A memória tatuada - epifania corporal da ordem comunitária
Transcrição
A memória tatuada - epifania corporal da ordem comunitária
Daniel Lins A memória tatuada - epifania corporal da ordem comunitária Para Abdelkebir Khatibi, filósofo maior, cujos livros: La memoire tatouée. La blessure du nom propre abriram novas perspetivas para a presente pesquisa. Eis sobre a pele, em superfície, a alma mutável, ondulante e fugaz, a alma estriada, nuvem escura e espessa, tigrada, zebrada, matizada, rodopiante, incendiária; eis aí a tatuagem. Aqueles que sentem necessidade de ver para saber ou crer desenham ou pintam e fixam o lago da pele, mutável e ossificada, tornam visível, por meio das cores e das formas, o puro táctil... Michel Serres A tatuagem, fundada numa instabilidade de sistemas semióticos, ostenta à sua maneira o movimento pictográfico. Testemunha de uma escrita agora morta, a tatuagem age segundo um traço quase imutável no campo de uma diferença tão esquecida e tão sumária que a cena torna-se livre para uma meditação que pretende decifrar a morte. Unir essas duas palavras meditação e morte - não é um acaso: penso que a perda absoluta do sentido e da leitura é a maior violência que possamos usar contra os saberes. A tatuagem como jogo gráfico se situa no encontro de uma certa metafísica do ser: a perda de contato provoca a perda do objeto percebido originalmente; o geometrismo conduz por sua vez à figuração do sujeito. Assim, pois, um simples tema decorativo ajuda a arruinar delicadamente a dialética sujeito/objeto, engendrando sujeitos geográficos alheios à idéia de sujeito unificado, configurado, solitário... Isto é, não mais a gramática: singular, plural, masculino, feminino, neutro, mas uma geografia corporal, uma cartografia do desejo marcada pelo rapto, pela dádiva, e pelo signo: (...) uma dança sobre a terra, um desenho sobre a parede, uma marca sobre o corpo são um sistema gráfico, um geografismo, uma geografia. Essas formações são orais precisamente porque elas têm um sistema gráfico, independentemente da voz, que não se alinha sobre ela e não se subordina a ela, mas lhe é conectado, coordenado em uma organização de certa maneira radiante e pluridimensional.1 Se desapropriar assim do corpo, trair a hierarquia de seus valores, e anotar, por um artifício rodopiante, uma falsa máscara da morte; a tatuagem 1 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. O anti-édipo – Capitalismo e esquizofrenia. Tradução Georges Lamazière, Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 239. Daniel Lins – A memória tatuada... 151 só pode ser invocada nesse ritmo: um corpo decorado cuja nudez escritural reitera a morte. Não se trata nem de feitiçaria nem de passe de mágica teórico a respeito da escrita, mas de pensar conosco/contra nós o simples prolongamento de um ponto de vista sob o ângulo do qual o corpo-objeto não existe mais no corpo tatuado: o corpo marcado, que é a memória tatuada, trabalha com a carne e escreve na epiderme o pré-histórico da humanidade: (...) servir-se da mnemotécnica mais cruel, em plena carne, para impor uma memória das palavras sobre a base do recalcamento da velha memória bio-cósmica.2 Amortecer pois um certo saber sobre a escrita, transformar o corpo em decoração, é ir de uma maneira instável à extremidade do desinteresse produtivo, salvo se entrarmos na codificação anarco-desejante da máquina primitiva que ignora a troca pois, semelhante ao desejo, ela só conhece o roubo e o dom : A máquina territorial primitiva codifica os fluxos, investe os órgãos, marca os corpos. Até que ponto circular (trocar) é uma atividade secundária em relação a essa tarefa que resume todas as outras: marcar os corpos que são da terra. A essência do socius registrador, inscritor, enquanto ele se atribui as forças produtivas, e distribui os agentes de produção, reside nisso – tatuar, excitar, incisar, recortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar.3 Tatuagem é, pois, diz Khatibi, o conjunto desenhado como um novo tecido decorando o corpo. Ora, na palavra-tecido há a idéia de composição microfísica da matéria, a idéia de um espaço ritmado e, em última análise, a noção de