cadernos do pensamento crítico iv
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cadernos do pensamento crítico iv
Encarte Clacso Cadernos da América Latina IV Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO). Destinados à divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e Caribe, os primeiros números incluíram textos de Ruy Mauro Marini (Brasil), Agustín Cueva (Peru) e Álvaro García Linera (Bolívia). Proximamente se difundirão artigos de Pablo González Casanova (México), José Carlos Mariátegui (Peru), Florestan Fernandes (Brasil), René Zavaleta Mercado (Bolívia), Rodolfo Stavenhagen (México), Milton Santos (Brasil), Silvio Frondizi (Argentina), Gerard PierreCharles (Haiti), Aníbal Quijano (Peru), Juan Carlos Portantiero (Argentina) e Edelberto Torres Rivas (Guatemala), entre outros. Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-americano são publicados no jornal La Jornada do México e nos Le Monde Diplomatique da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai. CLACSO é uma rede de mais de 210 instituições que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 23 países: www.clacso.org Coordenação editorial: Emir Sader A construção de alternativas 1 Pablo González Casanova2 A s crenças do pensamento conservador mais culto em nenhum caso têm deixado de dia logar e coexistir com as novas ciências. E mais: nos projetos de justiça social que não pretendem mudar, mas sim conservar o sistema capitalista, a união do pensamento neoconservador e das novas ciências é indiscutível. Nas medidas de “justiça social”, reconhece formas de adaptação do sistema e de suas mediações. O importante é que dessa união do pensamento conservador e das novas ciências se destacam também experiências que são particularmente úteis na busca e construção de alternativas. A construção de alternativas por objetivos não só pressupõe compreender, incluir ou intuir os paradigmas das tecnociências e das novas ciências, mas também considerar estas como parte da atual lógica do poder contra o qual se luta e no qual se luta. A vinculação entre as tecnociências e a lógica do poder contém filões riquíssimos, sobretudo quando se pensa que qualquer projeto alternativo tem como prioridade um projeto de justiça social e que também o sistema dominante possui importantes experiências na construção de seus próprios projetos de justiça social e na utilização dos projetos alternativos para políticas de “desestabilização” contra os governos que os empregam. As experiências dos projetos de justiça social delineiam algumas dificuldades que as forças alternativas confrontam quando procuram construir um sistema em que as desigualdades sociais diminuam ou se desvaneçam o máximo possível. As dificuldades aparecem na história das políticas trabalhistas do Estado de bem-estar social ou socialdemocratas, nas do socialismo de Estado ou comunistas e nas populistas ou do nacionalismo revolucionário. Elas se dão em formas que variam de um país para outro e que são significativamente distintas nos países do centro e da periferia do mundo, pois nesta suas características mais adversas tendem a se acentuar. De qualquer forma, os projetos de “justiça social” delineiam dois tipos de contradições que os modelos de desestabilização registram com as categorias das novas ciências: um é a ameaça à acumulação de excedente e à ordem estabelecida do poder, isto é, ao “sistema”, que se deve adaptar ao contexto e se rees- truturar, ou adaptar-se e reestruturar o contexto. Esse primeiro tipo de contradição (que na linguagem sistêmica é considerado um “desequilíbrio”, ou “desajuste” ou “conflito) no pensamento crítico marxista redescobre-se hoje nos interesses comuns de classe que unem os empresários, os proprietários e suas forças político-militares de apoio contra as forças e políticas que ameaçam sua propriedade e seu poder, que eles têm de mediatizar, cooptar, corromper, desarticular, debilitar ou destruir. Esse primeiro tipo de contradição corresponde ao que no capitalismo clássico se colocou como uma luta entre os trabalhadores e proprietários. Em épocas recentes derivou em uma luta complexa que articula e redefine o conjunto do poder e da economia, da produção de valor e da distribuição e transferência do excedente nas empresas e nas regiões, entre os complexos, as classes, os estratos, e estes com elementos “marginalizados” ou “excluídos”. De todo modo, os interesses de classe aparecem com clareza quando um movimento social ameaça a apropriação do excedente, a acumulação da propriedade e o domínio de meios de produção e insumo, de comercialização e especulação; ou o poder e seus beneficiários. encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III O segundo tipo de contradições, de desajustes, desequilíbrios ou conflitos é o que se dá no interior das forças alternativas e que os modelos de desestabilização utilizam de uma maneira muito mais sistemática e eficiente que o pensamento conservador tradicional e sua arte de empregar provocadores, ou de dividir para vencer com uma notável variedade de técnicas de manipulação e debilitação e destruição, que aparecem nas doutrinas, nos guias e nas memórias dos políticos e dos militares conservadores, particularmente quando enfrentam rebeliões e insurgências; mas também quando desenvolvem processos de expansão, conquista, anexação e integração3. O problema tem sido abordado ao longo do pensamento revolucionário e sua expressão mais famosa, a das “contradições no seio do povo”. Aparece também nas reflexões sobre a formação de frentes e “blocos históricos” que unem forças para lutar e construir um sistema alternativo ou uma política de transição. Para o pensamento conservador e para o alternativo, os modelos de “desestabilização” e “guerra de baixa intensidade”, que provêm das novas ciências, são fundamentais para o pensar-fazer dos atores sociais. Estes podem se aproximar das novas ciências por meio dos modelos de desestabilização e de guerra, do conhecimento teórico e prático desses modelos. Em um nível de compreensão mais concreto – ou abstrato –, necessitam conhecer o papel que desempenha seu próprio comportamento nos computadores e as formas em que está prevista a redefinição de cada um dos atores nas telas. A possibilidade de novas criações históricas não previstas nos modelos é parte fundamental da possibilidade teórico-prática da mudança histórica e da continuidade da história. Mas essa “criação” de uma história nova se faz com uma imaginação-ação que parte da história comum e das “narrativas” da imaginação-ação. Em um livro notável, Marcur Olson, da Universidade de Harvard, registra as condições objetivas que dificultam a imposição da racionalidade coletiva do “interesse geral” e do “bem comum”. Em sua opinião, essas dificuldades convalidam “a opção racional” que leva os indivíduos ou grupos de indivíduos a favorecer seus interesses particulares. O livro de Olson inscreve-se na ideologia conservadora; mas não é só ideologia. Considera também a racionalidade com que as forças dominantes asseguram e fortalecem seus domínios e interesses, e o domínio que alcançam sobre as classes subalternas, sobre as nações, os Estados, as empresas, os mercados e os recursos naturais. O livro de Olson intitula-se A lógica da ação coletiva: bens públicos e teoria dos grupos4. Nele não aparece a lógica das ciências da complexidade, mas sim a lógica conservadora que as usa. O sistema dominante – segundo Olson – distingue três atores principais aos quais hierarquiza por sua maior ou menor “inclusão” e classifica de: grupos “privilegiados”, grupos “intermediários” e grupos “latentes” ou marginalizados e excluídos. As teses principais de Olson são duas: 1) qualquer “bem público” ou “interesse geral” requer uma tripla política de “incentivos”, de “coerção” e de “repressão”; 2) devem-se criticar, por serem “idealistas”, os projetos alternativos de caráter “pluralista” ou “anarquista”, pois é impossível que os “grupos latentes” (ou as vítimas, os marginalizados e excluídos do sistema) por si sós, ou associados aos “grupos intermediários” de “trabalhadores organizados manuais e intelectuais”, ou as “vanguardas” radicais, “organizemse para uma ação coordenada [...] tão-somente porque têm uma razão para fazê-lo”. A posição de Olson é conservadora; mas é exata na expressão de seu “realismo”, do materialismo sem alternativa próprio dos conservadores. Está equivocada – como os conservadores – ao pressupor que não há alternativa; que outro mundo não é possível. Jürgen Habermas5 propõe, ao contrário, um caminho acertado, mas truncado, para lutar pela solução dos problemas humanos: com a visão liberal e conservadora da democracia, sustenta a que chama democracia processual ou “democracia dos procedimentos”, mediante a qual os povos tomam e tornam efetivas