USP Universidade de São Paulo Reitor

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USP Universidade de São Paulo Reitor
Universidade de São Paulo
USP
Reitor:
Vice-Reitor:
Prof. Dr. João Grandino Rodas
Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
FFLCH
Diretora:
Vice-Diretor:
Prof. Dr. Sergio França Adorno de Abreu
Prof. Dr. Modesto Florenzano
Conselho Deliberativo do CITRAT
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DLM
DL
DLO
DTLLC
Ieda Maria Alves (titular)
Mariângela de Araújo (suplente)
João Azenha Júnior (titular)
Tinka Reichmann (suplente)
Paulo Chagas de Souza (titular)
Antonio Vicente Seraphim Pietroforte (suplente)
Elena Nikolaevna Vassina (titular)
Mona Mohamad Hawi (suplente)
Marcus Vinicius Mazzari (titular)
Samuel de Vasconcelos Titan Jr. (suplente)
Chefes dos Laboratórios de Tradutologia e Terminologia
Tradutologia Francis Henrik Aubert (titular)
Lenita Rimoli Esteves (suplente)
Terminologia Ieda Maria Alves (titular)
Mariângela de Araújo (suplente)
Diretoria do CITRAT
Diretora
Vice-Diretor
Comissão de Publicações
Presidente
Membros
Secretária
Monitor
Profª. Drª. Tinka Reichmann
Prof. Dr. João Azenha Júnior
Profª. Drª.
Profª. Drª.
Profª. Drª.
Profª. Drª.
Lineide do Lago Salvador Mosca
Elena Nikolaevna Vassina
Ieda Maria Alves
Tinka Reichmann
Sandra de Albuquerque Cunha
Renan Silva Garcia
Conselho Editorial
Adauri Brezolin (Centro Universitário Ibero-Americano)
Álvaro Hattnher (Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" – São José do Rio Preto)
Anna Maria Becker Macial (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - aposentada)
Armelle Le Bars (Université Paris 3 - Sorbonne Nouvelle)
Aurora F. Bernardini (Universidade de São Paulo)
Carlos Daghlian (Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" - São José do Rio Preto)
Cristiane Nord (Hochschule Magdeburg-Stendal, Alemanha)
Cleci Regina Bevilacgua (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Diva Cardoso de Camargo (Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" – São José do
Rio Preto)
Eloá Di Pierro Heise (Universidade de São Paulo)
Evandro Silva Martins (Universidade Federal de Uberlândia - aposentado)
Francis Henrik Aubert (Universidade de São Paulo)
Gilberto Pinheiro Passos (Universidade de São Paulo)
Gladis Barcellos Almeida (Universidade Federal de São Carlos)
Helmut Galle (Universidade de São Paulo)
Ieda Maria Alves (Universidade de São Paulo)
Iolanda Galanes Santos (Universidade de Vigo)
Isabelle Oliveira (Université Paris 3 - Sorbonne Nouvelle)
John Humbley (Université Paris 7)
John Milton (Universidade de São Paulo)
John Robert Schmitz (Universidade Estadual de Campinas)
Lauro Maia Amorim (Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" - São José do Rio
Preto)
Leila Darin (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Lidia de Almeida Barros (Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" - São José do Rio
Preto)
Lineide do Lago Salvador Mosca (Universidade de São Paulo)
Manoel Messias Alves da Silva (Universidade Estadual de Maringá)
Manuel Celio Conceição (Universidade do Algarve)
Márcia Martins (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
Márcia Pietrolongo (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Marcos Mazzari (Universidade de São Paulo)
Maria Aparecida Barbosa (Universidade de São Paulo)
Maria da Graça Krieger (Universidade do Vale do Rio dos Sinos)
Maria José Bocorny Finatto (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Maria Paula Frota (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
Maria Teresa Lino (Universidade Nova de Lisboa)
Mário Laranjeira (Universidade de São Paulo – aposentado)
Marisa Grigoletto (Universidade de São Paulo – aposentada)
Marlene Holzhausen (Universidade Federal da Bahia)
Masa Nomura (Universidade de São Paulo)
Nilce Pereira (Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" - São José do Rio Preto)
Odair Luiz Nadin da Silva (Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" - Araraquara)
Paulo Henriques Britto (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
Stella Esther Ortweiler Tagnin (Universidade de São Paulo)
Thomas Sträter (Heidelberg University)
Tony Berber Sardinha (Pontifícia Universidade Católica)