escrita. Alguns tecidos existem tanto nos tapetes como nos corpos tatuados. Estamos longe de um jogo de palavras. O tecido não se articula com nenhuma sintaxe conhecida, que consiste em um repertório de figuras geométricas facilmente localizáveis. Chamemos signos migratórios os tecidos e as formas geométricas que atravessam diversos sistemas semióticos. O objetivo é dissolver nosso discurso em uma tal animação.4 Roupa escrita, a tatuagem possui um repertório de signos bastante elementar e que resiste as teorias da representação e, por amálgama, a identida- 2 Id., p. 239; cf. Lins, Daniel “Esquecer não é crime” In: Nietzsche e Deleuze – Intensidade e Paixão. Daniel Lins, Sylvio Gadelha e Alexandre Veras (org.) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. 3 Id., p. 183 4 Khatibi, Abdelkebir. La blessure du nom propre. Paris: Denoël, 1986, p. 81; cf. La memoire tatouée. Paris: Denoël, Lettres Nouvelles, 1971. 152 REVISTA DEL CESLA No 2/2001 de. A tatuagem permite o duelo erótico entre simétrico e assimétrico, a economia viva de um gesto amoroso e de um desejo desdobrado, teatralizado. O corpo tatuado é uma grafia que desfigura a noção de apropriação, é uma escrita que exige ser lida, amada, desejada no seu movimento o mais emocionante, o mais perturbador.5 O corpo tatuado, visto pois como um livro, um tecido, um pergaminho, uma outra pele onde o sujeito desterritorializado produz sua própria lógica que funciona não como uma estrutura, mas como um processo que engendra e desengendra o gozo, gozos. Sistema semiótico, a tatuagem é uma tradução do corpo e de seu gozo: do traço tatuado à paixão incestuosa, é o desdobramento de uma escrita eufórica. É dela que depende a economia do texto e do prazer. Mas o corpo tatuado é também uma constelação de provérbios... „Amor só de mãe!” „Sonha, ou morre!” „Teu nome é teu destino”. „Amar foi minha ruína”! Nenhum texto pode se demitir facilmente do trabalho mítico que o supõe e o trespassa. É aqui que a escrita no corpo encontra sua definição: A tatuagem como hiperescrita do signo vazio. Reduzidos ao passe de mágica, os enigmas do texto no corpo tatuado entram em síncope sob a força devastadora de uma ilusão de um infinito lógico e classificador. 6 7 Entre o real e o possível se aloja a consciência retórica do eu-pele, do eu-tatuado cuja polissemia infinita de cores e traços organiza a eclosão de um eu singular, um eu gramatical numa massa de eus, numa multidão anônima, num bloco eliminando, assim, a idéia de estrutura. Tatuagem como 8 o desenho nu de minha solidão: um ponto, uma ponta. A „sabedoria selvagem” de Nietzsche é ter eclodido o discurso ocidental, sua tirania centralizadora. Pensamos com Derrida que o signo escrito (o traço) é um signo sem origem, um signo alojado na diferença, na mais violenta diferença, a diferença intratável. 9 5 Id., p.234. Id. Ibidem., p. 17 7 Cf. Anzieu, D. Moi-peau. Paris: Dunod. 1985 8 Khatibi, A. Id. Ibidem., p. 62 9 Cf. Derrida, Jacques. De la gramatologie, Paris: Minuit, 1967; cf. LINS, Daniel. “Como dizer o indizível” In Cultura e Subjetividade – Saberes Nômades (Daniel Lins org.). Campinas: Papiris, 2a ed., p. 69ss, 2000 6 Daniel Lins – A memória tatuada... 153 Tatuagem e transgressão O mito exprime sempre uma passagem e um desvio. Lombroso conta a história de Malassen. Assassino célebre, da Nova Caledônia, ele se fez tatuar no peito uma guilhotina vermelha e negra com a legenda: É o fim que me espera. Outros prisioneiros tatuam simplesmente uma linha pontilhada arrodeando o pescoço com a inscrição: "Cortar aqui”. De qualquer maneira, patrióticas ou anarquistas, diferentes ou irônicas em relação à cultura das pessoas cultas, as tatuagens dos que vivem à margem obedecem ao princípio de McLuhan „a mensagem é o meio”. A tatuagem é sem dúvida a transgressão maior numa cultura de representação que tende ao afeito ilusionista, quer dizer à neutralização do suporte e da transparência dos signos. O quadro da representação, legitimador da objetividade, se desestabiliza então; treme, se deforma, se enche, suscitando no espectador uma empatia epidérmica que curto-circuita a distância visual. Essa relação do corpo, tradicionalmente