Untitled - Humanitas Vivens

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Untitled - Humanitas Vivens
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Problemas da jurisdição contemporânea...
IMAGEM DA CAPA: Unicesumar – Centro Universitário Cesumar de Maringá
Prefácio
3
Daniela Menengoti Ribeiro
Rodrigo Valente Giublin Teixeira
(Organizadores)
AUTORES:
Alessandro Severino Valler Zenni / Alexandre Ribas de Paulo / Ana Luísa Moreli
Pangoni / Andryelle Vanessa Camilo Pomin / Caroline Christine / Mesquita / Daniela
Menengoti Ribeiro / Danilo Zanco Belmonte / Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade
/ Edgar Dener Rodrigues / Fabiola Cristina Carrero / Fernanda Roberta Sasso Mello /
Franciele de Oliveira Rahmeier / Francielle Lopes Rocha / Hadassa Melo Paulino /
Ivan Aparecido Ruiz / Jaime Leônidas Miranda Alves / Jeane Genara Volpato / João
Paulo Sales Delmondes / Jodascil Gonçalves Lopes / Jonatas Cesar Dias / Juliano
Miqueletti Soncin / Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli / Lauro Ishikawa / Luciana Lupi
Alves / Luciane Pussi / Malu Romancini / Márcia Fátima da Silva Giacomelli / Marco
Antônio César Villatore / Maria Priscila Soares Berro / Marta Beatriz Tanaka
Ferdinandi / Martinho Martins Botelho / Milaine Akahoshi Novaes / Milton Roberto da
Silva Sá Ravagnani / Mithiele Tatiana Rodrigues / Muriana Carrilho Bernardineli /
Nilson Tadeu Reis Campos Silva / Osmar Gonçalves Ribeiro Junior / Paulo Gomes de
Lima Júnior / Rodrigo Valente Giublin Teixeira / Rosani Borin / Roseli Borin / Sarah
Tavares Lopes da Silva / Tais Zanini de Sá Duarte Nunes / Taniara Andressa Braz
Rigon / Tiago Bunning Mendes / Valine Castaldelli Silva / William Artur Pussi
PROBLEMAS DA JURISDIÇÃO CONTEMPORÂNEA
E AS TENDÊNCIAS DOS INSTRUMENTOS DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Primeira Edição E-book
Editora Vivens
O conhecimento a serviço da Vida!
Maringá – PR – 2015
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Problemas da jurisdição contemporânea...
Copyright 2015 by
Daniela Menengoti Ribeiro; Rodrigo Valente Giublin Teixeira
EDITORA:
Daniela Valentini
CONSELHO EDITORIAL:
Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR
Dra. Lorella Congiunti – PUU - Roma
Dr. Ivan Dias da Motta - UNICESUMAR
REVISÃO ORTOGRÁFICA:
Prof.ª Malu Romancini
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
Bruno Macedo da Silva
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
P962
Problemas da jurisdição contemporânea e as
tendências dos instrumentos de efetivação dos
direitos da personalidade. / organizadores
Daniela Menengoti Ribeiro , Rodrigo Valente
Giublin Teixeira; autores, Alessandro Severino
Valler Zenni ... [et al]. – 1. ed. e-book –
Maringá, PR: Vivens, 2015. 416 p.
Modo de Acesso: World Wide Web:
<http://www.vivens.com.br>
ISBN: 978-85-8401-057-8
1. Direito. 2. Direitos da personalidade. I.
Título.
CDD 22. ed. 346.013
Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi
Bibliotecária CRB/9-1610
Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer
forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de
dados sem permissão escrita da Editora.
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Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro
Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (44) 3056-5596
http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..............................................................................................
09
I = A INDENIZAÇÃO GLOBAL NA DEMARCAÇÃO
DE TERRAS INDÍGENAS COMO MEIO DE PROTEÇÃO
DE DIREITOS DA PERSONALIDADE DE ÍNDIOS E NÃO ÍNDIOS
Tiago Bunning Mendes
João Paulo Sales Delmondes
Jodascil Gonçalves Lopes..................................................................................
11
II = A OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
DECORRENTE DO TRABALHO ESCRAVO
NA CONTEMPORANEIDADE: PROPOSTAS
PARA SUA ERRADICAÇÃO
Muriana Carrilho Bernardineli.............................................................................
27
III = A PERDA DE UMA CHANCE E A TUTELA JURÍDICA
DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Fernanda Roberta Sasso Mello
Osmar Gonçalves Ribeiro Junior........................................................................
45
IV = A PROTEÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA
VERSUS A PROTEÇÃO AMBIENTAL EUROPEIA
Malu Romancini
Mithiele Tatiana Rodrigues.................................................................................
63
V = A PROTEÇÃO DA PERSONALIDADE
DO IDOSO FRENTE AOS PROCESSOS
DE INTERDIÇÃO E INABILITAÇÃO
Taniara Andressa Braz Rigon
Luciana Lupi Alves..............................................................................................
81
VI = A REPERCUSSÃO GERAL
NOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS
UM MECANISMO DE REDUÇÃO DE DEMANDAS
PARA PROMOÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA
Edgar Dener Rodrigues
Danilo Zanco Belmonte.......................................................................................
103
VII = ADMISSIBILIDADE DA PROVA ILÍCITA
PARA A TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Ana Luísa Moreli Pangoni
Milaine Akahoshi Novaes....................................................................................
117
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Problemas da jurisdição contemporânea...
VIII = AS INFORMAÇÕES COLHIDAS POR INTERMÉDIO
DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA ILÍCITA
E O PROCEDIMENTO DE DESENTRANHAMENTO
E INUTILIZAÇÃO DAS MESMAS NO SISTEMA
DO PROJUDI DO PARANÁ
Alexandre Ribas de Paulo
Valine Castaldelli Silva........................................................................................
135
IX = CRIANÇA E ADOLESCENTE VÍTIMA
DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR:
ESCUTA ESPECIAL, O MELHOR CAMINHO
PARA EVITAR A REVITIMIZAÇÃO?
Márcia Fátima da Silva Giacomelli......................................................................
147
X = DA INEFICIÊNCIA NA CONCRETIZAÇÃO
DA POLÍTICA PÚBLICA DE SEGURANÇA E SAÚDE
DO TRABALHADOR NO MUNICÍPIO DE MARINGÁ-PARANÁ
Ivan Aparecido Ruiz
Tais Zanini de Sá Duarte Nunes.........................................................................
161
XI = DA INTERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS
DA PERSONALIDADE COM O DIREITO DO CONSUMIDOR
Franciele de Oliveira Rahmeier
Juliano Miqueletti Soncin....................................................................................
185
XII = DA PESSOA TRANSEXUAL E DA PESSOA HOMOSSEXUAL:
DA PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO E VIOLAÇÕES
AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Sarah Tavares Lopes da Silva
Francielle Lopes Rocha......................................................................................201
XIII = LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E PRIVACIDADE:
CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Milton Roberto da Silva Sá Ravagnani
Rodrigo Valente Giublin Teixeira........................................................................223
XIV = O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO BRASIL
Paulo Gomes de Lima Júnior
Marta Beatriz Tanaka Ferdinandi........................................................................
243
XV = O FIM DO REGIME DE INCAPACIDADE CIVIL
Nilson Tadeu Reis Campos Silva.......................................................................263
Prefácio
7
XVI = O HUMANISMO E A FRATERNIDADE
COMO CATEGORIAS CONSTITUCIONAIS
Lauro Ishikawa
Luciane Pussi
William Artur Pussi..............................................................................................
281
XVII = O PAPEL DA PROPAGANDA ELEITORAL
NA CONDUÇÃO DO PROCESSO DEMOCRÁTICO
EM FACE DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Jeane Genara Volpato
Fabiola Cristina Carrero
Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade...........................................................
299
XVIII = O RECONHECIMENTO JURISPRUDENCIAL
DOS ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS COMO MEIO
DE RESTABELECER O EQUILÍBRIO SOCIOECONÔMICO
ENTRE EX-CONSORTES
Jaime Leônidas Miranda Alves
Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli........................................................................
313
XIX = POLITICAS PUBLICAS EDUCACIONAIS
À LUZ DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Jonatas Cesar Dias.............................................................................................
327
XX = POLÍTICAS PÚBLICAS, LIAME QUE GUARDA
UMA JUSTIÇA ALICERÇADA NA VIDA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA
Alessandro Severino Valler Zenni
Caroline Christine Mesquita
Daniela Menengoti Ribeiro..................................................................................
335
XXI = REFLEXÕES DA APLICABILIDADE
DA LEI MARIA DA PENHA QUANTO À AÇÃO PENAL
NA AGRESSÃO CONTRA MULHER NO MUNICÍPIO DE JI-PARANÁ
Maria Priscila Soares Berro
Rosani Borin
Roseli Borin.........................................................................................................
351
XXII = TUTELA DO CONSUMIDOR NA HIPÓTESE
DE SUPERENDIVIDAMENTO:
DILEMA CONTEMPORÂNEO
Andryelle Vanessa Camilo Pomin
Hadassa Melo Paulino........................................................................................
375
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Problemas da jurisdição contemporânea...
XXIII = UMA ALTERNATIVA PARA O ACESSO
E A DISTRIBUIÇÃO DA JUSTIÇA NOS MEIOS ALTERNATIVOS
DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSES
CONCRETIZANDO OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Marco Antônio César Villatore
Martinho Martins Botelho....................................................................................
399
APRESENTAÇÃO
O livro “Problemas da jurisdição contemporânea e as tendências dos
instrumentos de efetivação dos direitos da personalidade” reforça a
importância e o empenho por parte da academia científica em contribuir para
o tema.
Conscientes dos problemas que norteiam tais direitos e empenhados
na incessante luta para sua concretização, pesquisadores especializados na
área debruçaram-se em estudos apresentados nos 23 capítulos da obra, que
exploram experiências do contexto jurídico brasileiro e estrangeiro.
Em suas contribuições, os autores abordaram temáticas convergentes
à jurisdição contemporânea e os instrumentos de efetivação dos direitos da
personalidade, destacando-se as seguintes: tutela jurisdicional, tutela do
consumidor, proteção ambiental, direitos sociais, direitos da personalidade,
políticas públicas e inclusão social.
O Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar adotou, de forma
exclusiva no Brasil, como área de concentração dos estudos do programa, os
direitos da personalidade, tornando-se, desta forma, uma referência sobre as
inovações normativas, institucionais, jurisprudenciais e as mais recentes
literaturas na área. Por tal razão, a presente obra possui uma expressiva
participação de docentes e discentes da Unicesumar, mas também contou com
uma significativa contribuição de autores de outras instituições brasileiras.
Os estudos apresentados pelos autores revelam-se, assim, uma rica
troca de conhecimento e experiência acadêmica, e com produtivas reflexões,
que seguramente colaboram para aprimorar o debate científico e promove a
consciência cidadã.
Neste sentido, os coordenadores agradecem as excelentes
considerações trazidas pelos autores Alessandro Severino Valler Zenni,
Alexandre Ribas de Paulo, Ana Luísa Moreli Pangoni, Andryelle Vanessa
Camilo Pomin, Caroline Christine Mesquita, Daniela Menengoti Ribeiro, Danilo
Zanco Belmonte, Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade, Edgar Dener
Rodrigues, Fabiola Cristina Carrero, Fernanda Roberta Sasso Mello, Franciele
de Oliveira Rahmeier, Francielle Lopes Rocha, Hadassa Melo Paulino, Ivan
Aparecido Ruiz, Jaime Leônidas Miranda Alves, Jeane Genara Volpato, João
Paulo Sales Delmondes, Jodascil Gonçalves Lopes, Jonatas Cesar Dias,
Juliano Miqueletti Soncin, Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli, Lauro Ishikawa,
Luciana Lupi Alves, Luciane Pussi, Malu Romancini, Márcia Fátima da Silva
Giacomelli, Marco Antônio César Villatore, Maria Priscila Soares Berro, Marta
Beatriz Tanaka Ferdinandi, Martinho Martins Botelho, Milaine Akahoshi
Novaes, Milton Roberto da Silva Sá Ravagnani, Mithiele Tatiana Rodrigues,
Muriana Carrilho Bernardineli, Nilson Tadeu Reis Campos Silva, Osmar
Gonçalves Ribeiro Junior, Paulo Gomes de Lima Júnior, Rodrigo Valente
Giublin Teixeira, Rosani Borin; Roseli Borin, Sarah Tavares Lopes da Silva,
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Problemas da jurisdição contemporânea...
Taís Zanini de Sá Duarte Nunes, Taniara Andressa Braz Rigon, Tiago Bunning
Mendes, Valine Castaldelli Silva e William Artur Pussi.
Registra-se especial agradecimento à Unicesumar nas pessoas dos
queridos professores Wilson Matos Silva, Claudio Ferdinandi e Ludhiana Ethel
Kendrick Silva por não medirem esforços para a realização da pesquisa
científica em nossa instituição, e do professor José Sebastião de Oliveira,
coordenador do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas.
Por fim, reiteramos o prazer em participar como organizadores desta
obra e a nossa firma convicção da importância do exercício da investigação
científica na busca da efetivação dos direitos e de uma sociedade mais justa e
solidária.
“Nada de grandioso no mundo foi realizado sem paixão”
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Maringá, 15 de dezembro de 2015.
Organizadores:
Profª. Drª. Daniela Menengoti Ribeiro
Prof. Dr. Rodrigo Valente Giublin Teixeira
=I=
A INDENIZAÇÃO GLOBAL NA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS
COMO MEIO DE PROTEÇÃO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE DE
ÍNDIOS E NÃO ÍNDIOS
Tiago Bunning Mendes*
João Paulo Sales Delmondes**
Jodascil Gonçalves Lopes***
1.1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo demostrar, detalhadamente, o
procedimento de demarcação de terras indígenas no ordenamento jurídico
brasileiro e propor uma possível solução para esses conflitos com uma
alteração na forma de pagamento das indenizações das terras envolvidas.
A problemática traz uma colisão de Direitos da Personalidade das
duas partes envolvidas no conflito, índios e não índios. Há o Direito
consagrado constitucionalmente do indígena de se reestabelecer nas terras
que são consideradas tradicionalmente suas e há de outra banda o Direito
dos não indignas proprietários da terra, que as adquiriram, de forma legitima
e legal, conforme os ditames e com homologação e registro do Estado.
Assim o que propõem o artigo é a solução do conflito entre as duas
etnias coabitantes no território brasileiro, índios e não índios - divisão apenas
de caráter social que não resiste a rigidez antropológica -, acabando com a
guerra fraticida entre elas, com um modelo de indenização mais adequado,
que pressupõem a não negligencia do Governo e pagamento de indenização
no valor global.
O Decreto n. 1.175, de 08 de janeiro de 1996 e a Lei 6.001/1973
intitulada de Estatuto do Índio, são os responsáveis pelas providências
necessárias para tal demarcação.
Entretanto, com o passar do tempo não inovaram no que diz respeito
aos entraves nos pagamentos das indenizações, notadamente, no que diz
respeito ao valor e a ser indenizado.
*
Advogado em Campo Grande/MS. Mestrando em Desenvolvimento Local pela Universidade
Católica Dom Bosco – UCDB. Pós-Graduando em Direito Penal pela Faculdade Damásio de
Jesus. Graduado em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. E-mail:
[email protected].
**
Advogado em Campo Grande/MS. Mestrando em Desenvolvimento Local pela Universidade
Católica Dom Bosco – UCDB. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista
de Direito – EPD. Graduado em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. E-mail:
[email protected].
***
Advogado em Campo Grande/MS. Mestrando em Direitos da Personalidade pela
UNICESUMAR. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Damásio de
Jesus e especialista em Direito penal também pela Faculdade Damásio de Jesus. Graduado em
Direito pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. E-mail: [email protected].
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Problemas da jurisdição contemporânea...
Assim, a atual previsão legal de indenização que se restringe ao valor
das benfeitorias úteis e necessárias é desarmônica ao ordenamento jurídico
pátrio, em analogia as demais hipóteses de limitação ao direito de
propriedade privada.
Evidente assim um latente desrespeito também aos direitos da
personalidade; segurança jurídica e ao direito adquirido. Bem como, um
indubitável abandono aos princípios fundamentais da razoabilidade e
proporcionalidade, que buscam a convivência prática entre direitos
fundamentais e não o sacrifício total de um deles em prol de outro.
Destaca-se, ainda, que a implementação de uma indenização justa
acarretará efeitos econômicos, políticos e sociais no cenário brasileiro.
Por fim, se propõe que a justa indenização, se paga previamente e
em dinheiro, possibilita a retirada mais célere do proprietário da terra,
evitando assim todo impasse e conflito causado pela demarcação.
1.2 O PROCEDIMENTO DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS
Cumpre observar, preliminarmente, que em nosso ordenamento
jurídico o procedimento de demarcação de terras indígenas é previsto na Lei
6.001/73 (Estatuto do Índio), e regulamentado pelo Decreto 1.775, de 8 de
janeiro de 1996.
O Estatuto do Índio determina em seu artigo 19 que as terras
indígenas serão demarcadas por iniciativa e sob orientação do Órgão Federal
de Assistência ao Índio, mediante procedimento administrativo antecedido de
Decreto do Poder Executivo.
Nesse sentido, o Decreto 1.775/ 96 estabelece que o procedimento
administrativo para Demarcação de Terras Indígenas (conhecidas como
TI´s), se subdividi em cinco fases, quais sejam, identificação, declaração,
delimitação, homologação e regularização (através do registro).
Em ambos os instrumentos normativos a iniciativa para demarcação
fica a cargo da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão federal incumbido
na representação e assistência dos índios, de acordo o art. 1º da Lei 5.371/67.
Para o aludido órgão o procedimento de demarcação também se
subdivide em cinco etapas. São elas:
Em estudo: Realização dos estudos antropológicos, históricos, fundiários,
cartográficos e ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação
da terra indígena.
Delimitadas: Terras que tiveram os estudos aprovados pela Presidência da
Funai, com a sua conclusão publicada no Diário Oficial da União e do Estado,
e que se encontram na fase do contraditório administrativo ou em análise
pelo Ministério da Justiça, para decisão acerca da expedição de Portaria
Declaratória da posse tradicional indígena.
Declaradas: Terras que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória pelo
Ministro da Justiça e estão autorizadas para serem demarcadas fisicamente,
com a materialização dos marcos e georreferenciamento.
A indenização global...
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Homologadas: Terras que possuem os seus limites materializados e
georreferenciados, cuja demarcação administrativa foi homologada por
decreto Presidencial.
Regularizadas: Terras que, após o decreto de homologação foram
registradas em Cartório em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da
União (FUNAI, web).
Pois bem. Comungamos do entendimento que o início do
procedimento de demarcação se dá na fase de Identificação, a qual o art. 2º,
§1º do Decreto 1.775/96, determina que a FUNAI nomeie um antropólogo
com qualificação reconhecida que coordenará um grupo técnico
especializado, composto preferencialmente por servidores (técnicos) do
próprio quadro funcional do órgão.
Tal grupo será responsável por elaborar estudos complementares de
natureza etnohistórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, bem
como levantamento fundiário que fundamentarão a demarcação das terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Em 30 dias contados da data de publicação do ato que constitui o
grupo técnico, os órgãos públicos tem o dever no âmbito de suas
competências de prestarem informações sobre a área objeto da identificação,
enquanto as entidades civis não possuem a obrigação de realizar este ato,
nos termos do art. 2º, §5º do Decreto já citado.
Tais estudos elaborados pelo grupo técnico darão ensejo a um
relatório (relatório antropológico) circunstanciado à FUNAI, constando os
elementos exigidos pela Portaria nº 14, de 09 de janeiro de 1996 da FUNAI e
caracterizando a terra indígena a ser demarcada, conforme art. 2º, §7º do
Decreto (FUNAI, web).
Este relatório deverá ser aprovado pelo Presidente da FUNAI no
prazo de 15 dias, publicado um resumo no Diário Oficial da União e no Diário
Oficial da respectiva Unidade Federativa, devendo, ainda, ser afixada a
publicação na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.
O parágrafo 8º, art. 2º do mesmo Decreto elucida que no prazo de 90
dias a partir das publicações exigidas no parágrafo 7º do mesmo diploma
legal, poderão se manifestar os Estados, Municípios e demais interessados,
apresando diretamente à FUNAI suas alegações devidamente comprovadas,
cuja finalidade é pleitear indenização em virtude da demarcação ou
demonstrar vícios no relatório antropológico.
Neste prisma, surge a grande alteração trazida pelo Decreto
1.175/96, em observância ao art. 5º LV da Constituição Federal,
possibilitando a ampla defesa e o contraditório mediante contestação de todo
interessado, inclusive os Entes Federativos (Estados e Municípios).
Em crítica, é necessário observar que o contraditório oferecido aos
interessados, Estados e Municípios tem sua ocorrência somente após o
término dos estudos e elaboração do relatório realizado exclusivamente pela
FUNAI.
A respeito dos laudos antropológicos que são o fundamento do
relatório elaborado pela FUNAI, à acida crítica de Hildebrando Campestrini:
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Problemas da jurisdição contemporânea...
Embora despojados de qualquer caráter científico, unilaterais, inflamados às
vezes, omissos quando as provas são contrárias, com o discurso subliminar
de condenação do proprietário rural, tais laudos antropológicos (que, em
verdade não são laudos, porque acalorados e mal fundamentados),
constituem o documento vital para justificar a “retomada das terras”
(CAMPESTRINI, 2009, p. 51).
Entretanto, vale ressaltar que, atualmente, segundo a Portaria n.
2.498/2011 do Ministério da Justiça os Estados e Municípios participam de
todas as fases do procedimento administrativo para demarcação, desde os
estudos realizados pelo grupo técnico da FUNAI.
Contudo, permanece cerceado o direito a ampla defesa e
contraditório dos demais interessados, ou seja, os particulares alheios aos
Estados e Municípios.
Acerca do tema Lorenzo Carrasco aponta:
A Portaria 2.498/2011 do Ministério da Justiça, emitida em novembro,
estabeleceu a inserção dos estados e municípios nos estudos de
demarcação de terras indígenas, em todas as suas etapas, acabando com o
monopólio até então exercido pela Funai (CARRASCO, 2013, p. 14).
Ademais, não se tem conhecimento ao menos um estudo ou relatório
elaborado pelo grupo de técnicos da FUNAI que fora revertido mediante o
contraditório administrativo disponibilizado aos particulares, Estados e
Municípios.
Desta forma, nos 60 dias subsequentes ao término do prazo de
razões dos interessados, ou seja, 150 dias após a publicação do relatório
antropológico, a FUNAI elaborará pareceres sobre as razões de todos os
interessados e encaminhará o procedimento ao Ministro da Justiça.
Recebido o relatório pelo Ministro da Justiça, a este será concedido
o prazo de 30 dias, nos quais poderão ser tomadas três decisões distintas,
conforme art. 2, §10º, incisos I a III do Decreto 1.175/96, a saber: a)
desaprovar, mediante decisão fundamentada, o relatório dos estudos e
consequentemente a demarcação, pela inexistência de qualquer das quatro
características enumeradas pelo §1º do art. 231 da CF; b) expedir Portaria
para declarar os limites da TI determinando sua demarcação, ou ainda; c)
prescrever diligências que julgue ainda necessárias para sua decisão de
aprovação ou desaprovação, a serem cumpridas no prazo de 90 dias.
Notadamente, nas situações em que o Ministro da Justiça desaprovar
o relatório estará encerrado o procedimento de demarcação de TI, por sua
vez, quando determinar diligências a serem cumpridas, após a realização
destas fará nova apreciação do relatório.
Desta forma, o procedimento de demarcação somente perfaz seu
curso natural nas situações em que o Ministro da Justiça expede Portaria
declarando os limites da TI determinando sua demarcação, hipótese em que
se estará diante da fase de Declaração da TI.
A indenização global...
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A ocorrência da declaração da TI pelo Ministro da Justiça é
considerada o marco da regularização do procedimento, tratando-se da
primeira chancela de uma Autoridade Pública Executiva determinando a área
indígena.
Nos termos do art. 4º do Dec. 1.175/96, publicada a Portaria
declarando os limites da TI, cabe a FUNAI proceder a fase de Delimitação
realizando a demarcação física da área, ficando a cargo do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em procedimento paralelo,
proceder o levantamento e avaliação das benfeitorias existentes na área, bem
como, o reassentamento dos ocupantes não-índios.
Após o término da limitação (demarcação) da área a ser determinada
como TI, todo o procedimento administrativo (estudos, relatório, parecer do
Ministro da Justiça, e demais atos) deve ser submetido ao Presidente da
República que realizará a homologação da demarcação mediante Decreto
Presencial/Executivo, conforme art. 5º do Dec. 1.175/96, completando assim
a fase de Homologação.
Por fim, ultimando o procedimento de demarcação, estabelece o art.
6º do Dec. 1.175/96, na fase de Registro que deve ocorrer no lapso de 30
dias após a publicação do Decreto de homologação, a FUNAI deve proceder
o registro no Cartório de Registros de Imóveis da comarca correspondente a
TI demarcada, bem como, na Secretaria de Patrimônio da União do Ministério
da Fazenda.
Destaca-se, ainda, que o registro da TI, em que pese ser obrigação
conferida a FUNAI, é feito em nome da União, pois, como é cediço, aos índios
cabe apenas o usufruto da área que pertence a União, conforme elucida a
Constituição em seu art. 231 e parágrafos.
Assim, após implemento de todas as fases do procedimento
administrativo e registro da área, estará regularizada a TI.
1.3 A INDENIZAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS DEMARCADAS
Demarcada a área como TI, ou ainda em momento anterior, como
visto, desde a declaração de seus limites pelo Ministro da Justiça, não resta
ao proprietário qualquer alternativa senão buscar seu direito a indenização.
A Convenção 169 da OIT (BRASIL, 2004, web) em sua Parte II, art.
16, 5 determina que os proprietários devem ser transferidos, reassentados e
sobretudo indenizados de maneira plena por qualquer perda ou dano em
consequência da demarcação da TI. Vejamos:
Artigo 16 – 5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas
e reassentadas por qualquer perda ou dano que tenham sofrido como
consequência do seu deslocamento.
De maneira distinta, a Constituição Federal em seu art. 231, § 6º, in
fine dispôs que o direito a indenização do proprietário de boa-fé contra a
União se limita as benfeitorias, in verbis:
Art. 231. [...]
16 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
§ 6º - (...), não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da
ocupação de boa-fé (BRASIL, 1988, web).
Chama atenção a relevante desarmonia entre o que determina a
Convenção 169 da OIT e a previsão constitucional brasileira, ao passo que
enquanto a primeira considera devida indenização plena por qualquer perda
ou dano, a segunda prevê que apenas as perdas decorrentes de benfeitorias
serão indenizadas.
Ademais, nota-se que a referida previsão da Lei Maior se trata de
norma constitucional de eficácia limitada, determinando que a indenização
das benfeitorias ocorrerá na forma da lei.
Contudo, não há ainda instrumento normativo primário que a
regulamente.
Diante na inexistência de regulamentação legal, é vigente para dispor
acerca da indenização das benfeitorias das TI, uma Instrução Normativa da
Própria FUNAI de número 02 de 03/02/2012.
Primeiramente, vale elucidar que a Instrução Normativa em seu art.
2º enumerou seus fundamentos legais. Porém, observa-se que a Convenção
169 da OIT não está presente neste rol:
Art. 2 Esta Instrução Normativa tem como fundamentação legal:
I - Artigo 231, § 6º, da Constituição;
II - Artigo 29, caput e inciso I, da Lei nº 6.383/1976;
III - Artigo 5º, caput, II e IV, artigo 6º, § 1º, e artigo 14, caput e § 1º, da Lei nº
11.952/2009;
IV - Artigo 16 da Lei nº 4.771/1965;
V - Artigo 4º, II, da Lei nº 4.504;
VI - Artigos 59, 69 e 69-A da Lei nº 9.784/1999;
VII - Artigo 1º, I, "b", da Lei nº 5.371/1967;
VIII - Artigo 2º, IX, e artigo 19 da Lei nº 6.001/1973; e
IX - Artigo 21, IX, do Decreto nº 7.059/2009 (BRASIL, 2004, web).
Esta primeira análise já demonstra que a Instrução Normativa em
decorrência da previsão constitucional, não visa uma indenização global ao
proprietário, limitando-se apenas quanto a apreciação das benfeitorias e seu
pagamento.
O art. 3º da Instrução determina que a FUNAI mantenha Comissão
Permanente de Análise de Benfeitorias, responsável por indicar se a
ocupação é de boa-fé, se faz jus a indenização e quais as benfeitorias
passíveis de indenização.
Toda ocupação que contrariar o ordenamento jurídico será
considerada como ilegal ou de má-fé, não cabendo a esta qualquer tipo de
indenização. Porém, a Instrução Normativa da FUNAI em seu art. 5º além
destas situações comuns que contrariam o ordenamento, traz outras formas
de caracterizar a má-fé na ocupação:
Art. 5 Caracteriza a má-fé da ocupação, dentre outras situações:
A indenização global...
// 17
I - a posse violenta, clandestina ou precária;
II - o ocupante sabia ou podia saber que se tratava de terra indígena e, ainda
assim, apossou-se da área;
III - o ocupante prosseguiu na posse ou no esbulho da área, mesmo ciente,
por qualquer modo, da irregularidade de sua ocupação;
IV - o ocupante tiver se apossado da área, ainda que mediante contrato de
compra e venda, após a publicação da respectiva portaria declaratória da
lavra do senhor Ministro da Justiça;
V - o ocupante já tiver sido beneficiado por programa oficial de assentamento;
VI - o ocupante exercer a posse de área de modo a causar a degradação
ambiental ou restar caracterizada a exploração predatória dos recursos
naturais ou ocupação improdutiva;
VII - a ocupação recair sobre imóvel titulado em nome de ente da Federação
(União, Estado, Distrito Federal ou Município) ou de suas respectivas
entidades;
VIII - quando se tratar de terra indígena notoriamente conhecida.
Parágrafo único. O disposto no inciso VII não se aplica às terras devolutas
(FUNAI, 2012, web).
Mais adiante, o artigo 7º determina os critérios nos quais serão
pautadas as indenizações das benfeitorias. Este dispositivo acaba por limitar
ainda mais o direito a indenização decorrente da demarcação da TI, que já
restringido apenas as benfeitorias, se torna ainda menos abrangente.
Em nosso entendimento, pode até se contestar a constitucionalidade
da Instrução Normativa n. 2 da FUNAI, no que tange ao art. 7º, que apresenta
inconstitucionalidade por vicio formal, pois, como enumera o §6º do art. 231
da CF, uma lei em sentido estrito deveria regular a indenização das
benfeitorias.
Entretanto, como já demonstrado, pela inexistência de lei
regulamentadora, uma Instrução Normativa da própria FUNAI, interessada
direta e parte da demarcação da TI, vige determinando os critérios para
indenização das benfeitorias.
Sem maiores discussões quanto aos desacertos da demarcação de
TI´s em seu todo, vejamos o que dispõe o artigo 7º:
Art. 7º A indenização de que trata esta Instrução Normativa é pautada pelos
seguintes critérios:
I - apenas as benfeitorias úteis e as necessárias serão indenizadas, podendo
o ocupante levantar as voluptuárias, desde que sem detrimento da coisa;
II - a partir do momento em que a ocupação perder o caráter de boa-fé, não
serão consideradas indenizáveis quaisquer benfeitorias implantadas,
inclusive as necessárias, ainda que destinadas à conservação e à
manutenção das demais benfeitorias indenizáveis, salvo as imprescindíveis
para evitar a ruína de prédio urbano ou rural;
III - não serão considerados como benfeitorias os melhoramentos ou
acréscimos sobrevindos sem a intervenção do proprietário, possuidor ou
detentor;
18 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
IV - as normas de limitação de uso da propriedade rural (reserva legal) serão
consideradas, inclusive quando se tratarem de benfeitorias reprodutivas, tais
como pastagens, plantios florestais e de frutíferas;
V - as benfeitorias, para as quais tenha sido necessária a supressão da
vegetação nativa, somente serão passíveis de indenização se o ocupante
tiver licença de desmatamento expedida pela autoridade competente, salvo
se a autorização houver sido concedida em manifesta afronta à legislação
ambiental, má-fé ou conluio;
VI - as benfeitorias implantadas ou edificadas em áreas de preservação
permanente, conforme estabelecido na legislação federal, somente serão
passíveis de indenização se respeitados os requisitos legais;
VII - as benfeitorias compensam-se com os danos causados pelo ocupante
às terras indígenas ou às suas comunidades e ao meio ambiente da
respectiva área.
§ 1º Para fins de aplicação do inciso II, considera-se a publicação da portaria
declaratória da terra indígena como marco temporal para caracterização da
boa-fé da ocupação, se outro não for o momento anterior a presumir a sua
má-fé.
§ 2º Fica ressalvado que as transações posteriores à publicação da portaria
declaratória não impedem a indenização de eventuais benfeitorias erigidas
pelo ocupante anterior, ao tempo da boa-fé, que sejam consideradas
passíveis de indenização, desde que essa situação esteja devidamente
comprovada nos autos do processo (FUNAI, 2012, web).
Com efeito, apenas as benfeitorias úteis e necessárias serão
indenizadas, podendo o proprietário levantar as voluptuárias sem causar
deterioração à propriedade.
O dispositivo ainda determina que caso a ocupação perca o caráter
de boa-fé, a partir deste momento não serão indenizáveis nenhuma das
benfeitorias implantadas, ressalvadas aquelas destinadas a evitar a completa
deterioração da propriedade.
Em relação ao procedimento para o pagamento das benfeitorias, o
artigo 8º da Instrução Normativa enumera sete fases. São elas: a) vistoria da
propriedade e suas benfeitorias; b) avaliação; c) análise técnica preliminar; d)
deliberação; e) recurso; f) julgamento; g) pagamento.
A Vistoria da propriedade e suas respectivas benfeitorias serão
realizadas pela Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias da FUNAI
logo após a publicação da portaria do Ministro da Justiça, consistindo em
visita in loco realizada pelos membros técnicos da Comissão (art. 9º da
Instrução).
A Avaliação consiste na elaboração de laudo da vistoria pela
Comissão mediante arrolamento das benfeitorias juntamente com seus
valores de mercado (artigos 10 e 11 da Instrução). O laudo de vistoria será
remetido ao técnico de Direito de Proteção Territorial da FUNAI que realizará
a Análise Técnica Preliminar elaborando seu relatório (artigos 12 e 13 da
Instrução).
O processo de levantamento das benfeitorias já instruído de relatório
será retomado à Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias que irá
A indenização global...
// 19
Deliberar determinando o caráter da ocupação e quais as benfeitorias
passíveis de indenização, devendo a FUNAI baixar Resolução publicando-a
no DOU e encaminhando-a a Prefeitura do local da situação do imóvel para
que também divulgue a Resolução (art. 14 a 17 da Instrução).
Contra a decisão da Comissão caberá Recurso, sem efeito
suspensivo, no prazo de 30 dias, a partir da publicação no DOU. Os recursos
serão encaminhados para Comissão que irá elaborar parecer conclusivo,
bem como, à Procuradoria da República especializada para manifestação
sobre a regularidade do procedimento, submetido pôr fim ao julgamento pela
Presidência da própria FUNAI (art. 18 a 21 da Instrução).
Após julgamento ou não havendo recurso, será realizado, através da
Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI o pagamento da indenização do
valor aferido e a notificação pessoal dos proprietários da área demarcada
como TI para que se retirem do local em 30 dias, retirada esta que caso não
cumprida espontaneamente pode insurgir o auxílio da Policia Federal (art. 22
da Instrução).
Vale ressaltar que, as benfeitorias somente serão indenizadas caso
ainda existam no momento do seu pagamento, após os trâmites
determinados pela Instrução Normativa, ficado o valor limitado ao estado de
conservação em que se encontrarem as benfeitorias.
Demonstrado o que se trata por terra indígena, bem como, analisada
as nuances do procedimento de demarcação de terra indígena, seus efeitos
e sua indenização, cabe então a apontar as necessárias mudanças na
indenização da TI´s.
1.4 A MOTIVAÇÃO DOS CONFLITOS AGRÁRIOS E OS REFLEXOS DA
ATUAL INDENIZAÇÃO NA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS
Segundo dados fornecidos pela FUNAI, atualmente existem 543
(quinhentas e quarenta e três) terras tradicionalmente demarcadas como
indígenas, sendo que apenas 426 (quatrocentos e vinte e seis) encontram-se
regularizadas, ou seja, homologadas por Decreto Presidencial e submetidas
ao registro em Cartório e na Secretária de Patrimônio da União (FUNAI, web).
Ainda segundo a FUNAI, existem hoje 117 (cento e dezessete) áreas
em processo de demarcação, das quais 37 (trinta e sete) encontram-se
delimitadas, 66 (sessenta e seis) em fase de declaração e 14 (quatorze)
homologadas pelo Presidente da República.
As 543 (quinhentas e quarenta e três) terras indígenas
tradicionalmente ocupadas correspondem a 111.961.753,5060ha (hectares)
que satisfaz 13% (treze por cento) de todo território físico brasileiro, sendo
este de 851.196.500ha (hectares).
Ademais, existem ainda 129 (cento e vinte e nove) áreas que se
encontram em fase de estudos antropológicos destinados a sua futura
demarcação. Todavia, a dimensão territorial destas não é divulgada pelo
órgão.
20 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Sabidamente o atual procedimento de demarcação de TI´s e a
indenização do proprietário de imóvel rural demarcado são os grandes
responsáveis que servem de estopim aos conflitos no campo entre índios e
não índios.
De acordo com números disponibilizados pela Comissão Pastoral da
Terra – CPT (CPT, web) que realiza relatórios anuais desde 1985, neste período
ocorreram cerca de 1.614 (mil seiscentas e quatorze) mortes no território
brasileiro em virtude de conflitos agrários.
Outro número que assusta é que de todos os casos apenas 91
(noventa e um) foram julgados resultando na condenação criminal de 93
(noventa e três) sujeitos, entre mandantes e executores.
Destaca-se, ainda, que no ano de 2013 bateu-se o recorde de mortes
ocorridas no campo em consequência dos conflitos agrários, fato que
demonstra a terrível ascensão dessa problemática no território brasileiro.
No ano de 2013 foram assassinadas 34 (trinta e quatro) pessoas,
sendo 15 (quinze) o índios e 19 (dezenove) vítimas que se dividem entre
produtores rurais, integrantes do movimento sem-terra, assentados,
trabalhadores rurais, posseiros e outros.
É evidente que os indígenas ao ocuparem as terras com
procedimento de demarcação em trâmite antes mesmo de sua regularização,
desrespeitam ordens judiciais de reintegração de posse e muitas vezes
cometem crimes resguardados em sua inimputabilidade silvícola.
Desta forma, acabam sendo os próprios indígenas as maiores vítimas
do conflito agrário em confronto com a Polícia ou com os proprietários rurais.
Contudo, principal responsável dos conflitos agrários é a atual forma
de indenização, pois, ainda que a propriedade restasse ocupada pelos
indígenas, se então houvesse uma prévia e justa indenização ao proprietário
do imóvel, certamente, restaria solucionado o conflito no campo e no
Judiciário.
Para a advogada e antropóloga Luana Ruiz Silva:
Nenhum produtor rural é contra a demarcação de terras para indígenas, o
que não podemos admitir é a garantia de um suposto direito territorial
mediante o confisco de nossas propriedades. Enfrentamos um Governo
Federal que quer nos roubar na mão grande e isso não podemos admitir.
Aqueles que defendem a relativização do direito de propriedade rural,
cuidado! Amanhã poderão relativizar seu direito de propriedade territorial
urbano, propriedade do salário, propriedade da poupança. Ademais, se
existe uma dívida com os índios, essa dívida é de todo cidadão brasileiro, e
não de um ou outro produtor rural, como se os índios nunca houvessem
perambulado a Praça da Sé ou a Baía de Guanabara (SILVA, web).
Não menos requintadas, são as lições de Hildebrando Campestrini:
Um outro ponto, de inquestionável gravidade, é o fato de o governo federal
não aceitar indenizar no justo valor a terra nua, pressupondo,
equivocadamente, que a terra “retomada” já era dos índios. Admite pagar
somente as benfeitorias. (...)
A indenização global...
// 21
Mais: a terra nua hoje tem valor inestimável, por razões econômicas
e sociais. Já foi o tempo em que se trocava uma grande área por arma de
fogo ou cavalo marchador (CAMPESTRINI, 2009, p. 74).
Logo, conclui-se que a resposta para a atual problemática dos
conflitos étnicos e sociais no ambiente rural brasileiro se encontra no
pagamento das indenizações.
1.5 OS FUNDAMENTOS PARA UMA INDENIZAÇÃO GLOBAL DO IMÓVEL
Conforme demostrado alhures, a terra indígena que apresente os
requisitos do §1º do art. 231 da Constituição, será submetida ao procedimento
que ter por objeto sua demarcação, declaração como de propriedade da
União, usufruto indígena e, consequentemente, expropriada do patrimônio
particular.
Em decorrência disso aquele que detinha a “ocupação” de boa-fé,
possui direito apenas a indenização pelas benfeitorias úteis e necessárias
nos termos do art. 231, §6º da Constituição e regulamentação trazida pela
Instrução Normativa n.º 3 da FUNAI de 2003.
Partindo dessa interpretação estamos considerando nulo o justo título
do proprietário da área a ser demarcada como TI, ainda que de boa-fé,
admitindo-se que a população indígena possui o direito originário as terras
tradicionalmente ocupadas (art. 231), precedente ao direito daquele que
estaria no imóvel como simples ocupante.
Ora, aquele que possuía o justo título do imóvel, que lhe foi concedido
e registrado em total obediência ao art. 1.245 do Código Civil e pela ótica de
todo restante de nosso ordenamento jurídico, alheio ao art. 231 da
Constituição, quando expropriado deste imóvel faz jus a indenização.
Notadamente, o que se tem hoje na demarcação de TI não pode
sequer ser tratado como indenização, mas sim como mero levantamento das
benfeitorias úteis e necessárias, como àquela concedida ao devedor pelo
artigo 242 do Código Civil, ou ainda a retenção facultada ao locatário,
conforme art. 578 do mesmo códex.
Ademais, nota-se que pelo contexto protecionista da propriedade o
código civil resguarda até ao possuidor de má-fé o ressarcimento pelas
benfeitorias necessárias, nos termos do art. 1.220.
Todo demonstrado visa tão somente aquiescer o quão exagerado,
desproporcional e irrazoável o tratamento e indenização das TI´s, bem como,
a afronta e abandono total ao direito de propriedade que detém o proprietário
da área demarcada como TI.
E o Poder Judiciário já se manifestou quanto à latente violação de
direitos adquiridos e ao direito de propriedade, ocasionados pela demarcação
de terras indígenas, que ocorre sem justa indenização e ainda considera
nulos os atos acerca daquela propriedade:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TERRAS INDÍGENAS. IDENTIFICAÇÃO E
DEMARCAÇÃO. CONTESTAÇÃO DE TERCEIROS. TÍTULO DE DOMÍNIO.
I - A identificação e demarcação de terras indígenas configura ato
22 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
administrativo que, como tal, deve constituir-se de objeto lícito, o que não
ocorrerá se incidir em área de domínio alheio, destarte padecendo, nesta
hipótese, de nulidade suscetível de declaração pelo Judiciário. II - Hipótese
que não é de localização permanente de índios mas de posse de terceiros
embasada em título de domínio. Exigência de apuração de possível violação
às normas jurídicas de proteção da posse indígena vigentes na origem do
encadeamento de sucessão entre os membros das outras etnias. III - A
proteção constitucional da posse indígena não pode ter o alcance de nulidade
de atos válidos segundo a legislação à sua época em vigor, sob pena de
incoerência na perspectiva das garantias dos direitos adquiridos e do direito
de propriedade contra a desapropriação sem justa indenização. IV - Recurso
desprovido. (TRF-3. QUINTA TURMA. AI 00879034420064030000 AI –
AGRAVO DE INSTRUMENTO – 278365 – REL. DESEMBARGADOR
FEDERAL PEIXOTO JUNIOR. DJF3 DATA:09/09/2008)
Pois bem, no direito brasileiro o simples ressarcimento de benfeitorias
é inclusive direito do locatário, o qual nunca teve a propriedade do imóvel, do
devedor e até do possuidor de má-fé, sujeitos alheios e que não resguardam
singularidade ao proprietário de boa-fé de imóvel que resta demarcado como
TI.
Da maneira que já foi abordado, o 5º, inciso XXIV da Constituição
determina que em caso de desapropriação, e, entendemos, em qualquer
outra forma de expropriação de imóvel daquele que detém justo título e boafé na posse o proprietário deve ser indenizado.
A desapropriação para fins de reforma agrária, ora utilizada como
paradigma para indenização na demarcação de TI, limita e expropria o direito
de propriedade com a consequente indenização global do imóvel, bem como
de suas benfeitorias úteis e necessárias.
Ora, nem mesmo na desapropriação sancionatória, em que o
particular não da destinação econômica à seu imóvel rural, subutilizando-o
ou não utilizando-o, a expropriação da propriedade somente ocorrerá após
duas medidas antecedentes, quais sejam, o parcelamento ou edificação
compulsório e a aplicação do imposto progressivo no tempo.
Sendo assim, na ocorrência de demarcação de terra indígena, não
havendo previsão legal para qualquer medida antecedente em face da
declaração de se considerar a terra direito originário dos povos indígenas, o
mínimo que se espera é uma justa indenização ao proprietário do imóvel.
Qualquer tratamento diverso, assim como ocorre na atualidade,
valora de maneira errônea aquele que proprietário um imóvel rural
improdutivo em descumprimento com a função social desta, em desfavor
daquele que proprietário de imóvel rural produtivo, detentor de justo título e
boa-fé, vê sua terra demarcada como indígena em contraprestação tão
somente o ressarcimento de suas benfeitorias úteis e necessárias.
Uma expropriação de propriedade imóvel particular sem a
indenização de sua terra nua se assemelha, indevidamente, a
desapropriação de caráter confiscatório decorrente da prática criminosa do
plantio ilegal de culturas psicotrópicas, prevista no artigo 243 da Constituição.
A indenização global...
// 23
A existência de uma indenização justa acarretará efeitos econômicos
e políticos no cenário brasileiro.
A justa indenização, se paga previamente e em dinheiro, possibilita a
retirada rápida do proprietário da terra, evitando assim todo impasse e conflito
causado pela demarcação, onde indígenas visando uma prévia garantia de
seus direitos ocupam precipitadamente a terra e não índios proprietários
visando garantir seu sustento fruto da produtividade rural atalham a ocupação
da terra.
Ademais, a justa indenização de nada afeta o direito originário dos
povos indígenas pelas terras que tradicionalmente ocupam (art. 231), bem
como, preserva o direito de propriedade (art. 5, XXII) daquele que detém a
propriedade respaldada em justo título e boa-fé.
Vale trazer à baila mais uma lição de Hildebrando Campestrini,
desvinculada do mérito a respeito dos indígenas ou das propriedades rurais:
Encerrando fica a seguinte reflexão: quem quer o diálogo, a superação do
conflito pelo entendimento, não pode usar de discurso exaltado, condenando
a outra parte, impondo a própria verdade; o diálogo (necessariamente
dialético) pressupõe, imperativamente, ouvir e entender o outro, para que,
com mútuas renúncias, seja encontrada a solução mais adequada ao
problema (CAMPESTRINI, 2009, p. 92).
Em suma, precisamos dar equilíbrio entre direitos fundamentais,
concedendo ao indígena o direito originário a terra tradicionalmente ocupada,
mas, garantindo ao proprietário da área rural uma justa indenização que o
possibilite haver sua produção e investimentos ainda que noutra propriedade.
Possíveis alterações legislativas e políticas que visam a indenização
do proprietário de área demarcada como TI.
Conforme apresentamos no tópico anterior, entendemos como à
melhor e mais justa resolução do conflito, se dar através de uma indenização
global do imóvel, não somente em relação às benfeitorias, mas
principalmente o valor de mercado da terra nua.
Neste sentido, caminha o Poder Legislativo brasileiro que desde 2004
através da PEC 3/04, por ora arquivada, propunha a inserção de novo
parágrafo ao art. 231 da Constituição Federal, permitindo que o Poder Público
desapropriasse a terra, demarcando-a em favor da comunidade indígena
mediante a indenização do proprietário pela terra nua, vejamos:
§8º O disposto no §6 deste artigo não se aplica aos títulos de domínio
expedidos e devidamente registrados, com posse mansa e pacífica por mais
de dez anos consecutivos, cujas terras poderão ser desapropriadas para
demarcação em favor da comunidade indígena na forma da Lei.
(...)
O §6º, do art. 231 da Constituição Federal proíbe essa desapropriação de
terras, permitindo apenas a indenização quanto às benfeitorias derivadas da
ocupação de boa-fé. Desejando o poder público da solução de resgate
histórico e antropológico aos índigos, em lugar de fazer cumprir as
reintegrações de posse, o projeto permiti, intervir no processo, declarando a
24 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
área particular de interesse público para efeito de desapropriação. Servirá de
instrumento legal para a ampliação de aldeamentos, em áreas densamente
povoadas por índios, sem prejuízos maiores para os proprietários com título
de domínio e posse mansa e pacífica por mais de dez anos (SENADO
FEDERAL, 2004, web).
Vislumbra-se que a PEC supracitada interpreta a demarcação TI
como medida expropriatória, evitando prejuízos ao então proprietário.
Na mesma linha, o Diário Oficial da União publicou um Decreto
Presidencial de n. 13.866 de 13 de março de 2014, declarando a
desapropriação para fins de interesse social de área a ser demarcada como
terra indígena à Comunidade indígena de Tuxá de Rodelas, no Município de
Rodelas no Estado da Bahia, mediante justa e prévia indenização.
Assim, o governo atual em vez de seguir o procedimento previsto no
Decreto 1.175/96, mostrou preferência em desapropriar a área para
posteriormente destiná-la ao usufruto de comunidade indígena evitando o
moroso procedimento de demarcação de TI e os decorrentes conflitos
agrários que sempre se eclodem.
Na análise de Ilmar Galvão, trata-se de um marco dos mais
importantes no trato governamental das questões suscitadas pela
presença de indígenas no território brasileiro (MIGALHAS, web).
Outra solução, por meio da indenização, permanecendo o
procedimento de demarcação de TI é proposta pelo Projeto de Lei 5.919/2013
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2013, web), o qual pretende alterar o art. 19
do Estatuto do Índio (Lei. 6.001/73), visando garantir além da indenização da
terra nua, além das benfeitorias, garantindo ainda ao proprietário de boa-fé
permanecer na área até a data do pagamento integral da indenização.
Desta maneira, restou demonstrado que a indenização do
proprietário de terra demarcada como TI, derivada de uma desapropriação
por interesse social ou mesmo mediante uma alteração do atual
procedimento administrativo de declaração de TI, mostra-se imprescindível
para se resguardar o direito de propriedade como direito fundamental, bem
como, colocar fim ao conflito agrário que se estende em todo território
nacional.
1.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contata-se que o atual procedimento de demarcação de terras
indígenas, especificamente no que tange a forma de sua indenização (art.
231, §6º da CF/88), provoca enorme desproporcionalidade entre as partes
envolvidas (proprietário rural versus comunidade indígena), colocando em
choque direitos de personalidade e garantias fundamentais que carregam um
fardo histórico em nosso ordenamento jurídico.
O conflito fraticida entre as etnias indignas que buscam a
demarcação de suas terras tradicionais e as demais etnias não indígenas que
porventura tenham o Direito de propriedade sobre as mesmas terras, por
justo título espedido pelo Governo, não se encaixam no reducionismo dualista
A indenização global...
// 25
de mocinhos e bandidos ou certos e errados. Existem Direitos da
Personalidade de ambas as partes envolvidos. Os Direito a retomada por
parte dos indignas de suas terras tradicionais como imperativo de
manutenção e sobrevivência de sua história cultura e existência e o Direito
de propriedade do não índio que muitas e muitíssimas das vezes construiu o
patrimônio rural sobre a pena de gerações de suas famílias trabalhando de
forma legal, justa e moral, pagando os duros tributos deste pais, sempre com
a melhor fé.
O que concluímos é que quando ambas as partes encontram seus
direitos lesados nenhuma delas ira ceder, continuando a existir esta guerra
que já vitimou milhares de compatriotas. Está a solução para a pacificação
da situação nas mãos do Governo Federal, com a indenização do valor global
da propriedade para que os indignas possam receber suas terras tradicionais
e os não indignas proprietários das terras, possam reconstruir dignamente
suas vidas.
Ainda caminhamos em passos lentos, mas, com acerto, o Poder
Legislativo e Poder Executivo já sinalizaram nesse sentido, conforme os
projetos de lei que visam uma indenização global do imóvel, bem como,
Decretos expedidos pela Presidência da República determinando a
desapropriação de propriedade rural, mediante pagamento de justa
indenização, para posterior demarcação de terra indígena.
1.7 REFERÊNCIAS
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Almedina, 2002.
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desenvolvimento do Brasil: um olhar nos porões do Conselho
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= II =
A OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DECORRENTE DO
TRABALHO ESCRAVO NA CONTEMPORANEIDADE: PROPOSTAS
PARA SUA ERRADICAÇÃO
Muriana Carrilho Bernardineli*
2.1 INTRODUÇÃO
O presente artigo visa analisar as ofensas aos Direitos da
Personalidade decorrentes do trabalho escravo na contemporaneidade. Para
tanto será realizado um apanhado histórico do trabalho desde o período
escravocrata, passando por conquistas trabalhistas relevantes até chegar-se
ao que atualmente denomina-se Direito do Trabalho.
Primeiramente, imprescindível conceituar a expressão “meio
ambiente do trabalho”, pois este reflete não apenas na vida profissional, mas
também pessoal do trabalhador. E nesta sequência, expor o paradoxo entre
a promoção de um ambiente laborativo decente e os reiterados casos de
escravidão na modernidade.
Nesse diapasão, verificar-se-á o ordenamento jurídico vigente em
consonância com o entendimento de organizações internacionais, como OIT,
relacionando o paradoxo entre a criação de dispositivos legais, convenções
e a efetividade de sua aplicação.
Os Direitos da Personalidade em decorrência de sua fundamental
importância requerem proteção especial, enfaticamente no ambiente de
trabalho em que violações são frequentes e causam prejuízos imensuráveis
à pessoa humana. Assim, nítida é a violação aos Direitos da Personalidade
quando da ocorrência do trabalho escravo, promotor de degradação humana
sem precedentes.
Quanto ao trabalho forçado serão realizados apontamentos de casos
concretos, dentre os quais vale ressaltar àqueles perpetrados em empresas
de grande renome, que na acelerada busca por uma colocação no mercado,
não mensuram os danos advindos de suas práticas e descumprem direitos
pessoais e trabalhistas.
Por fim, serão apresentadas propostas para a erradicação da
escravidão moderna, almejando assim eliminar prática tão repudiada por toda
a sociedade e ao mesmo tempo tão recorrente nos dias atuais.
*
Advogada. Bacharel em Direito pela UEM – Universidade Estadual de Maringá. Especialista
em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo IDCC – Instituto de Direito e Cidadania em parceria
com UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná. Mestranda em Direitos da
Personalidade pela UNICESUMAR – Centro Universitário de Maringá. Docente do curso de
Graduação em Direito da Faculdade Alvorada em Maringá – PR.
28 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Consigna que para o desenvolvimento do presente artigo foram
utilizados os métodos histórico e dedutivo, de cunho qualitativo, através da
pesquisa teórica direcionada a consultas e pesquisas em livros, artigos,
periódicos, revistas, documentos físicos e eletrônicos, além de análises
legislativas e casos concretos, com o fim de abranger a problemática e
apresentar propostas que possam alterar o crescimento exponencial do
trabalho escravo na sociedade moderna.
2.2 BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA: DA ESCRAVIDÃO À PROTEÇÃO
DOS DIREITOS TRABALHISTAS
A escravidão foi a primeira forma de trabalho e neste contexto, o
escravo era considerado apenas uma coisa, não tendo qualquer direito, muito
menos trabalhista, ou seja, o escravo nem mesmo era tido como pessoa,
contrariamente era propriedade dominus, perdurando esta condição de
escravidão por tempo indeterminado (MARTINS, 2014, p. 4).
Na Grécia antiga entendia-se que os escravos faziam o trabalho duro,
enquanto os outros poderiam ser livres, não possuindo assim a significação
do trabalho como realização pessoal. Em Roma o trabalho também era
realizado pelos escravos, sendo que a Lex Aquilia (284 a. C.) considerava o
escravo como coisa e o trabalho, algo desonroso (MARTINS, 2014, p. 4).
Em seguida, no feudalismo passa a vigorar o sistema de servidão,
sendo que os senhores feudais protegiam militar e politicamente os servos, e
em contrapartida estes ficavam ligados a terra, como se escravos fossem,
pois tinham a obrigação de entregar parte da produção rural como preço pela
fixação na terra e pela defesa que recebiam, e por isso nunca quitavam suas
dívidas com os senhores (NASCIMENTO, 2011, p. 43), demonstrando
condição análoga à escrava. Posteriormente, surgem as corporações de
ofício, contudo, somente com a Revolução Industrial principia o que
atualmente entende-se por Direito do Trabalho.
Na Europa, por volta do século XVIII, a Revolução Industrial trouxe
consigo a imposição de condições degradantes de trabalho, dentre as quais
estavam: a exigência de excessivas jornadas de trabalho, a exploração de
mulheres e crianças consideradas mão-de-obra mais barata, os acidentes de
trabalho, baixos salários, dentre outros. Tais violações eram recorrentes e
demonstraram a necessidade em coibir os abusos perpetrados contra o
proletariado e, mais diretamente, a exploração do trabalho dos menores e
mulheres, o que desencadeou no surgimento das primeiras leis trabalhistas
(NASCIMENTO, 2011, p. 45-46).
Neste cenário, somente o patrão estabelecia as condições de
trabalho a serem cumpridas pelos empregados e não havia leis
regulamentando, o que tornava os trabalhadores vulneráveis as imposições
dos empregadores.
Desta forma, a pressão do movimento operário conjuntamente aos
movimentos internacionais em defesa dos direitos do ser humano e a atuação
da Igreja, encontrou campo fértil para a intervenção do Estado na relação
A ofensa aos direitos...
// 29
contratual privada, a fim de proteger a parte mais fraca da relação de
emprego, o trabalhador, visto que até então no contexto do liberalismo havia
constante abuso e exploração do trabalho (RESENDE, 2013, p. 2).
Assim, a população começou a se organizar e delegar poderes ao
Estado, que passou a assumir o papel de distribuidor da justiça, colocandose no lugar do ofendido, apenando o agressor para, em nome da harmonia
social, garantir o bem-estar coletivo, regulamentando a garantia de condições
mínimas de um trabalho mais digno (MELO, 2012, p. 3), pois nesta
conjectura, a crescente exploração do proletariado na busca desmedida pela
riqueza dos donos dos meios de produção gerou a necessidade de
intervenção estatal, com o intuito de proteger a parte mais fraca na relação
de trabalho.
A Inglaterra, como mãe da industrialização, trouxe as primeiras
contribuições, através do Lord Campbell’s Act (1846), referente aos acidentes
nas estradas de ferro, e do Workmen’s Compensation Act (1897), que tratava
da indenização às vítimas de acidente de trabalho, seguida por países como
Alemanha e França que também demonstraram preocupação em proteger o
trabalhador (CASILLO, 1994, p. 39).
Em 1891, o Papa Leão XIII apresenta a Encíclica Rerum Novarum
(coisas novas), que traça regras para a intervenção estatal na relação entre
trabalhador e patrão, com o fim de “Não pode haver capital sem trabalho, nem
trabalho sem capital” (Encíclica Rerum Novarum, Capitulo 28) (MARTINS,
2014, p. 8), demonstrando o crescimento do ideal valorativo do trabalho como
propulsor humano e não mais como pena ou prática desonrosa.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial surge o chamado de
constitucionalismo social, o qual se refere a “[...] inclusão nas constituições
de preceitos relativos à defesa social da pessoa, de normas de interesse
social e de garantias de certos direitos fundamentais, incluindo o Direito do
Trabalho” (MARTINS, 2014, p. 9), pois que os horrores da guerra transformou
o pensamento das pessoas que passaram a reivindicar direitos.
Neste período, acirrou-se o intervencionismo estatal e começaram a
surgir as primeiras constituições que previam a proteção ao trabalhador
(MANSUR JÚNIOR, 2010, p. 246), sendo que a efetivação de maiores
garantias ao trabalhador deu-se com a Segunda Guerra Mundial, a qual foi
marcada pelo surgimento da tecnologia de ponta, incremento nas
telecomunicações, inovações na informática e outros fenômenos que
desencadearam a globalização (NUNES, 2011, p. 59).
No Brasil, a Lei do Ventre Livre de 28/09/1871 dispôs que a partir
desta data os filhos de escravos nasceriam livres, sendo em 28/09/1885
aprovada a Lei Saraiva-Cotegipe, chamada Lei dos Sexagenários, libertando
os escravos com mais de 60 anos de idade e em 13/05/1888 foi assinada
pela Princesa Isabel a Lei Áurea (Lei nº 3.353) que abolia a escravatura.
A Constituição Federal de 1891, por sua vez reconheceu o direito de
associação e em 1934, no Brasil foi promulgada a primeira Constituição a
tratar do Direito do Trabalho e assegurar direitos mínimos aos trabalhadores
como a jornada de oito horas diárias, férias anuais remuneradas, salário
30 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
mínimo. E em 01/05/1943 é promulgado o Decreto-Lei nº 5.452 que aprova
a Consolidação das Leis Trabalhistas, impondo medidas protetivas aos
direitos do trabalhador.
Com o fenômeno da globalização houve a facilitação na migração das
unidades de produção para áreas periféricas e países em desenvolvimento,
onde os custos da produção são visivelmente menores. Em decorrência da
busca por unidades de produção de baixo custo, a solução vislumbrada por
alguns países foi a flexibilização das relações de trabalho, como forma de
diminuir os custos das empresas que pretendiam instalar-se nos países em
desenvolvimento.
De modo que, a constante evolução do mercado está demonstrando
uma tendência não apenas de flexibilização, e sim de desregulamentação
completa dos direitos trabalhistas (RESENDE, 2013, p. 2), com o intuito de
tornar os países mais competitivos.
A desregulamentação de leis trabalhistas mostra-se como um
retrocesso aos direitos adquiridos, e nessa acepção, contrariamente à
tendência mundial, o Brasil promulgou a Constituição Federal de 1988, a qual
trouxe garantias de direitos ao trabalhador, denominados como mínimo
existencial.
Em 2002 é aprovado o novo Código Civil que juntamente a
Constituição Federal, Consolidação das Leis Trabalhistas, legislações
esparsas, entendimentos jurisprudenciais, tratados e convenções
internacionais, respaldam e complementam os direitos trabalhistas.
Não obstante a aplicação das garantias dos direitos mínimos dos
trabalhadores levados a efeito pela Constituição de 1988, o fato é que o
capitalista continua atuando no sentido da desregulamentação trabalhista,
sugerindo, em posição extrema, o velho dogma liberal de que a relação de
trabalho deveria ser regida por um simples contrato de prestação de serviços,
nos moldes do direito comum (RESENDE, 2013, p. 3).
E, neste contexto não apenas a desregulamentação mostra-se
iminente, mas também o trabalho escravo ainda alastra-se na
contemporaneidade, refletindo um processo histórico da escravidão, em que
o trabalho é utilizado para lucro de poucos, em contrapartida ao trabalho
forçado de muitos, demonstrando que o ideal escravocrata na prática, ainda
não foi efetivamente abolido.
Nesta acepção, insta consignar que o combate ao trabalho escravo é
preconizado por organismos nacionais e internacionais, contudo ainda há um
longo caminho a percorrer para efetivamente garantir a proteção aos direitos
personalíssimos e trabalhistas.
A ofensa aos direitos...
// 31
2.3 MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
2.3.1 Conceito legal e doutrinário de meio ambiente do trabalho
Dispõe a Lei 6.938/81 sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
conceituando meio ambiente como
[...] o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas” (art. 3°, inciso I), sendo que a recuperação da qualidade ambiental
propícia à vida apresenta-se como a forma de promover o desenvolvimento
socioeconômico e a proteção à dignidade humana, com o fim de prezar pelo
equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio
público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso
coletivo e o acompanhamento do estado da qualidade ambiental (art. 2°,
“caput” e inciso I).
O conceito de meio ambiente abrange “[...] toda a natureza original e
artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o
solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico,
turístico, paisagístico e arqueológico” (SILVA, 2013, p. 20).
A expressão “meio” refere-se a um dado contexto físico ou social, um
recurso ou insumo para alcançar ou produzir algo, já “ambiente” pode
representar um espaço geográfico ou social, físico ou psicológico, natural ou
artificial (MILARÉ, 2007, p. 110).
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para
presentes e futuras gerações encontra-se expressamente previsto no art.
225, “caput” da Lei Maior, o qual tem o intuito de promover a sadia qualidade
de vida à população.
O caráter patrimonial do meio ambiente “[...] parte de uma
conceituação fisiográfica ao fundamentá-lo sobre o equilíbrio ecológico e a
sadia qualidade de vida” (MILARÉ, 2007, p. 113). De modo que, a proteção
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado reflete “[...] a preocupação com
a própria necessidade de sobrevivência do Ser Humano e da manutenção
das qualidades de salubridade do meio ambiente, com a conservação das
espécies” (ANTUNES, 2014, p. 5), pois é nítido que sem o meio ambiente,
habitat do homem, a vida humana torna-se inviável.
Nessa acepção, o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado está diretamente relacionado ao direito à vida e por isso,
considerado fundamental e intimamente ligado ao direito social de busca da
felicidade (SIRVINSKAS, 2014, p. 156), razão pelo qual deve ser garantido à
coletividade.
O direito ambiental pretende justamente identificar condições que
promovam a estabilidade da vida humana, apresentando regras que possam
prevenir ou reparar o desequilíbrio (MACHADO, 2014, p. 63), pois “[...] o meio
ambiente ecologicamente equilibrado é um bem jurídico, que muito contribui
para uma melhor qualidade de vida e bem estar de todas as pessoas”
32 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
(SOUZA, 2010, p. 12), razão pelo qual merece especial proteção de órgãos
governamentais e sociedade como um todo.
O conceito de meio ambiente deve ser estendido ao meio ambiente
de trabalho com o intuito de garantir a sadia qualidade de vida do trabalhador
no ambiente laboral, considerando estar expressamente prevista a extensão
do termo “meio ambiente” ao trabalho, no art. 200, inciso VIII da Constituição
Federal de 1988.
Assim sendo, de acordo com a Convenção n° 155 da Organização
Internacional do Trabalho, “[...] a expressão ‘local de trabalho’ abrange todos
os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou onde têm que
comparecer, e que estejam sob o controle, direto ou indireto, do empregador”
(OIT, 1981).
Leda Maria Messias da Silva define meio ambiente de trabalho como:
[...] não só o local onde o trabalhador presta serviço, mas também como parte
do meio ambiente do trabalho, todos os fatores internos e externos que
possam interagir com o trabalho e influenciar de alguma forma esse meio
ambiente, contribuindo para seu equilíbrio ou desequilíbrio. (SILVA, 2008, p.
1121).
O meio ambiente do trabalho merece atenção especial, pois é o local
em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, de modo que a
qualidade de vida está intimamente relacionada a este ambiente, razão pelo
qual se transforma em um bem, cuja preservação “[...] recuperação e
revitalização se tornaram um imperativo do Poder Público, para assegurar
uma boa qualidade de vida, que implica boas condições de trabalho, lazer,
educação, saúde, segurança enfim, boas condições de bem-estar do homem
e de seu desenvolvimento” (SILVA, 2013, p. 23-25).
Em âmbito laborativo, o bem ambiental envolve a vida do trabalhador
como pessoa e integrante da sociedade, devendo ser preservado por meio
da implementação de adequadas condições de trabalho, higiene e medicina
do trabalho, cabendo primeiramente ao empregador à obrigação de preservar
e proteger o meio ambiente de trabalho e ao Estado e à sociedade fazer valer
a incolumidade do referido bem (MELO, 2013, p. 34-35).
No meio ambiente de trabalho, o empregador tem o direito de exerce
o poder diretivo, conforme expressamente consignado no art. 2º da
Consolidação das Leis Trabalhistas, contudo é necessário considerar que tal
poder deve sofrer limitações, dentre os quais está a proteção aos Direitos da
Personalidade do empregado.
Nesta acepção, encontra-se o entendimento apresentado por Gisele
Mendes de Carvalho, Erica Mendes de Carvalho, Leda Maria Messias da
Silva e Isadora Vier Machado:
O empregador deve exercer seu poder diretivo, quer seja de organização, de
controle ou disciplinar, com bom-senso e nos estritos termos do contrato de
trabalho, e zelar para que todos os seus prepostos assim o façam, ou seja,
com respeito à figura do empregado como pessoa digna e merecedora de ter
A ofensa aos direitos...
// 33
direitos personalíssimos de todos os envolvidos (CARVALHO; CARVALHO;
SILVA; MACHADO, 2013, p. 93).
Por isso, deve-se primeiramente considerar os Direitos da
Personalidade de qualquer ser humano, pois que são limitadores ao exercício
de outros direitos, como o poder diretivo do empregador no meio ambiente
de trabalho, considerando que a violação a garantias concedidas aos
trabalhadores é o grande propulsor do trabalho escravo na
contemporaneidade.
2.3.2 OIT e a promoção do trabalho decente
A Organização Internacional do Trabalho foi criada com o intuito de
promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem estar,
sendo composta de três órgãos: a Conferência ou Assembleia Geral, o
Conselho de Administração e a Repartição Internacional do Trabalho
(MARTINS, 2014, p. 81).
A OIT, no ano de 1988 editou a Declaração sobre os Princípios e
Direitos Fundamentais no Trabalho, visando manter o vínculo e equilíbrio
entre progresso social e crescimento econômico, garantindo os direitos
fundamentais no trabalho e assegurando aos próprios interessados a
possibilidade de reivindicar livremente uma participação justa nas riquezas
produzidas, desenvolvendo plenamente o potencial humano (MELATTI,
2011, p. 115).
Na Declaração supramencionada ficou consignado no art. 2º que
todos os Estados-membros têm um compromisso de respeitar os princípios
relativos aos direitos fundamentais previstos nas normas internacionais
emanadas da OIT que promovem a liberdade sindical, o reconhecimento da
negociação coletiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou
obrigatório, a abolição efetiva do trabalho infantil e a eliminação da
discriminação em matéria de emprego e ocupação (MELATTI, 2011, p. 115116).
Os princípios fundamentais norteadores das atividades da OIT foram
acolhidos pela Constituição Federal/88, dentre os quais vale ressaltar a livre
associação sindical (art. 8°); trabalhos forçados (art. 5°, XLVII); “[...] proibição
de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do
trabalhador portador de deficiência” (art. 7°, XXXI); “[...] proibição de trabalho
noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho
a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de
quatorze anos” (art. 7° XXXIII).
A OIT por meio de seus preceitos busca efetivar a promoção do
trabalho decente, o qual de acordo Sergio Pinto Martins tem os seguintes
objetivos:
[...] promover o diálogo social, proteção social e criação de empregos.
Esclarece que o trabalho não é mercadoria, pois não pode ser negociado
pelo maior lucro ou pelo menor preço. Deve haver política de resultados nos
34 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
países, com distribuição de renda, fiscalização trabalhista, permitindo que as
pessoas possam trabalhar com dignidade (MARTINS, 2014, p. 86).
Assim, o trabalho não pode ser considerado mercadoria, devendo
promover a dignificação do homem, pois a colocação do ser humano como
“coisa” demonstra o retrocesso aos direitos trabalhistas e a perpetração do
sistema escravocrata.
De acordo com a Agenda Nacional do Trabalho Decente, a promoção
do trabalho decente no Brasil, passou a ser um compromisso assumido entre
o Governo brasileiro e a OIT a partir de junho/2003, constando dentre as
prioridades a implementação de uma Política Nacional de Segurança e Saúde
do Trabalhador em consonância com as normas internacionais do trabalho
sobre a matéria, a identificação de mecanismos e desenvolvimento de ações
voltadas à garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável
(CARLESSO, 2008, p. 215-216).
A Convenção n° 29 trata especificadamente sobre o trabalho forçado
e/ou obrigatório (OIT, 1930), encontrando no mesmo sentido a Convenção n°
105, a qual pretende a abolição do trabalho forçado (OIT, 1957),
considerando tal prática criminosa, pois violadora de Direitos Humanos.
Na Convenção n° 182 consta como as piores formas de trabalho
infantil, a escravidão ou práticas análogas à escravidão, sujeição por dívida,
servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou
obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; trabalhos
que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são
suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança, e por
isso, propõe a implementação pelos Estados-Membros de medidas para a
erradicação de tais espécies laborativas (OIT, 1999).
As normas jurídicas condutoras da OIT tem a finalidade de
universalização de preceitos mínimos de proteção ao trabalho e com o fim de
promover a incorporação destas ao direito positivo dos Estados-membros
(MELATTI, 2011, p. 115), considerando que a força de trabalho não pode ser
manipulada como meio de alcançar fins meramente econômicos, devendo
também garantir a proteção aos Direitos da Personalidade do trabalhador.
Por esta razão, as Conferências realizadas pela OIT direcionam seus
esforços para a promoção da garantia de um trabalho decente através da
efetivação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e proteção ao
trabalhador, tido como parte hipossuficiente na relação de trabalho.
Assim, o trabalho decente em um meio ambiente laborativo digno
cumpre a função social do contrato, tornando o trabalhador sujeito de direitos
e, consequentemente evitando a promoção do trabalho análogo ao escravo
na contemporaneidade.
2.4 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE DO TRABALHADOR
A personalidade é definida como a propensão de ser titular de direitos
e obrigações jurídicas, estando os Direitos da Personalidade vinculados a
A ofensa aos direitos...
// 35
outros direitos, sem os quais restaria uma suscetibilidade completamente
irrealizada, privada de todo o valor concreto, pois mostram-se como direitos
sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam sua razão de ser
e o indivíduo e a pessoa não existiriam como tal (CUPIS, 2008, p. 19-24).
De acordo com Daniela Paes Moreira Samaniego:
[...] os Direitos da Personalidade são direitos subjetivos, que têm por objeto
os elementos que constituem a personalidade do titular considerada em seus
aspectos físico, moral e intelectual. Tem como finalidade proteger,
principalmente, as qualidades, os atributos essenciais da pessoa humana, de
forma a impedir que os mesmos possam ser apropriados ou usados por
outras pessoas que não os seus titulares. São direitos inatos e permanentes,
uma vez que nascem com a pessoa e a acompanham durante toda a sua
existência até a sua morte [...] (SAMANIEGO, 2000).
Direitos da Personalidade são dotados de caracteres especiais que
visam proteger de modo eficaz a pessoa humana e seus bens mais elevados,
razão pelo qual o ordenamento jurídico não consente que deles se despoje o
titular, emprestando-lhes caráter essencial. (BITTAR, 1999, p. 11).
Os direitos da personalidade são “[...] bens jurídicos em que se
convertem projeções físicas e psíquicas da pessoa humana por determinação
legal, que os individualiza para lhes dispensar proteção” (GOMES, 1966, p.
41). Assim são características dos Direitos da Personalidade:
[...]
direitos
inatos
(originários),
absolutos,
extrapatrimoniais,
intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e
oponíveis erga omnes, transcendendo o ordenamento jurídico, porque ínsito
à própria natureza do homem como ente dotado de personalidade,
independente de relação imediata com o mundo exterior ou outra pessoa,
sendo intangíveis pelo Estado ou por particulares (BITTAR, 1999, p. 11).
Os Direitos da Personalidade são os direitos à honra, a dignidade, a
intimidade, a imagem, vida e integridade física, liberdade, vida privada, entre
outros considerados inerentes à condição humana. E, portanto, são
denominados inatos, subjetivos, essenciais ou personalíssimos, direitos
subjetivos absolutos, incorpóreos e extrapatrimoniais, correspondentes aos
atributos físicos, intelectuais e morais da pessoa (BELMONTE, 2002, p. 125).
Nas últimas décadas, ocorreram transformações no direito, no
sentido de valorizar o ser humano em sua plenitude, com a preservação
daqueles direitos que são inerentes à sua personalidade (CAHALI, 2011, p.
521), contudo apesar das inúmeras garantias conquistadas ao longo do
tempo, ainda é grande o contingente de violações aos Direitos da
Personalidade.
Considerando serem os Direitos da Personalidade de suma
importância, merecem especial tutela e efetividade, com ênfase ao Direito do
Trabalho, que contêm especificidades contratuais.
A proteção aos Direitos da Personalidade encontra-se prevista no art.
5°, “caput” da Constituição Federal de 1988, que garante a tutela ao direito à
36 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
vida, liberdade, igualdade e segurança e arts. 11 e 12 do Código Civil de
2002, os quais consignam serem os Direitos da Personalidade,
intransmissíveis e irrenunciáveis, podendo reclamar indenização por perdas
e danos quando houver ameaça ou lesão.
O direito mais importante garantido ao ser humano é o direito à vida,
conjuntamente com a integridade física, que deve ser mantida para promover
uma vida plena e saudável, o direito a liberdade, também de suma
importância, consistindo no direito de ir e vir, e indiretamente garantidor de
outros direitos como a livre associação sindical, também previsto no texto
constitucional.
Desta forma, o contrato de trabalho estabelecido entre as partes deve
respeitar direitos personalíssimos do trabalhador, como forma de promover
um convívio saudável no ambiente laboral, visto que tal relação contem
diretrizes distintas de outras espécies contratuais, como por exemplo, a
subordinação do empregado ao empregador e imposição do poder diretivo.
O empregador em decorrência de sua posição privilegiada na relação
trabalhista, por vezes extrapola o poder diretivo e consequentemente
descumpre o estipulado no contrato, desrespeitando a verdadeira função do
trabalho que é dignificar o homem.
Nas palavras do doutrinador Alexandre Agra Belmonte, a relação
entre as partes é definida da seguinte forma: “O empregado e empregador
tem deveres recíprocos provenientes das características da bilateralidade,
pessoalidade, alteridade, fiduciariedade e sucessividade” (BELMONTE,
2002, p. 107).
Por esta razão, práticas abusivas devem ser repudiadas em busca de
um trabalho decente que preserve a dignidade do trabalhador e cumpra a
função social do contrato, considerando que a proteção à dignidade da
pessoa humana está entre os fundamentos preconizados pelo Estado
Democrático de Direito, juntamente com os valores sociais do trabalho e a
livre iniciativa (art. 1°, CF/88), complementado pelo art. 170, “caput” da Lei
Maior que garante a proteção ao trabalho, registrando ser a ordem econômica
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando
a todos uma existência digna, nos moldes da justiça social.
Ainda, é garantida a igualdade perante a lei, a qual “[...] não deve ser
fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regular da vida social
que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos” (MELLO, 2014, p.
10).
Nítido que um “[...] meio de trabalho não edificante apresenta sérios
riscos aos Direitos da Personalidade, visto que tais direitos são inatos e
inerentes à pessoa humana de forma perpétua”, razão pelo qual se mostra
necessário proteger a saúde do profissional, com o fim de evitar danos à
sociedade como um todo (SILVA; PEREIRA, 2013, p. 16).
Assim, resta clara a proteção concedida ao trabalhador, contudo
também aparente o descumprimento de inúmeras disposições, figurando-se
reiteradamente o uso de trabalho escravo nos meios de produção, que na
contramão das legislações trabalhistas torna-se cada vez mais recorrente,
A ofensa aos direitos...
// 37
degradando o meio ambiente de trabalho e causando imensuráveis prejuízos
ao trabalhador escravizado e a toda sociedade.
2.5 O TRABALHO ESCRAVO OU ANÁLOGO AO ESCRAVO NA
CONTEMPORANEIDADE
Nos termos da Convenção n° 29, art. 2°, número 1, a expressão
trabalho forçado ou obrigatório compreenderá “[...] todo trabalho ou serviço
exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha
oferecido espontaneamente” (OIT, 1930), constando ainda a proibição do
trabalho forçado na Convenção n° 105, a qual menciona formas de abolir o
trabalho escravo (OIT, 1957).
De acordo com a OIT “[...] toda a forma de trabalho escravo é trabalho
degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro”, o que os diferencia
é a liberdade, pois o trabalho escravo cerceia a liberdade dos trabalhadores,
utilizando-se de meios como apreensão de documentos, presença de
guardas armados ou com comportamento ameaçador, dívidas ilegalmente
impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga
(OIT, 2003).
Deve-se ainda considerar o disposto no art. 5°, XLVII da Carta Magna
que garante a não aplicação de penas por meio de trabalho forçado, sendo o
uso de trabalho análogo ao escravo, objeto de sanção no art. 149 do Código
Penal, ou seja, se nem como meio punição pode ser utilizado o trabalho
forçado, quanto menos para a aferição de lucros por tomadores de serviços,
sem qualquer consciência social.
O trabalho escravo ou análogo ao escravo é recorrente em
carvoarias, conforme constatado em reportagens midiáticas, nas quais dentre
outras informações menciona que cerca de 60% (sessenta por cento) da
produção de carvão vegetal do Pará e Maranhão é produzido ilegalmente
com o uso de trabalho escravo (CAMARGO, 2006).
Ainda, em operação realizada entre o final do ano de 2013 e início de
2014, Polícia Rodoviária Federal (PRF) da região de Atibaia (SP), auditores
fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), procuradores do
Ministério Público do Trabalho (MPT), técnicos do Instituto Florestal,
representantes da Advocacia Geral da União (AGU) e da Justiça do Trabalho
encontraram trabalhadores dentre os quais estavam crianças e adolescentes
sendo explorados no trabalho escravo em carvoarias na região de Atibaia –
SP (OJEDA; WROBLESKI, 2014).
Mesmo com legislações protetivas, o trabalho escravo ainda mostrase uma praga na sociedade contemporânea, sendo não apenas utilizado em
âmbito rural, mas também em fábricas, principalmente de produção têxtil, que
em decorrência da globalização, tem demonstrando exorbitante crescimento
na utilização desta forma de trabalho, inclusive em renomadas empresas.
Recentemente foi constatado o uso de trabalho escravo em
confecções da grife Zara, em São Paulo, local em que foram encontrados
vários bolivianos escravizados por uma confecção terceirizada da marca,
38 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
sendo que o grupo de trabalhadores era obrigado a produzir sem as mínimas
condições de higiene, segurança e, sem qualquer salário, sendo que este
caso não se limita a somente uma empresa, pois que as marcas Collins, Sete
Sete Cinco, Pernambucanas, C&A e Marisa estão em processo de
investigação quanto a tais práticas (SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS E REGIÃO, 2011).
Ainda com relação ao uso de trabalho escravo por grandes
empresas, ressalta-se a denúncia realizada pelo Ministério Público Federal
que em meados de 2014 encontrou em Americanas – SP, bolivianos em
condições análogas a escrava, sendo que os referidos funcionários
trabalhavam em uma confecção que produzia roupas para grifes como Zara,
Ecko, Gregory, Billabong, Brooksfield, Cobra d'Água e Tyrol (SCHIAVONI,
2014).
Neste contexto, o trabalhador escravizado é coagido a permanecer
no trabalho, considerando que tal imposição pode ocorrer de três formas
distintas, sendo elas, moral (trabalhadores normalmente com pouca instrução
ficam envolvidos em dívidas com o empregador, comprando inclusive
produtos do último em armazéns locais); psicológica (trabalhadores
ameaçados com violência para permanecerem trabalhando no local) e física
(trabalhadores submetidos a castigos corporais) (MARTINS, 2008, p. 78).
O trabalho mesmo sendo direito social garantido no art. 6° da
Constituição Federal de 1988, não vem obtendo a efetivação almejada,
contrariamente, reiteradas são as violações aos direitos trabalhistas, pois o
trabalho escravo afronta Princípios e garantias constitucionais e promove a
degradação humana, perpetrando a desigualdade social e colocando a vítima
à margem da sociedade, alienada da realidade em que está inserida.
A degradação advinda do trabalho escravo demonstra a
desumanização na sociedade contemporânea, em que o homem é usado
para a concretização de objetivos de outrem, sem qualquer consciência
social.
Assim, o trabalho escravo é contrário ao preconizado no mundo
moderno, em que uma das formas mais diretas de felicidade é o trabalho,
meio pelo qual o homem busca o sustento próprio e familiar, razão pelo qual
o trabalho deve ser digno, protegido e seguro em termos de riscos ambientais,
pois contrariamente se tornará um castigo (MELO, 2013, p. 85).
Ademais, prevê o art. 4° da Declaração Universal dos Direitos
Humanos que “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a
escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”
constando ainda no art. 23 da mesma Declaração “Toda pessoa tem direito
ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de
trabalho e à proteção contra o desemprego” (UNIVERSIDADE DE SÃO
PAULO, 1948).
Nessa acepção, consigna que a ideia do marchandage, ou seja,
exploração do homem pelo próprio homem, não pode existir, devendo o
trabalhador ser livre no exercício do seu trabalho (art. 5º, XIII, da Lei Maior) e
receber pela prestação dos serviços (MARTINS, 2008, p. 85).
A ofensa aos direitos...
// 39
A utilização do trabalho escravo ou forçado visa diminuir os custos
com a produção, pois ao não pagar salários e não recolher encargos sobre a
prestação de serviços aumenta-se o lucro à custa da exploração do
trabalhador e da violação dos Direitos da Personalidade.
Por isso, o combate ao trabalho escravo deve ser incessante, pois
degenera o ser humano, causando males à sua saúde física e mental, além
de prejudicial a toda a sociedade.
2.6 PROPOSTAS PARA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO
MODERNO
Primeiramente, deve-se partir do ideal apresentando por Emmanuel
Kant que “[...] todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como
meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”, tanto nas suas ações
em que se dirige a si mesmo como nas que dirigem outrem (KANT, 2002, p.
68).
No contexto do trabalho escravo o homem deixa sua posição de
sujeito no ambiente social e passa a ser mero objeto para outros obterem o
lucro almejado em contrapartida da degradação do trabalhador.
E mais, o paradigma atual é a inclusão social, com respeito às
diferenças, com o fim de garantir à plena realização da pessoa (MARQUES;
MIRAGEM, 2014, p. 115). Assim, o uso de mão-de-obra escravo não possui
qualquer respaldo, sendo, pois considerado uma arbitrariedade em prol do
lucro, sem ater-se as consequências causadas aos trabalhadores vítimas de
tais práticas.
Para a verdadeira erradicação da escravidão moderna, é preciso
conscientizar a sociedade, enfaticamente os empregados, para que
compreendam a situação de exploração advinda do trabalho forçado e os
consumidores, os quais devem ter conhecimento das empresas que se
utilizam de trabalho escravo em sua produção, com o intuito de não mais
consumir tais produtos.
Relevante, a proteção do meio ambiente de trabalho através de “[...]
ações coletivas e os termos de ajustamento de conduta – TAC, que
promovem a efetividade dos direitos trabalhistas de forma ampla, abrangendo
a coletividade”, do mesmo modo fundamental a participação do Ministério
Público do Trabalho que desempenha “[...] um papel importante e de
destaque no zelo por um meio ambiente de trabalho adequado e digno”
(SILVA; ROLEMBERG, 2012, p. 382).
Imprescindível também “[...] a atuação de auditores-fiscais do
trabalho que por meio de fiscalização exigem a aplicação das normas
trabalhista, impondo multas quando verificado o desrespeito ao direito do
trabalhador a um ambiente saudável” (SILVA; ROLEMBERG, 2012, p. 384).
Concomitantemente, ás medidas fiscalizatórias é preciso punir os
promotores do trabalho escravo, para que não venham reiterar na prática de
condutas semelhantes, pois que a impunidade ainda é a grande propulsora
de condutas similares. A punição a ser arbitrada deve ocorrer por meio de
40 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
multas, pagamento dos direitos trabalhistas suprimidos das vítimas do
trabalho escravo e também penalidades de caráter social.
Nesse sentido:
[...] os juízes possuem poderes para corrigir condutas de desrespeito
deliberado, reincidente e institucionalizado na ordem constitucional, e que,
caso os juízes não os utilizem, estarão assumindo, querendo ou não,
responsabilidade quanto ao resultado que a ineficácia dos provimentos
jurisdicionais produz na realidade, significa dizer que estão de acordo com o
fato de os agressores reincidentes dos direitos trabalhistas continuarem
obtendo vantagens e lucros pela prática da conduta ilegal (SOUTO MAIOR;
MENDES; SEVERO, 2014, p. 152).
Conjuntamente a decisões judiciais deve estar a atuação da
sociedade, com o fim de efetivamente buscar a promoção de um meio
ambiente de trabalho decente, propulsor do desenvolvimento humano,
repudiando toda e qualquer forma de trabalho escravo.
2.7 CONIDERAÇÕES FINAIS
Os Direitos da Personalidade são inerentes e irrenunciáveis, razão
pelo qual devem ser protegidos de toda e qualquer violação, destacando-se
a necessidade de garantir estes direitos no âmbito trabalhista. A proteção aos
Direitos do Trabalho encontra-se em inúmeros dispositivos legais nacionais e
internacionais, no entanto sua efetivação ainda apresenta-se como um
desafio na atualidade.
Patente que a globalização não trouxe apenas a interligação entre os
países, mas também a propagação do trabalho escravo no mundo
contemporâneo, cujo combate deve ser incessante. Assim, o trabalho
escravo que era praticado comumente no meio rural, com a aproximação
advinda do mundo globalizado, alastrou-se para o âmbito urbano e tornou-se
prática reiterada principalmente em indústrias têxteis, sendo inclusive
utilizado por empresas de renome internacional como Zara, Gregory e
Brooksfield.
O trabalho escravo é degradante e causa danos incalculáveis aos
trabalhadores que tornam-se objeto da relação de trabalho e não mais sujeito
de direitos, refletindo não apenas na vida pessoal do trabalhador, mas
também na sociedade, que indiretamente pode fomentar o crescimento de
tais práticas ao consumir produtos fabricados com a utilização de mão-deobra escrava.
Por isso, com o fim de abolir o moderno regime escravocrata e
promover o trabalho decente, é necessário conscientizar a população sobre
o tema, majorar a fiscalização de meios laborais pelos órgãos competentes
e, concomitantemente punir de forma condizente os promotores do trabalho
escravo, buscando evitar a reiteração de condutas semelhantes, as quais
nitidamente degradam o meio ambiente de trabalho.
A ofensa aos direitos...
// 41
2.8 REFERÊNCIAS
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44 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= III =
A PERDA DE UMA CHANCE E A TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE
Fernanda Roberta Sasso Mello*
Osmar Gonçalves Ribeiro Junior**
3.1 INTRODUÇÃO
A perda de uma chance será estudada com o fim de divulgá-la, para
que o estudioso do direito possa extrair seu conceito, identificar quando ela
ocorre efetivamente e posteriormente, aplicá-la na prática da melhor forma
possível.
A pesquisa será feita por meio de revisão bibliográfica, imagem em
movimento e de julgados extraídos dos Tribunais Superiores.
Será investigado o surgimento da teoria, para que se compreenda
como ela é manifestada na atualidade, observando sua progressão, seja
mundial ou brasileira.
Para melhor compreender a teoria da perda de uma chance será
investigado como aplicar os pressupostos da responsabilidade civil por meio
dessa teoria, onde o nexo de causalidade será observado, por meio da
aplicação de outras teorias para se saber se a conduta do agente realmente
era relevante para a prática da perda de uma chance.
Descreverá a teoria da equivalência e da causalidade adequada por
meio da comparação entre elas e será destacado qual é a mais aplicada e
porque, assim como exemplificará a aplicação do nexo de causalidade para
melhor compreendê-lo.
Será apresentada a natureza da perda de uma chance, onde
estudará se ela possui algum dano efetivo. Descreverá eventuais
divergências sobre a efetiva propriedade da perda de uma chance quanto à
sua natureza, ou seja, será posto em discussão se há diferença com outros
elementos da responsabilidade, qual seja o dano emergente ou não.
Abordar-se-á a perda de uma chance pautada em casos práticos
comuns que podem surgir, com destaque para a área médica, advocatícia,
onde será investigada sua aplicação, com parâmetros para ser mensurada a
*
Mestranda em Direitos da personalidade da UNICESUMAR. Possui graduação em Direito pela
Universidade Paranaense (2008). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito
Público, Direito Processual Civil a Práxis Jurídica Após Reformas e Direito Ambiental.
**
Mestrando em Direitos da personalidade da UNICESUMAR. Possui graduação em Direito pela
Universidade Estadual de Maringá (2008) , especialização em Direito e Processo do Trabalho
pela Universidade Anhanguera - Uniderp (2011) e especialização em Ciências Penais pela
Universidade Estadual de Maringá (2013) . Atualmente é Analista Judiciário da Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná. Tem experiência na área de Direito.
46 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
responsabilidade civil pela perda de uma chance, da forma mais objetiva
possível, inclusive será verificada se é possível a aplicação de alguma
fórmula, princípios, isto é, todos os elementos necessários para que se
consiga descobrir como quantificar esse dano da melhor forma possível.
Por fim, serão investigados os direitos da personalidade e sua relação
com a perda de uma chance, também será esclarecido como estão sendo
tutelados esses direitos com o auxílio dessa teoria.
3.2 CONCEITOS
De acordo com Savi (2012) é possível visualizar a existência do dano
antes de saber o resultado final dele, sendo que a teoria da perda de uma
chance “[...] a concessão de indenização pela perda da possibilidade de
conseguir uma vantagem e não pela perda da própria vantagem que não
pôde se realizar” (SAVI, 2012, p. 3). Para Savi (2012, p. 3), a chance significa:
“[...] a probabilidade de obter um lucro ou de evitar uma chance.”
De acordo com Silva (2012), para identificar a perda de uma chance
deve-se analisar se o caso demonstra uma possibilidade de ganho, êxito
sobre o bem almejado que perdeu, “[...] a total falta de prova de vínculo causal
entre a perda dessa aposta e o ato danoso [...] representa uma expectativa
necessariamente hipotética”. (SILVA, 2012, p. 12-13).
Para Carnaúba a perda de uma chance seria:
[...] uma técnica decisória, que, por meio do deslocamento da reparação, visa
superar as insuficiências da responsabilidade civil diante dos conflitos
envolvendo a lesão a interesses aleatórios. [...] passa a considerar a chance
perdida objeto a ser reparado. (CARNAÚBA, 2013, p. 20-21).
Venosa (2014, p. 44) aduz que: “Na perda de uma chance ocorre a
frustração na percepção desses ganhos [...] constitui efetiva perda patrimonial
e não mera expectativa.”
A perda de uma chance é uma espécie de responsabilidade civil, que
se busca reparar a perda de uma oportunidade de algo importante para a
pessoa, que foi frustrada, independentemente de sua vontade, por ação ou
omissão de outrem. É voltada para a reparação pecuniária.
Observa-se que a perda de uma chance está relacionada com o
tempo futuro, que apesar de incerto, conforme se verifica pelo filme A Nova
Lei (informação verbal)1, as atitudes podem mudar, ou seja, deve-se sempre
se atentar para as possíveis variáveis que podem ocorrer no decorrer do
tempo.
Isso é percebido nesse filme de ficção científica, passado no ano de
2054, onde o estado de Columbia, nos Estados Unidos aplica um projeto
denominado pre-crimes, no qual três pessoas conseguem prever a prática do
1
A NOVA LEI. dirigido por Steven Spielberg. Elenco: Tom Cruise, Colin Farrel, Samantha Morton,
Max von Sydow e Scott Franka. Washingtong D. C: produzido por Century Fox, 17 de jun. de
2002, ficção científica.
A perda de uma chance...
// 47
crime homicídio antes de ele ocorrer, logo, o assassino é preso e condenado
antes de praticar efetivamente o crime, no entanto, constata-se que um dos
responsáveis pelo projeto, interpretado por Tom Cruise percebe na pele, a
falha do sistema, pois deixa de praticar o crime apesar de ter tido vontade de
realizá-lo e verifica que entrou em uma armadilha, vez que foi induzido a
cometer o homicídio por achar que tal vítima havia matado o filho dele,
quando na verdade, de fato, essa pessoa foi subordinada a demonstrar que
praticou o assassinato do filho do autor para Tom Cruise ser preso e
abandonar o projeto.
Constata-se que não há como se ter certeza absoluta de um evento
futuro, apenas se tem expectativas de que ele ocorra como o planejado,
sendo possível a indenização pela frustração dessa probabilidade, por meio
da perda de uma chance.
Para Tartuce (2015, p. 460): “A perda de uma chance está
caracterizada quando a pessoa vê frustrada uma expectativa, uma
oportunidade futura, que, dentro da lógica do razoável, ocorreria se as coisas
seguissem o seu curso normal.”
Para Gonçalves, a perda de uma chance:
Consiste esta na interrupção, por determinado fato antijurídico, de um
processo que propiciaria a uma pessoa a possibilidade de vir a obter, no
futuro, algo benéfico, e que, por isso, a oportunidade ficou irremediavelmente
destruída. (GONÇALVES, 2014, p. 340).
De acordo com Guedes:
A perda de uma chance aplica-se, portanto, àquela situação em que a vítima
se vê privada de uma oportunidade de vir a ganhar determinado benefício ou
de impedir um dano, em razão da conduta de terceiro, contra quem poderá,
com base nesta teoria, pleitear uma indenização correspondente. (GUEDES,
2011, p. 105).
Higa (2012, p. 53) conceitua como derivado do francês “chance”, que
significa: “[...] probabilidade de obter lucro ou evitar uma perda”.
Sanseverino (2014) menciona que: “Relembre-se que a teoria da
perda de uma chance tem aplicação, quando o evento danoso acarreta para
alguém a perda de uma chance de obter um proveito determinado ou de evitar
uma perda” Para o ministro, a teoria poderia ser aplicada em duas situações,
ou seja, em sentido comissivo para conseguir um determinado bem ou, de
forma preventiva, para impedir determinada perda.
Assim, a perda de uma chance decorre de uma frustração,
impedimento de ocorrer algo esperado pela pessoa, uma probabilidade com
certo grau de certeza que é interrompida por alguém.
48 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
3.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Gonçalves (2014) aborda que a teoria da perda de uma chance
iniciou na França, no século XIX, mas apenas na teoria, onde “[...] entende
indenizável o dano resultante da diminuição de probabilidade de um futuro
êxito” (GONÇALVES, 2014, p. 340).
Sanseverino (2014) aduz que:
[...] O precedente mais antigo, no direito francês, foi o caso apreciado pela
Corte de Cassação, em 17 de julho de 1889, que aceitou indenizar uma parte
demandada pela perda provocada pela conduta negligente de um oficial
ministerial, que impediu o prosseguimento do procedimento e,
consequentemente, a possibilidade de ganhar o processo [...] (STJ, 2014,
web).
Para o relator, o primeiro caso a aplicar a teoria da perda de uma
chance foi na França, no século XIX, no entanto não há relato muito detalhado
sobre esse primeiro caso invocado. De acordo com Silva (2012) a perda de
uma chance nasceu na França, em 17 de julho de 1889, onde a Corte de
Cassação francesa concedeu indenização a uma pessoa que foi prejudicada
pela atuação de um oficial ministerial que frustrou qualquer possibilidade de
obter vitória em determinado procedimento.
Para Higa:
Ao contrário do que deveras se escreveu e ainda se escreve, a França do
final do século XIX era totalmente refratária à reparação das chances
perdidas, já que aplicava, sempre as regras mais estritas de reparação da
responsabilidade civil, exigindo, invariavelmente, a prova da certeza do dano
(resultado final favorável frustrado), o que, por óbvio, redundava na rejeição
dos pleitos dessa estirpe.
Os irmãos Mazeud, ao relacionarem decisões em que seria possível
indenizar as chances perdidas mencionaram o julgado de 1896, da Corte de
Apelação de Limoges, que tratava do pleito indenitário formulado por um
proprietário de cavalos contra uma companhia de transporte, pelo fato de o
animal não ter chegado a tempo de participar da corrida. O pedido, seguindo
a linha do que decidido em primeira instância, fora rechaçado por não haver
certeza de que o cavalo venceria o páreo (HIGA, 2012, p. 15).
Constata-se, no caso do cavalo, que ainda não se conseguiu
convencer a aplicação da perda de uma chance, mas que já se procurava
invocar tal teoria para um caso concreto.
Segundo Savi (2012), a perda de uma chance foi discutida apenas na
teoria, na Itália, em 1940, por Giovanni Pacchioni, o qual a criticou afirmando
que, apesar de desagradável, não teria como causar um dano concreto.
Segundo Higa, em se tratando da perda de uma chance na Itália, é
difícil de ser pesquisado em seus julgados pois:
A perda de uma chance...
// 49
De todos os países que fez pesquisa jurisprudencial, foi a Itália o que,
disparado, trouxe mais dificuldades. Os percalços para encontrar o primeiros
julgados referidos nos textos literários são inimagináveis para quem
investiga, livremente, as decisões dos mais diversos tribunais brasileiros,
sem grandes embaraços, tendo acesso amplo, gratuito e democrático às
fontes de Manifestação do Poder Judiciário nacional.
Na Corte de Cassação italiana, entretanto, as coisas são bem diferentes. O
sítio eletrônico tem pouquíssimo conteúdo de utilidade para um operador do
Direito [...] (HIGA, 2012, p. 33).
A perda de uma chance foi inicialmente aplicada de fato, de forma
cristalina, na França, em 16 de dezembro de 1953, pela Primeira Câmara
Civil do Tribunal de La Seine, quando um escritor, em início de carreira foi
desclassificado em um concurso de prêmio literário em 1951, após ter sido
selecionado entre 07 (sete) candidatos a participar do certame, na primeira
fase, sendo que a segunda etapa consistia em apresentar mil exemplares em
determinada data, no entanto, a editora não conseguiu imprimir em tal prazo
as cópias da obra de referido escritor e este foi desclassificado. Nesse caso
o tribunal condenou a editora a reparar a chance perdida do escritor no valor
de cem mil francos como perdas e danos, de acordo com Carnaúba (2013).
Savi (2012) também afirmou que na França foi onde houve o
desenvolvimento da teoria da perda de uma chance, pois foi lá que passou a
considerar a perda da chance como verdadeiro dano, sem haver necessidade
de ter o resultado final. Aduz ainda que essa teoria influenciou a Corte de
Cassação da França. Para Savi (2012) a teoria espalhou-se para outros
países da Europa, sendo que na Itália, na maioria das vezes, apenas era
utilizada quando atingisse a probabilidade acima de cinquenta por cento de
chance de se obter o êxito de algo frustrado.
De acordo com Higa (2012), a teoria da perda de uma chance foi
primeiramente aplicada em 1991 no Brasil, pelo Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, o qual acolheu referida teoria, no caso de um determinado
processo previdenciário que havia sido extraviado e o advogado não pleiteou
a restauração do processo, nem comunicou sua cliente, logo o referido
tribunal aplicou a teoria da perda de uma chance de ganho de causa.
A responsabilidade, assim, como a perda de uma chance, surge
como instrumento para amenizar os danos sofridos pela pessoa, em especial
os direitos da personalidade, o qual pode ser codificado economicamente,
conforme descreve Stoco (2013).
3.4 A TEORIA DAS EQUIVALÊNCIAS – NEXOS DE CAUSALIDADE
De acordo com Silva (2012), o nexo de causalidade é uma das
condições mais importantes para caracterizar a responsabilidade civil,
leciona:
O fato de a coincidência entre ação e omissão e o dano não ser suficiente
para caracterizar a causalidade faz com que se assegure que determinado
50 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
ato ou omissão somente será considerado como causa, se representar uma
conditio sine qua non, que também é denominada como condição
necessária. (SILVA, 2012, p. 21).
A lição de Silva demonstra que o nexo de causalidade será
identificado com um simples teste consistente na retirada ou inserção de
determinada conduta, ou seja, através do questionamento que deu causa ao
fato, se ainda assim, o fato lesivo aconteceria certamente ou não. De acordo
com Silva (2012), a causalidade norte americana é dividida em causation as
fact e proximate cause e observa:
[...] quando causas concorrentes poderiam, operando sozinhas, ter causado
o mesmo dano, uma causa faria com que a outra não fosse considerada uma
conditio sine qua non, pois cada uma das causas é condição suficiente para
causar o dano, fazendo com que a outra não seja mais necessária.
[...] em um estudo comparativo, seria possível dizer que o instituto da
“proximate cause”está no mesmo espaço que as teorias da causalidade
adequada e do dano direto e imediato ocupam em nosso sistema. Também
selecionar, dentre as condições necessárias para o surgimento do dano,
aquelas que serão consideradas as causas imputáveis (SILVA, 2012, p.
33;36).
Segundo as teorias apresentadas pelo autor a causation as fact
apesar de determinado fato ser considerado uma condição, mas ainda assim
poderá não ser a causa do dano, já na teoria proximate cause verifica se a
pessoa deve ou não ser responsabilizada pelo dano causado, por meio de
atribuição de valores.
Para Rizzardo (2013, p. 67), “[...] é a relação verificada entre
determinado fato, o prejuízo e um sujeito provocador.” Observa-se que é uma
ligação entre o fato causador do dano e a pessoa que gera o dano. Trata-se
de identificação por meio de hipótese.
Segundo Silva (2012), a teoria das equivalências nasceu na
Alemanha, no século XIX, mas de acordo com o autor essa teoria vem sendo
excluída por ser muito abrangente, já que segundo ela, qualquer elemento
que fosse retirado e interferisse no resultado seria causa do evento e,
portanto, responsável civilmente, o que parece injusto. Por isso, Silva justifica
a aplicação da teoria da causalidade adequada, que segundo ele: “[...] um
fato pode ser considerado causa de um dano se, de acordo com os dados da
ciência e da experiência, no momento da sua produção, fosse possível prever
que tal fato geraria o dano [...] busca-se [...] a “possibilidade do resultado””
(SILVA, 2012, p. 23-24).
Observa-se que a teoria da causalidade adequada para Silva (2012)
é a mais racional, pois usa a probabilidade para identificar o agente causador
da responsabilidade civil, sendo obviamente, a teoria mais prestigiada pelos
operadores do direito.
No mesmo sentido, Carnaúba (2013) aborda as duas teorias ligadas
à causalidade: teoria das equivalências de condições e a teoria da
A perda de uma chance...
// 51
causalidade adequada. Para o autor a teoria das equivalências seria “[...] todo
antecedente necessário à realização de um prejuízo, ou seja, todo fato sem
o qual esse prejuízo não ocorreria [...]”. (CARNAÚBA, 2013, p. 57). Já a teoria
da causalidade adequada seleciona os elementos preponderantes que
contribuíram para determinado fato, sendo considerados jurídicos apenas
esses, de acordo com Carnaúba (2013).
Carnaúba (2013) afirma que o nexo de causalidade da perda de uma
chance está ligada diretamente com a probabilidade, que faz parte de um
conjunto de proposições chamadas de evidências e conclusões, onde “[...] a
privação de uma oportunidade pode ser assimilada pela noção de prejuízo”
(CARNAÚBA, 2013, p. 77).
Um exemplo prático, onde se visualiza o nexo causal com a aplicação
da perda de uma chance, foi no julgado citado por Tartuce (2013), do Superior
Tribunal de Justiça, consistente em um erro médico por não ter usado a
melhor técnica de cura do paciente, gerou a responsabilidade civil pela perda
de uma chance. Nesse caso, o Tribunal Superior aplicou o nexo causal direto
“[...] entre a conduta (o erro médico) e o dano (lesão gerada pela perda de
bem jurídico autônomo: a chance).” (TARTUCE, 2015, p. 464).
Quanto à responsabilidade médica Marmitti aconselha:
O dano experimentado pelas vítimas não pode servir como fonte de renda.
Visando impedir prestação excessiva, ou locupletamento indevido, invoca-se
em prol do ofensor o benefício da compensatio lucri cum damno, aplicado à
luz da teoria da causalidade. Mas a regra da compensação ficará afastada
sempre que o plus defluir de razão estranha ao nexo causal entre o fato ilícito
e as perdas e danos (MARMITTI, 2005, p. 350).
No mesmo sentido observa-se a aplicação da teoria da perda de uma
chance no Supremo Tribunal Federal, em um caso que envolve erro médico,
proferido pelo Ministro Dias Toffoli (2012) constatou:
Concausalidade entre os fatores que levaram à morte da paciente que, diante
da prova colhida, não exclui a aplicação da chamada teoria da perda de uma
chance na medida em que o dano ocorreu porque não houve a detenção do
processo causal, embora sem se saber ao certo se isso haveria conseguido
salvar a paciente, porquanto houve a má prestação do serviço, retirando-se
do interessado uma possibilidade eficiente de diagnóstico que lhe poderia ter
poupado a vida, ou pelo menos a estendido em algum grau. Aplicação do
princípio iura novit curia (STF, 2012, web).
Segundo Gonçalves (2005), a teoria das equivalências consiste no
fato de que toda conjuntura que corroborou para o dano é considerada causa,
o que para o autor pode ser irracional, injusto por ser muito genérica, geral.
Gonçalves (2005) traz outra teoria, mais racional e sensata, a teoria
da causalidade adequada na qual descreve “[...] como causadora do dano a
condição por si só apta a produzi-lo. Ocorrendo certo dano, temos de concluir
que o fato que o originou era capaz de lhe dar causa” (GONÇALVES, 2005,
p. 538).
52 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
No mesmo sentido aborda Rizzardo (2013) que a teoria das
equivalências das condições e da causalidade adequada. Segundo o autor,
a teoria das equivalências “[...] estabelece como causa do dano todas as
condições sem as quais o mesmo não aconteceria” (RIZZARDO, 2013, p. 70).
Trata-se de uma teoria muito abrangente. Para Rizzardo (2013, p. 71): “[...] a
causa adequada é a que se mostra capaz de originar o evento.” Por outro
lado o autor critica tal teoria, pois afirma que essa teoria assim como a da
equivalência é subjetivista quanto a definição da causa que geraria o dano.
De acordo com Rizzardo (2013) a teoria efetiva adotada pelo atual Código
Civil descreve ser “[...] a causa do dano direto e imediato [...]” assevera que
“A responsabilidade do autor direto mede-se de acordo com a natureza da
lesão. Pelos eventos que aparecem, provocados por causas outras, o
responsável é a pessoa que os originou por sua culpa” (RIZZARDO, 2013, p.
72).
Observa-se que sobre a teoria das causalidades, a das equivalências
é bombardeada pelos doutrinadores como irracional por ser muito
abrangente, já a teoria da causalidade adequada é considerada mais sensata
por ser mais seletiva, mas ainda assim sofre crítica por ser um pouco
subjetivista para Rizzardo (2013), sendo que o Código Civil adotou a teoria
do dano imediato, onde eventuais causas supervenientes, que não estejam
diretamente ligadas com a causa originária, devem ser expelidas do causador
originário para o secundário.
3.5 ANÁLISE SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DA TEORIA DA PERDA DE
UMA CHANCE
Ressalta-se que para Savi (2012), a perda de uma chance pode ser
aplicada tanto em danos morais como materiais, que segundo ele, os
tribunais vem aplicando em ambos os casos tal teoria à responsabilidade civil.
Importante frisar que Savi (2012) destaca que quando ocorrer os danos
materiais, a perda de uma chance será um dano emergente.
Para Tartuce (2015, p. 468) a perda de uma chance é fruto da “[...]
evolução de consciência da civilística nacional conduz à admissão desses
novos danos reparáveis, antes não admitidos”.
Para Venosa (2014), a perda de uma chance tem natureza autônoma,
ou seja, é uma nova espécie de responsabilidade civil, que difere dos lucros
cessantes e danos emergentes. Para o autor supra citado, o dano emergente
seria uma diminuição do patrimônio da vítima, já o lucro cessante decorre do
que a vítima teria recebido se não tivesse sofrido o dano, já a perda de uma
chance é uma projeção voltada para o futuro de expectativa frustrada de um
ganho certo.
Segundo Carnaúba, a perda de uma chance busca:
[...] a recolocar a vítima [...] na situação em que ela se encontrava até o
evento em questão. Sabemos que a vítima ostentava uma chance antes da
intervenção do responsável, e que, por força dessa intervenção, a chance
A perda de uma chance...
// 53
desapareceu. É essa chance perdida que deverá ser reparada (CARNAUBA,
2013, p. 168).
Destaca-se que a perda de uma chance objetiva a reparação de tal
chance, recolocando a pessoa ao estado em que ela se encontrava na
expectativa de obter algo.
A perda de uma chance pode ser de natureza patrimonial ou não, de
acordo com Carnaúba (2013), manifestada como dano emergente.