Vera Santiago Araújo (Universidade Estadual do Ceará)
Veronique Dahlet (Universidade de São Paulo)
Viviane Veras (Universidade Estadual de Campinas)
Pareceristas do presente número
Adauri Brezolin (Centro Universitário Ibero-Americano)
Adriana Zavaglia (Universidade de São Paulo)
Alvaro Caretta (Universidade Federal de São Paulo)
Denise Sales (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Deusa Maria Passos (Universidade de São Paulo)
Dieli Vesaro Palma (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Elena Vassina (Universidade de São Paulo)
Flavio Aguiar (Universidade de São Paulo)
João Azenha Júnior (Universidade de São Paulo)
John Milton (Universidade de São Paulo)
Josely Teixeira Carlos (Doutoranda da Universidade de São Paulo)
Leila Darin (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Lenita Rimoli Esteves (Universidade de São Paulo)
Márcia Sipavicius Seide (Universidade Estadual do Oeste do Paraná)
Marcos Napolitano (Universidade de São Paulo)
Maria Sílvia Betti (Universidade de São Paulo)
Mariângela de Araújo (Universidade de São Paulo)
Marieta Prata de Lima Dias (Universidade Federal de Mato Grosso)
Mario Ramos Francisco Jr. (Universidade de São Paulo)
Marisa Grigoletto (Universidade de São Paulo)
Neusa Gonçalves Travaglia (Universidade Federal de Uberlândia)
Patricia de Jesus Carvalhinhos (Universidade de São Paulo)
Patrizia Collina Bastianetto (Universidade Federal de Minas Gerais)
Paulo Chagas de Souza (Universidade de São Paulo)
Renata Condi (Pontifícia Universidade Católica - SP)
Tito Livio Cruz Romão (Universidade Sagrado Coração)
Véronique Dahlet (Universidade de São Paulo)
Viviana Bosi (Universidade de São Paulo)
Viviane Veras (Universidade Estadual de Campinas)
Organizadora deste número
Profª. Draª. Lineide do Lago Salvador Mosca
Revisão: Vivian P. Arais Soares
Diagramação: Renan Silva Garcia
Endereço para correspondência
Comissão Editorial
Revista TradTerm – FFLCH/USP
Cx. Postal 72042 – CEP. 05508-900
Av. Prof. Luciano Gualberto 403 sala 267ª
São Paulo – SP – CEP: 05564-000 Brasil
Tel: (011) 3091-3764
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Sumário/Contents
Apresentação
08
Presentation
11
Artigos
Antropologia da civilização: um estudo da tradução para o inglês de
termos simples, expressões fixas e semifixas recorrentes em duas obras
de Darcy Ribeiro
Talita Serpa & Diva Cardoso de Camargo
14
A noção de equivalência e a sua especificidade na tradução
especializada
Maria Emília Pereira Chanut
43
Tecnologias de tradução: implicações éticas para a prática tradutória
Érika Nogueira de Andrade Stupiello
71
A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens) revisitada: um
novo olhar sobre a desverbalização
Reynaldo José Pagura
92
As novas traduções de Freud feitas diretamente do alemão: estilo e
terminologia
Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares
109
Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de Jean Paul
Sartre
Felipe Cabañas da Silva
127
O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia em diálogo
Beatriz Cabral Bastos
164
Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida por Elizabeth
Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista
188
Investigações sobre a construção do fitônimo CAPOEIRA: aspectos do
campo léxico-semântico e geolinguística indígenas
Carlos Alberto Rizzi
214
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 6-7
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A terminologia empregada aos criminosos e/ou infratores pela polícia
civil do Rio Grande do Sul
Maria Izabel Plath da Costa
248
O discurso do rei: tradução e poder
Terezinha Rivera Trifanovas
265
Video game localization: the case of Brazil
Ricardo Vinicius Ferraz de Souza
289
Acorde estrangeiro: representação e confrontos linguísticos na música
brasileira
Marly D’Amaro Blasques Tooge
327
Dados dos autores
346
Política Editorial
351
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 6-7
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APRESENTAÇÃO
É motivo de satisfação poder apresentar mais um número da Revista
TradTerm, para a qual temos recebido uma quantidade elevada de
contribuições. Com estas foi possível organizar não só este, como também o
próximo número da Revista.
