporânea... A busca da justiça na época da Idade Média, o que infere que tal conceito possa ser usado no âmbito da reparação econômica atual, onde Carneiro (1998) leciona que a moral era usada na época onde as relações econômicas eram feitas por meio da troca, atingindo a justiça quando as partes conheciam as regras do jogo, por meio de fixação de preços. Já atualmente, se encontra em prática o pensamento utilitarista, o que deve ser pautado pelo respeito à dignidade da pessoa humana, conforme prevê a Constituição Federal. Não se deve esquecer no caso de aplicação, por exemplo, da perda de uma chance, em âmbito da responsabilidade médica que o paciente não conhece as regras, não sabe qual a melhor técnica que se pode usar para obter tal cura em relação à determinada enfermidade, nesse caso, faz-se necessário o dever de informá-lo sobre os tratamentos cabíveis, e essa informação com certeza deve sopesar no momento de eventual julgamento, conforme aconselha Tepedito (2006). Gonçalves (2014) exemplifica a aplicação da perda de uma chance sobre o erro médico, citando parte do julgado do Superior Tribunal de Justiça, proferido pela Ministra Nancy Andrighi destacando que “A incerteza não está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, [...]. A conduta do médico não provocou a doença (câncer) [...], apenas frustrou a oportunidade de uma cura incerta” (GONÇALVES, 2014, p. 341). De acordo com Guedes (2011), é comum a aplicação da teoria da perda de uma chance em caso de erro médico ligado a erros de diagnóstico ou omissão em tratamento médico mais eficiente ao paciente. Constata-se que para se arbitrar eventual valor do dano, decorrente, é claro, da perda de uma chance, importante que o julgado aplique também os princípios da razoabilidade e proporcionalidade conforme julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiros: [...] FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO DA RÉ - CARACTERIZAÇÃO DANO MORAL CONFIGURADO – RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE –IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE DANO MATERIAL HIPOTÉTICO -SENTENÇA QUE SE MANTÉM. [...] Sentença de parcial procedência para condenar o sindicato réu a pagar à autora, a título de danos morais, o valor de R$ 12.000,00 (doze mil reais), corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de mora de 1% ao mês, a contar da data da sentença. Julgou-se improcedente o pedido de indenização por danos materiais. Reconhecimento da sucumbência recíproca, as custas processuais serão rateadas e os honorários advocatícios compensados, na forma do art.21 do CPC -gratuidade de justiça deferida à autora. [...] Falhando o advogado em sua obrigação de meio, está a prejudicar o interesse de sua cliente. Configurado, de modo inegável, o dano moral, pois que, devido a conduta tardia dos advogados do sindicato, houve a chamada perda da chance de ter a possibilidade de receber verbas salariais reclamadas judicialmente. 7. Quadro fático que, por certo, abalou o seu estado emocional, sendo evidente a angústia e a aflição vivida ao saber que sua demanda restou A perda de uma chance... // 57 fadada ao insucesso, diante do prazo prescricional reconhecimento na demanda trabalhista. 8. Dessa forma, considerando as peculiaridades do caso concreto, tem-se que a verba indenizatória foi corretamente reconhecida, de modo a refletir os parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade inerentes à espécie. 9. Sentença de parcial procedência mantida (TJRJ, 2015, web). Extrai-se do julgado do Desembargador Marcelo Lima Buhatem que a perda de uma chance decorre, nesse caso, pela prestação de serviços advocatícios de má qualidade, já que a pessoa perdeu a chance de ajuizar ação trabalhista e obter verbas trabalhistas, logo, aplicou-se a condenação em danos morais sofridos pela pessoa por tal abalo de frustração. Por fim, Marmitt (2005) aconselha que o valor a ser arbitrado como reparação civil deve pautar sempre pelo bom-senso e ponderação do julgador. 3.7 PERDA DE UMA CHANCE E A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Os direitos da personalidade iniciaram na Grécia, mas os romanos desenvolveram tais direitos. A pessoa para obter personalidade necessitava possuir os status, sendo divididos em três (libertatis, civitates e familiae), sendo o libertatis o mais apreciado, segundo Szaniawski (2005). A tutela dos direitos da personalidade era muito tímida na época grego-romano. Na Idade Média ocorreu uma verdadeira mistura entre o direito romano e o direito germânico. A definição de pessoa passou a ter relação com a dignidade, no sentido de dar importância para a pessoa em si de acordo com Szaniawski (2005). O renascimento aborda o direito subjetivo com o auxílio do iluminismo do século XVIII de acordo com Souza (2005), os direitos da pessoa humana passaram a ser definidos no liberalismo, por meio da revolução industrial. Souza (2002) menciona que os direitos da personalidade apareceram pela inquietação social. Exemplifica o problema sofrido pelos trabalhadores, vulneráveis, que passavam por acidentes de trabalho, cada vez maior o número, logo, os direitos da personalidade têm por objetivo frear os abusos sofridos pela classe proletária, por meio da revolução industrial, a Revolução Francesa também ajudou no desenvolvimento dos direitos da personalidade, por meio da Declaração dos Direitos do Homem. Mas com certeza, conforme Sousa (2005), foi com a inserção da igualdade entre as pessoas que os direitos da personalidade ganharam subsistência. Dessa forma, a personalidade é conceituada como uma gama de características próprias da pessoa que a diferencia das demais, cujos bens que a pessoa adquire primeiro, estão acima dos direitos patrimoniais, conforme Souza (2002). Nesse sentido, observa-se que a dignidade da pessoa tem relação íntima com os direitos da personalidade, já que a dignidade é a virtude de tais 58 // Problemas da jurisdição contemporânea... direitos. A responsabilidade civil surge como mecanismo de tutela dos direitos da personalidade. Observa-se pelos julgados do Superior Tribunal de Justiça que os direitos da personalidade estão sendo reconhecidos quando ocorre a perda de uma chance, há punições por meio de reparação pecuniária por tais desrespeitos, como a perda de uma eventual utilização de células-tronco em tratamento de saúde3, a perda pela cura de determinada enfermidade4. Tepedino (2006, p. 87) aduz: “[...] o profissional não se obriga a curar o paciente mas a empregar diligência, cautela e conhecimento técnico postos ao alcance da ciência médica com vistas a curá-lo [...]”. Observa-se que o erro médico no tratamento de determinada doença justifica a perda de uma chance quando o profissional de certa forma contribuiu para a piora da 3 RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PERDA DE UMA CHANCE. DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO DE COLETA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS DO CORDÃO UMBILICAL DO RECÉM-NASCIDO. NÃO COMPARECIMENTO AO HOSPITAL. LEGITIMIDADE DA CRIANÇA PREJUDICADA. DANO EXTRAPATRIMONIAL CARACTERIZADO. [...]2. Legitimidade do recém-nascido, pois "as crianças, mesmo da mais tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os quais se inclui o direito à integralidade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua violação" (REsp. 1.037.759/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe 05/03/2010). [...] 5. Caracterização de dano extrapatrimonial para criança que tem frustrada a chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se for preciso, no futuro, fazer uso em tratamento de saúde. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. REsp 1291247 / RJ RECURSO ESPECIAL 2011/0267279-8. Brasília, DF, 19 de agosto de 2014. Disponível em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=perda+e+uma+e+chance&&b=AC OR&p=false&l=10&i=5>. Acesso em 21 set. 2015). 4 DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes. 2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de tratamento. 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional. 4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. [...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. REsp 1254141 / PR RECURSO ESPECIAL2011/0078939-4. Brasília, DF, 04 de dezembro de 2012. Disponível em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=perda+e+uma+e+chance&&b=AC OR&p=false&l=10&i=5>. Acesso em 21 set.2015). A perda de uma chance... // 59 pessoa de determinada enfermidade, já que se tivesse realizado o melhor tratamento, essa pessoa teria chance de cura. Assim, a personalidade da pessoa deve ser tutelada pela responsabilidade civil, por meio da perda de uma chance quando há violação de tais direitos, como a vida, integridade mental e física da pessoa, o que não pode passar desapercebido pelo operador do direito. 3.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS A perda de uma chance foi trabalhada como uma teoria derivada da responsabilidade civil, onde a chance perdida, ou seja, a oportunidade de se obter um bem relevante para a pessoa e para o meio jurídico foi cessado por outrem, onde nasce o dever de indenizar, já que a chance perdida gera ônus, responsabilidade para o agente que o praticou. Decorre de um deslocamento no qual as responsabilidades civis comuns não conseguem abarcar a probabilidade de algo futuro que tinha grande chance de efetivamente se concretizar, mas que devido a uma ação ou omissão de outrem foi extirpado, interrompido. A teoria foi inicialmente abordada no século XVIII, na França, na década de quarenta na Itália também foi discutida, mas efetivamente só foi posta em prática na França em 1953, pela corte francesa, onde o autor da ação teve êxito na causa envolvendo um concurso literário, mas no Brasil só foi efetivamente aplicada, pela primeira vez, com êxito de causa, em 1991 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, envolvendo a má prestação de serviços advocatícios. A natureza da perda de uma chance envolve dano certo, com grande probabilidade de que ocorreria se não tivesse cessado por atitude danosa de outrem, onde há grande discussão se é uma espécie de danos emergentes ou é considerada uma nova espécie de responsabilidade civil, sendo discutida pela doutrina essa diferenciação. Com efeito, observou-se que a perda de uma chance pode ser aplicada por meio de uma fórmula para auxiliar o julgador a mensurá-la quando realmente ela aparece, devendo analisar todas as informações sobre o caso em tela, inclusive com o auxílio de perícia, através da probabilidade de estimar as chances de determinado evento ocorrer, caso não tenha sido interrompido abruptamente. Os direitos da personalidade surgem como inerentes à pessoa humana, o bem mais precioso que deve ser tutelado com a aplicação da teoria da perda de uma chance, para amenizar o sofrimento da pessoa que teve frustrada a oportunidade de algo valioso. Logo, a perda de uma chance pode ser mensurada como danos morais ou materiais, no entanto, busca sempre o uso da razão, matemática e lógica para ser quantificada e identificada, utilizando inclusive princípios e teorias ligadas à causalidade, sendo destacadas a teoria da causalidade adequada e a de dano imediato como mecanismos de uso da teoria que surge 60 // Problemas da jurisdição contemporânea... com o propósito de busca pela justiça, pacificação social, respeito à pessoa humana e aos direitos da personalidade. 3.9 REFERÊNCIAS A NOVA LEI. Direção e produção de Steven Spilberg. Intérpretes: Tom Cruise; Colin Farrel; Samantha Morton; Max von Sydow e Scott FrankaWashingtong. D. C: Century Fox, 2002. 1 DVD. CARNAÚBA, Daniel Amaral. Responsabilidade Civil pela perda de uma chance: a álea e a técnica. São Paulo: Método, 2013. CARNEIRO, Maria Francisca. Avaliação do Dano Moral e Discurso Jurídico. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1998. COSTA FILHO, Venceslau Tavares. A cláusula geral de responsabilidade objetiva do Código Civil de 2002: elementos para uma tentativa de identificação dos pressupostos para a aplicação do parágrafo único do art. 927 do CC 2002. In: Atualidades Jurídicas – Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Belo Horizonte, 2011. Disponível em: <http://bid.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=75804>. Acesso em: 23 fev. 2015. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo Código Civil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade Civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012. MARMITT, Arnaldo. Perdas e Danos. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SAVI, Sérgio. 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Isso porque, a vida está diretamente interligada ao meio ambiente e dele decorrem todos os demais aspectos de sua existência, como o ar que respira-se, a água que se bebe, sem falar no meio ambiente em si – ou habitat, que permite o desenvolvimento do ser humano. Sendo assim, a tutela ao meio ambiente deve ser a mais eficiente e perspicaz possível. A partir deste ponto, o presente artigo objetiva primeiramente analisar a proteção ambiental europeia dada ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e saudável, conferida através do Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria de Direitos Fundamentais, tendo em vista foi a precursora desta proteção. Para tanto, se almeja conceituar e compreender do que se trata o princípio supramencionado, utilizado na União Europeia, bem como abordar sua fundamentação legal e aplicação prática. Posteriormente, abordar a proteção em nível mais elevado quanto à matéria de direito ambiental. Em seguida, pretende-se sopesar o sistema brasileiro de proteção ambiental, discorrendo sobre a legislação pátria, bem como acerca da jurisprudência sobre a matéria. Por fim, na última parte do presente artigo, far-se-á breves considerações traçando um comparativo entre os sistemas brasileiro e europeu, sopesando semelhanças e diferenças, bem como apontando algumas conclusões. * Mestre em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de Maringá-PR. Pós-graduada em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional, pela Universidade Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Faculdade Maringá. Bacharel em Secretariado Executivo Trilíngue pela Universidade Estadual de Maringá. Professora de Direito Empresarial na Faculdade Alvorada, em Maringá. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: [email protected] ** Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR. Pós-graduada em Direito Processual Civil, Penal e Trabalhista (ITE/PP-SP - 2003 e Direito Ambiental (IDCC/Londrina - 2013). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente/SP - ITE - Instituição Toledo de Ensino (2002). Professora de Direito Ambiental, Constitucional, Civil e Tributário na Faculdade Alvorada, em Maringá. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: [email protected] 64 // Problemas da jurisdição contemporânea... 4.2 DA PROTEÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA A proteção ambiental brasileira confere ao direito ambiental o status de um direito fundamental1. Contudo, essa percepção demorou consideravelmente a ser reconhecida pelos tribunais Brasileiros. Muito embora o legislador constitucional tenha inserido um artigo próprio do meio ambiente, no artigo 2252, não traz expressamente seu caráter fundamental, e essa conquista ocorreu pelo guardião da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal. Foi então, através do MS 22.164/DF, em 1995, que a afirmação de ser o meio ambiente um direito fundamental foi reconhecido pela primeira vez na Suprema Corte. Somente 10 anos depois a celeuma retornou a discussão com o julgamento da ADI 3540/DF (BRASIL, 2006, web), momento em que a ideia do meio ambiente como um direito fundamental foi reforçada. Com isso, a Egrégia Corte reconheceu definitivamente ser o meio ambiente um direito fundamental de terceira dimensão, cujos relatórios foram proferidos pelo Ministro Celso de Mello: O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado-direito de terceira geração constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. [...] Os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade (BRASIL, 2006, web). Caracterizado e sumulado ser então o meio ambiente, e, por sua vez, o direito ambiental, um direito fundamental e substancial para a vida digna. Uma vez que está diretamente ligado a saúde e desenvolvimento humano. Outra questão a ser destacada seria quanto a competência de legislar em matéria ambiental, esta se revelou originalmente solidária, porém, essa matéria repercutiu algumas dúvidas que, por essa razão, vale a reflexão. Diz a Constituição Federal que, compete concorrentemente aos entes federados legislar sobre questões relativas ao meio ambiente, conforme artigo 24, VI, da Constituição Federal. No entanto, a dificuldade reside na delimitação efetiva da competência dos Estados federados em detrimento da 1 No ordenamento constitucional brasileiro, o próprio caput do artigo 225 da Constituição Federal determina que o Direito Ambiental é um dos direitos humanos fundamentais. Isso ocorre por ser o meio ambiente considerado um bem de uso comum de todo o povo e essencial à sadia qualidade de vida. 2 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. A proteção ambiental... // 65 União. Isso porque, ponderando em análise de casos concretos, o Supremo Tribunal Federal já manifestou-se no sentido de restringir a competência dos estados brasileiros3. Sobre essa competência ensina Patrick de Araújo Ayala que a análise adotada pelo Egrégio tribunal é minimalista, o que pode vir a prejudicar a proteção do meio ambiente como um direito fundamental, a ver: [...] é possível considerar que a orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal atribui como objetivo fundamental para o exercício dessa espécie de competência uma única atividade: a de suplementar lacunas ainda não reguladas pela União, desde que de forma compatível com a legislação federal (AYALA in CANOTILHO; LEITE (Orgs), 2012, p. 409). Por outro lado, uma segunda proposição está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, com relação a coerência principiológica ambiental frente ao mínimo existencial, fundindo-se em um mínimo existencial ecológico. Percebe-se através do julgamento da ADI 3.937/SP, nos dizeres do Ministro Eros Graus que o parâmetro de controle deveria ser “o dever estatal do ambiente e da saúde humana” para avaliar as participações das capacidades legislativas estaduais. Com isso, a ordem constitucional brasileira conferiu aos estados deveres estatais de proteção ao legislarem concorrentemente em matéria ambiental. No entanto, somente faz sentido este raciocínio se os estados conseguirem, em colaboração com a União, lutar pela saúde ambiental juntos (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) AYALA, 2012. p. 414). É sabido que o objetivo da República Federativa do Brasil, se funda na construção solidária, justa e livre para todos. Para tanto, imprescindível a proteção ambiental de todos os entes federados na busca da melhor sadia qualidade de vida para todos. Nesse sentido: Diante do sentido da solidariedade que permeia não apenas a noção de direito fundamental definida no art 225, senão também organização da Federação brasileira (art. 3, I), todos os entes estão vinculados a um dever de defender, proteger e assegurar proteção ao meio ambiente, por meio de iniciativas e medidas capazes de permitir que níveis de qualidade dos recursos naturais possam ser atingidos e que estes estejam disponíveis em igual medida e sob igual acesso a todos os brasileiros, não importa que sejam catarinenses, paulistas, amazonenses ou mato-grossenses (AYALA in CANOTILHO; LEITE (Orgs), 2012, p. 415-416). 3 A manifestação do Supremo Tribunal Federal diz respeito à fixação de restrições e proibições à comercialização do amianto (crisotila), por lei de iniciativa do Estado do Mato Grosso do Sul In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.396-9/MS. Governador do Estado de Goiás versus Assembléia Legislativa do Estado do Mato Grosso do Sul. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Acórdão publicado no Diário de Justiça da União de 14 de dez. 2001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 03 mai. 2015. 66 // Problemas da jurisdição contemporânea... A reflexão proposta então seria que o mínimo existencial ecológico insere também os limites registrados para as áreas de preservação permanente positivadas no Código Florestal. Em outras palavras, as áreas que este diploma protege é o mínimo para garantir a qualidade de vida atual e futura. E, por sua vez, vida digna significa “viver em um espaço no qual os recursos naturais tenham qualidade. Desta qualidade depende a existência digna da pessoa humana” (AYALA in CANOTILHO; LEITE (Orgs), 2012. p. 416). Outro ganho jurisprudencial da Corte brasileira tem sido apontado pela manifestação do Ministro Joaquim Barbosa, na ADI 3.937/SP, referente a supralegalidade dos tratados e sua influência sobre afirmativa do dever estatal de proteger o meio ambiente. Afirma o então Ministro que, uma vez reconhecidos o caráter supralegal aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, essas normas convencionais passam a ser as normas gerais, conforme os artigos 3 e 10 da Convenção n. 162, da OIT, promulgada pelo Decreto federal n. 126/91, da Lei federal n. 9.055/95. Nesse viés, ainda que as normas constitucionais prevejam normas gerais ambientais e tratados internacionais recepcionados internamente antevenham uma proteção maior em relação aos bens ambientais, os tratados supralegais então, serão as normas “gerais”. Contudo, nesse caso, o fenômeno é denominado de normas convencionais, por serem internacionais (MAZZUOLI, 2011). Sem embargo, o direito ambiental é o único direito fundamental de tríplice grandeza: individual, social e intergeracional. É um direito ímpar porque, reflete nessas três grandes áreas: a) na individual, uma vez que toda e qualquer pessoa necessita de um meio ambiente saudável e equilibrado para se desenvolver, e também para que possa ter os demais direitos fundamentais como o direito à vida, saúde, lazer; b) social, pois como sendo um bem de uso comum do povo – ou difuso, o meio ambiente ecologicamente equilibrado faz parte do patrimônio coletivo; e, c) intergeracional, uma vez que se trata de um bem que não está somente disponível para o “hoje”, e por esta razão, deve ser preservado para as gerações futuras. Por derradeiro, a proteção jurídica brasileira reconhecendo via jurisprudência a proteção fundamental a um bem tão precioso, já é um avanço a ser destacado, uma vez que a Suprema Corte destaca de tratar de um direito fundamental diferenciado e de valor inestimável. Com isso, espera-se que haja responsabilidade dos operadores do direito para fazer valer a norma já positivada e aplique, a proteção ambiental fundamental concomitantemente respeitando o princípio da precaução e do não retrocesso legislativo. A proteção ambiental... // 67 4.3 O PRINCÍPIO DO NÍVEL ELEVADO DE PROTEÇÃO NA UNIÃO EUROPEIA A União Europeia é uma Organização internacional bastante diferenciada. Isso porque, a UE não é simplesmente uma federação como os Estados Unidos da América ou o Brasil, uma vez que seus Estados-Membros continuam a ser nações soberanas e independentes. Não pode ser caracterizada também como mera organização intergovernamental, a exemplo da Organização das Nações Unidas – ONU, à medida que na UE, os Estados-Membros cedem efetivamente parte de suas soberanias em determinadas áreas. Consequentemente, isto faz com que o bloco adquira mais força e influência do que teriam os Estados atuando isoladamente. Assim, os Estados-membros congregam parte de suas soberanias aceitando decisões de instituições comuns como o Parlamento Europeu, e o Conselho Europeu, que representam ambos os governos nacionais. As decisões ocorrem por meio de propostas enviadas à Comissão Europeia, que, por sua vez, representa os interesses da União como um todo 4. Hoje, a União Europeia é considerada uma parceria econômica e política com características únicas, composta por 28 países europeus 5, que abarcam grande parte do continente europeu6. No que se refere aos objetivos da UE, a ascensão dos direitos humanos está entre os principais, tanto no âmbito da União Europeia quanto no restante do mundo. Liberdade, democracia, dignidade humana, igualdade e respeito pelos direitos humanos são alguns dos valores fundamentais da UE. Importante dizer que, desde a assinatura do Tratado de Lisboa, em 2009, todos os direitos supramencionados foram consagrados em um único documento, qual seja, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia 7. 4 Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em: <http://bookshop.europa.eu/pt/how-the-european-union-works-pbNA0414810/>. Acesso em: 09 jun. 2015. 5 Estados membros da UE e ano de adesão: Alemanha (1958); Áustria (1995); Bélgica (1958); Bulgária (2007); Chipre (2004); Croácia (2013); Dinamarca (1973); Eslováquia (2004); Eslovénia (2004); Espanha (1986); Estónia (2004); Finlândia (1995); França (1958); Grécia (1981); Hungria (2004); Irlanda (1973); Itália (1958); Letónia (2004); Lituânia (2004); Luxemburgo (1958); Malta (2004); Países Baixos (1958); Polónia (2004); Portugal (1986); Reino Unido (1973); República Checa (2004); Roménia (2007); Suécia (1995). Países candidatos: Albânia; Antiga República jugoslava da Macedónia; Montenegro; Sérvia; Turquia. Potenciais países candidatos: Bósnia e Herzegovina; Kosovo. 6 Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em: <http://europa.eu/about-eu/countries/index_pt.htm>. Acesso em: 09 jun. 2015. 7 A Carta dos Direitos Fundamentais compreende um preâmbulo e 54 artigos repartidos em sete capítulos: Capítulo I: da dignidade (dignidade do ser humano, direito à vida, direito à integridade do ser humano, proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes, proibição da escravidão e do trabalho forçado); Capítulo II: liberdades (direito à liberdade e à segurança, respeito pela vida privada e familiar, proteção de dados pessoais, direito de contrair casamento e de constituir família, liberdade de pensamento, de consciência e de religião, liberdade de expressão e de informação, liberdade de reunião e de associação, liberdade das artes e das ciências, direito à educação, liberdade 68 // Problemas da jurisdição contemporânea... Assim, tanto as instituições europeias quando os Estados-membros passaram a ter a obrigação legal de os respeitar, ao aplicar a legislação europeia8. Nesse contexto, o Tribunal de Justiça da União Europeia foi criado, em 1952, com o objetivo específico de implantar este objetivo e padronizar o sistema jurídico da União Europeia. Assim, este órgão tinha como finalidade principal garantir o respeito do direito europeu na interpretação e aplicação dos Tratados nos ordenamentos jurídicos de todos os Estados-membros9. O TJUE, para cumprir esta missão, desempenha algumas funções específicas: fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União Europeia; assegurar o respeito das obrigações decorrentes dos Tratados por parte dos Estados-Membros; e, interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais dos Estados-membros10. O referido tribunal tem sede em Luxemburgo e é composto por três jurisdições: o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e o Tribunal da Função Pública. Desde que foram criadas, as três jurisdições proferiram cerca de 28.000 acórdãos11. Importante destacar esta última função – interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais, por ser uma das funções mais importantes do TJUE. Isso porque, Alessandra Silveira afirma que, os Estados-membros profissional e direito de trabalhar, liberdade de empresa, direito de propriedade, direito de asilo, proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição); Capítulo III: igualdade (igualdade perante a lei, não discriminação, diversidade cultural, religiosa e linguística, igualdade entre homens e mulheres, direitos das crianças, direitos das pessoas idosas, integração das pessoas com deficiência); Capítulo IV: solidariedade (direito à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa, direito de negociação e de ação coletiva, direito de acesso aos serviços de emprego, proteção em caso de despedimento sem justa causa, condições de trabalho justas e equitativas, proibição do trabalho infantil e proteção dos jovens no trabalho, vida familiar e vida profissional, segurança social e assistência social, proteção da saúde, acesso a serviços de interesse económico geral, proteção do ambiente, defesa dos consumidores); Capítulo V: cidadania (direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais, direito a uma boa administração, direito de acesso aos documentos, Provedor de Justiça Europeu, direito de petição, liberdade de circulação e de permanência, proteção diplomática e consular); Capítulo VI: justiça (direito à ação e a um tribunal imparcial, presunção de inocência e direitos de defesa, princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas, direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito); Capítulo VII: disposições gerais. Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/human_rights/fundamental_rights_within_european_un ion/l33501_pt.htm>. Acesso em: 09 jun. 2015. Ver documento completo em: <http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0389:0403:pt:PDF>. 8 Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em: <http://europa.eu/about-eu/index_pt.htm>. Acesso em: 09 jun. 2015. 9 Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em: <http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09 jun. 2015. 10 Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em: <http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09 jun. 2015. 11 Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em: <http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09 jun. 2015. A proteção ambiental... // 69 devem aplicar seus ordenamentos jurídicos constitucionais de forma congruente e em consonância com a legislação e os Tratados da União Europeia, em especial com o disposto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (SILVEIRA, 2011). Nesse sentido, assevera Gilberto Bercovici que, [...] a consolidação dos tribunais constitucionais da Europa e a tendência crescente à ‘normatização’ da Constituição favorecem, ainda uma ‘mudança de paradigmas’ na Teoria da Constituição, que passou a enfatizar muito mais a hermenêutica constitucional e o papel dos princípios constitucionais (BERCOVICI, 2008, p. 112). Assim, o que se percebe a partir da análise das premissas abordadas por Silveira e Bercovici é que, os tribunais dos Estados-membros da UE estão inevitavelmente interligados e formam um tipo de “rede de hermenêutica constitucional”, na qual as decisões devem estar em conformidade com a legislação da União. Para conseguir tal objetivo, a UE utilizou-se das estruturas dos próprios Estados-membros para aplicar o direito da União. Silveira explica que, dentro desse sistema, as Cortes dos Estados são agora Cortes da UE também. Dessa forma, é função dessas Cortes aplicar a lei europeia, exercendo o temeroso papel de interpretar e conciliar a lei nacional com a legislação europeia (RELATÓRIO ELABORADO PELO CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA DA UNIVERSIDADE DO MINHO, 2012, p. 06). Assim, os próprios tribunais e todo o aparato jurídico já existente nos Estados-membros é utilizado para realizar um tipo de “controle de convencionalidade”12 entre o ordenamento constitucional interno e o ordenamento da UE13. Em resumo, o Sistema de Proteção aos Direitos Fundamentais da União Europeia, segundo o Centro de Estudos em Direito da União Europeia da Universidade do Minho – Portugal, baseia-se em duas premissas: 1) no reconhecimento dos princípios da União Europeia; 2) na presença de normas fundamentais de diversas fontes, como as normas europeias, normas nacionais e as normas internacionais de proteção aos direitos humanos (RELATÓRIO ELABORADO PELO CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA DA UNIVERSIDADE DO MINHO, 2012, p. 09). 12 O controle de convencionalidade é a análise e compatibilização vertical das leis (ou dos atos normativos do Poder Público) com os tratados internacionais ratificados pelo governo e em vigor no país. No Brasil, o tema é tratado por Mazzuoli. Ver mais em: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/194897/000861730.pdf?sequence=3>. Acesso em: 10 jun. 2015. 13 Informações extraídas da Aula de Excelência intitulada “Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais”, ministrada pela Professora Dra. Alessandra da Silveira, Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Portugal, na Unicesumar, no dia 10/05/2014. 70 // Problemas da jurisdição contemporânea... Neste contexto de interconstitucionalidade14, importante trazer à colação a atuação do Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção aos Direitos Fundamentais no âmbito da União Europeia. Este princípio permite que os próprios advogados dos Estados-membros usem da possibilidade de invocar diretamente, em suas demandas, legislação constitucional de Estadomembro diverso, quando se tratar de direitos fundamentais, e quando, a legislação de seu país se mostrar menos protetiva 15. A título de exemplo, tem-se que, um advogado alemão necessita ingressar com determinada demanda judicial para proteger questão relacionada ao direito fundamental ao meio ambiente de seu cliente, e, verifica que a legislação constitucional portuguesa oferece maior proteção do que a legislação alemã nesse quesito. Neste caso, o advogado alemão poderia, tendo como base o Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria de Direitos Fundamentais, invocar o direito português – desde que em conformidade com a legislação da União Europeia – para tutelar mais fortemente o direito fundamental de seu cliente. Quanto à previsão legal deste princípio, ela está prevista no artigo 53 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que dispõe: Artigo 53o Nível de protecção Nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito internacional e as convenções internacionais em que são partes a União, a Comunidade ou todos os Estados-Membros, nomeadamente a Convenção europeia para a protecção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, bem como pelas Constituições dos EstadosMembros (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, web). Nesse sentido, Mariana Canotilho aduz que este artigo traduz o Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria de Direitos Fundamentais na União Europeia. Este princípio seria, segundo a pesquisadora, a “[...] expressão do compromisso europeu em relação aos direitos fundamentais e garantia de uma tutela efectiva destes direitos no espaço da UE” (CANOTILHO, 2008, p. 169). No que tange o conteúdo dessa norma, o Centro de Estudos em Direito da União Europeia da Universidade do Minho – Portugal, afirma em seu relatório que, se, Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria 14 Teorizado pelo constitucionalista português, J.J. Canotinho, o interconstitucionalismo pode ser compreendido, de maneira breve, como a utilização de conversações constitucionais, bem como o estudo das relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político. Ver mais em: CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008. 15 Informações extraídas da Aula de Excelência intitulada “Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais”, ministrada pela Professora Dra. Alessandra da Silveira, Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Portugal, na Unicesumar, no dia 10/05/2014. A proteção ambiental... // 71 de Direitos Fundamentais na União Europeia traduz-se na seguinte premissa: se, para a resolução de um caso concreto, existem diversos ordenamentos jurídicos envolvidos que dizem respeito aos mesmos direitos fundamentais (protegido simultaneamente pela Constituição nacional, pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia), deve ser analisado e aplicado o regime legal que oferece maior proteção ao sujeito do direito em discussão (RELATÓRIO ELABORADO PELO CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA DA UNIVERSIDADE DO MINHO, 2012, p. 10). Segundo Canotilho, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, chama-se a atenção para alguns aspectos importantes, quais sejam: [...] - em primeiro lugar, reforça-se a ideia de a União estar obrigada a respeitar os direitos fundamentais, tal como resultam das tradições constitucionais comuns dos Estados-Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário (nos termos do art. 6º do TUE); - em segundo lugar, sublinha-se que o princípio do primado do direito comunitário, assim como os relevantes poderes das instituições comunitárias, uma vez que são susceptíveis de afectar os indivíduos, conduzem à necessidade de fortalecer a protecção dos direitos fundamentais ao nível da UE; - em seguida, chama-se a atenção para o facto de as disposições da Carta, tal como acontece com os preceitos relativos a direitos fundamentais de cada um dos Estados-Membros, terem de estar de acordo com as normas da CEDH; - finalmente, sustenta-se que a Carta não deverá substituir ou enfraquecer as disposições legais de cada um dos Estados-Membros sobre direitos fundamentais (CANOTILHO, 2008, p. 120). Grifo nosso Assim, o princípio contido na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia pressupõe quatro premissas. A primeira delas é justamente a ideia de que reforçou-se a proteção aos direitos fundamentais na UE. A segunda traduz-se no respeito ao princípio do primado do direito comunitário, ou seja, a legislação europeia deve prevalecer sobre a legislação interna dos Estados-membros. A terceira premissa aduz que a legislação que protege os direitos fundamentais dos Estados-membros deve, necessariamente, estar de acordo com a legislação europeia, teoricamente mais protetiva e forte. Por fim, a última premissa estabelece que a Carta não deverá substituir ou enfraquecer as disposições legais de cada um dos Estados-Membros sobre direitos fundamentais, o que significa dizer que, se a legislação do Estadomembro por mais protetiva ou positivar mais direitos do que a própria Carta, estes não podem ser enfraquecidos, mas sim efetivamente tutelados. Portanto, pode-se concluir que o Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria de Direitos Fundamentais na União Europeia e a especificidade do Sistema Jurídico Europeu possibilitam a formação de uma rede de ordenamentos jurídicos constitucionais que inevitavelmente se entrelaçam com o objetivo de proteger mais ferrenhamente os direitos mais 72 // Problemas da jurisdição contemporânea... importantes das pessoas. Resumindo, este princípio culmina na possibilidade de utilizar-se de outras jurisdições constitucionais dentro de uma mesma rede/espaço, para efetivar a tutela e proteção dos direitos fundamentais – em especial, os direitos da personalidade, aqui em destaque. 4.4 A PROTEÇÃO AMBIENTAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO NÍVEL ELEVADO DE PROTEÇÃO ECOLÓGICA A tutela legal do meio ambiente é responsável por salvaguardar o bem mais intangível dos direitos humanos: o direito à vida, imprescindível para garantir a sobrevivência hoje e futura da humanidade. Ter um ambiente sadio é imprescindível para que haja vida com saúde. Mas não somente pela visão antropocêntrica, também para que haja equilíbrio sistêmico planetário e com isso todos os seres vivos possam se desenvolver. Isso porque é necessário que haja os elementos vitais, como água, temperatura, calor, alimento, para que toda forma vida se reproduza e evolua. A tutela do meio ambiente, por sua vez, é a maneira tangível para que a se efetive a preservação e reparação ambiental. Pode-se afirmar que o meio ambiente como direito fundamental antecede a própria dignidade da pessoa humana, pois sem ele, não há pessoa, e consequentemente, não há vida. Nesse viés, o Direito Constitucional Europeu saiu na frente dos demais ordenamentos, incluindo o direito ambiental no nível elevado de proteção. Tal premissa se fundamenta no princípio da precaução16. Defende Maria Alexandra de Souza (2004) que o conteúdo do princip io de nível elevado foi ampliado para chegar a toda situação em que ́ exista um conflito entre dois ou mais niv́ eis de proteção, interpretações, regimes, valores, bens jurid ́ icos, etc., exigindo a escolha da opção que revelar a maior proteção permitida pelas circunstâncias. A leitura do nível elevado impõe a proteção comunitária ao “mínimo denominador comum” entre os níveis de proteção dos Estados Membros (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 57). Com isso, todos os países membros da UE estarão obrigados, pela a nova normativa, a proteger o meio ambiente levando em consideração o nível de proteção elevado. No entanto, é imperioso observar que, o princípio do nível mais elevado ainda não é absoluto, ao contrário, será aplicada de acordo as diversidades das situações existentes nas regiões da Comunidade Europeia. Segundo o item 5.1.3.da Comunicação da Comissão relativa ao princip ́ io da precaução (2000), na incerteza cientif́ ica as “relações de causa-efeito são pressentidas, mas não demonstradas”. O item dispõe que o princip ́ io “abrange circunstâncias especif́ icas em que os resultados cientif́ icos sejam insuficientes, inconclusivos ou incertos, mas haja indicações, na sequência de uma avaliação cientif́ ica objetiva preliminar, que existem motivos razoáveis para suspeitar que os efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou a proteção vegetal podem ser incompativ́ eis com o elevado niv́ el de proteção escolhido”. 16 A proteção ambiental... // 73 Em outras palavras, antes de aplicar o máximo natural, deve-se primeiro verificar o que comporta o local que se pretende proteger e compatibilizar a natureza com sua população nas suas devidas proporções. Para melhor compreender a questão, exemplifica-se o caso da Dinamarca, que demonstra efetividade por meio de ações afirmativas. Por outro lado, países como Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda, dentre outros, ainda demonstram preocupações menos ecológicas, visto que suas inquietações principais ainda pairam nas áreas sociais e econômicas (CANOTILHO; LEITE. (Orgs), ARAGÃO, 2012. p. 57). Foram fixados prazos flexíveis de adaptação interna, para que os países menos evoluídos ambientalmente conseguisse alcançar aqueles mais protetores, através de competência internas e auxílios diversos a esses Estados Membros (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012. p. 58). Com isso, já é possível afirmar que, hoje, o princípio do nível elevado de proteção é onipresente do Direito Ambiental Europeu. Isso significa que, os Estados-Membros podem ir mais além na tutela legal ambiental, do que a própria União Europeia, conforme prevê o artigo 193 do Tratado da União Europeia. Ensina Alexandra Aragão a respeito: [...] após a harmonização das disposições ambientais legislativas, regulamentares e administrativas, necessárias para o estabelecimento e o funcionamento interno, os Estados Membros podem manter ou introduzir disposições nacionais de proteção reforçada do ambiente. Essa possibilidade, denominada pela doutrina como “dourar” o “direito europeu” (“gold plating os EU Law”) ou a adição de uma “cobertura nacional” ao direito europeu (“add a national topping”), foi aceite na jurisprudência europeia no caso Deponiezweckverband Eiterköpfe, processo n. C-6, de 14 de abril de 2005 (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 58). O nível elevado de proteção se estende manutenção daquilo que já consegui preservar, ou seja, uma vez protegido ou preservado um meio natural está proibida a conduta de voltar a degrada-lo, sobre força do princípio do não retrocesso ambiental. Entende-se por princípio do não retrocesso, nas palavras de Sarlet, nos documentos da Comissão De Meio Ambiente, Defesa Do Consumidor E Fiscalização E Controle: [...] toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não) (BRASIL. SENADO FEDERAL. COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE). Isso porque, continua o mesmo autor: 74 // Problemas da jurisdição contemporânea... [...] a humanidade caminha na perspectiva de ampliação da salvaguarda da dignidade da pessoa humana, conformando a ideia de um “patrimônio político-jurídico” consolidado ao longo do seu percurso histórico-civilizatório, para aquém do qual não se deve retroceder (SARLET, 2010, p. 141). Explicando a importância desse princípio, é a lição de Antonio Herman Benjamin: [...] seria um contrassenso admitir a possibilidade de recuo legislativo, quando, para muitas espécies e ecossistemas em via de extinção ou a essa altura regionalmente extintos, a barreira limit́ rofe de perigo − o “sinal vermelho” do mínimo ecológico constitucional − foi infelizmente atingida, quando não irreversivelmente ultrapassada (BRASIL. SENADO FEDERAL. COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE, p.57). O princípio do não retrocesso ambiental é uma questão moral e ética, visto ser requisito para a salvaguarda de melhores condições de vida. O caráter progressista ambiental, se revela hoje uma obrigação de não regressão. Para Michel Prieur a proibição de retrocesso é um novo direito humano em total sinergia com o caráter finalista e voluntarista do direito ambiental (BRASIL. Senado Federal. Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle, web). E ainda: Essa ideia de garantir um desenvolvimento contínuo e progressivo das modalidades do exercício de um direito ao ambiente, até aos níveis mais elevados de sua efetividade, pode parecer utópico. A efetividade máxima é a poluição zero. Sabemos que isso é impossível. Todavia, entre a poluição zero e o uso das melhores tecnologias disponiv́ eis para reduzir a poluição existente, há uma grande margem de manobra. A não regressão vai, assim, se situar num cursor entre a maior despoluição possível – que evoluirá no tempo, graças aos progressos científicos e tecnológicos – e o nível mínimo de proteção ambiental, que também evolui constantemente. O recuo hoje não seria o mesmo recuo de ontem, como se pode notar das palavras de Naim Gesbert (2011, p. 28), para quem a não regressão permite uma adaptação “evolutiva, em espiral ascendente”, do Direito Ambiental (BRASIL. SENADO FEDERAL. COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE, p. 23-24). Dessa feita, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ultrapassa o nível elevado de proteção, declarando ainda que se deve priorizar a melhoria da qualidade do bem ambiental. Em outras palavras, não somente protege o que já está disponível na natureza como ainda prioriza que este bem, sempre que possível, seja o mais natural possível. Nas palavras de Aragão: A proteção ambiental... // 75 Garantir a proteção elevada não basta uma proteção omissa, que se limite a repelir actuações degradoras dos recursos naturais ou ofensivas do equilíbrio dos componentes ambientais. Pelo contrário, a melhoria do estado do ambiente (igualmente presente no art 3n. 3 do Tratado da União Europeia) parece exigir uma proteção dinâmica, pró-activa, com investimentos na recuperação de habitats, degradados, na reintrodução de espécies desaparecidas, renaturalização de rios, na biorremediação de solos contaminados, na criação de recifes artificiais junto à costa etc. (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 58). Alexandra Aragão enfatiza que o nível elevado de proteção é mais hierarquizador que os demais princípios, e, portanto, aplica-se sobre bens jurídicos clássicos conflituosos à àqueles que ainda não surgiram. Acrescenta ainda que, é considerado “princípio conformador do Estado de Direito, a ponto de podermos afirmar que o Estado de Direito Ambiental ou o Estado Constitucional Ecológico é aquele que se pauta por um nível elevado de proteção ecológica” (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 60). Com isso, ainda que outros direitos surjam, não haverá retrocesso ecológico, pelo ambiente estar calçado em elevado nível de proteção. Então, havendo conflito de normas seja um conflito de normas internas e a convenção ou ainda, entre outra convenção e a Convenção Europeia de Direitos Humanos, deve-se aplicar o texto mais protetor do meio ambiente. Obstante a este preceito, o princípio do elevado nível ambiental, vai servir de espécie de termômetro ambiental, regulando os possíveis conflitos intra e extra ambientais. Porque, ele que dirá se deve proteger mais ou menos um bem ecológico, levando em conta as quantidades e qualidades do bem. Contudo, ressalva que, por não ser um princípio absoluto, ele cede nos conflitos de precedência vital. Se a aplicação do princípio do nível elevado de proteção ecológica pressupõe sempre um conflito entre duas interpretações, entre dois regimes, entre dois valores, entre dois bens jurídico, e implica a escolha do mais carecido de proteção, pelo mais frágil, então o princípio do nível de proteção elevado é um princípio de justiça em sentido clássico, visando sempre protege a parte mais fraca num conflito (ARAGÃO; CANOTILHO; LEITE, (Orgs), 2012, p. 61). Nessa esteira, ensina Aragão que, que os conflitos de interpretação podem ocorrer levando em conta três premissas: 1) conflito de normas; 2) conflitos de interpretações da mesma norma; 3) simples conflitos de interesses (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 62). No caso de haver antinomias normativas entre Direito Europeu e ordenamento jurídico português, por exemplo, e supondo que a norma nacional garante proteção mais elevada ecológica que o Direito Europeu, este resta preterido àquele. No mesmo sentido é a aplicação quando ocorre dúvidas hermenêuticas. Ou seja, tomando por base os ensinamento de Aragão no 76 // Problemas da jurisdição contemporânea... caso de empresas necessitarem ou não de licenciamento ambiental para suas atividades. Relata que existindo dúvida de qual atividade poderá causar degradação ambiental, deve-se entender sempre pela melhor proteção ecológica e não ficar restrito ao rol taxativo de atividade potencialmente degradantes, traduzindo sempre em uma proteção da ambiente mais elevada (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 64-66). Em outras palavras, havendo conflito de normas e se elas não forem referente a bens vitais, deve ser preservado a norma mais protetiva no quesito ambiental. Focaliza ainda que, ainda que um país esteja em excelente qualidade ambiental não pode desconsiderar a proteção elevada ambiental. Essa interpretação se justifica também pela força do princípio do não retrocesso ecológico17 e do princípio do progresso ecológico 18, e ainda pelos princípios da precaução19, prevenção20, desenvolvimento sustentável21. Isso porque, 17 Exceções para aplicação do princípio (quando fala da vedação ao retrocesso aos direitos sociais): 1) Calamidade pública; 2) Estado de sítio; 3) Emergência grave. No entanto, assim que cessar esses estados temporários, deve-se retomar a aplicação do princípio. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 111 18 Princípio previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Este princípio busca a não estagnação legislativa, ou seja, é um dever de rever a legislação de proteçãoo ambiental. In Aragão Alexandra. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, Rubens Morato (Orgs) Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 68. E ainda, O Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC) visa ao progresso cons- tante dos direitos ali protegidos; é interpretado como proibindo a regressão. O Direito Ambiental, uma vez afirmando o direito humano ao ambiente, pode beneficiar-se dessa teoria do pro- gresso constante, aplicada notadamente em matéria de direitos sociais. O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, em sua observação geral n. 3, de 14 de dezembro de 1990, estigmatiza “toda medida deliberadamente regressiva”. Disponível em: < BRASIL. Senado Federal. Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle. O princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental. Brasília-DF. p. 21. Disponível em: < http://www.mpma.mp.br/arquivos/CAUMA/Proibicao%20de%20Retrocesso.pdf>. Acesso em 15 ago. 2015. 19 O princípio da precaução teve origem no Direito Alemão, na década de 70 do século XX, quando a alemanha começou a se preocupar com a necessidade de avaliação prévia das consequências sobre o meio ambiente. A nível internacional ficou conhecido na Conferência das Nações unidas sobre Meio Ambiente (CNUMAD), conhecido como RIO 92, na declaração de número 15: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica, não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. In ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 30-35. 20 Princípio da prevenção é próximo ao da precaução, contudo, diferentes. A prevenção aplicase a danos ambientais já conhecidos, assim é possível, coms egurança, evitar danos futuros. In ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 48. 21 ONU. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e desenvolvimento. 1992. Princípio 1: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”. Disponível em: < http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em 15 ago. 2015. A proteção ambiental... // 77 havendo circunstâncias econômica e financeira compatível resta imprescindível aplicação da política ambiental de nível elevado, sempre. A União Europeia, por essa razão, se localiza juridicamente à frente na proteção valorativa do bem ambiental, uma vez que, além de proteger os ditos direitos inerentes aos seres humanos como fundamental avança muito mais no direito conferindo proteção um nível elevado de proteção. 4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Isto posto, concluiu-se que, para haver realmente uma proteção ao meio ambiente, algumas modificações profundas devem ser feitas: 1) no cenário mundial, todos os países devem tutelar a proteção ambiental como um direito supremo e fazer com que essa tutela tenha efetividade. Para tanto, é necessário mudança de consciência imediata. Por outro lado, para que cesse a destruição da natureza é imprescindível a cooperação de ações, para que todos, entendem, definitivamente, que essa busca incansável por “ter” não terá valor algum se daqui a pouco não se terá onde habitar. 2) No cenário Europeu – onde esta pesquisa buscou inspiração – se conclui que ao contrário de outros continentes, a efetividade da proteção ecológica alcançou níveis elevado de proteção. Certo de que o ganho jurídico tem influência pela história da região e pela gama de direitos fundamentais já conquistados, pela pequena quantidade de natureza que restou, enfim, deve servir como parâmetros positivos para que todos também elevem a natureza ao nível elevado de proteção efetiva e não fique somente no direito posto, ou “no papel”. 3) No cenário brasileiro, o meio ambiente saiu à frente quando o legislador ordinário o protegeu com um capítulo próprio. Posteriormente, o judiciário o reconheceu como imprescindível a sobrevivência humana, logo, um direito fundamental e hoje vai além, sendo um direito fundamental ao desenvolvimento da pessoa humana, portanto, um direito da personalidade. No entanto, o Brasil peca ainda no plano da eficácia, tanto pelo próprio Estado pela estrutura administrativa, estrutural e fiscalizadora, desorganizada, quanto pelo legislativo e o judiciário que, muitas vezes, alicerçados pelo interesse social, ainda permitem o retrocesso em favor do desenvolvimento econômico. Por fim, o fato do meio ambiente estar posto a nível constitucional já demonstra esperança de mudança e a esperança da conversão de padrões sociais e estatal. Espera-se agora, um avanço ético e moral, pois muito se vê e pouco se enxerga. A questão ambiental é uma questão espiritual de conectividade de uns para com os outros e de todos para com a natureza, uma vez que não se habita aqui apenas para adquirir riquezas, e esta é a única casa que há para os seres humanos e ela precisa de cuidado! 78 // Problemas da jurisdição contemporânea... 4.6 REFERÊNCIAS ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2014. ARAGÃ O, Maria Alexandra de Sousa. O princip ́ io do niv ́ el elevado de proteção ecológica: resíduos, fluxos de materiais e justiça ecológica. Tese de Doutoramento em ciências jurídico- políticas. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2004. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2009. BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompila do.htm>. 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O envelhecimento é um processo inerente a todo ser vivo, desta forma é forçoso ao homem sofrer com as transformações físicas e mentais geradas pelo decorrer dos anos sendo quase inevitáveis os desconfortos resultantes da ação do tempo, porém, é fundamental que possam acontecer de uma forma menos dolorosa e mais saudável. O aumento da população idosa mundial também gera reflexos no mundo jurídico, consequentemente, faz-se necessário a realização de estudos dedicados a essa temática visando a realização de uma efetiva aplicação dos preceitos legais, sobretudo, quando há um aumento no número de relatos sobre o desrespeito e maus tratos para com os idosos, demonstrando a omissão das famílias e do Estado perante estas pessoas, principalmente daqueles que se encontram em condições vulneráveis. O idoso, em sua derradeira caminhada, assim como uma criança, merece uma proteção maior e moldada às condições que a sua idade lhe impõe. Assim, maior atenção deverá ser destinada àquele idoso que se encontra incapacitado pela debilidade física e psíquica e impossibilitado de reger autonomamente a sua vida. Este cenário configura-se pela proteção dos direitos e garantias fundamentais destinados a tutelar a personalidade do idoso, devendo lhe assegurar uma forma digna de envelhecimento, asseverado como direito fundamental tanto pela Constituição da República Portuguesa, quanto pela Constituição brasileira, bem como por demais leis internacionais que abrigam esta temática. * Mestranda em Ciências Jurídico-Civilísticas/Menção em Direito Civil pela Faculdade de Direito - Universidade de Coimbra, em Coimbra, Portugal; Advogada. E-mail: [email protected] ** Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá, em Maringá, Brasil; Advogada e professora. E-mail: [email protected] 82 // Problemas da jurisdição contemporânea... Ante o breve exposto, será realizada uma concisa exposição da matéria destinada a regularizar os processos de interdição e inabilitação, meios legais presentes no Código Civil português e o processo de interdição previsto na legislação brasileira. Ressalvadas as especificidades dos referidos institutos, todos se destinam à proteção do idoso incapaz e serão apresentadas suas características, formas de realização, consequências jurídicas, bem como a explanação de alguns pontos críticos pertinentes à proteção efetiva da personalidade do idoso. 5.2 O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: ASPECTOS GERAIS Historicamente, a questão do idoso tinha pouca relevância porque a velhice só chegava às classes mais abastadas, sendo que entre os pobres eram raros os que atingiam idades avançadas. Através dos tempos e em diferentes culturas, a velhice foi se valorizando graduando conforme a condição social, desde o simples anonimato até a posição mais dignificante (SOUZA, 2004, p. 13). Pela tradição ocidental, o conceito de idoso surge no final do século XVIII, quando o envelhecimento passou a ser identificado como degeneração e decadência. O envelhecimento não era discriminado e muito menos a longevidade implicava no abandono das atividades produtivas ou do isolamento das relações sociais, sendo concebido como sinônimo de sabedoria nas sociedades tradicionais (ELIAS, 2001, p.167). Como afirmou Norberto Bobbio o envelhecimento apresenta três sentidos: a velhice censitária ou cronológica correspondente àquela que decorre da idade biológica vivida, a se iniciar aos oitenta anos. O segundo sentido corresponde à velhice burocrática estabelecida pela legislação em vigor, e por último, a velhice psicológica ou subjetiva, determinada pelo estado de ânimo e pelas circunstancias históricas e sociais (BOBBIO, 1997, p.20). Para a filósofa Simone de Beauvoir, a velhice não é um fato estático, mas sim o resultado e o prolongamento de um processo, mudar é a lei da vida e o envelhecimento é caracterizado por mudanças irreversíveis e desfavoráveis. Simone, citando o gerontólogo americano Lansing, define o envelhecimento como “um processo progressivo de mudanças desfavoráveis, geralmente ligados à passagem do tempo, tornando-se aparente depois da maturidade e desembocando invariavelmente na morte” (LANSING, apud BEAUVOIR, 1990, p. 17), e, dessa forma, envelhecer é o processo natural de todo ser vivo. O sociólogo alemão Norbert Elias, afirma que nas sociedades industrializadas e contemporâneas, o Estado protege o idoso contra a violência física, entretanto, quando as pessoas envelhecem e ficam mais fracas, são afastadas e isoladas da sociedade, do círculo da família e de seus conhecidos, criando o que o autor denomina como “desertos de solidão” (ELIAS, 2001, p.85). A proteção da personalidade... // 83 Segundo o critério adotado pela Organização Mundial da Saúde – OMS – a população idosa em países desenvolvidos é definida pelo grupo etário de 65 anos ou mais de idade. Esse conceito teve início por volta de 1880, na Alemanha, quando Otto Von Bismarck implantou essa faixa etária para o início da concessão de certos benefícios de natureza social. Contudo, nos países em desenvolvimento, devido as suas condições socioeconômicas, o limite etário será de 60 anos ou mais de idade. Podemos considerar o envelhecimento populacional um fenômeno moderno, pois como demonstram os índices atuais, nunca à população humana conseguiu alcançar esta longevidade que chega a ultrapassar os 70 anos de vida. Igualmente, isso não se restringiu apenas aos países desenvolvidos, pois a expectativa de vida também aumentou nos países em desenvolvimento. Dados das Organizações das Nações Unidas – ONU – indicam que a população idosa representa 10% de toda a população mundial, e estima-se que em 2050 essa faixa etária seja de 32%, tornando, pela primeira vez, o número de idosos maior que o número de crianças. Atualmente 64% de todas as pessoas mais velhas vivem em regiões menos desenvolvidas, um número que deverá aproximar-se de 80% em 2050 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015), resultando, assim, em um novo desafio para a saúde pública global no tratamento de doenças crônicas e degenerativas, bem como no bem-estar da terceira idade. Portanto, os números informados apontam para a necessidade de destinar-se uma atenção maior para esta faixa etária. Este contingente populacional passará a ser cada vez mais expressivo, modificando os cenários de vários setores da sociedade e a forma como deverão encarar a velhice. Este processo também irá refletir no âmbito jurídico, principalmente no que fere as incapacidades em razão do aumento de doenças relacionadas ao envelhecimento. 5.2.1 O envelhecimento da população O último recenseamento realizado em 2011 em Portugal informou que no grupo das idades mais avançadas se verificou um aumento significativo da população idosa com 70 anos ou mais, representando 11% da população total em 2001 e passando para 14% no ano de 2011. Ainda, o número de famílias constituídas por apenas um indivíduo idoso representa a grande maioria das famílias unipessoais e correspondem a cerca de 10% do total de famílias clássicas, localizadas geograficamente e predominantemente nos territórios do interior, observando elevados índices de envelhecimento (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2001). Outro dado importante corresponde ao crescimento do número de idosos que vivem em instituições de apoio social, apontada como uma resposta da sociedade ao envelhecimento populacional, concluindo que o acolhimento dos mais velhos na residência dos filhos ou dos parentes tem vindo progressivamente a ser substituído pela institucionalização do idoso em 84 // Problemas da jurisdição contemporânea... estabelecimentos responsáveis por realizar atividades cuidadoras, além de que, a faixa etária residente nestes estabelecimentos se concentra nos indivíduos com 70 anos ou mais. Dados coletados pela Associação Portuguesa de Apoio a Vítima – APAV informaram que de 2000 para 2012 o número de vítimas de crimes patrimoniais que recorreram aos seus serviços com idade entre 65 anos ou mais, correspondeu a 16,5% de todos os casos atendidos. Agravando esta situação está o fato de as mulheres representarem a maior percentagem de vítimas ao longo dos últimos 13 anos. Igualmente, em todos os anos analisados (2000 a 2012) o autor do crime correspondeu maioritariamente ao sexo masculino, possuindo entre 26 e 45 anos de idade em 22,5% dos casos. Outro dado alarmante demonstra que os crimes patrimoniais são praticados em 35,7% dos casos na residência da vítima (ESTATÍSTICAS APAV, 2015). Outrossim, os dados de 2004 e 2012 relativos a agressão doméstica praticados contra idosos exibem um total de 3.988 pais agredidos pelos seus filhos em ambiente doméstico, o número de vítimas do sexo feminino corresponde a 81% do total, claramente superior ao número de vítimas do sexo masculino, da mesma maneira que nos crimes patrimoniais, os filhos homens importam maioritariamente como agressores sendo 71% do total. Finalmente, outro dado assombroso corresponde ao de centenas de idosos abandonados por ano em hospitais portugueses. As hipóteses para esta conduta atroz seriam atribuídas ao fato de muitos familiares não possuírem condições econômicas, devido a atual crise que assola o país, espaço físico e tempo ou vontade para acolher seus idosos (BOLETIM DA ORDEM DOS ADVOGADOS, 2010). Já no Brasil, de acordo com dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que mantém serviço para o recebimento de denúncias de violações de direitos humanos, no ano de 2011 foram relatadas 43.628 violações contra pessoas idosas. Dentre elas estão violações contra o patrimônio econômico, integridade física e/ou psíquica, dentre outros vários (BRASIL, 2012). Nesse conjunto de dados destacam-se as denúncias de negligência (68,7%), seguidas pelos abusos psicológicos (59,3%), abusos financeiros, econômicos e violência patrimonial (40,1%) e, em último lugar, os maus-tratos físicos (34%). Frise-se, todavia, que a violência contra a pessoa idosa é muito mais abrangente e difusa do que as que aparecem nas taxas de morte e de internações hospitalares (BRASIL, 2014). Portanto, o que está em risco não é apenas a integridade física destes indivíduos, mas também a proteção psicológica e preservação da sua integridade mental, ferindo a sua dignidade humana. Como demonstraram estes dados, a agressão parte daquele que o idoso confia, de um ente familiar e que muitas vezes habita conjuntamente com este. O quadro se agrava quando o indivíduo hipossuficiente, neste caso cita-se o incapaz, não possui condições mínimas de se autoproteger e muito menos de invocar a proteção de outros familiares ou de órgãos públicos competentes. A proteção da personalidade... // 85 5.3 PERSONALIDADE: ASPECTOS GERAIS Inicialmente, devemos conceituar de forma breve a personalidade humana, que é temporal, não podendo ser considerada como a soma de funções vitais, mas sim como o resultado do comportamento individual frente a estímulos de variada natureza, assim, cada ser humano possui uma história pessoal. Nesta história consideram-se os dados biopsicológicos herdados, o meio em que o indivíduo se desenvolve e suas condições ambientais, sociais e culturais (D´ANDREA, 2012, p. 9). O criador da psicanalise, Sigmund Freud, formulou conceitos psicodinâmicos da personalidade, estabelecendo uma estrutura chamada de aparelho psíquico composto de três partes: id, ego e superego. O Id será a parte original do aparelho psíquico a partir da qual irá se desenvolver as outras duas. O Id está ligado à infância, voltado para a satisfação das necessidades no início da vida, consiste de impulsos que buscam o prazer e evitam a dor, sendo basicamente animal a atividade humana no início da vida e representando a sua herança biológica. Já o Ego, será o intermediário entre o Id e o mundo externo, realizando as funções de perceber, lembrar, pensar, planejar e decidir. Finalmente, o Superego, incorporará as regras e normas impostas pelo mundo externo à estrutura psíquica, criando a chamada “consciência”, representando a resposta automática do que é “certo” ou “errado” diante das situações enfrentadas no cotidiano e sendo o resultado da herança sociocultural do ser humano (D´ANDREA, 2012, p.13). Jean Paul Sartre (2007, p.94) sobre este tema em sua obra “O Ser e o Nada” afirmou: [...] desde que surge, a consciência, pelo puro movimento nadificador da reflexão, faz-se pessoal: pois o que confere a um ser a existência pessoal não é a posse de um Ego - que não passa do signo da personalidade -, mas o fato de existir para si como presença a si. A personalidade do indivíduo demanda reflexões filosóficas e estudos mais aprofundados sobre a biologia e psicologia humana por ser um tema complexo e amplo, entretanto, este trabalho irá utilizar-se de breves conceitos destas áreas para embasar e contextualizar os direitos de personalidade no universo jurídico. 5.3.1 A proteção da personalidade do idoso A proteção ao indivíduo idoso está presente na Constituição da República Portuguesa, em seu artigo 72 destinada ao grupo de indivíduos chamado de terceira idade. Igualmente, a Carta Magna Brasileira, no artigo 5º e em seu Título VIII, que trata da Ordem Social, resguarda a proteção à velhice e a assistência ao idoso, tanto por parte do Estado quanto da família. Todo ser humano tem personalidade, como observou Carlos Alberto da Mota Pinto, citando a conhecida formula de Kant, “o homem é pessoa, 86 // Problemas da jurisdição contemporânea... porque é fim em si mesmo, isto é, tem um valor autónomo e não só um valor como meio para algo de diverso, daí resultando a sua dignidade” (PINTO, 1985, p.99). Reconhecer a sua dignidade constitui a regra ético-jurídica fundamental, reconhecer o respeito mútuo entre os indivíduos é reconhecer a dignidade do ser humano. Na esfera jurídica os direitos de personalidade são gerais e todos possuem o direito de gozá-los, são extrapatrimoniais, pois, suas violações podem originar uma reparação pecuniária, porém, não possuem em si este valor, e são direitos absolutos. Os direitos de personalidade incidem [...] sobre a vida da pessoa, a sua saúde física, a sua integridade física, a sua honra, a sua liberdade física e psicológica, o seu nome, a sua imagem, a reserva sobre a intimidade da sua vida privada (...) um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa (PINTO, 1985, p. 209). Portanto, ao proteger a personalidade física e moral do indivíduo humano, as legislações portuguesa e brasileira estão tutelando o desenvolvimento da própria personalidade, e isso corresponde a dizer que o idoso, quando alcançou o desenvolvimento máximo, físico e psicológico, presencia o declínio das suas funções vitais, merecendo semelhante proteção legal àquela destinada à criança, por se encontrarem em extremos estágios de vulnerabilidade. Aplicar-se-á o princípio da igualdade no que fere a temática deste estudo conforme explicação de Rabindranath Capelo de Sousa, pois, diante da idade da pessoa vigora o princípio geral da igualdade (art.13. nº 1 da Constituição Portuguesa e art. 5º, caput, da Constituição Brasileira), só devendo ser tratado de maneira desigual àquilo que, razoavelmente e objetivamente é dessemelhante, em virtude das características de certos grupos etários (SOUZA, 1995, p.112). Igualmente, “[...] a personalidade humana tutelada não reveste um carácter estático, mas dinâmico”, pois, “tanto a essência como a existência do homem, enquanto determinantes da sua personalidade, merecem idêntica proteção legal” (SOUZA, 1995, p.117). Como salienta Orlando de Carvalho, só um direito ilimitado e ilimitável da personalidade permite uma tutela suficiente do homem ante os riscos de violação que lhe oferece a sociedade contemporânea. Contudo, este direito abstratamente ilimitado será limitado “pelas condições concretas a que se subordina a relevância da sua invocação”. (CARVALHO, 1981, p. 203). Assim, todo indivíduo é o bem supremo da ordem jurídica, o seu fundamento e o seu fim (SOUZA, 1995, p. 207), razão pela qual se destina a aplicação eficaz da tutela da personalidade. A afronta à personalidade é susceptível de responsabilidade civil e legitima a adoção das providências previstas no Código Civil português e brasileiro. A igual tutela geral da personalidade, singularizada no ser do respectivo titular, portanto, valerá para qualquer portador de deficiência física ou psíquica que desdobre em uma incapacidade jurídica. A proteção da personalidade... // 87 Caso ocorra ameaça ou ofensa à personalidade, poderá o titular do direito exigir reparação pelos danos sofridos através da responsabilidade civil, “extensão dos danos a indenizar ou o conteúdo das medidas preventivas ou atenuadoras, em função também da situação dinâmica dos bens humanos sujeitos a tal processo” (SOUZA, 1995, 207), com o intuito de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida, utilizando-se dos meios processuais cabíveis. 5.3.2 Personalidade jurídica Adentrando a definição da personalidade jurídica, ela corresponderá à capacidade para ser sujeito das relações jurídicas. Os sujeitos são os indivíduos suscetíveis de serem titulares de direitos, obrigações e partes nas relações jurídicas. A personalidade jurídica representa a aptidão para ser titular autônomo destas relações, capacidade singular nos seres humanos e uma exigência do direito ao respeito à dignidade inerente a todos os indivíduos (PINTO, 1985, p. 193). Como preceitua o Código Civil que a personalidade jurídica adquirese no momento do nascimento completo e com vida, e cessa com a morte da pessoa. Entretanto, a personalidade jurídica é uma pura criação do direito, e só há personalidade jurídica porque existe personalidade humana (CARVALHO, 1981, p. 161). Desta forma, todo sujeito de direito é titular de fato de relações jurídicas e também será titular de direitos de personalidade (PINTO, 1985, p. 193), estando a personalidade jurídica entrelaçada à capacidade jurídica de gozo e de direitos. 5.3.3 Capacidade jurídica A capacidade jurídica é a possibilidade jurídica em concreto, ela é inerente à personalidade jurídica e refere-se à aptidão para ser titular em maior ou menor grau de relações jurídicas, possuindo uma maior ou menor capacidade conforme certas circunstancias ou situações (CARVALHO, 1985, p. 220). Portanto, a capacidade jurídica e a capacidade de agir só se distinguem na esfera patrimonial da pessoa. Reconhecer a capacidade jurídica sem reconhecer a capacidade de agir significaria a negação da dignidade da pessoa humana (STAZIONE, 1975, p. 241). Outrossim, torna-se ineficaz a dissociação entre o conceito de capacidade jurídica e capacidade de agir negocial tradicional quando em causa esteja o exercício de direitos pessoais do incapaz, por serem direitos personalíssimos e corresponderem aos direitos de afirmação da liberdade e da sua autodeterminação, o resultado de qualquer tentativa de dissociação se tornará pura ficção (RIBEIRO, 2010, p. 69). Rabindranath afirma que os institutos da personalidade e da capacidade jurídica interpenetram-se, porém não se confundem com o bem da personalidade humana juridicamente relevante, pois, os valores jurídicos que o instituto da capacidade incorpora são reabsorvidos também no bem 88 // Problemas da jurisdição contemporânea... jurídico da personalidade, enquanto objeto da tutela geral referida. O bem jurídico da personalidade reivindica e incorpora um direito ao bem da personalidade jurídica plena e postula pelo bem de uma capacidade jurídica extensa (SOUZA, 1995, p. 106-107). Como observado por Orlando de Carvalho: A luta pela personalidade é diretamente uma luta pela capacidade. Luta que está longe do seu fim, se nos lembrarmos das várias capitis deminutiones que ainda se admitem nos ‘bons costumes’ contemporâneos: incapacidades derivadas da etnia, do sexo, da idade, da nacionalidade, etc (CARVALHO, 1995, p. 193). 5.3.3.1 Capacidade de exercícios de direito e capacidade jurídica negocial A capacidade de exercícios de direito, como ensina Mota Pinto, é uma expressão não muito feliz no ordenamento jurídico português, pois sugere tratar-se apenas da capacidade de exercitar direitos, deixando de fora o cumprimento de obrigações e a aquisição de direitos ou assumindo obrigações por ato próprio e exclusivo ou mediante um representante voluntário ou procurador (PINTO, 1985, p.194-195). Contudo, segundo este mesmo autor a capacidade jurídica de exercer direitos ou capacidade de agir, corresponde à idoneidade de atuar juridicamente através do exercício de direitos e deveres, adquirindo direitos ou assumindo obrigações por designo próprio ou de terceiros, através de representação voluntária ou através de procuração (PINTO, 1985, p.195), mas a pessoa capaz de exercício de direitos atua pessoalmente (não se utiliza de representante) e autonomamente (sem a necessidade de assistência), portanto, a capacidade é medida por um conjunto de ações e condições na qual o indivíduo se encontra. Orlando de Carvalho (1995, p. 193) sobre este tema diz que a chamada capacidade de agir ou capacidade de exercícios de direitos, será a capacidade para intervir pessoalmente ou através de representante voluntário na aquisição, modificação ou extinção das relações jurídicas. Esta capacidade deverá ocorrer em condições de manifestação livre e lúcida, contudo, ela não existirá em alguns indivíduos, citando como exemplos clássicos os que não atingiram a maturidade pessoal ou aqueles que a perderam em maior ou menor grau, como os incapazes classificados pela lei. A capacidade de exercícios de direitos é reconhecida às pessoas que atingem a maioridade aos 18 anos, tanto na legislação portuguesa quanto na brasileira. Entretanto, nem sempre o conceito jurídico de capacidade de agir estará em consonância com a capacidade natural ou de fato da pessoa (RIBEIRO, 2010, p. 74). A capacidade de agir é uma construção da ordem jurídica delimitada pelas exigências de segurança jurídica, visando proteger a própria pessoa e o comércio jurídico. O reconhecimento da capacidade de agir ocorre naturalmente enquanto correlacionado a personalidade humana, porém, há A proteção da personalidade... // 89 bens jurídicos que em determinados casos exigem a limitação para o pleno e universal reconhecimento da capacidade de agir (RIBEIRO, 2010, p.74). Da mesma forma, a capacidade de agir negocial é um conceito de construção jurídico-legal, entretanto, a competência natural impõe à ordem jurídica o reconhecimento da capacidade de agir a todos os homens, bem como o dever de exigir a justificação proporcional de restrições à capacidade de agir, em consequência da necessidade de se proteger bens jurídicos individuais ou públicos relevantes (RIBEIRO, 2010, p.77). Carlos Alberto da Mota Pinto (1985, p.222) ensina que a incapacidade negocial de gozo provoca a nulidade dos negócios jurídicos e é insuprível, não podendo ser concluídos por outra pessoa em nome do incapaz, muito menos por este, mas com a autorização de outra entidade. Contudo, a incapacidade negocial de exercícios provoca a anulabilidade dos negócios jurídicos que poderão ser concluídos através dos meios destinados a suprir a incapacidade, os quais são: representação e a assistência legal. Passaremos a definir quais são os tipos de incapacidade jurídica. 5.4 INCAPACIDADES JURÍDICAS São identificados três tipos de incapacidades: as decorrentes de uma valoração judicial a pressupor uma incapacidade duradoura abarcando os casos de inabilitação e interdição; as decorrentes da lei, como incapacidades legais stricto sensu - o caso típico é a menoridade; e finalmente, as resultantes do juízo de avaliação circunstancial e casuístico, as chamadas incapacidades naturais ou de facto (RIBEIRO, 2010, p. 79-80). A incapacidade de exercícios de direito, pode ser genérica ou específica, se adaptando ao caso concreto, estando o indivíduo incapacitado de realizar atos jurídicos em geral ou alguns em especial. Entretanto, a incapacidade jurídica de exercícios de direito poderá ser suprida pela representação legal ou pela assistência (PINTO, 1985, p. 195), se adequando a realidade físico-psíquica que resultará no grau de incapacidade do indivíduo. Como consequência, poderão ser invalidados tais atos por eles praticados, bem como impondo deveres especiais de atenção e respeito para com estes indivíduos incapazes, destinando às pessoas que com eles se relacionam o dever de zelar e protegê-los. A incapacidade de exercício de direitos será suprida pela representação legal, através da designação de um tutor/curador após o devido processo legal que confirme a incapacidade do indivíduo. 5.5 BREVE ANÁLISE DA INTERDIÇÃO E INABILITAÇÃO COMO FORMAS DE SUPRIR A INCAPACIDADE JURÍDICA DO IDOSO EM PORTUGAL O objeto de estudo deste trabalho está no processo de interdição e inabilitação da legislação portuguesa de maiores na faixa etária 90 // Problemas da jurisdição contemporânea... correspondente a 3ª e 4ª idade, motivo pelo qual será dedicada maior atenção aos casos vividos por este grupo etário. A incapacidade do idoso pode atingir diversos níveis, tendo sua origem comum na debilidade decorrente do envelhecimento através do processo natural sofrido pelo transcorrer do tempo que resultará, muitas vezes, em uma fragilidade física e psíquica (CAMARANO, 2010, p. 140). Nos casos extremos, a pessoa não conseguirá mais ter autonomia em suas atividades físicas, psíquicas e sociais, deverá então ser impetrado um processo judicial requerendo a interdição ou inabilitação, nele será avaliado através de perícia jurídica o grau da sua incapacidade. Segundo informações apresentadas pelo Boletim da Ordem dos Advogados de Portugal, o ano de 2012 teve o recorde de interdições e inabilitações declaradas pela justiça. Mais de 2 mil idosos se encontravam incapacitados de reger sua pessoa e seus bens, a razão para este quadro seria o diagnóstico de doenças mentais e degenerativas que afetam a autonomia do indivíduo (BOLETIM DA ORDEM DOS ADVOGADOS DE PORTUGAL, 2014). Em outra investigação realizada sobre o envelhecimento em Portugal, foi averiguado que 50% da população com 65 ou mais declararam ter muita dificuldade, ou não conseguir realizar, pelo menos, uma das 6 atividades diárias, sendo elas: ver, ouvir, andar, memória/concentração, tomar banho/vestir-se, compreender/fazer-se entende (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2011) ou seja, simples atividades rotineiras que comprometem a autonomia do idoso. Como se observa, a capacidade apresenta vários níveis, sendo fundamental a determinação do seu grau para o desenvolvimento pleno de cada atividade. Igualmente, ocorrerá “quando lidamos com doenças degenerativas, em que as pessoas podem manter capacidade para tomar determinadas decisões (VITOR, 2004, p.12). Portanto, não será apenas a constatação de uma ou várias dificuldades na realização de tarefas do cotidiano que implicará em uma incapacidade jurídica. Para que ela ocorra deverá haver a impossibilidade de governar a sua pessoa e uma falta de discernimento que estará a comprometer a adequada administração de seus bens e em grau elevado, a sua pessoa. Os processos de interdição e inabilitação têm como objetivo suprir as incapacidades jurídicas do indivíduo tendo o intuito de o protege-lo. Igualmente, estas ações deverão ser propostas no momento em que for constatada a incapacidade e não como forma preventiva que vislumbre uma futura eventual causa de interdição ou inabilitação. A matéria relativa à interdição está prevista no artigo 138 do Código Civil português, e os sujeitos à interdição serão aqueles que possuam anomalias psíquicas, surdez-mudez ou cegueira, e se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens. Já o artigo 152 refere-se àqueles que podem sofrer o processo de inabilitação, como os indivíduos cuja anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, em caráter permanente não seja tão grave a ponto de justificar a sua interdição. Serão incluídos neste rol os indivíduos que sejam pródigos ou A proteção da personalidade... // 91 que façam uso de bebidas alcoólicas ou de entorpecentes, se mostrando incapazes de reger convenientemente o seu patrimônio. Igualmente caberá aos processos de inabilitação quando não regulado pela sua subsecção, as disposições e regulamentações previstas para o processo de interdição, conforme estabelecido pelo Código Civil. Logo, as interdições e inabilitações, estão no campo da restrição de direitos fundamentais, mais precisamente do direito à capacidade civil, como previsto no artigo 26º, nº.1 da Constituição da República Portuguesa, incluídos na categoria dos direitos, liberdades e garantias, sujeitos ao regime específico do artigo 18º, nº 2, da mesma legislação, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionais protegidos”, porém, respeitando o princípio da proibição em excesso (VITOR, 2004, p.15). A limitação de direitos deverá ser “[...] adequadas (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida)” em razão dos reflexos que irão comprometer o livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo. A interdição/inabilitação só deverá ocorrer quando o incapaz não possuir mais condições de cumprir os “[...] deveres familiares, sociais e públicos, e de praticar actos relativos à sua vida económica e patrimonial” (CANOTILHO, 2003, p. 457). Outrossim, “[...] a materialização do pleno estatuto de homem autónomo apenas pode ser colocado em causa quando se formular um juízo negativo sobre a específica incapacidade para atuar autonomamente” (RIBEIRO, 2010, p. 78), ou seja, o processo de interdição ou inabilitação não deve ser visto como uma regra a ser cumprida quando o idoso se encontra em estado de vulnerabilidade, a interdição/inabilitação deve ser vista como uma exceção no processo do envelhecimento. Estes processos significam sentenciar a total ausência de capacidade jurídica de direitos e de gozo do indivíduo, oficializando a ausência de sua autonomia. Em razão desta sentença, tal conduta deve ser ponderada e medida, pois há casos em que o indivíduo apresenta pequenas demonstrações de desordem psíquica, mas não compromete totalmente o seu discernimento e juízo de valor em suas ações e atividades cotidianas. Portanto, só será aceito reconhecimento de uma incapacidade geral quando ela esteja juridicamente justificada após um processo legal, comprovando o estado de incompetência e vulnerabilidade do incapaz para se autodeterminar, sendo este o “[...] fundamento e critério de uma decisão constitutiva de uma incapacidade judicial” (RIBEIRO, 2010, p. 78). A interdição só terminará com a cessação da incapacidade natural, desta maneira deverá haver um processo legal para o seu levantamento, a sua requisição competirá ao próprio interdito ou aqueles que possuírem legitimidade para requerê-la, como previsto no artigo 151 do Código Civil. Igualmente ocorrerá com o inabilitado, sua incapacidade só deixará de existir quando ocorrer o levantamento da inabilitação. Entretanto, há certas condições que deveram ser obedecidas por aqueles que sofreram este 92 // Problemas da jurisdição contemporânea... processo como prevê o artigo 155 do Código Civil. Assim, quando as causas da inabilitação forem a prodigalidade ou o abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, o levantamento só poderá ocorrer desde que provado a cessão daquelas causas e tenha decorrido o prazo de 5 anos a contar sobre o trânsito julgado da sentença decretada de inabilitação ou da decisão que denegou um pedido de levantamento anterior. Este período visa sujeitar o inabilitado a uma prova temporal a fim de evitar “o risco de dissimulação ou fingimento” sobre sua regeneração, justificando que este comportamento não está presente nas pessoas que sofreram processo de interdição ou inabilitação por anomalia psíquica (PINTO, 1985, p. 244). 5.5.1 Breves considerações sobre o processo de interdição e inabilitação em Portugal Passaremos a tratar de cada processo interdição e inabilitação de forma particular, contudo, ambos sofrem críticas comuns pela forma como ocorrem. A seguir serão tecidos breves comentários sobre alguns pontos controversos existentes no processo de interdição e inabilitação. Estas ações têm por escopo à proteção dos incapazes e daqueles que o cercam, contudo, a interdição e inabilitação só podem ser decretadas judicialmente. Este processo está regulado no capítulo I do Título IV, do Código de Processo Civil, iniciando-se no artigo 944 e seguindo até o artigo 958. Pertencentes à jurisdição contenciosa, por envolver o conflito de interesses das partes tratando-se de um procedimento especial. Aliás, como afirma Paula Távola Vitor, este processo possui carácter híbrido ao mesclar-se com características da jurisdição voluntária configurando como medida de proteção dos incapazes, em suas palavras: “[...] a decisão de instituição de medida de suprimento da incapacidade tem na sua base um juízo de ‘valoração de oportunidade’ sobre a forma de proteção da pessoa com capacidade diminuída e sobre o titular adequado do cargo tutelar (VITOR, 2004, p. 93). A crítica feita por muitos autores destina-se à forma como o processo acontece e a disposição de alguns artigos e sua aplicação literal, o que acaba por criar dificuldades em articular o caso concreto à lei, devido o seu extremo rigor. Questiona-se a validade da citação prevista no artigo 946 do Código de Processo Civil, pois, no processo de interdição ou inabilitação, o requerido poderá contestar o processo, entretanto, é sabido que na sua esmagadora maioria, as ações não são contestadas. A crítica é feita aos casos em que o indivíduo não possui condições psíquicas para poder receber e entender a citação e a gravidade do processo que está a sofrer. Adalberto Costa (2011, p. 67) salienta que não há nenhuma validade para a citação realizada ao requerido neste processo. O referido autor sugere uma citação especial a fim de ser realizada obrigatoriamente por um funcionário judicial que lavraria o auto com uma A proteção da personalidade... // 93 referência a uma terceira pessoa responsável ou representante do requerido aproveitando-se do artigo 947 do mesmo código processual (COSTA, 2011, p. 67). Igualmente, o número 1º do citado artigo designa que o juiz irá determinar como curador provisório a pessoa a quem caberá a tutela ou a curatela do requerido, quando diferente do autor do processo. Se este nomeado não realizar a contestação, será invocado o Ministério Público para que proceda a defesa do requerido (SANTOS, 2011, p. 63-64). Outro ponto a ser criticado corresponde a publicidade que o processo de interdição e inabilitação sofrem, pois, após a apresentação da petição inicial e seu deferimento, o Juiz irá determinar a afixação de editais no tribunal e na sede da junta da freguesia da residência do requerido, igualmente deverá ser publicado editais junto aos jornais de maior circulação na respectiva circunscrição judicial. Outrossim, o artigo 147 do Código Civil, determina que após a sentença decretando a interdição ou inabilitação do requerido, deverá ser averbada junto ao respectivo registo civil competente, para a partir desse momento produzir seus efeitos. Contudo, tais procedimentos ocasionam um sentimento de “escândalo e devassa da privacidade” implicando em vergonha pessoal e familiar, provocando “consequências nefastas na reputação social de alguém que pode nem sequer vir a ser incapacitado” (VITOR, 2004, p.109). Todavia, estes procedimentos têm por escopo dar proteção aos terceiros interessados e que mantem uma relação com o incapaz. Geral Rocha Ribeiro, faz uma severa crítica sobre esta questão ao afirmar que tal medida tem caráter desproporcional apesar de ser justificada como forma de proteção de terceiros, uma vez que a capacidade equivale a um direito pessoal, presente nos direitos, liberdade e garantias constitucionais (RIBEIRO, 2010, p.87). Do mesmo modo, ao colocar “de forma grave, e em certa medida irreversível, a reserva da intimidade da vida privada” está a ferir os envolvidos nesta ação, familiares e principalmente o requerido, corroborando o fato de a publicação “ser oficialmente promovida sem audição prévia da pessoa visada”. Igualmente, ao dar publicidade está a pressupor uma legitimidade legal para impor restrições do direito a intimidade da vida privada, não garantindo o direito fundamental de audição prévia (RIBEIRO, 2010, p.87). 5.5.2 Interdição O processo de interdição está previsto nos artigos 138 e seguintes até o artigo 151 do Código Civil, ela ocorrerá quando o indivíduo se encontrar em situações que limitam a sua capacidade físico-psicológica, configurados por anomalias psíquicas, surdez-mudez ou cegueira. Como já dito este estado precisa ser atual, habitual e grave. Os artigos citados expõem de forma taxativa os sujeitos a estes processos sendo estas clausulas “exaustiva e insusceptível de ser ampliada em via da analogia” (ALVES, 2015), entretanto, caberá “ao legislador definir pressupostos e critérios, não quanto à aquisição de capacidade, mas pelo 94 // Problemas da jurisdição contemporânea... juízo negativo de determinar quem é incapaz” (THIELI, apud RIBEIRO, 2010, p.75). Quanto ao entendimento de anomalia psíquica, possuirá um amplo significado que irá incluir “todas as deficiências do intelecto ou vontade que afetem a pessoa, no todo ou em parte, para gerir os seus interesses pessoais e patrimoniais” (RIBEIRO, 2010, p. 89), ambas devem mostrar-se um grave entrave para o exercício de atividades diárias do indivíduo, afetando também o as demonstrações de “vontade, a afetividade e a sensibilidade” (COSTA, 2011, p. 33). O processo de interdição e a aplicação da tutela não poderão ser personalizados, o que comprova ser esta uma medida de extrema severidade. Este processo tem por finalidade suprir a incapacidade de exercícios de direito da pessoa incapaz, recaindo também sobre a capacidade de gozo dos interditos. Igualmente, a interdição por anomalia psíquica ao afetar a capacidade de gozo do interdito o impede de contrair matrimônio, não poderá realizar testamento e não poderá perfilhar por se tratar de uma capacidade jurídica insuprível. Consequentemente, a prática de qualquer destes atos incorrerá na anulabilidade do casamento e perfilhação, e para a realização de testamento este será considerado nulo. Como dita o artigo 138º nº. 1 sobre pessoas sujeitas a interdição: “Podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens.” O nº 2 deste artigo prevê que a interdição será aplicada a maiores de idade, desta forma os menores que sofram de demência, surdo mudez ou cegos, estão protegidos pela incapacidade por menoridade (PINTO, 1985, p. 234). Assim, a incapacidade estará configurada pela perda da autonomia e do autocontrole do indivíduo sobre si, comprometendo sua segurança e daqueles que o cercam. Contudo, a proteção de forma excessiva pode resultar em um mal pior, corroborando para a exclusão do sujeito de toda a atividade jurídica, chegando ao ápice de aliena-lo “da prática de atos necessários à satisfação dos seus interesses” (VITOR, 2004, p.44). Paula Távola Vítor, afirma que a tutela é um paradigma da medida total, e se encontra no ordenamento jurídico português como um “desequilíbrio de tudo-ou-nada”, ao ponto em que retira a capacidade de exercícios ao interdito, causando “arrepio das novas concepções em sede psiquiátrica” (VITOR, 2004, p.18). Aliado ao combate deste cenário, temos o Movimento da Reforma Psiquiátrica, propondo a construção de uma rede de serviços e estratégias territoriais, comunitárias, solidárias, inclusivas e libertárias. Adalberto Costa faz uma crítica ao processo de interdição e da identificação da incapacidade do indivíduo a ser interditado, pois, entende que “a atual lei, deveria procurar ir mais rapidamente ao encontro das ciências médicas e trazer delas ensinamentos que desenvolvam as normas jurídicas que disciplinam a matéria da interdição e até da própria inabilitação”, A proteção da personalidade... // 95 corroborando a esta opinião temos Paula Távola Vitor, ao afirmar que não há uma identificação imediata entre doença mental e capacidade diminuída, pois a “[...] própria terminologia legal, deve notar-se, não aponta diretamente para um diagnóstico médico psiquiátrico” (VITOR, 2004, p.44). Como consequência da ausência de capacidade jurídica haverá a representação, forma legal de suprir a incapacidade do indivíduo, desta maneira o representante do incapaz irá representa-lo e deverá agir em conformidade com o interesse do representado. O representante será escolhido através de um processo legal e irá atuar juridicamente zelando pela saúde do interdito podendo inclusive alienar os bens deste através da obtenção da necessária autorização judicial, conforme artigo 145 do Código Civil. Outrossim, a possibilidade de alienação de bens do interdito tem por escopo apenas a hipótese de necessidade de financiamento para realização dos cuidados necessários para com a saúde do mesmo, a fim de que sanada as despesas decorrentes do tratamento médico, cuidado “[...] que não apenas pela prevenção da doença ou cuidados a ter com ela, mas também no tratamento do próprio interdito com vista à sua cura” (COSTA, 2011, p.45). No que cabe aos incumbidos de tutelar o incapaz, o artigo 143 nº1 designa, no caso do idoso, o cônjuge do interdito, com exceção se estiver separado judicialmente ou de fato, ou mesmo se este também for incapaz. Em segundo lugar, será chamado o filho maior preferindo o mais velho, salvo se o tribunal ao ouvir o conselho familiar entender que outro filho seria o mais adequado a exercer está função. Finalmente, se não houver possibilidade dentro do rol taxativo do artigo 143, caberá ao tribunal escolher um tutor ouvindo o conselho de família. Uma questão importante corresponde ao fato de o Código Civil em seus artigos destinados aos processos de interdição não preverem a possibilidade de o incapaz escolher quem irá ser o seu futuro tutor, pois, há casos em que não há compatibilidade de gênios, não há laços de afetividade entre o tutor e o tutelado. Supõe-se que exista afinidade entre os membros da família, o indivíduo e seu cônjuge, seus filhos ou algum parente mais próximo, entretanto há situações em que os laços familiares só se mantem por consanguinidade e não mais por afeto, será exatamente nestes fatos em que a vontade do incapacitado deverá prevalecer. Contudo, há pontos delicados nesta escolha realizada pelo incapaz, pois sua escolha poderia favorecer a um terceiro estranho a família comprometendo a proteção dos bens pertencentes a uma futura herança a ser partilhada. Portanto, será fundamental que a eleição do futuro representante do incapaz ocorra em comum acordo entre os envolvidos nesta relação. Adentrando ao tema da realização da vontade do incapaz diante da rigidez destes processos, especialmente para a interdição, faz se necessário a criação de meios alternativos como a autotutela. Ao ser garantido o livre desenvolvimento da personalidade pressupõe-se uma liberdade para o planejamento e a realização do projeto de vida do indivíduo. 96 // Problemas da jurisdição contemporânea... Consequentemente, esta liberdade deverá se desdobrar na “[...] faculdade de planear e decidir a proteção perante uma eventual ou potencial situação de incapacidade”. A autotutela representa a autonomia e a declaração de vontade do indivíduo com o objetivo de organizar sua proteção legal. Consiste na “faculdade da própria pessoa, na previsão de vir a encontrar-se numa situação de incapacidade, adoptar disposições relativas a sua pessoa ou bens, entre elas incluída a designação do autor ou a exclusão de alguém deste cargo” (RIBEIRO, 2010, p. 259). Desta forma, o valor da autodeterminação e liberdade implica em uma faculdade juridicamente reconhecida a fim de que a pessoa possa definir e regulamentar as disposições e meios atinentes aos seus interesses patrimoniais ou pessoais, em situações do presente e futuras de incapacidade eventual ou potencial da sua pessoa (RIBEIRO, 2010, p. 259). 