Silva (2012) concorda que a perda de uma chance pode causar tanto
danos morais como patrimoniais, sendo que considerado um dano certo,
específico.
Para Gonçalves (2014), a natureza da perda de uma chance estaria
relacionada com o domínio do dano ressarcível, se a chance fosse
considerada séria.
De acordo com o Relator José Laurindo de Souza Netto, do Tribunal
de Justiça do Paraná:
[...] Mas não basta a definição da culpa do médico. A responsabilidade pela
perda de uma chance exige mais, exige que as chances perdidas sejam
sérias e objetivas. E essas chances existiam no caso em julgamento.
Ou seja: tinha a vítima chances de sobreviver, de cura, ou ao menos de uma
sobrevida menos sofrida, mais digna, se tomadas algumas medidas embora
tardiamente após a recidiva. As chances não eram mínimas, mas boas e, por
isso, sérias.
Não vale dizer que a vítima/paciente morreria de qualquer modo em razão da
agressividade da doença. A teoria da perda de uma chance não descarta a
possibilidade do evento morte decorrer exclusivamente da doença; ao
contrário, trabalha com essa possibilidade, mas sem perder de vista a
probabilidade de cura, atuando, a teoria, nas hipóteses em que há dúvidas a
respeito da causa adequada do dano. Ela envolve chances perdidas, e
apenas isso. É suficiente que existam chances sérias de cura ou de uma
sobrevida menos sofrida, perdidas em razão da culpa do médico (TJPR,
2012, web).
Leciona o Desembargador (2012) que a responsabilidade civil da
perda de uma chance exige que tal perda seja certa, cristalina, séria, como
no exemplo de erro médico, onde a paciente foi a óbito e perdeu a chance de
cura, ou de ter sofrido menos com a doença, apesar do curto período de vida,
mesmo sabendo que sua doença poderia causar a morte.
No mesmo sentido Guedes (2011, p. 102) aduz que: “[...] existe aí um
dano real, que é constituído pela própria chance perdida, isto é, pela
oportunidade dissipada de se obter mais à frente a vantagem, ou de se evitar
o prejuízo que veio a acontecer”. A perda de uma chance decorre de um dano
certo, palpável. Guedes (2011) acrescenta ainda em relação à natureza da
teoria da perda de uma chance, no sentido de que para a jurisprudência
nacional tem natureza de lucro cessante, mas para a autora há diferenciação
entre a perda de uma chance e o lucro cessante, já que este busca averiguar
os lucros que a vítima teria se não tivesse sofrido o prejuízo, todavia, a perda
54 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
de uma chance usa a probabilidade para descobrir o valor da chance perdida,
de forma objetiva, matematicamente.
Para Higa (2012), a perda de uma chance poderia ser encaixada
como um dano emergente, caso houvesse o rompimento do paradigma de
que o dano emergente abrange apenas a reparação de danos materiais. Para
o autor na perda de uma chance usa-se a álea, o acaso, o risco para
mensurar o valor da indenização.
De acordo com Costa Filho (2011), a perda de uma chance é uma
nova modalidade de dano, a qual se encontra ao lado dos lucros cessantes e
dos danos emergentes.
Assim, a perda de uma chance é vista como um dano certo, cristalino.
Por outro lado, há divergências sobre sua natureza propriamente dita dessa
teoria, vez que é considerada um dano emergente, ora como uma nova
espécie de responsabilidade civil.
3.6 ASPECTOS FORMAIS E PRÁTICOS DA TEORIA
Para que haja a caracterização da perda de uma chance, de forma
objetiva percebe-se que há três quesitos essenciais que devem ser levados
em conta para aplicar a teoria, conforme leciona o Ministro Sanseverino em
ressente julgado do Superior Tribunal de Justiça, no qual mencionou em seu
voto o seguinte:
Em verdade, não há falar em responsabilidade civil sem dano, fazendo-se
necessária a presença de seus três principais elementos - a certeza, a
imediatidade e a injustiça do dano. A certeza do dano constitui o principal
elemento, significando que a lesão ao interesse do prejudicado deve ser real
e efetiva, sem deixar dúvida acerca da sua existência, ficando, assim,
excluídos os danos hipotéticos. Essa afirmativa, porém, deve ser relativizada,
pois, entre o dano certo e o hipotético, existe uma nova categoria de
prejuízos, que foi identificada pela doutrina e aceita pela jurisprudência a
partir da teoria da perda de uma chance. Relembre-se que a teoria da perda
de uma chance tem aplicação, quando o evento danoso acarreta para
alguém a perda de uma chance de obter um proveito determinado ou de
evitar uma perda (STJ, 2014, web).
Segundo o Ministro Relator Sanseverino (2014), a perda de uma
chance só será caracterizada se demonstrar a certeza do dano, de forma
cristalina, imediato, eminente e injusto o dano, como no acórdão que aplicou
o desrespeito à personalidade da criança, a dignidade da criança que perdeu
a oportunidade de futuramente usar suas células tronco, que poderia ter sido
extraída do cordão umbilical, para eventual tratamento de saúde que possa
necessitar.
De acordo com Savi (2012), a corte italiana usou uma fórmula para
melhor aplicar a teoria da perda de uma chance consistente em VI= VRF X
Y, que significa que o valor da indenização (VI), será igual ao valor do
resultado final (VRF) multiplicado pelo percentual de probabilidade de
A perda de uma chance...
// 55
obtenção do resultado final (Y), ou seja, a área jurídica passou a usar a
probabilidade, racionalizando suas decisões. No entanto, segundo Savi
(2012) a perda de uma chance no direito italiano, mais precisamente nos
tribunais, é necessário atingir, a nível de probabilidade superior a cinquenta
por cento, o autor ainda destaca que o valor da indenização nunca poderá
ser igual ao benefício que a vítima obteria se não tivesse frustrado sua
expectativa, já que nunca é possível ter certeza absoluta que o evento
ocorreria.
Frisa-se que o filme “A nova lei” (informação verbal) 2 descreve, que
ao final, seria injusto condenar alguém com certeza absoluta sobre um evento
futuro, mesmo que esse seja certo, nesse mesmo viés pauta a aplicação da
perda de uma chance.
Carnaúba (2013) aconselha o julgador, quando estiver que decidir
sobre a aplicação da perda de uma chance, a analisar todos os elementos
sobre o fato, pois:
Na realidade, para mensurar o valor da chance perdida, o juiz deve
considerar todas as informações de que dispõe no momento em que julga.
Os dados a serem empregados nessa avaliação incluem, portanto, tudo
aquilo que o magistrado sabe no instante em que profere sua palavra final no
litígio. Trata-se, em verdade, de uma regra geral da responsabilidade civil (o
prejuízo deve ser avaliado no momento da decisão), regra que adquire um
sentido peculiar quando aplicada aos casos de perda de chance
(CARNAUBA, 2013, p. 116).
Para Tartuce (2015, p. 461) cabe: “[...] ao réu a sua prova e ao juiz o
dever de averiguar quão foi efetivamente perdida a chance com base na
ciência estatística, recorrendo ao auxílio de perícia técnica”.
Mas, com certeza, o caso de maior destaque que o Superior Tribunal
de Justiça aplicou à teoria da perda de uma chance foi o chamado caso do
“Show do Milhão”, conforme leciona Savi (2012), qual seja, o Resp. n.
788.459-BA, onde a demandante da ação havia participado do programa
televisivo “Show do milhão” e perdeu a chance de ganhar considerável
quantia, por não responder certa pergunta que foi considerada sem resposta,
logo, esta recebeu indenização de vinte e cinco por cento de um milhão de
reais em barras de ouro, já que esta seria a probabilidade de acertar a
alternativa correta de um total de quatro, decorrente da pergunta, se esta
tivesse resposta.
Nesse contexto, a responsabilidade civil auxilia a pessoa que teve
seus direitos desrespeitados, em especial os direitos da personalidade, já que
estes são inatos do homem e visam a proteção da pessoa considerada em si
mesma, com atributos físicos e morais em constante desenvolvimento,
conforme aduziu Souza (2002).
2
A NOVA LEI. dirigido por Steven Spielberg. Elenco: Tom Cruise, Colin Farrel, Samantha Morton,
Max von Sydow e Scott Franka. Washingtong D. C, Century Fox, 17 de jun. de 2002, ficção
científica.
56 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
A busca da justiça na época da Idade Média, o que infere que tal
conceito possa ser usado no âmbito da reparação econômica atual, onde
Carneiro (1998) leciona que a moral era usada na época onde as relações
econômicas eram feitas por meio da troca, atingindo a justiça quando as
partes conheciam as regras do jogo, por meio de fixação de preços. Já
atualmente, se encontra em prática o pensamento utilitarista, o que deve ser
pautado pelo respeito à dignidade da pessoa humana, conforme prevê a
Constituição Federal.
Não se deve esquecer no caso de aplicação, por exemplo, da perda
de uma chance, em âmbito da responsabilidade médica que o paciente não
conhece as regras, não sabe qual a melhor técnica que se pode usar para
obter tal cura em relação à determinada enfermidade, nesse caso, faz-se
necessário o dever de informá-lo sobre os tratamentos cabíveis, e essa
informação com certeza deve sopesar no momento de eventual julgamento,
conforme aconselha Tepedito (2006).
Gonçalves (2014) exemplifica a aplicação da perda de uma chance
sobre o erro médico, citando parte do julgado do Superior Tribunal de Justiça,
proferido pela Ministra Nancy Andrighi destacando que “A incerteza não está
na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o
dano é causado por força da doença, [...]. A conduta do médico não provocou
a doença (câncer) [...], apenas frustrou a oportunidade de uma cura incerta”
(GONÇALVES, 2014, p. 341).
De acordo com Guedes (2011), é comum a aplicação da teoria da
perda de uma chance em caso de erro médico ligado a erros de diagnóstico
ou omissão em tratamento médico mais eficiente ao paciente.
Constata-se que para se arbitrar eventual valor do dano, decorrente,
é claro, da perda de uma chance, importante que o julgado aplique também
os princípios da razoabilidade e proporcionalidade conforme julgado do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiros:
[...] FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO DA RÉ - CARACTERIZAÇÃO DANO
MORAL
CONFIGURADO
–
RAZOABILIDADE
E
PROPORCIONALIDADE –IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE DANO
MATERIAL HIPOTÉTICO -SENTENÇA QUE SE MANTÉM. [...] Sentença de
parcial procedência para condenar o sindicato réu a pagar à autora, a título
de danos morais, o valor de R$ 12.000,00 (doze mil reais), corrigidos
monetariamente e acrescidos de juros de mora de 1% ao mês, a contar da
data da sentença. Julgou-se improcedente o pedido de indenização por
danos materiais. Reconhecimento da sucumbência recíproca, as custas
processuais serão rateadas e os honorários advocatícios compensados, na
forma do art.21 do CPC -gratuidade de justiça deferida à autora. [...]
Falhando o advogado em sua obrigação de meio, está a prejudicar o
interesse de sua cliente. Configurado, de modo inegável, o dano moral, pois
que, devido a conduta tardia dos advogados do sindicato, houve a chamada
perda da chance de ter a possibilidade de receber verbas salariais
reclamadas judicialmente.
7. Quadro fático que, por certo, abalou o seu estado emocional, sendo
evidente a angústia e a aflição vivida ao saber que sua demanda restou
A perda de uma chance...
// 57
fadada ao insucesso, diante do prazo prescricional reconhecimento na
demanda trabalhista.
8. Dessa forma, considerando as peculiaridades do caso concreto, tem-se
que a verba indenizatória foi corretamente reconhecida, de modo a refletir os
parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade inerentes à espécie.
9. Sentença de parcial procedência mantida (TJRJ, 2015, web).
Extrai-se do julgado do Desembargador Marcelo Lima Buhatem que
a perda de uma chance decorre, nesse caso, pela prestação de serviços
advocatícios de má qualidade, já que a pessoa perdeu a chance de ajuizar
ação trabalhista e obter verbas trabalhistas, logo, aplicou-se a condenação
em danos morais sofridos pela pessoa por tal abalo de frustração.
Por fim, Marmitt (2005) aconselha que o valor a ser arbitrado como
reparação civil deve pautar sempre pelo bom-senso e ponderação do
julgador.
3.7 PERDA DE UMA CHANCE E A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE
Os direitos da personalidade iniciaram na Grécia, mas os romanos
desenvolveram tais direitos. A pessoa para obter personalidade necessitava
possuir os status, sendo divididos em três (libertatis, civitates e familiae),
sendo o libertatis o mais apreciado, segundo Szaniawski (2005). A tutela dos
direitos da personalidade era muito tímida na época grego-romano. Na Idade
Média ocorreu uma verdadeira mistura entre o direito romano e o direito
germânico. A definição de pessoa passou a ter relação com a dignidade, no
sentido de dar importância para a pessoa em si de acordo com Szaniawski
(2005).
O renascimento aborda o direito subjetivo com o auxílio do iluminismo
do século XVIII de acordo com Souza (2005), os direitos da pessoa humana
passaram a ser definidos no liberalismo, por meio da revolução industrial.
Souza (2002) menciona que os direitos da personalidade apareceram
pela inquietação social. Exemplifica o problema sofrido pelos trabalhadores,
vulneráveis, que passavam por acidentes de trabalho, cada vez maior o
número, logo, os direitos da personalidade têm por objetivo frear os abusos
sofridos pela classe proletária, por meio da revolução industrial, a Revolução
Francesa também ajudou no desenvolvimento dos direitos da personalidade,
por meio da Declaração dos Direitos do Homem.
Mas com certeza, conforme Sousa (2005), foi com a inserção da
igualdade entre as pessoas que os direitos da personalidade ganharam
subsistência.
Dessa forma, a personalidade é conceituada como uma gama de
características próprias da pessoa que a diferencia das demais, cujos bens
que a pessoa adquire primeiro, estão acima dos direitos patrimoniais,
conforme Souza (2002).
Nesse sentido, observa-se que a dignidade da pessoa tem relação
íntima com os direitos da personalidade, já que a dignidade é a virtude de tais
58 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
direitos. A responsabilidade civil surge como mecanismo de tutela dos direitos
da personalidade.
Observa-se pelos julgados do Superior Tribunal de Justiça que os
direitos da personalidade estão sendo reconhecidos quando ocorre a perda
de uma chance, há punições por meio de reparação pecuniária por tais
desrespeitos, como a perda de uma eventual utilização de células-tronco em
tratamento de saúde3, a perda pela cura de determinada enfermidade4.
Tepedino (2006, p. 87) aduz: “[...] o profissional não se obriga a curar
o paciente mas a empregar diligência, cautela e conhecimento técnico postos
ao alcance da ciência médica com vistas a curá-lo [...]”. Observa-se que o
erro médico no tratamento de determinada doença justifica a perda de uma
chance quando o profissional de certa forma contribuiu para a piora da
3
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PERDA DE UMA CHANCE.
DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO DE COLETA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS
DO CORDÃO UMBILICAL DO RECÉM-NASCIDO. NÃO COMPARECIMENTO AO HOSPITAL.
LEGITIMIDADE
DA
CRIANÇA
PREJUDICADA.
DANO
EXTRAPATRIMONIAL
CARACTERIZADO. [...]2. Legitimidade do recém-nascido, pois "as crianças, mesmo da mais
tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os quais se inclui
o direito à integralidade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua
violação" (REsp. 1.037.759/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, TERCEIRA TURMA, julgado em
23/02/2010, DJe 05/03/2010). [...] 5. Caracterização de dano extrapatrimonial para criança que
tem frustrada a chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se for
preciso, no futuro, fazer uso em tratamento de saúde. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. REsp
1291247
/
RJ
RECURSO ESPECIAL 2011/0267279-8. Brasília, DF, 19 de agosto de 2014. Disponível
em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=perda+e+uma+e+chance&&b=AC
OR&p=false&l=10&i=5>. Acesso em 21 set. 2015).
4
DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS
POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE
DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA
CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL
PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade
civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma
oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza
quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da
referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes. 2. Nas
hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado,
notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do
médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e
não pela falha de tratamento. 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês,
acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas
situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar
que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à
indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano.
Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional. 4. Admitida a
indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre
o prejuízo final experimentado pela vítima. [...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. REsp
1254141 / PR RECURSO ESPECIAL2011/0078939-4. Brasília, DF, 04 de dezembro de 2012.
Disponível
em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=perda+e+uma+e+chance&&b=AC
OR&p=false&l=10&i=5>. Acesso em 21 set.2015).
A perda de uma chance...
// 59
pessoa de determinada enfermidade, já que se tivesse realizado o melhor
tratamento, essa pessoa teria chance de cura.
Assim, a personalidade da pessoa deve ser tutelada pela
responsabilidade civil, por meio da perda de uma chance quando há violação
de tais direitos, como a vida, integridade mental e física da pessoa, o que não
pode passar desapercebido pelo operador do direito.
3.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A perda de uma chance foi trabalhada como uma teoria derivada da
responsabilidade civil, onde a chance perdida, ou seja, a oportunidade de se
obter um bem relevante para a pessoa e para o meio jurídico foi cessado por
outrem, onde nasce o dever de indenizar, já que a chance perdida gera ônus,
responsabilidade para o agente que o praticou.
Decorre de um deslocamento no qual as responsabilidades civis
comuns não conseguem abarcar a probabilidade de algo futuro que tinha
grande chance de efetivamente se concretizar, mas que devido a uma ação
ou omissão de outrem foi extirpado, interrompido.
A teoria foi inicialmente abordada no século XVIII, na França, na
década de quarenta na Itália também foi discutida, mas efetivamente só foi
posta em prática na França em 1953, pela corte francesa, onde o autor da
ação teve êxito na causa envolvendo um concurso literário, mas no Brasil só
foi efetivamente aplicada, pela primeira vez, com êxito de causa, em 1991
pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, envolvendo a má prestação
de serviços advocatícios.
A natureza da perda de uma chance envolve dano certo, com grande
probabilidade de que ocorreria se não tivesse cessado por atitude danosa de
outrem, onde há grande discussão se é uma espécie de danos emergentes
ou é considerada uma nova espécie de responsabilidade civil, sendo
discutida pela doutrina essa diferenciação.
Com efeito, observou-se que a perda de uma chance pode ser
aplicada por meio de uma fórmula para auxiliar o julgador a mensurá-la
quando realmente ela aparece, devendo analisar todas as informações sobre
o caso em tela, inclusive com o auxílio de perícia, através da probabilidade
de estimar as chances de determinado evento ocorrer, caso não tenha sido
interrompido abruptamente.
Os direitos da personalidade surgem como inerentes à pessoa
humana, o bem mais precioso que deve ser tutelado com a aplicação da
teoria da perda de uma chance, para amenizar o sofrimento da pessoa que
teve frustrada a oportunidade de algo valioso.
Logo, a perda de uma chance pode ser mensurada como danos
morais ou materiais, no entanto, busca sempre o uso da razão, matemática e
lógica para ser quantificada e identificada, utilizando inclusive princípios e
teorias ligadas à causalidade, sendo destacadas a teoria da causalidade
adequada e a de dano imediato como mecanismos de uso da teoria que surge
60 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
com o propósito de busca pela justiça, pacificação social, respeito à pessoa
humana e aos direitos da personalidade.
3.9 REFERÊNCIAS
A NOVA LEI. Direção e produção de Steven Spilberg. Intérpretes: Tom
Cruise; Colin Farrel; Samantha Morton; Max von Sydow e Scott
FrankaWashingtong. D. C: Century Fox, 2002. 1 DVD.
CARNAÚBA, Daniel Amaral. Responsabilidade Civil pela perda de uma
chance: a álea e a técnica. São Paulo: Método, 2013.
CARNEIRO, Maria Francisca. Avaliação do Dano Moral e Discurso
Jurídico. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1998.
COSTA FILHO, Venceslau Tavares. A cláusula geral de responsabilidade
objetiva do Código Civil de 2002: elementos para uma tentativa de
identificação dos pressupostos para a aplicação do parágrafo único do
art. 927 do CC 2002. In: Atualidades Jurídicas – Revista do Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Belo Horizonte, 2011.
Disponível em:
<http://bid.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=75804>.
Acesso em: 23 fev. 2015.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o
novo Código Civil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014.
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom-senso ao
postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011.
HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade Civil: a perda de uma chance no
direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012.
MARMITT, Arnaldo. Perdas e Danos. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005.
SAVI, Sérgio. Responsabilidade Civil por perda de uma chance. 3. ed.
São Paulo: Atlas, 2012.
SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade Civil pela Perda de uma
chance. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
SZANIAWSHI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua tutela. 2. ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
SOUSA, Anath Capelo. Direitos das Pessoas: relatório sobre o programa,
o conteúdo e os métodos de ensino de tal disciplina. Coimbra: Editora
Coimbra, 2005.
SOUZA, Sergio Iglesias Nunes. Responsabilidade Civil por Danos à
Personalidade. Barieri: Manole, 2002.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REsp 1254141/PR RECURSO
ESPECIAL2011/0078939-4. Brasília, DF, 04 de dezembro de 2012.
Disponível em:
A perda de uma chance...
// 61
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=perda+e+uma+
e+chance&&b=ACOR&p=false&l=10&i=5>. Acesso em: 21 set. 2015.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARE 705138. Brasília, DF, 27 de
novembro de 2012. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000
235610&base=baseMonocraticas>. Acesso em: 16 ago. 2015.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REsp 1291247 / RJ
RECURSO ESPECIAL 2011/0267279-8. Brasília, DF, 19 de agosto de
2014. Disponível
em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=perda+e+u
ma+e+chance&&b=ACOR&p=false&l=10&i=5>. Acesso em: 21 set.
2015.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.291.247, 3.
Turma, Informativo 549. Brasília, DF, 19 de agosto de 2014. Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?component
e=ATC&sequencial=35324840&num_registro=201102672798&data=201
41001&tipo=51&formato=PDF>. Acesso em: 16 ago. 2015.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil 2: direito das obrigações e responsabilidade
civil. 10. ed. São Paulo: Método, 2015.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2006.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. Ap. Cível n. 8178449. Oitava
Câmara Cível. Curitiba, PR, 8 de março de 2012. Disponível em:
<http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21452062/8178449-pr817844-9-acordao-tjpr/inteiro-teor-21452063>. Acesso em: 16 ago. 2015.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Ap. Cível n. 015990553.2011.8.19.0001. Vigésima Segunda Câmara Cível. Rio de Janeiro,
RJ. 13 de janeiro de 2015. Disponível em: <http://tjrj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/162215129/apelacao-apl1599055320118190001-rj-0159905-5320118190001/inteiro-teor162215144 >. Acesso em: 16 ago. 2015.
RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2013.
62 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= IV =
A PROTEÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA VERSUS A PROTEÇÃO
AMBIENTAL EUROPEIA
Malu Romancini*
Mithiele Tatiana Rodrigues**
4.1 INTRODUÇÃO
O valor da vida humana é incomensurável, da mesma forma é o do
meio ambiente. Isso porque, a vida está diretamente interligada ao meio
ambiente e dele decorrem todos os demais aspectos de sua existência, como
o ar que respira-se, a água que se bebe, sem falar no meio ambiente em si –
ou habitat, que permite o desenvolvimento do ser humano.
Sendo assim, a tutela ao meio ambiente deve ser a mais eficiente e
perspicaz possível. A partir deste ponto, o presente artigo objetiva
primeiramente analisar a proteção ambiental europeia dada ao direito
fundamental ao meio ambiente equilibrado e saudável, conferida através do
Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria de Direitos
Fundamentais, tendo em vista foi a precursora desta proteção.
Para tanto, se almeja conceituar e compreender do que se trata o
princípio supramencionado, utilizado na União Europeia, bem como abordar
sua fundamentação legal e aplicação prática. Posteriormente, abordar a
proteção em nível mais elevado quanto à matéria de direito ambiental.
Em seguida, pretende-se sopesar o sistema brasileiro de proteção
ambiental, discorrendo sobre a legislação pátria, bem como acerca da
jurisprudência sobre a matéria.
Por fim, na última parte do presente artigo, far-se-á breves
considerações traçando um comparativo entre os sistemas brasileiro e
europeu, sopesando semelhanças e diferenças, bem como apontando
algumas conclusões.
*
Mestre em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de Maringá-PR.
Pós-graduada em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional, pela Universidade
Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Faculdade Maringá. Bacharel em Secretariado
Executivo Trilíngue pela Universidade Estadual de Maringá. Professora de Direito Empresarial
na Faculdade Alvorada, em Maringá. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico:
[email protected]
**
Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR. Pós-graduada em Direito Processual Civil, Penal e Trabalhista (ITE/PP-SP - 2003 e Direito
Ambiental (IDCC/Londrina - 2013). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Presidente
Prudente/SP - ITE - Instituição Toledo de Ensino (2002). Professora de Direito Ambiental,
Constitucional, Civil e Tributário na Faculdade Alvorada, em Maringá. Advogada em Maringá-PR.
Endereço eletrônico: [email protected]
64 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
4.2 DA PROTEÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA
A proteção ambiental brasileira confere ao direito ambiental o status
de um direito fundamental1. Contudo, essa percepção demorou
consideravelmente a ser reconhecida pelos tribunais Brasileiros.
Muito embora o legislador constitucional tenha inserido um artigo
próprio do meio ambiente, no artigo 2252, não traz expressamente seu caráter
fundamental, e essa conquista ocorreu pelo guardião da Constituição
Federal, o Supremo Tribunal Federal. Foi então, através do MS 22.164/DF,
em 1995, que a afirmação de ser o meio ambiente um direito fundamental foi
reconhecido pela primeira vez na Suprema Corte.
Somente 10 anos depois a celeuma retornou a discussão com o
julgamento da ADI 3540/DF (BRASIL, 2006, web), momento em que a ideia
do meio ambiente como um direito fundamental foi reforçada. Com isso, a
Egrégia Corte reconheceu definitivamente ser o meio ambiente um direito
fundamental de terceira dimensão, cujos relatórios foram proferidos pelo
Ministro Celso de Mello:
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado-direito de terceira
geração constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo
dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão
significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua
singularidade, mas num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria
coletividade social. [...] Os direitos de terceira geração, que materializam
poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as
formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e
reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores
fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade
(BRASIL, 2006, web).
Caracterizado e sumulado ser então o meio ambiente, e, por sua vez,
o direito ambiental, um direito fundamental e substancial para a vida digna.
Uma vez que está diretamente ligado a saúde e desenvolvimento humano.
Outra questão a ser destacada seria quanto a competência de legislar
em matéria ambiental, esta se revelou originalmente solidária, porém, essa
matéria repercutiu algumas dúvidas que, por essa razão, vale a reflexão.
Diz a Constituição Federal que, compete concorrentemente aos entes
federados legislar sobre questões relativas ao meio ambiente, conforme
artigo 24, VI, da Constituição Federal. No entanto, a dificuldade reside na
delimitação efetiva da competência dos Estados federados em detrimento da
1
No ordenamento constitucional brasileiro, o próprio caput do artigo 225 da Constituição Federal
determina que o Direito Ambiental é um dos direitos humanos fundamentais. Isso ocorre por ser
o meio ambiente considerado um bem de uso comum de todo o povo e essencial à sadia
qualidade de vida.
2
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
A proteção ambiental...
// 65
União. Isso porque, ponderando em análise de casos concretos, o Supremo
Tribunal Federal já manifestou-se no sentido de restringir a competência dos
estados brasileiros3.
Sobre essa competência ensina Patrick de Araújo Ayala que a análise
adotada pelo Egrégio tribunal é minimalista, o que pode vir a prejudicar a
proteção do meio ambiente como um direito fundamental, a ver:
[...] é possível considerar que a orientação fixada pelo Supremo Tribunal
Federal atribui como objetivo fundamental para o exercício dessa espécie de
competência uma única atividade: a de suplementar lacunas ainda não
reguladas pela União, desde que de forma compatível com a legislação
federal (AYALA in CANOTILHO; LEITE (Orgs), 2012, p. 409).
Por outro lado, uma segunda proposição está sendo discutida no
Supremo Tribunal Federal, com relação a coerência principiológica ambiental
frente ao mínimo existencial, fundindo-se em um mínimo existencial
ecológico.
Percebe-se através do julgamento da ADI 3.937/SP, nos dizeres do
Ministro Eros Graus que o parâmetro de controle deveria ser “o dever estatal
do ambiente e da saúde humana” para avaliar as participações das
capacidades legislativas estaduais.
Com isso, a ordem constitucional brasileira conferiu aos estados
deveres estatais de proteção ao legislarem concorrentemente em matéria
ambiental. No entanto, somente faz sentido este raciocínio se os estados
conseguirem, em colaboração com a União, lutar pela saúde ambiental juntos
(CANOTILHO; LEITE. (Orgs) AYALA, 2012. p. 414).
É sabido que o objetivo da República Federativa do Brasil, se funda
na construção solidária, justa e livre para todos. Para tanto, imprescindível a
proteção ambiental de todos os entes federados na busca da melhor sadia
qualidade de vida para todos.
Nesse sentido:
Diante do sentido da solidariedade que permeia não apenas a noção de
direito fundamental definida no art 225, senão também organização da
Federação brasileira (art. 3, I), todos os entes estão vinculados a um dever
de defender, proteger e assegurar proteção ao meio ambiente, por meio de
iniciativas e medidas capazes de permitir que níveis de qualidade dos
recursos naturais possam ser atingidos e que estes estejam disponíveis em
igual medida e sob igual acesso a todos os brasileiros, não importa que sejam
catarinenses, paulistas, amazonenses ou mato-grossenses (AYALA in
CANOTILHO; LEITE (Orgs), 2012, p. 415-416).
3
A manifestação do Supremo Tribunal Federal diz respeito à fixação de restrições e proibições
à comercialização do amianto (crisotila), por lei de iniciativa do Estado do Mato Grosso do Sul
In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade
n. 2.396-9/MS. Governador do Estado de Goiás versus Assembléia Legislativa do Estado do
Mato Grosso do Sul. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Acórdão publicado no Diário de Justiça da
União de 14 de dez. 2001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 03 mai. 2015.
66 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
A reflexão proposta então seria que o mínimo existencial ecológico
insere também os limites registrados para as áreas de preservação
permanente positivadas no Código Florestal. Em outras palavras, as áreas
que este diploma protege é o mínimo para garantir a qualidade de vida atual
e futura. E, por sua vez, vida digna significa “viver em um espaço no qual os
recursos naturais tenham qualidade. Desta qualidade depende a existência
digna da pessoa humana” (AYALA in CANOTILHO; LEITE (Orgs), 2012. p.
416).
Outro ganho jurisprudencial da Corte brasileira tem sido apontado
pela manifestação do Ministro Joaquim Barbosa, na ADI 3.937/SP, referente
a supralegalidade dos tratados e sua influência sobre afirmativa do dever
estatal de proteger o meio ambiente.
Afirma o então Ministro que, uma vez reconhecidos o caráter
supralegal aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos,
essas normas convencionais passam a ser as normas gerais, conforme os
artigos 3 e 10 da Convenção n. 162, da OIT, promulgada pelo Decreto federal
n. 126/91, da Lei federal n. 9.055/95.
Nesse viés, ainda que as normas constitucionais prevejam normas
gerais ambientais e tratados internacionais recepcionados internamente
antevenham uma proteção maior em relação aos bens ambientais, os
tratados supralegais então, serão as normas “gerais”. Contudo, nesse caso,
o fenômeno é denominado de normas convencionais, por serem
internacionais (MAZZUOLI, 2011).
Sem embargo, o direito ambiental é o único direito fundamental de
tríplice grandeza: individual, social e intergeracional. É um direito ímpar
porque, reflete nessas três grandes áreas: a) na individual, uma vez que toda
e qualquer pessoa necessita de um meio ambiente saudável e equilibrado
para se desenvolver, e também para que possa ter os demais direitos
fundamentais como o direito à vida, saúde, lazer; b) social, pois como sendo
um bem de uso comum do povo – ou difuso, o meio ambiente ecologicamente
equilibrado faz parte do patrimônio coletivo; e, c) intergeracional, uma vez que
se trata de um bem que não está somente disponível para o “hoje”, e por esta
razão, deve ser preservado para as gerações futuras.
Por derradeiro, a proteção jurídica brasileira reconhecendo via
jurisprudência a proteção fundamental a um bem tão precioso, já é um avanço
a ser destacado, uma vez que a Suprema Corte destaca de tratar de um
direito fundamental diferenciado e de valor inestimável. Com isso, espera-se
que haja responsabilidade dos operadores do direito para fazer valer a norma
já positivada e aplique, a proteção ambiental fundamental
concomitantemente respeitando o princípio da precaução e do não retrocesso
legislativo.
A proteção ambiental...
// 67
4.3 O PRINCÍPIO DO NÍVEL ELEVADO DE PROTEÇÃO NA UNIÃO
EUROPEIA
A União Europeia é uma Organização internacional bastante
diferenciada. Isso porque, a UE não é simplesmente uma federação como os
Estados Unidos da América ou o Brasil, uma vez que seus Estados-Membros
continuam a ser nações soberanas e independentes. Não pode ser
caracterizada também como mera organização intergovernamental, a
exemplo da Organização das Nações Unidas – ONU, à medida que na UE,
os Estados-Membros cedem efetivamente parte de suas soberanias em
determinadas áreas. Consequentemente, isto faz com que o bloco adquira
mais força e influência do que teriam os Estados atuando isoladamente.
Assim, os Estados-membros congregam parte de suas soberanias
aceitando decisões de instituições comuns como o Parlamento Europeu, e o
Conselho Europeu, que representam ambos os governos nacionais. As
decisões ocorrem por meio de propostas enviadas à Comissão Europeia,
que, por sua vez, representa os interesses da União como um todo 4.
Hoje, a União Europeia é considerada uma parceria econômica e
política com características únicas, composta por 28 países europeus 5, que
abarcam grande parte do continente europeu6.
No que se refere aos objetivos da UE, a ascensão dos direitos
humanos está entre os principais, tanto no âmbito da União Europeia quanto
no restante do mundo. Liberdade, democracia, dignidade humana, igualdade
e respeito pelos direitos humanos são alguns dos valores fundamentais da
UE. Importante dizer que, desde a assinatura do Tratado de Lisboa, em 2009,
todos os direitos supramencionados foram consagrados em um único
documento, qual seja, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia 7.
4
Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em:
<http://bookshop.europa.eu/pt/how-the-european-union-works-pbNA0414810/>. Acesso em: 09
jun. 2015.
5
Estados membros da UE e ano de adesão: Alemanha (1958); Áustria (1995); Bélgica (1958);
Bulgária (2007); Chipre (2004); Croácia (2013); Dinamarca (1973); Eslováquia (2004); Eslovénia
(2004); Espanha (1986); Estónia (2004); Finlândia (1995); França (1958); Grécia (1981); Hungria
(2004); Irlanda (1973); Itália (1958); Letónia (2004); Lituânia (2004); Luxemburgo (1958); Malta
(2004); Países Baixos (1958); Polónia (2004); Portugal (1986); Reino Unido (1973); República
Checa (2004); Roménia (2007); Suécia (1995).
Países candidatos: Albânia; Antiga República jugoslava da Macedónia; Montenegro; Sérvia;
Turquia.
Potenciais países candidatos: Bósnia e Herzegovina; Kosovo.
6
Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em:
<http://europa.eu/about-eu/countries/index_pt.htm>. Acesso em: 09 jun. 2015.
7
A Carta dos Direitos Fundamentais compreende um preâmbulo e 54 artigos repartidos em sete
capítulos:
Capítulo I: da dignidade (dignidade do ser humano, direito à vida, direito à integridade do ser
humano, proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes, proibição da
escravidão e do trabalho forçado);
Capítulo II: liberdades (direito à liberdade e à segurança, respeito pela vida privada e familiar,
proteção de dados pessoais, direito de contrair casamento e de constituir família, liberdade de
pensamento, de consciência e de religião, liberdade de expressão e de informação, liberdade de
reunião e de associação, liberdade das artes e das ciências, direito à educação, liberdade
68 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Assim, tanto as instituições europeias quando os Estados-membros
passaram a ter a obrigação legal de os respeitar, ao aplicar a legislação
europeia8.
Nesse contexto, o Tribunal de Justiça da União Europeia foi criado,
em 1952, com o objetivo específico de implantar este objetivo e padronizar o
sistema jurídico da União Europeia. Assim, este órgão tinha como finalidade
principal garantir o respeito do direito europeu na interpretação e aplicação
dos Tratados nos ordenamentos jurídicos de todos os Estados-membros9.
O TJUE, para cumprir esta missão, desempenha algumas funções
específicas: fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União
Europeia; assegurar o respeito das obrigações decorrentes dos Tratados por
parte dos Estados-Membros; e, interpretar o direito da União a pedido dos
juízes nacionais dos Estados-membros10.
O referido tribunal tem sede em Luxemburgo e é composto por três
jurisdições: o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e o Tribunal da Função
Pública. Desde que foram criadas, as três jurisdições proferiram cerca de
28.000 acórdãos11.
Importante destacar esta última função – interpretar o direito da União
a pedido dos juízes nacionais, por ser uma das funções mais importantes do
TJUE. Isso porque, Alessandra Silveira afirma que, os Estados-membros
profissional e direito de trabalhar, liberdade de empresa, direito de propriedade, direito de asilo,
proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição);
Capítulo III: igualdade (igualdade perante a lei, não discriminação, diversidade cultural, religiosa
e linguística, igualdade entre homens e mulheres, direitos das crianças, direitos das pessoas
idosas, integração das pessoas com deficiência);
Capítulo IV: solidariedade (direito à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa,
direito de negociação e de ação coletiva, direito de acesso aos serviços de emprego, proteção
em caso de despedimento sem justa causa, condições de trabalho justas e equitativas, proibição
do trabalho infantil e proteção dos jovens no trabalho, vida familiar e vida profissional, segurança
social e assistência social, proteção da saúde, acesso a serviços de interesse económico geral,
proteção do ambiente, defesa dos consumidores);
Capítulo V: cidadania (direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu
e nas eleições municipais, direito a uma boa administração, direito de acesso aos documentos,
Provedor de Justiça Europeu, direito de petição, liberdade de circulação e de permanência,
proteção diplomática e consular);
Capítulo VI: justiça (direito à ação e a um tribunal imparcial, presunção de inocência e direitos de
defesa, princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas, direito a não ser
julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito);
Capítulo VII: disposições gerais. Informações extraídas do website oficial da União Europeia.
Disponível
em:
<http://europa.eu/legislation_summaries/human_rights/fundamental_rights_within_european_un
ion/l33501_pt.htm>. Acesso em: 09 jun. 2015. Ver documento completo em: <http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0389:0403:pt:PDF>.
8
Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em:
<http://europa.eu/about-eu/index_pt.htm>. Acesso em: 09 jun. 2015.
9
Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em:
<http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09 jun. 2015.
10
Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em:
<http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09 jun. 2015.
11
Informações extraídas do website oficial da União Europeia. Disponível em:
<http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09 jun. 2015.
A proteção ambiental...
// 69
devem aplicar seus ordenamentos jurídicos constitucionais de forma
congruente e em consonância com a legislação e os Tratados da União
Europeia, em especial com o disposto na Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia (SILVEIRA, 2011).
Nesse sentido, assevera Gilberto Bercovici que,
[...] a consolidação dos tribunais constitucionais da Europa e a tendência
crescente à ‘normatização’ da Constituição favorecem, ainda uma ‘mudança
de paradigmas’ na Teoria da Constituição, que passou a enfatizar muito mais
a hermenêutica constitucional e o papel dos princípios constitucionais
(BERCOVICI, 2008, p. 112).
Assim, o que se percebe a partir da análise das premissas abordadas
por Silveira e Bercovici é que, os tribunais dos Estados-membros da UE estão
inevitavelmente interligados e formam um tipo de “rede de hermenêutica
constitucional”, na qual as decisões devem estar em conformidade com a
legislação da União.
Para conseguir tal objetivo, a UE utilizou-se das estruturas dos
próprios Estados-membros para aplicar o direito da União. Silveira explica
que, dentro desse sistema, as Cortes dos Estados são agora Cortes da UE
também. Dessa forma, é função dessas Cortes aplicar a lei europeia,
exercendo o temeroso papel de interpretar e conciliar a lei nacional com a
legislação europeia (RELATÓRIO ELABORADO PELO CENTRO DE
ESTUDOS EM DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA DA UNIVERSIDADE DO
MINHO, 2012, p. 06).
Assim, os próprios tribunais e todo o aparato jurídico já existente nos
Estados-membros é utilizado para realizar um tipo de “controle de
convencionalidade”12 entre o ordenamento constitucional interno e o
ordenamento da UE13.
Em resumo, o Sistema de Proteção aos Direitos Fundamentais da
União Europeia, segundo o Centro de Estudos em Direito da União Europeia
da Universidade do Minho – Portugal, baseia-se em duas premissas: 1) no
reconhecimento dos princípios da União Europeia; 2) na presença de normas
fundamentais de diversas fontes, como as normas europeias, normas
nacionais e as normas internacionais de proteção aos direitos humanos
(RELATÓRIO ELABORADO PELO CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO
DA UNIÃO EUROPEIA DA UNIVERSIDADE DO MINHO, 2012, p. 09).
12
O controle de convencionalidade é a análise e compatibilização vertical das leis (ou dos atos
normativos do Poder Público) com os tratados internacionais ratificados pelo governo e em vigor
no país. No Brasil, o tema é tratado por Mazzuoli. Ver mais em: MAZZUOLI, Valério de Oliveira.
Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/194897/000861730.pdf?sequence=3>.
Acesso em: 10 jun. 2015.
13
Informações extraídas da Aula de Excelência intitulada “Direitos fundamentais, integração e
crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais”, ministrada pela
Professora Dra. Alessandra da Silveira, Professora da Faculdade de Direito da Universidade do
Minho, Portugal, na Unicesumar, no dia 10/05/2014.
70 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Neste contexto de interconstitucionalidade14, importante trazer à
colação a atuação do Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção aos
Direitos Fundamentais no âmbito da União Europeia. Este princípio permite
que os próprios advogados dos Estados-membros usem da possibilidade de
invocar diretamente, em suas demandas, legislação constitucional de Estadomembro diverso, quando se tratar de direitos fundamentais, e quando, a
legislação de seu país se mostrar menos protetiva 15.
A título de exemplo, tem-se que, um advogado alemão necessita
ingressar com determinada demanda judicial para proteger questão
relacionada ao direito fundamental ao meio ambiente de seu cliente, e,
verifica que a legislação constitucional portuguesa oferece maior proteção do
que a legislação alemã nesse quesito. Neste caso, o advogado alemão
poderia, tendo como base o Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em
Matéria de Direitos Fundamentais, invocar o direito português – desde que
em conformidade com a legislação da União Europeia – para tutelar mais
fortemente o direito fundamental de seu cliente.
Quanto à previsão legal deste princípio, ela está prevista no artigo 53
da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que dispõe:
Artigo 53o Nível de protecção
Nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de
restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais
reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o
direito internacional e as convenções internacionais em que são partes a
União, a Comunidade ou todos os Estados-Membros, nomeadamente a
Convenção europeia para a protecção dos direitos do Homem e das
liberdades fundamentais, bem como pelas Constituições dos EstadosMembros (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, web).
Nesse sentido, Mariana Canotilho aduz que este artigo traduz o
Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria de Direitos
Fundamentais na União Europeia. Este princípio seria, segundo a
pesquisadora, a “[...] expressão do compromisso europeu em relação aos
direitos fundamentais e garantia de uma tutela efectiva destes direitos no
espaço da UE” (CANOTILHO, 2008, p. 169).
No que tange o conteúdo dessa norma, o Centro de Estudos em
Direito da União Europeia da Universidade do Minho – Portugal, afirma em
seu relatório que, se, Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção em Matéria
14
Teorizado pelo constitucionalista português, J.J. Canotinho, o interconstitucionalismo pode ser
compreendido, de maneira breve, como a utilização de conversações constitucionais, bem como
o estudo das relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e
conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político. Ver
mais em: CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos
discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008.
15
Informações extraídas da Aula de Excelência intitulada “Direitos fundamentais, integração e
crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais”, ministrada pela
Professora Dra. Alessandra da Silveira, Professora da Faculdade de Direito da Universidade do
Minho, Portugal, na Unicesumar, no dia 10/05/2014.
A proteção ambiental...
// 71
de Direitos Fundamentais na União Europeia traduz-se na seguinte premissa:
se, para a resolução de um caso concreto, existem diversos ordenamentos
jurídicos envolvidos que dizem respeito aos mesmos direitos fundamentais
(protegido simultaneamente pela Constituição nacional, pela Convenção
Europeia de Direitos Humanos e pela Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia), deve ser analisado e aplicado o regime legal que oferece
maior proteção ao sujeito do direito em discussão (RELATÓRIO
ELABORADO PELO CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO DA UNIÃO
EUROPEIA DA UNIVERSIDADE DO MINHO, 2012, p. 10).
Segundo Canotilho, na Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, chama-se a atenção para alguns aspectos importantes, quais
sejam:
[...] - em primeiro lugar, reforça-se a ideia de a União estar obrigada a
respeitar os direitos fundamentais, tal como resultam das tradições
constitucionais comuns dos Estados-Membros, enquanto princípios gerais do
direito comunitário (nos termos do art. 6º do TUE);
- em segundo lugar, sublinha-se que o princípio do primado do direito
comunitário, assim como os relevantes poderes das instituições
comunitárias, uma vez que são susceptíveis de afectar os indivíduos,
conduzem à necessidade de fortalecer a protecção dos direitos fundamentais
ao nível da UE;
- em seguida, chama-se a atenção para o facto de as disposições da Carta,
tal como acontece com os preceitos relativos a direitos fundamentais de cada
um dos Estados-Membros, terem de estar de acordo com as normas da
CEDH;
- finalmente, sustenta-se que a Carta não deverá substituir ou enfraquecer
as disposições legais de cada um dos Estados-Membros sobre direitos
fundamentais (CANOTILHO, 2008, p. 120). Grifo nosso
Assim, o princípio contido na Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia pressupõe quatro premissas. A primeira delas é justamente
a ideia de que reforçou-se a proteção aos direitos fundamentais na UE. A
segunda traduz-se no respeito ao princípio do primado do direito comunitário,
ou seja, a legislação europeia deve prevalecer sobre a legislação interna dos
Estados-membros. A terceira premissa aduz que a legislação que protege os
direitos fundamentais dos Estados-membros deve, necessariamente, estar
de acordo com a legislação europeia, teoricamente mais protetiva e forte. Por
fim, a última premissa estabelece que a Carta não deverá substituir ou
enfraquecer as disposições legais de cada um dos Estados-Membros sobre
direitos fundamentais, o que significa dizer que, se a legislação do Estadomembro por mais protetiva ou positivar mais direitos do que a própria Carta,
estes não podem ser enfraquecidos, mas sim efetivamente tutelados.
Portanto, pode-se concluir que o Princípio do Nível Mais Elevado de
Proteção em Matéria de Direitos Fundamentais na União Europeia e a
especificidade do Sistema Jurídico Europeu possibilitam a formação de uma
rede de ordenamentos jurídicos constitucionais que inevitavelmente se
entrelaçam com o objetivo de proteger mais ferrenhamente os direitos mais
72 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
importantes das pessoas. Resumindo, este princípio culmina na possibilidade
de utilizar-se de outras jurisdições constitucionais dentro de uma mesma
rede/espaço, para efetivar a tutela e proteção dos direitos fundamentais – em
especial, os direitos da personalidade, aqui em destaque.
4.4 A PROTEÇÃO AMBIENTAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO NÍVEL
ELEVADO DE PROTEÇÃO ECOLÓGICA
A tutela legal do meio ambiente é responsável por salvaguardar o
bem mais intangível dos direitos humanos: o direito à vida, imprescindível
para garantir a sobrevivência hoje e futura da humanidade.
Ter um ambiente sadio é imprescindível para que haja vida com
saúde. Mas não somente pela visão antropocêntrica, também para que haja
equilíbrio sistêmico planetário e com isso todos os seres vivos possam se
desenvolver. Isso porque é necessário que haja os elementos vitais, como
água, temperatura, calor, alimento, para que toda forma vida se reproduza e
evolua.
A tutela do meio ambiente, por sua vez, é a maneira tangível para
que a se efetive a preservação e reparação ambiental. Pode-se afirmar que
o meio ambiente como direito fundamental antecede a própria dignidade da
pessoa humana, pois sem ele, não há pessoa, e consequentemente, não há
vida.
Nesse viés, o Direito Constitucional Europeu saiu na frente dos
demais ordenamentos, incluindo o direito ambiental no nível elevado de
proteção. Tal premissa se fundamenta no princípio da precaução16.
Defende Maria Alexandra de Souza (2004) que o conteúdo do
princip
io
de nível elevado foi ampliado para chegar a toda situação em que
́
exista um conflito entre dois ou mais niv́ eis de proteção, interpretações,
regimes, valores, bens jurid
́ icos, etc., exigindo a escolha da opção que revelar
a maior proteção permitida pelas circunstâncias.
A leitura do nível elevado impõe a proteção comunitária ao “mínimo
denominador comum” entre os níveis de proteção dos Estados Membros
(CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 57).
Com isso, todos os países membros da UE estarão obrigados, pela
a nova normativa, a proteger o meio ambiente levando em consideração o
nível de proteção elevado.
No entanto, é imperioso observar que, o princípio do nível mais
elevado ainda não é absoluto, ao contrário, será aplicada de acordo as
diversidades das situações existentes nas regiões da Comunidade Europeia.
Segundo o item 5.1.3.da Comunicação da Comissão relativa ao princip
́ io da precaução (2000),
na incerteza cientif́ ica as “relações de causa-efeito são pressentidas, mas não demonstradas”.
O item dispõe que o princip
́ io “abrange circunstâncias especif́ icas em que os resultados
cientif́ icos sejam insuficientes, inconclusivos ou incertos, mas haja indicações, na sequência de
uma avaliação cientif́ ica objetiva preliminar, que existem motivos razoáveis para suspeitar que
os efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou a
proteção vegetal podem ser incompativ́ eis com o elevado niv́ el de proteção escolhido”.
16
A proteção ambiental...
// 73
Em outras palavras, antes de aplicar o máximo natural, deve-se primeiro
verificar o que comporta o local que se pretende proteger e compatibilizar a
natureza com sua população nas suas devidas proporções.
Para melhor compreender a questão, exemplifica-se o caso da
Dinamarca, que demonstra efetividade por meio de ações afirmativas. Por
outro lado, países como Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda, dentre outros,
ainda demonstram preocupações menos ecológicas, visto que suas
inquietações principais ainda pairam nas áreas sociais e econômicas
(CANOTILHO; LEITE. (Orgs), ARAGÃO, 2012. p. 57).
Foram fixados prazos flexíveis de adaptação interna, para que os
países menos evoluídos ambientalmente conseguisse alcançar aqueles mais
protetores, através de competência internas e auxílios diversos a esses
Estados Membros (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012. p. 58).
Com isso, já é possível afirmar que, hoje, o princípio do nível elevado
de proteção é onipresente do Direito Ambiental Europeu.
Isso significa que, os Estados-Membros podem ir mais além na tutela
legal ambiental, do que a própria União Europeia, conforme prevê o artigo
193 do Tratado da União Europeia.
Ensina Alexandra Aragão a respeito:
[...] após a harmonização das disposições ambientais legislativas,
regulamentares e administrativas, necessárias para o estabelecimento e o
funcionamento interno, os Estados Membros podem manter ou introduzir
disposições nacionais de proteção reforçada do ambiente. Essa
possibilidade, denominada pela doutrina como “dourar” o “direito europeu”
(“gold plating os EU Law”) ou a adição de uma “cobertura nacional” ao direito
europeu (“add a national topping”), foi aceite na jurisprudência europeia no
caso Deponiezweckverband Eiterköpfe, processo n. C-6, de 14 de abril de
2005 (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 58).
O nível elevado de proteção se estende manutenção daquilo que já
consegui preservar, ou seja, uma vez protegido ou preservado um meio
natural está proibida a conduta de voltar a degrada-lo, sobre força do princípio
do não retrocesso ambiental.
Entende-se por princípio do não retrocesso, nas palavras de Sarlet,
nos documentos da Comissão De Meio Ambiente, Defesa Do Consumidor E
Fiscalização E Controle:
[...] toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de
medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador,
que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos
fundamentais (sejam eles sociais, ou não) (BRASIL. SENADO FEDERAL.
COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E
FISCALIZAÇÃO E CONTROLE).
Isso porque, continua o mesmo autor:
74 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
[...] a humanidade caminha na perspectiva de ampliação da salvaguarda da
dignidade da pessoa humana, conformando a ideia de um “patrimônio
político-jurídico” consolidado ao longo do seu percurso histórico-civilizatório,
para aquém do qual não se deve retroceder (SARLET, 2010, p. 141).
Explicando a importância desse princípio, é a lição de Antonio
Herman Benjamin:
[...] seria um contrassenso admitir a possibilidade de recuo legislativo,
quando, para muitas espécies e ecossistemas em via de extinção ou a essa
altura regionalmente extintos, a barreira limit́ rofe de perigo − o “sinal
vermelho” do mínimo ecológico constitucional − foi infelizmente atingida,
quando não irreversivelmente ultrapassada (BRASIL. SENADO FEDERAL.
COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E
FISCALIZAÇÃO E CONTROLE, p.57).
O princípio do não retrocesso ambiental é uma questão moral e ética,
visto ser requisito para a salvaguarda de melhores condições de vida. O
caráter progressista ambiental, se revela hoje uma obrigação de não
regressão.
Para Michel Prieur a proibição de retrocesso é um novo direito
humano em total sinergia com o caráter finalista e voluntarista do direito
ambiental (BRASIL. Senado Federal. Comissão de Meio Ambiente, Defesa
do Consumidor e Fiscalização e Controle, web).
E ainda:
Essa ideia de garantir um desenvolvimento contínuo e progressivo das
modalidades do exercício de um direito ao ambiente, até aos níveis mais
elevados de sua efetividade, pode parecer utópico. A efetividade máxima é a
poluição zero. Sabemos que isso é impossível. Todavia, entre a poluição zero
e o uso das melhores tecnologias disponiv́ eis para reduzir a poluição
existente, há uma grande margem de manobra.
A não regressão vai, assim, se situar num cursor entre a maior
despoluição possível – que evoluirá no tempo, graças aos progressos
científicos e tecnológicos – e o nível mínimo de proteção ambiental,
que também evolui constantemente. O recuo hoje não seria o mesmo
recuo de ontem, como se pode notar das palavras de Naim Gesbert
(2011, p. 28), para quem a não regressão permite uma adaptação
“evolutiva, em espiral ascendente”, do Direito Ambiental (BRASIL.
SENADO FEDERAL. COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA
DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE, p. 23-24).
Dessa feita, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
ultrapassa o nível elevado de proteção, declarando ainda que se deve
priorizar a melhoria da qualidade do bem ambiental. Em outras palavras, não
somente protege o que já está disponível na natureza como ainda prioriza
que este bem, sempre que possível, seja o mais natural possível.
Nas palavras de Aragão:
A proteção ambiental...
// 75
Garantir a proteção elevada não basta uma proteção omissa, que se limite a
repelir actuações degradoras dos recursos naturais ou ofensivas do equilíbrio
dos componentes ambientais. Pelo contrário, a melhoria do estado do
ambiente (igualmente presente no art 3n. 3 do Tratado da União Europeia)
parece exigir uma proteção dinâmica, pró-activa, com investimentos na
recuperação de habitats, degradados, na reintrodução de espécies
desaparecidas, renaturalização de rios, na biorremediação de solos
contaminados, na criação de recifes artificiais junto à costa etc.
(CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 58).
Alexandra Aragão enfatiza que o nível elevado de proteção é mais
hierarquizador que os demais princípios, e, portanto, aplica-se sobre bens
jurídicos clássicos conflituosos à àqueles que ainda não surgiram.
Acrescenta ainda que, é considerado “princípio conformador do
Estado de Direito, a ponto de podermos afirmar que o Estado de Direito
Ambiental ou o Estado Constitucional Ecológico é aquele que se pauta por
um nível elevado de proteção ecológica” (CANOTILHO; LEITE. (Orgs)
ARAGÃO, 2012, p. 60).
Com isso, ainda que outros direitos surjam, não haverá retrocesso
ecológico, pelo ambiente estar calçado em elevado nível de proteção.
Então, havendo conflito de normas seja um conflito de normas
internas e a convenção ou ainda, entre outra convenção e a Convenção
Europeia de Direitos Humanos, deve-se aplicar o texto mais protetor do meio
ambiente.
Obstante a este preceito, o princípio do elevado nível ambiental, vai
servir de espécie de termômetro ambiental, regulando os possíveis conflitos
intra e extra ambientais. Porque, ele que dirá se deve proteger mais ou menos
um bem ecológico, levando em conta as quantidades e qualidades do bem.
Contudo, ressalva que, por não ser um princípio absoluto, ele cede nos
conflitos de precedência vital.
Se a aplicação do princípio do nível elevado de proteção ecológica pressupõe
sempre um conflito entre duas interpretações, entre dois regimes, entre dois
valores, entre dois bens jurídico, e implica a escolha do mais carecido de
proteção, pelo mais frágil, então o princípio do nível de proteção elevado é
um princípio de justiça em sentido clássico, visando sempre protege a parte
mais fraca num conflito (ARAGÃO; CANOTILHO; LEITE, (Orgs), 2012, p. 61).
Nessa esteira, ensina Aragão que, que os conflitos de interpretação
podem ocorrer levando em conta três premissas: 1) conflito de normas; 2)
conflitos de interpretações da mesma norma; 3) simples conflitos de
interesses (CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 62).
No caso de haver antinomias normativas entre Direito Europeu e
ordenamento jurídico português, por exemplo, e supondo que a norma
nacional garante proteção mais elevada ecológica que o Direito Europeu, este
resta preterido àquele.
No mesmo sentido é a aplicação quando ocorre dúvidas
hermenêuticas. Ou seja, tomando por base os ensinamento de Aragão no
76 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
caso de empresas necessitarem ou não de licenciamento ambiental para
suas atividades. Relata que existindo dúvida de qual atividade poderá causar
degradação ambiental, deve-se entender sempre pela melhor proteção
ecológica e não ficar restrito ao rol taxativo de atividade potencialmente
degradantes, traduzindo sempre em uma proteção da ambiente mais elevada
(CANOTILHO; LEITE. (Orgs) ARAGÃO, 2012, p. 64-66).
Em outras palavras, havendo conflito de normas e se elas não forem
referente a bens vitais, deve ser preservado a norma mais protetiva no quesito
ambiental.
Focaliza ainda que, ainda que um país esteja em excelente qualidade
ambiental não pode desconsiderar a proteção elevada ambiental. Essa
interpretação se justifica também pela força do princípio do não retrocesso
ecológico17 e do princípio do progresso ecológico 18, e ainda pelos princípios
da precaução19, prevenção20, desenvolvimento sustentável21. Isso porque,
17
Exceções para aplicação do princípio (quando fala da vedação ao retrocesso aos direitos
sociais):
1) Calamidade pública; 2) Estado de sítio; 3) Emergência grave. No entanto, assim que cessar
esses estados temporários, deve-se retomar a aplicação do princípio. Cf. CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 111
18
Princípio previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Este
princípio busca a não estagnação legislativa, ou seja, é um dever de rever a legislação de
proteçãoo ambiental. In Aragão Alexandra. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, Rubens
Morato (Orgs) Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
68. E ainda, O Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
(PIDESC) visa ao progresso cons- tante dos direitos ali protegidos; é interpretado como proibindo
a regressão. O Direito Ambiental, uma vez afirmando o direito humano ao ambiente, pode
beneficiar-se dessa teoria do pro- gresso constante, aplicada notadamente em matéria de direitos
sociais. O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, em sua observação
geral n. 3, de 14 de dezembro de 1990, estigmatiza “toda medida deliberadamente regressiva”.
Disponível em: < BRASIL. Senado Federal. Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor
e Fiscalização e Controle. O princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental. Brasília-DF. p. 21.
Disponível
em:
<
http://www.mpma.mp.br/arquivos/CAUMA/Proibicao%20de%20Retrocesso.pdf>. Acesso em 15
ago. 2015.
19
O princípio da precaução teve origem no Direito Alemão, na década de 70 do século XX,
quando a alemanha começou a se preocupar com a necessidade de avaliação prévia das
consequências sobre o meio ambiente. A nível internacional ficou conhecido na Conferência das
Nações unidas sobre Meio Ambiente (CNUMAD), conhecido como RIO 92, na declaração de
número 15: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser
amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver
ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica, não deve ser
utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir
a degradação ambiental”. In ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16 ed. São Paulo:
Atlas, 2014. p. 30-35.
20
Princípio da prevenção é próximo ao da precaução, contudo, diferentes. A prevenção aplicase a danos ambientais já conhecidos, assim é possível, coms egurança, evitar danos futuros. In
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 48.
21
ONU. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e desenvolvimento. 1992. Princípio 1: “Os seres
humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a
uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”. Disponível em: <
http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em 15 ago. 2015.
A proteção ambiental...
// 77
havendo circunstâncias econômica e financeira compatível resta
imprescindível aplicação da política ambiental de nível elevado, sempre.
A União Europeia, por essa razão, se localiza juridicamente à frente
na proteção valorativa do bem ambiental, uma vez que, além de proteger os
ditos direitos inerentes aos seres humanos como fundamental avança muito
mais no direito conferindo proteção um nível elevado de proteção.
4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Isto posto, concluiu-se que, para haver realmente uma proteção ao
meio ambiente, algumas modificações profundas devem ser feitas:
1) no cenário mundial, todos os países devem tutelar a proteção
ambiental como um direito supremo e fazer com que essa tutela tenha
efetividade. Para tanto, é necessário mudança de consciência imediata. Por
outro lado, para que cesse a destruição da natureza é imprescindível a
cooperação de ações, para que todos, entendem, definitivamente, que essa
busca incansável por “ter” não terá valor algum se daqui a pouco não se terá
onde habitar.
2) No cenário Europeu – onde esta pesquisa buscou inspiração – se
conclui que ao contrário de outros continentes, a efetividade da proteção
ecológica alcançou níveis elevado de proteção. Certo de que o ganho jurídico
tem influência pela história da região e pela gama de direitos fundamentais já
conquistados, pela pequena quantidade de natureza que restou, enfim, deve
servir como parâmetros positivos para que todos também elevem a natureza
ao nível elevado de proteção efetiva e não fique somente no direito posto, ou
“no papel”.
3) No cenário brasileiro, o meio ambiente saiu à frente quando o
legislador ordinário o protegeu com um capítulo próprio. Posteriormente, o
judiciário o reconheceu como imprescindível a sobrevivência humana, logo,
um direito fundamental e hoje vai além, sendo um direito fundamental ao
desenvolvimento da pessoa humana, portanto, um direito da personalidade.
No entanto, o Brasil peca ainda no plano da eficácia, tanto pelo próprio Estado
pela estrutura administrativa, estrutural e fiscalizadora, desorganizada,
quanto pelo legislativo e o judiciário que, muitas vezes, alicerçados pelo
interesse social, ainda permitem o retrocesso em favor do desenvolvimento
econômico.
Por fim, o fato do meio ambiente estar posto a nível constitucional já
demonstra esperança de mudança e a esperança da conversão de padrões
sociais e estatal. Espera-se agora, um avanço ético e moral, pois muito se vê
e pouco se enxerga. A questão ambiental é uma questão espiritual de
conectividade de uns para com os outros e de todos para com a natureza,
uma vez que não se habita aqui apenas para adquirir riquezas, e esta é a
única casa que há para os seres humanos e ela precisa de cuidado!
78 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
4.6 REFERÊNCIAS
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2014.
ARAGÃ O, Maria Alexandra de Sousa. O princip
́ io do niv
́ el elevado de
proteção ecológica: resíduos, fluxos de materiais e justiça
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Coimbra: Universidade de Coimbra, 2004.
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Disponível em:
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Inconstitucionalidade n. 3937/SP. Disponível em: <
http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21812432/acao-direta-deinconstitucionalidade-adi-3937-sp-stf>. Acesso em 31 de jul. 2015.
CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade:
itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2.
ed. Almedina: Coimbra, 2008.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, Rubens Morato (Orgs.).
ARAGÃO, Alexandra, BENJAMIN, Antônio Herman; AYALA, Patrick de
Araújo. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5 ed. São Paulo:
Saraiva, 2012.
CANOTILHO, Mariana Rodrigues. O princípio do nível mais elevado de
protecção em matéria de direitos fundamentais. Dissertação de
mestrado em ciências jurídico-políticas, sob orientação do Professor
Doutor José Carlos Vieira de Andrade. Coimbra, agosto de 2008.
Disponível em:
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CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade
relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2009.
A proteção ambiental...
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DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria
Moraes, 1961.
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do
ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco
jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
GARCEZ, Gabriela Soldano; FREITAS, Gilberto Passos de. O direito
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=V=
A PROTEÇÃO DA PERSONALIDADE DO IDOSO FRENTE AOS
PROCESSOS DE INTERDIÇÃO E INABILITAÇÃO
Taniara Andressa Braz Rigon*
Luciana Lupi Alves**
5.1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho acadêmico tem como objetivo expor de forma
comparada a problemática que envolve a personalidade do idoso incapaz
frente aos processos de interdição e inabilitação, previstos pelo Código Civil
português e brasileiro, ambos com a finalidade de suprir a incapacidade
jurídica e proteger a pessoa incapaz.
O envelhecimento é um processo inerente a todo ser vivo, desta
forma é forçoso ao homem sofrer com as transformações físicas e mentais
geradas pelo decorrer dos anos sendo quase inevitáveis os desconfortos
resultantes da ação do tempo, porém, é fundamental que possam acontecer
de uma forma menos dolorosa e mais saudável.
O aumento da população idosa mundial também gera reflexos no
mundo jurídico, consequentemente, faz-se necessário a realização de
estudos dedicados a essa temática visando a realização de uma efetiva
aplicação dos preceitos legais, sobretudo, quando há um aumento no número
de relatos sobre o desrespeito e maus tratos para com os idosos,
demonstrando a omissão das famílias e do Estado perante estas pessoas,
principalmente daqueles que se encontram em condições vulneráveis.
O idoso, em sua derradeira caminhada, assim como uma criança,
merece uma proteção maior e moldada às condições que a sua idade lhe
impõe. Assim, maior atenção deverá ser destinada àquele idoso que se
encontra incapacitado pela debilidade física e psíquica e impossibilitado de
reger autonomamente a sua vida.
Este cenário configura-se pela proteção dos direitos e garantias
fundamentais destinados a tutelar a personalidade do idoso, devendo lhe
assegurar uma forma digna de envelhecimento, asseverado como direito
fundamental tanto pela Constituição da República Portuguesa, quanto pela
Constituição brasileira, bem como por demais leis internacionais que abrigam
esta temática.
*
Mestranda em Ciências Jurídico-Civilísticas/Menção em Direito Civil pela Faculdade de Direito
- Universidade de Coimbra, em Coimbra, Portugal; Advogada. E-mail: [email protected]
**
Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá, em Maringá, Brasil; Advogada e
professora. E-mail: [email protected]
82 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Ante o breve exposto, será realizada uma concisa exposição da
matéria destinada a regularizar os processos de interdição e inabilitação,
meios legais presentes no Código Civil português e o processo de interdição
previsto na legislação brasileira. Ressalvadas as especificidades dos
referidos institutos, todos se destinam à proteção do idoso incapaz e serão
apresentadas suas características, formas de realização, consequências
jurídicas, bem como a explanação de alguns pontos críticos pertinentes à
proteção efetiva da personalidade do idoso.
5.2 O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: ASPECTOS GERAIS
Historicamente, a questão do idoso tinha pouca relevância porque a
velhice só chegava às classes mais abastadas, sendo que entre os pobres
eram raros os que atingiam idades avançadas. Através dos tempos e em
diferentes culturas, a velhice foi se valorizando graduando conforme a
condição social, desde o simples anonimato até a posição mais dignificante
(SOUZA, 2004, p. 13).
Pela tradição ocidental, o conceito de idoso surge no final do século
XVIII, quando o envelhecimento passou a ser identificado como degeneração
e decadência. O envelhecimento não era discriminado e muito menos a
longevidade implicava no abandono das atividades produtivas ou do
isolamento das relações sociais, sendo concebido como sinônimo de
sabedoria nas sociedades tradicionais (ELIAS, 2001, p.167).
Como afirmou Norberto Bobbio o envelhecimento apresenta três
sentidos: a velhice censitária ou cronológica correspondente àquela que
decorre da idade biológica vivida, a se iniciar aos oitenta anos. O segundo
sentido corresponde à velhice burocrática estabelecida pela legislação em
vigor, e por último, a velhice psicológica ou subjetiva, determinada pelo
estado de ânimo e pelas circunstancias históricas e sociais (BOBBIO, 1997,
p.20).
Para a filósofa Simone de Beauvoir, a velhice não é um fato estático,
mas sim o resultado e o prolongamento de um processo, mudar é a lei da
vida e o envelhecimento é caracterizado por mudanças irreversíveis e
desfavoráveis. Simone, citando o gerontólogo americano Lansing, define o
envelhecimento como “um processo progressivo de mudanças
desfavoráveis, geralmente ligados à passagem do tempo, tornando-se
aparente depois da maturidade e desembocando invariavelmente na morte”
(LANSING, apud BEAUVOIR, 1990, p. 17), e, dessa forma, envelhecer é o
processo natural de todo ser vivo.
O sociólogo alemão Norbert Elias, afirma que nas sociedades
industrializadas e contemporâneas, o Estado protege o idoso contra a
violência física, entretanto, quando as pessoas envelhecem e ficam mais
fracas, são afastadas e isoladas da sociedade, do círculo da família e de seus
conhecidos, criando o que o autor denomina como “desertos de solidão”
(ELIAS, 2001, p.85).
A proteção da personalidade...
// 83
Segundo o critério adotado pela Organização Mundial da Saúde –
OMS – a população idosa em países desenvolvidos é definida pelo grupo
etário de 65 anos ou mais de idade. Esse conceito teve início por volta de
1880, na Alemanha, quando Otto Von Bismarck implantou essa faixa etária
para o início da concessão de certos benefícios de natureza social. Contudo,
nos países em desenvolvimento, devido as suas condições socioeconômicas,
o limite etário será de 60 anos ou mais de idade.
Podemos considerar o envelhecimento populacional um fenômeno
moderno, pois como demonstram os índices atuais, nunca à população
humana conseguiu alcançar esta longevidade que chega a ultrapassar os 70
anos de vida. Igualmente, isso não se restringiu apenas aos países
desenvolvidos, pois a expectativa de vida também aumentou nos países em
desenvolvimento.
Dados das Organizações das Nações Unidas – ONU – indicam que
a população idosa representa 10% de toda a população mundial, e estima-se
que em 2050 essa faixa etária seja de 32%, tornando, pela primeira vez, o
número de idosos maior que o número de crianças. Atualmente 64% de todas
as pessoas mais velhas vivem em regiões menos desenvolvidas, um número
que deverá aproximar-se de 80% em 2050 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 2015), resultando, assim, em um novo desafio para a saúde pública
global no tratamento de doenças crônicas e degenerativas, bem como no
bem-estar da terceira idade.
Portanto, os números informados apontam para a necessidade de
destinar-se uma atenção maior para esta faixa etária. Este contingente
populacional passará a ser cada vez mais expressivo, modificando os
cenários de vários setores da sociedade e a forma como deverão encarar a
velhice. Este processo também irá refletir no âmbito jurídico, principalmente
no que fere as incapacidades em razão do aumento de doenças relacionadas
ao envelhecimento.
5.2.1 O envelhecimento da população
O último recenseamento realizado em 2011 em Portugal informou
que no grupo das idades mais avançadas se verificou um aumento
significativo da população idosa com 70 anos ou mais, representando 11%
da população total em 2001 e passando para 14% no ano de 2011. Ainda, o
número de famílias constituídas por apenas um indivíduo idoso representa a
grande maioria das famílias unipessoais e correspondem a cerca de 10% do
total
de
famílias
clássicas,
localizadas
geograficamente
e
predominantemente nos territórios do interior, observando elevados índices
de envelhecimento (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2001).
Outro dado importante corresponde ao crescimento do número de
idosos que vivem em instituições de apoio social, apontada como uma
resposta da sociedade ao envelhecimento populacional, concluindo que o
acolhimento dos mais velhos na residência dos filhos ou dos parentes tem
vindo progressivamente a ser substituído pela institucionalização do idoso em
84 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
estabelecimentos responsáveis por realizar atividades cuidadoras, além de
que, a faixa etária residente nestes estabelecimentos se concentra nos
indivíduos com 70 anos ou mais.
Dados coletados pela Associação Portuguesa de Apoio a Vítima –
APAV informaram que de 2000 para 2012 o número de vítimas de crimes
patrimoniais que recorreram aos seus serviços com idade entre 65 anos ou
mais, correspondeu a 16,5% de todos os casos atendidos. Agravando esta
situação está o fato de as mulheres representarem a maior percentagem de
vítimas ao longo dos últimos 13 anos.
Igualmente, em todos os anos analisados (2000 a 2012) o autor do
crime correspondeu maioritariamente ao sexo masculino, possuindo entre 26
e 45 anos de idade em 22,5% dos casos. Outro dado alarmante demonstra
que os crimes patrimoniais são praticados em 35,7% dos casos na residência
da vítima (ESTATÍSTICAS APAV, 2015).
Outrossim, os dados de 2004 e 2012 relativos a agressão doméstica
praticados contra idosos exibem um total de 3.988 pais agredidos pelos seus
filhos em ambiente doméstico, o número de vítimas do sexo feminino
corresponde a 81% do total, claramente superior ao número de vítimas do
sexo masculino, da mesma maneira que nos crimes patrimoniais, os filhos
homens importam maioritariamente como agressores sendo 71% do total.
Finalmente, outro dado assombroso corresponde ao de centenas de
idosos abandonados por ano em hospitais portugueses. As hipóteses para
esta conduta atroz seriam atribuídas ao fato de muitos familiares não
possuírem condições econômicas, devido a atual crise que assola o país,
espaço físico e tempo ou vontade para acolher seus idosos (BOLETIM DA
ORDEM DOS ADVOGADOS, 2010).
Já no Brasil, de acordo com dados da Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República, que mantém serviço para o recebimento de
denúncias de violações de direitos humanos, no ano de 2011 foram relatadas
43.628 violações contra pessoas idosas. Dentre elas estão violações contra
o patrimônio econômico, integridade física e/ou psíquica, dentre outros vários
(BRASIL, 2012).
Nesse conjunto de dados destacam-se as denúncias de negligência
(68,7%), seguidas pelos abusos psicológicos (59,3%), abusos financeiros,
econômicos e violência patrimonial (40,1%) e, em último lugar, os maus-tratos
físicos (34%). Frise-se, todavia, que a violência contra a pessoa idosa é muito
mais abrangente e difusa do que as que aparecem nas taxas de morte e de
internações hospitalares (BRASIL, 2014).
Portanto, o que está em risco não é apenas a integridade física destes
indivíduos, mas também a proteção psicológica e preservação da sua
integridade mental, ferindo a sua dignidade humana. Como demonstraram
estes dados, a agressão parte daquele que o idoso confia, de um ente familiar
e que muitas vezes habita conjuntamente com este. O quadro se agrava
quando o indivíduo hipossuficiente, neste caso cita-se o incapaz, não possui
condições mínimas de se autoproteger e muito menos de invocar a proteção
de outros familiares ou de órgãos públicos competentes.
A proteção da personalidade...
// 85
5.3 PERSONALIDADE: ASPECTOS GERAIS
Inicialmente, devemos conceituar de forma breve a personalidade
humana, que é temporal, não podendo ser considerada como a soma de
funções vitais, mas sim como o resultado do comportamento individual frente
a estímulos de variada natureza, assim, cada ser humano possui uma história
pessoal. Nesta história consideram-se os dados biopsicológicos herdados, o
meio em que o indivíduo se desenvolve e suas condições ambientais, sociais
e culturais (D´ANDREA, 2012, p. 9).
O criador da psicanalise, Sigmund Freud, formulou conceitos
psicodinâmicos da personalidade, estabelecendo uma estrutura chamada de
aparelho psíquico composto de três partes: id, ego e superego. O Id será a
parte original do aparelho psíquico a partir da qual irá se desenvolver as
outras duas. O Id está ligado à infância, voltado para a satisfação das
necessidades no início da vida, consiste de impulsos que buscam o prazer e
evitam a dor, sendo basicamente animal a atividade humana no início da vida
e representando a sua herança biológica.
Já o Ego, será o intermediário entre o Id e o mundo externo,
realizando as funções de perceber, lembrar, pensar, planejar e decidir.
Finalmente, o Superego, incorporará as regras e normas impostas pelo
mundo externo à estrutura psíquica, criando a chamada “consciência”,
representando a resposta automática do que é “certo” ou “errado” diante das
situações enfrentadas no cotidiano e sendo o resultado da herança
sociocultural do ser humano (D´ANDREA, 2012, p.13).
Jean Paul Sartre (2007, p.94) sobre este tema em sua obra “O Ser e
o Nada” afirmou:
[...] desde que surge, a consciência, pelo puro movimento nadificador da
reflexão, faz-se pessoal: pois o que confere a um ser a existência pessoal
não é a posse de um Ego - que não passa do signo da personalidade -, mas
o fato de existir para si como presença a si.
A personalidade do indivíduo demanda reflexões filosóficas e estudos
mais aprofundados sobre a biologia e psicologia humana por ser um tema
complexo e amplo, entretanto, este trabalho irá utilizar-se de breves conceitos
destas áreas para embasar e contextualizar os direitos de personalidade no
universo jurídico.
5.3.1 A proteção da personalidade do idoso
A proteção ao indivíduo idoso está presente na Constituição da
República Portuguesa, em seu artigo 72 destinada ao grupo de indivíduos
chamado de terceira idade. Igualmente, a Carta Magna Brasileira, no artigo
5º e em seu Título VIII, que trata da Ordem Social, resguarda a proteção à
velhice e a assistência ao idoso, tanto por parte do Estado quanto da família.
Todo ser humano tem personalidade, como observou Carlos Alberto
da Mota Pinto, citando a conhecida formula de Kant, “o homem é pessoa,
86 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
porque é fim em si mesmo, isto é, tem um valor autónomo e não só um valor
como meio para algo de diverso, daí resultando a sua dignidade” (PINTO,
1985, p.99). Reconhecer a sua dignidade constitui a regra ético-jurídica
fundamental, reconhecer o respeito mútuo entre os indivíduos é reconhecer
a dignidade do ser humano.
Na esfera jurídica os direitos de personalidade são gerais e todos
possuem o direito de gozá-los, são extrapatrimoniais, pois, suas violações
podem originar uma reparação pecuniária, porém, não possuem em si este
valor, e são direitos absolutos. Os direitos de personalidade incidem
[...] sobre a vida da pessoa, a sua saúde física, a sua integridade física, a sua
honra, a sua liberdade física e psicológica, o seu nome, a sua imagem, a
reserva sobre a intimidade da sua vida privada (...) um círculo de direitos
necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada
pessoa (PINTO, 1985, p. 209).
Portanto, ao proteger a personalidade física e moral do indivíduo
humano, as legislações portuguesa e brasileira estão tutelando o
desenvolvimento da própria personalidade, e isso corresponde a dizer que o
idoso, quando alcançou o desenvolvimento máximo, físico e psicológico,
presencia o declínio das suas funções vitais, merecendo semelhante
proteção legal àquela destinada à criança, por se encontrarem em extremos
estágios de vulnerabilidade.
Aplicar-se-á o princípio da igualdade no que fere a temática deste
estudo conforme explicação de Rabindranath Capelo de Sousa, pois, diante
da idade da pessoa vigora o princípio geral da igualdade (art.13. nº 1 da
Constituição Portuguesa e art. 5º, caput, da Constituição Brasileira), só
devendo ser tratado de maneira desigual àquilo que, razoavelmente e
objetivamente é dessemelhante, em virtude das características de certos
grupos etários (SOUZA, 1995, p.112). Igualmente, “[...] a personalidade
humana tutelada não reveste um carácter estático, mas dinâmico”, pois,
“tanto a essência como a existência do homem, enquanto determinantes da
sua personalidade, merecem idêntica proteção legal” (SOUZA, 1995, p.117).
Como salienta Orlando de Carvalho, só um direito ilimitado e ilimitável
da personalidade permite uma tutela suficiente do homem ante os riscos de
violação que lhe oferece a sociedade contemporânea. Contudo, este direito
abstratamente ilimitado será limitado “pelas condições concretas a que se
subordina a relevância da sua invocação”. (CARVALHO, 1981, p. 203).
Assim, todo indivíduo é o bem supremo da ordem jurídica, o seu fundamento
e o seu fim (SOUZA, 1995, p. 207), razão pela qual se destina a aplicação
eficaz da tutela da personalidade.
A afronta à personalidade é susceptível de responsabilidade civil e
legitima a adoção das providências previstas no Código Civil português e
brasileiro. A igual tutela geral da personalidade, singularizada no ser do
respectivo titular, portanto, valerá para qualquer portador de deficiência física
ou psíquica que desdobre em uma incapacidade jurídica.
A proteção da personalidade...
// 87
Caso ocorra ameaça ou ofensa à personalidade, poderá o titular do
direito exigir reparação pelos danos sofridos através da responsabilidade civil,
“extensão dos danos a indenizar ou o conteúdo das medidas preventivas ou
atenuadoras, em função também da situação dinâmica dos bens humanos
sujeitos a tal processo” (SOUZA, 1995, 207), com o intuito de evitar a
consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida,
utilizando-se dos meios processuais cabíveis.
5.3.2 Personalidade jurídica
Adentrando a definição da personalidade jurídica, ela corresponderá
à capacidade para ser sujeito das relações jurídicas. Os sujeitos são os
indivíduos suscetíveis de serem titulares de direitos, obrigações e partes nas
relações jurídicas. A personalidade jurídica representa a aptidão para ser
titular autônomo destas relações, capacidade singular nos seres humanos e
uma exigência do direito ao respeito à dignidade inerente a todos os
indivíduos (PINTO, 1985, p. 193).
Como preceitua o Código Civil que a personalidade jurídica adquirese no momento do nascimento completo e com vida, e cessa com a morte da
pessoa. Entretanto, a personalidade jurídica é uma pura criação do direito, e
só há personalidade jurídica porque existe personalidade humana
(CARVALHO, 1981, p. 161). Desta forma, todo sujeito de direito é titular de
fato de relações jurídicas e também será titular de direitos de personalidade
(PINTO, 1985, p. 193), estando a personalidade jurídica entrelaçada à
capacidade jurídica de gozo e de direitos.
5.3.3 Capacidade jurídica
A capacidade jurídica é a possibilidade jurídica em concreto, ela é
inerente à personalidade jurídica e refere-se à aptidão para ser titular em
maior ou menor grau de relações jurídicas, possuindo uma maior ou menor
capacidade conforme certas circunstancias ou situações (CARVALHO, 1985,
p. 220). Portanto, a capacidade jurídica e a capacidade de agir só se
distinguem na esfera patrimonial da pessoa. Reconhecer a capacidade
jurídica sem reconhecer a capacidade de agir significaria a negação da
dignidade da pessoa humana (STAZIONE, 1975, p. 241).
Outrossim, torna-se ineficaz a dissociação entre o conceito de
capacidade jurídica e capacidade de agir negocial tradicional quando em
causa esteja o exercício de direitos pessoais do incapaz, por serem direitos
personalíssimos e corresponderem aos direitos de afirmação da liberdade e
da sua autodeterminação, o resultado de qualquer tentativa de dissociação
se tornará pura ficção (RIBEIRO, 2010, p. 69).
Rabindranath afirma que os institutos da personalidade e da
capacidade jurídica interpenetram-se, porém não se confundem com o bem
da personalidade humana juridicamente relevante, pois, os valores jurídicos
que o instituto da capacidade incorpora são reabsorvidos também no bem
88 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
jurídico da personalidade, enquanto objeto da tutela geral referida. O bem
jurídico da personalidade reivindica e incorpora um direito ao bem da
personalidade jurídica plena e postula pelo bem de uma capacidade jurídica
extensa (SOUZA, 1995, p. 106-107).
Como observado por Orlando de Carvalho:
A luta pela personalidade é diretamente uma luta pela capacidade. Luta que
está longe do seu fim, se nos lembrarmos das várias capitis deminutiones
que ainda se admitem nos ‘bons costumes’ contemporâneos: incapacidades
derivadas da etnia, do sexo, da idade, da nacionalidade, etc (CARVALHO,
1995, p. 193).
5.3.3.1 Capacidade de exercícios de direito e capacidade jurídica
negocial
A capacidade de exercícios de direito, como ensina Mota Pinto, é
uma expressão não muito feliz no ordenamento jurídico português, pois
sugere tratar-se apenas da capacidade de exercitar direitos, deixando de fora
o cumprimento de obrigações e a aquisição de direitos ou assumindo
obrigações por ato próprio e exclusivo ou mediante um representante
voluntário ou procurador (PINTO, 1985, p.194-195).
Contudo, segundo este mesmo autor a capacidade jurídica de
exercer direitos ou capacidade de agir, corresponde à idoneidade de atuar
juridicamente através do exercício de direitos e deveres, adquirindo direitos
ou assumindo obrigações por designo próprio ou de terceiros, através de
representação voluntária ou através de procuração (PINTO, 1985, p.195),
mas a pessoa capaz de exercício de direitos atua pessoalmente (não se
utiliza de representante) e autonomamente (sem a necessidade de
assistência), portanto, a capacidade é medida por um conjunto de ações e
condições na qual o indivíduo se encontra.
Orlando de Carvalho (1995, p. 193) sobre este tema diz que a
chamada capacidade de agir ou capacidade de exercícios de direitos, será a
capacidade para intervir pessoalmente ou através de representante
voluntário na aquisição, modificação ou extinção das relações jurídicas. Esta
capacidade deverá ocorrer em condições de manifestação livre e lúcida,
contudo, ela não existirá em alguns indivíduos, citando como exemplos
clássicos os que não atingiram a maturidade pessoal ou aqueles que a
perderam em maior ou menor grau, como os incapazes classificados pela lei.
A capacidade de exercícios de direitos é reconhecida às pessoas que
atingem a maioridade aos 18 anos, tanto na legislação portuguesa quanto na
brasileira. Entretanto, nem sempre o conceito jurídico de capacidade de agir
estará em consonância com a capacidade natural ou de fato da pessoa
(RIBEIRO, 2010, p. 74).
A capacidade de agir é uma construção da ordem jurídica delimitada
pelas exigências de segurança jurídica, visando proteger a própria pessoa e
o comércio jurídico. O reconhecimento da capacidade de agir ocorre
naturalmente enquanto correlacionado a personalidade humana, porém, há
A proteção da personalidade...
// 89
bens jurídicos que em determinados casos exigem a limitação para o pleno e
universal reconhecimento da capacidade de agir (RIBEIRO, 2010, p.74).
Da mesma forma, a capacidade de agir negocial é um conceito de
construção jurídico-legal, entretanto, a competência natural impõe à ordem
jurídica o reconhecimento da capacidade de agir a todos os homens, bem
como o dever de exigir a justificação proporcional de restrições à capacidade
de agir, em consequência da necessidade de se proteger bens jurídicos
individuais ou públicos relevantes (RIBEIRO, 2010, p.77).
Carlos Alberto da Mota Pinto (1985, p.222) ensina que a
incapacidade negocial de gozo provoca a nulidade dos negócios jurídicos e é
insuprível, não podendo ser concluídos por outra pessoa em nome do
incapaz, muito menos por este, mas com a autorização de outra entidade.
Contudo, a incapacidade negocial de exercícios provoca a anulabilidade dos
negócios jurídicos que poderão ser concluídos através dos meios destinados
a suprir a incapacidade, os quais são: representação e a assistência legal.
Passaremos a definir quais são os tipos de incapacidade jurídica.
5.4 INCAPACIDADES JURÍDICAS
São identificados três tipos de incapacidades: as decorrentes de uma
valoração judicial a pressupor uma incapacidade duradoura abarcando os
casos de inabilitação e interdição; as decorrentes da lei, como incapacidades
legais stricto sensu - o caso típico é a menoridade; e finalmente, as
resultantes do juízo de avaliação circunstancial e casuístico, as chamadas
incapacidades naturais ou de facto (RIBEIRO, 2010, p. 79-80).
A incapacidade de exercícios de direito, pode ser genérica ou
específica, se adaptando ao caso concreto, estando o indivíduo incapacitado
de realizar atos jurídicos em geral ou alguns em especial. Entretanto, a
incapacidade jurídica de exercícios de direito poderá ser suprida pela
representação legal ou pela assistência (PINTO, 1985, p. 195), se adequando
a realidade físico-psíquica que resultará no grau de incapacidade do
indivíduo.
Como consequência, poderão ser invalidados tais atos por eles
praticados, bem como impondo deveres especiais de atenção e respeito para
com estes indivíduos incapazes, destinando às pessoas que com eles se
relacionam o dever de zelar e protegê-los.
A incapacidade de exercício de direitos será suprida pela
representação legal, através da designação de um tutor/curador após o
devido processo legal que confirme a incapacidade do indivíduo.
5.5 BREVE ANÁLISE DA INTERDIÇÃO E INABILITAÇÃO COMO FORMAS
DE SUPRIR A INCAPACIDADE JURÍDICA DO IDOSO EM PORTUGAL
O objeto de estudo deste trabalho está no processo de interdição e
inabilitação da legislação portuguesa de maiores na faixa etária
90 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
correspondente a 3ª e 4ª idade, motivo pelo qual será dedicada maior atenção
aos casos vividos por este grupo etário.
A incapacidade do idoso pode atingir diversos níveis, tendo sua
origem comum na debilidade decorrente do envelhecimento através do
processo natural sofrido pelo transcorrer do tempo que resultará, muitas
vezes, em uma fragilidade física e psíquica (CAMARANO, 2010, p. 140). Nos
casos extremos, a pessoa não conseguirá mais ter autonomia em suas
atividades físicas, psíquicas e sociais, deverá então ser impetrado um
processo judicial requerendo a interdição ou inabilitação, nele será avaliado
através de perícia jurídica o grau da sua incapacidade.
Segundo informações apresentadas pelo Boletim da Ordem dos
Advogados de Portugal, o ano de 2012 teve o recorde de interdições e
inabilitações declaradas pela justiça. Mais de 2 mil idosos se encontravam
incapacitados de reger sua pessoa e seus bens, a razão para este quadro
seria o diagnóstico de doenças mentais e degenerativas que afetam a
autonomia do indivíduo (BOLETIM DA ORDEM DOS ADVOGADOS DE
PORTUGAL, 2014).
Em outra investigação realizada sobre o envelhecimento em
Portugal, foi averiguado que 50% da população com 65 ou mais declararam
ter muita dificuldade, ou não conseguir realizar, pelo menos, uma das 6
atividades diárias, sendo elas: ver, ouvir, andar, memória/concentração,
tomar banho/vestir-se, compreender/fazer-se entende (INSTITUTO
NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2011) ou seja, simples atividades rotineiras
que comprometem a autonomia do idoso. Como se observa, a capacidade
apresenta vários níveis, sendo fundamental a determinação do seu grau para
o desenvolvimento pleno de cada atividade.
Igualmente, ocorrerá “quando lidamos com doenças degenerativas,
em que as pessoas podem manter capacidade para tomar determinadas
decisões (VITOR, 2004, p.12). Portanto, não será apenas a constatação de
uma ou várias dificuldades na realização de tarefas do cotidiano que implicará
em uma incapacidade jurídica. Para que ela ocorra deverá haver a
impossibilidade de governar a sua pessoa e uma falta de discernimento que
estará a comprometer a adequada administração de seus bens e em grau
elevado, a sua pessoa.
Os processos de interdição e inabilitação têm como objetivo suprir as
incapacidades jurídicas do indivíduo tendo o intuito de o protege-lo.
Igualmente, estas ações deverão ser propostas no momento em que for
constatada a incapacidade e não como forma preventiva que vislumbre uma
futura eventual causa de interdição ou inabilitação. A matéria relativa à
interdição está prevista no artigo 138 do Código Civil português, e os sujeitos
à interdição serão aqueles que possuam anomalias psíquicas, surdez-mudez
ou cegueira, e se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens.
Já o artigo 152 refere-se àqueles que podem sofrer o processo de
inabilitação, como os indivíduos cuja anomalia psíquica, surdez-mudez ou
cegueira, em caráter permanente não seja tão grave a ponto de justificar a
sua interdição. Serão incluídos neste rol os indivíduos que sejam pródigos ou
A proteção da personalidade...
// 91
que façam uso de bebidas alcoólicas ou de entorpecentes, se mostrando
incapazes de reger convenientemente o seu patrimônio. Igualmente caberá
aos processos de inabilitação quando não regulado pela sua subsecção, as
disposições e regulamentações previstas para o processo de interdição,
conforme estabelecido pelo Código Civil.
Logo, as interdições e inabilitações, estão no campo da restrição de
direitos fundamentais, mais precisamente do direito à capacidade civil, como
previsto no artigo 26º, nº.1 da Constituição da República Portuguesa,
incluídos na categoria dos direitos, liberdades e garantias, sujeitos ao regime
específico do artigo 18º, nº 2, da mesma legislação, segundo o qual “a lei só
pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente
previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionais protegidos”, porém,
respeitando o princípio da proibição em excesso (VITOR, 2004, p.15).
A limitação de direitos deverá ser “[...] adequadas (apropriada),
necessária (exigível) e proporcional (com justa medida)” em razão dos
reflexos que irão comprometer o livre desenvolvimento da personalidade do
indivíduo. A interdição/inabilitação só deverá ocorrer quando o incapaz não
possuir mais condições de cumprir os “[...] deveres familiares, sociais e
públicos, e de praticar actos relativos à sua vida económica e patrimonial”
(CANOTILHO, 2003, p. 457).
Outrossim, “[...] a materialização do pleno estatuto de homem
autónomo apenas pode ser colocado em causa quando se formular um juízo
negativo sobre a específica incapacidade para atuar autonomamente”
(RIBEIRO, 2010, p. 78), ou seja, o processo de interdição ou inabilitação não
deve ser visto como uma regra a ser cumprida quando o idoso se encontra
em estado de vulnerabilidade, a interdição/inabilitação deve ser vista como
uma exceção no processo do envelhecimento.
Estes processos significam sentenciar a total ausência de capacidade
jurídica de direitos e de gozo do indivíduo, oficializando a ausência de sua
autonomia. Em razão desta sentença, tal conduta deve ser ponderada e
medida, pois há casos em que o indivíduo apresenta pequenas
demonstrações de desordem psíquica, mas não compromete totalmente o
seu discernimento e juízo de valor em suas ações e atividades cotidianas.
Portanto, só será aceito reconhecimento de uma incapacidade geral
quando ela esteja juridicamente justificada após um processo legal,
comprovando o estado de incompetência e vulnerabilidade do incapaz para
se autodeterminar, sendo este o “[...] fundamento e critério de uma decisão
constitutiva de uma incapacidade judicial” (RIBEIRO, 2010, p. 78).
A interdição só terminará com a cessação da incapacidade natural,
desta maneira deverá haver um processo legal para o seu levantamento, a
sua requisição competirá ao próprio interdito ou aqueles que possuírem
legitimidade para requerê-la, como previsto no artigo 151 do Código Civil.
Igualmente ocorrerá com o inabilitado, sua incapacidade só deixará
de existir quando ocorrer o levantamento da inabilitação. Entretanto, há certas
condições que deveram ser obedecidas por aqueles que sofreram este
92 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
processo como prevê o artigo 155 do Código Civil. Assim, quando as causas
da inabilitação forem a prodigalidade ou o abuso de bebidas alcoólicas ou de
estupefacientes, o levantamento só poderá ocorrer desde que provado a
cessão daquelas causas e tenha decorrido o prazo de 5 anos a contar sobre
o trânsito julgado da sentença decretada de inabilitação ou da decisão que
denegou um pedido de levantamento anterior.
Este período visa sujeitar o inabilitado a uma prova temporal a fim de
evitar “o risco de dissimulação ou fingimento” sobre sua regeneração,
justificando que este comportamento não está presente nas pessoas que
sofreram processo de interdição ou inabilitação por anomalia psíquica
(PINTO, 1985, p. 244).
5.5.1 Breves considerações sobre o processo de interdição e
inabilitação em Portugal
Passaremos a tratar de cada processo interdição e inabilitação de
forma particular, contudo, ambos sofrem críticas comuns pela forma como
ocorrem. A seguir serão tecidos breves comentários sobre alguns pontos
controversos existentes no processo de interdição e inabilitação. Estas ações
têm por escopo à proteção dos incapazes e daqueles que o cercam, contudo,
a interdição e inabilitação só podem ser decretadas judicialmente. Este
processo está regulado no capítulo I do Título IV, do Código de Processo
Civil, iniciando-se no artigo 944 e seguindo até o artigo 958. Pertencentes à
jurisdição contenciosa, por envolver o conflito de interesses das partes
tratando-se de um procedimento especial.
Aliás, como afirma Paula Távola Vitor, este processo possui carácter
híbrido ao mesclar-se com características da jurisdição voluntária
configurando como medida de proteção dos incapazes, em suas palavras:
“[...] a decisão de instituição de medida de suprimento da incapacidade tem
na sua base um juízo de ‘valoração de oportunidade’ sobre a forma de
proteção da pessoa com capacidade diminuída e sobre o titular adequado do
cargo tutelar (VITOR, 2004, p. 93).
A crítica feita por muitos autores destina-se à forma como o processo
acontece e a disposição de alguns artigos e sua aplicação literal, o que acaba
por criar dificuldades em articular o caso concreto à lei, devido o seu extremo
rigor.
Questiona-se a validade da citação prevista no artigo 946 do Código
de Processo Civil, pois, no processo de interdição ou inabilitação, o requerido
poderá contestar o processo, entretanto, é sabido que na sua esmagadora
maioria, as ações não são contestadas. A crítica é feita aos casos em que o
indivíduo não possui condições psíquicas para poder receber e entender a
citação e a gravidade do processo que está a sofrer. Adalberto Costa (2011,
p. 67) salienta que não há nenhuma validade para a citação realizada ao
requerido neste processo.
O referido autor sugere uma citação especial a fim de ser realizada
obrigatoriamente por um funcionário judicial que lavraria o auto com uma
A proteção da personalidade...
// 93
referência a uma terceira pessoa responsável ou representante do requerido
aproveitando-se do artigo 947 do mesmo código processual (COSTA, 2011,
p. 67). Igualmente, o número 1º do citado artigo designa que o juiz irá
determinar como curador provisório a pessoa a quem caberá a tutela ou a
curatela do requerido, quando diferente do autor do processo. Se este
nomeado não realizar a contestação, será invocado o Ministério Público para
que proceda a defesa do requerido (SANTOS, 2011, p. 63-64).
Outro ponto a ser criticado corresponde a publicidade que o processo
de interdição e inabilitação sofrem, pois, após a apresentação da petição
inicial e seu deferimento, o Juiz irá determinar a afixação de editais no tribunal
e na sede da junta da freguesia da residência do requerido, igualmente
deverá ser publicado editais junto aos jornais de maior circulação na
respectiva circunscrição judicial.
Outrossim, o artigo 147 do Código Civil, determina que após a
sentença decretando a interdição ou inabilitação do requerido, deverá ser
averbada junto ao respectivo registo civil competente, para a partir desse
momento produzir seus efeitos. Contudo, tais procedimentos ocasionam um
sentimento de “escândalo e devassa da privacidade” implicando em vergonha
pessoal e familiar, provocando “consequências nefastas na reputação social
de alguém que pode nem sequer vir a ser incapacitado” (VITOR, 2004, p.109).
Todavia, estes procedimentos têm por escopo dar proteção aos
terceiros interessados e que mantem uma relação com o incapaz. Geral
Rocha Ribeiro, faz uma severa crítica sobre esta questão ao afirmar que tal
medida tem caráter desproporcional apesar de ser justificada como forma de
proteção de terceiros, uma vez que a capacidade equivale a um direito
pessoal, presente nos direitos, liberdade e garantias constitucionais
(RIBEIRO, 2010, p.87).
Do mesmo modo, ao colocar “de forma grave, e em certa medida
irreversível, a reserva da intimidade da vida privada” está a ferir os envolvidos
nesta ação, familiares e principalmente o requerido, corroborando o fato de a
publicação “ser oficialmente promovida sem audição prévia da pessoa
visada”. Igualmente, ao dar publicidade está a pressupor uma legitimidade
legal para impor restrições do direito a intimidade da vida privada, não
garantindo o direito fundamental de audição prévia (RIBEIRO, 2010, p.87).
5.5.2 Interdição
O processo de interdição está previsto nos artigos 138 e seguintes
até o artigo 151 do Código Civil, ela ocorrerá quando o indivíduo se encontrar
em situações que limitam a sua capacidade físico-psicológica, configurados
por anomalias psíquicas, surdez-mudez ou cegueira. Como já dito este
estado precisa ser atual, habitual e grave.
Os artigos citados expõem de forma taxativa os sujeitos a estes
processos sendo estas clausulas “exaustiva e insusceptível de ser ampliada
em via da analogia” (ALVES, 2015), entretanto, caberá “ao legislador definir
pressupostos e critérios, não quanto à aquisição de capacidade, mas pelo
94 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
juízo negativo de determinar quem é incapaz” (THIELI, apud RIBEIRO, 2010,
p.75).
Quanto ao entendimento de anomalia psíquica, possuirá um amplo
significado que irá incluir “todas as deficiências do intelecto ou vontade que
afetem a pessoa, no todo ou em parte, para gerir os seus interesses pessoais
e patrimoniais” (RIBEIRO, 2010, p. 89), ambas devem mostrar-se um grave
entrave para o exercício de atividades diárias do indivíduo, afetando também
o as demonstrações de “vontade, a afetividade e a sensibilidade” (COSTA,
2011, p. 33).
O processo de interdição e a aplicação da tutela não poderão ser
personalizados, o que comprova ser esta uma medida de extrema
severidade. Este processo tem por finalidade suprir a incapacidade de
exercícios de direito da pessoa incapaz, recaindo também sobre a
capacidade de gozo dos interditos.
Igualmente, a interdição por anomalia psíquica ao afetar a
capacidade de gozo do interdito o impede de contrair matrimônio, não poderá
realizar testamento e não poderá perfilhar por se tratar de uma capacidade
jurídica insuprível. Consequentemente, a prática de qualquer destes atos
incorrerá na anulabilidade do casamento e perfilhação, e para a realização
de testamento este será considerado nulo.
Como dita o artigo 138º nº. 1 sobre pessoas sujeitas a interdição:
“Podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por
anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de
governar suas pessoas e bens.” O nº 2 deste artigo prevê que a interdição
será aplicada a maiores de idade, desta forma os menores que sofram de
demência, surdo mudez ou cegos, estão protegidos pela incapacidade por
menoridade (PINTO, 1985, p. 234).
Assim, a incapacidade estará configurada pela perda da autonomia e
do autocontrole do indivíduo sobre si, comprometendo sua segurança e
daqueles que o cercam. Contudo, a proteção de forma excessiva pode
resultar em um mal pior, corroborando para a exclusão do sujeito de toda a
atividade jurídica, chegando ao ápice de aliena-lo “da prática de atos
necessários à satisfação dos seus interesses” (VITOR, 2004, p.44).
Paula Távola Vítor, afirma que a tutela é um paradigma da medida
total, e se encontra no ordenamento jurídico português como um
“desequilíbrio de tudo-ou-nada”, ao ponto em que retira a capacidade de
exercícios ao interdito, causando “arrepio das novas concepções em sede
psiquiátrica” (VITOR, 2004, p.18). Aliado ao combate deste cenário, temos o
Movimento da Reforma Psiquiátrica, propondo a construção de uma rede de
serviços e estratégias territoriais, comunitárias, solidárias, inclusivas e
libertárias.
Adalberto Costa faz uma crítica ao processo de interdição e da
identificação da incapacidade do indivíduo a ser interditado, pois, entende
que “a atual lei, deveria procurar ir mais rapidamente ao encontro das ciências
médicas e trazer delas ensinamentos que desenvolvam as normas jurídicas
que disciplinam a matéria da interdição e até da própria inabilitação”,
A proteção da personalidade...
// 95
corroborando a esta opinião temos Paula Távola Vitor, ao afirmar que não há
uma identificação imediata entre doença mental e capacidade diminuída, pois
a “[...] própria terminologia legal, deve notar-se, não aponta diretamente para
um diagnóstico médico psiquiátrico” (VITOR, 2004, p.44).
Como consequência da ausência de capacidade jurídica haverá a
representação, forma legal de suprir a incapacidade do indivíduo, desta
maneira o representante do incapaz irá representa-lo e deverá agir em
conformidade com o interesse do representado. O representante será
escolhido através de um processo legal e irá atuar juridicamente zelando pela
saúde do interdito podendo inclusive alienar os bens deste através da
obtenção da necessária autorização judicial, conforme artigo 145 do Código
Civil.
Outrossim, a possibilidade de alienação de bens do interdito tem por
escopo apenas a hipótese de necessidade de financiamento para realização
dos cuidados necessários para com a saúde do mesmo, a fim de que sanada
as despesas decorrentes do tratamento médico, cuidado “[...] que não apenas
pela prevenção da doença ou cuidados a ter com ela, mas também no
tratamento do próprio interdito com vista à sua cura” (COSTA, 2011, p.45).
No que cabe aos incumbidos de tutelar o incapaz, o artigo 143 nº1
designa, no caso do idoso, o cônjuge do interdito, com exceção se estiver
separado judicialmente ou de fato, ou mesmo se este também for incapaz.
Em segundo lugar, será chamado o filho maior preferindo o mais velho, salvo
se o tribunal ao ouvir o conselho familiar entender que outro filho seria o mais
adequado a exercer está função. Finalmente, se não houver possibilidade
dentro do rol taxativo do artigo 143, caberá ao tribunal escolher um tutor
ouvindo o conselho de família.
Uma questão importante corresponde ao fato de o Código Civil em
seus artigos destinados aos processos de interdição não preverem a
possibilidade de o incapaz escolher quem irá ser o seu futuro tutor, pois, há
casos em que não há compatibilidade de gênios, não há laços de afetividade
entre o tutor e o tutelado. Supõe-se que exista afinidade entre os membros
da família, o indivíduo e seu cônjuge, seus filhos ou algum parente mais
próximo, entretanto há situações em que os laços familiares só se mantem
por consanguinidade e não mais por afeto, será exatamente nestes fatos em
que a vontade do incapacitado deverá prevalecer.
Contudo, há pontos delicados nesta escolha realizada pelo incapaz,
pois sua escolha poderia favorecer a um terceiro estranho a família
comprometendo a proteção dos bens pertencentes a uma futura herança a
ser partilhada. Portanto, será fundamental que a eleição do futuro
representante do incapaz ocorra em comum acordo entre os envolvidos nesta
relação.
Adentrando ao tema da realização da vontade do incapaz diante da
rigidez destes processos, especialmente para a interdição, faz se necessário
a criação de meios alternativos como a autotutela. Ao ser garantido o livre
desenvolvimento da personalidade pressupõe-se uma liberdade para o
planejamento e a realização do projeto de vida do indivíduo.
96 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Consequentemente, esta liberdade deverá se desdobrar na “[...] faculdade de
planear e decidir a proteção perante uma eventual ou potencial situação de
incapacidade”.
A autotutela representa a autonomia e a declaração de vontade do
indivíduo com o objetivo de organizar sua proteção legal. Consiste na
“faculdade da própria pessoa, na previsão de vir a encontrar-se numa
situação de incapacidade, adoptar disposições relativas a sua pessoa ou
bens, entre elas incluída a designação do autor ou a exclusão de alguém
deste cargo” (RIBEIRO, 2010, p. 259).
Desta forma, o valor da autodeterminação e liberdade implica em
uma faculdade juridicamente reconhecida a fim de que a pessoa possa definir
e regulamentar as disposições e meios atinentes aos seus interesses
patrimoniais ou pessoais, em situações do presente e futuras de
incapacidade eventual ou potencial da sua pessoa (RIBEIRO, 2010, p. 259).
5.5.3 Da inabilitação
A inabilitação está presente no artigo 152 e seguintes do Código Civil
e sua previsão legal é atual a este código. Só sofrerão o processo de
inabilitação aqueles que a incapacidade e as suas causas não forem graves
ao ponto de implicarem em uma interdição. Configura-se a inabilitação
quando não há interferência no discernimento e quando há, não possui uma
forma grave a comprometer a autonomia da pessoa para reger sua pessoa,
mas prejudica o discernimento para administrar convenientemente o seu
patrimônio.
Podem suportar o processo de inabilitação, aqueles que sofrem de
anomalia psíquica; surdez-mudez, cegueira, a habitual prodigalidade, o
alcoolismo e a toxicomania. Aliás, a prodigalidade, o alcoolismo e a
toxicomania “[...] são causas que podem determinar a inabilitação, mas só
estas, não podem determinar nunca a interdição” (COSTA, 2011, p. 28).
Logo, não se deve confundir a habitual prodigalidade com “[...]
administração infeliz ou pouco perspicaz”, igualmente os indivíduos que
abusem de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, só serão inabilitados
quando tais substâncias e o seu uso passe a alterar o caráter e comprometer
os atos pertinentes à administração de seus bens, configurando um perigo
atual “[...] mesmo que se não tenha verificado ainda um dano concreto”
(PINTO, 1985, p.242).
O grupo de pessoas a sofrer de anomalia psíquica, surdez-mudez e
cegueira, coincidem com as causas verificadas no processo de interdição,
entretanto, só constituem motivos para a inabilitação se o seu nível de
gravidade não se concluir como pretexto para a interdição incapacitando de
forma grave o indivíduo dando causa à sua declaração.
Pedro Pais de Vasconcelos (1999, p. 92), afirma que a inabilitação
está destinada a proteger o patrimônio do inabilitado, pois o que está em risco
é o fato de o incapaz não possuir condições de reger convenientemente os
A proteção da personalidade...
// 97
seus bens, não possuindo a necessidade de alguém o auxiliar no exercício
do cuidar de sua pessoa.
O artigo 154 do Código Civil prevê que a inabilitação irá abranger os
atos e disposições de bens entre vivos e os que forem delimitados na
sentença conforme análise do caso concreto, pois a inabilitação não é rígida
como a interdição, valorando as capacidades ainda existentes para a tomada
de decisões. Consequentemente, a administração do patrimônio será
entregue ao curador de forma parcial ou total conforme determinação
sentencial, devendo também prestar contas de sua administração.
Em síntese, será designado um assistente através de decisão
judicial, sujeitando os atos do incapaz ao consentimento da pessoa ou
entidade que o assiste. Portanto, a vontade emanará do incapaz que ainda
irá administrar seus bens, todavia, será o assistente que irá autorizar intervir
ou agir junto para a sua realização.
Destarte, para suprir a incapacidade do inabilitado poderá existir a
figura da representação através do curador, caberá ao juiz em sua decisão
determinar uma extensão maior ou menor da incapacidade, desta maneira a
administração dos bens ocorrerá tal como nas interdições, caso a
incapacidade possua um maior grau (PINTO, 1985, p. 243). Mas, os efeitos
da inabilitação originados da sentença só irão afetar a capacidade de
exercício do incapaz inabilitado, assim, a inabilitação somente afetará a
capacidade de gozo daquelas estabelecidas na lei (COSTA, 2011, p. 55).
Igualmente, a inabilitação não deverá ocorrer quando a pessoa já
tenha constituído um representante através da chamada “representação
voluntária” que lhe “[...] assegure a administração de seu patrimônio e/ou o
governo dos seus interesses” restringindo o mínimo possível à intervenção
judicial. Entretanto, caberá ao tribunal avaliar a real necessidade da aplicação
de uma inabilitação em substituição da já praticada representação voluntária,
por conseguinte, só se afastará a vontade do incapaz quando o representante
eleito configure perigo para os interesses deste ou haja necessidade da
existência de um supervisor de sua atuação (RIBEIRO, 2010, p.133-134).
5.6 ASPECTOS RELEVANTES NO PROCESSO DE INTERDIÇÃO NO
BRASIL
O Código Civil brasileiro atribui à família, sobretudo aos pais ou
tutores, seguidos do cônjuge ou qualquer outro parente, a legitimidade inicial
para promover a ação de interdição. Quanto ao Ministério Público, dita
responsabilidade deve ser conferida somente quando se confirma interesse
público pelo qual compete ao MP velar, em casos de doença mental grave
quando não existir ou não a promoverem algumas das pessoas designadas
anteriormente, ou se essas forem também incapazes para tal ato.