as decisões que superam o particularismo e encontram os interesses que os unem em meio à diversidade. Mas, se Habermas tem razão ao privilegiar o diálogo e os procedimentos intercomunicativos para a tomada de decisões e ao enfrentar a lógica dos procedimentos à razão instrumental, ou à “sobrecarga ética” das elites que representam o bem, ou à sobrecarga estatista das posições liberais e suas demandas de eficiência administrativa na solução dos problemas sociais, e – poderíamos acrescentar – às posições revolucionárias que pensam em termos de reforma ou de tomada do poder, ele, ao contrário continua atribuindo uma sobrecarga à política dialogal e ao “poder gerado pela comunicação”, sem incluir os problemas evidentes da lógica da segurança das comunidades e dos povos em face da “guerra interna” e “de baixa intensidade”, ou os problemas da luta pela moral pública e com ela em face das “ações cívicas” ou “humanitárias” dos exércitos e das oligarquias que cooptam e corrompem, e frente às políticas clientelistas dos líderes e grupos que rompem a unidade de classes e de comunidades com concessões especiais, paternalistas, humanitárias, também corruptoras. Em todo caso, o caminho que propõe Habermas é explorado com as práticas que resolvem a mais ampla problemática de resolver os conflitos internos por meio do “orçamento participativo” brasileiro e dos municípios autônomos zapatistas. Mas Olson nos interessa porque descobre – como conservador – as mesmas contradições evidentes que os novos movimentos sociais descobrem a partir de sua libertação, a partir de sua autonomia, como rebeldes e insurgentes em busca de uma alternativa democrática e social ou socialista. Olson equivoca-se como bom conservador ao não ver alternativa ao mundo em que vivemos; ao não descobrir que outro mundo é possível. Mas ao mesmo tempo assinala com “realismo” os problemas evidentes das contradições no seio dos povos, dos trabalhadores e dos cidadãos. Habermas, os brasileiros e os zapatistas – entre outros – descobrem como resolver pacificamente a distribuição de recursos escassos pelas próprias comunidades, vilas ou bairros. Olson reforça e comprova sua tese sobre a necessidade da violência em qualquer política redistributiva. Invoca a história do movimento operário, particularmente nos Estados Unidos. Poderia confirmá-la também com a história da União Soviética e de sua “sociedade informal”, como o fez Larissa Lomnitz6, ou com a história dos regimes socialdemocratas, nacionalista-revolucionários, populistas e com a imensa maioria dos comunistas. E mais: a tese de Olson se confirma ao vermos a forma como a tripla política de “incentivos”, “coerção” e “repressão” é aproveitada pelas forças conservadoras para debilitar e destruir as forças democráticas, de libertação e socialistas. As forças conservadoras estudam as contradições dos povos para manipulá-los. O clientelismo tende a surgir em qualquer governo popular, democrático, socialista que busque planejar e construir uma política eqüitativa em uma sociedade de recursos escassos. O radicalismo superior às forças de que se dispõe tende a surgir em qualquer movimento contestatório ou insurgente. O oportunismo e a negociação ou aliança com concessões de “princípio” e que debilitam as forças para alcançar os objetivos a que se propõe um movimento democrático, libertador ou socialista causam estragos tão graves quanto a cooptação e a corrupção de indivíduos e grupos do movimento. Ao impulso que as forças conservadoras dão a esse fenômeno acrescentam-se os que induzem os representantes e governos a usar e abusar dos “incentivos econômicos” que Che critica e da “coerção” e “repressão” que derivam em ditaduras “populistas” ou “proletárias”, de novas oligarquias com seus chefes e burocracias. Impedir essas contradições o máximo possível implica uma política de conjunto em que Cuba se destaca. A necessidade de estudar a experiência cubana em matéria de contradições “internas” e “externas”, de intraclasse ou de interclasse, vai muito além de qualquer idealismo ou exercício retórico. A partir de um delineamento teórico em que se reconheça que todas as soluções são contraditórias e que todas as contradições entram em processos de negociação, é fundamental esclarecer como Cuba conseguiu, em ambos os fenômenos, soluções e negociações que mantêm e renovam a luta pela democracia, pela libertação e pelo socialismo. Em qualquer movimento libertador, democrático e socialista aparecem coincidências e rupturas dialéticas entre o pensamento mais ou menos radical dos participantes. A solução para as lutas internas dá-se em meio a conflitos e negociações, enfrentamentos e acordos, agressões e diálogos. As coincidências dialéticas ativam-se quando os movimentos começam a construir um regime, uma sociedade, uma cultura ou uma política alternativa, democrática, redistributiva, descolonizadora. Nesse momento, os movimentos deparam-se com problemas parecidos com os que enfrentam os governos conservadores e liberais nas reformas sociais que lhes impõem os trabalhistas, os socialdemocratas e que, na história chamada pós-colonial, lhes impuseram os governos nacionalistas, populistas, desenvolvimentistas. Sindicatos ou governos “reformistas” ou “revolucionários” descobrem “a necessidade implícita da coerção nas tentativas de prover bens coletivos a grandes grupos”7. A violência repressiva acompanha os movimentos alternativos inclusive quando estes reconhecem direitos como o de associação e de greve. A lógica da resistência e da sobrevivência leva-os a organizar-se para enfrentar a violência externa e interna, contra o povo e “dentro do povo”. Não vêem alternativa. O problema complica-se em muitos Estados socialdemocratas ou populistas porque os sindicatos de trabalhadores são enfrentados por sindicatos pelegos e, para manter a unidade sindical, os líderes e seus grupos de apoio recorrem a coações como a “cláusula de exclusão”. Os grupos de apoio formam clientelas que gozam de benefícios especiais com préstimos e empregos. Os dissidentes são excluídos da comunidade e do emprego. Os problemas agravam-se quando a pobreza é maior e a população de pobres é mais numerosa. Há menos para repartir e mais a quem repartir. Os sistemas de clientelas operam com grupos reduzidos encabeçados por seus respectivos líderes. Uns e outros se vêem mais expostos à repressão ou à cooptação e à corrupção compartilhada. As bases do informal e do desigual ressurgem na própria alternativa com racionalizações que dão oportunidade à autodestruição dos movimentos trabalhistas, libertários ou de luta por justiça dos “países de acumulação” e dos “países periféricos”. Todos os membros das organizações operárias, camponesas ou populares convencem-se de que não se obtêm concessões maiores ou salários mais altos à base de pura persuasão moral ou jurídica. Os pronunciamentos nesse sentido são abundantíssimos. Já em 1891, Henry George escreveu ao papa: “As organizações operárias não podem fazer nada para aumentar os salários senão pela força; necessitam coagir ou ter o poder para coagir os empregadores; necessitam coagir aqueles que entre seus membros estejam dispostos a lutar; devem fazer todo o possível para ter em suas mãos todo o campo de trabalho que querem ocupar e forçar outros trabalhadores para que se juntem a eles ou morram de fome. Aqueles que falam em persuasões morais e nada mais a um dos sindicatos empenhados em aumentar seus salários se parecem com os que disseram que os tigres se alimentam de laranjas”8. O problema da disciplina interna e da aplicação de sanções adquire características ainda mais sérias quando os movimentos sociais, políticos e revolucionários chegam ao poder, tomam o poder ou constroem o poder e confrontam as contradições dos direitos humanos como justiça social, como democracia e como libertação de nações, povos e indivíduos. Nesse terreno, as experiências de Cuba também são notáveis, e a propaganda contra elas uma das maiores infâmias de homens de boa-fé e má-fé9. Os problemas da cooptação e da repressão, da corrupção e do autoritarismo, do ultra-esquerdismo e do oportunismo requerem mais que a censura e o castigo, esforços combinados de contenção e regulação que dependem da disciplina e da autodisciplina, do sentido da vida e dos valores e da pedagogia desses valores e desse sentido, com um reforço sistemático da relação ou igualação das palavras com as ações. Todos os movimentos e governos que lutam pelos trabalhadores, por uma democracia universal, pelo socialismo e pelo comunismo, pela libertação das colônias formais e informais deparam-se com o problema da formação de grupos de apoio que exigem concessões especiais e são suscetíveis de cooptações e corrupções. Essas polêmicas e experiências se dão nas organizações dos trabalhadores, nas