5.5.3 Da inabilitação A inabilitação está presente no artigo 152 e seguintes do Código Civil e sua previsão legal é atual a este código. Só sofrerão o processo de inabilitação aqueles que a incapacidade e as suas causas não forem graves ao ponto de implicarem em uma interdição. Configura-se a inabilitação quando não há interferência no discernimento e quando há, não possui uma forma grave a comprometer a autonomia da pessoa para reger sua pessoa, mas prejudica o discernimento para administrar convenientemente o seu patrimônio. Podem suportar o processo de inabilitação, aqueles que sofrem de anomalia psíquica; surdez-mudez, cegueira, a habitual prodigalidade, o alcoolismo e a toxicomania. Aliás, a prodigalidade, o alcoolismo e a toxicomania “[...] são causas que podem determinar a inabilitação, mas só estas, não podem determinar nunca a interdição” (COSTA, 2011, p. 28). Logo, não se deve confundir a habitual prodigalidade com “[...] administração infeliz ou pouco perspicaz”, igualmente os indivíduos que abusem de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, só serão inabilitados quando tais substâncias e o seu uso passe a alterar o caráter e comprometer os atos pertinentes à administração de seus bens, configurando um perigo atual “[...] mesmo que se não tenha verificado ainda um dano concreto” (PINTO, 1985, p.242). O grupo de pessoas a sofrer de anomalia psíquica, surdez-mudez e cegueira, coincidem com as causas verificadas no processo de interdição, entretanto, só constituem motivos para a inabilitação se o seu nível de gravidade não se concluir como pretexto para a interdição incapacitando de forma grave o indivíduo dando causa à sua declaração. Pedro Pais de Vasconcelos (1999, p. 92), afirma que a inabilitação está destinada a proteger o patrimônio do inabilitado, pois o que está em risco é o fato de o incapaz não possuir condições de reger convenientemente os A proteção da personalidade... // 97 seus bens, não possuindo a necessidade de alguém o auxiliar no exercício do cuidar de sua pessoa. O artigo 154 do Código Civil prevê que a inabilitação irá abranger os atos e disposições de bens entre vivos e os que forem delimitados na sentença conforme análise do caso concreto, pois a inabilitação não é rígida como a interdição, valorando as capacidades ainda existentes para a tomada de decisões. Consequentemente, a administração do patrimônio será entregue ao curador de forma parcial ou total conforme determinação sentencial, devendo também prestar contas de sua administração. Em síntese, será designado um assistente através de decisão judicial, sujeitando os atos do incapaz ao consentimento da pessoa ou entidade que o assiste. Portanto, a vontade emanará do incapaz que ainda irá administrar seus bens, todavia, será o assistente que irá autorizar intervir ou agir junto para a sua realização. Destarte, para suprir a incapacidade do inabilitado poderá existir a figura da representação através do curador, caberá ao juiz em sua decisão determinar uma extensão maior ou menor da incapacidade, desta maneira a administração dos bens ocorrerá tal como nas interdições, caso a incapacidade possua um maior grau (PINTO, 1985, p. 243). Mas, os efeitos da inabilitação originados da sentença só irão afetar a capacidade de exercício do incapaz inabilitado, assim, a inabilitação somente afetará a capacidade de gozo daquelas estabelecidas na lei (COSTA, 2011, p. 55). Igualmente, a inabilitação não deverá ocorrer quando a pessoa já tenha constituído um representante através da chamada “representação voluntária” que lhe “[...] assegure a administração de seu patrimônio e/ou o governo dos seus interesses” restringindo o mínimo possível à intervenção judicial. Entretanto, caberá ao tribunal avaliar a real necessidade da aplicação de uma inabilitação em substituição da já praticada representação voluntária, por conseguinte, só se afastará a vontade do incapaz quando o representante eleito configure perigo para os interesses deste ou haja necessidade da existência de um supervisor de sua atuação (RIBEIRO, 2010, p.133-134). 5.6 ASPECTOS RELEVANTES NO PROCESSO DE INTERDIÇÃO NO BRASIL O Código Civil brasileiro atribui à família, sobretudo aos pais ou tutores, seguidos do cônjuge ou qualquer outro parente, a legitimidade inicial para promover a ação de interdição. Quanto ao Ministério Público, dita responsabilidade deve ser conferida somente quando se confirma interesse público pelo qual compete ao MP velar, em casos de doença mental grave quando não existir ou não a promoverem algumas das pessoas designadas anteriormente, ou se essas forem também incapazes para tal ato. A finalidade da curatela é especialmente conceder proteção aos incapazes no tocante a seus interesses e garantir a preservação dos negócios concretizados por eles com relação a terceiros. Enquanto a tutela é uma extensão do pátrio poder, a curatela constitui um poder assistencial ao 98 // Problemas da jurisdição contemporânea... incapaz maior, completando-lhe ou substituindo-lhe a vontade. Em que pese o idoso necessite muitas vezes de assistência em vários aspectos da vida, quanto à interdição, O principal aspecto é o patrimonial, pois o curador protege essencialmente os bens do interdito, auxiliando em sua manutenção e impedindo que sejam dissipados. Nesse sentido, fica realçado o interesse público em não permitir que o incapaz seja levado à miséria, tornando-se mais um ônus para a Administração (VENOSA, 2012, p. 474). Existem sete espécies de curatela, cinco delas estabelecidas no art. 1.767, a curatela do nascituro (art. 1.779) e a curatela do enfermo ou portador de deficiência física (art. 1.780). Frise-se que, assim como na legislação portuguesa, velhice, cegueira, analfabetismo, dentre outras situações, não autorizam por si só a interdição. Há necessidade de que ao interdito não possua o devido discernimento. O ordenamento jurídico brasileiro, todavia, tal como fazem certas legislações, não distingue entre a interdição propriamente dita, de cunho mais amplo, e as inabilitações para certos atos. Caberá ao juiz, com base na prova pericial, restringir ou alargar o campo de atuação do interdito. Após decretada a interdição, os atos praticados pelo interdito serão nulos, nos termos do art. 145, I, do Código Civil. Já os atos praticados antes da interdição serão anuláveis, desde que o interessado comprove que a incapacidade do contratante por meio de prova inequívoca, robusta e convincente, resguardando assim a boa-fé de terceiros e a segurança jurídica do comércio. Por fim, a legislação brasileira prevê o levantamento da interdição caso a causa da incapacidade tenha fim. Caberá ao curador providenciar o tratamento apropriado, devendo o juiz e o Ministério Público zelar para que essa disposição seja cumprida. 5.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como foi demonstrado de forma breve ao longo deste trabalho, o envelhecimento populacional é um processo atual de proporções mundiais. Os números apresentados demonstram que em um futuro não muito distante este processo irá alterar profundamente o cenário social e impactar de forma direta na vida de quem está a sofrê-lo e daqueles que o cercam. Igualmente, o envelhecimento populacional não se restringe aos aspectos sociais, este processo já reflete em outras áreas, como a necessidade de novas alterações no campo jurídico, principalmente no que tange a temática deste estudo: as ações de interdição e inabilitação. Portugal apresenta um alto número de idosos, sendo um dos países mais envelhecidos da Europa. A população brasileira também terá nas próximas décadas muito mais idosos. Como exposto, nos últimos anos houve um grande aumento no número de processos sentenciando a incapacidade de pessoas idosas, tanto em Portugal como no Brasil. Não há estudos específicos que expliquem e correlacionem as reais causas do aumento A proteção da personalidade... // 99 considerável destas ações, mas o envelhecimento destas sociedades é um dos fatores que apoiam este quadro. Envelhecer é inerente à vida, contudo, alguns indivíduos são acometidos por grave debilidade física e psíquica, comprometendo sua autonomia e o sujeitando a dependência de cuidados de terceiros. Igualmente, é temeroso observar um número relativamente alto de pessoas ingressando em um estágio de maior vulnerabilidade ao perder suas capacidades cognitivas e consequentemente a capacidade jurídica. A incapacidade resulta em medidas drásticas para o indivíduo, as consequências jurídicas são a perda da capacidade civil e em casos mais graves a perda da capacidade de gozo, restringindo e impossibilitando o incapacitado de exercer plenamente atividades jurídicas e realizar negócios jurídicos. A depender do grau de incapacidade apresentado será destinado um instituto jurídico correspondente. A medida precisa ser adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida). Quando apresentado um alto grau de incapacidade e sofrendo de uma anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, perdendo a capacidade e autonomia para governar sua pessoa e seus bens, o processo será de interdição. Será designado um tutor que o irá representar na realização dos atos e negócios jurídicos, zelando pela sua pessoa e por seus bens. O tutor em sua grande maioria será um parente próximo ao incapaz, respeitando o rol taxativo apresentado pelo Código Civil. A interdição é um processo mais grave a ser aplicado em um incapaz configurando uma medida inflexível e extrema. Por ser inflexível, não se pode adaptar tal medida aos desejos do incapacitado. Assim, não haverá possibilidade de escolha daquele que melhor seria seu tutor e a forma mais adequada para que este processo de representação ocorrera e esteja em acordo as vontades pretéritas do incapaz. Destarte, ao escolher quem será seu representante legal antes de perecer diante a uma incapacidade, o indivíduo estará designando aquele que melhor lhe convém para cuidar de seus bens e fundamentalmente de sua pessoa, configurando no exercício pleno de seu direito a autonomia. Já a inabilitação, prevista apenas na legislação portuguesa, é uma medida menos gravosa por ser menos engessadora e restringir-se ao campo da administração patrimonial, e não da pessoa do incapaz. Os mesmos sujeitos que poderão sofrer a interdição poderão sofrer a inabilitação, acrescentando a este rol os alcoólatras ou estupefacientes e os pródigos habituais. Para ser inabilitado, estas pessoas deverão apresentar um menor grau de incapacidade que poderá afetar ou estará a comprometer a administração conveniente de seus bens. Ambos os processos, interdição e inabilitação, sofrem críticas que demonstram a necessidade de uma reformulação, em sua parte material e processual demonstrando pontos críticos que deixam falhas na sua real finalidade: a proteção da personalidade da pessoa que está a sofrer esta ação. 100 // Problemas da jurisdição contemporânea... Ao interditar ou inabilitar o idoso incapaz, deverão ser observados os fatores que levaram o familiar ou entidade cuidadora a buscar por esta ação. Deverá ser apurado de forma precisa, lançando mão de todas as formas de obtenção de diagnósticos existentes a fim de verificar o grau de incapacidade que o requerido apresenta. Deverá ser eleito o familiar mais adequado para zelar pela saúde e integridade física e psíquica, pois nestas ações se observa um grande número de familiares e terceiros oportunistas visando apenas o patrimônio do idoso vulnerável. Assim, se clama pela necessidade de uma proteção direcionada, adequada e flexível para este novo cenário social. 5.8 REFERÊNCIAS ALVES, Raúl Guichard. Alguns aspectos do instituto da interdição. Disponível em: <http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Interdicao_inabilitacao.p df>. Acesso em: 1 jul. 2015. ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO A VÍTIMA. Estatísticas APAVCrimes Patrimoniais (2000-2012). Disponível em: <http://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Estatisticas_APAV_CrimesPatrimon iais_2000-2012.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2015. ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO A VÍTIMA. Estatísticas APAVCrimes de Violência Doméstica – Filhos que Agridem os Pais. (2004-2012). Disponível em: <http://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Estatisticas_VD_FQAP_20042012.pdf >. Acesso em: 15 mai. 2015. ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO A VÍTIMA. Estatísticas APAV – Pessoas Idosas Vítimas de Crime e de Violência (2000-2012). Disponível em: <http://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Estatisticas_APAV_Pessoas_Idosa s_2000-2012.pdf>. 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Texto de Maria Cecília de Souza Minayo. Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2014. CAMARANO, Ana Amélia (Org). Cuidados de longa duração para a população idosa: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea, 2010. CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. CARVALHO, Orlando de. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Editora Centelha, 1981. COSTA. Adalberto. A Acção de Interdição e Inabilitação. Porto: Legis Editora, 2011. D’ANDREA, Flávio Fortes. Desenvolvimento da Personalidade: Enfoque Psicodinâmico. 4. ed. São Paulo – Rio de Janeiro. DIFEL- Difusão Editorial. ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Boletim da Ordem dos Advogados nº 63 de 2010. Disponível em: <http://issuu.com/ordemadvogados/docs/ordem_115_alta>. Acesso em: 15 mai. 2015. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. A ONU e as pessoas idosas. 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Coimbra. 2004. = VI = A REPERCUSSÃO GERAL NOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS UM MECANISMO DE REDUÇÃO DE DEMANDAS PARA PROMOÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA Edgar Dener Rodrigues* Danilo Zanco Belmonte** 6.1 INTRODUÇÃO Um dos principais problemas da crise do Judiciário é a grande quantidade de recursos interpostos, que acabam entravando os Tribunais Superiores e retardando o julgamento de questões mais importantes. Na tentativa de destravar ou reduzir o número de recursos que chegam ao Supremo Tribunal Federal uma das alterações legislativa foi com foco no sistema recursal. A emenda constitucional nº 45/2004 introduziu a necessidade de demonstração de repercussão geral para a questão suscitada no recurso como requisito de admissibilidade para os recursos extraordinários, consoante previsão do artigo 102 da Constituição Federal. É uma clara demonstração da intenção do legislador de filtrar os recursos que chegarão à Corte Superior, permitindo assim a manutenção da função precípua do Supremo Tribunal Federal, que é a de guardião da Constituição. Este mecanismo de contenção a partir da demonstração da repercussão geral da questão constitucional suscitada tem como principal objetivo a desobstrução do sistema recursal e a redução da “crise do Judiciário”. Isso porque, consoante observam Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988), um dos principais problemas de acesso à justiça é o tempo de duração do processo, fato que, aliado à dificuldade financeira das partes para custeio das despesas da ação, dificultam a rápida solução da lide ou mesmo a efetividade no provimento jurisdicional. Ademais, o princípio do acesso à justiça foi alçado à categoria de garantia constitucional, sendo também expresso intrinsecamente junto com a * Possui graduação em Direito pela UNIPAR - Universidade Paranaense. Especialista em Direito Tributário pela UNISUL. Especialista em Direito Processual pela UNISUL. Mestrando em Direitos da Personalidade pela UNICESUMAR. Possui, ainda, Licenciatura Plena em Ciências pela FAFIPA. Bolsista da CAPES. ** Possui Graduação em Direito pela UNIPAR - Universidade Paranaense. Especialista em Direito Civil, Negocial e Imobiliário pela Universidade Anhanguera. Mestrando em Direitos da Personalidade pela UNICESUMAR. Possui, ainda, Licenciatura Plena em Matemática pela UNESPAR - Campus Paranavaí e Especialização em Ensino pela Faculdades Iguaçu. Bolsista da CAPES. 104 // Problemas da jurisdição contemporânea... ideia de inafastabilidade do controle jurisdicional (CAPELLETTI; LAIER, 2015). Cabe aqui a noção de que cabe ao Poder Judiciário implementar as medidas necessárias à ampliação do controle jurisdicional e redução do tempo de tramitação do processo. Outrossim, será demonstrado que a repercussão geral não se confunde com a arguição de relevância, que outrora já fez parte do ordenamento. Ainda que ambos tenham como intuito principal a “filtragem recursal”, divergem em seus conceitos e requisitos. Este estudo foi feito a partir da pesquisa bibliográfica e sobre o tema da repercussão geral, analisando os requisitos para a interposição dos recursos extraordinários algumas questões polêmicas sobre o assunto. 6.2 A ORIGEM E EVOLUÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Aranken de Assis (2007, p. 671) registra que no prelúdio da República despontou no cenário brasileiro o recurso extraordinário. A Constituição do Império, de 1824, desconhecia remédio similar. O art. 164, III, daquela Carta recepcionou das Ordens Filipinas o recurso de revista, cujo julgamento tocava ao Supremo Tribunal de Justiça, organizado pela Lei 18.09.1828. A revista destinava-se a manter a integridade formal da lei ferida por julgados contaminados por nulidade manifesta ou injusta notória. Nesse ponto, uma vez requerida a revista ao Supremo Tribunal de Justiça, este não julgava o mérito da causa. Consistia o exame apenas ao juízo de admissibilidade da revista: em caso negativo, a sentença recorrida passava a ser coisa soberanamente julgada e, caso afirmativo, os autos eram enviados à relação, cabendo a esta o julgamento definitivo da causa (PINTO, 2006, p. 192). O recurso de revista foi abolido pela extinção do Supremo Tribunal de Justiça, quando houve a instalação do Supremo Tribunal Federal, criado pelo decreto do governo provisório nº 848/1890. Do Decreto nº 848/1890, o recurso extraordinário migrou para a Constituição Federal de 1891, como remédio de competência do Supremo Tribunal Federal, contra “sentenças das Justiças dos Estados”, sendo aplicado em duas hipóteses: a) quando questionar sobre a validade ou aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas. Este dispositivo consagrou a supremacia da Constituição, visando manter a legalidade nacional, na sua lei suprema, nas suas leis ordinárias, ou nas suas convenções internacionais contra os erros ou abusos dos Estados, na sua legislatura, na sua administração e na justiça (BARBOSA apud ASSIS, 2007). Nasceu e desenvolveu-se o recurso para o STF, visando garantir a supremacia da Constituição, sua aplicação uniforme e a supremacia do direito federal com a característica constante da fundamentação vinculada. A repercussão geral.... // 105 A emenda constitucional de 03/09/1926 ampliou as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, abrangendo a hipótese de quando se questionar sobre a vigência ou a validade das leis federais em face da Constituição e a decisão do Tribunal do Estado lhes negar aplicação. O instituto do recurso extraordinário evoluiu. A Constituição Federal de 1967 contemplou quatro hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, vertido das causas decidias em única ou última instância por outros tribunais ou juízes, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo da Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal; d) der à lei interpretação divergente da que lhe haja dado outro tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal. A evolução do recurso extraordinário alcançou a Constituição Federal de 1.988, ficando limitado apenas às questões constitucionais, sendo o remédio que se situa no ápice do controle difuso de constitucionalidade. Para julgar as questões federais, desafogando o STF, a Constituição criou o Superior Tribunal de Justiça e o recurso especial, com hipóteses de cabimento específicas. A partir da 1988, o âmbito do recurso extraordinário se restringiu ao vetor do controle difuso de constitucionalidade. Funciona como privilegiado instrumento para controlar a densa atividade desenvolvida pelos demais órgãos judiciários. Todavia, o recurso extraordinário continuou a ser apontado como fator predominante da crise do STF, cujo último remédio consiste na repercussão geral, que foi importada da América do Norte (ASSIS, 2007, p. 678). Isto posto, denomina-se recurso extraordinário o gênero do qual são espécies o recurso extraordinário para o STF (art. 102, III, CF/88) e o recurso especial para o STJ (art. 105, III, CF/88). O recurso especial é fruto da divisão das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário para o STF (antes da CF/88), que servia como meio de impugnação da decisão judicial por violação à Constituição e à legislação federal (DIDIER, 2008, p. 249). Com a criação do Superior Tribunal de Justiça, as hipóteses de cabimento do antigo recurso extraordinário foram repartidas entre o STF e o STJ. Assim, podemos dizer que o recurso especial nada mais é do que um recurso extraordinário cuja competência de julgamento é do Superior Tribunal de Justiça. 6.3 HIPÓTESES DE CABIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O cabimento do recurso extraordinário se encontra fixado no art. 102, III, da Constituição Federal de 1.988, com redação alterada pela emenda constitucional n. 45, de 08/12/2004. As situações que autorizam a interposição do recurso decorrem de decisão maculada de vício que: contrarie dispositivo da Constituição; declare a inconstitucionalidade de 106 // Problemas da jurisdição contemporânea... tratado ou lei federal; julgue válida lei ou ato de governo local em face da Constituição; ou julgue válida lei local contestada em face de lei federal. A estas hipóteses explícitas se acrescentam quatro condições gerais: a) o esgotamento das vias recursais ordinárias; b) o prequestionamento da questão constitucional no ato impugnado; c) a ofensa direta ao texto constitucional e; d) a repercussão geral da questão constitucional discutida no recurso. O requisito da repercussão geral está expressamente previsto no art. 102, § 3º, da Constituição Federal de 1.988, cuja redação também é proveniente na emenda constitucional n. 45/04. Prevê a norma que cabe ao recorrente demonstrar a existência de repercussão geral das questões constitucionais, sendo que o Tribunal somente poderá deixar de conhecer o recurso se houver manifestação de dois terços de seus membros. O dispositivo representa mais uma tentativa de solucionar a crise do Supremo Tribunal Federal, identificada pelo elevado número de recursos interpostos, congestionando o andamento dos processos na Corte Suprema. 6.3.1 Esgotamento das vias recursais ordinárias Para sua utilização, tanto o recurso extraordinário como o recurso especial pressupõem um julgado contra o qual já foram esgotadas as possibilidades de impugnação nas várias instâncias ordinárias ou na instância única. Não podem ser exercitados per saltun, deixando in albis alguma possibilidade de impugnação (DIDIER, 2008, p. 260). Significa dizer que enquanto houver recurso na instância de origem será porque não houve decisão de última ou única instância. A corte superior somente deve se manifestar sobre questão que tenha totalmente sido resolvida na instância ordinária. Tal exigência também está explicitada no enunciado nº 207 da súmula do STJ, assim determinada: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra acórdão proferido no tribunal de origem”. No mesmo sentido, a súmula 281 do STF, assim assevera: “É inadmissível o recurso extraordinário quando couber, na Justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”. Desse modo, verifica-se necessário o esgotamento de todos os recursos ordinários antes do cabimento dos recursos extraordinários. 6.3.2 O prequestionamento O prequestionamento é exigência antiga para a admissibilidade dos recursos extraordinários, segundo o qual se impõe que a questão federal/constitucional objeto do recurso excepcional tenha sido suscitada/analisada na instância inferior (DIDIER, 2008, p. 254). Segundo ensina José Miguel Garcia Medina (1998, p. 159-166), é possível vislumbrar três concepções distintas acerca do prequestionamento. A repercussão geral.... // 107 Primeiramente, tem-se o prequestionamento como manifestação do tribunal recorrido acerca de determinada questão jurídica federal ou constitucional. A segunda vê o prequestionamento como debate anterior à decisão recorrida. Para essa concepção, prequestionar é ato da parte, independente de manifestação do tribunal. Por fim, a terceira concepção é a posição eclética, em que se somam as duas tendências, sendo o prequestionamento o prévio debate acerca da questão federal, seguido de manifestação expressa do Tribunal a respeito. Preenche-se o prequestionamento com o exame, na decisão recorrida, da questão federal ou constitucional que se quer ver analisada pelo STF ou STJ. Ocorrida essa situação o recurso extraordinário eventualmente interposto merece ser examinado (NERY JR.; WANBIER, 2006, p. 356). 6.3.3 Ofensa direta ao texto constitucional A ofensa direta ao texto constitucional acontece quando é o próprio texto constitucional que resultou ferido, sem lei federal intermediária que o regulamente. O motivo dessa restrição repousa em dois fundamentos: a) ao STF só incumbe o controle das questões constitucionais, sendo que as questões federais irão para o STJ; b) os tipos do art. 102, III, a e c, mostramse rígidos e não comportam interpretação elástica para incluir a questão federal. Esse entendimento acabou expresso na Súmula nº 636 do STF, assim redigida: “Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida”. 6.4 A REPERCUSSÃO GERAL O instituto da repercussão é pressuposto recursal de admissibilidade específico, ou seja, determinado recurso extraordinário somente poderá ser analisado em seu mérito se a matéria nele contida apresentar o que se deve entender como dotada de repercussão geral. Ausente a repercussão geral, não há como se ter qualquer incursão no mérito do recurso (GOMES JR; NERY JR, 2006, p. 281). O recorrente, além de ter de fundamentar o seu recurso em uma das hipóteses do art. 102, III, da CF/88, terá que demonstrar o preenchimento desse novo requisito. O § 3º do art. 102 da CF/88 prescreve o ônus do recorrente de demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso a fim de que o tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos seus membros. A Lei nº 11.418/2006 confirmou o entendimento de que se trata de ônus do recorrente a demonstração da existência de repercussão geral. Estabeleceu no art. 543-A, § 2º, Código de Processo Civil que cabe ao 108 // Problemas da jurisdição contemporânea... recorrente demonstrar a existência da repercussão geral, em preliminar de recurso, para a apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal. O quorum qualificado é para considerar que a questão não tem repercussão geral. Se for interposto o recurso extraordinário e este contiver um item ou tópico em que se demonstre (se afirme) a repercussão geral, passa, então, a haver uma presunção: presume-se que há repercussão geral, somente cabendo ao plenário do STF (por 2/3 de seus membros) deixar de conhecer do recurso extraordinário por falta de repercussão geral (DIDIER, 2008, p. 313). A argumentação referente a repercussão geral deverá ser apresentada em capítulo separado do recurso extraordinário, mas jamais em peça autônoma, sob pena de caracterizar-se a preclusão consumativa quanto às demais alegações realizadas posteriormente, com o não conhecimento do recurso. Somente o STF poderá dizer que não há repercussão geral, não podendo o Presidente do tribunal local fazer a análise. Deve o recorrente, em suas razões, incluir um item ou tópico tratando da repercussão geral. Se nas razões do recurso não houver demonstração da repercussão geral, o mesmo não será cabível, podendo não ser admitido, inclusive pelo Presidente do Tribunal local. Nesta ocasião, o Presidente do Tribunal não estará dizendo que não há repercussão, mas apenas observando o descumprimento de um requisito de admissibilidade quanto à regularidade formal. É possível que a turma do STF conheça do recurso por reputar ser de repercussão geral a questão discutida, sem necessidade de remeter os autos ao plenário, desde que haja no mínimo quatro votos a favor da repercussão. Sendo onze ministros, e oito é o mínimo de votos para negar a existência de repercussão geral, é razoável dispensar a remessa ao plenário se quatro ministros já admitissem o recurso extraordinário (DIDIER, 2008, p. 314). 6.4.1 O que se entende por repercussão geral Repercussão é o ato de repercutir, ou seja, produzir o efeito várias vezes, ligando-se a uma noção de reprodução dos atos. A repercussão geral é atributo de um ato quando seja relevante. Será relevante a matéria de direito cuja decisão puder apresentar repercussão social ou que envolva discussão de norma de ordem pública, ou ainda, quando atinente à interpretação e aplicação de dispositivos básicos do direito. Haverá repercussão quando os reflexos da decisão a ser prolatada não se limitarem apenas aos litigantes, mas também à coletividade. Fredie Didier (2006, p. 115) vislumbra alguns parâmetros para a definição do que seja repercussão geral, embora a delimitação do conceito venha a ser feita por lei federal: i) questões constitucionais que sirvam de fundamento a demandas múltiplas, como aquelas relacionadas a questões A repercussão geral.... // 109 previdenciárias ou tributárias, em que diversos demandantes fazem pedidos semelhantes, baseados na mesma tese jurídica; ii) questões que, em razão da sua magnitude constitucional, devem ser examinadas pelo STF em controle difuso da constitucionalidade, como aquelas que dizem respeito à correta interpretação/aplicação dos direitos fundamentais, que traduzem um conjunto de valores básicos que servem de esteio a toda ordem jurídica. Luis Manoel Gomes (2006, p. 284), sem pretensão de esgotar o tema, expõe algumas situações mais detalhadas para explicar a questão. Para ele, haverá repercussão geral sempre que houver: a) reflexos econômicos: quando a decisão possuir potencial de criar um precedente, outorgando um direito que pode ser reivindicado por um número considerável de pessoas. b) relevante interesse social: que tem uma vinculação ao conceito de interesse público em seu sentido lato, ligado a uma noção de “bem comum”. c) reflexos políticos: nas hipóteses de decisão que altere a política econômica ou alguma diretriz governamental de qualquer das esferas de governo (municipal, estadual ou federal) ou que deixe de aplicar tratado internacional. d) reflexos sociais: existirão quando a decisão deferir um direito ou indeferi-lo e essa mesma decisão vier a alterar a situação de fato de várias pessoas. Nas ações coletivas, a regra geral é que sempre, em princípio, haverá repercussão geral a justificar o acesso ao STF, considerando a amplitude da decisão, claro, se a questão possui natureza constitucional. e) reflexos jurídicos: haverá repercussão quando a decisão atacada no recurso extraordinário estiver em desconformidade com o que já decidido pelo STF (jurisprudência dominante ou sumulada). Se o papel do STF é uniformizar a interpretação da Constituição, decisões contrárias ao seu entendimento não podem ser mantidas. Porém, estando a decisão de segundo grau em conformidade com a jurisprudência, em princípio, não haverá repercussão. Dever ser considerado juridicamente relevante também quando a interpretação adotada pela decisão recorrida for aberrante ou absurda, por exemplo, quando evidentemente contrária ao texto constitucional. Medina, Arruda Alvim e Wambier (2005, p. 105) propõem a seguinte sistematização dos critérios para a aferição da repercussão geral: i) repercussão geral jurídica: a definição da noção de um instituto básico do nosso direito, de molde a que aquela decisão, se subsistisse, pudesse significar perigoso e relevante precedente; ii) repercussão geral política: quando de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais; iii) repercussão geral social: quando se discutissem problemas relacionados à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do MP para a propositura de certas ações; 110 // Problemas da jurisdição contemporânea... iv) repercussão geral econômica: quando se discutissem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais. Importante ressaltar que uma divergência jurisprudencial sobre um tema constitucional, simplesmente, não é fator para se reconhecer a repercussão geral. O ponto central é que a decisão a ser prolatada seja paradigmática e repercuta além das partes, alçando um efeito além daquela causa. 6.5 NOTAS AFINS SOBRE A REPERCUSSÃO GERAL 6.5.1 Arguição de relevância Antes da instituição da repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário existia o requisito da arguição de relevância da questão afirmada para o seu conhecimento em sede extraordinária. Não obstante tenham a mesma função de “filtragem recursal”, a arguição de relevância e a repercussão geral não se confundem. Enquanto a arguição de relevância funcionava como um instituto que visava a possibilitar o conhecimento deste ou daquele recurso extraordinário que a priori era incabível, funcionando como um instituto com característica central inclusiva, a repercussão geral visa a excluir do conhecimento do STF controvérsias que assim não se caracterizem (MARINONI, 2007, p. 30). Barbosa Moreira, citado por Luís Manoel Gomes (2006, p. 287) e por Fredie Didier (2008, p. 317), ao comentar a arguição de relevância apontava algumas situações nas quais esta relevância estaria caracterizada: a) questão capaz de influir concretamente, de maneira generalizada, numa grande quantidade de casos; b) decisão capaz de servir à unidade e aperfeiçoamento do direito ou particularmente significativa para ser desenvolvimento. Uma hipótese seria a delimitação da incidência de dispositivo que regule o direito aos recursos, ou mesmo discussão sobre os limites constitucionais das tutelas de urgência; c) decisão que tenha imediata importância jurídica ou econômica para círculo mais amplo de pessoas ou para mais extenso território da vida público; d) decisão que possa ter como consequência a intervenção do legislador no sentido de corrigir o ordenamento jurídico positivo ou de lhe suprir lacunas; e) decisão que seja capaz de exercer influência capital sobre relações com Estados estrangeiros ou com outros sujeitos do direito internacional público. Os próprios conceitos de repercussão geral e arguição de relevância não se confundem. Enquanto este está focado fundamentalmente no conceito de “relevância”, aquele exige, para além da relevância da controvérsia constitucional, a transcendência da questão debatida. Quanto ao formalismo processual, a arguição de relevância era apreciada em sessão secreta, dispensando fundamentação; já a análise da repercussão geral, ao contrário, tem evidentemente de ser examinada em sessão pública, com julgamento motivado (art. 93, IX, da CF/88). Nesta, o quorum deverá ser qualificado para A repercussão geral.... // 111 a deliberação e a decisão sobre a existência ou não de repercussão geral é irrecorrível (caput do art. 543-A do CPC). 6.5.2 Julgamento por amostragem e a importância do amicus curiae A Lei nº 11.418/2006 instituiu um incidente de análise de repercussão geral “por amostragem”. Sempre que houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto no art. 543-B do CPC. Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao tribunal constitucional, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte. Nesse ponto, vale frisar que a análise dos recursos com a escolha e remessa ao STF tem de ser cuidadosa, a fim de que se selecione um ou mais recursos que representem adequadamente a controvérsia. Registre-se que inexiste direito da parte à escolha de seu recurso para remessa e aferição, a partir dele, da existência ou da inexistência de repercussão geral. Segundo Fredie Didier (2008, p. 319), a mais importante inovação está no § 2º do art. 543-B, do CPC, que prevê que caso seja negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos. O STF julgará um, ou alguns, recurso(s) extraordinário(s), que envolva(m) a mesma questão de direito, ou seja, a ratio decidendi. Se negar a existência da repercussão geral, todos os demais, que estavam sobrestados reputar-se-ão não conhecidos. Por esse motivo torna-se indispensável a intervenção do amicus curiae no procedimento de análise da repercussão geral, de modo a que todos os interessados na solução desta questão possam se manifestar. É perfeitamente conveniente e necessária a participação de terceiros a fim de que se dê um amplo debate a respeito da existência ou não da relevância da questão debatida. Cuida-se aqui da possibilidade da intervenção de amicus curiae na fase da apreciação do recurso extraordinário perante o STF, tal como se dá igualmente em sede de controle concentrado. Uma vez admitida a participação, subscrita por advogado, poderá ofertar razões por escrito a fim de convencer o STF da existência da repercussão geral a partir do caso concreto. Importante frisar que a participação de terceiros pode orientar-se tanto no sentido da admissão como no da inadmissão do recurso extraordinário relativamente à repercussão geral da controvérsia constitucional ali debatida (MARINONI, 2007, p. 40). 6.5.3 O recurso extraordinário utilizado como controle difuso e abstrato da constitucionalidade. A emenda constitucional n. 45/2004 criou a súmula vinculante em matéria constitucional e consagrou a orientação do STF de conferir efeito vinculante às decisões proferidas em causas de controle concentra de 112 // Problemas da jurisdição contemporânea... constitucionalidade, seja em Ação Declaratória de Inconstitucionalidade ou de Constitucionalidade (ADI ou ADC). Didier Jr. (2008, p. 324) considera que um dos aspectos dessa mudança é a transformação do recurso extraordinário, que, embora seja instrumento de controle difuso de constitucionalidade, tem servido também ao controle abstrato. Normalmente o controle abstrato é feito de forma concentrada, no STF, em ADI, ADC ou ADPF, e o controle concreto é realizado de forma difusa. O controle difuso é sempre incidenter tantum, pois a constitucionalidade é a questão incidente, sendo que a questão terá eficácia inter partes. O controle concentrado, por sua vez, será feito principaliter tantum, com eficácia erga omnes. É possível, ainda, que o controle de constitucionalidade seja difuso, mas abstrato, sendo que a análise da constitucionalidade é feita em tese, embora por qualquer órgão judicial. Trata-se de um incidente processual de natureza objetiva em que, semelhante ao que ocorre em ADI e ADC, é possível a intervenção do amicus curiae. O STF, ao examinar a constitucionalidade de uma lei em recurso extraordinário, tem agido do modo acima descrito, sendo que a decisão sobre a questão da inconstitucionalidade é tomada em abstrato, passando a orientar o tribunal em situações semelhantes. As decisões do STF em matéria de controle de constitucionalidade e interpretação da Constituição podem ser divididas em quatro espécies, de acordo com a sua força vinculante e a extensão subjetiva dos seus efeitos, consoante registra Didier Jr. (2008, p. 329): a) proferidas por uma turma, em controle difuso; b) proferidas pelo Pleno, em controle difuso, e ainda não consagradas em enunciado de súmula vinculante; c) posicionamentos já consagrados em súmula vinculante; d) decisões em controle concentrado de constitucionalidade. Se houver clara identificação da ratio decidendi utilizada pelo STF para o julgamento do mérito da questão a ele apresentada, haverá vinculação jurídica, em sentido vertical, dos Tribunais de origem à decisão do Supremo. O efeito vinculante das decisões do STF, no exercício de jurisdição constitucional, é fenômeno contemporâneo ao enriquecimento do sistema brasileiro de controle da constitucionalidade, com o notório ganho de importância do controle concentrado e abstrato. 6.5.4 Efeito regressivo do recurso e a possibilidade do juízo de retratação Tendo sido reconhecida a repercussão geral da questão debatida e julgado o mérito recursal, os recursos sobrestados poderão ser apreciados imediatamente pelo Tribunal de origem, pelas Turmas de Uniformização ou pelas Turmas Recursais, consoante prevê a regra do art. 543-B, § 3º, do CPC, acrescentado pela Lei nº 11.418/06. A repercussão geral.... // 113 Foi conferido ao recurso extraordinário um efeito regressivo, mas com perfil dogmático um pouco diferente daquele usualmente utilizado na apelação ou no agravo de instrumento, que permitem o juízo de retratação logo após a interposição do recurso, consoante ensina Didier Jr. Permite-se o juízo de retratação do órgão a quo, nesses casos, após a decisão do STF sobre a questão de direito que corresponde à ratio decidendi da decisão recorrida, no julgamento do recurso que subiu como amostra. A permissão de retratação justifica-se, pois a decisão do STF, em sentido diverso daquela proposta pelo tribunal recorrido, foi tomada em abstrato, de modo a resolver o problema em tese, conforme visto. Os Tribunais poderão retratar-se de suas decisões, adequando-se à orientação firmada pelo STF, sendo-lhes facultado, ainda, declará-los prejudicados, porque manejados em sentido contrário à decisão tomada pelo STF. Trata-se de verdadeira negativa de provimento ao recurso (MARINONI; MITIDIERO, 2007, p. 61). 6.6 DIREITO INTERTEMPORAL O art. 4º da Lei n. 11.418/06 determina que a exigibilidade da demonstração da repercussão geral da questão debatida nos recursos interpostos a partir do primeiro dia de sua vigência. Anteriormente, porém, não se poderia exigir a demonstração da relevância e transcendência de determinada controvérsia constitucional para a admissão de recurso extraordinário. O critério utilizado pela legislação é o do momento de interposição do recurso: se interposto antes da vigência da lei, não se lhe exige a demonstração de repercussão geral; sendo posterior, exige-se lhe. Nesse sentido ensina Marinoni (2007, p. 73). No momento em que tem início o prazo recursal, adquire-se o direito à observância das normas processuais aí vigentes quanto aos requisitos de admissibilidade do recurso. O art. 4º da Lei 11.418/06 pretende que o requisito da repercussão geral seja exigível de recursos interpostos depois de sua vigência. Ao fazê-lo, porém, retroagiu, buscando disciplinar situações pendentes anteriores à sua vigência. Conforme observa Marinoni, o art. 4º da Lei 11.418/06 fere a garantia constitucional da irretroatividade das leis, porquanto desrespeita o direito processual adquirido ao conhecimento e ao julgamento do recurso extraordinário de acordo com a lei vigente ao tempo do termo inicial do prazo para sua interposição. Logo, ao contrário do que pretende impor a legislação, a demonstração da repercussão geral da questão levantada em recurso extraordinário somente poderá ser exigida dos recursos cujo prazo para interposição teve início após a sua vigência. Do contrário, haverá evidente afronta à Constituição. Esse tema foi analisado pelo STJ, em recurso especial, no qual se alegava a violação do direito adquirido sob a ótica processual, em caso 114 // Problemas da jurisdição contemporânea... semelhante (REsp n. 642.838/SP). Na ocasião, o Min. Teori Albino Zavaschi defendeu que [...] o direito intertemporal, em matéria de processo, está submetido à regra básica segundo a qual a lei nova tem aplicação imediata, alcançando os processos em curso, mas sem prejudicar direitos processuais já adquiridos. É regra que se aplica, não apenas em relação aos recursos, mas em relação a direito originário de qualquer outro ato processual, inclusive, portanto, ao que decorre, para a Fazenda Pública, do reexame obrigatório das sentenças (sem destaque no original). Luiz Manoel Gomes Junior (2006, p. 300) também tem entendimento no sentido de que quanto ao recurso extraordinário já interposto, admitido ou não, é impossível a exigência da presença da repercussão geral, sob pena de violar um direito adquirido processual do litigante, vedando-lhe o acesso à tutela recursal, inclusive pela necessidade inoportuna de aditamento das razões e contrarrazões. 6.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O problema do acesso à justiça afeta a todos os jurisdicionados e também os poderes do Estado, impondo a necessidade de prestações positivas para a efetividade do direito. Trata-se de um direito reconhecido no texto da Constituição Federal de 1988 que desafia todos os setores na busca por mecanismo que permita um alcance melhor ou mais rápido para a solução dos conflitos. Nesse ponto, o tempo razoável de duração do processo dificilmente é concretizado pelo Judiciário, que se vê abarrotado de processos empilhados nos escaninhos à espera de uma solução. Nota-se assim a extrema necessidade de se criar mecanismos para aperfeiçoamento do sistema processual, que vise dar maior celeridade para a solução final da demanda. Não por menos, uma das formas seria a redução do número de recursos interpostos ou a redução em seu tempo de tramitação. O recurso é um remédio voluntário, previsto em lei, para, no mesmo processo, reformar, invalidar, integrar ou esclarecer uma decisão judicial. É uma nova demanda, mas que não dá origem a um processo novo. O recurso extraordinário possui fundamentação vinculada, sendo cabível apenas quando houver afronta à Constituição Federal. É o principal instrumento do controle difuso da constitucionalidade. A decisão sobre o recurso servirá de base para as demais decisões sobre o mesmo tema. Para sua interposição é necessário que se tenham cumpridos alguns requisitos, quais sejam, o esgotamento das vias recursais ordinárias, a existência do prequestionamento sobre a matéria objeto do recurso, a ocorrência de ofensa direta ao texto constitucional e a demonstração da repercussão geral da questão suscitada. A repercussão geral.... // 115 A repercussão geral deverá ser demonstrada no corpo do recurso, de forma clara, e se possível em capítulo individual. Deverá ser demonstrado que os efeitos da decisão poderão ir além do processo, poderão atingir uma quantidade considerável de casos ou pessoas. Podem ser interpretadas como de repercussão geral aquelas questões de ordem pública e que tenham grandes reflexos jurídicos, políticos, sociais ou econômicos. Nos recursos interpostos sempre haverá uma presunção de repercussão geral, podendo esta ser rejeitada apenas pelo voto de 2/3 do quórum do Pleno. Significa dizer que será rejeitada a repercussão apenas se houver voto contrário de oito Ministros. Admitida a repercussão em um ou mais recursos, todos os demais interpostos com a mesma fundamentação, ou baseados na mesma ratio decidendi, ficarão sobrestados aguardando a decisão dos primeiros. Haverá o chamado julgamento por amostragem. Sendo negado provimento ao recurso, os demais que estavam sobrestados serão automaticamente considerados como não admitidos. Verifica-se que nesse novo sistema facilmente o julgamento de um recurso terá efeitos para além das partes do litígio, terá efeitos erga omnes. Por isso, se intensifica a necessidade de participação de terceiros no processo, como amicus curiae, visando auxiliar os julgadores em sua decisão, seja para o conhecimento ou não do recurso. Com efeito, o mecanismo de repercussão geral representa um grande avanço no sistema recursal brasileiro, que permite se fazer uma análise única da questão, com reflexos em várias outras demandas, tornando desnecessária a análise processo a processo. Diante disto, não há como não se reconhecer os benefícios na redução do tempo de tramitação processual, o que, sem dúvida, representa uma das formas de dar ao cidadão uma satisfação mais rápida para seu conflito, um melhor acesso à justiça. 6.8 REFERÊNCIAS ASSIS, Arakem de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em: 19 set. 2015. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>. Acesso em: 19 set. 2015. ______. Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926. 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São Paulo: Mundo Jurídico, 2008. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. vol. 3. São Paulo: RT, 2007. MARINONI, Luis Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: RT, 2007. MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial. São Paulo: RT, 1998. ______ . WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves comentários à nova sistemática processual civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2005. MELLO, Rogério Licastro Torres de. Recurso especial e extraordinário: repercussão geral e atualidades. São Paulo: Método, 2007. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2007. NERY JR. Nelson; WAMBIER, Teresa A. Alvim (Coords.). 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Assim, os direitos da personalidade são os reconhecidos ao homem, ao ser humano, juntamente com a Dignidade. Seguindo uma tendência mundial de proteção do homem, a Constituição Federal do Brasil de 1988 trouxe um rol de direitos fundamentais que, alguns são também direitos da personalidade, inerentes à pessoa, ao ser humano, além de ter como fundamento, dentre outros, a dignidade da pessoa humana. O Código Civil, tanto o de 2002 quanto o de 1916, apresentaram um rol de proteção de direitos da personalidade, mas que não excluem outros ali não expressamente escritos. No anseio de identificar e garantir a efetividade dos direitos da pessoa, o presente trabalho tem por escopo apresentar uma das formas de tutelar o direito, fazendo uso da prova ilícita. O primeiro capítulo abordará uma perspectiva histórica do surgimento do direito e dos direitos da personalidade, da era das codificações até os dias atuais. Serão expostos conceitos e classificações de alguns renomados doutrinadores para construirmos um conveniente para este estudo. Após, duas grandes correntes doutrinárias serão abordadas, uma delas defendendo a existência de um rol limitado e expressamente positivado, e outro argumenta pela existência de uma cláusula geral de garantia, * Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR; Especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela Pontifícia Universidade Católica-PR; Formada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR; Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: [email protected] ** Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes (2006). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá(2004). Atualmente é Oficial de Justiça Avaliador Federal da Tribunal Regional do Trabalho da 9 Região. Endereço eletrônico: [email protected] 118 // Problemas da jurisdição contemporânea... reforçada por cláusulas específicas de garantias especiais, mas que não excluem a existência de outros direitos ali não mencionados. Esta pesquisa patrocinará a segunda para advogar pela efetiva tutela dos direitos da personalidade nos âmbitos administrativo e judicial. Na terceira parte, serão tratados os requisitos para a defesa de um direito, no âmbito judicial, em especial no que tange à sua comprovação, a prova como elemento de convencimento do juiz. Será patrocinada a ideia de comunicação no processo para se chegar a um consenso. Serão levantadas algumas discussões acerca da ilicitude da prova e dos diversos termos utilizados para caracterizá-la. Por fim, será abordado o uso da prova ilícita, principalmente no âmbito do processo civil, para a efetiva garantia de um direito. Será evidenciado o conceito do princípio da proporcionalidade, seus elementos, a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito e sua aplicação para justificar a utilização da prova ilícita. O tema se mostra de relevante interesse para a sociedade e para os pensadores e os operadores do Direito, que buscam a maior eficácia na garantia dos direitos da personalidade dos indivíduos. A pesquisa foi abordada pelo método dedutivo, fundamentando o uso da prova ilícita para a garantia dos direitos da personalidade. Os procedimentos histórico e funcional foram usados para descrever o uso da prova ilícita e de sua função. A investigação foi feita na forma de revisão bibliográfica e documental. 7.2 NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE DIREITOS DA PERSONALIDADE O Direito surge junto da civilização, da necessidade de sobrevivência em conjunto, sob a forma de costumes, para regulamentar a vida em sociedade, trazer o mínimo de ordem à polis, regular o convívio e fazer reinar a harmonia entre os homens. Como bem observa Flávia Lages de Castro (2007, p. 2), o direito não existe sem o homem: “Entende-se, em sentido comum, o Direito como sendo o conjunto de normas para a aplicação da justiça e a minimização de conflitos de uma dada sociedade. Estas normas, estas regras, esta sociedade não são possíveis sem o Homem, porque é o Ser Humano quem faz o Direito e é para ele que o Direito é feito”. O Direito surge antes mesmo da escrita, combinado com regras morais, religiosas, sobre casamento, propriedade, sucessão. Desde essa época, o Direito tem o escopo de fazer Justiça, dar a cada um o que é seu. Os Direitos da Personalidade, por sua vez, tem surgimento posterior. Na Grécia Antiga, a pessoa dependia de sua posição social para ser possuidora de direitos, e a dificuldade de se individualizar a pessoa se dá diante da “[...] imperfeição perante a unidade e totalidade do ser” (GONÇALVES, 2008, p. 22). Ainda nessa época, a “[...] compreensão de que o homem é o destinatário primeiro final da ordem jurídica conferiu um novo sentido à personalidade e seus inerentes direitos” (CANTALI, 2009, p. 29). Admissibilidade da prova ilícita... // 119 Em Roma, no período antigo, a Lei das XII Tábuas regulamentava a esfera jurídica do cidadão individual. O período clássico promove a descrição do desenvolvimento da teoria jurídica da personalidade, em que “[...] protegiam-se as pessoas contra qualquer atitude injuriosa, abrangendo qualquer atentado à pessoa física ou moral do cidadão” (TEPEDINO, 1999, p. 24). Na Idade Média, com o advento do cristianismo, a pessoa passa a ter importância, integrando uma categoria ontológica, um sujeito de valores, já que o homem passa a ser a visto como pessoa feita à imagem do criador. Posterior a isso, as ideias humanistas e renascentistas conduziram a construção de um direito geral de personalidade que, como esclarece Gonçalves, além de compreender o nome, a propriedade, a conservação, “[...] compreendia toda a manifestação da individualidade humana, ainda que não tipicamente considerada e só casuisticamente averiguada” (2008, p. 78). Existiam meios mínimos de garantia da dignidade humana, pois haviam proibições de mutilações, suicídio, tortura. Os trabalhos da Escola do Direito Natural, no século XVII, contribuíram para intensificar os direitos de personalidade, e foram utilizados para a fundamentação do moderno conceito, desenvolvido no século XX (SZANIAVSKI, 2005, p. 39). A ascensão da burguesia e os conflitos com a nobreza, impulsionaram o desenvolvimento da liberdade para expansão do capitalismo, do Direito Privado, e contribuíram para o surgimento da era da codificação. Como explica Fernanda Cantali (2009, p. 42-43), os precursores da Escola Histórica do Direito concebiam o direito de personalidade como a titularidade de direitos e obrigações. Era visto como uma relação patrimonial e a pessoa podia deles dispor. Esse conceito foi distorcido por uma teoria negativista, que não reconhecia a existência dos direitos de personalidade. A evolução dessa concepção, no Estado de Direito, contribuiu para a formulação do caráter extrapatrimonial dos direitos da personalidade. Entretanto, o movimento positivista novamente desvirtuou o conceito de direito geral quando atribuiu ao Estado a capacidade de dizer o direito através da lei, o que levou ao fracionamento dos direitos da personalidade, e fez com que os direitos não expressamente positivados fossem negados aos indivíduos. É censurável a utilização desse sistema pela doutrina nazista para o extermínio dos judeus. Registre-se que a era pós-guerra trouxe às Constituições a valorização do indivíduo e sua proteção como ser humano dotado de dignidade, primeiro e principal destinatário da ordem jurídica, o que retirou o caráter tão somente privado da tutela de tais direitos e os trouxe à baila dos direitos constitucionais, públicos. Essa tendência mundial é acertada, conforme sustenta Elimar Szaniawski (2005, p. 62), pois Uma vez que a estreita visão privatística dos direitos de personalidade que não estejam vinculados à categoria ampla de direitos do homem, se mostra insuficiente para a tutela da personalidade. A ordem jurídica deve ser entendida como um todo, onde, dentro de uma hierarquia de valores, tenha um local primacial a noção de que o homem é pessoa dotada de inalienável 120 // Problemas da jurisdição contemporânea... e inviolável dignidade. Somente a leitura da norma civil à luz da Constituição e de seus princípios superiores é que revelará a noção de direito de personalidade, a sua verdadeira dimensão. A preocupação com a violação dos direitos do homem, sobretudo após as guerras mundiais, emergiu da necessidade de lhes conferir ampla proteção. A constitucionalização e a universalização desses direitos em tratados intitulou-os “direitos fundamentais”, “direitos humanos”, “liberdades públicas”, “liberdades fundamentais”, “direitos do homem”, “direitos subjetivos públicos” (SARLET, 2015, p. 27). O Brasil também vivenciou esse contexto de valorização da dignidade humana, do indivíduo, de homem, da pessoa, dos sujeito de direitos, dos direitos fundamentais, que foram incorporados ao corpo constitucional para conformar todo o sistema jurídico. Assim, a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento constitucional de diversos países possibilitou o resgate do direito geral de personalidade (CANTALI, 2009, p. 56). Em alguns países, todavia, os direitos de personalidade foram alocados no Código Civil, por considerarem de natureza privada. A doutrina, tanto internacional quanto nacional, não é uníssona na conceituação e classificação desses direitos, e consenso não parece estar perto. Carlos Alberto Bittar (2003, p. 1) explica que se considera serem os direitos da personalidade “[...] os reconhecidos ao homem, tomados em si mesmo e em suas projeções na sociedade”. Também podem ser definidos como “conjunto de bens que são próprios do indivíduo, que chegam a se confundir com ele mesmo e constituem as manifestações da personalidade do próprio sujeito” (BELTRÃO, 2005, p. 23). Pontes de Miranda (1977, p. 37) os classificou em direito a vida, integridade física, integridade psíquica, liberdade, verdade, honra, imagem, igualdade, nome, intimidade e autoral. Orlando Gomes (2007, 153-154) os dividiu em dois grandes grupos, relativos à integridade física e à integridade moral. Bittar (2003, p. 17) e Limongi França (1983, p. 13) realizaram a classificação tripartite, sendo que este nomeou as categorias em integridade física, integridade intelectual e integridade moral, enquanto aquele distribuiu os direitos em físicos, psíquicos e morais. 7.3 TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE As doutrinas atomísticas, ou pluralistas, sustentam a classificação e especificação dos direitos da personalidade, conforme anteriormente exposto. Elas defendem sua tipificação no ordenamento jurídico e a proteção apenas daqueles ali delimitados. Adriano de Cupis (1961, p. 34) é o defensor mais expressivo dessa corrente, e os individualiza em “a vida, a integridade física, a honra, a liberdade, e outros”, defendendo que a proteção de tais direitos se dá por estarem expressamente previstos no ordenamento jurídico, excluindo a proteção dos não mencionados. Admissibilidade da prova ilícita... // 121 Em oposição às doutrinas tipificadoras, há uma doutrina generalista que defende a existência de uma cláusula geral de proteção dos direitos, visto que esta não os especifica, limita ou restringe. Essa corrente justifica que na Constituição existe uma cláusula geral de proteção e direitos especiais positivados, mas que não anulam a proteção dos não mencionados (TEPEDINO, 1999, p. 49-50). Modernamente, esta é a mais aceita, mas aquela ainda tem raízes muito fortes que não foram completamente desconsideradas. A corrente da teoria geral foi inicialmente desenvolvida na Alemanha. Sua legislação civil previa a tutela de apenas alguns direitos ali delimitados. Foi necessária a intervenção dos tribunais para a proteção de direitos não mencionados na norma, cuja decisão foi fundamentada na previsão constitucional da dignidade humana, que autorizou a intervenção nos casos em que houvesse violação deste direito constitucional não escrito (LOBO, 2001, p. 79-97). No Brasil, as contribuições doutrinárias iniciaram no âmbito de proteção do direito autoral, buscando a tutela em seu aspecto moral e sobre o direito à imagem, não olvidando a existência de outras leis esparsas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, as leis sobre doação de órgãos, reconhecimento da paternidade de filhos fora do casamento, e o recente Marco Civil da Internet. Observa-se, entretanto, que embora exista um número considerável de leis protetoras dos direitos da personalidade no ordenamento brasileiro, não são capazes de prever todas as possibilidades a se tutelar. Assim, a Constituição Federal de 1988 consagrou o ser humano como principal protegido pelo Estado, designou a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito e pulverizou o texto com princípios e normas de proteção dos direitos da pessoa. Nesse sentido nos ensina o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes (2012, p. 151), que “[...] não há dúvida de que, também entre nós, os valores vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo”. Sendo assim, mesmo que não haja previsão específica é garantido a toda e qualquer pessoa a defesa de sua dignidade humana, bem como a utilização dos meios necessários para proteção, prevenção ou reparação de um dano já ocorrido. A proteção dos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro se encontra nos campos constitucional, penal e cível, e pode ser tutelada nas esferas administrativa, penal e cível. Na área constitucional, os direitos são disciplinados como liberdades públicas, recebem status fundamental, e fruem garantias específicas previstas na lei maior, tendo como meios para efetivação dos direitos o Habeas corpus, o Habeas data, os Mandados de segurança individual e coletivo e o Mandado de injunção. É uma defesa da pessoa contra o Estado. No âmbito penal, a tutela é repressiva e busca preservar atentados vindos de outras pessoas, cujas ações são tipificadas como crimes contra a vida, a saúde, a honra, a intimidade, o segredo e o intelecto. No plano cível, a 122 // Problemas da jurisdição contemporânea... proteção se realiza no âmbito privado contra investidas de particulares e na salvaguarda de seus mais íntimos interesses, dentro da liberdade e da autonomia próprias de cada ser (BITTAR, 2003, p. 52-62). A tutela pode ser feita de diferentes formas, como cessar a prática lesiva, apreender materiais oriundos dessa prática, cominação de pena ao agente causador, reparação dos danos morais e materiais, e a persecução criminal do agente na esfera criminal, pois, como explica Elimar Szaniawski (2005, P. 247) “[...] todo o indivíduo possui o direito de proteger-se contra atentados dirigidos à sua personalidade”. O lesado pode, assim, escolher a forma mais adequada de reação, desde que condizentes com seu interesse e em consonância com a situação fática. Pode, também, cumulá-la nas diferentes esferas, por exemplo, cível e penal. No âmbito administrativo a tutela pode se efetivar quando houver estruturação própria para tanto, o que nem sempre existe. Se não dispuser de instrumentos específicos, ou se forem ineficientes, o autor pode optar por recorrer ao judiciário para prevenir, interromper ou ser indenizado pela lesão. Notadamente no âmbito cível é que o lesado dispõe de meios mais efetivos para proteção dos direitos da personalidade. Nesse sentido, o Código Civil arrola três modalidades de autodefesa excludentes de ilicitude, como a legítima defesa, o exercício regular de direito reconhecido e o estado de necessidade para impedir a lesão ao seu direito de personalidade antes de solicitar a proteção pela via judicial. Quando desta se socorrer, pode utilizar-se da tutela inibitória, responsável por cessar o atentado atual e contínuo e remover os efeitos danosos que se prolongam no tempo, da tutela preventiva, através das ações típicas e atípicas, como as ações cautelares, das tutelas antecipadas contempladas nos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil, que têm por “[...] escopo assegurar o resultado prático dos processos de conhecimento e de execução, através da ampliação dos poderes do juiz, buscando a tutela específica da obrigação ou o resultado prático equivalente” (SZANIAVSKI, 2005, p. 250-251), bem como das tutelas reparadoras, nos casos em que o direito de personalidade já foi violado. Dessa forma, para a efetiva tutela de um direito, o autor deve demonstrá-lo, ou seja, provar a sua existência e garantia. No âmbito processual, a prova é um dos temas fundamentais, pois grande parte do conflito entre as partes está baseada em fatos que necessitam de comprovação. Assim, para que sejam válidas nos processos, as provas devem passar pelo crivo da licitude, visto que a Constituição Federal proíbe a admissão de provas obtidas por meios ilícitos (artigo 5º, LVI), como será discutido a seguir. 7.4 A PROVA DO FATO OU DO DIREITO Uma definição superficial do que venha a ser direito material pode ser entendida como um conjunto de normas que criam, regem e extinguem relações jurídicas, diferenciando o que é lícito do ilícito, do que pode ser feito Admissibilidade da prova ilícita... // 123 e do proibido, destinada à solução de conflitos de interesses contrapostos. No que tange ao direito processual, pode-se, de forma simplista, defini-lo como instrumento para a veiculação da pretensão, meio de solução da lide, o caminho percorrido pelo judiciário para dizer o direito às partes, ou o sistema de normas que regulamenta o complexo mecanismo de aplicação do direito material (GARCIA, 2009, p. 3). Nesse sentido, vale-se do processo a pessoa que pretende exigir a tutela de seu direito no âmbito judicial (WAMBIER, 2003, p. 408), e para socorrer-se da prestação jurisdicional, é indispensável o cumprimento de algumas regras pré-estabelecidas. O objetivo da jurisdição é a solução de conflitos com justiça (LIEBMAN, 1985, p. 5), e para fazê-lo, as provas são o instrumento adequado a levar ao magistrado o conhecimento dos fatos que envolvem a relação jurídica objeto da atuação jurisdicional (WAMBIER, 2003, p. 431-432). Assim, a cognição permite “[...] que se tenha conhecimento acerca das peculiaridades do caso concreto, o que possibilita que o processo possa adequadamente realizar o direito material” (GARCIA, 2009, p. 8) e, por conseguinte, instituir a justiça. Oportuno destacar que, para que as partes e a sociedade assintam com a justiça da decisão, deve-se possibilitar-lhes um efetivo controle dessa decisão, o que viabiliza eventual impugnação. Assim, a motivação das decisões judiciais é princípio de valor fundamental, como defende Ferrajoli, (Apud MENDES, 2009, p. 398): A validade das sentenças resulta condicionada à verdade, ainda que relativa, de seus argumentos. [...] Precisamente, a motivação permite a fundação e o controle das decisões seja de direito, por violação da lei ou defeito de interpretação ou subsunção, seja de fato, por defeito ou insuficiência de provas ou por explicação inadequada no nexo entre convencimento e provas. Nesse sentido, a prova tem significativa importância para que haja o justo pronunciamento judicial. A demanda deve ser instruída para que o juiz efetivamente conheça a controvérsia, analise as circunstâncias e aplique a norma abstrata ao caso concreto, pois “[...] quanto mais abundantes e mais seguros subsídios se puderem obter das provas, tanto menor a margem de erro a que ficará sujeito o órgão judicial na hora de sentenciar” (MOREIRA, 1989, p. 122). Destarte, a função das provas é, mais que comprovar uma proposição, sobretudo, elemento de convencimento do Estado-juiz acerca das proposições formuladas pelas partes. Assim sendo, prova é “[...] um conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade quanto aos fatos relevantes para o julgamento” (DINAMARCO, 2004, p. 43). Por diversas modalidades, o fato pode chegar ao conhecimento do juiz e, a princípio, não haveria limitações ou restrições à admissibilidade de quaisquer meios para a produção das provas, posto que 124 // Problemas da jurisdição contemporânea... o processo deve ser conduzido pelo princípio da descoberta da verdade 1. Mas não de forma absoluta, já que a verdade não é o único objetivo das provas, posto que também são instrumento utilizado pelas partes para auxiliar na formação da ratio decidendi do julgador diante do caso concreto (ASSIS; MOLINARO, 2013, p. 2470), conforme anteriormente mencionado. Nesse sentido, o Código de Processo Penal admite em seu artigo 155 a liberdade dos meios de prova. A norma correspondente no processo civil, artigo 332, prescreve que todos os meios legais e os não especificados em lei, desde que moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa. Embora o legislador tenha admitido a livre produção de provas atípicas, excluiu os meios moralmente ilegítimos. Entretanto, “[...] nem sempre é fácil identificar a imoralidade do meio de prova pretendido, já que o próprio conceito de moral é variável no tempo e no espaço” (LOPES, 2007, p. 98). Humberto Theodoro Júnior (1994, p. 9) esclarece que vedar o uso de meios moralmente ilegítimos e de provas obtidas por meios ilícitos seria o mesmo que exigir das partes uma conduta ética e lícita na obtenção das provas e não a observância de regras procedimentais para a produção dos elementos da lide. Para Elimar Szaniavski (2005, p. 283), “[...] até hoje não se conseguiu estabelecer um critério exato para distinguir e fixar os precisos limites que separam o direito da moral, existindo diversos critérios para tal, todos, porém, insatisfatórios”, já que são ciências diversas e não se confundem. Além disso, sustenta que “[...] a regra jurídica em geral possui efeito coercitivo, ao contrário das regras da moral, que absolutamente não são coercitivas”. Por fim, indaga acerca da segurança jurídica da admissibilidade de uma prova obtida por meio moralmente ilegítimo, tendo em vista que o critério de averiguação é subjetivo. Para corroborar sua preocupação, cita Alcides Mendonça de Lima, para quem o termo moralmente legítimos é inexato e de difícil conceituação, já que “[...] o sentido muda conforme a época e, até, a mentalidade, a formação e os princípios de cada juiz”. Seguindo uma tendência do direito comparado, a Constituição Federal determinou a inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito. Embora, à época, o escopo era a ampla proteção dos direitos fundamentais2 no processo, o termo escolhido também não foi dos mais acertados, visto que a terminologia utilizada nas leis é, de fato, imprecisa. O espanhol Jacobo López Barja de Quiroga (1989, p. 82) aponta a utilização dos seguintes vocábulos como se sinônimos fossem, sem qualquer distinção semântica, prova proibida, ilegal, ilegalmente obtida, ilícita, ilicitamente obtida, ilegitimamente admitida e proibições probatórias. Essa falta de caracterização não diferencia o que seria uma prova contrária à norma de uma prova obtida 1 O artigo 339, do Código de Processo Civil dispõe que: Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade. 2 É imperioso esclarecer que será utilizada a expressão “direitos fundamentais” também querendo significar “direitos da personalidade”. Admissibilidade da prova ilícita... // 125 mediante violação da norma, tampouco diferencia uma norma que infrinja norma material ou processual. A doutrinadora Nilda Azenha (2003, p. 100) estabelece uma distinção ao defender que “[...] a prova ilícita é aquela obtida ou colhida mediante a violação de regras de direito material ou de natureza constitucional”, enquanto “a ilegitimidade da prova diz respeito à violação de regra de caráter processual, ocorrendo no momento de sua produção ou introdução no processo”, e aquelas devem ser admitidas. Os paranaenses Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Cruz Arenhart (2009, p. 241) adotam uma interessante distinção entre a prova obtida com violação do direito material da prova obtida com violação do direito processual. As primeiras, violadoras de direito material, podem ser exemplificadas pela obtenção de informações mediante espionagem, gravação de conversa não autorizada, coação para que alguém faça uma declaração por escrito, pose para uma fotografia, utilização não autorizada de um diário íntimo. Nesses casos, fere-se os direitos à intimidade, à privacidade, à imagem, à honra. Além disso, uma prova pode ser obtida com violação de direito material, mas ser lícita no campo processual, como uma testemunha que revele informações obtidas por violação de sigilo; pode também ser obtida sem violação de direito material, mas sim de direito processual, como a realização de uma perícia sem oportunizar o contraditório; ou pode também desrespeitar tanto o direito material como o processual (MARINONI; ARENHART, 2009, p. 243). Os autores defendem que as provas violadoras de um simples procedimento probatório não contém um vício tão grave quanto as violadores de direitos fundamentais processuais. Expõem a necessidade de se auferir a importância da norma transgredida para a efetivação dos direitos fundamentais. E concluem que “[...] uma prova que resulta de um procedimento em que foi cometido um ilícito não é necessariamente ineficaz” (MARINONI; ARENHART, 2009, p. 244). Considerando, então, ser a prova o instrumento destinado a convencer o juiz da veracidade dos fatos, cada parte, por visar à sua vitória na causa, fará o possível para demonstrar o alegado. Cumpre ressaltar que a Constituição Federal também prescreveu a garantia do devido processo legal, que se revela uma das mais amplas e relevantes garantias do direito constitucional, por seu caráter tanto processual quanto material (MENDES, 2012, p. 636). Nesse sentido, é possível justificar que tanto a inadmissibilidade quanto a admissibilidade da prova ilícita estão contidas nos dois conteúdos do princípio mencionado. Quanto ao seu sentido material (substancial), a inadmissibilidade pode ser ilustrada pela proibição de violação aos direitos à intimidade, da imagem, do domicílio, da correspondência, enquanto a admissibilidade pode ser deve ser defendida justamente para a garantia da efetividade desses direitos. No que tange ao sentido processual, a inadmissibilidade pode ser exemplificada pela interceptação telefônica sem autorização judicial (MARINONI; ARENHART, 126 // Problemas da jurisdição contemporânea... 2009, p. 246), por exemplo, enquanto, por outro lado, pode ser admitida para salvaguardar o direito à ampla defesa. 7.5 DA PROVA ILÍCITA O inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal, que estabeleceu a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, tem validade tanto para o processo civil, quanto para o penal e o administrativo. Mas essa absoluta inadmissibilidade é controversa, conforme anteriormente apontado. A polêmica doutrinária se divide em dois grandes grupos em que um sustenta a absoluta proibição da prova obtida por meios ilícitos como meio de coibir abusos contra os direitos fundamentais, e o outro defende a possibilidade de se considerar a prova obtida por meio ilícito, cabendo ao juiz a atribuição do valor da prova no momento da formação de seu livre convencimento motivado. Este estudo a este filiar-se-á. Os doutrinadores constitucionalistas se subdividem em procedimentalistas e substancialistas. A primeira corrente, que conta com a defesa de Jürgen Habermas, Niklas Luhmann, Luiz Guilherme Marinoni (processualista), sustenta que para a construção do Estado Democrático, o Tribunal Constitucional deve adotar uma compreensão procedimental da Constituição (HABERMAS, 1997, p. 170 e ss.), além de afirmar que o devido cumprimento do procedimento garante aceitabilidade das decisões (LUHMANN, 1980, p. 31-35). A segunda, patrocinada por Mauro Cappelletti, Ronald Dworkin, além dos brasileiros Paulo Bonavides, Ingo Wolfgang Sarlet, Luís Roberto Barroso, rejeita a tese procedimental, argumentando que a jurisdição constitucional não se satisfaz com o mero cumprimento dos procedimentos, mas o conteúdo da Constituição busca a mudança da sociedade, para que se torne cada vez mais justa e solidária, enfatizando o papel de efetivação dos direitos e garantias fundamentais (STREK, 2009, p. 30 e ss). De uma forma geral, os constitucionalistas reconhecem a função do Poder Judiciário, em especial após o segundo período pós-guerra, de efetivar os direitos e garantias fundamentais. Eles também argumentam que a inadmissibilidade da prova ilícita está direcionada ao Estado, pois pretende proteger o indivíduo na defesa de seus direitos fundamentais atingidos pela persecução penal (MENDES; BRANCO, 2012, p. 1154). Os autores ainda defendem que o objetivo é a garantia de outros direitos, como o direito à vida, à inviolabilidade do domicílio, o sigilo de correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, o sigilo profissional, entre outros. Concluem, nesse sentido, que a prova que ferir os direitos mencionados, em dissonância com o devido processo legal, revela-se ilícita e é, então, inadmissível. Como o Estado é o titular da pretensão punitiva que interferirá diretamente na liberdade da pessoa, neste caso, é inadmissível a prova que violar direitos fundamentais. Por conseguinte, a busca da verdade, é tão profundamente arraigada no processo penal que a insuficiência de provas, faz com que se presuma a Admissibilidade da prova ilícita... // 127 inocência, o que exerce grande influência no processo civil, pois, como se identifica, no processo coletivo, se a ação for julgada improcedente por insuficiência de provas, não faz coisa julgada material, e admite-se o ingresso de nova demanda, caso existam novas provas. Na esfera cível, todavia, as partes são pessoas físicas ou jurídicas, privadas, que têm o dever, ônus, de provar o alegado, tanto da existência de seu direito, quanto de sua violação. Nesse sentido, o processualista Barbosa Moreira (1997, p. 153-154) critica o radicalismo da vedação das provas ilícitas apresentado pela Constituição de 1988 ao sustentar que a preocupação em evitar que alguém tire proveito de uma ação antijurídica, ou até antiética, não deve prevalecer quando em conflito com a defesa do interesse público para a garantia de um processo justo, ocasião em que não se deve permitir o desprezo de elementos que contribuam para a descoberta da verdade. Marinoni e Arenhart, embora defendam que “[...] o fim da prova não é a descoberta da verdade” (MARINONI; ARENHART, 2009, p. 50), descrevem um procedimento a ser seguido para a valoração das provas ilícitas e resguardam a necessidade de ponderação, pelo juiz, entre o que se pretende provar com a prova ilícita e o direito material violado (MARINONI; ARENHART, 2009, p. 245-246): No caso em que não foi violada uma regra processual essencial, a prova, ainda que não sanada, pode ter repercussão no processo, embora não possa ser valorada como uma prova. Nesta específica situação, a descoberta trazida pela prova pode ser considerada livremente pelo juiz, que pode conjugá-la com outras provas lícitas para analisar os fatos apresentados ao seu julgamento. Para tanto, o juiz deverá expor e explicar, na motivação, porque a violação de regra processual não desacreditou a descoberta na sua totalidade. Após, terá de relacionar essa descoberta, relativa à prova maculada, com aquilo que foi evidenciado por meio das provas lícitas, argumentando, de modo racional, a vinculação entre a descoberta obtida por meio da prova ilícita e as provas lícitas. Nesse ponto, é possível concordar que a busca da verdade não pode servir de justificação para a desarrazoada violação de direitos, mas é preciso refletir acerca da imprecisão da norma constitucional, que desconsiderou a existência de diversos direitos, de diferentes cargas valorativas, bem como processos de diversas espécies – cível, trabalhista, administrativo, penal. Não obstante, a máxima “o que não está nos autos, não está no mundo” (quod non est in actis non est in mundo), há muito arraigada no processo civil, revela a necessidade de exigir uma conduta ativa do juiz na colheita das provas, uma recente tendência da doutrina. Pois, como destinatário da prova, o juiz não se desvincula dos elementos existentes nos autos. Por essa razão, exige-se das partes, também, um dever de lealdade processual, que deve fazer uso do processo para solucionar um conflito, lembrando de sua utilidade também para pacificação geral na sociedade (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2005, p. 62-75). 128 // Problemas da jurisdição contemporânea... Assim, uma vez esclarecido que a análise das provas fundamenta a motivação das decisões, já que o livre convencimento ou o sistema de persuasão racional é compatível com o processo civil brasileiro (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2005, p. 361), é plausível patrocinar a compatibilidade desse sistema com a teoria do discurso de Habermas (1997, p. 30-32), em que os sujeitos se comunicam, debatem, argumentam e pela linguagem constroem a verdade, na busca de um consenso. Outrossim, não se pode esquecer que o direito à prova é um direito fundamental, que frequentemente entra em conflito com outros direitos fundamentais. É possível que, eventualmente, haja necessidade de fazer uso de uma prova ilícita para a efetiva garantia de um direito fundamental, ocasião em que haverá um conflito com o, também fundamental, direito de inadmissibilidade das provas ilícitas, visto que, conforme explica Gilmar Mendes, a colisão de direitos fundamentais decorre do exercício de direitos fundamentais por diferentes titulares (MENDES; BRANCO, 2012, p. 444). Para melhor esclarecer, usa-se a teoria de regras e princípios de Alexy (2014, p. 185-191) que defende que os direitos fundamentais são princípios. O autor explica que regras são comandos definitivos que, quando em conflito, a aplicação da subsunção faz com que uma regra seja cumprida e a outra descumprida; enquanto princípios são um comando de otimização que devem ser realizados na maior medida possível, podem ser cumpridos em diferentes graus e, quando em conflito, aplica-se a ponderação. Assim, constrói-se uma teoria dos princípios dos direitos fundamentais, que os tratará como comandos de otimização, para se socorrerem da máxima da proporcionalidade, que pode ser formulada, em sentido estrito, em uma regra denominada “lei da ponderação”, que determina que “[...] quanto maior o grau de descumprimento ou de interferência em um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio”. Depreende-se disso que, no caso de interferência ou descumprimento de um direito fundamental (princípio), maior deve ser a importância do outro direito fundamental (princípio). Reitera-se, dessa forma, que, quando a admissibilidade da prova ilícita servir para garantir a efetividade de um direito fundamental, ocorrerá o descumprimento de sua inadmissibilidade, também direito fundamental, e para solucionar o conflito, usa-se a regra da ponderação, dividida em três níveis: No primeiro nível, trata-se do grau de descumprimento ou de interferência em um princípio. A ele se segue, no próximo nível, a identificação da importância do cumprimento do princípio oposto. Finalmente, no terceiro nível, identifica-se se a importância do cumprimento do princípio oposto justifica o descumprimento do outro princípio ou a interferência nele (ALEXY, 2014, p. 192). Por conseguinte, é oportuno destacar a preocupação do mestre português, J. J. Gomes Canotilho (2002, p. 646), sobre a necessidade de equilíbrio do sistema, quando no conflito de normas, em que “[...] as regras de direito constitucional de conflitos deverem-se construir com base na Admissibilidade da prova ilícita... // 129 harmonização de direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência de um direito ou bem em relação ou outro”. Os processualistas geralmente se inclinam à defesa do direito de prova, o que tem despertado diversas discussões (SZANIAVISKI, 2005, p. 269). Embora a doutrina não seja uníssona, dentre os que admitem o uso das provas ilícitas, condicionam-na ao crivo do princípio da proporcionalidade. Segundo Paulo Bonavides, este princípio é antigo e sua redescoberta tem se dado nos últimos duzentos anos com aplicação no campo do Direito Administrativo. Mais recentemente, no fim do século XX é que sua aplicação passou a ser adotada no âmbito do Direito Constitucional (BONAVIDES, 2000, p. 362). Esse compartilhamento se deu na Alemanha, logo após a Segunda Guerra Mundial, visto que o apego absoluto à norma, herança kelseniana, contribuiu para a devastação do país. O modelo de direito sustentado por regras, deveria ter sido superado após o período do segundo pós-guerra, uma vez que ficou reconhecido que o legislador não é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, e não se pode deixar a decisão dos casos difíceis à discricionariedade do juiz. Assim, a fundamentação das decisões exclusivamente no texto (norma), ainda que se trate de uma Constituição discursiva, dirigente e comprometida com a construção de um Estado Democrático de Direito, deve permitir, ao invés disso, a utilização de princípios como fonte do direito (STREK, 2009, p. 9-10). O fundamento do princípio da proporcionalidade, corrente mais aceita pela doutrina alemã, reside tanto no âmbito dos direitos fundamentais quanto no do Estado de Direito. Deve ser usado para “[...] evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais” (MENDES, BRANCO, 2012, p. 43). Sua invocação se dá, em especial, quando se encontram em situações de conflito direitos fundamentais e outros bens dignos de proteção, como no presente estudo. Para corroborar a defesa da admissibilidade da prova ilícita, insta evocar a jurisprudência alemã e norte-americana que, para preservar bens e valores dignos de proteção, podem admitir “[...] exceções à proibição das provas ilícitas quando necessário à realização de exigências superiores de natureza pública ou privada, argumentando que a proporcionalidade é essencial para a justiça no caso concreto” (MARINONI; ARENHART, 2010, p. 250). Enfatiza-se que a Constituição Federal, ao determinar a inadmissibilidade das provas ilícitas, pretendeu tutelar o direito material violado, e não a descoberta da verdade. Assim, na análise do caso concreto, quando o direito material a ser violado colidir com um direito material a ser tutelado pela prova ilícita no processo, é imprescindível o uso da proporcionalidade e da lei da ponderação, de Alexy para a solução do conflito. Antes da conceituação e aplicação da proporcionalidade, necessário esclarecer que, embora Alexy tenha defendido que os princípios possam ser cumpridos em diferentes graus, não se pode atribuir os direitos em rigorosa hierarquia, sob pena de desnaturá-los por completo, além de descaracterizar a harmonia normativa e unitária da Constituição, admitindo-se valoração 130 // Problemas da jurisdição contemporânea... hierárquica diferenciada apenas em casos especialíssimos. É o que adverte o constitucionalista Gilmar Mendes, que [...] embora o texto constitucional brasileiro não tenha privilegiado especificamente determinado direito, na fixação das cláusulas pétreas, (CF, art. 60, § 4º), não há dúvida de que, também entre nós, os valores vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo (CF, art. 1º, III) (MENDES; BRANCO, 2012, p. 448-452). Passemos, doravante, aos elementos do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip): adequação (Geeignetheit), necessidade (Enforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit), que pode ser expresso como lei de ponderação, “[...] os quais, em conjunto, dão-lhe a densidade indispensável para alcançar a funcionalidade pretendida pelos operadores do direito”. O primeiro elemento, adequação, aufere-se da congruência da relação meio-fim, ou seja, constatase se o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido, sobretudo a idoneidade do meio. O segundo elemento, necessidade, cuida se a medida restritiva de direito seja imprescindível para a salvaguardar o próprio direito, bem como a possibilidade de optar por outra medida, também eficaz, mas menos gravosa, ou seja, dentre as várias medidas possíveis, optou-se pela mais idônea e menos onerosa. O terceiro, proporcionalidade em sentido estrito, pondera se o meio utilizado está em equilibrada proporção com o fim perseguido (BARROS, 2003, p. 77-89). Por analogia, a admissibilidade da prova ilícita só será cabível quando os meios utilizados forem adequados, necessários e proporcionais para a consecução dos objetivos pretendidos. Em outras palavras, a prova será adequada e deverá ser admitida, mesmo que ilícita, quando se observar que esta é indispensável para a obtenção do resultado pretendido. Será necessária, mesmo que ilícita, quando por outra forma não se puder provar o alegado. E, por fim, será proporcional, empregando-se a lei de ponderação, quando o direito a ser protegido justificar o descumprimento da admissibilidade da prova ilícita. Ressalte-se que o contrário também é verdadeiro, e não se pode justificar a admissibilidade da prova ilícita quando se puder provar por outro modo, ou se verificar que o meio utilizado não for imprescindível, ou que o direito a ser protegido não justifica o desproporcional ferimento de outro direito. Não se pode esquecer que, para se autorizar o uso da prova ilícita, ela deve ser o único meio capaz de tutelar um direito material, garantir a dignidade da pessoa humana e a eficácia de direitos fundamentais. Nesse caso, não há como, excepcionalmente, não admiti-la. Há algum tempo o Supremo Tribunal Federal tem admitido as provas obtidas ilicitamente, na seara penal, a favor do réu, quando forem indispensáveis para o exercício fundamental da ampla defesa como forma de provar a sua inocência. Nesses casos, o conflito entre a proibição da prova ilícita e a ampla defesa é resolvido pela aplicação da ponderação das garantias constitucionais. Assim, o caráter procedimental do devido processo Admissibilidade da prova ilícita... // 131 legal e a consequente inadmissibilidade da prova ilícita dá lugar ao seu aspecto substancial, garantindo o exercício da ampla defesa (BRASIL, 1997, web). Esse estudo foi limitado à garantia de um direito pela inadmissibilidade da prova ilícita em conflito com a lesão a um direito, o mesmo direito ou diverso, também pela inadmissibilidade da prova ilícita. Demonstrou o conflito de direitos e postulou a utilização dos critérios de ponderação para se sopesar a imprescindibilidade de lesão e de garantia dos direitos. Intercedeu pela admissibilidade da prova ilícita, na esfera cível, quando o direito a ser resguardado justificar de forma plausível a lesão a outro direito. 7.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito é fruto, em conjunto, do surgimento da vida em sociedade. Foi necessário, a partir daí, a organização da relação entre as pessoas. Inicialmente, o direito exercia sua atuação junto da moral e do costume. A pessoa passou a ser considerada, na Idade Média, à imagem do seu criador e, portanto, digno de proteção. Pode-se, assim, falar no nascimento dos direitos da personalidade, que são aqueles inerentes à pessoa, ao ser humano. Após a era das codificações do direito, e para evitar as atrocidades cometidas com o respaldo do positivismo, a proteção da pessoa se tornou o núcleo das constituições de diversos países, assim como tantos tratados internacionais. Por sua localização em textos constitucionais e acordos internacionais, a doutrina nomeou-os direitos fundamentais, direitos humanos, direitos humanos fundamentais, dentre outros, mas que querem significar a proteção à dignidade humana, assim como os direitos da personalidade. Uma cláusula geral de proteção foi concebida para se evitar que os direitos não expressamente positivados fossem relegados por esse mero detalhe. É possível, assim, que, diante de disputas particulares, entre pessoas, um direito tutelado pela Constituição entre em conflito com outro direito igualmente tutelado. Para se exigir essa tutela do Estado, o processo judicial demonstra ser um meio eficaz. Para tanto, a prova é o elemento essencial para se levar ao juiz o conhecimento dos fatos e convencê-lo acerca das alegações. Para a tutela desses direitos, é possível que haja necessidade de se recorrer às provas ilícitas, proibidas pela Constituição Federal, mas que podem vir a ser o único meio de provar o alegado e consolidar a justiça, que também é garantido pela mesma lei. Para solução desses conflitos, defendemos a utilização do princípio da proporcionalidade para, em alguns casos, justificar a admissibilidade da prova ilícita. 132 // Problemas da jurisdição contemporânea... 7.7 REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria discursiva do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2014. ASSIS, Araken. MOLINARO, Carlos Alberto. 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Alexandre Ribas de Paulo* Valine Castaldelli Silva** 8.1 INTRODUÇÃO A indagação acerca da constitucionalidade da quebra das comunicações telefônicas, telemáticas e informáticas, bem ainda do sigilo telefônico, são temas recorrentes tanto quando se fala em observância dos Direitos Fundamentais quanto se aborda a produção probatória no inquérito policial e no processo penal. O artigo 5o, inciso XII, da Constituição Federal é uma regulamentação específica do inciso X, do mesmo dispositivo constitucional, que trata da intimidade e vida privada das pessoas. Nessa perspectiva, violações à comunicação telefônica das pessoas não podem ser admitidas nos processos judiciais brasileiros e, conforme disposto no artigo 157, § 3o, do Código de Processo Penal, a prova obtida por meio ilícito deve ser desentranhada dos autos do processo e inutilizada. Partindo-se da necessidade de uma abordagem constitucional acerca do direito probatório no Processo Penal, especialmente no que tange aos direitos fundamentais e da personalidade, propõe-se um estudo sobre os procedimentos preconizados pela Corregedoria de Justiça do Estado do Paraná no que concerne aos processos virtuais, isto é, aqueles acessíveis somente pelo sistema de informática do PROJUDI, para compreender se existe ou não o cumprimento da legislação pátria sobre o desentranhamento e inutilização de provas obtidas por meios ilícitos. * Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000); Mestre (2006) e Doutor (2011) em Direito, Estado e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Professor Adjunto na Universidade Estadual de Maringá (UEM), lecionando a matéria de Direito Processual Penal para o Curso de Graduação em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação lato sensu em Ciências Penais da UEM; na Especialização em Ciências Criminais da PUC – campus Maringá e Escola da Magistratura do Paraná – Núcleo Maringá, lecionando a matéria de Direito Processual Penal. Email: [email protected] ** Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2014). Pós-graduanda em Ciências Penais lato sensu pela Universidade Estadual de Maringá. Assistente de Juiz de Direito pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: [email protected] 136 // Problemas da jurisdição contemporânea... 8.2 O DIREITO COMUNICAÇÕES FUNDAMENTAL À INVIOLABILIDADE DAS A Carta Magna, em seu art. 5º, trata das garantias fundamentais. Essas propiciam ao indivíduo a viabilidade de exigir dos Poderes Públicos o respeito ao direito que instrumentalizam. O legislador constituinte, ao tratar tais direitos como invioláveis os elevou à condição de direito individual, conexo ao da vida (SILVA, 2010, p. 205-206). Respaldando-se nos Direitos Fundamentais, importante a exposição de Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 18) no sentido de que não são derrogáveis e nem disponíveis as garantias desses direitos 1. Frise-se as lições de Pacelli (2013, p. 36), no sentido de que os princípios constitucionais podem ser concebidos como garantias fundamentais dos indivíduos, tanto em face do Estado, quanto em face de si mesmos. Dentre outros valores reconhecidos pela ordem jurídica constitucional, o art. 5º dá conta da proteção à intimidade, à privacidade, à honra, e a imagem, com efeito, seu inciso X: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;". Em atenção à redação do mencionado inciso, do rol de Direitos Fundamentais, pertinente a doutrina: O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas. [...] No âmago do direito à privacidade está o controle de informações sobre si mesmo (MENDES, 2011, p. 315-317). Afirmam os mesmos autores que o direito à privacidade encontra limitações, pelo simples fato de se viver em comunidade, bem ainda em relação a outros valores constitucionalmente protegidos (MENDES; BRANCO, 2011, p. 319). Ressalte-se que o art. 21 do Código Civil, elencado no rol dos Direitos da Personalidade, traduz a essência do mencionado inciso X, do art. 5º, da Constituição Federal: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. ” Destarte, o Direito da Personalidade consistente na vida privada decorre de Direito Fundamental elencado pela Carta Magna de 1988. 1 De maneira diversa dispõe Paulo Gustavo Gonet Branco: Não pode o indivíduo renunciar de suas garantias fundamentais. Contudo, os Direitos Fundamentais podem ser autolimitados pelo titular, desde que seja preservado o núcleo essencial da personalidade humana (MENDES; BRANCO, 2011, p. 319). As informações colhidas... // 137 Sobre os direitos da personalidade os preceitos de Maíra de Paula Barreto e Valéria Silva Galdino (2007, p.277-308): [...] a personalidade constitui-se de: capacidade de direito, capacidade de fato e de um patrimônio (material e moral). Integram o patrimônio moral os chamados direitos imateriais ou direitos da personalidade. A personalidade é o fundamento ético, é a fonte, é a síntese de todas as inúmeras irradiações, da pletora de emanação possíveis dos direitos da personalidade. Buscando-se o contexto histórico e jurídico do supramencionado direito, este já era reconhecido internacionalmente desde a década de 40. O art. 12, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispõe: “Ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. No mesmo sentido o art. 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969: “Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”. Da leitura dos artigos supra destacados, verifica-se que a proteção ao direito à vida privada abrange também a proteção ao sigilo das correspondências, por intermédio da vedação de ingerências arbitrárias em um âmbito mais lato que é denominado comunicação. No que tange aos direitos fundamentais no Brasil, o inciso XII, artigo 5º da Constituição Federal2, especializa a proteção da intimidade e privacidade das pessoas, cujo foco é a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, dados e das comunicações telefônicas. Com efeito: “[...] é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”3. O sigilo das comunicações é não só um corolário da garantia da livre expressão de pensamento; exprime também aspecto tradicional do direito à privacidade e intimidade (MENDES; BRANCO, 2011, p. 330). Com base nessa construção, o sigilo das comunicações deve ser abrigado como Direito 2 Apesar de se tratar de direito fundamental o sigilo das comunicações telefônicas, o legislador elencou hipóteses de restrição, quais sejam: estado de defesa ou estado de sítio (art. 136, §1º, I, “c”, e art. 139, III, ambos da Carta Magna). (MENDES; BRANCO, 2011, p. 330) 3 “Trata-se, aliás, de direito assegurado a nível constitucional, desde a primeira Carta Política do País (1824), sendo outorgado sem limitações nos textos constitucionais de 1891 (art. 72, § 18), 1934 (art. 113, n. 8), 1946 (art. 141, §6º) e 1967 (art. 150, §9º). Apenas o estatuto ditatorial de 1937, em seu art. 122, n. 6, dispunha, restritivamente, constituir direito dos brasileiros e estrangeiros residentes no País, “salvo as exceções expressas em lei”. (GOMES FILHO, 1986, p. 85). 138 // Problemas da jurisdição contemporânea... da Personalidade, porquanto expressa uma das facetas do direito à vida privada, ora tratado. O autor Rodrigo Mesquita, menciona que o inciso XII, do art. 5º da Carta Magna foi divido em “correspondência”, “comunicações telegráficas”, “dados” e “comunicações telefônicas” em razão da evolução histórica da proteção das telecomunicações. Isso porque, as exceções e restrições relativas ao sigilo das comunicações já haviam sido previstas na Constituição de 1824 (MESQUITA, 2013). Importante salientar que apesar de as palavras “sigilo” e “segredo” serem normalmente empregados como sinônimos, pois dizem respeito àquilo que não pode ser exposto publicamente, comunicado, possuem sentido diverso. Por sigilo entende-se um dever legal, uma exigência para que o segredo seja mantido. Assim, a sigilo das comunicações telefônicas diz respeito a um segredo protegido por lei (MESQUITA, 2013). A partir da redação do mencionado artigo, pode-se concluir que o direito à privacidade e à intimidade decorrente das comunicações telefônicas poderiam ser flexibilizados, por ordem judicial, presente, assim, uma ressalva na lei, criando uma exceção à regra, sendo que as hipóteses restantes, as regras, receberiam um tratamento diverso (OLIVEIRA, 2012, p. 342-343) Da leitura do artigo supramencionado, merece destaque as lições de Eugênio Pacelli de Oliveira (2012, p. 342-343): [...] na ordem constitucional brasileira não existem direitos absolutos, que permeiam o seu exercício a qualquer tempo e sob quaisquer circunstâncias. E tal ocorre porque a tutela normativa de qualquer bem ou valor é sempre abstrata. No plano da realidade concreta, surgirão, inevitavelmente, situações em que dois ou mais titulares do mesmo direito entrem em confronto, razão pela qual a lei estará autorizada a regulamentar soluções especificas para cada conflito4. Desse modo, somente no caso da quebra de sigilo das comunicações telefônicas é que a Carta Magna inseriu uma exceção ao direito à intimidade, permitindo o uso dessas informações no processo penal. Entende Tourinho Filho (2011, p. 259) que ao fazer tal exceção, pretendeu o legislador constituinte equilibrar os interesses do Estado e o direito à privacidade. Ademais, para esse autor o legislador constituinte, ao dividir o inciso XII, do art. 5º, da Constituição Federal, em duas partes, uma primeira ao mencionar o “sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas” e uma segunda, “dados e comunicações telefônicas”, pretendeu que o legislador ordinário ressalvasse tanto a quebra de sigilo telefônico (dados) quanto das comunicações telefônicas. Apesar das ponderações nesse sentido, considerando a polêmica que envolve o tema, essa relativização somente caberia às comunicações Na mesma acepção: “Não há, portanto, em princípio, que falar, entre nós, em direitos absolutos. Tanto outros direitos fundamentais como outros valores com sede constitucional podem limitálos” (MENDES; BRANCO, 2011, p. 319). 