A finalidade da curatela é especialmente conceder proteção aos
incapazes no tocante a seus interesses e garantir a preservação dos
negócios concretizados por eles com relação a terceiros. Enquanto a tutela é
uma extensão do pátrio poder, a curatela constitui um poder assistencial ao
98 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
incapaz maior, completando-lhe ou substituindo-lhe a vontade. Em que pese
o idoso necessite muitas vezes de assistência em vários aspectos da vida,
quanto à interdição,
O principal aspecto é o patrimonial, pois o curador protege essencialmente
os bens do interdito, auxiliando em sua manutenção e impedindo que sejam
dissipados. Nesse sentido, fica realçado o interesse público em não permitir
que o incapaz seja levado à miséria, tornando-se mais um ônus para a
Administração (VENOSA, 2012, p. 474).
Existem sete espécies de curatela, cinco delas estabelecidas no art.
1.767, a curatela do nascituro (art. 1.779) e a curatela do enfermo ou portador
de deficiência física (art. 1.780). Frise-se que, assim como na legislação
portuguesa, velhice, cegueira, analfabetismo, dentre outras situações, não
autorizam por si só a interdição. Há necessidade de que ao interdito não
possua o devido discernimento.
O ordenamento jurídico brasileiro, todavia, tal como fazem certas
legislações, não distingue entre a interdição propriamente dita, de cunho mais
amplo, e as inabilitações para certos atos. Caberá ao juiz, com base na prova
pericial, restringir ou alargar o campo de atuação do interdito. Após decretada
a interdição, os atos praticados pelo interdito serão nulos, nos termos do art.
145, I, do Código Civil. Já os atos praticados antes da interdição serão
anuláveis, desde que o interessado comprove que a incapacidade do
contratante por meio de prova inequívoca, robusta e convincente,
resguardando assim a boa-fé de terceiros e a segurança jurídica do comércio.
Por fim, a legislação brasileira prevê o levantamento da interdição
caso a causa da incapacidade tenha fim. Caberá ao curador providenciar o
tratamento apropriado, devendo o juiz e o Ministério Público zelar para que
essa disposição seja cumprida.
5.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi demonstrado de forma breve ao longo deste trabalho, o
envelhecimento populacional é um processo atual de proporções mundiais.
Os números apresentados demonstram que em um futuro não muito distante
este processo irá alterar profundamente o cenário social e impactar de forma
direta na vida de quem está a sofrê-lo e daqueles que o cercam.
Igualmente, o envelhecimento populacional não se restringe aos
aspectos sociais, este processo já reflete em outras áreas, como a
necessidade de novas alterações no campo jurídico, principalmente no que
tange a temática deste estudo: as ações de interdição e inabilitação.
Portugal apresenta um alto número de idosos, sendo um dos países
mais envelhecidos da Europa. A população brasileira também terá nas
próximas décadas muito mais idosos. Como exposto, nos últimos anos houve
um grande aumento no número de processos sentenciando a incapacidade
de pessoas idosas, tanto em Portugal como no Brasil. Não há estudos
específicos que expliquem e correlacionem as reais causas do aumento
A proteção da personalidade...
// 99
considerável destas ações, mas o envelhecimento destas sociedades é um
dos fatores que apoiam este quadro.
Envelhecer é inerente à vida, contudo, alguns indivíduos são
acometidos por grave debilidade física e psíquica, comprometendo sua
autonomia e o sujeitando a dependência de cuidados de terceiros.
Igualmente, é temeroso observar um número relativamente alto de pessoas
ingressando em um estágio de maior vulnerabilidade ao perder suas
capacidades cognitivas e consequentemente a capacidade jurídica.
A incapacidade resulta em medidas drásticas para o indivíduo, as
consequências jurídicas são a perda da capacidade civil e em casos mais
graves a perda da capacidade de gozo, restringindo e impossibilitando o
incapacitado de exercer plenamente atividades jurídicas e realizar negócios
jurídicos. A depender do grau de incapacidade apresentado será destinado
um instituto jurídico correspondente. A medida precisa ser adequada
(apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida).
Quando apresentado um alto grau de incapacidade e sofrendo de
uma anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, perdendo a capacidade
e autonomia para governar sua pessoa e seus bens, o processo será de
interdição. Será designado um tutor que o irá representar na realização dos
atos e negócios jurídicos, zelando pela sua pessoa e por seus bens.
O tutor em sua grande maioria será um parente próximo ao incapaz,
respeitando o rol taxativo apresentado pelo Código Civil. A interdição é um
processo mais grave a ser aplicado em um incapaz configurando uma medida
inflexível e extrema. Por ser inflexível, não se pode adaptar tal medida aos
desejos do incapacitado. Assim, não haverá possibilidade de escolha daquele
que melhor seria seu tutor e a forma mais adequada para que este processo
de representação ocorrera e esteja em acordo as vontades pretéritas do
incapaz.
Destarte, ao escolher quem será seu representante legal antes de
perecer diante a uma incapacidade, o indivíduo estará designando aquele
que melhor lhe convém para cuidar de seus bens e fundamentalmente de sua
pessoa, configurando no exercício pleno de seu direito a autonomia.
Já a inabilitação, prevista apenas na legislação portuguesa, é uma
medida menos gravosa por ser menos engessadora e restringir-se ao campo
da administração patrimonial, e não da pessoa do incapaz. Os mesmos
sujeitos que poderão sofrer a interdição poderão sofrer a inabilitação,
acrescentando a este rol os alcoólatras ou estupefacientes e os pródigos
habituais. Para ser inabilitado, estas pessoas deverão apresentar um menor
grau de incapacidade que poderá afetar ou estará a comprometer a
administração conveniente de seus bens.
Ambos os processos, interdição e inabilitação, sofrem críticas que
demonstram a necessidade de uma reformulação, em sua parte material e
processual demonstrando pontos críticos que deixam falhas na sua real
finalidade: a proteção da personalidade da pessoa que está a sofrer esta
ação.
100 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Ao interditar ou inabilitar o idoso incapaz, deverão ser observados os
fatores que levaram o familiar ou entidade cuidadora a buscar por esta ação.
Deverá ser apurado de forma precisa, lançando mão de todas as formas de
obtenção de diagnósticos existentes a fim de verificar o grau de incapacidade
que o requerido apresenta. Deverá ser eleito o familiar mais adequado para
zelar pela saúde e integridade física e psíquica, pois nestas ações se observa
um grande número de familiares e terceiros oportunistas visando apenas o
patrimônio do idoso vulnerável. Assim, se clama pela necessidade de uma
proteção direcionada, adequada e flexível para este novo cenário social.
5.8 REFERÊNCIAS
ALVES, Raúl Guichard. Alguns aspectos do instituto da interdição.
Disponível em:
<http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Interdicao_inabilitacao.p
df>. Acesso em: 1 jul. 2015.
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO A VÍTIMA. Estatísticas APAVCrimes Patrimoniais (2000-2012). Disponível em:
<http://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Estatisticas_APAV_CrimesPatrimon
iais_2000-2012.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2015.
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO A VÍTIMA. Estatísticas APAVCrimes de Violência Doméstica – Filhos que Agridem os Pais.
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= VI =
A REPERCUSSÃO GERAL NOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS
UM MECANISMO DE REDUÇÃO DE DEMANDAS PARA PROMOÇÃO DO
ACESSO À JUSTIÇA
Edgar Dener Rodrigues*
Danilo Zanco Belmonte**
6.1 INTRODUÇÃO
Um dos principais problemas da crise do Judiciário é a grande
quantidade de recursos interpostos, que acabam entravando os Tribunais
Superiores e retardando o julgamento de questões mais importantes.
Na tentativa de destravar ou reduzir o número de recursos que
chegam ao Supremo Tribunal Federal uma das alterações legislativa foi com
foco no sistema recursal.
A emenda constitucional nº 45/2004 introduziu a necessidade de
demonstração de repercussão geral para a questão suscitada no recurso
como requisito de admissibilidade para os recursos extraordinários,
consoante previsão do artigo 102 da Constituição Federal. É uma clara
demonstração da intenção do legislador de filtrar os recursos que chegarão à
Corte Superior, permitindo assim a manutenção da função precípua do
Supremo Tribunal Federal, que é a de guardião da Constituição.
Este mecanismo de contenção a partir da demonstração da
repercussão geral da questão constitucional suscitada tem como principal
objetivo a desobstrução do sistema recursal e a redução da “crise do
Judiciário”.
Isso porque, consoante observam Mauro Cappelletti e Bryant Garth
(1988), um dos principais problemas de acesso à justiça é o tempo de
duração do processo, fato que, aliado à dificuldade financeira das partes para
custeio das despesas da ação, dificultam a rápida solução da lide ou mesmo
a efetividade no provimento jurisdicional.
Ademais, o princípio do acesso à justiça foi alçado à categoria de
garantia constitucional, sendo também expresso intrinsecamente junto com a
*
Possui graduação em Direito pela UNIPAR - Universidade Paranaense. Especialista em Direito
Tributário pela UNISUL. Especialista em Direito Processual pela UNISUL. Mestrando em Direitos
da Personalidade pela UNICESUMAR. Possui, ainda, Licenciatura Plena em Ciências pela
FAFIPA. Bolsista da CAPES.
**
Possui Graduação em Direito pela UNIPAR - Universidade Paranaense. Especialista em
Direito Civil, Negocial e Imobiliário pela Universidade Anhanguera. Mestrando em Direitos da
Personalidade pela UNICESUMAR. Possui, ainda, Licenciatura Plena em Matemática pela
UNESPAR - Campus Paranavaí e Especialização em Ensino pela Faculdades Iguaçu. Bolsista
da CAPES.
104 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
ideia de inafastabilidade do controle jurisdicional (CAPELLETTI; LAIER,
2015). Cabe aqui a noção de que cabe ao Poder Judiciário implementar as
medidas necessárias à ampliação do controle jurisdicional e redução do
tempo de tramitação do processo.
Outrossim, será demonstrado que a repercussão geral não se
confunde com a arguição de relevância, que outrora já fez parte do
ordenamento. Ainda que ambos tenham como intuito principal a “filtragem
recursal”, divergem em seus conceitos e requisitos.
Este estudo foi feito a partir da pesquisa bibliográfica e sobre o tema
da repercussão geral, analisando os requisitos para a interposição dos
recursos extraordinários algumas questões polêmicas sobre o assunto.
6.2 A ORIGEM E EVOLUÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Aranken de Assis (2007, p. 671) registra que no prelúdio da República
despontou no cenário brasileiro o recurso extraordinário. A Constituição do
Império, de 1824, desconhecia remédio similar. O art. 164, III, daquela Carta
recepcionou das Ordens Filipinas o recurso de revista, cujo julgamento tocava
ao Supremo Tribunal de Justiça, organizado pela Lei 18.09.1828. A revista
destinava-se a manter a integridade formal da lei ferida por julgados
contaminados por nulidade manifesta ou injusta notória.
Nesse ponto, uma vez requerida a revista ao Supremo Tribunal de
Justiça, este não julgava o mérito da causa. Consistia o exame apenas ao
juízo de admissibilidade da revista: em caso negativo, a sentença recorrida
passava a ser coisa soberanamente julgada e, caso afirmativo, os autos eram
enviados à relação, cabendo a esta o julgamento definitivo da causa (PINTO,
2006, p. 192).
O recurso de revista foi abolido pela extinção do Supremo Tribunal
de Justiça, quando houve a instalação do Supremo Tribunal Federal, criado
pelo decreto do governo provisório nº 848/1890.
Do Decreto nº 848/1890, o recurso extraordinário migrou para a
Constituição Federal de 1891, como remédio de competência do Supremo
Tribunal Federal, contra “sentenças das Justiças dos Estados”, sendo
aplicado em duas hipóteses: a) quando questionar sobre a validade ou
aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for
contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos
dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do
tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.
Este dispositivo consagrou a supremacia da Constituição, visando
manter a legalidade nacional, na sua lei suprema, nas suas leis ordinárias, ou
nas suas convenções internacionais contra os erros ou abusos dos Estados,
na sua legislatura, na sua administração e na justiça (BARBOSA apud ASSIS,
2007).
Nasceu e desenvolveu-se o recurso para o STF, visando garantir a
supremacia da Constituição, sua aplicação uniforme e a supremacia do direito
federal com a característica constante da fundamentação vinculada.
A repercussão geral....
// 105
A emenda constitucional de 03/09/1926 ampliou as hipóteses de
cabimento do recurso extraordinário, abrangendo a hipótese de quando se
questionar sobre a vigência ou a validade das leis federais em face da
Constituição e a decisão do Tribunal do Estado lhes negar aplicação.
O instituto do recurso extraordinário evoluiu. A Constituição Federal
de 1967 contemplou quatro hipóteses de cabimento do recurso
extraordinário, vertido das causas decidias em única ou última instância por
outros tribunais ou juízes, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo
da Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b) declarar a
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de
governo local contestado em face de lei federal; d) der à lei interpretação
divergente da que lhe haja dado outro tribunal ou o próprio Supremo Tribunal
Federal.
A evolução do recurso extraordinário alcançou a Constituição Federal
de 1.988, ficando limitado apenas às questões constitucionais, sendo o
remédio que se situa no ápice do controle difuso de constitucionalidade. Para
julgar as questões federais, desafogando o STF, a Constituição criou o
Superior Tribunal de Justiça e o recurso especial, com hipóteses de
cabimento específicas.
A partir da 1988, o âmbito do recurso extraordinário se restringiu ao
vetor do controle difuso de constitucionalidade. Funciona como privilegiado
instrumento para controlar a densa atividade desenvolvida pelos demais
órgãos judiciários. Todavia, o recurso extraordinário continuou a ser apontado
como fator predominante da crise do STF, cujo último remédio consiste na
repercussão geral, que foi importada da América do Norte (ASSIS, 2007, p.
678).
Isto posto, denomina-se recurso extraordinário o gênero do qual são
espécies o recurso extraordinário para o STF (art. 102, III, CF/88) e o recurso
especial para o STJ (art. 105, III, CF/88). O recurso especial é fruto da divisão
das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário para o STF (antes da
CF/88), que servia como meio de impugnação da decisão judicial por violação
à Constituição e à legislação federal (DIDIER, 2008, p. 249).
Com a criação do Superior Tribunal de Justiça, as hipóteses de
cabimento do antigo recurso extraordinário foram repartidas entre o STF e o
STJ. Assim, podemos dizer que o recurso especial nada mais é do que um
recurso extraordinário cuja competência de julgamento é do Superior Tribunal
de Justiça.
6.3 HIPÓTESES DE CABIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O cabimento do recurso extraordinário se encontra fixado no art. 102,
III, da Constituição Federal de 1.988, com redação alterada pela emenda
constitucional n. 45, de 08/12/2004. As situações que autorizam a
interposição do recurso decorrem de decisão maculada de vício que:
contrarie dispositivo da Constituição; declare a inconstitucionalidade de
106 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
tratado ou lei federal; julgue válida lei ou ato de governo local em face da
Constituição; ou julgue válida lei local contestada em face de lei federal.
A estas hipóteses explícitas se acrescentam quatro condições gerais:
a) o esgotamento das vias recursais ordinárias; b) o prequestionamento da
questão constitucional no ato impugnado; c) a ofensa direta ao texto
constitucional e; d) a repercussão geral da questão constitucional discutida
no recurso.
O requisito da repercussão geral está expressamente previsto no art.
102, § 3º, da Constituição Federal de 1.988, cuja redação também é
proveniente na emenda constitucional n. 45/04. Prevê a norma que cabe ao
recorrente demonstrar a existência de repercussão geral das questões
constitucionais, sendo que o Tribunal somente poderá deixar de conhecer o
recurso se houver manifestação de dois terços de seus membros.
O dispositivo representa mais uma tentativa de solucionar a crise do
Supremo Tribunal Federal, identificada pelo elevado número de recursos
interpostos, congestionando o andamento dos processos na Corte Suprema.
6.3.1 Esgotamento das vias recursais ordinárias
Para sua utilização, tanto o recurso extraordinário como o recurso
especial pressupõem um julgado contra o qual já foram esgotadas as
possibilidades de impugnação nas várias instâncias ordinárias ou na instância
única. Não podem ser exercitados per saltun, deixando in albis alguma
possibilidade de impugnação (DIDIER, 2008, p. 260).
Significa dizer que enquanto houver recurso na instância de origem
será porque não houve decisão de última ou única instância. A corte superior
somente deve se manifestar sobre questão que tenha totalmente sido
resolvida na instância ordinária.
Tal exigência também está explicitada no enunciado nº 207 da
súmula do STJ, assim determinada: “É inadmissível recurso especial quando
cabíveis embargos infringentes contra acórdão proferido no tribunal de
origem”.
No mesmo sentido, a súmula 281 do STF, assim assevera: “É
inadmissível o recurso extraordinário quando couber, na Justiça de origem,
recurso ordinário da decisão impugnada”.
Desse modo, verifica-se necessário o esgotamento de todos os
recursos ordinários antes do cabimento dos recursos extraordinários.
6.3.2 O prequestionamento
O prequestionamento é exigência antiga para a admissibilidade dos
recursos extraordinários, segundo o qual se impõe que a questão
federal/constitucional objeto do recurso excepcional tenha sido
suscitada/analisada na instância inferior (DIDIER, 2008, p. 254).
Segundo ensina José Miguel Garcia Medina (1998, p. 159-166), é
possível vislumbrar três concepções distintas acerca do prequestionamento.
A repercussão geral....
// 107
Primeiramente, tem-se o prequestionamento como manifestação do tribunal
recorrido acerca de determinada questão jurídica federal ou constitucional. A
segunda vê o prequestionamento como debate anterior à decisão recorrida.
Para essa concepção, prequestionar é ato da parte, independente de
manifestação do tribunal.
Por fim, a terceira concepção é a posição eclética, em que se somam
as duas tendências, sendo o prequestionamento o prévio debate acerca da
questão federal, seguido de manifestação expressa do Tribunal a respeito.
Preenche-se o prequestionamento com o exame, na decisão
recorrida, da questão federal ou constitucional que se quer ver analisada pelo
STF ou STJ. Ocorrida essa situação o recurso extraordinário eventualmente
interposto merece ser examinado (NERY JR.; WANBIER, 2006, p. 356).
6.3.3 Ofensa direta ao texto constitucional
A ofensa direta ao texto constitucional acontece quando é o próprio
texto constitucional que resultou ferido, sem lei federal intermediária que o
regulamente. O motivo dessa restrição repousa em dois fundamentos: a) ao
STF só incumbe o controle das questões constitucionais, sendo que as
questões federais irão para o STJ; b) os tipos do art. 102, III, a e c, mostramse rígidos e não comportam interpretação elástica para incluir a questão
federal.
Esse entendimento acabou expresso na Súmula nº 636 do STF,
assim redigida: “Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao
princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha
rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão
recorrida”.
6.4 A REPERCUSSÃO GERAL
O instituto da repercussão é pressuposto recursal de admissibilidade
específico, ou seja, determinado recurso extraordinário somente poderá ser
analisado em seu mérito se a matéria nele contida apresentar o que se deve
entender como dotada de repercussão geral. Ausente a repercussão geral,
não há como se ter qualquer incursão no mérito do recurso (GOMES JR;
NERY JR, 2006, p. 281).
O recorrente, além de ter de fundamentar o seu recurso em uma das
hipóteses do art. 102, III, da CF/88, terá que demonstrar o preenchimento
desse novo requisito. O § 3º do art. 102 da CF/88 prescreve o ônus do
recorrente de demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais
discutidas no caso a fim de que o tribunal examine a admissão do recurso,
somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos seus
membros.
A Lei nº 11.418/2006 confirmou o entendimento de que se trata de
ônus do recorrente a demonstração da existência de repercussão geral.
Estabeleceu no art. 543-A, § 2º, Código de Processo Civil que cabe ao
108 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
recorrente demonstrar a existência da repercussão geral, em preliminar de
recurso, para a apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal.
O quorum qualificado é para considerar que a questão não tem
repercussão geral. Se for interposto o recurso extraordinário e este contiver
um item ou tópico em que se demonstre (se afirme) a repercussão geral,
passa, então, a haver uma presunção: presume-se que há repercussão geral,
somente cabendo ao plenário do STF (por 2/3 de seus membros) deixar de
conhecer do recurso extraordinário por falta de repercussão geral (DIDIER,
2008, p. 313).
A argumentação referente a repercussão geral deverá ser
apresentada em capítulo separado do recurso extraordinário, mas jamais em
peça autônoma, sob pena de caracterizar-se a preclusão consumativa quanto
às demais alegações realizadas posteriormente, com o não conhecimento do
recurso.
Somente o STF poderá dizer que não há repercussão geral, não
podendo o Presidente do tribunal local fazer a análise. Deve o recorrente, em
suas razões, incluir um item ou tópico tratando da repercussão geral. Se nas
razões do recurso não houver demonstração da repercussão geral, o mesmo
não será cabível, podendo não ser admitido, inclusive pelo Presidente do
Tribunal local.
Nesta ocasião, o Presidente do Tribunal não estará dizendo que não
há repercussão, mas apenas observando o descumprimento de um requisito
de admissibilidade quanto à regularidade formal.
É possível que a turma do STF conheça do recurso por reputar ser
de repercussão geral a questão discutida, sem necessidade de remeter os
autos ao plenário, desde que haja no mínimo quatro votos a favor da
repercussão. Sendo onze ministros, e oito é o mínimo de votos para negar a
existência de repercussão geral, é razoável dispensar a remessa ao plenário
se quatro ministros já admitissem o recurso extraordinário (DIDIER, 2008, p.
314).
6.4.1 O que se entende por repercussão geral
Repercussão é o ato de repercutir, ou seja, produzir o efeito várias
vezes, ligando-se a uma noção de reprodução dos atos. A repercussão geral
é atributo de um ato quando seja relevante.
Será relevante a matéria de direito cuja decisão puder apresentar
repercussão social ou que envolva discussão de norma de ordem pública, ou
ainda, quando atinente à interpretação e aplicação de dispositivos básicos do
direito.
Haverá repercussão quando os reflexos da decisão a ser prolatada
não se limitarem apenas aos litigantes, mas também à coletividade.
Fredie Didier (2006, p. 115) vislumbra alguns parâmetros para a
definição do que seja repercussão geral, embora a delimitação do conceito
venha a ser feita por lei federal: i) questões constitucionais que sirvam de
fundamento a demandas múltiplas, como aquelas relacionadas a questões
A repercussão geral....
// 109
previdenciárias ou tributárias, em que diversos demandantes fazem pedidos
semelhantes, baseados na mesma tese jurídica; ii) questões que, em razão
da sua magnitude constitucional, devem ser examinadas pelo STF em
controle difuso da constitucionalidade, como aquelas que dizem respeito à
correta interpretação/aplicação dos direitos fundamentais, que traduzem um
conjunto de valores básicos que servem de esteio a toda ordem jurídica.
Luis Manoel Gomes (2006, p. 284), sem pretensão de esgotar o tema,
expõe algumas situações mais detalhadas para explicar a questão. Para ele,
haverá repercussão geral sempre que houver:
a) reflexos econômicos: quando a decisão possuir potencial de criar
um precedente, outorgando um direito que pode ser reivindicado por um
número considerável de pessoas.
b) relevante interesse social: que tem uma vinculação ao conceito de
interesse público em seu sentido lato, ligado a uma noção de “bem comum”.
c) reflexos políticos: nas hipóteses de decisão que altere a política
econômica ou alguma diretriz governamental de qualquer das esferas de
governo (municipal, estadual ou federal) ou que deixe de aplicar tratado
internacional.
d) reflexos sociais: existirão quando a decisão deferir um direito ou
indeferi-lo e essa mesma decisão vier a alterar a situação de fato de várias
pessoas. Nas ações coletivas, a regra geral é que sempre, em princípio,
haverá repercussão geral a justificar o acesso ao STF, considerando a
amplitude da decisão, claro, se a questão possui natureza constitucional.
e) reflexos jurídicos: haverá repercussão quando a decisão atacada
no recurso extraordinário estiver em desconformidade com o que já decidido
pelo STF (jurisprudência dominante ou sumulada). Se o papel do STF é
uniformizar a interpretação da Constituição, decisões contrárias ao seu
entendimento não podem ser mantidas. Porém, estando a decisão de
segundo grau em conformidade com a jurisprudência, em princípio, não
haverá repercussão.
Dever ser considerado juridicamente relevante também quando a
interpretação adotada pela decisão recorrida for aberrante ou absurda, por
exemplo, quando evidentemente contrária ao texto constitucional.
Medina, Arruda Alvim e Wambier (2005, p. 105) propõem a seguinte
sistematização dos critérios para a aferição da repercussão geral:
i) repercussão geral jurídica: a definição da noção de um instituto
básico do nosso direito, de molde a que aquela decisão, se subsistisse,
pudesse significar perigoso e relevante precedente;
ii) repercussão geral política: quando de uma causa pudesse emergir
decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou
organismos internacionais;
iii) repercussão geral social: quando se discutissem problemas
relacionados à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do MP para a
propositura de certas ações;
110 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
iv) repercussão geral econômica: quando se discutissem, por
exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços
públicos essenciais.
Importante ressaltar que uma divergência jurisprudencial sobre um
tema constitucional, simplesmente, não é fator para se reconhecer a
repercussão geral. O ponto central é que a decisão a ser prolatada seja
paradigmática e repercuta além das partes, alçando um efeito além daquela
causa.
6.5 NOTAS AFINS SOBRE A REPERCUSSÃO GERAL
6.5.1 Arguição de relevância
Antes da instituição da repercussão geral como requisito de
admissibilidade do recurso extraordinário existia o requisito da arguição de
relevância da questão afirmada para o seu conhecimento em sede
extraordinária. Não obstante tenham a mesma função de “filtragem recursal”,
a arguição de relevância e a repercussão geral não se confundem.
Enquanto a arguição de relevância funcionava como um instituto que
visava a possibilitar o conhecimento deste ou daquele recurso extraordinário
que a priori era incabível, funcionando como um instituto com característica
central inclusiva, a repercussão geral visa a excluir do conhecimento do STF
controvérsias que assim não se caracterizem (MARINONI, 2007, p. 30).
Barbosa Moreira, citado por Luís Manoel Gomes (2006, p. 287) e por
Fredie Didier (2008, p. 317), ao comentar a arguição de relevância apontava
algumas situações nas quais esta relevância estaria caracterizada: a)
questão capaz de influir concretamente, de maneira generalizada, numa
grande quantidade de casos; b) decisão capaz de servir à unidade e
aperfeiçoamento do direito ou particularmente significativa para ser
desenvolvimento. Uma hipótese seria a delimitação da incidência de
dispositivo que regule o direito aos recursos, ou mesmo discussão sobre os
limites constitucionais das tutelas de urgência; c) decisão que tenha imediata
importância jurídica ou econômica para círculo mais amplo de pessoas ou
para mais extenso território da vida público; d) decisão que possa ter como
consequência a intervenção do legislador no sentido de corrigir o
ordenamento jurídico positivo ou de lhe suprir lacunas; e) decisão que seja
capaz de exercer influência capital sobre relações com Estados estrangeiros
ou com outros sujeitos do direito internacional público.
Os próprios conceitos de repercussão geral e arguição de relevância
não se confundem. Enquanto este está focado fundamentalmente no conceito
de “relevância”, aquele exige, para além da relevância da controvérsia
constitucional, a transcendência da questão debatida. Quanto ao formalismo
processual, a arguição de relevância era apreciada em sessão secreta,
dispensando fundamentação; já a análise da repercussão geral, ao contrário,
tem evidentemente de ser examinada em sessão pública, com julgamento
motivado (art. 93, IX, da CF/88). Nesta, o quorum deverá ser qualificado para
A repercussão geral....
// 111
a deliberação e a decisão sobre a existência ou não de repercussão geral é
irrecorrível (caput do art. 543-A do CPC).
6.5.2 Julgamento por amostragem e a importância do amicus curiae
A Lei nº 11.418/2006 instituiu um incidente de análise de repercussão
geral “por amostragem”. Sempre que houver multiplicidade de recursos com
fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será
processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal,
observado o disposto no art. 543-B do CPC. Caberá ao Tribunal de origem
selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e
encaminhá-los ao tribunal constitucional, sobrestando os demais até o
pronunciamento definitivo da Corte.
Nesse ponto, vale frisar que a análise dos recursos com a escolha e
remessa ao STF tem de ser cuidadosa, a fim de que se selecione um ou mais
recursos que representem adequadamente a controvérsia. Registre-se que
inexiste direito da parte à escolha de seu recurso para remessa e aferição, a
partir dele, da existência ou da inexistência de repercussão geral.
Segundo Fredie Didier (2008, p. 319), a mais importante inovação
está no § 2º do art. 543-B, do CPC, que prevê que caso seja negada a
existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão
automaticamente não admitidos. O STF julgará um, ou alguns, recurso(s)
extraordinário(s), que envolva(m) a mesma questão de direito, ou seja, a ratio
decidendi. Se negar a existência da repercussão geral, todos os demais, que
estavam sobrestados reputar-se-ão não conhecidos.
Por esse motivo torna-se indispensável a intervenção do amicus
curiae no procedimento de análise da repercussão geral, de modo a que
todos os interessados na solução desta questão possam se manifestar.
É perfeitamente conveniente e necessária a participação de terceiros
a fim de que se dê um amplo debate a respeito da existência ou não da
relevância da questão debatida. Cuida-se aqui da possibilidade da
intervenção de amicus curiae na fase da apreciação do recurso extraordinário
perante o STF, tal como se dá igualmente em sede de controle concentrado.
Uma vez admitida a participação, subscrita por advogado, poderá
ofertar razões por escrito a fim de convencer o STF da existência da
repercussão geral a partir do caso concreto. Importante frisar que a
participação de terceiros pode orientar-se tanto no sentido da admissão como
no da inadmissão do recurso extraordinário relativamente à repercussão geral
da controvérsia constitucional ali debatida (MARINONI, 2007, p. 40).
6.5.3 O recurso extraordinário utilizado como controle difuso e abstrato
da constitucionalidade.
A emenda constitucional n. 45/2004 criou a súmula vinculante em
matéria constitucional e consagrou a orientação do STF de conferir efeito
vinculante às decisões proferidas em causas de controle concentra de
112 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
constitucionalidade, seja em Ação Declaratória de Inconstitucionalidade ou
de Constitucionalidade (ADI ou ADC).
Didier Jr. (2008, p. 324) considera que um dos aspectos dessa
mudança é a transformação do recurso extraordinário, que, embora seja
instrumento de controle difuso de constitucionalidade, tem servido também
ao controle abstrato.
Normalmente o controle abstrato é feito de forma concentrada, no
STF, em ADI, ADC ou ADPF, e o controle concreto é realizado de forma
difusa. O controle difuso é sempre incidenter tantum, pois a
constitucionalidade é a questão incidente, sendo que a questão terá eficácia
inter partes. O controle concentrado, por sua vez, será feito principaliter
tantum, com eficácia erga omnes.
É possível, ainda, que o controle de constitucionalidade seja difuso,
mas abstrato, sendo que a análise da constitucionalidade é feita em tese,
embora por qualquer órgão judicial. Trata-se de um incidente processual de
natureza objetiva em que, semelhante ao que ocorre em ADI e ADC, é
possível a intervenção do amicus curiae.
O STF, ao examinar a constitucionalidade de uma lei em recurso
extraordinário, tem agido do modo acima descrito, sendo que a decisão sobre
a questão da inconstitucionalidade é tomada em abstrato, passando a
orientar o tribunal em situações semelhantes.
As decisões do STF em matéria de controle de constitucionalidade e
interpretação da Constituição podem ser divididas em quatro espécies, de
acordo com a sua força vinculante e a extensão subjetiva dos seus efeitos,
consoante registra Didier Jr. (2008, p. 329): a) proferidas por uma turma, em
controle difuso; b) proferidas pelo Pleno, em controle difuso, e ainda não
consagradas em enunciado de súmula vinculante; c) posicionamentos já
consagrados em súmula vinculante; d) decisões em controle concentrado de
constitucionalidade.
Se houver clara identificação da ratio decidendi utilizada pelo STF
para o julgamento do mérito da questão a ele apresentada, haverá vinculação
jurídica, em sentido vertical, dos Tribunais de origem à decisão do Supremo.
O efeito vinculante das decisões do STF, no exercício de jurisdição
constitucional, é fenômeno contemporâneo ao enriquecimento do sistema
brasileiro de controle da constitucionalidade, com o notório ganho de
importância do controle concentrado e abstrato.
6.5.4 Efeito regressivo do recurso e a possibilidade do juízo de
retratação
Tendo sido reconhecida a repercussão geral da questão debatida e
julgado o mérito recursal, os recursos sobrestados poderão ser apreciados
imediatamente pelo Tribunal de origem, pelas Turmas de Uniformização ou
pelas Turmas Recursais, consoante prevê a regra do art. 543-B, § 3º, do CPC,
acrescentado pela Lei nº 11.418/06.
A repercussão geral....
// 113
Foi conferido ao recurso extraordinário um efeito regressivo, mas com
perfil dogmático um pouco diferente daquele usualmente utilizado na
apelação ou no agravo de instrumento, que permitem o juízo de retratação
logo após a interposição do recurso, consoante ensina Didier Jr.
Permite-se o juízo de retratação do órgão a quo, nesses casos, após
a decisão do STF sobre a questão de direito que corresponde à ratio
decidendi da decisão recorrida, no julgamento do recurso que subiu como
amostra. A permissão de retratação justifica-se, pois a decisão do STF, em
sentido diverso daquela proposta pelo tribunal recorrido, foi tomada em
abstrato, de modo a resolver o problema em tese, conforme visto.
Os Tribunais poderão retratar-se de suas decisões, adequando-se à
orientação firmada pelo STF, sendo-lhes facultado, ainda, declará-los
prejudicados, porque manejados em sentido contrário à decisão tomada pelo
STF. Trata-se de verdadeira negativa de provimento ao recurso (MARINONI;
MITIDIERO, 2007, p. 61).
6.6 DIREITO INTERTEMPORAL
O art. 4º da Lei n. 11.418/06 determina que a exigibilidade da
demonstração da repercussão geral da questão debatida nos recursos
interpostos a partir do primeiro dia de sua vigência. Anteriormente, porém,
não se poderia exigir a demonstração da relevância e transcendência de
determinada controvérsia constitucional para a admissão de recurso
extraordinário.
O critério utilizado pela legislação é o do momento de interposição do
recurso: se interposto antes da vigência da lei, não se lhe exige a
demonstração de repercussão geral; sendo posterior, exige-se lhe. Nesse
sentido ensina Marinoni (2007, p. 73).
No momento em que tem início o prazo recursal, adquire-se o direito
à observância das normas processuais aí vigentes quanto aos requisitos de
admissibilidade do recurso. O art. 4º da Lei 11.418/06 pretende que o
requisito da repercussão geral seja exigível de recursos interpostos depois
de sua vigência. Ao fazê-lo, porém, retroagiu, buscando disciplinar situações
pendentes anteriores à sua vigência.
Conforme observa Marinoni, o art. 4º da Lei 11.418/06 fere a garantia
constitucional da irretroatividade das leis, porquanto desrespeita o direito
processual adquirido ao conhecimento e ao julgamento do recurso
extraordinário de acordo com a lei vigente ao tempo do termo inicial do prazo
para sua interposição. Logo, ao contrário do que pretende impor a legislação,
a demonstração da repercussão geral da questão levantada em recurso
extraordinário somente poderá ser exigida dos recursos cujo prazo para
interposição teve início após a sua vigência. Do contrário, haverá evidente
afronta à Constituição.
Esse tema foi analisado pelo STJ, em recurso especial, no qual se
alegava a violação do direito adquirido sob a ótica processual, em caso
114 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
semelhante (REsp n. 642.838/SP). Na ocasião, o Min. Teori Albino Zavaschi
defendeu que
[...] o direito intertemporal, em matéria de processo, está submetido
à regra básica segundo a qual a lei nova tem aplicação imediata, alcançando
os processos em curso, mas sem prejudicar direitos processuais já
adquiridos. É regra que se aplica, não apenas em relação aos recursos, mas
em relação a direito originário de qualquer outro ato processual, inclusive,
portanto, ao que decorre, para a Fazenda Pública, do reexame obrigatório
das sentenças (sem destaque no original).
Luiz Manoel Gomes Junior (2006, p. 300) também tem entendimento
no sentido de que quanto ao recurso extraordinário já interposto, admitido ou
não, é impossível a exigência da presença da repercussão geral, sob pena
de violar um direito adquirido processual do litigante, vedando-lhe o acesso à
tutela recursal, inclusive pela necessidade inoportuna de aditamento das
razões e contrarrazões.
6.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema do acesso à justiça afeta a todos os jurisdicionados e
também os poderes do Estado, impondo a necessidade de prestações
positivas para a efetividade do direito. Trata-se de um direito reconhecido no
texto da Constituição Federal de 1988 que desafia todos os setores na busca
por mecanismo que permita um alcance melhor ou mais rápido para a solução
dos conflitos.
Nesse ponto, o tempo razoável de duração do processo dificilmente
é concretizado pelo Judiciário, que se vê abarrotado de processos
empilhados nos escaninhos à espera de uma solução. Nota-se assim a
extrema necessidade de se criar mecanismos para aperfeiçoamento do
sistema processual, que vise dar maior celeridade para a solução final da
demanda. Não por menos, uma das formas seria a redução do número de
recursos interpostos ou a redução em seu tempo de tramitação.
O recurso é um remédio voluntário, previsto em lei, para, no mesmo
processo, reformar, invalidar, integrar ou esclarecer uma decisão judicial. É
uma nova demanda, mas que não dá origem a um processo novo.
O recurso extraordinário possui fundamentação vinculada, sendo
cabível apenas quando houver afronta à Constituição Federal. É o principal
instrumento do controle difuso da constitucionalidade. A decisão sobre o
recurso servirá de base para as demais decisões sobre o mesmo tema.
Para sua interposição é necessário que se tenham cumpridos alguns
requisitos, quais sejam, o esgotamento das vias recursais ordinárias, a
existência do prequestionamento sobre a matéria objeto do recurso, a
ocorrência de ofensa direta ao texto constitucional e a demonstração da
repercussão geral da questão suscitada.
A repercussão geral....
// 115
A repercussão geral deverá ser demonstrada no corpo do recurso, de
forma clara, e se possível em capítulo individual. Deverá ser demonstrado
que os efeitos da decisão poderão ir além do processo, poderão atingir uma
quantidade considerável de casos ou pessoas.
Podem ser interpretadas como de repercussão geral aquelas
questões de ordem pública e que tenham grandes reflexos jurídicos, políticos,
sociais ou econômicos.
Nos recursos interpostos sempre haverá uma presunção de
repercussão geral, podendo esta ser rejeitada apenas pelo voto de 2/3 do
quórum do Pleno. Significa dizer que será rejeitada a repercussão apenas se
houver voto contrário de oito Ministros.
Admitida a repercussão em um ou mais recursos, todos os demais
interpostos com a mesma fundamentação, ou baseados na mesma ratio
decidendi, ficarão sobrestados aguardando a decisão dos primeiros. Haverá
o chamado julgamento por amostragem. Sendo negado provimento ao
recurso, os demais que estavam sobrestados serão automaticamente
considerados como não admitidos.
Verifica-se que nesse novo sistema facilmente o julgamento de um
recurso terá efeitos para além das partes do litígio, terá efeitos erga omnes.
Por isso, se intensifica a necessidade de participação de terceiros no
processo, como amicus curiae, visando auxiliar os julgadores em sua
decisão, seja para o conhecimento ou não do recurso.
Com efeito, o mecanismo de repercussão geral representa um
grande avanço no sistema recursal brasileiro, que permite se fazer uma
análise única da questão, com reflexos em várias outras demandas, tornando
desnecessária a análise processo a processo. Diante disto, não há como não
se reconhecer os benefícios na redução do tempo de tramitação processual,
o que, sem dúvida, representa uma das formas de dar ao cidadão uma
satisfação mais rápida para seu conflito, um melhor acesso à justiça.
6.8 REFERÊNCIAS
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Tribunais, 2007.
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>.
Acesso em: 19 set. 2015.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao.htm>. Acesso em: 19 set. 2015.
______. Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926. Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anteri
or1988/emc%20de%203.9.26.htm>. Acesso em: 19 set. 2015.
116 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen
Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
CAPPELLETTI, Priscila L. Q. LAISER, Maria G. de A. O entendimento
contemporâneo acerca do princípio do acesso à justiça: uma análise a
partir da realidade brasileira.In: Revista Jurídica Cesumar. Maringá,
Vol. 15, n. 1, p. 101-128, jan/jun. 2015.
CORTES, Osmar Mendes Paixão. Recurso extraordinário: origem e
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2006.
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LIMA, José Edivaldo Albuquerque de. Recursos ordinários, extraordinário
e especial. 3. Ed. São Paulo: Mundo Jurídico, 2008.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso
especial. vol. 3. São Paulo: RT, 2007.
MARINONI, Luis Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no
recurso extraordinário. São Paulo: RT, 2007.
MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos
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______ . WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues.
Breves comentários à nova sistemática processual civil. 3. ed. São
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MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO,
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MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação
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NERY JR. Nelson; WAMBIER, Teresa A. Alvim (Coords.). Aspectos
polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São
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RIBEIRO, Antonio Campos; BARBOSA, Ivone Pereira Pina; PINTO, Adriano
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recursos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2006.
THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2006.
= VII =
ADMISSIBILIDADE DA PROVA ILÍCITA PARA A TUTELA DOS DIREITOS
DA PERSONALIDADE
Ana Luísa Moreli Pangoni*
Milaine Akahoshi Novaes**
7.1 INTRODUÇÃO
Pessoa é uma palavra de origem latina, persona, que significa ser ou
criatura humana, um indivíduo. Quando os indivíduos começaram a viver
juntos, a se relacionar, nota-se o surgimento da civilização, e também do
direito. O desenrolar do direito se deu juntamente com o desenvolvimento da
sociedade. Inicialmente num sentido coletivo, e posteriormente, com o auxílio
do cristianismo, sobreveio o reconhecimento da pessoa, da personalidade e
da necessidade de proteção. Assim, os direitos da personalidade são os
reconhecidos ao homem, ao ser humano, juntamente com a Dignidade.
Seguindo uma tendência mundial de proteção do homem, a
Constituição Federal do Brasil de 1988 trouxe um rol de direitos fundamentais
que, alguns são também direitos da personalidade, inerentes à pessoa, ao
ser humano, além de ter como fundamento, dentre outros, a dignidade da
pessoa humana. O Código Civil, tanto o de 2002 quanto o de 1916,
apresentaram um rol de proteção de direitos da personalidade, mas que não
excluem outros ali não expressamente escritos.
No anseio de identificar e garantir a efetividade dos direitos da
pessoa, o presente trabalho tem por escopo apresentar uma das formas de
tutelar o direito, fazendo uso da prova ilícita.
O primeiro capítulo abordará uma perspectiva histórica do surgimento
do direito e dos direitos da personalidade, da era das codificações até os dias
atuais. Serão expostos conceitos e classificações de alguns renomados
doutrinadores para construirmos um conveniente para este estudo.
Após, duas grandes correntes doutrinárias serão abordadas, uma
delas defendendo a existência de um rol limitado e expressamente positivado,
e outro argumenta pela existência de uma cláusula geral de garantia,
*
Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR; Especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela Pontifícia Universidade
Católica-PR; Formada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR; Advogada em
Maringá-PR. Endereço eletrônico: [email protected]
**
Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido
Mendes (2006). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá(2004). Atualmente
é Oficial de Justiça Avaliador Federal da Tribunal Regional do Trabalho da 9 Região. Endereço
eletrônico: [email protected]
118 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
reforçada por cláusulas específicas de garantias especiais, mas que não
excluem a existência de outros direitos ali não mencionados. Esta pesquisa
patrocinará a segunda para advogar pela efetiva tutela dos direitos da
personalidade nos âmbitos administrativo e judicial.
Na terceira parte, serão tratados os requisitos para a defesa de um
direito, no âmbito judicial, em especial no que tange à sua comprovação, a
prova como elemento de convencimento do juiz. Será patrocinada a ideia de
comunicação no processo para se chegar a um consenso. Serão levantadas
algumas discussões acerca da ilicitude da prova e dos diversos termos
utilizados para caracterizá-la.
Por fim, será abordado o uso da prova ilícita, principalmente no
âmbito do processo civil, para a efetiva garantia de um direito. Será
evidenciado o conceito do princípio da proporcionalidade, seus elementos, a
necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito e sua
aplicação para justificar a utilização da prova ilícita.
O tema se mostra de relevante interesse para a sociedade e para os
pensadores e os operadores do Direito, que buscam a maior eficácia na
garantia dos direitos da personalidade dos indivíduos.
A pesquisa foi abordada pelo método dedutivo, fundamentando o uso
da prova ilícita para a garantia dos direitos da personalidade. Os
procedimentos histórico e funcional foram usados para descrever o uso da
prova ilícita e de sua função. A investigação foi feita na forma de revisão
bibliográfica e documental.
7.2 NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE DIREITOS DA PERSONALIDADE
O Direito surge junto da civilização, da necessidade de sobrevivência
em conjunto, sob a forma de costumes, para regulamentar a vida em
sociedade, trazer o mínimo de ordem à polis, regular o convívio e fazer reinar
a harmonia entre os homens. Como bem observa Flávia Lages de Castro
(2007, p. 2), o direito não existe sem o homem: “Entende-se, em sentido
comum, o Direito como sendo o conjunto de normas para a aplicação da
justiça e a minimização de conflitos de uma dada sociedade. Estas normas,
estas regras, esta sociedade não são possíveis sem o Homem, porque é o
Ser Humano quem faz o Direito e é para ele que o Direito é feito”.
O Direito surge antes mesmo da escrita, combinado com regras
morais, religiosas, sobre casamento, propriedade, sucessão. Desde essa
época, o Direito tem o escopo de fazer Justiça, dar a cada um o que é seu.
Os Direitos da Personalidade, por sua vez, tem surgimento posterior.
Na Grécia Antiga, a pessoa dependia de sua posição social para ser
possuidora de direitos, e a dificuldade de se individualizar a pessoa se dá
diante da “[...] imperfeição perante a unidade e totalidade do ser”
(GONÇALVES, 2008, p. 22). Ainda nessa época, a “[...] compreensão de que
o homem é o destinatário primeiro final da ordem jurídica conferiu um novo
sentido à personalidade e seus inerentes direitos” (CANTALI, 2009, p. 29).
Admissibilidade da prova ilícita...
// 119
Em Roma, no período antigo, a Lei das XII Tábuas regulamentava a
esfera jurídica do cidadão individual. O período clássico promove a descrição
do desenvolvimento da teoria jurídica da personalidade, em que “[...]
protegiam-se as pessoas contra qualquer atitude injuriosa, abrangendo
qualquer atentado à pessoa física ou moral do cidadão” (TEPEDINO, 1999,
p. 24). Na Idade Média, com o advento do cristianismo, a pessoa passa a ter
importância, integrando uma categoria ontológica, um sujeito de valores, já
que o homem passa a ser a visto como pessoa feita à imagem do criador.
Posterior a isso, as ideias humanistas e renascentistas conduziram a
construção de um direito geral de personalidade que, como esclarece
Gonçalves, além de compreender o nome, a propriedade, a conservação, “[...]
compreendia toda a manifestação da individualidade humana, ainda que não
tipicamente considerada e só casuisticamente averiguada” (2008, p. 78).
Existiam meios mínimos de garantia da dignidade humana, pois haviam
proibições de mutilações, suicídio, tortura.
Os trabalhos da Escola do Direito Natural, no século XVII,
contribuíram para intensificar os direitos de personalidade, e foram utilizados
para a fundamentação do moderno conceito, desenvolvido no século XX
(SZANIAVSKI, 2005, p. 39). A ascensão da burguesia e os conflitos com a
nobreza, impulsionaram o desenvolvimento da liberdade para expansão do
capitalismo, do Direito Privado, e contribuíram para o surgimento da era da
codificação.
Como explica Fernanda Cantali (2009, p. 42-43), os precursores da
Escola Histórica do Direito concebiam o direito de personalidade como a
titularidade de direitos e obrigações. Era visto como uma relação patrimonial
e a pessoa podia deles dispor. Esse conceito foi distorcido por uma teoria
negativista, que não reconhecia a existência dos direitos de personalidade. A
evolução dessa concepção, no Estado de Direito, contribuiu para a
formulação do caráter extrapatrimonial dos direitos da personalidade.
Entretanto, o movimento positivista novamente desvirtuou o conceito
de direito geral quando atribuiu ao Estado a capacidade de dizer o direito
através da lei, o que levou ao fracionamento dos direitos da personalidade, e
fez com que os direitos não expressamente positivados fossem negados aos
indivíduos. É censurável a utilização desse sistema pela doutrina nazista para
o extermínio dos judeus.
Registre-se que a era pós-guerra trouxe às Constituições a
valorização do indivíduo e sua proteção como ser humano dotado de
dignidade, primeiro e principal destinatário da ordem jurídica, o que retirou o
caráter tão somente privado da tutela de tais direitos e os trouxe à baila dos
direitos constitucionais, públicos. Essa tendência mundial é acertada,
conforme sustenta Elimar Szaniawski (2005, p. 62), pois
Uma vez que a estreita visão privatística dos direitos de personalidade que
não estejam vinculados à categoria ampla de direitos do homem, se mostra
insuficiente para a tutela da personalidade. A ordem jurídica deve ser
entendida como um todo, onde, dentro de uma hierarquia de valores, tenha
um local primacial a noção de que o homem é pessoa dotada de inalienável
120 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
e inviolável dignidade. Somente a leitura da norma civil à luz da Constituição
e de seus princípios superiores é que revelará a noção de direito de
personalidade, a sua verdadeira dimensão.
A preocupação com a violação dos direitos do homem, sobretudo
após as guerras mundiais, emergiu da necessidade de lhes conferir ampla
proteção. A constitucionalização e a universalização desses direitos em
tratados intitulou-os “direitos fundamentais”, “direitos humanos”, “liberdades
públicas”, “liberdades fundamentais”, “direitos do homem”, “direitos subjetivos
públicos” (SARLET, 2015, p. 27). O Brasil também vivenciou esse contexto
de valorização da dignidade humana, do indivíduo, de homem, da pessoa,
dos sujeito de direitos, dos direitos fundamentais, que foram incorporados ao
corpo constitucional para conformar todo o sistema jurídico. Assim, a
consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento
constitucional de diversos países possibilitou o resgate do direito geral de
personalidade (CANTALI, 2009, p. 56).
Em alguns países, todavia, os direitos de personalidade foram
alocados no Código Civil, por considerarem de natureza privada. A doutrina,
tanto internacional quanto nacional, não é uníssona na conceituação e
classificação desses direitos, e consenso não parece estar perto.
Carlos Alberto Bittar (2003, p. 1) explica que se considera serem os
direitos da personalidade “[...] os reconhecidos ao homem, tomados em si
mesmo e em suas projeções na sociedade”. Também podem ser definidos
como “conjunto de bens que são próprios do indivíduo, que chegam a se
confundir com ele mesmo e constituem as manifestações da personalidade
do próprio sujeito” (BELTRÃO, 2005, p. 23).
Pontes de Miranda (1977, p. 37) os classificou em direito a vida,
integridade física, integridade psíquica, liberdade, verdade, honra, imagem,
igualdade, nome, intimidade e autoral. Orlando Gomes (2007, 153-154) os
dividiu em dois grandes grupos, relativos à integridade física e à integridade
moral. Bittar (2003, p. 17) e Limongi França (1983, p. 13) realizaram a
classificação tripartite, sendo que este nomeou as categorias em integridade
física, integridade intelectual e integridade moral, enquanto aquele distribuiu
os direitos em físicos, psíquicos e morais.
7.3 TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
As doutrinas atomísticas, ou pluralistas, sustentam a classificação e
especificação dos direitos da personalidade, conforme anteriormente
exposto. Elas defendem sua tipificação no ordenamento jurídico e a proteção
apenas daqueles ali delimitados. Adriano de Cupis (1961, p. 34) é o defensor
mais expressivo dessa corrente, e os individualiza em “a vida, a integridade
física, a honra, a liberdade, e outros”, defendendo que a proteção de tais
direitos se dá por estarem expressamente previstos no ordenamento jurídico,
excluindo a proteção dos não mencionados.
Admissibilidade da prova ilícita...
// 121
Em oposição às doutrinas tipificadoras, há uma doutrina generalista
que defende a existência de uma cláusula geral de proteção dos direitos, visto
que esta não os especifica, limita ou restringe. Essa corrente justifica que na
Constituição existe uma cláusula geral de proteção e direitos especiais
positivados, mas que não anulam a proteção dos não mencionados
(TEPEDINO, 1999, p. 49-50). Modernamente, esta é a mais aceita, mas
aquela ainda tem raízes muito fortes que não foram completamente
desconsideradas.
A corrente da teoria geral foi inicialmente desenvolvida na Alemanha.
Sua legislação civil previa a tutela de apenas alguns direitos ali delimitados.
Foi necessária a intervenção dos tribunais para a proteção de direitos não
mencionados na norma, cuja decisão foi fundamentada na previsão
constitucional da dignidade humana, que autorizou a intervenção nos casos
em que houvesse violação deste direito constitucional não escrito (LOBO,
2001, p. 79-97).
No Brasil, as contribuições doutrinárias iniciaram no âmbito de
proteção do direito autoral, buscando a tutela em seu aspecto moral e sobre
o direito à imagem, não olvidando a existência de outras leis esparsas, como
o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor,
as leis sobre doação de órgãos, reconhecimento da paternidade de filhos fora
do casamento, e o recente Marco Civil da Internet.
Observa-se, entretanto, que embora exista um número considerável
de leis protetoras dos direitos da personalidade no ordenamento brasileiro,
não são capazes de prever todas as possibilidades a se tutelar. Assim, a
Constituição Federal de 1988 consagrou o ser humano como principal
protegido pelo Estado, designou a dignidade da pessoa humana como
fundamento do Estado Democrático de Direito e pulverizou o texto com
princípios e normas de proteção dos direitos da pessoa. Nesse sentido nos
ensina o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira
Mendes (2012, p. 151), que “[...] não há dúvida de que, também entre nós, os
valores vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana assumem
peculiar relevo”.
Sendo assim, mesmo que não haja previsão específica é garantido a
toda e qualquer pessoa a defesa de sua dignidade humana, bem como a
utilização dos meios necessários para proteção, prevenção ou reparação de
um dano já ocorrido. A proteção dos direitos da personalidade no
ordenamento jurídico brasileiro se encontra nos campos constitucional, penal
e cível, e pode ser tutelada nas esferas administrativa, penal e cível.
Na área constitucional, os direitos são disciplinados como liberdades
públicas, recebem status fundamental, e fruem garantias específicas
previstas na lei maior, tendo como meios para efetivação dos direitos o
Habeas corpus, o Habeas data, os Mandados de segurança individual e
coletivo e o Mandado de injunção. É uma defesa da pessoa contra o Estado.
No âmbito penal, a tutela é repressiva e busca preservar atentados vindos de
outras pessoas, cujas ações são tipificadas como crimes contra a vida, a
saúde, a honra, a intimidade, o segredo e o intelecto. No plano cível, a
122 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
proteção se realiza no âmbito privado contra investidas de particulares e na
salvaguarda de seus mais íntimos interesses, dentro da liberdade e da
autonomia próprias de cada ser (BITTAR, 2003, p. 52-62).
A tutela pode ser feita de diferentes formas, como cessar a prática
lesiva, apreender materiais oriundos dessa prática, cominação de pena ao
agente causador, reparação dos danos morais e materiais, e a persecução
criminal do agente na esfera criminal, pois, como explica Elimar Szaniawski
(2005, P. 247) “[...] todo o indivíduo possui o direito de proteger-se contra
atentados dirigidos à sua personalidade”. O lesado pode, assim, escolher a
forma mais adequada de reação, desde que condizentes com seu interesse
e em consonância com a situação fática. Pode, também, cumulá-la nas
diferentes esferas, por exemplo, cível e penal.
No âmbito administrativo a tutela pode se efetivar quando houver
estruturação própria para tanto, o que nem sempre existe. Se não dispuser
de instrumentos específicos, ou se forem ineficientes, o autor pode optar por
recorrer ao judiciário para prevenir, interromper ou ser indenizado pela lesão.
Notadamente no âmbito cível é que o lesado dispõe de meios mais
efetivos para proteção dos direitos da personalidade. Nesse sentido, o Código
Civil arrola três modalidades de autodefesa excludentes de ilicitude, como a
legítima defesa, o exercício regular de direito reconhecido e o estado de
necessidade para impedir a lesão ao seu direito de personalidade antes de
solicitar a proteção pela via judicial.
Quando desta se socorrer, pode utilizar-se da tutela inibitória,
responsável por cessar o atentado atual e contínuo e remover os efeitos
danosos que se prolongam no tempo, da tutela preventiva, através das ações
típicas e atípicas, como as ações cautelares, das tutelas antecipadas
contempladas nos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil, que têm
por “[...] escopo assegurar o resultado prático dos processos de
conhecimento e de execução, através da ampliação dos poderes do juiz,
buscando a tutela específica da obrigação ou o resultado prático equivalente”
(SZANIAVSKI, 2005, p. 250-251), bem como das tutelas reparadoras, nos
casos em que o direito de personalidade já foi violado.
Dessa forma, para a efetiva tutela de um direito, o autor deve
demonstrá-lo, ou seja, provar a sua existência e garantia. No âmbito
processual, a prova é um dos temas fundamentais, pois grande parte do
conflito entre as partes está baseada em fatos que necessitam de
comprovação. Assim, para que sejam válidas nos processos, as provas
devem passar pelo crivo da licitude, visto que a Constituição Federal proíbe
a admissão de provas obtidas por meios ilícitos (artigo 5º, LVI), como será
discutido a seguir.
7.4 A PROVA DO FATO OU DO DIREITO
Uma definição superficial do que venha a ser direito material pode ser
entendida como um conjunto de normas que criam, regem e extinguem
relações jurídicas, diferenciando o que é lícito do ilícito, do que pode ser feito
Admissibilidade da prova ilícita...
// 123
e do proibido, destinada à solução de conflitos de interesses contrapostos.
No que tange ao direito processual, pode-se, de forma simplista, defini-lo
como instrumento para a veiculação da pretensão, meio de solução da lide,
o caminho percorrido pelo judiciário para dizer o direito às partes, ou o
sistema de normas que regulamenta o complexo mecanismo de aplicação do
direito material (GARCIA, 2009, p. 3). Nesse sentido, vale-se do processo a
pessoa que pretende exigir a tutela de seu direito no âmbito judicial
(WAMBIER, 2003, p. 408), e para socorrer-se da prestação jurisdicional, é
indispensável o cumprimento de algumas regras pré-estabelecidas.
O objetivo da jurisdição é a solução de conflitos com justiça
(LIEBMAN, 1985, p. 5), e para fazê-lo, as provas são o instrumento adequado
a levar ao magistrado o conhecimento dos fatos que envolvem a relação
jurídica objeto da atuação jurisdicional (WAMBIER, 2003, p. 431-432). Assim,
a cognição permite “[...] que se tenha conhecimento acerca das
peculiaridades do caso concreto, o que possibilita que o processo possa
adequadamente realizar o direito material” (GARCIA, 2009, p. 8) e, por
conseguinte, instituir a justiça.
Oportuno destacar que, para que as partes e a sociedade assintam
com a justiça da decisão, deve-se possibilitar-lhes um efetivo controle dessa
decisão, o que viabiliza eventual impugnação. Assim, a motivação das
decisões judiciais é princípio de valor fundamental, como defende Ferrajoli,
(Apud MENDES, 2009, p. 398):
A validade das sentenças resulta condicionada à verdade, ainda que relativa,
de seus argumentos. [...] Precisamente, a motivação permite a fundação e o
controle das decisões seja de direito, por violação da lei ou defeito de
interpretação ou subsunção, seja de fato, por defeito ou insuficiência de
provas ou por explicação inadequada no nexo entre convencimento e provas.
Nesse sentido, a prova tem significativa importância para que haja o
justo pronunciamento judicial. A demanda deve ser instruída para que o juiz
efetivamente conheça a controvérsia, analise as circunstâncias e aplique a
norma abstrata ao caso concreto, pois “[...] quanto mais abundantes e mais
seguros subsídios se puderem obter das provas, tanto menor a margem de
erro a que ficará sujeito o órgão judicial na hora de sentenciar” (MOREIRA,
1989, p. 122).
Destarte, a função das provas é, mais que comprovar uma
proposição, sobretudo, elemento de convencimento do Estado-juiz acerca
das proposições formuladas pelas partes. Assim sendo, prova é “[...] um
conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se
procura chegar à verdade quanto aos fatos relevantes para o julgamento”
(DINAMARCO, 2004, p. 43). Por diversas modalidades, o fato pode chegar
ao conhecimento do juiz e, a princípio, não haveria limitações ou restrições à
admissibilidade de quaisquer meios para a produção das provas, posto que
124 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
o processo deve ser conduzido pelo princípio da descoberta da verdade 1. Mas
não de forma absoluta, já que a verdade não é o único objetivo das provas,
posto que também são instrumento utilizado pelas partes para auxiliar na
formação da ratio decidendi do julgador diante do caso concreto (ASSIS;
MOLINARO, 2013, p. 2470), conforme anteriormente mencionado.
Nesse sentido, o Código de Processo Penal admite em seu artigo 155
a liberdade dos meios de prova. A norma correspondente no processo civil,
artigo 332, prescreve que todos os meios legais e os não especificados em
lei, desde que moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos
fatos em que se funda a ação ou a defesa. Embora o legislador tenha admitido
a livre produção de provas atípicas, excluiu os meios moralmente ilegítimos.
Entretanto, “[...] nem sempre é fácil identificar a imoralidade do meio
de prova pretendido, já que o próprio conceito de moral é variável no tempo
e no espaço” (LOPES, 2007, p. 98). Humberto Theodoro Júnior (1994, p. 9)
esclarece que vedar o uso de meios moralmente ilegítimos e de provas
obtidas por meios ilícitos seria o mesmo que exigir das partes uma conduta
ética e lícita na obtenção das provas e não a observância de regras
procedimentais para a produção dos elementos da lide.
Para Elimar Szaniavski (2005, p. 283), “[...] até hoje não se conseguiu
estabelecer um critério exato para distinguir e fixar os precisos limites que
separam o direito da moral, existindo diversos critérios para tal, todos, porém,
insatisfatórios”, já que são ciências diversas e não se confundem. Além disso,
sustenta que “[...] a regra jurídica em geral possui efeito coercitivo, ao
contrário das regras da moral, que absolutamente não são coercitivas”. Por
fim, indaga acerca da segurança jurídica da admissibilidade de uma prova
obtida por meio moralmente ilegítimo, tendo em vista que o critério de
averiguação é subjetivo. Para corroborar sua preocupação, cita Alcides
Mendonça de Lima, para quem o termo moralmente legítimos é inexato e de
difícil conceituação, já que “[...] o sentido muda conforme a época e, até, a
mentalidade, a formação e os princípios de cada juiz”.
Seguindo uma tendência do direito comparado, a Constituição
Federal determinou a inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito.
Embora, à época, o escopo era a ampla proteção dos direitos fundamentais2
no processo, o termo escolhido também não foi dos mais acertados, visto que
a terminologia utilizada nas leis é, de fato, imprecisa. O espanhol Jacobo
López Barja de Quiroga (1989, p. 82) aponta a utilização dos seguintes
vocábulos como se sinônimos fossem, sem qualquer distinção semântica,
prova proibida, ilegal, ilegalmente obtida, ilícita, ilicitamente obtida,
ilegitimamente admitida e proibições probatórias. Essa falta de caracterização
não diferencia o que seria uma prova contrária à norma de uma prova obtida
1
O artigo 339, do Código de Processo Civil dispõe que: Ninguém se exime do dever de colaborar
com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade.
2
É imperioso esclarecer que será utilizada a expressão “direitos fundamentais” também
querendo significar “direitos da personalidade”.
Admissibilidade da prova ilícita...
// 125
mediante violação da norma, tampouco diferencia uma norma que infrinja
norma material ou processual.
A doutrinadora Nilda Azenha (2003, p. 100) estabelece uma distinção
ao defender que “[...] a prova ilícita é aquela obtida ou colhida mediante a
violação de regras de direito material ou de natureza constitucional”,
enquanto “a ilegitimidade da prova diz respeito à violação de regra de caráter
processual, ocorrendo no momento de sua produção ou introdução no
processo”, e aquelas devem ser admitidas.
Os paranaenses Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Cruz Arenhart
(2009, p. 241) adotam uma interessante distinção entre a prova obtida com
violação do direito material da prova obtida com violação do direito
processual. As primeiras, violadoras de direito material, podem ser
exemplificadas pela obtenção de informações mediante espionagem,
gravação de conversa não autorizada, coação para que alguém faça uma
declaração por escrito, pose para uma fotografia, utilização não autorizada
de um diário íntimo. Nesses casos, fere-se os direitos à intimidade, à
privacidade, à imagem, à honra.
Além disso, uma prova pode ser obtida com violação de direito
material, mas ser lícita no campo processual, como uma testemunha que
revele informações obtidas por violação de sigilo; pode também ser obtida
sem violação de direito material, mas sim de direito processual, como a
realização de uma perícia sem oportunizar o contraditório; ou pode também
desrespeitar tanto o direito material como o processual (MARINONI;
ARENHART, 2009, p. 243).
Os autores defendem que as provas violadoras de um simples
procedimento probatório não contém um vício tão grave quanto as violadores
de direitos fundamentais processuais. Expõem a necessidade de se auferir a
importância da norma transgredida para a efetivação dos direitos
fundamentais. E concluem que “[...] uma prova que resulta de um
procedimento em que foi cometido um ilícito não é necessariamente ineficaz”
(MARINONI; ARENHART, 2009, p. 244).
Considerando, então, ser a prova o instrumento destinado a
convencer o juiz da veracidade dos fatos, cada parte, por visar à sua vitória
na causa, fará o possível para demonstrar o alegado.
Cumpre ressaltar que a Constituição Federal também prescreveu a
garantia do devido processo legal, que se revela uma das mais amplas e
relevantes garantias do direito constitucional, por seu caráter tanto processual
quanto material (MENDES, 2012, p. 636). Nesse sentido, é possível justificar
que tanto a inadmissibilidade quanto a admissibilidade da prova ilícita estão
contidas nos dois conteúdos do princípio mencionado. Quanto ao seu sentido
material (substancial), a inadmissibilidade pode ser ilustrada pela proibição
de violação aos direitos à intimidade, da imagem, do domicílio, da
correspondência, enquanto a admissibilidade pode ser deve ser defendida
justamente para a garantia da efetividade desses direitos. No que tange ao
sentido processual, a inadmissibilidade pode ser exemplificada pela
interceptação telefônica sem autorização judicial (MARINONI; ARENHART,
126 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
2009, p. 246), por exemplo, enquanto, por outro lado, pode ser admitida para
salvaguardar o direito à ampla defesa.
7.5 DA PROVA ILÍCITA
O inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal, que estabeleceu a
inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, tem validade tanto
para o processo civil, quanto para o penal e o administrativo. Mas essa
absoluta inadmissibilidade é controversa, conforme anteriormente apontado.
A polêmica doutrinária se divide em dois grandes grupos em que um sustenta
a absoluta proibição da prova obtida por meios ilícitos como meio de coibir
abusos contra os direitos fundamentais, e o outro defende a possibilidade de
se considerar a prova obtida por meio ilícito, cabendo ao juiz a atribuição do
valor da prova no momento da formação de seu livre convencimento
motivado. Este estudo a este filiar-se-á.
Os doutrinadores constitucionalistas se
subdividem
em
procedimentalistas e substancialistas. A primeira corrente, que conta com a
defesa de Jürgen Habermas, Niklas Luhmann, Luiz Guilherme Marinoni
(processualista), sustenta que para a construção do Estado Democrático, o
Tribunal Constitucional deve adotar uma compreensão procedimental da
Constituição (HABERMAS, 1997, p. 170 e ss.), além de afirmar que o devido
cumprimento do procedimento garante aceitabilidade das decisões
(LUHMANN, 1980, p. 31-35).
A segunda, patrocinada por Mauro Cappelletti, Ronald Dworkin, além
dos brasileiros Paulo Bonavides, Ingo Wolfgang Sarlet, Luís Roberto Barroso,
rejeita a tese procedimental, argumentando que a jurisdição constitucional
não se satisfaz com o mero cumprimento dos procedimentos, mas o conteúdo
da Constituição busca a mudança da sociedade, para que se torne cada vez
mais justa e solidária, enfatizando o papel de efetivação dos direitos e
garantias fundamentais (STREK, 2009, p. 30 e ss).
De uma forma geral, os constitucionalistas reconhecem a função do
Poder Judiciário, em especial após o segundo período pós-guerra, de efetivar
os direitos e garantias fundamentais. Eles também argumentam que a
inadmissibilidade da prova ilícita está direcionada ao Estado, pois pretende
proteger o indivíduo na defesa de seus direitos fundamentais atingidos pela
persecução penal (MENDES; BRANCO, 2012, p. 1154).
Os autores ainda defendem que o objetivo é a garantia de outros
direitos, como o direito à vida, à inviolabilidade do domicílio, o sigilo de
correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, o
sigilo profissional, entre outros. Concluem, nesse sentido, que a prova que
ferir os direitos mencionados, em dissonância com o devido processo legal,
revela-se ilícita e é, então, inadmissível. Como o Estado é o titular da
pretensão punitiva que interferirá diretamente na liberdade da pessoa, neste
caso, é inadmissível a prova que violar direitos fundamentais.
Por conseguinte, a busca da verdade, é tão profundamente arraigada
no processo penal que a insuficiência de provas, faz com que se presuma a
Admissibilidade da prova ilícita...
// 127
inocência, o que exerce grande influência no processo civil, pois, como se
identifica, no processo coletivo, se a ação for julgada improcedente por
insuficiência de provas, não faz coisa julgada material, e admite-se o ingresso
de nova demanda, caso existam novas provas.
Na esfera cível, todavia, as partes são pessoas físicas ou jurídicas,
privadas, que têm o dever, ônus, de provar o alegado, tanto da existência de
seu direito, quanto de sua violação. Nesse sentido, o processualista Barbosa
Moreira (1997, p. 153-154) critica o radicalismo da vedação das provas ilícitas
apresentado pela Constituição de 1988 ao sustentar que a preocupação em
evitar que alguém tire proveito de uma ação antijurídica, ou até antiética, não
deve prevalecer quando em conflito com a defesa do interesse público para
a garantia de um processo justo, ocasião em que não se deve permitir o
desprezo de elementos que contribuam para a descoberta da verdade.
Marinoni e Arenhart, embora defendam que “[...] o fim da prova não
é a descoberta da verdade” (MARINONI; ARENHART, 2009, p. 50),
descrevem um procedimento a ser seguido para a valoração das provas
ilícitas e resguardam a necessidade de ponderação, pelo juiz, entre o que se
pretende provar com a prova ilícita e o direito material violado (MARINONI;
ARENHART, 2009, p. 245-246):
No caso em que não foi violada uma regra processual essencial, a prova,
ainda que não sanada, pode ter repercussão no processo, embora não possa
ser valorada como uma prova. Nesta específica situação, a descoberta
trazida pela prova pode ser considerada livremente pelo juiz, que pode
conjugá-la com outras provas lícitas para analisar os fatos apresentados ao
seu julgamento. Para tanto, o juiz deverá expor e explicar, na motivação,
porque a violação de regra processual não desacreditou a descoberta na sua
totalidade. Após, terá de relacionar essa descoberta, relativa à prova
maculada, com aquilo que foi evidenciado por meio das provas lícitas,
argumentando, de modo racional, a vinculação entre a descoberta obtida por
meio da prova ilícita e as provas lícitas.
Nesse ponto, é possível concordar que a busca da verdade não pode
servir de justificação para a desarrazoada violação de direitos, mas é preciso
refletir acerca da imprecisão da norma constitucional, que desconsiderou a
existência de diversos direitos, de diferentes cargas valorativas, bem como
processos de diversas espécies – cível, trabalhista, administrativo, penal.
Não obstante, a máxima “o que não está nos autos, não está no
mundo” (quod non est in actis non est in mundo), há muito arraigada no
processo civil, revela a necessidade de exigir uma conduta ativa do juiz na
colheita das provas, uma recente tendência da doutrina. Pois, como
destinatário da prova, o juiz não se desvincula dos elementos existentes nos
autos. Por essa razão, exige-se das partes, também, um dever de lealdade
processual, que deve fazer uso do processo para solucionar um conflito,
lembrando de sua utilidade também para pacificação geral na sociedade
(CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2005, p. 62-75).
128 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Assim, uma vez esclarecido que a análise das provas fundamenta a
motivação das decisões, já que o livre convencimento ou o sistema de
persuasão racional é compatível com o processo civil brasileiro (CINTRA;
DINAMARCO; GRINOVER, 2005, p. 361), é plausível patrocinar a
compatibilidade desse sistema com a teoria do discurso de Habermas (1997,
p. 30-32), em que os sujeitos se comunicam, debatem, argumentam e pela
linguagem constroem a verdade, na busca de um consenso.
Outrossim, não se pode esquecer que o direito à prova é um direito
fundamental, que frequentemente entra em conflito com outros direitos
fundamentais. É possível que, eventualmente, haja necessidade de fazer uso
de uma prova ilícita para a efetiva garantia de um direito fundamental, ocasião
em que haverá um conflito com o, também fundamental, direito de
inadmissibilidade das provas ilícitas, visto que, conforme explica Gilmar
Mendes, a colisão de direitos fundamentais decorre do exercício de direitos
fundamentais por diferentes titulares (MENDES; BRANCO, 2012, p. 444).
Para melhor esclarecer, usa-se a teoria de regras e princípios de
Alexy (2014, p. 185-191) que defende que os direitos fundamentais são
princípios. O autor explica que regras são comandos definitivos que, quando
em conflito, a aplicação da subsunção faz com que uma regra seja cumprida
e a outra descumprida; enquanto princípios são um comando de otimização
que devem ser realizados na maior medida possível, podem ser cumpridos
em diferentes graus e, quando em conflito, aplica-se a ponderação. Assim,
constrói-se uma teoria dos princípios dos direitos fundamentais, que os
tratará como comandos de otimização, para se socorrerem da máxima da
proporcionalidade, que pode ser formulada, em sentido estrito, em uma regra
denominada “lei da ponderação”, que determina que “[...] quanto maior o grau
de descumprimento ou de interferência em um princípio, maior deve ser a
importância do cumprimento do outro princípio”.
Depreende-se disso que, no caso de interferência ou
descumprimento de um direito fundamental (princípio), maior deve ser a
importância do outro direito fundamental (princípio). Reitera-se, dessa forma,
que, quando a admissibilidade da prova ilícita servir para garantir a
efetividade de um direito fundamental, ocorrerá o descumprimento de sua
inadmissibilidade, também direito fundamental, e para solucionar o conflito,
usa-se a regra da ponderação, dividida em três níveis:
No primeiro nível, trata-se do grau de descumprimento ou de interferência
em um princípio. A ele se segue, no próximo nível, a identificação da
importância do cumprimento do princípio oposto. Finalmente, no terceiro
nível, identifica-se se a importância do cumprimento do princípio oposto
justifica o descumprimento do outro princípio ou a interferência nele (ALEXY,
2014, p. 192).
Por conseguinte, é oportuno destacar a preocupação do mestre
português, J. J. Gomes Canotilho (2002, p. 646), sobre a necessidade de
equilíbrio do sistema, quando no conflito de normas, em que “[...] as regras
de direito constitucional de conflitos deverem-se construir com base na
Admissibilidade da prova ilícita...
// 129
harmonização de direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência
de um direito ou bem em relação ou outro”. Os processualistas geralmente
se inclinam à defesa do direito de prova, o que tem despertado diversas
discussões (SZANIAVISKI, 2005, p. 269).
Embora a doutrina não seja uníssona, dentre os que admitem o uso
das provas ilícitas, condicionam-na ao crivo do princípio da
proporcionalidade. Segundo Paulo Bonavides, este princípio é antigo e sua
redescoberta tem se dado nos últimos duzentos anos com aplicação no
campo do Direito Administrativo. Mais recentemente, no fim do século XX é
que sua aplicação passou a ser adotada no âmbito do Direito Constitucional
(BONAVIDES, 2000, p. 362). Esse compartilhamento se deu na Alemanha,
logo após a Segunda Guerra Mundial, visto que o apego absoluto à norma,
herança kelseniana, contribuiu para a devastação do país.
O modelo de direito sustentado por regras, deveria ter sido superado
após o período do segundo pós-guerra, uma vez que ficou reconhecido que
o legislador não é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, e não se
pode deixar a decisão dos casos difíceis à discricionariedade do juiz. Assim,
a fundamentação das decisões exclusivamente no texto (norma), ainda que
se trate de uma Constituição discursiva, dirigente e comprometida com a
construção de um Estado Democrático de Direito, deve permitir, ao invés
disso, a utilização de princípios como fonte do direito (STREK, 2009, p. 9-10).
O fundamento do princípio da proporcionalidade, corrente mais aceita
pela doutrina alemã, reside tanto no âmbito dos direitos fundamentais quanto
no do Estado de Direito. Deve ser usado para “[...] evitar restrições
desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais” (MENDES,
BRANCO, 2012, p. 43). Sua invocação se dá, em especial, quando se
encontram em situações de conflito direitos fundamentais e outros bens
dignos de proteção, como no presente estudo.
Para corroborar a defesa da admissibilidade da prova ilícita, insta
evocar a jurisprudência alemã e norte-americana que, para preservar bens e
valores dignos de proteção, podem admitir “[...] exceções à proibição das
provas ilícitas quando necessário à realização de exigências superiores de
natureza pública ou privada, argumentando que a proporcionalidade é
essencial para a justiça no caso concreto” (MARINONI; ARENHART, 2010,
p. 250).
Enfatiza-se que a Constituição Federal, ao determinar a
inadmissibilidade das provas ilícitas, pretendeu tutelar o direito material
violado, e não a descoberta da verdade. Assim, na análise do caso concreto,
quando o direito material a ser violado colidir com um direito material a ser
tutelado pela prova ilícita no processo, é imprescindível o uso da
proporcionalidade e da lei da ponderação, de Alexy para a solução do conflito.
Antes da conceituação e aplicação da proporcionalidade, necessário
esclarecer que, embora Alexy tenha defendido que os princípios possam ser
cumpridos em diferentes graus, não se pode atribuir os direitos em rigorosa
hierarquia, sob pena de desnaturá-los por completo, além de descaracterizar
a harmonia normativa e unitária da Constituição, admitindo-se valoração
130 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
hierárquica diferenciada apenas em casos especialíssimos. É o que adverte
o constitucionalista Gilmar Mendes, que
[...] embora o texto constitucional brasileiro não tenha privilegiado
especificamente determinado direito, na fixação das cláusulas pétreas, (CF,
art. 60, § 4º), não há dúvida de que, também entre nós, os valores vinculados
ao princípio da dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo (CF,
art. 1º, III) (MENDES; BRANCO, 2012, p. 448-452).
Passemos, doravante, aos elementos do princípio da
proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip): adequação (Geeignetheit),
necessidade (Enforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito
(Verhältnismässigkeit), que pode ser expresso como lei de ponderação, “[...]
os quais, em conjunto, dão-lhe a densidade indispensável para alcançar a
funcionalidade pretendida pelos operadores do direito”. O primeiro elemento,
adequação, aufere-se da congruência da relação meio-fim, ou seja, constatase se o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido,
sobretudo a idoneidade do meio. O segundo elemento, necessidade, cuida
se a medida restritiva de direito seja imprescindível para a salvaguardar o
próprio direito, bem como a possibilidade de optar por outra medida, também
eficaz, mas menos gravosa, ou seja, dentre as várias medidas possíveis,
optou-se pela mais idônea e menos onerosa. O terceiro, proporcionalidade
em sentido estrito, pondera se o meio utilizado está em equilibrada proporção
com o fim perseguido (BARROS, 2003, p. 77-89).
Por analogia, a admissibilidade da prova ilícita só será cabível
quando os meios utilizados forem adequados, necessários e proporcionais
para a consecução dos objetivos pretendidos. Em outras palavras, a prova
será adequada e deverá ser admitida, mesmo que ilícita, quando se observar
que esta é indispensável para a obtenção do resultado pretendido. Será
necessária, mesmo que ilícita, quando por outra forma não se puder provar o
alegado. E, por fim, será proporcional, empregando-se a lei de ponderação,
quando o direito a ser protegido justificar o descumprimento da
admissibilidade da prova ilícita.
Ressalte-se que o contrário também é verdadeiro, e não se pode
justificar a admissibilidade da prova ilícita quando se puder provar por outro
modo, ou se verificar que o meio utilizado não for imprescindível, ou que o
direito a ser protegido não justifica o desproporcional ferimento de outro
direito. Não se pode esquecer que, para se autorizar o uso da prova ilícita,
ela deve ser o único meio capaz de tutelar um direito material, garantir a
dignidade da pessoa humana e a eficácia de direitos fundamentais. Nesse
caso, não há como, excepcionalmente, não admiti-la.
Há algum tempo o Supremo Tribunal Federal tem admitido as provas
obtidas ilicitamente, na seara penal, a favor do réu, quando forem
indispensáveis para o exercício fundamental da ampla defesa como forma de
provar a sua inocência. Nesses casos, o conflito entre a proibição da prova
ilícita e a ampla defesa é resolvido pela aplicação da ponderação das
garantias constitucionais. Assim, o caráter procedimental do devido processo
Admissibilidade da prova ilícita...
// 131
legal e a consequente inadmissibilidade da prova ilícita dá lugar ao seu
aspecto substancial, garantindo o exercício da ampla defesa (BRASIL, 1997,
web).
Esse estudo foi limitado à garantia de um direito pela
inadmissibilidade da prova ilícita em conflito com a lesão a um direito, o
mesmo direito ou diverso, também pela inadmissibilidade da prova ilícita.
Demonstrou o conflito de direitos e postulou a utilização dos critérios de
ponderação para se sopesar a imprescindibilidade de lesão e de garantia dos
direitos. Intercedeu pela admissibilidade da prova ilícita, na esfera cível,
quando o direito a ser resguardado justificar de forma plausível a lesão a outro
direito.
7.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito é fruto, em conjunto, do surgimento da vida em sociedade.
Foi necessário, a partir daí, a organização da relação entre as pessoas.
Inicialmente, o direito exercia sua atuação junto da moral e do costume. A
pessoa passou a ser considerada, na Idade Média, à imagem do seu criador
e, portanto, digno de proteção. Pode-se, assim, falar no nascimento dos
direitos da personalidade, que são aqueles inerentes à pessoa, ao ser
humano.
Após a era das codificações do direito, e para evitar as atrocidades
cometidas com o respaldo do positivismo, a proteção da pessoa se tornou o
núcleo das constituições de diversos países, assim como tantos tratados
internacionais. Por sua localização em textos constitucionais e acordos
internacionais, a doutrina nomeou-os direitos fundamentais, direitos
humanos, direitos humanos fundamentais, dentre outros, mas que querem
significar a proteção à dignidade humana, assim como os direitos da
personalidade. Uma cláusula geral de proteção foi concebida para se evitar
que os direitos não expressamente positivados fossem relegados por esse
mero detalhe.
É possível, assim, que, diante de disputas particulares, entre
pessoas, um direito tutelado pela Constituição entre em conflito com outro
direito igualmente tutelado. Para se exigir essa tutela do Estado, o processo
judicial demonstra ser um meio eficaz. Para tanto, a prova é o elemento
essencial para se levar ao juiz o conhecimento dos fatos e convencê-lo acerca
das alegações.
Para a tutela desses direitos, é possível que haja necessidade de se
recorrer às provas ilícitas, proibidas pela Constituição Federal, mas que
podem vir a ser o único meio de provar o alegado e consolidar a justiça, que
também é garantido pela mesma lei. Para solução desses conflitos,
defendemos a utilização do princípio da proporcionalidade para, em alguns
casos, justificar a admissibilidade da prova ilícita.
132 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
7.7 REFERÊNCIAS
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134 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= VIII =
AS INFORMAÇÕES COLHIDAS POR INTERMÉDIO DE
INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA ILÍCITA E O PROCEDIMENTO DE
DESENTRANHAMENTO E INUTILIZAÇÃO DAS MESMAS NO SISTEMA
DO PROJUDI DO PARANÁ.
Alexandre Ribas de Paulo*
Valine Castaldelli Silva**
8.1 INTRODUÇÃO
A indagação acerca da constitucionalidade da quebra das
comunicações telefônicas, telemáticas e informáticas, bem ainda do sigilo
telefônico, são temas recorrentes tanto quando se fala em observância dos
Direitos Fundamentais quanto se aborda a produção probatória no inquérito
policial e no processo penal.
O artigo 5o, inciso XII, da Constituição Federal é uma regulamentação
específica do inciso X, do mesmo dispositivo constitucional, que trata da
intimidade e vida privada das pessoas. Nessa perspectiva, violações à
comunicação telefônica das pessoas não podem ser admitidas nos processos
judiciais brasileiros e, conforme disposto no artigo 157, § 3o, do Código de
Processo Penal, a prova obtida por meio ilícito deve ser desentranhada dos
autos do processo e inutilizada.
Partindo-se da necessidade de uma abordagem constitucional
acerca do direito probatório no Processo Penal, especialmente no que tange
aos direitos fundamentais e da personalidade, propõe-se um estudo sobre os
procedimentos preconizados pela Corregedoria de Justiça do Estado do
Paraná no que concerne aos processos virtuais, isto é, aqueles acessíveis
somente pelo sistema de informática do PROJUDI, para compreender se
existe ou não o cumprimento da legislação pátria sobre o desentranhamento
e inutilização de provas obtidas por meios ilícitos.
*
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000); Mestre (2006) e
Doutor (2011) em Direito, Estado e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Professor Adjunto na Universidade
Estadual de Maringá (UEM), lecionando a matéria de Direito Processual Penal para o Curso de
Graduação em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação lato sensu em Ciências Penais
da UEM; na Especialização em Ciências Criminais da PUC – campus Maringá e Escola da
Magistratura do Paraná – Núcleo Maringá, lecionando a matéria de Direito Processual Penal. Email: [email protected]
**
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2014). Pós-graduanda em
Ciências Penais lato sensu pela Universidade Estadual de Maringá. Assistente de Juiz de Direito
pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: [email protected]
136 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
8.2 O DIREITO
COMUNICAÇÕES
FUNDAMENTAL
À
INVIOLABILIDADE
DAS
A Carta Magna, em seu art. 5º, trata das garantias fundamentais.
Essas propiciam ao indivíduo a viabilidade de exigir dos Poderes Públicos o
respeito ao direito que instrumentalizam.
O legislador constituinte, ao tratar tais direitos como invioláveis os
elevou à condição de direito individual, conexo ao da vida (SILVA, 2010, p.
205-206). Respaldando-se nos Direitos Fundamentais, importante a
exposição de Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 18) no sentido de que não são
derrogáveis e nem disponíveis as garantias desses direitos 1.
Frise-se as lições de Pacelli (2013, p. 36), no sentido de que os
princípios constitucionais podem ser concebidos como garantias
fundamentais dos indivíduos, tanto em face do Estado, quanto em face de si
mesmos.
Dentre outros valores reconhecidos pela ordem jurídica
constitucional, o art. 5º dá conta da proteção à intimidade, à privacidade, à
honra, e a imagem, com efeito, seu inciso X: "são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;".
Em atenção à redação do mencionado inciso, do rol de Direitos
Fundamentais, pertinente a doutrina:
O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos
atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e
profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento
público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os
episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades
mais próximas. [...] No âmago do direito à privacidade está o controle de
informações sobre si mesmo (MENDES, 2011, p. 315-317).
Afirmam os mesmos autores que o direito à privacidade encontra
limitações, pelo simples fato de se viver em comunidade, bem ainda em
relação a outros valores constitucionalmente protegidos (MENDES;
BRANCO, 2011, p. 319).
Ressalte-se que o art. 21 do Código Civil, elencado no rol dos Direitos
da Personalidade, traduz a essência do mencionado inciso X, do art. 5º, da
Constituição Federal: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz,
a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para
impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. ”
Destarte, o Direito da Personalidade consistente na vida privada
decorre de Direito Fundamental elencado pela Carta Magna de 1988.
1
De maneira diversa dispõe Paulo Gustavo Gonet Branco: Não pode o indivíduo renunciar de
suas garantias fundamentais. Contudo, os Direitos Fundamentais podem ser autolimitados pelo
titular, desde que seja preservado o núcleo essencial da personalidade humana (MENDES;
BRANCO, 2011, p. 319).
As informações colhidas...
// 137
Sobre os direitos da personalidade os preceitos de Maíra de Paula
Barreto e Valéria Silva Galdino (2007, p.277-308):
[...] a personalidade constitui-se de: capacidade de direito, capacidade de
fato e de um patrimônio (material e moral). Integram o patrimônio moral os
chamados direitos imateriais ou direitos da personalidade. A personalidade é
o fundamento ético, é a fonte, é a síntese de todas as inúmeras irradiações,
da pletora de emanação possíveis dos direitos da personalidade.
Buscando-se o contexto histórico e jurídico do supramencionado
direito, este já era reconhecido internacionalmente desde a década de 40. O
art. 12, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispõe:
“Ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, em sua família,
em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e
reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques”.
No mesmo sentido o art. 11 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, 1969: “Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou
abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.
Da leitura dos artigos supra destacados, verifica-se que a proteção ao
direito à vida privada abrange também a proteção ao sigilo das
correspondências, por intermédio da vedação de ingerências arbitrárias em um
âmbito mais lato que é denominado comunicação.
No que tange aos direitos fundamentais no Brasil, o inciso XII, artigo
5º da Constituição Federal2, especializa a proteção da intimidade e
privacidade das pessoas, cujo foco é a inviolabilidade do sigilo da
correspondência, das comunicações telegráficas, dados e das comunicações
telefônicas. Com efeito: “[...] é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo,
no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal”3.
O sigilo das comunicações é não só um corolário da garantia da livre
expressão de pensamento; exprime também aspecto tradicional do direito à
privacidade e intimidade (MENDES; BRANCO, 2011, p. 330). Com base
nessa construção, o sigilo das comunicações deve ser abrigado como Direito
2
Apesar de se tratar de direito fundamental o sigilo das comunicações telefônicas, o legislador
elencou hipóteses de restrição, quais sejam: estado de defesa ou estado de sítio (art. 136, §1º,
I, “c”, e art. 139, III, ambos da Carta Magna). (MENDES; BRANCO, 2011, p. 330)
3
“Trata-se, aliás, de direito assegurado a nível constitucional, desde a primeira Carta Política do
País (1824), sendo outorgado sem limitações nos textos constitucionais de 1891 (art. 72, § 18),
1934 (art. 113, n. 8), 1946 (art. 141, §6º) e 1967 (art. 150, §9º). Apenas o estatuto ditatorial de
1937, em seu art. 122, n. 6, dispunha, restritivamente, constituir direito dos brasileiros e
estrangeiros residentes no País, “salvo as exceções expressas em lei”. (GOMES FILHO, 1986,
p. 85).
138 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
da Personalidade, porquanto expressa uma das facetas do direito à vida
privada, ora tratado.
O autor Rodrigo Mesquita, menciona que o inciso XII, do art. 5º da
Carta Magna foi divido em “correspondência”, “comunicações telegráficas”,
“dados” e “comunicações telefônicas” em razão da evolução histórica da
proteção das telecomunicações. Isso porque, as exceções e restrições
relativas ao sigilo das comunicações já haviam sido previstas na Constituição
de 1824 (MESQUITA, 2013).
Importante salientar que apesar de as palavras “sigilo” e “segredo”
serem normalmente empregados como sinônimos, pois dizem respeito àquilo
que não pode ser exposto publicamente, comunicado, possuem sentido
diverso. Por sigilo entende-se um dever legal, uma exigência para que o
segredo seja mantido. Assim, a sigilo das comunicações telefônicas diz
respeito a um segredo protegido por lei (MESQUITA, 2013).
A partir da redação do mencionado artigo, pode-se concluir que o
direito à privacidade e à intimidade decorrente das comunicações telefônicas
poderiam ser flexibilizados, por ordem judicial, presente, assim, uma ressalva
na lei, criando uma exceção à regra, sendo que as hipóteses restantes, as
regras, receberiam um tratamento diverso (OLIVEIRA, 2012, p. 342-343)
Da leitura do artigo supramencionado, merece destaque as lições de
Eugênio Pacelli de Oliveira (2012, p. 342-343):
[...] na ordem constitucional brasileira não existem direitos absolutos, que
permeiam o seu exercício a qualquer tempo e sob quaisquer circunstâncias.
E tal ocorre porque a tutela normativa de qualquer bem ou valor é sempre
abstrata. No plano da realidade concreta, surgirão, inevitavelmente,
situações em que dois ou mais titulares do mesmo direito entrem em
confronto, razão pela qual a lei estará autorizada a regulamentar soluções
especificas para cada conflito4.
Desse modo, somente no caso da quebra de sigilo das comunicações
telefônicas é que a Carta Magna inseriu uma exceção ao direito à intimidade,
permitindo o uso dessas informações no processo penal.
Entende Tourinho Filho (2011, p. 259) que ao fazer tal exceção,
pretendeu o legislador constituinte equilibrar os interesses do Estado e o
direito à privacidade. Ademais, para esse autor o legislador constituinte, ao
dividir o inciso XII, do art. 5º, da Constituição Federal, em duas partes, uma
primeira ao mencionar o “sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas” e uma segunda, “dados e comunicações telefônicas”, pretendeu
que o legislador ordinário ressalvasse tanto a quebra de sigilo telefônico
(dados) quanto das comunicações telefônicas.
Apesar das ponderações nesse sentido, considerando a polêmica
que envolve o tema, essa relativização somente caberia às comunicações
Na mesma acepção: “Não há, portanto, em princípio, que falar, entre nós, em direitos absolutos.
Tanto outros direitos fundamentais como outros valores com sede constitucional podem limitálos” (MENDES; BRANCO, 2011, p. 319).
4
As informações colhidas...
// 139
telefônicas e não aos demais casos, cujo sigilo é intangível pelo Estado.
Nessa perspectiva, a exceção à regra constitucional verifica-se tão somente
quanto ao sigilo das comunicações telefônicas, onde o legislador inseriu o
princípio da reserva da jurisdição na parte final do art. 5º, inciso XII, da
Constituição Federal: “[...] ordem judicial, hipóteses ou forma que a lei
estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual”
(CAPEZ, 2006, p. 495)5.
Nesse sentido as ponderações e críticas de Ada Pellegrini Grinover:
A limitadíssima exceção constitucional ao sigilo, não abrangente de outras
formas de correspondência e comunicações que não a telefônica e excluindo,
da possibilidade de quebra, prova colhida para o processo não penal, tem
sido duramente criticada pela doutrina. Por que possibilitar a interceptação
de comunicações telefônicas, e não a da correspondência e de
comunicações telegráficas e de dados? E qual a razão para excluir da quebra
a prova necessária ao processo não-penal, dada a natureza dos direitos
materiais controvertidos no denominado “processo civil”, o qual, no
ordenamento brasileiro, está longe de restringir-se à tutela de meros
interesses patrimoniais? (GRINOVER, 1997, p. 122).
A referida norma constitucional classifica-se como de eficácia
limitada, sendo uma norma não autoaplicável, demandando de uma lei
complementar ou ordinária para gerar seus efeitos principais.
Com o fito de tornar aplicável a quebra de sigilo das comunicações
telefônicas, regulamentou-se o disposto no art. 5º, inciso XII, da Constituição
Federal com a Lei nº 9.296/96, na qual o legislador ordinário elencou as
hipóteses nas quais seriam cabíveis as interceptações telefônicas, bem
ainda, dispôs acerca das diretrizes, requisitos e procedimento a ser adotado.
Não se pode perder de vista que a mencionada lei abarca, também,
a regulamentação das interceptações informáticas e telemáticas. Ademais, a
Lei nº 9.296/95 criminaliza a interceptação telefônica, telemática e informática
que não atendam às disposições legais, bem como a quebra do segredo de
justiça (art. 10).
Assim, com a entrada em vigor da Lei nº 9.296/96 foram somados
requisitos aos já dados constitucionalmente: a) haver indícios razoáveis da
autoria ou participação na infração penal; b) a prova não puder ser feita por
outros meios disponíveis; c) fato investigado ser punível com reclusão (art.
2º). Importante mencionar que a decisão deverá ser fundamentada, como prevê o art. 93, inciso IX, da Constituição
Federal e o art. 5º da Lei nº 9.296/96 (primeira parte), e a interceptação terá prazo máximo de 15 (quinze) dias,
renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova (art. 5º, in fine, da Lei nº
9.296/96).
5
Em sentido contrário, entende Nucci não haver direito ou garantia constitucional de caráter
absoluto, sendo um dos motivos apresentados, o de que a norma constitucional não pode existir
para proteger delinquentes, não havendo motivo para intepretação restritiva no caso do art. 5º,
inciso XII, da Constituição Federal (NUCCI, 2010, p. 793).
140 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
A medida cautelar de interceptação telefônica ocorrerá em autos apartados, apensados ao inquérito
policial, ou processo judicial, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições, dada a natureza da
medida (art. 8º da Lei nº 9.296/96).
Considerando que o legislador ordinário teve o cuidado de
regulamentar uma série de requisitos, bem como procedimentos, somados à
ordem da autoridade judiciária, as provas obtidas com a não observância dos
requisitos constitucionais, bem como os trazidos pela Lei nº 9.296/96 serão
tidas como obtidas por meio ilícito, cuja consequência será sua
inadmissibilidade no processo6.
8.3 O DIREITO FUNDAMENTAL DE INADMISSIBILIDADE DE PROVAS
OBTIDAS POR MEIO ILÍCITO
O Código de Processo Penal é regido por uma série de princípios, os
quais representam os postulados fundamentais da política processual penal
de um Estado. Dessa forma, o Direito Processual Penal possui estreito
vínculo com o Direito Constitucional (TOURINHO FILHO, 2010, p. 57).
Nessa perspectiva, a doutrina de Eugênio Pacelli de Oliveira (2013,
p. 35-36):
Para além da mera explicação dos direitos fundamentais como a verdadeira
e legítima fonte de direitos e obrigações, públicas e privadas, que deve
orientar a solução dos conflitos sociais, individuais e coletivos, a atual ordem
constitucional não deixa margem a dúvidas quanto à necessidade de se
vincular a aplicação do Direito e, assim, do Direito Processual Penal, à tutela
e à realização dos direitos humanos, postos como fundamentais na
ordenação constitucional (arts. 5º, 6º e 7º, CF).
[...] Em relação ao processo penal enquanto sistema jurídico de aplicação do
Direito Penal, estruturando em sólidas bases constitucionais, pode-se
adiantar a existências de alguns princípios absolutamente afastáveis, e, por
isso, fundamentais, destinados a cumprir a árdua missão de proteção e tutela
dos direitos individuais.
Dentre os princípios que regem o Código de Processo Penal, há o
princípio da vedação das provas obtidas ilícitas, cujo fundamento advém do
art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal: “[...] são inadmissíveis, no
processo, as provas obtidas por meios ilícitos”7.
Vicente Greco Filho traça três tipos de ilicitude, quando se fala em provas no processo. A
primeira, quando o meio não possui previsão legal e não condiz com os princípios processuais.
Uma segunda hipótese, quando a produção da prova é imoral ou impossível, sendo, assim, ilícita.
A terceira e última é quando a ilicitude é decorrente da obtenção do meio de prova (GRECO
FILHO, 2012, p. 211).
7“
No âmbito do processo penal a primeira decisão do STF que reconheceu a inadmissibilidade
da prova ilícita deu-se em dezembro de 1986 (RTJ 122/47). Tratava-se também de um caso de
interceptação telefônica clandestina. Determinou-se o trancamento do inquérito policial, fundado
nessa prova: "Os meios de prova ilícitos não podem servir de sustentação ao inquérito ou à ação
penal” (GOMES, 2003, p. 474).
6
As informações colhidas...
// 141
Tal direito fundamental visa impedir que o Estado adote, como
elemento de convicção na prestação jurisdicional, de elementos probatórios
obtidos por meios ilícitos (BONFIM, 2012, p. 89).
Ao tratarem desse tema, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar
(2011, p. 362) fazem exposição do princípio da liberdade probatória, o qual
não seria absoluto, pois na busca pela verdade real, considerando a
amplitude probatória, deve-se aproveitar essa gama, mas com respeito à
Constituição Federal traz que um óbice: as provas obtidas por meio ilícito.
Ademais, na lógica de um Estado Democrático de Direito, prevalecem os
Direitos Fundamentais no campo do processo penal, impedindo, assim, juízos
em favor da coletividade (ROSA, 2014, p. 60-61).
O princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas, para Pacelli, em
uma ordem jurídica cujos fundamentos são o reconhecimento, a afirmação e
a proteção dos Direitos Fundamentais (principalmente a proteção do direito à
intimidade, à privacidade, à imagem, à inviolabilidade do domicílio), vem para
proteger os jurisdicionados das arbitrariedades do Poder Público –
supervisionar a atividade estatal persecutória, a fim de coibir práticas
probatórias ilegais. Destarte, tal princípio tutela tanto os direitos e garantia
individuais, quanto a qualidade do material probatório do processo
(OLIVEIRA, 2012, p. 52, 335).
Pondera Vicente Greco Filho ter o legislador constituinte optado por
uma postura rigorosa, ou seja, pela ilicitude da origem ou da obtenção da
prova (GRECO, 2012, p. 211), isso porque, ao atestar a não admissibilidade
das provas obtidas por meio ilícito, visa-se conter o arbítrio do Estado,
resguardando as garantias constitucionais (TÁVORA; ALENCAR, 2011, p.
362).
O doutrinador Mirabete faz uma distinção entre provas ilícitas e
ilegítimas8. As provas ilícitas são as que afrontam norma de direito material,
tanto no meio quanto no modo de obtenção, já as provas ilegítimas contrariam
norma de direito processual, no que diz respeito à produção e introdução da
prova no processo.
Apesar de demonstrar tal diferença, conclui o autor que a
Constituição Federal de 1988 não admite no processo as provas ilícitas nem
as ilegítimas (MIRABETE, 1998, p. 260), pois apesar da classificação
doutrinária, não há na Constituição Federal nenhuma diferenciação entre
provas ilícitas e ilegítimas.
No mesmo sentido, salienta Tourinho Filho que, apesar de o texto
constitucional não fazer distinção entre a violação de direito material e
processual, ambos seriam abrangidos, pois se trata de respeito tanto à
dignidade humana – o legislador colocou as garantias individuais como um
No mesmo sentido Mougenot: “São chamadas provas ilícitas aquelas cuja obtenção viola
princípios constitucionais ou preceitos legais, de natureza material. […] Por outro lado, a prova
será ilegítima se sua obtenção infringir normal processual dizendo respeito à própria produção
da prova (BONFIM, 2012, p. 364). Também: TÁVORA; ALENCAR, 2011, p. 363; LOPES Jr., 2013,
p. 591.
8
142 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
limite à eficácia da persecução penal – quanto à seriedade da Justiça e ao
ordenamento jurídico (TOURINHO FILHO, 2011, p. 85-87)9.
Insta salientar, conforme expõe Edilson Mougenot Bonfim (2012, p.
89)10, que o postulado acerca da inadmissibilidade das provas ilícitas no
processo ganha uma exceção, quando se trata da utilização dessas provas
ao favor do réu, uma das facetas do princípio da proporcionalidade. Isso
porque, a aplicação do princípio da proporcionalidade, no devido processo
legal, não se pode dar em desfavor do acusado, mesmo que em nome da
coletividade11.
Considere-se que se houver motivação deficiente na decisão judicial,
se o magistrado for incompetente para apreciação da medida, ocorrer
violação aos requisitos legais imprescindíveis para a deflagração da
interceptação telefônica, ou ainda violação à Direito Fundamental e à
produção de prova, tais casos tratam de vícios processuais (exceto se não
houver ordem judicial) que acarretam a nulidade da prova e não sua ilicitude
(ROSA, 2014, p. 364).
De tal modo, as provas ilícitas seriam aquelas que não correspondem
aos ditames constitucionais, por exemplo, informações colhidas
criminosamente por intermédio de interceptação das comunicações
telefônicas sem ordem judicial.
Já as provas nulas são àquelas em que ausente alguma formalidade
essencial para validade do ato. A título de exemplo, seriam as informações
colhidas em interceptações de comunicações, autorizadas previamente por
magistrado, mas sem a observância dos arts. 2º e 5º da Lei nº 9.296/96.
Assim, apesar do respeito ao princípio da reserva da jurisdição, os artigos 93,
inciso IX, da Constituição Federal, e 564, inciso IV, do Código de Processo
Penal inviabilizariam a apreciação de tal prova quando da resolução da lide.
Importante tal distinção pois as consequências das provas ilícitas e
das provas nulas são diversas, aquelas serão desentranhadas dos autos e
9
No mesmo sentido NICOLITT, André Luiz. Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier,
2010, p. 62.
10
Registre-se que, a doutrina ao tratar das provas obtidas por meio ilícito, tanto de direito material
como processual, reconhece inadmissibilidade constitucional – e processual penal –, havendo
uma exceção quando há um confronto de bens jurídicos garantidos constitucionalmente. Para
Nicolitt a exceção ocorre quando a prova colhida ou produzida com violação à regra for a única
capaz de absolver o réu, incidindo no caso o princípio da dignidade humana. Por sua vez,
Tourinho Filho amplia a exceção, cabendo quando a prova beneficiar a defesa, pois é direito
fundamental a resguardar o réu. Já Mirabete, abarca, também, o fato de que se a prova obtida
por meio ilícito, produzida pelo interessado, deve ser admitida pois se trataria de legítima defesa,
logo, excluiria o crime. Ademais, leciona Tourinho Filho que somente a legislação brasileira traz
de modo absoluto e peremptório a inadmissibilidade de provas obtidas por ilícito no processo.
11
“Para operacionalizar o devido processo legal substancial se recorre ao princípio da
proporcionalidade (razoabilidade), o qual deve sempre ser aquilatado em face da ampliação das
esferas individuais da vida, propriedade e liberdade, ou seja, não se pode invocar a
proporcionalidade contra o sujeito em nome do coletivo, das intervenções desnecessárias e/ou
excessivas. No processo penal, diante do princípio da legalidade, a aplicação deve ser favorável
ao acusado e jamais em nome da coletividade, especialmente em matéria probatória e de
restrição de direitos fundamentais” (ROSA, 2014, p. 60-61).
As informações colhidas...
// 143
inutilizadas e estas permanecerão nos autos, mas não poderão ser utilizadas
para a formação da convicção do magistrado.
A Lei nº 11.690/08 deu nova redação ao art. 157 do Código de
Processo Penal, abarcando não somente o ditame constitucional acerca das
provas obtidas por meio ilícito, como também, as provas ilícitas por derivação
(art. 157, §1º):
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as
provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas
constitucionais ou legais.
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo
quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou
quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das
primeiras.
8.4 A PROTEÇÃO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE PERANTE O
PROCESSO VIRTUAL (PROJUDI)
Sabe-se que a prova colhida em decorrência de uma outra prova,
anteriormente obtida por meio ilícito, é considerada ilícita por derivação,
aplicando-se no caso a “[...] teoria dos frutos da árvore envenenada” que,
segundo Tourinho Filho (2011, p. 264), foi desenvolvida
nos Tribunais
Federais dos Estados Unidos desde 1914 e, a partir de 1961, em todos os
Tribunais por imperativo constitucional.
Ensina Pacelli (2012, p. 52) que a teoria dos frutos da árvore
envenenada, incorporada pela doutrina e jurisprudência nacionais, possui
ressalvas explícitas, como por exemplo a teoria da descoberta inevitável
(serendipidade) e da fonte independente, com o fito de justificar hipóteses de
não contaminação.
As provas obtidas por meios ilícitos, bem como as ilícitas por
derivação deverão ser desentranhadas do processo, a fim de se evitar que
os efeitos causados por tais provas se prolonguem, pois, ainda que
legalmente desconsideradas, podem acabam por influenciar subjetivamente
na formação do convencimento do magistrado (TÁVORA; ALENCAR, 2011,
p. 363).
Contudo, no art. 157 do Código de Processo Penal, não há previsão
de como deverá ser procedido o desentranhamento, mas tão somente prevê
que uma vez preclusa a decisão de desentranhamento da prova obtida por
meio ilícito, ocorrerá sua inutilização, podendo as partes acompanharem o
incidente12.
O Código de Normas da Corregedoria Geral de Justiça do Paraná
(CN-CGJ), prevê, na Seção 03 (Dos Processos), o desentranhamento de
folhas, em autos físicos. Institui o item 2.3.7: “Desentranhada dos autos
alguma de suas peças, inclusive mandado, em seu lugar será colocada uma
Defendem doutrinadores que uma vez desentranhadas, as provas serão destruídas, sendo que
as partes poderão acompanhar tal a destruição. Nessa perspectiva: BONFIM, 2012, p. 364.
12
144 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
folha em branco na qual serão certificados o fato e o número das folhas antes
ocupadas, evitando-se a renumeração”. Em seguida, o item 2.3.8: “As peças
desentranhadas dos autos, enquanto não entregues ao interessado, serão
guardadas em local adequado. Nelas a Escrivania certificará, em lugar visível
e sem prejudicar a leitura do seu conteúdo, o número e a natureza do
processo de que foram retiradas”.
Partindo-se da hipótese do desentranhamento de uma prova obtida
por meio ilícito, o procedimento dado pelo Código de Normas do Tribunal de
Justiça do Paraná é mais cauteloso, dado que ao empregar o termo
“inutilização”, o artigo 157, § 3o, do Código de Processo Penal estaria
determinando, inclusive, a destruição de provas de um crime que originou a
ilicitude da prova desentranhada, liquidando a materialidade de um possível
crime cometido para sua obtenção.
Nessa perspectiva, se o magistrado determinasse a inutilização da
prova obtida por meio de uma interceptação telefônica clandestina, estaria
ele, em tese, destruindo a materialidade do crime previsto no artigo 10, da Lei
nº 9.296/96. O ideal, seria a desentranhamento das provas colhidas por meio
ilícito e envio das mesmas para o Ministério Público, para verificar se há a
necessidade de se iniciar a persecutio criminis ao responsável pela infração
penal.
Imperioso salientar que com a digitalização dos processos no Estado
do Paraná, iniciada em 2013, conforme a Lei Federal nº 11.419/06, não há,
ainda, previsão normativa acerca do procedimento de “desentranhamento” no
processo virtual.
Porém o magistrado dispõe de comando no sistema que permite o
bloqueio do documento, impedindo o acesso às informações colacionadas no
decorrer do processo. Em se tratando de processos digitais, verifica-se que
apesar de as informações não ficarem acessíveis, a qualquer momento pode
ser feito o desbloqueio pelo magistrado e ele ter acesso às informações
írritas. Assim, não há efetivo desentranhamento e inutilização das provas nos
autos, mas apenas um bloqueio - reversível - das informações censuradas
pelo magistrado.
Independente da maneira como ocorrerá a retirada da prova dos
autos, ou se ela deve ou não ser destruída, nasce a questão do juiz que
decidiu pelo seu desentranhamento, cujo convencimento preconcebido,
possivelmente, foi afetado pelo contato com a prova obtida por meio ilícito.
Nesse sentido, o §4º do art. 157, do Código de Processo Penal, restou
vetado, mas cuja redação era “O juiz que conhecer do conteúdo da prova
declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”.
Defende Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2011, p. 363)
que o fato de o magistrado ter tido acesso à prova obtida por meio ilegal, e, a
despeito da determinação do seu desentranhamento nos autos esta
influenciar no seu convencimento, deve o juiz declarar-se suspeito ao verificar
que o contato com a prova interferiu em sua imparcialidade como julgador.
Essa seria a saída mais nobre para se garantir a imparcialidade do
magistrado em autos físicos.
As informações colhidas...
// 145
Contudo, no Estado do Paraná, quando se tratar de autos virtuais do
Projudi, não há uma garantia de que o magistrado não mais acessará as
provas contaminadas de ilicitude, pois não ocorreria a retirada efetiva de suas
informações do sistema de informática. Assim, o jurisdicionado ficaria
submetido, tão somente, à integridade moral do magistrado, pois não estaria
ele completamente impedido de ter acesso às informações violadoras de
eventuais direitos à personalidade, especialmente quando se trata de
interceptação telefônica.