organizações dos povos e das nações, e nas organizações dos cidadãos. Os “cidadãos” inserem-se em sistemas de mediação e cooptação individual e de clientelismo que operam nas eleições, nos partidos e nos postos de representação popular, assim como nos parlamentos ou nos governos locais, provinciais e nacionais dirigidos por um ou mais de um partido. De qualquer forma, indivíduos e grupos hegemônicos fixam as normas da seleção de representantes e de concessionários privilegiados. A experiência torna-se mais dramática quanto maior for a proporção de população não organizada e quanto maior for sua pobreza, sua exclusão, sua marginalização, sua exploração e desapossamento. O problema não se dá apenas com os “incentivos”, mas também com a “coerção” e a “repressão”. Aos “incentivos” legais, e que se dotam segundo regras universais, acrescentam-se os incentivos clientelistas e populistas que se enquadram nas leis com aplicações a grupos privilegiados em função de parentescos, vizinhanças, grupos étnicos etc., ou que ficam no campo do ilegal com companhias coletivas e individuais. Com a “coerção” e a “repressão” ocorre algo semelhante: há uma que se dá com regras universais, e nesse caso sua legitimidade depende de que a imensa maioria da população as torne suas na legislação e na aplicação, e há formas de “coerção” e “repressão” que nem por serem legais perdem seu caráter autoritário e em que a “ilegalidade” acentua o problema de forma crítica. Em um e outro caso, à legitimidade que dá a essas medidas o apoio universal da comunidade em que se aplicam acrescenta-se outro problema relacionado com a pedagogia universal dos direitos humanos e suas contradições na história do capitalismo, do colonialismo, do imperialismo e do socialismo de Estado. Só se enfrenta a possibilidade de manipular esses direitos como propaganda desqualificadora do inimigo com uma pedagogia que se comprometa com esses direitos expressando seu valor e que lute por exercê-los de forma concreta e em situações específicas, sabendo que a solução sempre será contraditória e que nela cada ator coletivo ou individual terá de assumir uma posição responsável. O problema pode derivar em processos contra-revolucionários, particularistas, nos quais o discurso da ação coletiva e do interesse geral – democrático, socialista, patriótico – se torne cada vez mais incoerente, acrescentando à violência lógica as contradições do formal e do informal, da ética solidária que se apregoa e da que se pratica, paternalista ou populista; da representação social que atua e manda sem obedecer aos representados nas ações de “concessão”, de coerção” e “repressão” que se exercem. Nesses processos, povos e governos parecem regressar aos pontos de partida, só que lutando agora contra seus exploradores e opressores tradicionais e também contra os que se somaram a eles saídos das próprias fileiras das “vítimas”, das organizações de cidadãos pobres, de trabalhadores superexplorados e excluídos, de “condenados da terra”, de movimentos de povos colonizados. Aos antigos opressores somam-se os libertadores cooptados e corrompidos, que não tomam as decisões com consulta e apoio das bases e resolvem as contradições internas sem que as bases tornem suas as soluções, por mais contraditórias que sejam. Os processos regressivos levam à formação de grupos e líderes privilegiados que se inserem nos setores médios e nas máfias, elites e oligarquias ampliadas. Em nosso tempo, esses processos levam à recolonização transnacional e globalizadora em que se combinam as dívidas adquiridas com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, com os golpes militares e de corpos de elite treinados nas escolas especiais da guerra suja, ou com os políticos modernos das “universidades de excelência” que realizam a transição para uma democracia das minorias, com a “liberdade de comércio” considerada essência da liberdade humana, e com as corporações e complexos militar-industrial-financeiros reconhecidos como os verdadeiros soberanos. O problema adquire novas características para os movimentos alternativos que se encontram em processo de formação desde fins do século XX e para os que aplicam de forma crescente a “guerra de baixa intensidade” e suas táticas de reestruturação do Estado global tanto na periferia quanto no centro do mundo. As coincidências e diferenças entre o sistema dominante e o sistema alternativo delineiam-se de maneira distinta com uma guerra que inclui a negociação e com um neoliberalismo que inclui a guerra. O debate sobre as alternativas se vê obrigado a superar as propostas maniqueístas como “reforma ou revolução”, “luta pacífica ou luta violenta”, “participação no poder do Estado ou tomada do poder do Estado”, “estatismo ou sociedade civil”. O projeto alternativo delineia a todo momento, de uma maneira ainda incipiente, as simpatias e diferenças de “um movimento feito de muitos movimentos”. As que parecem coincidências com o projeto democrático e com o projeto reformista são diferenças com o novo projeto de democracia. Nenhuma negociação deve negociar os princípios. Nenhuma deve renunciar ou subtrair força à autonomia das organizações e das pessoas. O projeto busca construir espaços com reformas que aumentem a autonomia e satisfaçam as demandas de grupos que não são particularistas nem discriminatórios ou excludentes. Em face das reformas e das revoluções – ou com elas –, postula a construção de forças autônomas em todos os territórios e setores, nas organizações e nas redes, ao mesmo tempo que a luta contra o autoritarismo, contra a repressão e contra a cooptação dos movimentos alternativos e de seus dirigentes delineia a organização desde a base de núcleos e redes, de povos, trabalhadores, cidadãos organizados que sejam capazes de contribuir para a resistência e construção das al- ternativas, com uma política-moral articulada aos procedimentos para a tomada de decisões e para a monitoração e auditoria pública das ações dos governos cidadãos. Essa organização redefine as relações dos dirigentes e seus grupos de apoio com base no diálogo que encontra os pontos de consenso e de interesse geral no debate regulado. A luta de classes não aparece só como uma luta entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores, mas também na medida em que as demandas dos cidadãos, dos povos e dos trabalhadores afetam os interesses das classes e complexos dominantes. As contradições necessárias em que incorrem os movimentos são objeto de uma pedagogia-políticomoral que, no caso da América Latina, tem sua máxima expressão em Cuba, nos movimentos populares dos “Sem-Terra” e do Partido dos Trabalhadores no Brasil, e na insurgência dos povos indígenas do Equador e do México, país em que se destacam os “zapatistas” como autores intelectuais e políticos da nova organização social e moral e do sentido geral de uma história que tem como projeto mínimo “não morrer de joelhos” e como projeto máximo um que una as lutas pela democracia, pela libertação e pelo socialismo com as lutas por autonomia dos povos e das pessoas, e todas com respeito a suas crenças, culturas, religiões, gostos e a sua participação na redefinição dos direitos universais10. Depois do “período especial”, da queda do bloco soviético, Cuba redefiniu o sentido de suas lutas e, de última revolução do período anterior, passou a ser a primeira do novo período: suas contribuições teórico-práticas ao triunfo do projeto democrático, libertador e socialista enriqueceram-se com a ênfase crescente na democracia processual e participativa e com o controle das novas contradições a que deu lugar o impulso do turismo em uma ampla zona dolarizada que requer uma política muito difícil e original contra os perigos de restauração psicológica e cultural consumista que essa zona representa. O Brasil contribui para o processo com a redefinição do Partido dos Trabalhadores, que não é apenas um partido eleitoral e parte do sistema político do Estado, mas também um partido sociocultural, capaz de organizar, a partir da base, novos governos coletivos que tomem decisões na distribuição do excedente orçamentário. As contradições desse partido, dos governos que encabeça, e das soluções que encaminha são de interesse universal11. Os zapatistas e os povos indígenas redelineiam a redefinição de mundo e da sociedade a partir de suas comunidades, sua cultura e sua exclusão para construir alternativas que nem no curto nem no médio prazo propõem a tomada do poder do Estado ou a participação nos aparelhos governamentais, mas sim os pressiona enquanto as comunidades e redes de comunidades constroem suas autonomias, indígenas e não-indígenas, potencialmente nacionais, regionais, globais, dispostas também a opor – com o mundo – a resistência às novas empresas colonizadoras do imperialismo associado. A