4 As informações colhidas... // 139 telefônicas e não aos demais casos, cujo sigilo é intangível pelo Estado. Nessa perspectiva, a exceção à regra constitucional verifica-se tão somente quanto ao sigilo das comunicações telefônicas, onde o legislador inseriu o princípio da reserva da jurisdição na parte final do art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal: “[...] ordem judicial, hipóteses ou forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual” (CAPEZ, 2006, p. 495)5. Nesse sentido as ponderações e críticas de Ada Pellegrini Grinover: A limitadíssima exceção constitucional ao sigilo, não abrangente de outras formas de correspondência e comunicações que não a telefônica e excluindo, da possibilidade de quebra, prova colhida para o processo não penal, tem sido duramente criticada pela doutrina. Por que possibilitar a interceptação de comunicações telefônicas, e não a da correspondência e de comunicações telegráficas e de dados? E qual a razão para excluir da quebra a prova necessária ao processo não-penal, dada a natureza dos direitos materiais controvertidos no denominado “processo civil”, o qual, no ordenamento brasileiro, está longe de restringir-se à tutela de meros interesses patrimoniais? (GRINOVER, 1997, p. 122). A referida norma constitucional classifica-se como de eficácia limitada, sendo uma norma não autoaplicável, demandando de uma lei complementar ou ordinária para gerar seus efeitos principais. Com o fito de tornar aplicável a quebra de sigilo das comunicações telefônicas, regulamentou-se o disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal com a Lei nº 9.296/96, na qual o legislador ordinário elencou as hipóteses nas quais seriam cabíveis as interceptações telefônicas, bem ainda, dispôs acerca das diretrizes, requisitos e procedimento a ser adotado. Não se pode perder de vista que a mencionada lei abarca, também, a regulamentação das interceptações informáticas e telemáticas. Ademais, a Lei nº 9.296/95 criminaliza a interceptação telefônica, telemática e informática que não atendam às disposições legais, bem como a quebra do segredo de justiça (art. 10). Assim, com a entrada em vigor da Lei nº 9.296/96 foram somados requisitos aos já dados constitucionalmente: a) haver indícios razoáveis da autoria ou participação na infração penal; b) a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis; c) fato investigado ser punível com reclusão (art. 2º). Importante mencionar que a decisão deverá ser fundamentada, como prevê o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal e o art. 5º da Lei nº 9.296/96 (primeira parte), e a interceptação terá prazo máximo de 15 (quinze) dias, renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova (art. 5º, in fine, da Lei nº 9.296/96). 5 Em sentido contrário, entende Nucci não haver direito ou garantia constitucional de caráter absoluto, sendo um dos motivos apresentados, o de que a norma constitucional não pode existir para proteger delinquentes, não havendo motivo para intepretação restritiva no caso do art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal (NUCCI, 2010, p. 793). 140 // Problemas da jurisdição contemporânea... A medida cautelar de interceptação telefônica ocorrerá em autos apartados, apensados ao inquérito policial, ou processo judicial, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições, dada a natureza da medida (art. 8º da Lei nº 9.296/96). Considerando que o legislador ordinário teve o cuidado de regulamentar uma série de requisitos, bem como procedimentos, somados à ordem da autoridade judiciária, as provas obtidas com a não observância dos requisitos constitucionais, bem como os trazidos pela Lei nº 9.296/96 serão tidas como obtidas por meio ilícito, cuja consequência será sua inadmissibilidade no processo6. 8.3 O DIREITO FUNDAMENTAL DE INADMISSIBILIDADE DE PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILÍCITO O Código de Processo Penal é regido por uma série de princípios, os quais representam os postulados fundamentais da política processual penal de um Estado. Dessa forma, o Direito Processual Penal possui estreito vínculo com o Direito Constitucional (TOURINHO FILHO, 2010, p. 57). Nessa perspectiva, a doutrina de Eugênio Pacelli de Oliveira (2013, p. 35-36): Para além da mera explicação dos direitos fundamentais como a verdadeira e legítima fonte de direitos e obrigações, públicas e privadas, que deve orientar a solução dos conflitos sociais, individuais e coletivos, a atual ordem constitucional não deixa margem a dúvidas quanto à necessidade de se vincular a aplicação do Direito e, assim, do Direito Processual Penal, à tutela e à realização dos direitos humanos, postos como fundamentais na ordenação constitucional (arts. 5º, 6º e 7º, CF). [...] Em relação ao processo penal enquanto sistema jurídico de aplicação do Direito Penal, estruturando em sólidas bases constitucionais, pode-se adiantar a existências de alguns princípios absolutamente afastáveis, e, por isso, fundamentais, destinados a cumprir a árdua missão de proteção e tutela dos direitos individuais. Dentre os princípios que regem o Código de Processo Penal, há o princípio da vedação das provas obtidas ilícitas, cujo fundamento advém do art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal: “[...] são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”7. Vicente Greco Filho traça três tipos de ilicitude, quando se fala em provas no processo. A primeira, quando o meio não possui previsão legal e não condiz com os princípios processuais. Uma segunda hipótese, quando a produção da prova é imoral ou impossível, sendo, assim, ilícita. A terceira e última é quando a ilicitude é decorrente da obtenção do meio de prova (GRECO FILHO, 2012, p. 211). 7“ No âmbito do processo penal a primeira decisão do STF que reconheceu a inadmissibilidade da prova ilícita deu-se em dezembro de 1986 (RTJ 122/47). Tratava-se também de um caso de interceptação telefônica clandestina. Determinou-se o trancamento do inquérito policial, fundado nessa prova: "Os meios de prova ilícitos não podem servir de sustentação ao inquérito ou à ação penal” (GOMES, 2003, p. 474). 6 As informações colhidas... // 141 Tal direito fundamental visa impedir que o Estado adote, como elemento de convicção na prestação jurisdicional, de elementos probatórios obtidos por meios ilícitos (BONFIM, 2012, p. 89). Ao tratarem desse tema, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2011, p. 362) fazem exposição do princípio da liberdade probatória, o qual não seria absoluto, pois na busca pela verdade real, considerando a amplitude probatória, deve-se aproveitar essa gama, mas com respeito à Constituição Federal traz que um óbice: as provas obtidas por meio ilícito. Ademais, na lógica de um Estado Democrático de Direito, prevalecem os Direitos Fundamentais no campo do processo penal, impedindo, assim, juízos em favor da coletividade (ROSA, 2014, p. 60-61). O princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas, para Pacelli, em uma ordem jurídica cujos fundamentos são o reconhecimento, a afirmação e a proteção dos Direitos Fundamentais (principalmente a proteção do direito à intimidade, à privacidade, à imagem, à inviolabilidade do domicílio), vem para proteger os jurisdicionados das arbitrariedades do Poder Público – supervisionar a atividade estatal persecutória, a fim de coibir práticas probatórias ilegais. Destarte, tal princípio tutela tanto os direitos e garantia individuais, quanto a qualidade do material probatório do processo (OLIVEIRA, 2012, p. 52, 335). Pondera Vicente Greco Filho ter o legislador constituinte optado por uma postura rigorosa, ou seja, pela ilicitude da origem ou da obtenção da prova (GRECO, 2012, p. 211), isso porque, ao atestar a não admissibilidade das provas obtidas por meio ilícito, visa-se conter o arbítrio do Estado, resguardando as garantias constitucionais (TÁVORA; ALENCAR, 2011, p. 362). O doutrinador Mirabete faz uma distinção entre provas ilícitas e ilegítimas8. As provas ilícitas são as que afrontam norma de direito material, tanto no meio quanto no modo de obtenção, já as provas ilegítimas contrariam norma de direito processual, no que diz respeito à produção e introdução da prova no processo. Apesar de demonstrar tal diferença, conclui o autor que a Constituição Federal de 1988 não admite no processo as provas ilícitas nem as ilegítimas (MIRABETE, 1998, p. 260), pois apesar da classificação doutrinária, não há na Constituição Federal nenhuma diferenciação entre provas ilícitas e ilegítimas. No mesmo sentido, salienta Tourinho Filho que, apesar de o texto constitucional não fazer distinção entre a violação de direito material e processual, ambos seriam abrangidos, pois se trata de respeito tanto à dignidade humana – o legislador colocou as garantias individuais como um No mesmo sentido Mougenot: “São chamadas provas ilícitas aquelas cuja obtenção viola princípios constitucionais ou preceitos legais, de natureza material. […] Por outro lado, a prova será ilegítima se sua obtenção infringir normal processual dizendo respeito à própria produção da prova (BONFIM, 2012, p. 364). Também: TÁVORA; ALENCAR, 2011, p. 363; LOPES Jr., 2013, p. 591. 8 142 // Problemas da jurisdição contemporânea... limite à eficácia da persecução penal – quanto à seriedade da Justiça e ao ordenamento jurídico (TOURINHO FILHO, 2011, p. 85-87)9. Insta salientar, conforme expõe Edilson Mougenot Bonfim (2012, p. 89)10, que o postulado acerca da inadmissibilidade das provas ilícitas no processo ganha uma exceção, quando se trata da utilização dessas provas ao favor do réu, uma das facetas do princípio da proporcionalidade. Isso porque, a aplicação do princípio da proporcionalidade, no devido processo legal, não se pode dar em desfavor do acusado, mesmo que em nome da coletividade11. Considere-se que se houver motivação deficiente na decisão judicial, se o magistrado for incompetente para apreciação da medida, ocorrer violação aos requisitos legais imprescindíveis para a deflagração da interceptação telefônica, ou ainda violação à Direito Fundamental e à produção de prova, tais casos tratam de vícios processuais (exceto se não houver ordem judicial) que acarretam a nulidade da prova e não sua ilicitude (ROSA, 2014, p. 364). De tal modo, as provas ilícitas seriam aquelas que não correspondem aos ditames constitucionais, por exemplo, informações colhidas criminosamente por intermédio de interceptação das comunicações telefônicas sem ordem judicial. Já as provas nulas são àquelas em que ausente alguma formalidade essencial para validade do ato. A título de exemplo, seriam as informações colhidas em interceptações de comunicações, autorizadas previamente por magistrado, mas sem a observância dos arts. 2º e 5º da Lei nº 9.296/96. Assim, apesar do respeito ao princípio da reserva da jurisdição, os artigos 93, inciso IX, da Constituição Federal, e 564, inciso IV, do Código de Processo Penal inviabilizariam a apreciação de tal prova quando da resolução da lide. Importante tal distinção pois as consequências das provas ilícitas e das provas nulas são diversas, aquelas serão desentranhadas dos autos e 9 No mesmo sentido NICOLITT, André Luiz. Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 62. 10 Registre-se que, a doutrina ao tratar das provas obtidas por meio ilícito, tanto de direito material como processual, reconhece inadmissibilidade constitucional – e processual penal –, havendo uma exceção quando há um confronto de bens jurídicos garantidos constitucionalmente. Para Nicolitt a exceção ocorre quando a prova colhida ou produzida com violação à regra for a única capaz de absolver o réu, incidindo no caso o princípio da dignidade humana. Por sua vez, Tourinho Filho amplia a exceção, cabendo quando a prova beneficiar a defesa, pois é direito fundamental a resguardar o réu. Já Mirabete, abarca, também, o fato de que se a prova obtida por meio ilícito, produzida pelo interessado, deve ser admitida pois se trataria de legítima defesa, logo, excluiria o crime. Ademais, leciona Tourinho Filho que somente a legislação brasileira traz de modo absoluto e peremptório a inadmissibilidade de provas obtidas por ilícito no processo. 11 “Para operacionalizar o devido processo legal substancial se recorre ao princípio da proporcionalidade (razoabilidade), o qual deve sempre ser aquilatado em face da ampliação das esferas individuais da vida, propriedade e liberdade, ou seja, não se pode invocar a proporcionalidade contra o sujeito em nome do coletivo, das intervenções desnecessárias e/ou excessivas. No processo penal, diante do princípio da legalidade, a aplicação deve ser favorável ao acusado e jamais em nome da coletividade, especialmente em matéria probatória e de restrição de direitos fundamentais” (ROSA, 2014, p. 60-61). As informações colhidas... // 143 inutilizadas e estas permanecerão nos autos, mas não poderão ser utilizadas para a formação da convicção do magistrado. A Lei nº 11.690/08 deu nova redação ao art. 157 do Código de Processo Penal, abarcando não somente o ditame constitucional acerca das provas obtidas por meio ilícito, como também, as provas ilícitas por derivação (art. 157, §1º): Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. 8.4 A PROTEÇÃO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE PERANTE O PROCESSO VIRTUAL (PROJUDI) Sabe-se que a prova colhida em decorrência de uma outra prova, anteriormente obtida por meio ilícito, é considerada ilícita por derivação, aplicando-se no caso a “[...] teoria dos frutos da árvore envenenada” que, segundo Tourinho Filho (2011, p. 264), foi desenvolvida nos Tribunais Federais dos Estados Unidos desde 1914 e, a partir de 1961, em todos os Tribunais por imperativo constitucional. Ensina Pacelli (2012, p. 52) que a teoria dos frutos da árvore envenenada, incorporada pela doutrina e jurisprudência nacionais, possui ressalvas explícitas, como por exemplo a teoria da descoberta inevitável (serendipidade) e da fonte independente, com o fito de justificar hipóteses de não contaminação. As provas obtidas por meios ilícitos, bem como as ilícitas por derivação deverão ser desentranhadas do processo, a fim de se evitar que os efeitos causados por tais provas se prolonguem, pois, ainda que legalmente desconsideradas, podem acabam por influenciar subjetivamente na formação do convencimento do magistrado (TÁVORA; ALENCAR, 2011, p. 363). Contudo, no art. 157 do Código de Processo Penal, não há previsão de como deverá ser procedido o desentranhamento, mas tão somente prevê que uma vez preclusa a decisão de desentranhamento da prova obtida por meio ilícito, ocorrerá sua inutilização, podendo as partes acompanharem o incidente12. O Código de Normas da Corregedoria Geral de Justiça do Paraná (CN-CGJ), prevê, na Seção 03 (Dos Processos), o desentranhamento de folhas, em autos físicos. Institui o item 2.3.7: “Desentranhada dos autos alguma de suas peças, inclusive mandado, em seu lugar será colocada uma Defendem doutrinadores que uma vez desentranhadas, as provas serão destruídas, sendo que as partes poderão acompanhar tal a destruição. Nessa perspectiva: BONFIM, 2012, p. 364. 12 144 // Problemas da jurisdição contemporânea... folha em branco na qual serão certificados o fato e o número das folhas antes ocupadas, evitando-se a renumeração”. Em seguida, o item 2.3.8: “As peças desentranhadas dos autos, enquanto não entregues ao interessado, serão guardadas em local adequado. Nelas a Escrivania certificará, em lugar visível e sem prejudicar a leitura do seu conteúdo, o número e a natureza do processo de que foram retiradas”. Partindo-se da hipótese do desentranhamento de uma prova obtida por meio ilícito, o procedimento dado pelo Código de Normas do Tribunal de Justiça do Paraná é mais cauteloso, dado que ao empregar o termo “inutilização”, o artigo 157, § 3o, do Código de Processo Penal estaria determinando, inclusive, a destruição de provas de um crime que originou a ilicitude da prova desentranhada, liquidando a materialidade de um possível crime cometido para sua obtenção. Nessa perspectiva, se o magistrado determinasse a inutilização da prova obtida por meio de uma interceptação telefônica clandestina, estaria ele, em tese, destruindo a materialidade do crime previsto no artigo 10, da Lei nº 9.296/96. O ideal, seria a desentranhamento das provas colhidas por meio ilícito e envio das mesmas para o Ministério Público, para verificar se há a necessidade de se iniciar a persecutio criminis ao responsável pela infração penal. Imperioso salientar que com a digitalização dos processos no Estado do Paraná, iniciada em 2013, conforme a Lei Federal nº 11.419/06, não há, ainda, previsão normativa acerca do procedimento de “desentranhamento” no processo virtual. Porém o magistrado dispõe de comando no sistema que permite o bloqueio do documento, impedindo o acesso às informações colacionadas no decorrer do processo. Em se tratando de processos digitais, verifica-se que apesar de as informações não ficarem acessíveis, a qualquer momento pode ser feito o desbloqueio pelo magistrado e ele ter acesso às informações írritas. Assim, não há efetivo desentranhamento e inutilização das provas nos autos, mas apenas um bloqueio - reversível - das informações censuradas pelo magistrado. Independente da maneira como ocorrerá a retirada da prova dos autos, ou se ela deve ou não ser destruída, nasce a questão do juiz que decidiu pelo seu desentranhamento, cujo convencimento preconcebido, possivelmente, foi afetado pelo contato com a prova obtida por meio ilícito. Nesse sentido, o §4º do art. 157, do Código de Processo Penal, restou vetado, mas cuja redação era “O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”. Defende Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2011, p. 363) que o fato de o magistrado ter tido acesso à prova obtida por meio ilegal, e, a despeito da determinação do seu desentranhamento nos autos esta influenciar no seu convencimento, deve o juiz declarar-se suspeito ao verificar que o contato com a prova interferiu em sua imparcialidade como julgador. Essa seria a saída mais nobre para se garantir a imparcialidade do magistrado em autos físicos. As informações colhidas... // 145 Contudo, no Estado do Paraná, quando se tratar de autos virtuais do Projudi, não há uma garantia de que o magistrado não mais acessará as provas contaminadas de ilicitude, pois não ocorreria a retirada efetiva de suas informações do sistema de informática. Assim, o jurisdicionado ficaria submetido, tão somente, à integridade moral do magistrado, pois não estaria ele completamente impedido de ter acesso às informações violadoras de eventuais direitos à personalidade, especialmente quando se trata de interceptação telefônica. 8.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pode ser visto no decorrer do presente trabalho, o artigo 5o, inciso XII, da Constituição Federal, também regulamenta um dos direitos à personalidade, que é a inviolabilidade das comunicações, sendo que existe uma única exceção à regra que diz respeito às interceptações telefônicas para fins de investigação criminal. Tratou-se, em seguida, dos procedimentos previstos em lei quando há a constatação, no processo penal, de juntada de provas obtidas por meios ilícitos, porquanto o artigo o 5o, inciso LVI, da Constituição Federal as inadmite no processo e o artigo 157, § 3o, do Código de Processo Penal, determina o seu desentranhamento e inutilização. Finalmente, comentou-se sobre a implantação da Lei no 11.419/06 – processo virtual – e sua regularização nos processos judiciais no Estado do Paraná, explicando que o magistrado dispõe de comando no sistema do Projudi que permite o bloqueio do documento, impedindo o acesso às informações colacionadas no decorrer do processo e, na prática processual penal, seria essa a providência analógica ao desentranhamento e inutilização de provas obtidas por meios ilícitos. Contudo, existindo a possibilidade de “desbloqueio” das informações pelo magistrado, não restam garantias aos jurisdicionado de que as provas obtidas por meios ilícitos - e assim declaradas pelo juízo -, não serão mais acessadas e avaliadas. Enfim, se as provas declaradas írritas no processo penal apenas serão bloqueadas no Projudi e não inutilizadas, surge a possibilidade de violação à intimidade dos jurisdicionalizados quando vítimas de colheita de informações por interceptação telefônica criminosa. Como essas, segundo o direito à personalidade, não devem ficar acessíveis às autoridades estatais, a não inutilização desse tipo de prova perpetuaria do inadmissível controle das pessoas pelo Estado, a despeito dos dispositivos constitucionais. 146 // Problemas da jurisdição contemporânea... 8.6 REFERÊNCIAS BARRETO, Maíra de Paula; GALDINO, Valéria Silva. Os princípios gerais de direito de família e os direitos da personalidade. In: Revista Jurídica Cesumar – Mestrado. Maringá, v. 7, n. 1, p. 277-308, jan/jun. 2007. BRASIL. Planalto. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 21 jan. 2015. BONFIM, Edilson, Mougenot. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2012. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação especial. São Paulo: Saraiva, 2006. COSTA RICA, San Jose. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.ht m>. Acesso em: 14 set. 2015. GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2012. GOMES, Luiz Flávio. Prova ilícita: direito à exclusão dos autos do processo. In: Revista dos Tribunais Online. vol. 809, p. 474, mar. 2003. MESQUITA, Rodrigo Octávio de Godoy Bueno Caldas. A proteção da privacidade nas comunicações eletrônicas reservadas no Brasil: análise crítica do regime das interceptações telefônicas (livro eletrônico). São Paulo: Ed. Do autor, 2013. MIRABETE, Julio Fabrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1998. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2012. ONU. Declaração dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em: 19 set. 2015. ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros editores, 2010. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. Salvador: JusPODIVM, 2011. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 1. São Paulo: Saraiva, 2011. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 3. São Paulo: Saraiva, 2011. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. = IX = CRIANÇA E ADOLESCENTE VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR: ESCUTA ESPECIAL, O MELHOR CAMINHO PARA EVITAR A REVITIMIZAÇÃO? Márcia Fátima da Silva Giacomelli* 9.1 INTRODUÇÃO É sabido que a violência está encravada em nosso país e mundialmente, causando grande preocupação, pois esta afeta não apenas o indivíduo de forma isolada ou grupos familiares, mas também a sociedade como um todo. A violência, de forma contrária ao princípio da dignidade humana, trazido na Constituição Federal de 1988, representa uma das maiores ameaças à humanidade, senão a maior delas. Contudo, quando se fala em violência, aquela que talvez mais choca, paralisa toda uma sociedade, é aquela que atinge o âmbito familiar, com maus tratos a crianças, adolescentes e idosos, abuso sexual intrafamiliar, além da própria violência conjugal. Essa atitude violenta não escolhe raça, cor, idade, ela atinge todas as classes sociais independente de nível sócio educativo e cultural. Nesta feita, o presente artigo, irá discorrer sobre o abuso sexual intrafamiliar, aquele cometida contra criança e adolescente dentro do seio familiar, tendo como abusador um membro da família (pai, padrasto, tio, irmão, avô). Tal ato violento, pode ser considerado um dos mais graves que pode ocorrer, pois além de violar o princípio da dignidade da pessoa humana, atinge a parte mais íntima do ser humano, a mais vulnerável, pois deixa a vítima acuada, amedrontada, envergonhada, e junto a todos esses sentimentos, muitas das vezes essa criança/adolescente é acometida pela síndrome do segredo. Essa síndrome se desenvolve porque a criança/adolescente se sente culpada pelo que aconteceu, e teme que em razão disso possa a vir ser punida. Assim, a tendência em casos como esses, é se calar ou até mesmo ocultar a verdade dos fatos. Dessa forma, quando do esclarecimento dos fatos, para que não se torne a entrevista dessas vítimas um enorme problema, com distorções dos fatos, mentiras e até mesmo uma possível falsa memória, que são “[...] * Juíza Leiga. Licenciatura em História pela UEM – Universidade Estadual de Maringá e Bacharel em Direito pela Unicesumar – Centro Universitário de Maringá. Especialista em Fundamentos da Educação, Neurociência e Direito Civil e Processo Civil. Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar – Centro Universitário de Maringá. Docente do curso de Graduação de Direito da Faculdade Alvorada em Maringá - PR. 148 // Problemas da jurisdição contemporânea... recordações que, na verdade, nunca ocorreram” (ÁVILA, 2013, p. 104), se exigirá do profissional que prestará o atendimento a essa criança uma maior sensibilidade, um conhecimento diferenciado para tratar com esse ser ainda tão frágil. Precisa acolher essa pessoa ainda em processo de desenvolvimento, transmitir confiabilidade, conforto, assim, procurando através da entrevista realizada alcançar a uma verdade mais aproximada possível dos fatos. Com o objetivo de extrair dessa vítima informações que possam vir ajudar no deslinde da demanda, da forma mais condizente e real dos fatos, sem trazer maiores prejuízos ao abusado e até mesmo do abusador, surgiu no Brasil um projeto denominado “Depoimento sem dano”, hoje conhecido como “Escuta especial” ou “Depoimento especial”. O presente projeto, existe, ou deveria existir, em todas as comarcas que atendem crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Ele traduz toda uma técnica de atendimento a essas vítimas, pois possui todo um aparato a fim de receber crianças e adolescentes abusados sexualmente, técnica essa, totalmente distinta daquelas utilizadas em depoimento comum, sem que figure vítimas vulneráveis. Dessa forma, esse artigo irá apresentar ao leitor como ocorre essa “Escuta especial”, quais são as recomendações da Resolução nº 33 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a polêmica existente entre o conselho federal de psicologia e o Poder Judiciário face a escuta especial, e o que ela visa em relação a vítima que sofreu abuso sexual intrafamiliar, bem como o suposto abusador. Irá tentar mostrar que existem formas para se entrevistar uma criança e adolescente, levando em consideração o que ela tem de mais importante, a sua dignidade enquanto pessoa humana, respeitando-a, defendendo-a e protegendo-a de mais um dano, pois o seu depoimento na via judicial, irá trazer à tona lembranças que já estão “esquecidas”, e se essas lembranças não forem trazidas de uma forma especial, com certeza levará essa criança/adolescente a vitimização secundária, o que pode ser considerado um dano talvez bem pior daquele já sofrido. 9.2 DO ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR Pouco mais de 30 anos o abuso sexual de crianças e adolescentes era um acontecimento raro, pouco se ouvia falar dessa agressão cometida, muitas vezes por pessoas muito próximas a ela, aquelas da sua relação familiar. No Brasil, o abuso sexual é considerado uma das formas mais violentas e preocupantes, ainda mais quando se trata de criança e adolescente. O abuso sexual do ponto de vista psicológico é segundo Alberto: Abuso sexual reflecte o uso (literalmente, o abuso) e o desrespeito pela intimidade e pela pessoa do outro. Quando o outro é uma Criança e adolescente... // 149 criança/adolescente, há que destacar o aproveitamento de uma situação de desigualdade óbvia de poder, de autoridade, de competência social e cognitiva, pois a criança/adolescente, pelo seu nível de desenvolvimento, não está em condições de perceber e dar o seu consentimento pleno numa interacção sexualizada. Mesmo quando essa criança/adolescente é capaz de afirmar seu consentimento, o abusador recorre ao estatuto de adulto e de autoridade para a conseguir “prender” nesta relação abusiva. Assim, consideramos abuso sexual qualquer experiência sexual forçada ou não, como a exibição de pornografia, até à relação sexual (genital, anal ou oral) [...] (ALBERTO, 2006, p. 438). Faiman acrescenta: Abuso sexual é todo relacionamento interpessoal no qual a sexualidade é veiculada sem o consentimento válido de uma das pessoas envolvidas. Quando se verifica a presença de violência física, o reconhecimento do abuso pode ser mais claro, pela objetividade dos fatos que indicam que o abusador fez uso de força para vencer a resistência imposta pela vítima (FAIMAN, 2011, p.112). Esse tipo de agressão pode ser cometida tanto na esfera intrafamiliar, como na extrafamiliar. Importante destacar que há diferença entre a violência sexual citada, sendo que o abuso sexual extrafamiliar é aquele cometido fora do lar, ou aquele que abusa, não faz parte da família, já o abuso sexual intrafamiliar é aquele cometido dentro do seio familiar, envolvendo o menor e parente próximo, muitas vezes pessoa do convívio diário. Assim, com o fito de discorrer a respeito da agressão cometida em crianças e adolescentes, nos limitaremos a discorrer no âmbito do abuso sexual intrafamiliar. Esse abuso sexual intrafamiliar, na grande maioria, “[...] não deixa marcas físicas na vítima e é perpetrado por pessoas diretamente ligadas à criança, que exerce algum poder sobre ela” (SANTOS apud DE ANTONI; KOLLER, 2010, p. 329). A violência sexual cometida em face da criança/adolescente é, segundo Azambuja “[...] responsável por sequelas que podem acompanhar a sua vida, com reflexos no campo físico, social e psíquico, justificando o envolvimento de profissionais de várias áreas na busca de alternativas capazes de minorar os danos” (AZAMBUJA, 2010, p. 211). No entanto, é preciso punir aquele que cometeu o ato sexual, todavia, para que isso acontece é preciso produzir a prova da violência sexual, que não obstante, é realizada através do depoimento pessoal do abusado, que deverá ser tomada de forma a não violar ainda mais os seus direitos. 9.3 DA ESCUTA ESPECIAL É sabido, que para que algo possa ser feito judicialmente em relação aos abusos sexuais cometidos contra criança/adolescente, é preciso que seja 150 // Problemas da jurisdição contemporânea... por ela rompido o silêncio, é necessário que queira falar, mas também, é de suma importância que alguém queira escutá-la, e mais do que isso, que queira protegê-la. Nesse instante, o momento que se dará a oportunidade dessa criança/adolescente de falar em juízo, se fará necessário que o Poder Judiciário zele pelo cuidado na coleta do depoimento de forma ética, onde a preocupação com o bem estar e a proteção da criança, devam estar sempre em primeiro lugar. Nesse contexto, é que se discorrerá, acerca da escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência onde deverá ser pautada pela Doutrina da Proteção Integral, no Princípio da Dignidade Humana, com o intuito de sempre proteger, cuidar, amparar a vítima. Já “[...] posteriormente, há uma preocupação com a qualidade da prova testemunhal, cuja validade pode vir a ficar comprometida devido à forma como um relato é obtido” (WELTER; LOURENÇO; ULLRICH STEIN; PINHO, apud HOLLYDAY; BRAINERD; REYNA; WELTER; FEIX, 2015, p.11). Por isso da necessidade de realizar a entrevista com técnica adequada, pois ela auxiliará na redução de danos, pois “[...] a entrevista cognitiva reduz chances de falsas memórias” (ÁVILA, 2013, p. 152). Ainda, com tais cuidados, será possível se aproximar ou até mesmo chegar aquele que de fato cometeu o abuso, sem que ocorra nenhuma, ou a mínima margem de injustiça. Contudo, para que esse processo de inquirição se concretize, não basta simplesmente inquirir, é necessário que se tenha todo um aparato para que esse testemunho infantil se concretize da forma mais verídica possível, pois além da veracidade, que não comprometerá o julgado, demonstrará que a técnica utilizada realmente foi de qualidade, de respeito e de comprometimento com a vítima que se encontra em situação de vulnerabilidade. Necessário fazer um parênteses, e deixar claro ao leitor, que a violência física, psicológica sofrida pela criança/adolescente quando vítima de abuso sexual, é prática quase impossível de calcular, pois pode essa agressão acontecer e nunca chegar ao conhecimento das autoridades em razão do preconceito criado em torno de contar o fato, da vergonha, do medo. Por isso, quando fatos sérios como esse são levados ao conhecimento do poder público devem ser tratados de forma única, com muito cuidado. Daí a necessidade da aplicação da técnica especial para se extrair o depoimento dessa vítima, pois além de muitas vezes a família querer esconder o ato cometido, surge outro dilema, o de encontrar quem possa testemunhar, tendo em vista que essas agressões não possuírem testemunhas, serem feitos na “surdina”, se serem cometidos na presença apenas da vítima e do agressor. E, além dessa forma oculta em que é cometido tamanho crime, a vítima se cala, em função de sentimento de medo, vergonha ou até mesmo Criança e adolescente... // 151 culpa, o que dificulta por vezes a colheita do seu testemunho e consequentemente chegar ao agressor. Para isso, a necessidade que a Justiça possua técnicas especiais para se aproximar dessa criança, com o intuito primordial de colher um depoimento que não lhe cause ainda mais sofrimento daquele já sofrido, pois, como pondera Luciane Potter: A criança ou adolescente que foi abusada sexualmente, poderá, se não for adequadamente atendida e entendida, experimentar outra violação, desta vez, praticada pelo sistema de justiça, acarretando o processo de vitimização secundária (POTTER, 2010, p. 18). Com base, nessas circunstâncias há de ser respeitado no momento da inquirição os seus direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal Brasileira, bem como respeitar o seu direito de personalidade. Assim esse relato colhido da criança/adolescente deve ser obtido, “cercada de cuidados, obedecendo a critérios rigorosos do ponto de vista ético, técnico e científico” (WELTER; LOURENÇO; ULLRICH STEIN & PINHO, apud HOLLYDAY, BRAINERD & REYNA, 2008 apud WELTER & FEIX, 2015, p.11). E assim deve ser, porque o abuso sexual de crianças e adolescentes é considerado no Brasil um dos mais graves atos de violência que pode uma criança sofrer, pois é cometido por aqueles de quem se espera cuidados e proteção, e não o faz, deixando marcas psicológicas inestimáveis, atingindo e vítima na sua forma mais intima, o seu lado mais vulnerável. Diante de tais circunstâncias, é de primordial maneira que se deve encontrar a melhor forma de se aproximar dessa criança/adolescente, para que se possa chegar a certeza de quem realmente foi o agressor, além da tentativa de evitar que se cometa injustiças, e ocorrer uma agressão ainda pior daquela que a criança já sofreu quando abusada e até mesmo de levar um inocente a condenação. Embora o Estado tem o compromisso de com o cidadão de se fazer representar, através de punir o culpado por um crime, também tem além do compromisso, o dever de proteger aquele que é vítima, principalmente quando se está falando de crianças e adolescentes. Nesse raciocínio, é preciso não esquecer que a criança/adolescente é amparado pelo princípio do interesse superior da criança, que encontra e tem como seu fundamento no reconhecimento da peculiar condição de pessoa humana em desenvolvimento atribuída á infância e juventude, pois crianças e adolescentes são pessoas que estão ainda em desenvolvimento, ou seja, seu personalidade ainda não se desenvolveu por completo, estão em processo de formação, no aspecto físico, psíquico, intelectual , moral e social (AZAMBUJA, 2008, p. 216). Ainda, destaca Azambuja: Os atributos da personalidade infanto-juvenil têm conteúdo distinto dos da personalidade dos adultos, trazem uma carga maior de vulnerabilidade, autorizando a quebra do princípio da igualdade; enquanto os primeiros estão 152 // Problemas da jurisdição contemporânea... em fase de formação e desenvolvimento de suas potencialidades humanas, os segundos estão na plenitude de suas forças (MACHADO, 2003, p. 109). Desta forma, não há como não aceitar que tanto criança como adolescente devem ser reconhecidos como sujeitos de direitos, e detentores da especial proteção do Estado e de todos, em virtude de seu grau de desenvolvimento. Neste contexto, surge, através de um trabalho acadêmico apresentado por Veleda Dobke1, um projeto com o intuito de dirimir os danos sofridos por uma criança/adolescente de abuso sexual. Assim, em 2003 surgiu o “Projeto Depoimento Sem Dano”, implantando no Estado do Rio Grande do Sul, no 2º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre (POTTER, 2010, p. 29). Esse projeto, que também tem sido realizado depoimentos da mesma forma pelo Centro de Proteção à Criança (CPC), tem como objetivo primordial coletar o depoimento da vítima em salas especiais, tais salas são projetadas para que a criança se sinta à vontade e, normalmente, equipadas com espelho especial, microfone e câmera de vídeo, mas sem brinquedos ou outras distrações (GOODMAN, 2008, p. 23). Os depoimentos coletados segundo Marisa Monteiro Borges, Conselheira Presidente do Conselho Federal de Psicologia: [...] são assistidos na sala de audiências por transmissão de vídeo, pelo juiz, pelo promotor de Justiça e pelo acusado e seus defensor, que dirigem perguntas por meio de uma escuta a um psicólogo que está conversando com a vítima em uma sala separada e que faz questionamento à vítima. Tal depoimento é gravado e o DVD anexado aos autos do processo” (BORGES, 2015, p. 2 e 3). O objetivo principal do Projeto Depoimento Sem Dano, segundo o Juiz José Antônio Daltoé Cezar, o idealizador desse projeto é: A busca de redução de danos às vítimas que necessitam ser inquiridas em juízo, procurando adequar os princípios do processo penal, em especial o contraditório e ampla defesa, com os princípios constitucionais da dignidade humana, e prioridade absoluta ao atendimento dos direitos de crianças e adolescentes (CEZAR, 2007, p.112). No entanto, o referido projeto, tem gerado grande polêmica entre os profissionais do Direito e da Psicologia, tendo em vista que o projeto conta com a participação de assistentes sociais e psicólogos em um trabalho conjunto, onde estes estão capacitados a realizarem as entrevistas junto as crianças vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Segundo o Conselho Federal de Psicologia, o trabalho abordado na escuta especial de crianças (antiga terminologia Depoimento Sem Dano) tem Trabalho monográfico intitulado “Abuso Sexual: a inquirição das crianças – uma abordagem interdisciplinar”. 1 Criança e adolescente... // 153 uma perspectiva do profissional de psicologia diferente da do judiciário, que por sua vez, tem através da oitiva a “[...] busca da verdade material, colhendo todas as provas de seu interesse, buscando, quase que prioritariamente, a efetivação da prestação jurisdicional que se efetiva com a punição do infrator” (BORGES, 2015, p. 3). Assim, prega o Conselho Federal de Psicologia, que o trabalho que o judiciário quer e espera dos profissionais da psicologia, diverge daquele que os psicólogos procuram realizar, eis que “[...] o compromisso de psicólogos, é de resguardar a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, compromissos lastreados pela afirmação da vida e sua potencialização em que as pessoas precisam de cuidados” (BORGES, 2015, p. 4). Ainda: O Depoimento Especial Sem Dano ou a Escuta Especial não corresponde a uma proposta que tenha como foco a proteção integral, uma vez que a inquirição, como testemunho com vistas ao processo penal do abusador têm implicações que precisam ser consideradas, pois atribui a crianças/adolescentes a responsabilidade pela produção da prova, já que são eles que devem, em última análise, dar conta da formalidade processual, tendo em vista a punição do suposto abusador. Nesse aspecto pode representar uma nova violência do ponto de vista emocional o que contraria seu direito à proteção integral (BORGES, 2015, p. 10). No entanto, mesmo havendo várias críticas a respeito da realização da escuta especial, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a Recomendação de nº 33 de 23/11/2010, onde “Recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais”. Nessa Recomendação de nº 33, o CNJ, determina que sejam aplicadas formas diferenciadas das oitivas comuns no judiciário a oitiva das vítimas de abuso sexual infantil, a fim de evitar a vitimização secundária dessa criança/adolescentes, são elas: I – a implantação de sistema de depoimento vídeogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática; a) os sistemas de vídeogravação deverão preferencialmente ser assegurados com a instalação de equipamentos eletrônicos, tela de imagem, painel remoto de controle, mesa de gravação em CD e DVD para registro de áudio e imagem, cabeamento, controle manual para zoom, ar-condicionado para manutenção dos equipamentos eletrônicos e apoio técnico qualificado para uso dos equipamentos tecnológicos instalados nas salas de audiência e de depoimento especial; b) o ambiente deverá ser adequado ao depoimento da criança e do adolescente assegurando-lhes segurança, privacidade, conforto e condições de acolhimento. 154 // Problemas da jurisdição contemporânea... II – os participantes de escuta judicial deverão ser especificamente capacitados para o emprego da técnica do depoimento especial, usando os princípios básicos da entrevista cognitiva. III – o acolhimento deve contemplar o esclarecimento à criança ou adolescente a respeito do motivo e efeito de sua participação no depoimento especial, com ênfase à sua condição de sujeito em desenvolvimento e do consequente direito de proteção, preferencialmente com o emprego de cartilha previamente preparada para esta finalidade. IV – os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar aptos a promover o apoio, orientação e encaminhamento de assistência à saúde física e emocional da vítima ou testemunha e seus familiares, quando necessários, durante e após o procedimento judicial. V – devem ser tomadas medidas de controle de tramitação processual que promovam a garantia do princípio da atualidade, garantindo a diminuição do tempo entre o conhecimento do fato investigado e a audiência de depoimento especial. Além dessas orientações, segundo Cézar (2014, p. 262) estão mais algumas: I – Registro rigoroso da entrevista. II – Documentação visual dos gestos e das expressões faciais que acompanham os enunciados verbais da criança. III – Registro visual e verbal que pode ser revisto muito tempo depois por outros profissionais. IV – Redução do número de entrevistas por parte dos outros profissionais. V – Forma de capacitação contínua para os entrevistadores. VI – Ajuda efetiva para conseguir uma aceitação do acontecido por parte do ofensor. VII – Instrumento de ajuda ao familiar não ofensor ou ao ofensor, facilitando a compreensão do que aconteceu e do que não aconteceu. VIII – Ausência da criança em discussões porventura ocorrentes na sala de audiências. IX – Prevenção do encontro entre a criança e o potencial abusador nos corredores do foro. X – Prevenção de perguntas inapropriadas à criança. Nessa esteira, verifica-se que o Brasil, abraça a causa na oitiva especial de crianças e adolescentes abusados sexualmente, com o intuito de dirimir os danos sofridos, evitando, contudo, a revitimização da criança pelo uso de técnicas especiais. No entanto, o Brasil conta com mais de duas mil e setecentas comarcas (unidades judiciárias) instaladas e em operação, os juízes são, em regra, generalistas. Tratam de todas as matérias – cível, penal, previdenciária, fiscal, família, infância e juventude. Todavia, quando se trata de depoimento especial, o Brasil não supera o número de cem comarcas com essa técnica especial, onde mais da metade se encontra no estado do Rio Grande do Sul (CÉZAR, 2014, p. 263). Criança e adolescente... // 155 Assim, o que se espera, na realização do Depoimento Especial, regulamentado pela resolução nº 33 do CNJ, é que todos os estados sigam a orientação dada, a fim de dirimir a vitimização secundária, garantindo os direitos da criança e dos adolescentes, aqueles estabelecidos no artigo 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e ratificada pelo Brasil, sendo incorporada ao seu direito interno através do Decreto Legislativo nº 28 (CÉZAR, 2008, p. 7): 1. Os estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhes respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com sua idade e maturidade. 2. Para esse fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional. Grifo nosso Assim, é possível verificar que a criança tem o direito de participar dos processos que lhe digam respeito, no entanto com o devido cuidado a fim de não lhe causar danos ainda maiores. Esse é o papel do julgador quando se fala em escuta especial, é proteger a criança e o adolescente da vitimização secundária, pois não há lembranças em caso de abuso que não possam causar novos danos, pois somente o fato de relembrar todo o processo de violência que sofreu com o abuso sexual intrafamiliar já é o próprio dano vivo na memória, no entanto, existe a possibilidade de minimizar. Razão que se faz de todo um aparato para realizar a oitiva dessa criança/adolescente, pois se o objetivo for apenas o de produzir provas e elevar os índices de condenação, isso “[...] não assegura a credibilidade pretendida, além de expor a vítima a nova forma de violência, ao permitir reviver situação traumática, reforçando o dano psíquico” (AZAMBUJA, 2008, p. 226). Dessa forma, evitando-se que ocorra a vitimização secundária, estará resguardando os direitos de personalidade dessa vítima, protegendo sua honra, sua própria imagem a exposições desnecessárias e abusivas, pois como sabiamente discorre Luciane Potter “[...] o que a vítima deseja é respeito aos seus direitos, dignidade e solidariedade, além de conduta ética dos agentes e instâncias de controle social” (POTTER, 2007, p. 13). No entanto, para que de fato ocorra o que se traduz da Resolução 33/2010 do CNJ, não basta a mudança do método de inquirição, é necessário que ocorra também a mudança daquele operador do direito, bem como a equipe interdisciplinar que permeia todo o aparato de mudança. Bitencourt salienta ainda, que “[...] não adianta mudar os métodos de investigação processual se não for mudada a postura inquisitorial das pessoas que aplicam o método” (BITENCOURT, 2008, p. 18). 156 // Problemas da jurisdição contemporânea... Com razão, pois intervenções inadequadas, acabam com certeza com insensíveis prejuízos ao desenvolvimento da criança (AZAMBUJA, 2008, p. 226). Potter acrescenta: As diversas intervenções podem produzir um dano traumatismo maior nos relacionamentos familiares e nas crianças individualmente do que o abuso original. Além de produzir a revitimização, a repetição de entrevistas, como demonstram as pesquisas científicas, poderá fragilizar a confiabilidade da declaração da vítimas como prova no processo criminal (PISA, STEIN, 2007, p. 465). O modelo apresentado como orientação do CNJ (conselho Nacional de Justiça), como já salientado anteriormente, é para que se tenha possibilidade de êxito na inquirição de crianças e de adolescentes perante o sistema de justiça, sendo assim, operadores do direito e serviços auxiliares, bem como psicólogos, assistentes sociais, educadores, de acordo com Cézar: [...] estão participando de uma mesma atividade, com o mesmo fim, é indispensável que todos dominem conteúdos mínimos sobre todas as áreas de conhecimento que estão nela envolvidas. É indispensável que juízes, promotores de justiça e advogados que participam dessas atividades tenham conhecimentos mínimos acerca das peculiaridades que envolvem as situações de abuso e de exploração sexual (CÉZAR, 2014, p. 265). Ainda: Enfim, o que se busca com a capacitação de todos os agentes que trabalham com crianças e adolescentes vítimas de violência é que tenham eles um olhar coletivo sobre cada situação a ser avaliada, mantida a autonomia técnica de cada um, que é própria de cada saber. Dessa forma, as ações na busca de soluções serão mais perceptíveis e concretas. Nenhuma esfera de conhecimento atenderá, individualmente, às necessidades do atendimento integral a crianças e a adolescentes (CÉZAR, 2014, p. 265). Assim, todos devem estar envolvidos nessa tarefa, a fim de obter uma oitiva de forma não revitimizadora, e de todas as formas possíveis tentar da maneira mais adequada não ferir ainda mais os direitos dessas crianças/adolescentes, garantindo, contudo, aqueles estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Não existe, depoimento que não cause “dano”, pois falar não é um ato sem consequências, no entanto, é possível evitar que as crianças e adolescentes, através da escuta especial, que esse dano se torne o mínimo possível. Criança e adolescente... // 157 9.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a leitura do trabalho em comento, verifica-se que há e muito a preocupação com as vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Tanto, foi possível observar que se mostrou que há profissionais não apenas da área jurídica, como também de profissionais da saúde engajados em um único fim, o de minimizar a revitimização das vítimas de abuso sexual, em especial, aquelas mais vulneráveis, no caso, as crianças e adolescentes. O país vem através de uma técnica especial, com o propósito de diminuir os danos que essas vítimas podem vir a passar, ao necessitar passar pelo sistema judiciário como testemunha do fato, utilizando-se da gravação em vídeo, do depoimento judicial, realizado em uma sala especial, com todo aparato para realizar a oitiva dessa vítima. Além de todas essas técnicas, também a toda uma equipe interdisciplinar (juiz, membro do Ministério Público, psicólogos, assistentes sociais) a fim de tomar o depoimento com todo o cuidado para evitar um dano ainda maior daquele sofrido na vitimização primária. Assim, o intuito do presente trabalho é mostrar que existe forma para que seja tomado o depoimento de vítimas de abuso sexual, com o fito de protege-la, evitando ou ao menos minimizando a ocorrência da vitimização secundária, preservando-a de intervenções desnecessárias, inadequadas e garantindo seus direitos. Procurou-se ainda mostrar que a “Escuta Especial”, é um mecanismo de controle para resguardar os direitos da vítima, dando maior efetividade aos direitos fundamentais dos sujeitos no curso do processo judicial. Também, as formas que se utilizam para conseguir subtrair o depoimento, não tem o objetivo apenas de condenar o abusador, atingir metas de condenação, pelo contrário, tem o escopo de proteger o próprio acusado de acusações falsas, pois se a acusação imputada a ele for provado que não era, o levará a absolvição. No entanto, a técnica utilizada, que ainda não foi alcançada em todo país, apesar da recomendação n. 33 do CNJ, em razão de motivos que muitas vezes fogem ao alcance do próprio judiciário, como situação econômica, por exemplo, podem não ser o método mais eficaz para abrandar a violência sofrida, mas busca soluções de redução de danos, proteção e o interesse superior de tutela das crianças e adolescentes vítimas e testemunhas. Dessa forma, é necessário ressaltar que apesar das falhas que possam ocorrer na fase de inquirição, o que se deve sempre prevalecer é o princípio superior de tutela e o melhor interesse da criança/adolescente. Todavia, não basta apenas aplicação de um novo método, como já mencionado, pois este não significa simplesmente uma nova técnica de investigação, mas sim, essa nova técnica, deve significar um novo momento, para gerar uma cultura ética que visa tutelar processualmente, e mais do que isso, visa proteger a vítima vulnerável, ser em desenvolvimento, levando em consideração as suas diferenças. 158 // Problemas da jurisdição contemporânea... Assim, é possível reconhecer que a Escuta Especial é uma forma de redução de danos sim, e que a criança deve ser protegida e resguardada de qualquer desconforto ou embate, devendo sempre procurar manter uma política criminal ética e de respeito a pessoa que ainda se encontra em fase de desenvolvimento, no caso, a criança e o adolescente. 9.5 REFERÊNCIAS ALBERTO, I. M. (2006). Abuso sexual de crianças: o psicólogo na encruzilhada da ciência com a justiça. In: FONSECA, A. C.; SIMÕES, M. R.; SIMÕES, M. C. T; PINHO, M. S. Pinho (Orgs.). Psicologia Forense (pp. 437- 470). Coimbra: Almedina, 2006. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A inquirição da vítima de violência sexual intrafamiliar à luz do superior interesse da criança. In: POTTER, Luciane, Cezar Roberto Bitencourt (Orgs.). Depoimento sem dano: por uma política criminal de redução de danos. 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Depoimento Sem Medo (?). Culturas e Práticas NãoRevitimizantes. Uma Cartografia das Experiências de Tomada de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes. Presidência da República, Secretaria Especial dos Direitos Humanos. São Paulo: Childhood Brasil (Instituto WCF–Brasil), 2008. PISA, Osnilda, STEIN, Lilian Milnistsky. Abuso Sexual Infantil e a Palavra da Criança Vítima: pesquisa científica e a intervenção legal. Revista dos Tribunais. Ano 96.Vol. 857. Março de 2007. POTTER, Luciane. Violência, Vitimização e Políticas de Redução de Danos. In: POTTER, Luciane; BITENCOURT, Cezar Roberto (Org.). Depoimento sem dano: por uma política criminal de redução de danos. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2010 SANTOS, S. S.DELL’AGLIO, D. D. Quando o silêncio é rompido: o processo de revelação e notificação de abuso sexual infantil. In: Psicologia & Sociedade. 22 (2), 328-335. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n2/13.pdf. Acesso em 17set. 2015. SANZ, Diana, MOLINA, Alejandro. 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Acesso em: 10 set. 2015. 160 // Problemas da jurisdição contemporânea... =X= DA INEFICIÊNCIA NA CONCRETIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR NO MUNICÍPIO DE MARINGÁ-PARANÁ Ivan Aparecido Ruiz* Tais Zanini de Sá Duarte Nunes* 10.1 INTRODUÇÃO Por muitas décadas difundiu-se a ideia de que o meio mais adequado de proporcionar ao indivíduo a concretização de seus direitos, previstos em normas constitucionais de eficácia limitada, em especial os princípios programáticos, seria por meio da jurisdição estatal. Passados mais de vinte e cinco anos da promulgação de Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as políticas públicas se encontram em destaque, nos debates que se travam a respeito, como forma de realização dos direitos fundamentais e garantias para a promoção do ser humano, porém muitas delas, ainda, como promessas solenes. Tem-se presenciado no Brasil, a exemplo do que acontece em outros países desenvolvidos, a criação progressiva de várias políticas públicas com a finalidade de promover a dignidade do ser humano em todos os âmbitos, destacando-se, neste trabalho, a Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador (PNSST). O tema é bastante relevante para grande parte da sociedade, classe trabalhadora, uma vez que o ambiente de trabalho inseguro, propício a acidentes, pode gerar danos irreparáveis ao trabalhador e sua família, além de, reflexamente, prejuízo a toda a sociedade, pois o ser humano que tinha potencial para crescer e desenvolver-se por recursos e capacitação próprios, torna-se um “fardo” ao Estado, que terá de mantê-lo e aos seus dependentes por meio do auxílio de programas governamentais e outras tantas formas assistenciais. Como se percebe, a dignidade da pessoa humana, própria das pessoas, é qualidade intrínseca e distintiva do ser humano, precedendo ao * Pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL, Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR, Professor Associado do Curso de Graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá – UEM/PR e, também, do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Advogado no Paraná. * Mestranda em Ciências Jurídicas, Natureza: Direitos da Personalidade, pelo Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR. Especialista em Direito do Estado e Relações Sociais pela Universidade Católica Dom Bosco – PUC de Campo Grande/MS e Direito Tributário pela Universidade Anhanguera. 162 // Problemas da jurisdição contemporânea... Estado. Nada obstante, uma vez considerada a existência deste, não há dúvidas de que sua função é realizar o complexo de atos que assegurem o bem comum da coletividade administrada. A dignidade da pessoa humana é, então, um modo de poder-dever pelo qual todos são chamados a participar da grande aldeia comunitária. Mais que isso, é ela objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, da CRF/88) 1. A vigente Constituição assegura a todos direitos e garantias fundamentar, muito deles devidos pelo próprio Estado. Ao mesmo tempo todas as pessoas possuem deveres nesse ambiente social. Uma das preocupações que brotam nesse quadro todo é a segurança no ambiente do trabalho, que deve ser assegurada com políticas públicas. Vislumbra-se que essas políticas devem proporcionar ao trabalhador menos riscos de acidente e doenças equiparadas, evitando que o mesmo tenha de se ausentar do trabalho por determinado período ou que tenha de se aposentar definitivamente, de forma precoce, dando-lhe condições de ter uma melhor qualidade de vida, tal como prevê a Constituição Federal de 1988, em seu art. 6º2, quando do tratamento dos Direitos Sociais, no Título dos Princípios Fundamentais; em outra esfera, evitam-se outras tantas consequências negativas para o indivíduo, sua família, empregador e Estado. No decorrer deste trabalho, buscar-se-á analisar a implantação e aplicação da Política Pública Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador no município de Maringá, no Estado do Paraná, por intermédio do levantamento de dados concretos junto a Secretaria Municipal de Saúde e Vigilância Sanitária, apontando-se, também, possíveis falhas na concretização desta Política Pública, na tentativa de contribuir com soluções plausíveis, para que o trabalhador encontre no Administrado Público, o amparo necessário para concretização de seus direitos. Nesse contexto, a presente pesquisa, pela sua sempre atualidade, bem como pela importância que o assunto requer, justifica plenamente o seu estudo e enfrentamento. O eixo teórico da presente pesquisa e estudo teve por base os autores nacionais que tratam da matéria, principalmente os ensinamentos de Maria Paula Dallari Bucci, em sua obra Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. 10.2 BREVES NOÇÕES SOBRE O CONCEITO DE POLÍTICA PÚBLICA Cumpre ressaltar, a princípio, que as políticas públicas adquiriram relevância somente após a 2ª Guerra Mundial e de diversos acontecimentos que frustraram as expectativas do Estado Liberal e as pessoas que convivem com esse modelo, levando-se ao reconhecimento de que o Estado precisa e “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana [...]”. 2 “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. 1 Da ineficiência na concretização... // 163 deve contribuir com outros entes da sociedade para o bem-estar social, pois a pessoa nunca estará imune de enfrentar adversidades na vida. A conceituação de política pública é de extrema complexidade, uma vez que sofre a influência de uma gama de fatores sociais, políticos, econômicos e dos diversos regimes, sistemas e atores existentes. O foco a ser observado para o entendimento das políticas públicas está na dimensão subjetiva dos direitos e garantias fundamentais, que dá ao titular do direito a condição de exigir e ver assegurado o seu cumprimento em face de terceiros e, mais especificamente, na sua eficácia vertical, que estabelece a relação entre Estado e indivíduo, gerando a responsabilidade do Estado para com o indivíduo, pois como afirma Livia Regina Savergnini Bissoli Lage: “Esse aspecto da dimensão subjetiva determinará ao Estado o atingimento de certos fins e a realização de determinadas condutas, que poderão se apresentar como direitos subjetivos (individuais ou supraindividuais)” (LAGE, 2013, p. 154). Desse modo, o sistema normativo em si, enquanto Direito, não constitui, pois, por óbvio, a dignidade da pessoa humana perante as normas de eficácia voltadas para proteção e segurança do trabalhador. O que ele pode é tão-somente reconhecê-la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo a pessoa e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição. Por isso é importante atentar que a Constituição Federal de 1988, não fala só em Direitos, mas, em Direitos e Garantias. A garantia está aí, justamente, para assegurar os Direitos que são declarados, previstos no texto da Lei Maior. A dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de realizar as suas vocações e necessidades (ROCHA, 1999, p. 26). Sendo assim, apesar do indivíduo possuir limitações legais quanto à exigência de seus direitos, bem como deveres a cumprir, o Estado Administrador não pode se abster de prover as condições para que o indivíduo exerça o seu direito, principalmente quando se tratar de um direito e garantia fundamental. É certo que o Estado deve cumprir com o que está previsto constitucionalmente, contudo, as normas de eficácia limitada, em especial quando preveem princípios programáticos, dificultam a cobrança de seu cumprimento por parte da pessoa em face da Administração Pública. Lívia Regina Savergnini Bissoli Lage esclarece que as normas programáticas são diretrizes que devem ser observadas em qualquer momento de concretização das atividades estatais e obrigam o Estado a observar os direitos fundamentais, portanto, a Constituição não pode ser tratada como mero pacto político (LAGE, 2013, p. 171). Nilva M. Leonardi Antonio, valendo-se dos ensinamentos de Ada Pellegrini Grinover e Oswaldo Canela, afirma que a Constituição do Estado 164 // Problemas da jurisdição contemporânea... Democrático de Direito é, em sua essência, normativa, por isso, não pode ser considerada meramente simbólica, in verbis: E, para atingir esses objetivos fundamentais (aos quais se acresce o princípio da prevalência dos direitos humanos: art. 4º, II, da CF), o Estado tem que se organizar no facere e praestare, incidindo sobre a realidade social. É aí que o Estado social de direito transforma-se em Estado democrático de direito. Mas como operacionalizar o atingimento dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro? [...] Para o Estado social atingir esses objetivos, faz-se necessária a realização de metas, ou programas, que implicam o estabelecimento de funções específicas aos Poderes Públicos, para a consecução dos objetivos predeterminados pela Constituições e pelas leis. Desse modo, formulado o comando constitucional ou legal, impõe-se ao Estado promover as ações necessárias para a implantação dos objetivos fundamentais. E o poder do Estado, embora uno, é exercido segundo especialização de atividades: a estrutura normativa da Constituição dispõe sobre suas três formas de expressão: a atividade legislativa, executiva e judiciária (ANTONIO, 2013, p. 190). Para Maria Paula Dallari Bucci, a política pública pode ser conceituada como: [...] o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar à realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados (BUCCI, 2013, p. 30). Os renomados pesquisadores da área de políticas públicas Michael Howlett, M. Ramesh e Anthony Perl mencionam sobre a dificuldade de se encontrar homogeneidade na sua conceituação, mas esclarecem que apesar disso é possível encontrar-se pontos comuns no ciclo de políticas públicas dos diversos países. Assim, utilizam-se das definições de Thomas Dye e William Jenkins como um esboço geral para definir política pública. Segundo Jenkins, a política pública pode ser conceituada como: [...] um conjunto de decisões inter-relacionadas, tomadas por um ator ou grupo de atores políticos, e que dizem respeito à seleção de objetivos e dos meios necessários para alcançá-los, dentro de uma situação específica em que o alvo dessas decisões estaria, em princípio, ao alcance desses atores (HOWLETT; PERL, 2013, p. 8). Da ineficiência na concretização... // 165 De acordo com Michael Howlett, M. Ramesh e Anthony Perl, o liberalismo, o capitalismo e a democracia, dentre muitos outros fatores e sistemas, exercem um papel fundamental e contribuem diretamente na policy-making, influenciando os atores e ideias na maioria de seus processos; contudo, a ação do governo estará também relacionada à “maneira como o governo e os vários atores mais ou menos empoderados estão organizados sob o capitalismo liberal” de cada país, por isso afirmam que a criação e a implantação das políticas de forma eficaz, em uma democracia capitalista, dependem da organização e apoio recebido pelo Estado de notáveis atores sociais (HOWLETT; PERL, 2013, p. 66). Para Michael Howlett, M. Ramesh e Anthony Perl “[...] a policymaking trata fundamentalmente de atores cercados por restrições que tentam compatibilizar objetivos políticos (policy goals) com meios políticos (policy means), num processo que pode ser caracterizado como “resolução aplicada de problemas” (HOWLETT; PERL, 2013, p. 5). Em suma, os referidos autores extraem da lição de vários teóricos que as políticas públicas são decisões tomadas por governos que definem um objetivo e determinam os meios para alcançá-lo e concluem: Todas as definições apresentadas até este momento postulam que a política pública é um fenômeno complexo que consiste em inúmeras decisões tomadas por muitos indivíduos e organizações no interior do próprio governo e que essas decisões são influenciadas por outros atores que operam interna e externamente no Estado. Observa-se que os efeitos das políticas públicas são moldados no cerne das estruturas nas quais esses atores operam e de acordo com as ideias que eles sustentam; essas forças também afetaram as políticas e as decisões relacionadas nas interações anteriores dos processos de policy-making (HOWLETT; PERL, 2013, p. 12). Fernando Aith traz, ainda, a diferenciação entre política pública de Estado e de Governo, pautando-se principalmente em seus objetivos, considerando que a primeira terá como meta a consolidação institucional da organização política do Estado, a consolidação do Estado Democrático de Direito e a garantia da soberania nacional e da ordem pública, enquanto a segunda volta-se para ações pontuais de proteção e promoção aos direitos humanos específicos expressos na Constituição (AITH, 2006, p. 235). Cumpre ressaltar que o mencionado autor traz outras características diferenciadoras de política de Estado e política de Governo, observando quanto a quem pode promover a elaboração, planejamento e execução da política pública, e argumenta que, geralmente, as políticas de Estado devem ser exclusivamente realizadas pelo governo, não sendo passíveis de delegação ou terceirização, ou quebra de continuidade, ao passo que as políticas de Governo podem ser terceirizadas ou delegadas bem como sofrer a quebra de continuidade (AITH, 2006, p. 237). Importante destacar, no concernente a saúde pública, que ela sempre esteve relacionada à concepção de política pública, uma vez que é indispensável à intervenção do Estado tanto na regulamentação dos direitos 166 // Problemas da jurisdição contemporânea... relativos à saúde da pessoa como na distribuição de bens e serviços; assim, desde a criação do Estado Moderno, vislumbra-se a saúde pública como uma política de Estado (DALLARI, 2006, p. 252). A ideia de prevenção e intervenção do Estado como prioridade política na saúde pública remonta a segunda metade do Século XIX, quando se identificou que ao promover a saúde aos menos abastados também estarse-ia combatendo a miséria que perturba a ordem pública e que já foi motivo para derrubada de muitos poderes como exemplo da Revolução Francesa em 1789, a partir da qual se dá início a uma série de medidas preventivas de higiene, vacinação, regulamentação de várias profissões da área etc. (DALLARI, 2006, p. 251). Sueli Gandolfi Dallari esclarece que a proteção sanitária encontrou guarida como política de Estado no início do Século XX sendo classificada em 3 níveis de prioridades, a saber: [...] a primária, que se preocupa com a eliminação das causas e condições de aparecimento das doenças, agindo sobre o ambiente (segurança nas estradas, saneamento básico, por exemplo); a secundária, ou prevenção específica, que busca impedir o aparecimento de doença determinada, por meio da vacinação, dos controles de saúde, da despistagem; e a terciária, que visa limitar a prevalência de incapacidades crônicas ou de recidivas (DALLARI, 2006, p. 252). Neste aspecto, a Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador almeja, por meio da ação conjunta e complementar do Ministério da Saúde, do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério da Previdência Social e demais atores proeminentes no cenário nacional, melhorar a qualidade de vida do trabalhador e dar cumprimento aos normativos constitucionais que garantem ao trabalhador condições dignas de trabalho, abrangendo, por isso, todas as prioridades acima mencionadas. 10.3 DOS ACIDENTES E DOENÇAS RELACIONADAS AO TRABALHO: UMA PREOCUPAÇÃO MUNDIAL A preocupação com a segurança e saúde do trabalhador é muito recente e talvez só tenha sido desencadeada pelos vários prejuízos que o acidente ou doenças relacionadas ao trabalho geram a toda a sociedade, pois, até a Revolução Industrial os mesmos eram diluídos ou não atrelados ao trabalho. Assim, quando cessava a produtividade do trabalhador este simplesmente ficava à mercê de parentes, amigos ou samaritanos. A evolução das pesquisas e estudos comprovaram que o ser humano pode ser esgotado por meio do trabalho excessivo ou em condições inadequadas, os quais são contra producentes, fazendo com que a pessoa deixe de produzir o que se espera temporária ou definitivamente, gerando prejuízo à empresa, aos cofres públicos e à sociedade como um todo. Além do fator econômico, que na realidade é o que realmente preocupa o Estado, busca-se valorizar a pessoa, dar-lhe condições de uma Da ineficiência na concretização... // 167 vida digna, extraindo-se do papel as intenções pactuadas em tantas Declarações Internacionais. Segundo o nosso ordenamento jurídico, o acidente de trabalho será assim considerado quando ocorrer pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho, e que venha a provocar lesão corporal ou perturbação funcional que gere a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária da capacidade para o trabalho, nos termos do art. 193, caput, da Lei federal n. 8.213/91. Para proteger o trabalhador e conceder-lhe o amparo devido, a lei equiparou o acidente de trabalho propriamente dito à doença profissional e do trabalho, conforme previsão dos arts. 20 e 21 da Lei federal n. 8.213/91, in verbis: Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas: I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social; II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I. [...] § 2º. Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho. Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei: I - o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para a sua recuperação; II - o acidente sofrido pelo segurado no local e no horário do trabalho, em consequência de: a) ato de agressão, sabotagem ou terrorismo praticado por terceiro ou companheiro de trabalho; b) ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por motivo de disputa relacionada ao trabalho; “Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. § 1º. A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador. § 2º. Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho. § 3º.É dever da empresa prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a executar e do produto a manipular. § 4º.O Ministério do Trabalho e da Previdência Social fiscalizará e os sindicatos e entidades representativas de classe acompanharão o fiel cumprimento do disposto nos parágrafos anteriores, conforme dispuser o Regulamento”. 3 168 // Problemas da jurisdição contemporânea... c) ato de imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de companheiro de trabalho; d) ato de pessoa privada do uso da razão; e) desabamento, inundação, incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior; III - a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade; IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho: a) na execução de ordem ou na realização de serviço sob a autoridade da empresa; b) na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito; c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quando financiada por esta dentro de seus planos para melhor capacitação da mão de obra, independentemente do meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado; d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado. § 1º. Nos períodos destinados a refeição ou descanso, ou por ocasião da satisfação de outras necessidades fisiológicas, no local do trabalho ou durante este, o empregado é considerado no exercício do trabalho. Em palestra proferida no XX Congresso Mundial de Segurança e Saúde do Trabalhador que ocorreu em Frankfurt, Alemanha no ano de 2014, o diretor geral da OIT, Guy Rider, afirmou que os acidentes e doenças do trabalho matam mais que a guerra, estimando-se que morrem, anualmente, cerca de 2,34 milhões de pessoas no mundo em virtude de acidentes e doenças do trabalho, gerando custos diretos e indiretos de aproximadamente 2,8 bilhões de dólares (RIDER, 2014). De acordo com os dados nacionais do anuário estatístico da Previdência Social, foram registrados em 2013 aproximadamente 717, 9 mil acidentes do trabalho no Brasil, ocorrendo um aumento de 0,55% em relação ao ano anterior (MINISTÉRIO DA PREVIDENCIA SOCIAL, 2013). O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, publicou em seu site que, atualmente, tem-se registrados no Brasil mais de 2.700 mortes por ano, mais de 80 acidentes por hora e mais de 7 mortes por dia relacionadas a acidentes do trabalho, acarretando um prejuízo anual de 70 bilhões de reais, o que poderia ser evitado com o aumento da fiscalização e do número de auditores fiscais do trabalho, uma vez que se tem em nosso país o equivalente a 1 auditor fiscal para 3 mil empresas, sendo impossível uma fiscalização adequada à necessidade dos trabalhadores (SINAIT, 2015). Deve-se frisar que os dados oficiais da Previdência Social estão aquém da realidade, pois a mesma não consegue detectar os casos ocorridos em trabalho informal, restando ao Ministério da Saúde a melhor precisão das referidas estatísticas. Da ineficiência na concretização... // 169 No município de Maringá, Estado do Paraná, segundo dados disponibilizados pela Secretaria Municipal de Saúde, mais especificamente o setor de vigilância ambiental, os acidentes graves de trabalho, ou seja, aqueles que resultaram em morte ou amputação de membro, passaram a ser registrados pelo Poder Público Municipal somente a partir de 2009, constatando-se, conforme os gráficos seguintes, um aumento dos casos e a necessidade de uma intervenção mais eficaz no município, a saber: Figura 1- Acidente de Trabalho Grave em números absolutos por ano. Maringá–PR.- 2008 a 2013. 27 24 27 2009 2010 2011 273 280 2012 2013 1 2008 Fonte: SINAN / VE – Maringá Figura 2 – Distribuição dos acidentes de trabalho atendidos nas unidades de atendimentos segundo o tipo de acidente. Maringá-PR. - 2008 a 2013. 15% Típico Trajeto 85% Fonte: SINAN / VE – Maringá Verificou-se, também, de acordo com informações diretas da Secretaria Municipal de Saúde de Maringá da Prefeitura do Município de Maringá, que as categorias mais sujeitas a acidentes do trabalho de natureza grave são os motoristas, trabalhadores da construção civil e rurais. 10.4 DA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA PARA A CRIAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA NACIONAL DE SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR São inúmeros os tratados e convenções internacionais que influenciaram a criação da Política Pública Nacional de Segurança e Saúde 170 // Problemas da jurisdição contemporânea... do Trabalhador no Brasil, cuja regulamentação se deu por força do Decreto 7.602, assinado pela presidente Dilma Rousseff, no dia 7 de novembro de 2011. A OIT – Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919, como consequência do Tratado de Versalhes, é responsável pela normatização internacional do trabalho, estabelecendo convenções e recomendações que poderão ser ratificadas pelos países interessados, dentre os quais o Brasil, que está entre os seus fundadores, e vem participando das conferências mundiais desde a sua criação (OIT, 2015). A Convenção n. 12 da OIT, de 1921, tratou especificamente do acidente do trabalho na agricultura e desde então muitas outras convenções e regulamentos relativos a prevenção de doenças e acidentes do trabalho foram editadas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, trouxe destaque à dignidade do trabalhador ao prever em seu art. XXIII, 1 a 4, o direito a condições satisfatórias de trabalho, a saber: “1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfactórias de trabalho e à proteção contra o desemprego” (VIEIRA, 2013). O Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais de 1966, adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI), da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, também teve grande influência ao prever o direito de saúde e segurança do trabalhador nos seguintes termos: “Art. 7º. Os Estados Membros no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente: [...] 4. Condições de trabalho seguras e higiênicas; [...]”(ONU,1966). A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, é a primeira Constituição brasileira a prever direitos aos trabalhadores e o fez no Título IV – Da ordem econômica e social, tratando em seu art. 121, nas letras “c”, “e”, “g”, e “h”, sobre a melhoria das condições do trabalhador da cidade ou do campo, com a limitação de horas de trabalho, repouso hebdomadário (preferencialmente aos domingos), férias remuneradas, e assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante. E ainda, cria em seu art. 122, os Tribunais do Trabalho e Comissões de Conciliação. Avançando, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, previu em seu art. 136, que “[...] A todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa”. Não retrocedeu a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, vez que continuou buscando proteger o trabalhador por intermédio do equilíbrio entre a liberdade de iniciativa e a valorização do trabalho humano (art. 145), bem como elencou, dentre outros, os direitos que já eram garantidos como a limitação da jornada, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas, inovando no direito à higiene e Da ineficiência na concretização... // 171 segurança do trabalho e a assistência sanitária, inclusive hospitalar e médica preventiva, ao trabalhador e à gestante (art. 157, incs. V, VI, VII, VIII, XIV). Acrescentando como princípio norteador a valorização do trabalho como condição da dignidade humana, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, manteve em seu texto os direitos a higiene e segurança do trabalho e a assistência sanitária, inclusive hospitalar e médica preventiva, ao trabalhador (arts. 157, inc. II e 158, incs. IX, XV). A Constituição da República Federativa do Brasil, de 17 de outubro de 1969, também demonstrou preocupação com a segurança e saúde do trabalhador mantendo em seu art. 165 os direitos já previstos nas Constituições anteriores. Sérgio Pinto Martins destaca que a preocupação com a saúde do trabalhador só passou a existir após a Revolução Industrial e o surgimento de novos processos industriais, tornando-se relevante no Brasil somente após a Lei federal n. 6.514/77, que deu nova redação aos arts. 154 a 201, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), complementada pela Portaria n. 3.214/78, que regulamentou o serviço especializado em segurança e medicina do trabalho, utilização de equipamento de proteção individual, atividades e operações insalubres e perigosas, dentre outros temas (MARTINS, 2006, p. 622). Importante destacar a Convenção da OIT n.º 155, de 3 de junho de 1981, cuja vigência nacional se deu em 18 de maio de 1993 pela promulgação do Decreto n. 1.254, de 29 de setembro de 1994, a qual estabeleceu o dever dos Estados-membros de elaborarem uma política nacional sobre segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho, da seguinte forma: PARTE II. PRINCÍPIOS DE UMA POLÍTICA NACIONAL Artigo 4 1. Todo Membro deverá, em consulta às organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta as condições e a prática nacionais, formular, por em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho. 2. Essa política terá como objetivo prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem consequência do trabalho, tenham relação com a atividade de trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio ambiente de trabalho (OIT, 2014). A atual Constituição do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, dentre inúmeros outros direitos, trouxe em seu art. 7º, inc. XXII, o de “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;”. Não se pode olvidar que esses direitos, estabelecidos na Constituição e leis infraconstitucionais devem, todos, ser lidos à luz do Princípio da dignidade de pessoa humana. Cumpre ressalvar que os princípios constitucionais de valorização do trabalhador e de dignidade da pessoa ainda não foram suficientes para uma 172 // Problemas da jurisdição contemporânea... atuação eficiente por poder público com relação a prevenção de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, embora, deva-se reconhecer que os trabalhadores brasileiros angariaram muitos benefícios e melhorias nas condições de trabalho após a promulgação da CRF/88. Assim, considerando os elevados índices e as consequências dos acidentes e doenças do trabalho numa esfera global, em 2006, a OIT elaborou a Convenção 187, apontando em todo o seu texto a necessidade de uma cultura preventiva e comprometimento dos Estados-Membros com a melhoria continuada da segurança e saúde do trabalho traçando como dever a criação de uma Política Pública de Segurança e saúde do Trabalhador. (OIT, 2014) Em seguida, a Organização Mundial de Saúde – OMS, na 60ª Assembleia Mundial da Saúde, que ocorreu em 2007, elaborou o Plano de Ação Mundial sobre a Saúde dos Trabalhadores, a fim de reforçar a necessidade de criação de políticas nacionais com coordenação intersetorial das atividades na área e por outras partes interessadas, determinando ainda que os planos nacionais ao serem elaborados deveriam especificar as prioridades de ação, os objetivos e metas a serem tratadas pelo Estado (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2007). Necessário destacar que esta ação mundial justificou-se pela escassez de trabalhadores habilitados na área de saúde, constatando-se um déficit mundial de recursos humanos adequadamente habilitados no setor. No Brasil, em 2008, por meio da Portaria Interministerial n. 152, foi criada a Comissão Tripartite de Saúde e Segurança no Trabalho – CT-SST, a qual é composta paritariamente por representações de governo, trabalhadores e empregadores, mais especificamente por 6 representantes do Governo Federal, seis representantes dos empregadores e seis representantes dos trabalhadores e sua gerência é de responsabilidade conjunta dos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Saúde e da Previdência Social, os quais se revezam anualmente (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, PI 152, 2008). A referida comissão tem por finalidade primordial traçar os rumos do Estado no que se refere a promoção do trabalho seguro e saudável bem como a atuação estatal para a prevenção dos acidentes e doenças do trabalho. A partir da 13ª reunião da CT-SST é que se iniciaram os trabalhos para a formação de um Plano de Política Nacional para prevenção de acidentes e doenças do trabalho e promoção de um ambiente seguro e saudável (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2012). Dessa forma, a pressão internacional acerca da regulamentação e promoção da dignidade do trabalhador, somada ao alto índice de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, desencadeou a promulgação do Decreto n. 7.602, de 11 de novembro de 2011, o qual instituiu a Política Nacional de Saúde no Trabalho. Da ineficiência na concretização... // 173 10.5 UMA VISÃO GERAL DA PNSST A necessidade de criação de estratégias para uma atuação eficaz e efetiva do Estado no estabelecimento de mais segurança e saúde para o trabalhador, incluindo-se a atividade preventiva de acidentes e doenças do trabalho, é unânime entre os órgãos internacionais e nacionais, e sua concretização no Brasil deu-se, a princípio, pela promulgação do Decreto n. 7.602/2011. Desse modo, enquadrando-se ao contexto histórico de como os Direitos Individuais diziam diretamente com a possibilidade, hoje expressão símbolo do liberalismo econômico, da não-interferência econômica governamental, conforme expressão em língua francesa “laissez faire, laissez aller, laissez passer” (“deixa fazer, deixa ir, deixa passar”), abusos são percebidos. Por isto mesmo foi preciso, logo no início de nossa era, surgir legislações voltadas para a contenção de abusos. Esta primazia é creditada à Moral and Health Act4. Ao limitar a jornada de trabalho dos menores a 12 horas por dia, assenta que o Direito do Trabalho é “[...] fruto da interação do fato econômico com a questão social (PINTO, 2000, p. 24). Desta forma, a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho – PNSST tem como objetivo a promoção da saúde e a melhoria da qualidade de vida do trabalhador e a prevenção de acidentes e de danos à saúde originados do trabalho ou a ele relacionados, buscando eliminar-se ou, ao menos, reduzir os riscos de acidente nos ambientes de trabalho. O item IV, do Anexo I, do Decreto 7.602/2011, trouxe as diretrizes para implantação da PNSST, a saber: a) inclusão de todos trabalhadores brasileiros no sistema nacional de promoção e proteção da saúde; b) harmonização da legislação e a articulação das ações de promoção, proteção, prevenção, assistência, reabilitação e reparação da saúde do trabalhador; c) adoção de medidas especiais para atividades laborais de alto risco; d) estruturação de rede integrada de informações em saúde do trabalhador; e) promoção da implantação de sistemas e programas de gestão da segurança e saúde nos locais de trabalho; f) reestruturação da formação em saúde do trabalhador e em segurança no trabalho e o estímulo à capacitação e à educação continuada de trabalhadores; e 4 A Revolução Industrial inglesa tornou-se tão dependente do trabalho infantil e adolescente que, em momentos de crise econômica, este passou a competir com o emprego adulto. Isso levou ao surgimento de propostas concretas de proteção ao trabalho da criança e do adolescente. Em 1802 a Inglaterra editou o Moral and Health Act, primeira manifestação concreta correspondente à ideia contemporânea de Direito do Trabalho. Sua principal conquista foi a redução da carga horária da criança para no máximo 12 horas diárias. FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho de crianças e adolescentes no Brasil do século XXI. Campinas: Escola da Magistratura do Trabalho. Disponível em: <www.trt15.gov.br/escola_da_magistratura/Rev16Art7.pdf> Acesso: 29 novembro 2007. 174 // Problemas da jurisdição contemporânea... g) promoção de agenda integrada de estudos e pesquisas em segurança e saúde no trabalho; [...] O plano nacional de ação de segurança e saúde no trabalho incluiu oito objetivos a serem alcançados, sendo: 1.) Inclusão de todos os trabalhadores brasileiros no Sistema Nacional de Promoção e Proteção da Segurança e Saúde no Trabalho – SST; 2.) Harmonização da legislação trabalhista, sanitária, previdenciária e outras que se relacionem com SST, 3.) Integração das ações governamentais de SST, 4.) Adoção de medidas especiais para atividades laborais submetidas a alto risco de doenças e acidentes de trabalho; 5.) Estruturação de uma rede integrada de informações em SST, 6.) Implantação de sistemas de gestão de SST nos setores público e privado, 7.) Capacitação e educação continuada em SST, 8.) Criação de uma agenda integrada de estudos e pesquisas em SST (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2012). O referido plano trouxe para cada objetivo várias estratégias de ação, repartindo-as em curto, médio e longo prazo, bem como delimitou a responsabilidade de cada Ministério e Órgãos relacionados a CT-SST, além de elencar um conjunto de tarefas de caráter permanente, incumbindo de forma conjunta e complementar a CT-SST, a execução e fiscalização de todo o plano de ações, conforme competências determinadas para cada Ministério. Assim, coube ao Ministério do Trabalho e Emprego, nos termos do item VI, “a” a “g”, do Decreto 7.602/2011, as seguintes responsabilidades: a) formular e propor as diretrizes da inspeção do trabalho, bem como supervisionar e coordenar a execução das atividades relacionadas com a inspeção dos ambientes de trabalho e respectivas condições de trabalho; b) elaborar e revisar, em modelo tripartite, as Normas Regulamentadoras de Segurança e Saúde no Trabalho; c) participar da elaboração de programas especiais de proteção ao trabalho, assim como da formulação de novos procedimentos reguladores das relações capital-trabalho; d) promover estudos da legislação trabalhista e correlata, no âmbito de sua competência, propondo o seu aperfeiçoamento; e) acompanhar o cumprimento, em âmbito nacional, dos acordos e convenções ratificados pelo Governo brasileiro junto a organismos internacionais, em especial à Organização Internacional do Trabalho - OIT, nos assuntos de sua área de competência; f) planejar, coordenar e orientar a execução do Programa de Alimentação do Trabalhador; e g) por intermédio da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho - FUNDACENTRO: 1. elaborar estudos e pesquisas pertinentes aos problemas que afetam a segurança e saúde do trabalhador; 2. produzir análises, avaliações e testes de medidas e métodos que visem à eliminação ou redução de riscos no trabalho, incluindo equipamentos de proteção coletiva e individual; Da ineficiência na concretização... // 175 3. desenvolver e executar ações educativas sobre temas relacionados com a melhoria das condições de trabalho nos aspectos de saúde, segurança e meio ambiente do trabalho; 4. difundir informações que contribuam para a proteção e promoção da saúde do trabalhador; 5. contribuir com órgãos públicos e entidades civis para a proteção e promoção da saúde do trabalhador, incluindo a revisão e formulação de regulamentos, o planejamento e desenvolvimento de ações interinstitucionais; a realização de levantamentos para a identificação das causas de acidentes e doenças nos ambientes de trabalho; e 6. estabelecer parcerias e intercâmbios técnicos com organismos e instituições afins, nacionais e internacionais, para fortalecer a atuação institucional, capacitar os colaboradores e contribuir com a implantação de ações globais de organismos internacionais; [...] (BRASIL, 2011). Ao Ministério da Saúde, o Decreto 7.602/2011, item VII, “a” ao “g”, incumbiu as seguintes competências: a) fomentar a estruturação da atenção integral à saúde dos trabalhadores, envolvendo a promoção de ambientes e processos de trabalho saudáveis, o fortalecimento da vigilância de ambientes, processos e agravos relacionados ao trabalho, a assistência integral à saúde dos trabalhadores, reabilitação física e psicossocial e a adequação e ampliação da capacidade institucional; b) definir, em conjunto com as secretarias de saúde de Estados e Municípios, normas, parâmetros e indicadores para o acompanhamento das ações de saúde do trabalhador a serem desenvolvidas no Sistema Único de Saúde, segundo os respectivos níveis de complexidade destas ações; c) promover a revisão periódica da listagem oficial de doenças relacionadas ao trabalho; d) contribuir para a estruturação e operacionalização da rede integrada de informações em saúde do trabalhador; e) apoiar o desenvolvimento de estudos e pesquisas em saúde do trabalhador; f) estimular o desenvolvimento de processos de capacitação de recursos humanos em saúde do trabalhador; e g) promover a participação da comunidade na gestão das ações em saúde do trabalhador; [...] (BRASIL, 2011). Tão importante quanto a atuação dos Ministérios acima mencionados deve-se ressaltar a competência do Ministério da Previdência Social, ao qual restou os deveres especificados no item VIII, “a” ao “e”, do Decreto 7.602/2011, a saber: a) subsidiar a formulação e a proposição de diretrizes e normas relativas à interseção entre as ações de segurança e saúde no trabalho e as ações de fiscalização e reconhecimento dos benefícios previdenciários decorrentes dos riscos ambientais do trabalho; b) coordenar, acompanhar, avaliar e supervisionar as ações do Regime Geral de Previdência Social, bem como a política direcionada aos Regimes 176 // Problemas da jurisdição contemporânea... Próprios de Previdência Social, nas áreas que guardem inter-relação com a segurança e saúde dos trabalhadores; c) coordenar, acompanhar e supervisionar a atualização e a revisão dos Planos de Custeio e de Benefícios, relativamente a temas de sua área de competência; d) realizar estudos, pesquisas e propor ações formativas visando ao aprimoramento da legislação e das ações do Regime Geral de Previdência Social e dos Regimes Próprios de Previdência Social, no âmbito de sua competência; e e) por intermédio do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS: 1. realizar ações de reabilitação profissional; e 2. avaliar a incapacidade laborativa para fins de concessão de benefícios previdenciários. Claudia Vasques Chiavegatto e Eduardo Algranti destacam que, embora haja determinação legal para a atuação conjunta e complementar dos diferentes setores públicos, representados pelo Trabalho, pela Saúde e pela Previdência, deve-se ponderar também que existe certa dificuldade de integração entre os mesmos tendo em vista que trabalham com lógicas absolutamente distintas, obstaculizando um resultado prático conforme determina a Lei: O setor Trabalho envereda por uma lógica de “tripartismo” para definir e pautar suas ações, permitindo pouca flexibilidade de ações, diferentemente do setor Saúde, que adota uma política de "pactuação" para desenvolver ações regionais e locais de saúde sujeita a constantes flutuações na dependência dos interesses políticos envolvidos. A Previdência acaba sendo o repositório final que acolhe as consequências de uma política ineficaz, adotando, por sua vez, um enfoque reducionista que privilegia uma visão contábil do grave problema das doenças e dos acidentes do trabalho. Tanto o setor Trabalho, quanto Previdência têm sua ingerência restrita aos trabalhadores formais. Somente o setor Saúde é capaz de levar a atenção aos trabalhadores informais, que representam cerca de 48% da população trabalhadora (CHIAVEGATTO; ALGRANTI, 2013). Ao contrário do senso comum, a análise dos itens mencionados demonstra que a fiscalização do ambiente de trabalho cabe também ao Ministério da Saúde e, portanto, não somente ao Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego por meio de seus promotores, auditores fiscais e gerências, embora a sua atuação e especialidade deva ser reconhecida por todos até mesmo pelo fato de que tem a fiscalização por essência. Dentre os vários objetivos elencados no plano nacional de ações de saúde e segurança no trabalho e as várias estratégias previstas, dar-se-á atenção especial a estratégia 3.1.6 do objetivo 3, a qual estipula a articulação entre a fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE e a vigilância em saúde do trabalhador, com pilotos de atuação a partir das regiões/locais de maior sinistralidade, cuja execução cabe aos Ministérios da Saúde e do Da ineficiência na concretização... // 177 Trabalho e Emprego, tendo como Parceiros institucionais a CTSST e atores governamentais da saúde e do trabalho e sua implementação de curto prazo. 