8.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pode ser visto no decorrer do presente trabalho, o artigo 5o,
inciso XII, da Constituição Federal, também regulamenta um dos direitos à
personalidade, que é a inviolabilidade das comunicações, sendo que existe
uma única exceção à regra que diz respeito às interceptações telefônicas
para fins de investigação criminal.
Tratou-se, em seguida, dos procedimentos previstos em lei quando
há a constatação, no processo penal, de juntada de provas obtidas por meios
ilícitos, porquanto o artigo o 5o, inciso LVI, da Constituição Federal as
inadmite no processo e o artigo 157, § 3o, do Código de Processo Penal,
determina o seu desentranhamento e inutilização.
Finalmente, comentou-se sobre a implantação da Lei no 11.419/06 –
processo virtual – e sua regularização nos processos judiciais no Estado do
Paraná, explicando que o magistrado dispõe de comando no sistema do
Projudi que permite o bloqueio do documento, impedindo o acesso às
informações colacionadas no decorrer do processo e, na prática processual
penal, seria essa a providência analógica ao desentranhamento e inutilização
de provas obtidas por meios ilícitos.
Contudo, existindo a possibilidade de “desbloqueio” das informações
pelo magistrado, não restam garantias aos jurisdicionado de que as provas
obtidas por meios ilícitos - e assim declaradas pelo juízo -, não serão mais
acessadas e avaliadas.
Enfim, se as provas declaradas írritas no processo penal apenas
serão bloqueadas no Projudi e não inutilizadas, surge a possibilidade de
violação à intimidade dos jurisdicionalizados quando vítimas de colheita de
informações por interceptação telefônica criminosa. Como essas, segundo o
direito à personalidade, não devem ficar acessíveis às autoridades estatais,
a não inutilização desse tipo de prova perpetuaria do inadmissível controle
das pessoas pelo Estado, a despeito dos dispositivos constitucionais.
146 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
8.6 REFERÊNCIAS
BARRETO, Maíra de Paula; GALDINO, Valéria Silva. Os princípios gerais
de direito de família e os direitos da personalidade. In: Revista
Jurídica Cesumar – Mestrado. Maringá, v. 7, n. 1, p. 277-308, jan/jun.
2007.
BRASIL. Planalto. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.
Acesso em: 21 jan. 2015.
BONFIM, Edilson, Mougenot. Curso de processo penal. São Paulo:
Saraiva, 2012.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação especial.
São Paulo: Saraiva, 2006.
COSTA RICA, San Jose. Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, 22 de novembro de 1969. Disponível em:
<http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.ht
m>. Acesso em: 14 set. 2015.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva,
2012.
GOMES, Luiz Flávio. Prova ilícita: direito à exclusão dos autos do processo.
In: Revista dos Tribunais Online. vol. 809, p. 474, mar. 2003.
MESQUITA, Rodrigo Octávio de Godoy Bueno Caldas. A proteção da
privacidade nas comunicações eletrônicas reservadas no Brasil:
análise crítica do regime das interceptações telefônicas (livro
eletrônico). São Paulo: Ed. Do autor, 2013.
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1998.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. São Paulo:
Atlas, 2012.
ONU. Declaração dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>.
Acesso em: 19 set. 2015.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal
conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São
Paulo: Malheiros editores, 2010.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito
processual penal. Salvador: JusPODIVM, 2011.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 1. São
Paulo: Saraiva, 2011.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 3. São
Paulo: Saraiva, 2011.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de
direito penal brasileiro, volume 1. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2007.
= IX =
CRIANÇA E ADOLESCENTE VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL
INTRAFAMILIAR: ESCUTA ESPECIAL, O MELHOR CAMINHO PARA
EVITAR A REVITIMIZAÇÃO?
Márcia Fátima da Silva Giacomelli*
9.1 INTRODUÇÃO
É sabido que a violência está encravada em nosso país e
mundialmente, causando grande preocupação, pois esta afeta não apenas o
indivíduo de forma isolada ou grupos familiares, mas também a sociedade
como um todo.
A violência, de forma contrária ao princípio da dignidade humana,
trazido na Constituição Federal de 1988, representa uma das maiores
ameaças à humanidade, senão a maior delas.
Contudo, quando se fala em violência, aquela que talvez mais choca,
paralisa toda uma sociedade, é aquela que atinge o âmbito familiar, com
maus tratos a crianças, adolescentes e idosos, abuso sexual intrafamiliar,
além da própria violência conjugal. Essa atitude violenta não escolhe raça,
cor, idade, ela atinge todas as classes sociais independente de nível sócio
educativo e cultural.
Nesta feita, o presente artigo, irá discorrer sobre o abuso sexual
intrafamiliar, aquele cometida contra criança e adolescente dentro do seio
familiar, tendo como abusador um membro da família (pai, padrasto, tio,
irmão, avô). Tal ato violento, pode ser considerado um dos mais graves que
pode ocorrer, pois além de violar o princípio da dignidade da pessoa humana,
atinge a parte mais íntima do ser humano, a mais vulnerável, pois deixa a
vítima acuada, amedrontada, envergonhada, e junto a todos esses
sentimentos, muitas das vezes essa criança/adolescente é acometida pela
síndrome do segredo.
Essa síndrome se desenvolve porque a criança/adolescente se sente
culpada pelo que aconteceu, e teme que em razão disso possa a vir ser
punida. Assim, a tendência em casos como esses, é se calar ou até mesmo
ocultar a verdade dos fatos.
Dessa forma, quando do esclarecimento dos fatos, para que não se
torne a entrevista dessas vítimas um enorme problema, com distorções dos
fatos, mentiras e até mesmo uma possível falsa memória, que são “[...]
*
Juíza Leiga. Licenciatura em História pela UEM – Universidade Estadual de Maringá e Bacharel
em Direito pela Unicesumar – Centro Universitário de Maringá. Especialista em Fundamentos da
Educação, Neurociência e Direito Civil e Processo Civil. Mestranda em Direitos da Personalidade
pela Unicesumar – Centro Universitário de Maringá. Docente do curso de Graduação de Direito
da Faculdade Alvorada em Maringá - PR.
148 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
recordações que, na verdade, nunca ocorreram” (ÁVILA, 2013, p. 104), se
exigirá do profissional que prestará o atendimento a essa criança uma maior
sensibilidade, um conhecimento diferenciado para tratar com esse ser ainda
tão frágil. Precisa acolher essa pessoa ainda em processo de
desenvolvimento, transmitir confiabilidade, conforto, assim, procurando
através da entrevista realizada alcançar a uma verdade mais aproximada
possível dos fatos.
Com o objetivo de extrair dessa vítima informações que possam vir
ajudar no deslinde da demanda, da forma mais condizente e real dos fatos,
sem trazer maiores prejuízos ao abusado e até mesmo do abusador, surgiu
no Brasil um projeto denominado “Depoimento sem dano”, hoje conhecido
como “Escuta especial” ou “Depoimento especial”.
O presente projeto, existe, ou deveria existir, em todas as comarcas
que atendem crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual intrafamiliar.
Ele traduz toda uma técnica de atendimento a essas vítimas, pois possui todo
um aparato a fim de receber crianças e adolescentes abusados sexualmente,
técnica essa, totalmente distinta daquelas utilizadas em depoimento comum,
sem que figure vítimas vulneráveis.
Dessa forma, esse artigo irá apresentar ao leitor como ocorre essa
“Escuta especial”, quais são as recomendações da Resolução nº 33 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a polêmica existente entre o conselho
federal de psicologia e o Poder Judiciário face a escuta especial, e o que ela
visa em relação a vítima que sofreu abuso sexual intrafamiliar, bem como o
suposto abusador.
Irá tentar mostrar que existem formas para se entrevistar uma criança
e adolescente, levando em consideração o que ela tem de mais importante,
a sua dignidade enquanto pessoa humana, respeitando-a, defendendo-a e
protegendo-a de mais um dano, pois o seu depoimento na via judicial, irá
trazer à tona lembranças que já estão “esquecidas”, e se essas lembranças
não forem trazidas de uma forma especial, com certeza levará essa
criança/adolescente a vitimização secundária, o que pode ser considerado
um dano talvez bem pior daquele já sofrido.
9.2 DO ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR
Pouco mais de 30 anos o abuso sexual de crianças e adolescentes
era um acontecimento raro, pouco se ouvia falar dessa agressão cometida,
muitas vezes por pessoas muito próximas a ela, aquelas da sua relação
familiar.
No Brasil, o abuso sexual é considerado uma das formas mais
violentas e preocupantes, ainda mais quando se trata de criança e
adolescente.
O abuso sexual do ponto de vista psicológico é segundo Alberto:
Abuso sexual reflecte o uso (literalmente, o abuso) e o desrespeito pela
intimidade e pela pessoa do outro. Quando o outro é uma
Criança e adolescente...
// 149
criança/adolescente, há que destacar o aproveitamento de uma situação de
desigualdade óbvia de poder, de autoridade, de competência social e
cognitiva, pois a criança/adolescente, pelo seu nível de desenvolvimento, não
está em condições de perceber e dar o seu consentimento pleno numa
interacção sexualizada. Mesmo quando essa criança/adolescente é capaz de
afirmar seu consentimento, o abusador recorre ao estatuto de adulto e de
autoridade para a conseguir “prender” nesta relação abusiva. Assim,
consideramos abuso sexual qualquer experiência sexual forçada ou não,
como a exibição de pornografia, até à relação sexual (genital, anal ou oral)
[...] (ALBERTO, 2006, p. 438).
Faiman acrescenta:
Abuso sexual é todo relacionamento interpessoal no qual a sexualidade é
veiculada sem o consentimento válido de uma das pessoas envolvidas.
Quando se verifica a presença de violência física, o reconhecimento do
abuso pode ser mais claro, pela objetividade dos fatos que indicam que o
abusador fez uso de força para vencer a resistência imposta pela vítima
(FAIMAN, 2011, p.112).
Esse tipo de agressão pode ser cometida tanto na esfera intrafamiliar,
como na extrafamiliar.
Importante destacar que há diferença entre a violência sexual citada,
sendo que o abuso sexual extrafamiliar é aquele cometido fora do lar, ou
aquele que abusa, não faz parte da família, já o abuso sexual intrafamiliar é
aquele cometido dentro do seio familiar, envolvendo o menor e parente
próximo, muitas vezes pessoa do convívio diário.
Assim, com o fito de discorrer a respeito da agressão cometida em
crianças e adolescentes, nos limitaremos a discorrer no âmbito do abuso
sexual intrafamiliar.
Esse abuso sexual intrafamiliar, na grande maioria, “[...] não deixa
marcas físicas na vítima e é perpetrado por pessoas diretamente ligadas à
criança, que exerce algum poder sobre ela” (SANTOS apud DE ANTONI;
KOLLER, 2010, p. 329).
A violência sexual cometida em face da criança/adolescente é,
segundo Azambuja “[...] responsável por sequelas que podem acompanhar a
sua vida, com reflexos no campo físico, social e psíquico, justificando o
envolvimento de profissionais de várias áreas na busca de alternativas
capazes de minorar os danos” (AZAMBUJA, 2010, p. 211).
No entanto, é preciso punir aquele que cometeu o ato sexual, todavia,
para que isso acontece é preciso produzir a prova da violência sexual, que
não obstante, é realizada através do depoimento pessoal do abusado, que
deverá ser tomada de forma a não violar ainda mais os seus direitos.
9.3 DA ESCUTA ESPECIAL
É sabido, que para que algo possa ser feito judicialmente em relação
aos abusos sexuais cometidos contra criança/adolescente, é preciso que seja
150 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
por ela rompido o silêncio, é necessário que queira falar, mas também, é de
suma importância que alguém queira escutá-la, e mais do que isso, que
queira protegê-la.
Nesse instante, o momento que se dará a oportunidade dessa
criança/adolescente de falar em juízo, se fará necessário que o Poder
Judiciário zele pelo cuidado na coleta do depoimento de forma ética, onde a
preocupação com o bem estar e a proteção da criança, devam estar sempre
em primeiro lugar.
Nesse contexto, é que se discorrerá, acerca da escuta de crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência onde deverá ser pautada
pela Doutrina da Proteção Integral, no Princípio da Dignidade Humana, com
o intuito de sempre proteger, cuidar, amparar a vítima.
Já “[...] posteriormente, há uma preocupação com a qualidade da
prova testemunhal, cuja validade pode vir a ficar comprometida devido à
forma como um relato é obtido” (WELTER; LOURENÇO; ULLRICH STEIN;
PINHO, apud HOLLYDAY; BRAINERD; REYNA; WELTER; FEIX, 2015,
p.11).
Por isso da necessidade de realizar a entrevista com técnica
adequada, pois ela auxiliará na redução de danos, pois “[...] a entrevista
cognitiva reduz chances de falsas memórias” (ÁVILA, 2013, p. 152).
Ainda, com tais cuidados, será possível se aproximar ou até mesmo
chegar aquele que de fato cometeu o abuso, sem que ocorra nenhuma, ou a
mínima margem de injustiça.
Contudo, para que esse processo de inquirição se concretize, não
basta simplesmente inquirir, é necessário que se tenha todo um aparato para
que esse testemunho infantil se concretize da forma mais verídica possível,
pois além da veracidade, que não comprometerá o julgado, demonstrará que
a técnica utilizada realmente foi de qualidade, de respeito e de
comprometimento com a vítima que se encontra em situação de
vulnerabilidade.
Necessário fazer um parênteses, e deixar claro ao leitor, que a
violência física, psicológica sofrida pela criança/adolescente quando vítima
de abuso sexual, é prática quase impossível de calcular, pois pode essa
agressão acontecer e nunca chegar ao conhecimento das autoridades em
razão do preconceito criado em torno de contar o fato, da vergonha, do medo.
Por isso, quando fatos sérios como esse são levados ao conhecimento do
poder público devem ser tratados de forma única, com muito cuidado.
Daí a necessidade da aplicação da técnica especial para se extrair o
depoimento dessa vítima, pois além de muitas vezes a família querer
esconder o ato cometido, surge outro dilema, o de encontrar quem possa
testemunhar, tendo em vista que essas agressões não possuírem
testemunhas, serem feitos na “surdina”, se serem cometidos na presença
apenas da vítima e do agressor.
E, além dessa forma oculta em que é cometido tamanho crime, a
vítima se cala, em função de sentimento de medo, vergonha ou até mesmo
Criança e adolescente...
// 151
culpa, o que dificulta por vezes a colheita do seu testemunho e
consequentemente chegar ao agressor.
Para isso, a necessidade que a Justiça possua técnicas especiais
para se aproximar dessa criança, com o intuito primordial de colher um
depoimento que não lhe cause ainda mais sofrimento daquele já sofrido, pois,
como pondera Luciane Potter:
A criança ou adolescente que foi abusada sexualmente, poderá, se não for
adequadamente atendida e entendida, experimentar outra violação, desta
vez, praticada pelo sistema de justiça, acarretando o processo de vitimização
secundária (POTTER, 2010, p. 18).
Com base, nessas circunstâncias há de ser respeitado no momento
da inquirição os seus direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal
Brasileira, bem como respeitar o seu direito de personalidade. Assim esse
relato colhido da criança/adolescente deve ser obtido, “cercada de cuidados,
obedecendo a critérios rigorosos do ponto de vista ético, técnico e científico”
(WELTER; LOURENÇO; ULLRICH STEIN & PINHO, apud HOLLYDAY,
BRAINERD & REYNA, 2008 apud WELTER & FEIX, 2015, p.11).
E assim deve ser, porque o abuso sexual de crianças e adolescentes
é considerado no Brasil um dos mais graves atos de violência que pode uma
criança sofrer, pois é cometido por aqueles de quem se espera cuidados e
proteção, e não o faz, deixando marcas psicológicas inestimáveis, atingindo
e vítima na sua forma mais intima, o seu lado mais vulnerável.
Diante de tais circunstâncias, é de primordial maneira que se deve
encontrar a melhor forma de se aproximar dessa criança/adolescente, para
que se possa chegar a certeza de quem realmente foi o agressor, além da
tentativa de evitar que se cometa injustiças, e ocorrer uma agressão ainda
pior daquela que a criança já sofreu quando abusada e até mesmo de levar
um inocente a condenação.
Embora o Estado tem o compromisso de com o cidadão de se fazer
representar, através de punir o culpado por um crime, também tem além do
compromisso, o dever de proteger aquele que é vítima, principalmente
quando se está falando de crianças e adolescentes.
Nesse raciocínio, é preciso não esquecer que a criança/adolescente
é amparado pelo princípio do interesse superior da criança, que encontra e
tem como seu fundamento no reconhecimento da peculiar condição de
pessoa humana em desenvolvimento atribuída á infância e juventude, pois
crianças e adolescentes são pessoas que estão ainda em desenvolvimento,
ou seja, seu personalidade ainda não se desenvolveu por completo, estão em
processo de formação, no aspecto físico, psíquico, intelectual , moral e social
(AZAMBUJA, 2008, p. 216).
Ainda, destaca Azambuja:
Os atributos da personalidade infanto-juvenil têm conteúdo distinto dos da
personalidade dos adultos, trazem uma carga maior de vulnerabilidade,
autorizando a quebra do princípio da igualdade; enquanto os primeiros estão
152 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
em fase de formação e desenvolvimento de suas potencialidades humanas,
os segundos estão na plenitude de suas forças (MACHADO, 2003, p. 109).
Desta forma, não há como não aceitar que tanto criança como
adolescente devem ser reconhecidos como sujeitos de direitos, e detentores
da especial proteção do Estado e de todos, em virtude de seu grau de
desenvolvimento.
Neste contexto, surge, através de um trabalho acadêmico
apresentado por Veleda Dobke1, um projeto com o intuito de dirimir os danos
sofridos por uma criança/adolescente de abuso sexual.
Assim, em 2003 surgiu o “Projeto Depoimento Sem Dano”,
implantando no Estado do Rio Grande do Sul, no 2º Juizado da Infância e
Juventude de Porto Alegre (POTTER, 2010, p. 29).
Esse projeto, que também tem sido realizado depoimentos da mesma
forma pelo Centro de Proteção à Criança (CPC), tem como objetivo primordial
coletar o depoimento da vítima em salas especiais, tais salas são projetadas
para que a criança se sinta à vontade e, normalmente, equipadas com
espelho especial, microfone e câmera de vídeo, mas sem brinquedos ou
outras distrações (GOODMAN, 2008, p. 23).
Os depoimentos coletados segundo Marisa Monteiro Borges,
Conselheira Presidente do Conselho Federal de Psicologia:
[...] são assistidos na sala de audiências por transmissão de vídeo, pelo juiz,
pelo promotor de Justiça e pelo acusado e seus defensor, que dirigem
perguntas por meio de uma escuta a um psicólogo que está conversando
com a vítima em uma sala separada e que faz questionamento à vítima. Tal
depoimento é gravado e o DVD anexado aos autos do processo” (BORGES,
2015, p. 2 e 3).
O objetivo principal do Projeto Depoimento Sem Dano, segundo o
Juiz José Antônio Daltoé Cezar, o idealizador desse projeto é:
A busca de redução de danos às vítimas que necessitam ser inquiridas em
juízo, procurando adequar os princípios do processo penal, em especial o
contraditório e ampla defesa, com os princípios constitucionais da dignidade
humana, e prioridade absoluta ao atendimento dos direitos de crianças e
adolescentes (CEZAR, 2007, p.112).
No entanto, o referido projeto, tem gerado grande polêmica entre os
profissionais do Direito e da Psicologia, tendo em vista que o projeto conta
com a participação de assistentes sociais e psicólogos em um trabalho
conjunto, onde estes estão capacitados a realizarem as entrevistas junto as
crianças vítimas de abuso sexual intrafamiliar.
Segundo o Conselho Federal de Psicologia, o trabalho abordado na
escuta especial de crianças (antiga terminologia Depoimento Sem Dano) tem
Trabalho monográfico intitulado “Abuso Sexual: a inquirição das crianças – uma abordagem
interdisciplinar”.
1
Criança e adolescente...
// 153
uma perspectiva do profissional de psicologia diferente da do judiciário, que
por sua vez, tem através da oitiva a “[...] busca da verdade material, colhendo
todas as provas de seu interesse, buscando, quase que prioritariamente, a
efetivação da prestação jurisdicional que se efetiva com a punição do infrator”
(BORGES, 2015, p. 3).
Assim, prega o Conselho Federal de Psicologia, que o trabalho que
o judiciário quer e espera dos profissionais da psicologia, diverge daquele que
os psicólogos procuram realizar, eis que “[...] o compromisso de psicólogos,
é de resguardar a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes,
compromissos lastreados pela afirmação da vida e sua potencialização em
que as pessoas precisam de cuidados” (BORGES, 2015, p. 4).
Ainda:
O Depoimento Especial Sem Dano ou a Escuta Especial não corresponde a
uma proposta que tenha como foco a proteção integral, uma vez que a
inquirição, como testemunho com vistas ao processo penal do abusador têm
implicações que precisam ser consideradas, pois atribui a
crianças/adolescentes a responsabilidade pela produção da prova, já que
são eles que devem, em última análise, dar conta da formalidade processual,
tendo em vista a punição do suposto abusador. Nesse aspecto pode
representar uma nova violência do ponto de vista emocional o que contraria
seu direito à proteção integral (BORGES, 2015, p. 10).
No entanto, mesmo havendo várias críticas a respeito da realização
da escuta especial, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a
Recomendação de nº 33 de 23/11/2010, onde “Recomenda aos tribunais a
criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes
vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais”.
Nessa Recomendação de nº 33, o CNJ, determina que sejam
aplicadas formas diferenciadas das oitivas comuns no judiciário a oitiva das
vítimas de abuso sexual infantil, a fim de evitar a vitimização secundária
dessa criança/adolescentes, são elas:
I – a implantação de sistema de depoimento vídeogravado para as crianças
e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da
sala de audiências, com a participação de profissional especializado para
atuar nessa prática;
a) os sistemas de vídeogravação deverão preferencialmente ser
assegurados com a instalação de equipamentos eletrônicos, tela de imagem,
painel remoto de controle, mesa de gravação em CD e DVD para registro de
áudio e imagem, cabeamento, controle manual para zoom, ar-condicionado
para manutenção dos equipamentos eletrônicos e apoio técnico qualificado
para uso dos equipamentos tecnológicos instalados nas salas de audiência
e de depoimento especial;
b) o ambiente deverá ser adequado ao depoimento da criança e do
adolescente assegurando-lhes segurança, privacidade, conforto e condições
de acolhimento.
154 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
II – os participantes de escuta judicial deverão ser especificamente
capacitados para o emprego da técnica do depoimento especial, usando os
princípios básicos da entrevista cognitiva.
III – o acolhimento deve contemplar o esclarecimento à criança ou
adolescente a respeito do motivo e efeito de sua participação no depoimento
especial, com ênfase à sua condição de sujeito em desenvolvimento e do
consequente direito de proteção, preferencialmente com o emprego de
cartilha previamente preparada para esta finalidade.
IV – os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar aptos a promover
o apoio, orientação e encaminhamento de assistência à saúde física e
emocional da vítima ou testemunha e seus familiares, quando necessários,
durante e após o procedimento judicial.
V – devem ser tomadas medidas de controle de tramitação processual que
promovam a garantia do princípio da atualidade, garantindo a diminuição do
tempo entre o conhecimento do fato investigado e a audiência de depoimento
especial.
Além dessas orientações, segundo Cézar (2014, p. 262) estão mais
algumas:
I – Registro rigoroso da entrevista.
II – Documentação visual dos gestos e das expressões faciais que
acompanham os enunciados verbais da criança.
III – Registro visual e verbal que pode ser revisto muito tempo depois por
outros profissionais.
IV – Redução do número de entrevistas por parte dos outros profissionais.
V – Forma de capacitação contínua para os entrevistadores.
VI – Ajuda efetiva para conseguir uma aceitação do acontecido por parte do
ofensor.
VII – Instrumento de ajuda ao familiar não ofensor ou ao ofensor, facilitando
a compreensão do que aconteceu e do que não aconteceu.
VIII – Ausência da criança em discussões porventura ocorrentes na sala de
audiências.
IX – Prevenção do encontro entre a criança e o potencial abusador nos
corredores do foro.
X – Prevenção de perguntas inapropriadas à criança.
Nessa esteira, verifica-se que o Brasil, abraça a causa na oitiva
especial de crianças e adolescentes abusados sexualmente, com o intuito de
dirimir os danos sofridos, evitando, contudo, a revitimização da criança pelo
uso de técnicas especiais.
No entanto, o Brasil conta com mais de duas mil e setecentas
comarcas (unidades judiciárias) instaladas e em operação, os juízes são, em
regra, generalistas. Tratam de todas as matérias – cível, penal,
previdenciária, fiscal, família, infância e juventude. Todavia, quando se trata
de depoimento especial, o Brasil não supera o número de cem comarcas com
essa técnica especial, onde mais da metade se encontra no estado do Rio
Grande do Sul (CÉZAR, 2014, p. 263).
Criança e adolescente...
// 155
Assim, o que se espera, na realização do Depoimento Especial,
regulamentado pela resolução nº 33 do CNJ, é que todos os estados sigam
a orientação dada, a fim de dirimir a vitimização secundária, garantindo os
direitos da criança e dos adolescentes, aqueles estabelecidos no artigo 12 da
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e ratificada pelo Brasil,
sendo incorporada ao seu direito interno através do Decreto Legislativo nº 28
(CÉZAR, 2008, p. 7):
1. Os estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento
o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhes
respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da
criança, de acordo com sua idade e maturidade.
2. Para esse fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida
nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja
diretamente, seja através de representante ou organismo adequado,
segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da
legislação nacional. Grifo nosso
Assim, é possível verificar que a criança tem o direito de participar
dos processos que lhe digam respeito, no entanto com o devido cuidado a fim
de não lhe causar danos ainda maiores.
Esse é o papel do julgador quando se fala em escuta especial, é
proteger a criança e o adolescente da vitimização secundária, pois não há
lembranças em caso de abuso que não possam causar novos danos, pois
somente o fato de relembrar todo o processo de violência que sofreu com o
abuso sexual intrafamiliar já é o próprio dano vivo na memória, no entanto,
existe a possibilidade de minimizar.
Razão que se faz de todo um aparato para realizar a oitiva dessa
criança/adolescente, pois se o objetivo for apenas o de produzir provas e
elevar os índices de condenação, isso “[...] não assegura a credibilidade
pretendida, além de expor a vítima a nova forma de violência, ao permitir
reviver situação traumática, reforçando o dano psíquico” (AZAMBUJA, 2008,
p. 226).
Dessa forma, evitando-se que ocorra a vitimização secundária, estará
resguardando os direitos de personalidade dessa vítima, protegendo sua
honra, sua própria imagem a exposições desnecessárias e abusivas, pois
como sabiamente discorre Luciane Potter “[...] o que a vítima deseja é
respeito aos seus direitos, dignidade e solidariedade, além de conduta ética
dos agentes e instâncias de controle social” (POTTER, 2007, p. 13).
No entanto, para que de fato ocorra o que se traduz da Resolução
33/2010 do CNJ, não basta a mudança do método de inquirição, é necessário
que ocorra também a mudança daquele operador do direito, bem como a
equipe interdisciplinar que permeia todo o aparato de mudança.
Bitencourt salienta ainda, que “[...] não adianta mudar os métodos de
investigação processual se não for mudada a postura inquisitorial das
pessoas que aplicam o método” (BITENCOURT, 2008, p. 18).
156 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Com razão, pois intervenções inadequadas, acabam com certeza
com insensíveis prejuízos ao desenvolvimento da criança (AZAMBUJA, 2008,
p. 226).
Potter acrescenta:
As diversas intervenções podem produzir um dano traumatismo maior nos
relacionamentos familiares e nas crianças individualmente do que o abuso
original. Além de produzir a revitimização, a repetição de entrevistas, como
demonstram as pesquisas científicas, poderá fragilizar a confiabilidade da
declaração da vítimas como prova no processo criminal (PISA, STEIN, 2007,
p. 465).
O modelo apresentado como orientação do CNJ (conselho Nacional
de Justiça), como já salientado anteriormente, é para que se tenha
possibilidade de êxito na inquirição de crianças e de adolescentes perante o
sistema de justiça, sendo assim, operadores do direito e serviços auxiliares,
bem como psicólogos, assistentes sociais, educadores, de acordo com
Cézar:
[...] estão participando de uma mesma atividade, com o mesmo fim, é
indispensável que todos dominem conteúdos mínimos sobre todas as áreas
de conhecimento que estão nela envolvidas. É indispensável que juízes,
promotores de justiça e advogados que participam dessas atividades tenham
conhecimentos mínimos acerca das peculiaridades que envolvem as
situações de abuso e de exploração sexual (CÉZAR, 2014, p. 265).
Ainda:
Enfim, o que se busca com a capacitação de todos os agentes que trabalham
com crianças e adolescentes vítimas de violência é que tenham eles um olhar
coletivo sobre cada situação a ser avaliada, mantida a autonomia técnica de
cada um, que é própria de cada saber. Dessa forma, as ações na busca de
soluções serão mais perceptíveis e concretas. Nenhuma esfera de
conhecimento atenderá, individualmente, às necessidades do atendimento
integral a crianças e a adolescentes (CÉZAR, 2014, p. 265).
Assim, todos devem estar envolvidos nessa tarefa, a fim de obter uma
oitiva de forma não revitimizadora, e de todas as formas possíveis tentar da
maneira mais adequada não ferir ainda mais os direitos dessas
crianças/adolescentes, garantindo, contudo, aqueles estabelecidos no
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Não existe, depoimento que não cause “dano”, pois falar não é um
ato sem consequências, no entanto, é possível evitar que as crianças e
adolescentes, através da escuta especial, que esse dano se torne o mínimo
possível.
Criança e adolescente...
// 157
9.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a leitura do trabalho em comento, verifica-se que há e muito a
preocupação com as vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Tanto, foi possível
observar que se mostrou que há profissionais não apenas da área jurídica,
como também de profissionais da saúde engajados em um único fim, o de
minimizar a revitimização das vítimas de abuso sexual, em especial, aquelas
mais vulneráveis, no caso, as crianças e adolescentes.
O país vem através de uma técnica especial, com o propósito de
diminuir os danos que essas vítimas podem vir a passar, ao necessitar passar
pelo sistema judiciário como testemunha do fato, utilizando-se da gravação
em vídeo, do depoimento judicial, realizado em uma sala especial, com todo
aparato para realizar a oitiva dessa vítima. Além de todas essas técnicas,
também a toda uma equipe interdisciplinar (juiz, membro do Ministério
Público, psicólogos, assistentes sociais) a fim de tomar o depoimento com
todo o cuidado para evitar um dano ainda maior daquele sofrido na
vitimização primária.
Assim, o intuito do presente trabalho é mostrar que existe forma para
que seja tomado o depoimento de vítimas de abuso sexual, com o fito de
protege-la, evitando ou ao menos minimizando a ocorrência da vitimização
secundária, preservando-a de intervenções desnecessárias, inadequadas e
garantindo seus direitos.
Procurou-se ainda mostrar que a “Escuta Especial”, é um mecanismo
de controle para resguardar os direitos da vítima, dando maior efetividade aos
direitos fundamentais dos sujeitos no curso do processo judicial.
Também, as formas que se utilizam para conseguir subtrair o
depoimento, não tem o objetivo apenas de condenar o abusador, atingir
metas de condenação, pelo contrário, tem o escopo de proteger o próprio
acusado de acusações falsas, pois se a acusação imputada a ele for provado
que não era, o levará a absolvição.
No entanto, a técnica utilizada, que ainda não foi alcançada em todo
país, apesar da recomendação n. 33 do CNJ, em razão de motivos que muitas
vezes fogem ao alcance do próprio judiciário, como situação econômica, por
exemplo, podem não ser o método mais eficaz para abrandar a violência
sofrida, mas busca soluções de redução de danos, proteção e o interesse
superior de tutela das crianças e adolescentes vítimas e testemunhas.
Dessa forma, é necessário ressaltar que apesar das falhas que
possam ocorrer na fase de inquirição, o que se deve sempre prevalecer é o
princípio superior de tutela e o melhor interesse da criança/adolescente.
Todavia, não basta apenas aplicação de um novo método, como já
mencionado, pois este não significa simplesmente uma nova técnica de
investigação, mas sim, essa nova técnica, deve significar um novo momento,
para gerar uma cultura ética que visa tutelar processualmente, e mais do que
isso, visa proteger a vítima vulnerável, ser em desenvolvimento, levando em
consideração as suas diferenças.
158 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Assim, é possível reconhecer que a Escuta Especial é uma forma de
redução de danos sim, e que a criança deve ser protegida e resguardada de
qualquer desconforto ou embate, devendo sempre procurar manter uma
política criminal ética e de respeito a pessoa que ainda se encontra em fase
de desenvolvimento, no caso, a criança e o adolescente.
9.5 REFERÊNCIAS
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CEZAR, José Antônio Daltoé. Depoimento sem Dano. Uma alternativa
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CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 125, de 29 de novembro
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adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá
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nov. 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/
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incesto à luz da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
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garantir a precisão do testemunho e evitar a revitimização. In: SANTOS,
Benedito Rodrigues dos; GONÇALVES, Itamar Batista Gonçalves
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PISA, Osnilda, STEIN, Lilian Milnistsky. Abuso Sexual Infantil e a Palavra
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Ministério Público – RS. Centro de Apoio Operacional da Infância e da
Adolescência (org.). Dados eletrônicos. vol. 1, n. 1 (jul./set. 2010). Porto
Alegre: PGJ, 2010- Disponível em:
<http://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/revista_digital/revista_di
gital_ed_03.pdf>. Acesso em: 10 set. 2015.
160 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
=X=
DA INEFICIÊNCIA NA CONCRETIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA
DE SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR
NO MUNICÍPIO DE MARINGÁ-PARANÁ
Ivan Aparecido Ruiz*
Tais Zanini de Sá Duarte Nunes*
10.1 INTRODUÇÃO
Por muitas décadas difundiu-se a ideia de que o meio mais adequado
de proporcionar ao indivíduo a concretização de seus direitos, previstos em
normas constitucionais de eficácia limitada, em especial os princípios
programáticos, seria por meio da jurisdição estatal. Passados mais de vinte e
cinco anos da promulgação de Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, as políticas públicas se encontram em destaque, nos debates que
se travam a respeito, como forma de realização dos direitos fundamentais e
garantias para a promoção do ser humano, porém muitas delas, ainda, como
promessas solenes.
Tem-se presenciado no Brasil, a exemplo do que acontece em outros
países desenvolvidos, a criação progressiva de várias políticas públicas com
a finalidade de promover a dignidade do ser humano em todos os âmbitos,
destacando-se, neste trabalho, a Política Nacional de Segurança e Saúde do
Trabalhador (PNSST).
O tema é bastante relevante para grande parte da sociedade, classe
trabalhadora, uma vez que o ambiente de trabalho inseguro, propício a
acidentes, pode gerar danos irreparáveis ao trabalhador e sua família, além
de, reflexamente, prejuízo a toda a sociedade, pois o ser humano que tinha
potencial para crescer e desenvolver-se por recursos e capacitação próprios,
torna-se um “fardo” ao Estado, que terá de mantê-lo e aos seus dependentes
por meio do auxílio de programas governamentais e outras tantas formas
assistenciais.
Como se percebe, a dignidade da pessoa humana, própria das
pessoas, é qualidade intrínseca e distintiva do ser humano, precedendo ao
*
Pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL, Doutor
em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP,
Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR,
Professor Associado do Curso de Graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá –
UEM/PR e, também, do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas do Centro Universitário
de Maringá – CESUMAR. Advogado no Paraná.
*
Mestranda em Ciências Jurídicas, Natureza: Direitos da Personalidade, pelo Centro
Universitário de Maringá – UNICESUMAR. Especialista em Direito do Estado e Relações Sociais
pela Universidade Católica Dom Bosco – PUC de Campo Grande/MS e Direito Tributário pela
Universidade Anhanguera.
162 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Estado. Nada obstante, uma vez considerada a existência deste, não há
dúvidas de que sua função é realizar o complexo de atos que assegurem o
bem comum da coletividade administrada. A dignidade da pessoa humana é,
então, um modo de poder-dever pelo qual todos são chamados a participar
da grande aldeia comunitária. Mais que isso, é ela objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, da CRF/88) 1. A vigente
Constituição assegura a todos direitos e garantias fundamentar, muito deles
devidos pelo próprio Estado. Ao mesmo tempo todas as pessoas possuem
deveres nesse ambiente social. Uma das preocupações que brotam nesse
quadro todo é a segurança no ambiente do trabalho, que deve ser
assegurada com políticas públicas.
Vislumbra-se que essas políticas devem proporcionar ao trabalhador
menos riscos de acidente e doenças equiparadas, evitando que o mesmo
tenha de se ausentar do trabalho por determinado período ou que tenha de
se aposentar definitivamente, de forma precoce, dando-lhe condições de ter
uma melhor qualidade de vida, tal como prevê a Constituição Federal de
1988, em seu art. 6º2, quando do tratamento dos Direitos Sociais, no Título
dos Princípios Fundamentais; em outra esfera, evitam-se outras tantas
consequências negativas para o indivíduo, sua família, empregador e Estado.
No decorrer deste trabalho, buscar-se-á analisar a implantação e
aplicação da Política Pública Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador
no município de Maringá, no Estado do Paraná, por intermédio do
levantamento de dados concretos junto a Secretaria Municipal de Saúde e
Vigilância Sanitária, apontando-se, também, possíveis falhas na
concretização desta Política Pública, na tentativa de contribuir com soluções
plausíveis, para que o trabalhador encontre no Administrado Público, o
amparo necessário para concretização de seus direitos.
Nesse contexto, a presente pesquisa, pela sua sempre atualidade,
bem como pela importância que o assunto requer, justifica plenamente o seu
estudo e enfrentamento. O eixo teórico da presente pesquisa e estudo teve
por base os autores nacionais que tratam da matéria, principalmente os
ensinamentos de Maria Paula Dallari Bucci, em sua obra Fundamentos para
uma teoria jurídica das políticas públicas.
10.2 BREVES NOÇÕES SOBRE O CONCEITO DE POLÍTICA PÚBLICA
Cumpre ressaltar, a princípio, que as políticas públicas adquiriram
relevância somente após a 2ª Guerra Mundial e de diversos acontecimentos
que frustraram as expectativas do Estado Liberal e as pessoas que convivem
com esse modelo, levando-se ao reconhecimento de que o Estado precisa e
“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana [...]”.
2
“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
1
Da ineficiência na concretização...
// 163
deve contribuir com outros entes da sociedade para o bem-estar social, pois
a pessoa nunca estará imune de enfrentar adversidades na vida.
A conceituação de política pública é de extrema complexidade, uma
vez que sofre a influência de uma gama de fatores sociais, políticos,
econômicos e dos diversos regimes, sistemas e atores existentes. O foco a
ser observado para o entendimento das políticas públicas está na dimensão
subjetiva dos direitos e garantias fundamentais, que dá ao titular do direito a
condição de exigir e ver assegurado o seu cumprimento em face de terceiros
e, mais especificamente, na sua eficácia vertical, que estabelece a relação
entre Estado e indivíduo, gerando a responsabilidade do Estado para com o
indivíduo, pois como afirma Livia Regina Savergnini Bissoli Lage: “Esse
aspecto da dimensão subjetiva determinará ao Estado o atingimento de
certos fins e a realização de determinadas condutas, que poderão se
apresentar como direitos subjetivos (individuais ou supraindividuais)” (LAGE,
2013, p. 154).
Desse modo, o sistema normativo em si, enquanto Direito, não
constitui, pois, por óbvio, a dignidade da pessoa humana perante as normas
de eficácia voltadas para proteção e segurança do trabalhador. O que ele
pode é tão-somente reconhecê-la como dado essencial da construção
jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização
social, protegendo a pessoa e criando garantias institucionais postas à
disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o
respeito à sua estatuição. Por isso é importante atentar que a Constituição
Federal de 1988, não fala só em Direitos, mas, em Direitos e Garantias. A
garantia está aí, justamente, para assegurar os Direitos que são declarados,
previstos no texto da Lei Maior. A dignidade é mais um dado jurídico que uma
construção acabada no direito, porque firma e se afirma no sentimento de
justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de
realizar as suas vocações e necessidades (ROCHA, 1999, p. 26).
Sendo assim, apesar do indivíduo possuir limitações legais quanto à
exigência de seus direitos, bem como deveres a cumprir, o Estado
Administrador não pode se abster de prover as condições para que o
indivíduo exerça o seu direito, principalmente quando se tratar de um direito
e garantia fundamental.
É certo que o Estado deve cumprir com o que está previsto
constitucionalmente, contudo, as normas de eficácia limitada, em especial
quando preveem princípios programáticos, dificultam a cobrança de seu
cumprimento por parte da pessoa em face da Administração Pública. Lívia
Regina Savergnini Bissoli Lage esclarece que as normas programáticas são
diretrizes que devem ser observadas em qualquer momento de concretização
das atividades estatais e obrigam o Estado a observar os direitos
fundamentais, portanto, a Constituição não pode ser tratada como mero pacto
político (LAGE, 2013, p. 171).
Nilva M. Leonardi Antonio, valendo-se dos ensinamentos de Ada
Pellegrini Grinover e Oswaldo Canela, afirma que a Constituição do Estado
164 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Democrático de Direito é, em sua essência, normativa, por isso, não pode ser
considerada meramente simbólica, in verbis:
E, para atingir esses objetivos fundamentais (aos quais se acresce o princípio
da prevalência dos direitos humanos: art. 4º, II, da CF), o Estado tem que se
organizar no facere e praestare, incidindo sobre a realidade social. É aí que
o Estado social de direito transforma-se em Estado democrático de direito.
Mas como operacionalizar o atingimento dos objetivos fundamentais do
Estado brasileiro?
[...] Para o Estado social atingir esses objetivos, faz-se necessária a
realização de metas, ou programas, que implicam o estabelecimento de
funções específicas aos Poderes Públicos, para a consecução dos objetivos
predeterminados pela Constituições e pelas leis. Desse modo, formulado o
comando constitucional ou legal, impõe-se ao Estado promover as ações
necessárias para a implantação dos objetivos fundamentais. E o poder do
Estado, embora uno, é exercido segundo especialização de atividades: a
estrutura normativa da Constituição dispõe sobre suas três formas de
expressão: a atividade legislativa, executiva e judiciária (ANTONIO, 2013, p.
190).
Para Maria Paula Dallari Bucci, a política pública pode ser
conceituada como:
[...] o programa de ação governamental que resulta de um processo ou
conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral,
processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário,
processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando
coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a
realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
Como tipo ideal, a política pública deve visar à realização de objetivos
definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios
necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o
atingimento dos resultados (BUCCI, 2013, p. 30).
Os renomados pesquisadores da área de políticas públicas Michael
Howlett, M. Ramesh e Anthony Perl mencionam sobre a dificuldade de se
encontrar homogeneidade na sua conceituação, mas esclarecem que apesar
disso é possível encontrar-se pontos comuns no ciclo de políticas públicas
dos diversos países. Assim, utilizam-se das definições de Thomas Dye e
William Jenkins como um esboço geral para definir política pública. Segundo
Jenkins, a política pública pode ser conceituada como:
[...] um conjunto de decisões inter-relacionadas, tomadas por um ator ou
grupo de atores políticos, e que dizem respeito à seleção de objetivos e dos
meios necessários para alcançá-los, dentro de uma situação específica em
que o alvo dessas decisões estaria, em princípio, ao alcance desses atores
(HOWLETT; PERL, 2013, p. 8).
Da ineficiência na concretização...
// 165
De acordo com Michael Howlett, M. Ramesh e Anthony Perl, o
liberalismo, o capitalismo e a democracia, dentre muitos outros fatores e
sistemas, exercem um papel fundamental e contribuem diretamente na
policy-making, influenciando os atores e ideias na maioria de seus processos;
contudo, a ação do governo estará também relacionada à “maneira como o
governo e os vários atores mais ou menos empoderados estão organizados
sob o capitalismo liberal” de cada país, por isso afirmam que a criação e a
implantação das políticas de forma eficaz, em uma democracia capitalista,
dependem da organização e apoio recebido pelo Estado de notáveis atores
sociais (HOWLETT; PERL, 2013, p. 66).
Para Michael Howlett, M. Ramesh e Anthony Perl “[...] a policymaking trata fundamentalmente de atores cercados por restrições que tentam
compatibilizar objetivos políticos (policy goals) com meios políticos (policy
means), num processo que pode ser caracterizado como “resolução aplicada
de problemas” (HOWLETT; PERL, 2013, p. 5).
Em suma, os referidos autores extraem da lição de vários teóricos
que as políticas públicas são decisões tomadas por governos que definem
um objetivo e determinam os meios para alcançá-lo e concluem:
Todas as definições apresentadas até este momento postulam que a política
pública é um fenômeno complexo que consiste em inúmeras decisões
tomadas por muitos indivíduos e organizações no interior do próprio governo
e que essas decisões são influenciadas por outros atores que operam interna
e externamente no Estado. Observa-se que os efeitos das políticas públicas
são moldados no cerne das estruturas nas quais esses atores operam e de
acordo com as ideias que eles sustentam; essas forças também afetaram as
políticas e as decisões relacionadas nas interações anteriores dos processos
de policy-making (HOWLETT; PERL, 2013, p. 12).
Fernando Aith traz, ainda, a diferenciação entre política pública de
Estado e de Governo, pautando-se principalmente em seus objetivos,
considerando que a primeira terá como meta a consolidação institucional da
organização política do Estado, a consolidação do Estado Democrático de
Direito e a garantia da soberania nacional e da ordem pública, enquanto a
segunda volta-se para ações pontuais de proteção e promoção aos direitos
humanos específicos expressos na Constituição (AITH, 2006, p. 235).
Cumpre ressaltar que o mencionado autor traz outras características
diferenciadoras de política de Estado e política de Governo, observando
quanto a quem pode promover a elaboração, planejamento e execução da
política pública, e argumenta que, geralmente, as políticas de Estado devem
ser exclusivamente realizadas pelo governo, não sendo passíveis de
delegação ou terceirização, ou quebra de continuidade, ao passo que as
políticas de Governo podem ser terceirizadas ou delegadas bem como sofrer
a quebra de continuidade (AITH, 2006, p. 237).
Importante destacar, no concernente a saúde pública, que ela sempre
esteve relacionada à concepção de política pública, uma vez que é
indispensável à intervenção do Estado tanto na regulamentação dos direitos
166 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
relativos à saúde da pessoa como na distribuição de bens e serviços; assim,
desde a criação do Estado Moderno, vislumbra-se a saúde pública como uma
política de Estado (DALLARI, 2006, p. 252).
A ideia de prevenção e intervenção do Estado como prioridade
política na saúde pública remonta a segunda metade do Século XIX, quando
se identificou que ao promover a saúde aos menos abastados também estarse-ia combatendo a miséria que perturba a ordem pública e que já foi motivo
para derrubada de muitos poderes como exemplo da Revolução Francesa
em 1789, a partir da qual se dá início a uma série de medidas preventivas de
higiene, vacinação, regulamentação de várias profissões da área etc.
(DALLARI, 2006, p. 251).
Sueli Gandolfi Dallari esclarece que a proteção sanitária encontrou
guarida como política de Estado no início do Século XX sendo classificada
em 3 níveis de prioridades, a saber:
[...] a primária, que se preocupa com a eliminação das causas e condições
de aparecimento das doenças, agindo sobre o ambiente (segurança nas
estradas, saneamento básico, por exemplo); a secundária, ou prevenção
específica, que busca impedir o aparecimento de doença determinada, por
meio da vacinação, dos controles de saúde, da despistagem; e a terciária,
que visa limitar a prevalência de incapacidades crônicas ou de recidivas
(DALLARI, 2006, p. 252).
Neste aspecto, a Política Nacional de Segurança e Saúde do
Trabalhador almeja, por meio da ação conjunta e complementar do Ministério
da Saúde, do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério da Previdência
Social e demais atores proeminentes no cenário nacional, melhorar a
qualidade de vida do trabalhador e dar cumprimento aos normativos
constitucionais que garantem ao trabalhador condições dignas de trabalho,
abrangendo, por isso, todas as prioridades acima mencionadas.
10.3 DOS ACIDENTES E DOENÇAS RELACIONADAS AO TRABALHO:
UMA PREOCUPAÇÃO MUNDIAL
A preocupação com a segurança e saúde do trabalhador é muito
recente e talvez só tenha sido desencadeada pelos vários prejuízos que o
acidente ou doenças relacionadas ao trabalho geram a toda a sociedade,
pois, até a Revolução Industrial os mesmos eram diluídos ou não atrelados
ao trabalho. Assim, quando cessava a produtividade do trabalhador este
simplesmente ficava à mercê de parentes, amigos ou samaritanos.
A evolução das pesquisas e estudos comprovaram que o ser humano
pode ser esgotado por meio do trabalho excessivo ou em condições
inadequadas, os quais são contra producentes, fazendo com que a pessoa
deixe de produzir o que se espera temporária ou definitivamente, gerando
prejuízo à empresa, aos cofres públicos e à sociedade como um todo.
Além do fator econômico, que na realidade é o que realmente
preocupa o Estado, busca-se valorizar a pessoa, dar-lhe condições de uma
Da ineficiência na concretização...
// 167
vida digna, extraindo-se do papel as intenções pactuadas em tantas
Declarações Internacionais.
Segundo o nosso ordenamento jurídico, o acidente de trabalho será
assim considerado quando ocorrer pelo exercício do trabalho a serviço da
empresa ou pelo exercício do trabalho, e que venha a provocar lesão corporal
ou perturbação funcional que gere a morte ou a perda ou redução,
permanente ou temporária da capacidade para o trabalho, nos termos do art.
193, caput, da Lei federal n. 8.213/91.
Para proteger o trabalhador e conceder-lhe o amparo devido, a lei
equiparou o acidente de trabalho propriamente dito à doença profissional e
do trabalho, conforme previsão dos arts. 20 e 21 da Lei federal n. 8.213/91,
in verbis:
Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior,
as seguintes entidades mórbidas:
I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo
exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da
respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência
Social;
II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em
função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se
relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.
[...] § 2º. Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na
relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições
especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente,
a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.
Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta
Lei:
I - o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única,
haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para redução ou
perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija
atenção médica para a sua recuperação;
II - o acidente sofrido pelo segurado no local e no horário do trabalho, em
consequência de:
a) ato de agressão, sabotagem ou terrorismo praticado por terceiro ou
companheiro de trabalho;
b) ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por motivo de disputa
relacionada ao trabalho;
“Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa
ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII
do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou
a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. § 1º. A empresa
é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança
da saúde do trabalhador. § 2º. Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a
empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho. § 3º.É dever da empresa
prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a executar e do produto a
manipular. § 4º.O Ministério do Trabalho e da Previdência Social fiscalizará e os sindicatos e
entidades representativas de classe acompanharão o fiel cumprimento do disposto nos
parágrafos anteriores, conforme dispuser o Regulamento”.
3
168 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
c) ato de imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de
companheiro de trabalho;
d) ato de pessoa privada do uso da razão;
e) desabamento, inundação, incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes
de força maior;
III - a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no
exercício de sua atividade;
IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de
trabalho:
a) na execução de ordem ou na realização de serviço sob a autoridade da
empresa;
b) na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe evitar
prejuízo ou proporcionar proveito;
c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quando financiada
por esta dentro de seus planos para melhor capacitação da mão de obra,
independentemente do meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de
propriedade do segurado;
d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela,
qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do
segurado.
§ 1º. Nos períodos destinados a refeição ou descanso, ou por ocasião da
satisfação de outras necessidades fisiológicas, no local do trabalho ou
durante este, o empregado é considerado no exercício do trabalho.
Em palestra proferida no XX Congresso Mundial de Segurança e
Saúde do Trabalhador que ocorreu em Frankfurt, Alemanha no ano de 2014,
o diretor geral da OIT, Guy Rider, afirmou que os acidentes e doenças do
trabalho matam mais que a guerra, estimando-se que morrem, anualmente,
cerca de 2,34 milhões de pessoas no mundo em virtude de acidentes e
doenças do trabalho, gerando custos diretos e indiretos de aproximadamente
2,8 bilhões de dólares (RIDER, 2014).
De acordo com os dados nacionais do anuário estatístico da
Previdência Social, foram registrados em 2013 aproximadamente 717, 9 mil
acidentes do trabalho no Brasil, ocorrendo um aumento de 0,55% em relação
ao ano anterior (MINISTÉRIO DA PREVIDENCIA SOCIAL, 2013).
O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, publicou em
seu site que, atualmente, tem-se registrados no Brasil mais de 2.700 mortes
por ano, mais de 80 acidentes por hora e mais de 7 mortes por dia
relacionadas a acidentes do trabalho, acarretando um prejuízo anual de 70
bilhões de reais, o que poderia ser evitado com o aumento da fiscalização e
do número de auditores fiscais do trabalho, uma vez que se tem em nosso
país o equivalente a 1 auditor fiscal para 3 mil empresas, sendo impossível
uma fiscalização adequada à necessidade dos trabalhadores (SINAIT, 2015).
Deve-se frisar que os dados oficiais da Previdência Social estão
aquém da realidade, pois a mesma não consegue detectar os casos ocorridos
em trabalho informal, restando ao Ministério da Saúde a melhor precisão das
referidas estatísticas.
Da ineficiência na concretização...
// 169
No município de Maringá, Estado do Paraná, segundo dados
disponibilizados pela Secretaria Municipal de Saúde, mais especificamente o
setor de vigilância ambiental, os acidentes graves de trabalho, ou seja,
aqueles que resultaram em morte ou amputação de membro, passaram a ser
registrados pelo Poder Público Municipal somente a partir de 2009,
constatando-se, conforme os gráficos seguintes, um aumento dos casos e a
necessidade de uma intervenção mais eficaz no município, a saber:
Figura 1- Acidente de Trabalho Grave em números absolutos por ano.
Maringá–PR.- 2008 a 2013.
27
24
27
2009
2010
2011
273
280
2012
2013
1
2008
Fonte: SINAN / VE – Maringá
Figura 2 – Distribuição dos acidentes de trabalho atendidos nas unidades de atendimentos
segundo o tipo de acidente. Maringá-PR. - 2008 a 2013.
15%
Típico
Trajeto
85%
Fonte: SINAN / VE – Maringá
Verificou-se, também, de acordo com informações diretas da
Secretaria Municipal de Saúde de Maringá da Prefeitura do Município de
Maringá, que as categorias mais sujeitas a acidentes do trabalho de natureza
grave são os motoristas, trabalhadores da construção civil e rurais.
10.4 DA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA PARA A CRIAÇÃO DA POLÍTICA
PÚBLICA NACIONAL DE SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR
São inúmeros os tratados e convenções internacionais que
influenciaram a criação da Política Pública Nacional de Segurança e Saúde
170 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
do Trabalhador no Brasil, cuja regulamentação se deu por força do Decreto
7.602, assinado pela presidente Dilma Rousseff, no dia 7 de novembro de
2011.
A OIT – Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919,
como consequência do Tratado de Versalhes, é responsável pela
normatização internacional do trabalho, estabelecendo convenções e
recomendações que poderão ser ratificadas pelos países interessados,
dentre os quais o Brasil, que está entre os seus fundadores, e vem
participando das conferências mundiais desde a sua criação (OIT, 2015).
A Convenção n. 12 da OIT, de 1921, tratou especificamente do
acidente do trabalho na agricultura e desde então muitas outras convenções
e regulamentos relativos a prevenção de doenças e acidentes do trabalho
foram editadas.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, trouxe
destaque à dignidade do trabalhador ao prever em seu art. XXIII, 1 a 4, o
direito a condições satisfatórias de trabalho, a saber: “1. Toda a pessoa tem
direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e
satisfactórias de trabalho e à proteção contra o desemprego” (VIEIRA, 2013).
O Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais
de 1966, adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI), da Assembleia Geral das
Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil em 24
de janeiro de 1992, também teve grande influência ao prever o direito de
saúde e segurança do trabalhador nos seguintes termos: “Art. 7º. Os Estados
Membros no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar
de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente:
[...] 4. Condições de trabalho seguras e higiênicas; [...]”(ONU,1966).
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934,
é a primeira Constituição brasileira a prever direitos aos trabalhadores e o fez
no Título IV – Da ordem econômica e social, tratando em seu art. 121, nas
letras “c”, “e”, “g”, e “h”, sobre a melhoria das condições do trabalhador da
cidade ou do campo, com a limitação de horas de trabalho, repouso
hebdomadário (preferencialmente aos domingos), férias remuneradas, e
assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante. E ainda, cria em
seu art. 122, os Tribunais do Trabalho e Comissões de Conciliação.
Avançando, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de
novembro de 1937, previu em seu art. 136, que “[...] A todos é garantido o
direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de
subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger,
assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa”.
Não retrocedeu a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18
de setembro de 1946, vez que continuou buscando proteger o trabalhador
por intermédio do equilíbrio entre a liberdade de iniciativa e a valorização do
trabalho humano (art. 145), bem como elencou, dentre outros, os direitos que
já eram garantidos como a limitação da jornada, repouso semanal
remunerado, férias anuais remuneradas, inovando no direito à higiene e
Da ineficiência na concretização...
// 171
segurança do trabalho e a assistência sanitária, inclusive hospitalar e médica
preventiva, ao trabalhador e à gestante (art. 157, incs. V, VI, VII, VIII, XIV).
Acrescentando como princípio norteador a valorização do trabalho
como condição da dignidade humana, a Constituição da República Federativa
do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, manteve em seu texto os direitos a
higiene e segurança do trabalho e a assistência sanitária, inclusive hospitalar
e médica preventiva, ao trabalhador (arts. 157, inc. II e 158, incs. IX, XV).
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 17 de outubro
de 1969, também demonstrou preocupação com a segurança e saúde do
trabalhador mantendo em seu art. 165 os direitos já previstos nas
Constituições anteriores.
Sérgio Pinto Martins destaca que a preocupação com a saúde do
trabalhador só passou a existir após a Revolução Industrial e o surgimento
de novos processos industriais, tornando-se relevante no Brasil somente
após a Lei federal n. 6.514/77, que deu nova redação aos arts. 154 a 201, da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), complementada pela Portaria n.
3.214/78, que regulamentou o serviço especializado em segurança e
medicina do trabalho, utilização de equipamento de proteção individual,
atividades e operações insalubres e perigosas, dentre outros temas
(MARTINS, 2006, p. 622).
Importante destacar a Convenção da OIT n.º 155, de 3 de junho de
1981, cuja vigência nacional se deu em 18 de maio de 1993 pela promulgação
do Decreto n. 1.254, de 29 de setembro de 1994, a qual estabeleceu o dever
dos Estados-membros de elaborarem uma política nacional sobre segurança
e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho, da seguinte forma:
PARTE II. PRINCÍPIOS DE UMA POLÍTICA NACIONAL
Artigo 4
1. Todo Membro deverá, em consulta às organizações mais representativas
de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta as condições e a
prática nacionais, formular, por em prática e reexaminar periodicamente uma
política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos
trabalhadores e o meio ambiente de trabalho.
2. Essa política terá como objetivo prevenir os acidentes e os danos à saúde
que forem consequência do trabalho, tenham relação com a atividade de
trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na
medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio
ambiente de trabalho (OIT, 2014).
A atual Constituição do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988,
dentre inúmeros outros direitos, trouxe em seu art. 7º, inc. XXII, o de “redução
dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e
segurança;”. Não se pode olvidar que esses direitos, estabelecidos na
Constituição e leis infraconstitucionais devem, todos, ser lidos à luz do
Princípio da dignidade de pessoa humana.
Cumpre ressalvar que os princípios constitucionais de valorização do
trabalhador e de dignidade da pessoa ainda não foram suficientes para uma
172 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
atuação eficiente por poder público com relação a prevenção de acidentes e
doenças relacionadas ao trabalho, embora, deva-se reconhecer que os
trabalhadores brasileiros angariaram muitos benefícios e melhorias nas
condições de trabalho após a promulgação da CRF/88.
Assim, considerando os elevados índices e as consequências dos
acidentes e doenças do trabalho numa esfera global, em 2006, a OIT
elaborou a Convenção 187, apontando em todo o seu texto a necessidade de
uma cultura preventiva e comprometimento dos Estados-Membros com a
melhoria continuada da segurança e saúde do trabalho traçando como dever
a criação de uma Política Pública de Segurança e saúde do Trabalhador.
(OIT, 2014)
Em seguida, a Organização Mundial de Saúde – OMS, na 60ª
Assembleia Mundial da Saúde, que ocorreu em 2007, elaborou o Plano de
Ação Mundial sobre a Saúde dos Trabalhadores, a fim de reforçar a
necessidade de criação de políticas nacionais com coordenação intersetorial
das atividades na área e por outras partes interessadas, determinando ainda
que os planos nacionais ao serem elaborados deveriam especificar as
prioridades de ação, os objetivos e metas a serem tratadas pelo Estado
(MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2007). Necessário destacar
que esta ação mundial justificou-se pela escassez de trabalhadores
habilitados na área de saúde, constatando-se um déficit mundial de recursos
humanos adequadamente habilitados no setor.
No Brasil, em 2008, por meio da Portaria Interministerial n. 152, foi
criada a Comissão Tripartite de Saúde e Segurança no Trabalho – CT-SST,
a qual é composta paritariamente por representações de governo,
trabalhadores e empregadores, mais especificamente por 6 representantes
do Governo Federal, seis representantes dos empregadores e seis
representantes dos trabalhadores e sua gerência é de responsabilidade
conjunta dos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Saúde e da Previdência
Social, os quais se revezam anualmente (MINISTÉRIO DO TRABALHO E
EMPREGO, PI 152, 2008). A referida comissão tem por finalidade primordial
traçar os rumos do Estado no que se refere a promoção do trabalho seguro e
saudável bem como a atuação estatal para a prevenção dos acidentes e
doenças do trabalho.
A partir da 13ª reunião da CT-SST é que se iniciaram os trabalhos
para a formação de um Plano de Política Nacional para prevenção de
acidentes e doenças do trabalho e promoção de um ambiente seguro e
saudável (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2012).
Dessa forma, a pressão internacional acerca da regulamentação e
promoção da dignidade do trabalhador, somada ao alto índice de acidentes e
doenças relacionadas ao trabalho, desencadeou a promulgação do Decreto
n. 7.602, de 11 de novembro de 2011, o qual instituiu a Política Nacional de
Saúde no Trabalho.
Da ineficiência na concretização...
// 173
10.5 UMA VISÃO GERAL DA PNSST
A necessidade de criação de estratégias para uma atuação eficaz e
efetiva do Estado no estabelecimento de mais segurança e saúde para o
trabalhador, incluindo-se a atividade preventiva de acidentes e doenças do
trabalho, é unânime entre os órgãos internacionais e nacionais, e sua
concretização no Brasil deu-se, a princípio, pela promulgação do Decreto n.
7.602/2011.
Desse modo, enquadrando-se ao contexto histórico de como os
Direitos Individuais diziam diretamente com a possibilidade, hoje expressão
símbolo do liberalismo econômico, da não-interferência econômica
governamental, conforme expressão em língua francesa “laissez faire, laissez
aller, laissez passer” (“deixa fazer, deixa ir, deixa passar”), abusos são
percebidos. Por isto mesmo foi preciso, logo no início de nossa era, surgir
legislações voltadas para a contenção de abusos. Esta primazia é creditada
à Moral and Health Act4. Ao limitar a jornada de trabalho dos menores a 12
horas por dia, assenta que o Direito do Trabalho é “[...] fruto da interação do
fato econômico com a questão social (PINTO, 2000, p. 24).
Desta forma, a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho
– PNSST tem como objetivo a promoção da saúde e a melhoria da qualidade
de vida do trabalhador e a prevenção de acidentes e de danos à saúde
originados do trabalho ou a ele relacionados, buscando eliminar-se ou, ao
menos, reduzir os riscos de acidente nos ambientes de trabalho.
O item IV, do Anexo I, do Decreto 7.602/2011, trouxe as diretrizes
para implantação da PNSST, a saber:
a) inclusão de todos trabalhadores brasileiros no sistema nacional de
promoção e proteção da saúde;
b) harmonização da legislação e a articulação das ações de promoção,
proteção, prevenção, assistência, reabilitação e reparação da saúde do
trabalhador;
c) adoção de medidas especiais para atividades laborais de alto risco;
d) estruturação de rede integrada de informações em saúde do trabalhador;
e) promoção da implantação de sistemas e programas de gestão da
segurança e saúde nos locais de trabalho;
f) reestruturação da formação em saúde do trabalhador e em segurança no
trabalho e o estímulo à capacitação e à educação continuada de
trabalhadores; e
4
A Revolução Industrial inglesa tornou-se tão dependente do trabalho infantil e adolescente que,
em momentos de crise econômica, este passou a competir com o emprego adulto. Isso levou ao
surgimento de propostas concretas de proteção ao trabalho da criança e do adolescente. Em
1802 a Inglaterra editou o Moral and Health Act, primeira manifestação concreta correspondente
à ideia contemporânea de Direito do Trabalho. Sua principal conquista foi a redução da carga
horária da criança para no máximo 12 horas diárias. FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O
trabalho de crianças e adolescentes no Brasil do século XXI. Campinas: Escola da Magistratura
do Trabalho. Disponível em: <www.trt15.gov.br/escola_da_magistratura/Rev16Art7.pdf>
Acesso: 29 novembro 2007.
174 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
g) promoção de agenda integrada de estudos e pesquisas em segurança e
saúde no trabalho; [...]
O plano nacional de ação de segurança e saúde no trabalho incluiu
oito objetivos a serem alcançados, sendo: 1.) Inclusão de todos os
trabalhadores brasileiros no Sistema Nacional de Promoção e Proteção da
Segurança e Saúde no Trabalho – SST; 2.) Harmonização da legislação
trabalhista, sanitária, previdenciária e outras que se relacionem com SST, 3.)
Integração das ações governamentais de SST, 4.) Adoção de medidas
especiais para atividades laborais submetidas a alto risco de doenças e
acidentes de trabalho; 5.) Estruturação de uma rede integrada de informações
em SST, 6.) Implantação de sistemas de gestão de SST nos setores público
e privado, 7.) Capacitação e educação continuada em SST, 8.) Criação de
uma agenda integrada de estudos e pesquisas em SST (MINISTÉRIO DO
TRABALHO E EMPREGO, 2012).
O referido plano trouxe para cada objetivo várias estratégias de ação,
repartindo-as em curto, médio e longo prazo, bem como delimitou a
responsabilidade de cada Ministério e Órgãos relacionados a CT-SST, além
de elencar um conjunto de tarefas de caráter permanente, incumbindo de
forma conjunta e complementar a CT-SST, a execução e fiscalização de todo
o plano de ações, conforme competências determinadas para cada
Ministério.
Assim, coube ao Ministério do Trabalho e Emprego, nos termos do
item VI, “a” a “g”, do Decreto 7.602/2011, as seguintes responsabilidades:
a) formular e propor as diretrizes da inspeção do trabalho, bem como
supervisionar e coordenar a execução das atividades relacionadas com a
inspeção dos ambientes de trabalho e respectivas condições de trabalho;
b) elaborar e revisar, em modelo tripartite, as Normas Regulamentadoras de
Segurança e Saúde no Trabalho;
c) participar da elaboração de programas especiais de proteção ao trabalho,
assim como da formulação de novos procedimentos reguladores das
relações capital-trabalho;
d) promover estudos da legislação trabalhista e correlata, no âmbito de sua
competência, propondo o seu aperfeiçoamento;
e) acompanhar o cumprimento, em âmbito nacional, dos acordos e
convenções ratificados pelo Governo brasileiro junto a organismos
internacionais, em especial à Organização Internacional do Trabalho - OIT,
nos assuntos de sua área de competência;
f) planejar, coordenar e orientar a execução do Programa de Alimentação do
Trabalhador; e
g) por intermédio da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e
Medicina do Trabalho - FUNDACENTRO:
1. elaborar estudos e pesquisas pertinentes aos problemas que afetam a
segurança e saúde do trabalhador;
2. produzir análises, avaliações e testes de medidas e métodos que visem à
eliminação ou redução de riscos no trabalho, incluindo equipamentos de
proteção coletiva e individual;
Da ineficiência na concretização...
// 175
3. desenvolver e executar ações educativas sobre temas relacionados com
a melhoria das condições de trabalho nos aspectos de saúde, segurança e
meio ambiente do trabalho;
4. difundir informações que contribuam para a proteção e promoção da saúde
do trabalhador;
5. contribuir com órgãos públicos e entidades civis para a proteção e
promoção da saúde do trabalhador, incluindo a revisão e formulação de
regulamentos,
o
planejamento
e
desenvolvimento
de
ações
interinstitucionais; a realização de levantamentos para a identificação das
causas de acidentes e doenças nos ambientes de trabalho; e
6. estabelecer parcerias e intercâmbios técnicos com organismos e
instituições afins, nacionais e internacionais, para fortalecer a atuação
institucional, capacitar os colaboradores e contribuir com a implantação de
ações globais de organismos internacionais; [...] (BRASIL, 2011).
Ao Ministério da Saúde, o Decreto 7.602/2011, item VII, “a” ao “g”,
incumbiu as seguintes competências:
a) fomentar a estruturação da atenção integral à saúde dos trabalhadores,
envolvendo a promoção de ambientes e processos de trabalho saudáveis, o
fortalecimento da vigilância de ambientes, processos e agravos relacionados
ao trabalho, a assistência integral à saúde dos trabalhadores, reabilitação
física e psicossocial e a adequação e ampliação da capacidade institucional;
b) definir, em conjunto com as secretarias de saúde de Estados e Municípios,
normas, parâmetros e indicadores para o acompanhamento das ações de
saúde do trabalhador a serem desenvolvidas no Sistema Único de Saúde,
segundo os respectivos níveis de complexidade destas ações;
c) promover a revisão periódica da listagem oficial de doenças relacionadas
ao trabalho;
d) contribuir para a estruturação e operacionalização da rede integrada de
informações em saúde do trabalhador;
e) apoiar o desenvolvimento de estudos e pesquisas em saúde do
trabalhador;
f) estimular o desenvolvimento de processos de capacitação de recursos
humanos em saúde do trabalhador; e
g) promover a participação da comunidade na gestão das ações em saúde
do trabalhador; [...] (BRASIL, 2011).
Tão importante quanto a atuação dos Ministérios acima mencionados
deve-se ressaltar a competência do Ministério da Previdência Social, ao qual
restou os deveres especificados no item VIII, “a” ao “e”, do Decreto
7.602/2011, a saber:
a) subsidiar a formulação e a proposição de diretrizes e normas relativas à
interseção entre as ações de segurança e saúde no trabalho e as ações de
fiscalização e reconhecimento dos benefícios previdenciários decorrentes
dos riscos ambientais do trabalho;
b) coordenar, acompanhar, avaliar e supervisionar as ações do Regime Geral
de Previdência Social, bem como a política direcionada aos Regimes
176 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Próprios de Previdência Social, nas áreas que guardem inter-relação com a
segurança e saúde dos trabalhadores;
c) coordenar, acompanhar e supervisionar a atualização e a revisão dos
Planos de Custeio e de Benefícios, relativamente a temas de sua área de
competência;
d) realizar estudos, pesquisas e propor ações formativas visando ao
aprimoramento da legislação e das ações do Regime Geral de Previdência
Social e dos Regimes Próprios de Previdência Social, no âmbito de sua
competência; e
e) por intermédio do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS:
1. realizar ações de reabilitação profissional; e
2. avaliar a incapacidade laborativa para fins de concessão de benefícios
previdenciários.
Claudia Vasques Chiavegatto e Eduardo Algranti destacam que,
embora haja determinação legal para a atuação conjunta e complementar dos
diferentes setores públicos, representados pelo Trabalho, pela Saúde e pela
Previdência, deve-se ponderar também que existe certa dificuldade de
integração entre os mesmos tendo em vista que trabalham com lógicas
absolutamente distintas, obstaculizando um resultado prático conforme
determina a Lei:
O setor Trabalho envereda por uma lógica de “tripartismo” para definir e
pautar suas ações, permitindo pouca flexibilidade de ações, diferentemente
do setor Saúde, que adota uma política de "pactuação" para desenvolver
ações regionais e locais de saúde sujeita a constantes flutuações na
dependência dos interesses políticos envolvidos. A Previdência acaba sendo
o repositório final que acolhe as consequências de uma política ineficaz,
adotando, por sua vez, um enfoque reducionista que privilegia uma visão
contábil do grave problema das doenças e dos acidentes do trabalho. Tanto
o setor Trabalho, quanto Previdência têm sua ingerência restrita aos
trabalhadores formais. Somente o setor Saúde é capaz de levar a atenção
aos trabalhadores informais, que representam cerca de 48% da população
trabalhadora (CHIAVEGATTO; ALGRANTI, 2013).
Ao contrário do senso comum, a análise dos itens mencionados
demonstra que a fiscalização do ambiente de trabalho cabe também ao
Ministério da Saúde e, portanto, não somente ao Ministério Público do
Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego por meio de seus promotores,
auditores fiscais e gerências, embora a sua atuação e especialidade deva ser
reconhecida por todos até mesmo pelo fato de que tem a fiscalização por
essência.
Dentre os vários objetivos elencados no plano nacional de ações de
saúde e segurança no trabalho e as várias estratégias previstas, dar-se-á
atenção especial a estratégia 3.1.6 do objetivo 3, a qual estipula a articulação
entre a fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE e a vigilância
em saúde do trabalhador, com pilotos de atuação a partir das regiões/locais
de maior sinistralidade, cuja execução cabe aos Ministérios da Saúde e do
Da ineficiência na concretização...
// 177
Trabalho e Emprego, tendo como Parceiros institucionais a CTSST e atores
governamentais da saúde e do trabalho e sua implementação de curto prazo.
10.6 DA FISCALIZAÇÃO DO AMBIENTE DE TRABALHO NO MUNICÍPIO
DE MARINGÁ
Segundo a estratégia 3.1.6, objetivo 3, do Plano Nacional de
Segurança e Saúde do Trabalhador incumbe também ao Ministério da Saúde
a fiscalização do ambiente de trabalho, com a finalidade de reduzir o número
de acidentes e doenças do trabalho, o que é feito em âmbito local por meio
da Secretaria de Saúde dos Municípios.
Claudia Chiavegatto e Eduardo Algranti ensinam que a atenção à
Saúde do Trabalhador contempla três níveis de atuação:
a) a vigilância, aqui incluídas as ações destinadas à definição dos perigos e
dos riscos inerentes a um processo de trabalho e à consequente promoção
de medidas que visam ao adequado controle dos perigos e riscos e de
controle médico, assim como um programa que permita a coleta e a análise
dos dados gerados;
b) a assistência à saúde, incluindo serviços de acolhimento, atenção,
condutas clínicas e ocupacionais e um sistema de benefícios justo;
c) a abordagem e a conduta apropriadas aos determinantes sociais,
individuais ou de grupos, que impactam negativamente na saúde da maioria
dos trabalhadores (CHIAVEGATTO; ALGRANTI, 2013).
No município de Maringá a vigilância e fiscalização do ambiente de
trabalho devem ser realizadas também pela Secretaria Municipal de Saúde,
a qual subdivide-se em setor administrativo e de vigilância em saúde, que é,
ainda, subdividido em vigilância ambiental, vigilância sanitária e vigilância
epidêmica.
O setor de vigilância ambiental de Maringá comporta o Programa de
Investigação de Acidentes Graves, Programa de Sensibilização, Programa de
Educação Pelo Trabalho Para a Saúde. Conforme informação extraída do
portal do município de Maringá, o setor de vigilância ambiental fica, portanto,
responsável pela fiscalização do meio ambiente de trabalho em situações de
acidentes graves, a saber:
A Vigilância Ambiental busca a identificação de situações de risco ou perigos
no ambiente que possam causar doenças, incapacidades e mortes, com o
objetivo de se adotar ou recomendar medidas para a remoção ou redução da
exposição a essas situações de risco.
São fatores de risco a saúde aqueles decorrentes de qualquer situação ou
atividade no meio ambiente, principalmente os relacionados à organização
territorial e ao ambiente construído.
[...] Entende-se por riscos ambientais aqueles decorrentes da exposição
pelos trabalhadores aos agentes e processos presentes no ambiente de
trabalho, que em função de sua natureza, concentração ou intensidade e
178 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
tempo de exposição, possam causar danos à saúde do trabalhador
(VIGILÂNCIA AMBIENTAL PMM, 2015).
Segundo informação direta da Secretaria Municipal de Saúde de
Maringá, a fiscalização ambiental conta atualmente com três agentes fiscais
de nível superior e quatro agentes fiscais de nível médio para realizar o
trabalho de fiscalização do meio ambiente do trabalho, no município de
Maringá. De acordo com informação retirada do site da Secretaria Municipal
de Saúde o setor de vigilância sanitária, possui uma equipe multiprofissional
composta por quinze agentes fiscais de nível médio e nove agentes fiscais
de nível superior, todos admitidos por concurso público e investidos na função
por ato legal do governo municipal (SECRETARIA DE SAUDE PMM, 2015).
Em contrapartida ao reduzido número de agentes fiscais municipais,
segundo dados estatísticos da Associação Comercial de Maringá – ACIM, o
número de empregos formais aumenta a cada ano. Em 2013, por exemplo,
ultrapassou 156.000 trabalhadores, chegando a ser intitulada como uma
cidade “Polo do setor de serviços: educação, saúde, engenharias, imobiliária
e serviços de apoio à atividade econômica em geral (que mais cresce) como
contabilidade e atividades de terceirização em geral” (DIAS, 2013).
Lamentavelmente, os agentes fiscais da vigilância ambiental não
conseguem fiscalizar todas as empresas do município, uma vez que estão
em número reduzido e não possuem um veículo próprio para tanto; portanto,
sob essa justificativa, realizam a fiscalização somente após a ocorrência de
um acidente de trabalho que resulte em óbito, amputação ou mutilação.
Destaca-se, ainda, que somente na área de construção civil, segundo
informação do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção e do
Mobiliário de Maringá – SINTRACOM – são mais de 20.000 trabalhadores 5
no setor, ou seja, em um ambiente tão hostil como o da construção, onde os
acidentes geralmente são graves, tem-se a absurda proporção de um agente
fiscal para 833,33 trabalhadores, sendo humanamente impossível um
trabalho adequado e contínuo de fiscalização.
Deste modo, o que se nota, ao menos no município de Maringá, é
que não ocorre na prática a atuação conjunta e complementar entre Ministério
da Saúde e Ministério do Trabalho e Emprego no que diz respeito à
fiscalização do meio ambiente do trabalho, sendo que essa negligência
resulta na responsabilização quase que exclusiva do Ministério do Trabalho
e Emprego por meio de seus auditores-fiscais do trabalho para executar a
tarefa em toda a região de Maringá.
Claudia Vasques Chiavegatto e Eduardo Algranti não titubeiam ao
afirmar que o Estado é ineficiente em suas ações, em especial na área da
saúde, obrigando outros órgãos a agirem em prol das pessoas:
A alta ineficiência do Estado cria um vazio que, por uma simples lei física,
acaba sendo ocupado pelo Ministério Público (MP) e pelos Tribunais
5
Número calculado de acordo com a quantidade atual de inscrições de trabalhadores associados
ao sindicato.
Da ineficiência na concretização...
// 179
Regionais de Trabalho simplesmente porque não há instâncias a recorrer.
Louve-se aqui a atuação do MP, que vem sendo um real parceiro para que
um mínimo de equidade seja adicionado aos graves problemas individuais e
de grupos que enfrentamos na rotina. Um tema de grande interesse a ser
pesquisado é o custo envolvido na crescente judicialização das questões de
saúde e trabalho. É provável que sejam muito superiores aos gastos
envolvidos com a vigilância e a assistência à saúde, tanto para o Estado,
quanto para as empresas (CHIAVEGATTO; ALGRANTI, 2013).
Lamentavelmente, o Ministério do Trabalho e Emprego também está
sofrendo um desfalque com relação ao número de auditores-fiscais do
trabalho, sendo onze agentes para fiscalizarem o município de Maringá e
região, conforme informação do Gerente Regional do Trabalho e Emprego
em Maringá, Paulo Ricardo Vijande Pedrozo. Essa realidade não permite aos
auditores-fiscais que realizem uma fiscalização permanente e eficiente,
obrigando-os a priorizar os casos graves e denúncias.
Cumpre ressaltar que o mesmo não ocorre com relação a setores
altamente arrecadadores do poder público, uma vez que não se vislumbra a
escassez de pessoal ou de instrumentos para a execução da fiscalização.
Observa-se uma profunda diferença entre o Estado-arrecadador e o Estadoprestador de serviços. Ora, para efeito, compare-se o número de agentes
fiscais da vigilância ambiental – sete, na realidade – com os mais de sessenta
agentes orientadores do Estacionamento Rotativo Regulamentado Pago de
Maringá-PR, que tem por competência fiscalizar o uso do estacionamento
rotativo na área central de Maringá, composta por 4.766 vagas (SETRANS,
web). Fica a pergunta para reflexão: o que é mais importante para a
Administração Pública, “a vida da pessoa” ou “a arrecadação”? A realidade é
triste, mas é esta a realidade.
A rentabilidade do EstaR aos cofres públicos é evidente: em
conformidade com o Decreto 924, de 17 de abril de 2013, o valor a ser pago
pela fração de tempo de 60 (sessenta) minutos, pelo cartão de
estacionamento de veículos na área do sistema Área de Estar de Maringá,
será de R$ 1,50 (um real e cinquenta centavos) e as multas, se pagas no
prazo de até 10 (dez) dias úteis, podem chegar a R$ 15,00 (quinze reais).
(PORTAL DA SETRANS, 2015)
Assim, o que se nota é que a falta de concretização da Política
Pública de Segurança e Saúde do Trabalhador deve-se muito mais a uma
gestão inadequada dos recursos públicos do que a ausência dos mesmos,
cumprindo ressaltar o que afirma Dirley Cunha Junior:
Por último, não podemos concordar com aqueles que sustentam, com base
na doutrina estrangeira, encontrar-se a eficácia dos direitos fundamentais
dependente do limite fático da reserva do possível, porque sempre haverá
um meio de remanejar os recursos disponíveis, retirando-os de outras áreas
(transporte, fomento econômico, serviço da dívida, etc.), onde sua aplicação
não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem,
como a vida, a integridade física, a saúde e a educação, por exemplo
(ANTONIO, 2013, p. 204).
180 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Neste ínterim, não há que se falar em inefetividade do Poder Público
em virtude do princípio do mínimo existencial ou por não possuir condições
financeiras para a contratação de agentes fiscais e de aquisição de
instrumentos de trabalho como veículo próprio para o setor; o que ocorre, na
verdade, é um total descaso do Poder Público Municipal para com o
cumprimento das ações previstas no Plano Nacional de Segurança e Saúde
do Trabalhador.
10.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os esforços do poder público para que as políticas públicas tornemse uma realidade, embora louváveis, ainda estão aquém de seu objetivo de
torná-las instrumentos para a modificação de uma realidade que permite
deixar a pessoa à margem de seus direitos, verificando-se a urgência de
medidas mais adequadas a cada realidade local.
Insere-se o contexto de dignidade da pessoa humana para alcance
de laços protetivos ao trabalhador, enviesado por meio de normas,
regulamentos e legislação adepta aos presságios constitucionais e
internacionais de padronização para segurança do trabalho, auferindo
interligação entre o conteúdo teórico e a situação fática relativa ao texto.
Verificou-se, por meio de pesquisas bibliográficas e de entrevista,
indagando-se diretamente à Secretaria Municipal de Saúde de Maringá e à
Gerência dos Auditores Fiscais do Trabalho em Maringá-PR, que na
realidade não tem havido uma colaboração entre os entes públicos para a
redução dos acidentes e doenças do trabalho, uma vez que sequer existem
agentes fiscais em número necessário para uma atuação eficiente, muito
menos eficaz.
Assim, os agentes fiscais municipais restringem-se a fiscalizar,
sempre após a ocorrência da tragédia, os casos de acidentes graves, que
envolvam óbito ou mutilação, pois os sete agentes do Município de Maringá
não possuem nem mesmo um veículo próprio para o setor; por isso, os
trabalhadores contam com os auditores fiscais do Trabalho ligados ao
Ministério do Trabalho e Emprego, mas que, também, estão limitados em
virtude do reduzido número de fiscais, onze, para atenderem o município de
Maringá e toda a região.
Portanto, a PNSST no município de Maringá não é eficiente e nem
eficaz; na verdade, não atingiu o patamar de concretude e os trabalhadores
maringaenses continuam desamparados pelo Estado no que diz respeito à
prevenção de acidentes e riscos oriundos do trabalho e, frise-se, não por falta
de recursos, mas por falta de interesse em conceder ao trabalhador melhores
condições em seu ambiente de trabalho, ainda que para tanto, tenha que se
relegar o fundamento da República Federativa do Brasil, a um segundo plano,
que é a dignidade da pessoa humana.
Da ineficiência na concretização...
// 181
10.8 REFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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184 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= XI =
DA INTERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE COM O
DIREITO DO CONSUMIDOR
Franciele de Oliveira Rahmeier*
Juliano Miqueletti Soncin**
11.1 INTRODUÇÃO
Este trabalho é um artigo acadêmico que tem como proposta discutir
de forma introdutória a temática “interação dos direitos da personalidade com
o direito do consumidor”. A fomentação para pesquisar esta temática surgiu
a partir da análise das demandas judiciárias hodiernas, em que se percebe
uma quantidade razoável de processos que rogam pela tutela consumerista.
Neste diapasão, a Constituição Federal brasileira informa e impõe um
sistema de valores estabelecendo em seu artigo primeiro o que seria os seus
princípios fundamentais, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. E pelo
artigo terceiro, inciso I, complementa firmando que são objetivos
fundamentais para o país, construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Esses comandos constitucionais encontram na proteção aos direitos
da personalidade e no cumprimento dos direitos dos consumidores,
importantes instrumentos de operacionalização.
Isto é, quando o direito da personalidade preconiza a proteção da
vida, também o faz em proveito das pessoas que necessitando de produtos
ou serviços acabam sofrendo os danos provocados em razão de
fornecimento defeituoso, naturalmente vedado pelas normas de proteção ao
consumidor.
Diante desta breve síntese, o presente trabalho abordará a relação
benéfica entre os direitos da personalidade com o direito do consumidor,
apontando alguns aspectos doutrinários.
11.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS
É importante desde já compreender que direitos humanos, direitos
fundamentais e direitos da personalidade não podem ser utilizados
indiferentemente, uma vez que possuem acepções divergentes. Neste
sentido, o ilustre Bonavides é inflexível em suas críticas ao uso “indiferente”
*
Acadêmica do 4º ano de Direito da Faculdade Cidade Verde.
**
Mestrando em Direito pela Unicesumar. Especialista em Civil e Processo Civil pelo Instituto
Paranaense de Ensino. Advogado e Professor da Faculdade Cidade Verde – FCV. Membro da
Comissão do Ensino Superior da OAB/PR. Endereço eletrônico: <[email protected]>
186 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
das expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais
(BONAVIDES, 2012, p. 227).
Destarte é imperioso enfatizar que direitos humanos são gênero, ao
passo que os outros citados são espécie. Ou seja, em relação aquele realça
Hannah Arendt que os direitos humanos não são um elemento, mas sim algo
consolidado, sendo proveniente do homem, ou seja, uma criação deste, e se
conserva em transcurso de construção e reconstrução. Por sinal, os direitos
humanos se consolidam conforme os anseios axiológico-teleológico do
homem (ARENDT, 1998, p. 75).
Neste norte, veja-se que é relevante analisar a própria história dos
direito constitucionais; em 1948, mais de um século após a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a notória declaração relacionada
aos Direitos Humanos foi apurada devido ao esforço da Organização das
Nações Unidas (ONU): a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(DUDH). A DUDH de 1948 denota a consciência histórica da sociedade e
seus valores primordiais condensando o ontem e inspirando o amanhã.
Assim, a progressão dos direitos humanos compeliu a origem dos
deveres do homem, isto é, os direitos humanos foram a primeira maneira
relevante de dever de preservação do indivíduo. Estes direitos são genéricos,
auxiliam todos os seres humanos, porque são universais, e por serem
adotados em quase todas as Constituições.
Da mesma forma, os direitos fundamentais são também uma
construção histórica, quer dizer, o entendimento acerca de quais são os
direitos considerados fundamentais muda conforme o progresso da história e
do próprio homem.
Tanto que N. Bobbio corrobora com o pensamento descrito:
[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO,
1992, p. 34).
Segundo Bobbio, “[...] o que parece fundamental numa época
histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras
épocas e em outras culturas” (BOBBIO, 1992. p. 34).
Devido à relevância da evolução (axiológico-teleológico) dos direitos
fundamentais, é evidente que nem todo direito humano é fundamental, pois o
primeiro é direito incumbido à humanidade, no geral, através de tratados
internacionais como a DUDH, da ONU, 1948, já mencionada. No que tange o
segundo, os direitos fundamentais, são direitos positivados em um
ordenamento jurídico, no Brasil, a título de exemplo, no modelo da Carta
Magna.
Em outro aspecto, Georges Abboud reitera que a positivação nas
obras constitucionais dos direitos fundamentais, torna este direito vigente,
assumindo assim qualidade estatal-normativo, e consequentemente, seu
respeito significa executar o direito posto pelo Estado. Então, a positivação
Da interação entre os direitos...
// 187
dos direitos fundamentais é essencial para a garantia desses direitos
(ABBOUD, 2012, p. 242.)
Hodiernamente, a doutrina majoritária entende o direito da
personalidade como espécie de direito fundamental. É incontroverso a
relação hierárquica entre os direitos humanos, fundamentais e
personalíssimos.
Explicar o último é admitir consoante Marllon Beraldo que a
personalidade não se mistura com a definição de direitos da personalidade,
visto que, aquele significa a qualidade de ser uma pessoa, enquanto este
consistiu em uma tutela jurídica (BERALDO, 2012, p. 15).
Substancial é reconhecer que cada direito da personalidade
equipara-se a um valor fundamental.
Neste sentido, a personalidade é, portanto “[...] um conteúdo mínimo
e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa’’ (PINTO, 1996. p.87). Isto
é, qualidade inerente do homem que consolida direitos e deveres emanados
de si mesmo, porque é objeto de direito, e de acordo com o Art. 2o do Código
Civil1 é o primeiro bem da pessoa humana (BERALDO, 2012, p. 5).
Em vista do exposto, é prudente citar que através da promulgação da
Constituição Federal de 1988, os direitos da personalidade foram
recepcionados, tutelados e sancionados, pelo Estado concedendo a
legitimidade da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental do
Brasil, o que justifica e admite a singularidade dos demais direitos e garantias,
mormente os direitos da personalidade, taxados no art. 5.º, X da Constituição
Federal2.
Desta forma, os direitos da personalidade se sobressaem por
possuírem natureza extrapatrimonial, mesmo que a sua desonra gere uma
repercussão econômica, de atributo absoluto, eficácia erga omnes, porque o
seu respeito é interposto a todos (Estado e particulares), é irrenunciável, isto
é, ser inabdicável, é intransmissível, ou seja, não ser passível de cessão a
terceiros, é imprescritível, isto é, perdura no tempo, independente do uso. Em
resumo os direitos da personalidade não compõem um rol limitado de direitos,
são infinitos, na proporção em que inerentes à conjuntura humana, e
designados fundamentalmente à tutela da dignidade da pessoa humana.
11.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A DEFESA DO
CONSUMIDOR
A atividade econômica do ser humano remonta a período tão antigo
quanto impossível de se fixar no tempo o início destas atividades. É possível
1
A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde
a concepção, os direitos do nascituro
2
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
188 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
afirmar-se que a história da humanidade está atrelada à evolução do próprio
indivíduo em seus diversos e dinâmicos aspectos da vida social. É desta
variação no comportamento humano que emerge a positivação das normas
de conduta social.
Na antiguidade a Grécia conhecia tão somente uma vida econômica
doméstica, passando para a vida econômica de trocas. Foi na Grécia que
surgiu a primeira moeda cunhada entre os Séculos VIII e VII a.C., dando-se
início à atividade mercantil universal.
A partir do Código Comercial francês, de 1807, 3 iniciava-se a
normatização da atividade econômica mais antiga da história da humanidade,
considerando-se a necessidade de positivação e especialização desta
conduta individual. No Brasil, foi promulgada, em 1850, a Lei n.º 556, de 25
de junho, para disciplinar a atividade do comerciante, ressalvando-se que o
interesse maior daquela norma residia na proteção do comércio
(TOMAZETTE, 2013. p. 09).
Entende-se o comércio como o mecanismo econômico utilizado para
satisfazer as necessidades econômicas das pessoas. Esta necessidade
econômica se satisfaz por meio das trocas, tendo-se o comerciante como o
personagem indispensável nesta relação econômica. Vê-se, então, que a lei
mercantil se prestava a proteger o comércio, mas não necessariamente o
comerciante ou o consumidor (COELHO, 2013. p. 26).
Reportando-se à história econômica da humanidade, Benigno
Cavalcanti destaca que na Idade Média:
[...] o pensamento econômico girava em torno da justiça, subordinando-se à
moral, enquanto na atualidade estas pesquisas econômicas giram em torno
a utilidade. E para que esta justiça seja alcançada, necessário é que a
permuta promova um equilíbrio entre os interesses em jogo, mediante a
fixação de preço justo. Este equilíbrio econômico reflete duas vertentes
jurídicas distintas: a primeira, considerando-se o comerciante em relação ao
sistema do comércio, e a segunda, considerando-se as relações do
comerciante com o consumidor. Deste modo, aplica-se o Código Comercial,
na primeira hipótese, e o Código Civil, na segunda hipótese (CAVALCANTE,
2009. p.87).
O direito civil brasileiro, contemplando a autonomia da vontade e a
liberdade de contratar, visava à proteção da relação jurídica contratual e não
os efeitos decorrentes desta relação contratual, pois o modelo econômico
liberal vigente no Brasil até o advento do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, este se baseava na tese da libertação do indivíduo em relação
ao Estado (GOMES, 2002. p. 22).
Foi no final da primeira metade do século XX, com a revolução
industrial, que o Brasil deixou de ter uma economia essencialmente agrícola
para aderir ao novo pensamento econômico, instalando a primeira indústria
3
O primeiro código comercial da história do direito comercial foi promulgado por Napoleão
Bonaparte, em 15 de setembro de 1807, e entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1808.
Da interação entre os direitos...
// 189
automobilística brasileira e, e decorrência desse fato econômico,
inaugurando o fenômeno do consumo de massa que, vem se alargando com
o surgimento da internet e crescimento cibernético (MARQUES, 1999, p. 128129).
A Constituição da República de 1988 contemplou a proteção ao
direito do consumidor como princípio de garantia individual (art. 5º, inciso
XXXII4) e ainda, como princípio da Ordem Econômica (art. 170, inciso V5) e,
na codificação das relações de consumo, buscou o legislador restabelecer o
respeito à dignidade da pessoa humana. Inicialmente foi a Constituição
Federal que estabeleceu os fundamentos do Código de Defesa do
Consumidor e, num segundo momento, o elevou à condição de princípio
basilar para o modelo político e econômico brasileiro, como o da soberania
nacional, da propriedade privada, da livre concorrência entre outros
(CAVALCANT, 2009, p. 89).
A elaboração do Código de Defesa do Consumidor não só veio a
atender ao mandamento do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição de 1988, como também veio a seguir uma diretriz
das Nações Unidas (SILVA, 2004, p. 25).
O Código de Defesa do Consumidor apresenta inúmeros princípios,
a começar pelo artigo 1º, o qual estabelece que as normas de proteção e
defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social, não podendo,
em consequência, ser derrogadas pela vontade das partes, mesmo que de
comum acordo (BONATTO, 2004, p. 13). Estas restrições encontram-se
elencadas no art. 39, da Lei n. 8.078/90, sob a rubrica de “práticas comerciais
abusivas”.
A disposição do caput do art. 4º do Código de Defesa do Consumidor
ordenou que Política Nacional de Consumo tivesse a responsabilidade de
atender aos princípios ali relacionados, sendo o princípio da vulnerabilidade,
princípio da ação estatal, princípio da harmonização das relações de
consumo, princípio da boa-fé e o princípio da educação e informação.
Diante destas ponderações, explica-se o tratamento dispensado ao
consumidor, no art. 6º, inciso VII, da Lei n. 8.078/90, ao dispor que o
consumidor tem, entre outros direitos básicos, a facilitação da defesa,
inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil,
quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando este
hipossuficiente (BITTAR, 2004, p. 28).
Importante ressaltar que nem todos os consumidores são
hipossuficientes, pois a lei assim não os considera, porém, a lei não fez
distinção alguma quanto aos consumidores que necessitam desta proteção
legal, por não possuírem de entendimento mínimo para provarem, por si só,
a sua própria defesa, daqueles que por questões culturais, sociais e
4
Art. 5, XXXII, CF/88 - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
Art. 170, V, CF/88. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: (...)V - defesa do consumidor.
5
190 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
econômicas, não poderiam efetivamente buscar socorro jurídico aos
interesses individuais (SODRÉ, 2007, p. 91).
Observa-se que o Estado tem o compromisso de garantir e proteger
os interesses dos consumidores, bem como assegurar a efetividade de seus
direitos, salientando que a intervenção Estatal ocorre pela necessidade da
preservação da parte mais frágil da relação: o consumidor.
11.4 OS PRINCÍPIOS DA LEI N.º 8.078/90 E OS DIREITOS BÁSICOS DA
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA
O Código de Defesa do Consumidor é considerado no ordenamento
jurídico brasileiro como uma das leis mais democráticas cujos preceitos foram
insculpidos pela Constituição Federal. Seu objetivo é proteger o consumidor
buscando alcançar uma sociedade mais justa e satisfatória, em consonância
ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
O surgimento do Código de Defesa do Consumidor veio ao encontro
da busca pela sociedade de proteção aos seus direitos como uma nova
classe que despontava: os consumidores. É um ramo autônomo, não se
tratando de ramificação de qualquer outra área do direito, a fim de regular as
relações de consumo.
O consumidor é definido no art. 2º, como sendo pessoa física ou
jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. É
considerado vulnerável pelo Código, buscando resguardar a igualdade de
direitos, exercida de forma desigual entre fornecedores e consumidores, com
o intuito de atingir a isonomia e equilíbrio nas relações.
Conceitua no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, o
fornecedor como sendo pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional
ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem
atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação,
importação, exploração, distribuição ou comercialização de produtos ou
prestação de serviços, mediante uma interpretação que sempre será
favorável ao consumidor, tendo o serviço ou produto por objeto (§2º e 3º)
valendo-se de uma linguagem própria.
Em função de todas essas modernidades, o Código de Defesa do
Consumidor relativizou os princípios da autonomia privada e o brocardo do
pacta sunt servanda, em razão dos contratos de adesão, já que a ideia
clássica de contrato pressupõe igualdade entre as partes (SCHMIDT, 2012,
p. 154).
A efetivação da defesa do consumidor busca amparo nos princípios
constitucionais, que foram inseridos como direitos básicos fundamentais,
como disposto no art. 4º do Código de Defesa do Consumidor que trata da
Política Nacional das Relações de Consumo, buscando resguardar as
necessidades como saúde, dignidade, segurança, proteção dos interesses
econômicos, melhoria na qualidade de vida, visando à transparência e
harmonia nas relações de consumo.
Da interação entre os direitos...
// 191
Vejam-se a seguir quais são esses princípios legais e os direitos
básicos do consumidor.
11.4.1 Dignidade da pessoa
Um dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo diz
respeito ao valor essencial do ser humano. Ainda que tal consenso se
restrinja muitas vezes apenas ao discurso ou que essa expressão, por mais
genérica que seja, possa envolver concepções mais diversas, o fato é que a
dignidade da pessoa humana, o valor do homem com o fim em si mesmo, é
hoje um ícone da civilização ocidental (GIANCOLI, 2008, p. 103).
A aplicação do princípio da dignidade humana consiste precisamente
em determinar que o conteúdo mínimo existente, com o intuito de garantir o
mínimo para a existência de uma vida digna.
Segundo Cristiano Heineck Schmitt (SCHMITT, 2014, p. 28), na
Constituição Federal brasileira, podemos consignar que a dignidade da
pessoa humana ocupa posição de destaque, sendo um dos fundamentos de
nossa nação, que entre os objetivos principais, busca constitui-se em uma
sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional,
que busque erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as
desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos sem
discriminação.
Funções são desempenhadas pela proteção da dignidade da pessoa,
podendo esta equivaler a um fundamento do ordenamento jurídico, como
princípio geral de direito, como critério orientador da interpretação do direito,
como instrumento para integração do ordenando ou como uma norma de
conduta e de limite ao exercício de direitos.
Assim, a garantia constitucional de direito à vida é inerente à
dignidade humana e por esta razão estão inseridas em seu contexto
condições mínimas, que possam garantir uma vida digna, não sendo
admitidas profundas desigualdades sociais, culturais e econômicas.
11.4.2 Proteção à vida, segurança e saúde
Saúde e segurança são direitos que nascem atrelados ao princípio
maior da dignidade humana, uma vez que a existência com dignidade
pressupõe um vital mínimo.
No art. 4º, caput do Código de Defesa do Consumidor reafirma de
forma expressa a saudável qualidade de vida do consumidor e sua
segurança, reprisando no inciso I do art. 6º. Dessa forma a regra do caput do
art. 4º retrata um cenário amplo de segurança e condições morais e materiais
para o consumidor. Quando se refere à qualidade de vida, não está querendo
apresentar apenas o conforto material, mas também ao direito de usufruir da
prestação de serviços, onde alguns são essenciais como serviços públicos
de água, luz, transporte, medicamentos, dentre outros.
192 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
O art. 6º da CF apresenta como direitos aos cidadãos brasileiros que
estão ligados a qualidade de vida, em específico a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados.
O Código de Defesa do Consumidor apresenta no seu art. 8 que os
produtos e serviços colocados no mercado de consumo não poderão acertar
riscos à saúde ou à segurança do consumidor, exceto os considerados
normais e previsíveis em consequência de sua natureza e fruição.
Essa norma disposta no art. 8 está tratando de expectativa do
consumidor em relação ao uso e consumo regular de algum produto ou
serviço quanto do fornecedor em relação ao mesmo aspecto. Neste ponto a
lei se refere à normalidade e previsibilidade do consumidor médio,
consumidor em relação ao uso e funcionamento em sua rotina de um produto
ou serviço.
Luiz Antonio Rizzato Nunes (2000, p. 134) exemplifica:
Assim, por exemplo, do ponto de vista da segurança, um liquidificador
apresenta riscos na sua utilização. Não se pode, evidentemente, colocar a
mão dentro do copo com o aparelho ligado. Quando afirmamos
“evidentemente” estamos justamente querendo realçar esse aspecto do uso
e funcionamento normal do produto. Trata-se de expectativa regular do
consumidor, que detém o conhecimento sobre o regular uso daquele produto.
Na sequência o art. 9 dispõe que caso o produto seja potencialmente
nocivo ou perigoso à saúde ou segurança do consumidor, a informação deve
ser prestada de forma ostensiva e adequada, ou seja, não basta apenas
disponibilizar a informação, é preciso que o consumidor efetivamente entenda
o que está sendo informado.
Importante frisar que neste contexto o Código de Defesa do
Consumidor determina a todos os fornecedores um dever de qualidade dos
produtos e serviços que atenda e assegure a todos os consumidores,
conforme art. 2, caput e parágrafo único, art. 29 e art. 17, um direito de
garantia e proteção ao consumidor, fruto do princípio de confiança e de
seguranças, dispostos no art. 4, V do Código de Defesa os Consumidores.
11.4.3 Proteção e necessidade
Uma das questões básicas que justificam extrema proteção, indo até
a intervenção do Estado no domínio econômico, é a da necessidade do
consumidor em relação a certos produtos e serviços. A Lei 8.078 apresenta
como regra a proteção do consumidor, buscando a validação do disposto do
art. 5, XXXII e art. 170, V, ambos da Constituição Federal, ocorrendo mesmo
naquelas hipóteses onde se admite a liberdade de escolha do consumidor.
Podemos apresentar como exemplos os casos de medicamentos únicos para
doenças graves no serviço público (NUNES, 2000, p. 104).
Esse princípio da garantia do suprimento das necessidades do
consumidor está em consonância com o princípio maios básico que lhe dá
Da interação entre os direitos...
// 193
sentido, que é o da liberdade de agir e escolher, garantido no texto
constitucional (art. 1, III, art. 3, I e art. 5, caput, entre outros).
Todavia a proteção dos direitos dos consumidores é na atualidade
uma necessidade para o avanço do processo democrático, da cidadania e
dos direito humanos de um país. Uma economia aberta e com avanços na
tecnologia induz a necessidade de consumidores atuantes, capazes de exigir
serviços e produtos com preços adequados e qualidade equivalente,
propiciando sua satisfação nas relações de consumo de consequentemente
uma melhoria na qualidade de vida.
11.4.4 Princípio da informação
O princípio da informação pode ser considerado uma das regras mais
importantes que são inerentes a Política Nacional das Relações de Consumo.
A educação caminha junto com a informação e estas buscam a efetiva
proteção e defesa do consumidor, sendo dessa forma quanto mais
desenvolvido o sistema educacional maior as possibilidades de se concretizar
o fim pretendido por estes institutos (EFING, 2008, p. 106).
O princípio da informação pode ser interpretado de várias formas,
todas elas convergindo para o dever do fornecedor a prestar todas as
informações acerca do produto ou serviço, sua natureza, riscos, qualidade e
preço de forma compreensível e certa, não admitindo irregularidades no ato
de informar.
O dever de informar tem como fundamento o princípio da boa-fé
objetiva que deve estar presente em qualquer relação jurídica, considerado
como uma conduta pautada na transparência, lealdade, cooperação, dentre
outras.
Segundo Fernanda Nunes Barbosa (BARBOSA, 2008, p. 94) em um
plano estritamente formal o primeiro fundamento do dever de informação
pode ser encontrado nos denominados “princípios gerais da contratação” e
em particular no princípio que impõe o dever boa-fé, uma vez que a
jurisprudência tem demonstrado que os consumidores ingressam na relação
de consumo sobre a base de uma “legítima confiança” no fornecedor, ficando
dispensado de realizar investigações, averiguações ou tratativas que permite
entrar em uma negociação de forma despersonalizada, atuando de forma
célere.
A transparência complementa o princípio, já que nas relações de
consumo devem se firmar em ambiente de absoluta transparência entre as
partes, sob pena de viciar a manifestação de vontade do consumidor,
conforme disposto no art. 4º, IV do Código de Defesa do Consumidor. Assim,
estabelecida no art. 4º, caput do Código de Defesa do Consumidor, o princípio
da informação filia-se ao princípio da boa-fé, de que age de forma derivada
como sendo um subprincípio, significando clareza, nitidez, precisão e
sinceridade (GIANCOLI, 2009, p. 46).
Uma vez que é complemento ao princípio do dever de informar
definido no inciso III do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, que
194 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
dispõe sobre o direito básico do consumidor a informação adequada e clara
sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e
preço, bem como sobre os riscos que apresentem (BRASIL, 2015, p. 140).
11.4.5 Harmonia
O princípio da harmonização previsto no art. 4, III do Código de
Defesa do Consumidor, apresenta a necessidade de respeitar, praticar e
incentivar a harmonização das relações de consumo entre consumidores e
fornecedores para que haja um equilíbrio entre as partes (NUNES, 2000, p.
105).
É pilar da legislação consumerista princípios que buscam a
preservação e harmonia das relações, sempre buscando o atendimento das
necessidades dos consumidores, como saúde, segurança, qualidade de vida
e dignidade da pessoa humana.
11.4.6 Equilíbrio
Nota-se que este princípio entre ambos os partícipes das relações de
consumo (consumidor e fornecedor) são compatíveis e complementares, com
o intuito de existir equilíbrio nas ações para uma materialização profícua para
todos. E neste ponto, quando se pretende o cumprimento do princípio do
equilíbrio nas relações de consumo, cabe não descurar da realidade de como
acontecem estas relações. Existe uma notória desproporção de forças entre
fornecedor e consumidor nas relações efetivadas cotidianamente no
mercado. Esta a razão do CDC (estabelecido como norma de ordem pública
e interesse social) ter sido estruturado levando em consideração a
vulnerabilidade (às vezes, elevada ao grau de hipossuficiência) do
consumidor, traço indelével a impregnar todo este contexto.
11.4.7 Vulnerabilidade
O inciso I do art. 4º reconhece: o consumidor é vulnerável. Tal
reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida
na Constituição Federal, vindo a significar que o consumidor é a parte mais
fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade é real,
concreta e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho
econômico.
O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é
monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção, não se
está apenas referindo aos aspectos técnicos e administrativos para a
fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas
também ao elemento fundamental da decisão, ou seja, é o fornecedor que
escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor
está a mercê daquilo que é produzido (NUNES, 2000, p. 106).
Da interação entre os direitos...
// 195
11.4.8 O princípio básico de boa-fé
O princípio da boa-fé estampado no art. 4º da lei consumerista tem
como função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica,
compatibilizando os interesses aparentemente contraditórios, como a
proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico.
Dessa maneira tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa do
débil, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da
ordem econômica (NUNES, 2000, p. 108).
A lei consumerista incorpora a chamada boa-fé objetiva, diversa da
subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato
modificador, impeditivo ou violador de seu direito, ou seja, é a falsa crença
acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita em sua
legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação.
Segundo Luiz Antonio Rizzato Nunes (NUNES, 2000, p. 108), a boafé objetiva pode ser definida como sendo uma regra de conduta, isto é, o
dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e
lealdade a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não
o equilíbrio econômico, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez
que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de
consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças. Todavia para se chegar
a um equilíbrio real, somente com a análise global do contrato, de uma
cláusula em relação às demais, pois o que pode ser abusivo ou exagerado
para um não será para o outro.
Complementa Cristiano Heineck Schmitt (SCHMITT, 2006, p. 89) que
sendo a boa-fé uma fonte de constituição de deveres independente da
vontade das partes, o conteúdo da relação obrigacional não se medirá mais
por esta, mas sim pelas circunstâncias referentes ao caso concreto. O acordo
de vontades continua sendo fonte de direitos e obrigações, porém essa
prerrogativa é assumida também pela boa-fé, de forma que tanto esta como
a vontade servirá para interpretação das cláusulas conveniadas.
Dessa maneira a boa-fé objetiva funciona como um modelo que não
depende de forma alguma da verificação de má-fé subjetiva do fornecedor ou
mesmo do consumidor. Quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em
comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a
fim de garantir respeito à outra.
A boa-fé será a base de interpretação das relações obrigacionais com
consumidores, em termos de Código de Defesa do Consumidor em
decorrência da positivação de deveres advindos dela, a fonte não será o
princípio, mas sim a lei (SCHMITT, 2006, p. 89).
Pode-se afirmar que esse princípio visa garantir a ação sem abuso,
sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para
garantir o fim esperado no contrato, realizando os interesses das partes
(NUNES, 2000, p. 108).
196 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
11.5 INTERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE E O
DIREITO DO CONSUMIDOR
A Constituição Federal brasileira informa e impõe um sistema de
valores estabelecendo em seu artigo primeiro o que seria os seus princípios
fundamentais, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. E pelo artigo
terceiro, inciso I, complementa firmando que são objetivos fundamentais para
o país, construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Esses comandos constitucionais encontram na proteção aos direitos
da personalidade e no cumprimento dos direitos dos consumidores,
importantes instrumentos de operacionalização.
Quando o direito da personalidade preconiza a proteção da vida,
também o faz em proveito das pessoas que necessitando de produtos ou
serviços acabam sofrendo os danos provocados em razão de fornecimento
defeituoso, naturalmente vedado pelas normas de proteção ao consumidor.
Dessa forma, não é apropriado pensar em vida na sua concepção
plena, considerando-se o restrito sentido de sobrevivência física, mas sim em
existência com ao menos aquele mínimo de qualidade merecida como direito
humano. E essa condição de vida, como objeto de direito subjetivo, depende
em muito da qualidade das relações de consumo que a pessoa realiza ao
longo de sua vida.
Em sua plenitude, a proteção desse direito da personalidade
compreende o contexto de uma série de circunstâncias que acontecem no
dia a dia das pessoas, incluindo as consequências decorrentes das relações
de consumo em que elas são partícipes. Com relações de consumo mal
sucedidas em razão dos fornecimentos defeituosos, pode acontecer o
perecimento do consumidor, da possibilidade de ser mantida a devida
sanidade de seu corpo e da sua mente.