No volume que ora trazemos a público tem-se inicialmente um bloco de
quatro artigos, agrupados em torno de temas relativos à teoria da tradução e
de alguns de seus problemas fundamentais:
O primeiro artigo, “Antropologia da civilização: um estudo da tradução
para o inglês de termos simples, expressões fixas e semifixas recorrentes em
duas obras de Darcy Ribeiro”, trata de reflexões de interesse da comunidade
científica em geral, bem como de sua correlação com os objetivos específicos
da revista.
Segue-se “A noção de equivalência e a sua especificidade na tradução
especializada”, artigo cuja proposta é investigar se a abordagem funcionalista
ou, particularmente, o emprego da “equivalência funcional” constitui um
procedimento mais adequado, em se tratando da tradução juramentada ou
jurídica.
O texto “Tecnologias da tradução: implicações éticas para a prática
tradutória” é de grande atualidade e relevância para a área dos Estudos da
Tradução, uma vez que toca as relações compreendidas no labor profissional
do tradutor, sobretudo no uso das novas tecnologias. É instigante por
estabelecer diálogo com os profissionais da área.
Completando esse bloco inicial, tem-se “A
Tradução
(Théorie
du
Sens)
revisitada:
Teoria
um
Interpretativa
novo
olhar
sobre
da
a
desverbalização”, que se propõe a revisitar a “teoria do sentido” de fins da
década de 60, trazendo o debate para esse legado.
Outro bloco temático reúne artigos referentes à tradução literária,
sendo dois deles diretamente ligados à Poesia e à Poética:
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 8-10
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9
“As novas traduções de Freud feitas diretamente do alemão: estilo e
terminologia”, cuja importância se estende a várias áreas das Ciências
Humanas, da Linguística à Psicanálise.
“Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de Jean Paul
Sartre” é uma matéria que, ao focalizar a retradução, faz avançar a discussão
a respeito do processo tradutório, a partir de aspectos já examinados,
enfatizando a ideia da necessidade da retradução, com base no fato de que
não há uma possibilidade única de tradução, mas uma entre várias.
O artigo “O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia em
diálogo” propõe colocar em debate algumas teorias sobre a tradução do texto
poético, isto é, sobre a tradução criativa, dentro da área maior de tradução
literária, apresentando a aplicação das teorias na prática tradutória, em que
a relação som/sentido é fundamental.
Ainda neste mesmo campo, o artigo “Poéticas em conflito: a literatura
brasileira traduzida por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais do
Brasil x EUA” procede ao exame da questão, unindo a perspectiva da Teoria
da Tradução aos estudos de Literatura Comparada, e aponta os diferentes
sistemas culturais implicados nos dois pontos em análise.
No campo da Terminologia, são apresentados dois artigos:
Em “Investigações sobre a construção do fitônimo CAPOEIRA: aspectos
do
campo
léxico-semântico
e
geolinguística
indígenas”
ressalta-se
a
apropriação do tema à Revista, assim como o ineditismo da abordagem e
minuciosa análise.