10.6 DA FISCALIZAÇÃO DO AMBIENTE DE TRABALHO NO MUNICÍPIO DE MARINGÁ Segundo a estratégia 3.1.6, objetivo 3, do Plano Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador incumbe também ao Ministério da Saúde a fiscalização do ambiente de trabalho, com a finalidade de reduzir o número de acidentes e doenças do trabalho, o que é feito em âmbito local por meio da Secretaria de Saúde dos Municípios. Claudia Chiavegatto e Eduardo Algranti ensinam que a atenção à Saúde do Trabalhador contempla três níveis de atuação: a) a vigilância, aqui incluídas as ações destinadas à definição dos perigos e dos riscos inerentes a um processo de trabalho e à consequente promoção de medidas que visam ao adequado controle dos perigos e riscos e de controle médico, assim como um programa que permita a coleta e a análise dos dados gerados; b) a assistência à saúde, incluindo serviços de acolhimento, atenção, condutas clínicas e ocupacionais e um sistema de benefícios justo; c) a abordagem e a conduta apropriadas aos determinantes sociais, individuais ou de grupos, que impactam negativamente na saúde da maioria dos trabalhadores (CHIAVEGATTO; ALGRANTI, 2013). No município de Maringá a vigilância e fiscalização do ambiente de trabalho devem ser realizadas também pela Secretaria Municipal de Saúde, a qual subdivide-se em setor administrativo e de vigilância em saúde, que é, ainda, subdividido em vigilância ambiental, vigilância sanitária e vigilância epidêmica. O setor de vigilância ambiental de Maringá comporta o Programa de Investigação de Acidentes Graves, Programa de Sensibilização, Programa de Educação Pelo Trabalho Para a Saúde. Conforme informação extraída do portal do município de Maringá, o setor de vigilância ambiental fica, portanto, responsável pela fiscalização do meio ambiente de trabalho em situações de acidentes graves, a saber: A Vigilância Ambiental busca a identificação de situações de risco ou perigos no ambiente que possam causar doenças, incapacidades e mortes, com o objetivo de se adotar ou recomendar medidas para a remoção ou redução da exposição a essas situações de risco. São fatores de risco a saúde aqueles decorrentes de qualquer situação ou atividade no meio ambiente, principalmente os relacionados à organização territorial e ao ambiente construído. [...] Entende-se por riscos ambientais aqueles decorrentes da exposição pelos trabalhadores aos agentes e processos presentes no ambiente de trabalho, que em função de sua natureza, concentração ou intensidade e 178 // Problemas da jurisdição contemporânea... tempo de exposição, possam causar danos à saúde do trabalhador (VIGILÂNCIA AMBIENTAL PMM, 2015). Segundo informação direta da Secretaria Municipal de Saúde de Maringá, a fiscalização ambiental conta atualmente com três agentes fiscais de nível superior e quatro agentes fiscais de nível médio para realizar o trabalho de fiscalização do meio ambiente do trabalho, no município de Maringá. De acordo com informação retirada do site da Secretaria Municipal de Saúde o setor de vigilância sanitária, possui uma equipe multiprofissional composta por quinze agentes fiscais de nível médio e nove agentes fiscais de nível superior, todos admitidos por concurso público e investidos na função por ato legal do governo municipal (SECRETARIA DE SAUDE PMM, 2015). Em contrapartida ao reduzido número de agentes fiscais municipais, segundo dados estatísticos da Associação Comercial de Maringá – ACIM, o número de empregos formais aumenta a cada ano. Em 2013, por exemplo, ultrapassou 156.000 trabalhadores, chegando a ser intitulada como uma cidade “Polo do setor de serviços: educação, saúde, engenharias, imobiliária e serviços de apoio à atividade econômica em geral (que mais cresce) como contabilidade e atividades de terceirização em geral” (DIAS, 2013). Lamentavelmente, os agentes fiscais da vigilância ambiental não conseguem fiscalizar todas as empresas do município, uma vez que estão em número reduzido e não possuem um veículo próprio para tanto; portanto, sob essa justificativa, realizam a fiscalização somente após a ocorrência de um acidente de trabalho que resulte em óbito, amputação ou mutilação. Destaca-se, ainda, que somente na área de construção civil, segundo informação do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção e do Mobiliário de Maringá – SINTRACOM – são mais de 20.000 trabalhadores 5 no setor, ou seja, em um ambiente tão hostil como o da construção, onde os acidentes geralmente são graves, tem-se a absurda proporção de um agente fiscal para 833,33 trabalhadores, sendo humanamente impossível um trabalho adequado e contínuo de fiscalização. Deste modo, o que se nota, ao menos no município de Maringá, é que não ocorre na prática a atuação conjunta e complementar entre Ministério da Saúde e Ministério do Trabalho e Emprego no que diz respeito à fiscalização do meio ambiente do trabalho, sendo que essa negligência resulta na responsabilização quase que exclusiva do Ministério do Trabalho e Emprego por meio de seus auditores-fiscais do trabalho para executar a tarefa em toda a região de Maringá. Claudia Vasques Chiavegatto e Eduardo Algranti não titubeiam ao afirmar que o Estado é ineficiente em suas ações, em especial na área da saúde, obrigando outros órgãos a agirem em prol das pessoas: A alta ineficiência do Estado cria um vazio que, por uma simples lei física, acaba sendo ocupado pelo Ministério Público (MP) e pelos Tribunais 5 Número calculado de acordo com a quantidade atual de inscrições de trabalhadores associados ao sindicato. Da ineficiência na concretização... // 179 Regionais de Trabalho simplesmente porque não há instâncias a recorrer. Louve-se aqui a atuação do MP, que vem sendo um real parceiro para que um mínimo de equidade seja adicionado aos graves problemas individuais e de grupos que enfrentamos na rotina. Um tema de grande interesse a ser pesquisado é o custo envolvido na crescente judicialização das questões de saúde e trabalho. É provável que sejam muito superiores aos gastos envolvidos com a vigilância e a assistência à saúde, tanto para o Estado, quanto para as empresas (CHIAVEGATTO; ALGRANTI, 2013). Lamentavelmente, o Ministério do Trabalho e Emprego também está sofrendo um desfalque com relação ao número de auditores-fiscais do trabalho, sendo onze agentes para fiscalizarem o município de Maringá e região, conforme informação do Gerente Regional do Trabalho e Emprego em Maringá, Paulo Ricardo Vijande Pedrozo. Essa realidade não permite aos auditores-fiscais que realizem uma fiscalização permanente e eficiente, obrigando-os a priorizar os casos graves e denúncias. Cumpre ressaltar que o mesmo não ocorre com relação a setores altamente arrecadadores do poder público, uma vez que não se vislumbra a escassez de pessoal ou de instrumentos para a execução da fiscalização. Observa-se uma profunda diferença entre o Estado-arrecadador e o Estadoprestador de serviços. Ora, para efeito, compare-se o número de agentes fiscais da vigilância ambiental – sete, na realidade – com os mais de sessenta agentes orientadores do Estacionamento Rotativo Regulamentado Pago de Maringá-PR, que tem por competência fiscalizar o uso do estacionamento rotativo na área central de Maringá, composta por 4.766 vagas (SETRANS, web). Fica a pergunta para reflexão: o que é mais importante para a Administração Pública, “a vida da pessoa” ou “a arrecadação”? A realidade é triste, mas é esta a realidade. A rentabilidade do EstaR aos cofres públicos é evidente: em conformidade com o Decreto 924, de 17 de abril de 2013, o valor a ser pago pela fração de tempo de 60 (sessenta) minutos, pelo cartão de estacionamento de veículos na área do sistema Área de Estar de Maringá, será de R$ 1,50 (um real e cinquenta centavos) e as multas, se pagas no prazo de até 10 (dez) dias úteis, podem chegar a R$ 15,00 (quinze reais). (PORTAL DA SETRANS, 2015) Assim, o que se nota é que a falta de concretização da Política Pública de Segurança e Saúde do Trabalhador deve-se muito mais a uma gestão inadequada dos recursos públicos do que a ausência dos mesmos, cumprindo ressaltar o que afirma Dirley Cunha Junior: Por último, não podemos concordar com aqueles que sustentam, com base na doutrina estrangeira, encontrar-se a eficácia dos direitos fundamentais dependente do limite fático da reserva do possível, porque sempre haverá um meio de remanejar os recursos disponíveis, retirando-os de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço da dívida, etc.), onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem, como a vida, a integridade física, a saúde e a educação, por exemplo (ANTONIO, 2013, p. 204). 180 // Problemas da jurisdição contemporânea... Neste ínterim, não há que se falar em inefetividade do Poder Público em virtude do princípio do mínimo existencial ou por não possuir condições financeiras para a contratação de agentes fiscais e de aquisição de instrumentos de trabalho como veículo próprio para o setor; o que ocorre, na verdade, é um total descaso do Poder Público Municipal para com o cumprimento das ações previstas no Plano Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador. 10.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os esforços do poder público para que as políticas públicas tornemse uma realidade, embora louváveis, ainda estão aquém de seu objetivo de torná-las instrumentos para a modificação de uma realidade que permite deixar a pessoa à margem de seus direitos, verificando-se a urgência de medidas mais adequadas a cada realidade local. Insere-se o contexto de dignidade da pessoa humana para alcance de laços protetivos ao trabalhador, enviesado por meio de normas, regulamentos e legislação adepta aos presságios constitucionais e internacionais de padronização para segurança do trabalho, auferindo interligação entre o conteúdo teórico e a situação fática relativa ao texto. Verificou-se, por meio de pesquisas bibliográficas e de entrevista, indagando-se diretamente à Secretaria Municipal de Saúde de Maringá e à Gerência dos Auditores Fiscais do Trabalho em Maringá-PR, que na realidade não tem havido uma colaboração entre os entes públicos para a redução dos acidentes e doenças do trabalho, uma vez que sequer existem agentes fiscais em número necessário para uma atuação eficiente, muito menos eficaz. Assim, os agentes fiscais municipais restringem-se a fiscalizar, sempre após a ocorrência da tragédia, os casos de acidentes graves, que envolvam óbito ou mutilação, pois os sete agentes do Município de Maringá não possuem nem mesmo um veículo próprio para o setor; por isso, os trabalhadores contam com os auditores fiscais do Trabalho ligados ao Ministério do Trabalho e Emprego, mas que, também, estão limitados em virtude do reduzido número de fiscais, onze, para atenderem o município de Maringá e toda a região. Portanto, a PNSST no município de Maringá não é eficiente e nem eficaz; na verdade, não atingiu o patamar de concretude e os trabalhadores maringaenses continuam desamparados pelo Estado no que diz respeito à prevenção de acidentes e riscos oriundos do trabalho e, frise-se, não por falta de recursos, mas por falta de interesse em conceder ao trabalhador melhores condições em seu ambiente de trabalho, ainda que para tanto, tenha que se relegar o fundamento da República Federativa do Brasil, a um segundo plano, que é a dignidade da pessoa humana. Da ineficiência na concretização... // 181 10.8 REFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Comissão Tripartite de Segurança e Saúde do Trabalho. Cartilha PLANSAT. Ministério do Trabalho e Emprego: Brasília. 2012, p. 10. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/a-previdencia/saude-eseguranca-do-trabalhador/politicas-de-prevencao/o-plano-nacional-deseguranca-e-saude-no-trabalho-plansat/>. Acesso em: 18 jan. 2015. ______. 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Acesso em: 23 dez. 2014. 184 // Problemas da jurisdição contemporânea... = XI = DA INTERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE COM O DIREITO DO CONSUMIDOR Franciele de Oliveira Rahmeier* Juliano Miqueletti Soncin** 11.1 INTRODUÇÃO Este trabalho é um artigo acadêmico que tem como proposta discutir de forma introdutória a temática “interação dos direitos da personalidade com o direito do consumidor”. A fomentação para pesquisar esta temática surgiu a partir da análise das demandas judiciárias hodiernas, em que se percebe uma quantidade razoável de processos que rogam pela tutela consumerista. Neste diapasão, a Constituição Federal brasileira informa e impõe um sistema de valores estabelecendo em seu artigo primeiro o que seria os seus princípios fundamentais, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. E pelo artigo terceiro, inciso I, complementa firmando que são objetivos fundamentais para o país, construir uma sociedade livre, justa e solidária. Esses comandos constitucionais encontram na proteção aos direitos da personalidade e no cumprimento dos direitos dos consumidores, importantes instrumentos de operacionalização. Isto é, quando o direito da personalidade preconiza a proteção da vida, também o faz em proveito das pessoas que necessitando de produtos ou serviços acabam sofrendo os danos provocados em razão de fornecimento defeituoso, naturalmente vedado pelas normas de proteção ao consumidor. Diante desta breve síntese, o presente trabalho abordará a relação benéfica entre os direitos da personalidade com o direito do consumidor, apontando alguns aspectos doutrinários. 11.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS É importante desde já compreender que direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade não podem ser utilizados indiferentemente, uma vez que possuem acepções divergentes. Neste sentido, o ilustre Bonavides é inflexível em suas críticas ao uso “indiferente” * Acadêmica do 4º ano de Direito da Faculdade Cidade Verde. ** Mestrando em Direito pela Unicesumar. Especialista em Civil e Processo Civil pelo Instituto Paranaense de Ensino. Advogado e Professor da Faculdade Cidade Verde – FCV. Membro da Comissão do Ensino Superior da OAB/PR. Endereço eletrônico: <[email protected]> 186 // Problemas da jurisdição contemporânea... das expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais (BONAVIDES, 2012, p. 227). Destarte é imperioso enfatizar que direitos humanos são gênero, ao passo que os outros citados são espécie. Ou seja, em relação aquele realça Hannah Arendt que os direitos humanos não são um elemento, mas sim algo consolidado, sendo proveniente do homem, ou seja, uma criação deste, e se conserva em transcurso de construção e reconstrução. Por sinal, os direitos humanos se consolidam conforme os anseios axiológico-teleológico do homem (ARENDT, 1998, p. 75). Neste norte, veja-se que é relevante analisar a própria história dos direito constitucionais; em 1948, mais de um século após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a notória declaração relacionada aos Direitos Humanos foi apurada devido ao esforço da Organização das Nações Unidas (ONU): a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH). A DUDH de 1948 denota a consciência histórica da sociedade e seus valores primordiais condensando o ontem e inspirando o amanhã. Assim, a progressão dos direitos humanos compeliu a origem dos deveres do homem, isto é, os direitos humanos foram a primeira maneira relevante de dever de preservação do indivíduo. Estes direitos são genéricos, auxiliam todos os seres humanos, porque são universais, e por serem adotados em quase todas as Constituições. Da mesma forma, os direitos fundamentais são também uma construção histórica, quer dizer, o entendimento acerca de quais são os direitos considerados fundamentais muda conforme o progresso da história e do próprio homem. Tanto que N. Bobbio corrobora com o pensamento descrito: [...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p. 34). Segundo Bobbio, “[...] o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas” (BOBBIO, 1992. p. 34). Devido à relevância da evolução (axiológico-teleológico) dos direitos fundamentais, é evidente que nem todo direito humano é fundamental, pois o primeiro é direito incumbido à humanidade, no geral, através de tratados internacionais como a DUDH, da ONU, 1948, já mencionada. No que tange o segundo, os direitos fundamentais, são direitos positivados em um ordenamento jurídico, no Brasil, a título de exemplo, no modelo da Carta Magna. Em outro aspecto, Georges Abboud reitera que a positivação nas obras constitucionais dos direitos fundamentais, torna este direito vigente, assumindo assim qualidade estatal-normativo, e consequentemente, seu respeito significa executar o direito posto pelo Estado. Então, a positivação Da interação entre os direitos... // 187 dos direitos fundamentais é essencial para a garantia desses direitos (ABBOUD, 2012, p. 242.) Hodiernamente, a doutrina majoritária entende o direito da personalidade como espécie de direito fundamental. É incontroverso a relação hierárquica entre os direitos humanos, fundamentais e personalíssimos. Explicar o último é admitir consoante Marllon Beraldo que a personalidade não se mistura com a definição de direitos da personalidade, visto que, aquele significa a qualidade de ser uma pessoa, enquanto este consistiu em uma tutela jurídica (BERALDO, 2012, p. 15). Substancial é reconhecer que cada direito da personalidade equipara-se a um valor fundamental. Neste sentido, a personalidade é, portanto “[...] um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa’’ (PINTO, 1996. p.87). Isto é, qualidade inerente do homem que consolida direitos e deveres emanados de si mesmo, porque é objeto de direito, e de acordo com o Art. 2o do Código Civil1 é o primeiro bem da pessoa humana (BERALDO, 2012, p. 5). Em vista do exposto, é prudente citar que através da promulgação da Constituição Federal de 1988, os direitos da personalidade foram recepcionados, tutelados e sancionados, pelo Estado concedendo a legitimidade da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental do Brasil, o que justifica e admite a singularidade dos demais direitos e garantias, mormente os direitos da personalidade, taxados no art. 5.º, X da Constituição Federal2. Desta forma, os direitos da personalidade se sobressaem por possuírem natureza extrapatrimonial, mesmo que a sua desonra gere uma repercussão econômica, de atributo absoluto, eficácia erga omnes, porque o seu respeito é interposto a todos (Estado e particulares), é irrenunciável, isto é, ser inabdicável, é intransmissível, ou seja, não ser passível de cessão a terceiros, é imprescritível, isto é, perdura no tempo, independente do uso. Em resumo os direitos da personalidade não compõem um rol limitado de direitos, são infinitos, na proporção em que inerentes à conjuntura humana, e designados fundamentalmente à tutela da dignidade da pessoa humana. 11.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A DEFESA DO CONSUMIDOR A atividade econômica do ser humano remonta a período tão antigo quanto impossível de se fixar no tempo o início destas atividades. É possível 1 A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro 2 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. 188 // Problemas da jurisdição contemporânea... afirmar-se que a história da humanidade está atrelada à evolução do próprio indivíduo em seus diversos e dinâmicos aspectos da vida social. É desta variação no comportamento humano que emerge a positivação das normas de conduta social. Na antiguidade a Grécia conhecia tão somente uma vida econômica doméstica, passando para a vida econômica de trocas. Foi na Grécia que surgiu a primeira moeda cunhada entre os Séculos VIII e VII a.C., dando-se início à atividade mercantil universal. A partir do Código Comercial francês, de 1807, 3 iniciava-se a normatização da atividade econômica mais antiga da história da humanidade, considerando-se a necessidade de positivação e especialização desta conduta individual. No Brasil, foi promulgada, em 1850, a Lei n.º 556, de 25 de junho, para disciplinar a atividade do comerciante, ressalvando-se que o interesse maior daquela norma residia na proteção do comércio (TOMAZETTE, 2013. p. 09). Entende-se o comércio como o mecanismo econômico utilizado para satisfazer as necessidades econômicas das pessoas. Esta necessidade econômica se satisfaz por meio das trocas, tendo-se o comerciante como o personagem indispensável nesta relação econômica. Vê-se, então, que a lei mercantil se prestava a proteger o comércio, mas não necessariamente o comerciante ou o consumidor (COELHO, 2013. p. 26). Reportando-se à história econômica da humanidade, Benigno Cavalcanti destaca que na Idade Média: [...] o pensamento econômico girava em torno da justiça, subordinando-se à moral, enquanto na atualidade estas pesquisas econômicas giram em torno a utilidade. E para que esta justiça seja alcançada, necessário é que a permuta promova um equilíbrio entre os interesses em jogo, mediante a fixação de preço justo. Este equilíbrio econômico reflete duas vertentes jurídicas distintas: a primeira, considerando-se o comerciante em relação ao sistema do comércio, e a segunda, considerando-se as relações do comerciante com o consumidor. Deste modo, aplica-se o Código Comercial, na primeira hipótese, e o Código Civil, na segunda hipótese (CAVALCANTE, 2009. p.87). O direito civil brasileiro, contemplando a autonomia da vontade e a liberdade de contratar, visava à proteção da relação jurídica contratual e não os efeitos decorrentes desta relação contratual, pois o modelo econômico liberal vigente no Brasil até o advento do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, este se baseava na tese da libertação do indivíduo em relação ao Estado (GOMES, 2002. p. 22). Foi no final da primeira metade do século XX, com a revolução industrial, que o Brasil deixou de ter uma economia essencialmente agrícola para aderir ao novo pensamento econômico, instalando a primeira indústria 3 O primeiro código comercial da história do direito comercial foi promulgado por Napoleão Bonaparte, em 15 de setembro de 1807, e entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1808. Da interação entre os direitos... // 189 automobilística brasileira e, e decorrência desse fato econômico, inaugurando o fenômeno do consumo de massa que, vem se alargando com o surgimento da internet e crescimento cibernético (MARQUES, 1999, p. 128129). A Constituição da República de 1988 contemplou a proteção ao direito do consumidor como princípio de garantia individual (art. 5º, inciso XXXII4) e ainda, como princípio da Ordem Econômica (art. 170, inciso V5) e, na codificação das relações de consumo, buscou o legislador restabelecer o respeito à dignidade da pessoa humana. Inicialmente foi a Constituição Federal que estabeleceu os fundamentos do Código de Defesa do Consumidor e, num segundo momento, o elevou à condição de princípio basilar para o modelo político e econômico brasileiro, como o da soberania nacional, da propriedade privada, da livre concorrência entre outros (CAVALCANT, 2009, p. 89). A elaboração do Código de Defesa do Consumidor não só veio a atender ao mandamento do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, como também veio a seguir uma diretriz das Nações Unidas (SILVA, 2004, p. 25). O Código de Defesa do Consumidor apresenta inúmeros princípios, a começar pelo artigo 1º, o qual estabelece que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social, não podendo, em consequência, ser derrogadas pela vontade das partes, mesmo que de comum acordo (BONATTO, 2004, p. 13). Estas restrições encontram-se elencadas no art. 39, da Lei n. 8.078/90, sob a rubrica de “práticas comerciais abusivas”. A disposição do caput do art. 4º do Código de Defesa do Consumidor ordenou que Política Nacional de Consumo tivesse a responsabilidade de atender aos princípios ali relacionados, sendo o princípio da vulnerabilidade, princípio da ação estatal, princípio da harmonização das relações de consumo, princípio da boa-fé e o princípio da educação e informação. Diante destas ponderações, explica-se o tratamento dispensado ao consumidor, no art. 6º, inciso VII, da Lei n. 8.078/90, ao dispor que o consumidor tem, entre outros direitos básicos, a facilitação da defesa, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando este hipossuficiente (BITTAR, 2004, p. 28). Importante ressaltar que nem todos os consumidores são hipossuficientes, pois a lei assim não os considera, porém, a lei não fez distinção alguma quanto aos consumidores que necessitam desta proteção legal, por não possuírem de entendimento mínimo para provarem, por si só, a sua própria defesa, daqueles que por questões culturais, sociais e 4 Art. 5, XXXII, CF/88 - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. Art. 170, V, CF/88. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)V - defesa do consumidor. 5 190 // Problemas da jurisdição contemporânea... econômicas, não poderiam efetivamente buscar socorro jurídico aos interesses individuais (SODRÉ, 2007, p. 91). Observa-se que o Estado tem o compromisso de garantir e proteger os interesses dos consumidores, bem como assegurar a efetividade de seus direitos, salientando que a intervenção Estatal ocorre pela necessidade da preservação da parte mais frágil da relação: o consumidor. 11.4 OS PRINCÍPIOS DA LEI N.º 8.078/90 E OS DIREITOS BÁSICOS DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O Código de Defesa do Consumidor é considerado no ordenamento jurídico brasileiro como uma das leis mais democráticas cujos preceitos foram insculpidos pela Constituição Federal. Seu objetivo é proteger o consumidor buscando alcançar uma sociedade mais justa e satisfatória, em consonância ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. O surgimento do Código de Defesa do Consumidor veio ao encontro da busca pela sociedade de proteção aos seus direitos como uma nova classe que despontava: os consumidores. É um ramo autônomo, não se tratando de ramificação de qualquer outra área do direito, a fim de regular as relações de consumo. O consumidor é definido no art. 2º, como sendo pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. É considerado vulnerável pelo Código, buscando resguardar a igualdade de direitos, exercida de forma desigual entre fornecedores e consumidores, com o intuito de atingir a isonomia e equilíbrio nas relações. Conceitua no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, o fornecedor como sendo pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exploração, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços, mediante uma interpretação que sempre será favorável ao consumidor, tendo o serviço ou produto por objeto (§2º e 3º) valendo-se de uma linguagem própria. Em função de todas essas modernidades, o Código de Defesa do Consumidor relativizou os princípios da autonomia privada e o brocardo do pacta sunt servanda, em razão dos contratos de adesão, já que a ideia clássica de contrato pressupõe igualdade entre as partes (SCHMIDT, 2012, p. 154). A efetivação da defesa do consumidor busca amparo nos princípios constitucionais, que foram inseridos como direitos básicos fundamentais, como disposto no art. 4º do Código de Defesa do Consumidor que trata da Política Nacional das Relações de Consumo, buscando resguardar as necessidades como saúde, dignidade, segurança, proteção dos interesses econômicos, melhoria na qualidade de vida, visando à transparência e harmonia nas relações de consumo. Da interação entre os direitos... // 191 Vejam-se a seguir quais são esses princípios legais e os direitos básicos do consumidor. 11.4.1 Dignidade da pessoa Um dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo diz respeito ao valor essencial do ser humano. Ainda que tal consenso se restrinja muitas vezes apenas ao discurso ou que essa expressão, por mais genérica que seja, possa envolver concepções mais diversas, o fato é que a dignidade da pessoa humana, o valor do homem com o fim em si mesmo, é hoje um ícone da civilização ocidental (GIANCOLI, 2008, p. 103). A aplicação do princípio da dignidade humana consiste precisamente em determinar que o conteúdo mínimo existente, com o intuito de garantir o mínimo para a existência de uma vida digna. Segundo Cristiano Heineck Schmitt (SCHMITT, 2014, p. 28), na Constituição Federal brasileira, podemos consignar que a dignidade da pessoa humana ocupa posição de destaque, sendo um dos fundamentos de nossa nação, que entre os objetivos principais, busca constitui-se em uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional, que busque erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos sem discriminação. Funções são desempenhadas pela proteção da dignidade da pessoa, podendo esta equivaler a um fundamento do ordenamento jurídico, como princípio geral de direito, como critério orientador da interpretação do direito, como instrumento para integração do ordenando ou como uma norma de conduta e de limite ao exercício de direitos. Assim, a garantia constitucional de direito à vida é inerente à dignidade humana e por esta razão estão inseridas em seu contexto condições mínimas, que possam garantir uma vida digna, não sendo admitidas profundas desigualdades sociais, culturais e econômicas. 11.4.2 Proteção à vida, segurança e saúde Saúde e segurança são direitos que nascem atrelados ao princípio maior da dignidade humana, uma vez que a existência com dignidade pressupõe um vital mínimo. No art. 4º, caput do Código de Defesa do Consumidor reafirma de forma expressa a saudável qualidade de vida do consumidor e sua segurança, reprisando no inciso I do art. 6º. Dessa forma a regra do caput do art. 4º retrata um cenário amplo de segurança e condições morais e materiais para o consumidor. Quando se refere à qualidade de vida, não está querendo apresentar apenas o conforto material, mas também ao direito de usufruir da prestação de serviços, onde alguns são essenciais como serviços públicos de água, luz, transporte, medicamentos, dentre outros. 192 // Problemas da jurisdição contemporânea... O art. 6º da CF apresenta como direitos aos cidadãos brasileiros que estão ligados a qualidade de vida, em específico a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. O Código de Defesa do Consumidor apresenta no seu art. 8 que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não poderão acertar riscos à saúde ou à segurança do consumidor, exceto os considerados normais e previsíveis em consequência de sua natureza e fruição. Essa norma disposta no art. 8 está tratando de expectativa do consumidor em relação ao uso e consumo regular de algum produto ou serviço quanto do fornecedor em relação ao mesmo aspecto. Neste ponto a lei se refere à normalidade e previsibilidade do consumidor médio, consumidor em relação ao uso e funcionamento em sua rotina de um produto ou serviço. Luiz Antonio Rizzato Nunes (2000, p. 134) exemplifica: Assim, por exemplo, do ponto de vista da segurança, um liquidificador apresenta riscos na sua utilização. Não se pode, evidentemente, colocar a mão dentro do copo com o aparelho ligado. Quando afirmamos “evidentemente” estamos justamente querendo realçar esse aspecto do uso e funcionamento normal do produto. Trata-se de expectativa regular do consumidor, que detém o conhecimento sobre o regular uso daquele produto. Na sequência o art. 9 dispõe que caso o produto seja potencialmente nocivo ou perigoso à saúde ou segurança do consumidor, a informação deve ser prestada de forma ostensiva e adequada, ou seja, não basta apenas disponibilizar a informação, é preciso que o consumidor efetivamente entenda o que está sendo informado. Importante frisar que neste contexto o Código de Defesa do Consumidor determina a todos os fornecedores um dever de qualidade dos produtos e serviços que atenda e assegure a todos os consumidores, conforme art. 2, caput e parágrafo único, art. 29 e art. 17, um direito de garantia e proteção ao consumidor, fruto do princípio de confiança e de seguranças, dispostos no art. 4, V do Código de Defesa os Consumidores. 11.4.3 Proteção e necessidade Uma das questões básicas que justificam extrema proteção, indo até a intervenção do Estado no domínio econômico, é a da necessidade do consumidor em relação a certos produtos e serviços. A Lei 8.078 apresenta como regra a proteção do consumidor, buscando a validação do disposto do art. 5, XXXII e art. 170, V, ambos da Constituição Federal, ocorrendo mesmo naquelas hipóteses onde se admite a liberdade de escolha do consumidor. Podemos apresentar como exemplos os casos de medicamentos únicos para doenças graves no serviço público (NUNES, 2000, p. 104). Esse princípio da garantia do suprimento das necessidades do consumidor está em consonância com o princípio maios básico que lhe dá Da interação entre os direitos... // 193 sentido, que é o da liberdade de agir e escolher, garantido no texto constitucional (art. 1, III, art. 3, I e art. 5, caput, entre outros). Todavia a proteção dos direitos dos consumidores é na atualidade uma necessidade para o avanço do processo democrático, da cidadania e dos direito humanos de um país. Uma economia aberta e com avanços na tecnologia induz a necessidade de consumidores atuantes, capazes de exigir serviços e produtos com preços adequados e qualidade equivalente, propiciando sua satisfação nas relações de consumo de consequentemente uma melhoria na qualidade de vida. 11.4.4 Princípio da informação O princípio da informação pode ser considerado uma das regras mais importantes que são inerentes a Política Nacional das Relações de Consumo. A educação caminha junto com a informação e estas buscam a efetiva proteção e defesa do consumidor, sendo dessa forma quanto mais desenvolvido o sistema educacional maior as possibilidades de se concretizar o fim pretendido por estes institutos (EFING, 2008, p. 106). O princípio da informação pode ser interpretado de várias formas, todas elas convergindo para o dever do fornecedor a prestar todas as informações acerca do produto ou serviço, sua natureza, riscos, qualidade e preço de forma compreensível e certa, não admitindo irregularidades no ato de informar. O dever de informar tem como fundamento o princípio da boa-fé objetiva que deve estar presente em qualquer relação jurídica, considerado como uma conduta pautada na transparência, lealdade, cooperação, dentre outras. Segundo Fernanda Nunes Barbosa (BARBOSA, 2008, p. 94) em um plano estritamente formal o primeiro fundamento do dever de informação pode ser encontrado nos denominados “princípios gerais da contratação” e em particular no princípio que impõe o dever boa-fé, uma vez que a jurisprudência tem demonstrado que os consumidores ingressam na relação de consumo sobre a base de uma “legítima confiança” no fornecedor, ficando dispensado de realizar investigações, averiguações ou tratativas que permite entrar em uma negociação de forma despersonalizada, atuando de forma célere. A transparência complementa o princípio, já que nas relações de consumo devem se firmar em ambiente de absoluta transparência entre as partes, sob pena de viciar a manifestação de vontade do consumidor, conforme disposto no art. 4º, IV do Código de Defesa do Consumidor. Assim, estabelecida no art. 4º, caput do Código de Defesa do Consumidor, o princípio da informação filia-se ao princípio da boa-fé, de que age de forma derivada como sendo um subprincípio, significando clareza, nitidez, precisão e sinceridade (GIANCOLI, 2009, p. 46). Uma vez que é complemento ao princípio do dever de informar definido no inciso III do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, que 194 // Problemas da jurisdição contemporânea... dispõe sobre o direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem (BRASIL, 2015, p. 140). 11.4.5 Harmonia O princípio da harmonização previsto no art. 4, III do Código de Defesa do Consumidor, apresenta a necessidade de respeitar, praticar e incentivar a harmonização das relações de consumo entre consumidores e fornecedores para que haja um equilíbrio entre as partes (NUNES, 2000, p. 105). É pilar da legislação consumerista princípios que buscam a preservação e harmonia das relações, sempre buscando o atendimento das necessidades dos consumidores, como saúde, segurança, qualidade de vida e dignidade da pessoa humana. 11.4.6 Equilíbrio Nota-se que este princípio entre ambos os partícipes das relações de consumo (consumidor e fornecedor) são compatíveis e complementares, com o intuito de existir equilíbrio nas ações para uma materialização profícua para todos. E neste ponto, quando se pretende o cumprimento do princípio do equilíbrio nas relações de consumo, cabe não descurar da realidade de como acontecem estas relações. Existe uma notória desproporção de forças entre fornecedor e consumidor nas relações efetivadas cotidianamente no mercado. Esta a razão do CDC (estabelecido como norma de ordem pública e interesse social) ter sido estruturado levando em consideração a vulnerabilidade (às vezes, elevada ao grau de hipossuficiência) do consumidor, traço indelével a impregnar todo este contexto. 11.4.7 Vulnerabilidade O inciso I do art. 4º reconhece: o consumidor é vulnerável. Tal reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal, vindo a significar que o consumidor é a parte mais fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade é real, concreta e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção, não se está apenas referindo aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão, ou seja, é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está a mercê daquilo que é produzido (NUNES, 2000, p. 106). Da interação entre os direitos... // 195 11.4.8 O princípio básico de boa-fé O princípio da boa-fé estampado no art. 4º da lei consumerista tem como função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, compatibilizando os interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Dessa maneira tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa do débil, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica (NUNES, 2000, p. 108). A lei consumerista incorpora a chamada boa-fé objetiva, diversa da subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito, ou seja, é a falsa crença acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Segundo Luiz Antonio Rizzato Nunes (NUNES, 2000, p. 108), a boafé objetiva pode ser definida como sendo uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças. Todavia para se chegar a um equilíbrio real, somente com a análise global do contrato, de uma cláusula em relação às demais, pois o que pode ser abusivo ou exagerado para um não será para o outro. Complementa Cristiano Heineck Schmitt (SCHMITT, 2006, p. 89) que sendo a boa-fé uma fonte de constituição de deveres independente da vontade das partes, o conteúdo da relação obrigacional não se medirá mais por esta, mas sim pelas circunstâncias referentes ao caso concreto. O acordo de vontades continua sendo fonte de direitos e obrigações, porém essa prerrogativa é assumida também pela boa-fé, de forma que tanto esta como a vontade servirá para interpretação das cláusulas conveniadas. Dessa maneira a boa-fé objetiva funciona como um modelo que não depende de forma alguma da verificação de má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor. Quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. A boa-fé será a base de interpretação das relações obrigacionais com consumidores, em termos de Código de Defesa do Consumidor em decorrência da positivação de deveres advindos dela, a fonte não será o princípio, mas sim a lei (SCHMITT, 2006, p. 89). Pode-se afirmar que esse princípio visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para garantir o fim esperado no contrato, realizando os interesses das partes (NUNES, 2000, p. 108). 196 // Problemas da jurisdição contemporânea... 11.5 INTERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE E O DIREITO DO CONSUMIDOR A Constituição Federal brasileira informa e impõe um sistema de valores estabelecendo em seu artigo primeiro o que seria os seus princípios fundamentais, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. E pelo artigo terceiro, inciso I, complementa firmando que são objetivos fundamentais para o país, construir uma sociedade livre, justa e solidária. Esses comandos constitucionais encontram na proteção aos direitos da personalidade e no cumprimento dos direitos dos consumidores, importantes instrumentos de operacionalização. Quando o direito da personalidade preconiza a proteção da vida, também o faz em proveito das pessoas que necessitando de produtos ou serviços acabam sofrendo os danos provocados em razão de fornecimento defeituoso, naturalmente vedado pelas normas de proteção ao consumidor. Dessa forma, não é apropriado pensar em vida na sua concepção plena, considerando-se o restrito sentido de sobrevivência física, mas sim em existência com ao menos aquele mínimo de qualidade merecida como direito humano. E essa condição de vida, como objeto de direito subjetivo, depende em muito da qualidade das relações de consumo que a pessoa realiza ao longo de sua vida. Em sua plenitude, a proteção desse direito da personalidade compreende o contexto de uma série de circunstâncias que acontecem no dia a dia das pessoas, incluindo as consequências decorrentes das relações de consumo em que elas são partícipes. Com relações de consumo mal sucedidas em razão dos fornecimentos defeituosos, pode acontecer o perecimento do consumidor, da possibilidade de ser mantida a devida sanidade de seu corpo e da sua mente. Os direitos do consumidor, valores transcendentes de modo que a regulamentação da matéria se estabelece no sentido da concretização de direitos constitucionalmente salvaguardados. Esses valores merecem o cuidado do legislador infraconstitucional quando da formulação da arquitetura dos direitos do consumidor. É curioso notar a frequência de expressões vitais, como saúde, segurança estarem presentes no bojo do Código de Defesa do Consumidor (“saúde e segurança dos produtos” - art. 8; “perigo à saúde ou segurança”art. 9). Mas não é sem menos que essas expressões circulam com facilidade no interior de artigos, incisos e alíneas, ou ainda encabeçando títulos e capítulos da Lei. Isso porque se trata de âmbito em que a pessoa pode sofrer atentados de inúmeras naturezas a direitos de personalidade, uma vez inserida em relação de consumo. O caráter invasivo das técnicas de comunicação, informação, produção e circulação de bens, publicidade é que tem motivado com maior intensidade lesões aos direitos da personalidade, sobretudo no âmbito das relações de consumo. Em face da multiplicidade de forma de contato consumerista, entre consumidor e fornecedor/prestador, uma série de lesões Da interação entre os direitos... // 197 podem dar ensejo à invasão do terreno dos direitos personalíssimos (cobrança vexatória; acusação injusta de roubo ou furto; disparo indevido de alarme de segurança em estabelecimento comercial; inclusão de nome nos cadastros de proteção ao crédito; atendimento discriminatório, entre outras hipóteses). Segundo Bruno Miragem (MIRAGEM, 2008, p. 111) a margem de sublinhar o caráter essencial da proteção da vida como direito subjetivo que admite múltiplas eficácias, mostra claramente essa aproximação ao ligar os direitos da personalidade e os direitos do consumidor. A doutrina ensina que, por um lado, determina a proteção da vida do consumidor individualmente considerado em uma relação de consumo específica. Isso indica a necessidade de proteção de sua integridade física e moral e, neste sentido, o vínculo de dependência da efetividade deste direito com os demais de proteção a saúde e da segurança, igualmente previstos no CDC. Uma segunda dimensão é a dimensão transindividual do direito à vida, tendo a sua proteção de modo comum e geral a toda coletividade de consumidores efetivos e potenciais, com relação aos riscos e demais vicissitudes do mercado de consumo, o que no caso, determina a vinculação deste direito subjetivo e outros como o direito a segurança, e ao meio ambiente sadio. O direito à vida, contudo, antes de ser um direito básico do consumidor, configura-se como direito essencial da personalidade, e direito fundamental consagrado na Constituição da República (artigo 5, caput). Portanto, é nesta dimensão que deve ser compreendido. Analisando por essa perspectiva, não remanesce dúvida, da existência de espaços de confluência entre o direito da personalidade e o direito do consumidor. Situação semelhante ocorre em relação ao direito à liberdade. Qualquer indivíduo preso injustamente contrata advogado que mediante seu trabalho obtém a soltura desse cliente, está a receber a tutela dos direitos da personalidade e tem a relação de consumo regida pelo direito do consumidor. Pode-se considerar inclusive, que os direitos à informação e a liberdade de escolha consoante previsto no CDC (art. 6, incisos II e III), fazem parte do espectro mais amplo de proteção à liberdade conforme os direitos da personalidade. Finalmente quando é cerceado o direito à informação, o destinatário dela sofre evidente prejuízo, vez que não estando convenientemente esclarecido, restam desmesuradamente aumentadas às dificuldades para fazer suas escolhas de forma adequada, uma das possibilidades da liberdade como um todo. No que diz respeito à tutela da dignidade humana prevista nos direitos da personalidade, tem-se que a configuração dela se perfaz segundo a realidade dos fatos, ou seja, sua caracterização depende do caso concreto, que pode envolver, por exemplo, relação de consumo na qual à imagem da pessoa é indevidamente denegrida chegando a afetar a personalidade, ou então, o consumidor é exposto ao ridículo nas cobranças abusivas ou vexatórias. Embora existam circunstâncias que estabeleçam diferenças, o princípio da dignidade humana permanece o mesmo, válido e impositivo, 198 // Problemas da jurisdição contemporânea... independente de que seja observado pelo viés do direito da personalidade, quer seja visualizado segundo a ótica do direito do consumidor. Segundo Cláudia Lia Marques (MARQUES, 1999. p. 46-47), adotando a noção de hipervulnerabilidade para aplica-la inclusive aos consumidores com vulnerabilidade agravada pelo Código de Defesa do Consumidor aos hipossuficientes, sabiamente refere: Interessante mencionar que a jurisprudência desenvolveu a noção de hipervulnerabilidade como um corolário positivo da proibição de discriminação, logo do princípio da igualdade (um dever ser) e mandamento de pleno desenvolvimento da personalidade, diretamente ligada, pois, a nossa visão de dignidade de pessoa humana (tratamento equitativo e digno da pessoa humana). Levando em consideração as expressões que pretende a proibição da discriminação, princípio da igualdade ou da dignidade humana, são corriqueiros nos direitos da personalidade e no direito do consumidor, ocorrendo um alinhamento entre eles, ou seja, inexiste sobreposição nem hierarquia de normas, prestigiando e interagindo a maior parte dos direitos fundamentais e protegendo a personalidade das pessoas, bem como as amparando enquanto consumidoras. Dessa forma, os direitos da personalidade e o direito do consumidor, nos pontos de convergência devem dialogar com coerência, com intuito de atingir os objetivos que compõem as suas funções sociais. 11.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O princípio da dignidade da pessoa humana concomitante com o princípio da isonomia está no ápice do ordenamento jurídico brasileiro, incidindo diretamente nas relações privadas. No âmbito das relações de consumo, o princípio da boa-fé ganha força, enquanto estrutura central do comportamento ético e solidário, pro sua expressa previsão no Código de Defesa do Consumidor. Ou seja, a interação entre os direitos da personalidade com o direito do consumidor são ferramentas da eficácia da tutela jurisdicional do consumidor e exatamente entre o diálogo entre esses direitos que se alcançam os objetivos que compõem as suas funções sociais, mormente a tutela dos direitos do consumidor. 11.7 REFERÊNCIAS ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. BARBOSA, Fernanda Nunes. Informação: direito e dever nas relações de consumo. São Paulo: RT, 2008. Da interação entre os direitos... // 199 BERALDO, Marllon. Assédio Moral e sua Criminalização. São Paulo: LTr, 2012. BITTAR, Carlos Alberto. 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São Paulo: Atlas, 2013. . 200 // Problemas da jurisdição contemporânea... = XII = DA PESSOA TRANSEXUAL E DA PESSOA HOMOSSEXUAL: DA PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO E VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Sarah Tavares Lopes da Silva1 Francielle Lopes Rocha2 12.1 INTRODUÇÃO O presente trabalho possui como objetivo abordar sobre o tema da aplicação de medidas protetivas, com ênfase na responsabilidade penal, quando ocorrem as violações de direitos da personalidade, sendo vítimas as pessoas transexuais e homossexuais, as quais, constantemente, são colocadas à margem da sociedade, sendo diariamente discriminadas, bem como vítimas de violência, tanto psíquica como física. Inicialmente, aborda-se sobre a diversidade sexual, pois necessário se faz esclarecer que, embora a pessoa tenha nascido com determinado sexo anatômico, nem sempre a sua identidade de gênero e orientação afetiva sexual correspondem aquele, ou seja, não é sempre que uma pessoa nasce na forma cissexual. Inserida no tema diversidade sexual, está o estudo sobre o gênero, identidade de gênero, orientação afetiva sexual do indivíduo e a identidade de gênero. Quando a pessoa nasce, o corpo social bem como o núcleo familiar, com base apenas na genitália do recém-nascido, já realiza a programação de como será a educação desta criança, e ações que implicam em seu desenvolvimento, dentre outros. Os meninos usaram roupas de tom mais escuro, bem como, no labor, vão exercer trabalhos mais pesados; já as meninas irão usar vestimentas mais claras, predominando a cor rosa, irão desenvolver atividades de cunho doméstico, dentro outras características. Mestranda na Pós-Graduação stricto sensu em Ciências Jurídicas na instituição Unicesumar – Centro Universitário de Maringá. Especialista em Direito Civil Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná – Núcleo de Maringá. Graduada em Direito pela instituição Faculdade Maringá. Advogada em Maringá. Endereço eletrônico: <[email protected]>. Sob orientação de Valéria Silva Galdino Cardin, Professora da Universidade Estadual de Maringá e do Centro Universitário - Cesumar; Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: <[email protected]>. 2 Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do Centro Universitário Cesumar - UniCesumar. Bolsista da CAPES pelo projeto PROSUP. Advogada em Maringá - Pr. Endereço eletrônico: [email protected]. Sob orientação de Valéria Silva Galdino Cardin, Professora da Universidade Estadual de Maringá e do Centro Universitário - Cesumar; Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: <[email protected]>. 1 202 // Problemas da jurisdição contemporânea... Porém, nem sempre um indivíduo irá corresponder ao sexo biológico que possui, podendo uma mulher, por exemplo, ser heterossexual e mesmo assim gostar da cor azul e de brincar de carrinho; outro caso, é a criança que sente afeto emocional e amoroso por alguém do mesmo sexo, dentre outros. Cada pessoa possui uma identidade de gênero distinta, bem como também é distinto a orientação afetivo sexual. Assim temos que todas as pessoas, em si mesmas, são desiguais, cabendo ao Direito criar e efetivar normas que tragam igualdades. Pela prevalência da paz e do bom convívio social, os desiguais devem tomar a posição de iguais. Todavia, não é isto que ocorre com as pessoas que não se enquadram no padrão heteronormativo. Neste passo, necessário abordar sobre a proteção a pessoa humana. Temos que, logo após a Segunda Guerra Mundial, observando as atrocidades cometidas devido à guerra, principalmente nos campos de concentração, também conhecidos como campos de extermínio, de Adolf Hitler, o cenário internacional passou a demonstrar maior cautela em questões que versem sobre a proteção da pessoa. Foram criados diversos Tratados e Convenções Internacionais no intuito de garantir que todas as pessoas tivessem acesso a condições de vida digna. Os Princípios de Yogyakarta foram elaborados no final dos anos noventa. Eles são aplicados a pessoas ou grupos que sofram com a discriminação, marginalização ou até a violência, devido a sua orientação sexual e identidade de gênero. Por seguinte, necessário fazer a distinção entre pessoas transexuais e homossexuais. Os homossexuais são pessoas que possuem orientação afetiva sexual, sentindo amor, carinho, e atração sexual por alguém que possua o mesmo sexo biológico. Já os transexuais correspondem a uma pessoa cuja a identidade de gênero não corresponde ao sexo anatômico, ou seja, o sexo psíquico é distinto da genitália tida no nascimento, sendo que esta pessoa se vê como alguém do sexo oposto. No Brasil, não há legislação própria que garanta condições de vida digna aos homossexuais e transexuais, cabendo ao aplicador da lei realizar o uso da analogia em diversos casos, sempre se atentando as normas e princípios que regem a Constituição Federal, diploma superior aos demais. Com a falta de leis que possuem como objetivo resguardar e assegurar os direitos de transexuais e homossexuais, torna-se fácil para aqueles que não aceitam estas pessoas realizar discriminação e violência, tanto psíquica como também física. Constantemente, transexuais e homossexuais são colocados à margem da sociedade, sendo estas, pessoas que sofrem constante discriminação simplesmente porque sua identidade de gênero e orientação afetiva sexual não corresponder ao que é considerado regra pela sociedade, ou seja, a união exclusiva entre homem e mulher. Por conta desta aversão a estas pessoas, têm-se os termos homofobia e a transfobia. Por fim, aborda-se sobre a utilização da Lei Marina da Penha (Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006), a qual não defende, apenas, a violência Da pessoa transexual... // 203 contra a mulher, como muitas pessoas pensam, mas sim todas as violências que atinjam o gênero feminino. Posto isso, com este trabalho busca-se explanar quanto a diversidade sexual, com enfoque na pessoa homossexual e transexual, os quais são de forma corriqueira, vítimas de um sistema falho, tanto na educação das pessoas, como também devido a omissão do legislador, o qual até o presente momento não envidou esforços para resguardar os direitos dessas pessoas. 12.2 DA DIVERSIDADE SEXUAL A sociedade caracteriza todo o ser humano enquanto macho ou fêmea observando apenas suas características biológicas. Assim, toda criança tem sua existência atrelada, e o seu futuro determinado quando da descoberta de seu sexo. A princípio, tem-se a prevalência de que todas as pessoas são seres vivos cissexuais, ou seja, o sexo biológico obrigatoriamente deve corresponder ao gênero e à identidade de gênero, o que acaba determina a orientação sexual da pessoa. Assim, por exemplo, se um bebê nasce com o sexo biológico feminino – vulva, obrigatoriamente deverá ter um nome feminino, por exemplo, Sophia, usar roupas femininas, como vestidos, saias, acessórios, dentre outros; e se relacionar com uma pessoa do sexo oposto. Todavia, através de estudos e observando a história humana, observa-se que nem sempre o sexo biológico está atrelado à identidade de gênero e a orientação afetiva sexual. O reconhecimento da sexualidade humana é plural (GIRARDI, 2014, p. 35). Há grande diversidade de nomenclaturas para definir a orientação afetiva sexual e a identidade de gênero distinta, sendo as mais conhecidas: (a) heterossexualidade: atração física, emocional e amorosa entre pessoas de sexo distintas; (b) homossexualidade atração física, emocional e amorosa entre pessoas do mesmo sexo biológico; (c) bissexualidade consiste na atração afetiva por pessoas de ambos os sexos (feminino ou masculino), independentemente do gênero a que correspondem. Caracteriza-se pela alternância da preferência sexual; (d) transexual, que é o indivíduo que se identifica como pertencente ao outro sexo, e possui grande frustração ao tentar se expressar pelo sexo genético. A Organização Mundial da Saúde classifica o transexual como transtorno de identidade sexual; (e) intersexual: intersexualidade, em seres humanos, é qualquer variação de caracteres sexuais incluindo cromossomos, gônadas e / ou órgãos genitais que dificultam a identificação de um indivíduo como totalmente feminino ou masculino. Essa variação pode envolver ambiguidade genital, combinações de fatores genéticos e aparência e variações cromossômicas sexuais diferentes de XX para mulher e XY para homem. Pode incluir outras características de dimorfismo sexual como aspecto da face, voz, membros, pelos e formato de partes do corpo. A pessoa, neste caso, apresenta ambiguidade no sexo biológico; dentre vários outros. 204 // Problemas da jurisdição contemporânea... Quanto à sexualidade humana, segundo o autor Tony Anatrella (2010, p. 626): A sexualidade humana não se reduz à expressão genital, situando-se no fundamento psíquico do desenvolvimento da vida afetiva, da relação com o outro e do sentido de desejo. Por seu turno, a expressão sexual que inscreve numa dupla perspectiva: enriquecer a relação com o outro no prazer de estarem juntos e na procriação no seio de um casal [..]. Assim, tem-se que a sexualidade humana é um direito existencial, pois a personalidade do indivíduo não é apenas um direito, mas sim um valor fundamental (GIRARDI, 2014, p. 36). No mais, segundo a autora Jaqueline Bergara Kuramoto (2004, p. 160): A sexualidade está inserida nos indivíduos desde os primórdios da humanidade, e vive-la em sua plenitude faz parte da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Esses são direitos constitucionais de todas as pessoas e, portanto, devem ser respeitados pela sociedade, principalmente questões que envolvem a sexualidade e as opções sexuais, por serem de foro íntimo pessoal. A sexualidade humana é um direito personalíssimo, pois é uma parcela indissociável da personalidade humana, estando vinculada ao seu titular, podendo este exerce-la de forma plena e imprescindível. Assim, em atenção ao respeito à diversidade sexual, o Supremo Tribunal Federal se manifestou, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, que todos os seres humanos possuem a autonomia de determinarem a sua própria história de vida. Nesta seara, o STF julgou dois importantes casos, vindo a expressar o seu posicionamento a favor da diversidade sexual. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277, que deu nova interpretação ao art. 1.723 do Código Civil, seguindo valores constitucionais, para assegurar aos homossexuais o mesmo tratamento fornecido aos heterossexuais (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 4277 DF): Ementa: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO Da pessoa transexual... // 205 CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. [...] 3. [...] O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. [...] 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. [...]. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua nãoequiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, in verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. [...] RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. Igualmente, também houve a análise na ADPF 132 – Rio de Janeiro, pelo Supremo Tribunal Federal, a qual determinou a proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles. 12.2.1 Da identidade de gênero e da orientação afetivo sexual Muitas pessoas acreditam que um ser humano considerado “normal” é aquele cujas as características externas e, principalmente, internas, estejam vinculadas ao sexo biológico com o qual a pessoa nasceu. Porém, 206 // Problemas da jurisdição contemporânea... nem sempre isto ocorre, ou seja, não será em todos os casos em que haverá a existência de uma pessoa cissexual. A sexualidade da pessoa humana é constituída por vários elementos: sexo; identidade de gênero; gênero; e orientação afetiva sexual. O sexo da pessoa está ligado ao órgão reprodutor com a qual esta nasce. No caso de um macho, o qual possui os cromossomos XY, ele nascerá com o pênis; e no caso de uma fêmea, a qual é composta pelos cromossomos XX, ela nascerá com uma vagina. É com a descoberta do sexo biológico que os genitores, demais familiares, amigos, e a sociedade, passam a atrelar toda a existência da pessoa à mesma, pois se espera que ela se comporte de uma forma já determinada para o seu sexo, devido a costumes, crenças e religiões, bem como normas legais atreladas ao status jurídico. Todavia, a identidade de gênero e a orientação afetiva sexual não estão vinculadas ao sexo biológico da pessoa. A orientação afetiva sexual está ligada a forma de expressão do amor, desejo ou sentimentos, de uma pessoa para a outra. Logo, um homem não necessita, obrigatoriamente, amar uma mulher, podendo ele amar alguém que seja do mesmo sexo; amar ambos os sexos, dentre outras formas. Quanto à identidade de gênero, está ligado ao gênero com o qual a pessoa se identifica, que pode ou não corresponder ao gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento (feminino ou masculino). No caso da pessoa transexual, por exemplo, tem-se que a mesma não aceita seu gênero de nascimento, enfrentando esta pessoa sentimento de extrema angustia interna, vez que se vê como pertencente ao sexo oposto (GROSSI, web). Por esta razão, o transexual passar a utilizar vestimentas do sexo oposto, vindo a ingerir hormônios que deixem seu corpo mais parecido com o outro sexo e, em alguns casos, vindo a realizar a cirurgia de transgenitalização. Muitas pessoas não aceitam que a identidade de gênero e a orientação afetiva sexual não correspondam ao sexo biológico, vindo a denegrir pessoas que não estão inseridas no padrão heterossexual, valendose da violência física e psíquica, bem como marginalizando estas pessoas. Por muitas vezes, o próprio Estado, o qual a priori tem o dever de proteger a todas as pessoas, de forma igualitária, não produz políticas públicas para resguardar os direitos dessas pessoas e, com as leis que já possui, evita, também, realizar a proteção necessária. A Constituição Federal de 1988 garante os direitos humanos, igualitários, a todas as pessoas (art. 3º, inciso IV da CF/88). Ademais, prevê tratamento igualitário entre todos os cidadãos, independente de sua identidade de gênero e/ou expressão da sexualidade. Tanto o princípio da igualdade, como da liberdade, são aplicados com ênfase a todas as pessoas do ordenamento jurídico brasileiro. Porém, nem sempre esta igualdade ou liberdade é respeitada, seja pela sociedade, pelo Estado ou pela própria família da pessoa. Da pessoa transexual... // 207 12.3 DA PROTEÇÃO À PESSOA HUMANA: DIREITOS HUMANOS Os direitos humanos apresentam duas fontes. A princípio, são oriundos de reinvindicações de cunho moral, ou seja, ações de várias pessoas em busca de melhores condições de vida. Além disso, os direitos humanos nascem com a pessoa, ou seja, são direitos naturais e universais, desenvolvendo-se como direito positivo particular (PIOVESAN, 2010, p. 182). Historicamente, observa-se que o Direito Humanitário, Liga nas Nações e Organização Internacional do Trabalho demonstram-se como os marcos iniciais do processo de internacionalização dos direitos humanos. O Direito Humanitário é aplicado em situações de guerra, a fim de resguardar e proteger o direito das pessoas, evitando-se a prática da violência. Este é composto pelas leis das Convenções de Genebra e da Convenção de Haia. Já a Liga das Nações foi fundada logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1920, com o objetivo de promover a paz e a segurança internacional entre os Estados. Por sua vez, a Organização Internacional do Trabalho disponibilizou normas internacionais de trabalho, visando o labor decente (PIOVESAN, 2010, p. 184-185). Todavia, a internacionalização dos direitos humanos ocorreu em decorrência da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Devido à monstruosa violação dos direitos humanos realizados durante esta guerra, principalmente as atrocidades cometidas por Adolf Hitler, o qual ordenou a construção de campos de concentração, também conhecidos por campos de extermínio, local onde eram detidos e mortos os inimigos do regime nazista, é que se criou a crença que muitas destas violações e violências poderiam ser prevenidas se existisse a proteção internacional dos direitos humanos. Após a Segunda Guerra Mundial, emergiu a necessidade de se reconstruir os direitos humanos, que anteriormente foram rompidos, buscando as novas normas a se valerem da ética e da moral para construir condições de vida melhores. Com isto, foram criadas as Nações Unidas, adotada a Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, as quais passaram a ocupar espaço de extrema relevância no senário internacional. Segundo a autora Flávia Piovesan (2010, p. 210): A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear um ordem pública mundial no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos e universais. Desde seu preâmbulo é afirmado à dignidade inerente a toda a pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição da pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. Assim, temos que a Declaração Universal de Direitos Humanos, bem como demais Declarações e Tratados Internacionais, apresentam a concepção de direitos humanos, passando os indivíduos a serem reconhecidos como independentes e indivisíveis, merecedores de proteção especial por parte do Estado, ao qual cabe garantir a efetivação dos direitos 208 // Problemas da jurisdição contemporânea... fundamentais, em especial, a igualdade e a dignidade da pessoa humana, evitando-se que as pessoas sejam vítimas de atos discriminatórios, os quais as coloquem em situação de vulnerabilidade. 12.4 DOS PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA Inicialmente, antes de se adentrar sobre os Princípios de Yogyakarta, necessário se faz entender um pouco sobre o contexto político-social do final dos anos de 1990. No Brasil, o grupo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis), passava por grandes dificuldades, pois os integrantes deste grupo eram constantemente marginalizadas pela sociedade brasileira, o que resultava na vulnerabilidade social destas pessoas. Os integrantes do grupo LGBT possuíam pouco acesso a condições básicas de vida, tais como saúde e educação. Ademais, não possuíam participação na política, bem como ocupavam classes de menor grau econômico, ou seja, a pobreza para este segmento era generalizada. No final dos anos noventa, passaram a ocorrer avanços políticos que permitiram a maior inclusão de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis no meio social, vindo a serem reconhecidos direitos que antes eram negligenciados a determinados grupos. O casamento, por exemplo, foi um desses direitos adquirido. No plano jurídico, o casamento passou a ser reconhecido como direito, independente do sexo, identidade de gênero ou orientação afetivo-sexual da pessoa. Em 14 de maio de 2013, foi aprovada durante a 169ª Sessão Plenária do Conselho Nacional de Justiça a Resolução nº 175, a qual dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo (BRASIL, 2013, web). No ano de 2003, em Genebra, foi realizada durante a 59ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, onde o Brasil recomendou uma proposta de resolução com o objetivo de proibir a discriminação devido à orientação sexual. Esta proposta acabou conhecida como “Resolução Brasileira”. Todavia, embora o Brasil contasse com um grande número de Estados que apoiasse sua iniciativa, países como os Estados Unidos, Vaticano, bem como países árabes, se opuseram veemente a esta proposta. No ano de 2004, durante a 60ª Sessão, a proposta, agora apoiada pela União Europeia, países como Canadá, Argentina, foi novamente retirada da pauta. Posteriormente, o Brasil não mais tentou aprovar a proposta (GUIMARÃES, 2014, p. 711). A falta de insistência por parte do Brasil gerou perplexidade, tanto no âmbito nacional como internacional. Por conta disso, em defesa aos direitos humanos, no ano de 2007 o grupo internacional conhecido como experts promoveu em Genebra a apresentação dos Princípios de Yogyakarta. Estes princípios nada mais são do que a reinterpretação dos direitos fundamentais, os quais foram consagrados em Tratados Internacionais, bem como Convenções e Resoluções. Da pessoa transexual... // 209 Os Princípios de Yogyakarta são aplicados a pessoas ou grupos que sofram com a discriminação, marginalização ou até a violência, devido a sua orientação sexual e identidade de gênero. Elencam-se a seguir os 29 Princípios de Yogyakarta (YOGYAKARTA, web): 1. DIREITO AO GOZO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS 2. DIREITO À IGUALDADE E A NÃO DISCRIMINAÇÃO 3. DIREITO AO RECONHECIMENTO PERANTE A LEI 4. DIREITO À VIDA 5. DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL 6. DIREITO À PRIVACIDADE 7. DIREITO DE NÃO SOFRER PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE 8. DIREITO A JULGAMENTO JUSTO 9. DIREITO A TRATAMENTO HUMANO DURANTE A DETENÇÃO 10. DIREITO DE NÃO SOFRER TORTURA E TRATAMENTO OU CASTIGO CRUEL, DESUMANO OU DEGRADANTE 11. DIREITO À PROTEÇÃO CONTRA TODAS AS FORMAS DE EXPLORAÇÃO, VENDA E TRÁFICO DE SERES HUMANOS 12. DIREITO AO TRABALHO 13. DIREITO À SEGURIDADE SOCIAL E A OUTRAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO SOCIAL 14. DIREITO A UM PADRÃO DE VIDA ADEQUADO 15. DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA 16. DIREITO À EDUCAÇÃO 17. DIREITO AO PADRÃO MAIS ALTO ALCANÇÁVEL DE SAÚDE 18. PROTEÇÃO CONTRA ABUSOS MÉDICOS 19. DIREITO À LIBERDADE DE OPINIÃO E EXPRESSÃO 20. DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E ASSOCIAÇÃO PACÍFICAS 21. DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO 22. DIREITO À LIBERDADE DE IR E VIR 23. DIREITO DE BUSCAR ASILO 24. DIREITO DE CONSTITUIR FAMÍLIA 25. DIREITO DE PARTICIPAR DA VIDA PÚBLICA 26. DIREITO DE PARTICIPAR DA VIDA CULTURAL 27. DIREITO DE PROMOVER OS DIREITOS HUMANOS 28. DIREITO A RECURSOS JURÍDICOS E MEDIDAS CORRETIVAS EFICAZES 29. RESPONSABILIZAÇÃO. Os Princípios de Yogyakarta possuem como pilastra o conceito de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Ressalta-se que a orientação sexual e a identidade de gênero são essenciais para a dignidade de cada pessoa, tanto que a sexualidade humana é considerada como um direito da personalidade, não podendo este direito ser discriminado. Observa-se que não apenas as sociedades, mas também os Estados impõem a pessoa qual será o modelo de identidade de gênero bem como a orientação afetiva sexual a ser seguida por ela. Através de meios coercitivos, 210 // Problemas da jurisdição contemporânea... até mesmo o uso da violência, muitas pessoas são obrigadas a seguir o padrão denominado como “normal”, qual seja, a heteronormatividade. Para enfrentar as deficiências existentes tanto no plano nacional como também internacional, se faz necessário compreender em que consiste a legislação vigente em cada país, bem como a legislação que versa sobre os direitos humanos e sua aplicação em questões de identidade de gênero e orientação sexual. Os Princípios de Yogyakarta afirmam, através de seu texto, a obrigação dos Estados em realizar a proteção das pessoas por meio da implantação dos direitos humanos, pois a sociedade não é composta apenas de um único ser humano, mas sim de vários, devendo a totalidade ter seus direitos respeitados e garantidos. 12.5 DA TRANSEXUALIDADE A pessoa transexual não se submete a rigidez identitária que busca vincular o gênero e a identidade de gênero ao sexo biológico. Constantemente, a pessoa transexual tem seus direitos personalíssimos, bem como sua autodeterminação, violados em inúmeras esferas de sua vida social, inclusive no que diz respeito à alteração do nome no registro civil, pois depende da intervenção de terceiro para legitimar e confirmar algo que lhe é inerente desde seu nascimento, ou seja, sua identidade. Nesse sentido, segundo a autora Tereza Rodrigues Vieira afirma (2014, p. 541): “A transexualidade é caracterizada por um forte conflito entre corpo e identidade de gênero e compreende um arraigado desejo de adequar o corpo hormonal e/ou cirurgicamente àquele do gênero almejado”. Muitas pessoas consideram, de forma equivocada, que todos os transexuais possuem o desejo de, devido ao fato de se identificarem como pessoas do sexo oposto, realizar a cirurgia de readequação do sexo. Porém isto não é verdade. Existem duas formas de transexual: o binário é aquele transexual que nasceu com determinado sexo biológico, porém, se vê como alguém do sexo oposto e por isso pretende realizar a readequação de seu corpo humana ao sexo almejado, vindo a ingerir hormônios e realizar a cirurgia de transgenitalização. Em contrapartida, há o transexual não binário, o qual, mesmo estando no corpo que considera errado, pois se vê como alguém do sexo oposto, não sente repulsa pela genitália que possui, vindo a, apenas, tomar hormônios para ter uma aparência mais feminina/masculina. Aos transexuais que optam por realizar a cirurgia de readequação do sexo, antes de ser realizado o acompanhamento médico, se faz necessário realizar o acompanhamento psicológico, o qual tem como objetivo identificar se realmente o caso desta pessoa se trata de um caso de transgênero, necessitando ou não de cirurgia (CFM, 2010, web). Outra questão de sua importância está ligada a readequação do nome e do sexo no registro civil. Com relação ao prenome inadequado, consoante à autora Maria Fátima Pereira de Sá (2009, p. 262): Da pessoa transexual... // 211 A mudança de prenome do transexual não encontra respaldo expresso na legislação ordinária vigente, tendo em vista a adição do princípio da imutabilidade do nome da pessoa. Vários julgados ainda entendem ser inadmissível a alteração do registro ao fundamento de que há prevalência do sexo biológico sobre o sexo psíquico, o que justifica a imutabilidade. Acreditam, outrossim, no caráter mutilador da cirurgia. No Brasil, o único meio de se conseguir a alteração do sexo e do prenome no Registro Civil é por meio de autorização judicial, que se dá através de sentença judicial. Assim, a doutrina e jurisprudência têm dado uma interpretação mais liberal ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), valendo-se de alguns fundamentos: 1) o artigo 1º, III, da CF, coloca a dignidade do ser humano como um dos fundamentos da República, o que possibilita o livre desdobramento da personalidade, “[...] garantindo ao transexual o direito à cidadania e a posição de sujeito de direitos no seio da sociedade”; 2) a cirurgia não tem o caráter mutilador, mas sim corretivo; e 3) o direito ao próprio corpo é direito da personalidade, o que faculta ao transexual o direito de buscar o seu equilíbrio psicofísico. Com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, e observando que o transexual também é um cidadão, componente da sociedade no qual está inserido, deve ser reconhecido ao mesmo à posição de sujeito de direitos, incluindo-o socialmente. 12.6 DA HOMOSSEXUALIDADE A homossexualidade se refere a uma característica de sentimento e afeto, sendo que esta pessoa sente atração física ou emocional por outra pessoa do mesmo sexo. Posto isso, segundo o autor Tony Anatrella (2010, p. 627): A homossexualidade representa uma atração sexual mais ou menos exclusiva por pessoas do mesmo sexo. Corresponde a uma tendência sexual que se constitui aquando do desenvolvimento afetivo da pessoa, mas que se fixa com base num conflito psíquico não resolvido. Ao longo da história, observa-se que a homossexualidade foi admirada, tolerada e até mesmo condenada, pois a tolerância ou não desta dependida das normas sexuais vigentes da época. Quando admirados, estas pessoas eram vistas como membros importantes da sociedade, sendo respeitados e tendo seus direitos amplamente reconhecido pela mesma. Porém, quando condenados, as pessoas homossexuais eram consideradas seres pecaminosos, detentores de doenças, estando sua relação com algum parceiro proibida por lei. Importante destacar de desde o século XX, a sexualidade humana diversa do padrão heterossexual, tem sido desclassificada como doença e não mais criminalizada em muitos países. Porém, enquanto a visão jurídica 212 // Problemas da jurisdição contemporânea... sobre o tema, a formulação e aplicação da legislação ainda varia entre os países. No Brasil, o casamento homossexual, realizado em cartório, passou a ser legalizado por meio da Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 175 de 14 de maio de 2013. Porém, em muitos países, principalmente as Nações do Oriente Médio, as relações homossexuais são consideradas crimes, sendo punidas severamente pelo Estado e sociedade, como por exemplo, na Arábia Saudita, onde os homossexuais são condenados à morte por apedrejamento; e Irã, onde ocorre a morte por enforcamento. Os Estados que condenam a homossexualidade, vindo a aplicar sanções a estas pessoas estão afrontando, diretamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como diversos outros princípios e direitos fundamentais, sendo que a dignidade da pessoa humana visa garantir a todas as pessoas condições dignas de vida, o que inclui desde o direito à vida, até o direito de amar e se relacionar com o parceiro que lhe faça feliz, pois a dignidade está atrelada a felicidade do ser humano. 12.7 DA PROTEÇÃO A PESSOA TRANSEXUAL E HOMOSSEXUAL No Ordenamento Jurídico brasileiro, ainda não há legislação específica regulamentando a matéria sobre a pessoa transexual e a pessoa homossexual. Porém, em muitos casos, a grande parte dos magistrados aplica normas, instruções, decretos e leis, por analogia, e os princípios gerais do Direito para solucionar os casos que envolvam estas pessoas. Com base na Constituição Federal de 1988, através de análise do artigo 1º da Constituição, visualiza-se que estão arrolados os fundamentos da República Federativa do Brasil. Entre estes fundamentos está a dignidade da pessoa humana. Através de análise do art. 3º da Constituição Federal de 1988, observa-se a finalidade de promover o bem estar de todos os cidadãos, independentemente de qualquer diferença, evitando-se a discriminação. Ademais, o art. 4º deste mesmo diploma, traz a informação de que o Brasil se rege pelos direitos humanos, em se tratando de questões internacionais e nacionais. Por fim, com o art. 5º da CF, observa-se que em seu texto consta que todas as pessoas são iguais perante a lei, não podendo ser realizada distinções entre as mesmas, devendo o Estado garantir a todos o direito a vida, liberdade, segurança, dentre outros. 12.7.1 Da homofobia e da tranfobia A homofobia é um termo utilizado para designar o preconceito e a aversão aos casais homossexuais. Porém, atualmente, esta palavra é utilizada para indicar a discriminação que ocorre as mais diversas minorias sexuais, as quais estão enquadradas no gripo LGBTI (lésbicas, gays, transexuais, trangêneros, travestis e intersexuais). Por sua vez, a transfobia está ligada à discriminação perante as pessoas transexuais e trangêneros. Da pessoa transexual... // 213 Nesse sentido, segundo o autor Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2014. p. 735): “A homofobia se refere ao preconceito e/ou a discriminação contra homossexuais e bissexuais, ao passo que a transfobia é o preconceito e/ou discriminação contra travestis, transexuais e transgêneros em geral”. Logo, a homofobia ou trasnfobia é uma forma de discriminação, pois o ser humano acredita que, por estar inserido no padrão heteronormativo, pode, e se acha no direito, de tratar o outro que neste preceito não se encaixa, de forma desigual, inferior, tratando-o com o um ser vivo anormal. A Organização das Nações Unidas (ONU) expressou-se no sentido de que a homofobia e a transfobia são modalidades de racismo. Tal mensagem foi transmitida em um vídeo no Dia Internacional contra a Homofocia e a Transfobia, em 17 de maio de 2011. A Alta Comisssária da ONU de Direitos Humanos, Navi Pillay realizou um alerta sobre o aumento de crimes contra a comunidade LGBTI, afirmando que a discriminação ocorre, por muitas vezes, devido à negligência dos governos. Ademais, a Comissionária afirmou que em muitos países vale o princípio de que ninguém deve sofrer discriminação com base em sua sexualidade (orientação sexual; sexo; gênero; identidade de gênero), e que os Estados tem a obrigação de adotar políticas públicas para que a discriminação não ocorra quanto a diversidade sexual (NO DIA INTERNACIONAL CONTRA A HOMOFOBIA E A TRANSFOBIA, web). Posto isso, a homofobia ou a transfobia acabam gerando a inferiorização da pessoa humana, o que acarreta na hierarquia da sexualidade, concedendo a heterossexualidade uma posição superior sobre as demais formas de sexualidade. Com isso, temos que, aos olhos da sociedade, a regra, a “normalidade” seria a de que o sexo (pênis ou vulva) acaba por definir o desejo sexual, ou seja, homens gostam de mulheres e vive versa, bem como define a forma de expressão deste desejo. Com a hierarquia da sexualidade, temos o chamado heterossexismo, que nada mais é do que uma atitude de preconceito, discriminação e negação, colocando a heterossexualidade como patamar superior as demais formas de expressão da sexualidade, pois esta é o mandamento predominante, classificando as demais expressões como inacabadas, ou até mesmo, criminosas e repudiadas. Nesse sentido, segundo o autor Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2014. p. 738): Assim, quando se fala em criminalização da discriminação por orientação sexual, real ou atribuída, refere-se à conduta de destratar ou arbitrariamente diferenciar o tratamento de pessoas em razão da homossexualidade, bissexualidade ou heterossexualidade dela ou a ela atribuída, e, da mesma forma, quando se fala em criminalização da discriminação por identidade de gênero, real ou atribuída, refere-se a conduta de destratar ou arbitrariamente diferenciar o tratamento de pessoas em razão da travestilidade, transexualidade, transgeneridade em geral ou cisgeneridade. [...]. Logo, trata-se de conceitos absolutamente claros em seu conteúdo que, como tais, podem perfeitamente ser objeto de leis criminalizadoras, da 214 // Problemas da jurisdição contemporânea... mesma forma que os conceitos de “cor, etnia, procedência nacional e religião” o são da atual Lei do Racismo. Ademais, para que as pessoas consigam viver em uma sociedade pacífica, livre de descriminalizações e marginalizações, ao menos se faz necessário à existência da tolerância entre as mesmas. A tolerância nada mais é do que é um termo que define o grau de aceitação diante de um elemento contrário a uma regra moral, cultural, civil ou física. Esta se encontra vinculada ao princípio da dignidade da pessoa humana, garantindo a todos uma vida digna. A dignidade da pessoa humana representa uma conquista para o ser humano, pois torna este precioso e, por conta disso, merecedor de proteção (BORGES, 2005, p. 19) em face de sua integridade psicofísica, o que incorpora sua sexualidade. Seguindo este entendimento, quanto à proteção da pessoa humana, segundo o autor Carlos Alberto Bittar (1989, p. 1): Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previsto no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos. Grifo nosso Em conjunto com a dignidade da pessoa humana, encontra-se, também, a liberdade que todos os indivíduos possuem de escolher o seu próprio caminho, bem como absorver suas experiências, vindo a elaborar e amadurecer sua personalidade, bem como expressar sua orientação afetiva sexual, sua identidade de gênero, dentre demais características. Com isto, dignidade da pessoa humana e liberdade de cada pessoa, temos que a tolerância deve ser imposta pelo Estado à sociedade, objetivando impedir a opressão a grupos de pessoas como também ao próprio indivíduo em si. 12.7.2 Da criminalização da discriminação devido à orientação sexual e identidade de gênero A princípio, necessário esclarecer a distinção entre o termos preconceito e discriminação, muitas vezes confundidos pelas pessoas. O preconceito é uma opinião de pensamento, cujo o teor é construído a partir de uma análise sem fundamento, sendo considerado um prejulgamento. Já a discriminação é uma forma de segregar alguém, tratando esta pessoa de forma diferenciada, de forma injusta, impondo a outra pessoa uma determinada conduta a ser seguida. O preconceito está vinculado ao intelecto da pessoa, além de que também está atrelada a liberdade de pensamento, direito garantido ao homem pela Constituição Federal, art. 5º, VIII, e por estes motivos, não é punível. Por sua vez, a discriminação é a exteriorização no mundo real do preconceito, e por isto é punível. Da pessoa transexual... // 215 Conforme o comportamento humano observa-se que não é possível que as pessoas se gostem de forma universal, pois sempre haverá diferenças que acabam fazendo com que algumas pessoas não se gostem. Porém, a tolerância deve ser regra, pois mesmo que não se adorem as pessoas devem respeitar o espaço e a integridade psicofísica das demais, e isto se chama tolerância. Portanto, a criminalização da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero se faz necessário, devendo ser imposta pelo Estado, não admitindo este que a pessoa seja discriminada porque simplesmente não se enquadra no padrão heterossexual. A lei incriminadora da discriminação não possui como objetivo acabar com o preconceito, mesmo porque é impossível impor a mudança de pensamento a alguém sob pena de aplicação de pena, pois cada pessoa detém de pensamento intimo vinculada a sua criação, costumes, religião, e a própria construção de sua personalidade. Porém, a lei tem como objetivo acabar com a exteriorização deste pensamento, impedindo que ocorra violência contra pessoas de orientação sexual ou identidade de gênero distinto do heterossexual. Nesse sentido, segundo o autor Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2014, p. 745): No caso de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, é fato historicamente notório, comprovado e inegável que pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) sempre foram discriminadas por sua mera orientação sexuais ou identidade de gênero ao longo da história humana – ao menos desde a Idade Média (no Ocidente) quando a Igreja Católica Apostólica Romana dominou o cenário político e embutiu seus dogmas nas diversas legislações pro força de sua influência sobre os monarcas absolutistas da época. Foi com a predominância do ensino da Igreja Católica, que as pessoas que não compõe o quadro social heterossexual passaram a serem perseguidas com maior intensidade. Assim, para fugir da perseguição Estatal, a qual tinha influência cristã, pois muitas vezes as pessoas LGBT eram presas, punidas ou mortas, estas pessoas passaram a se encontrar em locais escondidos, sendo que tal necessidade perdurou até os dias atuais. Por este motivo, se faz necessária a lei que incrimina a discriminação em face das pessoas com orientação sexual e identidade de gênero, diferenciadas. Quanto à violência na forma de assassinatos, agressões e ofensas, as mesmas já eram vistas como crimes tipificados no Código Penal brasileiro, portanto, puníveis. Casos de lesão corporal leve, calúnia, difamação e injuria, são encaminhados aos Juizados Especiais Criminais, vindo a ser aplicada a Lei 9.099/95. Nestes casos, busca-se evitar todas as formas um processo penal. Para tanto, na audiência preliminar, é realizada uma tentativa de acordo entre a parte infratora e a vítima, ou seja, uma composição civil. Não havendo acordo, a vítima realiza o seu direito de representação, e o Promotor de Justiça, quando não se pronuncia pelo arquivamento do processo, propõe 216 // Problemas da jurisdição contemporânea... uma Transação Penal, a qual por muitas vezes é aceita pelo Infrator, pois a ele basta um pedido de desculpas, o pagamento de uma cesta básica, ou uma ação comunitária. Com a aceitação da Transação, ocorre a extinção da punibilidade. Logo, para todos os efeitos, discriminar pessoas do grupo LGBTI se torna algo “barato”, por muitas vezes, não punível, o que confere margem para que as pessoas se achem no direito de discriminar, ofender ou até mesmo violentar pessoas com orientação sexual e identidade de gênero diversa. Assim, temos que o Direito não possuí efetividade, visto que o mesmo não apresenta coatividade. A discriminação, em geral, e nela incluída a homofóbica e transfóbica, não é considerada crime no atual Código Penal, pois ele exige a violência ou a grave ameaça para se concretizar. Por este motivo, muitas discriminações não são punidas. Para tanto, necessário se faz a criminalização da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero com enfoque no direito fundamental da tolerância, pois esta é um pressuposto de vida na sociedade, com a decorrência da aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana, justiça, promoção do bem-estar e a vedação de qualquer forma de discriminação. 12.8 DA APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA AO TRANSEXUAL E AO HOMOSSEXUAL Inicialmente, necessário esclarecer que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006) não defende, apenas, a violência contra a mulher, como muitas pessoas pensam, mas sim todas as violências que atinjam o gênero feminino. Nesse sentido, dispõe o art. 5ª, caput, da lei (BRASIL, 2006, web): Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Grifo nosso Além disso, a lei esclarece que a mulher e o sexo feminino não são a mesma coisa, pois no parágrafo primeiro do Art. 5º dispõe que as relações pessoais independem da orientação sexual. Assim, nota-se que o conceito de mulher trazido pela Lei Maria da Penha vai além do perfil biológico, alcançando a ideia sociológica do gênero. Em muitas sociedades, senão em todo o corpo social determinam diferentes papeis a serem exercidos pelo polo masculino e polo feminino. Assim, quando a determinados papéis são atribuídos grande importância, acaba sendo gerada a discriminação entre as partes. Em muitas situações, o gênero masculino se sobrepõe ao gênero feminino, ou seja, a figura masculina acaba possuindo maior importância do que a feminina e, por conta disso, muitos homens acreditam estarem acima Da pessoa transexual... // 217 das mulheres, sendo que a estas cabe se contentar com a condição de submissão. Diante da criação utilizada em muitas civilizações, observa-se que ao homem é atribuído o direito de liderança e administração, de bens e da família; já à mulher, é atribuída a educação de dever em zelar pelos cuidados domésticos, bem estar da família, contenção de vontades, recato sexual, dentre outros. Portanto, é nítido que ocorre elevado desequilíbrio de poder entre os sexos (BIANCHINI, 2014, p. 420-421). Como ao homem é atribuída a figura de provedor da residência, o mesmo se acredita ter o “direito” de se valer da violência para ter suas vontades atendidas. Em muitos casos, o mesmo acaba isento de qualquer responsabilidade, civil ou penal. Em outros, a companheira volta a residir com o agressor, por medo de uma represália mais extrema ou até mesmo pelo fato de que aquele é o provedor da casa. Porém, necessário esclarecer que a violência não ocorre somente contra a mulher, mas sim, está baseada no gênero feminino que a pessoa apresenta. Posto isso, temos que a violência de gênero pode ocorrer de uma relação de poder e submissão entre as partes; ideia de que o macho seja hierarquicamente superior à fêmea; habitualidade de violência; o fato de que em muitos caso, o agressor e a vítima dividem a mesma moradia. Quanto à orientação sexual da pessoa, a Lei Maria da Penha deverá ser aplicada independentemente desta disposição. A orientação sexual está relacionada ao sentimento de afeto, amor ou desejo que uma pessoa sente pela outra pessoa. Tal característica mão está vinculada ao sexo biológico ou ao gênero da pessoa, mas sim, a sua manifestação de amor por outrem. Diante da irrelevância da orientação sexual para a aplicação da Lei Maria da Penha, mas sim a importância da violência cometida contra o gênero feminino, o Poder Judiciário brasileiro vem aplicando esta lei em vários casos. Nesse sentido, segundo a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, a Lei Maria da Penha, também deve ser aplicada ao transexual, vítima de violência doméstica (proc. N. 201103873908, Tribunal de Justiça de Goiás - 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis, juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães) (BRASIL, 2015, web). São os principais motivos trazidos pela Magistrada para aplicar esta Lei: [...] - embora não tenha havido alteração no seu registro civil, a vítima fora submetida a uma cirurgia de redesignação sexual há 17 anos, o que a torna pessoa do sexo feminino, no que tange ao seu “sexo social, ou seja, a identidade que a pessoa assume perante a sociedade”; - a não aplicação das mesmas regras elaboradas para proteção da mulher, “transmuta-se no cometimento de um terrível preconceito e discriminação inadmissível”; - os artigos art. 2º e 5º, e seu par. Único, da LMP respaldam a possibilidade de aplicação da Lei: Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as 218 // Problemas da jurisdição contemporânea... oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: [...] Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. - o princípio da liberdade, que se desdobra em liberdade sexual, “garante ao indivíduo, sujeito de direitos e obrigações, a livre escolha por sua orientação”; - “o gênero é construído no decorrer da vida e se refere ao estado psicológico”, de forma que “o transexual não se confunde com o homossexual, pois este não nega seu sexo, embora mantenha relações sexuais com pessoas do seu próprio sexo”; [...]. Assim, quanto à pessoa transexual, é importante frisar que, para ser aplicada a Lei Maria da Penha para esta, não se faz necessário que antes a mesma tenha realizado a cirurgia de readequação do sexo, tampouco tenha realizado a alteração de seu prenome na certidão de nascimento. Basta ter ocorrido à violência. Quanto aos homossexuais, muitos acreditam que a Lei Maria da Penha é aplicada quando, e apenas, ocorre a violência contra a mulher, ou seja, detentora do órgão feminino. Todavia, uma questão de suma relevância é a relação amorosa existente entre dois homens. Como já exposto, a aplicação desta lei independe da orientação sexual da pessoa (art. 5º da Lei), bastando que um dos parceiros assuma a condição de gênero feminino. Posto isso, diante da omissão legislativa, necessário se faz se atentar as disposições legais previstas na Constituição Federal de 1988, dentre elas a vedação a discriminação e a prevalência da dignidade da pessoa humana. Logo, a vítima de agressão, independentemente de ser mulher ou homem, tem direito de ser protegido pelo Estado, o qual deve proteger a todas as pessoas, sem qualquer discriminação. Pelo exposto, a Lei Maria da Penha (Lei 11.430/2006) aplica-se a todas as situações onde ocorra violência contra o gênero feminino, não importando qual seja o sexo biológico da vítima. Busca-se, com a aplicação da Lei Maria da Penha, evitar a discriminação, abuso ou violência, em situações familiares, domiciliar, ou afetiva, contra aquela pessoa que se enquadre no gênero feminino. 12.9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da elaboração do presente trabalho, ficou demonstrado que as pessoas transexuais e homossexuais constantemente sofrem privações em sua vida, sendo vítimas constantes de homofobia e tranfobia. Pelo fato do ser humano não aceitar o “diferente” do padrão heteronormativo, seja pela criação religiosa, costumes, ou pelos próprios ideais, muitas vezes acabam colocando homossexuais e transexuais em condições de inferioridade, vindo Da pessoa transexual... // 219 a marginalizar e discriminar estas pessoas, infringindo a existência e a dignidade dos mesmos. A discriminação quanto a diversidade sexual é uma ação corriqueira, que gera danos ao indivíduo, principalmente danos psicológicos, visto que as pessoas transexuais e homossexuais, para terem uma vida ao menos segura, acabam por guardar para si mesmo a sua distinção, seja a sua identidade de gênero, orientação afetiva sexual ou ambos. Em muitos casos, nem a própria família sabe que a pessoa não está inserida no padrão heteronormativo. Tal segredo faz com que a pessoa reprima sua verdadeira identidade, a qual, por si só, já é um direito personalíssimo. A discriminação ocorre quando há a exposição do pensamento contrário que a pessoa sente pelo transexual e homossexual. Em muitos casos, a violência cometida pelo agressor sai barata, visto que não existe legislação assegurando e garantindo os direitos aos integrantes do grupo LGBTI. A única norma que existe é aquela que passa a ser aplicada por analógica, bem como o uso continuo de fundamentação na própria Constituição e em Tratados e Convenções Internacionais, das quais o Brasil é país signatário. Mesmo após todas as atrocidades cometidas pelo homem durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo após a criação de vários Tratados e Convenções Internacionais que visam garantir a dignidade à pessoa humana, parece que os seres humanos do grupo LGBTI ainda são deixados de lado, a mercê da própria sorte. A Lei Maria da Penha (Lei 11.430/2006), elaborada no Brasil, deve ser utilizada quando à ocorrência de violência contra ao gênero feminino. De forma errônea, muitas pessoas acreditam que esta lei foi elaborada apenas para resguardar e dar proteção as mulheres, ou seja, aquelas que possuem a genitália feminina. Porém, o termo “mulher” possuí ampla aplicação, não estando vinculado apenas as pessoas que nasceram com o sexo feminino. A Lei é aplicada a todas as pessoas que possuem a condição de parceira na relação, seja mulher ou homem. Assim, temos que a responsabilidade penal nas violações aos direitos da personalidade, no caso de pessoas transexuais e homossexuais, ainda é pouco aplicado, tanto pela falta de legislação própria, como também pelo desinteresse daquele que deveria zelar pela proteção de todas as pessoas, quem seja, o Estado, o qual deixa de criar políticas públicas ou demais mecanismos para proteger estas pessoas, as quais fazem parte de um grupo vulnerável. 12.10 REFERÊNCIAS ANATRELLA, Toy. Homossexualidade e homofobia. In: FAMÍLIA, Pontifício Conselho Para A. Léxico da família: termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspectos éticos. Coimbra: Pincipia, 2010. 220 // Problemas da jurisdição contemporânea... BIANCHINI, Alice. Aplicação da Lei Maria da Penha a Transexual e Homossexual. In: DIAS, Maria Berenice (Coord). Diversidade sexual e direito homoafetivo. 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São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 222 // Problemas da jurisdição contemporânea... = XIII = LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E PRIVACIDADE: CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Milton Roberto da Silva Sá Ravagnani* Rodrigo Valente Giublin Teixeira** 13.1 INTRODUÇÃO Numa sociedade cujo direito é positivado e que hierarquiza os direitos que positiva, escolher a precedência entre esses direitos não é tarefa tão complicada. A subsunção, por meio de um raciocínio silogístico, nos dá soluções para conflitos de direitos de maneira bastante satisfatória. Por esse raciocínio, uma premissa maior incide sobre uma menor e dela se obtém uma conclusão. Ou, a norma, que é a premissa maior, e está positivada num catálogo de direitos, incide sobre o fato ocorrido na vida real e produz uma conclusão: ou há direito ou não. O Brasil custou a reconhecer a existência de direitos inatos do homem que precedem a própria norma legal. Mas o fez a partir da Constituição de 1988 de modo expresso, para que não restem dúvidas de como esta sociedade entende as relações entre seus indivíduos e desses com relação ao Estado. O reconhecimento dos direitos da personalidade é, antes de tudo, o reconhecimento de direitos do cidadão ante ao Estado. Mas, também de sua eficácia horizontal: também são direitos que sem impõem erga omnes, contra toda a sociedade e entre os indivíduos que ela compõem. Dentre os direitos da personalidade, os direitos de privacidade, à intimidade e à vida privada são conquistas elencadas nesse rol e protegidas pela Constituição. Do mesmo modo, os direitos à informação, à expressão e a liberdade de imprensa também são constitutivos do mesmo catálogo, por consequência, também constitucionalmente protegidos. Quando ocorre o conflito entre direitos dessa natureza e não há, como não há no Brasil, precedência ou hierarquia entre eles, a subsunção e o raciocínio silogístico não são eficazes para dirimir tais conflitos e manter a paz social. Na sua ausência, um novo conceito se estabelece com a técnica da ponderação, que se baseia no princípio da proporcionalidade para buscar o equilíbrio entre os direitos tutelados e preservar ao máximo seus conteúdos. * Advogado e jornalista. Especialista em jornalismo digital. Mestrando em Direitos da Personalidade pela UniCesumar. Maringá/Paraná/Brasil. E-mail: [email protected] ** Doutor pela PUC/SP. Mestre pela UEL/PR. Membro do Instituto Brasileiro de Processo Civil (IBDP); professor na Graduação, Especialização e Mestrado da UniCesumar. Advogado. 224 // Problemas da jurisdição contemporânea... Nesse trabalho apresentamos a questão do conflito entre a privacidade e a liberdade de informação e as técnicas de ponderação entre eles. 13.2 DIREITOS DA PERSONALIDADE Os direitos fundamentais e, dentre eles os da personalidade, são uma construção histórica e uma vitória da espécie humana sobre sua própria tendência à iniquidade. Porém, para chegarmos ao conceito moderno de direitos inatos, absolutos, gerais, extrapatrimoniais, indisponíveis, imprescritíveis, impenhoráveis e vitalícios que protegem o homem pela simples razão dele existir, foram séculos de discussões e de árdua batalha. De toda forma, hoje podemos sustentar e ver respeitado “[...] el principio de que el hombre es juridicamente una persona, no porque forme parte de determinada sociedad política, sino por su condición de hombre” 1 (DEL VECHIO, 1955, p. 37). 