expurgada da representação, visto que o corpo sela a inerência do sujeito com o objeto, toma necessariamente uma tonalidade erótica. Ao endurecer seu bíceps, o marinheiro incha as velas da * caravela tatuada no seu braço. Anamorfose viva, a imagem flutuante entregue as dilatações musculares não pode deixar de evocar a tumescência. Em suma, o suporte eletivo do traço, apto a avantajar o desenvolvimento da tatuagem, é evidentemente o órgão ereto por excelência, o pênis, mesmo se a tatuagem no pênis continua, segundo as estatísticas, 10 pouco praticada pois é uma das mais dolorosas. Por outro lado, se tatuar deliberadamente é reivindicar a exclusão da qual se é objeto, e fazer dela uma glória. Basta ler as inúmeras obras de medicina, notadamente psiquiátricas, consagradas à tatuagem, sobretudo no século XIX, para discernir, sob a pseudo cientificidade afetada pelos seus autores, um opróbrio lançado contra a marca corporal, apresentada como o 11 signo de uma decadência moral. Mas é preciso não negligenciar o fato de que a tatuagem é muitas vezes uma prática daqueles que não se exprimem facilmente por meio da palavra, que se ressentem confusamente como vítimas da ordem logocêntrica * Anamorfose: deformação de uma imagem pelo sistema ótico; arte de representar uma imagem ampliada. 10 Cf. Lacan, Jacques. L'anamorphose, Le Séminaire XII, Paris: Seuil, 1973, pp. 75-84. 11 Bourgeois, M. e Campagne, A. «Tatouage et psyquiatrie». Annales médico-psychologiques, 2, 1971, pp. 391-413; Britt, B. “The incidence of tattooing” In: A male criminal population. Behavior Neuropsychiatry 4, 1972, pp. 13-16. 154 REVISTA DEL CESLA No 2/2001 e que reagem, numa contravenção espetacular, ao princípio cultural de integridade do corpo. É preciso também assinalar que o ato da tatuagem não quer apenas significar um "mal estar", caro aos psiquiatras. A representação nesse contexto não tem valor metafórico, mesmo se o desenho na pele tem um valor simbólico. A metáfora não é apenas portadora de sentido, ela é "geradora" de Valores alegóricos, ela determina uma empatia em si criadora. Memória tatuada, identidades tatuadas: nascimento da escrita Epifania corporal da ordem comunitária, a marca corporal primitiva afirma tanto a heterogeneidade das comunidades, no seu próprio interior como também a heterogeneidade das individualidades. Poderíamos mesmo dizer que a tatuagem ou a marca corporal tem como função prevenir o nivelamento ou a massificação que são a ameaça interna de todo agrupamento constituído. Ora, a tatuagem não é uma expressão puramente individualista. Digamos que ela marca a imposição diferencial da lei e da ordem simbólica nos corpos dos indivíduos. Mas essa assunção ou epifania corporal indica muito bem a encarnação da ordem comunitária. O símbolo é de certa maneira coextensivo ao organismo social. Não existe funcionamento nem suporte separados; seus elementos de articulação são os próprios indivíduos que se diferenciam uns dos outros como as letras dessa inscrição feito carne, feito memória tatuada, que constitui o grupo. Ora, a passagem da comunidade primitiva - sociedade sem Estado ou contra o Estado - à sociedade com Estado, significa a instituição de um aparelho especializado, exterior aos indivíduos, e codificado independentemente 12 deles, e marca também o nascimento da escrita. O nascimento da escrita está efetivamente ligado à constituição de cidades e impérios, quer dizer à hierarquização social, a divisão do trabalho e a exploração do homem pelo o homem. Como observou Lévi-Strauss, é necessário admitir que a função primária da comunicação escrita é facilitar a subjugação. O uso da escrita para fins desinteressados, em vista de dela tirar satisfações intelectuais eestéticas, é um resultado secundário, mesmo se ela não se reduz, àmaioria das vezes, a um meio de enterrar, 13 justificar ou dissimular outro. Se a lei do grupo não é mais (no século XXI) figurada no corpo dos indivíduos, é porque, desde logo, ela é transcrita num pergaminho, quer dizer numa pele anônima que é a pele de todo mundo, e que, portanto, ninguém é 12 13 Cf. Pierre Clastres. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990 Strauss-Lévi. C. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962, p. 26 Daniel Lins – A memória tatuada... 155 sensato ignorá-la. Ela deixa apenas de ser atualizada para cada membro do grupo. São exclusivamente os que têm acesso a escrita que podem se arrogar o direito de conservá-la, formulá-la e aplicá-la. Entramos assim no campo 14 dos diversos capitais: lingüístico, cultural, semiótico, intersemiótico etc. A tatuagem não desaparece pois com o acontecimento da escrita: ela fica apenas em reserva. Se a lei difere assim sua inscrição e se põe em instância é para marcar sua desindividualização e sua universalização. Não é, pois, por respeito ao corpo que a lei o livra, é ao contrário para significar que os corpos tornaram-se a seus olhos essenciais e intercambiáveis. Nas sociedades com Estado as diferenciações das instituições econômicas, jurídicas, militares, políticas implicam uma indiferença e uma eficácia dos Indivíduos. Esses serão sociáveis à medida de sua disponibilidade. Ao recusarem a intertrocabilidades eles se excluem do jogo social e se expõem, nesse caso, à marca infamante que sanciona sua regressão à associabilidade e à selvageria. A marca corporal não foi abandonada; com a constituição, todavia, dos Estados centralizados, ela inverte pouco a pouco sua significação, indicando não mais a inclusão, porém, a exclusão social, ou em todo caso a regressão a uma condição marginal. A marca tende a só se aplicar aos condenados, aos escravos e, às vezes, as mulheres (ela conserva nesse caso um caráter mágico, decorativo ou repressivo). Essa trajetória é geral em todos os grandes impérios, quer seja na 15 Europa, no Médio Oriente, na Ásia etc. O mercado de escravos - português, espanhol, holandês, inglês ou francês - instituiu e praticou a marcação dos escravos com as iniciais de seu mestre, de forma a garantir sua identificação em caso de evasão. Com a aceleração das atividades econômicas, os escravos começaram a escravo a acrescentarem novas marcas. Houve uma superposição de marcas de tal forma que os próprios senhores se confundiam. Essa reabsorção de tatuagem por inflação pode ser considerada como pródromo às mudanças ou crises socioeconômicas: a sociedade industrial exige a liberação da mão de obra sobre o mercado de trabalho, a mobilidade e a intertecambialidade de trabalhadores, ou seja seu anonimato. Personagens próteses, prêt-àporter, descartáveis, os escravos tatuados, marcados, assim considerados pelos proprietários, perdiam a singularidade e tornavam-se os exilados da diferença. 14 Cf. Bourdieu "A crítica armada ou Mit den waffen der kritik" In: O campo econômico - A dimensão simbólica da dominação. Daniel Lins (org.) Campinas: Papirus, 2000, pp. 35-50 15 Cf. Jean-Thierry Maertes. Le dessein sur la peau. Paris: Aubier Montaigne, 1978, p. 31 156 REVISTA DEL CESLA No 2/2001 O imaginário do outro: o Índio "Nu e pintado" Ao ler a carta de Pero Vaz de Caminha, pode-se constatar que o que chama mais a atenção dos „descobridores” são os corpos nus e pintados dos índios. No dia 23 de abril de 1500, quinta feira, dia da chegada da frota, Caminha escreve: „Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes co16 brisse suas vergonhas”. Na sexta feira, dia 24, Caminha fala pela primeira vez dos „beiços furados”, no sábado, Caminha faz referência aos corpos pintados dos „nativos”: (...) aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques (quadriculados). Tudo indica que os membros da nau portuguesa não tenham visto, ao chegar, índios tatuados. Hoje, sabemos, muitos índios se tatuavam, notadamente os Tupi-guarani, os Munducuru etc. O comerciante francês Paulmier de Gonneville, que esteve no Brasil de 1503 a 1505, foi o primeiro a falar não de tatuagem, mas de escarificação: (...) lá se encontraram os índios rudes, nus como vindos do ventre da mãe (...); o corpo pintado, sobretudo de negro; lábios furados, os buracos guarnecidos de pedras verdes bem polidas e encaixadas; cortados em vários lugares da pele, aos lanhos, (canibais) para parecerem mais garbosos (...). Só em 1512, os índios da nação tupi foram vistos na França por Henri Estienne: Tem cor carregada e os lábios grossos, seus