contribuição dos zapatistas aos novos movimentos sociais tem uma influência e um reconhecimento universais. À radicalização e expansão dos novos movimentos alternativos acrescentam-se reformulações cada vez mais agressivas do neoliberalismo de guerra. A nova guerra, decretada pelos Estados Unidos em setembro de 2001, envolve em escala mundial os modelos da guerra de baixa intensidade. Os movimentos alternativos adquirem consciência crescente – e têm cada vez mais informação oficial a esse respeito – e um pensamento crítico que radicaliza suas propostas alternativas12. Sabem que a guerra de baixa intensidade não só inclui as ações militares, mas também encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III as de diálogo e negociação; não só as de repressão, mas também as de “ação cívica”; não só as de terrorismo estatal ou paraestatal, mas também as de cooptação, negociação e corrupção de líderes e grupos de base; não só as de guerra com desalojamentos e massacres coletivos, mas também as de guerra psicológica e viral, bioquímica e “humanitária”, que acabe com a saúde, a consciência e a vontade de indivíduos e coletividades, com sua coerência e sua perseverança, e até com sua existência. O problema do genocídio e do ecocídio se coloca com crescente gravidade no campo dos fatos e no campo do direito. Em meio a um quadro mundial de intimidação e terror, em que as forças dominantes se negam a perguntar-se sobre a verdadeira forma de acabar com o terrorismo, que não é outra senão a mudança política negociada do capitalismo para o socialismo democrático que respeita a soberania e a autonomia de todos os povos e pessoas, as tecnociências da propaganda e da guerra psicológica anunciam um Império do Terror no mundo, encabeçado pelo complexo militar-empresarial dos Estados Unidos. Invocam Deus de forma ameaçadora e apresentam-se como representantes do Bem contra o Mal, apoiados nos mais avançados aparatos de guerra. Esquecem tudo o que as novas ciências têm de positivo e criador e se fiam numa retórica falsamente newtoniana de que o livre mercado é uma lei natural da economia, e o “Deus” que eles invocam a base de uma nova guerra de conquista patológica que “pode acabar com a humanidade sem acabar com eles” (!). Seu comportamento é idêntico ao de todos os impérios decadentes que estão a ponto de morrer. O que os diferencia é o perigo óbvio de que eles mesmos desapareçam destruídos pelas armas que construíram para destruir os demais13. As forças alternativas buscam redefinir a inteligência humana como uma inteligência capaz de superar a inteligência artificial e a irracional. Ao fazê-lo, por onde quer que incursionem encontram a democracia, o socialismo e a libertação como o único caminho para dar um sentido realmente humanista às novas ciências e às tecnociências. A solução vai além do ideológico e das posições particulares. Corresponde a uma posição em que o humanismo só se po- de realizar como democracia, como libertação e como socialismo. Nessa composição ou complexo, a autopoiesis ou criação de novas relações sociais tem um atrativo geral: uma democracia organizada em que a moral pública triunfe diante de todas as tentativas de intimidação, corrupção e cooptação do neoliberalismo e da “ação cívica” que manipula a “guerra de baixa intensidade” como nova tirania, como novo imperialismo e como um novo capitalismo autodestrutivo. A criação das relações sociais de uma democracia organizada, com o poder dos povos para decidir em matéria de políticas econômicas, modos de dominação e apropriação, modelos de solução de conflitos e alcance de consensos, novos modelos de produção e consumo, é um problema complexo de redefinição das relações de dominação e acumulação. Exige a organização do poder e os procedimentos intercomunicativos para a tomada de decisões pelos povos, pelos trabalhadores, pelos cidadãos em uma economia que elimine a obtenção e maximização de lucros para o investimento e o gasto. Exige respeito às autonomias do pensar, do crer e do fazer dentro do respeito geral que na prática define e redefine os interesses universais. Nessa prática, o conhecimento das novas ciências e das tecnociências, o das grandes lutas pela libertação dos povos, dos trabalhadores e dos indivíduos, e o da narrativa e do diálogo de cada povo, trabalhador e pessoa, podem assentar as bases de uma meta principal: negociar com o capitalismo para que ele se desestruture sem destruir a humanidade, sabendo que sua única alternativa a essa proposta é que o capitalismo se destrua destruindo a humanidade. A vitória dos seres humanos é possível assim como lutar por ela com toda a herança do pensamento crítico e do pensamento tecnocientífico, sabendo que não haverá soluções sem contradições, nem contradições sem negociações, nem lutas que defrontem a democracia, a libertação e o socialismo em vez de combinálas e articulá-las com as prioridades, ênfases e adaptações que os tempos e as forças exijam. Uns darão mais importância a um objetivo, outros a outro, mas todos em uniões crescentes, e não necessariamente lineares, de cidadãos, trabalhadores e povos. 1 Pablo González Casanova nasceu em Toluca, México (1922). Doutor pela Universidade de Paris com estudos de especialização em sociologia. Diretor do Centro de Investigações Interdisciplinares em Humanidades (UNAM). Foi reitor da UNAM e presidente em dois períodos da Associação Latino-americana de Sociologia (ALAS). Conjugou sua carreira acadêmica com um ativo compromisso político junto aos movimentos sociais e outros setores da esquerda latino-americana. Autor, entre outras obras, Sociologia da exploração (1969); Imperialismo e liberação na América Latina (1978); A democracia no México (1984); em coautoria com Marcos Roitman, As Democracias na América Latina. Atualidade e perspectivas (1995). 2 Trecho do livro As novas ciências e as humanidades: da academia à política, sua última obra (São Paulo: Boitempo Editorial, 2006. Traduzido por Mouzar Benedito). 3 Harry Howe Ramson, “Covert intervention”, em Peter J. Schraeder (Ed.), Intervention into the 1990s, cit., p. 113-29; Peter J. Schraeder, “Paramilitary intervention”, em Intervention into the 1990s, cit., p. 131-51. 4 Ibidem, p. 65. 5 Jürgen Habermas, “Three normative models of democracy: liberal, republican, procedural”, em R. Kearney e M. Dooley (Eds.), Questioning ethics: debates in contemporary philosophy (Londres, Routledge, 1998, p. 135-44). 6 Larissa Adler Lomnitz, “Informal exchange networks in formal systems: a theoretical mode”, American Anthropologist, v. 90, n. 1, 1988, p. 42-55, e Redes sociales, cultura y poder: ensayos de antropología latinoamericana (México, Miguel Angel Porrúa-Flacso, 1994), p. 135-66. 7 Ibidem, p. 71. 8 Henry George, The condition of labor: an open letter to Pope Leo XIII (Nova York, United States Book Co., 1981), p. 86, cit. por Mancur Olson, The logic of collective action, cit., p. 71. 9 Richard Falk, Human rights horizons: the pursuit of justice in a globalizing world (Nova York, Routledge, 2000); Fidel Castro, “Intervención en la sesión plenaria de la 105ª Conferencia de la Unión Interparlamentaria Mundial”, Havana, 5 abr. 2001. 10 Atilio Boron, “La selva y la polis: reflexiones en torno a la teoría política del zapatismo”, Observatorio Social de América Latina, n. 4, jun. 2001; Pablo González Casanova, “Causas de la rebelión en Chiapas”, Política y Sociedad, Madri, n. 17, set.-dez. 1994, p. 8394; idem, “Los zapatistas del siglo XXI”, Observatorio Social de América Latina, n. 4, jun. 2001, p. 1 e 13; idem, na internet, ALAI, <http://alainet.org>, 9 de abril de 2001; idem, no Observatorio Social de América Latina, jun. 2001; Yvon Le Bot, Subcomandante Marcos: el sueño zapatista (Barcelona, Plaza y Janés, 1997); Luis Hernández Navarro, Los comunicados de Marcos, detrás de nosotros estamos ustedes (México, Plaza y Janés, 2000); Neil Harvey, La rebelión de Chiapas: la lucha por la tierra y la democracia (México, Era, 2000); Maya Lorena Pérez Ruiz e Marcelo Quezada, EZLN: la utopía armada: una visión plural del movimiento zapatista (La Paz, Plural Editores, 1998); Maya Lorena Pérez Ruiz, “¡Todos somos zapatistas! Alianzas y rupturas entre el EZLN y las organizaciones indígenas”, tese de doutorado, México, UAM-Iztapalapa, 2000; Subcomandante Marcos, Desde las montañas del sureste mexicano: cuentos, leyendas y otras postdatas del Sup Marcos (México, Plaza y Janés, 1999). 11 Ubiratan de Sousa, “Le budget participatif: l’expérience du Rio Grande do Sul”, Alternatives Sud, v. VIII, n. 2, 2001; Boaventura de Sousa Santos, “Orçamento participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva”, em idem (Org.), Democratizar a democracia, cit., p. 455-559. 12 Giovanni Arrighi, Terence K. Hopkins e Immanuel Wallerstein, Antisystemic movements (Londres, Verso, 1989). 