Os direitos do consumidor, valores transcendentes de modo que a
regulamentação da matéria se estabelece no sentido da concretização de
direitos constitucionalmente salvaguardados. Esses valores merecem o
cuidado do legislador infraconstitucional quando da formulação da arquitetura
dos direitos do consumidor.
É curioso notar a frequência de expressões vitais, como saúde,
segurança estarem presentes no bojo do Código de Defesa do Consumidor
(“saúde e segurança dos produtos” - art. 8; “perigo à saúde ou segurança”art. 9). Mas não é sem menos que essas expressões circulam com facilidade
no interior de artigos, incisos e alíneas, ou ainda encabeçando títulos e
capítulos da Lei. Isso porque se trata de âmbito em que a pessoa pode sofrer
atentados de inúmeras naturezas a direitos de personalidade, uma vez
inserida em relação de consumo.
O caráter invasivo das técnicas de comunicação, informação,
produção e circulação de bens, publicidade é que tem motivado com maior
intensidade lesões aos direitos da personalidade, sobretudo no âmbito das
relações de consumo. Em face da multiplicidade de forma de contato
consumerista, entre consumidor e fornecedor/prestador, uma série de lesões
Da interação entre os direitos...
// 197
podem dar ensejo à invasão do terreno dos direitos personalíssimos
(cobrança vexatória; acusação injusta de roubo ou furto; disparo indevido de
alarme de segurança em estabelecimento comercial; inclusão de nome nos
cadastros de proteção ao crédito; atendimento discriminatório, entre outras
hipóteses).
Segundo Bruno Miragem (MIRAGEM, 2008, p. 111) a margem de
sublinhar o caráter essencial da proteção da vida como direito subjetivo que
admite múltiplas eficácias, mostra claramente essa aproximação ao ligar os
direitos da personalidade e os direitos do consumidor. A doutrina ensina que,
por um lado, determina a proteção da vida do consumidor individualmente
considerado em uma relação de consumo específica. Isso indica a
necessidade de proteção de sua integridade física e moral e, neste sentido,
o vínculo de dependência da efetividade deste direito com os demais de
proteção a saúde e da segurança, igualmente previstos no CDC.
Uma segunda dimensão é a dimensão transindividual do direito à
vida, tendo a sua proteção de modo comum e geral a toda coletividade de
consumidores efetivos e potenciais, com relação aos riscos e demais
vicissitudes do mercado de consumo, o que no caso, determina a vinculação
deste direito subjetivo e outros como o direito a segurança, e ao meio
ambiente sadio. O direito à vida, contudo, antes de ser um direito básico do
consumidor, configura-se como direito essencial da personalidade, e direito
fundamental consagrado na Constituição da República (artigo 5, caput).
Portanto, é nesta dimensão que deve ser compreendido.
Analisando por essa perspectiva, não remanesce dúvida, da
existência de espaços de confluência entre o direito da personalidade e o
direito do consumidor. Situação semelhante ocorre em relação ao direito à
liberdade. Qualquer indivíduo preso injustamente contrata advogado que
mediante seu trabalho obtém a soltura desse cliente, está a receber a tutela
dos direitos da personalidade e tem a relação de consumo regida pelo direito
do consumidor. Pode-se considerar inclusive, que os direitos à informação e
a liberdade de escolha consoante previsto no CDC (art. 6, incisos II e III),
fazem parte do espectro mais amplo de proteção à liberdade conforme os
direitos da personalidade. Finalmente quando é cerceado o direito à
informação, o destinatário dela sofre evidente prejuízo, vez que não estando
convenientemente esclarecido, restam desmesuradamente aumentadas às
dificuldades para fazer suas escolhas de forma adequada, uma das
possibilidades da liberdade como um todo.
No que diz respeito à tutela da dignidade humana prevista nos
direitos da personalidade, tem-se que a configuração dela se perfaz segundo
a realidade dos fatos, ou seja, sua caracterização depende do caso concreto,
que pode envolver, por exemplo, relação de consumo na qual à imagem da
pessoa é indevidamente denegrida chegando a afetar a personalidade, ou
então, o consumidor é exposto ao ridículo nas cobranças abusivas ou
vexatórias. Embora existam circunstâncias que estabeleçam diferenças, o
princípio da dignidade humana permanece o mesmo, válido e impositivo,
198 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
independente de que seja observado pelo viés do direito da personalidade,
quer seja visualizado segundo a ótica do direito do consumidor.
Segundo Cláudia Lia Marques (MARQUES, 1999. p. 46-47),
adotando a noção de hipervulnerabilidade para aplica-la inclusive aos
consumidores com vulnerabilidade agravada pelo Código de Defesa do
Consumidor aos hipossuficientes, sabiamente refere:
Interessante mencionar que a jurisprudência desenvolveu a noção de
hipervulnerabilidade como um corolário positivo da proibição de
discriminação, logo do princípio da igualdade (um dever ser) e mandamento
de pleno desenvolvimento da personalidade, diretamente ligada, pois, a
nossa visão de dignidade de pessoa humana (tratamento equitativo e digno
da pessoa humana).
Levando em consideração as expressões que pretende a proibição
da discriminação, princípio da igualdade ou da dignidade humana, são
corriqueiros nos direitos da personalidade e no direito do consumidor,
ocorrendo um alinhamento entre eles, ou seja, inexiste sobreposição nem
hierarquia de normas, prestigiando e interagindo a maior parte dos direitos
fundamentais e protegendo a personalidade das pessoas, bem como as
amparando enquanto consumidoras.
Dessa forma, os direitos da personalidade e o direito do consumidor,
nos pontos de convergência devem dialogar com coerência, com intuito de
atingir os objetivos que compõem as suas funções sociais.
11.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O princípio da dignidade da pessoa humana concomitante com o
princípio da isonomia está no ápice do ordenamento jurídico brasileiro,
incidindo diretamente nas relações privadas. No âmbito das relações de
consumo, o princípio da boa-fé ganha força, enquanto estrutura central do
comportamento ético e solidário, pro sua expressa previsão no Código de
Defesa do Consumidor.
Ou seja, a interação entre os direitos da personalidade com o direito
do consumidor são ferramentas da eficácia da tutela jurisdicional do
consumidor e exatamente entre o diálogo entre esses direitos que se
alcançam os objetivos que compõem as suas funções sociais, mormente a
tutela dos direitos do consumidor.
11.7 REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
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Companhia das Letras, 1998.
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Da interação entre os direitos...
// 199
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do consumidor, direito material e processual do consumidor, proteção
administrativa do consumidor, direito penal do consumidor. São Paulo: Revista
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Consumidor: direito material. São Paulo: Saraiva.
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Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. v. 1. São Paulo: Atlas, 2013.
.
200 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= XII =
DA PESSOA TRANSEXUAL E DA PESSOA HOMOSSEXUAL: DA
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO E VIOLAÇÕES AOS
DIREITOS DA PERSONALIDADE
Sarah Tavares Lopes da Silva1
Francielle Lopes Rocha2
12.1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho possui como objetivo abordar sobre o tema da
aplicação de medidas protetivas, com ênfase na responsabilidade penal,
quando ocorrem as violações de direitos da personalidade, sendo vítimas as
pessoas transexuais e homossexuais, as quais, constantemente, são
colocadas à margem da sociedade, sendo diariamente discriminadas, bem
como vítimas de violência, tanto psíquica como física.
Inicialmente, aborda-se sobre a diversidade sexual, pois necessário
se faz esclarecer que, embora a pessoa tenha nascido com determinado sexo
anatômico, nem sempre a sua identidade de gênero e orientação afetiva
sexual correspondem aquele, ou seja, não é sempre que uma pessoa nasce
na forma cissexual.
Inserida no tema diversidade sexual, está o estudo sobre o gênero,
identidade de gênero, orientação afetiva sexual do indivíduo e a identidade
de gênero. Quando a pessoa nasce, o corpo social bem como o núcleo
familiar, com base apenas na genitália do recém-nascido, já realiza a
programação de como será a educação desta criança, e ações que implicam
em seu desenvolvimento, dentre outros. Os meninos usaram roupas de tom
mais escuro, bem como, no labor, vão exercer trabalhos mais pesados; já as
meninas irão usar vestimentas mais claras, predominando a cor rosa, irão
desenvolver atividades de cunho doméstico, dentro outras características.
Mestranda na Pós-Graduação stricto sensu em Ciências Jurídicas na instituição Unicesumar –
Centro Universitário de Maringá. Especialista em Direito Civil Aplicado pela Escola da
Magistratura do Paraná – Núcleo de Maringá. Graduada em Direito pela instituição Faculdade
Maringá. Advogada em Maringá. Endereço eletrônico: <[email protected]>. Sob orientação
de Valéria Silva Galdino Cardin, Professora da Universidade Estadual de Maringá e do Centro
Universitário - Cesumar; Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo; Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa.
Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: <[email protected]>.
2
Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da
Personalidade do Centro Universitário Cesumar - UniCesumar. Bolsista da CAPES pelo projeto
PROSUP. Advogada em Maringá - Pr. Endereço eletrônico: [email protected]. Sob
orientação de Valéria Silva Galdino Cardin, Professora da Universidade Estadual de Maringá e
do Centro Universitário - Cesumar; Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-Doutora em Direito pela Universidade de
Lisboa. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: <[email protected]>.
1
202 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Porém, nem sempre um indivíduo irá corresponder ao sexo biológico que
possui, podendo uma mulher, por exemplo, ser heterossexual e mesmo assim
gostar da cor azul e de brincar de carrinho; outro caso, é a criança que sente
afeto emocional e amoroso por alguém do mesmo sexo, dentre outros.
Cada pessoa possui uma identidade de gênero distinta, bem como
também é distinto a orientação afetivo sexual. Assim temos que todas as
pessoas, em si mesmas, são desiguais, cabendo ao Direito criar e efetivar
normas que tragam igualdades. Pela prevalência da paz e do bom convívio
social, os desiguais devem tomar a posição de iguais. Todavia, não é isto que
ocorre com as pessoas que não se enquadram no padrão heteronormativo.
Neste passo, necessário abordar sobre a proteção a pessoa humana.
Temos que, logo após a Segunda Guerra Mundial, observando as
atrocidades cometidas devido à guerra, principalmente nos campos de
concentração, também conhecidos como campos de extermínio, de Adolf
Hitler, o cenário internacional passou a demonstrar maior cautela em
questões que versem sobre a proteção da pessoa. Foram criados diversos
Tratados e Convenções Internacionais no intuito de garantir que todas as
pessoas tivessem acesso a condições de vida digna.
Os Princípios de Yogyakarta foram elaborados no final dos anos
noventa. Eles são aplicados a pessoas ou grupos que sofram com a
discriminação, marginalização ou até a violência, devido a sua orientação
sexual e identidade de gênero.
Por seguinte, necessário fazer a distinção entre pessoas transexuais
e homossexuais.
Os homossexuais são pessoas que possuem orientação afetiva
sexual, sentindo amor, carinho, e atração sexual por alguém que possua o
mesmo sexo biológico. Já os transexuais correspondem a uma pessoa cuja
a identidade de gênero não corresponde ao sexo anatômico, ou seja, o sexo
psíquico é distinto da genitália tida no nascimento, sendo que esta pessoa se
vê como alguém do sexo oposto.
No Brasil, não há legislação própria que garanta condições de vida
digna aos homossexuais e transexuais, cabendo ao aplicador da lei realizar
o uso da analogia em diversos casos, sempre se atentando as normas e
princípios que regem a Constituição Federal, diploma superior aos demais.
Com a falta de leis que possuem como objetivo resguardar e
assegurar os direitos de transexuais e homossexuais, torna-se fácil para
aqueles que não aceitam estas pessoas realizar discriminação e violência,
tanto psíquica como também física.
Constantemente, transexuais e homossexuais são colocados à
margem da sociedade, sendo estas, pessoas que sofrem constante
discriminação simplesmente porque sua identidade de gênero e orientação
afetiva sexual não corresponder ao que é considerado regra pela sociedade,
ou seja, a união exclusiva entre homem e mulher. Por conta desta aversão a
estas pessoas, têm-se os termos homofobia e a transfobia.
Por fim, aborda-se sobre a utilização da Lei Marina da Penha (Lei nº
11.340 de 07 de agosto de 2006), a qual não defende, apenas, a violência
Da pessoa transexual...
// 203
contra a mulher, como muitas pessoas pensam, mas sim todas as violências
que atinjam o gênero feminino.
Posto isso, com este trabalho busca-se explanar quanto a
diversidade sexual, com enfoque na pessoa homossexual e transexual, os
quais são de forma corriqueira, vítimas de um sistema falho, tanto na
educação das pessoas, como também devido a omissão do legislador, o qual
até o presente momento não envidou esforços para resguardar os direitos
dessas pessoas.
12.2 DA DIVERSIDADE SEXUAL
A sociedade caracteriza todo o ser humano enquanto macho ou
fêmea observando apenas suas características biológicas. Assim, toda
criança tem sua existência atrelada, e o seu futuro determinado quando da
descoberta de seu sexo.
A princípio, tem-se a prevalência de que todas as pessoas são seres
vivos cissexuais, ou seja, o sexo biológico obrigatoriamente deve
corresponder ao gênero e à identidade de gênero, o que acaba determina a
orientação sexual da pessoa. Assim, por exemplo, se um bebê nasce com o
sexo biológico feminino – vulva, obrigatoriamente deverá ter um nome
feminino, por exemplo, Sophia, usar roupas femininas, como vestidos, saias,
acessórios, dentre outros; e se relacionar com uma pessoa do sexo oposto.
Todavia, através de estudos e observando a história humana,
observa-se que nem sempre o sexo biológico está atrelado à identidade de
gênero e a orientação afetiva sexual. O reconhecimento da sexualidade
humana é plural (GIRARDI, 2014, p. 35).
Há grande diversidade de nomenclaturas para definir a orientação
afetiva sexual e a identidade de gênero distinta, sendo as mais conhecidas:
(a) heterossexualidade: atração física, emocional e amorosa entre pessoas
de sexo distintas; (b) homossexualidade atração física, emocional e amorosa
entre pessoas do mesmo sexo biológico; (c) bissexualidade consiste na
atração afetiva por pessoas de ambos os sexos (feminino ou masculino),
independentemente do gênero a que correspondem. Caracteriza-se pela
alternância da preferência sexual; (d) transexual, que é o indivíduo que se
identifica como pertencente ao outro sexo, e possui grande frustração ao
tentar se expressar pelo sexo genético. A Organização Mundial da Saúde
classifica o transexual como transtorno de identidade sexual; (e) intersexual:
intersexualidade, em seres humanos, é qualquer variação de caracteres
sexuais incluindo cromossomos, gônadas e / ou órgãos genitais que
dificultam
a
identificação
de
um
indivíduo
como
totalmente feminino ou masculino. Essa variação pode envolver ambiguidade
genital, combinações de fatores genéticos e aparência e variações
cromossômicas sexuais diferentes de XX para mulher e XY para homem.
Pode incluir outras características de dimorfismo sexual como aspecto da
face, voz, membros, pelos e formato de partes do corpo. A pessoa, neste
caso, apresenta ambiguidade no sexo biológico; dentre vários outros.
204 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Quanto à sexualidade humana, segundo o autor Tony Anatrella
(2010, p. 626):
A sexualidade humana não se reduz à expressão genital, situando-se no
fundamento psíquico do desenvolvimento da vida afetiva, da relação com o
outro e do sentido de desejo. Por seu turno, a expressão sexual que inscreve
numa dupla perspectiva: enriquecer a relação com o outro no prazer de
estarem juntos e na procriação no seio de um casal [..].
Assim, tem-se que a sexualidade humana é um direito existencial,
pois a personalidade do indivíduo não é apenas um direito, mas sim um valor
fundamental (GIRARDI, 2014, p. 36). No mais, segundo a autora Jaqueline
Bergara Kuramoto (2004, p. 160):
A sexualidade está inserida nos indivíduos desde os primórdios da
humanidade, e vive-la em sua plenitude faz parte da intimidade, da vida
privada, da honra e da imagem das pessoas. Esses são direitos
constitucionais de todas as pessoas e, portanto, devem ser respeitados pela
sociedade, principalmente questões que envolvem a sexualidade e as
opções sexuais, por serem de foro íntimo pessoal.
A sexualidade humana é um direito personalíssimo, pois é uma
parcela indissociável da personalidade humana, estando vinculada ao seu
titular, podendo este exerce-la de forma plena e imprescindível.
Assim, em atenção ao respeito à diversidade sexual, o Supremo
Tribunal Federal se manifestou, com base no princípio da dignidade da
pessoa humana, que todos os seres humanos possuem a autonomia de
determinarem a sua própria história de vida.
Nesta seara, o STF julgou dois importantes casos, vindo a expressar
o seu posicionamento a favor da diversidade sexual. Na Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277, que deu nova interpretação ao art. 1.723
do Código Civil, seguindo valores constitucionais, para assegurar aos
homossexuais o mesmo tratamento fornecido aos heterossexuais (BRASIL,
Supremo Tribunal Federal. ADI 4277 DF):
Ementa:
1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
(ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE
REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO
JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE
NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos
fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de
conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil.
Atendimento das condições da ação.
2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO
SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO),
SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A
PROIBIÇÃO
DO
PRECONCEITO
COMO
CAPÍTULO
DO
Da pessoa transexual...
// 205
CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO
COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA
DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA
AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA.
CLÁUSULA PÉTREA.
[...] 3. [...] O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial
proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em
seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco
importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por
casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. [...]
4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A
HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA
ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER
RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS
DUAS
TIPOLOGIAS
DO
GÊNERO
HUMANO.
IDENTIDADE
CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E
“FAMÍLIA”. [...]. A Constituição não interdita a formação de família por
pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada
a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo
interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese
sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua nãoequiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §
2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e
garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime
e dos princípios por ela adotados”, in verbis: “Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”.
[...] RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA.
PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em
sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não
resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de
“interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em
causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,
pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família.
Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as
mesmas consequências da união estável heteroafetiva.
Igualmente, também houve a análise na ADPF 132 – Rio de Janeiro,
pelo Supremo Tribunal Federal, a qual determinou a proibição de
discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia
homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual
deles.
12.2.1 Da identidade de gênero e da orientação afetivo sexual
Muitas pessoas acreditam que um ser humano considerado “normal”
é aquele cujas as características externas e, principalmente, internas,
estejam vinculadas ao sexo biológico com o qual a pessoa nasceu. Porém,
206 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
nem sempre isto ocorre, ou seja, não será em todos os casos em que haverá
a existência de uma pessoa cissexual.
A sexualidade da pessoa humana é constituída por vários elementos:
sexo; identidade de gênero; gênero; e orientação afetiva sexual.
O sexo da pessoa está ligado ao órgão reprodutor com a qual esta
nasce. No caso de um macho, o qual possui os cromossomos XY, ele nascerá
com o pênis; e no caso de uma fêmea, a qual é composta pelos cromossomos
XX, ela nascerá com uma vagina.
É com a descoberta do sexo biológico que os genitores, demais
familiares, amigos, e a sociedade, passam a atrelar toda a existência da
pessoa à mesma, pois se espera que ela se comporte de uma forma já
determinada para o seu sexo, devido a costumes, crenças e religiões, bem
como normas legais atreladas ao status jurídico.
Todavia, a identidade de gênero e a orientação afetiva sexual não
estão vinculadas ao sexo biológico da pessoa. A orientação afetiva sexual
está ligada a forma de expressão do amor, desejo ou sentimentos, de uma
pessoa para a outra. Logo, um homem não necessita, obrigatoriamente, amar
uma mulher, podendo ele amar alguém que seja do mesmo sexo; amar
ambos os sexos, dentre outras formas.
Quanto à identidade de gênero, está ligado ao gênero com o qual a
pessoa se identifica, que pode ou não corresponder ao gênero que lhe foi
atribuído quando de seu nascimento (feminino ou masculino).
No caso da pessoa transexual, por exemplo, tem-se que a mesma
não aceita seu gênero de nascimento, enfrentando esta pessoa sentimento
de extrema angustia interna, vez que se vê como pertencente ao sexo oposto
(GROSSI, web). Por esta razão, o transexual passar a utilizar vestimentas do
sexo oposto, vindo a ingerir hormônios que deixem seu corpo mais parecido
com o outro sexo e, em alguns casos, vindo a realizar a cirurgia de
transgenitalização.
Muitas pessoas não aceitam que a identidade de gênero e a
orientação afetiva sexual não correspondam ao sexo biológico, vindo a
denegrir pessoas que não estão inseridas no padrão heterossexual, valendose da violência física e psíquica, bem como marginalizando estas pessoas.
Por muitas vezes, o próprio Estado, o qual a priori tem o dever de proteger a
todas as pessoas, de forma igualitária, não produz políticas públicas para
resguardar os direitos dessas pessoas e, com as leis que já possui, evita,
também, realizar a proteção necessária.
A Constituição Federal de 1988 garante os direitos humanos,
igualitários, a todas as pessoas (art. 3º, inciso IV da CF/88). Ademais, prevê
tratamento igualitário entre todos os cidadãos, independente de sua
identidade de gênero e/ou expressão da sexualidade. Tanto o princípio da
igualdade, como da liberdade, são aplicados com ênfase a todas as pessoas
do ordenamento jurídico brasileiro. Porém, nem sempre esta igualdade ou
liberdade é respeitada, seja pela sociedade, pelo Estado ou pela própria
família da pessoa.
Da pessoa transexual...
// 207
12.3 DA PROTEÇÃO À PESSOA HUMANA: DIREITOS HUMANOS
Os direitos humanos apresentam duas fontes. A princípio, são
oriundos de reinvindicações de cunho moral, ou seja, ações de várias
pessoas em busca de melhores condições de vida. Além disso, os direitos
humanos nascem com a pessoa, ou seja, são direitos naturais e universais,
desenvolvendo-se como direito positivo particular (PIOVESAN, 2010, p. 182).
Historicamente, observa-se que o Direito Humanitário, Liga nas
Nações e
Organização Internacional do Trabalho demonstram-se
como os marcos iniciais do processo de internacionalização dos direitos
humanos.
O Direito Humanitário é aplicado em situações de guerra, a fim de
resguardar e proteger o direito das pessoas, evitando-se a prática da
violência. Este é composto pelas leis das Convenções de Genebra e da
Convenção de Haia. Já a Liga das Nações foi fundada logo após o fim da
Primeira Guerra Mundial, em 1920, com o objetivo de promover a paz e a
segurança internacional entre os Estados. Por sua vez, a Organização
Internacional do Trabalho disponibilizou normas internacionais de trabalho,
visando o labor decente (PIOVESAN, 2010, p. 184-185).
Todavia, a internacionalização dos direitos humanos ocorreu em
decorrência da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Devido à monstruosa
violação dos direitos humanos realizados durante esta guerra, principalmente
as atrocidades cometidas por Adolf Hitler, o qual ordenou a construção de
campos de concentração, também conhecidos por campos de extermínio,
local onde eram detidos e mortos os inimigos do regime nazista, é que se
criou a crença que muitas destas violações e violências poderiam ser
prevenidas se existisse a proteção internacional dos direitos humanos.
Após a Segunda Guerra Mundial, emergiu a necessidade de se
reconstruir os direitos humanos, que anteriormente foram rompidos,
buscando as novas normas a se valerem da ética e da moral para construir
condições de vida melhores. Com isto, foram criadas as Nações Unidas,
adotada a Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, as quais
passaram a ocupar espaço de extrema relevância no senário internacional.
Segundo a autora Flávia Piovesan (2010, p. 210):
A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear um ordem pública mundial
no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos e universais.
Desde seu preâmbulo é afirmado à dignidade inerente a toda a pessoa
humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração
Universal a condição da pessoa é o requisito único e exclusivo para a
titularidade de direitos.
Assim, temos que a Declaração Universal de Direitos Humanos, bem
como demais Declarações e Tratados Internacionais, apresentam a
concepção de direitos humanos, passando os indivíduos a serem
reconhecidos como independentes e indivisíveis, merecedores de proteção
especial por parte do Estado, ao qual cabe garantir a efetivação dos direitos
208 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
fundamentais, em especial, a igualdade e a dignidade da pessoa humana,
evitando-se que as pessoas sejam vítimas de atos discriminatórios, os quais
as coloquem em situação de vulnerabilidade.
12.4 DOS PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA
Inicialmente, antes de se adentrar sobre os Princípios de Yogyakarta,
necessário se faz entender um pouco sobre o contexto político-social do final
dos anos de 1990.
No Brasil, o grupo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e
travestis), passava por grandes dificuldades, pois os integrantes deste grupo
eram constantemente marginalizadas pela sociedade brasileira, o que
resultava na vulnerabilidade social destas pessoas.
Os integrantes do grupo LGBT possuíam pouco acesso a condições
básicas de vida, tais como saúde e educação. Ademais, não possuíam
participação na política, bem como ocupavam classes de menor grau
econômico, ou seja, a pobreza para este segmento era generalizada.
No final dos anos noventa, passaram a ocorrer avanços políticos que
permitiram a maior inclusão de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e
travestis no meio social, vindo a serem reconhecidos direitos que antes eram
negligenciados a determinados grupos.
O casamento, por exemplo, foi um desses direitos adquirido. No
plano jurídico, o casamento passou a ser reconhecido como direito,
independente do sexo, identidade de gênero ou orientação afetivo-sexual da
pessoa. Em 14 de maio de 2013, foi aprovada durante a 169ª Sessão Plenária
do Conselho Nacional de Justiça a Resolução nº 175, a qual dispõe sobre a
habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável
em casamento, entre pessoas de mesmo sexo (BRASIL, 2013, web).
No ano de 2003, em Genebra, foi realizada durante a 59ª Sessão da
Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, onde o Brasil
recomendou uma proposta de resolução com o objetivo de proibir a
discriminação devido à orientação sexual. Esta proposta acabou conhecida
como “Resolução Brasileira”. Todavia, embora o Brasil contasse com um
grande número de Estados que apoiasse sua iniciativa, países como os
Estados Unidos, Vaticano, bem como países árabes, se opuseram veemente
a esta proposta. No ano de 2004, durante a 60ª Sessão, a proposta, agora
apoiada pela União Europeia, países como Canadá, Argentina, foi novamente
retirada da pauta. Posteriormente, o Brasil não mais tentou aprovar a
proposta (GUIMARÃES, 2014, p. 711).
A falta de insistência por parte do Brasil gerou perplexidade, tanto no
âmbito nacional como internacional. Por conta disso, em defesa aos direitos
humanos, no ano de 2007 o grupo internacional conhecido como experts
promoveu em Genebra a apresentação dos Princípios de Yogyakarta. Estes
princípios nada mais são do que a reinterpretação dos direitos fundamentais,
os quais foram consagrados em Tratados Internacionais, bem como
Convenções e Resoluções.
Da pessoa transexual...
// 209
Os Princípios de Yogyakarta são aplicados a pessoas ou grupos que
sofram com a discriminação, marginalização ou até a violência, devido a sua
orientação sexual e identidade de gênero.
Elencam-se a seguir os 29 Princípios de Yogyakarta (YOGYAKARTA,
web):
1. DIREITO AO GOZO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
2. DIREITO À IGUALDADE E A NÃO DISCRIMINAÇÃO
3. DIREITO AO RECONHECIMENTO PERANTE A LEI
4. DIREITO À VIDA
5. DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL
6. DIREITO À PRIVACIDADE
7. DIREITO DE NÃO SOFRER PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE
8. DIREITO A JULGAMENTO JUSTO
9. DIREITO A TRATAMENTO HUMANO DURANTE A DETENÇÃO
10. DIREITO DE NÃO SOFRER TORTURA E TRATAMENTO OU CASTIGO
CRUEL, DESUMANO OU DEGRADANTE
11. DIREITO À PROTEÇÃO CONTRA TODAS AS FORMAS DE
EXPLORAÇÃO, VENDA E TRÁFICO DE SERES HUMANOS
12. DIREITO AO TRABALHO
13. DIREITO À SEGURIDADE SOCIAL E A OUTRAS MEDIDAS DE
PROTEÇÃO SOCIAL
14. DIREITO A UM PADRÃO DE VIDA ADEQUADO
15. DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA
16. DIREITO À EDUCAÇÃO
17. DIREITO AO PADRÃO MAIS ALTO ALCANÇÁVEL DE SAÚDE
18. PROTEÇÃO CONTRA ABUSOS MÉDICOS
19. DIREITO À LIBERDADE DE OPINIÃO E EXPRESSÃO
20. DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E ASSOCIAÇÃO PACÍFICAS
21. DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E
RELIGIÃO
22. DIREITO À LIBERDADE DE IR E VIR
23. DIREITO DE BUSCAR ASILO
24. DIREITO DE CONSTITUIR FAMÍLIA
25. DIREITO DE PARTICIPAR DA VIDA PÚBLICA
26. DIREITO DE PARTICIPAR DA VIDA CULTURAL
27. DIREITO DE PROMOVER OS DIREITOS HUMANOS
28. DIREITO A RECURSOS JURÍDICOS E MEDIDAS CORRETIVAS
EFICAZES
29. RESPONSABILIZAÇÃO.
Os Princípios de Yogyakarta possuem como pilastra o conceito de
que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Ressalta-se que a orientação sexual e a identidade de gênero são essenciais
para a dignidade de cada pessoa, tanto que a sexualidade humana é
considerada como um direito da personalidade, não podendo este direito ser
discriminado.
Observa-se que não apenas as sociedades, mas também os Estados
impõem a pessoa qual será o modelo de identidade de gênero bem como a
orientação afetiva sexual a ser seguida por ela. Através de meios coercitivos,
210 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
até mesmo o uso da violência, muitas pessoas são obrigadas a seguir o
padrão denominado como “normal”, qual seja, a heteronormatividade.
Para enfrentar as deficiências existentes tanto no plano nacional
como também internacional, se faz necessário compreender em que consiste
a legislação vigente em cada país, bem como a legislação que versa sobre
os direitos humanos e sua aplicação em questões de identidade de gênero e
orientação sexual.
Os Princípios de Yogyakarta afirmam, através de seu texto, a
obrigação dos Estados em realizar a proteção das pessoas por meio da
implantação dos direitos humanos, pois a sociedade não é composta apenas
de um único ser humano, mas sim de vários, devendo a totalidade ter seus
direitos respeitados e garantidos.
12.5 DA TRANSEXUALIDADE
A pessoa transexual não se submete a rigidez identitária que busca
vincular o gênero e a identidade de gênero ao sexo biológico.
Constantemente, a pessoa transexual tem seus direitos
personalíssimos, bem como sua autodeterminação, violados em inúmeras
esferas de sua vida social, inclusive no que diz respeito à alteração do nome
no registro civil, pois depende da intervenção de terceiro para legitimar e
confirmar algo que lhe é inerente desde seu nascimento, ou seja, sua
identidade. Nesse sentido, segundo a autora Tereza Rodrigues Vieira afirma
(2014, p. 541): “A transexualidade é caracterizada por um forte conflito entre
corpo e identidade de gênero e compreende um arraigado desejo de adequar
o corpo hormonal e/ou cirurgicamente àquele do gênero almejado”.
Muitas pessoas consideram, de forma equivocada, que todos os
transexuais possuem o desejo de, devido ao fato de se identificarem como
pessoas do sexo oposto, realizar a cirurgia de readequação do sexo. Porém
isto não é verdade.
Existem duas formas de transexual: o binário é aquele transexual que
nasceu com determinado sexo biológico, porém, se vê como alguém do sexo
oposto e por isso pretende realizar a readequação de seu corpo humana ao
sexo almejado, vindo a ingerir hormônios e realizar a cirurgia de
transgenitalização. Em contrapartida, há o transexual não binário, o qual,
mesmo estando no corpo que considera errado, pois se vê como alguém do
sexo oposto, não sente repulsa pela genitália que possui, vindo a, apenas,
tomar hormônios para ter uma aparência mais feminina/masculina.
Aos transexuais que optam por realizar a cirurgia de readequação do
sexo, antes de ser realizado o acompanhamento médico, se faz necessário
realizar o acompanhamento psicológico, o qual tem como objetivo identificar
se realmente o caso desta pessoa se trata de um caso de transgênero,
necessitando ou não de cirurgia (CFM, 2010, web).
Outra questão de sua importância está ligada a readequação do
nome e do sexo no registro civil. Com relação ao prenome inadequado,
consoante à autora Maria Fátima Pereira de Sá (2009, p. 262):
Da pessoa transexual...
// 211
A mudança de prenome do transexual não encontra respaldo expresso na
legislação ordinária vigente, tendo em vista a adição do princípio da
imutabilidade do nome da pessoa. Vários julgados ainda entendem ser
inadmissível a alteração do registro ao fundamento de que há prevalência do
sexo biológico sobre o sexo psíquico, o que justifica a imutabilidade.
Acreditam, outrossim, no caráter mutilador da cirurgia.
No Brasil, o único meio de se conseguir a alteração do sexo e do
prenome no Registro Civil é por meio de autorização judicial, que se dá
através de sentença judicial. Assim, a doutrina e jurisprudência têm dado uma
interpretação mais liberal ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos (Lei n.
6.015/73), valendo-se de alguns fundamentos: 1) o artigo 1º, III, da CF, coloca
a dignidade do ser humano como um dos fundamentos da República, o que
possibilita o livre desdobramento da personalidade, “[...] garantindo ao
transexual o direito à cidadania e a posição de sujeito de direitos no seio da
sociedade”; 2) a cirurgia não tem o caráter mutilador, mas sim corretivo; e 3)
o direito ao próprio corpo é direito da personalidade, o que faculta ao
transexual o direito de buscar o seu equilíbrio psicofísico.
Com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, e
observando que o transexual também é um cidadão, componente da
sociedade no qual está inserido, deve ser reconhecido ao mesmo à posição
de sujeito de direitos, incluindo-o socialmente.
12.6 DA HOMOSSEXUALIDADE
A homossexualidade se refere a uma característica de sentimento e
afeto, sendo que esta pessoa sente atração física ou emocional por outra
pessoa do mesmo sexo. Posto isso, segundo o autor Tony Anatrella (2010,
p. 627):
A homossexualidade representa uma atração sexual mais ou menos
exclusiva por pessoas do mesmo sexo. Corresponde a uma tendência sexual
que se constitui aquando do desenvolvimento afetivo da pessoa, mas que se
fixa com base num conflito psíquico não resolvido.
Ao longo da história, observa-se que a homossexualidade foi
admirada, tolerada e até mesmo condenada, pois a tolerância ou não desta
dependida das normas sexuais vigentes da época. Quando admirados, estas
pessoas eram vistas como membros importantes da sociedade, sendo
respeitados e tendo seus direitos amplamente reconhecido pela mesma.
Porém, quando condenados, as pessoas homossexuais eram consideradas
seres pecaminosos, detentores de doenças, estando sua relação com algum
parceiro proibida por lei.
Importante destacar de desde o século XX, a sexualidade humana
diversa do padrão heterossexual, tem sido desclassificada como doença e
não mais criminalizada em muitos países. Porém, enquanto a visão jurídica
212 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
sobre o tema, a formulação e aplicação da legislação ainda varia entre os
países.
No Brasil, o casamento homossexual, realizado em cartório, passou
a ser legalizado por meio da Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº
175 de 14 de maio de 2013. Porém, em muitos países, principalmente as
Nações do Oriente Médio, as relações homossexuais são consideradas
crimes, sendo punidas severamente pelo Estado e sociedade, como por
exemplo, na Arábia Saudita, onde os homossexuais são condenados à morte
por apedrejamento; e Irã, onde ocorre a morte por enforcamento.
Os Estados que condenam a homossexualidade, vindo a aplicar
sanções a estas pessoas estão afrontando, diretamente, o princípio da
dignidade da pessoa humana, bem como diversos outros princípios e direitos
fundamentais, sendo que a dignidade da pessoa humana visa garantir a todas
as pessoas condições dignas de vida, o que inclui desde o direito à vida, até
o direito de amar e se relacionar com o parceiro que lhe faça feliz, pois a
dignidade está atrelada a felicidade do ser humano.
12.7 DA PROTEÇÃO A PESSOA TRANSEXUAL E HOMOSSEXUAL
No Ordenamento Jurídico brasileiro, ainda não há legislação
específica regulamentando a matéria sobre a pessoa transexual e a pessoa
homossexual. Porém, em muitos casos, a grande parte dos magistrados
aplica normas, instruções, decretos e leis, por analogia, e os princípios gerais
do Direito para solucionar os casos que envolvam estas pessoas.
Com base na Constituição Federal de 1988, através de análise do
artigo 1º da Constituição, visualiza-se que estão arrolados os fundamentos
da República Federativa do Brasil. Entre estes fundamentos está a dignidade
da pessoa humana.
Através de análise do art. 3º da Constituição Federal de 1988,
observa-se a finalidade de promover o bem estar de todos os cidadãos,
independentemente de qualquer diferença, evitando-se a discriminação.
Ademais, o art. 4º deste mesmo diploma, traz a informação de que o Brasil
se rege pelos direitos humanos, em se tratando de questões internacionais e
nacionais. Por fim, com o art. 5º da CF, observa-se que em seu texto consta
que todas as pessoas são iguais perante a lei, não podendo ser realizada
distinções entre as mesmas, devendo o Estado garantir a todos o direito a
vida, liberdade, segurança, dentre outros.
12.7.1 Da homofobia e da tranfobia
A homofobia é um termo utilizado para designar o preconceito e a
aversão aos casais homossexuais. Porém, atualmente, esta palavra é
utilizada para indicar a discriminação que ocorre as mais diversas minorias
sexuais, as quais estão enquadradas no gripo LGBTI (lésbicas, gays,
transexuais, trangêneros, travestis e intersexuais). Por sua vez, a transfobia
está ligada à discriminação perante as pessoas transexuais e trangêneros.
Da pessoa transexual...
// 213
Nesse sentido, segundo o autor Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2014. p. 735):
“A homofobia se refere ao preconceito e/ou a discriminação contra
homossexuais e bissexuais, ao passo que a transfobia é o preconceito e/ou
discriminação contra travestis, transexuais e transgêneros em geral”.
Logo, a homofobia ou trasnfobia é uma forma de discriminação, pois
o ser humano acredita que, por estar inserido no padrão heteronormativo,
pode, e se acha no direito, de tratar o outro que neste preceito não se encaixa,
de forma desigual, inferior, tratando-o com o um ser vivo anormal.
A Organização das Nações Unidas (ONU) expressou-se no sentido
de que a homofobia e a transfobia são modalidades de racismo. Tal
mensagem foi transmitida em um vídeo no Dia Internacional contra a
Homofocia e a Transfobia, em 17 de maio de 2011. A Alta Comisssária da
ONU de Direitos Humanos, Navi Pillay realizou um alerta sobre o aumento de
crimes contra a comunidade LGBTI, afirmando que a discriminação ocorre,
por muitas vezes, devido à negligência dos governos. Ademais, a
Comissionária afirmou que em muitos países vale o princípio de que ninguém
deve sofrer discriminação com base em sua sexualidade (orientação sexual;
sexo; gênero; identidade de gênero), e que os Estados tem a obrigação de
adotar políticas públicas para que a discriminação não ocorra quanto a
diversidade sexual (NO DIA INTERNACIONAL CONTRA A HOMOFOBIA E
A TRANSFOBIA, web).
Posto isso, a homofobia ou a transfobia acabam gerando a
inferiorização da pessoa humana, o que acarreta na hierarquia da
sexualidade, concedendo a heterossexualidade uma posição superior sobre
as demais formas de sexualidade. Com isso, temos que, aos olhos da
sociedade, a regra, a “normalidade” seria a de que o sexo (pênis ou vulva)
acaba por definir o desejo sexual, ou seja, homens gostam de mulheres e
vive versa, bem como define a forma de expressão deste desejo.
Com a hierarquia da sexualidade, temos o chamado heterossexismo,
que nada mais é do que uma atitude de preconceito, discriminação e
negação, colocando a heterossexualidade como patamar superior as demais
formas de expressão da sexualidade, pois esta é o mandamento
predominante, classificando as demais expressões como inacabadas, ou até
mesmo, criminosas e repudiadas.
Nesse sentido, segundo o autor Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2014.
p. 738):
Assim, quando se fala em criminalização da discriminação por orientação
sexual, real ou atribuída, refere-se à conduta de destratar ou arbitrariamente
diferenciar o tratamento de pessoas em razão da homossexualidade,
bissexualidade ou heterossexualidade dela ou a ela atribuída, e, da mesma
forma, quando se fala em criminalização da discriminação por identidade de
gênero, real ou atribuída, refere-se a conduta de destratar ou arbitrariamente
diferenciar o tratamento de pessoas em razão da travestilidade,
transexualidade, transgeneridade em geral ou cisgeneridade. [...].
Logo, trata-se de conceitos absolutamente claros em seu conteúdo que,
como tais, podem perfeitamente ser objeto de leis criminalizadoras, da
214 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
mesma forma que os conceitos de “cor, etnia, procedência nacional e
religião” o são da atual Lei do Racismo.
Ademais, para que as pessoas consigam viver em uma sociedade
pacífica, livre de descriminalizações e marginalizações, ao menos se faz
necessário à existência da tolerância entre as mesmas. A tolerância nada
mais é do que é um termo que define o grau de aceitação diante de um
elemento contrário a uma regra moral, cultural, civil ou física. Esta se encontra
vinculada ao princípio da dignidade da pessoa humana, garantindo a todos
uma vida digna.
A dignidade da pessoa humana representa uma conquista para o ser
humano, pois torna este precioso e, por conta disso, merecedor de proteção
(BORGES, 2005, p. 19) em face de sua integridade psicofísica, o que
incorpora sua sexualidade. Seguindo este entendimento, quanto à proteção
da pessoa humana, segundo o autor Carlos Alberto Bittar (1989, p. 1):
Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa
humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previsto
no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos ao
homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a
intelectualidade e outros tantos. Grifo nosso
Em conjunto com a dignidade da pessoa humana, encontra-se,
também, a liberdade que todos os indivíduos possuem de escolher o seu
próprio caminho, bem como absorver suas experiências, vindo a elaborar e
amadurecer sua personalidade, bem como expressar sua orientação afetiva
sexual, sua identidade de gênero, dentre demais características.
Com isto, dignidade da pessoa humana e liberdade de cada pessoa,
temos que a tolerância deve ser imposta pelo Estado à sociedade,
objetivando impedir a opressão a grupos de pessoas como também ao
próprio indivíduo em si.
12.7.2 Da criminalização da discriminação devido à orientação sexual e
identidade de gênero
A princípio, necessário esclarecer a distinção entre o termos
preconceito e discriminação, muitas vezes confundidos pelas pessoas. O
preconceito é uma opinião de pensamento, cujo o teor é construído a partir
de uma análise sem fundamento, sendo considerado um prejulgamento. Já a
discriminação é uma forma de segregar alguém, tratando esta pessoa de
forma diferenciada, de forma injusta, impondo a outra pessoa uma
determinada conduta a ser seguida. O preconceito está vinculado ao intelecto
da pessoa, além de que também está atrelada a liberdade de pensamento,
direito garantido ao homem pela Constituição Federal, art. 5º, VIII, e por estes
motivos, não é punível. Por sua vez, a discriminação é a exteriorização no
mundo real do preconceito, e por isto é punível.
Da pessoa transexual...
// 215
Conforme o comportamento humano observa-se que não é possível
que as pessoas se gostem de forma universal, pois sempre haverá diferenças
que acabam fazendo com que algumas pessoas não se gostem. Porém, a
tolerância deve ser regra, pois mesmo que não se adorem as pessoas devem
respeitar o espaço e a integridade psicofísica das demais, e isto se chama
tolerância.
Portanto, a criminalização da discriminação por orientação sexual e
identidade de gênero se faz necessário, devendo ser imposta pelo Estado,
não admitindo este que a pessoa seja discriminada porque simplesmente não
se enquadra no padrão heterossexual.
A lei incriminadora da discriminação não possui como objetivo acabar
com o preconceito, mesmo porque é impossível impor a mudança de
pensamento a alguém sob pena de aplicação de pena, pois cada pessoa
detém de pensamento intimo vinculada a sua criação, costumes, religião, e a
própria construção de sua personalidade. Porém, a lei tem como objetivo
acabar com a exteriorização deste pensamento, impedindo que ocorra
violência contra pessoas de orientação sexual ou identidade de gênero
distinto do heterossexual. Nesse sentido, segundo o autor Paulo Roberto Iotti
Vecchiatti (2014, p. 745):
No caso de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, é
fato historicamente notório, comprovado e inegável que pessoas LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) sempre foram
discriminadas por sua mera orientação sexuais ou identidade de gênero ao
longo da história humana – ao menos desde a Idade Média (no Ocidente)
quando a Igreja Católica Apostólica Romana dominou o cenário político e
embutiu seus dogmas nas diversas legislações pro força de sua influência
sobre os monarcas absolutistas da época.
Foi com a predominância do ensino da Igreja Católica, que as
pessoas que não compõe o quadro social heterossexual passaram a serem
perseguidas com maior intensidade. Assim, para fugir da perseguição Estatal,
a qual tinha influência cristã, pois muitas vezes as pessoas LGBT eram
presas, punidas ou mortas, estas pessoas passaram a se encontrar em locais
escondidos, sendo que tal necessidade perdurou até os dias atuais. Por este
motivo, se faz necessária a lei que incrimina a discriminação em face das
pessoas com orientação sexual e identidade de gênero, diferenciadas.
Quanto à violência na forma de assassinatos, agressões e ofensas,
as mesmas já eram vistas como crimes tipificados no Código Penal brasileiro,
portanto, puníveis.
Casos de lesão corporal leve, calúnia, difamação e injuria, são
encaminhados aos Juizados Especiais Criminais, vindo a ser aplicada a Lei
9.099/95. Nestes casos, busca-se evitar todas as formas um processo penal.
Para tanto, na audiência preliminar, é realizada uma tentativa de acordo entre
a parte infratora e a vítima, ou seja, uma composição civil. Não havendo
acordo, a vítima realiza o seu direito de representação, e o Promotor de
Justiça, quando não se pronuncia pelo arquivamento do processo, propõe
216 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
uma Transação Penal, a qual por muitas vezes é aceita pelo Infrator, pois a
ele basta um pedido de desculpas, o pagamento de uma cesta básica, ou
uma ação comunitária. Com a aceitação da Transação, ocorre a extinção da
punibilidade.
Logo, para todos os efeitos, discriminar pessoas do grupo LGBTI se
torna algo “barato”, por muitas vezes, não punível, o que confere margem
para que as pessoas se achem no direito de discriminar, ofender ou até
mesmo violentar pessoas com orientação sexual e identidade de gênero
diversa. Assim, temos que o Direito não possuí efetividade, visto que o
mesmo não apresenta coatividade.
A discriminação, em geral, e nela incluída a homofóbica e transfóbica,
não é considerada crime no atual Código Penal, pois ele exige a violência ou
a grave ameaça para se concretizar. Por este motivo, muitas discriminações
não são punidas.
Para tanto, necessário se faz a criminalização da discriminação por
orientação sexual e identidade de gênero com enfoque no direito fundamental
da tolerância, pois esta é um pressuposto de vida na sociedade, com a
decorrência da aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana,
justiça, promoção do bem-estar e a vedação de qualquer forma de
discriminação.
12.8 DA APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA AO TRANSEXUAL E AO
HOMOSSEXUAL
Inicialmente, necessário esclarecer que a Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340 de 07 de agosto de 2006) não defende, apenas, a violência contra a
mulher, como muitas pessoas pensam, mas sim todas as violências que
atinjam o gênero feminino. Nesse sentido, dispõe o art. 5ª, caput, da lei
(BRASIL, 2006, web):
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial. Grifo nosso
Além disso, a lei esclarece que a mulher e o sexo feminino não são a
mesma coisa, pois no parágrafo primeiro do Art. 5º dispõe que as relações
pessoais independem da orientação sexual.
Assim, nota-se que o conceito de mulher trazido pela Lei Maria da
Penha vai além do perfil biológico, alcançando a ideia sociológica do gênero.
Em muitas sociedades, senão em todo o corpo social determinam
diferentes papeis a serem exercidos pelo polo masculino e polo feminino.
Assim, quando a determinados papéis são atribuídos grande importância,
acaba sendo gerada a discriminação entre as partes.
Em muitas situações, o gênero masculino se sobrepõe ao gênero
feminino, ou seja, a figura masculina acaba possuindo maior importância do
que a feminina e, por conta disso, muitos homens acreditam estarem acima
Da pessoa transexual...
// 217
das mulheres, sendo que a estas cabe se contentar com a condição de
submissão.
Diante da criação utilizada em muitas civilizações, observa-se que ao
homem é atribuído o direito de liderança e administração, de bens e da
família; já à mulher, é atribuída a educação de dever em zelar pelos cuidados
domésticos, bem estar da família, contenção de vontades, recato sexual,
dentre outros. Portanto, é nítido que ocorre elevado desequilíbrio de poder
entre os sexos (BIANCHINI, 2014, p. 420-421).
Como ao homem é atribuída a figura de provedor da residência, o
mesmo se acredita ter o “direito” de se valer da violência para ter suas
vontades atendidas. Em muitos casos, o mesmo acaba isento de qualquer
responsabilidade, civil ou penal. Em outros, a companheira volta a residir com
o agressor, por medo de uma represália mais extrema ou até mesmo pelo
fato de que aquele é o provedor da casa.
Porém, necessário esclarecer que a violência não ocorre somente
contra a mulher, mas sim, está baseada no gênero feminino que a pessoa
apresenta. Posto isso, temos que a violência de gênero pode ocorrer de uma
relação de poder e submissão entre as partes; ideia de que o macho seja
hierarquicamente superior à fêmea; habitualidade de violência; o fato de que
em muitos caso, o agressor e a vítima dividem a mesma moradia.
Quanto à orientação sexual da pessoa, a Lei Maria da Penha deverá
ser aplicada independentemente desta disposição. A orientação sexual está
relacionada ao sentimento de afeto, amor ou desejo que uma pessoa sente
pela outra pessoa. Tal característica mão está vinculada ao sexo biológico ou
ao gênero da pessoa, mas sim, a sua manifestação de amor por outrem.
Diante da irrelevância da orientação sexual para a aplicação da Lei
Maria da Penha, mas sim a importância da violência cometida contra o gênero
feminino, o Poder Judiciário brasileiro vem aplicando esta lei em vários casos.
Nesse sentido, segundo a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, a
Lei Maria da Penha, também deve ser aplicada ao transexual, vítima de
violência doméstica (proc. N. 201103873908, Tribunal de Justiça de Goiás
- 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis, juíza Ana Cláudia Veloso
Magalhães) (BRASIL, 2015, web). São os principais motivos trazidos pela
Magistrada para aplicar esta Lei:
[...] - embora não tenha havido alteração no seu registro civil, a vítima fora
submetida a uma cirurgia de redesignação sexual há 17 anos, o que a torna
pessoa do sexo feminino, no que tange ao seu “sexo social, ou seja, a
identidade que a pessoa assume perante a sociedade”;
- a não aplicação das mesmas regras elaboradas para proteção da mulher,
“transmuta-se no cometimento de um terrível preconceito e discriminação
inadmissível”;
- os artigos art. 2º e 5º, e seu par. Único, da LMP respaldam a possibilidade
de aplicação da Lei:
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação
sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as
218 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde
física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
[...] Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual.
- o princípio da liberdade, que se desdobra em liberdade sexual, “garante ao
indivíduo, sujeito de direitos e obrigações, a livre escolha por sua orientação”;
- “o gênero é construído no decorrer da vida e se refere ao estado
psicológico”, de forma que “o transexual não se confunde com o
homossexual, pois este não nega seu sexo, embora mantenha relações
sexuais com pessoas do seu próprio sexo”;
[...].
Assim, quanto à pessoa transexual, é importante frisar que, para ser
aplicada a Lei Maria da Penha para esta, não se faz necessário que antes a
mesma tenha realizado a cirurgia de readequação do sexo, tampouco tenha
realizado a alteração de seu prenome na certidão de nascimento. Basta ter
ocorrido à violência.
Quanto aos homossexuais, muitos acreditam que a Lei Maria da
Penha é aplicada quando, e apenas, ocorre a violência contra a mulher, ou
seja, detentora do órgão feminino. Todavia, uma questão de suma relevância
é a relação amorosa existente entre dois homens. Como já exposto, a
aplicação desta lei independe da orientação sexual da pessoa (art. 5º da Lei),
bastando que um dos parceiros assuma a condição de gênero feminino.
Posto isso, diante da omissão legislativa, necessário se faz se atentar
as disposições legais previstas na Constituição Federal de 1988, dentre elas
a vedação a discriminação e a prevalência da dignidade da pessoa humana.
Logo, a vítima de agressão, independentemente de ser mulher ou homem,
tem direito de ser protegido pelo Estado, o qual deve proteger a todas as
pessoas, sem qualquer discriminação.
Pelo exposto, a Lei Maria da Penha (Lei 11.430/2006) aplica-se a
todas as situações onde ocorra violência contra o gênero feminino, não
importando qual seja o sexo biológico da vítima. Busca-se, com a aplicação
da Lei Maria da Penha, evitar a discriminação, abuso ou violência, em
situações familiares, domiciliar, ou afetiva, contra aquela pessoa que se
enquadre no gênero feminino.
12.9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da elaboração do presente trabalho, ficou demonstrado que
as pessoas transexuais e homossexuais constantemente sofrem privações
em sua vida, sendo vítimas constantes de homofobia e tranfobia. Pelo fato do
ser humano não aceitar o “diferente” do padrão heteronormativo, seja pela
criação religiosa, costumes, ou pelos próprios ideais, muitas vezes acabam
colocando homossexuais e transexuais em condições de inferioridade, vindo
Da pessoa transexual...
// 219
a marginalizar e discriminar estas pessoas, infringindo a existência e a
dignidade dos mesmos.
A discriminação quanto a diversidade sexual é uma ação corriqueira,
que gera danos ao indivíduo, principalmente danos psicológicos, visto que as
pessoas transexuais e homossexuais, para terem uma vida ao menos segura,
acabam por guardar para si mesmo a sua distinção, seja a sua identidade de
gênero, orientação afetiva sexual ou ambos. Em muitos casos, nem a própria
família sabe que a pessoa não está inserida no padrão heteronormativo. Tal
segredo faz com que a pessoa reprima sua verdadeira identidade, a qual, por
si só, já é um direito personalíssimo.
A discriminação ocorre quando há a exposição do pensamento
contrário que a pessoa sente pelo transexual e homossexual. Em muitos
casos, a violência cometida pelo agressor sai barata, visto que não existe
legislação assegurando e garantindo os direitos aos integrantes do grupo
LGBTI. A única norma que existe é aquela que passa a ser aplicada por
analógica, bem como o uso continuo de fundamentação na própria
Constituição e em Tratados e Convenções Internacionais, das quais o Brasil
é país signatário.
Mesmo após todas as atrocidades cometidas pelo homem durante a
Segunda Guerra Mundial, mesmo após a criação de vários Tratados e
Convenções Internacionais que visam garantir a dignidade à pessoa humana,
parece que os seres humanos do grupo LGBTI ainda são deixados de lado,
a mercê da própria sorte.
A Lei Maria da Penha (Lei 11.430/2006), elaborada no Brasil, deve
ser utilizada quando à ocorrência de violência contra ao gênero feminino. De
forma errônea, muitas pessoas acreditam que esta lei foi elaborada apenas
para resguardar e dar proteção as mulheres, ou seja, aquelas que possuem
a genitália feminina. Porém, o termo “mulher” possuí ampla aplicação, não
estando vinculado apenas as pessoas que nasceram com o sexo feminino. A
Lei é aplicada a todas as pessoas que possuem a condição de parceira na
relação, seja mulher ou homem.
Assim, temos que a responsabilidade penal nas violações aos direitos
da personalidade, no caso de pessoas transexuais e homossexuais, ainda é
pouco aplicado, tanto pela falta de legislação própria, como também pelo
desinteresse daquele que deveria zelar pela proteção de todas as pessoas,
quem seja, o Estado, o qual deixa de criar políticas públicas ou demais
mecanismos para proteger estas pessoas, as quais fazem parte de um grupo
vulnerável.
12.10 REFERÊNCIAS
ANATRELLA, Toy. Homossexualidade e homofobia. In: FAMÍLIA, Pontifício
Conselho Para A. Léxico da família: termos ambíguos e controversos
sobre família, vida e aspectos éticos. Coimbra: Pincipia, 2010.
220 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
BIANCHINI, Alice. Aplicação da Lei Maria da Penha a Transexual e
Homossexual. In: DIAS, Maria Berenice (Coord). Diversidade sexual e
direito homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1989.
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da
personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005.
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222 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= XIII =
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E PRIVACIDADE: CONFLITO DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Milton Roberto da Silva Sá Ravagnani*
Rodrigo Valente Giublin Teixeira**
13.1 INTRODUÇÃO
Numa sociedade cujo direito é positivado e que hierarquiza os direitos
que positiva, escolher a precedência entre esses direitos não é tarefa tão
complicada. A subsunção, por meio de um raciocínio silogístico, nos dá
soluções para conflitos de direitos de maneira bastante satisfatória. Por esse
raciocínio, uma premissa maior incide sobre uma menor e dela se obtém uma
conclusão. Ou, a norma, que é a premissa maior, e está positivada num
catálogo de direitos, incide sobre o fato ocorrido na vida real e produz uma
conclusão: ou há direito ou não.
O Brasil custou a reconhecer a existência de direitos inatos do
homem que precedem a própria norma legal. Mas o fez a partir da
Constituição de 1988 de modo expresso, para que não restem dúvidas de
como esta sociedade entende as relações entre seus indivíduos e desses
com relação ao Estado. O reconhecimento dos direitos da personalidade é,
antes de tudo, o reconhecimento de direitos do cidadão ante ao Estado. Mas,
também de sua eficácia horizontal: também são direitos que sem impõem
erga omnes, contra toda a sociedade e entre os indivíduos que ela compõem.
Dentre os direitos da personalidade, os direitos de privacidade, à
intimidade e à vida privada são conquistas elencadas nesse rol e protegidas
pela Constituição. Do mesmo modo, os direitos à informação, à expressão e
a liberdade de imprensa também são constitutivos do mesmo catálogo, por
consequência, também constitucionalmente protegidos.
Quando ocorre o conflito entre direitos dessa natureza e não há,
como não há no Brasil, precedência ou hierarquia entre eles, a subsunção e
o raciocínio silogístico não são eficazes para dirimir tais conflitos e manter a
paz social. Na sua ausência, um novo conceito se estabelece com a técnica
da ponderação, que se baseia no princípio da proporcionalidade para buscar
o equilíbrio entre os direitos tutelados e preservar ao máximo seus conteúdos.
*
Advogado e jornalista. Especialista em jornalismo digital. Mestrando em Direitos da
Personalidade pela UniCesumar. Maringá/Paraná/Brasil. E-mail: [email protected]
**
Doutor pela PUC/SP. Mestre pela UEL/PR. Membro do Instituto Brasileiro de Processo Civil
(IBDP); professor na Graduação, Especialização e Mestrado da UniCesumar. Advogado.
224 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Nesse trabalho apresentamos a questão do conflito entre a
privacidade e a liberdade de informação e as técnicas de ponderação entre
eles.
13.2 DIREITOS DA PERSONALIDADE
Os direitos fundamentais e, dentre eles os da personalidade, são uma
construção histórica e uma vitória da espécie humana sobre sua própria
tendência à iniquidade. Porém, para chegarmos ao conceito moderno de
direitos inatos, absolutos, gerais, extrapatrimoniais, indisponíveis,
imprescritíveis, impenhoráveis e vitalícios que protegem o homem pela
simples razão dele existir, foram séculos de discussões e de árdua batalha.
De toda forma, hoje podemos sustentar e ver respeitado “[...] el principio de
que el hombre es juridicamente una persona, no porque forme parte de
determinada sociedad política, sino por su condición de hombre” 1 (DEL
VECHIO, 1955, p. 37).
13.2.1 Conceito, dignidade e liberdade
Os direitos da personalidade, por resguardarem os direitos mais
caros da pessoa humana, se revestem de características muito particulares,
especialmente pelo seu conteúdo maior, a dignidade. Importante lembrar que
“[...] a dignidade da pessoa humana constitui-se em uma conquista que o ser
humano realizou no decorrer dos tempos, derivada de uma razão éticojurídica contra a crueldade e as atrocidades praticadas pelos próprios
humanos, uns contra os outros” (VAZ; REIS, 2007, p. 183).
Na doutrina contemporânea, os direitos de personalidade ganharam
definições consistentes e finalmente pacificadas. Vemos que, enquanto para
Adriano de Cupis (2008, p. 16) a personalidade é definida “[...] como uma
susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações jurídicas [sendo que]
não se identifica nem com os direitos nem com as obrigações, e nem é mais
do que a essência de uma simples qualidade jurídica”. Diogo Costa
Gonçalves (2008, p.68) define personalidade como “[...] o conjunto das
qualidades e relações que determinam a pessoa em si mesma e em função
da participação na ordem do ser, de forma única e singular”.
Na mesma esteira, Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2007, p. 16)
define que “[...] os direitos de personalidade, cada vez mais desenvolvidos
para uma proteção maior do ser humano, voltam-se para a realização da
dignidade da pessoa. Talvez um dia venham a ser chamados de direitos da
dignidade”. Por certo a assertiva responda a questão de Daniela Ikawa (2007,
p.44) que interroga: “Fosse uma pessoa destituída de todas as suas
qualidades não essenciais, o que deveria restar em seu cerne, em uma
perspectiva absoluta ou não comparativa que constituiria em valor humano
1
Tradução nossa: O princípio de que o homem é juridicamente uma pessoa não porque forme
parte de uma determinada sociedade, mas por sua condição de homem.
Liberdade de informação...
// 225
intrínseco?” A dignidade, como apresentada por Roxana Cardoso Brasileiro
Borges, responde a questão.
Vê-se aqui que a dignidade se converte no elemento essencial para
a compreensão da personalidade como a vimos hoje. É, em verdade, seu
valor intrínseco. De fato, a dignidade é o elemento que consolida ao ser
humano ser senhor de personalidade. Esta constatação vem de Immanuel
Kant (2007, p. 77), que nos introduz o conceito:
No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa
tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto
não permite equivalente, então tem ela dignidade.
De fato, o homem não tem preço. Tem valor, e seu valor é sua
dignidade. Esta não pode ser substituída por nada, pois nada lhe é
equivalente. E cada homem tem sua dignidade própria, logo, cada homem é
uno, um fim em si mesmo. E é a consolidação da dignidade como um valor
intransponível que confere à personalidade humana ser o centro do direito e
faz do homem ser dotado de dignidade, recolocando “o indivíduo como
primeiro e principal destinatário da ordem jurídica. Assim, é o homem e os
valores que traz em si mesmo a ultima ratio do ordenamento” (CANTALI,
2009, p. 53). Por seu valor intrínseco, a dignidade deve “[...] compreendida
como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode
(e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida” (SARLET,
2009, p, 47).
Assim, escoimado nos conceitos de autonomia, liberdade e
dignidade, erigiu-se um direito geral da personalidade, resultado da
compreensão de ser o homem dotado de capacidade para se autodeterminar
e guiar sua existência, se desenvolver e se responsabilizar por suas decisões.
Hoje isso nos parece distante, mas “[...] os debates do passado foram
baseados na visão de que o Estado era um inimigo natural da liberdade”
(BARROSO, 2005, p. 28). E a liberdade é um dos elementos essenciais dos
direitos da personalidade. E “[...] os direitos da personalidade buscam
proteger o indivíduo das violações ao seu ‘eu’, da sua imagem, das suas
características, proteger seus pensamentos” (SILVA; SILVA ROSA, 2013, p.
266). E não pode o Estado violar esses direitos.
A partir da Constituição Alemã de 1949, surge no âmbito do direito
constitucional a proteção expressa dos direitos de personalidade. Tais
direitos estão previstos no artigo 1º da constituição daquele país e introduz
no direito moderno a inovação.
Depois da Constituição dos alemães, outros países seguem o mesmo
sentido consagrando em suas constituições os mesmos direitos. Não sem
menos importância são as convenções e declarações de direito de âmbito
internacional que também surgem no pós-guerra com o fito de robustecer tais
conceitos. Como exemplo se pode apresentar a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a
Conferência Internacional dos Direitos do Homem e outras mais, que
226 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
contribuíram para alargar os conceitos e garantir aos povos a prevalência dos
direitos de personalidade sobre outros. Luís Roberto Barroso (2012, p. 36)
comenta:
A dignidade humana tornou-se um dos maiores exemplos de consenso ético
do mundo ocidental, sendo mencionada em incontáveis documentos
internacionais, em constituições nacionais, leis e decisões judiciais. No plano
abstrato, poucas ideias se equiparam a ela na capacidade de encantar o
espírito e ganhar adesão unânime.
Mais comumente, os direitos da personalidade aparecem na doutrina
divididos em dois grandes grupos. Um de natureza física (direito à vida, à
integridade e incolumidade do próprio corpo, bem como do corpo morto) e os
de natureza moral, “[...] dentre os quais estão situados o direito à intimidade,
à liberdade, à honra, à inviolabilidade psíquica, à imagem, ao nome e direito
moral de autor” (SILVA, 2003, p. 61).
No Brasil, a Constituição de 1988 prevê logo no seu artigo primeiro a
adoção de um direito geral de personalidade como um valor fundamental da
República. Todavia, o legislador constituinte originário não se limitou a manter
tais direitos adstritos exclusivamente no âmbito da cláusula geral, descendo
mesmo à proteção de direitos específicos como à imagem, à informação, à
honra e à intimidade, num sinal claro de seu interesse na ampliação desses
direitos derivados no corpo positivado do ordenamento pátrio.
De fato, “[...] a supremacia da Constituição é o postulado sobre o qual
se assenta o próprio direito constitucional contemporâneo” (BARROSO,
2012, p.106) e ela está baseada no pressuposto de que a Constituição é o
elemento que constituiu o próprio Estado. É ela quem define o que é, qual é,
e a que se destina. E estipula em quais condições o Estado existirá. Logo,
não há, e nem pode haver dentro dos limites do Estado constituído,
dispositivo superior hierarquicamente à Constituição.
É fundamental não esquecer que “[...] as constituições são
documentos dialéticos e compromissórios, que consagram valores e
interesses diversos, que eventualmente entram em rota de colisão”
(BARROSO, 2014, p. 426). Assim, havendo conflito entre a norma
constitucional e um dispositivo infraconstitucional, prevalece aquilo que regra
a Constituição. Todavia, e quando o conflito ocorre entre normas
constitucionais, é correto se falar em inconstitucionalidade de norma
constitucional? Seguindo o pensamento de Zulmar Fachin (2013, p. 146), é
impossível se falar em inconstitucionalidade de norma constitucional:
Se [...] duas normas constitucionais (portanto, pertencentes ao mesmo plano
normativo) forem incompatíveis entre si, não haverá inconstitucionalidade.
Logo, deve-se afastar a possibilidade de inconstitucionalidade se uma norma
da Constituição contrariar outra norma da Constituição. Tal incompatibilidade
deve ser resolvida por outro critério.
Liberdade de informação...
// 227
Não se pode afastar a possibilidade da norma constitucional que
institui direitos colidir com princípios ou interesses que ela mesma proteja.
São casos como a tensão entre o desenvolvimento nacional e a proteção do
meio ambiente, a defesa da livre iniciativa e o abuso do poder econômico, a
colisão entre direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e o direito
à privacidade, ou a liberdade de reunião e a liberdade de ir e vir. Enfim, um
sem número de possibilidade de colisões de direitos, princípios e interesses
protegidos pela própria Constituição que podem criar incompatibilidades
aparentes. E qual, ou quais o(s) critério(s) para resolver eventual
incompatibilidade?
13.3 O DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA
Por ser livre, o indivíduo tem sua intimidade e sua vida privada
garantidas, sendo titular de um espaço privado em que ninguém pode
penetrar contra a sua vontade. Nem mesmo o Estado. Sobre esse espaço
restrito ao indivíduo ele é o único senhor. A vedação de qualquer intervenção
nesse espaço deriva do “[...] condicionamento do exercício do poder estatal
a determinações legais, da garantia da liberdade individual como regra geral,
da colocação de proibições e restrições no campo da exceção” (KARAN,
2009, p. 34).
É, afinal, “[...] uma manifestação de liberdade de poder recolher-se à
solidão ou de restringir os contatos com o meio social, que constituiu um
exercício de liberdade de fazer ou deixar de fazer” (SILVA, 2003, p. 63-64).
O conceito de que a origem da salvaguarda da privacidade advir da liberdade
já nos parece cristalizado desde o nascimento do Estado liberal:
La materialización em la necesidade de salvaguardar um ámbito de
independencia de individuo se produce em um momento posterior y es
consecuencia de la orientación personalista del Estado liberal. Em el se la
comienza a considerar como um presupuesto de la libertad individual; em
este sentido puede afirmarse que la intimidade es um derecho de la libertad 2
(RODRIGUES, 1996, p. 20).
13.3.1 Evolução histórica
O desenvolvimento do conceito de privacidade atinge mesmo sua
maturação na sociedade burguesa, mas seus primeiros alicerces vêm de
muito antes. Já na Roma antiga havia uma distinção entre o público e o
privado, e o ambiente doméstico já contava com proteção de inviolabilidade.
Nenhum estranho tinha direito a intervir nos assuntos domésticos. Havia,
mesmo, um respeito religioso, quase sagrado, dos limites do lar.
2
Tradução nossa: A materialização da necessidade de resguardar um espaço de independência
do indivíduo acontece em um pressuposto da liberdade individual. Neste sentido, se pode afirmar
que a intimidade é um direito de liberdade.
228 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Na mitologia grega, a passagem de Diana, a deusa da caça, que
castiga o moço Actéon, filho do Rei Cadmo por ofensa ao seu recato já mostra
que a intimidade tinha valor cultural para aquele povo. Segundo a mitologia,
Diana, quando cansava de suas caçadas, ia se banhar em uma gruta,
dedicando-se aos cuidados íntimos. Numa oportunidade, o jovem Actéon,
que se separara dos companheiros e vagava sem qualquer objetivo,
surpreendeu-a nua. A deusa, irada, transformou-o em cervo, que foi devorado
por uma matilha de cães. Importante que à época a nudez não era algo tão
socialmente reprimido. Vê-se pela estética da arte grega que abusa dos nus
em suas manifestações, especialmente na escultura. O que a mitologia
aponta na história de Diana não é o recato pela nudez, mas para o caráter do
recolhimento, do local escondido e retirado, privado, onde que a deusa
relaxava. A intimidade, portanto, já se mostra valor de peso para aquela
sociedade ancestral.
Já na Idade Média, vê-se uma retração do conceito da privacidade
levada pela necessidade de proteção das pessoas em virtude das iminentes
invasões estrangeiras, dos assaltos de bandidos e pelo perigo do isolamento
em um ambiente quase selvagem em que os senhores feudais disputavam
territórios e conquistas. Neste cenário, a privacidade era um privilégio da
nobreza e do clericado, especialmente dos monges abrigados em mosteiros.
À medida que as condições sociais e econômicas promovem o
desenvolvimento de núcleos urbanos, ressurge a ideia de privacidade. E ela
se consolida mesmo com a burguesia, até o ponto da revolução industrial.
En el período medieval el aislamiento era um privilegio de la nobleza, o de
quienes por libre elección, o por necessidad, renunciaban a la viviencia
comunitária. La intimidad se configura como uma aspiración de la burguesia
de acceder a lo que antes habia sido um privilegio de unos pocos, lo qual
explica el marcado matiz individualista, que se concreta em la reivindicación
de unas facultades destinadas a salvaguardar um determinado espacio com
carácter exclusivo y excluyente3 (RODRIGUES, 1996, p. 20).
É, sobretudo, na afirmação revolucionária dos direitos do homem, na
França do final do séc. XVIII, que a intimidade ganha seu status geral,
garantido uma exigência natural de todos os homens, não apenas privilégio
de determinadas classes. Mesmo assim, é curioso observar que as diversas
declarações sobre direitos dos homens formuladas naquele período não
contem menção expressa ao direito de intimidade.
É, porém, no final do século XIX que a primeira formulação do
conceito, como agora o conhecemos, ganha positivação. O right to be let
alone (o direito de ser deixado em paz) foi postulado nos Estados Unidos, em
1890, por Warren/Brandeis, em sua obra The right do Privacy (o direito à
3
Tradução nossa: No período medieval, o isolamento era um privilégio da nobreza, ou de quem
por livre escolha, ou necessidade, renunciava à vida comunitária. A intimidade se configura como
uma aspiração da burguesia de ter acesso ao que antes era privilégio de uns poucos, o que
explica o caráter individualista que se concretiza na reivindicação de poderes destinados a
resguardar um determinado espaço exclusivo e excludente.
Liberdade de informação...
// 229
privacidade), “como reflexo de um bem jurídico mais estabelecido e
incontroverso (a propriedade no direito anglo-saxão, função que coube à
honra no direito germânico)” (WEINGARTNER NETO, 2002, p. 69).
Nesse sentido, Fachin assevera:
O direito norte-americano, como se sabe, é baseado, essencialmente, no
precedente judicial. Quem se intromete na vida privada alheia viola o right of
privacy. Mas, da mesma forma, quem divulga detalhes da vida privada de
alguém, tornando a pública, fere o right of privacy. O lar do homem é seu
castelo e não pode ser devassado por ninguém (FACHIN, 1999, p. 60).
A privacy se converteu numa espécie de “[...] núcleo duro do edifício
constitucional norte-americano, que garante aos indivíduos três direitos
fundamentais: o autodesenvolvimento, o direito à diferença e o respeito de
sua dignidade nas relações com o governo” (WEINGARTNER NETO, 2002,
p. 70).
13.3.2 Formas de proteção
Podemos distinguir quatro formas de proteção à intimidade: i) a
proteção do indivíduo contra a intromissão em seu retiro, em sua solidão
voluntária ou em seus assuntos privados; ii) proibição de divulgação ao
público de assuntos privados; iii) reconhecimento da ilegalidade das
publicações que representem o indivíduo sob uma falsa luz difamatória, e iv)
proteção contra apropriações por terceiros de elementos da personalidade do
indivíduo para obtenção de lucro.
Além de ser originária do princípio fundamental da liberdade, a
intimidade também tem forte vinculação com o princípio da legalidade,
especialmente no que se refere às invasões do Estado na esfera individual.
Esta vedação deriva do condicionamento do exercício do poder estatal a
determinações legais, já que “[...] no princípio da legalidade está contida a
ideia básica do modelo de Estado de direito democrático de máximo respeito
aos direitos individuais e máximo controle do exercício do poder” (KARAN,
2009, p. 34.).
De fato, a liberdade individual é a regra geral. As proibições ou
concessões que a atingem são as exceções. E essas exceções só são
admitidas quando expressas em lei. E no caso brasileiro, que tais leis não
afrontem à Constituição. Simplificando, podemos dizer que os direitos à
intimidade e à vida privada conferem ao indivíduo o direito de estar só, ou de
estar em reclusão voluntária e protegida ao seu espaço íntimo.
Intimidade e vida privada são direitos pertencentes a um conceito
amplo que é a privacidade que compreende o direito de poder, o indivíduo,
gozar de “[...] espaços que devem ser preservados da curiosidade alheia por
envolverem o modo de ser de cada um” (BARROSO, 2005, p. 96). Na vida
privada, onde não se vislumbra qualquer interesse público que justifique
invasão dessa intimidade, residem os fatos cotidianos ocorridos no seio do
lar ou em locais reservados. Estão protegidos hábitos, atitudes, comentários,
230 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
escolhas pessoais, vida familiar ou relações afetivas.
Todavia não se deve olvidar que a doutrina moderna não consagra
direitos absolutos, nem mesmo os direitos fundamentais, posto que podem
ser mitigados ou relativizados em função de outros direitos coletivos e sociais.
De sorte, com a evolução das condições sociais e econômicas conduzem ao
desenvolvimento social e, com ele, uma relativização do direito à liberdade.
E, consigo, seus direitos derivados como é a privacidade. A transcendência
e as implicações do atual debate sobre o direito à intimidade está diretamente
conectada com o desenvolvimento técnico alcançado na sociedade atual.
13.3.3 Limites e restrições
De tal fora que já há doutrinadores, como Perez Luño (1978, p.59),
que entendem que há uma “[...] antinomia de princípios entre as liberdades
tradicionais e os novos direitos econômicos, sociais e culturais”. Em algumas
ocasiões, já se assenta que na medida em que os direitos sociais aumentam,
diminuem as liberdades. De todo modo, há sim limites e elementos
limitadores aos direitos da personalidade.
Um elemento decisivo na determinação da graduação da intensidade
da proteção à privacidade é o grau de exposição pública da pessoa, em razão
de seu cargo ou atividade ou mesmo de alguma circunstância eventual. “A
privacidade de indivíduos de vida pública – políticos, atletas, artistas – sujeitase a parâmetro de aferição menos rígido do que os de vida estritamente
privada” (BARROSO, 2005, p. 97).
Também se entende que não há ofensa à privacidade – isto é, quer
à intimidade, quer à vida privada – se em caso de divulgação, o fato
divulgado, sobretudo por meios de comunicação de massa, já ingressou no
domínio público, e, com isso, já pode ser conhecido por outra forma regular
de obtenção de informação ou se a divulgação limita-se a reproduzir
informação antes difundida.
Claro que, pelo princípio da legalidade, o exercício do poder estatal
impondo restrições a direitos individuais só se justifica se servir para garantir
“[...] o livre exercício dos direitos das demais pessoas e assim assegurar a
coexistência e o bem-estar geral” (KARAM, 2009, p. 35). Nesse escopo,
somente aquilo que repercuta direta, imediata e concretamente sobre direitos
de outros indivíduos podem ser objeto para restrições à privacidade.
Mesmo assim, percebe-se uma maior fluidez doutrinária moderna
ante ao rigor da privacy, como concebida por Warren/Brandeis, no sentido de
ver limitações de cunho social, escoimadas pelo interesse público, a ponto de
se encontrar definições elásticas como a de Shina (2009, p. 317), para quem
a privacidade é entendida como:
[...] un espacio sin fronteras, uma geografia móvil, cuyos limites se van
corriendo, para um lado y para outro, haciendo que su extensión sea más
grande o más penqueña de acuerdo a ciertas circunstancias. Aquello que
llamamos privacidade se puede ampliar o reducir por cuestiones políticas,
legales, religiosas, morales, econômicas, etc. Lo que limita a esse território
Liberdade de informação...
// 231
es la intensidad de la luz que lo alumbra4.
Um dos elementos limitadores da privacidade vem a ser exatamente
o direito que o coletivo tem de ser informado e de informar e o conjunto de
direitos democráticos protegidos pela liberdade de imprensa.
13.4 O DIREITO À INFORMAÇÃO E A LIBERDADE DE IMPRENSA
Inseridos no outro grupo de direitos fundamentais, estão as
liberdades de informação e de expressão e a liberdade de imprensa. O direito
de informação diz respeito ao direito individual de comunicar livremente os
fatos e ao direito difuso de ser deles informado. Em um Estado democrático
de direito, ou seja, que respeita o consenso axiológico histórico consagrado
em direitos positivados e cuja formação de seu governo se dá por meio da
participação dos cidadãos pelo instrumento do voto, a informação é o
elemento chave, decisivo e estruturante da formação das escolhas
individuais. Nesse sentido, prescindir da informação livre, correta e
verdadeira implica em fulminar o próprio conceito da democracia com o
veneno da ignorância. Democracia sem informação não é democracia, mas
apenas um arremedo.
A liberdade de expressão, por seu turno, destina-se a “[...] tutelar o
direito de externar ideias, opiniões, juízos de valor, em suma, qualquer
manifestação do pensamento humano” (BARROSO, 2005, p. 103).
Diferentemente do direito à informação, que é a propriedade do indivíduo de
receber e transmitir informações, a liberdade de expressão compreende o
direito de manifestar livremente seu pensamento, suas opiniões, juízos de
valor e sua visão das coisas e do mundo. Afinal, “[...] o indivíduo que há de
ser livre para pensar da forma que quiser e acreditar no que bem entender há
de ter igual liberdade de exteriorizar seus pensamentos e crenças, manifestar
suas opiniões, se expressar, dizer o que pensa” (KARAM, 2009, p. 02). A
liberdade de informação se insere na liberdade de expressão em sentido
amplo, porém ambas são, sobretudo, ramos destacados do princípio geral da
liberdade.
O direito de receber informações verdadeiras é um direito de liberdade e
caracteriza-se essencialmente por estar dirigido a todos os cidadãos,
independentemente de raça, credo ou convicção político-filosófica, com a
finalidade de fornecimento de subsídios para a formação de convicções
relativas a assuntos públicos (MORAES, 2003, p. 162).
Ainda nesse grupo de direitos fundamentais está uma terceira
locução: a liberdade de imprensa. O pressuposto do Estado democrático é
4
Tradução nossa: Um espaço sem fronteiras, uma geografia móvel, cujos limites vão correndo
para um lado e para o outro, fazendo que sua extensão seja maior ou menor e acordo com certas
circunstâncias. Aquilo que chamamos de privacidade pode aumentar ou diminuir de acordo com
questões políticas legais e religiosas, morais, econômicas, etc. O que limita este território é a
intensidade da luza que o ilumina.
232 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
que o poder tem que ser totalmente transparente. Os atos dos governantes
têm de ser conhecidos pelo indivíduo. O governo tem a necessidade de
prestar contas de todos os seus atos e decisões e, por meio da avaliação
desses atos que o cidadão, com acesso a informação correta, pode fazer
suas avaliações e escolhas sobre como e quem deve lhe governar. No regime
republicano, a história tem mostrado, “[...] a publicidade dos atos dos agentes
públicos, que atuam por delegação do povo, é a única forma de controlá-los”
(BARROSO, 2005, p. 105).
Tem cabido aos meios de comunicação (não apenas aos impressos,
como a locução pode erroneamente sugerir) a promoção da divulgação
dessas informações. Assim, a liberdade de imprensa designa a liberdade
reconhecida (na verdade, conquistada ao longo do tempo) desses veículos
de comunicarem fatos e ideias. Esta comunicação se sustenta, tanto a
liberdade de informação como a de expressão.
Os meios de comunicação, pela prática do jornalismo, têm
importância relevante na consolidação democrática. Pode-se dizer que,
quanto mais transparência dos atos públicos, quanto mais jornalismo
investigativo, quanto mais liberdade de informação e expressão, mais
republicano é o regime. Em resumo, “[...] o jornalismo não é uma atividade
estranha ao dia-a-dia democrático. Ao contrário, é tanto melhor quanto mais
forte é a democracia” (BUCCI, 2000, p. 47). Aliás, Eugênio Bucci (2000, p.
18) vai além:
A liberdade de imprensa [...] é um princípio assegurado não por eles,
jornalistas, mas pela sociedade, que deles precisa para mediar a
comunicação pública. Do mesmo modo está no fundamento da ética
jornalística, qualquer que seja a sua acepção, a defesa da liberdade, da
verdade, da justiça, da pluralidade de opiniões e de pontos de vista, e da
vigilância dos atos de governo. De forma que o que pode haver de melhor na
imprensa é aquilo que contribua para o aperfeiçoamento dos princípios e dos
valores sobre os quais repousa a sua própria liberdade.
Porém, como direito fundamental, a informação que se reveste do
valor protegido pela justiça não pode prescindir da verdade – ainda que uma
verdade subjetiva e apenas possível – pela circunstância de que é isso que
as pessoas legitimamente supõem estar conhecendo ao buscá-la. O sentido
axiológico que se protege é a informação verdadeira, já que a verdade é mais
do que um limite, é um requisito interno da informação. Porém, a verdade,
como se sabe, não é um conceito absoluto:
De fato, no mundo atual, no qual se exige que a informação circule cada vez
mais rapidamente, seria impossível pretender que apenas verdades
incontestáveis fossem divulgadas pela mídia. Em muitos casos, isso seria o
mesmo que inviabilizar a liberdade de informação, sobretudo de informação
jornalística, marcada por juízos de verossimilhança e probabilidade. Assim,
o requisito da verdade deve ser compreendido do ponto de vista subjetivo,
equiparando-se à diligência do informador, a quem incumbe apurar de forma
séria os fatos que pretende tornar públicos (BARROSO, 2005, p. 110-111).
Liberdade de informação...
// 233
Assim, tanto a liberdade de expressão, aí incluída a de informação,
quanto a de imprensa se revestem, como direito fundamental, serem
oponíveis contra o Estado, que não tem autorização para se intrometer na
esfera subjetiva do cidadão para impor-lhe ideias, subtrair-lhe informações ou
manipular dados. No Brasil, a Constituição de 1988 (art. 5º, IV; V; IX; XIV)
traz normas sobre as liberdades de informação, expressão e de imprensa,
reconhecendo tais valores de forma assentar o fundamento da própria
sociedade, ao ponto de se os elevar à categoria das cláusulas pétreas.
E, mais do que garantir o direito de se expressar, informar e ser
informado, proibindo dispositivo infraconstitucional que constitua embaraço à
plena liberdade de informação jornalística, a Constituição veda a censura de
maneira expressa no art. 220 e seus parágrafos, seja ela de natureza política,
ideológica ou artística. A Constituição de 1988, que marca a ruptura com o
Estado ditatorial que a precedeu protege esse valor social sabedora que a
censura é a marca dos Estados totalitários de todos os matizes. A livre
circulação de ideias é o principal instrumento contra a dominação.
A censura é sempre imposta por quem detém algum tipo de poder e que, por
dispor desse poder pretende estabelecer o que é bom ou ruim e ditar o que
pode ou não pode ser visto, escutado ou lido pelo conjunto dos indivíduos.
Geralmente a dominação exercida com a censura é disfarçada por apontadas
boas intenções que abrem o caminho para a implantação, apresentando-a
como um meio de proteger coisas obscenas, feias, imorais, que não devem
ser vistas, escutadas ou lidas porque podem prejudicar a formação de
crianças e adolescentes ou podem ofender ou ferir sentimentos (KARAM,
2009, p. 6-7).
Assim como ocorre com os demais direitos da personalidade e, para
efeito desse texto, com os direitos à privacidade, intimidade e vida privada,
nem a liberdade de informação, como a de expressão e a liberdade de
imprensa são direitos absolutos. Todos têm limites, e no caso brasileiro, na
própria Constituição.
13.4.1 Os limites da liberdade de imprensa
Como ocorre em qualquer manifestação de liberdade individual ou
em relação a qualquer direito fundamental, a liberdade de expressão, de
informação e de imprensa são absolutas “[...] enquanto não são atingidos ou
concretamente ameaçados direitos de terceiros” (KARAM, 2009, p. 11).
Quando se fala na intromissão do Estado no direito de informar, ou na
tentativa de manipular informações, cercear manifestação de pensamento ou
de opinião, a defesa intransigente dos direitos fundamentais aqui objeto de
análise é tranquila e, na doutrina e na jurisprudência do regime democrático,
pacificado.
O problema é quando nos deparamos com a eficácia horizontal
desses direitos. E aí, o direito às liberdades de expressão, de imprensa ou de
informação podem colidir com direitos fundamentais e de personalidade
234 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
outros, também tutelados pelo Direito e protegidos, como no caso brasileiro,
pela norma constitucional. E esta colisão de interesses não é benéfica para a
harmonia do sistema legal. Assim, parece inevitável a conclusão de que há
limites para os direitos de informação, de expressão e de imprensa.
Tomando a classificação de Luís Roberto Barroso, podemos elencar
parâmetros constitucionais para ponderação na hipótese de colisão. São
eles: a) a veracidade do fato; b) a licitude no meio empregado para obtenção
da informação; c) Personalidade pública ou estritamente privada da pessoa
objeto da notícia; d) local do fato; e) natureza do fato; f) existência de
interesse público na divulgação em tese; g) Existência de interesse público
na divulgação de fatos relacionados com a atuação de órgãos públicos; e, h)
Preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da
divulgação. Ver-se-á a seguir:
a) A veracidade do fato: a busca da verdade é o fundamento do jornalismo,
berço onde repousa a liberdade de imprensa. É a busca dessa verdade, que está
camuflada atrás da verdade aparente, que alavanca o jornalismo de qualidade e
merece a proteção judicial. A informação que goza da proteção constitucional é a
informação verdadeira. “A divulgação deliberada de uma notícia falsa, em detrimento
do direito da personalidade de outrem, não constitui direito fundamental do emissor”
(BARROSO, 2005, p. 113). Ademais, o que a sociedade espera é uma imprensa séria
e de qualidade que cumpra seu papel para com ela.
Uma imprensa investigativa, não partidária, independente, sem editorialismo
no noticiário e fiel à verdade dos fatos: esses são os fascinantes desafios da
cobertura eleitoral e, ao mesmo tempo, os parâmetros que definirão o teste
da imprensa de qualidade (DI FRANCO, 1995, p. 114).
A fidelidade da narrativa com os fatos não equivale, todavia, a
exigência de que a pesquisa jornalística obtenha a verdade absoluta, até
porque a verdade absoluta está no todo e não na parte. De fato, no mundo
atual, onde a velocidade da circulação das informações é cada vez maior
dadas as novas ferramentas tecnológicas disponíveis, “[...] seria impossível
pretender que apenas verdades incontestáveis fossem divulgadas pela
mídia” (BARROSO, 2005, p. 110). O requisito verdade deve ser
compreendido do ponto de vista subjetivo, exigindo-se diligência e seriedade
do informador.
É preciso também separar verdade de certeza, que é apenas um
conceito subjetivo em relação à verdade. E também é fundamental afastar o
conceito de verdade do da verossimilhança. Esta é apenas a aparência da
verdade, e se não há uma verdade da qual se possa extrair uma semelhança,
não há verossimilhança. Para o direito, a interpretação do requisito
veracidade é fundamental para a compreensão do limite entre o que é direito
de informação e o que é fraude, engodo ou cegueira coletiva.
Estes valores não são negociáveis e cabe aos veículos de
comunicação “[...] o dever de apurar, com boa-fé e dentro de critérios de
razoabilidade, a correção do fato ao qual darão publicidade. É bem de ver, no
entanto, que não se trata de uma verdade objetiva, mas subjetiva,
Liberdade de informação...
// 235
subordinada a um juízo de plausibilidade” (BARROSO, 2005, p. 113-114) que
respeite, também o ponto de observação e os elementos disponíveis no
momento da apuração da notícia por parte de quem a divulga. Cabe aos
veículos não a verdade objetiva, mas um dever de objetividade:
O dever de objetividade que dizer dever de honestidade intelectual, de
respeito a um método e usado juridicamente. Aos tribunais não caberia julgar
a informação per se – cuja exatidão, que não é nunca mais do que uma
aspiração, seria sempre insuscetível de perfeita verificação –, mas o autor de
um dano ou melhor, a atividade deste. O dever de objetividade seria [...] um
dever de meios [...], um dever de tipo profissional. O resultado concreto, por
exemplo, uma informação veraz, não seria juridicamente exigível, da mesma
forma como a saúde não pode ser exigida do médico que atende um enfermo,
ou a sentença favorável do advogado que patrocina uma causa (PERREIRA,
2002, p. 162-163).
Uma vez satisfeita a relação obrigatória com a realidade, com a
verdade, já que “[...] a matéria-prima do jornalismo é a informação. Seu único
compromisso deve ser com a verdade.” (DI FRANCO, 1995, p. 119), o direito
à informação se reveste do caráter coletivo que se sobrepõe ao interesse
individual, e adquire a proteção jurídica que ampara o direito da
personalidade.
b) licitude do meio empregado na obtenção da informação: não de
admite proteção ao direito de informar se o conhecimento acerca do fato que
se pretende divulgar tenha sido obtido por meios não admitidos pelo direito.
Do mesmo modo como não são admitidas provas por meio ilícitos, a
divulgação de notícias que se obteve mediante meios ilícitos também não
recebe a proteção constitucional. Mas, se a informação está em arquivos
públicos ou pode ser obtida por meios regulares e lícitos torna-a pública e,
portanto, sua divulgação não afeta a intimidade, a vida privada, a honra ou a
imagem dos envolvidos (BARROSO, 2005, p. 114).
c) Personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da
notícia: recordando o que já foi dito nessas linhas sobre a privacidade e o
direito de ser deixado em paz em sua solidão, não parece consistente a
possibilidade de um direito de terceiro que seja invasivo desmedidamente
sobre o âmbito privado do indivíduo. E isso só pode ganhar legitimidade em
casos de estrita excepcionalidade, uma vez que a mera curiosidade sobre o
que se passa no espaço íntimo das pessoas não merece tutela ou proteção.
Porém, quando se trata de pessoas que ocupam cargos públicos e agem por
representação, este direito à privacidade é relativizado. Elas têm o seu direito
de privacidade tutelado em intensidade mais branda.
Com frequência, os órgãos de imprensa se vêem entre optar pelo respeito à
privacidade de alguém que é tema da reportagem e o direito do cidadão de
ser bem informado. É justo devassar a intimidade de Alguém? Não, todo
mundo sabe. Mas, de novo, não é com tanta simplicidade que essas dúvidas
costumam aparecer. Pergunte-se outra vez: é justo investigar a intimidade de
alguém que esteja exercendo uma função pública e guarda, em sua
236 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
intimidade, práticas suspeitas que envolvem o Estado? O dilema ético do
jornalista, por excelência, é desse tipo. Não se trata apenas de uma
hesitação, portanto, entre o certo e o errado (BUCCI, 2000, p. 20).
Do mesmo modo, pessoas notórias, como artistas, atletas, modelos
e pessoas do mundo do entretenimento que constroem suas carreiras
alicerçadas na publicidade de seus atos e necessitam dessa publicidade para
exercer suas atividades, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que
também estão passíveis de uma certa relativização do seu direito à
privacidade. Menos controle, é importante que se diga, não significa
supressão.
d) Local do fato: os fatos ocorridos em local reservado têm proteção
mais ampla que os acontecidos em locais públicos (BARROSO, 2005, p.
115). Já eventos ocorridos no interior do domicílio de uma pessoa, por
princípio, não são passíveis de divulgação contra a vontade do envolvido. Os
ocorridos em local público, como um restaurante ou saguão de um hotel, em
princípio serão noticiáveis.
e) Natureza do fato: acontecimentos que sejam produzidos por
eventos da natureza (como deslizamento de terra, enchente, etc.) acidentes
ou crimes são passíveis de divulgação por seu evidente interesse jornalístico,
ainda quando exponham a intimidade, a honra ou a imagem das pessoas nela
envolvidos.
f) Existência de interesse público na divulgação em tese: o interesse
público na divulgação de qualquer fato verdadeiro se presume como regra
geral (BARROSO, 2005, p.116). Cabe ao privado provar que o interesse
privado sobreponha o interesse público residente na própria liberdade de
expressão e de informação. Já quanto para figuras públicas, o interesse
público é evidente.
Além disso, as figuras públicas devem exercer o poder com decoro e sem o
deslumbramento do palco iluminado. Não se invoque, portanto, o direito à
privacidade para se protestar contra informações verdadeiras que registram
comportamentos incompatíveis com a dignidade da função pública. Há uma
divisória clara entre o direito à informação e o direito à privacidade o bem
comum, o interesse público (DI FRANCO, 1995, p.78).
g) Existência de interesse público na divulgação de fatos
relacionados com a atuação de órgãos públicos: no que diz respeito aos
órgãos públicos, a presunção de interesse público prevalece. “Em um regime
republicano, a regra é que toda a atuação do Poder Público, em qualquer de
suas esferas, seja pública [...] a publicidade, com o é corrente, é o mecanismo
pelo qual será possível ao povo controlar a atuação dos agentes que afinal
praticam atos em seu nome” (BARROSO, 2005, p. 116).
h) Preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição
prévia da divulgação: a reparação do abuso da liberdade de expressão e
informação pode ocorrer a posteriori, com responsabilização civil e criminal
do agente, além da retratação, do desmentido e a retificação, além do direito
Liberdade de informação...
// 237
de resposta. Já quanto à violação à privacidade, a simples divulgação pode
acarretar o mal de modo irreparável.
13.4.2 A técnica da ponderação
Os direitos fundamentais são uma conquista da humanidade contra
a própria natureza do homem, de impor-se sobre o semelhante com sua
vontade e seus interesses. No Brasil, nossa Constituição reconheceu um
elenco de direitos e, dentre eles, alguns em especial que foram assim
catalogados como direitos fundamentais. Na Constituição, tais direitos estão
em pé de igualdade uns com os outros, sem que exista sobre eles critério
hierárquico.
Ocorre que pode haver – e de fato há – momentos em que alguns
desses direitos colidem com outros de mesmo valor. E muitas vezes não é o
Estado, “[...] é o particular quem avança de forma ilegítima sobre a esfera de
liberdade constitucionalmente garantida de outra pessoa” (REZENDE, 2014,
p.15). E, em se tratando da necessidade de imposição de restrições a
determinados direitos, precisamos de um mecanismo objetivo que permita
ponderar qual direito deve preponderar.
Por muito tempo prevaleceu exclusivamente o raciocínio da
subsunção na aplicação do direito. Pela subsunção, uma premissa maior (a
norma) incide sobre uma premissa menor (o fato) produzindo um resultado.
O resultado, portanto, é a aplicação da norma sobre o fato concreto. Este é
um raciocínio silogístico que resolve grande parte dos problemas do direito e
de muita valia. Mas, nem sempre – e nem para todas as situações – a
subsunção responde às necessidades que a vida real apresenta.
É o que ocorre quando há muitas premissas maiores incidindo em
apenas uma premissa menor. Ou seja, muitas normas e princípios sobre um
único fato. A lógica unidirecional da subsunção não dá conta de solucionar
problemas dessa magnitude por trabalhar apenas com uma das normas,
descartando as demais. Quando nos referimos a normas e princípios
constitucionais, e ante ao princípio da unidade da Constituição, que nega
hierarquia entre dispositivos constitucionais, a subsunção não é suficiente
para a resposta que o direito exige.
Ante esta realidade, a “[...] interpretação constitucional viu-se na
contingência de desenvolver técnicas capazes de produzir uma solução
dotada de racionalidade e controlabilidade diante de normas que entre em
rota de colisão” (BARROSO, 2014, p. 361). Para resolver esses casos, há a
necessidade da ponderação:
A subsunção é um quadro geométrico, com três cores distintas e nítidas. A
ponderação é uma pintura moderna, com inúmeras cores sobrepostas,
algumas se destacando mais do que as outras, mas formando uma unidade
estética. Ah, sim: a ponderação malfeita pode ser tão ruim quanto algumas
peças de arte moderna (BARROSO, 2014, p. 361).
238 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Podemos descrever a ponderação em três etapas: na primeira o
intérprete identifica quais as normas que estão na incidência do caso em
concreto e se há conflito entre elas. Os diversos fundamentos normativos que
solucionam o caso devem ser agrupados para formar um conjunto de
argumentos para cada lado da solução do conflito, para facilitar a comparação
entre os elementos normativos em jogo.
Na segunda etapa se deve examinar os fatos e suas circunstâncias
concretas, pois “[...] o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas
identificadas na primeira fase poderão apontar com maior clareza o papel de
cada uma delas e a extensão de sua influência” (BARROSO, 2014, p. 262).
Na terceira fase, onde se dá de fato a ponderação, analisa-se os argumentos
e os fundamentos normativos em contraposição e se atribui peso a cada
grupo.
Em seguida, será preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de
normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos
demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida,
cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve
ser aplicada. Todo esse processo intelectual tem como tio condutor o
princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (BARROSO, 2014, p. 262).
Assim, todo esse mecanismo nos é dado pelo princípio da
proporcionalidade, ou da razoabilidade. Este princípio “[...] tem por escopo
solucionar colisão de direitos fundamentais” (FACHIN, 2013, p. 140). Não se
pode afastar, ainda, a possibilidade de existência de leis restritivas de direitos.
Ante tal fenômeno, mais uma vez nos vemos diante da necessidade de lançar
mão da ponderação e do princípio da proporcionalidade.
Já quanto ao núcleo da aplicabilidade, que é a proporcionalidade em
sentido estrito, desta se exige um grande critério de razoabilidade, exigindose um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental
atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele
colide e que fundamenta a adoção de eventual medida restritiva. O que se
busca é aferir a desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto
ao atingido.
A doutrina aponta várias alternativas para indicar de onde se extraiu
o princípio da proporcionalidade na fundamentação jurídico-positiva. Vem do
Estado de Direito, especialmente numa compreensão que inclua a promoção
dos direitos fundamentais como sua matriz; deriva do dispositivo
constitucional que atribuiu aplicação imediata dos direitos fundamentais e
vincula a todos, mesmo o poder público e os particulares, sem excluir seus
destinatários (art. 5º §1º da CF), ou por ser princípio implícito no sistema dos
direitos fundamentais.
Há doutrinadores, como Paulo Bonavides, que entendem haver uma
derivação do direito de igualdade. Outros, como Wilson Antônio Steinmetz,
que identificam como situado na cláusula da dignidade humana. Ainda, como
André Ramos Tavares que entende extraído do princípio do devido processo
Liberdade de informação...
// 239
legal. Gilmar Ferreira Mendes (1999, p.87) o vê a partir do inciso LIV do art.
5º da CF:
Vê-se, pois, que o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso
é plenamente compatível com a ordem constitucional brasileira. A própria
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evoluiu para reconhecer que
esse princípio tem hoje a sua sedes materiale no art. 5º, inciso LIV, da
Constituição Federal.
Enfim, o princípio da proporcionalidade, ou razoabilidade, serve para
manter a ponderação entre posições constitucionais que estabeleçam
tensões entre si ou entre direitos e garantias constitucionais, e ainda permite
ao judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando:
a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado;
b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para
chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual
(vedação do excesso);
c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde
com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (BARROSO,
2014, p. 283).
Os direitos à intimidade e à privacidade devem conviver com os
direitos à informação e expressão e com a liberdade de imprensa, dentro da
concepção de um Estado que respeite o indivíduo e promova o respeito entre
os indivíduos. A técnica da ponderação, baseada no princípio da
proporcionalidade é a ferramenta adequada para proporcionar o equilíbrio
entre os direitos tutelados e sua preservação ao máximo possível de cada um
deles. Democracia é isso.
13.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta histórica do homem para constituir um modo de vida respeitoso
e harmonioso, que permita o convívio social pacífico e sem violações de
direitos foi longa e árdua. O reconhecimento de que o homem é senhor de
direitos pela simples razão de existir é hoje fato, mas para que ocorresse
muitos séculos se passaram. Dentre esses direitos, a liberdade foi o primeiro
a ser reconhecido com direito fundamental.
Dentro do direito à liberdade estão compreendidos outros direitos,
como à privacidade e à intimidade. O right to be let alone, ou direito de ser
deixado em paz em sua esfera íntima. Do mesmo modo, o direito a ser
informado corretamente e informar, bem como a liberdade de imprensa, todos
são oriundos do mesmo princípio da liberdade.
Numa sociedade que preza pelo respeito ao indivíduo e reconhece
ser ele senhor de direitos pela simples razão de existir, esses direitos
precisam conviver harmonicamente sem que haja a supressão de um deles
em favor de outro. Num país como o Brasil, que reconhece na norma
240 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
constitucional tais direitos e os equivale todos ao mesmo nível hierárquico, a
técnica da subsunção não é eficaz para solucionar conflitos entre esses
direitos.
A melhor maneira de manter o equilíbrio entre eles, conservando ao
máximo o núcleo de cada um é, em caso de conflito, o uso da técnica da
ponderação, com base no princípio da proporcionalidade. Um método eficaz
para a preservação dos direitos e solução dos conflitos quando surgem.
13.6 REFERÊNCIAS
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242 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= XIV =
O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO BRASIL
Paulo Gomes de Lima Júnior*
Marta Beatriz Tanaka Ferdinandi**
14.1 INTRODUÇÃO
A trajetória do direito à saúde no Brasil iniciou-se praticamente no
Século XIX através das políticas sanitárias realizadas no Estado do Rio de
Janeiro. Sabe-se que, inicialmente, a preocupação voltava-se apenas ao
controle das pestes epidêmicas tais como a peste negra e para tanto, apenas
isolava-se o paciente para que a peste não se propagasse entre a população
que à época possuía poucos recursos para a cura de doenças
desconhecidas.
Somente em meados do Século 30 é que efetivamente foram
controladas as pestes epidêmicas, principalmente no Estado do Rio de
Janeiro (BARROSO, 2008, p.12).
É importante salientar que no decorrer da história, o direito a saúde
apenas alavancou após a Revolução Industrial. Os industriários tinham
grande interesse em manter o operariado em condições saudáveis para o
sucesso em sua linha de produção. A saúde era uma preocupação
meramente capitalista, ou seja, é a partir desse momento em que o ser
humano começa a ter o direito à saúde mediante o vínculo empregatício.
Apesar da criação do Ministério da Saúde em 1953, pouco foi realizado
(FERRAZ, 2011).
A criação dos IAPs (Instituto de Aposentadorias e Pensões) e sua
fusão com o INPS (Instituto Nacional da Previdência Social) continuava a
beneficiar somente ao trabalhador urbano com carteira assinada que era
contribuinte e beneficiário desse novo sistema e acesso à rede pública de
saúde (ESCORREL 2008, p. 385-434).
Somente em 1988, com a Constituição Federal o direito à saúde
passou a categoria de Direito Fundamental. Foi através da Assembléia
Constituinte que tal Direito passou a ser um dever estatal e direito de todo e
*
Advogado criminal. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (2007).
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Paranaense de Ensino (2008) Pós
Graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (2009) Mestre em Direitos
da Personalidade na Universidade Cesumar (2012) Linha de Pesquisa: Os Direitos da
Personalidade e seu alcance na contemporaneidade. Professor dedicação Exclusiva do Centro
Universitário Uniages. Membro do Núcleo Docente Estruturante.
**
Possui graduação em DIREITO pelo Centro Universitário de Maringá (2001). Mestrado em
Ciências Jurídicas, pelo Centro Universitário de Maringá, desde 2010. Doutoranda em Direito
pela Fadisp (Faculdade Autônoma de Direito). Atualmente é Docente, Advogada e Coordenadora
do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário de Maringá.
244 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
qualquer cidadão brasileiro. Até então, pouco se ouvia falar no direito a saúde
nas Constituições anteriores.
Apesar da grande evolução quanto ao tema na Constituição de 1988,
atualmente o que se verifica é que a idéia exposta na Carta Magna teve seu
caminho desvirtuado. O Sistema público de saúde em nosso país atravessa
talvez, se não for, o pior momento crítico de sua história. Verbas desviadas,
destinadas a outros pontos orçamentários; hospitais públicos cuja infraestrutura carece de investimentos e modernizações; postos de saúde
vandalizados; má distribuição de medicamentos; pouco caso com os
desvalidos e pobres de espírito.
É através desse cenário que pretendemos desenvolver o tema “O
Direito Fundamental à saúde no Brasil”, o desrespeito a tão divulgada e
estudada dignidade da pessoa humana e a problematização quanto ao
excesso de judicialização no campo da saúde pela falta de harmonia entre os
três poderes, a saber, o legislativo, executivo e o judiciário.
Doutrinadores renomados entendem pela interferência de um poder
no âmbito de competência do outro. Quando o Poder Judiciário julga
procedente uma ação, referente à obrigatoriedade do Estado em fornecer
tratamentos e medicamentos de alto custo, vai contra, por sua vez, a dotação
orçamentária previamente estabelecida pelo Poder Público, o Executivo. De
um lado encontramos o direito fundamental à saúde e de outro o erário
público já destinado a determinados setores determinados pela
administração pública.
14.2 DEFINIÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E SEU CONTEXTO NA TEORIA
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O conceito de saúde provavelmente surgiu na Grécia (HUMENHUK,
2004, p.23) antiga ao afirmarem que Mens Sana In Corpore Sano1.
Definir o que venha a ser saúde é desenvolver um estudo em outras
áreas, a saber, da medicina e demais setores cuja pretensão é a de ampliar
este conceito. Para Keila A Baraldi Knobel (KNOBEL, 2011) saúde é:
[...] é uma condição em que um indivíduo ou grupo de indivíduos é capaz de
realizar suas aspirações, satisfazer suas necessidades e mudar ou enfrentar
o ambiente. A saúde é um recurso para a vida diária, e não um objetivo
de vida; é um conceito positivo, enfatizando recursos sociais e pessoais,
1
Mens sana in corpore sano (mente sã, corpo são) é uma famosa citação latina, derivada da
Sátira X do poeta romano Juvenal. No contexto, a frase é parte da resposta do autor à questão
sobre o que as pessoas deveriam desejar na vida. A conotação satírica da frase, no sentido de
que seria bom ter também uma mente sã num corpo são, é uma interpretação mais recente
daquilo que Juvenal pretendeu exprimir. A intenção original do autor foi lembrar àqueles dentre
os cidadãos romanos que faziam orações tolas que tudo que se deveria pedir numa oração era
saúde física e espiritual. Com o tempo, a frase passou a ter uma gama de sentidos. Pode ser
entendida como uma afirmação de que somente um corpo são pode produzir ou sustentar uma
mente sã. Seu uso mais generalizado expressa o conceito de um equilíbrio saudável no modo
de vida de uma pessoa.
O direito fundamental à saúde
// 245
tanto quanto as aptidões físicas. É um estado caracterizado pela integridade
anatômica, fisiológica e psicológica; pela capacidade de desempenhar
pessoalmente funções familiares, profissionais e sociais; pela habilidade para
tratar com tensões físicas, biológicas, psicológicas ou sociais com um
sentimento de bem-estar e livre do risco de doença ou morte extemporânea.
É um estado de equilíbrio entre os seres humanos e o meio físico, biológico
e social, compatível com plena atividade funcional. Grifou-se
Segundo entendimento da Organização Mundial da Saúde, adotado
pelo Brasil através do decreto 26042, promulgado em 17.12.1948 a saúde é
vista como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não
consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade (OLIVEIRA,
2008, p. 201-202) tal como era considerada pelos povos antigos.
Atualmente, define-se a saúde como um direito fundamental social
prevista pela Constituição Federal de 1988, artigo 196 e demais dispositivos
normativos que prescrevem o dever do Estado na garantia desse direito.
Porém a definição do que venha a ser a saúde em si, ultrapassa o
conceito definido pela Organização Mundial da Saúde. A saúde é oriunda de
inúmeros fatores sociais, que influenciam o modo de vida de cada um. É
necessário, além do bem estar físico e mental, uma moradia adequada, livre
das mazelas da pobreza ou pelo menos um mínimo de organização sanitária
básica. Vai além, comporta ainda a educação cujo cidadão, bem informado e
estudado é capaz de auferir conhecimentos considerados importantes ao
bem estar, evitando-se, portanto, uma condição de vida miserável.
Inclui-se ainda, dentro deste conceito, o trabalho, o meio ambiente, a
assistência médica, o transporte, o lazer dentre muitos outros aspectos
capazes de modificar o meio em que vivem e o modo em que se socializam
(DARÉ, 2008, p. 169). Talvez essa seja a dificuldade que o Poder Estatal vem
encontrando em prover o direito fundamental a uma vida saudável 2.
Nas palavras do ilustre doutrinador Hewerstton Humenhuk
(HUMENHUK, 2004, p. 24):
A moderna doutrina jurídica desperta na sua mais pura hermenêutica, bem
como, nas legislações atuais, que o direito à saúde está interligado com
vários outros direitos como por exemplo: direito ao saneamento, direito à
moradia, direito à educação, direito ao bem-estar social, direito da seguridade
social, direito à assistência social, direito ao acesso aos serviços médicos e
direito à saúde física e psíquica.
2
Art. 3º da Lei 8.090 de 1990: A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre
outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a
educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde
da população expressam a organização social e econômica do país. Parágrafo único – Dizem
respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a
garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.
246 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Após essa breve análise acerca da definição da saúde, é importante
ressaltar, antes de mais nada, o que venha a ser o conceito de direitos
fundamentais para que somente após tecermos críticas sobre o tema.
Primeiramente,
Direito
Fundamental
segundo
Canotilho
(CANOTILHO, 1991): “[...] são os direitos do homem, jurídico-institucional
garantidos e limitados espaço-temporalmente”.
Mais especificamente a explicação de Ingo Wolfgang Sarlet
(SARLET, 2005, p. 35) para quem “[...] o termo direitos fundamentais se aplica
para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do
direito constitucional positivo de determinado Estado”.
Apesar de teoricamente entendermos os direitos fundamentais tal
como acima especificado, mesmo após a promulgação da Constituição e de
todos os avanços conquistados pelas constituições anteriores, a saúde ainda
não possui total efetivação enquanto direito fundamental.