O artigo “A terminologia empregada aos criminosos e/ou infratores pela
polícia civil do Rio Grande do Sul” explicita o uso de algumas unidades
terminológicas da linguagem especializada, empregada por policiais gaúchos
para fazer referência ao sujeito acusado nas diversas etapas do processo
criminal. Por ser um objeto de estudo pouco investigado, cabe-lhe um lugar
na divulgação científica.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 8-10
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10
Um último bloco destina-se a tradução intersemiótica, com dois artigos
referentes
respectivamente
a
problemas
de
tradução
fílmica
e
de
videogames:
“O discurso do rei: tradução e poder” examina a construção de efeitos
de sentido na tradução da língua inglesa para a portuguesa do filme O discurso
do rei, em que afloram as características culturais típicas da realidade na
qual o tradutor vive, como marcas do imaginário coletivo do grupo social a
que pertence. São evidenciadas as interações comunicativas dos dois
protagonistas do filme em questão.
A seguir, o artigo “Video game localization: the case of Brazil” aborda
assunto relevante, mas pouco explorado nos estudos da tradução. Oferece
uma história do videogame, ao mesmo tempo que mostra as diferenças entre
as traduções de tipos de games diferentes.
Para finalizar o volume, tem-se o artigo “Acorde estrangeiro:
representação e confrontos linguísticos na música brasileira”, que toca
questões de identidade nacional em canções de nosso repertório musical,
apontando o espaço de tensão, constituído pela presença do “outro
estrangeiro”, ali representado.
Ficam aqui os nossos agradecimentos a todos os que colaboraram para a
execução deste volume, incluindo-se os autores, os pareceristas, o trabalho
de tradução inglês/português e português/inglês do Prof. Dr.John Milton, da
secretária do CITRAT, Sra. Sandra de Albuquerque Cunha, e do monitor Renan
Silva Garcia.
À Humanitas/FFLCH-USP, editora que tão valiosos serviços nos tem
prestado ao longo de todos esses anos, deixamos o nosso especial
agradecimento pelo empenho e atenção. Que a leitura seja proveitosa e
agradável a todos.
São Paulo, 27 de junho de 2012
Lineide Salvador Mosca
Presidente da Comissão de Publicações do CITRAT
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 8-10
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PRESENTATION
I am very pleased to present another issue of TradTerm, for which we
have received a large number of contributions, and we have used them to
organize not only this, but also the next issue of the journal.
The first section of this volume consists of four articles, grouped around
themes related to translation theory and some of its fundamental problems.
“Anthropology of civilization: a study of translation into English of recurring
simple terms and fixed and semi-fixed expressions in two works by Darcy
Ribeiro” makes comments of interest to the general scientific community, as
well as following the specific aims of TradTerm.
“The
notion
of
equivalence
and
its specificity in
specialized
translation” investigates whether the functionalist approach, or more
particularly, the use of “functional equivalence”, is the most appropriate
procedure in the case of sworn or legal translations.
“Technology Translation: ethical implications for translation practice”
is a very timely article for Translation Studies as it examines relationships in
the professional work of the translator, especially in the use of new
technologies.
Completing this initial block, “The Interpretive Theory of Translation
(Théorie du Sens) revisited: a new look at deverbalization”, reexamines the
“theory of sense” of the late 1960s.
The next section contains articles relating to literary translation, two
of them directly linked to Poetry and Poetics. “New translations of Freud
made directly from the German: style and terminology” is of interest to a
number of areas of the Humanities, from linguistics to psychoanalysis.
“Érostrate: considerations on the retranslation of a story by Jean Paul
Sartre” focuses on the retranslation of Sartre’s story and emphasizes the idea
of need for retranslation, based on the fact that there are many different
possibilities for a translation.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 11-13
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12
“Sound and sense: three theories of translation of poetry in dialogue”
discusses certain theories on the translation of poetry, that is, creative
translation, within the broader area of literary translation, showing the
application of theories in translation practice, where the relationship
between sound and sense is of fundamental importance.