13.2.1 Conceito, dignidade e liberdade Os direitos da personalidade, por resguardarem os direitos mais caros da pessoa humana, se revestem de características muito particulares, especialmente pelo seu conteúdo maior, a dignidade. Importante lembrar que “[...] a dignidade da pessoa humana constitui-se em uma conquista que o ser humano realizou no decorrer dos tempos, derivada de uma razão éticojurídica contra a crueldade e as atrocidades praticadas pelos próprios humanos, uns contra os outros” (VAZ; REIS, 2007, p. 183). Na doutrina contemporânea, os direitos de personalidade ganharam definições consistentes e finalmente pacificadas. Vemos que, enquanto para Adriano de Cupis (2008, p. 16) a personalidade é definida “[...] como uma susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações jurídicas [sendo que] não se identifica nem com os direitos nem com as obrigações, e nem é mais do que a essência de uma simples qualidade jurídica”. Diogo Costa Gonçalves (2008, p.68) define personalidade como “[...] o conjunto das qualidades e relações que determinam a pessoa em si mesma e em função da participação na ordem do ser, de forma única e singular”. Na mesma esteira, Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2007, p. 16) define que “[...] os direitos de personalidade, cada vez mais desenvolvidos para uma proteção maior do ser humano, voltam-se para a realização da dignidade da pessoa. Talvez um dia venham a ser chamados de direitos da dignidade”. Por certo a assertiva responda a questão de Daniela Ikawa (2007, p.44) que interroga: “Fosse uma pessoa destituída de todas as suas qualidades não essenciais, o que deveria restar em seu cerne, em uma perspectiva absoluta ou não comparativa que constituiria em valor humano 1 Tradução nossa: O princípio de que o homem é juridicamente uma pessoa não porque forme parte de uma determinada sociedade, mas por sua condição de homem. Liberdade de informação... // 225 intrínseco?” A dignidade, como apresentada por Roxana Cardoso Brasileiro Borges, responde a questão. Vê-se aqui que a dignidade se converte no elemento essencial para a compreensão da personalidade como a vimos hoje. É, em verdade, seu valor intrínseco. De fato, a dignidade é o elemento que consolida ao ser humano ser senhor de personalidade. Esta constatação vem de Immanuel Kant (2007, p. 77), que nos introduz o conceito: No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. De fato, o homem não tem preço. Tem valor, e seu valor é sua dignidade. Esta não pode ser substituída por nada, pois nada lhe é equivalente. E cada homem tem sua dignidade própria, logo, cada homem é uno, um fim em si mesmo. E é a consolidação da dignidade como um valor intransponível que confere à personalidade humana ser o centro do direito e faz do homem ser dotado de dignidade, recolocando “o indivíduo como primeiro e principal destinatário da ordem jurídica. Assim, é o homem e os valores que traz em si mesmo a ultima ratio do ordenamento” (CANTALI, 2009, p. 53). Por seu valor intrínseco, a dignidade deve “[...] compreendida como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida” (SARLET, 2009, p, 47). Assim, escoimado nos conceitos de autonomia, liberdade e dignidade, erigiu-se um direito geral da personalidade, resultado da compreensão de ser o homem dotado de capacidade para se autodeterminar e guiar sua existência, se desenvolver e se responsabilizar por suas decisões. Hoje isso nos parece distante, mas “[...] os debates do passado foram baseados na visão de que o Estado era um inimigo natural da liberdade” (BARROSO, 2005, p. 28). E a liberdade é um dos elementos essenciais dos direitos da personalidade. E “[...] os direitos da personalidade buscam proteger o indivíduo das violações ao seu ‘eu’, da sua imagem, das suas características, proteger seus pensamentos” (SILVA; SILVA ROSA, 2013, p. 266). E não pode o Estado violar esses direitos. A partir da Constituição Alemã de 1949, surge no âmbito do direito constitucional a proteção expressa dos direitos de personalidade. Tais direitos estão previstos no artigo 1º da constituição daquele país e introduz no direito moderno a inovação. Depois da Constituição dos alemães, outros países seguem o mesmo sentido consagrando em suas constituições os mesmos direitos. Não sem menos importância são as convenções e declarações de direito de âmbito internacional que também surgem no pós-guerra com o fito de robustecer tais conceitos. Como exemplo se pode apresentar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Conferência Internacional dos Direitos do Homem e outras mais, que 226 // Problemas da jurisdição contemporânea... contribuíram para alargar os conceitos e garantir aos povos a prevalência dos direitos de personalidade sobre outros. Luís Roberto Barroso (2012, p. 36) comenta: A dignidade humana tornou-se um dos maiores exemplos de consenso ético do mundo ocidental, sendo mencionada em incontáveis documentos internacionais, em constituições nacionais, leis e decisões judiciais. No plano abstrato, poucas ideias se equiparam a ela na capacidade de encantar o espírito e ganhar adesão unânime. Mais comumente, os direitos da personalidade aparecem na doutrina divididos em dois grandes grupos. Um de natureza física (direito à vida, à integridade e incolumidade do próprio corpo, bem como do corpo morto) e os de natureza moral, “[...] dentre os quais estão situados o direito à intimidade, à liberdade, à honra, à inviolabilidade psíquica, à imagem, ao nome e direito moral de autor” (SILVA, 2003, p. 61). No Brasil, a Constituição de 1988 prevê logo no seu artigo primeiro a adoção de um direito geral de personalidade como um valor fundamental da República. Todavia, o legislador constituinte originário não se limitou a manter tais direitos adstritos exclusivamente no âmbito da cláusula geral, descendo mesmo à proteção de direitos específicos como à imagem, à informação, à honra e à intimidade, num sinal claro de seu interesse na ampliação desses direitos derivados no corpo positivado do ordenamento pátrio. De fato, “[...] a supremacia da Constituição é o postulado sobre o qual se assenta o próprio direito constitucional contemporâneo” (BARROSO, 2012, p.106) e ela está baseada no pressuposto de que a Constituição é o elemento que constituiu o próprio Estado. É ela quem define o que é, qual é, e a que se destina. E estipula em quais condições o Estado existirá. Logo, não há, e nem pode haver dentro dos limites do Estado constituído, dispositivo superior hierarquicamente à Constituição. É fundamental não esquecer que “[...] as constituições são documentos dialéticos e compromissórios, que consagram valores e interesses diversos, que eventualmente entram em rota de colisão” (BARROSO, 2014, p. 426). Assim, havendo conflito entre a norma constitucional e um dispositivo infraconstitucional, prevalece aquilo que regra a Constituição. Todavia, e quando o conflito ocorre entre normas constitucionais, é correto se falar em inconstitucionalidade de norma constitucional? Seguindo o pensamento de Zulmar Fachin (2013, p. 146), é impossível se falar em inconstitucionalidade de norma constitucional: Se [...] duas normas constitucionais (portanto, pertencentes ao mesmo plano normativo) forem incompatíveis entre si, não haverá inconstitucionalidade. Logo, deve-se afastar a possibilidade de inconstitucionalidade se uma norma da Constituição contrariar outra norma da Constituição. Tal incompatibilidade deve ser resolvida por outro critério. Liberdade de informação... // 227 Não se pode afastar a possibilidade da norma constitucional que institui direitos colidir com princípios ou interesses que ela mesma proteja. São casos como a tensão entre o desenvolvimento nacional e a proteção do meio ambiente, a defesa da livre iniciativa e o abuso do poder econômico, a colisão entre direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e o direito à privacidade, ou a liberdade de reunião e a liberdade de ir e vir. Enfim, um sem número de possibilidade de colisões de direitos, princípios e interesses protegidos pela própria Constituição que podem criar incompatibilidades aparentes. E qual, ou quais o(s) critério(s) para resolver eventual incompatibilidade? 13.3 O DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA Por ser livre, o indivíduo tem sua intimidade e sua vida privada garantidas, sendo titular de um espaço privado em que ninguém pode penetrar contra a sua vontade. Nem mesmo o Estado. Sobre esse espaço restrito ao indivíduo ele é o único senhor. A vedação de qualquer intervenção nesse espaço deriva do “[...] condicionamento do exercício do poder estatal a determinações legais, da garantia da liberdade individual como regra geral, da colocação de proibições e restrições no campo da exceção” (KARAN, 2009, p. 34). É, afinal, “[...] uma manifestação de liberdade de poder recolher-se à solidão ou de restringir os contatos com o meio social, que constituiu um exercício de liberdade de fazer ou deixar de fazer” (SILVA, 2003, p. 63-64). O conceito de que a origem da salvaguarda da privacidade advir da liberdade já nos parece cristalizado desde o nascimento do Estado liberal: La materialización em la necesidade de salvaguardar um ámbito de independencia de individuo se produce em um momento posterior y es consecuencia de la orientación personalista del Estado liberal. Em el se la comienza a considerar como um presupuesto de la libertad individual; em este sentido puede afirmarse que la intimidade es um derecho de la libertad 2 (RODRIGUES, 1996, p. 20). 13.3.1 Evolução histórica O desenvolvimento do conceito de privacidade atinge mesmo sua maturação na sociedade burguesa, mas seus primeiros alicerces vêm de muito antes. Já na Roma antiga havia uma distinção entre o público e o privado, e o ambiente doméstico já contava com proteção de inviolabilidade. Nenhum estranho tinha direito a intervir nos assuntos domésticos. Havia, mesmo, um respeito religioso, quase sagrado, dos limites do lar. 2 Tradução nossa: A materialização da necessidade de resguardar um espaço de independência do indivíduo acontece em um pressuposto da liberdade individual. Neste sentido, se pode afirmar que a intimidade é um direito de liberdade. 228 // Problemas da jurisdição contemporânea... Na mitologia grega, a passagem de Diana, a deusa da caça, que castiga o moço Actéon, filho do Rei Cadmo por ofensa ao seu recato já mostra que a intimidade tinha valor cultural para aquele povo. Segundo a mitologia, Diana, quando cansava de suas caçadas, ia se banhar em uma gruta, dedicando-se aos cuidados íntimos. Numa oportunidade, o jovem Actéon, que se separara dos companheiros e vagava sem qualquer objetivo, surpreendeu-a nua. A deusa, irada, transformou-o em cervo, que foi devorado por uma matilha de cães. Importante que à época a nudez não era algo tão socialmente reprimido. Vê-se pela estética da arte grega que abusa dos nus em suas manifestações, especialmente na escultura. O que a mitologia aponta na história de Diana não é o recato pela nudez, mas para o caráter do recolhimento, do local escondido e retirado, privado, onde que a deusa relaxava. A intimidade, portanto, já se mostra valor de peso para aquela sociedade ancestral. Já na Idade Média, vê-se uma retração do conceito da privacidade levada pela necessidade de proteção das pessoas em virtude das iminentes invasões estrangeiras, dos assaltos de bandidos e pelo perigo do isolamento em um ambiente quase selvagem em que os senhores feudais disputavam territórios e conquistas. Neste cenário, a privacidade era um privilégio da nobreza e do clericado, especialmente dos monges abrigados em mosteiros. À medida que as condições sociais e econômicas promovem o desenvolvimento de núcleos urbanos, ressurge a ideia de privacidade. E ela se consolida mesmo com a burguesia, até o ponto da revolução industrial. En el período medieval el aislamiento era um privilegio de la nobleza, o de quienes por libre elección, o por necessidad, renunciaban a la viviencia comunitária. La intimidad se configura como uma aspiración de la burguesia de acceder a lo que antes habia sido um privilegio de unos pocos, lo qual explica el marcado matiz individualista, que se concreta em la reivindicación de unas facultades destinadas a salvaguardar um determinado espacio com carácter exclusivo y excluyente3 (RODRIGUES, 1996, p. 20). É, sobretudo, na afirmação revolucionária dos direitos do homem, na França do final do séc. XVIII, que a intimidade ganha seu status geral, garantido uma exigência natural de todos os homens, não apenas privilégio de determinadas classes. Mesmo assim, é curioso observar que as diversas declarações sobre direitos dos homens formuladas naquele período não contem menção expressa ao direito de intimidade. É, porém, no final do século XIX que a primeira formulação do conceito, como agora o conhecemos, ganha positivação. O right to be let alone (o direito de ser deixado em paz) foi postulado nos Estados Unidos, em 1890, por Warren/Brandeis, em sua obra The right do Privacy (o direito à 3 Tradução nossa: No período medieval, o isolamento era um privilégio da nobreza, ou de quem por livre escolha, ou necessidade, renunciava à vida comunitária. A intimidade se configura como uma aspiração da burguesia de ter acesso ao que antes era privilégio de uns poucos, o que explica o caráter individualista que se concretiza na reivindicação de poderes destinados a resguardar um determinado espaço exclusivo e excludente. Liberdade de informação... // 229 privacidade), “como reflexo de um bem jurídico mais estabelecido e incontroverso (a propriedade no direito anglo-saxão, função que coube à honra no direito germânico)” (WEINGARTNER NETO, 2002, p. 69). Nesse sentido, Fachin assevera: O direito norte-americano, como se sabe, é baseado, essencialmente, no precedente judicial. Quem se intromete na vida privada alheia viola o right of privacy. Mas, da mesma forma, quem divulga detalhes da vida privada de alguém, tornando a pública, fere o right of privacy. O lar do homem é seu castelo e não pode ser devassado por ninguém (FACHIN, 1999, p. 60). A privacy se converteu numa espécie de “[...] núcleo duro do edifício constitucional norte-americano, que garante aos indivíduos três direitos fundamentais: o autodesenvolvimento, o direito à diferença e o respeito de sua dignidade nas relações com o governo” (WEINGARTNER NETO, 2002, p. 70). 13.3.2 Formas de proteção Podemos distinguir quatro formas de proteção à intimidade: i) a proteção do indivíduo contra a intromissão em seu retiro, em sua solidão voluntária ou em seus assuntos privados; ii) proibição de divulgação ao público de assuntos privados; iii) reconhecimento da ilegalidade das publicações que representem o indivíduo sob uma falsa luz difamatória, e iv) proteção contra apropriações por terceiros de elementos da personalidade do indivíduo para obtenção de lucro. Além de ser originária do princípio fundamental da liberdade, a intimidade também tem forte vinculação com o princípio da legalidade, especialmente no que se refere às invasões do Estado na esfera individual. Esta vedação deriva do condicionamento do exercício do poder estatal a determinações legais, já que “[...] no princípio da legalidade está contida a ideia básica do modelo de Estado de direito democrático de máximo respeito aos direitos individuais e máximo controle do exercício do poder” (KARAN, 2009, p. 34.). De fato, a liberdade individual é a regra geral. As proibições ou concessões que a atingem são as exceções. E essas exceções só são admitidas quando expressas em lei. E no caso brasileiro, que tais leis não afrontem à Constituição. Simplificando, podemos dizer que os direitos à intimidade e à vida privada conferem ao indivíduo o direito de estar só, ou de estar em reclusão voluntária e protegida ao seu espaço íntimo. Intimidade e vida privada são direitos pertencentes a um conceito amplo que é a privacidade que compreende o direito de poder, o indivíduo, gozar de “[...] espaços que devem ser preservados da curiosidade alheia por envolverem o modo de ser de cada um” (BARROSO, 2005, p. 96). Na vida privada, onde não se vislumbra qualquer interesse público que justifique invasão dessa intimidade, residem os fatos cotidianos ocorridos no seio do lar ou em locais reservados. Estão protegidos hábitos, atitudes, comentários, 230 // Problemas da jurisdição contemporânea... escolhas pessoais, vida familiar ou relações afetivas. Todavia não se deve olvidar que a doutrina moderna não consagra direitos absolutos, nem mesmo os direitos fundamentais, posto que podem ser mitigados ou relativizados em função de outros direitos coletivos e sociais. De sorte, com a evolução das condições sociais e econômicas conduzem ao desenvolvimento social e, com ele, uma relativização do direito à liberdade. E, consigo, seus direitos derivados como é a privacidade. A transcendência e as implicações do atual debate sobre o direito à intimidade está diretamente conectada com o desenvolvimento técnico alcançado na sociedade atual. 13.3.3 Limites e restrições De tal fora que já há doutrinadores, como Perez Luño (1978, p.59), que entendem que há uma “[...] antinomia de princípios entre as liberdades tradicionais e os novos direitos econômicos, sociais e culturais”. Em algumas ocasiões, já se assenta que na medida em que os direitos sociais aumentam, diminuem as liberdades. De todo modo, há sim limites e elementos limitadores aos direitos da personalidade. Um elemento decisivo na determinação da graduação da intensidade da proteção à privacidade é o grau de exposição pública da pessoa, em razão de seu cargo ou atividade ou mesmo de alguma circunstância eventual. “A privacidade de indivíduos de vida pública – políticos, atletas, artistas – sujeitase a parâmetro de aferição menos rígido do que os de vida estritamente privada” (BARROSO, 2005, p. 97). Também se entende que não há ofensa à privacidade – isto é, quer à intimidade, quer à vida privada – se em caso de divulgação, o fato divulgado, sobretudo por meios de comunicação de massa, já ingressou no domínio público, e, com isso, já pode ser conhecido por outra forma regular de obtenção de informação ou se a divulgação limita-se a reproduzir informação antes difundida. Claro que, pelo princípio da legalidade, o exercício do poder estatal impondo restrições a direitos individuais só se justifica se servir para garantir “[...] o livre exercício dos direitos das demais pessoas e assim assegurar a coexistência e o bem-estar geral” (KARAM, 2009, p. 35). Nesse escopo, somente aquilo que repercuta direta, imediata e concretamente sobre direitos de outros indivíduos podem ser objeto para restrições à privacidade. Mesmo assim, percebe-se uma maior fluidez doutrinária moderna ante ao rigor da privacy, como concebida por Warren/Brandeis, no sentido de ver limitações de cunho social, escoimadas pelo interesse público, a ponto de se encontrar definições elásticas como a de Shina (2009, p. 317), para quem a privacidade é entendida como: [...] un espacio sin fronteras, uma geografia móvil, cuyos limites se van corriendo, para um lado y para outro, haciendo que su extensión sea más grande o más penqueña de acuerdo a ciertas circunstancias. Aquello que llamamos privacidade se puede ampliar o reducir por cuestiones políticas, legales, religiosas, morales, econômicas, etc. Lo que limita a esse território Liberdade de informação... // 231 es la intensidad de la luz que lo alumbra4. Um dos elementos limitadores da privacidade vem a ser exatamente o direito que o coletivo tem de ser informado e de informar e o conjunto de direitos democráticos protegidos pela liberdade de imprensa. 13.4 O DIREITO À INFORMAÇÃO E A LIBERDADE DE IMPRENSA Inseridos no outro grupo de direitos fundamentais, estão as liberdades de informação e de expressão e a liberdade de imprensa. O direito de informação diz respeito ao direito individual de comunicar livremente os fatos e ao direito difuso de ser deles informado. Em um Estado democrático de direito, ou seja, que respeita o consenso axiológico histórico consagrado em direitos positivados e cuja formação de seu governo se dá por meio da participação dos cidadãos pelo instrumento do voto, a informação é o elemento chave, decisivo e estruturante da formação das escolhas individuais. Nesse sentido, prescindir da informação livre, correta e verdadeira implica em fulminar o próprio conceito da democracia com o veneno da ignorância. Democracia sem informação não é democracia, mas apenas um arremedo. A liberdade de expressão, por seu turno, destina-se a “[...] tutelar o direito de externar ideias, opiniões, juízos de valor, em suma, qualquer manifestação do pensamento humano” (BARROSO, 2005, p. 103). Diferentemente do direito à informação, que é a propriedade do indivíduo de receber e transmitir informações, a liberdade de expressão compreende o direito de manifestar livremente seu pensamento, suas opiniões, juízos de valor e sua visão das coisas e do mundo. Afinal, “[...] o indivíduo que há de ser livre para pensar da forma que quiser e acreditar no que bem entender há de ter igual liberdade de exteriorizar seus pensamentos e crenças, manifestar suas opiniões, se expressar, dizer o que pensa” (KARAM, 2009, p. 02). A liberdade de informação se insere na liberdade de expressão em sentido amplo, porém ambas são, sobretudo, ramos destacados do princípio geral da liberdade. O direito de receber informações verdadeiras é um direito de liberdade e caracteriza-se essencialmente por estar dirigido a todos os cidadãos, independentemente de raça, credo ou convicção político-filosófica, com a finalidade de fornecimento de subsídios para a formação de convicções relativas a assuntos públicos (MORAES, 2003, p. 162). Ainda nesse grupo de direitos fundamentais está uma terceira locução: a liberdade de imprensa. O pressuposto do Estado democrático é 4 Tradução nossa: Um espaço sem fronteiras, uma geografia móvel, cujos limites vão correndo para um lado e para o outro, fazendo que sua extensão seja maior ou menor e acordo com certas circunstâncias. Aquilo que chamamos de privacidade pode aumentar ou diminuir de acordo com questões políticas legais e religiosas, morais, econômicas, etc. O que limita este território é a intensidade da luza que o ilumina. 232 // Problemas da jurisdição contemporânea... que o poder tem que ser totalmente transparente. Os atos dos governantes têm de ser conhecidos pelo indivíduo. O governo tem a necessidade de prestar contas de todos os seus atos e decisões e, por meio da avaliação desses atos que o cidadão, com acesso a informação correta, pode fazer suas avaliações e escolhas sobre como e quem deve lhe governar. No regime republicano, a história tem mostrado, “[...] a publicidade dos atos dos agentes públicos, que atuam por delegação do povo, é a única forma de controlá-los” (BARROSO, 2005, p. 105). Tem cabido aos meios de comunicação (não apenas aos impressos, como a locução pode erroneamente sugerir) a promoção da divulgação dessas informações. Assim, a liberdade de imprensa designa a liberdade reconhecida (na verdade, conquistada ao longo do tempo) desses veículos de comunicarem fatos e ideias. Esta comunicação se sustenta, tanto a liberdade de informação como a de expressão. Os meios de comunicação, pela prática do jornalismo, têm importância relevante na consolidação democrática. Pode-se dizer que, quanto mais transparência dos atos públicos, quanto mais jornalismo investigativo, quanto mais liberdade de informação e expressão, mais republicano é o regime. Em resumo, “[...] o jornalismo não é uma atividade estranha ao dia-a-dia democrático. Ao contrário, é tanto melhor quanto mais forte é a democracia” (BUCCI, 2000, p. 47). Aliás, Eugênio Bucci (2000, p. 18) vai além: A liberdade de imprensa [...] é um princípio assegurado não por eles, jornalistas, mas pela sociedade, que deles precisa para mediar a comunicação pública. Do mesmo modo está no fundamento da ética jornalística, qualquer que seja a sua acepção, a defesa da liberdade, da verdade, da justiça, da pluralidade de opiniões e de pontos de vista, e da vigilância dos atos de governo. De forma que o que pode haver de melhor na imprensa é aquilo que contribua para o aperfeiçoamento dos princípios e dos valores sobre os quais repousa a sua própria liberdade. Porém, como direito fundamental, a informação que se reveste do valor protegido pela justiça não pode prescindir da verdade – ainda que uma verdade subjetiva e apenas possível – pela circunstância de que é isso que as pessoas legitimamente supõem estar conhecendo ao buscá-la. O sentido axiológico que se protege é a informação verdadeira, já que a verdade é mais do que um limite, é um requisito interno da informação. Porém, a verdade, como se sabe, não é um conceito absoluto: De fato, no mundo atual, no qual se exige que a informação circule cada vez mais rapidamente, seria impossível pretender que apenas verdades incontestáveis fossem divulgadas pela mídia. Em muitos casos, isso seria o mesmo que inviabilizar a liberdade de informação, sobretudo de informação jornalística, marcada por juízos de verossimilhança e probabilidade. Assim, o requisito da verdade deve ser compreendido do ponto de vista subjetivo, equiparando-se à diligência do informador, a quem incumbe apurar de forma séria os fatos que pretende tornar públicos (BARROSO, 2005, p. 110-111). Liberdade de informação... // 233 Assim, tanto a liberdade de expressão, aí incluída a de informação, quanto a de imprensa se revestem, como direito fundamental, serem oponíveis contra o Estado, que não tem autorização para se intrometer na esfera subjetiva do cidadão para impor-lhe ideias, subtrair-lhe informações ou manipular dados. No Brasil, a Constituição de 1988 (art. 5º, IV; V; IX; XIV) traz normas sobre as liberdades de informação, expressão e de imprensa, reconhecendo tais valores de forma assentar o fundamento da própria sociedade, ao ponto de se os elevar à categoria das cláusulas pétreas. E, mais do que garantir o direito de se expressar, informar e ser informado, proibindo dispositivo infraconstitucional que constitua embaraço à plena liberdade de informação jornalística, a Constituição veda a censura de maneira expressa no art. 220 e seus parágrafos, seja ela de natureza política, ideológica ou artística. A Constituição de 1988, que marca a ruptura com o Estado ditatorial que a precedeu protege esse valor social sabedora que a censura é a marca dos Estados totalitários de todos os matizes. A livre circulação de ideias é o principal instrumento contra a dominação. A censura é sempre imposta por quem detém algum tipo de poder e que, por dispor desse poder pretende estabelecer o que é bom ou ruim e ditar o que pode ou não pode ser visto, escutado ou lido pelo conjunto dos indivíduos. Geralmente a dominação exercida com a censura é disfarçada por apontadas boas intenções que abrem o caminho para a implantação, apresentando-a como um meio de proteger coisas obscenas, feias, imorais, que não devem ser vistas, escutadas ou lidas porque podem prejudicar a formação de crianças e adolescentes ou podem ofender ou ferir sentimentos (KARAM, 2009, p. 6-7). Assim como ocorre com os demais direitos da personalidade e, para efeito desse texto, com os direitos à privacidade, intimidade e vida privada, nem a liberdade de informação, como a de expressão e a liberdade de imprensa são direitos absolutos. Todos têm limites, e no caso brasileiro, na própria Constituição. 13.4.1 Os limites da liberdade de imprensa Como ocorre em qualquer manifestação de liberdade individual ou em relação a qualquer direito fundamental, a liberdade de expressão, de informação e de imprensa são absolutas “[...] enquanto não são atingidos ou concretamente ameaçados direitos de terceiros” (KARAM, 2009, p. 11). Quando se fala na intromissão do Estado no direito de informar, ou na tentativa de manipular informações, cercear manifestação de pensamento ou de opinião, a defesa intransigente dos direitos fundamentais aqui objeto de análise é tranquila e, na doutrina e na jurisprudência do regime democrático, pacificado. O problema é quando nos deparamos com a eficácia horizontal desses direitos. E aí, o direito às liberdades de expressão, de imprensa ou de informação podem colidir com direitos fundamentais e de personalidade 234 // Problemas da jurisdição contemporânea... outros, também tutelados pelo Direito e protegidos, como no caso brasileiro, pela norma constitucional. E esta colisão de interesses não é benéfica para a harmonia do sistema legal. Assim, parece inevitável a conclusão de que há limites para os direitos de informação, de expressão e de imprensa. Tomando a classificação de Luís Roberto Barroso, podemos elencar parâmetros constitucionais para ponderação na hipótese de colisão. São eles: a) a veracidade do fato; b) a licitude no meio empregado para obtenção da informação; c) Personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia; d) local do fato; e) natureza do fato; f) existência de interesse público na divulgação em tese; g) Existência de interesse público na divulgação de fatos relacionados com a atuação de órgãos públicos; e, h) Preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da divulgação. Ver-se-á a seguir: a) A veracidade do fato: a busca da verdade é o fundamento do jornalismo, berço onde repousa a liberdade de imprensa. É a busca dessa verdade, que está camuflada atrás da verdade aparente, que alavanca o jornalismo de qualidade e merece a proteção judicial. A informação que goza da proteção constitucional é a informação verdadeira. “A divulgação deliberada de uma notícia falsa, em detrimento do direito da personalidade de outrem, não constitui direito fundamental do emissor” (BARROSO, 2005, p. 113). Ademais, o que a sociedade espera é uma imprensa séria e de qualidade que cumpra seu papel para com ela. Uma imprensa investigativa, não partidária, independente, sem editorialismo no noticiário e fiel à verdade dos fatos: esses são os fascinantes desafios da cobertura eleitoral e, ao mesmo tempo, os parâmetros que definirão o teste da imprensa de qualidade (DI FRANCO, 1995, p. 114). A fidelidade da narrativa com os fatos não equivale, todavia, a exigência de que a pesquisa jornalística obtenha a verdade absoluta, até porque a verdade absoluta está no todo e não na parte. De fato, no mundo atual, onde a velocidade da circulação das informações é cada vez maior dadas as novas ferramentas tecnológicas disponíveis, “[...] seria impossível pretender que apenas verdades incontestáveis fossem divulgadas pela mídia” (BARROSO, 2005, p. 110). O requisito verdade deve ser compreendido do ponto de vista subjetivo, exigindo-se diligência e seriedade do informador. É preciso também separar verdade de certeza, que é apenas um conceito subjetivo em relação à verdade. E também é fundamental afastar o conceito de verdade do da verossimilhança. Esta é apenas a aparência da verdade, e se não há uma verdade da qual se possa extrair uma semelhança, não há verossimilhança. Para o direito, a interpretação do requisito veracidade é fundamental para a compreensão do limite entre o que é direito de informação e o que é fraude, engodo ou cegueira coletiva. Estes valores não são negociáveis e cabe aos veículos de comunicação “[...] o dever de apurar, com boa-fé e dentro de critérios de razoabilidade, a correção do fato ao qual darão publicidade. É bem de ver, no entanto, que não se trata de uma verdade objetiva, mas subjetiva, Liberdade de informação... // 235 subordinada a um juízo de plausibilidade” (BARROSO, 2005, p. 113-114) que respeite, também o ponto de observação e os elementos disponíveis no momento da apuração da notícia por parte de quem a divulga. Cabe aos veículos não a verdade objetiva, mas um dever de objetividade: O dever de objetividade que dizer dever de honestidade intelectual, de respeito a um método e usado juridicamente. Aos tribunais não caberia julgar a informação per se – cuja exatidão, que não é nunca mais do que uma aspiração, seria sempre insuscetível de perfeita verificação –, mas o autor de um dano ou melhor, a atividade deste. O dever de objetividade seria [...] um dever de meios [...], um dever de tipo profissional. O resultado concreto, por exemplo, uma informação veraz, não seria juridicamente exigível, da mesma forma como a saúde não pode ser exigida do médico que atende um enfermo, ou a sentença favorável do advogado que patrocina uma causa (PERREIRA, 2002, p. 162-163). Uma vez satisfeita a relação obrigatória com a realidade, com a verdade, já que “[...] a matéria-prima do jornalismo é a informação. Seu único compromisso deve ser com a verdade.” (DI FRANCO, 1995, p. 119), o direito à informação se reveste do caráter coletivo que se sobrepõe ao interesse individual, e adquire a proteção jurídica que ampara o direito da personalidade. b) licitude do meio empregado na obtenção da informação: não de admite proteção ao direito de informar se o conhecimento acerca do fato que se pretende divulgar tenha sido obtido por meios não admitidos pelo direito. Do mesmo modo como não são admitidas provas por meio ilícitos, a divulgação de notícias que se obteve mediante meios ilícitos também não recebe a proteção constitucional. Mas, se a informação está em arquivos públicos ou pode ser obtida por meios regulares e lícitos torna-a pública e, portanto, sua divulgação não afeta a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem dos envolvidos (BARROSO, 2005, p. 114). c) Personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia: recordando o que já foi dito nessas linhas sobre a privacidade e o direito de ser deixado em paz em sua solidão, não parece consistente a possibilidade de um direito de terceiro que seja invasivo desmedidamente sobre o âmbito privado do indivíduo. E isso só pode ganhar legitimidade em casos de estrita excepcionalidade, uma vez que a mera curiosidade sobre o que se passa no espaço íntimo das pessoas não merece tutela ou proteção. Porém, quando se trata de pessoas que ocupam cargos públicos e agem por representação, este direito à privacidade é relativizado. Elas têm o seu direito de privacidade tutelado em intensidade mais branda. Com frequência, os órgãos de imprensa se vêem entre optar pelo respeito à privacidade de alguém que é tema da reportagem e o direito do cidadão de ser bem informado. É justo devassar a intimidade de Alguém? Não, todo mundo sabe. Mas, de novo, não é com tanta simplicidade que essas dúvidas costumam aparecer. Pergunte-se outra vez: é justo investigar a intimidade de alguém que esteja exercendo uma função pública e guarda, em sua 236 // Problemas da jurisdição contemporânea... intimidade, práticas suspeitas que envolvem o Estado? O dilema ético do jornalista, por excelência, é desse tipo. Não se trata apenas de uma hesitação, portanto, entre o certo e o errado (BUCCI, 2000, p. 20). Do mesmo modo, pessoas notórias, como artistas, atletas, modelos e pessoas do mundo do entretenimento que constroem suas carreiras alicerçadas na publicidade de seus atos e necessitam dessa publicidade para exercer suas atividades, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que também estão passíveis de uma certa relativização do seu direito à privacidade. Menos controle, é importante que se diga, não significa supressão. d) Local do fato: os fatos ocorridos em local reservado têm proteção mais ampla que os acontecidos em locais públicos (BARROSO, 2005, p. 115). Já eventos ocorridos no interior do domicílio de uma pessoa, por princípio, não são passíveis de divulgação contra a vontade do envolvido. Os ocorridos em local público, como um restaurante ou saguão de um hotel, em princípio serão noticiáveis. e) Natureza do fato: acontecimentos que sejam produzidos por eventos da natureza (como deslizamento de terra, enchente, etc.) acidentes ou crimes são passíveis de divulgação por seu evidente interesse jornalístico, ainda quando exponham a intimidade, a honra ou a imagem das pessoas nela envolvidos. f) Existência de interesse público na divulgação em tese: o interesse público na divulgação de qualquer fato verdadeiro se presume como regra geral (BARROSO, 2005, p.116). Cabe ao privado provar que o interesse privado sobreponha o interesse público residente na própria liberdade de expressão e de informação. Já quanto para figuras públicas, o interesse público é evidente. Além disso, as figuras públicas devem exercer o poder com decoro e sem o deslumbramento do palco iluminado. Não se invoque, portanto, o direito à privacidade para se protestar contra informações verdadeiras que registram comportamentos incompatíveis com a dignidade da função pública. Há uma divisória clara entre o direito à informação e o direito à privacidade o bem comum, o interesse público (DI FRANCO, 1995, p.78). g) Existência de interesse público na divulgação de fatos relacionados com a atuação de órgãos públicos: no que diz respeito aos órgãos públicos, a presunção de interesse público prevalece. “Em um regime republicano, a regra é que toda a atuação do Poder Público, em qualquer de suas esferas, seja pública [...] a publicidade, com o é corrente, é o mecanismo pelo qual será possível ao povo controlar a atuação dos agentes que afinal praticam atos em seu nome” (BARROSO, 2005, p. 116). h) Preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da divulgação: a reparação do abuso da liberdade de expressão e informação pode ocorrer a posteriori, com responsabilização civil e criminal do agente, além da retratação, do desmentido e a retificação, além do direito Liberdade de informação... // 237 de resposta. Já quanto à violação à privacidade, a simples divulgação pode acarretar o mal de modo irreparável. 13.4.2 A técnica da ponderação Os direitos fundamentais são uma conquista da humanidade contra a própria natureza do homem, de impor-se sobre o semelhante com sua vontade e seus interesses. No Brasil, nossa Constituição reconheceu um elenco de direitos e, dentre eles, alguns em especial que foram assim catalogados como direitos fundamentais. Na Constituição, tais direitos estão em pé de igualdade uns com os outros, sem que exista sobre eles critério hierárquico. Ocorre que pode haver – e de fato há – momentos em que alguns desses direitos colidem com outros de mesmo valor. E muitas vezes não é o Estado, “[...] é o particular quem avança de forma ilegítima sobre a esfera de liberdade constitucionalmente garantida de outra pessoa” (REZENDE, 2014, p.15). E, em se tratando da necessidade de imposição de restrições a determinados direitos, precisamos de um mecanismo objetivo que permita ponderar qual direito deve preponderar. Por muito tempo prevaleceu exclusivamente o raciocínio da subsunção na aplicação do direito. Pela subsunção, uma premissa maior (a norma) incide sobre uma premissa menor (o fato) produzindo um resultado. O resultado, portanto, é a aplicação da norma sobre o fato concreto. Este é um raciocínio silogístico que resolve grande parte dos problemas do direito e de muita valia. Mas, nem sempre – e nem para todas as situações – a subsunção responde às necessidades que a vida real apresenta. É o que ocorre quando há muitas premissas maiores incidindo em apenas uma premissa menor. Ou seja, muitas normas e princípios sobre um único fato. A lógica unidirecional da subsunção não dá conta de solucionar problemas dessa magnitude por trabalhar apenas com uma das normas, descartando as demais. Quando nos referimos a normas e princípios constitucionais, e ante ao princípio da unidade da Constituição, que nega hierarquia entre dispositivos constitucionais, a subsunção não é suficiente para a resposta que o direito exige. Ante esta realidade, a “[...] interpretação constitucional viu-se na contingência de desenvolver técnicas capazes de produzir uma solução dotada de racionalidade e controlabilidade diante de normas que entre em rota de colisão” (BARROSO, 2014, p. 361). Para resolver esses casos, há a necessidade da ponderação: A subsunção é um quadro geométrico, com três cores distintas e nítidas. A ponderação é uma pintura moderna, com inúmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais do que as outras, mas formando uma unidade estética. Ah, sim: a ponderação malfeita pode ser tão ruim quanto algumas peças de arte moderna (BARROSO, 2014, p. 361). 238 // Problemas da jurisdição contemporânea... Podemos descrever a ponderação em três etapas: na primeira o intérprete identifica quais as normas que estão na incidência do caso em concreto e se há conflito entre elas. Os diversos fundamentos normativos que solucionam o caso devem ser agrupados para formar um conjunto de argumentos para cada lado da solução do conflito, para facilitar a comparação entre os elementos normativos em jogo. Na segunda etapa se deve examinar os fatos e suas circunstâncias concretas, pois “[...] o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas identificadas na primeira fase poderão apontar com maior clareza o papel de cada uma delas e a extensão de sua influência” (BARROSO, 2014, p. 262). Na terceira fase, onde se dá de fato a ponderação, analisa-se os argumentos e os fundamentos normativos em contraposição e se atribui peso a cada grupo. Em seguida, será preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada. Todo esse processo intelectual tem como tio condutor o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (BARROSO, 2014, p. 262). Assim, todo esse mecanismo nos é dado pelo princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade. Este princípio “[...] tem por escopo solucionar colisão de direitos fundamentais” (FACHIN, 2013, p. 140). Não se pode afastar, ainda, a possibilidade de existência de leis restritivas de direitos. Ante tal fenômeno, mais uma vez nos vemos diante da necessidade de lançar mão da ponderação e do princípio da proporcionalidade. Já quanto ao núcleo da aplicabilidade, que é a proporcionalidade em sentido estrito, desta se exige um grande critério de razoabilidade, exigindose um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção de eventual medida restritiva. O que se busca é aferir a desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido. A doutrina aponta várias alternativas para indicar de onde se extraiu o princípio da proporcionalidade na fundamentação jurídico-positiva. Vem do Estado de Direito, especialmente numa compreensão que inclua a promoção dos direitos fundamentais como sua matriz; deriva do dispositivo constitucional que atribuiu aplicação imediata dos direitos fundamentais e vincula a todos, mesmo o poder público e os particulares, sem excluir seus destinatários (art. 5º §1º da CF), ou por ser princípio implícito no sistema dos direitos fundamentais. Há doutrinadores, como Paulo Bonavides, que entendem haver uma derivação do direito de igualdade. Outros, como Wilson Antônio Steinmetz, que identificam como situado na cláusula da dignidade humana. Ainda, como André Ramos Tavares que entende extraído do princípio do devido processo Liberdade de informação... // 239 legal. Gilmar Ferreira Mendes (1999, p.87) o vê a partir do inciso LIV do art. 5º da CF: Vê-se, pois, que o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso é plenamente compatível com a ordem constitucional brasileira. A própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evoluiu para reconhecer que esse princípio tem hoje a sua sedes materiale no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal. Enfim, o princípio da proporcionalidade, ou razoabilidade, serve para manter a ponderação entre posições constitucionais que estabeleçam tensões entre si ou entre direitos e garantias constitucionais, e ainda permite ao judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual (vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (BARROSO, 2014, p. 283). Os direitos à intimidade e à privacidade devem conviver com os direitos à informação e expressão e com a liberdade de imprensa, dentro da concepção de um Estado que respeite o indivíduo e promova o respeito entre os indivíduos. A técnica da ponderação, baseada no princípio da proporcionalidade é a ferramenta adequada para proporcionar o equilíbrio entre os direitos tutelados e sua preservação ao máximo possível de cada um deles. Democracia é isso. 13.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A luta histórica do homem para constituir um modo de vida respeitoso e harmonioso, que permita o convívio social pacífico e sem violações de direitos foi longa e árdua. O reconhecimento de que o homem é senhor de direitos pela simples razão de existir é hoje fato, mas para que ocorresse muitos séculos se passaram. Dentre esses direitos, a liberdade foi o primeiro a ser reconhecido com direito fundamental. Dentro do direito à liberdade estão compreendidos outros direitos, como à privacidade e à intimidade. O right to be let alone, ou direito de ser deixado em paz em sua esfera íntima. Do mesmo modo, o direito a ser informado corretamente e informar, bem como a liberdade de imprensa, todos são oriundos do mesmo princípio da liberdade. Numa sociedade que preza pelo respeito ao indivíduo e reconhece ser ele senhor de direitos pela simples razão de existir, esses direitos precisam conviver harmonicamente sem que haja a supressão de um deles em favor de outro. Num país como o Brasil, que reconhece na norma 240 // Problemas da jurisdição contemporânea... constitucional tais direitos e os equivale todos ao mesmo nível hierárquico, a técnica da subsunção não é eficaz para solucionar conflitos entre esses direitos. A melhor maneira de manter o equilíbrio entre eles, conservando ao máximo o núcleo de cada um é, em caso de conflito, o uso da técnica da ponderação, com base no princípio da proporcionalidade. Um método eficaz para a preservação dos direitos e solução dos conflitos quando surgem. 13.6 REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. ______. Direito Constitucional Contemporâneo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. ______. Temas de Direito Constitucional, Tomo III: Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de Personalidade e Autonomia Privada. São Paulo: Saraiva, 2007. BUCCI, Eugênio. Sobre Ética e Imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2009. CUPIS, Adriano de. Os Direitos da Personalidade. São Paulo: Quorum, 2008. GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e Direitos da Personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008. DEL VECHIO, Giorgio. Los Princípios Generales Del Derecho. Barcelona: Libreria Bosque, 1955. DI FRANCO, Carlos Alberto. Jornalismo, ética e qualidade. São Paulo: Vozes, 1995. FACHIN, Zulmar Antônio. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. 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Sabe-se que, inicialmente, a preocupação voltava-se apenas ao controle das pestes epidêmicas tais como a peste negra e para tanto, apenas isolava-se o paciente para que a peste não se propagasse entre a população que à época possuía poucos recursos para a cura de doenças desconhecidas. Somente em meados do Século 30 é que efetivamente foram controladas as pestes epidêmicas, principalmente no Estado do Rio de Janeiro (BARROSO, 2008, p.12). É importante salientar que no decorrer da história, o direito a saúde apenas alavancou após a Revolução Industrial. Os industriários tinham grande interesse em manter o operariado em condições saudáveis para o sucesso em sua linha de produção. A saúde era uma preocupação meramente capitalista, ou seja, é a partir desse momento em que o ser humano começa a ter o direito à saúde mediante o vínculo empregatício. Apesar da criação do Ministério da Saúde em 1953, pouco foi realizado (FERRAZ, 2011). A criação dos IAPs (Instituto de Aposentadorias e Pensões) e sua fusão com o INPS (Instituto Nacional da Previdência Social) continuava a beneficiar somente ao trabalhador urbano com carteira assinada que era contribuinte e beneficiário desse novo sistema e acesso à rede pública de saúde (ESCORREL 2008, p. 385-434). Somente em 1988, com a Constituição Federal o direito à saúde passou a categoria de Direito Fundamental. Foi através da Assembléia Constituinte que tal Direito passou a ser um dever estatal e direito de todo e * Advogado criminal. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (2007). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Paranaense de Ensino (2008) Pós Graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (2009) Mestre em Direitos da Personalidade na Universidade Cesumar (2012) Linha de Pesquisa: Os Direitos da Personalidade e seu alcance na contemporaneidade. Professor dedicação Exclusiva do Centro Universitário Uniages. Membro do Núcleo Docente Estruturante. ** Possui graduação em DIREITO pelo Centro Universitário de Maringá (2001). Mestrado em Ciências Jurídicas, pelo Centro Universitário de Maringá, desde 2010. Doutoranda em Direito pela Fadisp (Faculdade Autônoma de Direito). Atualmente é Docente, Advogada e Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário de Maringá. 244 // Problemas da jurisdição contemporânea... qualquer cidadão brasileiro. Até então, pouco se ouvia falar no direito a saúde nas Constituições anteriores. Apesar da grande evolução quanto ao tema na Constituição de 1988, atualmente o que se verifica é que a idéia exposta na Carta Magna teve seu caminho desvirtuado. O Sistema público de saúde em nosso país atravessa talvez, se não for, o pior momento crítico de sua história. Verbas desviadas, destinadas a outros pontos orçamentários; hospitais públicos cuja infraestrutura carece de investimentos e modernizações; postos de saúde vandalizados; má distribuição de medicamentos; pouco caso com os desvalidos e pobres de espírito. É através desse cenário que pretendemos desenvolver o tema “O Direito Fundamental à saúde no Brasil”, o desrespeito a tão divulgada e estudada dignidade da pessoa humana e a problematização quanto ao excesso de judicialização no campo da saúde pela falta de harmonia entre os três poderes, a saber, o legislativo, executivo e o judiciário. Doutrinadores renomados entendem pela interferência de um poder no âmbito de competência do outro. Quando o Poder Judiciário julga procedente uma ação, referente à obrigatoriedade do Estado em fornecer tratamentos e medicamentos de alto custo, vai contra, por sua vez, a dotação orçamentária previamente estabelecida pelo Poder Público, o Executivo. De um lado encontramos o direito fundamental à saúde e de outro o erário público já destinado a determinados setores determinados pela administração pública. 14.2 DEFINIÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E SEU CONTEXTO NA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O conceito de saúde provavelmente surgiu na Grécia (HUMENHUK, 2004, p.23) antiga ao afirmarem que Mens Sana In Corpore Sano1. Definir o que venha a ser saúde é desenvolver um estudo em outras áreas, a saber, da medicina e demais setores cuja pretensão é a de ampliar este conceito. Para Keila A Baraldi Knobel (KNOBEL, 2011) saúde é: [...] é uma condição em que um indivíduo ou grupo de indivíduos é capaz de realizar suas aspirações, satisfazer suas necessidades e mudar ou enfrentar o ambiente. A saúde é um recurso para a vida diária, e não um objetivo de vida; é um conceito positivo, enfatizando recursos sociais e pessoais, 1 Mens sana in corpore sano (mente sã, corpo são) é uma famosa citação latina, derivada da Sátira X do poeta romano Juvenal. No contexto, a frase é parte da resposta do autor à questão sobre o que as pessoas deveriam desejar na vida. A conotação satírica da frase, no sentido de que seria bom ter também uma mente sã num corpo são, é uma interpretação mais recente daquilo que Juvenal pretendeu exprimir. A intenção original do autor foi lembrar àqueles dentre os cidadãos romanos que faziam orações tolas que tudo que se deveria pedir numa oração era saúde física e espiritual. Com o tempo, a frase passou a ter uma gama de sentidos. Pode ser entendida como uma afirmação de que somente um corpo são pode produzir ou sustentar uma mente sã. Seu uso mais generalizado expressa o conceito de um equilíbrio saudável no modo de vida de uma pessoa. O direito fundamental à saúde // 245 tanto quanto as aptidões físicas. É um estado caracterizado pela integridade anatômica, fisiológica e psicológica; pela capacidade de desempenhar pessoalmente funções familiares, profissionais e sociais; pela habilidade para tratar com tensões físicas, biológicas, psicológicas ou sociais com um sentimento de bem-estar e livre do risco de doença ou morte extemporânea. É um estado de equilíbrio entre os seres humanos e o meio físico, biológico e social, compatível com plena atividade funcional. Grifou-se Segundo entendimento da Organização Mundial da Saúde, adotado pelo Brasil através do decreto 26042, promulgado em 17.12.1948 a saúde é vista como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade (OLIVEIRA, 2008, p. 201-202) tal como era considerada pelos povos antigos. Atualmente, define-se a saúde como um direito fundamental social prevista pela Constituição Federal de 1988, artigo 196 e demais dispositivos normativos que prescrevem o dever do Estado na garantia desse direito. Porém a definição do que venha a ser a saúde em si, ultrapassa o conceito definido pela Organização Mundial da Saúde. A saúde é oriunda de inúmeros fatores sociais, que influenciam o modo de vida de cada um. É necessário, além do bem estar físico e mental, uma moradia adequada, livre das mazelas da pobreza ou pelo menos um mínimo de organização sanitária básica. Vai além, comporta ainda a educação cujo cidadão, bem informado e estudado é capaz de auferir conhecimentos considerados importantes ao bem estar, evitando-se, portanto, uma condição de vida miserável. Inclui-se ainda, dentro deste conceito, o trabalho, o meio ambiente, a assistência médica, o transporte, o lazer dentre muitos outros aspectos capazes de modificar o meio em que vivem e o modo em que se socializam (DARÉ, 2008, p. 169). Talvez essa seja a dificuldade que o Poder Estatal vem encontrando em prover o direito fundamental a uma vida saudável 2. Nas palavras do ilustre doutrinador Hewerstton Humenhuk (HUMENHUK, 2004, p. 24): A moderna doutrina jurídica desperta na sua mais pura hermenêutica, bem como, nas legislações atuais, que o direito à saúde está interligado com vários outros direitos como por exemplo: direito ao saneamento, direito à moradia, direito à educação, direito ao bem-estar social, direito da seguridade social, direito à assistência social, direito ao acesso aos serviços médicos e direito à saúde física e psíquica. 2 Art. 3º da Lei 8.090 de 1990: A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país. Parágrafo único – Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. 246 // Problemas da jurisdição contemporânea... Após essa breve análise acerca da definição da saúde, é importante ressaltar, antes de mais nada, o que venha a ser o conceito de direitos fundamentais para que somente após tecermos críticas sobre o tema. Primeiramente, Direito Fundamental segundo Canotilho (CANOTILHO, 1991): “[...] são os direitos do homem, jurídico-institucional garantidos e limitados espaço-temporalmente”. Mais especificamente a explicação de Ingo Wolfgang Sarlet (SARLET, 2005, p. 35) para quem “[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”. Apesar de teoricamente entendermos os direitos fundamentais tal como acima especificado, mesmo após a promulgação da Constituição e de todos os avanços conquistados pelas constituições anteriores, a saúde ainda não possui total efetivação enquanto direito fundamental. Eleutério Rodrigues Neto (RODRIGUES NETO, p. 91) preleciona com grande sabedoria que a falsa democracia brasileira levou seus legisladores a ideia da necessidade de se construir capítulo específico como garantidor de tal direito, a saber, em suas palavras Numa constituição ideal, verdadeiramente democrática, não necessitaria de uma parte especialmente dedicada à Saúde. Os seus objetivos, de natureza individual e coletiva, no contexto de uma organização social democrática já seriam as condições necessárias e suficientes para a busca do alcance e do gozo da Saúde. Grifou-se Em seu entendimento, reflete a ideia de uma utopia que pode servir de ponto de partida apenas para a análise da origem dos desvios e peculiaridades do processo. Os Direitos Fundamentais, que são amplamente discutidos e conhecidos, são produtos de uma evolução contínua e permanente que pode ser traçada sob dois prismas: a circunstância histórica da sociedade e as chamadas gerações ou dimensões dos direitos fundamentais. No sábio entendimento do jurista Norberto Bobbio, (BOBBIO, 1992, p. 1-65) os Direitos Fundamentais de Primeira Geração representados pelos direito civis e políticos, postulavam uma atividade negativa por parte do Estado e não violar os direitos individuais. Nesse sentido, German J Bidart Campos (BIDART CAMPOS, p. 21.) “[...] ao sujeito passivo foi atribuído fundamentalmente uma obrigação de não prejudicar a saúde abster-se de violação do direito através de condutas prejudiciais à saúde” 3. Direitos amparados pela Revolução Francesa cujos ideais eram a liberdade, igualdade e fraternidade. Norberto Bobbio (BOBBIO, 1992, p. 165), ao discorrer sobre as gerações dos Direitos Fundamentais, explica ainda, sobre os Direitos Fundamentais de Segunda Geração, cuja conquista da liberdade trouxe […] al que como sujeito pasivo se le asignaba fundamentalmente uma obligacion de omisión no danar la salud abstenerse de violar el derecho a La salud con conductas perjudiciales. 3 O direito fundamental à saúde // 247 conseqüências que não foram desejadas pela camada menos favorecida da sociedade. A abstenção Estatal foi tão grande que se criou uma situação de quase abandono em relação aos menos favorecidos. Percebe-se então, que era necessárias ações para o restabelecimento das igualdades, para tanto cabia ao Estado promovê-las. Observa-se, portanto, o entendimento de German J. Campos (BIDART CAMPOS, p. 21) sobre a questão: Em essência, com a obrigação do Estado não para inferir danos ao direito de toda pessoa saudável (obrigação de omissão) é anexar uma obrigação a outra (dar e fazer alguma coisa: o necessário para cada caso, para cuidados de saúde e para promover em benefício da pessoa com prestações positivas e também medidas de ação positiva)4. As constituições baseadas no modelo dessa geração, não postulam apenas a proteção individual dos indivíduos, mas também através de direitos sujeitos à prestações, ou seja, direitos sociais, culturais e econômicos referente as relações de produção, trabalho, educação, cultura e previdência. Dessa forma, tais direitos estão ligados às já referidas prestações sociais do Estado perante o indivíduo bem como a assistência social, educação, saúde, cultura e trabalho. A partir daí o Estado deixa de ter apenas uma função negativa, de não interferir na vida dos indivíduos da sociedade, para ter uma função positiva, uma função prestacional. Os direitos fundamentais de Segunda Geração vieram amparados pelas constituições do segundo pós-guerra. Os direitos prestacionais são bem explicados por Susana Graciela Cayuso (CAYUSO, 2001, p. 40): Esta nova concepção de direito podem ser identificados, pelo menos a priori, como direitos a prestações e por conseqüência surge a pergunta acerca da sagrada inscrição do conceito de direitos fundamentais e quanto a possibilidade de sua exigência. Particularmente, a incorporação constitucional parece ser dada pela sua contextualização segundo o qual não se reconheceria como direito subjetivo5. Nesse sentido, o Direito Fundamental à Saúde pertence aos direitos Fundamentais de Segunda Geração, posto que trata de um direito expresso a partir do artigo 6º da Constituição sendo este um verdadeiro direito a 4 Em lo fundamental, a La obligación estatal de no inferir dano al derecho de cada persona a La salu (obligación de omisión) se lë huno de acoplar outra obligación (de dar y de hacer algo: lo necesario em cada caso para cuidar La salud y para promoverla em beneficio de La persona com prestaciones positivas y medidas de acción también positiva. 5 Esta nueva concepción de derechos permite individualizarlos, por lo menos a priori, como “derechos a prestaciones” y em consecuencia,, plantea El interrogante acerca de sugrado de adseripción al concepto de derechos fundamentales em cuanto a La posibilidad de su exigência. La peculiaridad de incorporación constitucional parece estar dada por su textualización, según La cual no reconocerían um derecho subjetivo. 248 // Problemas da jurisdição contemporânea... prestação, ou seja, um direito social de cunho prestacional que necessita de uma atuação positiva do Estado que garanta a sua efetividade. Após o final do século, da Revolução Industrial, da descolonização do segundo pós-guerra e com os avanços tecnológicos, a sociedade passou a se preocupar não apenas com a proteção de um determinado Estado e sim a direitos de titularidade coletiva ou difusa. Deste modo, configura os direitos fundamentais da terceira geração como direitos de solidariedade ou de fraternidade, são direitos que buscam o desenvolvimento, a paz, o meio ambiente e a comunicação. Por exigirem esforços e responsabilidades universais para sua efetivação (HUMENHUK, 2004, p. 07). Quanto aos direitos fundamentais de quarta geração, entende-se que seu surgimento ocorreu no período de após guerra e com a influência dos Estados Unidos sob os demais países do mundo que passou a se falar apenas em direitos de um Estado específico e também de direitos amparados na Globalização econômica onde os países desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos buscam universalizar os valores, afrouxando e debilitando os laços de soberania dos países subdesenvolvidos com o intuito de buscar a institucionalização do Estado Social. Dessa forma, compreende-se como direitos universais, direitos à democracia, informação, pluralismo que buscam os valores concernentes à vida, à liberdade, à igualdade e à fraternidade ou solidariedade, resguardando-se sempre a dignidade do ser humano. 14.3 O SURGIMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL: UM ENFOQUE HISTÓRICO EVOLUTIVO E O DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL O fortalecimento dos direitos sociais partiu, inicialmente, sob a influência dos Movimentos Socialistas do Século XIX que buscavam transformar as condições de miséria instauradas pelo capitalismo aos trabalhadores da época (RAMOS, 2008). Surgiu, portanto, os direitos de segunda dimensão (ou segunda geração), calcado nos ideais da Constituição do México em 1917 e Weimar de 1919 que demonstrava a preocupação da necessidade da interferência do Estado nesse setor (PISCITELLI, 2011, p. 2). No Brasil, os direitos sociais iniciou-se através da Constituição Getulista de 1934, efetivando-se na de 1946 exatamente por se tratar de Constituição amplamente democrática, firmando-se em 1967 e 1969 (VACCARI, 2003, p. 36). John Maynard Keynes em sua obra entitulada Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de 1936, citado pelo professor Marcos Mello Gonçalves (GONÇALVES, 2002, p. 100-103), forneceu os fundamentos teóricos do que à época era chamado de Estado do Bem-Estar e já manifestava a necessidade da atuação estatal quanto aos direitos sociais. O direito fundamental à saúde // 249 A situação crítica da época foi amplamente criticada por Karl Marx para quem o processo de industrialização gerou absoluta concentração de renda e excedente de trabalho que era apropriado pelos industriários (VACCARI, 2003, p. 02). Os grandes avanços alcançados pela Revolução Industrial, apesar de suma importância na história mundial, trouxe consigo inúmeros problemas tais como o de abastecimento de água, esgoto, coleta de lixo e higiene (BRANDI, 2009, p. 29). O renomado e conhecido filósofo Alemão Engels, ao estudar as condições de vida do operariado chegou a conclusão que a saúde dos mesmos era de imensa precariedade. O próprio ambiente de trabalho e da cidade em que viviam, levava-os cada vez mais à doenças oriundas das péssimas condições sanitárias (BRANDI, 2009, P. 29). No Brasil, há indícios de direitos sociais desde 1824. Mas somente com a Constituição de 1934 foram incorporados, ainda de maneira tímida, no texto da Carta Magna enunciando apenas a existência de uma ordem economia e social. Somente em 1988 que efetivamente tais direitos foram introduzidos e elevados em matéria constitucional como Direito Fundamental do cidadão brasileiro traduzindo-se, portanto como meios de obtenção e concretização de todos os outros direitos fundamentais. São os chamados Direitos da Segunda Geração e que possuem como característica principal a atuação, a prestação do Estado. Conforme explicação de German J Bidart Campos ( BIDART CAMPOS, 2001, p. 22): Se a própria saúde como um direito inscrito na categoria dos direitos sociais de segunda geração exigem que os. sujeitos passivos tambem sejam modificados. A ambivalência dos direitos que podem ser invocados contra o Estado e entre as pessoas, melhorar a saúde, a cobrança deve ser cada vez mais ampla, a grande gama de entidades privadas que prestam serviços aos membros, como, por exemplo, a medicina pré-paga6. Os direitos prestacionais possuem uma efetivação mais complexa que os direitos abstencionais da Primeira Geração, isso porque é mais simples deixar de fazer algo do que cumprir uma meta. O Direito à Saúde encontra-se no rol dos direitos sociais enumerado no artigo 6º da Constituição Federal, sendo também disciplinado nos artigos 193 a 232. Tais direitos não são taxativos sendo possível ainda que o legislador infra-constitucional trate mais detalhadamente do tema. 6 Si y ala salud como derecho personal entro a La categoria de los derechos sociales de La segunda geración El elenco de los sujetos pasivos tambíen acuso modificaciones. La ambivalência de los derechos, que son oponibles tanto al Estado como entre particulares, cobra realce cuando em matéria de salud há alcanzado difusión creciente uma amplia serie de entidades privadas que prestan servicios a seus sócios, como son por ejemplo, lãs de medicina prepaga. 250 // Problemas da jurisdição contemporânea... Assim como o direito à educação, o direito à saúde é um direito de prestação do Estado. Esta obrigação pode ser repassada a terceiros, como nos casos de planos de saúde, cabendo ao Estado fiscalizar estas prestações de serviços. Nesse sentido deve ser observado os ensinamentos de Bidart Campos (BIDART CAMPOS 2001, P.21.): Por consequência, agora o Estado e os entes que prestam serviços de saúde, tanto gratuitos como pagos, assumem deveres de dar e de fazer, em benefícios das pessoas que possuem direitos em acessá-los7. O direito à saúde diz respeito à qualidade de vida de todo cidadão sendo esta indispensável no âmbito dos direitos fundamentais sociais, dessa forma, é um dever do Estado que deve garantir a eficácia de tais direitos fundamentais. Essa eficácia, também conhecida como eficácia horizontal (HUMENHUK, 2004, p. 21) dos direitos fundamentais é a eficácia em relação a terceiros, dessa forma, os Direitos Fundamentais como o direito à saúde, deixa de ter apenas efeitos verticais, perante o Estado, para passarem a ter efeitos horizontais perante entidades privadas. Como pode ser observado nos ensinamentos de German J. Bidart Campos (BIDART CAMPOS, 2001, p. 21.) “[...] Saúde é um bem jurídico de natureza e ramo constitucional que, também nas relações entre os particulares deixa espaço mais que suficiente para uma presença ativa do Estado”8. Como Direito Fundamental, a Constituição procurou estabelecer a sua garantia tanto no setor público, quanto no setor privado, no sentido de que o Estado regulamentasse, fiscalizasse e controlasse, nos termos da lei, as ações e serviços médicos, que são prestações positivas de natureza pública, significando com isso que o Estado tem integral poder de controle sobre tais ações e serviços, principalmente quanto ao poder-dever de fiscalização das suas prestações. Dessa forma que podemos falar e questionar sobre a importância dos planos de saúde. Assim é, por determinação constitucional, que as ações públicas de saúde no nosso país se fazer por intermédio de um sistema único, gerido nas esferas federal, estadual e municipal, baseado em transferências federais para os entes sub-nacionais, sendo certo que os recursos financeiros do SUS devem ser depositados em conta especial, em cada esfera de sua atuação e movimentados sob fiscalização dos respectivos Conselhos de Saúde 9. 7 Em consecuencia, ahora El Estado y los entes que prestan servicios de salud tanto gratuitos como pagos, asumen deberes de dar y de hacer, em benecifios de lãs personas que tienen derechos de acceder a ellos. 8 [...] La salud es um bien jurídico de natureza y rango constitucional que, también em lãs relaciones entre particulares, deja espacio más que suficiente para uma presencia activa Del Estado 9 Lei 8.080 de 1990 - Art. 33. Os recursos financeiros do Sistema Único de Saúde (SUS) serão depositados em conta especial, em cada esfera de sua atuação, e movimentados sob fiscalização dos respectivos Conselhos de Saúde. O direito fundamental à saúde // 251 A assistência à saúde é livre para a iniciativa privada bem como para a participação conjunta, de forma a suplementar, do próprio Serviço Único de Saúde e a rede privada, com preferências àquelas entidades sem fins lucrativos e assistenciais. Os serviços prestados pela rede pública no controle da saúde, tem por base um programa de saúde que é representado não só pelo controle preventivo ou repressivo, mas também sob a forma de erradicação de certas doenças, sob pena de o Estado ser caracterizado como omisso. O direito sanitário ou Direito da Saúde pode ser entendido como o conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade do Poder Público destinada a ordenar a proteção, promoção e recuperação da saúde e a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e asseguradores desse direito. 14.4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, A RESERVA DO POSSÍVEL E O MÍNIMO EXISTENCIAL Os primeiros conceitos sobre a dignidade humana foi a concepção grega no qual a dignidade vinculava-se ao status social que o indivíduo tinha perante a sociedade (posição social) (PICCIRILLO, 2008, p. 223). O doutrinador Rui Magalhães Piscitelli entende que a dignidade da pessoa humana não é um direito fundamental é sim, um princípio fundamental (PISCITELLI, 2008, p. 4). Princípio ou direito fundamental a emenda do Resp. nr. 647.853, publicada no DJU de 06.06.2005, do Egrégio Superior Tribunal de Justiça complementou o que a Constituição Brasileira de 1988 prescrevendo a dignidade da pessoa humana como sendo um dos fundamentos da República, portanto: Hodiernamente, inviabiliza-se a aplicação da legislação infraconstitucional impermeável aos princípios constitucionais dentre os quais sobressai o da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, por isso que inaugura o texto constitucional, que revela o nosso ideário como nação. Conforme Dworkin, o conceito da dignidade humana é variável conforme a época e o lugar em que cada sociedade vive e por esse motivo não é possível vislumbrar uma definição uniforme, para todos os tipos sociais (MOLLER, 2007). Quanto a doutrina da reserva do possível, atualmente utilizada na exigibilidade dos direitos sociais perante o Estado, tem origem no Direito Constitucional Alemão (OLSEN 2008, p. 215) significando que as prestações devidas pelo Estado somente poderiam ser exigidas em relação ao que o indivíduo pudesse esperar da sociedade principalmente mediante a 252 // Problemas da jurisdição contemporânea... impossibilidade de exigências superiores ao limite básico social 10. Ou seja, a efetividade dos direitos a prestações estaria sob a reserva de capacidades financeiras do Estado (SARLET, 2008, p. 29). Apesar da origem Alemã, a aplicação do princípio nada mais é do que uma tentativa de blindar o erário público da interferência do Poder Judiciário a fim de se indisponibilizar recursos entendidos desnecessários (OLSEN, 2008, p. 221). Conforme Ana Paula Barcellos (BARCELLOS, 2008, p. 261): [...] a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre finitas a serem por eles suprida. [...] é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. A reserva do possível impõe ao Estado, não uma garantia absoluta de inviolabilidade e de tutela da autodeterminação individual, mas, sobretudo, o dever de tanto quanto possível, promover as condições ótimas de efetivação da prestação estatal e preservar os níveis de realização já atingidos. Se todos os direitos possuem um custo e os recursos são escassos, naturalmente, o direito fundamental à saúde, que requer uma complexa estrutura de serviços para o seu atendimento, está submetido à limitação da denominada reserva do possível. Mas essa limitação, não significa a inexigibilidade do direito e não pode ser usada como argumento contra a sua efetividade. O direito à saúde deve ser concretizado o tanto quanto possível, de forma progressiva, até que sua plenitude seja atingida. Quando se considera a necessidade de prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível da saúde ou mesmo o sacrifício da vida, da integridade física e da dignidade humana, não há como não se reconhecer o direito à prestação reclamada. Neste contexto, diante da aparente oposição entre a reserva do possível e o direito fundamental à saúde, ganha importância a doutrina da ponderação de interesses que, à luz do caso concreto e tendo em conta os direitos e princípios conflitantes, busca a compatibilização e harmonização dos bens em jogo. O Estado deve garantir o direito à saúde determinando que o mesmo providencie os recursos necessários, seja através da suplementação de créditos orçamentários, ou ainda do remanejamento, transferência de outra categoria menos importante. A teoria da reserva do possível tem sido interpretada como limitação à efetivação de direitos fundamentais sociais em face da incapacidade 10 Decisão do Tribunal Constitucional Alemão no qual pleiteava-se o acesso irrestrito ao ensino superior em relação aos cursos de elevada procura cuja fundamentação era baseada em Lei Fundamental germânica. O Tribunal decidiu que a garantia de vagas a todos os interessados levaria ao sacrifício de outros serviços públicos em decorrência da onerosidade excessiva e da escassez de recursos, em parte decorrente do período pós-guerra. O direito fundamental à saúde // 253 jurídica do Estado em dispor de recursos para a efetivação do direito. Essa teoria não pode servir como barreira para a não realização dos direitos e prestações sociais. Tão pouco pode ser utilizada como desculpa para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais. Não se pode negar a prestação do direito à saúde ou à vida sob o argumento da indisponibilidade de recursos. (BREZOLIN, 2011). No contexto sócio-político-econômico brasileiro e em relação aos direitos fundamentais, principalmente no que tange ao direito à saúde, é visível que o estado não faz tudo que está em seu alcance. Ao contrário do que deveria certamente ser o correto, o Estado cria mecanismos com o intuito de burlar cada vez mais a lei, os direitos prestacionais. Que a economia brasileira não pode ser comparada às economias de primeiro mundo já sabemos, mas certamente que isto não afasta a obrigação estatal, dos entes administrativos, a obrigação de dotação orçamentária para o cumprimento dos mandamentos constitucionais (OLSEN, 2008, p. 224). Nestes termos, a reserva do possível não é nada mais do que uma restrição fática aos direitos que demandem diminuição do erário público, isto é, a negação do Estado a determinadas exigências ao cumprimento dos direitos sociais significando dizer que tais direitos somente poderão ser aptos ao cumprimento imediato quando houver recursos financeiros públicos suficientes para tanto. É o que ocorre por exemplo nos casos de recusa do Poder Público no fornecimento de medicamentos excepcionais11 ou de alto custo (TAVARES, p. 02). Nesse sentido são os disseres de Andréia Brezolin (BREZOLIN, 2011): Não podemos negar que a saúde insere-se no mínimo existencial para uma vida digna. Dessa forma, quando se recorre ao Judiciário para que conceda medicamentos ou tratamentos médicos, independente do valor dos mesmos, necessário se faz a concessão da tutela pretendida, tendo em vista que para aquela pessoa que está demandando, este é o único meio de garantir o seu direito ao mínimo existencial. A partir do momento em que o cidadão brasileiro não for atendido pelo Sistema Único de Saúde, sendo este atendimento imprescindível, o caminho a ser percorrido será a via judicial. Apesar das limitações do Estado este tem a obrigação de garantir o mínimo existencial aos seus cidadãos. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (SARLET, 2008, p. 25): [...] o mínimo existencial – compreendendo como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma vida saudável [...], tem sido identificado – por “[...] art. 2º, inciso XXII da Lei Estadual n. 14.254, de 04 de dezembro de 2003, que são direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado do Paraná “receber medicamentos básicos e também medicamentos e equipamentos de alto custo e de qualidade, que mantenham a vida e a saúde.” 11 254 // Problemas da jurisdição contemporânea... alguns – como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, núcleo este blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do Estado e da Sociedade. Dessa forma o direito à saúde deve qualificar como sendo um dos direitos mínimos, de existência, de dignidade humana, sendo este considerado como um dos direitos mais básicos do ser humano, como o direito à vida, saúde e a liberdade. O mínimo existencial é considerado um direito às condições mínimas de existência humana digna que exige prestações positivas por parte do Estado. Sabemos que a dignidade humana é o alicerce e o ponto de partida para a efetivação de qualquer direito fundamental. Dentre outros, podemos incluir no mínimo existencial a saúde básica. Sem ela não há o que falar em dignidade da pessoa humana. Se o mínimo existencial for descumprido justifica-se a intervenção do Judiciário nas políticas públicas seja para corrigir seus rumos ou ainda implementá-las. Assim sendo deve ser observado os ensinamentos de Susana Graciela Cayuso (Aires CAYUSO 2001, p. 39): Mas a eficácia do que chamamos de mínimo nesta área vital está ligada ao problema constitucional de determinar o status e alcance que é sobre o direito à saúde, a incorporação de ações positivas, como instrumentos para assegurar o gozo de condições mínimas e a viabilidade da demanda por proteção12. O direito à saúde possui em seu objeto fatores externos dos quais muitas vezes seus titulares não detém o completo controle como, por exemplo, o bem estar social, as novas doenças que surgem com o passar dos tempos, devendo dessa forma, ser considerado a natureza multidisciplinar do atendimento prestado ao paciente que deve envolver a cooperação de diversas áreas de atuação, tais como a médica, psicológica, a assistência social e a jurídica. Estado deverá garantir esse direito a um nível de vida adequado com a condição humana respeitando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais, erradicando-se a pobreza e a marginalização, reduzindo, portanto, as desigualdades sociais. Dessa forma, cabe ao Estado uma dupla obrigação. A obrigação de cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios. E a efetivação de órgãos competentes públicos ou privados através de permissões, concessões ou convênios, para prestação de serviços públicos adequados 12 Pero La efectividad de lo que denominamos El mínimo vital basico em esta matéria esta ligada a La problemática constitucional de determinar La categoria y El alcance que tiene respecto al derecho a La salud, La incorporacion de acciones positivas como instrumentos para asegurar El goce de condiciones mínimas así como La viabilidad de La demanda de protección. O direito fundamental à saúde // 255 que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um nível mínimo de vida digna da pessoa humana. Assim, cabe ao Poder público o dever de fornecer não apenas medicamentos, mas também os tratamentos, incluindo exames e cirurgias, que se fizerem necessários à efetivação do direito fundamental à saúde. 14.5 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO E A RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO PELO ESTADO Os direitos sociais estabelecidos pela Constituição Federal vinculam a administração pública que tem o dever de implementá-las através da criação de políticas públicas, planos e diretrizes tanto práticas como também orçamentárias. São direitos fundamentais cuja eficácia impede sua extinção mediante emenda constitucional. Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (FRISCHEISEN, p. 92) explica que: [...] o seu não reconhecimento possibilita aos interessados, legitimados, demandarem judicialmente por sua implementação; [...] a ausência de políticas públicas voltadas para a implementação dos direitos sociais constituem atos omissivos da administração e são passíveis de controle pelo judiciário, pois existe o juízo de inconstitucionalidade e ilegalidade na omissão da administração; Ensina ainda que a administração pública possui o dever de, além da implementação das políticas públicas, de fiscalizá-las, podendo também ser responsabilizado pela falta dessa fiscalização. É o que ocorreria por exemplo na falta de manutenção ou observância em manter conservados os locais adaptados às pessoas portadoras de deficiências físicas como rampas em prédios ou meio-fio e em transportes coletivos (FRISCHEISEN, 2000, p. 92). O Estado, portanto, poderá ser responsabilizado tanto pelos atos comissivos como também pelos atos omissivos. É exatamente quanto a este último que há maior dissenso na doutrina uma vez que grande parcela desta entende que jamais poderá haver nexo causal em atos omissivos (FREITAS, 2001). A omissão está vinculada a idéia de abstenção, o não fazer, inércia e assim por diante. Mas este conceito é erroneamente interpretado uma vez que o ato de omitir, segundo o dicionário da língua portuguesa seria simplesmente o “[...] deixar de fazer ou dizer alguma coisa, não mencionar, deixar no esquecimento, de propósito ou não, descuidar, desleixar, negligenciar”. É exatamente nesse sentido que o Direito Penal entende por um ato omissivo. Nas palavras do ilustre doutrinador Heleno Claudio Fragoso (FRAGOSO,1982, p. 41-47): 256 // Problemas da jurisdição contemporânea... [...] omissão não é inércia, não é não-fato, não é inatividade corpórea, não é, em suma, o simples não fazer. Mas sim não fazer algo, que o sujeito podia e devia realizar. [...] Só se pode saber se há omissão referindo a atividade ou inatividade corpórea a uma norma que impõe o dever de fazer algo que não está sendo feito e que o sujeito podia realizar. Em resumo, a omissão sempre estará caracterizada quando a realização de uma ação poderia e devia evitar a omissão causadora do resultado danoso. Qualquer falha da Administração Pública caracteriza omissão e consequentemente a responsabilização, mesmo que o erro por exemplo tenha ocorrido exclusivamente pela falta de assistência médica ou por omissão deste. Caberá ao Estado a responsabilidade civil e a possibilidade futura de ação regressiva se for o caso. A comprovação da culpa, cabe ao Estado, se do médico ou do próprio serviço (VACCARI, 2003, p. 39). O erro médico caracteriza-se como omissão do Poder Público realizada através de um de seus agentes. O Estado somente não será responsabilizado em casos em que houver excludentes da responsabilidade que são a força maior, o caso fortuito, o estado de necessidade, a culpa da vítima mas nunca pela omissão expressa da falta de assistência governamental (VACCARI, 2003, p. 43). A prestação assistencial médica e sua responsabilidade, em muitos casos, não se determina pela existência de erro médico propriamente dito, mas diante de omissões administrativas, que vão desde o repasse de verbas, habilidade do administrador, estrutura física degradada, equipamentos reduzidos até mesmo o Estado de saúde do paciente, devido a sua existência social. De modo diverso, Luis Robert Barroso entende que a omissão somente será caracterizada na ausência de leis ou de atos administrativos ou, quando descumpridos. Se há a implementação das políticas sociais, mesmo que não abranja a todos os necessitados, para este autor, não há legitimidade do Poder Judiciário (MARTINS, 2009, p. 13). Em que pesem opiniões divergentes é importante observar que o direito à saúde não é um direito absoluto, deve-se levar em consideração que para ser efetivado há determinados parâmetros a serem seguidos de acordo com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Assim a título de exemplo podemos citar a situação em que um indivíduo, doente, necessita de tratamento ou medicamentos de alto custo. Este indivíduo somente obterá êxito se o montante pedido não colidir com os interesses dos demais enquanto sociedade. Deve haver uma relação de igualdade perante os demais membros da comunidade sob pena de se pôr em risco o bem comum e a estabilidade social (MARTINS, 2009, p. 13). Trata-se apenas de uma simples noção de justiça distributiva. O direito fundamental à saúde // 257 A responsabilidade do Estado pode ser considerada objetiva ou subjetiva. Apesar de a Constituição de 1946 ter incluído a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, atualmente, entende-se que o elemento “culpa” somente é previsto para assegurar a ação regressiva contra os causadores do dano; isso no que tange à omissão do Estado (MOTA, 2011, p. 5-8). Quanto a outros danos a teoria considerada ainda é a objetiva. Ou seja, quando se tratar de um dano cuja responsabilidade é do Estado e oriunda de uma omissão, a responsabilidade é subjetiva, cabendo, portanto, a reparação do dano somente se a administração pública tinha o dever legal de obstar o evento lesivo. 14.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Direito á Saúde no Brasil foi conquistado e consagrado com a Constituição de 1988 como direito personalíssimo. Porém, esse direito Fundamental ainda encontra-se em completo abandono. Várias foram as tentativas do governo que muito contribuíram para o progresso, mas mesmo assim não foram suficientes. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi de grande proveito, mas em muitas ocasiões, não é suficiente para atender a demanda da sociedade e mesmo quando atendida não prestam serviços de qualidade para satisfazer os anseios da sociedade. A Administração Pública encontra dificuldades em solucionar o problema tendo em vista que a procura é maior do que a demanda, do que a verba orçamentária, chegando-se a falar em Reserva do possível. Essa teoria é oriunda da Alemanha cuja época e forma pela qual foi utilizada em nada se aproxima à definição utilizada no Brasil. Fazer uso da reserva do possível é desculpa para fundamentar o descaso para com a Saúde dos cidadãos brasileiros. Deve ser vista como um bem fundamental e dar-lhe prevalência, sendo, portanto, necessário que esta seja definida pelo menos como um mínimo existencial, onde se não for atendida o bem que esta em risco é a vida do usuário. A primeira forma de buscar a solução é através de um trabalho conjunto das três esferas do poder, o executivo, legislativo e o judiciário. Este trabalho não pode se limitar apenas a condenação de um juiz ao Estado, a fim de se oferecer os medicamentos necessários posto que maior parte da sociedade não possui acesso a um advogado para fazer tais pedidos. Destinar a verba não será suficiente em casos de condenações judiciárias pois beneficia apenas o demandante. Deve-se especificar a forma e a origem das verbas, aos casos isolados, quando questionados em juízo, devem possuir decisões bem fundamentadas, magistrados mais preparados e para tanto, a administração pública deve estar mais comprometida com as políticas públicas e orçamentárias do governo. A forma mais fácil de conseguir uma sociedade que necessite de menos investimentos é oferecendo a esta sociedade uma melhor infraestrutura de Educação já que a maior parte das doenças que existem hoje no Brasil poderia ser resolvida com uma infra-estrutura melhor para a sociedade, 258 // Problemas da jurisdição contemporânea... água tratada, esgoto e boa alimentação para a população, e conscientizar a sociedade da necessidade de uma boa higiene através da educação oferecendo medidas de evitar a busca pela saúde através de trabalhos de prevenção da sociedade a doenças, além de oferecer melhor estrutura para Saúde quando esta for procurada, melhores profissionais, pagamentos em dia dos profissionais da saúde melhores hospitais e melhor capacidade para atender a população. A Saúde deve ser vista como uma forma da sociedade exercer, através de seus entes, a sua personalidade em busca de uma vida digna; só é possível se falar em dignidade a partir do momento em que a cada um possua saúde e capacidade para exercê-la, hoje, vivemos em uma era de busca pela dignidade humana e esta dignidade só será conquistada no momento em que a sociedade tiver condições de sobreviver, pois negando o direto a saúde nega-se um bem maior, a vida. 14.7 REFERÊNCIAS AITH, Fernando; DALLARI, Sueli Gandolfi. Vigilância em saúde no Brasil: Os desafios dos riscos sanitários no século XXI e a necessidade de criação de um sistema nacional de vigilância em saúde. In: Revista de Direito Sanitário. São Paulo, v. 10, n.2, p. 94-125, ago. nov. 2009. BARCELLOS, Ana Paulo. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BARROSO, Luis Roberto. 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No direito romano, os textos sempre distinguiram a curatela dos furiosi (instituída pela lei das XII Tábuas) e a dos mentecaptos e fátuos e dos dementes, a entender que a diferença entre furiosi e mente captus resulta de que o primeiro se encontra em estado de demência, que, mesmo habitual, importa em intermitências e intervalos lúcidos, enquanto que a do segundo implica em um estado permanente de imbecilidade ou fraqueza das faculdades mentais sempre do mesmo grau1. Nomeadamente desde o código napoleônico, a busca da superação da dificuldade de se caracterizar ato como nulo ou inexistente, quando praticado por pessoas não dotadas de consciência e de discernimento pleno, levou à construção de uma teoria de incapacidades em que referidas pessoas foram rotuladas como “loucos de todo o gênero”, consoante o tratamento adotado pelo Código Civil brasileiro de 1916, nomenclatura que só viria a ser modificada com o advento do Código Civil vigente desde 2002. CARVALHO F. P. B. destaca a inadequação daquela terminologia e o seu atraso em relação a outros países, já naquela época: Na ocasião de se discutir o projeto do Código Civil, foi o legislador desde logo alertado de que a simples alusão a “loucos” (interditos ou não) não compreenderia nem os casos de perturbação mental transitória (por delírio febril etc.), nem os de parada de desenvolvimento psíquico (idiotia) ou de * Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1980), mestrado em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (2004), doutorado em Direito (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela Instituição Toledo de Ensino (2011), pós doutorado em Ciências Histórico-Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2014). É professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá - UEM e advogado - Advocacia Campos Silva. Atua principalmente nas áreas de direito constitucional, administrativo, civil, trabalhista, empresarial e de comunicação. 1 Neste sentido, lembra CARVALHO F. P. B. (1957, p. 88-89):Assim se explica porque uma constituição do imperador Marco Aurelio permitiu que o filho do mentecapto pudesse casar-se “etiam non adito Principe”, mesmo sem uma permissão especial do imperador. É porque, ao passo que o filho do furioso deve esperar o momento de lucidez paterna para lhe obter o consentimento, o filho do mentecapto pode estar certo de que tal momento jamais ocorrerá. 264 // Problemas da jurisdição contemporânea... degeneração psíquica ou fraqueza de espírito, que, segundo o direito francês (art. 499, do Cód. Civil) ou italiano (art. 329), justificariam, não um regime radical de interdição com incapacidade absoluta do agente, mas apenas um simples conselho judiciário, ou inabilitação, com incapacidade mitigada (CARVALHO, 1957, p. 241). Por isso que, tão logo promulgado aquele Código, PONTES DE MIRANDA iniciou movimento para sua reforma, tecendo ácida crítica: A doutrina firmada pelo Código Civil, sobre antiquada, é de maus resultados práticos. Não admite graus à incapacidade do insano: o profissional médico dirá apenas, sem outras considerações intermediárias, se o curatelado é ou não é incapaz (PONTES DE MIRANDA, 1947, p. 277). É de se observar que, desde o Código Civil de 1916, estabeleceu-se “[...] o ato do louco, interditado ou não, seria radicalmente nulo, porque sem o uso da razão não há consentimento” (CARVALHO, 1957, p. 1044), e não inexistente: “L’acte signé par um fou est un act qui vault comme tout apparence, et doit faire l’objet d’une décison de justice, sin on le conteste” 2 (DE PAGE, 1948, p. 135). Mesmo empós a vigência do Código Civil de 2002, no qual se denominou aquelas pessoas como absolutamente ou relativamente incapazes, as pessoas com deficiência mental historicamente sempre foram tidas como incapazes no Brasil, sem que o direito se preocupasse em estabelecer diferenciação quanto ao grau de incapacidade e mesmo quanto à transitoriedade ou permanência da redução de discernimento e da autonomia. Daí a crítica de ROSENVALD (2012, p. 226), para quem o atual Código Civil brasileiro “[...] não alterou o panorama técnico e essencialmente excludente da teoria das incapacidades. No máximo percebemos sutis mudanças no vocabulário normativo, mas nada que altere a substância do seu discurso reducionista”. A insuficiência da mutação terminológica é bem explicitada por SOALHEIRO: O Código Civil de 2002 conseguiu melhorar a terminologia empregada ao substituir o termo “loucos de todo gênero” por “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos3”, ou seja, os atos da vida civil. Como se verifica, a nova expressão é mais genérica e propicia uma gradação da debilidade mental entre a total ausência e o reduzido discernimento da pessoa, ainda que não se tenha atualizado a nomenclatura conforme apresentado pelo CID 10 – 2 Tradução nossa: O ato assinado por um louco é um ato em que há e uma aparência de validade, cuja existência só pode ser desfeita por decisão judicial. 3 Artigo 3º, inciso II, do Código Civil de 2002. O fim do regime de incapacidade civil // 265 “transtornos mentais e do comportamento”4. O novo Código Civil não trouxe nenhuma reflexão quanto ao instituto da interdição. Continuou a rotular as pessoas em “absolutamente ou relativamente incapazes”, sem, contudo, averiguar as peculiaridades de cada indivíduo, a fim de preservar, sempre que possível, a autonomia privada e, por via de consequência, o desenvolvimento da própria personalidade. Mercê de ter sido a dignidade humana erigida à conditio de base fundante da própria República brasileira, tornou-se imperiosa a tutela de quaisquer vulnerabilidades das pessoas para preservar aquela dignidade, em obediência mesmo ao princípio da igualdade material. A pessoalidade, na contemporaneidade, é visualizada como meio do constructo da identidade individual, processo de autodeterminação contextualizado em universo intersubjetivo, forma autônoma que cada indivíduo engendra, ontologicamente imbricada com a alteridade, na dicção de MOUREIRA: [...] processo de construção da identidade de um ser livre e autônomo que se reconhece a si mesmo através do outro (alter), em um constante processo de autodeterminação de si e de reconhecimento de si pelo outro e vice-versa. Até mesmo em se tratando de indivíduos humanos com dificuldades ou incapacidade de afirmação de uma identidade esse processo de reconhecimento é presente, uma vez que o reconhecimento de si pelo outro se concretiza enquanto uma realidade intrínseca ao próprio convívio (MOUREIRA, 2013, p. 48). Logo, é forçoso compreender que a construção da pessoalidade sucede fora do Direito, posto que não é ele quem a cria, limitando-se a conformá-la desde a realidade preexistente. A fortiori, tampouco pode o Direito criar incapacidade: esta é o que existe ou o que inexiste (porque foi gestado pela pessoa ou deixou de ser gestado), restando ao Direito reconhecer sua existência ou não, para aí intervir, conferindo a personalidade jurídica e classificando sua capacidade. Por isso que CARVALHO A. enfatiza a natureza ontológica da capacidade: [...] a capacidade de direito inere necessariamente a toda pessoa, qualquer que seja a sua idade ou seu estado de saúde. A capacidade de fato, isto é, a capacidade para exercer pessoalmente os atos da vida civil, é que pode sofrer limitação oriunda da idade e do estado de saúde (1980, p. 21). Daí ter-se a capacidade civil classificada em capacidade de direito (que confere às pessoas naturais aptidão para aquisição de direitos e para 4 CID – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde – do inglês International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems. 266 // Problemas da jurisdição contemporânea... contraírem deveres) e capacidade de fato (aptidão conferida às mesmas pessoas para praticarem, pessoalmente, atos da vida civil). Em ambas as espécies, tem-se de forma inarredável, a autonomia da pessoa e, para as hipóteses em que lhe é impossível o exercício, os institutos da representação e da assistência, a serem utilizados consoante o grau de incapacidade ou de inaptidão para a prática dos atos da vida civil – que podem derivar de ser a incapacidade absoluta ou relativa. Na míngua de uma teoria de incapacidades adequada à tutela das pessoas com deficiência mental no ordenamento jurídico brasileiro, a defesa dos interesses dessas pessoas vem sendo possibilitada através do acionamento do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de ações de tônus afirmativo, máxime através dos procedimentos voltados a instrumentalizar a tutela e a curatela. Ocorre que o Código de Processo Civil brasileiro, editado na vigência do Código Comercial de 1850 e do Código Civil de 1916, não obstante ter sofrido inúmeras microrreformas nas últimas décadas, inclusive se adequando ao Código Civil de 2002, manteve, incólumes e defasados, aqueles procedimentos, nos Capítulos VIII (da curatela dos interditos) e IX (Das disposições comuns à tutela e à curatela), e no Título II (dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária), dispositivos que não foram merecedores de uma única alteração nos últimos quarenta anos. Esses procedimentos jurisdicionais mantiveram os institutos da interdição e da curatela, sob a égide não apenas daquela vigente na década de setenta, mas da que vigorava na década dezesseis do século XX, preservando intocada a prevalência do código do Ter sobre o código do Ser, fazendo contínua a reprodução das desigualdades lesivas à dignidade da pessoa humana, prestando-se mais à exclusão do que a proteção das pessoas com deficiência mental. O novo Código de Processo Civil, através da Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015 introduziu, ainda que timidamente, a previsão de serem aplicadas medidas ajustadas a fim de se evitar a imposição de restrições indevidas à autonomia do interditado ou curatelado, mantendo-se, contudo, a incapacidade civil absoluta aos interditados por enfermidade ou deficiência mental. Contudo, antes mesmo da entrada em vigência do novo Código de Processo Civil foi editada a Lei 13.146, de 06 de julho de 2015, instituindo a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa Com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), revogando o regime das incapacidades civis preconizado pelo Código Civil, mantendo o status de incapaz apenas para os ébrios habituais e os viciados em tóxicos e para aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Tem-se, pois, verdadeira distonia normativa acerca da autonomia das pessoas com deficiência, uma vez que, quando da entrada em vigência do seu Estatuto, em janeiro de 2016, ter-se-á uma norma agonista à restrição daquela autonomia, porém o advento da entrada em vigor do novo Código de O fim do regime de incapacidade civil // 267 Processo Civil, em março de 2016, provocará uma situação antagonista à mesma autonomia. A reflexão pretendida neste escorço, sobre demonstrar essa distonia, visa incitar a discussão de propostas mais eficazes para sua eliminação, desde a premissa do reconhecimento da diversidade e da alteridade até a edificação de uma tutela que possa proteger as pessoas com deficiência mental sem descurar do fundamental respeito à dignidade humana. 15.2 DA EXCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA MENTAL A gnose de normas jurídicas que busquem tutelar as pessoas com deficiência mental perpassa, necessariamente, pela análise da questão de igualdade de oportunidades que, ainda que se formalmente consolidada no plano jurídico, resta extraordinariamente controvertida nas perspectivas ideológica e filosófica. É que essas pessoas sempre receberam – e continuam a receber – tratamentos lesivos às suas dignidades, excluindo-as do convívio social e negando-lhes a autonomia, seja para atender interesses das famílias ou do Estado. Se na Hélade, a loucura era consequência de relacionamento homem-deuses (STONE, 1999, p. 32), na Antiguidade era associada a desequilíbrios entre os elementos racionais e irracionais da alma, como afirmavam Platão e Aristóteles, sendo, durante a Idade Média, associada a problema espiritual, ou seja, a possessões demoníacas: O que era entendido como estados mentais anormais baseado em estados humorais ou lesões anatômicas foi reformulado na linguagem dos padres e astrólogos. Fenômenos mentais aberrantes eram agora explicados em termos quase morais envolvendo referências a espíritos maus, fantasmas, íncubos e súcubos e assim por diante (STONE, 1999, p. 32). Até o século XVIII, a loucura foi definida por sua dimensão negativa, desde a lógica binária (verdade e erro, mundo e fantasma, ser e não-ser), tida como desatino oposto à razão, sendo, a partir do século XIX, visualizada segundo a estrutura antropológica de três termos (homem, loucura e verdade): o louco passa a ser definido como alienado, sendo ao mesmo tempo a verdade e o seu contrário. Esse debruar de olhos no retrovisor da História permite mostrar que a doença mental não diferencia reis de mendigos. Antes, os iguala na miséria patológica e na excludente discriminação. O que diferencia doentes mentais, ricos e pobres, ainda neste século XXI, são seus patrimônios materiais propiciatórios de obterem melhor ou pior tratamento e cuidado. Por isso que, em um mundo cada vez mais dominado pelo código econômico do Ter e contaminado pela síndrome do bem-estar, a igualdade formal, propiciada pela linguagem dos direitos, não se converte em acesso igualitário ao Estado de direito ou à aplicação imparcial das leis e dos interesses. 