Eleutério Rodrigues Neto (RODRIGUES NETO, p. 91) preleciona
com grande sabedoria que a falsa democracia brasileira levou seus
legisladores a ideia da necessidade de se construir capítulo específico como
garantidor de tal direito, a saber, em suas palavras
Numa constituição ideal, verdadeiramente democrática, não necessitaria de
uma parte especialmente dedicada à Saúde. Os seus objetivos, de
natureza individual e coletiva, no contexto de uma organização social
democrática já seriam as condições necessárias e suficientes para a busca
do alcance e do gozo da Saúde. Grifou-se
Em seu entendimento, reflete a ideia de uma utopia que pode servir
de ponto de partida apenas para a análise da origem dos desvios e
peculiaridades do processo.
Os Direitos Fundamentais, que são amplamente discutidos e
conhecidos, são produtos de uma evolução contínua e permanente que pode
ser traçada sob dois prismas: a circunstância histórica da sociedade e as
chamadas gerações ou dimensões dos direitos fundamentais.
No sábio entendimento do jurista Norberto Bobbio, (BOBBIO, 1992,
p. 1-65) os Direitos Fundamentais de Primeira Geração representados pelos
direito civis e políticos, postulavam uma atividade negativa por parte do
Estado e não violar os direitos individuais. Nesse sentido, German J Bidart
Campos (BIDART CAMPOS, p. 21.) “[...] ao sujeito passivo foi atribuído
fundamentalmente uma obrigação de não prejudicar a saúde abster-se de
violação do direito através de condutas prejudiciais à saúde” 3. Direitos
amparados pela Revolução Francesa cujos ideais eram a liberdade,
igualdade e fraternidade.
Norberto Bobbio (BOBBIO, 1992, p. 165), ao discorrer sobre as
gerações dos Direitos Fundamentais, explica ainda, sobre os Direitos
Fundamentais de Segunda Geração, cuja conquista da liberdade trouxe
[…] al que como sujeito pasivo se le asignaba fundamentalmente uma obligacion de omisión
no danar la salud abstenerse de violar el derecho a La salud con conductas perjudiciales.
3
O direito fundamental à saúde
// 247
conseqüências que não foram desejadas pela camada menos favorecida da
sociedade. A abstenção Estatal foi tão grande que se criou uma situação de
quase abandono em relação aos menos favorecidos. Percebe-se então, que
era necessárias ações para o restabelecimento das igualdades, para tanto
cabia ao Estado promovê-las.
Observa-se, portanto, o entendimento de German J. Campos
(BIDART CAMPOS, p. 21) sobre a questão:
Em essência, com a obrigação do Estado não para inferir danos ao direito de
toda pessoa saudável (obrigação de omissão) é anexar uma obrigação a
outra (dar e fazer alguma coisa: o necessário para cada caso, para cuidados
de saúde e para promover em benefício da pessoa com prestações positivas
e também medidas de ação positiva)4.
As constituições baseadas no modelo dessa geração, não postulam
apenas a proteção individual dos indivíduos, mas também através de direitos
sujeitos à prestações, ou seja, direitos sociais, culturais e econômicos
referente as relações de produção, trabalho, educação, cultura e previdência.
Dessa forma, tais direitos estão ligados às já referidas prestações sociais do
Estado perante o indivíduo bem como a assistência social, educação, saúde,
cultura e trabalho.
A partir daí o Estado deixa de ter apenas uma função negativa, de
não interferir na vida dos indivíduos da sociedade, para ter uma função
positiva, uma função prestacional. Os direitos fundamentais de Segunda
Geração vieram amparados pelas constituições do segundo pós-guerra.
Os direitos prestacionais são bem explicados por Susana Graciela
Cayuso (CAYUSO, 2001, p. 40):
Esta nova concepção de direito podem ser identificados, pelo menos a priori,
como direitos a prestações e por conseqüência surge a pergunta acerca da
sagrada inscrição do conceito de direitos fundamentais e quanto a
possibilidade de sua exigência. Particularmente, a incorporação
constitucional parece ser dada pela sua contextualização segundo o qual não
se reconheceria como direito subjetivo5.
Nesse sentido, o Direito Fundamental à Saúde pertence aos direitos
Fundamentais de Segunda Geração, posto que trata de um direito expresso
a partir do artigo 6º da Constituição sendo este um verdadeiro direito a
4
Em lo fundamental, a La obligación estatal de no inferir dano al derecho de cada persona a La
salu (obligación de omisión) se lë huno de acoplar outra obligación (de dar y de hacer algo: lo
necesario em cada caso para cuidar La salud y para promoverla em beneficio de La persona
com prestaciones positivas y medidas de acción también positiva.
5
Esta nueva concepción de derechos permite individualizarlos, por lo menos a priori, como
“derechos a prestaciones” y em consecuencia,, plantea El interrogante acerca de sugrado de
adseripción al concepto de derechos fundamentales em cuanto a La posibilidad de su exigência.
La peculiaridad de incorporación constitucional parece estar dada por su textualización, según
La cual no reconocerían um derecho subjetivo.
248 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
prestação, ou seja, um direito social de cunho prestacional que necessita de
uma atuação positiva do Estado que garanta a sua efetividade.
Após o final do século, da Revolução Industrial, da descolonização
do segundo pós-guerra e com os avanços tecnológicos, a sociedade passou
a se preocupar não apenas com a proteção de um determinado Estado e sim
a direitos de titularidade coletiva ou difusa.
Deste modo, configura os direitos fundamentais da terceira geração
como direitos de solidariedade ou de fraternidade, são direitos que buscam o
desenvolvimento, a paz, o meio ambiente e a comunicação. Por exigirem
esforços e responsabilidades universais para sua efetivação (HUMENHUK,
2004, p. 07).
Quanto aos direitos fundamentais de quarta geração, entende-se que
seu surgimento ocorreu no período de após guerra e com a influência dos
Estados Unidos sob os demais países do mundo que passou a se falar
apenas em direitos de um Estado específico e também de direitos amparados
na Globalização econômica onde os países desenvolvidos, principalmente os
Estados Unidos buscam universalizar os valores, afrouxando e debilitando os
laços de soberania dos países subdesenvolvidos com o intuito de buscar a
institucionalização do Estado Social.
Dessa forma, compreende-se como direitos universais, direitos à
democracia, informação, pluralismo que buscam os valores concernentes à
vida, à liberdade, à igualdade e à fraternidade ou solidariedade,
resguardando-se sempre a dignidade do ser humano.
14.3 O SURGIMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL: UM
ENFOQUE HISTÓRICO EVOLUTIVO E O DIREITO À SAÚDE COMO
DIREITO FUNDAMENTAL
O fortalecimento dos direitos sociais partiu, inicialmente, sob a
influência dos Movimentos Socialistas do Século XIX que buscavam
transformar as condições de miséria instauradas pelo capitalismo aos
trabalhadores da época (RAMOS, 2008).
Surgiu, portanto, os direitos de segunda dimensão (ou segunda
geração), calcado nos ideais da Constituição do México em 1917 e Weimar
de 1919 que demonstrava a preocupação da necessidade da interferência do
Estado nesse setor (PISCITELLI, 2011, p. 2).
No Brasil, os direitos sociais iniciou-se através da Constituição
Getulista de 1934, efetivando-se na de 1946 exatamente por se tratar de
Constituição amplamente democrática, firmando-se em 1967 e 1969
(VACCARI, 2003, p. 36).
John Maynard Keynes em sua obra entitulada Teoria Geral do
Emprego, do Juro e da Moeda, de 1936, citado pelo professor Marcos Mello
Gonçalves (GONÇALVES, 2002, p. 100-103), forneceu os fundamentos
teóricos do que à época era chamado de Estado do Bem-Estar e já
manifestava a necessidade da atuação estatal quanto aos direitos sociais.
O direito fundamental à saúde
// 249
A situação crítica da época foi amplamente criticada por Karl Marx
para quem o processo de industrialização gerou absoluta concentração de
renda e excedente de trabalho que era apropriado pelos industriários
(VACCARI, 2003, p. 02).
Os grandes avanços alcançados pela Revolução Industrial, apesar
de suma importância na história mundial, trouxe consigo inúmeros problemas
tais como o de abastecimento de água, esgoto, coleta de lixo e higiene
(BRANDI, 2009, p. 29).
O renomado e conhecido filósofo Alemão Engels, ao estudar as
condições de vida do operariado chegou a conclusão que a saúde dos
mesmos era de imensa precariedade. O próprio ambiente de trabalho e da
cidade em que viviam, levava-os cada vez mais à doenças oriundas das
péssimas condições sanitárias (BRANDI, 2009, P. 29).
No Brasil, há indícios de direitos sociais desde 1824. Mas somente
com a Constituição de 1934 foram incorporados, ainda de maneira tímida, no
texto da Carta Magna enunciando apenas a existência de uma ordem
economia e social.
Somente em 1988 que efetivamente tais direitos foram introduzidos
e elevados em matéria constitucional como Direito Fundamental do cidadão
brasileiro traduzindo-se, portanto como meios de obtenção e concretização
de todos os outros direitos fundamentais.
São os chamados Direitos da Segunda Geração e que possuem
como característica principal a atuação, a prestação do Estado.
Conforme explicação de German J Bidart Campos ( BIDART
CAMPOS, 2001, p. 22):
Se a própria saúde como um direito inscrito na categoria dos direitos sociais
de segunda geração exigem que os. sujeitos passivos tambem sejam
modificados. A ambivalência dos direitos que podem ser invocados contra o
Estado e entre as pessoas, melhorar a saúde, a cobrança deve ser cada vez
mais ampla, a grande gama de entidades privadas que prestam serviços aos
membros, como, por exemplo, a medicina pré-paga6.
Os direitos prestacionais possuem uma efetivação mais complexa
que os direitos abstencionais da Primeira Geração, isso porque é mais
simples deixar de fazer algo do que cumprir uma meta.
O Direito à Saúde encontra-se no rol dos direitos sociais enumerado
no artigo 6º da Constituição Federal, sendo também disciplinado nos artigos
193 a 232. Tais direitos não são taxativos sendo possível ainda que o
legislador infra-constitucional trate mais detalhadamente do tema.
6
Si y ala salud como derecho personal entro a La categoria de los derechos sociales de La
segunda geración El elenco de los sujetos pasivos tambíen acuso modificaciones. La
ambivalência de los derechos, que son oponibles tanto al Estado como entre particulares, cobra
realce cuando em matéria de salud há alcanzado difusión creciente uma amplia serie de
entidades privadas que prestan servicios a seus sócios, como son por ejemplo, lãs de medicina
prepaga.
250 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Assim como o direito à educação, o direito à saúde é um direito de
prestação do Estado. Esta obrigação pode ser repassada a terceiros, como
nos casos de planos de saúde, cabendo ao Estado fiscalizar estas prestações
de serviços.
Nesse sentido deve ser observado os ensinamentos de Bidart
Campos (BIDART CAMPOS 2001, P.21.): Por consequência, agora o Estado
e os entes que prestam serviços de saúde, tanto gratuitos como pagos,
assumem deveres de dar e de fazer, em benefícios das pessoas que
possuem direitos em acessá-los7.
O direito à saúde diz respeito à qualidade de vida de todo cidadão
sendo esta indispensável no âmbito dos direitos fundamentais sociais, dessa
forma, é um dever do Estado que deve garantir a eficácia de tais direitos
fundamentais.
Essa eficácia, também conhecida como eficácia horizontal
(HUMENHUK, 2004, p. 21) dos direitos fundamentais é a eficácia em relação
a terceiros, dessa forma, os Direitos Fundamentais como o direito à saúde,
deixa de ter apenas efeitos verticais, perante o Estado, para passarem a ter
efeitos horizontais perante entidades privadas.
Como pode ser observado nos ensinamentos de German J. Bidart
Campos (BIDART CAMPOS, 2001, p. 21.) “[...] Saúde é um bem jurídico de
natureza e ramo constitucional que, também nas relações entre os
particulares deixa espaço mais que suficiente para uma presença ativa do
Estado”8.
Como Direito Fundamental, a Constituição procurou estabelecer a
sua garantia tanto no setor público, quanto no setor privado, no sentido de
que o Estado regulamentasse, fiscalizasse e controlasse, nos termos da lei,
as ações e serviços médicos, que são prestações positivas de natureza
pública, significando com isso que o Estado tem integral poder de controle
sobre tais ações e serviços, principalmente quanto ao poder-dever de
fiscalização das suas prestações. Dessa forma que podemos falar e
questionar sobre a importância dos planos de saúde.
Assim é, por determinação constitucional, que as ações públicas de
saúde no nosso país se fazer por intermédio de um sistema único, gerido nas
esferas federal, estadual e municipal, baseado em transferências federais
para os entes sub-nacionais, sendo certo que os recursos financeiros do SUS
devem ser depositados em conta especial, em cada esfera de sua atuação e
movimentados sob fiscalização dos respectivos Conselhos de Saúde 9.
7
Em consecuencia, ahora El Estado y los entes que prestan servicios de salud tanto gratuitos
como pagos, asumen deberes de dar y de hacer, em benecifios de lãs personas que tienen
derechos de acceder a ellos.
8
[...] La salud es um bien jurídico de natureza y rango constitucional que, también em lãs
relaciones entre particulares, deja espacio más que suficiente para uma presencia activa Del
Estado
9
Lei 8.080 de 1990 - Art. 33. Os recursos financeiros do Sistema Único de Saúde (SUS) serão
depositados em conta especial, em cada esfera de sua atuação, e movimentados sob
fiscalização dos respectivos Conselhos de Saúde.
O direito fundamental à saúde
// 251
A assistência à saúde é livre para a iniciativa privada bem como para
a participação conjunta, de forma a suplementar, do próprio Serviço Único de
Saúde e a rede privada, com preferências àquelas entidades sem fins
lucrativos e assistenciais.
Os serviços prestados pela rede pública no controle da saúde, tem
por base um programa de saúde que é representado não só pelo controle
preventivo ou repressivo, mas também sob a forma de erradicação de certas
doenças, sob pena de o Estado ser caracterizado como omisso.
O direito sanitário ou Direito da Saúde pode ser entendido como o
conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade do Poder Público
destinada a ordenar a proteção, promoção e recuperação da saúde e a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e
asseguradores desse direito.
14.4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, A RESERVA DO POSSÍVEL E
O MÍNIMO EXISTENCIAL
Os primeiros conceitos sobre a dignidade humana foi a concepção
grega no qual a dignidade vinculava-se ao status social que o indivíduo tinha
perante a sociedade (posição social) (PICCIRILLO, 2008, p. 223).
O doutrinador Rui Magalhães Piscitelli entende que a dignidade da
pessoa humana não é um direito fundamental é sim, um princípio
fundamental (PISCITELLI, 2008, p. 4).
Princípio ou direito fundamental a emenda do Resp. nr. 647.853,
publicada no DJU de 06.06.2005, do Egrégio Superior Tribunal de Justiça
complementou o que a Constituição Brasileira de 1988 prescrevendo a
dignidade da pessoa humana como sendo um dos fundamentos da
República, portanto:
Hodiernamente, inviabiliza-se a aplicação da legislação infraconstitucional
impermeável aos princípios constitucionais dentre os quais sobressai o da
dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, por
isso que inaugura o texto constitucional, que revela o nosso ideário como
nação.
Conforme Dworkin, o conceito da dignidade humana é variável
conforme a época e o lugar em que cada sociedade vive e por esse motivo
não é possível vislumbrar uma definição uniforme, para todos os tipos sociais
(MOLLER, 2007).
Quanto a doutrina da reserva do possível, atualmente utilizada na
exigibilidade dos direitos sociais perante o Estado, tem origem no Direito
Constitucional Alemão (OLSEN 2008, p. 215) significando que as prestações
devidas pelo Estado somente poderiam ser exigidas em relação ao que o
indivíduo pudesse esperar da sociedade principalmente mediante a
252 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
impossibilidade de exigências superiores ao limite básico social 10. Ou seja, a
efetividade dos direitos a prestações estaria sob a reserva de capacidades
financeiras do Estado (SARLET, 2008, p. 29).
Apesar da origem Alemã, a aplicação do princípio nada mais é do que
uma tentativa de blindar o erário público da interferência do Poder Judiciário
a fim de se indisponibilizar recursos entendidos desnecessários (OLSEN,
2008, p. 221).
Conforme Ana Paula Barcellos (BARCELLOS, 2008, p. 261):
[...] a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno
econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades
quase sempre finitas a serem por eles suprida. [...] é importante lembrar que
há um limite de possibilidades materiais para esses direitos.
A reserva do possível impõe ao Estado, não uma garantia absoluta
de inviolabilidade e de tutela da autodeterminação individual, mas, sobretudo,
o dever de tanto quanto possível, promover as condições ótimas de
efetivação da prestação estatal e preservar os níveis de realização já
atingidos.
Se todos os direitos possuem um custo e os recursos são escassos,
naturalmente, o direito fundamental à saúde, que requer uma complexa
estrutura de serviços para o seu atendimento, está submetido à limitação da
denominada reserva do possível. Mas essa limitação, não significa a
inexigibilidade do direito e não pode ser usada como argumento contra a sua
efetividade. O direito à saúde deve ser concretizado o tanto quanto possível,
de forma progressiva, até que sua plenitude seja atingida.
Quando se considera a necessidade de prestações de cunho
emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível
da saúde ou mesmo o sacrifício da vida, da integridade física e da dignidade
humana, não há como não se reconhecer o direito à prestação reclamada.
Neste contexto, diante da aparente oposição entre a reserva do
possível e o direito fundamental à saúde, ganha importância a doutrina da
ponderação de interesses que, à luz do caso concreto e tendo em conta os
direitos e princípios conflitantes, busca a compatibilização e harmonização
dos bens em jogo.
O Estado deve garantir o direito à saúde determinando que o mesmo
providencie os recursos necessários, seja através da suplementação de
créditos orçamentários, ou ainda do remanejamento, transferência de outra
categoria menos importante.
A teoria da reserva do possível tem sido interpretada como limitação
à efetivação de direitos fundamentais sociais em face da incapacidade
10
Decisão do Tribunal Constitucional Alemão no qual pleiteava-se o acesso irrestrito ao ensino
superior em relação aos cursos de elevada procura cuja fundamentação era baseada em Lei
Fundamental germânica. O Tribunal decidiu que a garantia de vagas a todos os interessados
levaria ao sacrifício de outros serviços públicos em decorrência da onerosidade excessiva e da
escassez de recursos, em parte decorrente do período pós-guerra.
O direito fundamental à saúde
// 253
jurídica do Estado em dispor de recursos para a efetivação do direito. Essa
teoria não pode servir como barreira para a não realização dos direitos e
prestações sociais. Tão pouco pode ser utilizada como desculpa para a
omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais. Não se
pode negar a prestação do direito à saúde ou à vida sob o argumento da
indisponibilidade de recursos. (BREZOLIN, 2011).
No contexto sócio-político-econômico brasileiro e em relação aos
direitos fundamentais, principalmente no que tange ao direito à saúde, é
visível que o estado não faz tudo que está em seu alcance. Ao contrário do
que deveria certamente ser o correto, o Estado cria mecanismos com o intuito
de burlar cada vez mais a lei, os direitos prestacionais. Que a economia
brasileira não pode ser comparada às economias de primeiro mundo já
sabemos, mas certamente que isto não afasta a obrigação estatal, dos entes
administrativos, a obrigação de dotação orçamentária para o cumprimento
dos mandamentos constitucionais (OLSEN, 2008, p. 224).
Nestes termos, a reserva do possível não é nada mais do que uma
restrição fática aos direitos que demandem diminuição do erário público, isto
é, a negação do Estado a determinadas exigências ao cumprimento dos
direitos sociais significando dizer que tais direitos somente poderão ser aptos
ao cumprimento imediato quando houver recursos financeiros públicos
suficientes para tanto. É o que ocorre por exemplo nos casos de recusa do
Poder Público no fornecimento de medicamentos excepcionais11 ou de alto
custo (TAVARES, p. 02).
Nesse sentido são os disseres de Andréia Brezolin (BREZOLIN,
2011):
Não podemos negar que a saúde insere-se no mínimo existencial para uma
vida digna. Dessa forma, quando se recorre ao Judiciário para que conceda
medicamentos ou tratamentos médicos, independente do valor dos mesmos,
necessário se faz a concessão da tutela pretendida, tendo em vista que para
aquela pessoa que está demandando, este é o único meio de garantir o seu
direito ao mínimo existencial.
A partir do momento em que o cidadão brasileiro não for atendido
pelo Sistema Único de Saúde, sendo este atendimento imprescindível, o
caminho a ser percorrido será a via judicial.
Apesar das limitações do Estado este tem a obrigação de garantir o
mínimo existencial aos seus cidadãos. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet
(SARLET, 2008, p. 25):
[...] o mínimo existencial – compreendendo como todo o conjunto de
prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida
condigna, no sentido de uma vida saudável [...], tem sido identificado – por
“[...] art. 2º, inciso XXII da Lei Estadual n. 14.254, de 04 de dezembro de 2003, que são direitos
dos usuários dos serviços de saúde no Estado do Paraná “receber medicamentos básicos e
também medicamentos e equipamentos de alto custo e de qualidade, que mantenham a vida e
a saúde.”
11
254 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
alguns – como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais
sociais, núcleo este blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do
Estado e da Sociedade.
Dessa forma o direito à saúde deve qualificar como sendo um dos
direitos mínimos, de existência, de dignidade humana, sendo este
considerado como um dos direitos mais básicos do ser humano, como o
direito à vida, saúde e a liberdade.
O mínimo existencial é considerado um direito às condições mínimas
de existência humana digna que exige prestações positivas por parte do
Estado. Sabemos que a dignidade humana é o alicerce e o ponto de partida
para a efetivação de qualquer direito fundamental. Dentre outros, podemos
incluir no mínimo existencial a saúde básica. Sem ela não há o que falar em
dignidade da pessoa humana. Se o mínimo existencial for descumprido
justifica-se a intervenção do Judiciário nas políticas públicas seja para corrigir
seus rumos ou ainda implementá-las.
Assim sendo deve ser observado os ensinamentos de Susana
Graciela Cayuso (Aires CAYUSO 2001, p. 39):
Mas a eficácia do que chamamos de mínimo nesta área vital está ligada ao
problema constitucional de determinar o status e alcance que é sobre o direito
à saúde, a incorporação de ações positivas, como instrumentos para
assegurar o gozo de condições mínimas e a viabilidade da demanda por
proteção12.
O direito à saúde possui em seu objeto fatores externos dos quais
muitas vezes seus titulares não detém o completo controle como, por
exemplo, o bem estar social, as novas doenças que surgem com o passar
dos tempos, devendo dessa forma, ser considerado a natureza
multidisciplinar do atendimento prestado ao paciente que deve envolver a
cooperação de diversas áreas de atuação, tais como a médica, psicológica,
a assistência social e a jurídica.
Estado deverá garantir esse direito a um nível de vida adequado com
a condição humana respeitando os princípios fundamentais da cidadania,
dignidade da pessoa humana e valores sociais, erradicando-se a pobreza e
a marginalização, reduzindo, portanto, as desigualdades sociais.
Dessa forma, cabe ao Estado uma dupla obrigação. A obrigação de
cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e
que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios. E a efetivação de
órgãos competentes públicos ou privados através de permissões,
concessões ou convênios, para prestação de serviços públicos adequados
12
Pero La efectividad de lo que denominamos El mínimo vital basico em esta matéria esta ligada
a La problemática constitucional de determinar La categoria y El alcance que tiene respecto al
derecho a La salud, La incorporacion de acciones positivas como instrumentos para asegurar El
goce de condiciones mínimas así como La viabilidad de La demanda de protección.
O direito fundamental à saúde
// 255
que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para
um nível mínimo de vida digna da pessoa humana.
Assim, cabe ao Poder público o dever de fornecer não apenas
medicamentos, mas também os tratamentos, incluindo exames e cirurgias,
que se fizerem necessários à efetivação do direito fundamental à saúde.
14.5 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO E A RESPONSABILIDADE
POR OMISSÃO PELO ESTADO
Os direitos sociais estabelecidos pela Constituição Federal vinculam
a administração pública que tem o dever de implementá-las através da
criação de políticas públicas, planos e diretrizes tanto práticas como também
orçamentárias. São direitos fundamentais cuja eficácia impede sua extinção
mediante emenda constitucional.
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (FRISCHEISEN, p. 92) explica
que:
[...] o seu não reconhecimento possibilita aos interessados, legitimados,
demandarem judicialmente por sua implementação;
[...] a ausência de políticas públicas voltadas para a implementação dos
direitos sociais constituem atos omissivos da administração e são passíveis
de controle pelo judiciário, pois existe o juízo de inconstitucionalidade e
ilegalidade na omissão da administração;
Ensina ainda que a administração pública possui o dever de, além da
implementação das políticas públicas, de fiscalizá-las, podendo também ser
responsabilizado pela falta dessa fiscalização. É o que ocorreria por exemplo
na falta de manutenção ou observância em manter conservados os locais
adaptados às pessoas portadoras de deficiências físicas como rampas em
prédios ou meio-fio e em transportes coletivos (FRISCHEISEN, 2000, p. 92).
O Estado, portanto, poderá ser responsabilizado tanto pelos atos
comissivos como também pelos atos omissivos. É exatamente quanto a este
último que há maior dissenso na doutrina uma vez que grande parcela desta
entende que jamais poderá haver nexo causal em atos omissivos (FREITAS,
2001).
A omissão está vinculada a idéia de abstenção, o não fazer, inércia e
assim por diante. Mas este conceito é erroneamente interpretado uma vez
que o ato de omitir, segundo o dicionário da língua portuguesa seria
simplesmente o “[...] deixar de fazer ou dizer alguma coisa, não mencionar,
deixar no esquecimento, de propósito ou não, descuidar, desleixar,
negligenciar”.
É exatamente nesse sentido que o Direito Penal entende por um ato
omissivo. Nas palavras do ilustre doutrinador Heleno Claudio Fragoso
(FRAGOSO,1982, p. 41-47):
256 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
[...] omissão não é inércia, não é não-fato, não é inatividade corpórea, não é,
em suma, o simples não fazer. Mas sim não fazer algo, que o sujeito podia e
devia realizar.
[...] Só se pode saber se há omissão referindo a atividade ou inatividade
corpórea a uma norma que impõe o dever de fazer algo que não está sendo
feito e que o sujeito podia realizar.
Em resumo, a omissão sempre estará caracterizada quando a
realização de uma ação poderia e devia evitar a omissão causadora do
resultado danoso.
Qualquer falha da Administração Pública caracteriza omissão e
consequentemente a responsabilização, mesmo que o erro por exemplo
tenha ocorrido exclusivamente pela falta de assistência médica ou por
omissão deste. Caberá ao Estado a responsabilidade civil e a possibilidade
futura de ação regressiva se for o caso. A comprovação da culpa, cabe ao
Estado, se do médico ou do próprio serviço (VACCARI, 2003, p. 39).
O erro médico caracteriza-se como omissão do Poder Público
realizada através de um de seus agentes. O Estado somente não será
responsabilizado em casos em que houver excludentes da responsabilidade
que são a força maior, o caso fortuito, o estado de necessidade, a culpa da
vítima mas nunca pela omissão expressa da falta de assistência
governamental (VACCARI, 2003, p. 43).
A prestação assistencial médica e sua responsabilidade, em muitos casos,
não se determina pela existência de erro médico propriamente dito, mas
diante de omissões administrativas, que vão desde o repasse de verbas,
habilidade do administrador, estrutura física degradada, equipamentos
reduzidos até mesmo o Estado de saúde do paciente, devido a sua existência
social.
De modo diverso, Luis Robert Barroso entende que a omissão
somente será caracterizada na ausência de leis ou de atos administrativos
ou, quando descumpridos. Se há a implementação das políticas sociais,
mesmo que não abranja a todos os necessitados, para este autor, não há
legitimidade do Poder Judiciário (MARTINS, 2009, p. 13).
Em que pesem opiniões divergentes é importante observar que o
direito à saúde não é um direito absoluto, deve-se levar em consideração que
para ser efetivado há determinados parâmetros a serem seguidos de acordo
com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Assim a título de
exemplo podemos citar a situação em que um indivíduo, doente, necessita
de tratamento ou medicamentos de alto custo. Este indivíduo somente obterá
êxito se o montante pedido não colidir com os interesses dos demais
enquanto sociedade. Deve haver uma relação de igualdade perante os
demais membros da comunidade sob pena de se pôr em risco o bem comum
e a estabilidade social (MARTINS, 2009, p. 13). Trata-se apenas de uma
simples noção de justiça distributiva.
O direito fundamental à saúde
// 257
A responsabilidade do Estado pode ser considerada objetiva ou
subjetiva. Apesar de a Constituição de 1946 ter incluído a teoria da
responsabilidade objetiva do Estado, atualmente, entende-se que o elemento
“culpa” somente é previsto para assegurar a ação regressiva contra os
causadores do dano; isso no que tange à omissão do Estado (MOTA, 2011,
p. 5-8). Quanto a outros danos a teoria considerada ainda é a objetiva. Ou
seja, quando se tratar de um dano cuja responsabilidade é do Estado e
oriunda de uma omissão, a responsabilidade é subjetiva, cabendo, portanto,
a reparação do dano somente se a administração pública tinha o dever legal
de obstar o evento lesivo.
14.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito á Saúde no Brasil foi conquistado e consagrado com a
Constituição de 1988 como direito personalíssimo. Porém, esse direito
Fundamental ainda encontra-se em completo abandono.
Várias foram as tentativas do governo que muito contribuíram para o
progresso, mas mesmo assim não foram suficientes. A criação do Sistema
Único de Saúde (SUS) foi de grande proveito, mas em muitas ocasiões, não
é suficiente para atender a demanda da sociedade e mesmo quando atendida
não prestam serviços de qualidade para satisfazer os anseios da sociedade.
A Administração Pública encontra dificuldades em solucionar o
problema tendo em vista que a procura é maior do que a demanda, do que a
verba orçamentária, chegando-se a falar em Reserva do possível. Essa teoria
é oriunda da Alemanha cuja época e forma pela qual foi utilizada em nada se
aproxima à definição utilizada no Brasil. Fazer uso da reserva do possível é
desculpa para fundamentar o descaso para com a Saúde dos cidadãos
brasileiros. Deve ser vista como um bem fundamental e dar-lhe prevalência,
sendo, portanto, necessário que esta seja definida pelo menos como um
mínimo existencial, onde se não for atendida o bem que esta em risco é a
vida do usuário.
A primeira forma de buscar a solução é através de um trabalho
conjunto das três esferas do poder, o executivo, legislativo e o judiciário. Este
trabalho não pode se limitar apenas a condenação de um juiz ao Estado, a
fim de se oferecer os medicamentos necessários posto que maior parte da
sociedade não possui acesso a um advogado para fazer tais pedidos.
Destinar a verba não será suficiente em casos de condenações
judiciárias pois beneficia apenas o demandante. Deve-se especificar a forma
e a origem das verbas, aos casos isolados, quando questionados em juízo,
devem possuir decisões bem fundamentadas, magistrados mais preparados
e para tanto, a administração pública deve estar mais comprometida com as
políticas públicas e orçamentárias do governo.
A forma mais fácil de conseguir uma sociedade que necessite de
menos investimentos é oferecendo a esta sociedade uma melhor infraestrutura de Educação já que a maior parte das doenças que existem hoje no
Brasil poderia ser resolvida com uma infra-estrutura melhor para a sociedade,
258 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
água tratada, esgoto e boa alimentação para a população, e conscientizar a
sociedade da necessidade de uma boa higiene através da educação
oferecendo medidas de evitar a busca pela saúde através de trabalhos de
prevenção da sociedade a doenças, além de oferecer melhor estrutura para
Saúde quando esta for procurada, melhores profissionais, pagamentos em
dia dos profissionais da saúde melhores hospitais e melhor capacidade para
atender a população.
A Saúde deve ser vista como uma forma da sociedade exercer,
através de seus entes, a sua personalidade em busca de uma vida digna; só
é possível se falar em dignidade a partir do momento em que a cada um
possua saúde e capacidade para exercê-la, hoje, vivemos em uma era de
busca pela dignidade humana e esta dignidade só será conquistada no
momento em que a sociedade tiver condições de sobreviver, pois negando o
direto a saúde nega-se um bem maior, a vida.
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= XV =
O FIM DO REGIME DE INCAPACIDADE CIVIL
Nilson Tadeu Reis Campos Silva*
15.1 INTRODUÇÃO
O direito ocidental, com raízes deitadas no direito romano, sempre
visualizou a pessoa como centro de imputação de direitos e deveres in
abstrato, preocupando-se apenas, em regrar a capacidade civil desde a
preocupação com a higidez negocial, a fim de que eventual incapacidade não
contaminasse a validade de contratos e de atos.
No direito romano, os textos sempre distinguiram a curatela dos
furiosi (instituída pela lei das XII Tábuas) e a dos mentecaptos e fátuos e dos
dementes, a entender que a diferença entre furiosi e mente captus resulta de
que o primeiro se encontra em estado de demência, que, mesmo habitual,
importa em intermitências e intervalos lúcidos, enquanto que a do segundo
implica em um estado permanente de imbecilidade ou fraqueza das
faculdades mentais sempre do mesmo grau1.
Nomeadamente desde o código napoleônico, a busca da superação
da dificuldade de se caracterizar ato como nulo ou inexistente, quando
praticado por pessoas não dotadas de consciência e de discernimento pleno,
levou à construção de uma teoria de incapacidades em que referidas pessoas
foram rotuladas como “loucos de todo o gênero”, consoante o tratamento
adotado pelo Código Civil brasileiro de 1916, nomenclatura que só viria a ser
modificada com o advento do Código Civil vigente desde 2002.
CARVALHO F. P. B. destaca a inadequação daquela terminologia e
o seu atraso em relação a outros países, já naquela época:
Na ocasião de se discutir o projeto do Código Civil, foi o legislador desde logo
alertado de que a simples alusão a “loucos” (interditos ou não) não
compreenderia nem os casos de perturbação mental transitória (por delírio
febril etc.), nem os de parada de desenvolvimento psíquico (idiotia) ou de
*
Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1980), mestrado em
Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (2004), doutorado em Direito (Sistema
Constitucional de Garantia de Direitos) pela Instituição Toledo de Ensino (2011), pós doutorado
em Ciências Histórico-Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2014). É
professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá - UEM e advogado - Advocacia Campos
Silva. Atua principalmente nas áreas de direito constitucional, administrativo, civil, trabalhista,
empresarial e de comunicação.
1
Neste sentido, lembra CARVALHO F. P. B. (1957, p. 88-89):Assim se explica porque uma
constituição do imperador Marco Aurelio permitiu que o filho do mentecapto pudesse casar-se
“etiam non adito Principe”, mesmo sem uma permissão especial do imperador. É porque, ao
passo que o filho do furioso deve esperar o momento de lucidez paterna para lhe obter o
consentimento, o filho do mentecapto pode estar certo de que tal momento jamais ocorrerá.
264 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
degeneração psíquica ou fraqueza de espírito, que, segundo o direito francês
(art. 499, do Cód. Civil) ou italiano (art. 329), justificariam, não um regime
radical de interdição com incapacidade absoluta do agente, mas apenas um
simples conselho judiciário, ou inabilitação, com incapacidade mitigada
(CARVALHO, 1957, p. 241).
Por isso que, tão logo promulgado aquele Código, PONTES DE
MIRANDA iniciou movimento para sua reforma, tecendo ácida crítica:
A doutrina firmada pelo Código Civil, sobre antiquada, é de maus resultados
práticos. Não admite graus à incapacidade do insano: o profissional médico
dirá apenas, sem outras considerações intermediárias, se o curatelado é ou
não é incapaz (PONTES DE MIRANDA, 1947, p. 277).
É de se observar que, desde o Código Civil de 1916, estabeleceu-se
“[...] o ato do louco, interditado ou não, seria radicalmente nulo, porque sem
o uso da razão não há consentimento” (CARVALHO, 1957, p. 1044), e não
inexistente: “L’acte signé par um fou est un act qui vault comme tout
apparence, et doit faire l’objet d’une décison de justice, sin on le conteste” 2
(DE PAGE, 1948, p. 135).
Mesmo empós a vigência do Código Civil de 2002, no qual se
denominou aquelas pessoas como absolutamente ou relativamente
incapazes, as pessoas com deficiência mental historicamente sempre foram
tidas como incapazes no Brasil, sem que o direito se preocupasse em
estabelecer diferenciação quanto ao grau de incapacidade e mesmo quanto
à transitoriedade ou permanência da redução de discernimento e da
autonomia.
Daí a crítica de ROSENVALD (2012, p. 226), para quem o atual
Código Civil brasileiro “[...] não alterou o panorama técnico e essencialmente
excludente da teoria das incapacidades. No máximo percebemos sutis
mudanças no vocabulário normativo, mas nada que altere a substância do
seu discurso reducionista”.
A insuficiência da mutação terminológica é bem explicitada por
SOALHEIRO:
O Código Civil de 2002 conseguiu melhorar a terminologia empregada ao
substituir o termo “loucos de todo gênero” por “os que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática
desses atos3”, ou seja, os atos da vida civil. Como se verifica, a nova
expressão é mais genérica e propicia uma gradação da debilidade mental
entre a total ausência e o reduzido discernimento da pessoa, ainda que não
se tenha atualizado a nomenclatura conforme apresentado pelo CID 10 –
2 Tradução nossa: O ato assinado por um louco é um ato em que há e uma aparência de
validade, cuja existência só pode ser desfeita por decisão judicial.
3
Artigo 3º, inciso II, do Código Civil de 2002.
O fim do regime de incapacidade civil
// 265
“transtornos mentais e do comportamento”4. O novo Código Civil não trouxe
nenhuma reflexão quanto ao instituto da interdição. Continuou a rotular as
pessoas em “absolutamente ou relativamente incapazes”, sem, contudo,
averiguar as peculiaridades de cada indivíduo, a fim de preservar, sempre
que possível, a autonomia privada e, por via de consequência, o
desenvolvimento da própria personalidade.
Mercê de ter sido a dignidade humana erigida à conditio de base
fundante da própria República brasileira, tornou-se imperiosa a tutela de
quaisquer vulnerabilidades das pessoas para preservar aquela dignidade, em
obediência mesmo ao princípio da igualdade material.
A pessoalidade, na contemporaneidade, é visualizada como meio do
constructo da identidade individual, processo de autodeterminação
contextualizado em universo intersubjetivo, forma autônoma que cada
indivíduo engendra, ontologicamente imbricada com a alteridade, na dicção
de MOUREIRA:
[...] processo de construção da identidade de um ser livre e autônomo que se
reconhece a si mesmo através do outro (alter), em um constante processo
de autodeterminação de si e de reconhecimento de si pelo outro e vice-versa.
Até mesmo em se tratando de indivíduos humanos com dificuldades ou
incapacidade de afirmação de uma identidade esse processo de
reconhecimento é presente, uma vez que o reconhecimento de si pelo outro
se concretiza enquanto uma realidade intrínseca ao próprio convívio
(MOUREIRA, 2013, p. 48).
Logo, é forçoso compreender que a construção da pessoalidade
sucede fora do Direito, posto que não é ele quem a cria, limitando-se a
conformá-la desde a realidade preexistente.
A fortiori, tampouco pode o Direito criar incapacidade: esta é o que
existe ou o que inexiste (porque foi gestado pela pessoa ou deixou de ser
gestado), restando ao Direito reconhecer sua existência ou não, para aí
intervir, conferindo a personalidade jurídica e classificando sua capacidade.
Por isso que CARVALHO A. enfatiza a natureza ontológica da
capacidade:
[...] a capacidade de direito inere necessariamente a toda pessoa, qualquer
que seja a sua idade ou seu estado de saúde. A capacidade de fato, isto é,
a capacidade para exercer pessoalmente os atos da vida civil, é que pode
sofrer limitação oriunda da idade e do estado de saúde (1980, p. 21).
Daí ter-se a capacidade civil classificada em capacidade de direito
(que confere às pessoas naturais aptidão para aquisição de direitos e para
4 CID – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a
Saúde – do inglês International Statistical Classification of Diseases and Related Health
Problems.
266 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
contraírem deveres) e capacidade de fato (aptidão conferida às mesmas
pessoas para praticarem, pessoalmente, atos da vida civil).
Em ambas as espécies, tem-se de forma inarredável, a autonomia da
pessoa e, para as hipóteses em que lhe é impossível o exercício, os institutos
da representação e da assistência, a serem utilizados consoante o grau de
incapacidade ou de inaptidão para a prática dos atos da vida civil – que
podem derivar de ser a incapacidade absoluta ou relativa.
Na míngua de uma teoria de incapacidades adequada à tutela das
pessoas com deficiência mental no ordenamento jurídico brasileiro, a defesa
dos interesses dessas pessoas vem sendo possibilitada através do
acionamento do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de ações de tônus
afirmativo, máxime através dos procedimentos voltados a instrumentalizar a
tutela e a curatela.
Ocorre que o Código de Processo Civil brasileiro, editado na vigência
do Código Comercial de 1850 e do Código Civil de 1916, não obstante ter
sofrido inúmeras microrreformas nas últimas décadas, inclusive se
adequando ao Código Civil de 2002, manteve, incólumes e defasados,
aqueles procedimentos, nos Capítulos VIII (da curatela dos interditos) e IX
(Das disposições comuns à tutela e à curatela), e no Título II (dos
procedimentos especiais de jurisdição voluntária), dispositivos que não foram
merecedores de uma única alteração nos últimos quarenta anos.
Esses procedimentos jurisdicionais mantiveram os institutos da
interdição e da curatela, sob a égide não apenas daquela vigente na década
de setenta, mas da que vigorava na década dezesseis do século XX,
preservando intocada a prevalência do código do Ter sobre o código do Ser,
fazendo contínua a reprodução das desigualdades lesivas à dignidade da
pessoa humana, prestando-se mais à exclusão do que a proteção das
pessoas com deficiência mental.
O novo Código de Processo Civil, através da Lei n° 13.105, de 16 de
março de 2015 introduziu, ainda que timidamente, a previsão de serem
aplicadas medidas ajustadas a fim de se evitar a imposição de restrições
indevidas à autonomia do interditado ou curatelado, mantendo-se, contudo, a
incapacidade civil absoluta aos interditados por enfermidade ou deficiência
mental.
Contudo, antes mesmo da entrada em vigência do novo Código de
Processo Civil foi editada a Lei 13.146, de 06 de julho de 2015, instituindo a
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa Com Deficiência (Estatuto da Pessoa
com Deficiência), revogando o regime das incapacidades civis preconizado
pelo Código Civil, mantendo o status de incapaz apenas para os ébrios
habituais e os viciados em tóxicos e para aqueles que, por causa transitória
ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.
Tem-se, pois, verdadeira distonia normativa acerca da autonomia das
pessoas com deficiência, uma vez que, quando da entrada em vigência do
seu Estatuto, em janeiro de 2016, ter-se-á uma norma agonista à restrição
daquela autonomia, porém o advento da entrada em vigor do novo Código de
O fim do regime de incapacidade civil
// 267
Processo Civil, em março de 2016, provocará uma situação antagonista à
mesma autonomia.
A reflexão pretendida neste escorço, sobre demonstrar essa distonia,
visa incitar a discussão de propostas mais eficazes para sua eliminação,
desde a premissa do reconhecimento da diversidade e da alteridade até a
edificação de uma tutela que possa proteger as pessoas com deficiência
mental sem descurar do fundamental respeito à dignidade humana.
15.2 DA EXCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA MENTAL
A gnose de normas jurídicas que busquem tutelar as pessoas com
deficiência mental perpassa, necessariamente, pela análise da questão de
igualdade de oportunidades que, ainda que se formalmente consolidada no
plano jurídico, resta extraordinariamente controvertida nas perspectivas
ideológica e filosófica.
É que essas pessoas sempre receberam – e continuam a receber –
tratamentos lesivos às suas dignidades, excluindo-as do convívio social e
negando-lhes a autonomia, seja para atender interesses das famílias ou do
Estado.
Se na Hélade, a loucura era consequência de relacionamento
homem-deuses (STONE, 1999, p. 32), na Antiguidade era associada a
desequilíbrios entre os elementos racionais e irracionais da alma, como
afirmavam Platão e Aristóteles, sendo, durante a Idade Média, associada a
problema espiritual, ou seja, a possessões demoníacas:
O que era entendido como estados mentais anormais baseado em estados
humorais ou lesões anatômicas foi reformulado na linguagem dos padres e
astrólogos. Fenômenos mentais aberrantes eram agora explicados em
termos quase morais envolvendo referências a espíritos maus, fantasmas,
íncubos e súcubos e assim por diante (STONE, 1999, p. 32).
Até o século XVIII, a loucura foi definida por sua dimensão negativa,
desde a lógica binária (verdade e erro, mundo e fantasma, ser e não-ser), tida
como desatino oposto à razão, sendo, a partir do século XIX, visualizada
segundo a estrutura antropológica de três termos (homem, loucura e
verdade): o louco passa a ser definido como alienado, sendo ao mesmo
tempo a verdade e o seu contrário.
Esse debruar de olhos no retrovisor da História permite mostrar que
a doença mental não diferencia reis de mendigos. Antes, os iguala na miséria
patológica e na excludente discriminação. O que diferencia doentes mentais,
ricos e pobres, ainda neste século XXI, são seus patrimônios materiais
propiciatórios de obterem melhor ou pior tratamento e cuidado.
Por isso que, em um mundo cada vez mais dominado pelo código
econômico do Ter e contaminado pela síndrome do bem-estar, a igualdade
formal, propiciada pela linguagem dos direitos, não se converte em acesso
igualitário ao Estado de direito ou à aplicação imparcial das leis e dos
interesses.
268 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
É que é possível ter-se direitos, mas não se possuir recursos
suficientes para exigir sua implementação, como anota VIEIRA (2007, p. 2952), daí porque a exclusão social, propiciada principalmente (ou seja: não só)
pela enfermidade, gera invisibilidade social, imunizando os privilegiados e
demonizando os que se atrevem a contestar o sistema.
O primeiro significado do princípio da igualdade incide precisamente
na plena equiparação jurídica dentre todos os membros da comunidade
política, sendo vedadas pela cláusula de igualdade as discriminações (na lei
ou frente a ela) fundamentadas em características pessoais do indivíduo,
devendo ser consideradas as distinções juridicamente relevantes tão
somente na medida em que se apliquem por igual em todos os casos
(LÁZARO, 2004, p. 183 e ss.).
As distintas concepções da dignidade da pessoa humana defluem
das diversas formas de conexões, vinculações e identificações do Ser no
mundo – o que implica situá-lo em posições sociais diferenciadas, posto que
os indivíduos são diferentes e ocupam lugares diferentes no mundo.
A constatação de serem os indivíduos diferentes leva, ainda, ao
necessário entendimento de que o Ser humano se compreende melhor
olhando-se no Outro e respeitando-se as diferenças de ambos, por isso que
LÉVINAS (2010, p. 58) enfatiza a imprescindibilidade do respeito, desde a
noção de que “Nós não é o plural de Eu”, presente a alteridade ontológica
como uma relação ética cuja premissa é a solidariedade.
É mister que se identifiquem as pessoas, ou grupos de pessoas que,
seja por exclusão social, seja por discriminação, necessitam de tutela
diferenciada na busca de se efetivar a ideia de igualdade e possibilitar,
reconhecida e respeitada a diversidade, a inclusão, posto que a incompletude
da proteção jurídica da dignidade humana radica, a rigor, nas relações de
poder que permitem ou forçam opressões e exclusões.
Impende, ainda, distinguir as pessoas que integram os grupos
vulneráveis, grupamentos de pessoas que, não obstante terem reconhecido
seu status de cidadania, são fragilizados na proteção de seus direitos e,
assim, sofrem constantes violações de sua dignidade: são, por assim dizer,
tidos como invisíveis para a sociedade, tão baixa é a densidade efetiva dessa
tutela.
É o que sucede com as pessoas com deficiência mental,
estigmatizados genericamente como loucos, fenômeno que não está ligado à
desinformação social ou acadêmica, mas, sim, a uma deformação cognitiva,
razão pela qual a disseminação da discriminação de fato ocorre em todos os
estratos sociais, diferindo apenas quanto à repercussão, como advertia
FOUCAULT (2010, p. 6-7) quanto a cabeças alienadas assumindo o papel
dantes pertencente aos portadores de hanseníase.
Se no século XVII a internação de doentes mentais era tema de
polícia, e não de médicos (estes eram soberanos no tema, sim, mas após o
internamento), neste século XXI a seara continua a mesma: mais assunto
policial do que médico, como se constata pelos noticiários divulgando prisões
de pais que, para trabalharem, amarram seus filhos doentes mentais com
O fim do regime de incapacidade civil
// 269
correntes, para que não atentem contra a integridade física de outros e de si
próprios.
A análise da história das formas de proteção jurídica para as pessoas
com deficiência mental é o instrumento viabilizador do aperfeiçoamento da
tutela, por permitir a explicitação de acertos e desacertos das políticas
públicas sobre saúde mental, uma vez que as instituições psiquiátricas como
loci para os cuidados daquelas pessoas só surgiram no século XVIII.
Os tratamentos dos doentes mentais sempre configuraram exclusão,
reclusão e asilamento, mercê da não aceitação da diferença. Assim, a
hospitalização e o asilamento do doente mental sempre visaram a atender a
segurança da ordem e da moral pública e não tutelar o indivíduo 5.
Essa situação perdurou no Brasil até o final do século XX, quando
ocorreu a chamada reforma psiquiátrica, desencadeada com inspiração no
novel modelo psiquiátrico italiano, buscando dar ao paciente alternativas
inclusivas de tratamento e, especialmente, com foco na sua visibilidade
social, a contrariar o modelo hospitalocêntrico, com a sedutora proposta da
desinstitucionalização transferidora do locus hospital para o da cidade, como
novo ethos dos cuidados com a doença mental.
Mercê da aludida reforma, em 2001 foi editada no Brasil a Lei n°
10.216/2001, determinando inclusive a extinção dos manicômios e a criação
de rede federal de centros conectados com hospitais gerais, norma cujos
efeitos concretos ainda não se fizeram acontecer na maioria dos municípios
brasileiros, embora preconizasse como “[...] consequência natural [...] a
crescente diminuição, pelo SUS, do número de leitos psiquiátricos. Como
forma de substituição, utiliza-se dos CAPS6, uma espécie de hospital-dia,
onde o paciente passa o dia em atividade e retorna para casa depois” (LIMA;
SÁ, 2009, p.85).
Cabe colacionar a percuciente crítica de SOALHEIRO:
A crítica que se faz é pelo fato de haver níveis diferentes de complexidade
das doenças mentais, havendo casos leves e outros não, sendo que alguns
pacientes se adaptariam aos modelos CAPS e outros realmente
necessitariam de uma internação nos hospitais psiquiátricos, vez que o alto
grau do transtorno pode impossibilitar o tratamento fora dos hospitais ou a
própria família pode não ter condições de cuidar do paciente. “Em razão
disso, muitos pacientes em surto passam a não ter tratamento adequado e,
se a família não tem condições financeiras razoáveis, podem perambular
pelas ruas como mendigos, ante a impossibilidade de internação (LIMA; SÁ,
2009, p. 85).
As políticas públicas desenhadas pela Lei n° 10.216/2001 não
tiveram seus objetivos sedimentados, mesmo decorridos mais de uma
década de sua promulgação, quedando mais ao efeito simbólico do que ao
real efeito pretendido, simbolismo que redunda na privatização da doença
5
Neste sentido, confira-se: O Bicho de Sete Cabeças, filme de 2000, dirigido por Laís Bodanzky;
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro, São Paulo: Geração Editorial, 2013.
6
Centro de Atenção Psicossocial.
270 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
mental, cenário em que os de maiores posses internam seus doentes mentais
em clínicas privadas, enquanto que os despossuídos de recursos materiais,
à míngua de leitos na rede pública, ou os agrilhoam em suas próprias casas,
ou os abandonam a engrossar o caudal dos sem teto, ambas as hipóteses
que, em histórica volta elíptica, os remete às prisões, ainda que sob o
eufemismo de medidas de segurança.
Dentre miríades, pode ser apontada como razão para a falta de
efetividade das políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência
mental, o desconhecimento pelo Estado brasileiro das evidências de ser a
evolução das doenças determinada pelo estatuto socioeconômico do
indivíduo (SILVA, 2012, p. 132).
As relações entre pobreza e deficiência, que no pertinente à
deficiência mental são exacerbadas, implicação na criação e na permanência
de um verdadeiro círculo vicioso composto por reduzida participação nas
tomadas de decisão e negação de direitos políticos e civis; exclusão social e
cultural e estigmatização; negação de oportunidades para o desenvolvimento
humano, econômico e social; vulnerabilidade à pobreza e à doença;
deficiência; miséria.
Esse círculo vicioso, no caso das pessoas com deficiência mental,
em quaisquer graus, produz consequências muito mais severas àquelas
pessoas que na maioria dos sistemas jurídicos são tidas como absolutamente
incapazes e que, assim estigmatizadas, são completamente excluídas
socialmente.
A proximidade de vulnerabilidade gemelar e marginal entre pessoas
com doenças mental, prostitutas, criminosos, e viciados em tóxicos, se não
se originou neste século, tem sido desde o século XX objeto do direito
internacional que se vem transmudando em parâmetro de validade das
constituições nacionais, com ruptura do paradigma da soberania do poder
constituinte e da autonomia dos Estados em sede de direitos humanos,
transitando a visagem de Hobbes acerca da soberania centrada no Estado
para a de Kant, ancorada na soberania centrada na cidadania universal.
Essa mutação conceitual que torna a soberania estatal porosa e
permeável foi fundamental para a implantação da reforma psiquiátrica no
Brasil, imposta pela condenação do Estado brasileiro em 2006 pela Corte
Interamericana dos Direitos Humanos no caso Damião Ximenes Lopes
versus Brasil7.
Essa condenação levou a uma modificação atitudinal dos governos
brasileiros em relação ao tratamento dos doentes mentais e à visibilidade
social destes, como pode ser exemplificado pela escolha da obra de Arthur
7
Caso 12237 julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial da
Organização dos Estados Americanos – OEA. A morte de Damião Ximenes Lopes ocorreu dentro
de uma instituição psiquiátrica credenciada pelo Governo brasileiro.
O fim do regime de incapacidade civil
// 271
Bispo do Rosário para representar oficialmente como representante do
patrimônio cultural brasileiro em exposições na Europa8.
Subsiste, porém, a visão histórica de ser a loucura prevalentemente
caso de polícia, cuja solução é a segregação, daí porque, mercê de ser a
Constituição da República totalmente omissa quanto à inimputabilidade
psíquica e, de consequência, aos limites das medidas restritivas, ter-se
autorizada a conclusão de serem as medidas de segurança impostas aos
doentes mentais que cometerem crimes sanções perpétuas, ante o Código
Penal brasileiro não prever limitação temporal como o faz em relação às
penas.
Mesmo com a edição da lei específica ao tratamento de doentes
mentais, tal cenário desumano se manteve incólume, sendo que o Código
Penal manteve a previsão de formas de cumprimento em meio fechado
(internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico) além da
previsão de cumprimento em meio aberto (sujeição a tratamento
ambulatorial), conforme a gravidade do delito e a situação pessoal do sujeito.
Ainda que se ressalte que o Código Penal brasileiro determine que o
recolhimento do interno deva ser realizado em estabelecimento com
características hospitalares, hipóteses que autoriza vislumbrar alguma
harmonia com os preceitos da reforma antimanicomial, o tratamento jurídico
é discrepante quando se compara a execução das sanções restritivas à
liberdade (penas e medidas de segurança aplicáveis a imputáveis e a doentes
mentais).
Sob outra ótica, e ainda sob os influxos daquela condenação
internacional, mais do que como fruto de ações do movimento de luta
antimanicomial e da reforma psiquiátrica, é que foi aprovado o Estatuto da
pessoa com deficiência.
15.3 DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
A existência de cláusula geral de tutela da pessoa humana no texto
constitucional brasileiro, ainda não se mostra suficiente para ensejar um
amparo adequado às pessoas com deficiência mental no Brasil, a realçar o
componente patológico da judicialização reconhecido e criticado por Barroso
(2010, p. 15).
Mesmo sendo pacífica, na doutrina e na jurisprudência, a premissa
de ser a Constituição da República dotada de força normativa, logo, não
sendo suas normas meramente programáticas, remanesce, todavia, o caráter
simbólico da legislação infraconstitucional, máxime quando a opção política
do legislador se volta à construção de leis especiais para formatar micros
sistemas jurídicos.
A edição de leis especiais, no mais das vezes, implica em mero jogo
de cena política, voltado, como aponta Campos Silva (2012, p. 142) não
8
Arthur Bispo do Rosário, diagnosticado como esquizofrênico e paranóico, viveu recluso de 1939
até sua morte em 1989 no Rio de Janeiro, vindo a ser reconhecido como artista plástico e assim
apresentado em 2012 na Bienal de Veneza, Itália e, de 2012 a 2013, em Lisboa, Portugal.
272 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
exatamente a viabilizar resultados jurídicos efetivos, mas a refrear pressões
políticas e sociais de grupos com interesses específicos, o que torna comum
a existência de legislações redundantes, estatutos desnecessários e
meramente simbólicos, que se prestam como guetos normativos.
Os direitos sociais foram gestados para superar as deficiências e
omissões das liberdades individuais (CONTRERAS PELÁEZ, 1994, p. 49),
estando intimamente ligados ao Estado social que, por seu turno, objetiva
suprir as insuficiências do Estado liberal, daí o desenho cambiante do Estado
na História, conforme as expectativas da sociedade quanto à satisfação dos
direitos fundamentais que surgiram como resposta à ameaça da miséria, da
ignorância e da dependência.
É o Homem, real, concreto e vinculado às circunstâncias culturais,
econômicas e históricas, isto é, o Homem relacionado frente a seus
semelhantes, quem detém a titularidade de tais direitos, uma vez que, na
dicção de Herrera Flores (1989, p. 78) “[...] as necessidades são sempre
sentidas individualmente, embora sejam satisfeitas socialmente”.
Assim, a edição da Lei n° 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência, igualmente nomeada como Estatuto da Pessoa com
Deficiência, publicada com vacatio legis de 180 dias, não obstante trazer
diversas garantias àquelas pessoas, ao modificar o regime das incapacidades
civis do Código Civil, sem estabelecer o necessário gradiente,
equivocadamente nivela todas as pessoas com deficiência às pessoas
dotadas de capacidade plena.
Ao pretender provocar a agonia da restrição à autonomia das
pessoas com deficiência, perdeu o legislador brasileiro, pois, a oportunidade
de se inspirar naqueles modelos jurídicos como o da Espanha, cujo Código
Civil distingue incapacitados (aqueles que padecem de uma enfermidade ou
deficiência contínua que os impede de se autogovernar) de pessoas com
incapacidade (aqueles que apresentam uma deficiência física, psíquica ou
sensorial, que lhes impede ou lhes dificulta sua integração social, cujo grau
de diminuição de capacidade justifica proteção jurídica específica) e de
pessoas com dependência (as que necessitam de auxílio para realizar as
atividades diárias, como se vestir, se alimentar ou negociar).
Essa percepção da existência de uma gradação dos níveis
qualitativos de capacidade e de autonomia, a ensejar e a exigir especificidade
de proteção jurídica como ressalta PEREÑA VICENTE (2006, p. 33), foi
totalmente desconhecida ou olvidada pelo nóvel estatuto das pessoas com
deficiência que neste ponto colide com a previsão legal de divisão de
internações em três categorias: as voluntárias, nas quais existe o
consentimento do paciente; as involuntárias, sem a anuência do paciente e
por solicitação de terceiro; e as compulsórias, que são determinadas
judicialmente, sendo estas duas últimas controladas pelo Ministério Público,
que deve ser notificado das mesmas em até 72 horas após sua ocorrência
(Lei n° 10.216/2001).
A pretensão de tornar como regra a garantia da capacidade legal por
parte das pessoas com deficiência mental, além de derivar de visão
O fim do regime de incapacidade civil
// 273
cartesiana e reducionista que vislumbra a incapacidade como mera categoria
jurídica, não é sequer atenuada pela previsão de se ter a curatela
“proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso” tendo como
duração “o menor tempo possível”9, uma vez que ignora a existência de
pessoas com total incapacidade para exercitar seus direitos.
A inversão da exceção, verificável em caso concreto, para regra
geral, só faz tornar a pretensa tutela das pessoas com deficiência em norma
hipertrófica.
Por igual, olvidou o legislador brasileiro o fato de o Código Civil só
conceber como tutor pessoa natural, o mesmo fazendo com relação à
curatela, o que pode ser compreendido mercê da prevalência, ainda neste
século XXI, do culto ao individualismo e ao patrimonialismo, impregnado no
sistema jurídico brasileiro, ainda que em descompasso com o sopro
socializante iniciado na Constituição de 1934 e melhorado pela Constituição
Federal de 1988 e com o primado dos direitos humanos iniciado após a
Segunda Guerra Mundial.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência só prevê a submissão da
pessoa com deficiência à curatela, assim:
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de
sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela,
conforme a lei.
§ 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada
de decisão apoiada.
§ 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida
protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de
cada caso, e durará o menor tempo possível.
O mencionado culto ao patrimonialismo, logo, a submissão ao código
do Ter em detrimento do código do Ser, se revela nos limites impostos à
curatela:
Art. 86. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de
natureza patrimonial e negocial.
§ 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à
sexualidade, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
Por óbvio que não se pode negar às pessoas com deficiência mental
os direitos fundamentais elencados no parágrafo primeiro da norma
transcrita, porém o absolutismo da restrição torna, na prática, tabula rasa o
próprio instituto da curatela, traindo as origens semântica e história do
instituto: a palavra curatela provém de cura, mais o sufixo do verbo curare,
que significa velar, olhar, cuidar.
9
Art. 84, § 4°, Lei n° 13.146/2015.
274 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Daí porque, no direito romano, a curatela tinha como objetivo colocar
sob a sua égide as pessoas loucas (cura furiosi), pródigas (cura prodigi) e
menores de 25 anos (cura minorum).
Por isso, não obstante o Estatuto da Pessoa com Deficiência
modificar o art. 1.767 do Código Civil para sujeitar à curatela apenas “[...]
aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderam exprimir sua
vontade” e “[...] os ébrios habituais e os viciados em tóxicos”, o micro sistema
jurídico que ele desenha impede a tutela mediante a instituição da curatela
civil às pessoas com deficiência mental incapacitante.
É de se louvar a intenção de se evitar o desnudamento da dignidade
da pessoa humana que um estigmatizante decreto de interdição da
autonomia pode suscitar, porém a solução legislativa trazida pelo Estatuto
sob análise não é a mais adequada, até porque o Poder Judiciário brasileiro
de há muito tem dado certo temperamento à rigidez normativa do ainda
vigente Código Civil para moldar suas decisões nos casos concretos a fim de
evitar a chamada morte civil, restringindo a extensão da interdição ao
minimamente necessário à efetiva proteção do curatelado.
Mesmo não sendo desejável a priori dissociar o que se faz para todas
as pessoas em matéria de proteção jurídica, cujas normas protetivas de
direitos e liberdades é o fundamento jurídico das pessoas com deficiência, é
mister que certas disposições específicas possam velar pela preservação da
legalidade e do respeito dos direitos e das liberdades daqueles cujo estado,
segundo critério funcional e médico, exige esta proteção.
O direito deve combater as consequências negativas das
desigualdades funcionais, a fim de conservar ou fazer voltar a dar a todo
cidadão e à pessoa com deficiência mental em especial, o seu lugar na
cidade, o respeito dos seus direitos e das suas liberdades, observada sua
condição particularmente vulnerável.
Sob outro prisma, a busca de preservação da dignidade da pessoa
humana também às pessoas com deficiência mental, deveria ser intentada
com a adoção da Doutrina da Alternativa Menos Restritiva, criada pela
Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte em 1960 no caso
Shelton v. Tucker e elastecida no caso Lake v. C Cameron em 1966, quando
se assentou o reconhecimento do papel proativo do Poder Judiciário na
concretização de decisão por meio de via alternativa de tratamento ou de
cuidado, formada de acordo com as exigências dos interesses da pessoa e
da sociedade, não indo além do que seja necessário para a proteção da
pessoa.
Essa ideia de intervenção mínima ao nível da restrição dos direitos
fundamentais foi acolhida pelo ordenamento jurídico português (VÍTOR,
2005, p. 186), e como assinala Campos Silva (2012, p. 204 e 207), também
no sistema jurídico italiano através da Lei 6, de 09.01.2004 que instituiu a
figura da amministrazione di sostegno, similar à da la sauvergarde de justice
instituída pela Lei francesa 685, de 03.01.1968 que adotada como premissa
a noção de auxílio não invasivo ao invés da ideia de privação de direitos para
O fim do regime de incapacidade civil
// 275
os três regimes de proteção que preconiza: salvaguarda da justiça; tutela; e
curatela.
Por derradeiro, nos limites desta reflexão, o Estatuto da Pessoa com
Deficiência não enfrenta, como devido, tessitura fática construída pela práxis
forense, de se nomear como curador de pessoa com deficiência a pessoa do
diretor da instituição na qual eventualmente aquele curatelado esteja
institucionalizado.
Com tal omissão, perdeu o legislador a chance de avançar no
constructo de um instituto mais adequado à contemporaneidade, no qual se
possa conferir à curadoria também a pessoa jurídica, como meio de se
emprestar maior efetividade à tutela das pessoas com deficiência.
15.4 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n° 13.105, de 16 de
março de 2015, cuja vacatio legis expira em março de 2016, ou seja, pouco
mais de dois meses após a entrada em vigência do Estatuto da Pessoa com
Deficiência (a ocorrer em janeiro de 2016), se apresenta como verdadeira
antagonia à irrestrita autonomia preconizada pelo Estatuto, na exata medida
em que prevê expressamente ser a pessoa com deficiência mental incapaz:
Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as
incapazes, impedidas ou suspeitas.
§ 1° São incapazes:
I - o interdito por enfermidade ou deficiência mental;
II - o que, acometido por enfermidade ou retardamento mental, ao tempo em
que ocorreram os fatos, não podia discerni-los, ou, ao tempo em que deve
depor, não está habilitado a transmitir as percepções;
Mais coerente com o instituto da curatela, e melhor adequada à tutela
da pessoa com deficiência mental do que o modelo preconizado pelo Estatuto
da Pessoa com Deficiência, o novo Código de Processo Civil não se limita à
proteção dos aspectos patrimoniais, ainda que os enfatize:
Art. 757. A autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do
incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado
ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais
conveniente aos interesses do incapaz.
Se louvável a ressalva do arbítrio judicial acerca da adoção de
solução mais conveniente aos interesses do curatelado, é de se criticar a
inexplicável exclusão, pelo novo Código de Processo Civil, da Defensoria
Pública dentre os legitimados para promoção da interdição, uma vez presente
expressa previsão do cometimento dessa função institucional na Lei
Complementar 80, de 1994, com a redação dada pela Lei Complementar 132,
de 2009, àquela Instituição, responsável também pela defesa dos interesses
das pessoas vulneráveis.
276 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Da mesma sorte, as críticas endereçadas ao Estatuto da Pessoa com
Deficiência no que pertine ao não avanço em relação à adoção das doutrinas
e de institutos contemporâneos já introduzidos em outros países, também se
prestam à reflexão sobre a defasagem de efetividade que o novo Código de
Processo Civil apresenta.
A atrofia da tutela processual também exsurge da não autorização
para que a própria pessoa com deficiência possa requerer sua própria
interdição, ainda que pelo questionável modelo de tomada de decisão
apoiada previsto pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência que preconiza ao
próprio interessado a eleição de no mínimo duas pessoas para lhe prestar
apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil.
Ainda que não raro se operem interdições desnecessárias, como
alertado por Andrighi (2005) o fato de ser expressivo o percentual da
população brasileira acometido de incapacidade devido a alguma
enfermidade mental, física ou senil, tem-se que esse contingente
populacional estaria à margem da sociedade, não fora o instituto da curatela
a lhes possibilitar o agir na ordem jurídica.
A ausência de visão sistêmica, que se infere de tais críticas, impede
que a própria compreensão da pessoa com doença mental, cujo estado, se
não permite negligenciar a predominância do olhar médico-cientifico (sob
pena de, por ausência de diagnóstico, sonegar-se um tratamento oportuno),
tampouco prescinde de vê-la na sua integralidade como pessoa, o que leva
à discriminação e à exclusão social.
Sob este prisma, e em especial no tocante às pessoas com
deficiência mental, o conservadorismo encampado pelo novo Código de
Processo Civil melhor atende à efetividade da tutela, mesmo que antagônico
à amplitude da proposta emancipatória do Estatuto da Pessoa com
Deficiência.
15.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reflexão ora ofertada à discussão procura demonstrar que a farta
positivação dos direitos fundamentais e consequente institucionalização das
normas tutelares das pessoas com deficiência – e aqui se podem incluir as
relativas também às pessoas integrantes de minorias e de grupos
vulneráveis, se representa, de um lado, um inegável avanço, de outro não
resolve a problemática que envolve essas pessoas.
A Organização das Nações Unidas adotou duas declarações
pioneiras quanto a questão do deficiente: a Declaração dos Direitos do
Deficiente Mental (1971), com ênfase à igualdade de direitos e de acesso a
meios de desenvolvimento, e a Declaração dos Direitos das Pessoas
Deficientes (1975) em que, pela primeira vez, se definiu pessoa deficiente
como sendo “[...] qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total
ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal,
em decorrência de uma deficiência , congênita ou não , em suas capacidades
físicas e mentais”.
O fim do regime de incapacidade civil
// 277
A questão, como muitas no Brasil, não é a existência de leis. O
problema que aflige as minorias, os grupos vulneráveis e, em especial, as
pessoas com deficiência, radica na falta de eficácia das leis existentes, desde
o não aculturamento no ethos do direito e do respeito à diferença.
O Ser, quando diferente da maioria, é um ser invisível, não
reconhecido pela sociedade e pelo Estado, sempre que não é viabilizada ou
é cerceada sua organização em grupos ou negada sua possibilidade de
apresentar seus interesses específicos e de participar da tomada de decisões
sobre eles.
As providências e os mecanismos adotados pelo Brasil para a defesa
das pessoas com deficiência, máxime a mental, não têm se mostrado aptos
a assegurar a participação de seus integrantes, nem no processo decisório,
nem na efetivação dos seus direitos.
Para se exemplificar essa inaptidão, basta lembrar que não há, no
Brasil estímulo à integração dos integrantes de grupos vulneráveis dentro do
sistema político, sequer no dos partidos políticos, embora estudos apontem
isso como sendo uma das alternativas positivas para que seja obtida
efetividade na sua proteção.
Mesmo tentativas desse tipo de estímulo, como sucede com a
legislação sanitária que no Brasil estabelecem a reforma psiquiátrica, e com
o Estatuto da Pessoa com Deficiência, não se prestam a conferir efetividade
na proteção às pessoas com deficiência mental e ou com algum distúrbio
psíquico.
Nos Estados em que as sociedades eram bastante homogêneas,
como ocorria na Idade Média, construiu-se um mecanismo lógico para
solucionar conflitos políticos: a regra da maioria, que pressupunha homens
livres, iguais, e com as mesmas necessidades, e legitimava decisões
(políticas e jurídicas) decorrentes da sua estrita observância.
Com o aparecimento (ou reconhecimento) da existência de minorias
desassistidas mesmo em sociedades plurais, aquela regra mostrou-se
ineficaz para proteger as minorias contra tratamentos discriminatórios, e
tornou-se necessário o estabelecimento de comunicação dentre os diversos
estamentos sociais para viabilizar não só o compartilhamento do poder, mas
a própria paz social derivada do respeito à individualidade humana.
Ressalte-se que parece ser cabível ao sistema brasileiro a
advertência formulada ao sistema estadunidense por Ackerman (2007, p.
209) quanto ao perigo de uma excessiva ruptura político-social que pode ser
propiciada pelo radical apego ao pluralismo que leva à degeneração em pura
apologia na busca de interesses suprimidos.
Tal sucede porque as dificuldades de implementação de medidas
protetivas de grupos vulneráveis, na área da saúde mental, no Brasil, derivam
do desconhecimento sobre o sofrimento psíquico, sendo que a história da
vulnerabilidade de suas vítimas pode ser fundamental para o enfrentamento
de estigmas e preconceitos ligados a concepções ainda vigentes, que as
vinculam à periculosidade e à impossibilidade de convivência social, de molde
278 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
a propiciar a humanização das políticas públicas voltadas à sua proteção
sem, todavia, hipertrofiar essa tutela.
Os aspectos examinados nos limites deste estudo apontam que o
intervir em determinantes da saúde não podem se circunscrever à esfera
jurídica: antes, exige o estabelecimento de pontes de diálogos que
aproximem os diversos setores da sociedade, unindo sinergicamente saberes
acadêmicos e empíricos, para que se possa formatar políticas públicas que
atendam às necessidades das pessoas com doença mental e, por igual,
instrumentos garantes de sua implementação, translação essa crucial à
efetividade de uma tutela adequada.
A tutela das pessoas com doença mental é, como visto, uma
incompletude, social e jurídica ainda, daí não ser possível concluir este
estudo de forma definitiva e, sim, endereça-lo a alimentar a polêmica que, em
última análise, é sobre o dever jurídico de solidariedade.
Para tanto, faz-se necessário reconhecer o direito a ser diferente –
ainda que – e principalmente – se em decorrência de doença mental, pois a
diferença não pode inferiorizar, e não deve discrepar do direito à igualdade.
Ao contrário, deve ir além, a fim de ser reconhecida como direito à
diversidade.
Até como consequência desse reconhecimento, deve-se dar relevo
ao também direito à tolerância, condição indispensável à defesa da ontológica
alteridade, representativa de necessário plus à solidariedade e à diversidade,
para que haja a efetividade desses direitos universais e inerentes à pessoa
humana.
A incapacidade deve ser considerada casuisticamente para se aferir
a possibilidade ou não de gradação dos efeitos da curatela dos
absolutamente incapazes, a fim de se manter, na hipótese de constatação de
ausência total de discernimento, a curatela absoluta.
A complexidade da psique exige do Direito e do sistema como um
todo respostas flexíveis às demandas humanas, não sendo autorizado o
esvaziamento da autonomia privada e a imposição de restrições ao livre
desenvolvimento da personalidade, mas, tampouco, a absoluta desproteção
aos que não possuem as mínimas condições a tanto.
A clivagem parcial das duas normas – Estatuto da Pessoa com
Deficiência e novo Código de Processo Civil – demonstra que, tal como nos
primórdios, também neste século XXI o doente mental é visualizado como
despido de sua humanidade e, assim, como o homo sacer, só detém a própria
vida nua na qual mais nada se inscreve (AGAMBEN, 2010).
A hipostasia desse grupo vulnerável, agravada pela distonia
normativa aqui exposta, deve ser afastada, para que o fato coletivo de
identificação da pessoa com deficiência mental funcione somente como
discrímen permissivo da modulação da garantia fundamental a Ser digno e
reconhecido como tal.
Caberá ao Congresso Nacional definir qual das normas deixará de
provocar espasmos na tutela das pessoas com deficiência mental, se o
Código de Processo Civil – que cuida da incapacidade, ou se o Código Civil
O fim do regime de incapacidade civil
// 279
que descura delas, sob o pretexto de proteger as pessoas com deficiência, a
fim de não se agravar a exclusão social daquelas pessoas.
15.6 REFERÊNCIAS
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280 //
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= XVI =
O HUMANISMO E A FRATERNIDADE COMO CATEGORIAS
CONSTITUCIONAIS
Lauro Ishikawa*
Luciane Pussi**
William Artur Pussi***
16.1 INTRODUÇÃO
O escopo do presente artigo reside na busca de se averiguar a
fraternidade enquanto categoria constitucional, indispensável para a
efetivação das relações sociais e, por isso, para a complementação do visado
pela promoção da dignidade do ser humano.
Contudo, previamente se mostra indispensável enveredar-se pelos
fatores que levaram à gênese dos direitos humanos, a fim de se compreender
o contexto o árduo percurso perfeito por esses direitos que se destinam a
exatamente promover referidas dignidade e fraternidade.
Superados esses pontos, atenção será dada ao direito ao
desenvolvimento, cujo reconhecimento como direito humano levou longa
negociação internacional e, por isso, teve retardada sua efetivação.
Demonstrar-se-á, por derradeiro, a natureza fraternal desse direito e sua
essencialidade para a promoção da própria dignidade humana.
16.2 HUMANISMO
O Humanismo teve suas primeiras manifestações ainda no período
grego, no qual a religião e as crenças populares influenciavam o direito e a
política.
*
Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Instituição Toledo de Ensino
de Presidente Prudente. Professor Universitário desde 2000. Membro do Conselho Superior da
CAPES (2008/2010). Professor e Coordenador Adjunto da FADISP. Advogado.
**
Doutoranda do Programa de Doutorado em Direito- FADISP. Mestre em Direito na área de
concentração em Direitos da Personalidade pelo Centro Universitário de Maringá-Pr. Especialista
em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Paranaense-Pr. Bacharel em Direito pela
Universidade Paranaense-Pr. Licenciatura plena em Português e Inglês pela Universidade
Paranaense-Pr, Especialista em Literatura Brasileira pela Faculdade Estadual de Ciências e
Letras de Campo Mourão. Professora da Faculdade Maringá e Unicesumar
***
Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Mestre e bacharel
em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná. Professor Universitário.
282 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Tomás de Aquino, em sua Summa Theologica, encontra o
fundamento da dignidade no fato de o homem ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus.
Os ideais de Santo Agostinho, bem como da Igreja Católica, também
nos trazem a essência do Humanismo – priorizando a figura da pessoa para
a realização do bem comum –, no qual o homem é visto como ser único e
igual, apesar de, em algumas circunstâncias da história e em prol de
interesses escusos, existir a distorção de tais objetivos, como, por exemplo,
no período a Santa Inquisição.
Aliás, destaque-se, é com Immanuel Kant que se completa o
processo de secularização da dignidade. Afirma Kant (1980, p. 134):
O Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim
em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se
dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele
tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim.
Dessa forma, Kant legou ao mundo a constatação de que o homem
será sempre fim, nunca meio, e jamais poderá ser instrumentalizado ou
“coisificado”. Por sua vez, Orides Mezzaroba (2003, p. 59) molda o espírito
da teoria humanista de uma forma simples, porém completa, quando diz que:
O termo humanismo, em regra geral, sintetiza toda uma corrente de
pensamento voltada para o homem, em favor do homem. O pensamento
humanista advoga a defesa de comportamentos éticos morais voltados à
liberdade de pensamento e de criação, a fraternidade e a tolerância entre os
diferentes, à institucionalização de direitos voltados ao resguardo e ao
respeito do bem-estar e da dignidade da pessoa humana. [...] Assim, podese concluir que “todos os homens são iguais e são sujeitos dos mesmos
direitos e deveres fundamentais”.
Partindo desse conceito, torna-se evidente o caráter moral do qual é
revestida a teoria humanista. Conforme Rogério Gesta Leal (2003), o
Humanismo fundamenta-se fora da concepção de direito e de Estado que
conhecemos, ou seja, antecede a norma positivada, orientando-se “no âmbito
da ética, da natureza humana, do direito natural ou dos valores”.
Com o advento do período conhecido como Iluminismo, ocorre a
expansão da noção dos direitos e das liberdades humanas. Começa a se
seguir em direção à igualdade jurídica dos seres humanos. E a partir da
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 1776,
ocorre a expressão primeira dos direitos, declarando a independência por um
novo governo a ser formado pelas colônias unidas sob o princípio de que a
tirania é inadequada para ser o governo de um povo livre.
Seguindo-se à declaração americana, a Revolução Francesa
proclamou que todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em
direitos, consoante os termos da Declaração dos Direitos do Homem e do
O humanismo e a fraternidade...
// 283
Cidadão. Essa declaração afirmava os princípios de igualdade e liberdade
individual, a igualdade civil e fiscal, a isenção de prisão arbitrária, a liberdade
de expressão e de imprensa, e o direito à propriedade privada.
Em 1791, dois anos após a queda da Bastilha e baseada nesses
princípios, a França acaba por abolir a escravatura negra. Consagra-se,
assim, o princípio de que todo homem é sujeito de direitos e obrigações.
Em uma visão mais recente, é possível afirmar que os horrores da
Segunda Guerra Mundial representaram um limite intransponível para a
humanidade, no qual não se permitiria qualquer avanço sem se reavaliar as
consequências nefastas promovidas pelo Estado e pela própria razão de ser
do direito.
A violação aos direitos fundamentais nesse período pode ser
metaforizada a partir do poema “Despertar é preciso”, em que as pequenas
transgressões diárias aos direitos ínsitos do homem culminaram no
extermínio de 18 milhões de pessoas somente em campos de concentração,
sem mencionar o conflito direto nos campos de guerra:
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada. (COSTA, 2009)
A par de todo este contexto fático, nasce em 1948 a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, apresentando inúmeros direitos de todo
ser humano. Tais direitos caracterizam-se por sua unicidade e indivisibilidade,
sendo pertencentes a toda a humanidade, representando marco maior na
reconstrução dos direitos humanos.
Na abalizada lição de Flávia Piovesan (apud PAULA, 2006, p. 218),
a adoção de mecanismos tendentes a proteger os direitos do homem “[...] não
deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição exclusiva,
porque revela tema de legitimo interesse internacional”, quebrantando o
dogma da absoluta soberania estatal rumo à concepção do fraternité da
Revolução francesa de 1789.
Ato contínuo, as constituições passam a prover meios de internalizar
estes tratados suplementares à ordem jurídica nacional, incitando aos
Estados signatários a necessidade de se fomentar a discussão e proteção
aos direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, nota-se que no alvor da
284 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
segunda metade do século XX os direitos humanos são colocados no centro
dos debates jurídicos, vislumbrando-se a efetiva garantia da dignidade da
pessoa humana de modo coletivo.
A título meramente exemplificativo, a elaboração desse sistema de
proteção internacional dos direitos humanos a partir da Declaração Universal
dos Direitos Humanos culminou na formação das seguintes convenções e
pactos em nível universal:
a) o Pacto Universal dos Direitos Humanos de 1948;
b) a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas
de Discriminação Racial de 1965;
c) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966;
d) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
de 1966;
e) a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra a Mulher de 1979;
f) a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos e Degradantes de 1984;
g) a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; e
h) o Tribunal Penal Internacional e a Convenção para a Prevenção e
Repressão do Crime de Genocídio.
Conforme assevera Paulo Bonavides (2003, p. 574):
A nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva
os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de
ser homem deste ou daquele país, de uma sociedade desenvolvida ou
subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua
pertinência ao gênero humano, objeto daquela universalidade.
As Constituições vêm, paulatinamente, assimilando valores
universais e direitos que transcendem os limites da soberania do próprio
Estado.
No caso especificamente brasileiro, após a promulgação da Emenda
Constitucional nº 45/2004 (acréscimo do § 3º ao art. 5º da Constituição
Federal), também os direitos humanos, objeto de tratados ou convenções
internacionais, aprovados pelo Congresso Nacional, em dois turnos e por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão considerados direitos
fundamentais. Portanto, ingressarão no sistema jurídico pátrio com status
equivalente às emendas constitucionais.
No julgamento histórico, ocorrido aos 03/12/08, o STF admitiu o valor
(no mínimo) supralegal dos tratados de direitos humanos (ratificados pelo
Brasil e incorporados no direito interno). Quando se cuida de um tratado de
direitos humanos aprovado por quorum qualificado pelo Congresso Nacional
(três quintos em dois turnos em cada casa) seu valor é de Emenda
Constitucional (CF, art. 5º, § 3º).
O Estado brasileiro já não é só (a partir da perspectiva aberta pelos
votos referidos, que foram acompanhados por outros sete Ministros) apenas
O humanismo e a fraternidade...
// 285
um Estado de Direito constitucional: agora passou a ser também um Estado
de Direito Internacional.
Assim, não é mais possível estudar, ensinar ou aplicar o Direito sem
conhecer (também) o Direito internacional, especialmente o Direito
internacional dos direitos humanos. Afinal, como ensina Norberto Bobbio
(1992, p. 79):
Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito
à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo
crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como
a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre
considerou como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem
direitos. Decerto, todas essas novas perspectivas fazem parte [...] da história
profética da humanidade [...].
Assim, é possível afirmar que os ordenamentos jurídicos
contemporâneos lograram certo êxito em combater a opressão e o arbítrio,
garantindo, dentro do possível, liberdade e igualdade. Aliás, conforme afirma
Thiago Matsushita (2007), o art. 5º, §1º, afasta qualquer alegação de que os
direitos humanos são normas programáticas, dependentes de lei que lhes
deem eficácia jurídica.
Assim, na esteira do pensamento de Matsushita, concluímos que o §
1º, do art. 5º, da CF, prescreve, no altiplano valorativo do nosso ordenamento
jurídico, que todas as normas a serem construídas pelos cientistas e
aplicadores do direito pressupõem como elemento de validade a dignificação
da pessoa humana, sumo dos direitos humanos.
Todavia, é fundamental destacar que, apesar de todos os esforços,
tal postura não é suficiente e não fornece respostas satisfatórias para
assegurar uma vida de relações e de comunidade, pois se ressente de outro
valor fundamental, qual seja, a fraternidade.
16.3 FRATERNIDADE
Tradicionalmente o tema “fraternidade” é enfrentado como um ideal
de filosofia política ou social, ou mesmo como categoria política, mas não
como uma categoria jurídica. Logo, percebe-se uma natural dificuldade para
a análise do tema numa perspectiva jurídica.
Tanto é verdade que Carlos Augusto Alcântara Machado (2008, p. 1),
citando Fausto Goria, registra que: “[...] em geral, compreende-se a
fraternidade como algo que se desenvolve espontaneamente, o que seria
incompatível com o Direito, caracterizado pelo uso da coatividade”.
Todavia, a fraternidade e o direito não são necessariamente
excludentes, uma vez que fraternidade, enquanto valor, vem sendo
proclamada por algumas Constituições modernas, ao lado de outros valores
historicamente consagrados, como a igualdade e a liberdade.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, em
palestra na Universidade de Münster (Alemanha), observou que liberdade e
286 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
igualdade são valores indissociáveis no Estado Democrático de Direito e,
fazendo referência a Peter Haberle, ressaltou a pouca atenção que se tem
dado ao terceiro valor fundamental da Revolução Francesa, que é o da
fraternidade.
Nas palavras do Ministro (MENDES, 2008):
No início deste Século XXI, o conceito de liberdade e igualdade deve ser
reavaliado, reposicionando-se o da fraternidade. Quero com isso dizer que a
fraternidade pode colocar em nossas mãos a chave com que poderemos
abrir diversas portas no sentido da solução das mais importantes questões
da liberdade e da igualdade com que se debate, hoje, a humanidade.
Aliás, nessa esteira, o doutor Lauro Ishikawa (2008, p. 81) ensina:
Os direitos de solidariedade atuam, assim, para corrigir as distorções da
liberdade e da igualdade, pois quando não há essa igualdade préestabelecida socorre-se a solidariedade. De fato, a terceira dimensão dos
direitos fundamentais busca tutelar o homem não individualmente
considerado, mas no aspecto coletivo, visando os direitos da humanidade,
aquilo que inerente a todos, corrigido, como já asseverado, as distorções da
liberdade e igualdade.
Vale ressaltar que os direitos de terceira geração ou dimensão
consagram os princípios da solidariedade ou fraternidade, sendo atribuídos
genericamente a todas as formações sociais. Destarte, restam protegidos
interesses de titularidade coletiva ou difusa de um grupo ou de um
determinado Estado, ao não se destinar especificamente à proteção dos
interesses individuais, mostrando-se, com isso, uma grande preocupação
com as gerações humanas, presentes e futuras.
Alexandre de Moraes (2006, p. 60), acerca do assunto, ensina:
Por fim, modernamente, protege-se, constitucionalmente, como direitos de
terceira geração os chamados direitos de solidariedade e fraternidade, que
englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade
de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e a outros
direitos [...].
Em síntese, citamos os ensinamentos de Luiz Alberto David Araújo e
Vidal Serrano Nunes Júnior (2005, p. 116): “A essência desses direitos se
encontra em sentimentos como a solidariedade e a fraternidade, constituindo
mais uma conquista da humanidade no sentido de ampliar os horizontes de
proteção e emancipação dos cidadãos”.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, apresenta
evidentes traços solidarísticos, embora não contenha literalmente a
expressão “solidariedade”. Nessa toada, o preâmbulo menciona que todas as
pessoas são “membros da família humana”, enquanto que, no art. 1º, dispôsse que todos “[...] devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
O humanismo e a fraternidade...
// 287
Assim, seguindo este caminho, podemos citar que na vigente
Constituição lusitana, logo no preâmbulo, o constituinte português registrou
um relevante compromisso: “fazer de Portugal um país mais fraterno”.
Logo no art. 1º, um importante empenho: a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária. No decorrer de seu texto, por diversas vezes
(arts. 63º,66º, 71º e 73º), foi empregado o substantivo solidariedade no trato
de temas como: deficientes, meio ambiente, educação e economia. Utilizou o
texto magno português expressões como: “solidariedade entre gerações”,
“solidariedade social”, “espírito de tolerância” e “compreensão mútua”.
O jurista italiano Filippo Pizzolato (2008), em sua obra “A
Fraternidade no Ordenamento Jurídico Italiano”, define a fraternidade como
uma forma intensa de solidariedade unindo pessoas que, por se identificarem
por algo profundo, sentem-se “irmãs”. Seria uma forma de solidariedade que
se realiza entre iguais, entre elementos que se colocam no mesmo plano e
conclui que a fraternidade parece ser uma forma de solidariedade que
interpela diretamente o comportamento individual, responsabilizando-o pela
sorte dos irmãos.
Assim, continua Pizzolato (2008), o artigo 2º da Constituição italiana
incentiva a preocupação do indivíduo não apenas com o seu próprio bem,
mas com o bem comum. Uma espécie de fraqueza estrutural do homem – a
sua interdependência – fundamenta a fraternidade, para além de todas as
diferenças. Em vez do cânon liberal “não prejudicar os outros”, o mandato
vinculativo “faça o bem ao outro (porque também é o seu)”.
Na Carta-Cidadã de 05 de outubro de 1988, de igual forma, o
legislador constituinte pátrio, ao se comprometer com a construção de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, apresentou os seus
valores supremos, logo no Preâmbulo: liberdade, segurança, bem-estar,
desenvolvimento, igualdade e justiça.
Em seguida, após traçar toda uma base principiológica, estabeleceu
como objetivo fundamental da República Federativa a construção de uma
sociedade solidária (art. 3º, I, da CF).
Por isso, é possível afirmar que, quando a Constituição estabelece
como um dos objetivos fundamentais da República brasileira “construir uma
sociedade justa, livre e solidária”, ela não está enunciando uma diretriz
política desvestida de qualquer eficácia normativa.
Pelo contrário, ela expressa um princípio jurídico, que, apesar de sua
abertura e indeterminação semântica, é dotado de algum grau de eficácia
imediata e que pode atuar, no mínimo, como vetor interpretativo da ordem
jurídica como um todo (SARMENTO, 2006, p. 295).
Para tanto, o Estado brasileiro terá que garantir o desenvolvimento
nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir desigualdades
sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, II
a IV). Atingiu-se, por completo, após alguns séculos de desenvolvimento, o
antigo lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
288 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
A Carta Constitucional vigente absorveu os três valores do
movimento revolucionário de 1789 ao definir como o primeiro objetivo da
República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária – liberdade, igualdade e fraternidade.
16.3.1 O advento do constitucionalismo fraternal
Como visto, o constitucionalismo moderno conheceu duas grandes
fases: a primeira, fundada no liberalismo (constitucionalismo liberal), no qual
o valor liberdade esteve em destaque, e a segunda, caracterizada pela socialdemocracia (constitucionalismo social), com especial ênfase ao valor
igualdade.
O texto da Constituição de 1988 inaugurou no nosso país, como vem
destacando o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres
Britto (2008), num certo sentido em sintonia com o que prega o Movimento
Comunhão e Direito, o Constitucionalismo Fraternal ou, como afirmam
outros, o Constitucionalismo Altruístico.
Define o Douto Ministro da mais alta Corte brasileira o
constitucionalismo fraternal como “[...] a terceira e possivelmente a última
fase, o clímax do constitucionalismo”. Continua o jurista, tratando do
constitucionalismo: “Depois que ele assumiu uma feição liberal ou libertária,
uma função social ou igualitária, agora chega à terceira fase, que é a
fraternidade, para ombrear todas as pessoas em termos de respeito,
referência e consideração [...]” (BRITTO, 2008, p. 53).
Às tradicionais dimensões consagradas nos ordenamentos jurídicos
vigentes, incorpora-se outra, de igual forma, como categoria constitucional.
Ao afirmar a Constituição brasileira que é objetivo fundamental da República
Federativa construir uma sociedade livre, justa e solidária, constata-se,
cristalinamente, o reconhecimento de dimensões materializadas em três
valores distintos, mas em simbiose perfeita: (a) uma dimensão política:
construir uma sociedade livre; (b) uma dimensão social: construir uma
sociedade justa; e (c) uma dimensão fraternal: construir uma sociedade
solidária.
Cada uma das três dimensões, ao encerrar valores próprios –
liberdade, igualdade e fraternidade –, instituem categorias constitucionais. A
Constituição busca com a dimensão fraternal uma integração comunitária,
uma vida em comunhão. Se vivermos efetivamente em comunidade,
estaremos, de fato, numa comunidade. Em uma palavra: fraternidade.
Uma sociedade fraterna é uma sociedade sem preconceitos e
pluralista. E esses valores estão presentes na Constituição de 1988. Averbese que a integração comunitária é mais do que inclusão social. Não se reduz
a ações distributivistas, de inclusão social que se situam somente no plano
de gastos públicos.
E essa inegavelmente é a tendência que cada vez mais se observa
nos ordenamentos constitucionais contemporâneos, particularmente na
O humanismo e a fraternidade...
// 289
Constituição de 1988: combate a qualquer forma de preconceito, ações
afirmativas (deficientes, mulheres, negros), etc.
É o ordenamento jurídico a serviço da realização – ou pelo menos em
busca – da fraternidade. Urge que se inaugure, de fato, um Estado Fraternal.
É essa, aliás, a ideia que vem ganhando força nos últimos tempos e que se
tornou conhecida como Constitucionalismo do Futuro.
Como exemplo, podemos citar o julgamento da ADI 3.768-4/DF33, no
qual o Supremo Tribunal Federal garantiu a gratuidade dos transportes
públicos urbanos e semiurbanos para os idosos. No voto da eminente
relatora, Ministra Carmem Lúcia, calcado no art. 230 da Constituição Federal,
destacou-se a necessidade de se garantir o direito de qualidade de vida digna
àquele que não pode pagar ou que já colaborou com a sociedade em
períodos pretéritos.
Registrou a Ministra-relatora que aos idosos assiste, nesta fase da
vida, direito a ser assumido pela sociedade quanto ao ônus decorrente do
uso do transporte público. Digno de citação o seguinte trecho do seu voto:
A gratuidade do transporte coletivo representa uma condição mínima de
mobilidade, a favorecer a participação dos idosos na comunidade, assim
como viabiliza a concretização de sua dignidade e de seu bem estar, não se
compatibiliza com condicionamento posto pelo princípio da reserva do
possível.
E continua, concluindo que “[...] aquele princípio haverá de se
compatibilizar com a garantia do mínimo existencial.”
Em manifestação de voto, o Ministro Carlos Britto concluiu que o
direito em discussão seria um direito fraternal, a exigir do Estado “[...] ações
afirmativas,
compensatórias
de
desvantagens
historicamente
experimentadas por segmentos sociais como os dos negros, dos índios, das
mulheres, dos portadores de deficiências e dos idosos”.
Nesse toar, possibilitando inovações na prática jurídica, a
Constituição e o próprio Estado adotam posturas sintonizadas com o
constitucionalismo fraternal. Surge, por conseguinte, espaço para a
consagração dos direitos de fraternidade e de solidariedade que, como
lembra Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 53):
Trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da
figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de
grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se,
consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Inseremse nessa categoria, por exemplo, os direitos à paz, ao meio ambiente, à
autodeterminação dos povos e têm como distinção o fato de serem
universais, ou, quando menos, transindividuais ou metaindividuais.
Invocando, mais uma vez, o magistério do Ministro Carlos Britto
(2007, p. 98), tem-se que:
290 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
A Fraternidade é o ponto de unidade a que se chega pela conciliação possível
entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro, da Igualdade. A
comprovação de que, também nos domínios do Direito e da Política, a virtude
esta sempre no meio (medius in virtus). Com a plena compreensão, todavia,
de que não se chega à unidade sem antes passar pelas dualidades. Este, o
fascínio, o mistério, o milagre da vida.
Outro julgamento marcante refere-se ao Recurso Especial nº
2008/0025171-7, julgado em 23/02/2010, tendo como relatora a Ministra
Nancy Andrighi, cujo voto apresenta o seguinte teor:
A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a
valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação,
colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista
ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar.
Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre
pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão
de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes.Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às
manifestações de intolerância ou de repulsa que possa porventura se revelar
em face das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e
apaziguamento de possíveis espíritos em conflito.- A defesa dos direitos em
sua plenitude deve assentar em ideais de fraternidade e solidariedade, não
podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como
já o fez, em tempos idos, quando emprestou normatividade aos
relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por
consequência, o instituto da união estável. A temática ora em julgamento
igualmente assenta sua premissa em vínculos lastreados em
comprometimento amoroso.- A inserção das relações de afeto entre pessoas
do mesmo sexo no Direito de Família, com o consequente reconhecimento
dessas uniões como entidades familiares, deve vir acompanhada da firme
observância dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana,
da igualdade, da liberdade, da autodeterminação, da intimidade, da não
discriminação, da solidariedade e da busca da felicidade, respeitando-se,
acima de tudo, o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação
sexual. Grifo nosso
De tudo que foi exposto, tem-se que é perfeitamente possível concluir
que, no constitucionalismo contemporâneo, a fraternidade, de fato, é uma
categoria jurídica. Todavia, apesar de jurídica, não deixa de ser bela a
presente mensagem:
Quando o ser humano,
finalmente aprender a ser humano,
e descobrir que os verdadeiros tesouros,
que tão insanamente procuram,
estão simplesmente em nosso interior,
e inteiramente a seu dispor,
poderão chegar à conclusão
que lhe aquietará o coração,
O humanismo e a fraternidade...
// 291
de que, aprendendo a cultivar a Solidariedade e a Fraternidade,
a humanidade viverá com humanidade,
e poderá conseguir uma certa felicidade…
Amor ao próximo… Fraternidade… Solidariedade…
Palavras mágicas…
É preciso entende-las e praticá-las (SALAVERRY, 2009).
16.4 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO COMO UM DIREITO FRATERNO
E HUMANO
Como forte expressão dessa dimensão fraternal dos direitos
humanos, o direito ao desenvolvimento galgou, assim como a categoria à
qual pertence, árduo processo de inserção no âmbito dos direitos a serem
internacionalmente protegidos, sem mencionar a dificuldade ainda existente
(e, inclusive, maior) de sua efetivação.
Conforme relato de Arjun Sengupta (2002), não havia, à época da
adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 1948), qualquer
dissenso em torno da estrita relação existente entre direitos ditos “individuais”
e aqueles concebidos como “coletivos”, inexistindo efetivo óbice à
aceitabilidade do direito ao desenvolvimento como um direito humano.
Entretanto, tal contexto favorável veio a se alterar substancialmente
no período da Guerra Fria, quando se levantaram de forma mais exaltada
argumentos contrários à legitimidade dos direitos econômicos, sociais e
culturais – os quais eram amplamente defendidos pelos países do “Segundo
Mundo”1 – e que demandaram, por isso, intensa negociação internacional
para se resgatar a concepção una dos direitos humanos 2 (SENGUPTA,
2002).
Muito embora iniciado esse avanço pelos idos de 60, o direito ao
desenvolvimento só logrou atenta observação dos países integrantes das
Nações Unidas enquanto direito humano no ano de 1986, quando se aprovou
pela quase unanimidade dos votos a Declaração do Direito ao
Desenvolvimento, a qual só recebeu voto contrário dos Estados Unidos da
América. E por causa dessa oposição norte-americana, o processo de
concretização do direito ao desenvolvimento foi retardado por muitos anos
(SENGUPTA, 2002).
Enfim, exsurgiu novo consenso entre as nações quando da Segunda
Conferência Mundial da ONU, ocorrida em Viena, na qual se editou
declaração reafirmando a pertença do direito ao desenvolvimento aos direitos
humanos, apoiada, inclusive, pelos Estados Unidos.
1
Terminologia essa já abandonada, mas aplicada ao caso somente para trazer a expressão da
época, indicando o grupo de países que defendiam esses direitos coletivos, qual seja, o bloco
dos países socialistas.
2
Pelo contexto da Guerra Fria, foi intentada, visando-se superar o óbice decorrente da
animosidade entre países capitalistas e socialistas, a formulação de dois acordos ao longo dos
anos 60, um contemplando os direitos civis e políticos (“individuais”) e outro abarcando os direitos
econômicos, sociais e culturais (“coletivos”). (SENGUPTA, 2002, p. 65).
292 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Para se suplantar tal resistência, foi necessário explicitar a
inexistência de efetivo fundamento às críticas existentes ao reconhecimento
do direito ao desenvolvimento como legítimo direito humano. Em suma,
levantavam-se 3 (três) argumentos contrários, que se passa a abordar.
Primeiramente, havia a alegação de que os direitos humanos se
limitam, necessariamente, aos direitos individuais, em estrita adoção da teoria
dos direitos naturais. Porém, não subsiste essa pretensão excludente, uma
vez que a principal diferença levantada entre os direitos individuais e os
coletivos é a de que estes demandam ação positiva (promoção e proteção),
enquanto aqueles, ação negativa (prevenção).
Entretanto, indevida é essa distinção, pois ambos “os direitos”
exigem, para sua efetivação, promoção, proteção e prevenção. Daí, concluise pela fragilidade do argumento, assumindo força a constatação de que “[...]
cabe aos interessados a decisão final sobre o que considerar direitos
humanos e quais o Estado terá a obrigação de fornecer” (SENGUPTA, 2002,
p. 76).
Secundariamente, levantava-se o argumento de que, para ser
efetivado, o direito ao desenvolvimento deveria possuir alguém responsável
por sua promoção conforme o número de seus beneficiários, sob pena de ser
inócua a previsão desse “direito”. Contudo, no caso do direito em apreço, se
não há a particularização do responsável por sua efetivação, tem-se o que
Immanuel Kant denominou de “obrigação imperfeita”, que traduz a ideia de
uma obrigação imputável a todos que possam ajudar, independentemente de
alguém em específico.
Terceira e finalmente, alegava-se que os direitos humanos devem se
sustentar na lei, o que deve ser imediatamente refutado, posto que tais
direitos “[...] baseiam-se em padrões morais com vistas à dignidade humana,
possuindo diversas maneiras de consecução, dependendo da aceitabilidade
da base ética das demandas” (SENGUPTA, 2002, p. 77).
16.4.1 Natureza fraternal e reponsabilidade estatal
Partindo para a análise da natureza do direito ao desenvolvimento,
oportuna e fundamental é a apreciação do conceito trazido na própria
Declaração dos Direitos ao Desenvolvimento, de 1986. Em seu primeiro
artigo, está disposto que:
O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do
qual todo ser humano e todos os povos têm direito de participar, contribuir e
gozar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político no qual todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais podem ser plenamente
realizados.
Descobrir qual a importância da efetivação desse direito para a plena
realização dos demais direitos humanos é reafirmar o quão essencial são os
direitos de fraternidade para a efetiva dignificação do ser humano, sendo
incontestável esse caráter fraterno dos direitos ao desenvolvimento,
O humanismo e a fraternidade...
// 293
principalmente quando evidenciado o direito a “contribuir” para a promoção
do bem comum a todas as pessoas, sem se promover discriminações de
qualquer ordem.
Sengupta, abordando justamente os termos de mencionada
Declaração, bem explica essa responsabilidade de todo indivíduo na busca
da promoção fraternal. É sua, aliás, a seguinte lição:
Para realizar esse processo de desenvolvimento ao qual toda pessoa
humana tem direito, em virtude de seu direito ao desenvolvimento, há
responsabilidades que devem ser partilhadas por todas as partes envolvidas:
“os estados operando nacionalmente” e “os estados operando
internacionalmente.” De acordo com o artigo 2, parágrafo 2, “todos os seres
humanos (pessoas) têm a responsabilidade pelo desenvolvimento
individual e coletivo” e devem tomar as medidas apropriadas, mantendo
“respeito total pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, bem
como suas obrigações com a comunidade”. Pessoas humanas, portanto,
são reconhecidas por seu funcionamento individual e, também, como
membros de comunidades, e por possuírem deveres com estas
comunidades, que devem ser cumpridos em nome da promoção do
processo de desenvolvimento (SENGUPTA, 2002, p. 67) Grifo nosso
Inobstante o dever dos sujeitos de auxiliar, de propiciar o
desenvolvimento alheio, deve ser sempre levantada a ressalva de que
igualmente muito compete aos Estados, como indica o artigo 3 da Declaração
em comento ao prever que compete aos Estados o primeiro passo na criação
de condições favoráveis ao desenvolvimento não só de seu povo, mas de
toda comunidade internacional.
Conforme a teoria do contrato social, os estados modernos decorrem
de um pacto celebrado entre os indivíduos os quais, ao renunciarem à sua
“prerrogativa natural” de autotutela, deferiram ao Estado o “monopólio da
violência”. Porém, seria de todo incorreto concluir que esses sujeitos
acabaram por se despir de seus direitos, posto que só a sua defesa e o dever
de sua promoção restaram transmitidos ao “Leviatã” quando dessa
pactuação.
Por isso, referida obrigação imputada aos Estados é, de fato,
respaldada na própria finalidade que lhe é intrínseca: promover a dignidade
humana. Porém, apesar da importância de seu dever, relevante é a ressalva
de que “Esta responsabilidade é complementar à responsabilidade do
indivíduo [...] e é apenas para a criação das condições para realizar o direito
e não para a realização do próprio direito. Apenas os próprios indivíduos
podem realizar o direito” (SENGUPTA, 2002, p. 67).
Contudo, Arjun Sergupta asseverava que os esforços estatais devem
ser não apenas de ordem nacional, mas também de alcance internacional,
tanto que no artigo 4 da Declaração dos Direitos ao Desenvolvimento,
exemplificava ele, restou escrito que: “Como um complemento aos esforços
dos países em desenvolvimento, é essencial a cooperação internacional
294 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
efetiva, para prover estes países com os meios apropriados para consecução
de seu desenvolvimento integral” (SENGUPTA, 2002).
16.4.2 O direito ao desenvolvimento e a constituição cidadã
Não há previsão expressa do direito ao desenvolvimento no texto
constitucional de 1988. Inobstante a inexistência de explicitação desse direito
humano, tem-se que o mesmo não se encontra excluído do ordenamento
pátrio, nem mesmo afastado do agasalho da Constituição Cidadã. E para se
concluir o afirmado, por certo, é indispensável a análise da própria CF/88.
Consta no art. 5º, § 2º, da Carta Magna, que os direitos previstos em
seu corpo normativo não afastam o reconhecimento de direitos outros
decorrentes do regime e dos princípios por si adotados, bem como dos
tratados internacionais de que seja signatária a República Federativa do
Brasil.
Quanto ao rol de direitos contido no mesmo art. 5º da CF/88, o STF
já se pronunciou, enquanto guardião e intérprete da Constituição, declarando
a inexistência de taxatividade dos direitos ali constantes. 3 Adotando esse
entendimento, o Pretório Excelso evidenciou o que o constituinte
expressamente previra:
[...] alguns direitos e garantias essencialmente constitucionais poderiam ficar
de fora [da Constituição], bem como poderiam surgir novos direitos e
garantias com o desenvolver da sociedade que necessitassem de proteção
constitucional por disporem de matéria extremamente relevante (OLIVEIRA,
2008).
Com isso em vista, frágil seria qualquer argumento que refutasse a
acolhida do direito ao desenvolvimento pela Constituição, especialmente
quando considerados os tratados internacionais dos quais o Brasil é
signatário e nos quais se encontra previsto o direito humano ao
desenvolvimento, tais como a Carta das Nações Unidas, a Carta de
Constituição da Organização dos Estados Americanos, o Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional Sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, etc.
Ademais, o próprio regime e os princípios constitucionais informam o
direito ao desenvolvimento, nos termos do art. 5º, § 2º, da CF, sem se
considerar, outrossim, a consagração do desenvolvimento enquanto objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil, estando, nesse contexto,
estritamente vinculado à própria promoção da dignidade humana, princípio
fundamental do ordenamento pátrio (CF, art. 1º, III).
3
Vide Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n° 939-7/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ:
18/03/94.
O humanismo e a fraternidade...
// 295
16.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos humanos são fruto de longo processo de amadurecimento
da humanidade, o qual acabou, fatidicamente, por implicar na perda de
milhões de vidas humanas, inclusive. Declarados os direitos humanos, em
1948, viu-se, a partir daí, grande empenho internacional no sentido de se
prever, compromissar os mais diversos países e, enfim, promover tais
direitos, os quais possuem como grande escopo justamente a dignidade do
ser humano.
Inobstante a contundente acolhida das constituições a esse valor
“dignidade”, vislumbrou-se a incompletude desse norte para o ser humano
quando considerado sozinho, visto que as relações sociais demanda algo
além. Por isso, viu-se igualmente alçado ao plano constitucional o valor da
“fraternidade”, o qual informa, por seu turno, a necessidade de se promover
ações afirmativas, a fim de se anular os nefastos efeitos das desigualdades
sociais.
Como referencial aos direitos de solidariedade, há o direito humano
ao desenvolvimento, cuja efetivação é alicerce, inclusive, para a promoção
de outros direitos humanos e, por conseguinte, da própria dignidade humana.
Do exposto, ao se constatar a fundamentalidade desse direito, verifica-se o
quão prejudicial foi o retardamento de seu reconhecimento no plano
internacional, bem como se conclui como estritamente acertada é a
imputação do dever de sua promoção não só aos indivíduos e aos Estados
isoladamente considerados, mas também à comunidade internacional.
16.6 REFERÊNCIAS
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direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
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298 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= XVII =
O PAPEL DA PROPAGANDA ELEITORAL NA CONDUÇÃO DO
PROCESSO DEMOCRÁTICO EM FACE DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS
DA PERSONALIDADE
Jeane Genara Volpato*
Fabiola Cristina Carrero**
Dilvanete Magalhães Rocha de Andrade***
17.1 INTRODUÇÃO
A implantação de um ambiente político democrático representa o
mais importante instrumento de evolução da sociedade, na medida em que
permite que a participação direta de seus membros, no processo de escolha
de seus representantes. Tal participação, permite que os membros da
sociedade que adquirem a condição de eleitor, participem ativamente da
construção política do Estado, contribuindo para a promoção dos interesses
da coletividade.
A democracia permite a participação popular através da livre escolha
de candidatos, ou mesmo através da propositura da candidatura de qualquer
membro da sociedade, sem distinção de qualquer natureza, desde que
obedecidos os critérios previstos na legislação eleitoral vigente. Ressalte-se
que tais exigências não tem o condão de restringir o acesso daqueles que
pretendem disputar um cargo eletivo, mas sim de regular de forma
transparente o processo de candidatura, bem como estabelecer critérios
mínimos de regularidade, para que não haja comprometimento do próprio
regime democrático.
No ambiente de disputa eleitoral, a propaganda é um assunto que
cada vez mais tem merecido destaque no cenário jurídico, em razão de sua
importância enquanto mecanismo de comunicação com o eleitorado e de
articulação de campanha, sendo muitas vezes utilizada como instrumento de
*
Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina-UEL. Pós-Graduada em Direito
do Estado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Mestranda do Programa de PósGraduação em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Analista Judiciária do Tribunal Regional
Eleitoral lotada na 179 Zona Eleitoral do município de Apucarana. E-mail: [email protected]
**
Advogada, graduada em Direito pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR. Especialista
em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina-UEL, Mestranda no Programa
de Pós-graduação da Unicesumar, Professora na FAP-Faculdade de Apucarana. E-mail:
[email protected]
***
Mestranda em Direito da Personalidade; Pós graduação: Educação Especial – D. M.;
Graduação: Pedagogia e Direito; Docente da Area de Educaçao Especial do Centro Estadual de
Educação de Jovens e Adultos – Professor Manoel R. da Silva, Maringá
300 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
ataque aos adversários, não raras vezes, com evidente desrespeito aos
direitos da personalidade.