Also in the literary area, “Poetics in conflict: Brazilian literature
translated by Elizabeth Bishop in the context of cultural exchanges between
Brazil and the United States” joins Translation Studies theory to Comparative
Literature and examines the different cultural systems of the two countries.
In the field of terminology, there are two articles. “Research on the
construction of phytonym CAPOEIRA: aspects of the lexical-semantic field and
indigenous geolinguistics” is closely related to the scope of TradTerm and
makes a thorough and original analysis.
“The terminology used for criminals and / or offenders by the Civil
Police in Rio Grande do Sul” explains the use of certain specialized terms used
by police in the southern Brazilian state to refer to the accused subject at
various stages of the criminal process. The results of this very novel study
deserve to be made available to the scientific community.
The last section is that of intersemiotic translation, with two articles
on the translation problems of film and video games. “The King's Speech:
translation and power” examines the effects of the construction of meaning in
the translation from English into Portuguese of the film The King's Speech,
emphasizing the cultural characteristics of the translator’s reality, such as the
collective characteristics of the imaginary of the social group to which he or
she belongs, demonstrated by the communicative interactions of the two
protagonists of the film.
“Video game localization: the case of Brazil” addresses an important
but little studied area in Brazil, providing a history of video games in Brazil
and the differences between the translation of various types of games.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 11-13
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To conclude the volume, “Foreign chord: representation and linguistic
clashes in Brazilian songs,” touches on issues of Brazilian identity in songs,
describing the tension resulting from the presence of the “foreign other”,
presented in them.
We would like to thank all those who contributed to this volume,
including authors, reviewers, Prof. John Milton for his translations, Sandra de
Albuquerque Cunha, CITRAT secretary, and Renan Silva Garcia, monitor.
We would finaly once more like to thank Humanitas FFLCH-USP
publishers for all their effort and hard work. Enjoy your reading!
São Paulo, 27 June 2012
Lineide Salvador Mosca
President of the CITRAT Publications Commission
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 11-13
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Antropologia da civilização: um
estudo da tradução para o inglês de
termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas
obras de Darcy Ribeiro
Talita Serpa *
Diva Cardoso de Camargo †
Abstract: The main purpose of this article is to investigate the most frequent simple
terms as well as fixed and semi-fixed expressions in Social Anthropology of
Civilization subarea in Portuguese and their corresponding terms in English, found in
two works written by the anthropologist Darcy Ribeiro. The methodology used is that
of Corpus-Based Translation Studies (BAKER, 1995, 1996, 1997; CAMARGO, 2005, 2007),
Corpus Linguistics (BERBER SARDINHA, 2004) and Terminology (BARROS, 2004; KRIEGER
&FINATTO, 2004). Results show that there are similarities and differences among the
use of the terms in the main subcorpora composed of source and target texts and in
the comparable corpora in Portuguese and in English. This data indicate that terms
and expressions are not univocal in the anthropological language due to the
differences in the conceptualization of the same referents by different specialists in
the area.
Keywords: Corpus-Based Translation Studies; Corpus Linguistic; Social Anthropology
of Civilization.
Resumo: Neste estudo, foram selecionados os termos simples e as expressões fixas e
semifixas mais frequentes da subárea de Antropologia da Civilização em português e
seus correspondentes em inglês, extraídos de duas obras de autoria do antropólogo
Darcy Ribeiro e das respectivas traduções para o inglês. A metodologia utilizada
*
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Universidade
Estadual Paulista – Câmpus de São José do Rio Preto. Email: [email protected].
†
Professora adjunta do Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual
Paulista – Câmpus São José do Rio Preto. Email: [email protected].
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
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fundamentou-se nos Estudos da Tradução Baseados em Corpus (BAKER 1993, 1995,
1996; CAMARGO 2005, 2007), na Linguística de Corpus (BERBER SARDINHA 2000, 2004;
TOGNINI-BONELLI 2001) e na Terminologia (BARROS 2004; KRIEGER&FINATTO 2004). Notouse que ocorrem semelhanças e diferenças de uso entre os termos dos subcorpora de
estudo de textos, fonte e meta e dos corpora comparáveis em português e em inglês.