13 Rémy Herrera et al., L’empire en guerre: le monde après le 11 Septembre, cit. Manifesto liminar da reforma universitária A juventude argentina de Córdoba aos homens livres da América do Sul1 H omens de uma república livre, acabamos de romper o último grilhão que em pleno sécu lo XX nos atava à antiga dominação monár quica e monástica. Resolvemos chamar a todas as coisas pelo nome que têm. Córdoba se redime. Desde hoje contamos para o país uma vergonha a menos e uma liberdade a mais. As dores que nos restam são as liberdades que nos faltam. Acreditamos não equivocar-nos, as ressonâncias do coração nos advertem: estamos pisando em uma revolução, estamos vivendo uma hora americana. A rebeldia explode agora em Córdoba e é violenta, porque aqui os tiranos se haviam tornado soberbos e porque era necessário apagar para sempre a recordação dos contra-revolucionários de Maio. As universidades foram até aqui o refúgio secular dos medíocres, a renda dos ignorantes, a hospitalidade segura dos inválidos e – o que é pior ainda – o lugar em que todas as formas de tiranizar e de insensibilizar encontraram a cátedra que as ditasse. As universidades chegaram a ser assim o reflexo fiel destas sociedades decadentes que se empenham em oferecer o triste espetáculo de uma imobilidade senil. É por isso que a Ciência, frente a estas casas mudas e fechadas, passa silenciosa ou entra mutilada e grotesca ao serviço burocrático. Quando em um arroubo fugaz abre suas portas aos altos espíritos é para em seguida arrepender-se e tornar impossível a vida no seu recinto. É por isso que, dentro desse tipo de regime, as forças naturais levar a medriocrizar o ensino e a ampliação vital dos organismos universitários não é fruto de desenvolvimento orgânico, mas o alento à periodicidade revolucionária. Nosso regime universitário – mesmo o mais recente – é anacrônico. Está fundado em uma espécie de direito divino: o direito divino do professorado universitário. Nele nasce e morre. Mantém um distanciamento olímpico. A Federação Universitária de Córdoba se levanta para lutar contra esse regime e entende que nisso joga sua vida. Reivindica um governo estritamente democrático e reitera que o demos universitário, a soberania, o direito a eleger seu próprio governo radica principalmente nos estudantes. O conceito real de Autoridade que corresponde e acompanha a um diretor ou a um professor em uma casa de estudantes universitários, não pode se apoiar somente na força de disciplinas estranhas à própria substância dos estudos. A autoridade em uma casa de estudantes, não é exercida mandando, mas sugerindo e amando: Ensinando. Se não existe uma vinculação espiritual entre quem ensina e quem aprende, todo ensino se torna hostil e, portanto, infecundo. Toda a educação é uma longa obra de amor aos que aprendem. Fundar a garantia de uma paz fecunda no artigo autoritário que define um regulamento ou um estatuto é, em todos os casos, amparar um regime de quartel, mas não um trabalho de Ciência. Manter a atual relação de governantes a governados é agitar o fermento de futuros transtornos. As almas dos jovens devem ser movidas por forças espirituais. Os desgastados mecanismos de autoridade que emanam da força não são compatíveis com o que reivindica o sentimento e o conceito moderno das universidades. O ruído do látego só pode legitimar o silêncio dos inconscientes ou dos covardes. A simples atitude silenciosa, que cabe em um instituto de Ciência é a de quem escuta uma verdade ou a de quem pensa para criá-la ou comprová-la. Por isso queremos arrancar pela raiz da organização universitária o arcaico e bárbaro conceito de Autoridade que nestas Casas é um baluarte de absurda tirania e só serve para proteger criminalmente a falsadignidade e a falsa-competência. Agora advertimos que a recente reforma, sinceramente liberal, realizada na Universidade de Córdoba por Dr. José Nicolás Matienzo, só confirma que o mal era mais aflitivo do que nós imaginávamos e que os antigos privilégios dissimulavam um estado de avançada decomposição. A reforma Matienzo não inaugurou uma democracia universitária; consolidou o predomínio de uma casta de professores. Os interesses criados em torno dos medíocres encontrou nela um inesperado apoio. Somos acusados de insurretos em nome de uma ordem que não discutimos, mas que nada tem a ver conosco. Se as coisas são assim, em nome da ordem querem seguir nos enganando e embrutecendo, proclamamos bem alto o direito sagrado à insurreição. Então a única porta que nos resta aberta para a esperança é o destino heróico da juventude. O sacrifício é nosso melhor estímulo; a redenção espiritual das juventudes americanas nossa única recompensa, pois sabemos que nossas verdades são – dolorosas – de todo o continente. Que em nosso país uma lei – se diz –, a de Avellaneda, se opõe as nossas vontades. Então vamos reformar a lei, que nossa saúde moral o está exigindo. A juventude vive sempre no espírito do heroísmo. É desinteressada, é pura; Não teve tempo ainda de se contaminar. Não se equivoca nunca na escolha de seus próprios Mestres. Diante dos jovens não se consegue mérito bajulando ou comprando. É preciso deixar que eles mesmos escolham seus Mestres e diretores, seguros de que o acerto haverá de coroar suas determinações. Daqui para frente só poderão ser Mestres na futura república universitária os verdadeiros construtores de alma, os criadores de verdade, de beleza e do bem. A juventude universitária de Córdoba acredita que chegou a hora de colocar este grave problema à consideração do país e de seus homens representativos. Os acontecimentos sucedidos recentemente na Universidade de Córdoba, por ocasião da eleição para Reitor, esclarecem singularmente nossa razão de agrupar muito logo sob sua bandeira a todos os homens livres do continente. Referiremos os acontecimentos para que se veja a vergonha nos jogou no rosto a covardia e a perfídia dos reacionários. Os atos de violência, dos quais nos responsabilizamos integralmente, se cumpriam como no exercício de simples idéias. Contornamos o que representa um levantamento anacrônico e o fizemos para poder levantar pelo menos o coração sobre essas ruínas. Aqueles representam também a medida de nossa indignação na presença da miséria moral, da simulação e do engano maroto que pretendia infiltrar-se com as aparências da legalidade. O sentido moral estava obscurecido nas classes dirigentes por um farisaísmo tradicional e por uma pavorosa indigência de ideais. O espetáculo que oferecia a Assembléia Universitária era repugnante. Grupos amorais desejosos de conquistar a boa vontade do futuro reitor exploravam os contornos na primeira votação, para inclinar-se logo ao bando que parecia assegurar o triunfo, sem recordar a adesão publicamente empenhada no compromisso de honra contraído pelos interesses da Universidade. Outros – a maioria – em nome do sentimento religioso e sob a jurisdição da Companhia de Jesus, exortavam à traição e ao pronunciamento subalterno. (Curiosa religião que ensina a menosprezar a honra e a deprimir a personalidade! Religião para vencidos ou para escravos!) Tinha se conseguido uma reforma liberal mediante o sacrifício heróico de uma juventude. Acreditava-se ter conquistado uma garantia e da garantia se apoderavam os únicos inimigos da reforma. Na sombra dos jesuítas haviam preparado o triunfo de uma profunda imoralidade. Consentir com isso teria significado outra traição. À burla respondemos com a revolução. A maioria expressava a soma da repressão, da ignorância e do vício. Então demos a única lição que cabia e espantamos para sempre a ameaça do domínio clerical. A sanção moral é nossa. O direito também. Eles puderam obter a sanção jurídica, apoiar-se na lei. Nós não lhes permitimos. Antes que iniqüidade fosse um ato jurídico, irrevogável e completo, nos apoderamos do Salão do Conselho e expulsamos a canalha, que somente se amedrontou nesse momento, dos claustros. Para saber que é certo, basta saber que em seguida, em sessão na própria Sala de Conferências da Federação Universitária e de ter assinado mil estudantes na própria mesa do reitor, a declaração de greve indefinida. De fato, os estatutos reformados dispõem que a eleição de reitor terminará em uma única sessão, proclamando-se o resultado, depois da leitura de cada uma das cédulas e aprovação da respectiva ata. Afirmamos sem temor de ser retificados, que as cédulas não foram lidas, que a ata não foi aprovada, que o reitor não foi proclamado e que, portanto, para a lei, não existe ainda reitor desta universidade. A juventude universitária de Córdoba afirma que nunca fez questão de nomes, nem de empregos. Levantou-se contra um regime administrativo, contra um método docente, contra um conceito de autoridade. As funções públicas se