268 // Problemas da jurisdição contemporânea... É que é possível ter-se direitos, mas não se possuir recursos suficientes para exigir sua implementação, como anota VIEIRA (2007, p. 2952), daí porque a exclusão social, propiciada principalmente (ou seja: não só) pela enfermidade, gera invisibilidade social, imunizando os privilegiados e demonizando os que se atrevem a contestar o sistema. O primeiro significado do princípio da igualdade incide precisamente na plena equiparação jurídica dentre todos os membros da comunidade política, sendo vedadas pela cláusula de igualdade as discriminações (na lei ou frente a ela) fundamentadas em características pessoais do indivíduo, devendo ser consideradas as distinções juridicamente relevantes tão somente na medida em que se apliquem por igual em todos os casos (LÁZARO, 2004, p. 183 e ss.). As distintas concepções da dignidade da pessoa humana defluem das diversas formas de conexões, vinculações e identificações do Ser no mundo – o que implica situá-lo em posições sociais diferenciadas, posto que os indivíduos são diferentes e ocupam lugares diferentes no mundo. A constatação de serem os indivíduos diferentes leva, ainda, ao necessário entendimento de que o Ser humano se compreende melhor olhando-se no Outro e respeitando-se as diferenças de ambos, por isso que LÉVINAS (2010, p. 58) enfatiza a imprescindibilidade do respeito, desde a noção de que “Nós não é o plural de Eu”, presente a alteridade ontológica como uma relação ética cuja premissa é a solidariedade. É mister que se identifiquem as pessoas, ou grupos de pessoas que, seja por exclusão social, seja por discriminação, necessitam de tutela diferenciada na busca de se efetivar a ideia de igualdade e possibilitar, reconhecida e respeitada a diversidade, a inclusão, posto que a incompletude da proteção jurídica da dignidade humana radica, a rigor, nas relações de poder que permitem ou forçam opressões e exclusões. Impende, ainda, distinguir as pessoas que integram os grupos vulneráveis, grupamentos de pessoas que, não obstante terem reconhecido seu status de cidadania, são fragilizados na proteção de seus direitos e, assim, sofrem constantes violações de sua dignidade: são, por assim dizer, tidos como invisíveis para a sociedade, tão baixa é a densidade efetiva dessa tutela. É o que sucede com as pessoas com deficiência mental, estigmatizados genericamente como loucos, fenômeno que não está ligado à desinformação social ou acadêmica, mas, sim, a uma deformação cognitiva, razão pela qual a disseminação da discriminação de fato ocorre em todos os estratos sociais, diferindo apenas quanto à repercussão, como advertia FOUCAULT (2010, p. 6-7) quanto a cabeças alienadas assumindo o papel dantes pertencente aos portadores de hanseníase. Se no século XVII a internação de doentes mentais era tema de polícia, e não de médicos (estes eram soberanos no tema, sim, mas após o internamento), neste século XXI a seara continua a mesma: mais assunto policial do que médico, como se constata pelos noticiários divulgando prisões de pais que, para trabalharem, amarram seus filhos doentes mentais com O fim do regime de incapacidade civil // 269 correntes, para que não atentem contra a integridade física de outros e de si próprios. A análise da história das formas de proteção jurídica para as pessoas com deficiência mental é o instrumento viabilizador do aperfeiçoamento da tutela, por permitir a explicitação de acertos e desacertos das políticas públicas sobre saúde mental, uma vez que as instituições psiquiátricas como loci para os cuidados daquelas pessoas só surgiram no século XVIII. Os tratamentos dos doentes mentais sempre configuraram exclusão, reclusão e asilamento, mercê da não aceitação da diferença. Assim, a hospitalização e o asilamento do doente mental sempre visaram a atender a segurança da ordem e da moral pública e não tutelar o indivíduo 5. Essa situação perdurou no Brasil até o final do século XX, quando ocorreu a chamada reforma psiquiátrica, desencadeada com inspiração no novel modelo psiquiátrico italiano, buscando dar ao paciente alternativas inclusivas de tratamento e, especialmente, com foco na sua visibilidade social, a contrariar o modelo hospitalocêntrico, com a sedutora proposta da desinstitucionalização transferidora do locus hospital para o da cidade, como novo ethos dos cuidados com a doença mental. Mercê da aludida reforma, em 2001 foi editada no Brasil a Lei n° 10.216/2001, determinando inclusive a extinção dos manicômios e a criação de rede federal de centros conectados com hospitais gerais, norma cujos efeitos concretos ainda não se fizeram acontecer na maioria dos municípios brasileiros, embora preconizasse como “[...] consequência natural [...] a crescente diminuição, pelo SUS, do número de leitos psiquiátricos. Como forma de substituição, utiliza-se dos CAPS6, uma espécie de hospital-dia, onde o paciente passa o dia em atividade e retorna para casa depois” (LIMA; SÁ, 2009, p.85). Cabe colacionar a percuciente crítica de SOALHEIRO: A crítica que se faz é pelo fato de haver níveis diferentes de complexidade das doenças mentais, havendo casos leves e outros não, sendo que alguns pacientes se adaptariam aos modelos CAPS e outros realmente necessitariam de uma internação nos hospitais psiquiátricos, vez que o alto grau do transtorno pode impossibilitar o tratamento fora dos hospitais ou a própria família pode não ter condições de cuidar do paciente. “Em razão disso, muitos pacientes em surto passam a não ter tratamento adequado e, se a família não tem condições financeiras razoáveis, podem perambular pelas ruas como mendigos, ante a impossibilidade de internação (LIMA; SÁ, 2009, p. 85). As políticas públicas desenhadas pela Lei n° 10.216/2001 não tiveram seus objetivos sedimentados, mesmo decorridos mais de uma década de sua promulgação, quedando mais ao efeito simbólico do que ao real efeito pretendido, simbolismo que redunda na privatização da doença 5 Neste sentido, confira-se: O Bicho de Sete Cabeças, filme de 2000, dirigido por Laís Bodanzky; ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro, São Paulo: Geração Editorial, 2013. 6 Centro de Atenção Psicossocial. 270 // Problemas da jurisdição contemporânea... mental, cenário em que os de maiores posses internam seus doentes mentais em clínicas privadas, enquanto que os despossuídos de recursos materiais, à míngua de leitos na rede pública, ou os agrilhoam em suas próprias casas, ou os abandonam a engrossar o caudal dos sem teto, ambas as hipóteses que, em histórica volta elíptica, os remete às prisões, ainda que sob o eufemismo de medidas de segurança. Dentre miríades, pode ser apontada como razão para a falta de efetividade das políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência mental, o desconhecimento pelo Estado brasileiro das evidências de ser a evolução das doenças determinada pelo estatuto socioeconômico do indivíduo (SILVA, 2012, p. 132). As relações entre pobreza e deficiência, que no pertinente à deficiência mental são exacerbadas, implicação na criação e na permanência de um verdadeiro círculo vicioso composto por reduzida participação nas tomadas de decisão e negação de direitos políticos e civis; exclusão social e cultural e estigmatização; negação de oportunidades para o desenvolvimento humano, econômico e social; vulnerabilidade à pobreza e à doença; deficiência; miséria. Esse círculo vicioso, no caso das pessoas com deficiência mental, em quaisquer graus, produz consequências muito mais severas àquelas pessoas que na maioria dos sistemas jurídicos são tidas como absolutamente incapazes e que, assim estigmatizadas, são completamente excluídas socialmente. A proximidade de vulnerabilidade gemelar e marginal entre pessoas com doenças mental, prostitutas, criminosos, e viciados em tóxicos, se não se originou neste século, tem sido desde o século XX objeto do direito internacional que se vem transmudando em parâmetro de validade das constituições nacionais, com ruptura do paradigma da soberania do poder constituinte e da autonomia dos Estados em sede de direitos humanos, transitando a visagem de Hobbes acerca da soberania centrada no Estado para a de Kant, ancorada na soberania centrada na cidadania universal. Essa mutação conceitual que torna a soberania estatal porosa e permeável foi fundamental para a implantação da reforma psiquiátrica no Brasil, imposta pela condenação do Estado brasileiro em 2006 pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos no caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil7. Essa condenação levou a uma modificação atitudinal dos governos brasileiros em relação ao tratamento dos doentes mentais e à visibilidade social destes, como pode ser exemplificado pela escolha da obra de Arthur 7 Caso 12237 julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial da Organização dos Estados Americanos – OEA. A morte de Damião Ximenes Lopes ocorreu dentro de uma instituição psiquiátrica credenciada pelo Governo brasileiro. O fim do regime de incapacidade civil // 271 Bispo do Rosário para representar oficialmente como representante do patrimônio cultural brasileiro em exposições na Europa8. Subsiste, porém, a visão histórica de ser a loucura prevalentemente caso de polícia, cuja solução é a segregação, daí porque, mercê de ser a Constituição da República totalmente omissa quanto à inimputabilidade psíquica e, de consequência, aos limites das medidas restritivas, ter-se autorizada a conclusão de serem as medidas de segurança impostas aos doentes mentais que cometerem crimes sanções perpétuas, ante o Código Penal brasileiro não prever limitação temporal como o faz em relação às penas. Mesmo com a edição da lei específica ao tratamento de doentes mentais, tal cenário desumano se manteve incólume, sendo que o Código Penal manteve a previsão de formas de cumprimento em meio fechado (internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico) além da previsão de cumprimento em meio aberto (sujeição a tratamento ambulatorial), conforme a gravidade do delito e a situação pessoal do sujeito. Ainda que se ressalte que o Código Penal brasileiro determine que o recolhimento do interno deva ser realizado em estabelecimento com características hospitalares, hipóteses que autoriza vislumbrar alguma harmonia com os preceitos da reforma antimanicomial, o tratamento jurídico é discrepante quando se compara a execução das sanções restritivas à liberdade (penas e medidas de segurança aplicáveis a imputáveis e a doentes mentais). Sob outra ótica, e ainda sob os influxos daquela condenação internacional, mais do que como fruto de ações do movimento de luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, é que foi aprovado o Estatuto da pessoa com deficiência. 15.3 DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA A existência de cláusula geral de tutela da pessoa humana no texto constitucional brasileiro, ainda não se mostra suficiente para ensejar um amparo adequado às pessoas com deficiência mental no Brasil, a realçar o componente patológico da judicialização reconhecido e criticado por Barroso (2010, p. 15). Mesmo sendo pacífica, na doutrina e na jurisprudência, a premissa de ser a Constituição da República dotada de força normativa, logo, não sendo suas normas meramente programáticas, remanesce, todavia, o caráter simbólico da legislação infraconstitucional, máxime quando a opção política do legislador se volta à construção de leis especiais para formatar micros sistemas jurídicos. A edição de leis especiais, no mais das vezes, implica em mero jogo de cena política, voltado, como aponta Campos Silva (2012, p. 142) não 8 Arthur Bispo do Rosário, diagnosticado como esquizofrênico e paranóico, viveu recluso de 1939 até sua morte em 1989 no Rio de Janeiro, vindo a ser reconhecido como artista plástico e assim apresentado em 2012 na Bienal de Veneza, Itália e, de 2012 a 2013, em Lisboa, Portugal. 272 // Problemas da jurisdição contemporânea... exatamente a viabilizar resultados jurídicos efetivos, mas a refrear pressões políticas e sociais de grupos com interesses específicos, o que torna comum a existência de legislações redundantes, estatutos desnecessários e meramente simbólicos, que se prestam como guetos normativos. Os direitos sociais foram gestados para superar as deficiências e omissões das liberdades individuais (CONTRERAS PELÁEZ, 1994, p. 49), estando intimamente ligados ao Estado social que, por seu turno, objetiva suprir as insuficiências do Estado liberal, daí o desenho cambiante do Estado na História, conforme as expectativas da sociedade quanto à satisfação dos direitos fundamentais que surgiram como resposta à ameaça da miséria, da ignorância e da dependência. É o Homem, real, concreto e vinculado às circunstâncias culturais, econômicas e históricas, isto é, o Homem relacionado frente a seus semelhantes, quem detém a titularidade de tais direitos, uma vez que, na dicção de Herrera Flores (1989, p. 78) “[...] as necessidades são sempre sentidas individualmente, embora sejam satisfeitas socialmente”. Assim, a edição da Lei n° 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, igualmente nomeada como Estatuto da Pessoa com Deficiência, publicada com vacatio legis de 180 dias, não obstante trazer diversas garantias àquelas pessoas, ao modificar o regime das incapacidades civis do Código Civil, sem estabelecer o necessário gradiente, equivocadamente nivela todas as pessoas com deficiência às pessoas dotadas de capacidade plena. Ao pretender provocar a agonia da restrição à autonomia das pessoas com deficiência, perdeu o legislador brasileiro, pois, a oportunidade de se inspirar naqueles modelos jurídicos como o da Espanha, cujo Código Civil distingue incapacitados (aqueles que padecem de uma enfermidade ou deficiência contínua que os impede de se autogovernar) de pessoas com incapacidade (aqueles que apresentam uma deficiência física, psíquica ou sensorial, que lhes impede ou lhes dificulta sua integração social, cujo grau de diminuição de capacidade justifica proteção jurídica específica) e de pessoas com dependência (as que necessitam de auxílio para realizar as atividades diárias, como se vestir, se alimentar ou negociar). Essa percepção da existência de uma gradação dos níveis qualitativos de capacidade e de autonomia, a ensejar e a exigir especificidade de proteção jurídica como ressalta PEREÑA VICENTE (2006, p. 33), foi totalmente desconhecida ou olvidada pelo nóvel estatuto das pessoas com deficiência que neste ponto colide com a previsão legal de divisão de internações em três categorias: as voluntárias, nas quais existe o consentimento do paciente; as involuntárias, sem a anuência do paciente e por solicitação de terceiro; e as compulsórias, que são determinadas judicialmente, sendo estas duas últimas controladas pelo Ministério Público, que deve ser notificado das mesmas em até 72 horas após sua ocorrência (Lei n° 10.216/2001). A pretensão de tornar como regra a garantia da capacidade legal por parte das pessoas com deficiência mental, além de derivar de visão O fim do regime de incapacidade civil // 273 cartesiana e reducionista que vislumbra a incapacidade como mera categoria jurídica, não é sequer atenuada pela previsão de se ter a curatela “proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso” tendo como duração “o menor tempo possível”9, uma vez que ignora a existência de pessoas com total incapacidade para exercitar seus direitos. A inversão da exceção, verificável em caso concreto, para regra geral, só faz tornar a pretensa tutela das pessoas com deficiência em norma hipertrófica. Por igual, olvidou o legislador brasileiro o fato de o Código Civil só conceber como tutor pessoa natural, o mesmo fazendo com relação à curatela, o que pode ser compreendido mercê da prevalência, ainda neste século XXI, do culto ao individualismo e ao patrimonialismo, impregnado no sistema jurídico brasileiro, ainda que em descompasso com o sopro socializante iniciado na Constituição de 1934 e melhorado pela Constituição Federal de 1988 e com o primado dos direitos humanos iniciado após a Segunda Guerra Mundial. O Estatuto da Pessoa com Deficiência só prevê a submissão da pessoa com deficiência à curatela, assim: Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei. § 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada. § 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. O mencionado culto ao patrimonialismo, logo, a submissão ao código do Ter em detrimento do código do Ser, se revela nos limites impostos à curatela: Art. 86. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. Por óbvio que não se pode negar às pessoas com deficiência mental os direitos fundamentais elencados no parágrafo primeiro da norma transcrita, porém o absolutismo da restrição torna, na prática, tabula rasa o próprio instituto da curatela, traindo as origens semântica e história do instituto: a palavra curatela provém de cura, mais o sufixo do verbo curare, que significa velar, olhar, cuidar. 9 Art. 84, § 4°, Lei n° 13.146/2015. 274 // Problemas da jurisdição contemporânea... Daí porque, no direito romano, a curatela tinha como objetivo colocar sob a sua égide as pessoas loucas (cura furiosi), pródigas (cura prodigi) e menores de 25 anos (cura minorum). Por isso, não obstante o Estatuto da Pessoa com Deficiência modificar o art. 1.767 do Código Civil para sujeitar à curatela apenas “[...] aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderam exprimir sua vontade” e “[...] os ébrios habituais e os viciados em tóxicos”, o micro sistema jurídico que ele desenha impede a tutela mediante a instituição da curatela civil às pessoas com deficiência mental incapacitante. É de se louvar a intenção de se evitar o desnudamento da dignidade da pessoa humana que um estigmatizante decreto de interdição da autonomia pode suscitar, porém a solução legislativa trazida pelo Estatuto sob análise não é a mais adequada, até porque o Poder Judiciário brasileiro de há muito tem dado certo temperamento à rigidez normativa do ainda vigente Código Civil para moldar suas decisões nos casos concretos a fim de evitar a chamada morte civil, restringindo a extensão da interdição ao minimamente necessário à efetiva proteção do curatelado. Mesmo não sendo desejável a priori dissociar o que se faz para todas as pessoas em matéria de proteção jurídica, cujas normas protetivas de direitos e liberdades é o fundamento jurídico das pessoas com deficiência, é mister que certas disposições específicas possam velar pela preservação da legalidade e do respeito dos direitos e das liberdades daqueles cujo estado, segundo critério funcional e médico, exige esta proteção. O direito deve combater as consequências negativas das desigualdades funcionais, a fim de conservar ou fazer voltar a dar a todo cidadão e à pessoa com deficiência mental em especial, o seu lugar na cidade, o respeito dos seus direitos e das suas liberdades, observada sua condição particularmente vulnerável. Sob outro prisma, a busca de preservação da dignidade da pessoa humana também às pessoas com deficiência mental, deveria ser intentada com a adoção da Doutrina da Alternativa Menos Restritiva, criada pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte em 1960 no caso Shelton v. Tucker e elastecida no caso Lake v. C Cameron em 1966, quando se assentou o reconhecimento do papel proativo do Poder Judiciário na concretização de decisão por meio de via alternativa de tratamento ou de cuidado, formada de acordo com as exigências dos interesses da pessoa e da sociedade, não indo além do que seja necessário para a proteção da pessoa. Essa ideia de intervenção mínima ao nível da restrição dos direitos fundamentais foi acolhida pelo ordenamento jurídico português (VÍTOR, 2005, p. 186), e como assinala Campos Silva (2012, p. 204 e 207), também no sistema jurídico italiano através da Lei 6, de 09.01.2004 que instituiu a figura da amministrazione di sostegno, similar à da la sauvergarde de justice instituída pela Lei francesa 685, de 03.01.1968 que adotada como premissa a noção de auxílio não invasivo ao invés da ideia de privação de direitos para O fim do regime de incapacidade civil // 275 os três regimes de proteção que preconiza: salvaguarda da justiça; tutela; e curatela. Por derradeiro, nos limites desta reflexão, o Estatuto da Pessoa com Deficiência não enfrenta, como devido, tessitura fática construída pela práxis forense, de se nomear como curador de pessoa com deficiência a pessoa do diretor da instituição na qual eventualmente aquele curatelado esteja institucionalizado. Com tal omissão, perdeu o legislador a chance de avançar no constructo de um instituto mais adequado à contemporaneidade, no qual se possa conferir à curadoria também a pessoa jurídica, como meio de se emprestar maior efetividade à tutela das pessoas com deficiência. 15.4 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015, cuja vacatio legis expira em março de 2016, ou seja, pouco mais de dois meses após a entrada em vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência (a ocorrer em janeiro de 2016), se apresenta como verdadeira antagonia à irrestrita autonomia preconizada pelo Estatuto, na exata medida em que prevê expressamente ser a pessoa com deficiência mental incapaz: Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. § 1° São incapazes: I - o interdito por enfermidade ou deficiência mental; II - o que, acometido por enfermidade ou retardamento mental, ao tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los, ou, ao tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as percepções; Mais coerente com o instituto da curatela, e melhor adequada à tutela da pessoa com deficiência mental do que o modelo preconizado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, o novo Código de Processo Civil não se limita à proteção dos aspectos patrimoniais, ainda que os enfatize: Art. 757. A autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais conveniente aos interesses do incapaz. Se louvável a ressalva do arbítrio judicial acerca da adoção de solução mais conveniente aos interesses do curatelado, é de se criticar a inexplicável exclusão, pelo novo Código de Processo Civil, da Defensoria Pública dentre os legitimados para promoção da interdição, uma vez presente expressa previsão do cometimento dessa função institucional na Lei Complementar 80, de 1994, com a redação dada pela Lei Complementar 132, de 2009, àquela Instituição, responsável também pela defesa dos interesses das pessoas vulneráveis. 276 // Problemas da jurisdição contemporânea... Da mesma sorte, as críticas endereçadas ao Estatuto da Pessoa com Deficiência no que pertine ao não avanço em relação à adoção das doutrinas e de institutos contemporâneos já introduzidos em outros países, também se prestam à reflexão sobre a defasagem de efetividade que o novo Código de Processo Civil apresenta. A atrofia da tutela processual também exsurge da não autorização para que a própria pessoa com deficiência possa requerer sua própria interdição, ainda que pelo questionável modelo de tomada de decisão apoiada previsto pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência que preconiza ao próprio interessado a eleição de no mínimo duas pessoas para lhe prestar apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil. Ainda que não raro se operem interdições desnecessárias, como alertado por Andrighi (2005) o fato de ser expressivo o percentual da população brasileira acometido de incapacidade devido a alguma enfermidade mental, física ou senil, tem-se que esse contingente populacional estaria à margem da sociedade, não fora o instituto da curatela a lhes possibilitar o agir na ordem jurídica. A ausência de visão sistêmica, que se infere de tais críticas, impede que a própria compreensão da pessoa com doença mental, cujo estado, se não permite negligenciar a predominância do olhar médico-cientifico (sob pena de, por ausência de diagnóstico, sonegar-se um tratamento oportuno), tampouco prescinde de vê-la na sua integralidade como pessoa, o que leva à discriminação e à exclusão social. Sob este prisma, e em especial no tocante às pessoas com deficiência mental, o conservadorismo encampado pelo novo Código de Processo Civil melhor atende à efetividade da tutela, mesmo que antagônico à amplitude da proposta emancipatória do Estatuto da Pessoa com Deficiência. 15.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A reflexão ora ofertada à discussão procura demonstrar que a farta positivação dos direitos fundamentais e consequente institucionalização das normas tutelares das pessoas com deficiência – e aqui se podem incluir as relativas também às pessoas integrantes de minorias e de grupos vulneráveis, se representa, de um lado, um inegável avanço, de outro não resolve a problemática que envolve essas pessoas. A Organização das Nações Unidas adotou duas declarações pioneiras quanto a questão do deficiente: a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971), com ênfase à igualdade de direitos e de acesso a meios de desenvolvimento, e a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (1975) em que, pela primeira vez, se definiu pessoa deficiente como sendo “[...] qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência , congênita ou não , em suas capacidades físicas e mentais”. O fim do regime de incapacidade civil // 277 A questão, como muitas no Brasil, não é a existência de leis. O problema que aflige as minorias, os grupos vulneráveis e, em especial, as pessoas com deficiência, radica na falta de eficácia das leis existentes, desde o não aculturamento no ethos do direito e do respeito à diferença. O Ser, quando diferente da maioria, é um ser invisível, não reconhecido pela sociedade e pelo Estado, sempre que não é viabilizada ou é cerceada sua organização em grupos ou negada sua possibilidade de apresentar seus interesses específicos e de participar da tomada de decisões sobre eles. As providências e os mecanismos adotados pelo Brasil para a defesa das pessoas com deficiência, máxime a mental, não têm se mostrado aptos a assegurar a participação de seus integrantes, nem no processo decisório, nem na efetivação dos seus direitos. Para se exemplificar essa inaptidão, basta lembrar que não há, no Brasil estímulo à integração dos integrantes de grupos vulneráveis dentro do sistema político, sequer no dos partidos políticos, embora estudos apontem isso como sendo uma das alternativas positivas para que seja obtida efetividade na sua proteção. Mesmo tentativas desse tipo de estímulo, como sucede com a legislação sanitária que no Brasil estabelecem a reforma psiquiátrica, e com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, não se prestam a conferir efetividade na proteção às pessoas com deficiência mental e ou com algum distúrbio psíquico. Nos Estados em que as sociedades eram bastante homogêneas, como ocorria na Idade Média, construiu-se um mecanismo lógico para solucionar conflitos políticos: a regra da maioria, que pressupunha homens livres, iguais, e com as mesmas necessidades, e legitimava decisões (políticas e jurídicas) decorrentes da sua estrita observância. Com o aparecimento (ou reconhecimento) da existência de minorias desassistidas mesmo em sociedades plurais, aquela regra mostrou-se ineficaz para proteger as minorias contra tratamentos discriminatórios, e tornou-se necessário o estabelecimento de comunicação dentre os diversos estamentos sociais para viabilizar não só o compartilhamento do poder, mas a própria paz social derivada do respeito à individualidade humana. Ressalte-se que parece ser cabível ao sistema brasileiro a advertência formulada ao sistema estadunidense por Ackerman (2007, p. 209) quanto ao perigo de uma excessiva ruptura político-social que pode ser propiciada pelo radical apego ao pluralismo que leva à degeneração em pura apologia na busca de interesses suprimidos. Tal sucede porque as dificuldades de implementação de medidas protetivas de grupos vulneráveis, na área da saúde mental, no Brasil, derivam do desconhecimento sobre o sofrimento psíquico, sendo que a história da vulnerabilidade de suas vítimas pode ser fundamental para o enfrentamento de estigmas e preconceitos ligados a concepções ainda vigentes, que as vinculam à periculosidade e à impossibilidade de convivência social, de molde 278 // Problemas da jurisdição contemporânea... a propiciar a humanização das políticas públicas voltadas à sua proteção sem, todavia, hipertrofiar essa tutela. Os aspectos examinados nos limites deste estudo apontam que o intervir em determinantes da saúde não podem se circunscrever à esfera jurídica: antes, exige o estabelecimento de pontes de diálogos que aproximem os diversos setores da sociedade, unindo sinergicamente saberes acadêmicos e empíricos, para que se possa formatar políticas públicas que atendam às necessidades das pessoas com doença mental e, por igual, instrumentos garantes de sua implementação, translação essa crucial à efetividade de uma tutela adequada. A tutela das pessoas com doença mental é, como visto, uma incompletude, social e jurídica ainda, daí não ser possível concluir este estudo de forma definitiva e, sim, endereça-lo a alimentar a polêmica que, em última análise, é sobre o dever jurídico de solidariedade. Para tanto, faz-se necessário reconhecer o direito a ser diferente – ainda que – e principalmente – se em decorrência de doença mental, pois a diferença não pode inferiorizar, e não deve discrepar do direito à igualdade. Ao contrário, deve ir além, a fim de ser reconhecida como direito à diversidade. Até como consequência desse reconhecimento, deve-se dar relevo ao também direito à tolerância, condição indispensável à defesa da ontológica alteridade, representativa de necessário plus à solidariedade e à diversidade, para que haja a efetividade desses direitos universais e inerentes à pessoa humana. A incapacidade deve ser considerada casuisticamente para se aferir a possibilidade ou não de gradação dos efeitos da curatela dos absolutamente incapazes, a fim de se manter, na hipótese de constatação de ausência total de discernimento, a curatela absoluta. A complexidade da psique exige do Direito e do sistema como um todo respostas flexíveis às demandas humanas, não sendo autorizado o esvaziamento da autonomia privada e a imposição de restrições ao livre desenvolvimento da personalidade, mas, tampouco, a absoluta desproteção aos que não possuem as mínimas condições a tanto. A clivagem parcial das duas normas – Estatuto da Pessoa com Deficiência e novo Código de Processo Civil – demonstra que, tal como nos primórdios, também neste século XXI o doente mental é visualizado como despido de sua humanidade e, assim, como o homo sacer, só detém a própria vida nua na qual mais nada se inscreve (AGAMBEN, 2010). A hipostasia desse grupo vulnerável, agravada pela distonia normativa aqui exposta, deve ser afastada, para que o fato coletivo de identificação da pessoa com deficiência mental funcione somente como discrímen permissivo da modulação da garantia fundamental a Ser digno e reconhecido como tal. Caberá ao Congresso Nacional definir qual das normas deixará de provocar espasmos na tutela das pessoas com deficiência mental, se o Código de Processo Civil – que cuida da incapacidade, ou se o Código Civil O fim do regime de incapacidade civil // 279 que descura delas, sob o pretexto de proteger as pessoas com deficiência, a fim de não se agravar a exclusão social daquelas pessoas. 15.6 REFERÊNCIAS ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Belo Horizonte: DelRey, 2007. AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. trad. Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2012. ANDRIGHI, Fátima Nancy. Palestra proferida no seminário sobre interdição realizada no Superior Tribunal de Justiça em 07.11.2005. Brasília: STJ. BARROSO, Luis Roberto. Entrevista à Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. V. 75, n. 2. Belo Horizonte: TCEMG, 2010. CAMPOS SILVA, Nilson Tadeu Reis. Direito do idoso: tutela jurídica constitucional. 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São Paulo: Conectas, 2007. = XVI = O HUMANISMO E A FRATERNIDADE COMO CATEGORIAS CONSTITUCIONAIS Lauro Ishikawa* Luciane Pussi** William Artur Pussi*** 16.1 INTRODUÇÃO O escopo do presente artigo reside na busca de se averiguar a fraternidade enquanto categoria constitucional, indispensável para a efetivação das relações sociais e, por isso, para a complementação do visado pela promoção da dignidade do ser humano. Contudo, previamente se mostra indispensável enveredar-se pelos fatores que levaram à gênese dos direitos humanos, a fim de se compreender o contexto o árduo percurso perfeito por esses direitos que se destinam a exatamente promover referidas dignidade e fraternidade. Superados esses pontos, atenção será dada ao direito ao desenvolvimento, cujo reconhecimento como direito humano levou longa negociação internacional e, por isso, teve retardada sua efetivação. Demonstrar-se-á, por derradeiro, a natureza fraternal desse direito e sua essencialidade para a promoção da própria dignidade humana. 16.2 HUMANISMO O Humanismo teve suas primeiras manifestações ainda no período grego, no qual a religião e as crenças populares influenciavam o direito e a política. * Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Instituição Toledo de Ensino de Presidente Prudente. Professor Universitário desde 2000. Membro do Conselho Superior da CAPES (2008/2010). Professor e Coordenador Adjunto da FADISP. Advogado. ** Doutoranda do Programa de Doutorado em Direito- FADISP. Mestre em Direito na área de concentração em Direitos da Personalidade pelo Centro Universitário de Maringá-Pr. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Paranaense-Pr. Bacharel em Direito pela Universidade Paranaense-Pr. Licenciatura plena em Português e Inglês pela Universidade Paranaense-Pr, Especialista em Literatura Brasileira pela Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão. Professora da Faculdade Maringá e Unicesumar *** Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Mestre e bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Professor Universitário. 282 // Problemas da jurisdição contemporânea... Tomás de Aquino, em sua Summa Theologica, encontra o fundamento da dignidade no fato de o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Os ideais de Santo Agostinho, bem como da Igreja Católica, também nos trazem a essência do Humanismo – priorizando a figura da pessoa para a realização do bem comum –, no qual o homem é visto como ser único e igual, apesar de, em algumas circunstâncias da história e em prol de interesses escusos, existir a distorção de tais objetivos, como, por exemplo, no período a Santa Inquisição. Aliás, destaque-se, é com Immanuel Kant que se completa o processo de secularização da dignidade. Afirma Kant (1980, p. 134): O Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. Dessa forma, Kant legou ao mundo a constatação de que o homem será sempre fim, nunca meio, e jamais poderá ser instrumentalizado ou “coisificado”. Por sua vez, Orides Mezzaroba (2003, p. 59) molda o espírito da teoria humanista de uma forma simples, porém completa, quando diz que: O termo humanismo, em regra geral, sintetiza toda uma corrente de pensamento voltada para o homem, em favor do homem. O pensamento humanista advoga a defesa de comportamentos éticos morais voltados à liberdade de pensamento e de criação, a fraternidade e a tolerância entre os diferentes, à institucionalização de direitos voltados ao resguardo e ao respeito do bem-estar e da dignidade da pessoa humana. [...] Assim, podese concluir que “todos os homens são iguais e são sujeitos dos mesmos direitos e deveres fundamentais”. Partindo desse conceito, torna-se evidente o caráter moral do qual é revestida a teoria humanista. Conforme Rogério Gesta Leal (2003), o Humanismo fundamenta-se fora da concepção de direito e de Estado que conhecemos, ou seja, antecede a norma positivada, orientando-se “no âmbito da ética, da natureza humana, do direito natural ou dos valores”. Com o advento do período conhecido como Iluminismo, ocorre a expansão da noção dos direitos e das liberdades humanas. Começa a se seguir em direção à igualdade jurídica dos seres humanos. E a partir da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 1776, ocorre a expressão primeira dos direitos, declarando a independência por um novo governo a ser formado pelas colônias unidas sob o princípio de que a tirania é inadequada para ser o governo de um povo livre. Seguindo-se à declaração americana, a Revolução Francesa proclamou que todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, consoante os termos da Declaração dos Direitos do Homem e do O humanismo e a fraternidade... // 283 Cidadão. Essa declaração afirmava os princípios de igualdade e liberdade individual, a igualdade civil e fiscal, a isenção de prisão arbitrária, a liberdade de expressão e de imprensa, e o direito à propriedade privada. Em 1791, dois anos após a queda da Bastilha e baseada nesses princípios, a França acaba por abolir a escravatura negra. Consagra-se, assim, o princípio de que todo homem é sujeito de direitos e obrigações. Em uma visão mais recente, é possível afirmar que os horrores da Segunda Guerra Mundial representaram um limite intransponível para a humanidade, no qual não se permitiria qualquer avanço sem se reavaliar as consequências nefastas promovidas pelo Estado e pela própria razão de ser do direito. A violação aos direitos fundamentais nesse período pode ser metaforizada a partir do poema “Despertar é preciso”, em que as pequenas transgressões diárias aos direitos ínsitos do homem culminaram no extermínio de 18 milhões de pessoas somente em campos de concentração, sem mencionar o conflito direto nos campos de guerra: Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. (COSTA, 2009) A par de todo este contexto fático, nasce em 1948 a Declaração Universal dos Direitos do Homem, apresentando inúmeros direitos de todo ser humano. Tais direitos caracterizam-se por sua unicidade e indivisibilidade, sendo pertencentes a toda a humanidade, representando marco maior na reconstrução dos direitos humanos. Na abalizada lição de Flávia Piovesan (apud PAULA, 2006, p. 218), a adoção de mecanismos tendentes a proteger os direitos do homem “[...] não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição exclusiva, porque revela tema de legitimo interesse internacional”, quebrantando o dogma da absoluta soberania estatal rumo à concepção do fraternité da Revolução francesa de 1789. Ato contínuo, as constituições passam a prover meios de internalizar estes tratados suplementares à ordem jurídica nacional, incitando aos Estados signatários a necessidade de se fomentar a discussão e proteção aos direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, nota-se que no alvor da 284 // Problemas da jurisdição contemporânea... segunda metade do século XX os direitos humanos são colocados no centro dos debates jurídicos, vislumbrando-se a efetiva garantia da dignidade da pessoa humana de modo coletivo. A título meramente exemplificativo, a elaboração desse sistema de proteção internacional dos direitos humanos a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos culminou na formação das seguintes convenções e pactos em nível universal: a) o Pacto Universal dos Direitos Humanos de 1948; b) a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1965; c) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966; d) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966; e) a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher de 1979; f) a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes de 1984; g) a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; e h) o Tribunal Penal Internacional e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Conforme assevera Paulo Bonavides (2003, p. 574): A nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser homem deste ou daquele país, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela universalidade. As Constituições vêm, paulatinamente, assimilando valores universais e direitos que transcendem os limites da soberania do próprio Estado. No caso especificamente brasileiro, após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 (acréscimo do § 3º ao art. 5º da Constituição Federal), também os direitos humanos, objeto de tratados ou convenções internacionais, aprovados pelo Congresso Nacional, em dois turnos e por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão considerados direitos fundamentais. Portanto, ingressarão no sistema jurídico pátrio com status equivalente às emendas constitucionais. No julgamento histórico, ocorrido aos 03/12/08, o STF admitiu o valor (no mínimo) supralegal dos tratados de direitos humanos (ratificados pelo Brasil e incorporados no direito interno). Quando se cuida de um tratado de direitos humanos aprovado por quorum qualificado pelo Congresso Nacional (três quintos em dois turnos em cada casa) seu valor é de Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º). O Estado brasileiro já não é só (a partir da perspectiva aberta pelos votos referidos, que foram acompanhados por outros sete Ministros) apenas O humanismo e a fraternidade... // 285 um Estado de Direito constitucional: agora passou a ser também um Estado de Direito Internacional. Assim, não é mais possível estudar, ensinar ou aplicar o Direito sem conhecer (também) o Direito internacional, especialmente o Direito internacional dos direitos humanos. Afinal, como ensina Norberto Bobbio (1992, p. 79): Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem direitos. Decerto, todas essas novas perspectivas fazem parte [...] da história profética da humanidade [...]. Assim, é possível afirmar que os ordenamentos jurídicos contemporâneos lograram certo êxito em combater a opressão e o arbítrio, garantindo, dentro do possível, liberdade e igualdade. Aliás, conforme afirma Thiago Matsushita (2007), o art. 5º, §1º, afasta qualquer alegação de que os direitos humanos são normas programáticas, dependentes de lei que lhes deem eficácia jurídica. Assim, na esteira do pensamento de Matsushita, concluímos que o § 1º, do art. 5º, da CF, prescreve, no altiplano valorativo do nosso ordenamento jurídico, que todas as normas a serem construídas pelos cientistas e aplicadores do direito pressupõem como elemento de validade a dignificação da pessoa humana, sumo dos direitos humanos. Todavia, é fundamental destacar que, apesar de todos os esforços, tal postura não é suficiente e não fornece respostas satisfatórias para assegurar uma vida de relações e de comunidade, pois se ressente de outro valor fundamental, qual seja, a fraternidade. 16.3 FRATERNIDADE Tradicionalmente o tema “fraternidade” é enfrentado como um ideal de filosofia política ou social, ou mesmo como categoria política, mas não como uma categoria jurídica. Logo, percebe-se uma natural dificuldade para a análise do tema numa perspectiva jurídica. Tanto é verdade que Carlos Augusto Alcântara Machado (2008, p. 1), citando Fausto Goria, registra que: “[...] em geral, compreende-se a fraternidade como algo que se desenvolve espontaneamente, o que seria incompatível com o Direito, caracterizado pelo uso da coatividade”. Todavia, a fraternidade e o direito não são necessariamente excludentes, uma vez que fraternidade, enquanto valor, vem sendo proclamada por algumas Constituições modernas, ao lado de outros valores historicamente consagrados, como a igualdade e a liberdade. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, em palestra na Universidade de Münster (Alemanha), observou que liberdade e 286 // Problemas da jurisdição contemporânea... igualdade são valores indissociáveis no Estado Democrático de Direito e, fazendo referência a Peter Haberle, ressaltou a pouca atenção que se tem dado ao terceiro valor fundamental da Revolução Francesa, que é o da fraternidade. Nas palavras do Ministro (MENDES, 2008): No início deste Século XXI, o conceito de liberdade e igualdade deve ser reavaliado, reposicionando-se o da fraternidade. Quero com isso dizer que a fraternidade pode colocar em nossas mãos a chave com que poderemos abrir diversas portas no sentido da solução das mais importantes questões da liberdade e da igualdade com que se debate, hoje, a humanidade. Aliás, nessa esteira, o doutor Lauro Ishikawa (2008, p. 81) ensina: Os direitos de solidariedade atuam, assim, para corrigir as distorções da liberdade e da igualdade, pois quando não há essa igualdade préestabelecida socorre-se a solidariedade. De fato, a terceira dimensão dos direitos fundamentais busca tutelar o homem não individualmente considerado, mas no aspecto coletivo, visando os direitos da humanidade, aquilo que inerente a todos, corrigido, como já asseverado, as distorções da liberdade e igualdade. Vale ressaltar que os direitos de terceira geração ou dimensão consagram os princípios da solidariedade ou fraternidade, sendo atribuídos genericamente a todas as formações sociais. Destarte, restam protegidos interesses de titularidade coletiva ou difusa de um grupo ou de um determinado Estado, ao não se destinar especificamente à proteção dos interesses individuais, mostrando-se, com isso, uma grande preocupação com as gerações humanas, presentes e futuras. Alexandre de Moraes (2006, p. 60), acerca do assunto, ensina: Por fim, modernamente, protege-se, constitucionalmente, como direitos de terceira geração os chamados direitos de solidariedade e fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e a outros direitos [...]. Em síntese, citamos os ensinamentos de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2005, p. 116): “A essência desses direitos se encontra em sentimentos como a solidariedade e a fraternidade, constituindo mais uma conquista da humanidade no sentido de ampliar os horizontes de proteção e emancipação dos cidadãos”. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, apresenta evidentes traços solidarísticos, embora não contenha literalmente a expressão “solidariedade”. Nessa toada, o preâmbulo menciona que todas as pessoas são “membros da família humana”, enquanto que, no art. 1º, dispôsse que todos “[...] devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). O humanismo e a fraternidade... // 287 Assim, seguindo este caminho, podemos citar que na vigente Constituição lusitana, logo no preâmbulo, o constituinte português registrou um relevante compromisso: “fazer de Portugal um país mais fraterno”. Logo no art. 1º, um importante empenho: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. No decorrer de seu texto, por diversas vezes (arts. 63º,66º, 71º e 73º), foi empregado o substantivo solidariedade no trato de temas como: deficientes, meio ambiente, educação e economia. Utilizou o texto magno português expressões como: “solidariedade entre gerações”, “solidariedade social”, “espírito de tolerância” e “compreensão mútua”. O jurista italiano Filippo Pizzolato (2008), em sua obra “A Fraternidade no Ordenamento Jurídico Italiano”, define a fraternidade como uma forma intensa de solidariedade unindo pessoas que, por se identificarem por algo profundo, sentem-se “irmãs”. Seria uma forma de solidariedade que se realiza entre iguais, entre elementos que se colocam no mesmo plano e conclui que a fraternidade parece ser uma forma de solidariedade que interpela diretamente o comportamento individual, responsabilizando-o pela sorte dos irmãos. Assim, continua Pizzolato (2008), o artigo 2º da Constituição italiana incentiva a preocupação do indivíduo não apenas com o seu próprio bem, mas com o bem comum. Uma espécie de fraqueza estrutural do homem – a sua interdependência – fundamenta a fraternidade, para além de todas as diferenças. Em vez do cânon liberal “não prejudicar os outros”, o mandato vinculativo “faça o bem ao outro (porque também é o seu)”. Na Carta-Cidadã de 05 de outubro de 1988, de igual forma, o legislador constituinte pátrio, ao se comprometer com a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, apresentou os seus valores supremos, logo no Preâmbulo: liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça. Em seguida, após traçar toda uma base principiológica, estabeleceu como objetivo fundamental da República Federativa a construção de uma sociedade solidária (art. 3º, I, da CF). Por isso, é possível afirmar que, quando a Constituição estabelece como um dos objetivos fundamentais da República brasileira “construir uma sociedade justa, livre e solidária”, ela não está enunciando uma diretriz política desvestida de qualquer eficácia normativa. Pelo contrário, ela expressa um princípio jurídico, que, apesar de sua abertura e indeterminação semântica, é dotado de algum grau de eficácia imediata e que pode atuar, no mínimo, como vetor interpretativo da ordem jurídica como um todo (SARMENTO, 2006, p. 295). Para tanto, o Estado brasileiro terá que garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, II a IV). Atingiu-se, por completo, após alguns séculos de desenvolvimento, o antigo lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. 288 // Problemas da jurisdição contemporânea... A Carta Constitucional vigente absorveu os três valores do movimento revolucionário de 1789 ao definir como o primeiro objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária – liberdade, igualdade e fraternidade. 16.3.1 O advento do constitucionalismo fraternal Como visto, o constitucionalismo moderno conheceu duas grandes fases: a primeira, fundada no liberalismo (constitucionalismo liberal), no qual o valor liberdade esteve em destaque, e a segunda, caracterizada pela socialdemocracia (constitucionalismo social), com especial ênfase ao valor igualdade. O texto da Constituição de 1988 inaugurou no nosso país, como vem destacando o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto (2008), num certo sentido em sintonia com o que prega o Movimento Comunhão e Direito, o Constitucionalismo Fraternal ou, como afirmam outros, o Constitucionalismo Altruístico. Define o Douto Ministro da mais alta Corte brasileira o constitucionalismo fraternal como “[...] a terceira e possivelmente a última fase, o clímax do constitucionalismo”. Continua o jurista, tratando do constitucionalismo: “Depois que ele assumiu uma feição liberal ou libertária, uma função social ou igualitária, agora chega à terceira fase, que é a fraternidade, para ombrear todas as pessoas em termos de respeito, referência e consideração [...]” (BRITTO, 2008, p. 53). Às tradicionais dimensões consagradas nos ordenamentos jurídicos vigentes, incorpora-se outra, de igual forma, como categoria constitucional. Ao afirmar a Constituição brasileira que é objetivo fundamental da República Federativa construir uma sociedade livre, justa e solidária, constata-se, cristalinamente, o reconhecimento de dimensões materializadas em três valores distintos, mas em simbiose perfeita: (a) uma dimensão política: construir uma sociedade livre; (b) uma dimensão social: construir uma sociedade justa; e (c) uma dimensão fraternal: construir uma sociedade solidária. Cada uma das três dimensões, ao encerrar valores próprios – liberdade, igualdade e fraternidade –, instituem categorias constitucionais. A Constituição busca com a dimensão fraternal uma integração comunitária, uma vida em comunhão. Se vivermos efetivamente em comunidade, estaremos, de fato, numa comunidade. Em uma palavra: fraternidade. Uma sociedade fraterna é uma sociedade sem preconceitos e pluralista. E esses valores estão presentes na Constituição de 1988. Averbese que a integração comunitária é mais do que inclusão social. Não se reduz a ações distributivistas, de inclusão social que se situam somente no plano de gastos públicos. E essa inegavelmente é a tendência que cada vez mais se observa nos ordenamentos constitucionais contemporâneos, particularmente na O humanismo e a fraternidade... // 289 Constituição de 1988: combate a qualquer forma de preconceito, ações afirmativas (deficientes, mulheres, negros), etc. É o ordenamento jurídico a serviço da realização – ou pelo menos em busca – da fraternidade. Urge que se inaugure, de fato, um Estado Fraternal. É essa, aliás, a ideia que vem ganhando força nos últimos tempos e que se tornou conhecida como Constitucionalismo do Futuro. Como exemplo, podemos citar o julgamento da ADI 3.768-4/DF33, no qual o Supremo Tribunal Federal garantiu a gratuidade dos transportes públicos urbanos e semiurbanos para os idosos. No voto da eminente relatora, Ministra Carmem Lúcia, calcado no art. 230 da Constituição Federal, destacou-se a necessidade de se garantir o direito de qualidade de vida digna àquele que não pode pagar ou que já colaborou com a sociedade em períodos pretéritos. Registrou a Ministra-relatora que aos idosos assiste, nesta fase da vida, direito a ser assumido pela sociedade quanto ao ônus decorrente do uso do transporte público. Digno de citação o seguinte trecho do seu voto: A gratuidade do transporte coletivo representa uma condição mínima de mobilidade, a favorecer a participação dos idosos na comunidade, assim como viabiliza a concretização de sua dignidade e de seu bem estar, não se compatibiliza com condicionamento posto pelo princípio da reserva do possível. E continua, concluindo que “[...] aquele princípio haverá de se compatibilizar com a garantia do mínimo existencial.” Em manifestação de voto, o Ministro Carlos Britto concluiu que o direito em discussão seria um direito fraternal, a exigir do Estado “[...] ações afirmativas, compensatórias de desvantagens historicamente experimentadas por segmentos sociais como os dos negros, dos índios, das mulheres, dos portadores de deficiências e dos idosos”. Nesse toar, possibilitando inovações na prática jurídica, a Constituição e o próprio Estado adotam posturas sintonizadas com o constitucionalismo fraternal. Surge, por conseguinte, espaço para a consagração dos direitos de fraternidade e de solidariedade que, como lembra Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 53): Trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Inseremse nessa categoria, por exemplo, os direitos à paz, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos e têm como distinção o fato de serem universais, ou, quando menos, transindividuais ou metaindividuais. Invocando, mais uma vez, o magistério do Ministro Carlos Britto (2007, p. 98), tem-se que: 290 // Problemas da jurisdição contemporânea... A Fraternidade é o ponto de unidade a que se chega pela conciliação possível entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro, da Igualdade. A comprovação de que, também nos domínios do Direito e da Política, a virtude esta sempre no meio (medius in virtus). Com a plena compreensão, todavia, de que não se chega à unidade sem antes passar pelas dualidades. Este, o fascínio, o mistério, o milagre da vida. Outro julgamento marcante refere-se ao Recurso Especial nº 2008/0025171-7, julgado em 23/02/2010, tendo como relatora a Ministra Nancy Andrighi, cujo voto apresenta o seguinte teor: A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes.Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às manifestações de intolerância ou de repulsa que possa porventura se revelar em face das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e apaziguamento de possíveis espíritos em conflito.- A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar em ideais de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em tempos idos, quando emprestou normatividade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o instituto da união estável. A temática ora em julgamento igualmente assenta sua premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso.- A inserção das relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo no Direito de Família, com o consequente reconhecimento dessas uniões como entidades familiares, deve vir acompanhada da firme observância dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da autodeterminação, da intimidade, da não discriminação, da solidariedade e da busca da felicidade, respeitando-se, acima de tudo, o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual. Grifo nosso De tudo que foi exposto, tem-se que é perfeitamente possível concluir que, no constitucionalismo contemporâneo, a fraternidade, de fato, é uma categoria jurídica. Todavia, apesar de jurídica, não deixa de ser bela a presente mensagem: Quando o ser humano, finalmente aprender a ser humano, e descobrir que os verdadeiros tesouros, que tão insanamente procuram, estão simplesmente em nosso interior, e inteiramente a seu dispor, poderão chegar à conclusão que lhe aquietará o coração, O humanismo e a fraternidade... // 291 de que, aprendendo a cultivar a Solidariedade e a Fraternidade, a humanidade viverá com humanidade, e poderá conseguir uma certa felicidade… Amor ao próximo… Fraternidade… Solidariedade… Palavras mágicas… É preciso entende-las e praticá-las (SALAVERRY, 2009). 16.4 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO COMO UM DIREITO FRATERNO E HUMANO Como forte expressão dessa dimensão fraternal dos direitos humanos, o direito ao desenvolvimento galgou, assim como a categoria à qual pertence, árduo processo de inserção no âmbito dos direitos a serem internacionalmente protegidos, sem mencionar a dificuldade ainda existente (e, inclusive, maior) de sua efetivação. Conforme relato de Arjun Sengupta (2002), não havia, à época da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 1948), qualquer dissenso em torno da estrita relação existente entre direitos ditos “individuais” e aqueles concebidos como “coletivos”, inexistindo efetivo óbice à aceitabilidade do direito ao desenvolvimento como um direito humano. Entretanto, tal contexto favorável veio a se alterar substancialmente no período da Guerra Fria, quando se levantaram de forma mais exaltada argumentos contrários à legitimidade dos direitos econômicos, sociais e culturais – os quais eram amplamente defendidos pelos países do “Segundo Mundo”1 – e que demandaram, por isso, intensa negociação internacional para se resgatar a concepção una dos direitos humanos 2 (SENGUPTA, 2002). Muito embora iniciado esse avanço pelos idos de 60, o direito ao desenvolvimento só logrou atenta observação dos países integrantes das Nações Unidas enquanto direito humano no ano de 1986, quando se aprovou pela quase unanimidade dos votos a Declaração do Direito ao Desenvolvimento, a qual só recebeu voto contrário dos Estados Unidos da América. E por causa dessa oposição norte-americana, o processo de concretização do direito ao desenvolvimento foi retardado por muitos anos (SENGUPTA, 2002). Enfim, exsurgiu novo consenso entre as nações quando da Segunda Conferência Mundial da ONU, ocorrida em Viena, na qual se editou declaração reafirmando a pertença do direito ao desenvolvimento aos direitos humanos, apoiada, inclusive, pelos Estados Unidos. 1 Terminologia essa já abandonada, mas aplicada ao caso somente para trazer a expressão da época, indicando o grupo de países que defendiam esses direitos coletivos, qual seja, o bloco dos países socialistas. 2 Pelo contexto da Guerra Fria, foi intentada, visando-se superar o óbice decorrente da animosidade entre países capitalistas e socialistas, a formulação de dois acordos ao longo dos anos 60, um contemplando os direitos civis e políticos (“individuais”) e outro abarcando os direitos econômicos, sociais e culturais (“coletivos”). (SENGUPTA, 2002, p. 65). 292 // Problemas da jurisdição contemporânea... Para se suplantar tal resistência, foi necessário explicitar a inexistência de efetivo fundamento às críticas existentes ao reconhecimento do direito ao desenvolvimento como legítimo direito humano. Em suma, levantavam-se 3 (três) argumentos contrários, que se passa a abordar. Primeiramente, havia a alegação de que os direitos humanos se limitam, necessariamente, aos direitos individuais, em estrita adoção da teoria dos direitos naturais. Porém, não subsiste essa pretensão excludente, uma vez que a principal diferença levantada entre os direitos individuais e os coletivos é a de que estes demandam ação positiva (promoção e proteção), enquanto aqueles, ação negativa (prevenção). Entretanto, indevida é essa distinção, pois ambos “os direitos” exigem, para sua efetivação, promoção, proteção e prevenção. Daí, concluise pela fragilidade do argumento, assumindo força a constatação de que “[...] cabe aos interessados a decisão final sobre o que considerar direitos humanos e quais o Estado terá a obrigação de fornecer” (SENGUPTA, 2002, p. 76). Secundariamente, levantava-se o argumento de que, para ser efetivado, o direito ao desenvolvimento deveria possuir alguém responsável por sua promoção conforme o número de seus beneficiários, sob pena de ser inócua a previsão desse “direito”. Contudo, no caso do direito em apreço, se não há a particularização do responsável por sua efetivação, tem-se o que Immanuel Kant denominou de “obrigação imperfeita”, que traduz a ideia de uma obrigação imputável a todos que possam ajudar, independentemente de alguém em específico. Terceira e finalmente, alegava-se que os direitos humanos devem se sustentar na lei, o que deve ser imediatamente refutado, posto que tais direitos “[...] baseiam-se em padrões morais com vistas à dignidade humana, possuindo diversas maneiras de consecução, dependendo da aceitabilidade da base ética das demandas” (SENGUPTA, 2002, p. 77). 16.4.1 Natureza fraternal e reponsabilidade estatal Partindo para a análise da natureza do direito ao desenvolvimento, oportuna e fundamental é a apreciação do conceito trazido na própria Declaração dos Direitos ao Desenvolvimento, de 1986. Em seu primeiro artigo, está disposto que: O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual todo ser humano e todos os povos têm direito de participar, contribuir e gozar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais podem ser plenamente realizados. Descobrir qual a importância da efetivação desse direito para a plena realização dos demais direitos humanos é reafirmar o quão essencial são os direitos de fraternidade para a efetiva dignificação do ser humano, sendo incontestável esse caráter fraterno dos direitos ao desenvolvimento, O humanismo e a fraternidade... // 293 principalmente quando evidenciado o direito a “contribuir” para a promoção do bem comum a todas as pessoas, sem se promover discriminações de qualquer ordem. Sengupta, abordando justamente os termos de mencionada Declaração, bem explica essa responsabilidade de todo indivíduo na busca da promoção fraternal. É sua, aliás, a seguinte lição: Para realizar esse processo de desenvolvimento ao qual toda pessoa humana tem direito, em virtude de seu direito ao desenvolvimento, há responsabilidades que devem ser partilhadas por todas as partes envolvidas: “os estados operando nacionalmente” e “os estados operando internacionalmente.” De acordo com o artigo 2, parágrafo 2, “todos os seres humanos (pessoas) têm a responsabilidade pelo desenvolvimento individual e coletivo” e devem tomar as medidas apropriadas, mantendo “respeito total pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como suas obrigações com a comunidade”. Pessoas humanas, portanto, são reconhecidas por seu funcionamento individual e, também, como membros de comunidades, e por possuírem deveres com estas comunidades, que devem ser cumpridos em nome da promoção do processo de desenvolvimento (SENGUPTA, 2002, p. 67) Grifo nosso Inobstante o dever dos sujeitos de auxiliar, de propiciar o desenvolvimento alheio, deve ser sempre levantada a ressalva de que igualmente muito compete aos Estados, como indica o artigo 3 da Declaração em comento ao prever que compete aos Estados o primeiro passo na criação de condições favoráveis ao desenvolvimento não só de seu povo, mas de toda comunidade internacional. Conforme a teoria do contrato social, os estados modernos decorrem de um pacto celebrado entre os indivíduos os quais, ao renunciarem à sua “prerrogativa natural” de autotutela, deferiram ao Estado o “monopólio da violência”. Porém, seria de todo incorreto concluir que esses sujeitos acabaram por se despir de seus direitos, posto que só a sua defesa e o dever de sua promoção restaram transmitidos ao “Leviatã” quando dessa pactuação. Por isso, referida obrigação imputada aos Estados é, de fato, respaldada na própria finalidade que lhe é intrínseca: promover a dignidade humana. Porém, apesar da importância de seu dever, relevante é a ressalva de que “Esta responsabilidade é complementar à responsabilidade do indivíduo [...] e é apenas para a criação das condições para realizar o direito e não para a realização do próprio direito. Apenas os próprios indivíduos podem realizar o direito” (SENGUPTA, 2002, p. 67). Contudo, Arjun Sergupta asseverava que os esforços estatais devem ser não apenas de ordem nacional, mas também de alcance internacional, tanto que no artigo 4 da Declaração dos Direitos ao Desenvolvimento, exemplificava ele, restou escrito que: “Como um complemento aos esforços dos países em desenvolvimento, é essencial a cooperação internacional 294 // Problemas da jurisdição contemporânea... efetiva, para prover estes países com os meios apropriados para consecução de seu desenvolvimento integral” (SENGUPTA, 2002). 16.4.2 O direito ao desenvolvimento e a constituição cidadã Não há previsão expressa do direito ao desenvolvimento no texto constitucional de 1988. Inobstante a inexistência de explicitação desse direito humano, tem-se que o mesmo não se encontra excluído do ordenamento pátrio, nem mesmo afastado do agasalho da Constituição Cidadã. E para se concluir o afirmado, por certo, é indispensável a análise da própria CF/88. Consta no art. 5º, § 2º, da Carta Magna, que os direitos previstos em seu corpo normativo não afastam o reconhecimento de direitos outros decorrentes do regime e dos princípios por si adotados, bem como dos tratados internacionais de que seja signatária a República Federativa do Brasil. Quanto ao rol de direitos contido no mesmo art. 5º da CF/88, o STF já se pronunciou, enquanto guardião e intérprete da Constituição, declarando a inexistência de taxatividade dos direitos ali constantes. 3 Adotando esse entendimento, o Pretório Excelso evidenciou o que o constituinte expressamente previra: [...] alguns direitos e garantias essencialmente constitucionais poderiam ficar de fora [da Constituição], bem como poderiam surgir novos direitos e garantias com o desenvolver da sociedade que necessitassem de proteção constitucional por disporem de matéria extremamente relevante (OLIVEIRA, 2008). Com isso em vista, frágil seria qualquer argumento que refutasse a acolhida do direito ao desenvolvimento pela Constituição, especialmente quando considerados os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e nos quais se encontra previsto o direito humano ao desenvolvimento, tais como a Carta das Nações Unidas, a Carta de Constituição da Organização dos Estados Americanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, etc. Ademais, o próprio regime e os princípios constitucionais informam o direito ao desenvolvimento, nos termos do art. 5º, § 2º, da CF, sem se considerar, outrossim, a consagração do desenvolvimento enquanto objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, estando, nesse contexto, estritamente vinculado à própria promoção da dignidade humana, princípio fundamental do ordenamento pátrio (CF, art. 1º, III). 3 Vide Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n° 939-7/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ: 18/03/94. O humanismo e a fraternidade... // 295 16.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos humanos são fruto de longo processo de amadurecimento da humanidade, o qual acabou, fatidicamente, por implicar na perda de milhões de vidas humanas, inclusive. Declarados os direitos humanos, em 1948, viu-se, a partir daí, grande empenho internacional no sentido de se prever, compromissar os mais diversos países e, enfim, promover tais direitos, os quais possuem como grande escopo justamente a dignidade do ser humano. Inobstante a contundente acolhida das constituições a esse valor “dignidade”, vislumbrou-se a incompletude desse norte para o ser humano quando considerado sozinho, visto que as relações sociais demanda algo além. Por isso, viu-se igualmente alçado ao plano constitucional o valor da “fraternidade”, o qual informa, por seu turno, a necessidade de se promover ações afirmativas, a fim de se anular os nefastos efeitos das desigualdades sociais. Como referencial aos direitos de solidariedade, há o direito humano ao desenvolvimento, cuja efetivação é alicerce, inclusive, para a promoção de outros direitos humanos e, por conseguinte, da própria dignidade humana. Do exposto, ao se constatar a fundamentalidade desse direito, verifica-se o quão prejudicial foi o retardamento de seu reconhecimento no plano internacional, bem como se conclui como estritamente acertada é a imputação do dever de sua promoção não só aos indivíduos e aos Estados isoladamente considerados, mas também à comunidade internacional. 16.6 REFERÊNCIAS ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 14. tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2007. COSTA, Eduardo Alves da. 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Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. O humanismo e a fraternidade... // 297 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2006. SENGUPTA, Arjun. O direito ao desenvolvimento como um direito humano. In: Social Democracia Brasileira. n. 68, p. 64-84, mar. 2002. 298 // Problemas da jurisdição contemporânea... = XVII = O PAPEL DA PROPAGANDA ELEITORAL NA CONDUÇÃO DO PROCESSO DEMOCRÁTICO EM FACE DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Jeane Genara Volpato* Fabiola Cristina Carrero** Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade*** 17.1 INTRODUÇÃO A implantação de um ambiente político democrático representa o mais importante instrumento de evolução da sociedade, na medida em que permite que a participação direta de seus membros, no processo de escolha de seus representantes. Tal participação, permite que os membros da sociedade que adquirem a condição de eleitor, participem ativamente da construção política do Estado, contribuindo para a promoção dos interesses da coletividade. A democracia permite a participação popular através da livre escolha de candidatos, ou mesmo através da propositura da candidatura de qualquer membro da sociedade, sem distinção de qualquer natureza, desde que obedecidos os critérios previstos na legislação eleitoral vigente. Ressalte-se que tais exigências não tem o condão de restringir o acesso daqueles que pretendem disputar um cargo eletivo, mas sim de regular de forma transparente o processo de candidatura, bem como estabelecer critérios mínimos de regularidade, para que não haja comprometimento do próprio regime democrático. No ambiente de disputa eleitoral, a propaganda é um assunto que cada vez mais tem merecido destaque no cenário jurídico, em razão de sua importância enquanto mecanismo de comunicação com o eleitorado e de articulação de campanha, sendo muitas vezes utilizada como instrumento de * Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina-UEL. Pós-Graduada em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Mestranda do Programa de PósGraduação em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Analista Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral lotada na 179 Zona Eleitoral do município de Apucarana. E-mail: [email protected] ** Advogada, graduada em Direito pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina-UEL, Mestranda no Programa de Pós-graduação da Unicesumar, Professora na FAP-Faculdade de Apucarana. E-mail: [email protected] *** Mestranda em Direito da Personalidade; Pós graduação: Educação Especial – D. M.; Graduação: Pedagogia e Direito; Docente da Area de Educaçao Especial do Centro Estadual de Educação de Jovens e Adultos – Professor Manoel R. da Silva, Maringá 300 // Problemas da jurisdição contemporânea... ataque aos adversários, não raras vezes, com evidente desrespeito aos direitos da personalidade. Esta pesquisa tem como propósito central estudar o cenário atual no âmbito da propaganda realizada por candidatos em período eleitoral, bem como da abrangência das informações transmitidas através dos mecanismos autorizados pela legislação eleitoral, sob o enfoque da proteção dos direitos da personalidade. 17.2 DEMOCRACIA A democracia é o regime de governo que resulta da manifestação da vontade popular, uma vez que a população escolhe livremente os seus representantes. Neste regime, a sociedade participa das decisões política do Estado, através da manifestação de seus representantes, a quem cumpre o dever de defesa dos interesses da sociedade. O eixo central da democracia é sustentado por três princípios especiais: liberdade, igualdade e dignidade. Baseado no princípio da igualdade, todos os indivíduos devem ter direito de participar da construção política do Estado. O princípio da liberdade, garante que os membros da sociedade tenham o direito realizar suas escolhas de forma livre. Por fim destaca-se o princípio da dignidade, uma vez que a própria essência da democracia exige a preservação dos valores indispensáveis para a preservação da dignidade humana. A democracia pode ser classificada em duas espécies: direta e indireta. A democracia direta consiste no modelo em que as normas são votadas de forma direta pelos membros da sociedade, sendo dispensada a figura do representante. Já a democracia indireta, cujo modelo foi adotado no Brasil, é aquela onde a vontade do povo é manifestada pelas ações dos representantes eleitos. A doutrina ainda apresenta a modalidade de democracia semidireta, caracterizada pela existência de institutos que permitem que a população opine diretamente sobre os assuntos governamentais. Nosso ordenamento jurídico prevê a existência de mecanismos de democracia semidireta, como por exemplo o plebiscito e o referendo, todavia, tais instrumentos são pouco utilizados, e por essa razão, ainda pouco compreendido pelos eleitores. Pode-se afirmar que uma das principais características do regime democrático é a ampla defesa da dignidade humana. Por esta razão, a Constituição Federal de 1988 eleconcou a dignidade humana como fundamento do Estado, de forma que todo o texto constitucional está amparada neste princípio. Desta forma, um verdadeiro Estado Democrático deve promover a dignidade humana, conforme ensina Sarlet “[...] um Estado democrático que mereça ostentar esta condição pressupõe respeito e promoção da dignidade da pessoa humana [...]” (SARLET, 2009, p. 105). Desta forma, pode-se afirmar que a democracia é o instrumento adequado para o alcance da promoção social através da diminuição da desigualdade social, pois uma sociedade onde a desigualdade se cristaliza, O papel da propaganda eleitoral... // 301 não produz as condições necessárias para o fortalecimento do Estado. Ademais, a segregação social inviabiliza a ideal proteção da dignidade humana e por conseguinte, dos direitos da personalidade. A democracia no Brasil é ainda muito recente, e por tal razão, infelizmente ainda não se verifica a estruturação política desejada. Falta-nos tradição neste regime, e em especial às camadas sociais menos favorecidas, real noção acerca do significado deste instituto e da sua importância enquanto instrumento de inclusão social. 17.3 JUSTIÇA ELEITORAL Desde as eras mais remotas, os homens organizam-se em grupos, com objetivo de criar um método eficiente de sobrevivência, dando origem ao que hoje denominamos de sociedade. Dentro deste contexto, sempre houve o desenvolvimento de alguma forma de organização e de liderança do grupo com instituição de poder, o que mais tarde daria origem ao sistema político de organização estatal. Nesse contexto de evolução histórica, teve origem a Justiça Eleitoral no Brasil, que foi fruto da Revolução de 1930, com o objetivo inicial de organizar a escolha daqueles que seriam os representantes de toda a sociedade. A criação da Justiça Eleitoral deu-se em 1932, criando os parâmetros iniciais do processo eleitoral, com vistas à organização do processo de escolha dos representantes políticos. O sistema jurídico brasileiro destaca-se portanto, por possuir uma Justiça Eleitoral Especializada, com garantia em sede constitucional, a qual incumbe o papel peculiar de gerenciar todo o processo eleitoral, desde a realização do registro de candidatura até a diplomação dos eleitos, de forma que este processo de escolha seja moralmente legítimo. Cumpre ainda, julgar as eventuais controvérsias preexistentes ou aquelas que perdurarem ou forem ajuizadas após a realização das eleições. Destaca-se a Justiça Eleitoral por ser um órgão jurisdicional e independente, conforme sintetiza Costa: A Justiça Eleitoral é órgão jurisdicional, concebido com a finalidade de cuidar da organização, execução e controle dos processos de escolha dos candidatos a mandatos eletivos (eleições), bem como dos processos de plebiscito e referendo. Não está a Justiça Eleitoral inserida como apêndice do poder executivo, nem tampouco submetido à esfera de atuação do poder legislativo. Trata-se de um órgão de natureza jurisdicional, engastado na estrutura do poder judiciário, consoante prescreve o art. 92, inc. V, da Constituição Federal de 1988 (COSTA, 2008, p. 245). No âmbito da Constituição Federal, a Justiça Eleitoral encontra-se normatizada pelos artigos 118 a 121. No plano infraconstitucional, o principal documento legal é Código Eleitoral (Lei 4.737/65), mas existem outras importantes leis que versam sobre o tema, merecendo especial destaque a Lei das Eleições (Lei 9.504/97). O Direito Eleitoral pertence ao ramo do Direito 302 // Problemas da jurisdição contemporânea... Público, tendo como principal função “[...] regular o exercício da soberania popular. A democracia portanto, é antecedente lógico do Direito Eleitoral” (CHIMENTI, 2011, p. 09). É grande o esforço do legislador para manter atualizada as normas que regem o processo eleitoral, que deve obedecer o princípio da anualidade que estabelece “Em resumo, a lei que alterar o processo eleitoral deverá, para ter aplicação, ser publicada um ano antes da realização da eleição” (VELLOSO, 2014, p. 53). Merecem especial atenção, sobretudo as normas que tratam das condições de elegibilidade, prestação de contas de candidatos e partidos políticos e propaganda eleitoral. Esta última por sua vez, merece especial atenção do legislador, em razão das constantes inovações tecnológicas que tornam cada vez mais difícil o controle de divulgação de informações que configuram exercício de propaganda irregular. 17.4 EXERCÍCIO DEMOCRACIA DA SUFRÁGIO COMO PRESSUPOSTO DA A realização da soberania se verifica por intermédio da manifestação da vontade da população. Tal manifestação se realiza através do exercício do sufrágio, que consiste no instrumento garantidor da manifestação da escolha legítima da sociedade. Consiste o sufrágio no direito político subjetivo de participação no processo. Diferencia-se do voto, que é o mecanismo de exteriorizaão do sufrágio. A doutrina destaca a existência de duas modalidades de sufrágio: restrito e universal. Define-se o sufrágio restrito, como a modalidade em que apenas determinado grupo é habilitado para o exercício do voto. Tal modalidade equivale ao modelo censitário, que durante longo período da história vigorou em nosso país. Diferentemente, o sufrágio universal, como diz o próprio nome, é acessível a todos, não admitindo qualquer distinção. O sufrágio universál é a modalidade de sufrágio característica do regime democrático, na medida em que possibilita uma maior integração entre as diversas camadas sociais, em razão da equivalência do valor do voto dos eleitores, que contribuem diretamente para a formação da estrutura governamental do país. Em razão da instituição do regime democrático, o Brasil adotou o modelo de sufrágio universal, garantindo a todos o direito de participação do processo de escolha dos representantes políticos, desde que preenchidos os requisitos estabelecidos pela legislação eleitoral para aquisição do status de eleitor. Ainda hoje infelizmente, apesar da ampla proteção à liberdade de voto conferida pela legislação, a democracia permanece sendo uma realidade distante para muitos, em razão das más condições sociais e culturais existentes, que restringem o exercício pleno da liberdade do indivíduo. O papel da propaganda eleitoral... // 303 17.4.1 Alistamento eleitoral O alistamento eleitoral é o mecanismo através do qual um determinado sujeito habilita-se como eleitor perante a Justiça Eleitoral, através do registro de seus dados no Cadastro Nacional de Eleitores. Através deste procedimento, o sujeito comum passa a fazer parte da estrutura da Justiça Eleitoral, compondo o rol de eleitores, recebendo capacidade eleitoral ativa, estando autorizado ao exercício do voto. Através do alistamento eleitoral, o sujeito adquire a cidadania de fato, na medida em que recebe através do titulo eleitoral, o passaporte que autoriza o seu ingresso na construção da vontade política do Estado, sendo o instrumento que o habilita para a participação no processo democrático. Nos termos do que prescreve o artigo 14, §1º, I, da Constituição Federal, o alistamento eleitoral é obrigatório para os maiores de 18 anos. O inciso II da citada norma, prevê as hipóteses de facultatividade, quais sejam: para os maiores de 70 anos, analfabetos e para os maiores de 16 e menores de 18 anos. A obrigatoriedade do alistamento eleitoral está diretamente ligada à idéia de obrigatoriedade do voto, o que para muitos não é compatível com a idéia de um sistema político democrático. Todavia, deve-se ter em mente que a obrigatoriedade é de comparecimento à seção eleitoral e não de exercício de voto efetivo, na medida em que o eleitor pode deixar de realizar o seu voto de modo válido, ainda que cumpra a sua obrigação de comparecimento às urnas. 17.4.2 Direitos políticos Tratam os direitos políticos, da prerrogativa conferida pelo legislador, que possibilita que os membros da sociedade possam participar das decisões do governo. Tais direitos foram destacados pelo legislador constituinte, estando elencados no capítulo IV da Constituição Federal, que também descreve as hipóteses de perda e de suspensão. Os direitos políticos estão diretamente aliados ao ideal de cidadania, e em consequência disso, estão ligados à própria idéia de democracia, haja vista que esta se define pela existência e pelo gozo de direitos políticos. Conforme explica Costa: [...] há um Direito Político que diz respeito ao cidadão propriamente dito, à media que ele representa, com o exercício da cidadania, parte de um todo que constitui a Nação, no seu conceito eminentemente social ou sociológico. A garantia do exercício desse Direito Político, referente ao cidadão, manifesta-se costumeiramente no direito positivo pela definição e declaração de direitos, geralmente abrigados na Constituição. Além disso, expressa-se na conceituação dos direitos políticos, a partir da colocação legal a respeito de eleitores, alistamento, voto, sufrágio universal, exercício, perda ou suspensão desses direitos, elegibilidade, condições de elegibilidade, 304 // Problemas da jurisdição contemporânea... inelegibilidade, partidos políticos (sua formação, constituição e participação, direitos e deveres de seus filiados) etc. (COSTA, 2004, p. 31). De acordo com a doutrina, existem duas espécies de direitos políticos: positivos e negativos. Os direitos políticos positivos ou ativos, tratam do direito do cidadão escolher livremente os seus representantes. Já os direitos políticos negativos ou passivos, consistem na prerrogativa de receber o voto dos demais cidadãos, por ocasião do ingresso como candidato na disputa eleitoral. A capacidade eleitoral ativa é adquirida pelo indivíduo na oportunidade em que realiza o alistamento eleitoral, momento em que o sujeito passa a pertencer ao quadro de eleitores da Justiça Eleitoral. A capacidade eleitoral passiva depende diretamente da existência da capacidade eleitoral ativa, sendo a ela acrescido os critérios de elegibilidade, estabelecidos pela Constituição Eleitoral e pela legislação eleitoral. Por ser um instrumento que garante a própria existência da democracia, os direitos políticos funcionam como uma chave de acesso que garante a participação popular na formação da estrutura política do Estado. Por tal motivo, permitiu o legislador que eventuais condutas que desabonem a figura dos agentes políticos, tenham como medida punitiva a restrição de seus direitos políticos. Neste sentido, a restrição de direitos políticos tem o condão de limitar o acesso ao poder de pessoas que não tenham real compromisso de cumprimento da vontade social e de cuidado com o patrimônio público, conforme prevê o art.37, §4º, da Constituição Federal. Tal restrição foi ampliada pela Lei Complementar nº 135/2010, a chamada “Lei da Ficha Limpa”, que amplicou o rol de delitos que ensejam o registro de inelegibilidade posteriormente ao cumprimento da pena imposta, como medida de proteção da probidade administrativa. 17.5 HABILITAÇÃO DO CANDIDATO A CARGO ELETIVO 17.5.1 Elegibilidade Existem alguns critérios legais que devem ser observados por aqueles que propõe-se a ingressar na disputa eleitoral. Tais condições não tem cunho restritivo, mas apenas regulamentar, no sentido de estabelecer critérios mínimos para que um eleitor exerça seus direitos políticos passivos, ou seja, para que possa tornar-se candidato. O cumprimento de tais exigências, tem como finalidade estabelcer critérios legais objetivos para o ingresso na disputa eleitoral, de acordo com o cargo pretendido, com a intenção de garantir a lisura do pleito e de preservar a soberania nacional. Alem disso, tais critérios tem a finalidade de conferir igualdade de condições de acesso para o ingresso na disputa eleitoral, como para a preservação da própria democracia. O papel da propaganda eleitoral... // 305 O artigo 14, §3º, do texto constitucional elenca algumas condições para que um determinado possa candidatar-se ao exercício de um mandato político, sendo eles: nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral na circunscrição pelo período mínimo de um ano antes da data de realização do pleito, filiação partidária e idade mínima para o cargo pretendido. Tais condições devem ser observadas pelo juiz responsável, por ocasião da proposição do registro de candidatura. 17.5.2 Inelegibilidade A inelegibilidade consiste na condição que impede que um determinado sujeito possa ingressar na disputa para cargo eletivo, em razão da limitação de sua capacidade eleitoral passiva. As hipóteses de inelegibilidade estão previstas na Constituição Federal, e de forma especial na Lei Complementar nº 64/90. Cumpre aqui destacar a atualização apresentada pela Lei Complementar nº 135/2010, vulgarmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, que ampliou o rol de crimes que ensejam o registro de inelegibilidade no cadastro do eleitor, após o cumprimento da penalidade imposta. A inelegibilidade compromete diretamente a capacidade eleitoral passiva do eleitor. Segundo a doutrina, existem duas formas de inelegibilidade: absoluta e relativa. A inelegibilidade absoluta aplica-se a qualquer cargo eletivo, ao passo que a inelegibilidade relativa está limitada ao exercício de mandatos específicos, em razão de algumas condições especiais dos pretensos candidatos, como por exemplo as hipóteses impeditivas em razão de casamento, grau de parentesco ou afinidade, conforme previsto no artigo 14, § 7º da Constituição Federal. Os impedimentos impostos pela legislação, tem o objetivo de preservar o regime democrático, na medida em que restringe o acesso ao processo seletivo daquelas pessoas que, em razão de possuírem determinadas condições particulares, possam comprometer a lisura do pleito, ou até mesmo de afetar o cumprimento dos princípios da moralidade e da probidade administrativa, que são essenciais à manutenção do Estado. 17.5.3 Requisitos adicionais Para que um eleitor detenha capacidade eleitoral passiva plena, ele deve reunir algumas características especiais para o ingresso na disputa eleitoral. Dentre tais características, merece destaque a capacidade eleitoral ativa, pois a elegibilidade é requisito indispensável para a realização do registro de candidatura. Ao apresentar o registro de candidatura, o pretenso candidato deverá comprovar tal capacidade através da comprovação de regularidade da sua inscrição eleitoral. A elegibilidade é pressuposto necessário para a realização do registro de candidatura, mas não é suficiente para um indivíduo tornar-se 306 // Problemas da jurisdição contemporânea... candidato. Além da comprovação das condições de elegibilidade, o candidato deverá igualmente comprovar a inexistência de hipótese de inelegibilidade, através das certidões emitidas pelos órgãos competentes, bem como de sua regular filiação a partido político pelo prazo estabelecido pela legislação eleitoral. Deverão ainda ser observadas as regras específicas de filiação estabelecidas pelo partido no qual o eleitor encontra-se filiado para escolha de um candidato em convenção partidária, cujos critérios devem estar previstos em estatuto, pois “[...] a matéria a respeito dos critérios de escolha do pretenso candidato é, de regra, de competência do partido político, pessoa jurídica de direito privado, motivo pelo qual não compete à Justiça Eleitoral nela intervir.” (STOCO, 2010, p. 197). Importante ressaltar que um determinado indivíduo poderá candidatar-se a apenas um cargo em cada pleito, não sendo autorizada a múltipla candidatura, posto que isso prejudicaria o transcurso equilibrado do processo eleitoral. Deverão ainda ser observadas as hipóteses de desincompatibilização, que podem obstar o registro de candidatura. 17.6 DEMOCRACIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE No verdadeiro ambiente democrático, os cidadãos gozam de plena liberdade de manifestação de sua preferência política. Essa possibilidade de participação indireta na construção da estrutura política do Estado, se dá através dos representantes eleitos, a quem cumpre o dever os interesses da coletividade. A manifestação livre dos representados no processo de escolha é valor essencial da dignidade humana, sendo indispensável para a manutenção da própria democracia, conforme sustenta Cantali “A dignidade da pessoa humana é valor fundante que serve de alicerce à ordem jurídica democrática” (CANTALI, 2009, p. 86). Os direitos da personalidade possuem valor relevante em nossa ordem jurídica, servindo de parâmetro para aplicação dos demais ramos do direito, na medida em que estão diretamente aliados à dignidade humana Não por acaso, mereceu especial destaque do legislador e tem merecido cada vez mais especial atenção dos tribunais eleitorais no julgamento de ações que desrespeitam os direitos da personalidade de candidatos a cargo eletivo, em especial pela má utilização das ferramentas de propaganda eleitoral. Os direitos da personalidade estão ligados à existência da própria pessoa, não sendo um mero valor criado pelo legislador. Tais direitos estão diretamente aliados à dignidade humana e por esta razão, estabelecem a prioridade do indivíduo em relação ao Estado, servindo de limite de aplicação dos demais direitos. Importa no reconhecimento de que a pessoa é a finalidade principal da própria estruturação do Estado, cuja existência se justifica para a preservação da própria sociedade. No âmbito eleitoral, merece especial destaque os direitos relativos à honra e à imagem dos candidatos que ingressam na disputa de determinado O papel da propaganda eleitoral... // 307 pleito, posto que tais direitos são comumente atingidos no exercício da propaganda eleitoral, com objetivo claro de prejudicar o candidato adversário e atingir a sua imagem social, ou seja, a sua honra objetiva, prejudicando o equilíbrio da concorrência. 17.7 PROPAGANDA ELEITORAL E DIREITOS DA PERSONALIDADE A Lei nº 9.504/97 estabelece o período e as formas de realização de propaganda eleitoral, bem como estabelece limites e vedações. A referida norma serve de base para a elaboração do Calendário Eleitoral e para as resoluções expedidas pelo Tribunal Superior Eleitoral para cada eleição, como tentativa de atualizar os mecanismos de proteção de direitos e normatizar as novas formas de propaganda que surgem em razão do constante avanço tecnológico, na tentativa de criar um ambiente equilibrado de disputa. Este assunto merece constante monitoramento do legislador, haja vista o grande público que é atingido por informações que podem gerar impacto direto no resultado das urnas. Por esse motivo, o Tribunal Superior Eleitoral periodicamente atualiza as suas normas, com o objetivo de delimitar a atuação da propaganda eleitoral e garantir a lisura do pleito. Portanto, a propaganda eleitoral constitui um direito-dever dos candidatos, partidos e coligações, na medida em que para exercer este direito, deve-se observar os limites legais estabelecidos pela legislação eleitoral. A verificação do cumprimento destes limites é realizada através do exercício do poder de polícia, através do qual os juizes eleitorais devem coibir o mal comportamento em relação ao exercício da propaganda, para desta forma, garantir a lisura e o equilíbrio do processo de escolha dos representantes. Tais limites devem ser observados por todos os candidatos indistintamente, pois o objetivo da regulamentação do exercício da propaganda eleitoral, é proporcionar um ambiente de competição saudável entre os candidatos, sob a ótica da garantia constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e da preservação dos direitos da personalidade. A propaganda eleitoral é um dos elementos de maior importância na campanha eleitoral, posto que é através deste mecanismo que os candidatos tornam públicas as suas imagens e propostas. Nesta linha de pensamento corrobora Sobreiro Neto: A disputa eleitoral, fenômeno perene e naturalmente efervescente devido aos interesses em jogo, para que cumpra o desiderato de instrumento seletivo do sistema representativo, conta com o mecanismo da propaganda política, criado com o propósito de expor aos eleitores a antítese ideológica vigente e as propostas, partidárias ou individuais, pretensamente factíveis (SOBREIRO NETO, 2008, p. 145). 308 // Problemas da jurisdição contemporânea... Este mecanismo também constitui importante conquista do regime democrático instaurado, e em razão da própria recente história de implantação da democracia em nosso país, é por muitas vezes mal utilizada. Apesar de seu importante papel de cunho informativo, a propaganda eleitoral também possibilita o desrespeito aos direitos da personalidade dos candidatos, sobretudo nos dias de hoje, onde as informações tornam-se globalizadas em segundos, podendo causar danos irreparáveis à vida pessoal e pública do indivíduo que submete-se à disputa de cargo eletivo. Esta postura combativa, em especial nos horários reservados para realização de propaganda gratuita no rádio e na TV, tornaram-se rotina infelizmente nos dias atuais, não havendo preocupação com a preservação dos direitos da personalidade. Com o crescente surgimento de novas tecnologias e meios de comunicação social, o meio jurídico também caminha no sentido de regulamentar as novas situações que se apresentam no âmbito da propaganda eleitoral, bem como de garantir a preservação dos direitos da personalidade dos candidatos. A globalização, a transformação da sociedade e do Estado juntamente com as mudanças visíveis no comportamento da sociedade acerca da percepção de espaço próprio e de limite de invasão do espaço alheio, tornaram comuns os casos de agressão aos direitos da personalidade. Tal situação verifica-se de forma particular no período destinado à propaganda eleitoral que antecede as eleições, período em que a complexidade própria dos ânimos exaltadas dos candidatos, torna o mecanismo da propaganda eleitoral em ferramenta de ataque ao adversário na disputa eleitoral. Sobre as penalidades previstas na legislação eleitoral, verifica-se que em várias hipóteses as mesmas não alcançam o objetivo punitivo almejado, uma vez que a volatilidade da informação propagada alcança tamanha proporção que o prejuízo não pode ser mensurado com precisão. Apesar de existirem penalidades no que tange às práticas abusivas que ocorrem por ocasião da realização da propaganda, o sistema eleitoral nem sempre protege devidamente as violações dos direitos da personalidade dos candidatos, haja vista que seus mecanismos por vezes são mais pedagógicos que punitivos. Claro é que a liberdade de expressão constitui um direito fundamental por excelência de todos os indivíduos, e o seu exercício contribui para o alcance da plena dignidade. Portanto, a liberdade de expressão é essencial para a construção de uma democracia saudável, onde aqueles que se propõem à disputa de um cargo eletivo possam expor suas propostas e idéias sem interferência. Todavia, essa manifestação deve observar o limite de espaço de seus concorrentes, que não poderão ter a sua dignidade atacada sem fundamento. Em razão da busca pela preservação da liberdade de expressão como fruto da construção do ideal da democracia, em especial pelo fato do recente histórico de cerceamento de liberdades que antecederam a edição O papel da propaganda eleitoral... // 309 da Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que nos dias de hoje, uma das principais dificuldades dos operadores do Direito Eleitoral de forma geral, é estabelecer os limites da crítica política. Nesse sentido esclarece o autor Sobreiro Neto: Os atos de propaganda, que apresentem cunho de busca de votos, ou seja, mencionem candidatura (chamadas pré-candidaturas), estarão sujeitos às sanções previstas na lei eleitoral, incluindo-se mensagens subliminares ou técnicas que tragam lembrança de nome ou apelido de notório candidato, com ou sem alusão ao ano eleitoral. A criatividade dos aspirantes ao pleito é grande e muitas vezes o operador do direito deverá observar o contexto fático, segundo a realidade política local (SOBREIRO NETO, 2008, p. 151). A ideia da jurisdição eleitoral, dentro da estrutura política democrática vigente, consiste na ideia de intervenção mínima, pois a liberdade é parte integrante do processo democrático. Todavia, o que tem-se observado nos dias atuais, é uma verdadeira barbárie nos programas eleitorais, onde os candidatos, ao invés de divulgarem suas propostas, promovem ataques ácidos contra os seus adversários. No mais, verifica-se um verdadeiro hábito a realização destes ataques, em especial quando se aproxima da realização do pleito. Esta cultura de ataque está fortalecida junto aos partidos e correligionários, e vem piorando a cada eleição que se realiza. Por essa razão deve haver uma postura mais efetiva no que diz respeito à preservação dos direitos da personalidade, posto que o exercício da democracia não pode diluir tais direitos. 17.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da realização do presente trabalho, verificou-se que a democracia é um instrumento de agregação, indispensável para o estabelecimento de um convívio harmônico, na medida em que permite que qualquer membro da sociedade que adquira a condição de eleitor perante a Justiça Eleitoral, sem distinção de ordem econômica, social ou cultural, possa contribuir de forma ativa para a construção da vontade política do Estado. A Constituição Federal de 1988 é o instrumento de maior importância de defesa da liberdade da participação popular na construção política do Estado, sendo fruto de intensa luta contra a repressão à liberdade política. Por essa razão, o texto constitucional conferiu ampla proteção à dignidade humana, trazendo-a como fundamento do Estado Democrático de Direito, com objetivo claro de abandonar os traços de repressão do regime precedente, que deixaram sérias marcas negativas na história política do nosso país. Através do exercício da liberdade democrática, os indivíduos que adquirem a condição jurídica de eleitor perante a Justiça Eleitoral, podem escolher de forma livre e direta os seus representantes. Podem igualmente, desde que cumpridos os critérios estabelecidos pela legislação eleitoral e 310 // Problemas da jurisdição contemporânea... pela Constituição Federal, habilitar-se para a disputa de cargo eletivo. Neste processo de escolha, a propaganda eleitoral ocupa papel de destaque, na medida em que atua como meio de comunicação direta entre os candidatos habilitados e o eleitorado. Entretanto, esta não é a realidade prática verificada, posto que não raras vezes o mecanismo da propaganda eleitoral é utilizado como ferramenta de ataque, e não como instrumento de comunicação e de divulgação de propostas dos pretendentes ao mandato eletivo. Na maioria das vezes, a propaganda somente é utilizada para desmerecer as qualidades pessoais do adversário político, ao invés de cumprir o papel de divulgação de propostas de plano de governo. Aos julgadores cumpre o difícil papel de verificar os limites aceitáveis das discussões eleitorais, e aplicar as medidas necessárias para fazer cessar os abusos que comprometem a preservação dos direitos da personalidade, para desta forma, garantir que a realização do pleito se dê de forma equilibrada, com efetivo respeito aos direitos da personalidade daqueles que propõe-se à disputa, posto que tal medida é essencial para a manutenção da garantia da própria democracia. Diante da realidade verificada, em que os abusos aos direitos da personalidade no exercício da propaganda eleitoral tornaram-se frequentes, a jurisprudência tem enaltecido a necessidade de preservação dos direitos da personalidade, posto que a liberdade de informação no exercício da propaganda eleitoral não pode ser exercida de forma irresponsável, devendo ser aplicada a penalidade correspondente. 17.9 REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. Trad. Humberto Laport de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2013. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. A Democracia Participativa e a Crise do Regime Representativo no Brasil. In: FACHIN, Zulmar. 20 Anos da Constituição Cidadã. São Paulo: Método, 2008. BRITO, Carlos Ayres. O Humanismo como Categoria Constitucional. 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Ocorreu o fenômeno de constitucionalização do Direito Privado, fazendo com que instituições do Direito Civil fossem elevadas a nível constitucional passando a ser observadas consoante o crivo dos comandos de máxima efetivação dos princípios constitucionais e também do direito internacional dos direitos humanos. Essas modificações foram mais radicais ainda no tocante ao Direito das Famílias, que se tornaram complexas e multifacetárias. Nesse diapasão, surgem novos institutos, como a união estável e ampliam-se as possibilidades jurídicas de família, com o reconhecimento jurídico do afeto, além de construções doutrinárias embebidas em legislações em alienígenas, tal como é o caso dos alimentos compensatórios, que ganham a cada dia, mais relevância nos tribunais. O instituto dos alimentos compensatórios é criação nova no ordenamento pátrio, influenciada diretamente pelos ordenamentos francês e espanhol, e busca restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro existente entre os ex-consortes, restaurando, na medida do possível, o padrão de vida de ambos na constância da relação familiar, seja matrimonial ou extramatrimonial. Com efeito, não há legislação que regulamente os alimentos compensatórios, fato que gera uma verdadeira neblina acerca de sua eficácia e aplicabilidade. Questiona-se, assim, a relevância da aplicação dos alimentos compensatórios como garantidor do princípio constitucional civil da * Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia – Campus Cacoal. Pós-Graduando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS). Secretário de Gabinete Substituto lotado na 3ª Vara Cível da Comarca de Cacoal do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. ** Possui graduação em Direito pela Universidade de Marília (2002), Especialização em Direito Penal e Processo Penal e MESTRADO EM DIREITO pela UNIVEM - Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha de Marília (2006). Atualmente é professora da UNIR - Universidade Federal de Rondônia. 