rostos são recortados de cicatrizes, dir-se-ia que algumas veias azuladas partem das orelhas para se encontrarem no queixo (Em meados do século XVI, e também no século XVII, era moda no meio grã-fino francês contratar índios como valetes ou domésticos). Claude D'Abbeville, no seu livro História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas (1614), conta que entre seis índios levados para a França, um tabajara tinha tatuagem "desde a sobrancelhas até os joelhos mais ou menos". Mas, antes de D'Abbeville, o jesuíta Fernão Cardim em seus Tratados da escreve: 16 A carta de Pero Vaz de Caminha. Volume 7 das Obras Completas de Jaime Cortesão. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994. Daniel Lins – A memória tatuada... 157 Dali a certos dias lhe dão o hábito, não do pelote, que ele não tem, senão na própria pele, sarrafaçando-o por todo o corpo com dente de cotia, que se parece com dente de coelho, o qual, assim por sua pouca sutileza, como por eles terem a pele dura, parece que rasgam um pergaminho, e se eles são animosos não lhe dão as riscas direitas, senão cruzadas, de maneira que ficam uns lavores muito primos, e alguns gemem e gritam com as dores. Acabado isto, tem carvão moído e sumo de erva-moura com que eles esfregam as riscas ao través, fazendo-as arreganhar e inchar, que é ainda maior tormento, e enquanto lhe saram as feridas que duram alguns dias, está ele deitado na rede sem falar nem pedir nada (...) Depois de sarar, passados muitos dias ou meses, se fazem grandes vinhos para ele tirar o dó e fazer o cabelo, que até ali não fez, e então se tinge de preto, e dali por diante fica habilitado para matar (...), vai-se para casa (...) e as mães com os meninos ao colo lhe dão parabéns, esteiam-no para a guerra, tingindo-lhe os braços com aquele sangue (...). Spix e Martius retratam no terceiro volume do livro Viagem pelo Brasil (1817-1820) o uso da tatuagem nos índios da tribo dos Munducuru. Urucum e jenipapo foram as principais matérias-primas usadas pelas nações indígenas para a fabricação de tintas que ornamentavam seus corpos. A pintura no corpo e a tatuagem marcavam os momentos mais importantes da vida social e religiosa de algumas etnias de índios brasileiros, sobretudo os Tupinambá, Tabajara, Cabila, Guarani e Bo-roro: nascimento, entrada na puberdade, rituais religiosos, danças sagradas, culinária, medicina, erotismo e, em alguns casos, canibalismo: (...) e mais generalizadas são os sinais feitos pela tatuagem, sobre tudo no rosto, que os pais começam a praticar já na primeira infância dos filhos, ferindo-lhes a pele com um feixe de espinhos de palmeira ou com um só deles e friccionando-a com o suco pardo do jenipapo ou do caruto (...), que produz uma tonalidade pardo-azulada, a qual transluz na epiderme e nunca mais se apaga. Daí resulta a mancha no rosto ou a malha (em tupi, sabákytam). A tatuagem fazia, por exemplo, parte do rito de passagem ou da iniciação na puberdade dos Gê, Tupi e Cabila. Já os Aueté e os Camarritura usavam a tatuagem como medicina ou magia com virtudes curativas. Os Cariba e os Guaná faziam da tatuagem um uso decorativo ou distintivo. A tatuagem, como decoração ou ornamento sexual, foi usada, notadamente, 17 pelos Guaná e os Cadiueu. Cada tatuagem tinha, pois, sua significação. Para os Bororo, uma boa cozinheira devia ter a mão tatuada. Mais ainda, a gastronomia bororo só 17 Cf. De Alencar Neto, Meton e Nava, José. Tatuagens e desenhos cicatriciais. Belo Horizonte: Edições MP 1966. 158 REVISTA DEL CESLA No 2/2001 atingia o ápice de sua qualidade de degustação quando preparada por uma mulher tatuada. O sabor funciona aqui como uma espécie de eco simbólico do erógeno dessa mulher e de seus comensais sobredeterminando o alimento, transformando-o de produto bruto em objeto de cultura. O discurso socioeconômico „selvagem” ou „primitivo” circula nas estruturas lingüísticas, e esta característica determina a inscrição tegumentar no seu modo de transmissão e nas suas formas. Assim, a utopia social e o erógeno individual se conjugam na realização do desenho chegando a ditálo, como na tatuagem dos Caduveo, as estruturas binárias e ternárias que o rupo