exerciam em benefício de determinadas camarilhas. Não se reformavam nem planos, nem regulamentos por temor de que alguém nas mudanças pudesse perder seu emprego. O lema “hoje para você, amanha para mim”, corria de boca em boca e assumia o papel de estatuto universitário. Os métodos docentes estavam viciados por um estreito dogmatismo, contribuindo para manter a Universidade distanciada da Ciência e das disciplinas modernas. As aulas, encerrados na repetição interminável de velhos textos, amparavam o espírito de rotina e de submissão. Os corpos universitários, cuidadosos guardiões dos dogmas, tratavam de manter enclausurada a juventude, acreditando que a conspiração do silêncio pode ser exercida contra a Ciência. Foi então que a obscura Universidade fechou suas portas a Ferri, a Ferrero, a Palacios e a outros, diante do tremer de que fosse perturbada sua plácida ignorância. Fizemos então uma santa revolução e o regime caiu diante dos nossos golpes. Acreditamos, honradamente, que nosso esforço havia criado algo novo, que pelo menos a elevação de nossos ideais merecia algum respeito. Assombrados, contemplamos então como se coligavam para arrebatar nossa conquista os mais descarnados reacionários. Não podemos deixar entregue nossa sorte nas mãos da tirania de uma seita religiosa, nem o jogo de interesses egoístas. Querem que sejamos sacrificados em função deles. Aquele que se intitula reitor da Universidade de São Carlos disse sua primeira palavra: “prefiro antes que renunciar, que fique coberta de cadáveres dos estudantes”. Palavras cheias de piedade e de amor, de reverencial respeito à disciplina; palavras dignas do chefe de uma casa de altos estudos. Não invoca ideais, nem propósitos de ação cultural. Sente-se custodiado pela força e se levanta soberbo e ameaçador. Harmoniosa lição que acaba de dar à juventude do primeiro cidadão de uma democracia universitária! Acolhamos a lição, companheiro de toda a América; talvez tenha o sentido de um presságio glorioso, a virtude de uma convocação à luta suprema pela liberdade; ela nos mostra o verdadeiro caráter da autoridade universitária, tirânica e obsessiva, que vê em cada petição uma ofensa e em cada pensamento uma semente de rebelião. A juventude já não pede. Exige que seja reconhecido seu direito a exteriorizar esse pensamento próprio dos corpos universitários por meio de seus representantes. Está cansada de suportar aos tiranos. Se foi capaz de realizar uma revolução nas consciências, não pode ser desconhecida sua capacidade de intervir no governo de sua própria casa. A juventude universitária de Córdoba, por intermédio de sua Federação, saúda aos companheiros de toda a América e os convida a colaborar na construção da liberdade que se inicia. 21 de junho de 1918. Enrique F. Barros, Horacio Valdés, Ismael C. Bordabehere, presidente. Gurmensindo Sayago, Alfredo Castellanos, Luis M. Méndez, Jorge L. Bazante, Ceferino Garzón Maceda, Julio Molina, Carlos Suárez Pinto, Emilio R. Biagosch, Angel J. Nigro, Natalio J. Saibene, Antonio Medina Allende, Ernesto Garzón. 1 Manifesto da Federação Universitária de Córdoba – 1918. encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III A reforma universitária tas e agentes mais entusiasmados da unidade política da América Latina são, em grande medida, os antigos líderes da reforma universitária que conservam dessa maneira sua vinculação continental, outro dos sinais da realidade da “nova geração”. 1 Por José Carlos Mariátegui2 Ideologia e reivindicações O movimento estudantil, que se iniciou com a luta dos estudantes de Córdoba pela re forma da universidade, assinala o nasci mento da nova geração latino-americana. A inteligente compilação de documentos da reforma universitária na América Latina feita por Gabriel del Mazo, obedecendo a uma encomenda da Federación Universitaria de Buenos Aires, oferece uma série de testemunhos genuínos da unidade espiritual desse movimento.3 O processo de agitação universitária na Argentina, Uruguai, Chile, Peru etc. remete-se à mesma origem e ao mesmo impulso. A faísca da agitação é quase sempre um incidente secundário; mas a força com que o propaga e dirige vem desse estado de ânimo, dessa corrente de idéias que se designa – não sem risco de equívocos – com o nome de “novo espírito”. Por isso, a ânsia da reforma apresenta-se, com características idênticas, em todas as universidades latino-americanas. Os estudantes de toda a América Latina, ainda que levados à luta por protestos peculiares de sua própria vida, parecem falar a mesma linguagem. Da mesma maneira, esse movimento apresenta-se intimamente conectado com a vigorosa agitação do pós-guerra.4 As esperanças messiânicas, os sentimentos revolucionários, as paixões místicas próprias do pós-guerra, repercutiam particularmente na juventude universitária da América Latina. O conceito difuso e urgente de que o mundo entrava em um novo ciclo despertava nos jovens a ambição de cumprir uma função heróica e realizar uma obra histórica. E, como é natural, na constatação de todos os vícios e falhas do regime econômico social vigente, a vontade e o desejo de renovação encontravam estímulos poderosos. A crise mundial convidava os povos latino-americanos, com uma urgência insólita, a revisar e resolver seus problemas de organização e crescimento. Logicamente, a nova geração sentia esses problemas com uma intensidade e uma paixão que as gerações anteriores não tinham conhecido. E enquanto a atitude das gerações passadas, como correspondia ao ritmo de sua época, tinha sido evolucionista – às vezes um evolucionismo completamente passivo – a atitude da nova geração era espontaneamente revolucionária. A ideologia do movimento estudantil careceu, no começo, de homogeneidade e autonomia. Refletia em demasia a influência da corrente wilsoniana.5 As ilusões democrático-liberais e pacifistas que a prédica de Wilson pôs em moda em 1918-1919 circulavam entre a juventude latino-americana como se fosse uma boa moeda revolucionária. Esse fenômeno se explica perfeitamente. Também na Europa, não apenas as esquerdas burguesas como também os velhos partidos socialistas reformistas aceitaram como novas as idéias democrático-liberais eloqüente e apostolicamente remoçadas pelo presidente estadunidense. Apenas com a colaboração cada dia mais estreita com os sindicatos operários, com a experiência de combate contra as forças conservadoras e a crítica concreta dos interesses e princípios em que se apóia a ordem estabelecida, é que as vanguardas universitárias podiam alcançar uma orientação ideológica definida. Essa é a opinião dos mais autorizados porta-vozes da nova geração estudantil, a julgar pelas origens e as conseqüências da luta pela reforma. Todos concordam que esse movimento, que mal acaba de for- mular seus programas, ainda estava muito longe de se propor objetivos exclusivamente universitários e que, por sua relação estreita e crescente com o avanço das classes trabalhadoras e a diminuição dos velhos privilégios econômicos, não pode ser entendido se não como um dos aspectos de uma profunda renovação latino-americana. Dessa maneira, Palcos, aceitando integralmente as conseqüências últimas da luta travada, sustenta que, enquanto o atual sistema social subsistir, a reforma não poderá tocar nas raízes recônditas do problema educacional. Terá alcançado seu objetivo – agrega – se depura as universidades dos maus professores, que usam seu posto como um emprego burocrático; se permitir – como acontece em outros países – que tenham acesso ao professorado todos aqueles que sejam capazes de sê-lo, sem excluí-los por suas convicções sociais, políticas ou filosóficas; se neutralizar em parte, no mínimo, o chauvinismo e fomentar nos educandos o hábito das pesquisas e o sentimento da própria responsabilidade. No melhor dos casos, a reforma realmente entendida e aplicada pode contribuir para evitar que a universidade seja, como é fato, em todos os países, como o foi na própria Rússia – país onde havia, entretanto, como em nenhuma outra parte, uma intelectualidade avançada que na hora da ação sabotou escandalosamente a revolução – uma Bastilha da reação, esforçando-se para ganhar as alturas do século.6 Não são rigorosamente coincidentes – e isso é lógico – as diferentes interpretações do significado do movimento. Mas, com exceção das provenientes do setor reacionário, interessado em limitar o alcance da reforma, circunscrevendo-a à universidade e ao ensino, todas as que se inspiram sinceramente em seus verdadeiros ideais a definem como afirmação do “espírito novo”, entendido como espírito revolucionário. Desde seus pontos de vista filosóficos, Ripa Alberdi se inclinava a considerar essa afirmação como uma vitória do idealismo novecentista sobre o positivismo do século 19. “O renascimento do espírito