Esses dados apontariam que os termos e as expressões não apresentam univocidade
dentro dessa linguagem de especialidade, devido às diferenças de conceituação de
um mesmo referente pelos especialistas da área.
Palavras-chave: Estudos da tradução baseados em corpus; Linguística de corpus;
Antropologia da civilização.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
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16
Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
1. Introdução
O desenvolvimento da pesquisa antropológica no Brasil ganhou forças a
partir da criação do curso de Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo
(USP), na década de 1930. Até então, a pesquisa realizada no país
fundamentava-se nas investigações das Escolas Francesa e Inglesa e tinha por
principal material os relatos históricos dos grupos colonizadores, recorrendo
ao eurocentrismo para proporcionar conhecimentos capazes de domesticar
culturas adversas. Na contramão das perspectivas analíticas preconcebidas e
importadas, o antropólogo, sociólogo, educador e político, Darcy Ribeiro,
propôs a elaboração de uma subárea que se concentrasse na construção de
uma avaliação das condições de promoção do processo civilizatório deste país,
livre da ação teórica precedente, criando assim uma série de seis livros
intitulada Antropologia da Civilização.
A esse respeito, RIBEIRO (1995) enfatiza que:
(...) nos faltava uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis em
seus próprios termos, fundida em nossa experiência histórica. As
teorizações oriundas de outros contextos eram todas elas eurocêntricas
demais e, por isso mesmo, impotentes para nos fazer inteligíveis.
Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era
necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro comum
(RIBEIRO 1995: 13).
Diante de uma abordagem que valoriza a formação sociopolítica cultural
da maior nação latino-americana, a tradução, na direção português  inglês,
dessa nova teorização faz-se necessária, com o objetivo de proporcionar a
divulgação dos trabalhos de Ribeiro em nível internacional, elevando a
categoria da produção científica de antropólogos brasileiros fora do país.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
No entanto, investigações sobre o uso de termos encontrados nas obras O
processo civilizatório (1968) e O povo brasileiro: formação e sentido do Brasil
(1995), assim como sobre o processo tradutório que os envolve são
inexistentes, evidenciando a necessidade de observar, a partir desses textos
de especialidade, as opções adotadas para a tradução dos termos simples,
expressões fixas e semifixas.
Pesquisas voltadas para os Estudos da Tradução Baseados em Corpus
(BAKER 1993, 1995, 1996; CAMARGO 2005, 2007) e para a Linguística de Corpus
(BERBER SARDINHA 2000, 2004) salientam a importância do estudo da linguagem
por meio de exemplos de uso real da língua. BAKER (1996) também aponta que
a análise de corpus proporciona o reconhecimento de traços considerados
como característicos e distintivos da linguagem da tradução.
Também foram observadas as tendências linguísticas apresentadas por
Betty J. Meggers e Gregory Rabassa nas respectivas traduções The
Civilizational Process (1968) e The Brazilian People: formation and meaning
of Brazil (2000), a fim de verificar as escolhas lexicais por eles adotadas e
investigar a ocorrência ou não de padronizações terminológicas nas subáreas
das Ciências Sociais, examinando as opções de tradução utilizadas para
termos recorrentes nos dois pares de obras.
2. Fundamentação teórica
Este trabalho baseou-se no arcabouço teórico-metodológico lançado por
BAKER (1993, 1995, 1996, 2000). Segundo essa pesquisadora:
[...] textos traduzidos registram eventos comunicativos genuínos e
como tais não são nem inferiores nem superiores aos outros eventos
comunicativos em qualquer língua. Entretanto, eles são diferentes, e a
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
natureza dessa diferença precisa ser explorada e registrada 1 (BAKER
1993: 234).