314 // Problemas da jurisdição contemporânea... solidariedade familiar e agente reestruturador do equilíbrio econômicofinanceiro entre ex-consortes. Tal análise se faz importante no sentido em que responde questionamentos e busca apontar diretrizes para a consolidação do Direito Civil Constitucional, que adota como baluartes primados dessa nova hermenêutica constitucional, tais como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a igualdade entre os cônjuges. Para tanto, foi realizado pesquisa de ordem bibliográfica, tendo a problemática sido respondida por meio da utilização do método indutivo, que possibilitou criar um entendimento concreto por meio de embasamentos abstratos. 18.2 ALIMENTOS 18.2.1 Aspectos introdutórios: conceito e natureza jurídica Para fins didáticos, faz-se mister a conceituação dos alimentos consentâneo o entendimento da doutrina majoritária. Assim, Gomes (2002, p. 427) define alimentos como “[...] prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si”. Conforme Gonçalves (2008, p. 449), alimentos compreendem “[...] não só o indispensável ao sustento, como também o necessário à manutenção da condição social e moral do alimentado”. A obrigação de prestar alimentos decorre do direito fundamental de sobreviver. Com efeito, sobreviver implica em garantir a vida, própria ou de outrem, de maneira digna, consoante o disposto no art. 1°, III da Constituição Federal de 1988, princípio delineador das estruturas do Estado Democrático de Direito. Todavia, como consequência da impossibilidade do Estado Mínimo em prover ao indivíduo o necessário para sua subsistência (digna), surge toda a regulamentação acerca do direito de alimentos que, numa visão pós-positivista, deixa de ser compreendido apenas como instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana para se tornar expressão do princípio constitucional da solidariedade. Nesse contexto, a solidariedade geral passa a ser observada pelo prisma da solidariedade familiar. Observa-se que o direito à prestação de alimentos pode ser tido como afirmação do disposto no art. 3°, da Carta Política, que prevê como objetivos da República a “[...] erradicação da pobreza e da marginalização social”. Nesse sentido, preleciona Coelho (2012, p. 195): Nos horizontes delineáveis pelo modo de produção capitalista, a família ainda deve exercer a função assistencialista, afinal em sistemas econômicos, como o nosso, de crises periódicas e injustiças permanentes, é difícil construir-se um programa eficiente de Seguridade Social, e, por isso, a família tende a não se desvencilhar tão cedo do encargo de amparo aos seus, nas enfermidades e velhice. Mesmo que o acúmulo social de força de trabalho permita ao Estado, no futuro, garantir sua recuperação fora da família, os O reconhecimento jurisprudencial... // 315 laços afetivos nela existentes tendem a reservar sempre algum espaço para a assistência aos seus membros. Grifo nosso Muito se debate na doutrina civilista acerca da natureza jurídica dos alimentos. A esse respeito, há verdadeira celeuma entre os estudiosos do direito das famílias que se filiam a diversas correntes teorias, não havendo assim que se falar em qualquer tipo de consenso. Para Dias (2010, p. 506-507), obrigações de natureza alimentar extrapolam o âmbito do direito das famílias, coexistindo, também: “[...] pela prática de ato ilícito; (b) estabelecidos contratualmente; ou (c) estipulados em testamento”, havendo em cada hipótese peculiaridades atinentes à origem da obrigação. No direito de família, propriamente, a obrigação alimentar recebe natureza a depender da fonte da obrigação. Nesse contexto, a obrigação de prestar alimentos possui natureza eminentemente principiológica, decorrendo do poder familiar, “[...] dever dos pais de sustentar os filhos” e da mútua assistência, “decorrente do casamento e da união estável”. Gonçalves, (2008, p. 451) filiado à lição de Gomes (2002, p. 179), conquanto admita a existência das teorias da natureza de direito pessoal extrapatrimonial, e de direito patrimonial, qualifica os alimentos como “[...] direito de conteúdo patrimonial e finalidade pessoal.” A essa corrente, acrescenta-se o posicionamento de Diniz (2008, p. 556) que enxerga nos alimentos natureza mista, em razão de, nas palavras da autora, apresentarem-se como “[...] uma relação patrimonial de crédito-débito”, todavia, tenha sua finalidade destinada à manutenção digna da vida. Vale menção ainda, a teoria defendida por Farias e Rosenvald (2010, p. 669), segundo a qual os alimentos se caracterizam por sua natureza de direito da personalidade, tendo em vista que “[...] se destinam a asseguram a integridade física, psíquica e intelectual de uma pessoa humana”. Tal pensamento parece o mais apropriado sob o crivo da hermenêutica constitucional, uma vez que os princípios da Constituição Federal de 1988 que refletem sobre todo o direito das famílias. Por fim, ultrapassado os questionamentos preliminares, volta-se a pensar do princípio da dignidade da pessoa humana que, consoante a assertiva de Farias e Rosenvald (p. 665), “[...] é a pedra de toque da fixação dos alimentos”, condicionando, assim, toda regulamentação e aplicação desse instituto âmbito do direito civil-constitucional. 18.2.2 Introito histórico A doutrina do direito de família é uníssona a apontar o direito romano como origem do instituto dos alimentos, como é hoje conhecido. Malgrado a obrigação alimentar não se encontrar-se conceituada no direito romano, suas facetas se faziam presentes em diversos institutos, tais como o testamento e a convenção, por exemplo. Todavia, num primeiro momento, ainda do florescimento da monarquia romana, não havia de se falar em prestação alimentar, uma vez 316 // Problemas da jurisdição contemporânea... que, segundo Cahali (2008, p .40): “[...] o pater familias concentrava em suas mãos todos os direitos, sem que qualquer obrigação o vinculasse aos seus dependentes, sobre os quais, aliás, tinha o ius vitae et necis” – o poder sobre a vida e a morte. Assim, nesse momento histórico, aqueles que se encontravam “vinculados ao pater familias não poderiam exercitar contra ele nenhuma pretensão de caráter patrimonial, pois todos eram privados de qualquer capacidade patrimonial” (GULIM; LIGEIRO, p. 7, 2009). A respeito da prestação alimentar no seio da família romana, aduz Pereira (2003, p. 3): Entre os romanos, os alimentos concedidos pelo marido à esposa, diziam-se prestados a título de officium pietatis, espelho da situação de inferioridade, restrição de direitos e discriminação, em que então vivia a mulher, a exemplo dos filhos e dos escravos, submetida à autoridade do pater familias, que sobre eles, inclusive, detinha o poder de vida e morte (ius vitae et nescis). Com a evolução e eventual restruturação da sociedade romana, observa-se uma significativa modificação da estrutura do pater famílias, e como exemplo do exposto, criou-se uma legislação que amparava os cônjuges, ascendentes, ascendentes, descendentes, irmãos e irmãs, transformando o dever social de prestar alimentos em dever jurídico. O direito justiniano traçou os primeiros contornos acerca da obrigação de prestação de alimentos como instituto autônomo. Foi reconhecido a obrigação alimentar “[...] entre ascendentes e descendentes em linha reta ao infinito, paternos e maternos na família legítima, entre ascendentes maternos, pai e descendentes na família ilegítima” (FRANCO; MACEDO et al, 2008, p. 144). Foi no direito canônico que se deu o grande desenvolvimento acerca do instituto dos alimentos, uma vez que, nesse período, foi disciplinado um corpo normativo no qual a obrigação de prestação alimentícia se estendeu sobrepondo os limites da relação matrimonial e familiar. Assim, foram alcançados aqueles vinculados por uma relação de família ilegítima, por parentesco civil e espiritual. Excepcionalmente, o direito canônico admitia a obrigação da Igreja Católica e do Estado em prover o mínimo necessário para aquele incapacitado de prover sua subsistência. 18.2.3 Evolução do instituto dos alimentos no ordenamento brasileiro No direito brasileiro pré-codificado, período marcado pelo início da colonização lusitana e organização das Ordenações Filipinas, já existiam alguns dispositivos que tutelavam o direito objetivo aos alimentos, seja por parte do Estado ou da própria família. Entre outras medidas, era facultado ao juiz prover o necessário para a sobrevivência dos órfãos e garantir que aprendessem a ler e escrever até a idade de 12 anos. Tal fato demonstra que, embora de maneira precária, a obrigação alimentar já existia muito antes do início da vigência do Código Civil de 1916. O reconhecimento jurisprudencial... // 317 Com a evolução dos entendimentos principiológicos sustentadores do ordenamento pátrio no último século, o instituto dos alimentos mudou drasticamente. Com efeito, com o advento do Código Civil de 1916, período no qual ainda se cogitava pensar em pátrio poder, era negado direito subjetivo a alimentos aos filhos ilegítimos, expressão utilizada para determinar – e por que não, discriminar? – aqueles havidos fora do casamento. A situação de reconhecimentos dos filhos espúrios se modificou sensivelmente, com a promulgação das Leis 883/49 e 7.841/89, conforme lição de Dias (2010, p. 503): Somente 30 anos após foi permitido ao filho de homem casado promover, em segredo de justiça, ação de investigação de paternidade, apenas para buscar alimentos. Embora reconhecida a paternidade, a relação de parentesco não era declarada, o que só podia ocorrer depois de dissolvido o casamento do genitor. Somente em 1989, é que foi admitido o reconhecimento dos filhos “espúrios” em face do princípio da igualdade entre os filhos, consagrado pela Constituição Federal. Nesse contexto, a obrigação alimentar decorrente de casamento era atribuída em desfavor do marido para com a mulher, inocente e pobre. A única hipótese em que não subsistiria a obrigação de prestação alimentícia em favor da mulher, era havendo, por parte desta, abandono do lar sem motivo justificado, vez que sua condição de honestidade era condição si ne qua non para a obtenção do benefício dos alimentos. Nas palavras de Dias (2010, p. 503) “[...] para fazer jus a eles, (alimentos), a mulher precisava provar não só a sua necessidade, mas também que era pura e recatada, além de fiel ao exmarido, é claro”. Tal assertiva apenas reforça o perfil conservador e patriarcal da época. Com a Lei do Divórcio, Lei 6.515/77, qualquer dos cônjuges poderia pagar alimentos ao outro. O que se verificava, consoante a previsão legal era qual consorte teve culpa pelo rompimento da relação matrimonial. A lei em comento dispunha em seu art. 19: “o cônjuge responsável pela separação judicial prestará ao outro, se dela necessitar, a pensão que o juiz fixar”. Assim, apenas o cônjuge inocente faria jus à prestação alimentícia, visto que a conduta não eivada de culpa era o pressuposto fático para ser beneficiado com a pensão alimentícia. Afora os dispositivos já mencionados, trataram, ainda que de maneira reflexa, sobre alimentos o Decreto-Lei nº 10/58, o Decreto n.º 6.515/77, a Lei n.º 8.069 e o Novo Código Civil, Lei n.º 10.406/02. Por fim, faz-se mister o comentário de que não só a legislação ordinária discorre acerca dos alimentos, visto que a Constituição Federal de 1988 trouxas em seu bojo normas programáticas que, ainda que de forma implícita, versam sobre esse instituto, a exemplo do art. 229 que estatui: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores Tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade”. 318 // Problemas da jurisdição contemporânea... 18.2.4 Características dos alimentos Tanto os alimentos, quanto a obrigação alimentar propriamente dita, possuem características próprias de seus institutos que, todavia, complementam um ao outro. Para o fim desse estudo, elenca-se algumas das características pertinentes aos alimentos consoante entendimento da doutrina majoritária. 18.2.4.1 Personalíssimo Os alimentos, em razão de se destinarem à subsistência do alimentando, constituem direito pessoal, vale dizer, intransferível. Obtempera Gonçalves: (2008, p. 467) “[...] a sua qualidade de um direito da personalidade é reconhecida pelo fato de se tratar de um direito inato tendente a assegurar a subsistência e integridade física do ser humano”. 18.2.4.2 Incessível Cahali (2006, p.49-50) dispõe que “[...] é direito personalíssimo no sentido de que a sua titularidade não passa a outrem por negócio jurídico ou por fato jurídico”. Tem-se, então que a impossibilidade de cessão de crédito futuro advindo da prestação de alimentos não pode ser objeto de cessão ou qualquer espécie de transferência em decorrência de seu caráter personalíssimo. A esse respeito, prevê o art. 1707 do Código Civil que o crédito decorrente de direito a alimentos é “insuscetível de cessão.” Todavia, esse impedimento é de cunho relativo, haja vista que se a prestação alimentar se encontrar vencida, isto é, já tiver se incorporado ao patrimônio do alimentado, este pode dispor dela como bem entender. 18.2.4.3 Impenhorável Estabeleceu o art. 1707 do Código Civil que o crédito decorrente de direito a alimentos é “insuscetível de penhora”, o que busca resguardar a existência física do objeto garantidor da mantença do alimentando. De forma análoga, veda o art. 649, VII, do Código de Processo Penal a penhora das pensões destinadas ao sustento do devedor ou de sua família. Faz-se mister, todavia, o comentário de que a impossibilidade de penhora está vinculada apenas ao necessarium vitae, podendo ser decretada a penhora do crédito de prestações vencidas. 18.2.4.4 Incompensável Outra das garantias preconizadas pelo art. 1707 do Código Civil é a impossibilidade de compensação dos créditos alimentícios. A compensação, consoante lição de Diniz (1997, p. 172) pode ser entendida como: “[...] um O reconhecimento jurisprudencial... // 319 modo de extinção de obrigação, até onde se equivalerem, entre pessoas que são, ao mesmo tempo, devedora e credora uma da outra”. Uma vez que os alimentos se configuram como o mínimo necessário para a manutenção da vida digna do alimentando, a compensação, ao extinguir total ou parcialmente a obrigação alimentícia, estaria gerando prejuízo irreparável para a sua manutenção. 18.2.4.5 Imprescritível O direito aos alimentos é imprescritível. Vale dizer, o direito subjetivo do indivíduo de postular em juízo o pagamento da prestação alimentícia, não prescreve, ainda que o autor da ação tenha permanecido inerte por vários anos. Todavia, conforme preceitua o art. 206, §2º, do Código Civil prescreve “em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem.” Assim, o que prescreve é o direito de cobrar as parcelas já fixadas em sentença, a partir da data de seu vencimento. 18.2.4.6 Irrestituível Acerca da irrepetibilidade dos alimentos, pondera Dias (2010, p. 511) que, uma vez que se trata de verba destinada a garantir a vida e “[...] se destina à aquisição de bens de consumo para assegurar a sobrevivência, inimaginável pretender que sejam devolvidos”. Conforme já se manifestou a jurisprudência pátria, nem mesmo a desconstituição do vínculo de paternidade, por meio de ação negatória de paternidade, tem efeitos de restituir os alimentos prestados. 18.2.4.7 Intransacionável Essa característica é consequência do caráter indisponível e personalíssimo do direito aos alimentos e se encontra prevista no art. 841 do Código Civil, que permite a transação apenas “[...] quanto aos direitos patrimoniais de caráter privado”. Tem-se, todavia, que a natureza intransacionável está relacionada ao direito de pedir alimentos, uma vez que o quantum pode ser objeto de juízo arbitral ou de compromisso (GONÇALVES, 2008, p. 470). 18.2.4.8 Atual Em decorrência da natureza de trato sucessivo e periódico da prestação alimentar, o legislador previu no art. 1710 do Código Civil atualização monetária segundo índice regularmente estabelecido com fins a impedir que os efeitos da inflação diminuíssem o valor da prestação, o que prejudicaria a mantença do alimentando. O direito aos alimentos deve ser percebido ad futurum, não ad praeteritum, consoante o brocardo in 320 // Problemas da jurisdição contemporânea... praeteritum non vivitur (DIAS, 2010). A necessidade da concessão dos alimentos é inadiável sob pena de prejuízo irreparável ou de difícil reparação. 1.4.9 Irrenunciável Acerca da irrenunciabilidade do direito aos alimentos, dispõe Venosa (2008, p. 355) “[...] o direito pode deixar de ser exercido, mas não pode ser enunciado, mormente quanto aos alimentos derivados do parentesco”. Tal entendimento se mostra conforme o previsto no art. 1707 do Código Civil, malgrado, hoje se tenha o entendimento majoritário da jurisprudência e da doutrina civilista em sentindo contrário. Segundo a corrente mais expressiva, da qual se destaca o posicionamento de Farias e Rosenvald (2010), há de se falar em irrenunciabilidade dos alimentos apenas na hipótese em que o alimentando é incapaz nos moldes dos art. 3º e 4º do Código Civil. Obtemperam: Dessa maneira, apesar da redação do art. 1.707 do Codex, é possível concluir que o entendimento prevalecente é no sentido de que os alimentos são irrenunciáveis, apenas, quando fixados em favor de incapazes, como no exemplo dos alimentos devidos entre pais e filhos ou entre avós e netos (alimentos avoengos). Entre cônjuges, companheiros e parceiros homoafetivos, quando do término do casamento, da união estável ou da união homoafetiva, respectivamente, admite-se a renúncia, sendo vedada a cobrança posterior do pensionamento, até porque a relação jurídica familiar já se extinguiu (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 641). Nesse diapasão, o Enunciado 263 da Jornada de Direito Civil vai no sentido de que o art. 1707 do Código Civil não veda o reconhecimento válido e eficaz de “[...] renúncia manifestada por ocasião do divórcio ou da dissolução da união estável. A irrenunciabilidade do direito a alimentos somente é admitida enquanto subsiste vínculo do direito de família”. A par das características supramencionadas, a doutrina enumera algumas outras, tais como a reciprocidade, inalienabilidade, alternatividade, anterioridade e peridiocidade. 18.3 ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS COMO MEIO DE RESTABELECER O EQUILÍBRIO SOCIOECONÔMICO ENTRE OS EX-CONSORTES O fim do enlace, matrimonial ou extramatrimonial, traz como consequência a modificação de vários aspectos da vida dos excompanheiros. Tais modificações, como regra, não interessam ao Direito, visto que são acontecimentos ordinários, típicos da extinção da entidade familiar. Contudo, ocorrendo a hipótese em que um dos cônjuges tenha por modificado seu padrão de vida econômico de maneira a ameaçar a sua O reconhecimento jurisprudencial... // 321 própria mantença, faz-se necessário uma compensação por parte do excompanheiro, que se dá na figura dos alimentos compensatórios. Alimentos compensatórios são aqueles existentes quando do fim da relação matrimonial, ou de união estável, subsiste a necessidade de “[...] equiparar os perversos efeitos decorrentes da ruptura da conjugalidade, diminuindo as perdas do padrão de vida social e econômico de um dos consortes” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 790). Nesse jaez, faz-se mister a menção à tentativa conceitual de Almeida e Rodrigues Júnior (2012, p. 413) acerca dos alimentos compensatórios, para quem: Considera-se o intuito da prestação compensatória como uma nova técnica substitutiva da pensão alimentícia conjugal, consistindo num pagamento destinado a compensar, no que couber, o desequilíbrio econômico ocasionado pela extinção do casamento e da união estável nas condições de vida do cônjuge ou companheiro. Observa-se que o instituto dos alimentos compensatórios se faz presente apenas nas hipóteses em que foi adotado, seja por força da Lei, seja por manifestação volitiva dos ex-consortes o regime de separação de bens. Ressalva-se que, mesmo nesses casos, não se busca equiparar as condições financeiras daqueles que eram casados ou viviam em união estável, visto que a desigualdade econômica existia ainda durante o período em que conviveram, sendo suprida pelo outro consorte em decorrência do dever de assistência que regia a relação familiar. Na teoria de alimentos compensatórios não se cumpre discutir qual dos cônjuges agiu com culpa para com o fim da relação afetiva, uma vez que o instituto em questão não objetiva a indenização, mas apenas a compensação daquele prejudicado economicamente. Estima-se que, “[...] o que cada um já possuía, perdeu ou deixou de produzir em função do relacionamento” (MADALENO, 2011, p. 20), que poderá ser convertido na forma de pensão compensatória, relativizando-se, assim, o regime da separação de bens. Conforme ensina Gridard Filho (2012, p. 118) os alimentos compensatórios ingressaram nos tribunais brasileiros por meio das influências exercidas pelo direito estrangeiro, a destacar o francês e o espanhol, uma vez que a legislação brasileira ainda não regulamentou propriamente este instituto. Nesse sentido, o instituto dos alimentos compensatórios vem ganhando força na doutrina e jurisprudência pátria com vistas a garantir o princípio constitucional da igualdade entre os gêneros e o princípio da solidariedade familiar, que se entende resistir mesmo ao fim da relação conjugal (SOUZA, 2013, p. 40). Apesar da ausência de previsão legal, o adoção significativa da teoria do instituto dos alimentos compensatórios pelos tribunais se dá em razão dos baluartes deste institutos se moldarem consoante os princípios constitucionais da solidariedade, dignidade da pessoa humana, 322 // Problemas da jurisdição contemporânea... responsabilidade e igualdade, princípios estes fundamentais ao direito de família (PEREIRA, 2010, p. 135). A doutrina pátria acerca dos alimentos compensatórios, apesar de ancorada em legislação e posicionamentos alienígenas, em alguns pontos parece ultrapassar suas fontes de gênese. Exemplo do que foi dito é a possibilidade daquele que vivia em união estável, e não apenas o ex-casado, cobrar alimentos compensatórios, fato que não encontra previsão no direito supranacional. No estudo da origem dos alimentos compensatórios, fala-se muito acerca das regulamentações francesas e espanholas, todavia, cumpre mencionar que o direito Alemão também foi de grande influência no desenvolvimento da teoria pátria. Com efeito, prevê o Bürgerliches Gesetzbuch pensão de natureza compensatória ao ex-consorte que comprovadamente não puder trabalhar e, em forma previdenciária, à parte que se dedicou aos trabalhos domésticos na constância do casamento (PEREIRA, 2010, p. 146). A legislação francesa, já comentada, se distancia das outras no tocante ao caráter definitivo do prestação compensatória. No sistema francês, nem mesmo a comprovada restabilização do equilíbrio econômico-financeiro dos ex-consortes possui o condão de extinguir o dever de prestar alimentos compensatórios. No direito espanhol, em muitos aspectos similar ao francês, não havendo acordo entre os cônjuges o juiz decidirá o quantum a ser pagado observando algumas variáveis previstas em Lei, tais como a idade, o estado de saúde, a duração do casamento e da convivência conjugal, entre outros. Por fim, chama-se atenção à teoria argentina da pensão compensatória. Nesse cenário, o que se observa é um verdadeiro retrocesso quando comparado às doutrinas supramencionadas, em razão do ordenamento jurídico argentino ainda se fundamentar na análise da culpa do cônjuge, tal qual o fazia o Código de Beviláquia, no tocante às pensões alimentares ordinárias, como requisito para concessão de pensão compensatória. Tendo por concluído o comentário acerca da tutela internacional do direito aos alimentos compensatórios, faz-se mister observar as diferenças existentes entre a pensão alimentícia e a pensão compensatória, visto que esta tem como pressuposto uma situação de desequilíbrio econômico entre os ex-consortes, ao passo que aquela nasce da necessidade da parte para se sustentar. Nesse diapasão, a pensão alimentícia regulada em lei (art. 1694, do Código Civil) visa garantir a subsistência do credor no tocante às suas necessidades vitais, de caráter assistencial, ao passo que a pensão compensatória tem como fim restabelecer o equilíbrio econômico entre as partes, sobrevindo, assim, sua natureza reparatória (PRADO, 2005, p. 365) Uma vez comprovado o binômio necessidade possibilidade, o pagamento de pensão alimentícia não impede a fixação, por meio de sentença, de prestação compensatória, por prazo indeterminado e de O reconhecimento jurisprudencial... // 323 observância obrigatória até que a restauração do equilíbrio econômicofinanceiro entre os ex-consortes seja reconhecida, também por sentença. 18.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Hoje descabe a compreensão do Direito como ramo do conhecimento estático, impossível de ser modificado. Noutro giro, a mutabilidade funciona como condição de perpetuação da ciência jurídica e, nesse sentido, cada vez mais novas teorias vão surgindo, como respostas aos desafios e novidades implementados pela pós-modernidade, a exemplo do direito espacial, do direito advindo da evolução da engenharia genética, dentre outros. Prova da ressignificação de postulados experimentada pelo Direito, refere-se à teoria do direito aos alimentos compensatórios, tópico da doutrina internacional, originado na legislação francesa e espanhola, e que hoje já ganha respaldo nos tribunais, a destacar o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Toda a construção moderna a respeito dos alimentos compensatórios se torna relevante, uma vez que se percebe que este instituto tem como finalidade precípua garantir alguns dos mais importantes princípios constitucionais atinentes ao Direito das Famílias. Nesse diapasão, a prestação compensatória ao ex-consorte que sofreu prejuízo com o fim da relação afetiva funciona como mecanismo propulsor de eficácia a princípios tais quais o da solidariedade familiar, e o da igualdade de gêneros. Consentâneo o entendimento recente, os alimentos compensatórios vêm como maneira de relativizar as estruturas imperiosas do regime de bens, a destacar o da separação legal, que muitas vezes, por imposição legal, vai de encontro à vontade dos cônjuges e termina por limitar a solidariedade familiar. Observa-se que no tocante aos alimentos compensatórios, apesar de não haver regulamentação legal, ou talvez por isso, a teoria brasileira se destaca das demais em razão de sua consonância com direcionamentos modernos no campo dos Direitos Humanos. Nesse sentido, não apenas ao ex-cônjuge é regalado a pleitear alimentos compensatórios, visto que os tribunais tem admitindo essa prerrogativa à figura do ex-companheiro. Observa-se que os tribunais brasileiros pacificaram o entendimento do direito subjetivo aos alimentos compensatórios tendo em vista o reconhecimento destes como manifestação oblíqua da tutela, sendo vedada a proteção insuficiente (Untermassverbot). Com efeito, trata-se de inovação, possível de ser observada, no âmbito da jurisprudência e doutrina pátrias, conquanto o Estado refundado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 balizou-se na defesa da dignidade da pessoa humana e nos preceitos da solidariedade social, vindo os direitos fundamentais ao centro da tutela jurídica. Aqui, tem-se um momento de releitura do Direito especialmente o Civil, no qual o centro de proteção jurídica remove-se da esfera do objeto e foca-se no sujeito de direitos. A esse sujeito, a Constituição assegurou uma 324 // Problemas da jurisdição contemporânea... série de prerrogativas, de ordem pública e privadas que diariamente são manifestadas sob o crivo do ativismo judicial; noutro giro, o direito privado passou por uma releitura de compatibilização com a hermenêutica constitucional. Nessa esteira, percebe-se que o direito privado foi despatrimonializado, e um tanto quanto descodificado, uma vez que a disciplina constitucional emprestou pilares e princípios a este ramo do direito privado, com o intuito de consagrar, no que tange à relação horizontal entre particulares, o poder-dever de solidariedade-social. A constitucionalização do direito privado tem como base a tutela da pessoa humana e da dignidade fundamental, as quais constituem a força ativa e determinante das inovações no Direito Civil, com a pretensão de reerguer os destroços do Direito Civil liberal-individualista, estabelecida na Constituição a partir da cláusula geral da tutela da dignidade humana. A hermenêutica constitucional impõe necessariamente o reconhecimento jurídico do afeto, e é esse reconhecimento, no seio de um Estado Social, que determina um comportamento solidário por parte de exc0nsortes e ex-companheiros observado o fim da relação familiar. Reconhecer-se a prerrogativa de pleitear alimentos compensatórios em juízo vem como parte de um movimento maior de ressignificação do direito de famílias, que tem, ainda, como reflexo o reconhecimento em torno da pluriparentalidade e das novas formas de família. Compreende-se o direito de família sob o prisma constitucional, de forma a responder aos desafios da pós-modernidade. É nesse cenário que vem a lume o direito aos alimentos compensatórios que, não obstante a ausência de previsão legal, recebe respaldo, não apenas em legislação internacional, mas também em princípios constitucionais. Por fim, pode-se concluir que os alimentos compensatórios apresentam evolução natural do Direito Civil Constitucional e a sua gradativa discussão na doutrina e na jurisprudência revela a preocupação dos estudiosos e aplicadores do Direito em garantir a solidariedade familiar e amparar aquele que, por qualquer razão, sofrem prejuízo econômico financeiro com o fim da relação afetiva. 18.5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. BUZZI, Marco Aurélio Gastaldi. Alimentos transitórios: uma obrigação por tempo certo. Curitiba: Juruá, 2004. CAHALI, Yussef Said. 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Prestaciones econômicas: derecho de alimentos y pensión compensatória. In: POVEDA, Pedro Gonzáles; VICENTE, Pilar Gonzálvez (Coords.). Tratado de derecho de família. Aspectos sustantivos e procesales. Madrid: Sepin Editorial Juridica, 2005. RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito de Família. 28. ed. v. 6. São Paulo: Saraiva, 2004. SOUZA, Ionete de Magalhães; SIQUEIRA, Heidy Cristina Boaventura. Alimentos Compensatórios e o Equilíbrio Econômico com a Ruptura Matrimonial ou da União Estável. In: Revista IOB de Direito de Família. V. 75, p. 137-144, 2013. SOUZA, William de. O instituto dos alimentos compensatórios e a manutenção do equilíbrio socioeconômico entre os ex-consortes. 326 // Problemas da jurisdição contemporânea... Monografia submetida à Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do título de Bacharel em Direito. Florianópolis: 2013. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 8. ed. v. 6. São Paulo: Atlas, 2008. = XIX = POLITICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS À LUZ DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Jonatas Cesar Dias1 19.1 INTRODUÇÃO A Democracia é um regime de governo do povo que deve respeitar os direitos fundamentais humanos oferecendo a devida guarda (TORRES, apud SARLET, 2003, p. 18), bem como deve proporcionar condições de efetivação dos direitos previstos na Constituição, e nessa seara a educação é melhor compreendida. A realidade nos mostra que os direitos advêm com o amadurecimento da sociedade, ainda que, esporadicamente vemos alguns países desrespeitando esses direitos, e, com isso ocorrem consequências nefastas para efetividade dos direitos humanos, bem como o desenvolvimento individual da pessoa, que necessita, na condição de pessoa ser respeitada pelo “Estado” e receber deste toda a estrutura necessária para o desenvolvimento pessoal, através de uma educação digna. A pesquisa trabalha a abordagem dedutiva, pois os fatos são analisados através de uma perspectiva geral para uma perspectiva especial, levando-se em consideração o contexto global em que se encontram inseridos. Quanto aos procedimentos técnicos utilizados o histórico, comparativo, tipológico e funcional. Os métodos investigativos são o bibliográfico, documental, vez que a pesquisa abrange a consulta de obras doutrinárias, artigos, bem como dos dispositivos legais concernentes ao estudo proposto. 19.2 EDUCAÇÃO NO BRASIL Atualmente, vivenciamos um Estado democrático de direito, que tem através de seus agentes governamentais, planos de políticas públicas que tentam diminuir a desigualdade social no Brasil.Com a educação não é diferente, através de medidas governamentais, os agentes públicos apresentam planos e metas para ampliar o acesso da educação para o maior número de pessoas, todavia, essas medidas se contrapõem a fatos que mais lembram um retrocesso. 1 Mestrando em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal, com ênfase em Direito Penal Tributário, pela Universidade Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Faculdade Paranaense Faccar - Rolândia - PR. Licenciatura em Geografia pela Universidade Estadual de Londrina. Pósgraduado em Filosofia Jurídica e Política pela Universidade Estadual de Londrina. Advogado em Londrina - PR. Assessor Jurídico do Município de Porecatu - PR. Endereço eletrônico: [email protected] 328 // Problemas da jurisdição contemporânea... Entre esses fatos antagônicos, os cortes orçamentários da educação no ano de 2015, que retiraram da educação, quantidade significativas de recursos. Assim, se não estamos conseguindo garantir direitos sociais, e nesta seara mencionamos a educação, como será possível garantirmos uma educação personalíssima, de cunho fundamental, cuja imposição estatal, pode ser transformadora e possível de se realizar transformações sociais gigantescas para todas as pessoas 19.3 EDUCAÇÃO PERSONALISSIMA O desenvolvimento da pessoa ocorre de forma individual, e esta individualidade, junto com a dignidade e pessoalidade compõe a personalidade, e nesta formação destacam-se três elementos fundamentais, a “dignidade, a individualidade e a pessoalidade”, molas propulsoras do desenvolvimento da pessoa (SZANIAWSKI, 2005, p.114). Essa individualidade é inerente ao ser humano, que dessa forma precisa ser livre para desenvolver-se material e espiritualmente. Nesse sentido a educação é a base fundante para o conhecimento, crescimento pessoal, evolução do ser humano e por consequência, a evolução da sociedade em que vive. Dessa forma, um país com vocação democrática deve assegurar investimentos em educação, bem como oferecer meios de efetivação desses direitos, vez que são direitos inerentes à pessoa humana, bem como o fundamento da democracia. Em que pese a constatação da importância da educação, vemos nos dias atuais, descasos com a causa educacional, e neste ponto destacamos a retirada de investimentos na educação, bem como a concessão de incentivos fiscais que retiram milhões da educação e, concedem a grandes conglomerados internacionais, milhões de reais na forma de benefícios tributários. Nesse sentido, para se analisar o caso mencionado, citamos Perez que afirma ser a “[...] globalização tão dominante que qualquer análise que se faça das sociedades nacionais só tem sentido se for realizada a partir do contexto da denominada aldeia global” (PEREZ, 2008, p. 19). Dessa forma, os governos interessados em esconder esse tipo de política perversa, criam pseudo programas com metas educacionais a serem atingidas, todavia, tudo não passa de uma mera fantasia criada para esconder a saída de recursos para os interesses econômicos financeiros, ou seja, em detrimento da educação. Cumpre destacar que atualmente, no artigo 6º, e do 205 a 214 da Constituição de 1988, tratam o direito à educação como um direito de cunho social, de forma que a sociedade possa ser igualitária e ofereça oportunidades que possam garantir o mínimo de dignidade humana (BOTO, 2005). O direito educacional também orbita sobre as normas infraconstitucionais tais como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Plano Nacional de Educação, Estatuto da Criança e Adolescente. Internacionalmente, nos tratados em que o Brasil seja signatário, também Políticas públicas educacionais... // 329 devemos observar o regramento legal, vez que eles também ingressam no ordenamento interno. Oliveira, acerca da educação na Constituição Brasileira de 1988, afirma que houve “um salto de qualidade relativamente à legislação anterior, deslocando o debate da efetivação desde direito, da esfera jurídica para a esfera da luta social” (OLIVEIRA, 1995, p. 3). No Brasil, a fonte de princípios educacionais são os artigos 205 a 214 da Constituição Federal, como bem define Nelson Joaquim, a Constituição Federal do Brasil deve ser considerada “a fonte primeira e fundamental do Direito Educacional Brasileiro” (JOAQUIM, 2006, p. 2). Nesse sentido, a Constituição Federal também assegura através do princípio da efetividade, que a norma constitucional deve ser ampla, eficaz e aplicável a todos. No Brasil, Em que pese a previsão constitucional, conforme mencionado, ainda existem obstáculos que precisam ser transpostos, sobretudo em razão da herança “patrimonialista e privatista”, que são barreiras que devem ser transpostas a fim de garantir a efetivação dos direitos constitucionais fundamentais (FACHIN, 2008, p. 160). Ainda nesse rumo, a Constituição veio alçar o direito à educação como um direito social, todavia “[...] não se pode esquecer que os direitos sociais têm como objetivo corrigir desigualdades próprias das sociedades de classe, aproximando grupos ou categorias marginalizadas” (DUARTE, 2003, p. 254), ou seja, o mínimo necessário para o desenvolvimento de uma sociedade. Fato curioso foi que, com a ocasião do fim da ditadura militar no Brasil e transição para a democracia, em alguns países “desmoronava o socialismo real, o estado de bem estar social aprofundava sua crise” de forma que o que se viu no Brasil foi o contrário (OLIVEIRA, 1999, p. 222), uma constituição que veio dar garantias que o mundo já não conseguia oferecer. Sendo a Constituição fonte primeira, existem outras fontes complementares que fazem parte do sistema e tem sua orbita em torno da norma maior, direcionando o Direito Educacional no Brasil. Segundo Nelson Joaquim, há também um direito internacional à educação, de forma que estão inseridos em “[...] declarações, tratados, convenções, cartas de princípios, compromissos, protocolos e acordos internacionais” (JOAQUIM, 2006, p. 2).O Direito educacional pode ser debatido em diversas frentes de importâncias, vez que inúmeras são as relações que ensejam discussões pormenorizadas, todavia nos interessa a discussão do Direito à Educação como direito personalíssimo. Na construção desse conceito devemos analisar a dignidade da pessoa humana, que deve ser o ponto de partida para identificarmos o conceito de pessoa e personalidade. A dignidade humana constitui o fundamento que valora o ser humano como tal, sendo irrenunciável e inalienável. Neste sentido, explica Sarlet, que deve ser protegido, vez que é uma qualidade inerente da pessoa humana (SARLET, 2007, p. 366). Na construção do conceito de direito à educação como direito da personalidade é necessário discorrer sobre o que é Homem, o que é pessoa humana e de igual sorte entender o que é personalidade, pois “Quando o jurista decide abordar a matéria da tutela e direitos de personalidade, é de 330 // Problemas da jurisdição contemporânea... imediato confrontado com um enorme desafio: saber o que é o Homem, saber o que é a pessoa humana” e por fim desvendar o véu do sentido personalidade (GONÇALVES, 2008, p. 14). Para Ivan Motta e Cássio Marcelo Mochi, citando o pensamento de Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Sousa, os direitos da personalidade seriam de natureza civil com relações com outros ramos do direito, nestas incluídos o direito penal e constitucional (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8250). Cumpre destacar que cabe ao Estado garantir educação a todos, vez que a Constituição Federal determinou inserindo no texto constitucional diversos artigos diretivos nesse sentido. No sentido personalíssimo, em razão de questões de dignidade humana. Para Motta e Cochi, a educação é considerada um direito social exercido de imediato, sobretudo pelo tempo que não espera, portanto sua tutela deve ser sempre antecipatória (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8264). Neste contexto, para garantir tal eficácia de evolução desses direitos é necessário que o país tenha condições de sustentar e pagar tal benefício, ou seja, é necessário um conjunto de esforços, tanto da sociedade, quanto dos agentes governamentais, para garantir educação plena, esse é posicionamento de Cléverson Merle Cléve acerca dos direitos sociais (CLÈVE, 2006, p. 38). Sendo considerados direitos sociais, ainda assim o Estado é irresponsável, como cobra-lo em sentido personalíssimo, vez que ampliaria a camada social educacional, ou seja, educação para todos, independentemente de condições. Nelson Joaquim defende a idéia de que o “[...] direito à educação é um direito fundamental da personalidade e não um direito social de segunda geração, compreendendo-o como direito subjetivo privado que apresenta características do direito da personalidade (art. 11 do Código Civil)” (JOAQUIM, 2006, p. 2). Assim, esse direito personalíssimo deve ser garantido, independentemente de ordenamento ou princípios, vez que não estaria este atrelado ao direito posto e sim ao fato da existência do ser humano, que segundo Nelson Joaquim, a violação desse direito acarreta irreversível “danos para pessoa, o Estado e sociedade” (JOAQUIM, 2006, p. 2). Evoluindo em sua educação cultural, os gregos muito contribuíram com a evolução dos direitos da personalidade da atual sociedade ocidental, entre eles, o direito de ter acesso ao cadáver e de igual sorte dispor dele de forma digna (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8248). No império Romano também houve evolução, vez que vigendo a lei das 12 tabuas, foi permitido a inclusão do acesso a justiça a todos os cidadãos, entre outras que, com o tempo vieram a dar garantias contra violações ao direito da personalidade, sobretudo a partir do cristianismo, pois ficou evidente o pensamento de garantir a dignidade humana (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8248). Assim, a evolução desses direitos custou longos séculos, influenciados por fatores históricos, ainda hoje busca garantir a efetividade desses direitos, ainda assim, as vezes vemos uma mitigação dos direitos fundamentais por estar condicionado a questões políticas governamentais Políticas públicas educacionais... // 331 que influenciam nas garantias destes direitos. Para Ivan Motta e Cassio Marcelo Mochi, o desafio a ser enfrentado é a efetividade do direito à educação frente à constituição, de forma que não seja apenas promessas do Estado, mas sim, tenha um cumprimento de fato, voltado para formação do homem (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8266). Conclui o autor questionando até que ponto seria o direito à educação um direito social, se na verdade devemos buscar a satisfação personalíssima, tal como desenharam os gregos na antiguidade (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8267). No contexto das garantias que cabe ao Estado, a este não é permitido retrocesso social, de sorte que os direitos adquiridos até o presente devem ser resguardados minimamente, assim garantindo a continuidade dos mesmos. Ainda nesse sentido, para Cristina Queiroz, o não retrocesso significa também que o legislador também não deve retroceder, revogando ou retirando os direitos já conquistados, e, se assim o permitir, deve antes de mais nada apresentar alternativas no sentido de garantir compensações com outros programas (QUEIROZ, 2006, p. 116), assim fazendo permanecer as raízes da arvore plantada anteriormente, que continuarão a florescer e dar frutos? Alem de garantir os direitos fundamentais, ao Estado também é obrigado a criação de mecanismos de efetividade de fruição dos direitos, assim a ele cabe organizar políticas públicas no sentido de tornar esses direitos eficazes. Para Canotilho, “[...] a partir da garantia constitucional de certos direito (2) se reconhece, simultaneamente, o dever do Estado na criação pressupostos materiais indispensável ao exercício efectivo desses direitos e a faculdade do cidadão exigir [...]” (CANOTILHO, 1991, p. 554). Nesse sentido não é possível apenas medidas constitucionais ou legislativas, vez que a efetividade deve ser oferecida pelo Estado a partir de mecanismos práticos de implantação de políticas públicas, eis que se assim não ocorrer, seria o mesmo que não ter leis que assim o assegurasse. Outra questão importante, dentro dessa perspectiva, vez que o Estado esta sempre a satisfazer suas necessidades, e no caso brasileiro, tal como posto constitucionalmente, para preparar o homem para o mercado do trabalho, isso não é o suficiente para desenvolvimento livre da sociedade, posto que o regramento é dado pelo Estado (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8267). Gilmar Mendes acerca dos direitos fundamentais na Alemanha, sobretudo em razão da jurisprudência local, afirma que “[...] objetivo dos direito fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster e intervir no âmbito de proteção desses direitos contra agressão ensejada por atos de terceiros” (MENDES, 2006, p. 11). Melhor alternativa seria garantir mecanismos de acesso à Educação, de forma livre, voltada para a satisfação pessoal da pessoa, respeitando o desejo individual de cada um, oferecendo opção de como esse indivíduo prefere ter acesso à educação, independentemente de regramento constitucional ou infraconstitucional, vez que esse é um direito inerente ao ser humano, portanto, um direito a ser 332 // Problemas da jurisdição contemporânea... exercido sem obstáculos, de garantia plena e irrestrita, o direito à educação não pode ser apenas um direito social, mas sim um direito personalíssimo. De todo o exposto, podemos concluir que a educação é um direito fundamental social do ponto de vista histórico, todavia para exercer a cidadania, a educação deve ser considerada um direito personalíssimo. De outro norte, nas relações privadas não seria possível essa aplicação, eis que não seria possível obrigar o privado a garantir os mesmos direitos oferecidos pelo Estado, ainda mais por estar o privado na mesma posição da pessoa, e ainda por ser pessoa, não física mas pessoa jurídica privada exercendo concessão pública. Apenas a partir da horizontalização dos direitos fundamentais é possível olhar a educação como direito da personalidade. Assim, cabe ao Estado proteger o sujeito de acordo com o conteúdo e ainda, seja efetivo na aplicação desses direitos, assim a educação não pode ser vista como um direito social de segunda geração, deve ser visto como um direito da personalidade. Em sentido contrário, temos o pensamento de Nelson Joaquim, para quem a educação é um direito humano, de eficácia transversal, todavia esse não seria o caminho, eis que ainda não esta amadurecido suficiente para essa compreensão. 19.4 OBJETIVOS DE UMA EDUCAÇÃO PERSONALISSIMA Quanto aos objetivos, o artigo 205 da Constituição Federal deve ser trabalhado a partir do olhar para o crescimento livre da pessoa, não um direito social, mas um direito fundamental personalíssimo, que possa ser eficaz para o desenvolvimento do ser humano, não apenas para desenvolve-lo para o trabalho, mas para desenvolve-lo como pessoa, espiritualmente e materialmente. Quanto a ideia de efetividade em nosso ordenamento para que possa ser eficaz, necessário melhor discussão no sentido de distribuição dos recursos educacionais, eis que não é possível melhor aproveitamento dos recursos sem que se tenha políticas de distribuição desses recursos também eficaz e dessa forma necessita maiores discussões acerca da distribuição desses recursos. Portanto para aplicação desses recursos e aproveitamento para o desenvolvimento da pessoa é necessário discutirmos a competência dos entes públicos que fazem a gestão dos recursos. 19.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Através desse pequeno ensaio, logo podemos concluir ser necessário haver mudanças de paradigmas tanto pelo Estado, na condição de agente propulsor do desenvolvimento educacional público, vez que cabe a ele oferecer e criar condições para uma plena educação da pessoa, não apenas como preparo para o trabalho e cidadania, mas como ser humano, para o pleno desenvolvimento da pessoa. Assim, é preciso, mais uma vez, a fiscalização e acompanhamento dos atos governamentais, exigindo que Políticas públicas educacionais... // 333 sejam aplicados recursos suficientes para custear uma educação eficiente e abrangente. 19.6 REFERÊNCIAS CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional 5. ed. Coimbra: Almeida, 1991. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Viltal. Fundamental da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. CLÈVE, Clèverson Merlin. A eficácia dos direitos Fundamentais e sociais. In: Revista Constitucional e Educacional e Internacional. n.54, São Paulo: Revista dos tribunais, jan-mar 2006. GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e Direitos da Personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008. FACHIN, Luiz Edson. Internalidade e Externalidade no Debate sobre Constituição e Relações privadas: um olhar a partir do revisitado Locke. In: FACHIN, Zulmar (Coord). 20 anos da Constituição Cidadã. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2008. 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São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. 334 // Problemas da jurisdição contemporânea... = XX = POLÍTICAS PÚBLICAS, LIAME QUE GUARDA UMA JUSTIÇA ALICERÇADA NA VIDA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Alessandro Severino Valler Zenni* Caroline Christine Mesquita** Daniela Menengoti Ribeiro*** 20.1 INTRODUÇÃO O princípio da dignidade da pessoa humana foi por alguns anos preterido, interpretado de forma equivocada, hodiernamente ao mesmo vem sendo concedida profusa importância, tendo em vista que, reconhecidamente, o referido assenta-se todo o ordenamento jurídico brasileiro. Desta forma, pode-se afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana possui o status de mega-princípio, no sentido de que todos os demais princípios e normas, em suas diversas acepções, devem ao mesmo curvar-se. Tal afirmação é tão intensa que se qualquer princípio não estiver em consonância com o da dignidade humana, será tido como inconstitucional ou conflitante com o ordenamento jurídico brasileiro, devendo ser alterado seu conteúdo informador ou forma de interpretação, ou até mesmo extirpado do ordenamento jurídico. Ato contínuo, conceder a dignidade para todos é tarefa dificultosa e inafastável do Estado. Tarefa esta que assenta-se verdadeiramente em * Professor do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1991), mestrado em Direito Negocial com área específica em Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Estadual de Londrina (1997) e doutorado em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Pós-Doutor na Universidade de Lisboa. Atualmente é professor concursado titular em Direito e Processo do Trabalho na Universidade Estadual de Maringá, Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel Univel, professor titular - Faculdades Maringá, professor da União de Faculdades Metropolitana de Maringá, professor t-40 do Centro Universitário de Maringá. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direito e Processo do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: transdisciplinariedade, contemporaneidade, trabalho, prova e dignidade. Endereço eletrônico: <[email protected]>. ** Mestranda do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Bolsista da CAPES. Especialista em direito previdenciário e direito do trabalho pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania. Advogada. Endereço eletrônico: <[email protected]>. *** Professora do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - PanthéonSorbonne, França. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com período de pesquisa no Mestrado em Integrazione Europea da Università Degli Studi Padova, Itália. Endereço eletrônico: <[email protected]>. 336 // Problemas da jurisdição contemporânea... caráter utópico, tendo em vista tamanha subjetividade do princípio em pauta, não se excluindo, contudo, sua relevância e, necessária, efetividade, a qual não dá margem ao relativismo dos dirigentes do Estado. 20.2 DIREITO DE VIVER Antes de abordar o conceito de vida, suas certezas ou incertezas, imprescindível desenvolver três aspectos prévios diretamente ligados ao direito à vida, tais como, o conceito de vida humana, o início da vida humana no direito brasileiro e o direito de nascer. Inicialmente, mister apresentar a preceituação de Antônio Chaves (1986, p. 9), o qual considera que a vida é algo que oscila entre um interior e um exterior, entre uma alma e um corpo. Nesse aspecto, o conceito de vida é entendido, para o Dicionário da Língua Portuguesa como, “[...] atividade interna substancial, por meio da qual atua o ser onde ela existe. Duração das coisas; existência. União da alma com o corpo. Espaço de tempo compreendido entre o nascimento e a morte do ser humano” (BUENO, 1980, p. 1816). Na visão do constitucionalista José Afonso da Silva (2009, p. 198), vida é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade, que se instaura com a concepção, transforma-se, progride, mantendo sua identidade. Sendo ainda, ela é fonte primária de todos os outros bens jurídicos, pois, de nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, se não erigisse a vida humana num desses direitos. Portanto, um questão polêmica e de acirradas discussões no Direito Brasileiro, consiste em estabelecer o exato momento que se inicia a vida humana, amplamente debatida pela doutrina pátria. Nesse particular, importante é a contribuição de Adauto de Almeida Tomaszewski (2006, p. 190), o qual compreende que a vida inicia pela concepção, posto que em sede de estudos biológicos, pode-se afirmar que o desenvolvimento humano começa na fertilização. No mesmo sentido, Elimar Zsaniawiski (2005, p. 146), o qual aduz que a vida dá origem à personalidade do ser humano, sendo que a vida já existe nas células germinativas dos pais do indivíduo. Desse modo, o este jurista revela que o direito à vida existe em qualquer ser humano, independentemente do seu nascimento, de sua classe social, ou de seu estado psíquico ou físico, ou do lugar onde esteja vivendo, quer na sociedade, quer no ventre materno, quer em um tubo de ensaio, todos são seres humanos vivos. Porquanto, “[...] o direito à vida envolve não apenas os elementos materiais e biológicos da pessoa humana, mas também os morais, emocionais e espirituais” (VIEIRA, 2009, p. 83). Nesse sentido, vida “[...] é um direito inato, na medida em que respeita ao indivíduo pelo simples fato de este ter personalidade” (CUPIS, 2004, p 72). Logo, Maria Helena Diniz (2009, p. 22) alega que o direito à vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer e o de Políticas públicas... // 337 continuar vivo. Seguindo esta linha, sublinha-se que a centralidade para qualquer ordem jurídica é o direito à vida, tamanha sua importância, ele é resguardado em inúmeros tratados internacionais1. Da mesma forma, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas de 1968, explica que o direito à vida é inerente à pessoa humana e que esse direito deverá ser protegido pela lei, além de dispor que ninguém poderá ser privado de sua vida (MENDES; BRANCO; COELHO, 2009, p. 394). A polêmica se estende para a questão do direito de nascer e de não ter impedido o desenvolvimento de sua vida, desdobramento da interpretação do artigo 2o do Código de Civil, o qual exara que: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (BRASIL, 2015-d). Isso posto, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, ditam que antes de nascer o nascituro não tem personalidade jurídica, mas tem natureza humana, humanidade, razão de ser de sua proteção jurídica pelo Código Civil: Infans conceptus pro nato habetur2; sendo, portanto, o direito de nascer o primeiro do homem (NERY JUNIOR; NERY, 2007, p. 185). Por tais linhas, o nascituro tem assegurado, na legislação brasileira, o direito de nascer tendo em vista constituir crime3, o seu abortamento. A própria Constituição Federal de 1988 consagra, como fundamento da República, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana. Mais ainda, o artigo 5º em seu caput garante a todos o direito à vida, este bem jurídico de máxima importância. De tal forma se apresentou o direito à saúde que a Lei Maior dedicou seção exclusiva ao tema, nesta o artigo 196 expressa: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 2015-a). A norma transcrita enuncia direito subjetivo do particular correspondente a um dever jurídico estatal. É, na classificação da doutrina constitucionalista, norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, 1 A Convenção Americana de Direito Humanos, que firmou o Pacto de San José da Costa Rica de 1969, declara, no seu artigo 4º, declara que "[...] toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente". (BRASIL. Tratado Internacional de 1969. Pacto de San José da Costa Rica. Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso em: 24 ago. 2015-k). 2 Segundo Maria Helena Diniz: “O nascituro é considerado nascido sempre que isso possa trazerlhe qualquer vantagem”. (DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3.ed. v.2. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 907). 3 Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. (BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 24 ago. 2015-b). 338 // Problemas da jurisdição contemporânea... conforme disposto no artigo 5, parágrafo 1º, da Carta Magna, independendo assim de qualquer ato legislativo, aguardando-se tão somente a efetivação pela administração pública. Mais especificamente, o artigo 198 lança as diretrizes que norteiam a atuação do Estado na efetivação do acesso ao serviço de saúde, dentre as quais se destaca, especialmente, a contida no inciso II: As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: [...] II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (BRASIL, 2015-a). Importante, ainda, apresentar que o artigo 2o da Lei 8080/1990 reafirma que: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (BRASIL, 2015-c). Por sua vez, o mesmo diploma legal, em seu art. 6, inciso I, alínea “d” assegura a assistência farmacêutica integral. Assim sendo, impõe a Carta Maior como prestação positiva do Estado o acesso à saúde, sendo tal direito de segunda geração conforme a tradicional classificação de Norberto Bobbio (1992, p. 1-65). Conferindo efetividade máxima à Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal aduz que: O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrarse indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional (BRASIL, 2015-j). No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, o qual firmou entendimento de que: A CF/1988 erige a saúde como um direito de todos e dever do Estado (art. 196). Daí, a seguinte conclusão: é obrigação do Estado, no sentido genérico (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação necessária para a cura de suas mazelas, em especial, as mais graves. Sendo o SUS composto pela União, Estados e Municípios, impõe-se a solidariedade dos três entes federativos no polo passivo da demanda (BRASIL, 2015-f). O direito à vida, sob essas premissas, é o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados, visto que é condição de todos os outros direitos fundamentais. Tendo em apreço que o conteúdo jurídico objetivo da proteção do bem da vida humana implica, de forma incontornável, o reconhecimento do dever de proteção do direito à vida digna, quer quanto Políticas públicas... // 339 ao conteúdo e extensão, quer quanto às formas e meios de efetivação desse dever (CANOTILHO, 2007, p. 446-447). Logo, a Carta Magna resguarda a vida humana vivida com dignidade. Posto que, O direito à vida e à saúde, entre outros, aparecem como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual (MORAES, 2005, p. 2041). Desse modo, o direito a vida digna é um dever o qual os entes federados não podem se furtar, quando as circunstâncias do caso concreto indicam ser determinada medida à adequada para a preservação da vida digna da pessoa humana. Em suma, e seguindo o posicionamento do jurista Paulo Bonavides (2010, p. 590-592), nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana, que se consubstancia com a proteção à vida, pois, sem esta não há como aquele ser plenamente exercido. À luz dessas ponderações, aprese vista ao caso de Joãozinho, que nasceu prematuro, consequentemente, seus pulmões não se formaram integramente, isto é, não possuía capacidade de respirar por conta própria, necessitando ser entubado. Devido ao fato de ser submetido a equipamentos de ventilação mecânica, em um estágio de sua vida, onde seus pulmões não estavam completamente formados, desenvolveu um quadro de broncodisplasia pulmonar, CID J. 21.9. Esta torna o pulmão mais susceptível ao desenvolvimento de doenças, além de torna-lo mais sensível ao agravo destas. Logo, é necessário uma medicação, palivizumabe, que proteja o menor contra micro-organismos, os quais podem desenvolver doenças mais graves, como pneumonias, ocasionado até mesmo a morte (BRASIL, 2015e). Sendo assim, torna-se indispensável o fornecimento do medicamento para que seja minorado o sofrimento de Joãozinho e tantos outros brasileiros, pois a saúde é um direito fundamental, garantido pela Constituição Federal. Ainda mais que, um dos princípios norteadores do direito à saúde é a integralidade da assistência, integral quer dizer completa, não se pode negar a um cidadão o direito a uma vida digna, principalmente quando o meio para que se alcance a dignidade é o auxílio necessário para o tratamento de saúde. 20.3 POLÍTICAS PÚBLICAS E A CONGRETIZAÇÃO DOS DIREITOS As políticas públicas devem ser vislumbradas como um campo de estudo jurídico, o qual se abre para a interdisciplinaridade. Objetivando-se, assim, realizar o direito, com vistas as demandas sociais que fundamentam a construção das formas jurídicas. 340 // Problemas da jurisdição contemporânea... Nesse debate, delineia-se como linha de trabalho mais fecunda a da admissão das políticas públicas como programas de ação destinados a realizar, sejam os direitos a prestações, diretamente, sejam a organização, normas e procedimentos necessários para tanto. As políticas públicas não são, portanto, categoria definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos, típicos da atividade politico-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico (GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO; DERANI; AITH; BERCOVICI; RODRIGUES; PEREZ; GRANZIERA; BUCCI; MASSA-ARZABE; CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 31). Assim, políticas públicas definem-se como programas de ação governamental, em cuja formação há um elemento processual estruturante, o que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados. Posto que, os processos contribuem para moldar as decisões, cabe, portanto, trazê-los a lume de modo racional, compreendendo as formas pelas quais os próprios processos e seus pressupostos de formação tornamse objeto de decisão, conscientemente informada de suas injunções políticas. No sentido político, o poder judiciário é o fator de estabilização da ordem estatal baseada na lei, única vez que é a ele que compete a decisão última sobre os conflitos, com caráter vinculante e cogente. Processo, no diapasão, segundo abordagem consagrada na teoria e na prática jurídicas, é precipuamente um fenômeno jurisdicional, uma vez que o processo é o procedimento que, adequado à tutela dos direitos, confere legitimidade democrática ao exercício do poder (BUCCI, 2013, p. 109-113). Nestes termos, o poder de violência simbólica, embora atue por dissimulação, tem um limite na própria situação comunicativa, portanto, nas regras de calibração do sistema. [...] Isto significa que não há, do ângulo pragmático, uma "força intrínseca da idéia do Direito", pois são sempre as relações de força que fornecem os limites dentro dos quais pode agir a força de persuasão do editor normativo no sentido de que todo discurso normativo pressupõe uma delegação de autoridade; assim, mesmo uma autoridade que pretenda encontrar por si mesma o princípio de sua consistência (por exemplo, um sistema normativo de fundamento carismático, em termos de Weber), só se exerce na medida em que se apóia sobre uma delegação de autoridade (ainda que tácita e virtual) anterior (FERRAZ JUNIOR, 2006, p. 177-178). Dessa maneira, o ideal de uma política pública, vista pelo direito, não se esgota na conformidade do seu texto com o regramento jurídico que lhe dá base, nem na eficácia jurídica, que se traduz no cumprimento das normas do programa. Ela resulta na concretização dos objetivos sociais a que se propôs, com há obtenção dos resultados determinados, dentro de um certo espaço de tempo. Porquanto, pensar em política pública é buscar a coordenação, na atuação dos poderes públicos, executivo, legislativo e judiciário. Por essa razão, evidencia-se que para o estudioso do direito é Políticas públicas... // 341 extremamente difícil sintetizar em um conceito a realidade multiforme das políticas públicas. Pois, esta carrega elementos estranhos às ferramentas conceituais jurídicas, tais como os dados econômicos, históricos e sociais de determinada realidade que o poder público visa atingir por meio do programa de ação (GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO; DERANI; AITH; BERCOVICI; RODRIGUES; PEREZ; GRANZIERA; BUCCI; MASSAARZABE; CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 41-46). Como resultado, a [...] política pública é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público. Vejamos esta definição em detalhe: uma política pública é uma orientação à atividade ou à passividade de alguém; as atividades ou passividades decorrentes dessa orientação também fazem parte da política pública e resposta a um problema público; em outras palavras, a razão para o estabelecimento de uma política pública é o tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente relevante (SECCHI, 2012, p. 2). Opera-se, neste arranjo institucional uma distribuição de papéis, ou de posições subjetivas jurídicas, com ou sem significado econômico direto. Isso porque a política pública não envolve apenas o poder Público, de um lado, e os beneficiários do programa, de outro, mas, com frequência, dispõe sobre as condições de participação de agentes privados no programa. Dessa forma, a política pública que constitui campos de atividade econômica e social, a norma instituidora define agentes e disciplina seus deveres, direitos, faculdades e feixes de relações recíprocas em torno do objeto daquele programa, conferindo condição de repetitibilidade aos vários papéis, o que representa o seu grau de institucionalização. A organização, neste caso, consiste na configuração de posições ou situações pelo arranjo institucional. Com isso, passa a haver complementaridade entre as dimensões objetiva e subjetiva contidas no arranjo institucional que materializa a política pública (BUCCI, 2013, p. 276-278). A análise do processo político em termos dos ciclos e dos subsistemas políticos ajuda a conceituar essas dinâmicas fundamentais como também facilita a análise dos dois termos. A identificação dos estilos, dos subsistemas, dos paradigmas e dos regimes políticos característicos por meio da análise dos estágios do ciclo político-administrativo permite estabelecer uma linha de base em relação à qual se pode medir a mudança. Somente a observação cuidadosa do comportamento do subsistema irá esclarecer tendências à mudança política atípica, envolvendo rompimento significativo, embora não necessariamente total, com o passado, cm termos dos objetivos políticos globais, da compreensão dos problemas públicos e suas soluções e dos instrumentos políticos usados para colocar as decisões em prática (HOWLETT; PERL; RAMESH, 2013, p. 236). Consequentemente, a estrutura da política pública permite o encaminhamento e tratamento do problema de forma mais razoável, o que vem possibilitar aos agentes causadores do problema em questão uma reconceitualização de si, de suas próprias ações frente ao mundo e da 342 // Problemas da jurisdição contemporânea... realidade de seu entorno (GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO; DERANI; AITH; BERCOVICI; RODRIGUES; PEREZ; GRANZIERA; BUCCI; MASSA-ARZABE; CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 57). Forma-se, então, uma tradição, ao mesmo tempo célica em relação às possibilidades do Estado não condicionadas pelos interesses das classes dominantes, mas dependente desse mesmo Estado como instrumento necessário para a "transição" a um outro tempo e modo econômico e social. Essa ambiguidade dificulta a compreensão e a elaboração mais refinadas do papel e dos meios de ação do Estado (BUCCI, 2013, p. 93). Mister, na passagem, denotar que os órgãos e instâncias diretamente envolvidos na execução da política, assim como entidades do setor privado, não agem em livre discricionariedade, mas guiados e vinculados numa perspectiva ampla, pela Constituição e pelos tratados internacionais de direitos humanos, e numa perspectiva estrita, pelos princípios, diretrizes e objetivos imediatos e mediatos traçados na política pública. Porquanto, é preciso atentar para o fato de que a consolidação das políticas públicas como modo prospectivo de ordenação da vida em sociedade transformou não só as feições tradicionais do direito, como trouxe consigo a transformação do próprio Estado, no tocante a seu modo de relacionar-se com a sociedade, uma vez que esta é a porta pela qual entrou a antes absolutamente utópica democracia participativa (GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO; DERANI; AITH; BERCOVICI; RODRIGUES; PEREZ; GRANZIERA; BUCCI; MASSA-ARZABE; CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 71-72). O apoio político que um governo possui na sociedade é um fator determinante da capacidade de um gestor público de desenvolver processos e objetivos integrados de políticas públicas. O apoio político é vital, porque os gestores devem ser capazes de atrair continuamente tanto legitimidade quanto recursos das suas instituições aprovadoras e círculos eleitorais. Políticas públicas integradas podem representar desvios drásticos do status quo, e conflitos sobre a natureza e o impacto de tais mudanças podem ser esperados. Uma gestão política proativa, com estratégias e medidas cuidadosamente desenhadas, é essencial para gerar o apoio político necessário à implementação de tais políticas públicas integradas (WU; RAMESH; HOWLETT; FRITZEN, 2014, p. 144). Destarte, a aparência de neutralidade da expressão, erroneamente, atrás das malhas de formação do ordenamento jurídico e do processo constitucional de formação do esqueleto do Estado, nos bastidores de todo o processo de luta pelo poder de dizer o que é justo e o que é injusto, encontram-se fatores políticos. Assim, a neutralidade deixa de existir, para verificar-se que todo o sistema jurídico repousa num sistema de distribuição política do poder. Onde há Estado, há poder formalizado e, onde este reside está a política. Então, a política é o lastro que subjaz às frias estruturas jurídicas. A política não é um mal para as estruturas do direito, pois, o mal Políticas públicas... // 343 decorre do uso que dela se faz para a manipulação dos interesses sócioideológico-econômicos. 20.4 MÍNIMO VITAL VERSUS RESERVA DO POSSÍVEL: POR UMA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE PAUTADA NA JUSTIÇA O Direito não é uma teoria pura, mas uma força viva, por isso, a justiça sustenta numa das mãos, a balança em que pesa o direito e, na outra, a espada de que se serve para o defender, pois a espada sem a balança é a impotência daquele. Logo, uma não pode avançar sem a outra, portanto, não haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança. Assim, é fruto de um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos, mas ainda de uma nação inteira. Posto que, quem possui o poder não tem apenas suficiente poder para impor a justiça, também pode levar a injustiça; a espada possui dois gumes, podendo servir à uma ordem justa, mas também pô-la em risco (IHERING, 2009, p. 16). Desse modo, a justiça não pode ser pensada isoladamente, sem o princípio da dignidade humana, assim como o poder não pode ser exercido apesar da dignidade humana. Em verdade, todos os demais princípios e valores que orientam a criação dos direitos nacional e internacional curvamse ante esta identidade comum ou este minimum dos povos. É trivial ressaltar, por essa razão, a importância de tal princípio constitucional (BITTAR, 2011, p.112). A análise da dignidade humana engloba todos os direitos fundamentais apresenta-se, com obrigação do Estado em propiciar as condições para que as pessoas tenham uma vida digna. São considerados agressões à dignidade humana, a ausência de condições de vida digna, como a falta de estrutura de vida, tais como ausência de moradia, habitação, educação, saúde, além de práticas de tortura, perda da liberdade, violência física e moral, racismo e outros (FERMENTÃO, 2009, p. 180). Feitas tais ponderações, torna-se imperioso sublinhar que a Constituição Federal, ao garantir o direito à saúde, o faz explicitamente por meio de políticas sociais e econômicas. O que dá a entender que é uma norma constitucional programática, e a princípio, as normas programáticas não tem eficácia imediata, nascendo esta à medida que o Estado crie formas de garantir o cumprimento da norma, além do que, a eficácia não nasce completa, mas cresce na medida que o Estado se aproxima do objetivo da norma programática. Entretanto, os direitos inerentes à educação, saúde e assistência não deixam de ser direitos subjetivos pelo fato de não serem criadas as condições materiais e institucionais necessárias à fruição desses direitos. Implicando que esses direitos são regras jurídicas diretamente aplicáveis, vinculativa de todos os órgãos do Estado (SILVA, 2002, p. 152153). 344 // Problemas da jurisdição contemporânea... O entendimento do Supremo Tribunal Federal, assim, confirma esse posicionamento através de Joaquim Barbosa, quem afirmar em sua decisão, entre outros pontos, que incumbe ao poder judiciário rechaçar técnicas interpretativas, as quais têm como consequência prática, a inoperância de certos dispositivos da Constituição. Em seguida aduz que para a consolidação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, embora o artigo 196 da Constituição traga norma de caráter programático, o Estado não pode furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde por todos os cidadãos. Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à vida, de medicamento que não esteja na lista daqueles oferecidos gratuitamente pelas farmácias públicas, é dever solidário da União, do Estado e do município fornecê-lo (BRASIL, 2015h). Já Nelson Jobim sintetiza com propriedade o posicionamento supra ao afirmar que o artigo 196 da Constituição, por conter todos os elementos necessários à sua aplicação, é norma de eficácia plena sendo, portanto, norma auto-aplicável (BRASIL, 2015-i). Portanto, Zulmar Fachin (2012, p. 245-246) exara que: Os direitos fundamentais são auto-aplicáveis, ou seja, não necessitam de regulamentação para serem aplicados aos casos concretos. A autoaplicabilidade dos direitos fundamentais está prevista na própria Constituição Federal: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (art. 5º, § 1º). Esse dispositivo constitucional, embora previsto no capítulo reservado aos direitos e às garantias individuais, deve ser interpretado ampliativamente, de modo a incidir sobre todas as espécies de direitos fundamentais. Em outras palavras, a norma que garante a efetividade refere-se aos direitos fundamentais localizados no rol específico, mas também aos direitos fundamentais dispersos na Constituição. Por conseguinte, a reserva do possível4, também não pode ser vislumbrada com um “salvo conduto” para o Estado deixar de cumprir suas obrigações sob a alegação genérica de “não existem recursos suficientes”. Assim, [...] a cláusula da “reserva do possível” não pode ser invocada levianamente pelo Estado com o intuito de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais. [...] Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se de cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental 4 Segundo Heloise Siqueira Garcia e Denise Schmitt Siqueira Garcia: "O Princípio da Reserva do Possível tem sua origem no Direito Alemão, a partir de um caso levado à julgamento na Corte Constitucional. Ele se refere àquilo que o indivíduo pode esperar racionalmente da sociedade, responsável por limitar a responsabilidade estatal conforme a possibilidade material do ente político". (GARCIA, Heloise Siqueira; GARCIA, Denise Schmitt Siqueira. O princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da reserva do possível: uma ponderação necessária. Disponível em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=9f66a575a6cfaaf7>. Acesso em: 17 set. 2015). Políticas públicas... // 345 negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 251-255). Nesse sentido, tornou-se pacifico o entendimento do poder judiciário no sentido de exigir do Estado a garantia de um mínimo vital, em contra partida ao deslinde de uma reserva de recurso que este se preste. Assegurase, com isso, à saúde e à vida digna da pessoa humana. Dessa forma, como preceitua entendimento do Superior Tribunal de Justiça: O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida (BRASIL, 2015-g). Porquanto, a que se velar por um padrão mínimo de existência digna a ser garantido por meio dos direitos sociais fundamentais, e ainda, que quando houver conflito entre o princípio da reserva do possível e este, deve sempre prevalecer o reconhecimento do direito subjetivo a prestações sociais básicas, indispensáveis a uma vida digna (ALEXY, 2008, p. 511-5118). Nesse passo, a reserva do possível surge como uma proposta de resolução prática desta questão, defendendo a idéia de que os direitos fundamentais só poderão ser exigidos do Estado diante da possibilidade financeira, ou seja, sujeitos à verba orçamentária disponível. Se entendermos pela ótica política, os direitos sociais estariam, logo, "reféns" de opções de política econômica do aparato estatal, eis que a “reserva do possível” traduz-se em uma chancela orçamentária. Porém, indissociável a esta interpretação estaria um núcleo mínimo de direitos que seriam necessários para a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana, e que, não estariam condicionados à verba orçamentária, devendo ser garantido em qualquer hipótese (MACHADO; HERRERA, 2015). Nesse sentido, a finalidade pública das normas que devem reger a saúde pública, isto é, qualquer iniciativa que contrarie tais formulações há de ser repelida veementemente, até porque fere ela, no limite, um direito fundamental da pessoa humana. Logo, à lume de que a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil consagra, desde logo, o Estado como uma organização centrada no ser humano, e não em qualquer outro referencial. 346 // Problemas da jurisdição contemporânea... 20.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O desafio deste trabalho foi analisar como as políticas públicas influenciam a vida digna da pessoa humana. Para tanto, este estudo realizouse por meio da pesquisa bibliográfica em diferentes livros, doutrinas, documentos e, ainda, para a melhor compreensão, houve uma busca jurisprudencial para analisar na prática como os direitos constitucionais fundamentais vêm sendo concretizado e resguardado. Sendo o objetivo central do presente trabalho, desenvolver uma construção ética das políticas públicas, que tenham como alicerce a vida digna do indivíduo. Partindo da construção do conceito vida, denotando, portanto, para uma melhor compreensão do universo ontológico da pessoa. Logo, a partir desta contextualização, focar-se-á na formação dos direitos que resguardem esta, como positivação advinda da Constituição. Ponderando-se, por fim, em como a política democrática brasileira exerce um poder sobre a vigência do direito estipulado pelo artigo primeiro, inciso terceiro do texto constitucional de 1988, no sentido de mitigá-lo sob o argumento da reserva do possível. A partir das hipóteses formuladas inicialmente, relacionadas ao estudo da relação entre a política e a dignidade da pessoa humana, concluise que deve haver um essencial vital que dê suporte a qualidade intrínseca e distintiva, dignidade da pessoa humana. Implicando neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho desumano e degradante, como venham a lhe garantir as condições mínimas para uma vida saudável. A um impacto, portanto, da ideia da dignidade da pessoa humana como um fator nuclear de fundamentação e legitimação de uma cultura dos direitos humanos. Nesse particular, é importante mencionar que, para o brasileiro ter uma existência de vida digna e justa, o texto constitucional precisa ser efetivado, como liame na justiça. 20.6 REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito constitucional descomplicado. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. BRASIL. 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O homem, por sua vez, desde sua infância é incentivado a ser o dominador, para tanto, lhe é ensinado a ser independente, a enfrentar de forma heroica suas dificuldades, reprimir seus medos, fraquezas e angústias. Neste contexto, o menino é estimulado a jogar bola, brincar com armas, ser o xerife que prende os bandidos, brincar com carrinho; ele deve aprender a ser agressivo, dinâmico e forte. É levado a buscar sempre atividades competitivas, onde suas vitórias e conquistas o deixam em evidência. Já a menina é levada a imitar sua mãe, nos afazeres domésticos, brincar de casinha, com bonecas como se fossem seus filhos, fazendo comidinhas e limpam a casa, bem como é direcionada a portar-se de forma * Doutoranda e Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela ITE - Instituição Toledo de Ensino-Bauru/SP. Especialista em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITEBauru/SP). Especialista em Gestão de Negócios, pela UNESC-Faculdades Integradas de Cacoal/RO. Docente do Departamento de Direito da Fundação Universidade Federal de Rondônia-Campus Cacoal/RO. E-mail: [email protected] ** Mestre em Promoção da Saúde pelo Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR- PR. Especialista em Psicomotricidade Relacional pelo Centro Internacional de Análise Relacional CIAR/FAP- Faculdade de Artes do Paraná do Paraná – Curitiba- PR. Membro da Comissão do Movimento de Políticas Públicas para Mulheres da Regional Paranavaí/PR. Pesquisadora CNPq Grupo de Pesquisa - Gênero, Trabalho e Políticas Públicas - Universidade Estadual do ParanáUNESPAR/Paranavaí-PR. Assistente Social e Autora. E-mail: [email protected] *** Mestre e Doutoranda Sistemas Constitucionais de Garantias de Direito pela ITE - Instituição Toledo de Ensino-Bauru/SP. Especialista em Direito Civil – Sucessões, Família e Processo Civil. Especialista em Direito do Estado/Constitucional. Professora da Graduação e Pós-Graduação. Advogada e Autora. E-mail: [email protected] 352 // Problemas da jurisdição contemporânea... delicada, submissa e prestativa, a ser vaidosa, mas nem tanto, bem como exteriorizar sentimentos de alegria, disposição e disponibilidade. Este é o ambiente doméstico em que as pessoas normalmente se desenvolvem, onde as relações sociais desiguais estão presentes e começam a ser assimiladas como se fossem regras a serem seguidas, o que justifica a conduta do homem de sempre querer mandar, e da mulher, em obedecer, o que traz à tona essa distribuição desigual de poder que gera a submissão feminina e que muitas vezes, extrapolando os limites, levam às condutas de agressões físicas e psicológicas reprimidas pelo direito. No combate a essa violência doméstica, movimentos vêm sendo realizados para a construção de uma sociedade mais justa e digna, com respeito ao direito à cidadania da mulher, procurando criar, desenvolver e fortalecer, a participação feminina em todos os espaços, públicos e privados em igualdade de condições. Desse modo, os objetivos deste trabalho são: analisar a aplicação da Lei Maria da Penha nos casos de agressões ocorridas contra as mulheres residentes no município de Ji-Paraná/RO, verificando-se quantidade de ocorrência de agressões contra mulher e inquéritos policiais instaurados entre os anos de 2007 e 2010, antes da modificação da Ação Penal de Condicionada para incondicionada; fazer um levantamento junto à Delegacia Defesa da Mulher (DDM) para averiguar quantas desistências de representação ocorreram nesses anos, bem como pesquisa junto ao Fórum desse município da quantidade de desistências da ação penal ocorridas nesses anos e analisar, verificando-se, ainda quais as razões das desistências de não prosseguir ação penal contra o agressor. Para averiguar os motivos das desistências, foi aplicado um questionário misto anônimo, para 30 (trinta) mulheres, delimitando nos 10 (dez) primeiros registros ocorridos em nos anos de 2007 a 2009, analisandose 30 (trinta) questionários. A finalidade do presente foi demonstrar que com a mudança da ação penal de condicionada para incondicionada, minimizou as agressões e constrangimentos à mulher, fazendo com que não seja alvo do agressor para forçá-la a desistir de representá-lo criminalmente, e para que o processo prossiga até o seu curso final, podendo ser condenado ou absolvido. E se for condenado, ficará com restrições e perderá os benefícios se cometer outros delitos. Para tanto, procedeu-se a um levantamento bibliográfico relacionado aos aspectos históricos da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha; aos aspectos conceituais da violência doméstica; a competência dos Juizados Especiais para dirimir os crimes de violência desta natureza; aplicação da Lei nº 9.099/1995; os aspectos legais da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. O primeiro aborda aspectos históricos da Lei Maria da Penha; aspectos conceituais e as formas de violência contra a mulher. No segundo capítulo tratou-se da violência doméstica contexto do juizado Especial Criminal e reflexões da Lei nº 9.099/1995, já o terceiro enfatizou a convenção Reflexões da aplicabilidade... // 353 e eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, enquanto que no quarto refletiu-se sobre a Lei nº 11.340/2006 na órbita da ação penal, apresentando-se no ultimo capitulo o resultado da pesquisa realizada na cidade de Ji-Paraná, Estado de Rondônia. 21.2 LEI MARIA DA PENHA: LEI Nº 11.340/2006 A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha1 por ser uma homenagem a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, mãe de 03 (três) filhas, transformou seu drama em esperança para diminuir as estatísticas de calamidade pública, em âmbito nacional, que se apresentava a violência contra a mulher. No dia 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, Maria foi atingida por um tiro de espingarda disparado por seu marido, colombiano naturalizado brasileiro, o professor universitário Marco Antônio Heredia Viveiros, ficando paraplégica em razão das lesões que sofreu na terceira e quarta vértebras de sua coluna. O suposto agressor negou a autoria do crime, alegando em sua defesa que os fatos ocorreram em virtude de um assalto em sua residência. A vítima temia em denunciar o abuso ocasionado pelo marido de temperamento violento, sendo que poucos dias depois da tentativa de homicídio a mesma já havia recebido uma descarga elétrica durante o banho. O Ministério Público ofereceu denúncia em desfavor do agressor em 28 de setembro de 1984, na 1ª Vara Criminal de Fortaleza, o qual foi pronunciado em 31 de outubro de 1986 e levado a júri em 4 de maio de 1991, quando foi condenado. Contra a sentença de pronúncia houve a apelação da defesa. O recurso foi acolhido e o réu julgado novamente em 15 de março de 1996, sendo condenado a pena de 10 (dez) anos e 06 (seis) meses de prisão. Novamente a defesa apelou e interpôs recursos a tribunais superiores. Somente em setembro de 2002, depois de 19 (dezenove) anos da prática do crime, foi finalmente preso, e após cumprir menos de 1/3 (um terço) no regime fechado foi posto em regime aberto, retornando para o Estado do Rio Grande do Norte. Contudo, caso chegou ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 20 de agosto de 1998. A denúncia foi apresentada pela própria Maria da Penha, pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Fundado em 1991, o CEJIL é uma entidade não-governamental que tem por objetivo a defesa e promoção dos direitos humanos junto aos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. O CEJIL-Brasil existe desde 1994. 1 A história do nascimento da lei encontra-se disponível em: <http://www.mariadapenha.org.br>. Acesso em: 10 ago. 2015. 354 // Problemas da jurisdição contemporânea... O CLADEM se constitui por um grupo de mulheres (dentre as quais a brasileira Silvia Pimentel), empenhadas na defesa dos direitos das mulheres da América Latina e Caribe. Possui escritório sediado na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), sediada em Washington, Estados Unidos, tem como principal tarefa analisar denúncias de violações aos direitos humanos, assim considerados aqueles relacionados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. As petições podem ser dirigidas por qualquer vítima, terceira pessoa que tomou conhecimento dos fatos, grupo ou ONG legalmente reconhecida por pelo menos um Estado-membro da OEA. Em 19 de outubro de 1998, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos solicitou informações ao Brasil, o qual se omitiu em responder as indagações. Em 4 de agosto de 1999 e 7 de agosto de 2000, reiterou o pedido, novamente sem sucesso. Decorrido mais de 250 dias desde a transmissão dos fatos foi aplicado o artigo 39 do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com o propósito de que se presumisse serem verdadeiros os fatos relatados na denúncia. Nos termos do artigo 51 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em março de 2001 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos enviou o relatório ao Estado brasileiro para seu cumprimento em um mês. Como nenhuma resposta foi obtida, tornou público o Relatório 54/2001, repercutindo internacionalmente e servindo como poderoso incentivo para que se restabelecessem as discussões sobre a violência doméstica, culminando após pouco mais de 05 (cinco) anos com a publicação da Lei Maria da Penha. O relatório analisa profundamente os fatos narrados pela vítima e aponta as falhas cometidas pelo Estado brasileiro, que aderiu a Convenção Americana (ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992) e Convenção de Belém do Pará (ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 2005). Como parte desses tratados, o Brasil assumiu o compromisso de implantar e cumprir seus dispositivos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu que “a ineficácia judicial, a impunidade e impossibilidade de a vítima obter uma reparação mostra a falta de cumprimento do compromisso de reagir adequadamente ante a violência doméstica”. Uma das deliberações tomadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi o pagamento de uma indenização de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, em virtude da demora na conclusão do processocrime que culminou com a condenação do réu e da desproporção entre o fato e a pena aplicada, demonstrando ineficácia da medida punitiva. O governo do Estado do Ceará concordou com o pagamento em prol de Maria da Penha e indenizou em 7 de julho de 2008. Reflexões da aplicabilidade... // 355 21.2.1 Aspectos históricos Conta a história da humanidade que, desde os tempos bíblicos a mulher tem enfrentado gravíssimas violações em seus direitos mais elementares, tais como o direito à vida, à liberdade e a disposição de seu próprio corpo. Olhando sob esse ângulo, Maria Berenice Dias (2010) ensina que embora não se possa concluir esta visão de cunho religioso, talvez tenha sido ele o responsável pela disseminação da violência no seio familiar e social. Salienta a forma em que o casal educa e prepara os meninos e as meninas para a convivência social, faz surgir a diferença imposta pelo machismo e a religiosidade. Na sociedade antiga, a mulher tinha pouca expressão, era vista como um reflexo do homem, e tida como objeto a serviço de seu amo e senhor. Desse modo, assevera Maria Berenice Dias (2010) que a mulher era vista, também, como instrumento de procriação. Enfim, era a mulher a fêmea, sendo por muitas das vezes comparada mais a um animal do que um ser humano. Destaca Kátia Lenz César de Oliveira (2004) que a partir de 1970 a violência conjugal começa a ser vista para além de um caráter psicopatológico individual. Isso se dá em virtude do movimento feminista que garante a visibilidade à violência contra a mulher, ressaltando as proporções endêmicas do fenômeno como prova de que ele está associado aos valores culturais que desprestigiam e submetem as mulheres. O tema aparece então, estreitamente ligado a uma discussão política. Segundo Kátia Lenz César de Oliveira (2004) na realidade o feminismo se faz presente desde a Revolução Industrial Europeia, lutando principalmente pelo direito ao trabalho e voto das mulheres; ele perde seu fôlego após algumas conquistas e tem seus argumentos cooptados pelas forças políticas tradicionais que mantinha o poder. Mais tarde o movimento renasce, criticando essa primeira etapa por não elaborar uma contracultura capaz de desafiar a sociedade a mudar o papel da mulher. A luta, a partir de então, deveria atingir as raízes do que se passou a chamar de cultura patriarcal e nela o lugar da mulher na família, era visto como um caminho adequado a este fim. Com o passar dos tempos, vários grupos de mulheres foram se organizando para fundar abrigos e cobrar apoio dos governos. Nesse sentido, Kátia Lenz César de Oliveira (2004) ressalta que no final da década de 1970 já existiam cerca de 150 abrigos só na Inglaterra e Gales. Nos Estados Unidos, o movimento em defesa das vítimas de violência conjugal começou em 1973, portanto, mais tarde. Iniciou-se com o estudo que apontavam para a alta frequência e severidade da violência contra a mulher, o que gera a criação de abrigos. Bruna Villas Boas Campos (2010), ensina que a Declaração Universal dos Direitos do homem, reconhecida como o marco da elevação de princípios de dignidade e igualdade da pessoa humana, buscou revigoramento e enriquecimento dos Direitos Humanos de forma continua, de 356 // Problemas da jurisdição contemporânea... maneira que estes sejam protegidos diante das relações sociais e interestatais e da dinâmica das mesmas no mundo contemporâneo. A partir de 1975, com base no entusiasmo do movimento feminista ocorrido em 1970, iniciou-se a década da mulher que foi organizada pela ONU. Assim, estabeleceu-se o contexto no qual a crítica às instituições, órgãos e grupos relacionados aos Direitos Humanos, restaurou-se para denunciar a negligencia com o qual estava sendo tratados os direitos da mulher. Em 1979 foi aprovada a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher e neste sentido, destaca Campos (2010) que esta foi, até então o documento mais importante e complexo em prol dos direitos da mulher. Tal instrumento conclamava os países signatários a adotarem todas as medidas necessárias a suprimir a discriminação contra a mulher, em suas diversas formas de manifestação. Entretanto, a própria violência exercida contra a mulher dificulta o acesso à Convenção e a outros grandes Tratados de Direitos Humanos. Para Thiago André Pierobom de Ávila (2007) a Lei nº 11.340/2006 cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do artigo 226 § 8° da Carta Magna, da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e Familiar contra a Mulher e alterar o Código de Processo Penal, e a Lei de Execução Penal. A Lei Maria da Penhas representa, assim, um avanço na proteção da mulher vítima de violência familiar e doméstica, incluindo-se, também, uma inovação legal quanto às formas familiares já positivadas. 21.2.2 A violência doméstica e seus aspectos conceituais A Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde, a maioria das violências cometidas contra a mulher ocorre dentro do lar ou junto à família, sendo o agressor o companheiro atual ou o anterior. E pior, as mulheres agredidas ficam, em média, convivendo um período não inferior a dez anos com seus agressores. Assim, é preciso identificar o âmbito de abrangência da lei ora comentada, ou seja, o que é violência doméstica. Ainda que a lei não seja a sede adequada para emitir conceito, o legislador definir bem a violência doméstica e identificar suas formas. A absoluta falta de consciência social do que seja violência doméstica é que acabou condenando este crime a invisibilidade. Com efeito, a Lei em questão define a violência doméstica no caput do artigo 5° e as formas como estas ocorrem, no artigo 7°, in verbis: Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. [...] Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: Reflexões da aplicabilidade... // 357 I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006). Observa-se que a Lei Maria da Penha além de conceituar o termo violência doméstica, preocupou-se também em descrever as formas como estas se concretizam, mas para se chegar ao conceito de violência doméstica faz-se necessária a conjugação desses dois dispositivos, razão pela qual Maria Berenice Dias (2010) ensina que deter-se somente no artigo 5° é insuficiente, pois são vagas as expressões “qualquer ação ou omissão baseada no gênero”, “âmbito de unidade doméstica”, “âmbito da família” e “relação íntima de afeto”. Da mesma forma, apenas do artigo 7º também não se retira o conceito legal de violência contra mulher, impondo-se a interpretação conjunta destes dois artigos. Desse modo, o conceito de violência doméstica traduz-se como sendo qualquer das ações elencadas no art. 7º (violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral) praticada conta a mulher em razão de vínculo de natureza familiar ou afetiva. De acordo com Graziela Cucchiarelli Werba (2004) violência seria qualquer ato de violação aos direitos humanos de qualquer pessoa independentemente de qualquer característica de gênero, raça, etnia, idade, condição econômica ou social. Enfatiza que se a violência ocorre pelo fato da vítima pertencer a um determinado gênero, no caso, se for uma mulher, considera ser esta uma violência de gênero ou violência contra a mulher. Assim, explica que são atrocidades cometidas em função das diferenças não admitidas constitucionalmente, que ocorrem com o emprego de força física, ameaças psicológicas, econômica, dentre outros, que tem o condão de se caracterizar como ato violento e reprovado pelo direito. 358 // Problemas da jurisdição contemporânea... Seu significado mais frequente se refere ao uso de força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo mesmo sem a manifestação de sua vontade; assim, passa o agente a constranger e tolher a liberdade da agredida, ao lhe incomodar, impedindo-a de exteriorizar seu desejo, sob constante ameaça ou até mesmo espancamentos, que podem levá-la até a morte. Entende, portanto, ser um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio por constituir um ato de violação dos direitos essenciais do ser humano. Nota-se que esse entendimento conduz à ideia de que a violência concerne à restrição considerável da liberdade e integridade alheia, de forma a lhe impor uma vontade que não condiz com o interesse do outro e, para tanto, faz uso de medidas constrangedoras, as quais reprimem e submetem os outros de maneira coerciva ou impositiva. Por sua vez, a violência de gênero se apresenta como forma mais extensa e se generalizou como uma expressão utilizada para fazer referência aos diversos atos praticados contra as mulheres como forma de submetê-las a sofrimento físico, sexual e psicológico, aí incluídas as diversas formas de ameaças, não só no âmbito intrafamiliar, mas também abrangendo a sua participação social em geral, caracterizando-se pela imposição ou pretensão de imposição de subordinação e controle do gênero masculino sobre o feminino. Desse modo, pode-se observar que para ser o crime previsto na Lei n° 11.340/2006, é condição sine qua non que a conduta lesiva seja baseada no gênero, ou numa relação de afeto em que esteja presente a submissão de uma das partes à outra. 