argentino – dizia – foi feito por virtude das gerações mais jovens, que ao cruzar pelos campos da filosofia contemporânea sentiram diante de si o esvoaçar das asas da liberdade”. Mas o próprio Ripa Alberdi percebia que o objeto da reforma era capacitar a universidade para o cumprimento “dessa função social que é a própria razão de sua existência”.7 Júlio V. Gonzáles, que reuniu em dois volumes seus escritos da campanha universitária, chega a conclusões mais precisas: “A reforma universitária – escreve – registra o aparecimento de uma nova geração que chega desvinculada da anterior, que traz sensibilidades diferentes e ideais próprios e uma diferente missão a cumprir. Não é aquela um fato simples ou isolado, se tal fora; está vinculada na razão de causa e efeito com os últimos acontecimentos do qual nosso país foi o teatro, como conseqüência dos produzidos no mundo. Significaria incorrer em uma apreciação errônea até o absurdo considerar a reforma universitária como um problema das salas de aula e, ainda assim, radicar toda sua importância nos efeitos que pudesse ter exclusivamente nos círculos de cultura. Erro semelhante levaria, sem remédio, a uma solução do problema que não corresponderia à realidade do que está colocado. Digamos então claramente: a reforma universitária é parte de uma questão que o desenvolvimento material e moral de nossa sociedade impôs à raiz da crise produzida pela guerra”.8 Gonzáles assinala em seguida a guerra européia, a revolução russa e a chegada ao poder do radicalismo como os fatores decisivos da reforma na Argentina. José Luis Lanuza indica outro fator: a evolução da classe média. A maioria dos estudantes pertence a todas as graduações dessa classe. Muito bem. Uma das conseqüências sociais e econômicas da guerra é a proletarização da classe média. Lanuza defende a seguinte tese: Um movimento estudantil coletivo de projeções sociais tão vastas como a reforma universitária não poderia ter irrompido antes da guerra européia. A necessidade de renovar os métodos de estudo era sentida, e ficava claro o atraso da universidade diante das correntes contemporâneas do pensamento universal desde a época de Alberdi, na qual começa a se desenvolver nossa embrionária indústria. Mas então a classe média universitária mantinha-se tranqüila com seus títulos de privilégio. Infelizmente para ela, essa folga diminui na medida em que cresce a grande indústria, se acelera a diferenciação das classes e acontece a proletarização dos intelectuais. Os professores, os jornalistas e empregados do comércio se organizam sindicalmente. Os estudantes não podiam escapar desse movimento geral.9 Mariano Hurtado de Mendoza concorda substancialmente com as observações de Lanuza. A reforma universitária – escreve – é antes de mais nada e, sobretudo um fenômeno social que é o resultado de outro mais geral e extenso, produzido como conseqüência do grau de desenvolvimento econômico da nossa sociedade. Seria então um erro estudá-la unicamente por sua cara universitária, como problema de renovação da direção da universidade, ou por sua cara pedagógica, como ensaio de aplicação de novos métodos de pesquisa para aquisição da cultura. Também incorreríamos em erro se a considerássemos como o resultado exclusivo de uma corrente de idéias novas provocadas pela grande guerra e pela Revolução Russa, ou como a obra da nova geração que ‘chega desvinculada da anterior, que traz sensibilidade nova e ideais próprios e uma diferente missão a cumprir’. E, precisando seu conceito, agrega mais adiante: A reforma universitária não é mais que uma conseqüência do fenômeno geral de proletarização da classe média que obrigatoriamente acontece quando uma sociedade capitalista chega a determinadas condições de seu desenvolvimento econômico. Isto significa que se produz na nossa sociedade o fenômeno da proletarização da classe média e que a universidade, quase totalmente povoada por esta, foi a primeira a sofrer seus efeitos, porque era o tipo ideal de instituição capitalista.10 Um fato uniformemente observado no calor da reforma foi o da formação de núcleos de estudantes que, em estreita solidariedade com o proletariado, se entregaram à difusão de idéias sociais avançadas e ao estudo das teorias marxistas. O surgimento das universidades populares, concebidas com um conceito muito diferente do que inspirava em outras épocas as tímidas tentativas de extensão universitária, aconteceu em toda a América Latina numa coincidência visível com o movimento estudantil. Saíram da universidade, em todos os países latino-americanos, grupos de estudiosos de economia e sociologia que colocaram seus conhecimentos a serviço do proletariado, dotando este, em alguns países, de uma direção intelectual da qual geralmente careciam antes. Finalmente, os propagandis- Quando se confronta esse fenômeno com o das universidades da China e do Japão, comprova-se sua rigorosa justificação histórica. No Japão, a universidade foi a primeira cátedra do socialismo. Na China, por razões óbvias, teve uma função ainda mais ativa na formação de uma nova consciência nacional. Os estudantes chineses compõem a vanguarda do movimento nacionalista revolucionário que, dando nova alma e nova organização à imensa nação asiática, lhe assegura uma influência considerável nos destinos do mundo. Sobre esse ponto concordam os observadores ocidentais com autoridade intelectual mais reconhecida. Mas não proponho, aqui, estudar todas as conseqüências e relações da reforma universitária com os grandes problemas da evolução política da América Latina. Constatada a solidariedade do movimento estudantil com o movimento histórico geral desses povos, tratemos de examinar e definir seus traços próprios e específicos. Quais são as propostas ou postulados fundamentais da reforma? O Congresso Internacional de Estudantes do México, de 1921, propugnou: 1º a participação dos estudantes no governo das universidades; 2º a implantação da docência livre e assistência livre. Os estudantes do Chile declararam sua adesão aos seguintes princípios: 1º autonomia da universidade, entendida como instituição dos alunos, professores e diplomados; 2º reforma do sistema docente, mediante o estabelecimento da docência livre e, como conseqüência, livre assistência dos alunos às cátedras, de maneira que, no caso de dois professores ensinarem a mesma matéria, a preferência do alunado consagre o melhor; 3º revisão dos métodos e do conteúdo dos estudos; e 4º extensão universitária, vista como meio de vinculação efetiva da universidade com a vida social. Os estudantes de Cuba formularam, em 1923, da seguinte forma suas reivindicações: a) uma verdadeira democracia universitária; b) uma verdadeira renovação pedagógica e científica; c) uma verdadeira popularização do ensino. Os estudantes da Colômbia exigiram, em seu programa de 1924, a organização da universidade sobre bases de independência, de participação dos estudantes em seu governo e de novos métodos de trabalho. “Que ao lado da cátedra – diz esse programa – funcione o seminário, sejam abertos cursos especiais e se criem revistas. Que ao lado do professor titular existam professores agregados e que a carreira do magistério exista sobre bases que assegurem seu futuro e dêem acesso a quantos sejam capazes de ter uma cadeira na universidade”. Os estudantes de vanguarda da universidade de Lima, leais aos princípios proclamados em 1919 e 1923, sustentaram em 1926 as seguintes plataformas: defesa da autonomia das universidades; participação dos estudantes na direção e orientação de suas respectivas universidades ou escolas especiais; direito de voto dos estudantes na eleição dos reitores das universidades; voto de honra dos estudantes no provisionamento das cátedras; incorporação à universidade dos valores extra-universitários; socialização da cultura: universidades populares etc. Os princípios sustentados pelos estudantes argentinos são, provavelmente, mais conhecidos, por sua extensa influência no movimento estudantil da América desde seu primeiro enunciado na Universidade de Córdoba. Praticamente, além disso, são, em grandes traços, os mesmos que proclamam os estudantes das demais universidades latino-americanas. O resultado dessa rápida revisão é que devem ser colocados como postulados cardeais da reforma universitária: 1º a intervenção dos alunos no gover- no das universidades e 2º o funcionamento de cátedras livres, ao lado das oficiais, com direitos idênticos, ocupadas por professores de capacidade reconhecida na matéria. O sentido e a origem dessas duas reivindicações nos ajudam a esclarecer o significado da reforma. Política e ensino universitário na América Latina O regime econômico e político determinado pelo predomínio das aristocracias coloniais – que ainda subsiste em alguns países hispano-americanos, ainda