Esta pesquisa tem como propósito central estudar o cenário atual no
âmbito da propaganda realizada por candidatos em período eleitoral, bem
como da abrangência das informações transmitidas através dos mecanismos
autorizados pela legislação eleitoral, sob o enfoque da proteção dos direitos
da personalidade.
17.2 DEMOCRACIA
A democracia é o regime de governo que resulta da manifestação da
vontade popular, uma vez que a população escolhe livremente os seus
representantes. Neste regime, a sociedade participa das decisões política do
Estado, através da manifestação de seus representantes, a quem cumpre o
dever de defesa dos interesses da sociedade.
O eixo central da democracia é sustentado por três princípios
especiais: liberdade, igualdade e dignidade. Baseado no princípio da
igualdade, todos os indivíduos devem ter direito de participar da construção
política do Estado. O princípio da liberdade, garante que os membros da
sociedade tenham o direito realizar suas escolhas de forma livre. Por fim
destaca-se o princípio da dignidade, uma vez que a própria essência da
democracia exige a preservação dos valores indispensáveis para a
preservação da dignidade humana.
A democracia pode ser classificada em duas espécies: direta e
indireta. A democracia direta consiste no modelo em que as normas são
votadas de forma direta pelos membros da sociedade, sendo dispensada a
figura do representante. Já a democracia indireta, cujo modelo foi adotado no
Brasil, é aquela onde a vontade do povo é manifestada pelas ações dos
representantes eleitos.
A doutrina ainda apresenta a modalidade de democracia semidireta,
caracterizada pela existência de institutos que permitem que a população
opine diretamente sobre os assuntos governamentais. Nosso ordenamento
jurídico prevê a existência de mecanismos de democracia semidireta, como
por exemplo o plebiscito e o referendo, todavia, tais instrumentos são pouco
utilizados, e por essa razão, ainda pouco compreendido pelos eleitores.
Pode-se afirmar que uma das principais características do regime
democrático é a ampla defesa da dignidade humana. Por esta razão, a
Constituição Federal de 1988 eleconcou a dignidade humana como
fundamento do Estado, de forma que todo o texto constitucional está
amparada neste princípio. Desta forma, um verdadeiro Estado Democrático
deve promover a dignidade humana, conforme ensina Sarlet “[...] um Estado
democrático que mereça ostentar esta condição pressupõe respeito e
promoção da dignidade da pessoa humana [...]” (SARLET, 2009, p. 105).
Desta forma, pode-se afirmar que a democracia é o instrumento
adequado para o alcance da promoção social através da diminuição da
desigualdade social, pois uma sociedade onde a desigualdade se cristaliza,
O papel da propaganda eleitoral...
// 301
não produz as condições necessárias para o fortalecimento do Estado.
Ademais, a segregação social inviabiliza a ideal proteção da dignidade
humana e por conseguinte, dos direitos da personalidade.
A democracia no Brasil é ainda muito recente, e por tal razão,
infelizmente ainda não se verifica a estruturação política desejada. Falta-nos
tradição neste regime, e em especial às camadas sociais menos favorecidas,
real noção acerca do significado deste instituto e da sua importância
enquanto instrumento de inclusão social.
17.3 JUSTIÇA ELEITORAL
Desde as eras mais remotas, os homens organizam-se em grupos,
com objetivo de criar um método eficiente de sobrevivência, dando origem ao
que hoje denominamos de sociedade. Dentro deste contexto, sempre houve
o desenvolvimento de alguma forma de organização e de liderança do grupo
com instituição de poder, o que mais tarde daria origem ao sistema político
de organização estatal.
Nesse contexto de evolução histórica, teve origem a Justiça Eleitoral
no Brasil, que foi fruto da Revolução de 1930, com o objetivo inicial de
organizar a escolha daqueles que seriam os representantes de toda a
sociedade. A criação da Justiça Eleitoral deu-se em 1932, criando os
parâmetros iniciais do processo eleitoral, com vistas à organização do
processo de escolha dos representantes políticos.
O sistema jurídico brasileiro destaca-se portanto, por possuir uma
Justiça Eleitoral Especializada, com garantia em sede constitucional, a qual
incumbe o papel peculiar de gerenciar todo o processo eleitoral, desde a
realização do registro de candidatura até a diplomação dos eleitos, de forma
que este processo de escolha seja moralmente legítimo. Cumpre ainda, julgar
as eventuais controvérsias preexistentes ou aquelas que perdurarem ou
forem ajuizadas após a realização das eleições.
Destaca-se a Justiça Eleitoral por ser um órgão jurisdicional e
independente, conforme sintetiza Costa:
A Justiça Eleitoral é órgão jurisdicional, concebido com a finalidade de cuidar
da organização, execução e controle dos processos de escolha dos
candidatos a mandatos eletivos (eleições), bem como dos processos de
plebiscito e referendo. Não está a Justiça Eleitoral inserida como apêndice
do poder executivo, nem tampouco submetido à esfera de atuação do poder
legislativo. Trata-se de um órgão de natureza jurisdicional, engastado na
estrutura do poder judiciário, consoante prescreve o art. 92, inc. V, da
Constituição Federal de 1988 (COSTA, 2008, p. 245).
No âmbito da Constituição Federal, a Justiça Eleitoral encontra-se
normatizada pelos artigos 118 a 121. No plano infraconstitucional, o principal
documento legal é Código Eleitoral (Lei 4.737/65), mas existem outras
importantes leis que versam sobre o tema, merecendo especial destaque a
Lei das Eleições (Lei 9.504/97). O Direito Eleitoral pertence ao ramo do Direito
302 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Público, tendo como principal função “[...] regular o exercício da soberania
popular. A democracia portanto, é antecedente lógico do Direito Eleitoral”
(CHIMENTI, 2011, p. 09).
É grande o esforço do legislador para manter atualizada as normas
que regem o processo eleitoral, que deve obedecer o princípio da anualidade
que estabelece “Em resumo, a lei que alterar o processo eleitoral deverá, para
ter aplicação, ser publicada um ano antes da realização da eleição”
(VELLOSO, 2014, p. 53).
Merecem especial atenção, sobretudo as normas que tratam das
condições de elegibilidade, prestação de contas de candidatos e partidos
políticos e propaganda eleitoral. Esta última por sua vez, merece especial
atenção do legislador, em razão das constantes inovações tecnológicas que
tornam cada vez mais difícil o controle de divulgação de informações que
configuram exercício de propaganda irregular.
17.4 EXERCÍCIO
DEMOCRACIA
DA
SUFRÁGIO
COMO
PRESSUPOSTO
DA
A realização da soberania se verifica por intermédio da manifestação
da vontade da população. Tal manifestação se realiza através do exercício
do sufrágio, que consiste no instrumento garantidor da manifestação da
escolha legítima da sociedade. Consiste o sufrágio no direito político subjetivo
de participação no processo. Diferencia-se do voto, que é o mecanismo de
exteriorizaão do sufrágio.
A doutrina destaca a existência de duas modalidades de sufrágio:
restrito e universal. Define-se o sufrágio restrito, como a modalidade em que
apenas determinado grupo é habilitado para o exercício do voto. Tal
modalidade equivale ao modelo censitário, que durante longo período da
história vigorou em nosso país.
Diferentemente, o sufrágio universal, como diz o próprio nome, é
acessível a todos, não admitindo qualquer distinção. O sufrágio universál é a
modalidade de sufrágio característica do regime democrático, na medida em
que possibilita uma maior integração entre as diversas camadas sociais, em
razão da equivalência do valor do voto dos eleitores, que contribuem
diretamente para a formação da estrutura governamental do país.
Em razão da instituição do regime democrático, o Brasil adotou o
modelo de sufrágio universal, garantindo a todos o direito de participação do
processo de escolha dos representantes políticos, desde que preenchidos os
requisitos estabelecidos pela legislação eleitoral para aquisição do status de
eleitor.
Ainda hoje infelizmente, apesar da ampla proteção à liberdade de
voto conferida pela legislação, a democracia permanece sendo uma realidade
distante para muitos, em razão das más condições sociais e culturais
existentes, que restringem o exercício pleno da liberdade do indivíduo.
O papel da propaganda eleitoral...
// 303
17.4.1 Alistamento eleitoral
O alistamento eleitoral é o mecanismo através do qual um
determinado sujeito habilita-se como eleitor perante a Justiça Eleitoral,
através do registro de seus dados no Cadastro Nacional de Eleitores. Através
deste procedimento, o sujeito comum passa a fazer parte da estrutura da
Justiça Eleitoral, compondo o rol de eleitores, recebendo capacidade eleitoral
ativa, estando autorizado ao exercício do voto.
Através do alistamento eleitoral, o sujeito adquire a cidadania de fato,
na medida em que recebe através do titulo eleitoral, o passaporte que
autoriza o seu ingresso na construção da vontade política do Estado, sendo
o instrumento que o habilita para a participação no processo democrático.
Nos termos do que prescreve o artigo 14, §1º, I, da Constituição
Federal, o alistamento eleitoral é obrigatório para os maiores de 18 anos. O
inciso II da citada norma, prevê as hipóteses de facultatividade, quais sejam:
para os maiores de 70 anos, analfabetos e para os maiores de 16 e menores
de 18 anos.
A obrigatoriedade do alistamento eleitoral está diretamente ligada à
idéia de obrigatoriedade do voto, o que para muitos não é compatível com a
idéia de um sistema político democrático. Todavia, deve-se ter em mente que
a obrigatoriedade é de comparecimento à seção eleitoral e não de exercício
de voto efetivo, na medida em que o eleitor pode deixar de realizar o seu voto
de modo válido, ainda que cumpra a sua obrigação de comparecimento às
urnas.
17.4.2 Direitos políticos
Tratam os direitos políticos, da prerrogativa conferida pelo legislador,
que possibilita que os membros da sociedade possam participar das decisões
do governo. Tais direitos foram destacados pelo legislador constituinte,
estando elencados no capítulo IV da Constituição Federal, que também
descreve as hipóteses de perda e de suspensão.
Os direitos políticos estão diretamente aliados ao ideal de cidadania,
e em consequência disso, estão ligados à própria idéia de democracia, haja
vista que esta se define pela existência e pelo gozo de direitos políticos.
Conforme explica Costa:
[...] há um Direito Político que diz respeito ao cidadão propriamente dito, à
media que ele representa, com o exercício da cidadania, parte de um todo
que constitui a Nação, no seu conceito eminentemente social ou sociológico.
A garantia do exercício desse Direito Político, referente ao cidadão,
manifesta-se costumeiramente no direito positivo pela definição e declaração
de direitos, geralmente abrigados na Constituição. Além disso, expressa-se
na conceituação dos direitos políticos, a partir da colocação legal a respeito
de eleitores, alistamento, voto, sufrágio universal, exercício, perda ou
suspensão desses direitos, elegibilidade, condições de elegibilidade,
304 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
inelegibilidade, partidos políticos (sua formação, constituição e participação,
direitos e deveres de seus filiados) etc. (COSTA, 2004, p. 31).
De acordo com a doutrina, existem duas espécies de direitos
políticos: positivos e negativos. Os direitos políticos positivos ou ativos, tratam
do direito do cidadão escolher livremente os seus representantes. Já os
direitos políticos negativos ou passivos, consistem na prerrogativa de receber
o voto dos demais cidadãos, por ocasião do ingresso como candidato na
disputa eleitoral.
A capacidade eleitoral ativa é adquirida pelo indivíduo na
oportunidade em que realiza o alistamento eleitoral, momento em que o
sujeito passa a pertencer ao quadro de eleitores da Justiça Eleitoral. A
capacidade eleitoral passiva depende diretamente da existência da
capacidade eleitoral ativa, sendo a ela acrescido os critérios de elegibilidade,
estabelecidos pela Constituição Eleitoral e pela legislação eleitoral.
Por ser um instrumento que garante a própria existência da
democracia, os direitos políticos funcionam como uma chave de acesso que
garante a participação popular na formação da estrutura política do Estado.
Por tal motivo, permitiu o legislador que eventuais condutas que desabonem
a figura dos agentes políticos, tenham como medida punitiva a restrição de
seus direitos políticos.
Neste sentido, a restrição de direitos políticos tem o condão de limitar
o acesso ao poder de pessoas que não tenham real compromisso de
cumprimento da vontade social e de cuidado com o patrimônio público,
conforme prevê o art.37, §4º, da Constituição Federal. Tal restrição foi
ampliada pela Lei Complementar nº 135/2010, a chamada “Lei da Ficha
Limpa”, que amplicou o rol de delitos que ensejam o registro de inelegibilidade
posteriormente ao cumprimento da pena imposta, como medida de proteção
da probidade administrativa.
17.5 HABILITAÇÃO DO CANDIDATO A CARGO ELETIVO
17.5.1 Elegibilidade
Existem alguns critérios legais que devem ser observados por
aqueles que propõe-se a ingressar na disputa eleitoral. Tais condições não
tem cunho restritivo, mas apenas regulamentar, no sentido de estabelecer
critérios mínimos para que um eleitor exerça seus direitos políticos passivos,
ou seja, para que possa tornar-se candidato.
O cumprimento de tais exigências, tem como finalidade
estabelcer critérios legais objetivos para o ingresso na disputa eleitoral, de
acordo com o cargo pretendido, com a intenção de garantir a lisura do pleito
e de preservar a soberania nacional. Alem disso, tais critérios tem a finalidade
de conferir igualdade de condições de acesso para o ingresso na disputa
eleitoral, como para a preservação da própria democracia.
O papel da propaganda eleitoral...
// 305
O artigo 14, §3º, do texto constitucional elenca algumas condições
para que um determinado possa candidatar-se ao exercício de um mandato
político, sendo eles: nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos
políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral na circunscrição pelo
período mínimo de um ano antes da data de realização do pleito, filiação
partidária e idade mínima para o cargo pretendido. Tais condições devem ser
observadas pelo juiz responsável, por ocasião da proposição do registro de
candidatura.
17.5.2 Inelegibilidade
A inelegibilidade consiste na condição que impede que um
determinado sujeito possa ingressar na disputa para cargo eletivo, em razão
da limitação de sua capacidade eleitoral passiva. As hipóteses de
inelegibilidade estão previstas na Constituição Federal, e de forma especial
na Lei Complementar nº 64/90. Cumpre aqui destacar a atualização
apresentada pela Lei Complementar nº 135/2010, vulgarmente conhecida
como Lei da Ficha Limpa, que ampliou o rol de crimes que ensejam o registro
de inelegibilidade no cadastro do eleitor, após o cumprimento da penalidade
imposta.
A inelegibilidade compromete diretamente a capacidade eleitoral
passiva do eleitor. Segundo a doutrina, existem duas formas de
inelegibilidade: absoluta e relativa. A inelegibilidade absoluta aplica-se a
qualquer cargo eletivo, ao passo que a inelegibilidade relativa está limitada
ao exercício de mandatos específicos, em razão de algumas condições
especiais dos pretensos candidatos, como por exemplo as hipóteses
impeditivas em razão de casamento, grau de parentesco ou afinidade,
conforme previsto no artigo 14, § 7º da Constituição Federal.
Os impedimentos impostos pela legislação, tem o objetivo de
preservar o regime democrático, na medida em que restringe o acesso ao
processo seletivo daquelas pessoas que, em razão de possuírem
determinadas condições particulares, possam comprometer a lisura do pleito,
ou até mesmo de afetar o cumprimento dos princípios da moralidade e da
probidade administrativa, que são essenciais à manutenção do Estado.
17.5.3 Requisitos adicionais
Para que um eleitor detenha capacidade eleitoral passiva plena, ele
deve reunir algumas características especiais para o ingresso na disputa
eleitoral. Dentre tais características, merece destaque a capacidade eleitoral
ativa, pois a elegibilidade é requisito indispensável para a realização do
registro de candidatura. Ao apresentar o registro de candidatura, o pretenso
candidato deverá comprovar tal capacidade através da comprovação de
regularidade da sua inscrição eleitoral.
A elegibilidade é pressuposto necessário para a realização do
registro de candidatura, mas não é suficiente para um indivíduo tornar-se
306 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
candidato. Além da comprovação das condições de elegibilidade, o candidato
deverá igualmente comprovar a inexistência de hipótese de inelegibilidade,
através das certidões emitidas pelos órgãos competentes, bem como de sua
regular filiação a partido político pelo prazo estabelecido pela legislação
eleitoral.
Deverão ainda ser observadas as regras específicas de filiação
estabelecidas pelo partido no qual o eleitor encontra-se filiado para escolha
de um candidato em convenção partidária, cujos critérios devem estar
previstos em estatuto, pois “[...] a matéria a respeito dos critérios de escolha
do pretenso candidato é, de regra, de competência do partido político, pessoa
jurídica de direito privado, motivo pelo qual não compete à Justiça Eleitoral
nela intervir.” (STOCO, 2010, p. 197).
Importante ressaltar que um determinado indivíduo poderá
candidatar-se a apenas um cargo em cada pleito, não sendo autorizada a
múltipla candidatura, posto que isso prejudicaria o transcurso equilibrado do
processo eleitoral. Deverão ainda ser observadas as hipóteses de
desincompatibilização, que podem obstar o registro de candidatura.
17.6 DEMOCRACIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE
No verdadeiro ambiente democrático, os cidadãos gozam de plena
liberdade de manifestação de sua preferência política. Essa possibilidade de
participação indireta na construção da estrutura política do Estado, se dá
através dos representantes eleitos, a quem cumpre o dever os interesses da
coletividade.
A manifestação livre dos representados no processo de escolha é
valor essencial da dignidade humana, sendo indispensável para a
manutenção da própria democracia, conforme sustenta Cantali “A dignidade
da pessoa humana é valor fundante que serve de alicerce à ordem jurídica
democrática” (CANTALI, 2009, p. 86).
Os direitos da personalidade possuem valor relevante em nossa
ordem jurídica, servindo de parâmetro para aplicação dos demais ramos do
direito, na medida em que estão diretamente aliados à dignidade humana Não
por acaso, mereceu especial destaque do legislador e tem merecido cada vez
mais especial atenção dos tribunais eleitorais no julgamento de ações que
desrespeitam os direitos da personalidade de candidatos a cargo eletivo, em
especial pela má utilização das ferramentas de propaganda eleitoral.
Os direitos da personalidade estão ligados à existência da própria
pessoa, não sendo um mero valor criado pelo legislador. Tais direitos estão
diretamente aliados à dignidade humana e por esta razão, estabelecem a
prioridade do indivíduo em relação ao Estado, servindo de limite de aplicação
dos demais direitos. Importa no reconhecimento de que a pessoa é a
finalidade principal da própria estruturação do Estado, cuja existência se
justifica para a preservação da própria sociedade.
No âmbito eleitoral, merece especial destaque os direitos relativos à
honra e à imagem dos candidatos que ingressam na disputa de determinado
O papel da propaganda eleitoral...
// 307
pleito, posto que tais direitos são comumente atingidos no exercício da
propaganda eleitoral, com objetivo claro de prejudicar o candidato adversário
e atingir a sua imagem social, ou seja, a sua honra objetiva, prejudicando o
equilíbrio da concorrência.
17.7 PROPAGANDA ELEITORAL E DIREITOS DA PERSONALIDADE
A Lei nº 9.504/97 estabelece o período e as formas de realização de
propaganda eleitoral, bem como estabelece limites e vedações. A referida
norma serve de base para a elaboração do Calendário Eleitoral e para as
resoluções expedidas pelo Tribunal Superior Eleitoral para cada eleição,
como tentativa de atualizar os mecanismos de proteção de direitos e
normatizar as novas formas de propaganda que surgem em razão do
constante avanço tecnológico, na tentativa de criar um ambiente equilibrado
de disputa.
Este assunto merece constante monitoramento do legislador, haja
vista o grande público que é atingido por informações que podem gerar
impacto direto no resultado das urnas. Por esse motivo, o Tribunal Superior
Eleitoral periodicamente atualiza as suas normas, com o objetivo de delimitar
a atuação da propaganda eleitoral e garantir a lisura do pleito.
Portanto, a propaganda eleitoral constitui um direito-dever dos
candidatos, partidos e coligações, na medida em que para exercer este
direito, deve-se observar os limites legais estabelecidos pela legislação
eleitoral. A verificação do cumprimento destes limites é realizada através do
exercício do poder de polícia, através do qual os juizes eleitorais devem coibir
o mal comportamento em relação ao exercício da propaganda, para desta
forma, garantir a lisura e o equilíbrio do processo de escolha dos
representantes.
Tais limites devem ser observados por todos os candidatos
indistintamente, pois o objetivo da regulamentação do exercício da
propaganda eleitoral, é proporcionar um ambiente de competição saudável
entre os candidatos, sob a ótica da garantia constitucional de liberdade de
manifestação do pensamento e da preservação dos direitos da
personalidade.
A propaganda eleitoral é um dos elementos de maior importância na
campanha eleitoral, posto que é através deste mecanismo que os candidatos
tornam públicas as suas imagens e propostas. Nesta linha de pensamento
corrobora Sobreiro Neto:
A disputa eleitoral, fenômeno perene e naturalmente efervescente devido aos
interesses em jogo, para que cumpra o desiderato de instrumento seletivo do
sistema representativo, conta com o mecanismo da propaganda política,
criado com o propósito de expor aos eleitores a antítese ideológica vigente e
as propostas, partidárias ou individuais, pretensamente factíveis
(SOBREIRO NETO, 2008, p. 145).
308 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Este mecanismo também constitui importante conquista do regime
democrático instaurado, e em razão da própria recente história de
implantação da democracia em nosso país, é por muitas vezes mal utilizada.
Apesar de seu importante papel de cunho informativo, a propaganda
eleitoral também possibilita o desrespeito aos direitos da personalidade dos
candidatos, sobretudo nos dias de hoje, onde as informações tornam-se
globalizadas em segundos, podendo causar danos irreparáveis à vida
pessoal e pública do indivíduo que submete-se à disputa de cargo eletivo.
Esta postura combativa, em especial nos horários reservados para realização
de propaganda gratuita no rádio e na TV, tornaram-se rotina infelizmente nos
dias atuais, não havendo preocupação com a preservação dos direitos da
personalidade.
Com o crescente surgimento de novas tecnologias e meios de
comunicação social, o meio jurídico também caminha no sentido de
regulamentar as novas situações que se apresentam no âmbito da
propaganda eleitoral, bem como de garantir a preservação dos direitos da
personalidade dos candidatos.
A globalização, a transformação da sociedade e do Estado
juntamente com as mudanças visíveis no comportamento da sociedade
acerca da percepção de espaço próprio e de limite de invasão do espaço
alheio, tornaram comuns os casos de agressão aos direitos da personalidade.
Tal situação verifica-se de forma particular no período destinado à
propaganda eleitoral que antecede as eleições, período em que a
complexidade própria dos ânimos exaltadas dos candidatos, torna o
mecanismo da propaganda eleitoral em ferramenta de ataque ao adversário
na disputa eleitoral.
Sobre as penalidades previstas na legislação eleitoral, verifica-se que
em várias hipóteses as mesmas não alcançam o objetivo punitivo almejado,
uma vez que a volatilidade da informação propagada alcança tamanha
proporção que o prejuízo não pode ser mensurado com precisão. Apesar de
existirem penalidades no que tange às práticas abusivas que ocorrem por
ocasião da realização da propaganda, o sistema eleitoral nem sempre
protege devidamente as violações dos direitos da personalidade dos
candidatos, haja vista que seus mecanismos por vezes são mais pedagógicos
que punitivos.
Claro é que a liberdade de expressão constitui um direito fundamental
por excelência de todos os indivíduos, e o seu exercício contribui para o
alcance da plena dignidade. Portanto, a liberdade de expressão é essencial
para a construção de uma democracia saudável, onde aqueles que se
propõem à disputa de um cargo eletivo possam expor suas propostas e idéias
sem interferência. Todavia, essa manifestação deve observar o limite de
espaço de seus concorrentes, que não poderão ter a sua dignidade atacada
sem fundamento.
Em razão da busca pela preservação da liberdade de expressão
como fruto da construção do ideal da democracia, em especial pelo fato do
recente histórico de cerceamento de liberdades que antecederam a edição
O papel da propaganda eleitoral...
// 309
da Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que nos dias de hoje, uma
das principais dificuldades dos operadores do Direito Eleitoral de forma geral,
é estabelecer os limites da crítica política.
Nesse sentido esclarece o autor Sobreiro Neto:
Os atos de propaganda, que apresentem cunho de busca de votos, ou seja,
mencionem candidatura (chamadas pré-candidaturas), estarão sujeitos às
sanções previstas na lei eleitoral, incluindo-se mensagens subliminares ou
técnicas que tragam lembrança de nome ou apelido de notório candidato,
com ou sem alusão ao ano eleitoral. A criatividade dos aspirantes ao pleito é
grande e muitas vezes o operador do direito deverá observar o contexto
fático, segundo a realidade política local (SOBREIRO NETO, 2008, p. 151).
A ideia da jurisdição eleitoral, dentro da estrutura política democrática
vigente, consiste na ideia de intervenção mínima, pois a liberdade é parte
integrante do processo democrático. Todavia, o que tem-se observado nos
dias atuais, é uma verdadeira barbárie nos programas eleitorais, onde os
candidatos, ao invés de divulgarem suas propostas, promovem ataques
ácidos contra os seus adversários.
No mais, verifica-se um verdadeiro hábito a realização destes
ataques, em especial quando se aproxima da realização do pleito. Esta
cultura de ataque está fortalecida junto aos partidos e correligionários, e vem
piorando a cada eleição que se realiza. Por essa razão deve haver uma
postura mais efetiva no que diz respeito à preservação dos direitos da
personalidade, posto que o exercício da democracia não pode diluir tais
direitos.
17.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da realização do presente trabalho, verificou-se que a
democracia é um instrumento de agregação, indispensável para o
estabelecimento de um convívio harmônico, na medida em que permite que
qualquer membro da sociedade que adquira a condição de eleitor perante a
Justiça Eleitoral, sem distinção de ordem econômica, social ou cultural, possa
contribuir de forma ativa para a construção da vontade política do Estado.
A Constituição Federal de 1988 é o instrumento de maior importância
de defesa da liberdade da participação popular na construção política do
Estado, sendo fruto de intensa luta contra a repressão à liberdade política.
Por essa razão, o texto constitucional conferiu ampla proteção à dignidade
humana, trazendo-a como fundamento do Estado Democrático de Direito,
com objetivo claro de abandonar os traços de repressão do regime
precedente, que deixaram sérias marcas negativas na história política do
nosso país.
Através do exercício da liberdade democrática, os indivíduos que
adquirem a condição jurídica de eleitor perante a Justiça Eleitoral, podem
escolher de forma livre e direta os seus representantes. Podem igualmente,
desde que cumpridos os critérios estabelecidos pela legislação eleitoral e
310 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
pela Constituição Federal, habilitar-se para a disputa de cargo eletivo. Neste
processo de escolha, a propaganda eleitoral ocupa papel de destaque, na
medida em que atua como meio de comunicação direta entre os candidatos
habilitados e o eleitorado.
Entretanto, esta não é a realidade prática verificada, posto que não
raras vezes o mecanismo da propaganda eleitoral é utilizado como
ferramenta de ataque, e não como instrumento de comunicação e de
divulgação de propostas dos pretendentes ao mandato eletivo. Na maioria
das vezes, a propaganda somente é utilizada para desmerecer as qualidades
pessoais do adversário político, ao invés de cumprir o papel de divulgação de
propostas de plano de governo.
Aos julgadores cumpre o difícil papel de verificar os limites aceitáveis
das discussões eleitorais, e aplicar as medidas necessárias para fazer cessar
os abusos que comprometem a preservação dos direitos da personalidade,
para desta forma, garantir que a realização do pleito se dê de forma
equilibrada, com efetivo respeito aos direitos da personalidade daqueles que
propõe-se à disputa, posto que tal medida é essencial para a manutenção da
garantia da própria democracia.
Diante da realidade verificada, em que os abusos aos direitos da
personalidade no exercício da propaganda eleitoral tornaram-se frequentes,
a jurisprudência tem enaltecido a necessidade de preservação dos direitos
da personalidade, posto que a liberdade de informação no exercício da
propaganda eleitoral não pode ser exercida de forma irresponsável, devendo
ser aplicada a penalidade correspondente.
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O RECONHECIMENTO JURISPRUDENCIAL DOS ALIMENTOS
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SOCIOECONÔMICO ENTRE EX-CONSORTES
Jaime Leônidas Miranda Alves*
Kaiomi de Souza Oliveira Cavalli**
18.1 INTRODUÇÃO
O Direito Civil passou nos últimos anos por diversas mudanças com
a promulgação do Novo Código Civil, na década passada, e o advento de
teorias que analisaram sob novo prisma muitos de seus institutos clássicos.
Ocorreu o fenômeno de constitucionalização do Direito Privado, fazendo com
que instituições do Direito Civil fossem elevadas a nível constitucional
passando a ser observadas consoante o crivo dos comandos de máxima
efetivação dos princípios constitucionais e também do direito internacional
dos direitos humanos.
Essas modificações foram mais radicais ainda no tocante ao Direito
das Famílias, que se tornaram complexas e multifacetárias. Nesse diapasão,
surgem novos institutos, como a união estável e ampliam-se as possibilidades
jurídicas de família, com o reconhecimento jurídico do afeto, além de
construções doutrinárias embebidas em legislações em alienígenas, tal como
é o caso dos alimentos compensatórios, que ganham a cada dia, mais
relevância nos tribunais.
O instituto dos alimentos compensatórios é criação nova no
ordenamento pátrio, influenciada diretamente pelos ordenamentos francês e
espanhol, e busca restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro existente
entre os ex-consortes, restaurando, na medida do possível, o padrão de vida
de ambos na constância da relação familiar, seja matrimonial ou
extramatrimonial.
Com efeito, não há legislação que regulamente os alimentos
compensatórios, fato que gera uma verdadeira neblina acerca de sua eficácia
e aplicabilidade. Questiona-se, assim, a relevância da aplicação dos
alimentos compensatórios como garantidor do princípio constitucional civil da
*
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia – Campus Cacoal. Pós-Graduando
em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS).
Secretário de Gabinete Substituto lotado na 3ª Vara Cível da Comarca de Cacoal do Tribunal de
Justiça do Estado de Rondônia.
**
Possui graduação em Direito pela Universidade de Marília (2002), Especialização em Direito
Penal e Processo Penal e MESTRADO EM DIREITO pela UNIVEM - Centro Universitário
Eurípides Soares da Rocha de Marília (2006). Atualmente é professora da UNIR - Universidade
Federal de Rondônia.
314 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
solidariedade familiar e agente reestruturador do equilíbrio econômicofinanceiro entre ex-consortes.
Tal análise se faz importante no sentido em que responde
questionamentos e busca apontar diretrizes para a consolidação do Direito
Civil Constitucional, que adota como baluartes primados dessa nova
hermenêutica constitucional, tais como a dignidade da pessoa humana, a
solidariedade social e a igualdade entre os cônjuges.
Para tanto, foi realizado pesquisa de ordem bibliográfica, tendo a
problemática sido respondida por meio da utilização do método indutivo, que
possibilitou criar um entendimento concreto por meio de embasamentos
abstratos.
18.2 ALIMENTOS
18.2.1 Aspectos introdutórios: conceito e natureza jurídica
Para fins didáticos, faz-se mister a conceituação dos alimentos
consentâneo o entendimento da doutrina majoritária. Assim, Gomes (2002,
p. 427) define alimentos como “[...] prestações para satisfação das
necessidades vitais de quem não pode provê-las por si”. Conforme Gonçalves
(2008, p. 449), alimentos compreendem “[...] não só o indispensável ao
sustento, como também o necessário à manutenção da condição social e
moral do alimentado”.
A obrigação de prestar alimentos decorre do direito fundamental de
sobreviver. Com efeito, sobreviver implica em garantir a vida, própria ou de
outrem, de maneira digna, consoante o disposto no art. 1°, III da Constituição
Federal de 1988, princípio delineador das estruturas do Estado Democrático
de Direito. Todavia, como consequência da impossibilidade do Estado
Mínimo em prover ao indivíduo o necessário para sua subsistência (digna),
surge toda a regulamentação acerca do direito de alimentos que, numa visão
pós-positivista, deixa de ser compreendido apenas como instrumento de
afirmação da dignidade da pessoa humana para se tornar expressão do
princípio constitucional da solidariedade.
Nesse contexto, a solidariedade geral passa a ser observada pelo
prisma da solidariedade familiar. Observa-se que o direito à prestação de
alimentos pode ser tido como afirmação do disposto no art. 3°, da Carta
Política, que prevê como objetivos da República a “[...] erradicação da
pobreza e da marginalização social”.
Nesse sentido, preleciona Coelho (2012, p. 195):
Nos horizontes delineáveis pelo modo de produção capitalista, a família ainda
deve exercer a função assistencialista, afinal em sistemas econômicos, como
o nosso, de crises periódicas e injustiças permanentes, é difícil construir-se
um programa eficiente de Seguridade Social, e, por isso, a família tende a
não se desvencilhar tão cedo do encargo de amparo aos seus, nas
enfermidades e velhice. Mesmo que o acúmulo social de força de trabalho
permita ao Estado, no futuro, garantir sua recuperação fora da família, os
O reconhecimento jurisprudencial...
// 315
laços afetivos nela existentes tendem a reservar sempre algum espaço para
a assistência aos seus membros. Grifo nosso
Muito se debate na doutrina civilista acerca da natureza jurídica dos
alimentos. A esse respeito, há verdadeira celeuma entre os estudiosos do
direito das famílias que se filiam a diversas correntes teorias, não havendo
assim que se falar em qualquer tipo de consenso.
Para Dias (2010, p. 506-507), obrigações de natureza alimentar
extrapolam o âmbito do direito das famílias, coexistindo, também: “[...] pela
prática de ato ilícito; (b) estabelecidos contratualmente; ou (c) estipulados em
testamento”, havendo em cada hipótese peculiaridades atinentes à origem da
obrigação. No direito de família, propriamente, a obrigação alimentar recebe
natureza a depender da fonte da obrigação. Nesse contexto, a obrigação de
prestar alimentos possui natureza eminentemente principiológica, decorrendo
do poder familiar, “[...] dever dos pais de sustentar os filhos” e da mútua
assistência, “decorrente do casamento e da união estável”.
Gonçalves, (2008, p. 451) filiado à lição de Gomes (2002, p. 179),
conquanto admita a existência das teorias da natureza de direito pessoal
extrapatrimonial, e de direito patrimonial, qualifica os alimentos como “[...]
direito de conteúdo patrimonial e finalidade pessoal.” A essa corrente,
acrescenta-se o posicionamento de Diniz (2008, p. 556) que enxerga nos
alimentos natureza mista, em razão de, nas palavras da autora,
apresentarem-se como “[...] uma relação patrimonial de crédito-débito”,
todavia, tenha sua finalidade destinada à manutenção digna da vida.
Vale menção ainda, a teoria defendida por Farias e Rosenvald (2010,
p. 669), segundo a qual os alimentos se caracterizam por sua natureza de
direito da personalidade, tendo em vista que “[...] se destinam a asseguram a
integridade física, psíquica e intelectual de uma pessoa humana”. Tal
pensamento parece o mais apropriado sob o crivo da hermenêutica
constitucional, uma vez que os princípios da Constituição Federal de 1988
que refletem sobre todo o direito das famílias.
Por fim, ultrapassado os questionamentos preliminares, volta-se a
pensar do princípio da dignidade da pessoa humana que, consoante a
assertiva de Farias e Rosenvald (p. 665), “[...] é a pedra de toque da fixação
dos alimentos”, condicionando, assim, toda regulamentação e aplicação
desse instituto âmbito do direito civil-constitucional.
18.2.2 Introito histórico
A doutrina do direito de família é uníssona a apontar o direito romano
como origem do instituto dos alimentos, como é hoje conhecido. Malgrado a
obrigação alimentar não se encontrar-se conceituada no direito romano, suas
facetas se faziam presentes em diversos institutos, tais como o testamento e
a convenção, por exemplo.
Todavia, num primeiro momento, ainda do florescimento da
monarquia romana, não havia de se falar em prestação alimentar, uma vez
316 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
que, segundo Cahali (2008, p .40): “[...] o pater familias concentrava em suas
mãos todos os direitos, sem que qualquer obrigação o vinculasse aos seus
dependentes, sobre os quais, aliás, tinha o ius vitae et necis” – o poder sobre
a vida e a morte.
Assim, nesse momento histórico, aqueles que se encontravam
“vinculados ao pater familias não poderiam exercitar contra ele nenhuma
pretensão de caráter patrimonial, pois todos eram privados de qualquer
capacidade patrimonial” (GULIM; LIGEIRO, p. 7, 2009).
A respeito da prestação alimentar no seio da família romana, aduz
Pereira (2003, p. 3):
Entre os romanos, os alimentos concedidos pelo marido à esposa, diziam-se
prestados a título de officium pietatis, espelho da situação de inferioridade,
restrição de direitos e discriminação, em que então vivia a mulher, a exemplo
dos filhos e dos escravos, submetida à autoridade do pater familias, que
sobre eles, inclusive, detinha o poder de vida e morte (ius vitae et nescis).
Com a evolução e eventual restruturação da sociedade romana,
observa-se uma significativa modificação da estrutura do pater famílias, e
como exemplo do exposto, criou-se uma legislação que amparava os
cônjuges, ascendentes, ascendentes, descendentes, irmãos e irmãs,
transformando o dever social de prestar alimentos em dever jurídico.
O direito justiniano traçou os primeiros contornos acerca da obrigação
de prestação de alimentos como instituto autônomo. Foi reconhecido a
obrigação alimentar “[...] entre ascendentes e descendentes em linha reta ao
infinito, paternos e maternos na família legítima, entre ascendentes maternos,
pai e descendentes na família ilegítima” (FRANCO; MACEDO et al, 2008, p.
144).
Foi no direito canônico que se deu o grande desenvolvimento acerca
do instituto dos alimentos, uma vez que, nesse período, foi disciplinado um
corpo normativo no qual a obrigação de prestação alimentícia se estendeu
sobrepondo os limites da relação matrimonial e familiar. Assim, foram
alcançados aqueles vinculados por uma relação de família ilegítima, por
parentesco civil e espiritual. Excepcionalmente, o direito canônico admitia a
obrigação da Igreja Católica e do Estado em prover o mínimo necessário para
aquele incapacitado de prover sua subsistência.
18.2.3 Evolução do instituto dos alimentos no ordenamento brasileiro
No direito brasileiro pré-codificado, período marcado pelo início da
colonização lusitana e organização das Ordenações Filipinas, já existiam
alguns dispositivos que tutelavam o direito objetivo aos alimentos, seja por
parte do Estado ou da própria família. Entre outras medidas, era facultado ao
juiz prover o necessário para a sobrevivência dos órfãos e garantir que
aprendessem a ler e escrever até a idade de 12 anos. Tal fato demonstra
que, embora de maneira precária, a obrigação alimentar já existia muito antes
do início da vigência do Código Civil de 1916.
O reconhecimento jurisprudencial...
// 317
Com a evolução dos entendimentos principiológicos sustentadores
do ordenamento pátrio no último século, o instituto dos alimentos mudou
drasticamente. Com efeito, com o advento do Código Civil de 1916, período
no qual ainda se cogitava pensar em pátrio poder, era negado direito subjetivo
a alimentos aos filhos ilegítimos, expressão utilizada para determinar – e por
que não, discriminar? – aqueles havidos fora do casamento.
A situação de reconhecimentos dos filhos espúrios se modificou
sensivelmente, com a promulgação das Leis 883/49 e 7.841/89, conforme
lição de Dias (2010, p. 503):
Somente 30 anos após foi permitido ao filho de homem casado promover,
em segredo de justiça, ação de investigação de paternidade, apenas para
buscar alimentos. Embora reconhecida a paternidade, a relação de
parentesco não era declarada, o que só podia ocorrer depois de dissolvido o
casamento do genitor. Somente em 1989, é que foi admitido o
reconhecimento dos filhos “espúrios” em face do princípio da igualdade entre
os filhos, consagrado pela Constituição Federal.
Nesse contexto, a obrigação alimentar decorrente de casamento era
atribuída em desfavor do marido para com a mulher, inocente e pobre. A única
hipótese em que não subsistiria a obrigação de prestação alimentícia em
favor da mulher, era havendo, por parte desta, abandono do lar sem motivo
justificado, vez que sua condição de honestidade era condição si ne qua non
para a obtenção do benefício dos alimentos. Nas palavras de Dias (2010, p.
503) “[...] para fazer jus a eles, (alimentos), a mulher precisava provar não só
a sua necessidade, mas também que era pura e recatada, além de fiel ao exmarido, é claro”. Tal assertiva apenas reforça o perfil conservador e patriarcal
da época.
Com a Lei do Divórcio, Lei 6.515/77, qualquer dos cônjuges poderia
pagar alimentos ao outro. O que se verificava, consoante a previsão legal era
qual consorte teve culpa pelo rompimento da relação matrimonial. A lei em
comento dispunha em seu art. 19: “o cônjuge responsável pela separação
judicial prestará ao outro, se dela necessitar, a pensão que o juiz fixar”. Assim,
apenas o cônjuge inocente faria jus à prestação alimentícia, visto que a
conduta não eivada de culpa era o pressuposto fático para ser beneficiado
com a pensão alimentícia.
Afora os dispositivos já mencionados, trataram, ainda que de maneira
reflexa, sobre alimentos o Decreto-Lei nº 10/58, o Decreto n.º 6.515/77, a Lei
n.º 8.069 e o Novo Código Civil, Lei n.º 10.406/02.
Por fim, faz-se mister o comentário de que não só a legislação
ordinária discorre acerca dos alimentos, visto que a Constituição Federal de
1988 trouxas em seu bojo normas programáticas que, ainda que de forma
implícita, versam sobre esse instituto, a exemplo do art. 229 que estatui: “Os
pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos
maiores Tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência e
enfermidade”.
318 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
18.2.4 Características dos alimentos
Tanto os alimentos, quanto a obrigação alimentar propriamente dita,
possuem características próprias de seus institutos que, todavia,
complementam um ao outro. Para o fim desse estudo, elenca-se algumas das
características pertinentes aos alimentos consoante entendimento da
doutrina majoritária.
18.2.4.1 Personalíssimo
Os alimentos, em razão de se destinarem à subsistência do
alimentando, constituem direito pessoal, vale dizer, intransferível. Obtempera
Gonçalves: (2008, p. 467) “[...] a sua qualidade de um direito da
personalidade é reconhecida pelo fato de se tratar de um direito inato
tendente a assegurar a subsistência e integridade física do ser humano”.
18.2.4.2 Incessível
Cahali (2006, p.49-50) dispõe que “[...] é direito personalíssimo no
sentido de que a sua titularidade não passa a outrem por negócio jurídico ou
por fato jurídico”. Tem-se, então que a impossibilidade de cessão de crédito
futuro advindo da prestação de alimentos não pode ser objeto de cessão ou
qualquer espécie de transferência em decorrência de seu caráter
personalíssimo.
A esse respeito, prevê o art. 1707 do Código Civil que o crédito
decorrente de direito a alimentos é “insuscetível de cessão.” Todavia, esse
impedimento é de cunho relativo, haja vista que se a prestação alimentar se
encontrar vencida, isto é, já tiver se incorporado ao patrimônio do alimentado,
este pode dispor dela como bem entender.
18.2.4.3 Impenhorável
Estabeleceu o art. 1707 do Código Civil que o crédito decorrente de
direito a alimentos é “insuscetível de penhora”, o que busca resguardar a
existência física do objeto garantidor da mantença do alimentando. De forma
análoga, veda o art. 649, VII, do Código de Processo Penal a penhora das
pensões destinadas ao sustento do devedor ou de sua família.
Faz-se mister, todavia, o comentário de que a impossibilidade de
penhora está vinculada apenas ao necessarium vitae, podendo ser decretada
a penhora do crédito de prestações vencidas.
18.2.4.4 Incompensável
Outra das garantias preconizadas pelo art. 1707 do Código Civil é a
impossibilidade de compensação dos créditos alimentícios. A compensação,
consoante lição de Diniz (1997, p. 172) pode ser entendida como: “[...] um
O reconhecimento jurisprudencial...
// 319
modo de extinção de obrigação, até onde se equivalerem, entre pessoas que
são, ao mesmo tempo, devedora e credora uma da outra”. Uma vez que os
alimentos se configuram como o mínimo necessário para a manutenção da
vida digna do alimentando, a compensação, ao extinguir total ou parcialmente
a obrigação alimentícia, estaria gerando prejuízo irreparável para a sua
manutenção.
18.2.4.5 Imprescritível
O direito aos alimentos é imprescritível. Vale dizer, o direito subjetivo
do indivíduo de postular em juízo o pagamento da prestação alimentícia, não
prescreve, ainda que o autor da ação tenha permanecido inerte por vários
anos. Todavia, conforme preceitua o art. 206, §2º, do Código Civil prescreve
“em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da
data em que se vencerem.” Assim, o que prescreve é o direito de cobrar as
parcelas já fixadas em sentença, a partir da data de seu vencimento.
18.2.4.6 Irrestituível
Acerca da irrepetibilidade dos alimentos, pondera Dias (2010, p. 511)
que, uma vez que se trata de verba destinada a garantir a vida e “[...] se
destina à aquisição de bens de consumo para assegurar a sobrevivência,
inimaginável pretender que sejam devolvidos”.
Conforme já se manifestou a jurisprudência pátria, nem mesmo a
desconstituição do vínculo de paternidade, por meio de ação negatória de
paternidade, tem efeitos de restituir os alimentos prestados.
18.2.4.7 Intransacionável
Essa característica é consequência do caráter indisponível e
personalíssimo do direito aos alimentos e se encontra prevista no art. 841 do
Código Civil, que permite a transação apenas “[...] quanto aos direitos
patrimoniais de caráter privado”.
Tem-se, todavia, que a natureza
intransacionável está relacionada ao direito de pedir alimentos, uma vez que
o quantum pode ser objeto de juízo arbitral ou de compromisso
(GONÇALVES, 2008, p. 470).
18.2.4.8 Atual
Em decorrência da natureza de trato sucessivo e periódico da
prestação alimentar, o legislador previu no art. 1710 do Código Civil
atualização monetária segundo índice regularmente estabelecido com fins a
impedir que os efeitos da inflação diminuíssem o valor da prestação, o que
prejudicaria a mantença do alimentando. O direito aos alimentos deve ser
percebido ad futurum, não ad praeteritum, consoante o brocardo in
320 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
praeteritum non vivitur (DIAS, 2010). A necessidade da concessão dos
alimentos é inadiável sob pena de prejuízo irreparável ou de difícil reparação.
1.4.9 Irrenunciável
Acerca da irrenunciabilidade do direito aos alimentos, dispõe Venosa
(2008, p. 355) “[...] o direito pode deixar de ser exercido, mas não pode ser
enunciado, mormente quanto aos alimentos derivados do parentesco”. Tal
entendimento se mostra conforme o previsto no art. 1707 do Código Civil,
malgrado, hoje se tenha o entendimento majoritário da jurisprudência e da
doutrina civilista em sentindo contrário. Segundo a corrente mais expressiva,
da qual se destaca o posicionamento de Farias e Rosenvald (2010), há de se
falar em irrenunciabilidade dos alimentos apenas na hipótese em que o
alimentando é incapaz nos moldes dos art. 3º e 4º do Código Civil.
Obtemperam:
Dessa maneira, apesar da redação do art. 1.707 do Codex, é possível
concluir que o entendimento prevalecente é no sentido de que os alimentos
são irrenunciáveis, apenas, quando fixados em favor de incapazes, como no
exemplo dos alimentos devidos entre pais e filhos ou entre avós e netos
(alimentos avoengos). Entre cônjuges, companheiros e parceiros
homoafetivos, quando do término do casamento, da união estável ou da união
homoafetiva, respectivamente, admite-se a renúncia, sendo vedada a
cobrança posterior do pensionamento, até porque a relação jurídica familiar
já se extinguiu (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 641).
Nesse diapasão, o Enunciado 263 da Jornada de Direito Civil vai no
sentido de que o art. 1707 do Código Civil não veda o reconhecimento válido
e eficaz de “[...] renúncia manifestada por ocasião do divórcio ou da
dissolução da união estável. A irrenunciabilidade do direito a alimentos
somente é admitida enquanto subsiste vínculo do direito de família”.
A par das características supramencionadas, a doutrina enumera
algumas outras, tais como a reciprocidade, inalienabilidade, alternatividade,
anterioridade e peridiocidade.
18.3 ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS COMO MEIO DE RESTABELECER
O EQUILÍBRIO SOCIOECONÔMICO ENTRE OS EX-CONSORTES
O fim do enlace, matrimonial ou extramatrimonial, traz como
consequência a modificação de vários aspectos da vida dos excompanheiros. Tais modificações, como regra, não interessam ao Direito,
visto que são acontecimentos ordinários, típicos da extinção da entidade
familiar.
Contudo, ocorrendo a hipótese em que um dos cônjuges tenha por
modificado seu padrão de vida econômico de maneira a ameaçar a sua
O reconhecimento jurisprudencial...
// 321
própria mantença, faz-se necessário uma compensação por parte do excompanheiro, que se dá na figura dos alimentos compensatórios.
Alimentos compensatórios são aqueles existentes quando do fim da
relação matrimonial, ou de união estável, subsiste a necessidade de “[...]
equiparar os perversos efeitos decorrentes da ruptura da conjugalidade,
diminuindo as perdas do padrão de vida social e econômico de um dos
consortes” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 790).
Nesse jaez, faz-se mister a menção à tentativa conceitual de Almeida
e Rodrigues Júnior (2012, p. 413) acerca dos alimentos compensatórios, para
quem:
Considera-se o intuito da prestação compensatória como uma nova técnica
substitutiva da pensão alimentícia conjugal, consistindo num pagamento
destinado a compensar, no que couber, o desequilíbrio econômico
ocasionado pela extinção do casamento e da união estável nas condições de
vida do cônjuge ou companheiro.
Observa-se que o instituto dos alimentos compensatórios se faz
presente apenas nas hipóteses em que foi adotado, seja por força da Lei, seja
por manifestação volitiva dos ex-consortes o regime de separação de bens.
Ressalva-se que, mesmo nesses casos, não se busca equiparar as
condições financeiras daqueles que eram casados ou viviam em união
estável, visto que a desigualdade econômica existia ainda durante o período
em que conviveram, sendo suprida pelo outro consorte em decorrência do
dever de assistência que regia a relação familiar.
Na teoria de alimentos compensatórios não se cumpre discutir qual
dos cônjuges agiu com culpa para com o fim da relação afetiva, uma vez que
o instituto em questão não objetiva a indenização, mas apenas a
compensação daquele prejudicado economicamente. Estima-se que, “[...] o
que cada um já possuía, perdeu ou deixou de produzir em função do
relacionamento” (MADALENO, 2011, p. 20), que poderá ser convertido na
forma de pensão compensatória, relativizando-se, assim, o regime da
separação de bens.
Conforme ensina Gridard Filho (2012, p. 118) os alimentos
compensatórios ingressaram nos tribunais brasileiros por meio das
influências exercidas pelo direito estrangeiro, a destacar o francês e o
espanhol, uma vez que a legislação brasileira ainda não regulamentou
propriamente este instituto.
Nesse sentido, o instituto dos alimentos compensatórios vem
ganhando força na doutrina e jurisprudência pátria com vistas a garantir o
princípio constitucional da igualdade entre os gêneros e o princípio da
solidariedade familiar, que se entende resistir mesmo ao fim da relação
conjugal (SOUZA, 2013, p. 40).
Apesar da ausência de previsão legal, o adoção significativa da teoria
do instituto dos alimentos compensatórios pelos tribunais se dá em razão dos
baluartes deste institutos se moldarem consoante os princípios
constitucionais da solidariedade, dignidade da pessoa humana,
322 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
responsabilidade e igualdade, princípios estes fundamentais ao direito de
família (PEREIRA, 2010, p. 135).
A doutrina pátria acerca dos alimentos compensatórios, apesar de
ancorada em legislação e posicionamentos alienígenas, em alguns pontos
parece ultrapassar suas fontes de gênese. Exemplo do que foi dito é a
possibilidade daquele que vivia em união estável, e não apenas o ex-casado,
cobrar alimentos compensatórios, fato que não encontra previsão no direito
supranacional.
No estudo da origem dos alimentos compensatórios, fala-se muito
acerca das regulamentações francesas e espanholas, todavia, cumpre
mencionar que o direito Alemão também foi de grande influência no
desenvolvimento da teoria pátria. Com efeito, prevê o Bürgerliches
Gesetzbuch pensão de natureza compensatória ao ex-consorte que
comprovadamente não puder trabalhar e, em forma previdenciária, à parte
que se dedicou aos trabalhos domésticos na constância do casamento
(PEREIRA, 2010, p. 146).
A legislação francesa, já comentada, se distancia das outras no
tocante ao caráter definitivo do prestação compensatória. No sistema francês,
nem mesmo a comprovada restabilização do equilíbrio econômico-financeiro
dos ex-consortes possui o condão de extinguir o dever de prestar alimentos
compensatórios.
No direito espanhol, em muitos aspectos similar ao francês, não
havendo acordo entre os cônjuges o juiz decidirá o quantum a ser pagado
observando algumas variáveis previstas em Lei, tais como a idade, o estado
de saúde, a duração do casamento e da convivência conjugal, entre outros.
Por fim, chama-se atenção à teoria argentina da pensão
compensatória. Nesse cenário, o que se observa é um verdadeiro retrocesso
quando comparado às doutrinas supramencionadas, em razão do
ordenamento jurídico argentino ainda se fundamentar na análise da culpa do
cônjuge, tal qual o fazia o Código de Beviláquia, no tocante às pensões
alimentares ordinárias, como requisito para concessão de pensão
compensatória.
Tendo por concluído o comentário acerca da tutela internacional do
direito aos alimentos compensatórios, faz-se mister observar as diferenças
existentes entre a pensão alimentícia e a pensão compensatória, visto que
esta tem como pressuposto uma situação de desequilíbrio econômico entre
os ex-consortes, ao passo que aquela nasce da necessidade da parte para
se sustentar.
Nesse diapasão, a pensão alimentícia regulada em lei (art. 1694, do
Código Civil) visa garantir a subsistência do credor no tocante às suas
necessidades vitais, de caráter assistencial, ao passo que a pensão
compensatória tem como fim restabelecer o equilíbrio econômico entre as
partes, sobrevindo, assim, sua natureza reparatória (PRADO, 2005, p. 365)
Uma vez comprovado o binômio necessidade possibilidade, o
pagamento de pensão alimentícia não impede a fixação, por meio de
sentença, de prestação compensatória, por prazo indeterminado e de
O reconhecimento jurisprudencial...
// 323
observância obrigatória até que a restauração do equilíbrio econômicofinanceiro entre os ex-consortes seja reconhecida, também por sentença.
18.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje descabe a compreensão do Direito como ramo do conhecimento
estático, impossível de ser modificado. Noutro giro, a mutabilidade funciona
como condição de perpetuação da ciência jurídica e, nesse sentido, cada vez
mais novas teorias vão surgindo, como respostas aos desafios e novidades
implementados pela pós-modernidade, a exemplo do direito espacial, do
direito advindo da evolução da engenharia genética, dentre outros.
Prova da ressignificação de postulados experimentada pelo Direito,
refere-se à teoria do direito aos alimentos compensatórios, tópico da doutrina
internacional, originado na legislação francesa e espanhola, e que hoje já
ganha respaldo nos tribunais, a destacar o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Toda a construção moderna a respeito dos alimentos compensatórios
se torna relevante, uma vez que se percebe que este instituto tem como
finalidade precípua garantir alguns dos mais importantes princípios
constitucionais atinentes ao Direito das Famílias. Nesse diapasão, a
prestação compensatória ao ex-consorte que sofreu prejuízo com o fim da
relação afetiva funciona como mecanismo propulsor de eficácia a princípios
tais quais o da solidariedade familiar, e o da igualdade de gêneros.
Consentâneo o entendimento recente, os alimentos compensatórios
vêm como maneira de relativizar as estruturas imperiosas do regime de bens,
a destacar o da separação legal, que muitas vezes, por imposição legal, vai
de encontro à vontade dos cônjuges e termina por limitar a solidariedade
familiar.
Observa-se que no tocante aos alimentos compensatórios, apesar de
não haver regulamentação legal, ou talvez por isso, a teoria brasileira se
destaca das demais em razão de sua consonância com direcionamentos
modernos no campo dos Direitos Humanos. Nesse sentido, não apenas ao
ex-cônjuge é regalado a pleitear alimentos compensatórios, visto que os
tribunais tem admitindo essa prerrogativa à figura do ex-companheiro.
Observa-se que os tribunais brasileiros pacificaram o entendimento
do direito subjetivo aos alimentos compensatórios tendo em vista o
reconhecimento destes como manifestação oblíqua da tutela, sendo vedada
a proteção insuficiente (Untermassverbot).
Com efeito, trata-se de inovação, possível de ser observada, no
âmbito da jurisprudência e doutrina pátrias, conquanto o Estado refundado a
partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 balizou-se na defesa
da dignidade da pessoa humana e nos preceitos da solidariedade social,
vindo os direitos fundamentais ao centro da tutela jurídica.
Aqui, tem-se um momento de releitura do Direito especialmente o
Civil, no qual o centro de proteção jurídica remove-se da esfera do objeto e
foca-se no sujeito de direitos. A esse sujeito, a Constituição assegurou uma
324 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
série de prerrogativas, de ordem pública e privadas que diariamente são
manifestadas sob o crivo do ativismo judicial; noutro giro, o direito privado
passou por uma releitura de compatibilização com a hermenêutica
constitucional.
Nessa esteira, percebe-se que o direito privado foi
despatrimonializado, e um tanto quanto descodificado, uma vez que a
disciplina constitucional emprestou pilares e princípios a este ramo do direito
privado, com o intuito de consagrar, no que tange à relação horizontal entre
particulares, o poder-dever de solidariedade-social.
A constitucionalização do direito privado tem como base a tutela da
pessoa humana e da dignidade fundamental, as quais constituem a força
ativa e determinante das inovações no Direito Civil, com a pretensão de
reerguer os destroços do Direito Civil liberal-individualista, estabelecida na
Constituição a partir da cláusula geral da tutela da dignidade humana.
A hermenêutica constitucional impõe necessariamente o
reconhecimento jurídico do afeto, e é esse reconhecimento, no seio de um
Estado Social, que determina um comportamento solidário por parte de exc0nsortes e ex-companheiros observado o fim da relação familiar.
Reconhecer-se a prerrogativa de pleitear alimentos compensatórios
em juízo vem como parte de um movimento maior de ressignificação do
direito de famílias, que tem, ainda, como reflexo o reconhecimento em torno
da pluriparentalidade e das novas formas de família.
Compreende-se o direito de família sob o prisma constitucional, de
forma a responder aos desafios da pós-modernidade.
É nesse cenário que vem a lume o direito aos alimentos
compensatórios que, não obstante a ausência de previsão legal, recebe
respaldo, não apenas em legislação internacional, mas também em princípios
constitucionais.
Por fim, pode-se concluir que os alimentos compensatórios
apresentam evolução natural do Direito Civil Constitucional e a sua gradativa
discussão na doutrina e na jurisprudência revela a preocupação dos
estudiosos e aplicadores do Direito em garantir a solidariedade familiar e
amparar aquele que, por qualquer razão, sofrem prejuízo econômico
financeiro com o fim da relação afetiva.
18.5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito
Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
BUZZI, Marco Aurélio Gastaldi. Alimentos transitórios: uma obrigação por
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v. 5. São Paulo: Saraiva, 2012.
O reconhecimento jurisprudencial...
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2008.
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Direito de Família. Rio De janeiro: Lumenjuris, 2008, p. 7.
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro:
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SOUZA, William de. O instituto dos alimentos compensatórios e a
manutenção do equilíbrio socioeconômico entre os ex-consortes.
326 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Monografia submetida à Universidade Federal de Santa Catarina para
obtenção do título de Bacharel em Direito. Florianópolis: 2013.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 8. ed. v. 6. São
Paulo: Atlas, 2008.
= XIX =
POLITICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS À LUZ DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE
Jonatas Cesar Dias1
19.1 INTRODUÇÃO
A Democracia é um regime de governo do povo que deve respeitar
os direitos fundamentais humanos oferecendo a devida guarda (TORRES,
apud SARLET, 2003, p. 18), bem como deve proporcionar condições de
efetivação dos direitos previstos na Constituição, e nessa seara a educação
é melhor compreendida. A realidade nos mostra que os direitos advêm com
o amadurecimento da sociedade, ainda que, esporadicamente vemos alguns
países desrespeitando esses direitos, e, com isso ocorrem consequências
nefastas para efetividade dos direitos humanos, bem como o
desenvolvimento individual da pessoa, que necessita, na condição de pessoa
ser respeitada pelo “Estado” e receber deste toda a estrutura necessária para
o desenvolvimento pessoal, através de uma educação digna.
A pesquisa trabalha a abordagem dedutiva, pois os fatos são
analisados através de uma perspectiva geral para uma perspectiva especial,
levando-se em consideração o contexto global em que se encontram
inseridos. Quanto aos procedimentos técnicos utilizados o histórico,
comparativo, tipológico e funcional. Os métodos investigativos são o
bibliográfico, documental, vez que a pesquisa abrange a consulta de obras
doutrinárias, artigos, bem como dos dispositivos legais concernentes ao
estudo proposto.
19.2 EDUCAÇÃO NO BRASIL
Atualmente, vivenciamos um Estado democrático de direito, que tem
através de seus agentes governamentais, planos de políticas públicas que
tentam diminuir a desigualdade social no Brasil.Com a educação não é
diferente, através de medidas governamentais, os agentes públicos
apresentam planos e metas para ampliar o acesso da educação para o maior
número de pessoas, todavia, essas medidas se contrapõem a fatos que mais
lembram um retrocesso.
1
Mestrando em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de MaringáPR. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal, com ênfase em Direito Penal Tributário,
pela Universidade Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Faculdade Paranaense Faccar - Rolândia - PR. Licenciatura em Geografia pela Universidade Estadual de Londrina. Pósgraduado em Filosofia Jurídica e Política pela Universidade Estadual de Londrina. Advogado em
Londrina - PR. Assessor Jurídico do Município de Porecatu - PR. Endereço
eletrônico: [email protected]
328 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Entre esses fatos antagônicos, os cortes orçamentários da educação
no ano de 2015, que retiraram da educação, quantidade significativas de
recursos. Assim, se não estamos conseguindo garantir direitos sociais, e
nesta seara mencionamos a educação, como será possível garantirmos uma
educação personalíssima, de cunho fundamental, cuja imposição estatal,
pode ser transformadora e possível de se realizar transformações sociais
gigantescas para todas as pessoas
19.3 EDUCAÇÃO PERSONALISSIMA
O desenvolvimento da pessoa ocorre de forma individual, e esta
individualidade, junto com a dignidade e pessoalidade compõe a
personalidade, e nesta formação destacam-se três elementos fundamentais,
a “dignidade, a individualidade e a pessoalidade”, molas propulsoras do
desenvolvimento da pessoa (SZANIAWSKI, 2005, p.114).
Essa individualidade é inerente ao ser humano, que dessa forma
precisa ser livre para desenvolver-se material e espiritualmente. Nesse
sentido a educação é a base fundante para o conhecimento, crescimento
pessoal, evolução do ser humano e por consequência, a evolução da
sociedade em que vive.
Dessa forma, um país com vocação democrática deve assegurar
investimentos em educação, bem como oferecer meios de efetivação desses
direitos, vez que são direitos inerentes à pessoa humana, bem como o
fundamento da democracia. Em que pese a constatação da importância da
educação, vemos nos dias atuais, descasos com a causa educacional, e
neste ponto destacamos a retirada de investimentos na educação, bem como
a concessão de incentivos fiscais que retiram milhões da educação e,
concedem a grandes conglomerados internacionais, milhões de reais na
forma de benefícios tributários. Nesse sentido, para se analisar o caso
mencionado, citamos Perez que afirma ser a “[...] globalização tão dominante
que qualquer análise que se faça das sociedades nacionais só tem sentido
se for realizada a partir do contexto da denominada aldeia global” (PEREZ,
2008, p. 19).
Dessa forma, os governos interessados em esconder esse tipo de
política perversa, criam pseudo programas com metas educacionais a serem
atingidas, todavia, tudo não passa de uma mera fantasia criada para
esconder a saída de recursos para os interesses econômicos financeiros, ou
seja, em detrimento da educação. Cumpre destacar que atualmente, no artigo
6º, e do 205 a 214 da Constituição de 1988, tratam o direito à educação como
um direito de cunho social, de forma que a sociedade possa ser igualitária e
ofereça oportunidades que possam garantir o mínimo de dignidade humana
(BOTO, 2005).
O direito educacional também orbita sobre as normas
infraconstitucionais tais como Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Plano Nacional de Educação, Estatuto da Criança e Adolescente.
Internacionalmente, nos tratados em que o Brasil seja signatário, também
Políticas públicas educacionais...
// 329
devemos observar o regramento legal, vez que eles também ingressam no
ordenamento interno. Oliveira, acerca da educação na Constituição Brasileira
de 1988, afirma que houve “um salto de qualidade relativamente à legislação
anterior, deslocando o debate da efetivação desde direito, da esfera jurídica
para a esfera da luta social” (OLIVEIRA, 1995, p. 3).
No Brasil, a fonte de princípios educacionais são os artigos 205 a 214
da Constituição Federal, como bem define Nelson Joaquim, a Constituição
Federal do Brasil deve ser considerada “a fonte primeira e fundamental do
Direito Educacional Brasileiro” (JOAQUIM, 2006, p. 2).
Nesse sentido, a Constituição Federal também assegura através do
princípio da efetividade, que a norma constitucional deve ser ampla, eficaz e
aplicável a todos. No Brasil, Em que pese a previsão constitucional, conforme
mencionado, ainda existem obstáculos que precisam ser transpostos,
sobretudo em razão da herança “patrimonialista e privatista”, que são
barreiras que devem ser transpostas a fim de garantir a efetivação dos direitos
constitucionais fundamentais (FACHIN, 2008, p. 160).
Ainda nesse rumo, a Constituição veio alçar o direito à educação
como um direito social, todavia “[...] não se pode esquecer que os direitos
sociais têm como objetivo corrigir desigualdades próprias das sociedades de
classe, aproximando grupos ou categorias marginalizadas” (DUARTE, 2003,
p. 254), ou seja, o mínimo necessário para o desenvolvimento de uma
sociedade. Fato curioso foi que, com a ocasião do fim da ditadura militar no
Brasil e transição para a democracia, em alguns países “desmoronava o
socialismo real, o estado de bem estar social aprofundava sua crise” de forma
que o que se viu no Brasil foi o contrário (OLIVEIRA, 1999, p. 222), uma
constituição que veio dar garantias que o mundo já não conseguia oferecer.
Sendo a Constituição fonte primeira, existem outras fontes
complementares que fazem parte do sistema e tem sua orbita em torno da
norma maior, direcionando o Direito Educacional no Brasil. Segundo Nelson
Joaquim, há também um direito internacional à educação, de forma que estão
inseridos em “[...] declarações, tratados, convenções, cartas de princípios,
compromissos, protocolos e acordos internacionais” (JOAQUIM, 2006, p.
2).O Direito educacional pode ser debatido em diversas frentes de
importâncias, vez que inúmeras são as relações que ensejam discussões
pormenorizadas, todavia nos interessa a discussão do Direito à Educação
como direito personalíssimo.
Na construção desse conceito devemos analisar a dignidade da
pessoa humana, que deve ser o ponto de partida para identificarmos o
conceito de pessoa e personalidade. A dignidade humana constitui o
fundamento que valora o ser humano como tal, sendo irrenunciável e
inalienável. Neste sentido, explica Sarlet, que deve ser protegido, vez que é
uma qualidade inerente da pessoa humana (SARLET, 2007, p. 366).
Na construção do conceito de direito à educação como direito da
personalidade é necessário discorrer sobre o que é Homem, o que é pessoa
humana e de igual sorte entender o que é personalidade, pois “Quando o
jurista decide abordar a matéria da tutela e direitos de personalidade, é de
330 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
imediato confrontado com um enorme desafio: saber o que é o Homem, saber
o que é a pessoa humana” e por fim desvendar o véu do sentido
personalidade (GONÇALVES, 2008, p. 14).
Para Ivan Motta e Cássio Marcelo Mochi, citando o pensamento de
Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Sousa, os direitos da personalidade
seriam de natureza civil com relações com outros ramos do direito, nestas
incluídos o direito penal e constitucional (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8250).
Cumpre destacar que cabe ao Estado garantir educação a todos, vez que a
Constituição Federal determinou inserindo no texto constitucional diversos
artigos diretivos nesse sentido. No sentido personalíssimo, em razão de
questões de dignidade humana.
Para Motta e Cochi, a educação é considerada um direito social
exercido de imediato, sobretudo pelo tempo que não espera, portanto sua
tutela deve ser sempre antecipatória (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8264). Neste
contexto, para garantir tal eficácia de evolução desses direitos é necessário
que o país tenha condições de sustentar e pagar tal benefício, ou seja, é
necessário um conjunto de esforços, tanto da sociedade, quanto dos agentes
governamentais, para garantir educação plena, esse é posicionamento de
Cléverson Merle Cléve acerca dos direitos sociais (CLÈVE, 2006, p. 38).
Sendo considerados direitos sociais, ainda assim o Estado é
irresponsável, como cobra-lo em sentido personalíssimo, vez que ampliaria a
camada social educacional, ou seja, educação para todos,
independentemente de condições. Nelson Joaquim defende a idéia de que o
“[...] direito à educação é um direito fundamental da personalidade e não um
direito social de segunda geração, compreendendo-o como direito subjetivo
privado que apresenta características do direito da personalidade (art. 11 do
Código Civil)” (JOAQUIM, 2006, p. 2).
Assim, esse direito personalíssimo deve ser garantido,
independentemente de ordenamento ou princípios, vez que não estaria este
atrelado ao direito posto e sim ao fato da existência do ser humano, que
segundo Nelson Joaquim, a violação desse direito acarreta irreversível
“danos para pessoa, o Estado e sociedade” (JOAQUIM, 2006, p. 2).
Evoluindo em sua educação cultural, os gregos muito contribuíram
com a evolução dos direitos da personalidade da atual sociedade ocidental,
entre eles, o direito de ter acesso ao cadáver e de igual sorte dispor dele de
forma digna (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8248).
No império Romano também houve evolução, vez que vigendo a lei
das 12 tabuas, foi permitido a inclusão do acesso a justiça a todos os
cidadãos, entre outras que, com o tempo vieram a dar garantias contra
violações ao direito da personalidade, sobretudo a partir do cristianismo, pois
ficou evidente o pensamento de garantir a dignidade humana (MOTTA;
MOCHI, 2009, p. 8248).
Assim, a evolução desses direitos custou longos séculos,
influenciados por fatores históricos, ainda hoje busca garantir a efetividade
desses direitos, ainda assim, as vezes vemos uma mitigação dos direitos
fundamentais por estar condicionado a questões políticas governamentais
Políticas públicas educacionais...
// 331
que influenciam nas garantias destes direitos. Para Ivan Motta e Cassio
Marcelo Mochi, o desafio a ser enfrentado é a efetividade do direito à
educação frente à constituição, de forma que não seja apenas promessas do
Estado, mas sim, tenha um cumprimento de fato, voltado para formação do
homem (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8266). Conclui o autor questionando até
que ponto seria o direito à educação um direito social, se na verdade devemos
buscar a satisfação personalíssima, tal como desenharam os gregos na
antiguidade (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8267).
No contexto das garantias que cabe ao Estado, a este não é permitido
retrocesso social, de sorte que os direitos adquiridos até o presente devem
ser resguardados minimamente, assim garantindo a continuidade dos
mesmos.
Ainda nesse sentido, para Cristina Queiroz, o não retrocesso significa
também que o legislador também não deve retroceder, revogando ou
retirando os direitos já conquistados, e, se assim o permitir, deve antes de
mais nada apresentar alternativas no sentido de garantir compensações com
outros programas (QUEIROZ, 2006, p. 116), assim fazendo permanecer as
raízes da arvore plantada anteriormente, que continuarão a florescer e dar
frutos? Alem de garantir os direitos fundamentais, ao Estado também é
obrigado a criação de mecanismos de efetividade de fruição dos direitos,
assim a ele cabe organizar políticas públicas no sentido de tornar esses
direitos eficazes.
Para Canotilho, “[...] a partir da garantia constitucional de certos
direito (2) se reconhece, simultaneamente, o dever do Estado na criação
pressupostos materiais indispensável ao exercício efectivo desses direitos e
a faculdade do cidadão exigir [...]” (CANOTILHO, 1991, p. 554).
Nesse sentido não é possível apenas medidas constitucionais ou
legislativas, vez que a efetividade deve ser oferecida pelo Estado a partir de
mecanismos práticos de implantação de políticas públicas, eis que se assim
não ocorrer, seria o mesmo que não ter leis que assim o assegurasse.
Outra questão importante, dentro dessa perspectiva, vez que o
Estado esta sempre a satisfazer suas necessidades, e no caso brasileiro, tal
como posto constitucionalmente, para preparar o homem para o mercado do
trabalho, isso não é o suficiente para desenvolvimento livre da sociedade,
posto que o regramento é dado pelo Estado (MOTTA; MOCHI, 2009, p. 8267).
Gilmar Mendes acerca dos direitos fundamentais na Alemanha,
sobretudo em razão da jurisprudência local, afirma que “[...] objetivo dos
direito fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster e
intervir no âmbito de proteção desses direitos contra agressão ensejada por
atos de terceiros” (MENDES, 2006, p. 11). Melhor alternativa seria garantir
mecanismos de acesso à Educação, de forma livre, voltada para a satisfação
pessoal da pessoa, respeitando o desejo individual de cada um, oferecendo
opção de como esse indivíduo prefere ter acesso à educação,
independentemente de regramento constitucional ou infraconstitucional, vez
que esse é um direito inerente ao ser humano, portanto, um direito a ser
332 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
exercido sem obstáculos, de garantia plena e irrestrita, o direito à educação
não pode ser apenas um direito social, mas sim um direito personalíssimo.
De todo o exposto, podemos concluir que a educação é um direito
fundamental social do ponto de vista histórico, todavia para exercer a
cidadania, a educação deve ser considerada um direito personalíssimo.
De outro norte, nas relações privadas não seria possível essa
aplicação, eis que não seria possível obrigar o privado a garantir os mesmos
direitos oferecidos pelo Estado, ainda mais por estar o privado na mesma
posição da pessoa, e ainda por ser pessoa, não física mas pessoa jurídica
privada exercendo concessão pública. Apenas a partir da horizontalização
dos direitos fundamentais é possível olhar a educação como direito da
personalidade.
Assim, cabe ao Estado proteger o sujeito de acordo com o conteúdo
e ainda, seja efetivo na aplicação desses direitos, assim a educação não pode
ser vista como um direito social de segunda geração, deve ser visto como um
direito da personalidade. Em sentido contrário, temos o pensamento de
Nelson Joaquim, para quem a educação é um direito humano, de eficácia
transversal, todavia esse não seria o caminho, eis que ainda não esta
amadurecido suficiente para essa compreensão.
19.4 OBJETIVOS DE UMA EDUCAÇÃO PERSONALISSIMA
Quanto aos objetivos, o artigo 205 da Constituição Federal deve ser
trabalhado a partir do olhar para o crescimento livre da pessoa, não um direito
social, mas um direito fundamental personalíssimo, que possa ser eficaz para
o desenvolvimento do ser humano, não apenas para desenvolve-lo para o
trabalho, mas para desenvolve-lo como pessoa, espiritualmente e
materialmente.
Quanto a ideia de efetividade em nosso ordenamento para que possa
ser eficaz, necessário melhor discussão no sentido de distribuição dos
recursos educacionais, eis que não é possível melhor aproveitamento dos
recursos sem que se tenha políticas de distribuição desses recursos também
eficaz e dessa forma necessita maiores discussões acerca da distribuição
desses recursos. Portanto para aplicação desses recursos e aproveitamento
para o desenvolvimento da pessoa é necessário discutirmos a competência
dos entes públicos que fazem a gestão dos recursos.
19.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através desse pequeno ensaio, logo podemos concluir ser
necessário haver mudanças de paradigmas tanto pelo Estado, na condição
de agente propulsor do desenvolvimento educacional público, vez que cabe
a ele oferecer e criar condições para uma plena educação da pessoa, não
apenas como preparo para o trabalho e cidadania, mas como ser humano,
para o pleno desenvolvimento da pessoa. Assim, é preciso, mais uma vez, a
fiscalização e acompanhamento dos atos governamentais, exigindo que
Políticas públicas educacionais...
// 333
sejam aplicados recursos suficientes para custear uma educação eficiente e
abrangente.
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334 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
= XX =
POLÍTICAS PÚBLICAS, LIAME QUE GUARDA UMA JUSTIÇA
ALICERÇADA NA VIDA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Alessandro Severino Valler Zenni*
Caroline Christine Mesquita**
Daniela Menengoti Ribeiro***
20.1 INTRODUÇÃO
O princípio da dignidade da pessoa humana foi por alguns anos
preterido, interpretado de forma equivocada, hodiernamente ao mesmo vem
sendo concedida profusa importância, tendo em vista que,
reconhecidamente, o referido assenta-se todo o ordenamento jurídico
brasileiro.
Desta forma, pode-se afirmar que o princípio da dignidade da pessoa
humana possui o status de mega-princípio, no sentido de que todos os
demais princípios e normas, em suas diversas acepções, devem ao mesmo
curvar-se. Tal afirmação é tão intensa que se qualquer princípio não estiver
em consonância com o da dignidade humana, será tido como inconstitucional
ou conflitante com o ordenamento jurídico brasileiro, devendo ser alterado
seu conteúdo informador ou forma de interpretação, ou até mesmo extirpado
do ordenamento jurídico.
Ato contínuo, conceder a dignidade para todos é tarefa dificultosa e
inafastável do Estado. Tarefa esta que assenta-se verdadeiramente em
*
Professor do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Possui graduação
em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1991), mestrado em Direito Negocial com
área específica em Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Estadual de Londrina
(1997) e doutorado em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2004). Pós-Doutor na Universidade de Lisboa. Atualmente é professor concursado titular em
Direito e Processo do Trabalho na Universidade Estadual de Maringá, Professor da Faculdade
de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel Univel, professor titular - Faculdades Maringá,
professor da União de Faculdades Metropolitana de Maringá, professor t-40 do Centro
Universitário de Maringá. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito
Constitucional, Direito e Processo do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas:
transdisciplinariedade, contemporaneidade, trabalho, prova e dignidade. Endereço eletrônico:
<[email protected]>.
**
Mestranda do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Bolsista da
CAPES. Especialista em direito previdenciário e direito do trabalho pelo Instituto de Direito
Constitucional e Cidadania. Advogada. Endereço eletrônico: <[email protected]>.
***
Professora do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Doutora em
Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - PanthéonSorbonne, França. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), com período de pesquisa no Mestrado em Integrazione Europea da
Università Degli Studi Padova, Itália. Endereço eletrônico: <[email protected]>.
336 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
caráter utópico, tendo em vista tamanha subjetividade do princípio em pauta,
não se excluindo, contudo, sua relevância e, necessária, efetividade, a qual
não dá margem ao relativismo dos dirigentes do Estado.
20.2 DIREITO DE VIVER
Antes de abordar o conceito de vida, suas certezas ou incertezas,
imprescindível desenvolver três aspectos prévios diretamente ligados ao
direito à vida, tais como, o conceito de vida humana, o início da vida humana
no direito brasileiro e o direito de nascer. Inicialmente, mister apresentar a
preceituação de Antônio Chaves (1986, p. 9), o qual considera que a vida é
algo que oscila entre um interior e um exterior, entre uma alma e um corpo.
Nesse aspecto, o conceito de vida é entendido, para o Dicionário da
Língua Portuguesa como, “[...] atividade interna substancial, por meio da qual
atua o ser onde ela existe. Duração das coisas; existência. União da alma
com o corpo. Espaço de tempo compreendido entre o nascimento e a morte
do ser humano” (BUENO, 1980, p. 1816).
Na visão do constitucionalista José Afonso da Silva (2009, p. 198),
vida é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua
própria identidade, que se instaura com a concepção, transforma-se,
progride, mantendo sua identidade. Sendo ainda, ela é fonte primária de
todos os outros bens jurídicos, pois, de nada adiantaria a Constituição
assegurar outros direitos fundamentais, se não erigisse a vida humana num
desses direitos.
Portanto, um questão polêmica e de acirradas discussões no Direito
Brasileiro, consiste em estabelecer o exato momento que se inicia a vida
humana, amplamente debatida pela doutrina pátria. Nesse particular,
importante é a contribuição de Adauto de Almeida Tomaszewski (2006, p.
190), o qual compreende que a vida inicia pela concepção, posto que em
sede de estudos biológicos, pode-se afirmar que o desenvolvimento humano
começa na fertilização.
No mesmo sentido, Elimar Zsaniawiski (2005, p. 146), o qual aduz
que a vida dá origem à personalidade do ser humano, sendo que a vida já
existe nas células germinativas dos pais do indivíduo. Desse modo, o este
jurista revela que o direito à vida existe em qualquer ser humano,
independentemente do seu nascimento, de sua classe social, ou de seu
estado psíquico ou físico, ou do lugar onde esteja vivendo, quer na sociedade,
quer no ventre materno, quer em um tubo de ensaio, todos são seres
humanos vivos.
Porquanto, “[...] o direito à vida envolve não apenas os elementos
materiais e biológicos da pessoa humana, mas também os morais,
emocionais e espirituais” (VIEIRA, 2009, p. 83). Nesse sentido, vida “[...] é um
direito inato, na medida em que respeita ao indivíduo pelo simples fato de
este ter personalidade” (CUPIS, 2004, p 72).
Logo, Maria Helena Diniz (2009, p. 22) alega que o direito à vida
integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer e o de
Políticas públicas...
// 337
continuar vivo. Seguindo esta linha, sublinha-se que a centralidade para
qualquer ordem jurídica é o direito à vida, tamanha sua importância, ele é
resguardado em inúmeros tratados internacionais1. Da mesma forma, o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas de 1968, explica
que o direito à vida é inerente à pessoa humana e que esse direito deverá ser
protegido pela lei, além de dispor que ninguém poderá ser privado de sua
vida (MENDES; BRANCO; COELHO, 2009, p. 394).
A polêmica se estende para a questão do direito de nascer e de não
ter impedido o desenvolvimento de sua vida, desdobramento da interpretação
do artigo 2o do Código de Civil, o qual exara que: “A personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro” (BRASIL, 2015-d).
Isso posto, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, ditam
que antes de nascer o nascituro não tem personalidade jurídica, mas tem
natureza humana, humanidade, razão de ser de sua proteção jurídica pelo
Código Civil: Infans conceptus pro nato habetur2; sendo, portanto, o direito de
nascer o primeiro do homem (NERY JUNIOR; NERY, 2007, p. 185). Por tais
linhas, o nascituro tem assegurado, na legislação brasileira, o direito de
nascer tendo em vista constituir crime3, o seu abortamento.
A própria Constituição Federal de 1988 consagra, como fundamento
da República, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana.
Mais ainda, o artigo 5º em seu caput garante a todos o direito à vida, este
bem jurídico de máxima importância. De tal forma se apresentou o direito à
saúde que a Lei Maior dedicou seção exclusiva ao tema, nesta o artigo 196
expressa:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 2015-a).
A norma transcrita enuncia direito subjetivo do particular
correspondente a um dever jurídico estatal. É, na classificação da doutrina
constitucionalista, norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata,
1
A Convenção Americana de Direito Humanos, que firmou o Pacto de San José da Costa Rica
de 1969, declara, no seu artigo 4º, declara que "[...] toda pessoa tem o direito de que se respeite
sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.
Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente". (BRASIL. Tratado Internacional de 1969.
Pacto
de
San
José
da
Costa
Rica.
Disponível
em:
<
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso
em: 24 ago. 2015-k).
2
Segundo Maria Helena Diniz: “O nascituro é considerado nascido sempre que isso possa trazerlhe qualquer vantagem”. (DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3.ed. v.2. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 907).
3
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção,
de um a três anos. (BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 24
ago. 2015-b).
338 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
conforme disposto no artigo 5, parágrafo 1º, da Carta Magna, independendo
assim de qualquer ato legislativo, aguardando-se tão somente a efetivação
pela administração pública.
Mais especificamente, o artigo 198 lança as diretrizes que norteiam a
atuação do Estado na efetivação do acesso ao serviço de saúde, dentre as
quais se destaca, especialmente, a contida no inciso II:
As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes: [...] II - atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (BRASIL,
2015-a).
Importante, ainda, apresentar que o artigo 2o da Lei 8080/1990
reafirma que: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o
Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (BRASIL,
2015-c). Por sua vez, o mesmo diploma legal, em seu art. 6, inciso I, alínea
“d” assegura a assistência farmacêutica integral.
Assim sendo, impõe a Carta Maior como prestação positiva do
Estado o acesso à saúde, sendo tal direito de segunda geração conforme a
tradicional classificação de Norberto Bobbio (1992, p. 1-65). Conferindo
efetividade máxima à Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal
aduz que:
O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste
a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável
do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de
sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrarse indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda
que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional
(BRASIL, 2015-j).
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, o qual firmou
entendimento de que:
A CF/1988 erige a saúde como um direito de todos e dever do Estado (art.
196). Daí, a seguinte conclusão: é obrigação do Estado, no sentido genérico
(União, Estados, Distrito Federal e Municípios), assegurar às pessoas
desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação necessária para
a cura de suas mazelas, em especial, as mais graves. Sendo o SUS
composto pela União, Estados e Municípios, impõe-se a solidariedade dos
três entes federativos no polo passivo da demanda (BRASIL, 2015-f).
O direito à vida, sob essas premissas, é o primeiro dos direitos
fundamentais constitucionalmente enunciados, visto que é condição de todos
os outros direitos fundamentais. Tendo em apreço que o conteúdo jurídico
objetivo da proteção do bem da vida humana implica, de forma incontornável,
o reconhecimento do dever de proteção do direito à vida digna, quer quanto
Políticas públicas...
// 339
ao conteúdo e extensão, quer quanto às formas e meios de efetivação desse
dever (CANOTILHO, 2007, p. 446-447). Logo, a Carta Magna resguarda a
vida humana vivida com dignidade. Posto que,
O direito à vida e à saúde, entre outros, aparecem como conseqüência
imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento
da República Federativa do Brasil. Esse fundamento afasta a idéia de
predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em
detrimento da liberdade individual (MORAES, 2005, p. 2041).
Desse modo, o direito a vida digna é um dever o qual os entes
federados não podem se furtar, quando as circunstâncias do caso concreto
indicam ser determinada medida à adequada para a preservação da vida
digna da pessoa humana. Em suma, e seguindo o posicionamento do jurista
Paulo Bonavides (2010, p. 590-592), nenhum princípio é mais valioso para
compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade
da pessoa humana, que se consubstancia com a proteção à vida, pois, sem
esta não há como aquele ser plenamente exercido.
À luz dessas ponderações, aprese vista ao caso de Joãozinho, que
nasceu prematuro, consequentemente, seus pulmões não se formaram
integramente, isto é, não possuía capacidade de respirar por conta própria,
necessitando ser entubado. Devido ao fato de ser submetido a equipamentos
de ventilação mecânica, em um estágio de sua vida, onde seus pulmões não
estavam completamente formados, desenvolveu um quadro de
broncodisplasia pulmonar, CID J. 21.9. Esta torna o pulmão mais susceptível
ao desenvolvimento de doenças, além de torna-lo mais sensível ao agravo
destas. Logo, é necessário uma medicação, palivizumabe, que proteja o
menor contra micro-organismos, os quais podem desenvolver doenças mais
graves, como pneumonias, ocasionado até mesmo a morte (BRASIL, 2015e).
Sendo assim, torna-se indispensável o fornecimento do medicamento
para que seja minorado o sofrimento de Joãozinho e tantos outros brasileiros,
pois a saúde é um direito fundamental, garantido pela Constituição Federal.
Ainda mais que, um dos princípios norteadores do direito à saúde é a
integralidade da assistência, integral quer dizer completa, não se pode negar
a um cidadão o direito a uma vida digna, principalmente quando o meio para
que se alcance a dignidade é o auxílio necessário para o tratamento de
saúde.
20.3 POLÍTICAS PÚBLICAS E A CONGRETIZAÇÃO DOS DIREITOS
As políticas públicas devem ser vislumbradas como um campo de
estudo jurídico, o qual se abre para a interdisciplinaridade. Objetivando-se,
assim, realizar o direito, com vistas as demandas sociais que fundamentam
a construção das formas jurídicas.
340 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Nesse debate, delineia-se como linha de trabalho mais fecunda a da
admissão das políticas públicas como programas de ação destinados a realizar, sejam os direitos a prestações, diretamente, sejam a organização,
normas e procedimentos necessários para tanto. As políticas públicas não
são, portanto, categoria definida e instituída pelo direito, mas arranjos
complexos, típicos da atividade politico-administrativa, que a ciência do
direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a
integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico
(GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO; DERANI; AITH; BERCOVICI;
RODRIGUES;
PEREZ;
GRANZIERA;
BUCCI;
MASSA-ARZABE;
CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 31).
Assim, políticas públicas definem-se como programas de ação
governamental, em cuja formação há um elemento processual estruturante,
o que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente
regulados. Posto que, os processos contribuem para moldar as decisões,
cabe, portanto, trazê-los a lume de modo racional, compreendendo as formas
pelas quais os próprios processos e seus pressupostos de formação tornamse objeto de decisão, conscientemente informada de suas injunções políticas.
No sentido político, o poder judiciário é o fator de estabilização da ordem
estatal baseada na lei, única vez que é a ele que compete a decisão última
sobre os conflitos, com caráter vinculante e cogente. Processo, no diapasão,
segundo abordagem consagrada na teoria e na prática jurídicas, é
precipuamente um fenômeno jurisdicional, uma vez que o processo é o
procedimento que, adequado à tutela dos direitos, confere legitimidade
democrática ao exercício do poder (BUCCI, 2013, p. 109-113).
Nestes termos, o poder de violência simbólica, embora atue por
dissimulação, tem um limite na própria situação comunicativa, portanto, nas
regras de calibração do sistema. [...] Isto significa que não há, do ângulo
pragmático, uma "força intrínseca da idéia do Direito", pois são sempre as
relações de força que fornecem os limites dentro dos quais pode agir a força
de persuasão do editor normativo no sentido de que todo discurso normativo
pressupõe uma delegação de autoridade; assim, mesmo uma autoridade que
pretenda encontrar por si mesma o princípio de sua consistência (por
exemplo, um sistema normativo de fundamento carismático, em termos de
Weber), só se exerce na medida em que se apóia sobre uma delegação de
autoridade (ainda que tácita e virtual) anterior (FERRAZ JUNIOR, 2006, p.
177-178).
Dessa maneira, o ideal de uma política pública, vista pelo direito, não
se esgota na conformidade do seu texto com o regramento jurídico que lhe
dá base, nem na eficácia jurídica, que se traduz no cumprimento das normas
do programa. Ela resulta na concretização dos objetivos sociais a que se
propôs, com há obtenção dos resultados determinados, dentro de um certo
espaço de tempo. Porquanto, pensar em política pública é buscar a
coordenação, na atuação dos poderes públicos, executivo, legislativo e
judiciário. Por essa razão, evidencia-se que para o estudioso do direito é
Políticas públicas...
// 341
extremamente difícil sintetizar em um conceito a realidade multiforme das
políticas públicas. Pois, esta carrega elementos estranhos às ferramentas
conceituais jurídicas, tais como os dados econômicos, históricos e sociais de
determinada realidade que o poder público visa atingir por meio do programa
de ação (GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO; DERANI; AITH;
BERCOVICI; RODRIGUES; PEREZ; GRANZIERA; BUCCI; MASSAARZABE; CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 41-46). Como resultado, a
[...] política pública é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema
público. Vejamos esta definição em detalhe: uma política pública é uma
orientação à atividade ou à passividade de alguém; as atividades ou
passividades decorrentes dessa orientação também fazem parte da política
pública e resposta a um problema público; em outras palavras, a razão para
o estabelecimento de uma política pública é o tratamento ou a resolução de
um problema entendido como coletivamente relevante (SECCHI, 2012, p. 2).
Opera-se, neste arranjo institucional uma distribuição de papéis, ou
de posições subjetivas jurídicas, com ou sem significado econômico direto.
Isso porque a política pública não envolve apenas o poder Público, de um
lado, e os beneficiários do programa, de outro, mas, com frequência, dispõe
sobre as condições de participação de agentes privados no programa. Dessa
forma, a política pública que constitui campos de atividade econômica e
social, a norma instituidora define agentes e disciplina seus deveres, direitos,
faculdades e feixes de relações recíprocas em torno do objeto daquele
programa, conferindo condição de repetitibilidade aos vários papéis, o que
representa o seu grau de institucionalização. A organização, neste caso,
consiste na configuração de posições ou situações pelo arranjo institucional.
Com isso, passa a haver complementaridade entre as dimensões objetiva e
subjetiva contidas no arranjo institucional que materializa a política pública
(BUCCI, 2013, p. 276-278).
A análise do processo político em termos dos ciclos e dos subsistemas políticos ajuda a conceituar essas dinâmicas fundamentais como também facilita
a análise dos dois termos. A identificação dos estilos, dos subsistemas, dos
paradigmas e dos regimes políticos característicos por meio da análise dos
estágios do ciclo político-administrativo permite estabelecer uma linha de
base em relação à qual se pode medir a mudança. Somente a observação
cuidadosa do comportamento do subsistema irá esclarecer tendências à
mudança política atípica, envolvendo rompimento significativo, embora não
necessariamente total, com o passado, cm termos dos objetivos políticos
globais, da compreensão dos problemas públicos e suas soluções e dos
instrumentos políticos usados para colocar as decisões em prática
(HOWLETT; PERL; RAMESH, 2013, p. 236).
Consequentemente, a estrutura da política pública permite o
encaminhamento e tratamento do problema de forma mais razoável, o que
vem possibilitar aos agentes causadores do problema em questão uma
reconceitualização de si, de suas próprias ações frente ao mundo e da
342 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
realidade de seu entorno (GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO;
DERANI; AITH; BERCOVICI; RODRIGUES; PEREZ; GRANZIERA; BUCCI;
MASSA-ARZABE; CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 57).
Forma-se, então, uma tradição, ao mesmo tempo célica em relação às
possibilidades do Estado não condicionadas pelos interesses das classes
dominantes, mas dependente desse mesmo Estado como instrumento
necessário para a "transição" a um outro tempo e modo econômico e social.
Essa ambiguidade dificulta a compreensão e a elaboração mais refinadas do
papel e dos meios de ação do Estado (BUCCI, 2013, p. 93).
Mister, na passagem, denotar que os órgãos e instâncias diretamente
envolvidos na execução da política, assim como entidades do setor privado,
não agem em livre discricionariedade, mas guiados e vinculados numa
perspectiva ampla, pela Constituição e pelos tratados internacionais de
direitos humanos, e numa perspectiva estrita, pelos princípios, diretrizes e
objetivos imediatos e mediatos traçados na política pública. Porquanto, é
preciso atentar para o fato de que a consolidação das políticas públicas como
modo prospectivo de ordenação da vida em sociedade transformou não só
as feições tradicionais do direito, como trouxe consigo a transformação do
próprio Estado, no tocante a seu modo de relacionar-se com a sociedade,
uma vez que esta é a porta pela qual entrou a antes absolutamente utópica
democracia participativa (GONÇALVES; SALLES; DUARTE; COUTO;
DERANI; AITH; BERCOVICI; RODRIGUES; PEREZ; GRANZIERA; BUCCI;
MASSA-ARZABE; CYMBALISTA; DALLARI, 2006, p. 71-72).
O apoio político que um governo possui na sociedade é um fator
determinante da capacidade de um gestor público de desenvolver processos
e objetivos integrados de políticas públicas. O apoio político é vital, porque
os gestores devem ser capazes de atrair continuamente tanto legitimidade
quanto recursos das suas instituições aprovadoras e círculos eleitorais.
Políticas públicas integradas podem representar desvios drásticos do status
quo, e conflitos sobre a natureza e o impacto de tais mudanças podem ser
esperados. Uma gestão política proativa, com estratégias e medidas
cuidadosamente desenhadas, é essencial para gerar o apoio político
necessário à implementação de tais políticas públicas integradas (WU;
RAMESH; HOWLETT; FRITZEN, 2014, p. 144).
Destarte, a aparência de neutralidade da expressão, erroneamente,
atrás das malhas de formação do ordenamento jurídico e do processo
constitucional de formação do esqueleto do Estado, nos bastidores de todo o
processo de luta pelo poder de dizer o que é justo e o que é injusto,
encontram-se fatores políticos. Assim, a neutralidade deixa de existir, para
verificar-se que todo o sistema jurídico repousa num sistema de distribuição
política do poder. Onde há Estado, há poder formalizado e, onde este reside
está a política. Então, a política é o lastro que subjaz às frias estruturas
jurídicas. A política não é um mal para as estruturas do direito, pois, o mal
Políticas públicas...
// 343
decorre do uso que dela se faz para a manipulação dos interesses sócioideológico-econômicos.
20.4 MÍNIMO VITAL VERSUS RESERVA DO POSSÍVEL: POR UMA
POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE PAUTADA NA JUSTIÇA
O Direito não é uma teoria pura, mas uma força viva, por isso, a
justiça sustenta numa das mãos, a balança em que pesa o direito e, na outra,
a espada de que se serve para o defender, pois a espada sem a balança é a
impotência daquele. Logo, uma não pode avançar sem a outra, portanto, não
haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a
espada seja igual à habilidade com que maneja a balança. Assim, é fruto de
um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos, mas ainda de
uma nação inteira. Posto que, quem possui o poder não tem apenas
suficiente poder para impor a justiça, também pode levar a injustiça; a espada
possui dois gumes, podendo servir à uma ordem justa, mas também pô-la em
risco (IHERING, 2009, p. 16).
Desse modo, a justiça não pode ser pensada isoladamente, sem o
princípio da dignidade humana, assim como o poder não pode ser exercido
apesar da dignidade humana. Em verdade, todos os demais princípios e
valores que orientam a criação dos direitos nacional e internacional curvamse ante esta identidade comum ou este minimum dos povos. É trivial ressaltar,
por essa razão, a importância de tal princípio constitucional (BITTAR, 2011,
p.112).
A análise da dignidade humana engloba todos os direitos fundamentais
apresenta-se, com obrigação do Estado em propiciar as condições para que
as pessoas tenham uma vida digna. São considerados agressões à
dignidade humana, a ausência de condições de vida digna, como a falta de
estrutura de vida, tais como ausência de moradia, habitação, educação,
saúde, além de práticas de tortura, perda da liberdade, violência física e
moral, racismo e outros (FERMENTÃO, 2009, p. 180).
Feitas tais ponderações, torna-se imperioso sublinhar que a
Constituição Federal, ao garantir o direito à saúde, o faz explicitamente por
meio de políticas sociais e econômicas. O que dá a entender que é uma
norma constitucional programática, e a princípio, as normas programáticas
não tem eficácia imediata, nascendo esta à medida que o Estado crie formas
de garantir o cumprimento da norma, além do que, a eficácia não nasce
completa, mas cresce na medida que o Estado se aproxima do objetivo da
norma programática. Entretanto, os direitos inerentes à educação, saúde e
assistência não deixam de ser direitos subjetivos pelo fato de não serem
criadas as condições materiais e institucionais necessárias à fruição desses
direitos. Implicando que esses direitos são regras jurídicas diretamente
aplicáveis, vinculativa de todos os órgãos do Estado (SILVA, 2002, p. 152153).
344 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
O entendimento do Supremo Tribunal Federal, assim, confirma esse
posicionamento através de Joaquim Barbosa, quem afirmar em sua decisão,
entre outros pontos, que incumbe ao poder judiciário rechaçar técnicas
interpretativas, as quais têm como consequência prática, a inoperância de
certos dispositivos da Constituição. Em seguida aduz que para a
consolidação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de
que, embora o artigo 196 da Constituição traga norma de caráter
programático, o Estado não pode furtar-se do dever de propiciar os meios
necessários ao gozo do direito à saúde por todos os cidadãos. Se uma
pessoa necessita, para garantir o seu direito à vida, de medicamento que não
esteja na lista daqueles oferecidos gratuitamente pelas farmácias públicas, é
dever solidário da União, do Estado e do município fornecê-lo (BRASIL, 2015h).
Já Nelson Jobim sintetiza com propriedade o posicionamento supra
ao afirmar que o artigo 196 da Constituição, por conter todos os elementos
necessários à sua aplicação, é norma de eficácia plena sendo, portanto,
norma auto-aplicável (BRASIL, 2015-i). Portanto, Zulmar Fachin (2012, p.
245-246) exara que:
Os direitos fundamentais são auto-aplicáveis, ou seja, não necessitam de
regulamentação para serem aplicados aos casos concretos. A autoaplicabilidade dos direitos fundamentais está prevista na própria Constituição
Federal: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata” (art. 5º, § 1º). Esse dispositivo constitucional, embora
previsto no capítulo reservado aos direitos e às garantias individuais, deve
ser interpretado ampliativamente, de modo a incidir sobre todas as espécies
de direitos fundamentais. Em outras palavras, a norma que garante a
efetividade refere-se aos direitos fundamentais localizados no rol específico,
mas também aos direitos fundamentais dispersos na Constituição.
Por conseguinte, a reserva do possível4, também não pode ser
vislumbrada com um “salvo conduto” para o Estado deixar de cumprir suas
obrigações sob a alegação genérica de “não existem recursos suficientes”.
Assim,
[...] a cláusula da “reserva do possível” não pode ser invocada levianamente
pelo Estado com o intuito de exonerar-se do cumprimento de suas
obrigações constitucionais. [...] Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula
da “reserva do possível” não pode ser invocada, pelo Estado, com a
finalidade de exonerar-se de cumprimento de suas obrigações
constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental
4
Segundo Heloise Siqueira Garcia e Denise Schmitt Siqueira Garcia: "O Princípio da Reserva
do Possível tem sua origem no Direito Alemão, a partir de um caso levado à julgamento na Corte
Constitucional. Ele se refere àquilo que o indivíduo pode esperar racionalmente da sociedade,
responsável por limitar a responsabilidade estatal conforme a possibilidade material do ente
político". (GARCIA, Heloise Siqueira; GARCIA, Denise Schmitt Siqueira. O princípio da dignidade
da pessoa humana e o princípio da reserva do possível: uma ponderação necessária. Disponível
em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=9f66a575a6cfaaf7>. Acesso em: 17 set. 2015).
Políticas públicas...
// 345
negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos
constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade
(ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 251-255).
Nesse sentido, tornou-se pacifico o entendimento do poder judiciário
no sentido de exigir do Estado a garantia de um mínimo vital, em contra
partida ao deslinde de uma reserva de recurso que este se preste. Assegurase, com isso, à saúde e à vida digna da pessoa humana. Dessa forma, como
preceitua entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria
Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira
responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos,
inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de
qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida
(BRASIL, 2015-g).
Porquanto, a que se velar por um padrão mínimo de existência digna
a ser garantido por meio dos direitos sociais fundamentais, e ainda, que
quando houver conflito entre o princípio da reserva do possível e este, deve
sempre prevalecer o reconhecimento do direito subjetivo a prestações sociais
básicas, indispensáveis a uma vida digna (ALEXY, 2008, p. 511-5118).
Nesse passo, a reserva do possível surge como uma proposta de resolução
prática desta questão, defendendo a idéia de que os direitos fundamentais
só poderão ser exigidos do Estado diante da possibilidade financeira, ou seja,
sujeitos à verba orçamentária disponível. Se entendermos pela ótica política,
os direitos sociais estariam, logo, "reféns" de opções de política econômica
do aparato estatal, eis que a “reserva do possível” traduz-se em uma
chancela orçamentária. Porém, indissociável a esta interpretação estaria um
núcleo mínimo de direitos que seriam necessários para a garantia do
princípio da dignidade da pessoa humana, e que, não estariam
condicionados à verba orçamentária, devendo ser garantido em qualquer
hipótese (MACHADO; HERRERA, 2015).
Nesse sentido, a finalidade pública das normas que devem reger a
saúde pública, isto é, qualquer iniciativa que contrarie tais formulações há de
ser repelida veementemente, até porque fere ela, no limite, um direito
fundamental da pessoa humana. Logo, à lume de que a dignidade da pessoa
humana como fundamento da República Federativa do Brasil consagra,
desde logo, o Estado como uma organização centrada no ser humano, e não
em qualquer outro referencial.
346 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
20.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desafio deste trabalho foi analisar como as políticas públicas
influenciam a vida digna da pessoa humana. Para tanto, este estudo realizouse por meio da pesquisa bibliográfica em diferentes livros, doutrinas,
documentos e, ainda, para a melhor compreensão, houve uma busca
jurisprudencial para analisar na prática como os direitos constitucionais
fundamentais vêm sendo concretizado e resguardado.
Sendo o objetivo central do presente trabalho, desenvolver uma
construção ética das políticas públicas, que tenham como alicerce a vida
digna do indivíduo. Partindo da construção do conceito vida, denotando,
portanto, para uma melhor compreensão do universo ontológico da pessoa.
Logo, a partir desta contextualização, focar-se-á na formação dos direitos que
resguardem esta, como positivação advinda da Constituição.
Ponderando-se, por fim, em como a política democrática brasileira
exerce um poder sobre a vigência do direito estipulado pelo artigo primeiro,
inciso terceiro do texto constitucional de 1988, no sentido de mitigá-lo sob o
argumento da reserva do possível.
A partir das hipóteses formuladas inicialmente, relacionadas ao
estudo da relação entre a política e a dignidade da pessoa humana, concluise que deve haver um essencial vital que dê suporte a qualidade intrínseca e
distintiva, dignidade da pessoa humana. Implicando neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho desumano e degradante, como venham
a lhe garantir as condições mínimas para uma vida saudável.
A um impacto, portanto, da ideia da dignidade da pessoa humana
como um fator nuclear de fundamentação e legitimação de uma cultura dos
direitos humanos. Nesse particular, é importante mencionar que, para o
brasileiro ter uma existência de vida digna e justa, o texto constitucional
precisa ser efetivado, como liame na justiça.
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Problemas da jurisdição contemporânea...
= XXI =
REFLEXÕES DA APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA QUANTO
À AÇÃO PENAL NA AGRESSÃO CONTRA MULHER NO MUNICÍPIO DE
JI-PARANÁ
Maria Priscila Soares Berro*
Rosani Borin**
Roseli Borin***
21.1 INTRODUÇÃO
Existe uma busca incessantemente quanto a tutela jurídica da
mulher, tendo em vista que a própria história da humanidade coloca a mulher
como um ser humano frágil, submissa ao seu companheiro, ficando na
maioria das vezes em segundo plano.
O costume é enxergar a menina como delicada e o menino é forte.
Pode se verificar que, desde criança, a mulher é ensinada e orientada a ser
dependente, meiga, submissa e cuidar dos outros. É dirigida a viver para os
outros, deixando de lado seus próprios desejos. O homem, por sua vez,
desde sua infância é incentivado a ser o dominador, para tanto, lhe é
ensinado a ser independente, a enfrentar de forma heroica suas dificuldades,
reprimir seus medos, fraquezas e angústias.
Neste contexto, o menino é estimulado a jogar bola, brincar com
armas, ser o xerife que prende os bandidos, brincar com carrinho; ele deve
aprender a ser agressivo, dinâmico e forte. É levado a buscar sempre
atividades competitivas, onde suas vitórias e conquistas o deixam em
evidência. Já a menina é levada a imitar sua mãe, nos afazeres domésticos,
brincar de casinha, com bonecas como se fossem seus filhos, fazendo
comidinhas e limpam a casa, bem como é direcionada a portar-se de forma
*
Doutoranda e Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela ITE - Instituição
Toledo de Ensino-Bauru/SP. Especialista em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITEBauru/SP). Especialista em Gestão de Negócios, pela UNESC-Faculdades Integradas de
Cacoal/RO. Docente do Departamento de Direito da Fundação Universidade Federal de
Rondônia-Campus Cacoal/RO. E-mail: [email protected]
**
Mestre em Promoção da Saúde pelo Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR- PR.
Especialista em Psicomotricidade Relacional pelo Centro Internacional de Análise Relacional CIAR/FAP- Faculdade de Artes do Paraná do Paraná – Curitiba- PR. Membro da Comissão do
Movimento de Políticas Públicas para Mulheres da Regional Paranavaí/PR. Pesquisadora CNPq
Grupo de Pesquisa - Gênero, Trabalho e Políticas Públicas - Universidade Estadual do ParanáUNESPAR/Paranavaí-PR. Assistente Social e Autora. E-mail: [email protected]
***
Mestre e Doutoranda Sistemas Constitucionais de Garantias de Direito pela ITE - Instituição
Toledo de Ensino-Bauru/SP. Especialista em Direito Civil – Sucessões, Família e Processo Civil.
Especialista em Direito do Estado/Constitucional. Professora da Graduação e Pós-Graduação.
Advogada e Autora. E-mail: [email protected]
352 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
delicada, submissa e prestativa, a ser vaidosa, mas nem tanto, bem como
exteriorizar sentimentos de alegria, disposição e disponibilidade.
Este é o ambiente doméstico em que as pessoas normalmente se
desenvolvem, onde as relações sociais desiguais estão presentes e
começam a ser assimiladas como se fossem regras a serem seguidas, o que
justifica a conduta do homem de sempre querer mandar, e da mulher, em
obedecer, o que traz à tona essa distribuição desigual de poder que gera a
submissão feminina e que muitas vezes, extrapolando os limites, levam às
condutas de agressões físicas e psicológicas reprimidas pelo direito.
No combate a essa violência doméstica, movimentos vêm sendo
realizados para a construção de uma sociedade mais justa e digna, com
respeito ao direito à cidadania da mulher, procurando criar, desenvolver e
fortalecer, a participação feminina em todos os espaços, públicos e privados
em igualdade de condições.
Desse modo, os objetivos deste trabalho são: analisar a aplicação da
Lei Maria da Penha nos casos de agressões ocorridas contra as mulheres
residentes no município de Ji-Paraná/RO, verificando-se quantidade de
ocorrência de agressões contra mulher e inquéritos policiais instaurados entre
os anos de 2007 e 2010, antes da modificação da Ação Penal de
Condicionada para incondicionada; fazer um levantamento junto à Delegacia
Defesa da Mulher (DDM) para averiguar quantas desistências de
representação ocorreram nesses anos, bem como pesquisa junto ao Fórum
desse município da quantidade de desistências da ação penal ocorridas
nesses anos e analisar, verificando-se, ainda quais as razões das
desistências de não prosseguir ação penal contra o agressor.
Para averiguar os motivos das desistências, foi aplicado um
questionário misto anônimo, para 30 (trinta) mulheres, delimitando nos 10
(dez) primeiros registros ocorridos em nos anos de 2007 a 2009, analisandose 30 (trinta) questionários.
A finalidade do presente foi demonstrar que com a mudança da ação
penal de condicionada para incondicionada, minimizou as agressões e
constrangimentos à mulher, fazendo com que não seja alvo do agressor para
forçá-la a desistir de representá-lo criminalmente, e para que o processo
prossiga até o seu curso final, podendo ser condenado ou absolvido. E se for
condenado, ficará com restrições e perderá os benefícios se cometer outros
delitos.
Para tanto, procedeu-se a um levantamento bibliográfico relacionado
aos aspectos históricos da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha; aos
aspectos conceituais da violência doméstica; a competência dos Juizados
Especiais para dirimir os crimes de violência desta natureza; aplicação da Lei
nº 9.099/1995; os aspectos legais da Convenção sobre a eliminação de todas
as formas de discriminação contra a mulher.
O primeiro aborda aspectos históricos da Lei Maria da Penha;
aspectos conceituais e as formas de violência contra a mulher. No segundo
capítulo tratou-se da violência doméstica contexto do juizado Especial
Criminal e reflexões da Lei nº 9.099/1995, já o terceiro enfatizou a convenção
Reflexões da aplicabilidade...
// 353
e eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, enquanto
que no quarto refletiu-se sobre a Lei nº 11.340/2006 na órbita da ação penal,
apresentando-se no ultimo capitulo o resultado da pesquisa realizada na
cidade de Ji-Paraná, Estado de Rondônia.