Para desenvolver sua proposta, a teórica fundamentou-se nos Estudos
Descritivos da Tradução, com base nos trabalhos de EVEN-ZOHAR (1978) e,
principalmente, nos de TOURY (1978). A autora também se apoiou nas
investigações de SINCLAIR (1991), no tocante ao aporte teórico da Linguística
de Corpus e ao uso de corpora eletrônicos e ferramentas computacionais para
a realização de pesquisas nos textos meta (TMs).
BAKER (1995) apresenta sua concepção de corpus na qual explicita a
preferência pela análise por meio de computador:
[...] corpus é um conjunto de textos naturais (em oposição a
exemplos/sentenças), organizados em formato eletrônico, passíveis de
serem analisados, preferencialmente, em forma automática ou semiautomática (sic) (em vez de manualmente) 2 (BAKER 1995: 226).
Em associação a essas teorias, o presente trabalho também fez uso de
pressupostos da Terminologia. O tradutor que se dedica a uma área de
especialidade inevitavelmente utiliza em seu trabalho termos específicos e a
linguagem adequada ao campo escolhido. Adota dicionários e glossários
especializados com o objetivo de produzir um texto na língua meta (LM)
adequado aos padrões e à tipologia da área de especialidade. Dessa forma, a
Tradução e a Terminologia se entrecruzam favorecendo a prática tradutória.
Sobre a colaboração entre a tradução e os estudos terminológicos, BARROS
(2004) comenta que:
A cooperação entre tradutores e terminólogos, ou mais
particularmente o trabalho dos tradutores como terminólogos, pode
Translated texts record genuine communicative events and as such are neither inferior
nor superior toother communicative events in any language. They are however different, and
the nature of this differenceneeds to be explored and recorded.
2
Corpus mean[s]any collection of running texts (as opposed to examples/sentences),
held in electronic form and analysable automatically or semi-automatically (rather than
manually).
1
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
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19
Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
ser testemunhado por inúmeras obras terminográficas bilíngues ou
multilingues, elaboradas em épocas diferentes, tanto no Ocidente
quanto no Oriente. Atualmente, a importância da participação dos
tradutores na elaboração desse tipo de obra é incontestável. Com
efeito, diversos bancos de dados especializados de alcance mundial
têm no tradutor um grande colaborador (BARROS 2004: 72).
A Terminologia fornece, pois, o material necessário à Tradução para o
acesso rápido aos termos apropriados da área. Em decorrência, houve um
aumento dos trabalhos em Tradução e Terminologia que fornecem termos
adequados para consultas das áreas de especialidade a serem traduzidas.
Muitas vezes, o tradutor atua como terminólogo “ao criar neologismos ou
mesmo paráfrases do termo para dar conta das equivalências semânticas”
(KRIEGER & FINATTO 2004: 72).
BARROS (2004) acrescenta que cada povo recorta a realidade objetiva de
maneira distinta e que as formulações conceituais das representações sociais
são designadas por unidades lexicais que, consideradas como signos de
domínios específicos da atividade da comunidade sociocultural, podem ser
afirmadas como unidades terminológicas. A teórica debruça-se sobre a
questão antropológica da descrição do sistema cultural de um povo e afirma
haver a necessidade da construção de um conjunto terminológico específico a
essa área. Verifica-se, portanto, que cada antropólogo, e ousaríamos afirmar
que cada cientista social, delimita seu campo de estudo e procura conhecer as
nomeações dos seus objetos de análise. Dessa forma, pode-se dizer que nas
Ciências Sociais, além de uma terminologia científica própria a constituição
de conceitos acadêmicos, existe também a necessidade de se considerar a
nomenclatura dos elementos sociais investigados. Tem-se, por conseguinte,
que as subáreas das Ciências Sociais apresentam um vocabulário especializado
com a criação de conceitos teóricos que assumem características próprias
dentro da obra de cada pesquisador.