que em dissolução progressiva e irreparável – colocou por muito tempo as universidades da América Latina sob a tutela dessas oligarquias e de sua clientela. Convertido o ensino universitário em um privilégio do dinheiro, se não da casta, ou pelo menos de uma categoria social absolutamente ligada aos interesses de uma ou outra, as universidades tiveram inevitavelmente uma tendência para a burocratização acadêmica. Esse era um destino do qual não podiam escapar nem mesmo sob a influência episódica de alguma personalidade de exceção. O objetivo das universidades parecia ser, principalmente, o de prover doutores e rábulas para a classe dominante. O desenvolvimento incipiente e o mísero alcance da educação pública fechavam os graus superiores do ensino para as classes pobres (O próprio ensino elementar não chegava – como ainda não chega agora – se não a uma parte do povo.) As universidades, açambarcadas intelectual e materialmente por uma casta geralmente desprovida do impulso criador, não podiam nem mesmo aspirar a uma função mais alta de formação e seleção de capacidades. Sua burocratização as conduzia, de modo fatal, ao empobrecimento espiritual e científico. Esse não era um fenômeno exclusivo nem peculiar do Peru. Entre nós prolongou-se mais pela sobrevivência obstinada de uma estrutura econômica semifeudal. Mas, mesmo nos países que se industrializaram e democratizaram mais rapidamente, como a república Argentina, foi na universidade onde chegou mais tarde essa corrente de progresso e transformação. O Dr. Florentino V. Sanguinetti assim resumiu a história da Universidade de Buenos Aires antes da reforma: “Durante a primeira parte da vida argentina, moveu modestas iniciativas de cultura e formou núcleos urbanos que proporcionou à sua elite o pensamento da unidade política e da ordem institucional. Sua provisão científica era muito escassa, mas bastava para as necessidades do meio e para impor as conquistas lentas e surdas do gênio civil. Afirmada mais tarde nossa organização nacional, a universidade aristocrática e conservadora criou um novo tipo social: o doutor. Os doutores constituíram o patriciado da segunda república, substituindo pouco a pouco as dragonas e os caciques rurais no manejo dos negócios, mas saíam das classes sem a hierarquia intelectual necessária para agir de modo orgânico no ensino ou para dirigir o improvisado despertar das riquezas proporcionadas pelos pampas e pelo trópico. No decorrer dos últimos cinqüenta anos, nossa nobreza agropecuária foi deslocada, primeiro, do campo econômico pela concorrência progressista do imigrante, tecnicamente mais capaz; e, depois, do campo político pelo surgimento dos partidos de classe média. Necessitando então de um cenário para manter sua influência, apoderou-se da universidade que logo virou um órgão de casta, cujos diretores vitalícios se revezavam nos cargos de maior destaque e cujos docentes, escolhidos por recrutamento hereditário, impuseram uma verdadeira servidão educacional de marca estreita e sem infiltrações renovadoras”.11 O movimento da reforma tinha logicamente que atacar, antes de mais nada, essa estratificação conservadora das universidades. O preenchimento arbitrário das cátedras, a manutenção de professores ineptos, da exclusão do ensino dos intelectuais independentes e renovadores, apresentavam-se claramente como simples conseqüências da docência oligárquica. Esses vícios não podiam ser combatidos a não ser por meio da intervenção dos estudantes no governo das universidades e pelo estabelecimento da cátedra e da assistência livres, destinadas a assegurar a eliminação dos maus professores através de uma concorrência leal com os homens mais aptos para exercer seu magistério. Toda a história da reforma invariavelmente registra estas duas reações das oligarquias conservadoras: 1º sua solidariedade recalcitrante para com os professores incompetentes, rejeitados pelos alunos, quando havia um interesse familiar oligárquico; e 2º sua resistência, não menos tenaz, à incorporação à docência de valores não universitários ou simplesmente independentes. As duas reivindicações substantivas da reforma resultaram assim inconfundivelmente dialéticas, pois não partem de concepções doutrinárias puras, mas simplesmente das lições reais e concretas da ação estudantil. A maioria dos docentes adotou uma atitude de intransigência rígida e impermeável contra os grandes princípios da reforma universitária, o primeiro dos quais tinha sido proclamado teoricamente desde o Congresso Estudantil de Montevidéu e, tanto na Argentina quanto no Peru, conseguiram o reconhecimento oficial devido a circunstâncias políticas favoráveis, que, quando se modificaram, levaram ao início, por parte dos elementos conservadores da docência, de um movimento de reação, que, no Peru, já anulou praticamente todos os triunfos da reforma, enquanto na Argentina encontra a oposição vigilante do alunado, como se demonstra com as agitações recentes contra as tentativas reacionárias. Mas a realização dos ideais da reforma não é possível sem a total e leal aceitação dos dois princípios aqui esclarecidos. O voto dos alunos – ainda que não esteja destinado senão a servir de contraponto moral da política dos professores – é o único impulso de vida, o elemento de progresso isolado da universidade, sem o qual, por outro lado, prevaleceriam sem remédio as forças da estagnação e da regressão. Sem essa premissa, o segundo postulado da reforma – as cátedras livres – não pode absolutamente ser alcançado. Mais ainda, o “recrutamento hereditário”, de que nos fala com exatidão tão evidente o Dr. Sanguinetti, volta a ser o sistema de recrutamento dos novos catedráticos. E o próprio progresso científico perde seu estímulo principal, já que nada empobrece tanto o nível de ensino e da ciência do que a burocratização oligárquica. 1 Trecho do livro Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, traduzido por Felipe José Lindoso, a ser lançado brevemente por CLACSO e Expressão Popular. 2 José Carlos Mariátegui (1894 - 1930) Jornalista, escritor indigenista e marxista peruano. Impulsionou a fundação da Confederação Geral de Trabalhadores do Peru e fundou o Partido Comunista Peruano. Editor de várias revistas operárias e da revista Amauta. 3 Publicações do Círculo Médico Argentino e Centro de Estudiantes de Medicina. La reforma universitaria, 6 tomos, 1926-1927. 4 I Guerra Mundial. (N.T.) 5 Refere-se ao presidente Wilson, dos EUA, que lançou a idéia da Liga das Nações como meio de resolver conflitos e promover a paz e a “felicidade dos povos”. (N.T.) 6 La reforma universitaria, tomo I, p. 55. 7 Idem, p. 44. 8 Idem, pp. 38 e 86. 9 Idem, p. 125. 10 Idem, p. 130. 11 Idem, pp. 140-141. encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III Novidades Editoriais Clacso América Latina: cidade, campo e turismo. A Pobreza do Estado O novo desafio imperial Reconsiderando o papel do Estado na luta contra a pobreza global Amália Lemos, Alberto Cimadamore, Mônica Arroyo e Hartley Dean e Leo Panitch e Maria Silveira Jorge Siqueira Colin Leys Num período no qual uma profusão de A pobreza tem estado presente em toda Inovadores ensaios acerca do caráter singular metáforas sobre a realidade pretende a história da humanidade. do novo império estadunidense e acerca da substituir os conceitos centrais da Porém, na atualidade existem os recursos nova economia do imperialismo desenvolvem Geografia, um enfoque substantivo para erradicar a pobreza extrema e desafiam teorias marxistas. Dentre muitos faz-se, mais que nunca, necessário para em um lapso razoável. Os discursos temas, estes ensaios exploram a invasão do repensar nossas teorias e formulas novas predominantes nas organizações Iraque, a moralidade do assim chamado interpretações. A pobreza e a injustiça não internacionais, os governos e os povos humanismo militar por trás dela, os fatos param de crescer na América Latina. expressam a necessidade e a vontade que relativos ao poder militar e planejamento Reverter essa situação pede nosso aparentemente existe para erradicar a estratégico estadunidense, a dependência dos compromisso com a análise da história pobreza. Quais são os fatores que estão EUA do petróleo importado, o imperialismo passada e presente e com a imaginação impedindo o sucesso de uma meta tão ambiental, e as contradições entre globalização de caminhos para o futuro. amplamente aceita? e desenvolvimento na nova ordem imperial. www.expressaopopular.com.br Biblioteca Virtual Clacso Com o objetivo de promover e facilitar o acesso aos resultados das pesquisas dos Centros Membros via Internet, o CLACSO oferece livre acesso à sua Biblioteca Virtual de Ciências Sociais, que recebe por mês mais de 300.000 consultas de textos. 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