procura impor entre clãs na repartição do território dos vilarejos. Na mesma perspectiva, a maior parte das tatuagens ditas selvagens ou primitivas são transmitidas por uma geração mais idosa à uma geração mais jovem, agindo assim numa continuidade repetitiva da inscrição do desejo parental sob a pele da criança, como se aqueles que vão viver devessem ser marcados pelo desejo dos que vão morrer. Por intermédio da tatuagem e da escariação o discurso é, ao pé da letra, incorporado, introduzido na pele, indissoluvelmente introjetado como uma memória tatuada. O século XX Evolução da tatuagem no século XX: marginalização, perda de sentido ou superposição de um imaginário negativo? A Segunda Guerra mundial cristaliza a negatividade da tatuagem ao associar, no imaginário coletivo, tatuagem e marcação (odiosas marcas de matriculação usadas pelos nazistas contra os judeus nos campos de concentração, as tatuagens indicavam o grupo sanguíneo do prisioneiro; já as marcações ao ferro rubro usadas pelas Volantes e por alguns cangaceiros, e sobretudo por José Baiano, nos anos 20, no sertão nordestino, contra "traidores" das Volantes, que marcaram e sua própria mãe, ou „mulheres inimigas”, exacerbaram a cultura da vingança18. Poderemos, nesse caso, falar de estigma: palavra grega designando uma injeção de ferro rubro (vermelho) ou uma injeção com um instrumento pontiagudo. Observe-se de passagem que as tatuagens ditas de fantasia provocaram, no contexto da Segunda Guerra mundial, uma vaga de „colecionismo”, particularmente perverso e mórbido: Ilse Koch fazia confeccionar em Buchenwald abat-jour (quebra-luz) fabricado com pele humana tatuada; um médico diretor de campos de concentração afirmou ter contemplado em Berlim as „mais belas peles humanas”. 18 Lins, Daniel. La passion selon Lampião - Le roi des Cangaceiros. Paris: Seuil, 1995 Daniel Lins – A memória tatuada... 159 Além de tais lapsos, existe uma prática mais caracterizada da inscrição corporal que assume seu caráter transgressivo: as tatuagens que apareceram na Europa desde o século XVIII ou talvez antes. Elas foram primeiro uma prática reduzida aos marinheiros, aos soldados e aos prisioneiros, quer dizer àqueles que estiveram em contato com os „primitivos" das colônias. Será que não houve na origem uma vontade de provocação da parte deles, consistindo a se assimilarem aos „selvagens”? Essa prática foi a seguir difundida em certos meios populares, mas sobretudo em indivíduos em situação de infração, malfeitores, prisioneiros e prostitutas. Até o meio do século XX, havia muitos tatuados nos hospitais psiquiátricos, semelhantes às tatuagens dos cárceres, e que por sinal, a maioria tinha sido feitas antes do internamento.19 Além dessa referência, a tatuagem européia evoca certamente a marca, a desonra, a tatuagem no ombro dos criminosos e dos escravos tradicionalmente marcada ao ferro rubro. Tatuagem: dissidência ou produção de um romantismo “bandido”? Em toda evidência, os temas das imagens tatuadas parecem contradizer em geral o imaginário da tatuagem como desafio, revolta ou dissidência, mesmo considerando que aqui e ali existe alguns exemplos de uso político da tatuagem. Os tatuados parecem sentir um certo prazer (diante da selvageria) em acordar o terror. Eles exibem suas marcas indeléveis como uma recusa definitiva de integração. Isso é verdadeiro, sobretudo em se tratando de inscrições que só se podem apagar com a morte de seu autor - desafio renovado de maneira fantástica pelos prisioneiros soviéticos, nos gulagues, que tatuaram na testa a inscrição: 'prisioneiro de Brejnev’'20 Mas, o que se vê em geral são efígies ou alegorias patrióticas que parecem dar um lugar importante à figura do pai: Napoleão, Foch, Pétain, de Gaulle estão muitas vezes presentes - em forma de tatuagem - no peito dos soldados, quando não é a Pátria („USA: I love You”!) a República („Bleu, blanc, rouge”, „Ordem e Progresso”) tatuadas nos peitos cabeludos de militares, marinheiros, prisioneiros etc. Ou ainda, o retorno a uma situação edipiana nem sempre bem resolvida: „Mamãe eu te amo!”; „Para minha querida mamãe!”; „Amor de mãe não se acaba”; „Amor só de mãe”; etc. A 19 Bruno C. Tatoués, qui êtes-vous... Bruxelas: Ed. Feynerolles, 1970. Elbin, Vincent. Corps décorés. Paris: Ed. Du Chêne, 1979; Belmont-Thélème. L'odyssée du tatouage. Les aspects sociologiques, psychologiques et pathologiques en 1980. Tese de Medicina, Lyon, 1980. 