21.2.3 Da lei n° 11.340/2006 e as formas de violência doméstica contra a mulher Ao analisar a Lei Maria da Penha, Dias (2010, p. 64) evidencia as sequelas decorrentes do reconhecimento do delito como violência doméstica, em face do aumento da pena do artigo 61, II, “f” do Código Penal, que sujeita o réu as demais vicissitudes que impõe a Lei. Assim, mesmo que o crime possa ser reconhecido como de pequeno potencial ofensivo, a ação não tramita nos Juizados Especiais Criminais, mas sim nas Varas Criminais, enquanto não instalados os (JVDFMs) - Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Por essa razão, o réu deixa de fazer jus às benesses da Lei nº 9.099/1995. Como visto, a Lei Maria da Penha traz em seu bojo, no artigo 7° e incisos, as formas de violência doméstica contra a mulher, tendo esse artigo se ocupado de explicar pormenorizadamente a maioria das formas possíveis dessa violência, fazendo depreender-se do texto legal que há outras formas de violência doméstica ou familiar contra a mulher. Neste aspecto, a lei assevera expressamente que essas formas são meramente exemplificativas, uma vez que podem existir outras não previstas na norma especial. Reflexões da aplicabilidade... // 359 Ana Cecília de Paula Soares Parodi e Ricardo Rodrigues Gama (2007, p. 157) salientam que: O art. 7º ocupou-se de estipular um rol exemplificativo de maneiras como as lesões podem se concretizar na vida das vítimas, independente [sic] de serem afetas à esfera cível ou criminal. Caminhando pela esteira dos danos materiais e imateriais, o legislador é motivado a construir o presente artigo inclusive por necessidade histórico-sociológica, visto que a maioria dos ilícitos ora definidos possuem um passado nada remoto de preconceitos de tal monta que impediam as próprias ações judiciais [...]. Cumpre observar que o legislador se preocupou mais em definir as diversas formas de violência doméstica visando, com isso, a eficácia da proteção ora estudada. 21.2.3.1 Da violência física Nos termos do inciso I, do artigo 7º da Lei Maria da Penha, entendese como violência física qualquer conduta que ofenda a integridade física ou a saúde corporal da mulher. Segundo Maria Berenice Dias (2010), ainda que a agressão não deixe marcas aparentes, o uso da força física que ofenda o corpo ou a saúde da mulher constitui vis corporalis, expressão que define a violência física, sendo que esta pode deixar sinais ou sintomas que facilitam a sua identificação, tais como hematomas, arranhões, queimaduras e fraturas. O estresse crônico gerado em razão da violência também pode desencadear sintomas físicos, como dores de cabeças, fadiga crônica, dores nas costas e até distúrbios. É sabido que o agressor geralmente é uma pessoa íntima ou membro da família e que dos casos de violência doméstica denunciado, a maioria refere-se a crimes conjugais, sendo os acusados os maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados, ex-namorados, onde os abusos físicos mais frequentes são tapas, empurrões, socos, beliscões, surras, homicídios e queimaduras. Para Maria Berenice Dias (2010) a integridade física e a saúde corporal são protegidas juridicamente pela lei penal, pois a violência doméstica já configurava forma qualificada de lesões corporais, inserida no Código Penal, em 2004, com acréscimo do §9º ao artigo 129 do Código Penal brasileiro. Assim, a Lei Maria da Penha limitou-se a alterar a pena desse delito, diminuiu a pena mínima e aumentou a pena máxima, que passou de 06 (seis) meses a 01 (um) ano para 03 (três) meses a 03 (três) anos. E quanto às lesões culposas, sua tipicidade é excepcional. Portanto, havendo omissão da Lei Maria da Penha, somente as condutas praticas dolosamente configuram violência física. 360 // Problemas da jurisdição contemporânea... 21.2.3.2 Violência psicológica Prevista no inciso II, do artigo 7º da Lei Maria da Penha e dispõe que a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Verifica-se que as proteções da autoestima e da saúde psicológica, não estavam previstas na legislação pátria e que somente com a realização da Convenção para Prevenir e Erradicar a Violência Doméstica, conhecida como a Convenção de Belém do Pará, a violência psicológica passou a ser tutelada e incorporada no conceito de violência contra a mulher. Para essa violência existem três tipos de crime tipificados no Código Penal Brasileiro que são a calúnia, injúria e difamação, sendo conhecidos como “crimes contra a honra”. Fazendo um paralelo entre as violências física e psicológica Maria Berenice Dias (2010) ressalta que a violência psicológica consiste na agressão emocional tão ou mais grave que a física, o comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontando, inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva. A violência psicológica encontra forte alicerce nas relações desiguais de poder entre os sexos, sendo a mais frequente e talvez seja a menos denunciada, pois a vítima, muita das vezes, nem se dá conta de que agressões verbais, silêncios prolongados, tensões, manipulações de atos e desejos são violência e devem ser denunciados. Dessa forma, na ignorância da vítima, fica o agressor impune. Para a configuração do dano psicológico não é necessária a elaboração de laudo técnico ou realização de perícia. Segundo Maria Berenice Dias (2010), reconhecida pelo juiz sua ocorrência, impõe-se a concessão de medida protetiva de urgência, lembrando aqui que qualquer delito praticado mediante violência psicológica reclama a majoração da pena constante no artigo 61, inciso II, alínea “f” do Código Penal Brasileiro. A violência doméstica além de deixar traumas psicológicos na vítima, também fere seus direitos como cidadã, é responsável também pelo desvio de personalidades dos filhos e desencadeia baixa na produtividade do trabalho feminino. 21.2.3.3 Violência sexual A Lei n° 11.340/2006 trata no inciso III do artigo 7º a questão da violência sexual. O texto legal descreve o conceito de violência sexual, de Reflexões da aplicabilidade... // 361 onde se pode dizer que essa forma de violência é tão grave quanto às demais formas trazidas pela doutrina, pois fere a dignidade da pessoa humana. Houve uma evolução na doutrina penal, onde se refere ao tema “debito conjugal” no tocante ao dever inerente ao casamento, pois no sistema anterior sequer se reconhecia a prática de estupro do marido com relação à mulher, sob o absurdo argumento de que se tratava de um direito inerente à condição de marido, que o poderia exigir inclusive sob violência. O Código Penal Pátrio foi mais severo em relação aos crimes perpetrados com o abuso da autoridade decorrente de relações domésticas. Assim, assevera Maria Berenice Dias (2010) que este Diploma Legal reconhece como circunstancias que sempre agravam a pena o fato de o crime ter sido praticado contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge como descreve o artigo 61, inciso II, alínea ‘e’; e com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade conforme artigo 61, inciso II, alínea ‘f’ do Código Penal. A Lei Maria da Penha inseriu neste dispositivo legal mais uma hipótese, com violência contra a mulher na forma da lei especifica. Os crimes que equivocadamente eram nominados de “contra os costumes” em boa hora passaram a ser chamados de “crimes contra a dignidade sexual”. Assim, leciona Maria Berenice Dias (2010) que quem obriga alguém, homem ou mulher, a manter relação sexual não desejada pratica o crime de estupro. Relata que, da mesma forma, os outros crimes contra a liberdade sexual configuram violência sexual: violação sexual mediante fraude; assédio sexual; crime sexual contra vulneráveis e satisfação de lascívia. Dessa forma, enfatiza que todos esses delitos, se cometidos contra pessoas de identidade feminina, no âmbito das relações domésticas, familiares ou de afeto constituem violência doméstica, e o agente submetese à Lei Maria da Penha. 21.2.3.4 Violência patrimonial Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve a isonomia efetiva entre direitos e garantias entre homens e mulheres, elevando, dessa forma, a condição da mulher ao ansiado e oportuno patamar igualitário. Segundo Emanuel Flávio Fiel Pavoni (2007) no cenário da lei em evidência, é considerado abuso e violência patrimonial o arbitrarismo por parte do marido ou convivente, quanto à gestão do patrimônio, objetos ou instrumental de que faça uso a mulher para seu labor, bem como a guarda ou retenção de seus documentos pessoais, bens pecuniários ou não, da mulher. O inciso IV do artigo 7º da Lei maria da Penha normatiza esta espécie de violência, sendo que se deve notar pois, que além de tutelar a integridade física e psicológica da mulher, a lei se preocupou também com os aspectos patrimoniais, visando punir as condutas do agressor quando este cometer o ilícito de reter, destruir e subtrair bens e valores pessoais da vítima. 362 // Problemas da jurisdição contemporânea... Neste diapasão, Emanuel Flávio Fiel Pavoni (2007) afirma que tal inciso IV do artigo 7º se refere a qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Observação importante traz Maria Berenice Dias (2010) quanto a comparação dos artigos 181 e 182 do Código Penal com o inciso IV do artigo 7° da Lei Maria da Penha, pois os primeiros dispositivos tratam da imunidade absoluta nos crimes contra o patrimônio, quando o autor for o cônjuge, ascendentes ou descendentes, ou quem tenha parentesco legítimo ou ilegítimo. Neste caso, Júlio Fabbrini Mirabete (2008) ensina que a lei prevê como medida de política criminal, as imunidades absolutas e relativas nos crimes contra o patrimônio, denominadas, as primeiras, de caso de isenção de pena, ou equivocadamente, de escusas absolutórias, sendo que a imunidade absoluta se caracteriza pela isenção de pena, de modo que não pode ser instaurado o inquérito policial e muito menos a ação penal contra o beneficiário, por falta de interesse de agir, vez que não é possível a imposição de pena, mesmo estando presentes a antijuridicidade e a culpabilidade do fato, tornando inaplicável a sanção penal. Não havendo interesse de agir e, portanto, uma das condições de ação, o processo deve ser declarado nulo ab initio. Já se declarou, entretanto, a extinção da punibilidade nestes casos, por tratar-se de isenção de pena obrigatória e não facultativa, que exclui qualquer sansão penal, ou seja, qualquer pena ou medida de segurança ou efeito de condenação, como por exemplo o registro no rol dos culpados e a perda do bem. A conduta é ilícita, mas pelo Código Penal, não cabe a aplicação das penas dos crimes contra o patrimônio. Importante mencionar a exceção a essa regra, que vem estabelecida no inciso I do artigo 183 que determina a punição nos casos da prática de violência ou grave ameaça, nestes tipos penais. Em relação à Lei nº 11.340/2006, os crimes contra o patrimônio possuem outra conotação, vez que não há a extinção da punibilidade como impõe o Código penal. Com efeito, tem-se que a partir da nova definição de violência doméstica que reconhece como tal também a violência patrimonial, não se aplicam as imunidades absolutas ou relativas dos artigos 181 e 182 do Código Penal quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vinculo de natureza familiar. Não há mais como admitir o injustificável afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua esposa ou companheira, ou, ainda, algum parente do sexo feminino. Segundo Maria Berenice Dias (2010) em relação ao Estatuto do Idoso, o legislador impôs uma regra mais rigorosa, ao prever a dispensa de representação por parte do idoso e expressamente estabelece a não aplicação desta causa de isenção quando a vítima tiver mais de 60 anos. A lei Maria da Penha reconhece como violência patrimonial o ato de “subtrair” objetos da mulher, o que nada mais é do que furtar. Assim, se subtrair para si coisa alheia móvel configura o delito de furto, quando a vítima Reflexões da aplicabilidade... // 363 é mulher com quem o agente mantém relação de ordem afetiva, não se pode mais admitir a escusa absolutória. O mesmo se diga com relação aos crimes de apropriação indébita e ao delito de dano. É violência patrimonial “apropriar” e “destruir”, os mesmos verbos utilizados pela lei penal para configurar tais crimes. Perpetrados contra a mulher, dentro de um contexto de ordem familiar, o crime não desaparece e nem fica sujeito à representação, o que não ocorre no campo do Direito Penal. 21.2.3.5 Violência moral A Lei Maria da Penha descreve no inciso V do artigo 7º, que: “[...] a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”, do que se observa que o crime de violência moral prevista na Lei Maria da Penha, engloba os tipos penais da calúnia, difamação e injúria. Diversamente do que ocorreu quanto ao crime de violência patrimonial, o Código Penal e a Lei em estudo encontram-se em harmonia. A violência moral encontra proteção penal nos delitos contra a honra: calunia, difamação e injúria. São denominados delitos que protegem a honra, mas, cometidos em decorrência de vínculos de natureza familiar ou afetiva, configuram, violência moral. Buscando traçar as diferenças entre estes tipos penais, assevera Maria Berenice Dias (2010) que na calúnia, o fato atribuído pelo ofensor à vítima é definido como crime, enquanto que na injúria não há atribuição de fato determinado, mas na difamação há a imputação de fato ofensivo à reputação da vítima. Esclarece que a calúnia e a difamação atingem a honra objetiva e o crime de injúria atinge a honra subjetiva. Ao comentar acerca da consumação do delito, comenta que a calúnia e a difamação consumam-se quando terceiros tomam conhecimento da imputação e quanto à injúria, diz que esta se consuma quando o próprio ofendido torna conhecimento da imputação. Adentrando para a esfera da violência doméstica, estes delitos, quando são perpetrados contra a mulher no âmbito da relação familiar ou afetiva, devem ser reconhecidos como violência doméstica, impondo-se o agravante da pena acrescentado no artigo 61, inciso II, alínea “f” do Código Penal. De modo geral, não concomitantes à violência psicológicas e dão ensejo, na seara civil, à ação indenizatória por dano material e moral, ou seja, passou-se a prever a violência doméstica ou familiar contra a mulher como uma circunstância agravante genérica. Segundo Emanuel Flávio Fiel Pavoni (2007), o inciso X do artigo 5º da Carta Magna refere-se ao dano ou tentativa de danos, agora também contra a honra ou imagem da mulher. Neste sentido, qualquer forma de conduta que viole sua intimidade ou idoneidade, prolatando calunias, atribuindo-lhe falsamente atos que não praticou, ou a difamando, revelando segredos ou fatos que só dizem respeito a ela mesma ou ao âmbito de sua 364 // Problemas da jurisdição contemporânea... intimidade, ou ainda a maldizendo, prolatando juízos escusos ou ofensivos, são harmônicos com o tipo em epigrafe. Sendo assim, nota-se que com o advento da nova Lei nada mais justo que a mulher tenha um amparo legal. Nesta seara, foram bem inseridas no artigo 7º e seus inciso da Lei nº 11.340/2006, garantias de efetiva proteção à mulher, tendo em vista a peculiaridade da situação fática da vítima em relação à sua família e ao seu agressor, sendo na maioria das vezes é agredida, insultada, maltratada verbalmente e submetida a expor seus problemas domésticos perante a comunidade em que vive. 21.3 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO CONTEXTO DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL A violência doméstica, na maioria das vezes, é classificada juridicamente como lesão corporal leve, sendo, por isso, encaminhada ao chamado Juizados Especiais Criminais, também conhecidos como juizados de pequenas causas, priorizam os procedimentos mais rápidos e simplificados visando com isso evitar que os casos simples, sejam resolvidos por meio da conciliação evitando o procedimento ordinário que levam anos até serem julgados. Verifica-se, então, que há uma preocupação em tornar a resposta do judiciário mais célere e eficiente para os chamados crimes de menor potencial ofensivo, também conhecido como crime anão por serem crimes considerados de menor gravidade. Daí porque dizer que no Juizado Especial Criminal vigoram os princípios da informalidade, da simplicidade do processo e da celeridade. Sendo que esses juizados especiais criminais abrem espaço para haver um tipo de negociação e evita que o acusado da prática de determinado delito entre no sistema de Justiça criminal, que tem como ponto final a penitenciária. E que a Justiça Especial Criminal possibilita aos implicados comportarem um acordo, abrangendo a indenização por eventuais danos materiais ou morais sofridos pelo ofendido, bem como pode o Ministério Público fazer uma proposta de pena a ser cumprida pelo autor do delito. Pois, visa-se também atender o fim social a que se destina o Juizado que é justamente permitir à população maior acesso à justiça para resolver o litígio de maneira mais célere, bem como pelo fato das penas aplicadas ao ofendido não terem o caráter coercitivo e sim, ao contrário, buscam um meio de reeducar o indivíduo. Contudo, embora tenham a aparência de serem suficientes para atenderem grande parcela de casos concretos, muito se questiona acerca da adequação dos juizados especiais criminais diante da violência doméstica a que se expõe um grande número de mulheres. Para Carla Góes Sallet (2005), um dos motivos diz respeito ao fato de que mesmo quando a lesão corporal é leve, ela costuma ser recorrente e que raramente a mulher agredida leva o seu caso ao conhecimento do judiciário assim que ocorre na primeira vez, pois os fatores emocionais e sociais costumam conter esse tipo de iniciativa. Outro motivo está relacionado Reflexões da aplicabilidade... // 365 à natureza da convivência existente entre o agressor e a vítima, eis que esta pressupõe certo grau de confiança e afetividade, ou seja, o lado emocional do relacionamento. É por esta razão que a violência doméstica, ainda quando produz lesões consideradas leves, merece ser classificada de forma diferenciada tendo em vista a violação do vínculo que une a vítima e o agressor, ou seja, quando o marido ou o companheiro agride sua mulher, esta agressão não deve ser juridicamente classificada da mesma forma que uma agressão praticada por um estranho. Bater na esposa ou na companheira deve ser classificado como algo mais grave do que bater em um estranho, ainda que a lesão provocada seja semelhante, pois o tipo de relação entre os cônjuges deve funcionar como elemento agravante. Aparte desta questão técnica, é também muito criticado pelo movimento feminista o entendimento jurisprudencial predominante nos casos de violência doméstica. Sendo encaminhados aos juizados especiais, esses são submetidos, primeiramente a fase de conciliação, na qual vítima e agressor tentam chegar a um acordo mediado pelo conciliador que procura conduzir as partes a um entendimento equilibrado. Nesse sentido, enfatiza Letícia Franco de Araujo (2003) que na prática da Lei nº 9.099/1995 há indícios de ineficácia social, assim, explica que o artigo 69, caput, determina o encaminhamento das partes e do registro do fato, formalizado através do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), imediatamente ao Juizado Especial Criminal, para que ali seja realizada a audiência preliminar. Entretanto, contata-se a quase impossibilidade de se dar efetividade a esta previsão legal, isto porque o artigo 70 estabelece que depois de formalizado o TCO, deve a vítima retornar para o local onde o agressor se encontra para juntos comparecerem à Delegacia a fim de formalizar o compromisso de comparecimento ao Juizado Especial Criminal, saindo dali com a data da audiência previamente marcada. Desse modo, observa-se que a Lei nº 9.099/1995 em alguns aspectos revela efeitos prejudiciais porque neste caso a vítima volta, logo após o registro do fato na Delegacia de Polícia, em contato com o agressor, que encara esse registro na Delegacia como um ato de agressão, quando não um comportamento de insubordinação por parte da vítima. O registro do fato torna-se, assim, um novo motivo de conflito, a ensejar nova violência. Durante este lapso temporal situado entre o registro da ocorrência e a audiência preliminar no Juizado Especial Criminal, a vítima fica totalmente desprotegida e refém do agressor. Segundo Letícia Franco de Araújo (2003), esta postergação da audiência preliminar pode não ser prejudicial à solução judicial de crimes de menor potencial ofensivo que não caracterizem violência contra a mulher, mas neste campo seus efeitos são nefastos, em virtude das especificidades deste tipo de violência, que se vêm se destacando frequentemente. Ao explicar que estas práticas têm efeitos malignos, diz que a distância temporal entre o registro do fato na Delegacia e a audiência de conciliação faz com que a vítima reconsidere seu posicionamento, o que é normalmente tido como 366 // Problemas da jurisdição contemporânea... ato de coragem, ao considerar como parâmetro de análise sua relação afetiva ou sua dependência econômica, ou ainda ao ser submetida a diversos tipos de pressões, sobretudo da família do agressor, ou deste próprio, quando não de uma ameaça criminosa. Outro ângulo negativo, de acordo com Carla Góes Sallet (2005) era que a solução da conciliação em muitos casos vinha sendo o pagamento de uma cesta básica à mulher, agora proibido (art. 17, da Lei nº 11.340/2006). Embora na lei não fizesse nenhuma menção a esse tipo de pena, essa solução se espalhou por todo o Brasil, e com ela as suas críticas, que destacaram dois problemas sociais que fundamentam esse tipo de acordo. O primeiro diz respeito à banalização e tolerância velada à violência doméstica. Em segundo lugar, estão o posicionamento geralmente conservador do direito brasileiro e dos costumes arraigados na sociedade, que consagram o casamento como um bem público a ser preservado a todo custo, fazendo com que a família muitas vezes seja considerada algo mais valioso que a própria integridade física e psicológica da mulher. O quadro descrito até aqui é bastante pessimista. No entanto, isso não deve levar à paralisação das mobilizações e movimentos de mulheres e homens para transformações socioculturais e jurídicas. Muitas mudanças foram conquistadas em contextos ainda mais conservadores e outras estão a caminho. O acúmulo de vitórias é um estímulo para novas mobilizações, mas, por outro lado, uma visão realista é imprescindível para que não mascarem as discriminações que ainda persistem. É com a conscientização de todos que o processo tenso e difícil de transformação da sociedade em prol da igualdade de gênero surtirá os efeitos benéficos esperados pela lei e é com a eliminação de uma das expressões mais graves da discriminação contra a mulher, a violência doméstica, que se fará a diferença para uma sociedade mais justa e equitativa. 21.4 DA CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇAO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇAO CONTRA A MULHER A convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em seu preâmbulo cita que a discriminação contra o sexo feminino fere os princípios da igualdade de diretos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e impede o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço à humanidade. Além de observar que, em situações de pobreza, a mulher tem acesso mínimo à alimentação, à saúde, à educação, à capacitação e às oportunidades de emprego. Nesse sentido, a Convenção descreve, no artigo 1°, a conduta discriminatória contra a mulher, in verbis: Reflexões da aplicabilidade... // 367 [...] toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o conhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos campos político, econômicos, social, cultural e civil, ou em qualquer outro campo. Maria de Fátima Ribeiro (2007) ensina, pois, que a violência contra a mulher é inerente ao contexto sócio econômico e cultural que, ao longo de sua história vem discriminando o sexo feminino. A continuidade e a aceitação de que essas discriminações se concretizem trazem consequências negativas como, por exemplo, um conjunto de situações desvantajosas para a mulher, que acabam sendo vítimas de práticas de violência física, sexual e psicológica. Nesse contexto, a violência contra a mulher tem fundamentos estruturais. É certo dizer que a violência contra a mulher vem sendo discutida internacionalmente ao longo dos anos, e a ONU ocupou-se dessa questão em várias convenções, várias delas ratificadas pelo Brasil, dentre as quais se destacam: Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) – 1994; Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993); Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e a Conferência de Cúpula para o Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995). Em 1995, foi realizado pelas Nações Unidas a IV Conferência Mundial sobre a Mulher conhecida como a Conferência de Beijing. Este evento foi o quinto grande conclave das Nações Unidas nas décadas de 90 e trouxe à discussão vários temas referentes à mulher. Em 1993, as Nações Unidas realizaram a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que reconheceu a violência contra a mulher como obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres humanos. Considerou também que este tipo de violência desrespeita os direitos humanos, vindo a se agravar ainda mais por se tratar de agressão contra pessoa do sexo feminino. Sobre esta mesma Conferência, Maria Berenice Dias (2010) faz menção à Assembleia Geral que reconheceu o respeito irrestrito de todos os direitos da mulher como sendo condições indispensáveis para seu desenvolvimento individual e para a criação de uma sociedade mais justa, solidária e pacifica. Além disso, preocupou-se acerca da violência em que vivem muitas mulheres da América, cuidando que esta proteção fosse abrangente para tutelar a proteção feminina sem fazer distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, revelou ser uma situação generalizada, para cumprir sua responsabilidade histórica de fazer frente a esta situação na busca de soluções positivas. Nesta Assembleia Geral se convenceu da necessidade de dotar o sistema interamericano de um instrumento internacional capaz de contribuir na solução do problema da violência contra a mulher e recordando as 368 // Problemas da jurisdição contemporânea... conclusões e recomendações da Consulta Interamericana sobre a Mulher e a Violência, celebrada em 1990. Considere-se, ainda, a Declaração sobre a Erradicação da Violência contra a Mulher e também a resolução AG/RES. 1128 (XXI-0/91) “Proteção da Mulher Contra a Violência”, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados americanos, todas levaram a adoção da Convenção de Belém do Pará, que visou à proteção da mulher na mais ampla forma. 21.5 REFLEXÕES DA LEI 11.340/2006 NA ÓRBITA DA AÇÃO PENAL A Lei Maria da Penha ainda causa inquietação entre os operadores de direito, no que diz respeito à natureza dos delitos de lesões leves e lesões culposas. Segundo Maria Berenice Dias (2010) há dúvida em questão é se a ação penal continua sendo condicionada à representação ou passou a ser pública incondicionada. Neste contexto, observa-se questionamentos sobre a possibilidade de a vítima desistir de processar seu agressor, fazendo cair por terra seus direitos de ver punido o autor do delito. Em linguagem popular, seria o mesmo que perguntar: É possível “retirar a queixa”? Tais questionamentos passaram a fazer parte do cotidiano jurídico porque apesar do artigo 41 da Lei Federal n° 9.099/1995, ter estabelecido expressamente que os crimes de violência doméstica deixaram de ser de sua competência, a Lei Maria da Penha, por outro lado, traz em seu bojo, mais especificamente no artigo 16, o seguinte teor: Art. 16 Nas ações penais púbicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. Do dispositivo acima, percebe-se uma impropriedade técnica, na medida em que o legislador permitiu à vítima renunciar de seu direito, pois em se tratando de ação penal pública incondicionada, como é o caso, faz-se necessário observar o princípio da obrigatoriedade e da irrenunciabilidade da ação penal. Assim, ao permitir essa renúncia, estar-se-ia violando tais princípios que norteiam a ação penal pública incondicionada. Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2010) comenta que a Lei Maria da Penha, ao admitir a renúncia à representação até o recebimento da denúncia, fez pairar dúvidas acerca do exato significado desta expressão, que são muitas, razão pela qual, é de se dizer que o legislador escreveu palavras inúteis. Salienta, ainda, que há outros que sugerem que, onde se lê, no artigo 16, “renúncia”, deve-se ler “retratação da representação”. Desse modo, inicialmente necessário se faz identificar o significado de tais expressões. Com efeito, tem-se que a palavra desistência tem significado mais amplo por ser o gênero que compreende a renúncia e a retratação. Reflexões da aplicabilidade... // 369 Segundo Maria Berenice Dias (2010) desistir é tanto se quedar inerte, deixar escoar a possibilidade de manifestar a vontade, como tem o sentido de renunciar, abrir mão da manifestação já levada a efeito, voltar atrás do que foi dito. Na esfera penal, Júlio Fabbrini Mirabete (2008) conceitua “renuncia” como tendo o significado de não exercer o direito, abdicar do direito de representar, trata-se de ato unilateral que ocorre antes do oferecimento da representação. Em relação ao termo “retratação” diz ser ato posterior por ser a manifestação da desistência da representação já manifestada. Quanto à retratação, ensina ser este o ato pelo qual alguém retira a sua concordância para a realização de determinado ato, que dependia de sua autorização. Convém salientar que chama a atenção o fato de somente poder falar em desistência, renúncia ou retratação quando aos delitos forem aqueles sujeitos à representação. Nos crimes de ação incondicionada, como não há representação e estas expressões não tem qualquer significado. A verdadeira polemica ocorre com o artigo 41 da Lei Maria da Penha que dita: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Tem-se a dúvida: seguir o artigo 16 da Lei Maria da Penha, aceitando a retratação da vítima perante o Juiz, quando ela não desejar o prosseguimento da ação penal e entendendo que se trata de ação pública condicionada à representação da vítima, ou, seguir o artigo 41 da Lei Maria da Penha, e que se trata de ação penal pública incondicionada nos casos de lesões corporais leves. Após a discussão acerca da inviabilidade da renúncia, neste instante necessário se faz analisar o artigo 16 da Lei Maria da Penha sob o aspecto da ação penal no caso da violência doméstica contra a mulher ser Ação Penal Pública Condicionada ou Incondicionada. Verifica-se pelo texto do artigo 16 que mesmo existindo uma noção concreta da realidade, o legislador, na tentativa de aniquilar a impunidade, não deu a importância devida à proteção da vítima mulher, como ser humano. Neste contexto, Maria Berenice Dias (2007) enfatiza que foram consideradas como infrações de menor potencial ofensivo as que afetam o cidadão e por outro lado, os delitos praticados contra o patrimônio dão origem à ação civil pública incondicionada, deixando transparecer total descaso à vida humana. Assim sendo, ao condicionar à representação as lesões corporais de naturezas leves e as lesões culposas, o Estado eximiu-se de sua tarefa de punir, deixando para a vítima a responsabilidade de buscar a punição daquele que a agrediu, conforme sua vontade e conveniência. Isso mostra o descaso do legislador em relação a vítima e à violência que ocorre no seio familiar. É notório que nestes casos, a vítima sempre se encontra em desvantagem em relação ao seu agressor, por ser do sexo feminino, por sua fragilidade física, psicológica e emocional. Essa sensação de impotência culmina na maioria das vezes em desistência de oferecer a queixa ou representar contra o parceiro agressor, o que reforça a 370 // Problemas da jurisdição contemporânea... necessidade de haver mudança no tocante ao tipo da ação penal, que passará a ser incondicionada ao invés de ser condicionada a representação, sendo o MP o titular da ação penal e não mais a mulher. O Superior tribunal de Justiça ao julgar os casos de lesões corporais leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher, a ação deve ser necessariamente pública incondicionada, conforme se segue: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA. 1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República). 2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato. 3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal. 4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006). 5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada. 6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima. 7. Ordem denegada. Hábeas Corpus n.º 96.992, 6ª Tuma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 12 de agosto de 2008. (Grifo nosso) O julgado acima reforça a tese de que a ação deve ser pública incondicionada à representação. Desse modo, mesmo com as inovações da Lei n° 11.340/2006, verifica-se que esta norma continua sendo ineficaz em relação à proteção da mulher no tocante à sua exposição ao constrangimento, isto porque na prática o que ocorre é o fato de que após a instauração do inquérito policial e conhecimento pelo Poder Judiciário, a mulher poder em Juízo renunciar ao seu direito de ver punido o agressor. Percebe-se que ao ter que se apresentar novamente, e agora em audiência, perante o juiz, para tratar das agressões sofridas, passa a mulher novamente a esse constrangimento, o que poderia ser evitado caso os procedimentos ocorressem conforme a modificação pretendida pelo legislador, que está lutando para que a ação penal passe de condicionada à representação para a ação penal pública incondicionada. Reflexões da aplicabilidade... // 371 Da forma como está sendo aplicada a Lei, observa-se que esta norma está favorecendo o agressor, pois no lapso temporal compreendido entre a instauração do inquérito policial e a audiência em Juízo, o companheiro ou marido tem tempos suficiente para mediante ameaça inibir a vítima fazendoa a renunciar ao seu direito de proteção contra essas agressões. Essa renúncia é tida como outro benefício ao infrator, pois ao renunciar o processo se extingue e não fica nenhum registro sobre os fatos e a próxima agressão fica como sendo a primeira, ou seja, não se registra qualquer antecedente criminal. Dessa forma, caso fosse diferente, o agressor refletiria antes de cometer uma nova agressão, pois poderia ser reincidente e ter sua situação agravada. Somente quando efetivada essa mudança, a proteção à mulher será mais completa e eficiente, pois evitaria que ela se expusesse ao constrangimento acima mencionado, uma vez que passando esse tipo de delito à ação penal pública incondicionada, o Ministério Público passaria a ser o titular da ação penal e pelos princípios da obrigatoriedade e da irrenunciabilidade, o processo tomaria o seu curso normal, aliviando a vítima deste encargo. 21.6 RESULTADOS E DISCUSSÃO Para a averiguação dos casos de violência doméstica no município de Ji-Paraná e coleta de dados que subsidiaram o presente estudo, foram realizadas pesquisas junto à Delegacia de Defesa da Mulher, no Fórum de JiParaná e nos bairros desta cidade. Junto a delegacia Defesa da Mulher no 1º Distrito de Ji-Paraná, dentre as 1667 (mil, seiscentos e sessenta e sete) ocorrências, se constatou o índice de desistências das mulheres vítimas de agressões foi de 51%, contra 49% em um período de 03 (três) anos. Sendo que junto ao Fórum verificou-se 813 denúncias, sendo que 96.68 % das mulheres desistiram de prosseguir com a ação penal contra seus agressores, demonstrado que há um porcentual “alarmante” em não pretenderem ver a punição nestes casos. Diante deste número que indica a grande quantia de renuncias, deve ser observado o porquê dessas condutas, o que pode ser constatado pelo gráfico abaixo, ficando demonstrado claramente que a Lei Maria da Penha no tocante ao prosseguimento até o final da ação penal não está protegendo e nem garantindo as mulheres vítimas da violência doméstica os seus direitos que a lei lhe oferece. Por esta razão, há a necessidade por parte do legislador em operar, o quanto antes, a modificação no sentido da ação penal transformar-se de ação penal pública condicionada para a incondicionada. Dentre as 40 (quarenta) mulheres vítimas de violência doméstica elegidas aleatoriamente no município de Ji-Paraná num período de 03 (três) anos, selecionados os dez primeiros casos de cada ano, quando não era possível encontrar um destes 10 (dez) primeiros casos substituía-se pelo caso posterior, onde se constatou que quanto aos motivos que impediu que 372 // Problemas da jurisdição contemporânea... essas mulheres prosseguissem com ação penal: 3% por orientação dos familiares por parte do agressor; outros 3% não elegeram motivos específico, enquanto 4% foi para atender pedido dos filhos; e 5% por reconciliação com o companheiro. Ainda, 8% desistiram por necessidade financeira e 11% por achar que a Lei Maria da Penha é insuficiente para resolver seu problema. Outros 11% o fizeram para salvaguardar os filhos; enquanto que 13% para evitar maiores constrangimentos perante a sociedade. Já 20% foi para evitar maiores conflitos no âmbito familiar e 22% por medo de ameaças. Parece grave pensar que a lei Maria da Penha não vem surtindo sua eficácia, mas as razões pelas quais as mulheres, vítimas de violência doméstica renunciam de seu direito de verem punidos seus agressores, indica mais do que a necessidade de mudança indica falta de informação e apoio. 21.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo teve como finalidade a necessidade de demonstrar a falha da Lei Maria da Penha no tocante à efetiva proteção da mulher contra a violência doméstica. Constatou-se, pois, que uma ação penal passando de condicionada para incondicionada, pode vir a reduzir ainda mais as agressões e constrangimentos à mulher, fazendo com que não seja alvo do agressor para forçá-la a desistir de representá-lo criminalmente, e para que o processo prossiga até o seu curso final, podendo ser condenado ou absolvido, se condenado, ficará com restrições e perderá os benefícios se cometer outros delitos. No decorrer deste trabalho buscou demonstrar a importância da Lei Maria da Penha, em face da “alarmante” situação da violência contra mulher constatada através de pesquisas realizada no município de Ji-Paraná. Os dados estatísticos constataram que a Lei Maria da Penha não está surtindo os seus efeitos desejados pelas mulheres vítimas de violências domésticas. Neste contexto, verificou-se que a prática de atos de violências domésticas contra a mulher incide na violação dos direitos humanos tornando-se imprescindível a intervenção do Estado e de organismos internacionais e nacionais de defesa dos direitos da mulher na esfera política e judicial, para que ocorra a tão esperada e justa mudança. Logo, a lei Maria da Penha se apresenta como um atraso legislativo, um remédio para um mal que ainda está engatinhando para proteger as garantias constitucionais, sendo uma parcela pouca significativa para coibir a violência doméstica contra a mulher, pois é falha a sua aplicabilidade. Na averiguação efetuada verificou-se um alto índice de desistência por parte das mulheres que por motivos variado deixaram de fazer as representações e que as razões pelas quais desistiram de prosseguir com a ação penal já instaurada são deveras importantes, reforçando com isso, a falha da Lei Maria da Penha e a necessidade da transformação para que se minimize as agressões e constrangimentos à mulher que a impedem de continuar com a ação penal. Reflexões da aplicabilidade... // 373 21.8 REFERÊNCIAS ARAUJO. Letícia Franco de. A Violência Contra a Mulher: a ineficácia da justiça penal consensuada. Campinas: Lex Editora, 2003. ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Lei Maria da Penha, uma análise dos novos de instrumentos de proteção às mulheres. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/13477-134781-PB.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2015. BRASIL. Lei nº 11.340, 07 de agosto de 2006 - Cria mecanismo para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/lei11340.htm>. Acesso em: 28 jul. 2015. BRASIL. Lei nº 9.099, 26 de setembro de 1995 - Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm>. Acesso em: 29 jul. 2015. CAMPOS, Bruna Villas Boas. Lei Maria da Penha: uma conquista do direito internacional. Disponível em: <http://www.cedin.com.br/static/revistaeletronica/artigos/Bruna%20DH. pdf>. Acesso em: 28 jul. 2015. DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11. 340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. JESUS DAMÁSIO DE. A violência Contra a Mulher. São Paulo Saraiva: 2010. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Ed. Atlas, 2008. OLIVEIRA, Kátia Lenz César de. Quem tiver a garganta maior vai engolir o outro – sobre violências conjugais contemporâneas. São Paulo: Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda., 2004. PARODI, Ana Cecília de Paula Soares; GAMA, Ricardo Rodrigues. Lei Maria da Penha - comentário a Lei 11.340/06. Campinas: Russel, 2009. PAVONI, Emanuel Flávio Fiel. Violência Doméstica e Familiar – Breves comentários ao Art. 7º da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3645/Violencia-domestica-efamiliar-Breves-comentarios-ao-Art-7o-da-lei-11340-06-Lei-Maria-daPenha>. Acesso em: 17 jul. 2015. RIBEIRO, Maria de Fátima. Direito Internacional dos direitos humanos: estudos em homenagem à Profa. Flávia Piovesan. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2007. SALLET, Carla Góes. Belíssima aos 40, 50, 60, 70... São Paulo: Ed. Conex, 2005. SENADO FEDERAL. Violência doméstica contra a mulher. Disponível em: 374 // Problemas da jurisdição contemporânea... <http://www.mulherdemocrata.org.br/RelatorioViolenciaContraMulher.p df>. Acesso em: 21 jul. 2015. STREY, M. N.; CABEDA, S. T. L. (Orgs.). WERBA, Graziela Cucchiarelli. Quero ficar no teu corpo feito tatuagem... Reflexões sobre a violência contra o corpo da mulher. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. = XXII = TUTELA DO CONSUMIDOR NA HIPÓTESE DE SUPERENDIVIDAMENTO: DILEMA CONTEMPORÂNEO Andryelle Vanessa Camilo Pomin* Hadassa Melo Paulino** 22.1 INTRODUÇÃO O legislador brasileiro, com o Código de Defesa do Consumidor, revelou a nova face do direito privado brasileiro, o que foi posteriormente corroborado pelo Código Civil de 2002. E, embora sirva como referência legislativa, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro ainda caminha os primeiros passos para concretizar uma lei específica ao consumidor superendividado, destinada à tutela à situação de superendividamento. Não há dúvidas de que o superendividamento opera um desequilíbrio na macro e na microeconomia, na relação de consumo, além das implicações sociais e psicológicas. Sendo assim, deve-se reforçar a necessidade de se satisfazer o direito do fornecedor de crédito, no entanto, esse não pode ser fator de supressão de preceitos que fundamentam o ordenamento jurídico como um todo, a exemplo da dignidade da pessoa humana. Assim, para abordar o tema, este trabalho foi dividido em três parâmetros que compreendem: a proteção do consumidor no direito brasileiro, de forma geral, independentemente da situação de superendividamento; o superendividamento propriamente dito, destacandose os pressupostos e classificação; e, por fim, a tutela jurídica constitucional do consumidor superendividado. 22.2 DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO DIREITO BRASILEIRO A origem histórica da necessidade de tutela jurídica do consumidor remonta à Revolução Industrial, a partir do século XVIII, a qual revelou nítidas mudanças nos meios de produção, de modo que refletiu diretamente nas relações econômicas e sociais. Ainda, é importante frisar que, de forma bastante rudimentar, há marcas dessa proteção ao consumidor desde a Antiguidade, a exemplo do * Mestre em Ciências Jurídicas. Professora dos cursos de graduação em Direito da Unicesumar e da UEM. Pesquisadora do CNPQ em Novos Direitos e Direitos Especiais. Advogada militante. Endereço Eletrônico: <[email protected]>. ** Acadêmica do curso de graduação em Direito do Centro Universitário de Maringá – Unicesumar, Maringá – Paraná. Bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Científica da Unicesumar (PROBIC). [email protected] 376 // Problemas da jurisdição contemporânea... Código de Hamurabi, em seus arts. 229 e 233, os quais já demonstravam a responsabilidade objetiva, consagrada no Código do de Defesa do Consumidor (CDC), de 19901. Mas, foi efetivamente foi com a Revolução Industrial que o comércio passou a ser realizado em larga escala, dada a implementação de tecnologias que permitiram o aumento da produtividade. Sendo assim, a relação com o consumidor, antes marcada pela pessoalidade, passou a ser indireta e desvinculada da pessoalidade. Os primeiros movimentos em prol do consumidor ocorreram na Europa, no contexto da proteção dos direitos sociais (GAMA, 2000, p. 28). Assim, é de se notar que a necessidade de se tutelar as relações de consumo nasceu de um contexto de lutas sociais, associado ao desenvolvimento de novas tecnologias que possibilitaram a produção em larga escala. De modo que o consumidor passou a figurar na relação de consumo em situação de considerável inferioridade, pois era o fornecedor quem detinha a propriedade dos meios de produção, o que, de certa forma, conferia a este maior controle do mercado de consumo. O controle de mercado, realizado pelo fornecedor, relacionava-se com o preço e a qualidade de fornecimento dos bens e serviços, ou seja, em última análise, seria o fornecedor o agente capaz de ditar e, em certos casos, impor as normas de mercado. Destarte, em sua origem, a tutela do consumidor está diretamente relacionada aos direitos coletivos, provenientes da luta de classes sociais. Frise-se que a gradual especialização técnica e comercial do fornecedor acabou por criar, na relação de consumo, as vulnerabilidades técnica, econômica e jurídica do consumidor, sob as quais orbita todo o sistema de proteção ao consumidor. Dentro desse contexto social e econômico, diante da necessidade de tutela das relações de consumo, em 1970 foi fundado o primeiro PROCON no Estado de São Paulo e, posteriormente, os demais Estados também o constituíram. No ordenamento jurídico brasileiro, a aprovação do Código de Defesa do Consumidor ocorreu em 1990, esse instrumento visava atender às determinações da Constituição Federal de 1988. Outro aspecto importante revela que o Código de Defesa do Consumidor, no contexto jurídico em que fora implantado, visava proporcionar, ao consumidor, maior proteção e até mesmo suprir as lacunas do Código Civil no tocante à relação de consumo. Posto isso, não é exagero afirmar que a sistemática trazida pelo Código de Defesa do Consumidor, no ordenamento jurídico brasileiro, visa Art. 229 – Se um pedreiro edificou uma casa para um homem, mas não a fortificou e a casa caiu e matou seu dono, esse pedreiro será morto. Art. 233 – Se um pedreiro construiu uma casa para um homem e não executou o trabalho adequadamente e o muro ruiu, esse pedreiro fortificará o muro às suas custas. 1 Tutela do consumidor... // 377 utilizar o direito material e processual em prol do consumidor, a fim de garantir efetividade aos direitos provenientes da relação de consumo. A Constituição Federal de 1988, precisamente no art. 5º, XXXII, elevou a proteção do consumidor a direito fundamental, de modo que, implicitamente, reconhece a vulnerabilidade, já que o consumidor se submete às condições que lhe são impostas no mercado de consumo. Sendo assim, é inegável que a sistemática adotada pelo Código de Defesa do Consumidor visa dar guarida à parte vulnerável da relação de consumo, a exemplo dos benefícios processuais concedidos ao consumidor, como o foro privilegiado, na forma do art.101, I, do Código de Processo Civil (CPC). A vulnerabilidade do consumidor deve ser analisada sob três aspectos, quais sejam: técnico, econômico e jurídico (ROLLO, 2014). Nesse sentido, há que se ressaltar que a sistemática adotada pelo CDC visa, precipuamente, efetivar os objetivos expressos no art. 6º do CDC. Dentre eles, destacam-se a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos e nocivos; a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, garantido também o acesso aos órgãos judiciais e administrativos. Ademais, tais objetivos não representam um rol taxativo, uma vez que, enquanto direito fundamental à proteção ao consumidor, visa equilibrar as relações do mercado de consumo. Sendo assim, devem-se adotar novos mecanismos e garantir a efetiva aplicação dos mecanismos que tutelam a relação de consumo, com a finalidade de equilibrá-la. Os princípios jurídicos representam a origem da tutela de direitos e são capazes de representar a razão existencial dos institutos jurídicos. A Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 4°, revela que o operador do direito lançará mão dos princípios quando a lei for omissa. No âmbito do Direito do Consumidor, há uma base principiológica específica, vislumbrando-se que essa proteção é um direito fundamental, mas também a defesa do consumidor por si só representa um princípio da ordem econômica (ANDRADE, 2006, p. 12). As diretrizes, trazidas em um primeiro momento pela Constituição Federal de 1988, reclamaram a proteção direta do consumidor por meio do Código de Defesa do Consumidor, explicitamente exigida pelo art. 48 dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, in verbis: “Art. 48 - O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”. O Código de Proteção, específico ao consumidor, como não poderia deixar de ser, veio acompanhado da necessidade de um conjunto principiológico próprio, o qual comporta princípios a serem aplicados antes, durante e depois da relação de consumo, ou seja, têm início no momento da oferta do produto ou serviço e persistem mesmo após o contrato que pode ser a venda de um produto ou a prestação de um serviço. 378 // Problemas da jurisdição contemporânea... Os princípios consumeristas também ganham importância internacional, a exemplo da Declaração de Sófia sobre o Desenvolvimento de Princípios Internacionais de Proteção do Consumidor, formalizada no 75º Congresso de Direito Internacional de 2012, que formulou, no âmbito internacional, os seguintes preceitos fundamentais: Princípio da vulnerabilidade, os consumidores são vulneráveis frente aos contratos de massa e padronizados, em especial no que concerne à informação e ao poder de negociação. Princípio da proteção mais favorável ao consumidor, é desejável, em Direito Internacional Privado, desenvolver standards e aplicar normas que permitam aos consumidores beneficiaremse da proteção mais favorável ao consumidor. Princípio da justiça contratual, as regras e o regulamento dos contratos de consumo devem ser efetivos e assegurar transparência e justiça contratual. Princípio do crédito responsável, crédito responsável impõe responsabilidade a todos os envolvidos no fornecimento de crédito ao consumidor, inclusive fornecedores, corretores, agentes e consultores. Princípio da participação dos grupos e associações de consumidores, grupos e associações de consumidores devem participar ativamente na elaboração e na regulação da proteção do consumidor (DECLARAÇÃO DE SÓFIA, 2012). Seguindo essa linha protetiva, o CDC revela princípios implícitos e explícitos, dentre eles, o princípio do protecionismo do consumidor, o princípio da vulnerabilidade do consumidor, o princípio da hipossuficiência do consumidor, o princípio da boa-fé objetiva, o princípio da transparência ou confiança, o princípio da função social dos contratos, o princípio da equivalência negocial e o princípio da reparação integral dos danos. Esses representam um rol exemplificativo, pois, em essência, os princípios atuam como mandamentos de otimização. Ainda, é possível afirmar que, baseados na premissa da vulnerabilidade do consumidor, orbitam os demais princípios do microssistema consumerista. A doutrina aborda a necessidade da intervenção estatal, no sentido de atuar nas diretrizes constitucionais de um “direito privado social”, para concretizar a isonomia, promovendo o reconhecimento das necessidades dos sujeitos mais fracos. Conforme leciona João Batista de Almeida (2009, p. 17), o CDC toma, como parâmetro, a vulnerabilidade do consumidor, sendo esta a espinha dorsal para a proteção desse sujeito. Ao passo que, reconhecida essa vulnerabilidade, cabe ao Estado promover a defesa do consumidor, assumir a postura de garantidor. De fato, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor tem, como fundamento geral e amplo, a necessidade de garantia da dignidade humana, pois esta é a base do sistema de valores da Constituição Federal de 1988. Ainda, é de se notar que, diante da sociedade massificada de consumo, com o surgimento de novas tecnologias que permitem a atuação no mercado de consumo, a exemplo da internet, que confere ao consumidor Tutela do consumidor... // 379 posição ainda mais vulnerável, conquanto é vulnerável técnica, jurídica, econômica e também no aspecto da informação. A vulnerabilidade informativa é trabalhada na doutrina no sentido de que configura fator de desequilíbrio, pois os fornecedores são os únicos que contêm a complexidade de informação que cerca a relação de consumo. O déficit informacional, enfrentado pelo consumidor, acarreta na “hipervulnerabilidade” (MARQUES, 2012, p. 159-160). No âmbito jurisprudencial, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) já afirmou categoricamente que “[...] ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis” (BRASIL, 2007). A terminologia hipervulnerabilidade é empregada no sentido de demonstrar gravame ainda maior para o consumidor, conquanto há, na doutrina e na jurisprudência do STJ, uma gradação para a vulnerabilidade, a qual é confirmada pelos arts. 37, §2º e 39, IV, ambos do CDC. Assenta-se na melhor doutrina a presunção da vulnerabilidade do consumidor, independentemente de sua posição econômica e social, desconsiderando-se também se o produto ou serviço adquirido seja essencial, supérfluo, valioso ou de bagatela. Deve-se ressaltar ainda que tal vulnerabilidade é presumida. No entanto, não se pode afirmar o mesmo com relação ao fato de que a hipervulnerabilidade seja averiguada no caso concreto, sendo aquilo que é além da normalidade, é algo agravado. Trata-se, assim, de um dever ser que garante e efetiva a dignidade das minorias sociais. O desenvolvimento gradual da sociedade de consumo revela-se, nitidamente, a partir da Revolução Industrial e das revoluções do século XIX. Com a urbanização, o modelo de consumo também é alterado. Segundo Jean Braudrillard, a concentração industrial provocou o aumento constante de bens, enquanto a concentração urbana, de modo acentuado, a criação de necessidades ilimitadas, as quais repercutirão no consumo (BAUDRILLARD, 1995, p. 65). Em tal contexto, as relações de consumo deixaram de ser puramente de caráter pessoal e passaram a ser massificadas. Em um primeiro momento, o produto era destinado a um consumidor específico, mas tal cenário foi modificado. A demanda por produtos e serviços passou a ser em grande escala, já que a produção também se dava dessa mesma forma, tendo-se em vista o aprimoramento das tecnologias dos meios de produção. O consumidor, por sua vez, estava inserido em um novo cenário de consumo. Pode-se afirmar que a vulnerabilidade do consumidor tem espaço dentro do contexto de massificação, da produção em larga escala e, posteriormente, com os contratos de adesão. Situação essa que coloca o fornecedor em situação vantajosa, uma vez que, em se tratando de contrato de adesão, cabe ao fornecedor estabelecer as cláusulas, restando, ao consumidor, apenas aceitar o que lhe é estabelecido. 380 // Problemas da jurisdição contemporânea... Sendo assim, diante de tal contexto fático, as relações de consumo reclamaram a intervenção do Estado, com a finalidade precípua de equilibrar estas relações jurídicas, uma vez que o consumidor estava em desvantagem. No Brasil, o Estado passou a intervir nas relações consumeristas, nas esferas administrativa e jurídica, a exemplo da criação do PROCON, no âmbito administrativo estadual e pela tutela jurídica, tendo como principal instrumento o CDC. Assim, note-se que o modelo de consumo atual está diretamente atrelado ao sistema financeiro, que estimula o acesso ao crédito, o superconsumo, que, em muitos casos, vincula-se ao consumismo. 22.3 DO SUPERENDIVIDAMENTO O superendividamento deve ser visto, em um primeiro momento, como fruto das relações sociais, das demandas de uma sociedade pautada, precipuamente, no consumo para a satisfação de suas necessidades. Parte-se de um conceito, o qual ainda não encontra amparo na legislação, mas pode-se dizer que a doutrina já tem trabalhado no sentido de construí-lo. Nesse sentido, o conceito de superendividamento, ou de quem seja o consumidor superendividado, é brilhantemente apresentado por Claudia Lima Marques nos seguintes termos: O superendividamento pode ser definido como a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos). Este estado é um fenômeno social e jurídico a necessitar algum tipo de saída ou solução pelo direito do consumidor, a exemplo do que aconteceu com a falência e a concordata no direito da empresa: seja por meio de parcelamento, prazos de graça, redução dos montantes, dos juros, das taxas, seja por todas as demais soluções possíveis para que possa pagar ou adimplir todas ou quase todas as suas dívidas em face de todos os credores, fortes e fracos, com garantia ou não. Tais soluções, que vão desde informação e controle da publicidade, direito de arrependimento, tanto para prevenir como para tratar o superendividamento, são frutos dos deveres de informação, cuidado e principalmente de cooperação e lealdade oriundos da boa-fé para evitar a ruína do parceiro (exceção da ruína), que seria a ‘morte civil’, sua exclusão do mercado de consumo ou sua ‘falência’ civil com o superendividamento (MARQUES, 2006, p. 256-257). Sendo assim, note-se que, grosso modo, o consumidor superendividado caracteriza-se por ser aquele que possui débito de natureza consumerista, pois atuou no mercado de consumo, adquiriu produtos ou contratou a prestação de serviços. Mas a sua capacidade financeira está debilitada, fragilizada, impossibilitada de satisfazer as obrigações contraídas, seu passivo supera o ativo, daí surge a situação de superendividado. Tutela do consumidor... // 381 Quanto à origem da terminologia “superendividamento”, o Brasil baseou-se na lei francesa, pois o termo origina-se da tradução do neologismo surendettement, sendo que o prefixo “sur” vem do latim, que significa “super” (COSTA, 2012, p. 231). É cediço na doutrina que o ordenamento jurídico brasileiro reclama por uma legislação especial para regular as situações, quando presente a situação de superendividamento, pois, nelas, é evidente que o consumidor encontra-se em situação de hipervulnerabilidade. Nesse sentido, Marielza Brandão Franco expõe que Tal legislação deve conter normas de prevenção e saneamento, impondo ao fornecedor o cumprimento de determinadas regras antes de concessão de crédito que permita ao consumidor assinar um contrato de empréstimo consciente de todas as consequências com ele assumidas, porque todos os detalhes da transação foram corretamente esclarecidos, inclusive aconselhando quanto à melhor alternativa de crédito para o caso específico de cada tomador, estimulando o exercício dos deveres de cooperação e boafé e fiscalizando quanto à forma pela qual o crédito foi concedido (2010, p. 241). No âmbito do direito estrangeiro, há dois modelos de proteção ao consumidor em situação e superendividamento. O primeiro é francês e cria possibilidade de o consumidor saldar suas dívidas, com a criação de plano de pagamento integral, mas não retira a responsabilidade do consumidor pelos compromissos assumidos, ressalvado o mínimo existencial, pois não se podem prejudicar a sobrevivência do consumidor e a de sua família. Por outro lado, o modelo norte-americano visa, em última análise, preservar a atuação do consumidor no mercado de consumo, pois este é considerado o personagem principal para o funcionamento do mercado. Desse modo, há um procedimento de liquidação com perdão de dívidas e sem constrição dos rendimentos futuros. Em muitos aspectos, o direito brasileiro, especificamente com relação ao direito do consumidor, recebeu influências do direito francês, a exemplo do prazo de reflexão do art. 49, do CDC2. Quando se volta à análise do direito comparado, percebe-se que a França adotou um modelo de proteção, que, conforme expõe Marielza Brandão Franco, está se estruturando em uma base ideológica de solidariedade, de modo a promover e possibilitar a renegociação por meio da conciliação entre superendividados e seus credores (2010, p. 237). 2 Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados. 382 // Problemas da jurisdição contemporânea... A estruturação francesa, para regulamentar o superendividamento, está baseada na Lei da Luta, de 1995, que visa garantir, ao consumidor em hipervulnerabilidade, seus direitos fundamentais e, em última análise, o mínimo existencial, que deve assegurar o sustento do consumidor e o de sua família. Sendo assim, o legislador francês preocupou-se também como as causas externas, a exemplo das ofertas de crédito por meio de publicidade, além da falta de informações claras e adequadas. O ordenamento jurídico brasileiro também tem se posicionado no mesmo sentido e, apesar de ainda não contar com um texto legal protetivo e garantidor, o Estado-juiz tem se posicionado por meio de decisões proferidas pelo judiciário. Na concepção de Marielza Brandão Franco, a jurisprudência reconhece o superendividamento como um problema social e revela também a responsabilidade do fornecedor pela conduta inadequada, como a falta de informação, práticas comerciais e contratuais notadamente abusivas (2010, p. 239). Nessa seara, destaca-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que pode ser considerado o precursor de uma proposta legislativa protetiva para o consumidor superendividado: SUPERENDIVIDAMENTO HIPOSSUFICIÊNCIA. CONCESSÃO DE CRÉDITO IRRESPONSÁVEL. DEVER DO CREDOR DE MITIGAR OS PRÓPRIOS PREJUÍZOS. - SENTENÇA ULTRA PETITA - questão de ordem pública reconhecida, desconstituindo-se parcialmente a decisão de ofício. [...] caracterizado no caso concreto. Situação de hipossuficiência da autora devidamente comprovada e da concessão, por parte da ré, de crédito de forma irresponsável. Nulidade de contratações sucessivas para cobrir saldo devedor, realizadas sob o manto da coação moral. Instituição bancária que concede crédito sem averiguação da capacidade econômica do consumidor, contrata sob a égide da temeridade ou alto risco, devendo arcar com os prejuízos daí resultantes. Culpa in iligendo e in vigilando que de forma flagrante e incontroversa qualifica a relação contratual das partes litigantes. Concessão de crédito a quem não tem condições de realizar sua prestação obrigacional, importa em contratação viciada principalmente em razão de simular e induzir em erro o cliente fazendo parecer que terá ele condições de pagamento. Situação de lesão irreversível ao consumidor. Conduta contratual da instituições bancárias que estabelecem extrema facilidade na concessão de crédito de consumo, sem quaisquer exigências de garantia. O Estado-Juiz tem a responsabilidade de dar os parâmetros para as contratações, no sentido de apresentar limitações ao direito de contratar das instituições bancárias, que devem ser responsabilizadas na medida de sua conduta imprudente de propor crédito com tantas facilidades, colocando em risco a própria perfectibilização do contrato, diante da incapacidade flagrante de pagamento do contratante. Dever de mitigar os próprios danos não observado. [...] (BRASIL, 2015) Grifo nosso No julgado em apreço, é notável que o posicionamento dos julgadores foi em concordância com os preceitos do microssistema de Tutela do consumidor... // 383 proteção do consumidor, mesmo ante a ausência legislativa, o judiciário conseguiu revelar a má conduta do fornecedor. Para a caracterização do superendividado, deve-se partir de pressupostos. Assim, a caracterização da situação de superendividamento compreende carência financeira. Em muitos aspectos, o superendividamento aproxima-se da insolvência civil, que, nesse caso, é originada especificamente da aquisição de crédito no mercado de consumo, enquanto que, na insolvência civil, compreende dívidas de outra natureza como, por exemplo, fiscais, alimentícias. Quanto ao superendividamento, deve-se observar que este possui débito de natureza consumerista que excede a sua capacidade econômicofinanceira. Segundo Marielza Brandão Franco, para que alguém seja considerado superendividado, este deve ser pessoa física, de boa-fé e cujo endividamento ocorreu para atender a suas exigências pessoais (e nunca profissionais), fosse na forma ativa ou passiva (2010, p. 236). Nesse sentido, nota-se também que a jurisprudência, na tentativa de delinear essa situação, busca associá-la com a facilidade de concessão de crédito, a exemplo do julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: APELAÇÃO CIVEL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO BANCÁRIO COM PEDIDO DE DANOS MORAIS. SENTENÇA QUE ACOLHE O PLEITO DE REVISÃO, MAS REFUTA O COMPENSATÓRIO. REBELDIA DO AUTOR. MÚLTIPLOS EMPRÉSTIMOS. DESCONTO DIRETO EM CORRENTECORRENTE. RETENÇÃO DA INTEGRALIDADE DO SALÁRIO DO AUTOR PARA PAGAMENTO DAS PARCELAS CONSIGNADAS NA CONTACORRENTE. INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO CHAMADO MÍNIMO EXISTENCIAL.SUPERENDIVIDAMENTO ABUSO DO DIREITO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO. LIMITAÇÃO A 30% DOS VENCIMENTOS BRUTOS MENSAIS, APÓS DEDUZIDOS OS DESCONTOS OBRIGATÓRIOS. Analogia DA LEI N. 10.820/2003. DANO MORAL IN RE IPSA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO (BRASIL, 2015) Grifo nosso A jurisprudência revela os elementos básicos para a caracterização do superendividamento, mas busca reestabelecer o equilíbrio contratual, ao constatar o abuso de direito por parte dos fornecedores de crédito. Estes realizam empréstimos sucessivos a determinado consumidor, mesmo estando cientes de que este se encontra absolutamente incapacitado para solver seus débitos de natureza consumerista. Tendo por finalidade identificar qual consumidor superendividado merece ser protegido, o aspecto da boa-fé, no momento da contratação, é essencial. A doutrina classifica o consumidor superendividado sob duas perspectivas: o superendividado ativo e o superendividado passivo. O superendividamento ativo compreende a situação em que há uma má gestão dos recursos financeiros por parte do consumidor. Trata-se daquele sujeito que atua, de forma irresponsável, no mercado de consumo. 384 // Problemas da jurisdição contemporânea... Esse consumidor endivida-se voluntariamente, contraindo dívidas superiores a sua capacidade financeira. Segundo Maria Manuel Leitão Marques, o superendividado ativo ainda pode ser consciente ou inconsciente: O consciente é aquele que de má-fé contrai dívidas, convicto de que não poderá honrá-las, visando a ludibriar o credor e deixar de cumprir sua prestação sabendo que o outro contratante não terá como executá-lo. Isto é, a intenção do devedor, desde o momento da contratação, era de não pagar. Age com reserva mental. Este superendividado não recebe o apoio estatal para recuperar-se. Pode-se dizer que nem mesmo se enquadraria no conceito, pois está ausente o requisito da boa-fé. Por outro lado, o superendividado ativo inconsciente agiu impulsivamente e de maneira imprevidente deixou de fiscalizar as seus gastos. É o consumidor que, embora não tenha sido acometido por nenhum fato superveniente, superendividou-se, por inconsequência, não com dolo de lograr, enganar. Neste caso, o fenômeno do superendividamento dá-se em função de seduções da sociedade contemporânea em adquirir produtos supérfluos, pelo simples impulso da compra (MARQUES, 2009). Desse modo, nota-se que, no superendividado ativo, há o aspecto volitivo, a denominada reserva mental, na qual o consumidor baseia sua atuação no mercado de consumo. O superendividado ativo consciente age de má-fé, ou seja, com o intuito de não quitar suas dívidas. Quanto aos demais, deverá ser analisado o caso concreto, partindo-se da análise do magistrado. O ativo inconsciente administra suas finanças de maneira inadequada; o consumidor superendividado passivo é aquele que sofre algum acidente da vida. Quanto ao superendividamento passivo, este, por sua vez, ocorre pelos fatos da vida, situações imprevisíveis, externas e alheias a sua vontade. Nesse caso, não há o que se falar em má-gestão dos recursos financeiros tampouco de má-fé. Ademais, cabe mencionar que pesquisas recentes concluem que o superendividamento passivo, causado por mudanças bruscas de rendimento, é a espécie mais frequente de superendividamento (SCHMIDT NETO, 2009). Note-se ainda que esses acidentes da vida que acometem o consumidor compreendem as áleas da vida, como, por exemplo, desemprego, doenças, divórcio, acidentes. O Projeto Piloto do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, que trata do “Tratamento das situações de superendividamento do consumidor”, em pesquisa realizada em 2007, com um total de 1.000 consumidores participantes, constatou os seguintes resultados: 29% do superendividamento passivo decorre do desemprego, seguido da separação/ divórcio (20%), gasto maior do que a renda (19%), doença ou morte (17%) e redução da renda (8%). Na mencionada pesquisa, identificou-se a prevalência do superendividado passivo. Outro aspecto importante é o fato de que 80% dos participantes estavam inscritos em cadastro de inadimplentes, fato esse que Tutela do consumidor... // 385 impede a reinserção no mercado de trabalho (ADESÃO AO PROJETO CONCILIAR É LEGAL, 2007). Presente a boa-fé, diante da vulnerabilidade do consumidor, caberá a proteção estatal, como forma de reequilibrar a relação de consumo. A classificação do consumidor superendividado revela a situação de desequilíbrio financeiro, em que se verifica a impossibilidade manifesta de se quitar as dívidas sem que o consumidor tenha sua dignidade afetada. Ainda, observa-se que a classificação doutrinária parte do prérequisito da boa-fé, sendo este o elemento subjetivo que divide os casos de superendividamento ativo consciente, ativo inconsciente e passivo. 22.4 A TUTELA CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR NA HIPÓTESE DE SUPERENDIVIDAMENTO O elemento-chave para a criação de uma tutela estatal dos direitos do consumidor superendividado, de fato, reside na boa-fé. Primeiramente, a boa-fé é um princípio geral dos contratos, o qual está incluso nos contratos de consumo. Como ainda não há uma lei específica que trate do superendividado, nota-se que a jurisprudência caminha um passo à frente, vez que esta prevê que a boa-fé deve permear a situação de superendividamento, a exemplo do julgado do Tribunal de Justiça do Paraná: APELAÇÃO CÍVEL EMPRÉSTIMO CONTRATADO MEDIANTE DÉBITO EM CONTA CORRENTE QUE RECEBE SALÁRIO EXISTÊNCIA DE OUTRO EMPRÉSTIMO, COM DESCONTOS EM FOLHA DE PAGAMENTO EMPRÉSTIMOS QUE, SOMADOS, ULTRAPASSAM O PERCENTUAL DE 30% (TRINTA POR CENTO) DO SALÁRIO LÍQUIDO DO AUTOR PRETENSÃO DE REALIZAR O DESCONTO EM CONTA CORRENTE DA INTEGRALIDADE DA PARCELA DO FINANCIAMENTO CONTRATADO IMPOSSIBILIDADE NA ESPÉCIE, SOB PENA DE COMPROMETIMENTO SIGNIFICATIVO DA RENDA DO MUTUÁRIO, A PONTO DE INVIABILIZAR SUA PRÓPRIA SUBSISTÊNCIA "SUPERENDIVIDAMENTO" DO CONSUMIDOR NECESSIDADE, CONTUDO, DE LIMITAR O DESCONTO E ADEQUAR O VALOR DA PARCELA AO LIMITE QUE, SOMADO AO OUTRO EMPRÉSTIMO, NÃO ULTRAPASSE 30% DO SALÁRIO LÍQUIDO DO AUTOR, CONSIDERADA, PARA FINS DE CÁLCULO DO DESCONTO PARCIAL, A REMUNERAÇÃO LIQUIDA (DEDUZIDO A CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA) DO AUTOR CONJUGAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (CF, ART. 1°, III) COM A BOA-FÉ OBJETIVA (ART. 4°, III, DO CDC COMB. COM O ART. 422 DO CÓDIGO CIVIL) [...]. (BRASIL, 2011). A importância de se conceituar o superendividamento reside no fato de que, a partir do enquadramento do caso concreto à definição legal, ter-seá a possibilidade de conferir a proteção legal. Analogicamente ao que ocorre para a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, no qual se devem enquadrar o caso concreto e as definições do que é consumidor e fornecedor. 386 // Problemas da jurisdição contemporânea... Para a aplicação de uma lei específica ao consumidor superendividado, é necessário que esse sujeito esteja dentro dos parâmetros fixados pela doutrina e jurisprudência, os quais orbitam, precipuamente, em torno da boa-fé, a qual qualifica o elemento volitivo. Isso porque ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza, nemo propriam turpitudinem allegans. Assim, a má-fé, o intuito de lesar credores, seria um elemento impeditivo de uma tutela mais benéfica, como preceitua o julgado abaixo, do Tribunal de Justiça do Paraná: CRÉDITO CONSIGNADO. CONCESSÃO DE CRÉDITO COM COMPROMETIMENTO DO LIMITE LEGAL DE 30% DA RENDA DO MUTUÁRIO. SUPERENDIVIDAMENTO PROVOCADO PELA BURLA DO SISTEMA LEGAL. PROIBIÇÃO DE TIRAR PROVEITO DA SUA PRÓPRIA TORPEZA. INIBIÇÃO DE INCLUSÃO DO NOME DO MUTUÁRIO EM ARQUIVOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO.INDEFERIMENTO DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA.MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. RECURSO DESPROVIDO. É sedutora a tese do agravante segundo a qual ele se encontra nessa situação de superendividamento não por sua culpa, mas por culpa dos réus, ora agravados, os quais, mediante sucessivas negociações de recompra de crédito consignado, conseguiram burlar o sistema de empréstimo consignado, em particular o seu limite legal de 30%, e tirar proveito dessa situação em detrimento dele. Sua tese, no entanto, não tem como, neste momento, prosperar. Isso porque, mal ou bem, ele também teria se beneficiado diretamente dos sucessivos refinanciamentos. Dessa forma, é certo que não poderá tirar proveito da sua própria torpeza ante o princípio nemo auditur propriam turpiditudinem suam allegans. (BRASIL, 2012). Nesse viés, verifica-se que o consumidor que merece o tratamento legal diferenciado, portanto, mais benéfico é aquele que se enquadra no conceito de superendividado passivo, pois este é vítima de um acidente de vida, o qual muitas vezes está aliado também à má conduta dos fornecedores de crédito. Nesse ponto, nota-se que as peculiaridades do caso concreto serão de suma relevância, uma vez que serão indicadores da boa-fé do consumidor. Diante da presença desse elemento, haverá o dever do credor em renegociar a dívida, de modo a preservar também a dignidade do consumidor, isto é, a quitação das dívidas que ocasionaram o superendividamento não poderá atingir o mínimo necessário para uma existência digna, a exemplo da alimentação, moradia, vestuário. Ainda, para se tornar mais concretos os elementos caracterizadores do superendividamento, é pertinente citar o projeto “Conciliar é legal” - CNJ (Conselho Nacional de Justiça) -, no qual as juízas de direito, Karen Rick Danilevicz Bertoncello e Clarissa Costa de Lima, do Rio Grande do Sul, realizaram estudos de caso acerca da conciliação aplicada ao superendividamento. Em muitos dos casos analisados, a boa-fé do consumidor é nítida: Tutela do consumidor... // 387 Carlos, 38 anos, casado, 3 dependentes, financeiro, renda individual mensal R$ 800,00; renda familiar mensal R$ 2.000,00. Despesas mensais decorrentes (gastos de subsistência): luz R$ 130,00; alimentação R$ 400,00; educação R$ 10,00; impostos R$ 80,00; transporte R$ 300,00. Valor da dívida com cada credor: instituição financeira pública estadual R$ 6.000,00; instituição financeira pública federal R$ 2.300,00; instituição financeira privada R$ 2.300,00; supermercado de rede internacional R$ 3.173,97; supermercado de rede nacional R$ 450,00; financeira R$ 4.608,43; empresa de telefonia R$ 120,00. Caracterização do caso: Carlos endividou-se em razão do desemprego e doença. Estava inadimplente em relação a sete credores supracitados e com nome registrado em cadastro de inadimplentes. Antes da audiência de renegociação, o superendividado já havia tentado renegociar diretamente com os credores, mas não teve sucesso porque os credores não concordaram em conceder qualquer desconto ou aumentar o prazo para possibilitar o pagamento. O acordo a ser mediado com todos os credores deveria respeitar a margem disponível de no máximo R$ 500,00 mensais, porque o superendividado ainda estava em contrato de experiência no emprego e a esposa estava grávida de gêmeos no momento em que recorreu ao projeto. Resultado: o acordo foi exitoso na medida em que todos os credores colaboraram para a elaboração de um plano de pagamento que se ajustava ao orçamento do superendividado, concedendo-lhe desconto ou aumentando o número das parcelas originalmente contratadas. Com o supermercado de rede internacional foi convencionado o pagamento de R$ 2.222,18 em 10 parcelas mensais e consecutivas de R$222,18; com o supermercado de rede nacional foi acordado o pagamento de R$ 300,00 em uma única parcela; com a empresa de telefonia o valor de R$ 80,00 em uma única parcela; com a financeira, o acordo foi firmado para pagamento do total de R$ 2.047,68 em 12 parcelas mensais e consecutivas de R$ 170,64. Com relação às instituições financeiras públicas, estadual e privada, foi necessário realizar segunda audiência para exame da proposta de pagamento oferecida pelo superendividado, na qual o acordo restou exitoso. Em relação à instituição pública estadual, foi acordado o pagamento de R$ 8.828,96, mediante uma entra de R$ 400,00 e duas parcelas de R$ 4.214, 48. Em relação ao banco privado, foi ajustado o pagamento de R$ 4.456,08 em 36 parcelas mensais e consecutivas de R$ 123,78. Os credores comprometeram-se a excluir o nome de superendividado de cadastro de inadimplentes no prazo máximo de cinco dias após o pagamento da primeira parcela. Somente não foi celebrado acordo com a instituição financeira federal por ser de competência da Justiça Federal. Ao ser entrevistado, após a realização do acordo, o superendividado revelou que se sentia aliviado porque não teria conseguido solucionar seu problema de endividamento sozinho, sem o auxílio do terceiro mediador (BERTONCELLO, 2009). No caso em apreço, notem-se os elementos que indicam a boa-fé do consumidor, quais sejam, o desemprego, a existência de um contrato de experiência, ou seja, não há a plena certeza de uma renda mensal fixa, além da gestação de gêmeos, situação que indica o acontecimento de fatos que não estavam previstos e que repercutiram, de modo negativo, no orçamento familiar. Ademais, desde o princípio, o consumidor mostrou-se interessado 388 // Problemas da jurisdição contemporânea... em renegociar a dívida, sendo, nesse caso, um direito seu e um dever do credor. Além disso, como o consumidor agira de boa-fé no momento de buscar a solução do conflito, as necessidades básicas do consumidor são preservadas, revelando-se o respeito à sua dignidade. Do outro lado dessa relação jurídica, atua o fornecedor, o qual também deve agir pautado na boa-fé, já que esse princípio basilar do direito contratual revela a transparência, equidade, confiança, aspectos que nortearão a intervenção do Estado-juiz. Sendo assim, o contrato de consumo deve estar permeado por deveres de conduta recíprocos, isto é, o dever jurídico de agir corretamente. Conquanto deve ser repudiada e afastada a conduta do fornecedor que abusa do direito de fornecimento de crédito, ao observar a vulnerabilidade, o analfabetismo, o desconhecimento e a inexperiência do consumidor. Na apreciação de casos que envolvem consumidores superendividados, os tribunais brasileiros já tem trazido a lume essa dimensão proporcionada pela boa-fé objetiva que deve ser observada também na conduta do fornecedor, como é refletido no julgado abaixo: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. Cliente de banco que, movido por inexperiência, desempregado, de baixa classe social e reduzido poder aquisitivo, faz uso de elevado credito, inexplicavelmente disponibilizado por banco, em flagrante lesão. Obrigações contraídas se evidenciam desproporcionais ao seu próprio proveito, passando os anos seguintes a celebrar novações e dilapidando o patrimônio da família para fazer frente à obrigação assumida, que alcança três vezes o valor original, em lucro exorbitante para o credor (art.157 do CC). Débitos que eram sempre apresentados de modo a não poderem ser quitados. Negativação do nome do autor no SPC, depois que, contraindo dívidas com outras financeiras para saldar a prestação com o réu, este, debitando os encargos contratuais, faz com que o valor restante se torne insuficiente para o pagamento, quando já' havia pagado o dobro do montante creditório originariamente contraído. Violação, pelo banco, dos princípios da justiça social (art. 170 da CF), da solidariedade social e da boa-fé', que informam o ordenamento jurídico civil brasileiro. Contrato celebrado com indiscutível lesão ao autor, que, além de inexperiente, não foi informado das condições do crédito. Violação a seus direitos básicos, enquanto consumidor, à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços e a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações (art.6. do CDC). Abuso de direito da negativação do nome do autor. Sentença condenatória em danos morais, no valor de 50 salários mínimos, equivalente a R$ 12.000,00, nesta data, que se confirma. Recurso improvido (BRASIL, 2003). Dentre os princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor, a boa-fé objetiva nortear a aplicação de todos os demais. Cláudia Lima Marques trabalha com três funções anexas que acompanham a boa-fé objetiva, quais sejam, criar deveres anexos durante o Tutela do consumidor... // 389 vínculo contratual, limitar o exercício de direitos subjetivos abusivos e garantir a concretização e interpretação dos contratos (MARQUES, 2004, p. 180). Destarte todo o núcleo de defesa do consumidor deve estar consolidado dentro dos parâmetros trazidos pelo seu eixo principiológico, no qual se destaca a boa-fé de ambas as partes da relação jurídica de consumo. A relação de consumo, propriamente dita, compreende, por si só, uma situação específica, uma vez que se observa a vulnerabilidade técnica, jurídica, processual e econômica do consumidor. Diante de uma relação jurídica de consumo, com relação à concessão de crédito, quando o consumidor encontra-se superendividado, a vulnerabilidade do consumidor está potencializada. De fato, o Código de Defesa do Consumidor trouxe privilégios materiais e processuais, além de princípios gerais, regras que norteiam o sistema positivo de defesa do consumidor, dado o desequilíbrio existente na relação consumerista. Nesse sentido, leciona Cristina Tereza Gaulia: Sublinha-se aqui, sem qualquer margem de dúvida, que a proteção a esse ‘desigual’, ao consumidor em sua absoluta e legal vulnerabilidade, a esse leigo cidadão sem qualquer expertise no que tange o fornecimento de produtos e serviços, há de ser privilegiada, sem a hipócrita neutralidade judiciária de um tempo passado em uma era não globalizada. Jogar âncoras que assegurem ao fragilizado cidadão superendividado um porto seguro, onde possa o mesmo resolver seus conflitos reais, é um múnus do magistrado que trabalha as lides de consumo (2010). Nesse contexto, deve-se notar que a situação do superendividado gera, como consequência, reflexos de ordem social, uma vez que aquele consumidor, antes atuante no mercado de consumo, agora está excluído. A inserção no ordenamento jurídico de uma lei específica que regule a situação jurídica dos superendividados deve visar primeiramente readequar uma situação econômica, que refletirá na sua reinserção social e, muitas vezes, também no mercado de trabalho. Mesmo que ainda não houvera uma alteração concreta e específica no Código de Defesa do Consumidor, as mudanças sociais estão um passo à frente das mudanças legislativas e aquelas refletem nestas. Não é porque não há uma lei que regulamente a relação jurídica do superendividado que este não poderá socorrer-se ao judiciário. A necessidade de contextualização plena do Código de Defesa do Consumidor é latente. Mas, como essa ainda não é uma realidade, a doutrina majoritária tem o entendimento de que, em se tratando de relação jurídica de consumo, o Estado-juiz poderá agir de ofício, pois não se aplica o princípio dispositivo, como expressa o art.1º, do Código de Defesa do Consumidor. Ademais, o art. 6º, inc. V, do Código de Defesa do Consumidor permite a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. 390 // Problemas da jurisdição contemporânea... É cediço falar no princípio da inafastabilidade do juiz, o qual, em se tratando do consumidor, é corroborado pelo art. 83, do Código do Consumidor, dispositivo legal que garante a admissibilidade de todas as espécies de ações capazes de garantir a adequada e efetiva tutela dos direitos do consumidor. Nesse sentido, Convém apontar por igual que o ideal será a aprovação de Lei do Superendividamento, pelo Congresso Nacional, mas enquanto esta não vem pode o Judiciário, confrontando com a clara literalidade do disposto no art. 126 do CPC, se eximir ‘de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei’. Destarte, ‘no julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais’, e ‘não as havendo’ deverá recorrer (o termo do dispositivo é ‘recorrerá’, indicando a obrigatoriedade!) ‘a analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito’ (GAULIA, 2010). Em que pese a ausência legislativa, o judiciário tem demonstrado que é possível enfrentar essas questões de modo a satisfazer o direito do consumidor superendividado. Tome-se, como exemplo, a formação do Núcleo da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (Nudecon) e o projeto-piloto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No tocante ao Judiciário do Estado do Paraná, este também tem trabalhado em projeto para o tratamento do superendividamento do consumidor, da conciliação e da mediação. Nesse sentido, preceitua a juíza de direito do Tribunal de Justiça do Paraná e coordenadora administrativa do projeto em Curitiba, Sandra Bauermann: Trata-se um procedimento simples, fundado na voluntariedade das partes na sua adesão, através da qual se busca, à míngua de normatização da matéria, permitir que o superendividado de boa-fé possa ter um instrumento para buscar uma renegociação amigável com seus credores [...]. No Brasil, o Tribunal de Justiça do Paraná foi o segundo a implantar o projeto de tratamento de superendividamento, seguindo o modelo e experiência do TJRS (BAUERMANN, 2011). No Estado do Paraná, o projeto que visa proporcionar a renegociação da dívida teve início em 2010 no âmbito de competência dos Juizados Especiais Cíveis. Para ter acesso ao programa, basta o consumidor superendividado preencher um formulário para que a audiência seja marcada. Ainda tendo em vista dados estatísticos apresentados pelo Tribunal de Justiça Paraná, entre 3 de maio de 2010 e 19 de agosto de 2010, os credores também aderiram ao projeto e, em sua maioria, são instituições financeiras ou de crédito. Além disso, verificou-se que 76% dos que procuram a renegociação da dívida são os superendividados passivos (BAUERMANN , 2011). No período de tempo acima citado, foram realizadas 1.153 audiências de conciliação, e, em 74%, foram exitosas. Tutela do consumidor... // 391 Índice esse bastante satisfatório, considerando-se que esses consumidores serão reinseridos no mercado de consumo, o que reflete em benefício não só para as partes, mas também para o mercado de consumo como um todo (BAUERMANN, 2011). Tendo-se em vista os resultados obtidos, revela-se a necessidade de fixação de mecanismos legais de prevenção e tutela dos superendividados. Há que se mencionar, ainda, que, em que pesem os resultados satisfatórios advindos da conciliação, essa ainda não é uma norma impositiva que possa vir a obrigar o fornecedor a firmar um acordo, pois, [...] ainda que válidas, as iniciativas do Poder Judiciário nesta matéria não são suficientes, já que estão a depender da iniciativa e empenho de um ou outro magistrado e, principalmente, do interesse da administração de cada tribunal (investimento, estrutura, etc.). [...] os atuais projetos de tratamento de superendividamento ao consumidor possuem procedimento sem força cogente, amparado apenas na voluntariedade das partes, especialmente do credor, em face da ausência de legislação que possibilite o contrário. O que se constatou na experiência paranaense foi significativo percentual de não comparecimento dos credores às audiências conciliatórias (22%), incluídos credores cadastrados (que firmaram o termo de adesão ao projeto) (BAUERMANN, 2011). A importância de se promulgar uma norma que vise equilibrar essa situação de desigualdade reside no fato de que não há mecanismos capazes de impor a colaboração do credor na conciliação. Essa lei também deveria atuar no sentido de que, restando infrutífera a tentativa de conciliação, o Estado-juiz, considerando ser essa norma de ordem pública, poderia impor, ao credor, um plano de pagamento. Ante a ausência normativa, na concepção apresentada por Heloisa Carpena, surgem inúmeros questionamentos, que importam em verdadeiras lacunas no ordenamento jurídico: A primeira pergunta a ser respondida pelo legislador brasileiro é sobre o campo de aplicação da norma: se dirigida amplamente a todos os devedores, ou só aos consumidores, tal qual definidos no Código de Defesa do Consumidor. Ainda que prevaleça a tendência consumerista, estaria necessariamente excluído o consumidor pessoa jurídica? E o superendividado ativo, também estaria excluído? E como defini-lo? Seria superendividado ativo aquele que toma o crédito para consumo de supérfluos, ou apenas o que busca fazer frente às necessidades da vida? Não caberia nos limites desse trabalho responder a essas indagações apenas iniciar o debate e dar conta da complexidade do tema, a qual se revela já nesse primeiro ponto. Superada a questão subjetiva, resta indagar se a situação de superendividamento alcançaria indistintamente dívidas vencidas e a vencer, ou seja, se estaria caracterizado apenas quando houvesse inadimplência propriamente dita. Sobre esse ponto, sem pretender formular qualquer sugestão, vale lembrar que a ideia de superendividamento está associada apenas ao desequilíbrio patrimonial, bastando, portanto, para caracterizá-lo, que o passivo supere o ativo (2007). 392 // Problemas da jurisdição contemporânea... Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro, de fato, reclama por uma tutela jurídica do consumidor superendividado, de modo que a lei venha completar e ampliar o que já está sendo realizado, de modo inédito, pelo Poder Judiciário. Essa lei significará a resposta para os diversos questionamentos que são suscitados diante do caso concreto. Enquanto não há, no ordenamento jurídico, a positivação de uma lei, aplicam-se a normativa e os princípios albergados pelo Código de Defesa do Consumidor. São ensinamentos de Fernanda Moreira Cezar: A melhor doutrina brasileira, inspirada na legislação alienígena, preconiza, então, a elaboração de uma lei específica, que implante no Brasil um regime especial para o superendividamento. Através de um procedimento com a intervenção do Estado, haveria a tentativa de conciliação entre consumidor endividado excessivamente e seus credores, com a fixação de um plano de pagamento das dívidas, semelhante ao modelo francês das comissões de superendividamento. A primeira fase do procedimento de tratamento do consumidor superendividado seria extrajudicial. Neste momento, o consumidor buscaria uma conciliação com seus credores, diante de uma comissão, que avaliaria as condições pessoais do superendividado e os requisitos formais impostos pela lei, tais como a boa-fé, para que fosse elaborado um plano de pagamento de dívidas. Havendo conciliação, o termo de acordo seria homologado pelo juiz. [...] Entretanto, não sendo possível a fase administrativa de conciliação, instalar-se-ia a fase judicial, que, ao contrário da fase extrajudicial, para que seja uma realidade no Brasil, demanda necessariamente a elaboração de uma lei especial que a regule (CARPENA, 2007). Embora timidamente, o Brasil, inspirando-se no modelo francês, tem caminhado para ir além da fase pré-processual, a qual já é realizada em alguns Estados, como Paraná e Rio Grande do Sul. Pode-se dizer que a fase pré-processual que compreende a conciliação já é um instrumento eficaz, uma vez que poupa a movimentação do Judiciário para as ações revisionais de contrato. Um mecanismo capaz de aliviar a gritante discrepância de condições entre o consumidor superendividado e o fornecedor de crédito é a educação para o consumo. Esta significaria um elemento paliativo, no entanto, edificada, visando prevenir o consumo inconsequência. A ânsia por consumir é, de fato, resultado imediato, decorrente do estímulo ao consumo. A atuação de consumidores educados para o consumo evitaria as consequências econômicas, sociais e psicológicas, desencadeadas pelo superendividamento. Nessa perspectiva, A publicidade tornou-se parte importante na produção de novas identidades, comercializando modos e forma de vida - mesmo que não consumamos nenhum dos objetos alardeados pela publicidade como se fossem chave da felicidade, consumimos a imagem deles. Consumimos o desejo de possuílos [...]. Assim, podemos dizer que a problemática do superendividamento Tutela do consumidor... // 393 está atrelada à mídia e publicidade como vendedora de modos de vida e à publicidade do crédito, que é responsável pela duplicação dos efeitos da mídia, oferecendo formas de adquirir os bens e serviços ofertados no mercado de consumo [...]. Assim, chegamos a uma conclusão óbvia: os cidadãos podem ter acesso ao crédito fácil para obtenção de bens e serviços [...]. Como já vimos, no plano macroeconômico, o crédito é fundamental para a economia mundial e no âmbito pessoal é uma forma de ajuda para a inclusão social. Contudo, o crédito pode operar em sentido inverso, chegando à exclusão do endividado, quando utilizado de forma desmedida, ou caso aconteça algum acontecimento imprevisível na vida do indivíduo (LISBOA, 2014). Igualmente, é importante salientar que a educação para o consumo torna claras e cognoscíveis, ao consumidor, as consequências da contratação do serviço de prestação de crédito. De modo que este será capaz de avaliar as consequências em longo e curto prazo, além de adequar seu orçamento ao crédito adquirido. Note-se que a educação para o consumo consciente constrói conhecimento prévio à contratação do crédito, fato esse que não exime o fornecedor de cumprir seu dever de informação. Para tanto, conforme o que dispõe Heloisa Carpena, é importante que O fornecedor somente se desncumb[a] de forma satisfatória do dever de informar quando os dados necessários à tomada de decisão pelo consumidor são por ele cognoscíveis. Não basta, portanto dar a conhecer, disponibilizar, é preciso que o consumidor efetivamente compreenda o que está sendo informado [...]. Em outras palavras, se a informação não é cognoscível, não obriga o consumidor (CARPENA, 2007). Em muitos casos, a falta de informação faz com que o consumidor não saiba nem a quem ou a que órgão recorrer para realizar a renegociação da dívida. Ademais, ante a sua inexperiência, falta de educação para consumo e desconhecimento, somadas àalta capacidade do fornecedor em técnicas de publicidade, aquele acaba por comprometer sua própria existência. Os tribunais já estão atentando-se para a preservação do mínimo existencial, para a essencialidade de não reduzir o consumidor a uma peça do mercado de consumo, pois isso corromperia a sua dignidade, enquanto pessoa. Nesse sentido, é o entendimento da juíza Sandra Bauermann (2011) que, Enfim, na atual sociedade brasileira do crédito e do consumo, a criação de um procedimento legal de tratamento de situações de superendividamento do consumidor é básica para que a ordem jurídica infraconstitucional efetivamente esteja em sintonia com o princípio da dignidade da pessoa humana que é o fundamento da República Federativa do Brasil, e é frontalmente violado em muitas das situações de superendividamento dos consumidores brasileiros! 394 // Problemas da jurisdição contemporânea... Nessa senda, há que se observar que o que se deve fazer é sopesar valores: o que será mais caro para sociedade: a satisfação do crédito do fornecedor a qualquer custo ou a preservação da dignidade do devedor? Note-se que, no ordenamento jurídico brasileiro, busca-se proteger a dignidade do consumidor, a exemplo da limitação de desconto de crédito consignado a 30%, sendo essa uma prática instituída pelos tribunais, a que foi albergada pela lei 10.820/2003 (Lei do Empréstimo Consignado), como expresso no art. 6º, §5º. Por conseguinte, observe-se que, mesmo diante da ausência normativa, é um princípio geral e básico, mormente nas relações consumeristas, a preservação da dignidade humana, o que se concretiza pela preservação do mínimo existencial. Portanto, a inovação legislativa que se espera deve preservar a prática já realizada pela jurisprudência e também defendida pela doutrina que trata do consumidor superendividado e suas implicações sociais e jurídicas. Sendo assim, Não há dúvida de que o superendividamento é um fenômeno que não pode deixar de ter um tratamento adequado no Brasil, não só em função de ser situação que agride a dignidade do cidadão, mas também e principalmente por termos uma das leis progressistas bem elaboradas a nível internacional, no que tange a proteção e garantia dos direitos do consumidor, eis que o CDC se propõe a concretizar o projeto do legislador constitucional quanto a este novo direito fundamental. A angústia, entretanto, de termos no cenário jurídico uma lei principiológica, de cláusulas gerais, com somente 119 artigos, é a herança deixada pelo constituinte para ser desenvolvida pelos juízes brasileiros (GAULIA, 2010). Nesse viés, pode-se dizer que o Código de Defesa do Consumidor, de fato, será a norma matriz que, por meio de seus princípios, guiará a criação de uma disciplina jurídica para os consumidores superendividados. 22.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O legislador brasileiro preocupou-se em tutelar as relações jurídicas que envolvem o consumidor, considerando principalmente a vulnerabilidade técnica, jurídica e econômica deste. Na sistemática de proteção do consumidor, merecem destaque os princípios, dentre eles, o princípio da boafé. Verifica-se que a cultura de consumo trouxe novos problemas sociais já que fora capaz de trazer a situação de superendividamento e, consequentemente, a necessidade de proteção jurídica, específica pautada nos princípios já existentes. Para se concretizar a possibilidade de uma tutela jurídica dos superendividados, é necessária a conceituação de quem é o superendividado, para se delimitar a incidência da proteção legal. Nesse Tutela do consumidor... // 395 sentido, é de substancial importância a classificação doutrinária, de acordo com a presença da boa-fé. O consumidor superendividado passivo é surpreendido com fatos externos que impossibilitam que quite suas dívidas de natureza consumerista. O consumidor superendividado ativo não contrai dívidas, pautado na boa-fé, verificando a má gestão dos recursos financeiros, pois gasta de forma irresponsável. Nesse sentido, o consumidor que age de má-fé não merece ser amparado da mesma forma que o consumidor que sofre com adversidades externas, a exemplo de doenças, desemprego, divórcio, entre outras. Diante dessa situação fática que reclama previsão legal protetiva, o Tribunal de Justiça do Paraná busca, por meio da conciliação e da mediação, possibilitar a aproximação do consumidor e de seu credor para busca de uma solução. Isso traria benefícios para ambas as partes, pois o consumidor poderia se reestabelecer no mercado de consumo e o credor teria seu crédito satisfeito. Ante a ampla tutela do consumidor no ordenamento jurídico brasileiro, não seria plausível desproteger o consumidor em vulnerabilidade ainda maior, o que ocorre com o consumidor superendividado. O Estado não pode negligenciar o dever de atuar no sentido de garantir a dignidade humana do consumidor, pois, estando desprotegido, está vulnerável aos abusos praticados pelos fornecedores. Sendo assim, resta preencher essa lacuna legal, por meio da criação de uma lei específica, preventiva e protetiva, capaz de tutelar as situações jurídicas, decorrentes do superendividamento. 22.6 REFERÊNCIAS ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de direito do consumidor. Barueri: Manole, 2006. BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Elfos E