21.2 LEI MARIA DA PENHA: LEI Nº 11.340/2006
A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, popularmente conhecida
como Lei Maria da Penha1 por ser uma homenagem a farmacêutica cearense
Maria da Penha Maia Fernandes, mãe de 03 (três) filhas, transformou seu
drama em esperança para diminuir as estatísticas de calamidade pública, em
âmbito nacional, que se apresentava a violência contra a mulher.
No dia 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará,
Maria foi atingida por um tiro de espingarda disparado por seu marido,
colombiano naturalizado brasileiro, o professor universitário Marco Antônio
Heredia Viveiros, ficando paraplégica em razão das lesões que sofreu na
terceira e quarta vértebras de sua coluna. O suposto agressor negou a autoria
do crime, alegando em sua defesa que os fatos ocorreram em virtude de um
assalto em sua residência.
A vítima temia em denunciar o abuso ocasionado pelo marido de
temperamento violento, sendo que poucos dias depois da tentativa de
homicídio a mesma já havia recebido uma descarga elétrica durante o banho.
O Ministério Público ofereceu denúncia em desfavor do agressor em
28 de setembro de 1984, na 1ª Vara Criminal de Fortaleza, o qual foi
pronunciado em 31 de outubro de 1986 e levado a júri em 4 de maio de 1991,
quando foi condenado. Contra a sentença de pronúncia houve a apelação da
defesa. O recurso foi acolhido e o réu julgado novamente em 15 de março de
1996, sendo condenado a pena de 10 (dez) anos e 06 (seis) meses de prisão.
Novamente a defesa apelou e interpôs recursos a tribunais superiores.
Somente em setembro de 2002, depois de 19 (dezenove) anos da prática do
crime, foi finalmente preso, e após cumprir menos de 1/3 (um terço) no regime
fechado foi posto em regime aberto, retornando para o Estado do Rio Grande
do Norte.
Contudo, caso chegou ao conhecimento da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos em 20 de agosto de 1998. A denúncia
foi apresentada pela própria Maria da Penha, pelo Centro pela Justiça e o
Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano e do Caribe
para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM).
Fundado em 1991, o CEJIL é uma entidade não-governamental que
tem por objetivo a defesa e promoção dos direitos humanos junto aos
Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. O CEJIL-Brasil
existe desde 1994.
1
A história do nascimento da lei encontra-se disponível em: <http://www.mariadapenha.org.br>.
Acesso em: 10 ago. 2015.
354 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
O CLADEM se constitui por um grupo de mulheres (dentre as quais
a brasileira Silvia Pimentel), empenhadas na defesa dos direitos das
mulheres da América Latina e Caribe. Possui escritório sediado na cidade de
Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da
Organização dos Estados Americanos (OEA), sediada em Washington,
Estados Unidos, tem como principal tarefa analisar denúncias de violações
aos direitos humanos, assim considerados aqueles relacionados na
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. As petições
podem ser dirigidas por qualquer vítima, terceira pessoa que tomou
conhecimento dos fatos, grupo ou ONG legalmente reconhecida por pelo
menos um Estado-membro da OEA.
Em 19 de outubro de 1998, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos solicitou informações ao Brasil, o qual se omitiu em responder as
indagações. Em 4 de agosto de 1999 e 7 de agosto de 2000, reiterou o
pedido, novamente sem sucesso. Decorrido mais de 250 dias desde a
transmissão dos fatos foi aplicado o artigo 39 do Regulamento da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, com o propósito de que se presumisse
serem verdadeiros os fatos relatados na denúncia.
Nos termos do artigo 51 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em março de 2001 a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos enviou o relatório ao Estado brasileiro
para seu cumprimento em um mês. Como nenhuma resposta foi obtida,
tornou público o Relatório 54/2001, repercutindo internacionalmente e
servindo como poderoso incentivo para que se restabelecessem as
discussões sobre a violência doméstica, culminando após pouco mais de 05
(cinco) anos com a publicação da Lei Maria da Penha.
O relatório analisa profundamente os fatos narrados pela vítima e
aponta as falhas cometidas pelo Estado brasileiro, que aderiu a Convenção
Americana (ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992) e Convenção
de Belém do Pará (ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 2005). Como
parte desses tratados, o Brasil assumiu o compromisso de implantar e
cumprir seus dispositivos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu que “a
ineficácia judicial, a impunidade e impossibilidade de a vítima obter uma
reparação mostra a falta de cumprimento do compromisso de reagir
adequadamente ante a violência doméstica”.
Uma das deliberações tomadas pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos foi o pagamento de uma indenização de 20 mil dólares em
favor de Maria da Penha, em virtude da demora na conclusão do processocrime que culminou com a condenação do réu e da desproporção entre o fato
e a pena aplicada, demonstrando ineficácia da medida punitiva. O governo
do Estado do Ceará concordou com o pagamento em prol de Maria da Penha
e indenizou em 7 de julho de 2008.
Reflexões da aplicabilidade...
// 355
21.2.1 Aspectos históricos
Conta a história da humanidade que, desde os tempos bíblicos a
mulher tem enfrentado gravíssimas violações em seus direitos mais
elementares, tais como o direito à vida, à liberdade e a disposição de seu
próprio corpo. Olhando sob esse ângulo, Maria Berenice Dias (2010) ensina
que embora não se possa concluir esta visão de cunho religioso, talvez tenha
sido ele o responsável pela disseminação da violência no seio familiar e
social. Salienta a forma em que o casal educa e prepara os meninos e as
meninas para a convivência social, faz surgir a diferença imposta pelo
machismo e a religiosidade.
Na sociedade antiga, a mulher tinha pouca expressão, era vista como
um reflexo do homem, e tida como objeto a serviço de seu amo e senhor.
Desse modo, assevera Maria Berenice Dias (2010) que a mulher era vista,
também, como instrumento de procriação. Enfim, era a mulher a fêmea,
sendo por muitas das vezes comparada mais a um animal do que um ser
humano.
Destaca Kátia Lenz César de Oliveira (2004) que a partir de 1970 a
violência conjugal começa a ser vista para além de um caráter
psicopatológico individual. Isso se dá em virtude do movimento feminista que
garante a visibilidade à violência contra a mulher, ressaltando as proporções
endêmicas do fenômeno como prova de que ele está associado aos valores
culturais que desprestigiam e submetem as mulheres. O tema aparece então,
estreitamente ligado a uma discussão política.
Segundo Kátia Lenz César de Oliveira (2004) na realidade o
feminismo se faz presente desde a Revolução Industrial Europeia, lutando
principalmente pelo direito ao trabalho e voto das mulheres; ele perde seu
fôlego após algumas conquistas e tem seus argumentos cooptados pelas
forças políticas tradicionais que mantinha o poder. Mais tarde o movimento
renasce, criticando essa primeira etapa por não elaborar uma contracultura
capaz de desafiar a sociedade a mudar o papel da mulher. A luta, a partir de
então, deveria atingir as raízes do que se passou a chamar de cultura
patriarcal e nela o lugar da mulher na família, era visto como um caminho
adequado a este fim.
Com o passar dos tempos, vários grupos de mulheres foram se
organizando para fundar abrigos e cobrar apoio dos governos. Nesse sentido,
Kátia Lenz César de Oliveira (2004) ressalta que no final da década de 1970
já existiam cerca de 150 abrigos só na Inglaterra e Gales. Nos Estados
Unidos, o movimento em defesa das vítimas de violência conjugal começou
em 1973, portanto, mais tarde. Iniciou-se com o estudo que apontavam para
a alta frequência e severidade da violência contra a mulher, o que gera a
criação de abrigos.
Bruna Villas Boas Campos (2010), ensina que a Declaração
Universal dos Direitos do homem, reconhecida como o marco da elevação de
princípios de dignidade e igualdade da pessoa humana, buscou
revigoramento e enriquecimento dos Direitos Humanos de forma continua, de
356 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
maneira que estes sejam protegidos diante das relações sociais e
interestatais e da dinâmica das mesmas no mundo contemporâneo. A partir
de 1975, com base no entusiasmo do movimento feminista ocorrido em 1970,
iniciou-se a década da mulher que foi organizada pela ONU. Assim,
estabeleceu-se o contexto no qual a crítica às instituições, órgãos e grupos
relacionados aos Direitos Humanos, restaurou-se para denunciar a
negligencia com o qual estava sendo tratados os direitos da mulher.
Em 1979 foi aprovada a Convenção sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação contra a mulher e neste sentido, destaca Campos
(2010) que esta foi, até então o documento mais importante e complexo em
prol dos direitos da mulher. Tal instrumento conclamava os países signatários
a adotarem todas as medidas necessárias a suprimir a discriminação contra
a mulher, em suas diversas formas de manifestação. Entretanto, a própria
violência exercida contra a mulher dificulta o acesso à Convenção e a outros
grandes Tratados de Direitos Humanos.
Para Thiago André Pierobom de Ávila (2007) a Lei nº 11.340/2006
cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos do artigo 226 § 8° da Carta Magna, da Convenção Interamericana
para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e Familiar contra a
Mulher e alterar o Código de Processo Penal, e a Lei de Execução Penal.
A Lei Maria da Penhas representa, assim, um avanço na proteção da
mulher vítima de violência familiar e doméstica, incluindo-se, também, uma
inovação legal quanto às formas familiares já positivadas.
21.2.2 A violência doméstica e seus aspectos conceituais
A Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher. Segundo relatório da Organização
Mundial da Saúde, a maioria das violências cometidas contra a mulher ocorre
dentro do lar ou junto à família, sendo o agressor o companheiro atual ou o
anterior. E pior, as mulheres agredidas ficam, em média, convivendo um
período não inferior a dez anos com seus agressores.
Assim, é preciso identificar o âmbito de abrangência da lei ora
comentada, ou seja, o que é violência doméstica. Ainda que a lei não seja a
sede adequada para emitir conceito, o legislador definir bem a violência
doméstica e identificar suas formas. A absoluta falta de consciência social do
que seja violência doméstica é que acabou condenando este crime a
invisibilidade.
Com efeito, a Lei em questão define a violência doméstica no caput
do artigo 5° e as formas como estas ocorrem, no artigo 7°, in verbis:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial.
[...] Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
Reflexões da aplicabilidade...
// 357
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe
o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde
psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a
impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio,
à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos
sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).
Observa-se que a Lei Maria da Penha além de conceituar o termo
violência doméstica, preocupou-se também em descrever as formas como
estas se concretizam, mas para se chegar ao conceito de violência doméstica
faz-se necessária a conjugação desses dois dispositivos, razão pela qual
Maria Berenice Dias (2010) ensina que deter-se somente no artigo 5° é
insuficiente, pois são vagas as expressões “qualquer ação ou omissão
baseada no gênero”, “âmbito de unidade doméstica”, “âmbito da família” e
“relação íntima de afeto”. Da mesma forma, apenas do artigo 7º também não
se retira o conceito legal de violência contra mulher, impondo-se a
interpretação conjunta destes dois artigos.
Desse modo, o conceito de violência doméstica traduz-se como
sendo qualquer das ações elencadas no art. 7º (violência física, psicológica,
sexual, patrimonial ou moral) praticada conta a mulher em razão de vínculo
de natureza familiar ou afetiva.
De acordo com Graziela Cucchiarelli Werba (2004) violência seria
qualquer ato de violação aos direitos humanos de qualquer pessoa
independentemente de qualquer característica de gênero, raça, etnia, idade,
condição econômica ou social. Enfatiza que se a violência ocorre pelo fato da
vítima pertencer a um determinado gênero, no caso, se for uma mulher,
considera ser esta uma violência de gênero ou violência contra a mulher.
Assim, explica que são atrocidades cometidas em função das diferenças não
admitidas constitucionalmente, que ocorrem com o emprego de força física,
ameaças psicológicas, econômica, dentre outros, que tem o condão de se
caracterizar como ato violento e reprovado pelo direito.
358 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Seu significado mais frequente se refere ao uso de força física,
psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo mesmo sem
a manifestação de sua vontade; assim, passa o agente a constranger e tolher
a liberdade da agredida, ao lhe incomodar, impedindo-a de exteriorizar seu
desejo, sob constante ameaça ou até mesmo espancamentos, que podem
levá-la até a morte. Entende, portanto, ser um meio de coagir, de submeter
outrem ao seu domínio por constituir um ato de violação dos direitos
essenciais do ser humano.
Nota-se que esse entendimento conduz à ideia de que a violência
concerne à restrição considerável da liberdade e integridade alheia, de forma
a lhe impor uma vontade que não condiz com o interesse do outro e, para
tanto, faz uso de medidas constrangedoras, as quais reprimem e submetem
os outros de maneira coerciva ou impositiva.
Por sua vez, a violência de gênero se apresenta como forma mais
extensa e se generalizou como uma expressão utilizada para fazer referência
aos diversos atos praticados contra as mulheres como forma de submetê-las
a sofrimento físico, sexual e psicológico, aí incluídas as diversas formas de
ameaças, não só no âmbito intrafamiliar, mas também abrangendo a sua
participação social em geral, caracterizando-se pela imposição ou pretensão
de imposição de subordinação e controle do gênero masculino sobre o
feminino.
Desse modo, pode-se observar que para ser o crime previsto na Lei
n° 11.340/2006, é condição sine qua non que a conduta lesiva seja baseada
no gênero, ou numa relação de afeto em que esteja presente a submissão de
uma das partes à outra.
21.2.3 Da lei n° 11.340/2006 e as formas de violência doméstica contra a
mulher
Ao analisar a Lei Maria da Penha, Dias (2010, p. 64) evidencia as
sequelas decorrentes do reconhecimento do delito como violência doméstica,
em face do aumento da pena do artigo 61, II, “f” do Código Penal, que sujeita
o réu as demais vicissitudes que impõe a Lei. Assim, mesmo que o crime
possa ser reconhecido como de pequeno potencial ofensivo, a ação não
tramita nos Juizados Especiais Criminais, mas sim nas Varas Criminais,
enquanto não instalados os (JVDFMs) - Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher. Por essa razão, o réu deixa de fazer jus às benesses
da Lei nº 9.099/1995.
Como visto, a Lei Maria da Penha traz em seu bojo, no artigo 7° e
incisos, as formas de violência doméstica contra a mulher, tendo esse artigo
se ocupado de explicar pormenorizadamente a maioria das formas possíveis
dessa violência, fazendo depreender-se do texto legal que há outras formas
de violência doméstica ou familiar contra a mulher. Neste aspecto, a lei
assevera expressamente que essas formas são meramente exemplificativas,
uma vez que podem existir outras não previstas na norma especial.
Reflexões da aplicabilidade...
// 359
Ana Cecília de Paula Soares Parodi e Ricardo Rodrigues Gama
(2007, p. 157) salientam que:
O art. 7º ocupou-se de estipular um rol exemplificativo de maneiras como as
lesões podem se concretizar na vida das vítimas, independente [sic] de
serem afetas à esfera cível ou criminal. Caminhando pela esteira dos danos
materiais e imateriais, o legislador é motivado a construir o presente artigo
inclusive por necessidade histórico-sociológica, visto que a maioria dos
ilícitos ora definidos possuem um passado nada remoto de preconceitos de
tal monta que impediam as próprias ações judiciais [...].
Cumpre observar que o legislador se preocupou mais em definir as
diversas formas de violência doméstica visando, com isso, a eficácia da
proteção ora estudada.
21.2.3.1 Da violência física
Nos termos do inciso I, do artigo 7º da Lei Maria da Penha, entendese como violência física qualquer conduta que ofenda a integridade física ou
a saúde corporal da mulher.
Segundo Maria Berenice Dias (2010), ainda que a agressão não
deixe marcas aparentes, o uso da força física que ofenda o corpo ou a saúde
da mulher constitui vis corporalis, expressão que define a violência física,
sendo que esta pode deixar sinais ou sintomas que facilitam a sua
identificação, tais como hematomas, arranhões, queimaduras e fraturas. O
estresse crônico gerado em razão da violência também pode desencadear
sintomas físicos, como dores de cabeças, fadiga crônica, dores nas costas e
até distúrbios.
É sabido que o agressor geralmente é uma pessoa íntima ou membro
da família e que dos casos de violência doméstica denunciado, a maioria
refere-se a crimes conjugais, sendo os acusados os maridos, ex-maridos,
companheiros, ex-companheiros, namorados, ex-namorados, onde os
abusos físicos mais frequentes são tapas, empurrões, socos, beliscões,
surras, homicídios e queimaduras.
Para Maria Berenice Dias (2010) a integridade física e a saúde
corporal são protegidas juridicamente pela lei penal, pois a violência
doméstica já configurava forma qualificada de lesões corporais, inserida no
Código Penal, em 2004, com acréscimo do §9º ao artigo 129 do Código Penal
brasileiro.
Assim, a Lei Maria da Penha limitou-se a alterar a pena desse delito,
diminuiu a pena mínima e aumentou a pena máxima, que passou de 06 (seis)
meses a 01 (um) ano para 03 (três) meses a 03 (três) anos.
E quanto às lesões culposas, sua tipicidade é excepcional. Portanto,
havendo omissão da Lei Maria da Penha, somente as condutas praticas
dolosamente configuram violência física.
360 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
21.2.3.2 Violência psicológica
Prevista no inciso II, do artigo 7º da Lei Maria da Penha e dispõe que
a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o
pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do
direito de ir e vir qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde
psicológica e à autodeterminação.
Verifica-se que as proteções da autoestima e da saúde psicológica,
não estavam previstas na legislação pátria e que somente com a realização
da Convenção para Prevenir e Erradicar a Violência Doméstica, conhecida
como a Convenção de Belém do Pará, a violência psicológica passou a ser
tutelada e incorporada no conceito de violência contra a mulher.
Para essa violência existem três tipos de crime tipificados no Código
Penal Brasileiro que são a calúnia, injúria e difamação, sendo conhecidos
como “crimes contra a honra”.
Fazendo um paralelo entre as violências física e psicológica Maria
Berenice Dias (2010) ressalta que a violência psicológica consiste na
agressão emocional tão ou mais grave que a física, o comportamento típico
se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima,
demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontando, inferiorizado
e diminuído, configurando a vis compulsiva.
A violência psicológica encontra forte alicerce nas relações desiguais
de poder entre os sexos, sendo a mais frequente e talvez seja a menos
denunciada, pois a vítima, muita das vezes, nem se dá conta de que
agressões verbais, silêncios prolongados, tensões, manipulações de atos e
desejos são violência e devem ser denunciados. Dessa forma, na ignorância
da vítima, fica o agressor impune.
Para a configuração do dano psicológico não é necessária a
elaboração de laudo técnico ou realização de perícia. Segundo Maria
Berenice Dias (2010), reconhecida pelo juiz sua ocorrência, impõe-se a
concessão de medida protetiva de urgência, lembrando aqui que qualquer
delito praticado mediante violência psicológica reclama a majoração da pena
constante no artigo 61, inciso II, alínea “f” do Código Penal Brasileiro.
A violência doméstica além de deixar traumas psicológicos na vítima,
também fere seus direitos como cidadã, é responsável também pelo desvio
de personalidades dos filhos e desencadeia baixa na produtividade do
trabalho feminino.
21.2.3.3 Violência sexual
A Lei n° 11.340/2006 trata no inciso III do artigo 7º a questão da
violência sexual. O texto legal descreve o conceito de violência sexual, de
Reflexões da aplicabilidade...
// 361
onde se pode dizer que essa forma de violência é tão grave quanto às demais
formas trazidas pela doutrina, pois fere a dignidade da pessoa humana.
Houve uma evolução na doutrina penal, onde se refere ao tema
“debito conjugal” no tocante ao dever inerente ao casamento, pois no sistema
anterior sequer se reconhecia a prática de estupro do marido com relação à
mulher, sob o absurdo argumento de que se tratava de um direito inerente à
condição de marido, que o poderia exigir inclusive sob violência.
O Código Penal Pátrio foi mais severo em relação aos crimes
perpetrados com o abuso da autoridade decorrente de relações domésticas.
Assim, assevera Maria Berenice Dias (2010) que este Diploma Legal
reconhece como circunstancias que sempre agravam a pena o fato de o crime
ter sido praticado contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge como
descreve o artigo 61, inciso II, alínea ‘e’; e com abuso de autoridade ou
prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade
conforme artigo 61, inciso II, alínea ‘f’ do Código Penal. A Lei Maria da Penha
inseriu neste dispositivo legal mais uma hipótese, com violência contra a
mulher na forma da lei especifica.
Os crimes que equivocadamente eram nominados de “contra os
costumes” em boa hora passaram a ser chamados de “crimes contra a
dignidade sexual”. Assim, leciona Maria Berenice Dias (2010) que quem
obriga alguém, homem ou mulher, a manter relação sexual não desejada
pratica o crime de estupro. Relata que, da mesma forma, os outros crimes
contra a liberdade sexual configuram violência sexual: violação sexual
mediante fraude; assédio sexual; crime sexual contra vulneráveis e satisfação
de lascívia. Dessa forma, enfatiza que todos esses delitos, se cometidos
contra pessoas de identidade feminina, no âmbito das relações domésticas,
familiares ou de afeto constituem violência doméstica, e o agente submetese à Lei Maria da Penha.
21.2.3.4 Violência patrimonial
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve a
isonomia efetiva entre direitos e garantias entre homens e mulheres,
elevando, dessa forma, a condição da mulher ao ansiado e oportuno patamar
igualitário.
Segundo Emanuel Flávio Fiel Pavoni (2007) no cenário da lei em
evidência, é considerado abuso e violência patrimonial o arbitrarismo por
parte do marido ou convivente, quanto à gestão do patrimônio, objetos ou
instrumental de que faça uso a mulher para seu labor, bem como a guarda
ou retenção de seus documentos pessoais, bens pecuniários ou não, da
mulher.
O inciso IV do artigo 7º da Lei maria da Penha normatiza esta espécie
de violência, sendo que se deve notar pois, que além de tutelar a integridade
física e psicológica da mulher, a lei se preocupou também com os aspectos
patrimoniais, visando punir as condutas do agressor quando este cometer o
ilícito de reter, destruir e subtrair bens e valores pessoais da vítima.
362 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Neste diapasão, Emanuel Flávio Fiel Pavoni (2007) afirma que tal
inciso IV do artigo 7º se refere a qualquer conduta que configure retenção,
subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Observação importante traz Maria Berenice Dias (2010) quanto a
comparação dos artigos 181 e 182 do Código Penal com o inciso IV do artigo
7° da Lei Maria da Penha, pois os primeiros dispositivos tratam da imunidade
absoluta nos crimes contra o patrimônio, quando o autor for o cônjuge,
ascendentes ou descendentes, ou quem tenha parentesco legítimo ou
ilegítimo.
Neste caso, Júlio Fabbrini Mirabete (2008) ensina que a lei prevê
como medida de política criminal, as imunidades absolutas e relativas nos
crimes contra o patrimônio, denominadas, as primeiras, de caso de isenção
de pena, ou equivocadamente, de escusas absolutórias, sendo que a
imunidade absoluta se caracteriza pela isenção de pena, de modo que não
pode ser instaurado o inquérito policial e muito menos a ação penal contra o
beneficiário, por falta de interesse de agir, vez que não é possível a imposição
de pena, mesmo estando presentes a antijuridicidade e a culpabilidade do
fato, tornando inaplicável a sanção penal.
Não havendo interesse de agir e, portanto, uma das condições de
ação, o processo deve ser declarado nulo ab initio. Já se declarou, entretanto,
a extinção da punibilidade nestes casos, por tratar-se de isenção de pena
obrigatória e não facultativa, que exclui qualquer sansão penal, ou seja,
qualquer pena ou medida de segurança ou efeito de condenação, como por
exemplo o registro no rol dos culpados e a perda do bem. A conduta é ilícita,
mas pelo Código Penal, não cabe a aplicação das penas dos crimes contra o
patrimônio. Importante mencionar a exceção a essa regra, que vem
estabelecida no inciso I do artigo 183 que determina a punição nos casos da
prática de violência ou grave ameaça, nestes tipos penais.
Em relação à Lei nº 11.340/2006, os crimes contra o patrimônio
possuem outra conotação, vez que não há a extinção da punibilidade como
impõe o Código penal. Com efeito, tem-se que a partir da nova definição de
violência doméstica que reconhece como tal também a violência patrimonial,
não se aplicam as imunidades absolutas ou relativas dos artigos 181 e 182
do Código Penal quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração
vinculo de natureza familiar. Não há mais como admitir o injustificável
afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua esposa ou
companheira, ou, ainda, algum parente do sexo feminino. Segundo Maria
Berenice Dias (2010) em relação ao Estatuto do Idoso, o legislador impôs
uma regra mais rigorosa, ao prever a dispensa de representação por parte do
idoso e expressamente estabelece a não aplicação desta causa de isenção
quando a vítima tiver mais de 60 anos.
A lei Maria da Penha reconhece como violência patrimonial o ato de
“subtrair” objetos da mulher, o que nada mais é do que furtar. Assim, se
subtrair para si coisa alheia móvel configura o delito de furto, quando a vítima
Reflexões da aplicabilidade...
// 363
é mulher com quem o agente mantém relação de ordem afetiva, não se pode
mais admitir a escusa absolutória. O mesmo se diga com relação aos crimes
de apropriação indébita e ao delito de dano. É violência patrimonial “apropriar”
e “destruir”, os mesmos verbos utilizados pela lei penal para configurar tais
crimes. Perpetrados contra a mulher, dentro de um contexto de ordem
familiar, o crime não desaparece e nem fica sujeito à representação, o que
não ocorre no campo do Direito Penal.
21.2.3.5 Violência moral
A Lei Maria da Penha descreve no inciso V do artigo 7º, que: “[...] a
violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria”, do que se observa que o crime de violência moral
prevista na Lei Maria da Penha, engloba os tipos penais da calúnia,
difamação e injúria. Diversamente do que ocorreu quanto ao crime de
violência patrimonial, o Código Penal e a Lei em estudo encontram-se em
harmonia.
A violência moral encontra proteção penal nos delitos contra a honra:
calunia, difamação e injúria. São denominados delitos que protegem a honra,
mas, cometidos em decorrência de vínculos de natureza familiar ou afetiva,
configuram, violência moral.
Buscando traçar as diferenças entre estes tipos penais, assevera
Maria Berenice Dias (2010) que na calúnia, o fato atribuído pelo ofensor à
vítima é definido como crime, enquanto que na injúria não há atribuição de
fato determinado, mas na difamação há a imputação de fato ofensivo à
reputação da vítima. Esclarece que a calúnia e a difamação atingem a honra
objetiva e o crime de injúria atinge a honra subjetiva. Ao comentar acerca da
consumação do delito, comenta que a calúnia e a difamação consumam-se
quando terceiros tomam conhecimento da imputação e quanto à injúria, diz
que esta se consuma quando o próprio ofendido torna conhecimento da
imputação.
Adentrando para a esfera da violência doméstica, estes delitos,
quando são perpetrados contra a mulher no âmbito da relação familiar ou
afetiva, devem ser reconhecidos como violência doméstica, impondo-se o
agravante da pena acrescentado no artigo 61, inciso II, alínea “f” do Código
Penal. De modo geral, não concomitantes à violência psicológicas e dão
ensejo, na seara civil, à ação indenizatória por dano material e moral, ou seja,
passou-se a prever a violência doméstica ou familiar contra a mulher como
uma circunstância agravante genérica.
Segundo Emanuel Flávio Fiel Pavoni (2007), o inciso X do artigo 5º
da Carta Magna refere-se ao dano ou tentativa de danos, agora também
contra a honra ou imagem da mulher. Neste sentido, qualquer forma de
conduta que viole sua intimidade ou idoneidade, prolatando calunias,
atribuindo-lhe falsamente atos que não praticou, ou a difamando, revelando
segredos ou fatos que só dizem respeito a ela mesma ou ao âmbito de sua
364 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
intimidade, ou ainda a maldizendo, prolatando juízos escusos ou ofensivos,
são harmônicos com o tipo em epigrafe.
Sendo assim, nota-se que com o advento da nova Lei nada mais justo
que a mulher tenha um amparo legal. Nesta seara, foram bem inseridas no
artigo 7º e seus inciso da Lei nº 11.340/2006, garantias de efetiva proteção à
mulher, tendo em vista a peculiaridade da situação fática da vítima em relação
à sua família e ao seu agressor, sendo na maioria das vezes é agredida,
insultada, maltratada verbalmente e submetida a expor seus problemas
domésticos perante a comunidade em que vive.
21.3 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO CONTEXTO DO JUIZADO ESPECIAL
CRIMINAL
A violência doméstica, na maioria das vezes, é classificada
juridicamente como lesão corporal leve, sendo, por isso, encaminhada ao
chamado Juizados Especiais Criminais, também conhecidos como juizados
de pequenas causas, priorizam os procedimentos mais rápidos e
simplificados visando com isso evitar que os casos simples, sejam resolvidos
por meio da conciliação evitando o procedimento ordinário que levam anos
até serem julgados. Verifica-se, então, que há uma preocupação em tornar a
resposta do judiciário mais célere e eficiente para os chamados crimes de
menor potencial ofensivo, também conhecido como crime anão por serem
crimes considerados de menor gravidade. Daí porque dizer que no Juizado
Especial Criminal vigoram os princípios da informalidade, da simplicidade do
processo e da celeridade.
Sendo que esses juizados especiais criminais abrem espaço para
haver um tipo de negociação e evita que o acusado da prática de determinado
delito entre no sistema de Justiça criminal, que tem como ponto final a
penitenciária. E que a Justiça Especial Criminal possibilita aos implicados
comportarem um acordo, abrangendo a indenização por eventuais danos
materiais ou morais sofridos pelo ofendido, bem como pode o Ministério
Público fazer uma proposta de pena a ser cumprida pelo autor do delito.
Pois, visa-se também atender o fim social a que se destina o Juizado
que é justamente permitir à população maior acesso à justiça para resolver o
litígio de maneira mais célere, bem como pelo fato das penas aplicadas ao
ofendido não terem o caráter coercitivo e sim, ao contrário, buscam um meio
de reeducar o indivíduo.
Contudo, embora tenham a aparência de serem suficientes para
atenderem grande parcela de casos concretos, muito se questiona acerca da
adequação dos juizados especiais criminais diante da violência doméstica a
que se expõe um grande número de mulheres.
Para Carla Góes Sallet (2005), um dos motivos diz respeito ao fato
de que mesmo quando a lesão corporal é leve, ela costuma ser recorrente e
que raramente a mulher agredida leva o seu caso ao conhecimento do
judiciário assim que ocorre na primeira vez, pois os fatores emocionais e
sociais costumam conter esse tipo de iniciativa. Outro motivo está relacionado
Reflexões da aplicabilidade...
// 365
à natureza da convivência existente entre o agressor e a vítima, eis que esta
pressupõe certo grau de confiança e afetividade, ou seja, o lado emocional
do relacionamento.
É por esta razão que a violência doméstica, ainda quando produz
lesões consideradas leves, merece ser classificada de forma diferenciada
tendo em vista a violação do vínculo que une a vítima e o agressor, ou seja,
quando o marido ou o companheiro agride sua mulher, esta agressão não
deve ser juridicamente classificada da mesma forma que uma agressão
praticada por um estranho. Bater na esposa ou na companheira deve ser
classificado como algo mais grave do que bater em um estranho, ainda que
a lesão provocada seja semelhante, pois o tipo de relação entre os cônjuges
deve funcionar como elemento agravante.
Aparte desta questão técnica, é também muito criticado pelo
movimento feminista o entendimento jurisprudencial predominante nos casos
de violência doméstica. Sendo encaminhados aos juizados especiais, esses
são submetidos, primeiramente a fase de conciliação, na qual vítima e
agressor tentam chegar a um acordo mediado pelo conciliador que procura
conduzir as partes a um entendimento equilibrado.
Nesse sentido, enfatiza Letícia Franco de Araujo (2003) que na
prática da Lei nº 9.099/1995 há indícios de ineficácia social, assim, explica
que o artigo 69, caput, determina o encaminhamento das partes e do registro
do fato, formalizado através do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO),
imediatamente ao Juizado Especial Criminal, para que ali seja realizada a
audiência preliminar. Entretanto, contata-se a quase impossibilidade de se
dar efetividade a esta previsão legal, isto porque o artigo 70 estabelece que
depois de formalizado o TCO, deve a vítima retornar para o local onde o
agressor se encontra para juntos comparecerem à Delegacia a fim de
formalizar o compromisso de comparecimento ao Juizado Especial Criminal,
saindo dali com a data da audiência previamente marcada.
Desse modo, observa-se que a Lei nº 9.099/1995 em alguns aspectos
revela efeitos prejudiciais porque neste caso a vítima volta, logo após o
registro do fato na Delegacia de Polícia, em contato com o agressor, que
encara esse registro na Delegacia como um ato de agressão, quando não um
comportamento de insubordinação por parte da vítima. O registro do fato
torna-se, assim, um novo motivo de conflito, a ensejar nova violência. Durante
este lapso temporal situado entre o registro da ocorrência e a audiência
preliminar no Juizado Especial Criminal, a vítima fica totalmente desprotegida
e refém do agressor.
Segundo Letícia Franco de Araújo (2003), esta postergação da
audiência preliminar pode não ser prejudicial à solução judicial de crimes de
menor potencial ofensivo que não caracterizem violência contra a mulher,
mas neste campo seus efeitos são nefastos, em virtude das especificidades
deste tipo de violência, que se vêm se destacando frequentemente. Ao
explicar que estas práticas têm efeitos malignos, diz que a distância temporal
entre o registro do fato na Delegacia e a audiência de conciliação faz com
que a vítima reconsidere seu posicionamento, o que é normalmente tido como
366 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
ato de coragem, ao considerar como parâmetro de análise sua relação afetiva
ou sua dependência econômica, ou ainda ao ser submetida a diversos tipos
de pressões, sobretudo da família do agressor, ou deste próprio, quando não
de uma ameaça criminosa.
Outro ângulo negativo, de acordo com Carla Góes Sallet (2005) era
que a solução da conciliação em muitos casos vinha sendo o pagamento de
uma cesta básica à mulher, agora proibido (art. 17, da Lei nº 11.340/2006).
Embora na lei não fizesse nenhuma menção a esse tipo de pena, essa
solução se espalhou por todo o Brasil, e com ela as suas críticas, que
destacaram dois problemas sociais que fundamentam esse tipo de acordo. O
primeiro diz respeito à banalização e tolerância velada à violência doméstica.
Em segundo lugar, estão o posicionamento geralmente conservador do
direito brasileiro e dos costumes arraigados na sociedade, que consagram o
casamento como um bem público a ser preservado a todo custo, fazendo com
que a família muitas vezes seja considerada algo mais valioso que a própria
integridade física e psicológica da mulher.
O quadro descrito até aqui é bastante pessimista. No entanto, isso
não deve levar à paralisação das mobilizações e movimentos de mulheres e
homens para transformações socioculturais e jurídicas. Muitas mudanças
foram conquistadas em contextos ainda mais conservadores e outras estão
a caminho.
O acúmulo de vitórias é um estímulo para novas mobilizações, mas,
por outro lado, uma visão realista é imprescindível para que não mascarem
as discriminações que ainda persistem. É com a conscientização de todos
que o processo tenso e difícil de transformação da sociedade em prol da
igualdade de gênero surtirá os efeitos benéficos esperados pela lei e é com
a eliminação de uma das expressões mais graves da discriminação contra a
mulher, a violência doméstica, que se fará a diferença para uma sociedade
mais justa e equitativa.
21.4 DA CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇAO DE TODAS AS FORMAS
DE DISCRIMINAÇAO CONTRA A MULHER
A convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, em seu preâmbulo cita que a discriminação
contra o sexo feminino fere os princípios da igualdade de diretos e do respeito
da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas
condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu
país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da
família e impede o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher
para prestar serviço à humanidade. Além de observar que, em situações de
pobreza, a mulher tem acesso mínimo à alimentação, à saúde, à educação,
à capacitação e às oportunidades de emprego. Nesse sentido, a Convenção
descreve, no artigo 1°, a conduta discriminatória contra a mulher, in verbis:
Reflexões da aplicabilidade...
// 367
[...] toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por
objeto ou resultado prejudicar ou anular o conhecimento, gozo ou exercício
pela mulher, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade
do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos
campos político, econômicos, social, cultural e civil, ou em qualquer outro
campo.
Maria de Fátima Ribeiro (2007) ensina, pois, que a violência contra a
mulher é inerente ao contexto sócio econômico e cultural que, ao longo de
sua história vem discriminando o sexo feminino. A continuidade e a aceitação
de que essas discriminações se concretizem trazem consequências
negativas como, por exemplo, um conjunto de situações desvantajosas para
a mulher, que acabam sendo vítimas de práticas de violência física, sexual e
psicológica. Nesse contexto, a violência contra a mulher tem fundamentos
estruturais.
É certo dizer que a violência contra a mulher vem sendo discutida
internacionalmente ao longo dos anos, e a ONU ocupou-se dessa questão
em várias convenções, várias delas ratificadas pelo Brasil, dentre as quais se
destacam: Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher, de 1979; Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém
do Pará) – 1994; Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993);
Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e a
Conferência de Cúpula para o Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995).
Em 1995, foi realizado pelas Nações Unidas a IV Conferência
Mundial sobre a Mulher conhecida como a Conferência de Beijing. Este
evento foi o quinto grande conclave das Nações Unidas nas décadas de 90 e
trouxe à discussão vários temas referentes à mulher.
Em 1993, as Nações Unidas realizaram a Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos, que reconheceu a violência contra a mulher como
obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres
humanos. Considerou também que este tipo de violência desrespeita os
direitos humanos, vindo a se agravar ainda mais por se tratar de agressão
contra pessoa do sexo feminino.
Sobre esta mesma Conferência, Maria Berenice Dias (2010) faz
menção à Assembleia Geral que reconheceu o respeito irrestrito de todos os
direitos da mulher como sendo condições indispensáveis para seu
desenvolvimento individual e para a criação de uma sociedade mais justa,
solidária e pacifica. Além disso, preocupou-se acerca da violência em que
vivem muitas mulheres da América, cuidando que esta proteção fosse
abrangente para tutelar a proteção feminina sem fazer distinção de raça,
classe, religião, idade ou qualquer outra condição, revelou ser uma situação
generalizada, para cumprir sua responsabilidade histórica de fazer frente a
esta situação na busca de soluções positivas.
Nesta Assembleia Geral se convenceu da necessidade de dotar o
sistema interamericano de um instrumento internacional capaz de contribuir
na solução do problema da violência contra a mulher e recordando as
368 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
conclusões e recomendações da Consulta Interamericana sobre a Mulher e
a Violência, celebrada em 1990. Considere-se, ainda, a Declaração sobre a
Erradicação da Violência contra a Mulher e também a resolução AG/RES.
1128 (XXI-0/91) “Proteção da Mulher Contra a Violência”, aprovada pela
Assembleia Geral da Organização dos Estados americanos, todas levaram a
adoção da Convenção de Belém do Pará, que visou à proteção da mulher na
mais ampla forma.
21.5 REFLEXÕES DA LEI 11.340/2006 NA ÓRBITA DA AÇÃO
PENAL
A Lei Maria da Penha ainda causa inquietação entre os operadores
de direito, no que diz respeito à natureza dos delitos de lesões leves e lesões
culposas. Segundo Maria Berenice Dias (2010) há dúvida em questão é se a
ação penal continua sendo condicionada à representação ou passou a ser
pública incondicionada. Neste contexto, observa-se questionamentos sobre
a possibilidade de a vítima desistir de processar seu agressor, fazendo cair
por terra seus direitos de ver punido o autor do delito. Em linguagem popular,
seria o mesmo que perguntar: É possível “retirar a queixa”?
Tais questionamentos passaram a fazer parte do cotidiano jurídico
porque apesar do artigo 41 da Lei Federal n° 9.099/1995, ter estabelecido
expressamente que os crimes de violência doméstica deixaram de ser de sua
competência, a Lei Maria da Penha, por outro lado, traz em seu bojo, mais
especificamente no artigo 16, o seguinte teor:
Art. 16 Nas ações penais púbicas condicionadas à representação da
ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação
perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade
antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Do dispositivo acima, percebe-se uma impropriedade técnica, na
medida em que o legislador permitiu à vítima renunciar de seu direito, pois
em se tratando de ação penal pública incondicionada, como é o caso, faz-se
necessário observar o princípio da obrigatoriedade e da irrenunciabilidade da
ação penal. Assim, ao permitir essa renúncia, estar-se-ia violando tais
princípios que norteiam a ação penal pública incondicionada.
Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2010) comenta que a Lei Maria
da Penha, ao admitir a renúncia à representação até o recebimento da
denúncia, fez pairar dúvidas acerca do exato significado desta expressão,
que são muitas, razão pela qual, é de se dizer que o legislador escreveu
palavras inúteis. Salienta, ainda, que há outros que sugerem que, onde se lê,
no artigo 16, “renúncia”, deve-se ler “retratação da representação”.
Desse modo, inicialmente necessário se faz identificar o significado
de tais expressões. Com efeito, tem-se que a palavra desistência tem
significado mais amplo por ser o gênero que compreende a renúncia e a
retratação.
Reflexões da aplicabilidade...
// 369
Segundo Maria Berenice Dias (2010) desistir é tanto se quedar inerte,
deixar escoar a possibilidade de manifestar a vontade, como tem o sentido
de renunciar, abrir mão da manifestação já levada a efeito, voltar atrás do que
foi dito.
Na esfera penal, Júlio Fabbrini Mirabete (2008) conceitua “renuncia”
como tendo o significado de não exercer o direito, abdicar do direito de
representar, trata-se de ato unilateral que ocorre antes do oferecimento da
representação. Em relação ao termo “retratação” diz ser ato posterior por ser
a manifestação da desistência da representação já manifestada. Quanto à
retratação, ensina ser este o ato pelo qual alguém retira a sua concordância
para a realização de determinado ato, que dependia de sua autorização.
Convém salientar que chama a atenção o fato de somente poder falar
em desistência, renúncia ou retratação quando aos delitos forem aqueles
sujeitos à representação. Nos crimes de ação incondicionada, como não há
representação e estas expressões não tem qualquer significado.
A verdadeira polemica ocorre com o artigo 41 da Lei Maria da Penha
que dita: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de
26 de setembro de 1995”. Tem-se a dúvida: seguir o artigo 16 da Lei Maria
da Penha, aceitando a retratação da vítima perante o Juiz, quando ela não
desejar o prosseguimento da ação penal e entendendo que se trata de ação
pública condicionada à representação da vítima, ou, seguir o artigo 41 da Lei
Maria da Penha, e que se trata de ação penal pública incondicionada nos
casos de lesões corporais leves.
Após a discussão acerca da inviabilidade da renúncia, neste instante
necessário se faz analisar o artigo 16 da Lei Maria da Penha sob o aspecto
da ação penal no caso da violência doméstica contra a mulher ser Ação Penal
Pública Condicionada ou Incondicionada. Verifica-se pelo texto do artigo 16
que mesmo existindo uma noção concreta da realidade, o legislador, na
tentativa de aniquilar a impunidade, não deu a importância devida à proteção
da vítima mulher, como ser humano.
Neste contexto, Maria Berenice Dias (2007) enfatiza que foram
consideradas como infrações de menor potencial ofensivo as que afetam o
cidadão e por outro lado, os delitos praticados contra o patrimônio dão origem
à ação civil pública incondicionada, deixando transparecer total descaso à
vida humana.
Assim sendo, ao condicionar à representação as lesões corporais de
naturezas leves e as lesões culposas, o Estado eximiu-se de sua tarefa de
punir, deixando para a vítima a responsabilidade de buscar a punição daquele
que a agrediu, conforme sua vontade e conveniência.
Isso mostra o descaso do legislador em relação a vítima e à violência
que ocorre no seio familiar. É notório que nestes casos, a vítima sempre se
encontra em desvantagem em relação ao seu agressor, por ser do sexo
feminino, por sua fragilidade física, psicológica e emocional. Essa sensação
de impotência culmina na maioria das vezes em desistência de oferecer a
queixa ou representar contra o parceiro agressor, o que reforça a
370 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
necessidade de haver mudança no tocante ao tipo da ação penal, que
passará a ser incondicionada ao invés de ser condicionada a representação,
sendo o MP o titular da ação penal e não mais a mulher.
O Superior tribunal de Justiça ao julgar os casos de lesões corporais
leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher, a ação deve
ser necessariamente pública incondicionada, conforme se segue:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA
MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA.
PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA
INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA. 1. A família é a base da
sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será
feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para
coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da
Constituição da República). 2. As famílias que se erigem em meio à violência
não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os
seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de
conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em
proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei
Maria da Penha, para tal desiderato. 3. Somente o procedimento da Lei
9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e
culposa para a propositura da ação penal. 4. Não se aplica aos crimes
praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995.
(Artigo 41 da Lei 11.340/2006). 5. A lesão corporal praticada contra a mulher
no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código
Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a
ação penal pública incondicionada. 6. A nova redação do parágrafo 9º do
artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo
pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito
familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais,
afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima. 7.
Ordem denegada. Hábeas Corpus n.º 96.992, 6ª Tuma do Superior Tribunal
de Justiça, julgado em 12 de agosto de 2008. (Grifo nosso)
O julgado acima reforça a tese de que a ação deve ser pública
incondicionada à representação.
Desse modo, mesmo com as inovações da Lei n° 11.340/2006,
verifica-se que esta norma continua sendo ineficaz em relação à proteção da
mulher no tocante à sua exposição ao constrangimento, isto porque na prática
o que ocorre é o fato de que após a instauração do inquérito policial e
conhecimento pelo Poder Judiciário, a mulher poder em Juízo renunciar ao
seu direito de ver punido o agressor.
Percebe-se que ao ter que se apresentar novamente, e agora em
audiência, perante o juiz, para tratar das agressões sofridas, passa a mulher
novamente a esse constrangimento, o que poderia ser evitado caso os
procedimentos ocorressem conforme a modificação pretendida pelo
legislador, que está lutando para que a ação penal passe de condicionada à
representação para a ação penal pública incondicionada.
Reflexões da aplicabilidade...
// 371
Da forma como está sendo aplicada a Lei, observa-se que esta norma
está favorecendo o agressor, pois no lapso temporal compreendido entre a
instauração do inquérito policial e a audiência em Juízo, o companheiro ou
marido tem tempos suficiente para mediante ameaça inibir a vítima fazendoa a renunciar ao seu direito de proteção contra essas agressões. Essa
renúncia é tida como outro benefício ao infrator, pois ao renunciar o processo
se extingue e não fica nenhum registro sobre os fatos e a próxima agressão
fica como sendo a primeira, ou seja, não se registra qualquer antecedente
criminal. Dessa forma, caso fosse diferente, o agressor refletiria antes de
cometer uma nova agressão, pois poderia ser reincidente e ter sua situação
agravada.
Somente quando efetivada essa mudança, a proteção à mulher será
mais completa e eficiente, pois evitaria que ela se expusesse ao
constrangimento acima mencionado, uma vez que passando esse tipo de
delito à ação penal pública incondicionada, o Ministério Público passaria a ser
o titular da ação penal e pelos princípios da obrigatoriedade e da
irrenunciabilidade, o processo tomaria o seu curso normal, aliviando a vítima
deste encargo.
21.6 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para a averiguação dos casos de violência doméstica no município
de Ji-Paraná e coleta de dados que subsidiaram o presente estudo, foram
realizadas pesquisas junto à Delegacia de Defesa da Mulher, no Fórum de JiParaná e nos bairros desta cidade.
Junto a delegacia Defesa da Mulher no 1º Distrito de Ji-Paraná,
dentre as 1667 (mil, seiscentos e sessenta e sete) ocorrências, se constatou
o índice de desistências das mulheres vítimas de agressões foi de 51%,
contra 49% em um período de 03 (três) anos.
Sendo que junto ao Fórum verificou-se 813 denúncias, sendo que
96.68 % das mulheres desistiram de prosseguir com a ação penal contra seus
agressores, demonstrado que há um porcentual “alarmante” em não
pretenderem ver a punição nestes casos.
Diante deste número que indica a grande quantia de renuncias, deve
ser observado o porquê dessas condutas, o que pode ser constatado pelo
gráfico abaixo, ficando demonstrado claramente que a Lei Maria da Penha no
tocante ao prosseguimento até o final da ação penal não está protegendo e
nem garantindo as mulheres vítimas da violência doméstica os seus direitos
que a lei lhe oferece. Por esta razão, há a necessidade por parte do legislador
em operar, o quanto antes, a modificação no sentido da ação penal
transformar-se de ação penal pública condicionada para a incondicionada.
Dentre as 40 (quarenta) mulheres vítimas de violência doméstica
elegidas aleatoriamente no município de Ji-Paraná num período de 03 (três)
anos, selecionados os dez primeiros casos de cada ano, quando não era
possível encontrar um destes 10 (dez) primeiros casos substituía-se pelo
caso posterior, onde se constatou que quanto aos motivos que impediu que
372 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
essas mulheres prosseguissem com ação penal: 3% por orientação dos
familiares por parte do agressor; outros 3% não elegeram motivos específico,
enquanto 4% foi para atender pedido dos filhos; e 5% por reconciliação com
o companheiro. Ainda, 8% desistiram por necessidade financeira e 11% por
achar que a Lei Maria da Penha é insuficiente para resolver seu problema.
Outros 11% o fizeram para salvaguardar os filhos; enquanto que 13% para
evitar maiores constrangimentos perante a sociedade. Já 20% foi para evitar
maiores conflitos no âmbito familiar e 22% por medo de ameaças.
Parece grave pensar que a lei Maria da Penha não vem surtindo sua
eficácia, mas as razões pelas quais as mulheres, vítimas de violência
doméstica renunciam de seu direito de verem punidos seus agressores,
indica mais do que a necessidade de mudança indica falta de informação e
apoio.
21.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve como finalidade a necessidade de
demonstrar a falha da Lei Maria da Penha no tocante à efetiva proteção da
mulher contra a violência doméstica. Constatou-se, pois, que uma ação penal
passando de condicionada para incondicionada, pode vir a reduzir ainda mais
as agressões e constrangimentos à mulher, fazendo com que não seja alvo
do agressor para forçá-la a desistir de representá-lo criminalmente, e para
que o processo prossiga até o seu curso final, podendo ser condenado ou
absolvido, se condenado, ficará com restrições e perderá os benefícios se
cometer outros delitos.
No decorrer deste trabalho buscou demonstrar a importância da Lei
Maria da Penha, em face da “alarmante” situação da violência contra mulher
constatada através de pesquisas realizada no município de Ji-Paraná. Os
dados estatísticos constataram que a Lei Maria da Penha não está surtindo
os seus efeitos desejados pelas mulheres vítimas de violências domésticas.
Neste contexto, verificou-se que a prática de atos de violências
domésticas contra a mulher incide na violação dos direitos humanos
tornando-se imprescindível a intervenção do Estado e de organismos
internacionais e nacionais de defesa dos direitos da mulher na esfera política
e judicial, para que ocorra a tão esperada e justa mudança.
Logo, a lei Maria da Penha se apresenta como um atraso legislativo,
um remédio para um mal que ainda está engatinhando para proteger as
garantias constitucionais, sendo uma parcela pouca significativa para coibir a
violência doméstica contra a mulher, pois é falha a sua aplicabilidade.
Na averiguação efetuada verificou-se um alto índice de desistência
por parte das mulheres que por motivos variado deixaram de fazer as
representações e que as razões pelas quais desistiram de prosseguir com a
ação penal já instaurada são deveras importantes, reforçando com isso, a
falha da Lei Maria da Penha e a necessidade da transformação para que se
minimize as agressões e constrangimentos à mulher que a impedem de
continuar com a ação penal.
Reflexões da aplicabilidade...
// 373
21.8 REFERÊNCIAS
ARAUJO. Letícia Franco de. A Violência Contra a Mulher: a ineficácia da
justiça penal consensuada. Campinas: Lex Editora, 2003.
ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Lei Maria da Penha, uma análise dos
novos de instrumentos de proteção às mulheres. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/13477-134781-PB.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2015.
BRASIL. Lei nº 11.340, 07 de agosto de 2006 - Cria mecanismo para coibir
e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível
em: <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/lei11340.htm>.
Acesso em: 28 jul. 2015.
BRASIL. Lei nº 9.099, 26 de setembro de 1995 - Dispõe sobre os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm>. Acesso em: 29
jul. 2015.
CAMPOS, Bruna Villas Boas. Lei Maria da Penha: uma conquista do direito
internacional. Disponível em:
<http://www.cedin.com.br/static/revistaeletronica/artigos/Bruna%20DH.
pdf>. Acesso em: 28 jul. 2015.
DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da
Lei 11. 340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a
mulher. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
JESUS DAMÁSIO DE. A violência Contra a Mulher. São Paulo Saraiva:
2010.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. São
Paulo: Ed. Atlas, 2008.
OLIVEIRA, Kátia Lenz César de. Quem tiver a garganta maior vai engolir
o outro – sobre violências conjugais contemporâneas. São Paulo:
Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda., 2004.
PARODI, Ana Cecília de Paula Soares; GAMA, Ricardo Rodrigues. Lei
Maria da Penha - comentário a Lei 11.340/06. Campinas: Russel,
2009.
PAVONI, Emanuel Flávio Fiel. Violência Doméstica e Familiar – Breves
comentários ao Art. 7º da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3645/Violencia-domestica-efamiliar-Breves-comentarios-ao-Art-7o-da-lei-11340-06-Lei-Maria-daPenha>. Acesso em: 17 jul. 2015.
RIBEIRO, Maria de Fátima. Direito Internacional dos direitos humanos:
estudos em homenagem à Profa. Flávia Piovesan. 3. ed. Curitiba:
Juruá, 2007.
SALLET, Carla Góes. Belíssima aos 40, 50, 60, 70... São Paulo: Ed.
Conex, 2005.
SENADO FEDERAL. Violência doméstica contra a mulher. Disponível
em:
374 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
<http://www.mulherdemocrata.org.br/RelatorioViolenciaContraMulher.p
df>. Acesso em: 21 jul. 2015.
STREY, M. N.; CABEDA, S. T. L. (Orgs.). WERBA, Graziela Cucchiarelli.
Quero ficar no teu corpo feito tatuagem... Reflexões sobre a
violência contra o corpo da mulher. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
= XXII =
TUTELA DO CONSUMIDOR NA HIPÓTESE DE
SUPERENDIVIDAMENTO: DILEMA CONTEMPORÂNEO
Andryelle Vanessa Camilo Pomin*
Hadassa Melo Paulino**
22.1 INTRODUÇÃO
O legislador brasileiro, com o Código de Defesa do Consumidor,
revelou a nova face do direito privado brasileiro, o que foi posteriormente
corroborado pelo Código Civil de 2002. E, embora sirva como referência
legislativa, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro ainda caminha os
primeiros passos para concretizar uma lei específica ao consumidor
superendividado, destinada à tutela à situação de superendividamento.
Não há dúvidas de que o superendividamento opera um desequilíbrio
na macro e na microeconomia, na relação de consumo, além das implicações
sociais e psicológicas. Sendo assim, deve-se reforçar a necessidade de se
satisfazer o direito do fornecedor de crédito, no entanto, esse não pode ser
fator de supressão de preceitos que fundamentam o ordenamento jurídico
como um todo, a exemplo da dignidade da pessoa humana.
Assim, para abordar o tema, este trabalho foi dividido em três
parâmetros que compreendem: a proteção do consumidor no direito
brasileiro, de forma geral, independentemente da situação de
superendividamento; o superendividamento propriamente dito, destacandose os pressupostos e classificação; e, por fim, a tutela jurídica constitucional
do consumidor superendividado.
22.2 DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO DIREITO BRASILEIRO
A origem histórica da necessidade de tutela jurídica do consumidor
remonta à Revolução Industrial, a partir do século XVIII, a qual revelou nítidas
mudanças nos meios de produção, de modo que refletiu diretamente nas
relações econômicas e sociais.
Ainda, é importante frisar que, de forma bastante rudimentar, há
marcas dessa proteção ao consumidor desde a Antiguidade, a exemplo do
*
Mestre em Ciências Jurídicas. Professora dos cursos de graduação em Direito da Unicesumar
e da UEM. Pesquisadora do CNPQ em Novos Direitos e Direitos Especiais. Advogada militante.
Endereço Eletrônico: <[email protected]>.
**
Acadêmica do curso de graduação em Direito do Centro Universitário de Maringá –
Unicesumar, Maringá – Paraná. Bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Científica da
Unicesumar (PROBIC). [email protected]
376 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Código de Hamurabi, em seus arts. 229 e 233, os quais já demonstravam a
responsabilidade objetiva, consagrada no Código do de Defesa do
Consumidor (CDC), de 19901.
Mas, foi efetivamente foi com a Revolução Industrial que o comércio
passou a ser realizado em larga escala, dada a implementação de
tecnologias que permitiram o aumento da produtividade. Sendo assim, a
relação com o consumidor, antes marcada pela pessoalidade, passou a ser
indireta e desvinculada da pessoalidade.
Os primeiros movimentos em prol do consumidor ocorreram na
Europa, no contexto da proteção dos direitos sociais (GAMA, 2000, p. 28).
Assim, é de se notar que a necessidade de se tutelar as relações de
consumo nasceu de um contexto de lutas sociais, associado ao
desenvolvimento de novas tecnologias que possibilitaram a produção em
larga escala.
De modo que o consumidor passou a figurar na relação de consumo
em situação de considerável inferioridade, pois era o fornecedor quem
detinha a propriedade dos meios de produção, o que, de certa forma, conferia
a este maior controle do mercado de consumo. O controle de mercado,
realizado pelo fornecedor, relacionava-se com o preço e a qualidade de
fornecimento dos bens e serviços, ou seja, em última análise, seria o
fornecedor o agente capaz de ditar e, em certos casos, impor as normas de
mercado.
Destarte, em sua origem, a tutela do consumidor está diretamente
relacionada aos direitos coletivos, provenientes da luta de classes sociais.
Frise-se que a gradual especialização técnica e comercial do
fornecedor acabou por criar, na relação de consumo, as vulnerabilidades
técnica, econômica e jurídica do consumidor, sob as quais orbita todo o
sistema de proteção ao consumidor.
Dentro desse contexto social e econômico, diante da necessidade de
tutela das relações de consumo, em 1970 foi fundado o primeiro PROCON
no Estado de São Paulo e, posteriormente, os demais Estados também o
constituíram.
No ordenamento jurídico brasileiro, a aprovação do Código de Defesa
do Consumidor ocorreu em 1990, esse instrumento visava atender às
determinações da Constituição Federal de 1988.
Outro aspecto importante revela que o Código de Defesa do
Consumidor, no contexto jurídico em que fora implantado, visava
proporcionar, ao consumidor, maior proteção e até mesmo suprir as lacunas
do Código Civil no tocante à relação de consumo.
Posto isso, não é exagero afirmar que a sistemática trazida pelo
Código de Defesa do Consumidor, no ordenamento jurídico brasileiro, visa
Art. 229 – Se um pedreiro edificou uma casa para um homem, mas não a fortificou e a casa
caiu e matou seu dono, esse pedreiro será morto.
Art. 233 – Se um pedreiro construiu uma casa para um homem e não executou o trabalho
adequadamente e o muro ruiu, esse pedreiro fortificará o muro às suas custas.
1
Tutela do consumidor...
// 377
utilizar o direito material e processual em prol do consumidor, a fim de garantir
efetividade aos direitos provenientes da relação de consumo.
A Constituição Federal de 1988, precisamente no art. 5º, XXXII,
elevou a proteção do consumidor a direito fundamental, de modo que,
implicitamente, reconhece a vulnerabilidade, já que o consumidor se submete
às condições que lhe são impostas no mercado de consumo.
Sendo assim, é inegável que a sistemática adotada pelo Código de
Defesa do Consumidor visa dar guarida à parte vulnerável da relação de
consumo, a exemplo dos benefícios processuais concedidos ao consumidor,
como o foro privilegiado, na forma do art.101, I, do Código de Processo Civil
(CPC).
A vulnerabilidade do consumidor deve ser analisada sob três
aspectos, quais sejam: técnico, econômico e jurídico (ROLLO, 2014).
Nesse sentido, há que se ressaltar que a sistemática adotada pelo
CDC visa, precipuamente, efetivar os objetivos expressos no art. 6º do CDC.
Dentre eles, destacam-se a proteção da vida, saúde e segurança contra os
riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços
considerados perigosos e nocivos; a efetiva prevenção e reparação de danos
patrimoniais e morais, garantido também o acesso aos órgãos judiciais e
administrativos.
Ademais, tais objetivos não representam um rol taxativo, uma vez
que, enquanto direito fundamental à proteção ao consumidor, visa equilibrar
as relações do mercado de consumo. Sendo assim, devem-se adotar novos
mecanismos e garantir a efetiva aplicação dos mecanismos que tutelam a
relação de consumo, com a finalidade de equilibrá-la.
Os princípios jurídicos representam a origem da tutela de direitos e
são capazes de representar a razão existencial dos institutos jurídicos.
A Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 4°, revela que o
operador do direito lançará mão dos princípios quando a lei for omissa. No
âmbito do Direito do Consumidor, há uma base principiológica específica,
vislumbrando-se que essa proteção é um direito fundamental, mas também a
defesa do consumidor por si só representa um princípio da ordem econômica
(ANDRADE, 2006, p. 12).
As diretrizes, trazidas em um primeiro momento pela Constituição
Federal de 1988, reclamaram a proteção direta do consumidor por meio do
Código de Defesa do Consumidor, explicitamente exigida pelo art. 48 dos
Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, in verbis: “Art. 48 - O
Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da
Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.
O Código de Proteção, específico ao consumidor, como não poderia
deixar de ser, veio acompanhado da necessidade de um conjunto
principiológico próprio, o qual comporta princípios a serem aplicados antes,
durante e depois da relação de consumo, ou seja, têm início no momento da
oferta do produto ou serviço e persistem mesmo após o contrato que pode
ser a venda de um produto ou a prestação de um serviço.
378 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Os princípios consumeristas também ganham importância
internacional, a exemplo da Declaração de Sófia sobre o Desenvolvimento de
Princípios Internacionais de Proteção do Consumidor, formalizada no 75º
Congresso de Direito Internacional de 2012, que formulou, no âmbito
internacional, os seguintes preceitos fundamentais:
Princípio da vulnerabilidade, os consumidores são vulneráveis frente aos
contratos de massa e padronizados, em especial no que concerne à
informação e ao poder de negociação. Princípio da proteção mais favorável
ao consumidor, é desejável, em Direito Internacional Privado, desenvolver
standards e aplicar normas que permitam aos consumidores beneficiaremse da proteção mais favorável ao consumidor. Princípio da justiça contratual,
as regras e o regulamento dos contratos de consumo devem ser efetivos e
assegurar transparência e justiça contratual. Princípio do crédito
responsável, crédito responsável impõe responsabilidade a todos os
envolvidos no fornecimento de crédito ao consumidor, inclusive
fornecedores, corretores, agentes e consultores. Princípio da participação
dos grupos e associações de consumidores, grupos e associações de
consumidores devem participar ativamente na elaboração e na regulação da
proteção do consumidor (DECLARAÇÃO DE SÓFIA, 2012).
Seguindo essa linha protetiva, o CDC revela princípios implícitos e
explícitos, dentre eles, o princípio do protecionismo do consumidor, o
princípio da vulnerabilidade do consumidor, o princípio da hipossuficiência do
consumidor, o princípio da boa-fé objetiva, o princípio da transparência ou
confiança, o princípio da função social dos contratos, o princípio da
equivalência negocial e o princípio da reparação integral dos danos. Esses
representam um rol exemplificativo, pois, em essência, os princípios atuam
como mandamentos de otimização.
Ainda, é possível afirmar que, baseados na premissa da
vulnerabilidade do consumidor, orbitam os demais princípios do
microssistema consumerista.
A doutrina aborda a necessidade da intervenção estatal, no sentido
de atuar nas diretrizes constitucionais de um “direito privado social”, para
concretizar a isonomia, promovendo o reconhecimento das necessidades dos
sujeitos mais fracos.
Conforme leciona João Batista de Almeida (2009, p. 17), o CDC toma,
como parâmetro, a vulnerabilidade do consumidor, sendo esta a espinha
dorsal para a proteção desse sujeito. Ao passo que, reconhecida essa
vulnerabilidade, cabe ao Estado promover a defesa do consumidor, assumir
a postura de garantidor.
De fato, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor tem,
como fundamento geral e amplo, a necessidade de garantia da dignidade
humana, pois esta é a base do sistema de valores da Constituição Federal
de 1988.
Ainda, é de se notar que, diante da sociedade massificada de
consumo, com o surgimento de novas tecnologias que permitem a atuação
no mercado de consumo, a exemplo da internet, que confere ao consumidor
Tutela do consumidor...
// 379
posição ainda mais vulnerável, conquanto é vulnerável técnica, jurídica,
econômica e também no aspecto da informação.
A vulnerabilidade informativa é trabalhada na doutrina no sentido de
que configura fator de desequilíbrio, pois os fornecedores são os únicos que
contêm a complexidade de informação que cerca a relação de consumo. O
déficit informacional, enfrentado pelo consumidor, acarreta na
“hipervulnerabilidade” (MARQUES, 2012, p. 159-160).
No âmbito jurisprudencial, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) já
afirmou categoricamente que “[...] ao Estado Social importam não apenas os
vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis” (BRASIL, 2007).
A terminologia hipervulnerabilidade é empregada no sentido de
demonstrar gravame ainda maior para o consumidor, conquanto há, na
doutrina e na jurisprudência do STJ, uma gradação para a vulnerabilidade, a
qual é confirmada pelos arts. 37, §2º e 39, IV, ambos do CDC.
Assenta-se na melhor doutrina a presunção da vulnerabilidade do
consumidor, independentemente de sua posição econômica e social,
desconsiderando-se também se o produto ou serviço adquirido seja
essencial, supérfluo, valioso ou de bagatela.
Deve-se ressaltar ainda que tal vulnerabilidade é presumida. No
entanto, não se pode afirmar o mesmo com relação ao fato de que a
hipervulnerabilidade seja averiguada no caso concreto, sendo aquilo que é
além da normalidade, é algo agravado. Trata-se, assim, de um dever ser que
garante e efetiva a dignidade das minorias sociais.
O desenvolvimento gradual da sociedade de consumo revela-se,
nitidamente, a partir da Revolução Industrial e das revoluções do século XIX.
Com a urbanização, o modelo de consumo também é alterado.
Segundo Jean Braudrillard, a concentração industrial provocou o
aumento constante de bens, enquanto a concentração urbana, de modo
acentuado, a criação de necessidades ilimitadas, as quais repercutirão no
consumo (BAUDRILLARD, 1995, p. 65).
Em tal contexto, as relações de consumo deixaram de ser puramente
de caráter pessoal e passaram a ser massificadas. Em um primeiro momento,
o produto era destinado a um consumidor específico, mas tal cenário foi
modificado.
A demanda por produtos e serviços passou a ser em grande escala,
já que a produção também se dava dessa mesma forma, tendo-se em vista o
aprimoramento das tecnologias dos meios de produção.
O consumidor, por sua vez, estava inserido em um novo cenário de
consumo. Pode-se afirmar que a vulnerabilidade do consumidor tem espaço
dentro do contexto de massificação, da produção em larga escala e,
posteriormente, com os contratos de adesão. Situação essa que coloca o
fornecedor em situação vantajosa, uma vez que, em se tratando de contrato
de adesão, cabe ao fornecedor estabelecer as cláusulas, restando, ao
consumidor, apenas aceitar o que lhe é estabelecido.
380 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Sendo assim, diante de tal contexto fático, as relações de consumo
reclamaram a intervenção do Estado, com a finalidade precípua de equilibrar
estas relações jurídicas, uma vez que o consumidor estava em desvantagem.
No Brasil, o Estado passou a intervir nas relações consumeristas, nas
esferas administrativa e jurídica, a exemplo da criação do PROCON, no
âmbito administrativo estadual e pela tutela jurídica, tendo como principal
instrumento o CDC.
Assim, note-se que o modelo de consumo atual está diretamente
atrelado ao sistema financeiro, que estimula o acesso ao crédito, o
superconsumo, que, em muitos casos, vincula-se ao consumismo.
22.3 DO SUPERENDIVIDAMENTO
O superendividamento deve ser visto, em um primeiro momento,
como fruto das relações sociais, das demandas de uma sociedade pautada,
precipuamente, no consumo para a satisfação de suas necessidades.
Parte-se de um conceito, o qual ainda não encontra amparo na
legislação, mas pode-se dizer que a doutrina já tem trabalhado no sentido de
construí-lo.
Nesse sentido, o conceito de superendividamento, ou de quem seja
o consumidor superendividado, é brilhantemente apresentado por Claudia
Lima Marques nos seguintes termos:
O superendividamento pode ser definido como a impossibilidade global de o
devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas
dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco,
oriundas de delitos e de alimentos). Este estado é um fenômeno social e
jurídico a necessitar algum tipo de saída ou solução pelo direito do
consumidor, a exemplo do que aconteceu com a falência e a concordata no
direito da empresa: seja por meio de parcelamento, prazos de graça, redução
dos montantes, dos juros, das taxas, seja por todas as demais soluções
possíveis para que possa pagar ou adimplir todas ou quase todas as suas
dívidas em face de todos os credores, fortes e fracos, com garantia ou não.
Tais soluções, que vão desde informação e controle da publicidade, direito
de arrependimento, tanto para prevenir como para tratar o
superendividamento, são frutos dos deveres de informação, cuidado e
principalmente de cooperação e lealdade oriundos da boa-fé para evitar a
ruína do parceiro (exceção da ruína), que seria a ‘morte civil’, sua exclusão
do mercado de consumo ou sua ‘falência’ civil com o superendividamento
(MARQUES, 2006, p. 256-257).
Sendo assim, note-se que, grosso modo, o consumidor
superendividado caracteriza-se por ser aquele que possui débito de natureza
consumerista, pois atuou no mercado de consumo, adquiriu produtos ou
contratou a prestação de serviços. Mas a sua capacidade financeira está
debilitada, fragilizada, impossibilitada de satisfazer as obrigações contraídas,
seu passivo supera o ativo, daí surge a situação de superendividado.
Tutela do consumidor...
// 381
Quanto à origem da terminologia “superendividamento”, o Brasil
baseou-se na lei francesa, pois o termo origina-se da tradução do neologismo
surendettement, sendo que o prefixo “sur” vem do latim, que significa “super”
(COSTA, 2012, p. 231).
É cediço na doutrina que o ordenamento jurídico brasileiro reclama
por uma legislação especial para regular as situações, quando presente a
situação de superendividamento, pois, nelas, é evidente que o consumidor
encontra-se em situação de hipervulnerabilidade.
Nesse sentido, Marielza Brandão Franco expõe que
Tal legislação deve conter normas de prevenção e saneamento, impondo ao
fornecedor o cumprimento de determinadas regras antes de concessão de
crédito que permita ao consumidor assinar um contrato de empréstimo
consciente de todas as consequências com ele assumidas, porque todos os
detalhes da transação foram corretamente esclarecidos, inclusive
aconselhando quanto à melhor alternativa de crédito para o caso específico
de cada tomador, estimulando o exercício dos deveres de cooperação e boafé e fiscalizando quanto à forma pela qual o crédito foi concedido (2010, p.
241).
No âmbito do direito estrangeiro, há dois modelos de proteção ao
consumidor em situação e superendividamento.
O primeiro é francês e cria possibilidade de o consumidor saldar suas
dívidas, com a criação de plano de pagamento integral, mas não retira a
responsabilidade do consumidor pelos compromissos assumidos, ressalvado
o mínimo existencial, pois não se podem prejudicar a sobrevivência do
consumidor e a de sua família.
Por outro lado, o modelo norte-americano visa, em última análise,
preservar a atuação do consumidor no mercado de consumo, pois este é
considerado o personagem principal para o funcionamento do mercado.
Desse modo, há um procedimento de liquidação com perdão de dívidas e
sem constrição dos rendimentos futuros.
Em muitos aspectos, o direito brasileiro, especificamente com relação
ao direito do consumidor, recebeu influências do direito francês, a exemplo
do prazo de reflexão do art. 49, do CDC2.
Quando se volta à análise do direito comparado, percebe-se que a
França adotou um modelo de proteção, que, conforme expõe Marielza
Brandão Franco, está se estruturando em uma base ideológica de
solidariedade, de modo a promover e possibilitar a renegociação por meio da
conciliação entre superendividados e seus credores (2010, p. 237).
2
Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura
ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de
produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a
domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste
artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão
devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.
382 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
A estruturação francesa, para regulamentar o superendividamento,
está baseada na Lei da Luta, de 1995, que visa garantir, ao consumidor em
hipervulnerabilidade, seus direitos fundamentais e, em última análise, o
mínimo existencial, que deve assegurar o sustento do consumidor e o de sua
família. Sendo assim, o legislador francês preocupou-se também como as
causas externas, a exemplo das ofertas de crédito por meio de publicidade,
além da falta de informações claras e adequadas.
O ordenamento jurídico brasileiro também tem se posicionado no
mesmo sentido e, apesar de ainda não contar com um texto legal protetivo e
garantidor, o Estado-juiz tem se posicionado por meio de decisões proferidas
pelo judiciário.
Na concepção de Marielza Brandão Franco, a jurisprudência
reconhece o superendividamento como um problema social e revela também
a responsabilidade do fornecedor pela conduta inadequada, como a falta de
informação, práticas comerciais e contratuais notadamente abusivas (2010,
p. 239).
Nessa seara, destaca-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
que pode ser considerado o precursor de uma proposta legislativa protetiva
para o consumidor superendividado:
SUPERENDIVIDAMENTO
HIPOSSUFICIÊNCIA.
CONCESSÃO
DE
CRÉDITO IRRESPONSÁVEL. DEVER DO CREDOR DE MITIGAR OS
PRÓPRIOS PREJUÍZOS. - SENTENÇA ULTRA PETITA - questão de ordem
pública reconhecida, desconstituindo-se parcialmente a decisão de ofício. [...]
caracterizado no caso concreto. Situação de hipossuficiência da autora
devidamente comprovada e da concessão, por parte da ré, de crédito de
forma irresponsável. Nulidade de contratações sucessivas para cobrir saldo
devedor, realizadas sob o manto da coação moral. Instituição bancária que
concede crédito sem averiguação da capacidade econômica do consumidor,
contrata sob a égide da temeridade ou alto risco, devendo arcar com os
prejuízos daí resultantes. Culpa in iligendo e in vigilando que de forma
flagrante e incontroversa qualifica a relação contratual das partes litigantes.
Concessão de crédito a quem não tem condições de realizar sua prestação
obrigacional, importa em contratação viciada principalmente em razão de
simular e induzir em erro o cliente fazendo parecer que terá ele condições de
pagamento. Situação de lesão irreversível ao consumidor. Conduta
contratual da instituições bancárias que estabelecem extrema facilidade na
concessão de crédito de consumo, sem quaisquer exigências de garantia. O
Estado-Juiz tem a responsabilidade de dar os parâmetros para as
contratações, no sentido de apresentar limitações ao direito de contratar das
instituições bancárias, que devem ser responsabilizadas na medida de sua
conduta imprudente de propor crédito com tantas facilidades, colocando em
risco a própria perfectibilização do contrato, diante da incapacidade flagrante
de pagamento do contratante. Dever de mitigar os próprios danos não
observado. [...] (BRASIL, 2015) Grifo nosso
No julgado em apreço, é notável que o posicionamento dos
julgadores foi em concordância com os preceitos do microssistema de
Tutela do consumidor...
// 383
proteção do consumidor, mesmo ante a ausência legislativa, o judiciário
conseguiu revelar a má conduta do fornecedor.
Para a caracterização do superendividado, deve-se partir de
pressupostos. Assim, a caracterização da situação de superendividamento
compreende carência financeira. Em muitos aspectos, o superendividamento
aproxima-se da insolvência civil, que, nesse caso, é originada
especificamente da aquisição de crédito no mercado de consumo, enquanto
que, na insolvência civil, compreende dívidas de outra natureza como, por
exemplo, fiscais, alimentícias.
Quanto ao superendividamento, deve-se observar que este possui
débito de natureza consumerista que excede a sua capacidade econômicofinanceira.
Segundo Marielza Brandão Franco, para que alguém seja
considerado superendividado, este deve ser pessoa física, de boa-fé e cujo
endividamento ocorreu para atender a suas exigências pessoais (e nunca
profissionais), fosse na forma ativa ou passiva (2010, p. 236).
Nesse sentido, nota-se também que a jurisprudência, na tentativa de
delinear essa situação, busca associá-la com a facilidade de concessão de
crédito, a exemplo do julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
APELAÇÃO CIVEL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO BANCÁRIO COM
PEDIDO DE DANOS MORAIS. SENTENÇA QUE ACOLHE O PLEITO DE
REVISÃO, MAS REFUTA O COMPENSATÓRIO. REBELDIA DO AUTOR.
MÚLTIPLOS EMPRÉSTIMOS. DESCONTO DIRETO EM CORRENTECORRENTE. RETENÇÃO DA INTEGRALIDADE DO SALÁRIO DO AUTOR
PARA PAGAMENTO DAS PARCELAS CONSIGNADAS NA CONTACORRENTE. INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO CHAMADO MÍNIMO
EXISTENCIAL.SUPERENDIVIDAMENTO ABUSO DO DIREITO DE
CONCESSÃO DE CRÉDITO. LIMITAÇÃO A 30% DOS VENCIMENTOS
BRUTOS
MENSAIS,
APÓS
DEDUZIDOS
OS
DESCONTOS
OBRIGATÓRIOS. Analogia DA LEI N. 10.820/2003. DANO MORAL IN RE
IPSA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO (BRASIL, 2015) Grifo nosso
A jurisprudência revela os elementos básicos para a caracterização
do superendividamento, mas busca reestabelecer o equilíbrio contratual, ao
constatar o abuso de direito por parte dos fornecedores de crédito.
Estes realizam empréstimos sucessivos a determinado consumidor,
mesmo estando cientes de que este se encontra absolutamente incapacitado
para solver seus débitos de natureza consumerista.
Tendo por finalidade identificar qual consumidor superendividado
merece ser protegido, o aspecto da boa-fé, no momento da contratação, é
essencial. A doutrina classifica o consumidor superendividado sob duas
perspectivas: o superendividado ativo e o superendividado passivo.
O superendividamento ativo compreende a situação em que há uma
má gestão dos recursos financeiros por parte do consumidor. Trata-se
daquele sujeito que atua, de forma irresponsável, no mercado de consumo.
384 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Esse consumidor endivida-se voluntariamente, contraindo dívidas superiores
a sua capacidade financeira.
Segundo Maria Manuel Leitão Marques, o superendividado ativo
ainda pode ser consciente ou inconsciente:
O consciente é aquele que de má-fé contrai dívidas, convicto de que não
poderá honrá-las, visando a ludibriar o credor e deixar de cumprir sua
prestação sabendo que o outro contratante não terá como executá-lo. Isto é,
a intenção do devedor, desde o momento da contratação, era de não pagar.
Age com reserva mental. Este superendividado não recebe o apoio estatal
para recuperar-se. Pode-se dizer que nem mesmo se enquadraria no
conceito, pois está ausente o requisito da boa-fé. Por outro lado, o
superendividado ativo inconsciente agiu impulsivamente e de maneira
imprevidente deixou de fiscalizar as seus gastos. É o consumidor que,
embora não tenha sido acometido por nenhum fato superveniente,
superendividou-se, por inconsequência, não com dolo de lograr, enganar.
Neste caso, o fenômeno do superendividamento dá-se em função de
seduções da sociedade contemporânea em adquirir produtos supérfluos,
pelo simples impulso da compra (MARQUES, 2009).
Desse modo, nota-se que, no superendividado ativo, há o aspecto
volitivo, a denominada reserva mental, na qual o consumidor baseia sua
atuação no mercado de consumo.
O superendividado ativo consciente age de má-fé, ou seja, com o
intuito de não quitar suas dívidas. Quanto aos demais, deverá ser analisado
o caso concreto, partindo-se da análise do magistrado. O ativo inconsciente
administra suas finanças de maneira inadequada; o consumidor
superendividado passivo é aquele que sofre algum acidente da vida.
Quanto ao superendividamento passivo, este, por sua vez, ocorre
pelos fatos da vida, situações imprevisíveis, externas e alheias a sua vontade.
Nesse caso, não há o que se falar em má-gestão dos recursos financeiros
tampouco de má-fé.
Ademais, cabe mencionar que pesquisas recentes concluem que o
superendividamento passivo, causado por mudanças bruscas de rendimento,
é a espécie mais frequente de superendividamento (SCHMIDT NETO, 2009).
Note-se ainda que esses acidentes da vida que acometem o
consumidor compreendem as áleas da vida, como, por exemplo,
desemprego, doenças, divórcio, acidentes.
O Projeto Piloto do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, que trata
do “Tratamento das situações de superendividamento do consumidor”, em
pesquisa realizada em 2007, com um total de 1.000 consumidores
participantes,
constatou
os
seguintes
resultados:
29%
do
superendividamento passivo decorre do desemprego, seguido da separação/
divórcio (20%), gasto maior do que a renda (19%), doença ou morte (17%) e
redução da renda (8%).
Na mencionada pesquisa, identificou-se a prevalência do
superendividado passivo. Outro aspecto importante é o fato de que 80% dos
participantes estavam inscritos em cadastro de inadimplentes, fato esse que
Tutela do consumidor...
// 385
impede a reinserção no mercado de trabalho (ADESÃO AO PROJETO
CONCILIAR É LEGAL, 2007).
Presente a boa-fé, diante da vulnerabilidade do consumidor, caberá
a proteção estatal, como forma de reequilibrar a relação de consumo.
A classificação do consumidor superendividado revela a situação de
desequilíbrio financeiro, em que se verifica a impossibilidade manifesta de se
quitar as dívidas sem que o consumidor tenha sua dignidade afetada.
Ainda, observa-se que a classificação doutrinária parte do prérequisito da boa-fé, sendo este o elemento subjetivo que divide os casos de
superendividamento ativo consciente, ativo inconsciente e passivo.
22.4 A TUTELA CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR NA HIPÓTESE DE
SUPERENDIVIDAMENTO
O elemento-chave para a criação de uma tutela estatal dos direitos
do consumidor superendividado, de fato, reside na boa-fé.
Primeiramente, a boa-fé é um princípio geral dos contratos, o qual
está incluso nos contratos de consumo. Como ainda não há uma lei
específica que trate do superendividado, nota-se que a jurisprudência
caminha um passo à frente, vez que esta prevê que a boa-fé deve permear a
situação de superendividamento, a exemplo do julgado do Tribunal de Justiça
do Paraná:
APELAÇÃO CÍVEL EMPRÉSTIMO CONTRATADO MEDIANTE DÉBITO EM
CONTA CORRENTE QUE RECEBE SALÁRIO EXISTÊNCIA DE OUTRO
EMPRÉSTIMO, COM DESCONTOS EM FOLHA DE PAGAMENTO
EMPRÉSTIMOS QUE, SOMADOS, ULTRAPASSAM O PERCENTUAL DE
30% (TRINTA POR CENTO) DO SALÁRIO LÍQUIDO DO AUTOR PRETENSÃO DE REALIZAR O DESCONTO EM CONTA CORRENTE DA
INTEGRALIDADE DA PARCELA DO FINANCIAMENTO CONTRATADO
IMPOSSIBILIDADE NA ESPÉCIE, SOB PENA DE COMPROMETIMENTO
SIGNIFICATIVO DA RENDA DO MUTUÁRIO, A PONTO DE INVIABILIZAR
SUA PRÓPRIA SUBSISTÊNCIA
"SUPERENDIVIDAMENTO" DO
CONSUMIDOR NECESSIDADE, CONTUDO, DE LIMITAR O DESCONTO
E ADEQUAR O VALOR DA PARCELA AO LIMITE QUE, SOMADO AO
OUTRO EMPRÉSTIMO, NÃO ULTRAPASSE 30% DO SALÁRIO LÍQUIDO
DO AUTOR, CONSIDERADA, PARA FINS DE CÁLCULO DO DESCONTO
PARCIAL, A REMUNERAÇÃO LIQUIDA (DEDUZIDO A CONTRIBUIÇÃO
PREVIDENCIÁRIA) DO AUTOR CONJUGAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (CF, ART. 1°, III) COM A BOA-FÉ
OBJETIVA (ART. 4°, III, DO CDC COMB. COM O ART. 422 DO CÓDIGO
CIVIL) [...]. (BRASIL, 2011).
A importância de se conceituar o superendividamento reside no fato
de que, a partir do enquadramento do caso concreto à definição legal, ter-seá a possibilidade de conferir a proteção legal. Analogicamente ao que ocorre
para a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, no qual se devem
enquadrar o caso concreto e as definições do que é consumidor e fornecedor.
386 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Para a aplicação de uma lei específica ao consumidor
superendividado, é necessário que esse sujeito esteja dentro dos parâmetros
fixados pela doutrina e jurisprudência, os quais orbitam, precipuamente, em
torno da boa-fé, a qual qualifica o elemento volitivo.
Isso porque ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza, nemo
propriam turpitudinem allegans. Assim, a má-fé, o intuito de lesar credores,
seria um elemento impeditivo de uma tutela mais benéfica, como preceitua o
julgado abaixo, do Tribunal de Justiça do Paraná:
CRÉDITO
CONSIGNADO.
CONCESSÃO
DE
CRÉDITO
COM
COMPROMETIMENTO DO LIMITE LEGAL DE 30% DA RENDA DO
MUTUÁRIO. SUPERENDIVIDAMENTO PROVOCADO PELA BURLA DO
SISTEMA LEGAL. PROIBIÇÃO DE TIRAR PROVEITO DA SUA PRÓPRIA
TORPEZA. INIBIÇÃO DE INCLUSÃO DO NOME DO MUTUÁRIO EM
ARQUIVOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO.INDEFERIMENTO DA
ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA.MANUTENÇÃO DA DECISÃO
AGRAVADA. RECURSO DESPROVIDO. É sedutora a tese do agravante
segundo a qual ele se encontra nessa situação de superendividamento não
por sua culpa, mas por culpa dos réus, ora agravados, os quais, mediante
sucessivas negociações de recompra de crédito consignado, conseguiram
burlar o sistema de empréstimo consignado, em particular o seu limite legal
de 30%, e tirar proveito dessa situação em detrimento dele. Sua tese, no
entanto, não tem como, neste momento, prosperar. Isso porque, mal ou bem,
ele também teria se beneficiado diretamente dos sucessivos
refinanciamentos. Dessa forma, é certo que não poderá tirar proveito da sua
própria torpeza ante o princípio nemo auditur propriam turpiditudinem suam
allegans. (BRASIL, 2012).
Nesse viés, verifica-se que o consumidor que merece o tratamento
legal diferenciado, portanto, mais benéfico é aquele que se enquadra no
conceito de superendividado passivo, pois este é vítima de um acidente de
vida, o qual muitas vezes está aliado também à má conduta dos fornecedores
de crédito.
Nesse ponto, nota-se que as peculiaridades do caso concreto serão
de suma relevância, uma vez que serão indicadores da boa-fé do consumidor.
Diante da presença desse elemento, haverá o dever do credor em renegociar
a dívida, de modo a preservar também a dignidade do consumidor, isto é, a
quitação das dívidas que ocasionaram o superendividamento não poderá
atingir o mínimo necessário para uma existência digna, a exemplo da
alimentação, moradia, vestuário.
Ainda, para se tornar mais concretos os elementos caracterizadores
do superendividamento, é pertinente citar o projeto “Conciliar é legal” - CNJ
(Conselho Nacional de Justiça) -, no qual as juízas de direito, Karen Rick
Danilevicz Bertoncello e Clarissa Costa de Lima, do Rio Grande do Sul,
realizaram estudos de caso acerca da conciliação aplicada ao
superendividamento. Em muitos dos casos analisados, a boa-fé do
consumidor é nítida:
Tutela do consumidor...
// 387
Carlos, 38 anos, casado, 3 dependentes, financeiro, renda individual mensal
R$ 800,00; renda familiar mensal R$ 2.000,00. Despesas mensais
decorrentes (gastos de subsistência): luz R$ 130,00; alimentação R$ 400,00;
educação R$ 10,00; impostos R$ 80,00; transporte R$ 300,00. Valor da
dívida com cada credor: instituição financeira pública estadual R$ 6.000,00;
instituição financeira pública federal R$ 2.300,00; instituição financeira
privada R$ 2.300,00; supermercado de rede internacional R$ 3.173,97;
supermercado de rede nacional R$ 450,00; financeira R$ 4.608,43; empresa
de telefonia R$ 120,00. Caracterização do caso: Carlos endividou-se em
razão do desemprego e doença. Estava inadimplente em relação a sete
credores supracitados e com nome registrado em cadastro de inadimplentes.
Antes da audiência de renegociação, o superendividado já havia tentado
renegociar diretamente com os credores, mas não teve sucesso porque os
credores não concordaram em conceder qualquer desconto ou aumentar o
prazo para possibilitar o pagamento. O acordo a ser mediado com todos os
credores deveria respeitar a margem disponível de no máximo R$ 500,00
mensais, porque o superendividado ainda estava em contrato de experiência
no emprego e a esposa estava grávida de gêmeos no momento em que
recorreu ao projeto. Resultado: o acordo foi exitoso na medida em que todos
os credores colaboraram para a elaboração de um plano de pagamento que
se ajustava ao orçamento do superendividado, concedendo-lhe desconto ou
aumentando o número das parcelas originalmente contratadas. Com o
supermercado de rede internacional foi convencionado o pagamento de R$
2.222,18 em 10 parcelas mensais e consecutivas de R$222,18; com o
supermercado de rede nacional foi acordado o pagamento de R$ 300,00 em
uma única parcela; com a empresa de telefonia o valor de R$ 80,00 em uma
única parcela; com a financeira, o acordo foi firmado para pagamento do total
de R$ 2.047,68 em 12 parcelas mensais e consecutivas de R$ 170,64. Com
relação às instituições financeiras públicas, estadual e privada, foi necessário
realizar segunda audiência para exame da proposta de pagamento oferecida
pelo superendividado, na qual o acordo restou exitoso. Em relação à
instituição pública estadual, foi acordado o pagamento de R$ 8.828,96,
mediante uma entra de R$ 400,00 e duas parcelas de R$ 4.214, 48. Em
relação ao banco privado, foi ajustado o pagamento de R$ 4.456,08 em 36
parcelas mensais e consecutivas de R$ 123,78. Os credores
comprometeram-se a excluir o nome de superendividado de cadastro de
inadimplentes no prazo máximo de cinco dias após o pagamento da primeira
parcela. Somente não foi celebrado acordo com a instituição financeira
federal por ser de competência da Justiça Federal. Ao ser entrevistado, após
a realização do acordo, o superendividado revelou que se sentia aliviado
porque não teria conseguido solucionar seu problema de endividamento
sozinho, sem o auxílio do terceiro mediador (BERTONCELLO, 2009).
No caso em apreço, notem-se os elementos que indicam a boa-fé do
consumidor, quais sejam, o desemprego, a existência de um contrato de
experiência, ou seja, não há a plena certeza de uma renda mensal fixa, além
da gestação de gêmeos, situação que indica o acontecimento de fatos que
não estavam previstos e que repercutiram, de modo negativo, no orçamento
familiar. Ademais, desde o princípio, o consumidor mostrou-se interessado
388 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
em renegociar a dívida, sendo, nesse caso, um direito seu e um dever do
credor.
Além disso, como o consumidor agira de boa-fé no momento de
buscar a solução do conflito, as necessidades básicas do consumidor são
preservadas, revelando-se o respeito à sua dignidade.
Do outro lado dessa relação jurídica, atua o fornecedor, o qual
também deve agir pautado na boa-fé, já que esse princípio basilar do direito
contratual revela a transparência, equidade, confiança, aspectos que
nortearão a intervenção do Estado-juiz. Sendo assim, o contrato de consumo
deve estar permeado por deveres de conduta recíprocos, isto é, o dever
jurídico de agir corretamente. Conquanto deve ser repudiada e afastada a
conduta do fornecedor que abusa do direito de fornecimento de crédito, ao
observar a vulnerabilidade, o analfabetismo, o desconhecimento e a
inexperiência do consumidor.
Na apreciação de casos que envolvem consumidores
superendividados, os tribunais brasileiros já tem trazido a lume essa
dimensão proporcionada pela boa-fé objetiva que deve ser observada
também na conduta do fornecedor, como é refletido no julgado abaixo:
APELAÇÃO
CÍVEL.
DIREITO
CIVIL
E
DO
CONSUMIDOR.
RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. Cliente de banco que,
movido por inexperiência, desempregado, de baixa classe social e reduzido
poder aquisitivo, faz uso de elevado credito, inexplicavelmente
disponibilizado por banco, em flagrante lesão. Obrigações contraídas se
evidenciam desproporcionais ao seu próprio proveito, passando os anos
seguintes a celebrar novações e dilapidando o patrimônio da família para
fazer frente à obrigação assumida, que alcança três vezes o valor original,
em lucro exorbitante para o credor (art.157 do CC). Débitos que eram sempre
apresentados de modo a não poderem ser quitados. Negativação do nome
do autor no SPC, depois que, contraindo dívidas com outras financeiras para
saldar a prestação com o réu, este, debitando os encargos contratuais, faz
com que o valor restante se torne insuficiente para o pagamento, quando já'
havia pagado o dobro do montante creditório originariamente contraído.
Violação, pelo banco, dos princípios da justiça social (art. 170 da CF), da
solidariedade social e da boa-fé', que informam o ordenamento jurídico civil
brasileiro. Contrato celebrado com indiscutível lesão ao autor, que, além de
inexperiente, não foi informado das condições do crédito. Violação a seus
direitos básicos, enquanto consumidor, à informação adequada e clara sobre
os diferentes produtos e serviços e a educação e divulgação sobre o
consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de
escolha e a igualdade nas contratações (art.6. do CDC). Abuso de direito da
negativação do nome do autor. Sentença condenatória em danos morais, no
valor de 50 salários mínimos, equivalente a R$ 12.000,00, nesta data, que se
confirma. Recurso improvido (BRASIL, 2003).
Dentre os princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor,
a boa-fé objetiva nortear a aplicação de todos os demais.
Cláudia Lima Marques trabalha com três funções anexas que
acompanham a boa-fé objetiva, quais sejam, criar deveres anexos durante o
Tutela do consumidor...
// 389
vínculo contratual, limitar o exercício de direitos subjetivos abusivos e garantir
a concretização e interpretação dos contratos (MARQUES, 2004, p. 180).
Destarte todo o núcleo de defesa do consumidor deve estar
consolidado dentro dos parâmetros trazidos pelo seu eixo principiológico, no
qual se destaca a boa-fé de ambas as partes da relação jurídica de consumo.
A relação de consumo, propriamente dita, compreende, por si só,
uma situação específica, uma vez que se observa a vulnerabilidade técnica,
jurídica, processual e econômica do consumidor. Diante de uma relação
jurídica de consumo, com relação à concessão de crédito, quando o
consumidor encontra-se superendividado, a vulnerabilidade do consumidor
está potencializada.
De fato, o Código de Defesa do Consumidor trouxe privilégios
materiais e processuais, além de princípios gerais, regras que norteiam o
sistema positivo de defesa do consumidor, dado o desequilíbrio existente na
relação consumerista.
Nesse sentido, leciona Cristina Tereza Gaulia:
Sublinha-se aqui, sem qualquer margem de dúvida, que a proteção a esse
‘desigual’, ao consumidor em sua absoluta e legal vulnerabilidade, a esse
leigo cidadão sem qualquer expertise no que tange o fornecimento de
produtos e serviços, há de ser privilegiada, sem a hipócrita neutralidade
judiciária de um tempo passado em uma era não globalizada. Jogar âncoras
que assegurem ao fragilizado cidadão superendividado um porto seguro,
onde possa o mesmo resolver seus conflitos reais, é um múnus do
magistrado que trabalha as lides de consumo (2010).
Nesse contexto, deve-se notar que a situação do superendividado
gera, como consequência, reflexos de ordem social, uma vez que aquele
consumidor, antes atuante no mercado de consumo, agora está excluído.
A inserção no ordenamento jurídico de uma lei específica que regule
a situação jurídica dos superendividados deve visar primeiramente readequar
uma situação econômica, que refletirá na sua reinserção social e, muitas
vezes, também no mercado de trabalho.
Mesmo que ainda não houvera uma alteração concreta e específica
no Código de Defesa do Consumidor, as mudanças sociais estão um passo
à frente das mudanças legislativas e aquelas refletem nestas. Não é porque
não há uma lei que regulamente a relação jurídica do superendividado que
este não poderá socorrer-se ao judiciário.
A necessidade de contextualização plena do Código de Defesa do
Consumidor é latente. Mas, como essa ainda não é uma realidade, a doutrina
majoritária tem o entendimento de que, em se tratando de relação jurídica de
consumo, o Estado-juiz poderá agir de ofício, pois não se aplica o princípio
dispositivo, como expressa o art.1º, do Código de Defesa do Consumidor.
Ademais, o art. 6º, inc. V, do Código de Defesa do Consumidor
permite a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou a sua revisão em razão de fatos supervenientes que as
tornem excessivamente onerosas.
390 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
É cediço falar no princípio da inafastabilidade do juiz, o qual, em se
tratando do consumidor, é corroborado pelo art. 83, do Código do
Consumidor, dispositivo legal que garante a admissibilidade de todas as
espécies de ações capazes de garantir a adequada e efetiva tutela dos
direitos do consumidor. Nesse sentido,
Convém apontar por igual que o ideal será a aprovação de Lei do
Superendividamento, pelo Congresso Nacional, mas enquanto esta não vem
pode o Judiciário, confrontando com a clara literalidade do disposto no art.
126 do CPC, se eximir ‘de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou
obscuridade da lei’. Destarte, ‘no julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as
normas legais’, e ‘não as havendo’ deverá recorrer (o termo do dispositivo é
‘recorrerá’, indicando a obrigatoriedade!) ‘a analogia, aos costumes e aos
princípios gerais de direito’ (GAULIA, 2010).
Em que pese a ausência legislativa, o judiciário tem demonstrado que
é possível enfrentar essas questões de modo a satisfazer o direito do
consumidor superendividado. Tome-se, como exemplo, a formação do
Núcleo da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (Nudecon) e o
projeto-piloto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
No tocante ao Judiciário do Estado do Paraná, este também tem
trabalhado em projeto para o tratamento do superendividamento do
consumidor, da conciliação e da mediação.
Nesse sentido, preceitua a juíza de direito do Tribunal de Justiça do
Paraná e coordenadora administrativa do projeto em Curitiba, Sandra
Bauermann:
Trata-se um procedimento simples, fundado na voluntariedade das partes na
sua adesão, através da qual se busca, à míngua de normatização da matéria,
permitir que o superendividado de boa-fé possa ter um instrumento para
buscar uma renegociação amigável com seus credores [...]. No Brasil, o
Tribunal de Justiça do Paraná foi o segundo a implantar o projeto de
tratamento de superendividamento, seguindo o modelo e experiência do
TJRS (BAUERMANN, 2011).
No Estado do Paraná, o projeto que visa proporcionar a renegociação
da dívida teve início em 2010 no âmbito de competência dos Juizados
Especiais Cíveis. Para ter acesso ao programa, basta o consumidor
superendividado preencher um formulário para que a audiência seja
marcada.
Ainda tendo em vista dados estatísticos apresentados pelo Tribunal
de Justiça Paraná, entre 3 de maio de 2010 e 19 de agosto de 2010, os
credores também aderiram ao projeto e, em sua maioria, são instituições
financeiras ou de crédito. Além disso, verificou-se que 76% dos que procuram
a renegociação da dívida são os superendividados passivos (BAUERMANN ,
2011).
No período de tempo acima citado, foram realizadas 1.153 audiências
de conciliação, e, em 74%, foram exitosas.
Tutela do consumidor...
// 391
Índice esse bastante satisfatório, considerando-se que esses
consumidores serão reinseridos no mercado de consumo, o que reflete em
benefício não só para as partes, mas também para o mercado de consumo
como um todo (BAUERMANN, 2011).
Tendo-se em vista os resultados obtidos, revela-se a necessidade de
fixação de mecanismos legais de prevenção e tutela dos superendividados.
Há que se mencionar, ainda, que, em que pesem os resultados
satisfatórios advindos da conciliação, essa ainda não é uma norma impositiva
que possa vir a obrigar o fornecedor a firmar um acordo, pois,
[...] ainda que válidas, as iniciativas do Poder Judiciário nesta matéria não
são suficientes, já que estão a depender da iniciativa e empenho de um ou
outro magistrado e, principalmente, do interesse da administração de cada
tribunal (investimento, estrutura, etc.). [...] os atuais projetos de tratamento
de superendividamento ao consumidor possuem procedimento sem força
cogente, amparado apenas na voluntariedade das partes, especialmente do
credor, em face da ausência de legislação que possibilite o contrário. O que
se constatou na experiência paranaense foi significativo percentual de não
comparecimento dos credores às audiências conciliatórias (22%), incluídos
credores cadastrados (que firmaram o termo de adesão ao projeto)
(BAUERMANN, 2011).
A importância de se promulgar uma norma que vise equilibrar essa
situação de desigualdade reside no fato de que não há mecanismos capazes
de impor a colaboração do credor na conciliação. Essa lei também deveria
atuar no sentido de que, restando infrutífera a tentativa de conciliação, o
Estado-juiz, considerando ser essa norma de ordem pública, poderia impor,
ao credor, um plano de pagamento.
Ante a ausência normativa, na concepção apresentada por Heloisa
Carpena, surgem inúmeros questionamentos, que importam em verdadeiras
lacunas no ordenamento jurídico:
A primeira pergunta a ser respondida pelo legislador brasileiro é sobre o
campo de aplicação da norma: se dirigida amplamente a todos os devedores,
ou só aos consumidores, tal qual definidos no Código de Defesa do
Consumidor. Ainda que prevaleça a tendência consumerista, estaria
necessariamente excluído o consumidor pessoa jurídica? E o
superendividado ativo, também estaria excluído? E como defini-lo? Seria
superendividado ativo aquele que toma o crédito para consumo de
supérfluos, ou apenas o que busca fazer frente às necessidades da vida?
Não caberia nos limites desse trabalho responder a essas indagações
apenas iniciar o debate e dar conta da complexidade do tema, a qual se
revela já nesse primeiro ponto. Superada a questão subjetiva, resta indagar
se a situação de superendividamento alcançaria indistintamente dívidas
vencidas e a vencer, ou seja, se estaria caracterizado apenas quando
houvesse inadimplência propriamente dita. Sobre esse ponto, sem pretender
formular qualquer sugestão, vale lembrar que a ideia de superendividamento
está associada apenas ao desequilíbrio patrimonial, bastando, portanto, para
caracterizá-lo, que o passivo supere o ativo (2007).
392 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro, de fato, reclama por
uma tutela jurídica do consumidor superendividado, de modo que a lei venha
completar e ampliar o que já está sendo realizado, de modo inédito, pelo
Poder Judiciário. Essa lei significará a resposta para os diversos
questionamentos que são suscitados diante do caso concreto.
Enquanto não há, no ordenamento jurídico, a positivação de uma lei,
aplicam-se a normativa e os princípios albergados pelo Código de Defesa do
Consumidor. São ensinamentos de Fernanda Moreira Cezar:
A melhor doutrina brasileira, inspirada na legislação alienígena, preconiza,
então, a elaboração de uma lei específica, que implante no Brasil um regime
especial para o superendividamento. Através de um procedimento com a
intervenção do Estado, haveria a tentativa de conciliação entre consumidor
endividado excessivamente e seus credores, com a fixação de um plano de
pagamento das dívidas, semelhante ao modelo francês das comissões de
superendividamento. A primeira fase do procedimento de tratamento do
consumidor superendividado seria extrajudicial. Neste momento, o
consumidor buscaria uma conciliação com seus credores, diante de uma
comissão, que avaliaria as condições pessoais do superendividado e os
requisitos formais impostos pela lei, tais como a boa-fé, para que fosse
elaborado um plano de pagamento de dívidas. Havendo conciliação, o termo
de acordo seria homologado pelo juiz. [...] Entretanto, não sendo possível a
fase administrativa de conciliação, instalar-se-ia a fase judicial, que, ao
contrário da fase extrajudicial, para que seja uma realidade no Brasil,
demanda necessariamente a elaboração de uma lei especial que a regule
(CARPENA, 2007).
Embora timidamente, o Brasil, inspirando-se no modelo francês, tem
caminhado para ir além da fase pré-processual, a qual já é realizada em
alguns Estados, como Paraná e Rio Grande do Sul.
Pode-se dizer que a fase pré-processual que compreende a
conciliação já é um instrumento eficaz, uma vez que poupa a movimentação
do Judiciário para as ações revisionais de contrato.
Um mecanismo capaz de aliviar a gritante discrepância de condições
entre o consumidor superendividado e o fornecedor de crédito é a educação
para o consumo. Esta significaria um elemento paliativo, no entanto,
edificada, visando prevenir o consumo inconsequência. A ânsia por consumir
é, de fato, resultado imediato, decorrente do estímulo ao consumo.
A atuação de consumidores educados para o consumo evitaria as
consequências econômicas, sociais e psicológicas, desencadeadas pelo
superendividamento.
Nessa perspectiva,
A publicidade tornou-se parte importante na produção de novas identidades,
comercializando modos e forma de vida - mesmo que não consumamos
nenhum dos objetos alardeados pela publicidade como se fossem chave da
felicidade, consumimos a imagem deles. Consumimos o desejo de possuílos [...]. Assim, podemos dizer que a problemática do superendividamento
Tutela do consumidor...
// 393
está atrelada à mídia e publicidade como vendedora de modos de vida e à
publicidade do crédito, que é responsável pela duplicação dos efeitos da
mídia, oferecendo formas de adquirir os bens e serviços ofertados no
mercado de consumo [...]. Assim, chegamos a uma conclusão óbvia: os
cidadãos podem ter acesso ao crédito fácil para obtenção de bens e serviços
[...]. Como já vimos, no plano macroeconômico, o crédito é fundamental para
a economia mundial e no âmbito pessoal é uma forma de ajuda para a
inclusão social. Contudo, o crédito pode operar em sentido inverso, chegando
à exclusão do endividado, quando utilizado de forma desmedida, ou caso
aconteça algum acontecimento imprevisível na vida do indivíduo (LISBOA,
2014).
Igualmente, é importante salientar que a educação para o consumo
torna claras e cognoscíveis, ao consumidor, as consequências da
contratação do serviço de prestação de crédito. De modo que este será capaz
de avaliar as consequências em longo e curto prazo, além de adequar seu
orçamento ao crédito adquirido.
Note-se que a educação para o consumo consciente constrói
conhecimento prévio à contratação do crédito, fato esse que não exime o
fornecedor de cumprir seu dever de informação. Para tanto, conforme o que
dispõe Heloisa Carpena, é importante que
O fornecedor somente se desncumb[a] de forma satisfatória do dever de
informar quando os dados necessários à tomada de decisão pelo consumidor
são por ele cognoscíveis. Não basta, portanto dar a conhecer, disponibilizar,
é preciso que o consumidor efetivamente compreenda o que está sendo
informado [...]. Em outras palavras, se a informação não é cognoscível, não
obriga o consumidor (CARPENA, 2007).
Em muitos casos, a falta de informação faz com que o consumidor
não saiba nem a quem ou a que órgão recorrer para realizar a renegociação
da dívida. Ademais, ante a sua inexperiência, falta de educação para
consumo e desconhecimento, somadas àalta capacidade do fornecedor em
técnicas de publicidade, aquele acaba por comprometer sua própria
existência.
Os tribunais já estão atentando-se para a preservação do mínimo
existencial, para a essencialidade de não reduzir o consumidor a uma peça
do mercado de consumo, pois isso corromperia a sua dignidade, enquanto
pessoa.
Nesse sentido, é o entendimento da juíza Sandra Bauermann (2011)
que,
Enfim, na atual sociedade brasileira do crédito e do consumo, a criação de
um procedimento legal de tratamento de situações de superendividamento
do consumidor é básica para que a ordem jurídica infraconstitucional
efetivamente esteja em sintonia com o princípio da dignidade da pessoa
humana que é o fundamento da República Federativa do Brasil, e é
frontalmente violado em muitas das situações de superendividamento dos
consumidores brasileiros!
394 //
Problemas da jurisdição contemporânea...
Nessa senda, há que se observar que o que se deve fazer é sopesar
valores: o que será mais caro para sociedade: a satisfação do crédito do
fornecedor a qualquer custo ou a preservação da dignidade do devedor?
Note-se que, no ordenamento jurídico brasileiro, busca-se proteger a
dignidade do consumidor, a exemplo da limitação de desconto de crédito
consignado a 30%, sendo essa uma prática instituída pelos tribunais, a que
foi albergada pela lei 10.820/2003 (Lei do Empréstimo Consignado), como
expresso no art. 6º, §5º.
Por conseguinte, observe-se que, mesmo diante da ausência
normativa, é um princípio geral e básico, mormente nas relações
consumeristas, a preservação da dignidade humana, o que se concretiza pela
preservação do mínimo existencial.
Portanto, a inovação legislativa que se espera deve preservar a
prática já realizada pela jurisprudência e também defendida pela doutrina que
trata do consumidor superendividado e suas implicações sociais e jurídicas.
Sendo assim,
Não há dúvida de que o superendividamento é um fenômeno que não pode
deixar de ter um tratamento adequado no Brasil, não só em função de ser
situação que agride a dignidade do cidadão, mas também e principalmente
por termos uma das leis progressistas bem elaboradas a nível internacional,
no que tange a proteção e garantia dos direitos do consumidor, eis que o
CDC se propõe a concretizar o projeto do legislador constitucional quanto a
este novo direito fundamental. A angústia, entretanto, de termos no cenário
jurídico uma lei principiológica, de cláusulas gerais, com somente 119 artigos,
é a herança deixada pelo constituinte para ser desenvolvida pelos juízes
brasileiros (GAULIA, 2010).
Nesse viés, pode-se dizer que o Código de Defesa do Consumidor,
de fato, será a norma matriz que, por meio de seus princípios, guiará a criação
de uma disciplina jurídica para os consumidores superendividados.
22.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O legislador brasileiro preocupou-se em tutelar as relações jurídicas
que envolvem o consumidor, considerando principalmente a vulnerabilidade
técnica, jurídica e econômica deste. Na sistemática de proteção do
consumidor, merecem destaque os princípios, dentre eles, o princípio da boafé.
Verifica-se que a cultura de consumo trouxe novos problemas sociais
já que fora capaz de trazer a situação de superendividamento e,
consequentemente, a necessidade de proteção jurídica, específica pautada
nos princípios já existentes.
Para se concretizar a possibilidade de uma tutela jurídica dos
superendividados, é necessária a conceituação de quem é o
superendividado, para se delimitar a incidência da proteção legal. Nesse
Tutela do consumidor...
// 395
sentido, é de substancial importância a classificação doutrinária, de acordo
com a presença da boa-fé.
O consumidor superendividado passivo é surpreendido com fatos
externos que impossibilitam que quite suas dívidas de natureza consumerista.
O consumidor superendividado ativo não contrai dívidas, pautado na boa-fé,
verificando a má gestão dos recursos financeiros, pois gasta de forma
irresponsável. Nesse sentido, o consumidor que age de má-fé não merece
ser amparado da mesma forma que o consumidor que sofre com
adversidades externas, a exemplo de doenças, desemprego, divórcio, entre
outras.
Diante dessa situação fática que reclama previsão legal protetiva, o
Tribunal de Justiça do Paraná busca, por meio da conciliação e da mediação,
possibilitar a aproximação do consumidor e de seu credor para busca de uma
solução. Isso traria benefícios para ambas as partes, pois o consumidor
poderia se reestabelecer no mercado de consumo e o credor teria seu crédito
satisfeito.
Ante a ampla tutela do consumidor no ordenamento jurídico
brasileiro, não seria plausível desproteger o consumidor em vulnerabilidade
ainda maior, o que ocorre com o consumidor superendividado. O Estado não
pode negligenciar o dever de atuar no sentido de garantir a dignidade humana
do consumidor, pois, estando desprotegido, está vulnerável aos abusos
praticados pelos fornecedores.
Sendo assim, resta preencher essa lacuna legal, por meio da criação
de uma lei específica, preventiva e protetiva, capaz de tutelar as situações
jurídicas, decorrentes do superendividamento.
22.6 REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 7 ed. São
Paulo: Saraiva, 2009.
ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de direito do consumidor. Barueri:
Manole, 2006.
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Trad. Artur Morão. Rio
de Janeiro: Elfos E