20 160 REVISTA DEL CESLA No 2/2001 Gioconda, A Primavera, de Botticelli, o assassinato de Henrique III, em síntese, os emblemas da grande pintura refratados na cultura popular aparecem também muitas vezes. Mas essas imagens estereotipadas constituem apenas um registro entre outros temas ditos „anti-sociais”: ”morte à polícia”;„coração de malandro”; „nem deus nem mestre”; „vingança”; „anda ou morre”; „a prisão espera por mim”; „não sofrer”. Ou a tatuagem de um túmulo com a inscrição resignada: „aqui a gente encontra a igualdade”. Símbolos de violência: um punhal, uma espada, um canhão, emblemas eróticos e outras manifestações de um humor provocador: „torneira do amor”, „experimente e compare” tatuada sobre o pênis.21 A aparição dos dermógrafos elétricos (lápis dermográfico, lápis especial usado na medicina para marcações na pele) no final do século XIX tornou a tatuagem menos dolorosa, foi sem dúvida um fator de extensão da tatuagem. Tatuagem e moda No século da comunicação, a tatuagem tornou-se um fato mediático: fenômeno de moda, ela é objeto de artigos dentro e fora das universidades européias e americanas e muito pouco no Brasil. Discussões sérias, aprofundadas são todavia raras. Tatuados célebres, que se ressentem confusamente como vítimas da ordem logocêntrica e que reagem numa contravenção espetacular do princípio cultural de integridade do corpo, são porém, até certo ponto, legitimadores de um ato cujos aspectos narcísicos estão evidentes: Winston Churchill e a Sra Franklin Roosevelt, Barry Goldwater, Harry Truman, J.F. Kennedy, Tito, Staline, Charles Trenet, Sean Connery, Robert de Niro etc. Na conferência de Yalta, Roosevelt, Staline e Churchill estavam tatuados: Churchill com uma âncora da marinha no braço, Roosevelt com um blasão de família no bíceps e Staline com uma cabeça de morte no peito. Mas, com a guerra de Indochina e Argélia, a tatuagem ganhou, sobretudo no meio militar francês, graduados e simples soldados, um lugar de destaque reinaugurando um imaginário positivo do eu-tatuado, do eu-pele. Assim, a marca corporal se perpetua na sociedade ocidental mas sob uma forma „vergonhosa”: ela não se mostra mais como tal, sob pena de opróbrio ou de ridículo, ela deve somente fazer efeito de enganação. Ela responde à nossa demanda de realidade, ela se afeta de natural e só é admitida sob o álibi da integridade do corpo que ela é suposta reconstituir. Dito de outra maneira, 21 Caruchet, William. Bas-fonds du crime et du tatouage. Mônaco: Ed. Rocher, 1981 Daniel Lins – A memória tatuada... 161 ela faz hoje o objeto do recalcamento cuja maquilagem, é um sintoma que pode tomar um caráter quase histérico. Ritual social, a tatuagem tornou-se, no século XX, um signo individual, com exceção de algumas comunidades ditas alternativas onde se conserva um valor iniciático de vinculação com um grupo. Mas o que resta da tatuagem, uma vez perdidos os valores mágicos, religiosos e sociais? Resta a dimensão estética, diria. Mesmo se em si, essa dimensão trás pouca informação sobre o indivíduo tatuado: quer dizer o caráter indispensável de uma abordagem antropológica e notadamente esquizoanalítica, como maneira de aprofundar as motivações secretas de cada um, de um ato que, por ter-se tornado individual, existe, porém, desde o tempo em que o homem tem uma história. Se é preciso não limitar o estudo da tatuagem a um psicologismoapressado, nem reduzi-lo à uma única interpretação psicanalítica, seria triste colocá-la numa estrutura retirando da tatuagem suas múltiplas relações e produções subjetivas. Seja como for a imposição de uma marca é hoje excepcional e só se aplica àqueles inseridos num determinado estatuto ou que, por rebelião individual, seriam tentados a refutar a ordem social. Mas, com o nascimento da democracia, o princípio de integridade corporal vai encontrar novas justificações ideológicas, novas produções de subjetividades capitalistas.