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Neste sentido, PATHAK (1998) acrescenta que a formulação terminológica
no campo das Ciências Sociais possui determinados aspectos condicionantes
que o diferem das demais áreas de especialidade. Esse campo de investigação
apresenta diversos termos que podem designar um mesmo conceito, como,
por exemplo, o termo simples “nacionalização” e a expressão “área sob
domínio governamental”. Pode-se também salientar que um mesmo termo
pode designar diferentes conceitos, no caso de “socialização” que se aplica às
subáreas de Antropologia, Economia e Sociologia em diferentes contextos.
Outros fatores observados são que os cientistas sociais associam conceitos
distintos a um único termo; os conceitos são geralmente expressos por
palavras de uso cotidiano; e em Ciências Sociais os termos não são formulados
em linguagem simbólica.
Contudo, a maioria dos estudiosos dedica-se a fenômenos socioculturais
específicos e, com isso, os fatos e os elementos da sociedade sob pesquisa
tornam-se parte da Terminologia daquele autor. No caso das pesquisas
realizadas no Brasil, pode-se considerar esses fatores como brasileirismos, os
quais, de acordo com COELHO (2003), podem ser considerados como índices
linguísticos da identidade do povo brasileiro.
Para FAULSTICH (2004), algumas destas entidades linguístico-culturais
assumem um quadro conceitual que é mais de natureza terminológica do que
de linguagem comum, compondo os chamados brasileirismos terminológicos.
Admite-se, com isso, que estas unidades lexicais constituem um caráter
funcional
em
contextos
científicos
específicos.
A
teórica
define
os
brasileirismos terminológicos como “palavras, locuções e outra estrutura
sintagmática criada e formada no Brasil, que tenha significado autônomo e
esteja encerrado num conceito de especialidade, que possibilite reconhecer a
área a que pertence” (FAULSTICH 2004).
Segundo Michael Henry Heim&Andrzej W. Tymowski, pesquisadores do
American Council of Learned Societies, o processo tradutório de tal repertório
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da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
terminológico precisa seguir algumas diretrizes metodológicas, visto que os
textos das áreas antropológica, sociológica etc. são distintos dos demais
textos científicos por não poderem ser generalizados e estarem submetidos a
contextos sociais, políticos e culturais distintos, de acordo com o país e as
tradições e os costumes que o constituem.
Embora afirmem que essa submissão a fatores sociais específicos de
determinadas culturas gere inconsistência terminológica, HEIM&TYMOWSKI
(2006) não deixam de observar que:
Um termo-chave que ocorre mais de uma vez pode ser traduzido pela
mesma palavra sempre, mas o tradutor precisa primeiramente
determinar se o significado é de fato o mesmo. Se não for, o tradutor
pode escolher outra palavra, mas a decisão deve ser consciente. Para
estabelecer consistência à tradução, o editor pode sugerir que os
tradutores elaborem um glossário de termos-chave quando trabalham
com um texto específico3 (HEIM & TYMOWSKI 2006: 10).
Os cientistas sociais, ao introduzirem novos conceitos, geralmente atuam
para que as palavras ou expressões empregadas sejam aceitas pela
comunidade científica e se universalizem dentro desse público, passando a
constituir termos. Bons exemplos disso são a ninguendade e a transfiguração
étnica (1995) de DARCY RIBEIRO. Os conceitos que transmitem são, em geral,
culturalmente determinados, mas a opção por termos técnicos é um aspecto
dessas ciências e, por isso, os tradutores precisam estar atentos no momento
de vertê-los para as LMs.
Embora não seja possível generalizar, os dois principais procedimentos
utilizados pela maioria dos tradutores, de acordo com Heim&Tymowski, são:
(1) empréstimo da língua original e (2) tradução literal para o termo. Ambos
causam um estranhamento inicial no leitor alvo, pois ou estão em língua
3
[…] a key term that occurs more than once should be translated by the same word
each time, but the translator must first determine whether the meaning is in fact the same.
If it is not, the translator may choose another word, but the decision must be a conscious
one. To foster consistency, the editor can suggest that translators create a personal glossary
of key terms as they work through a text.
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da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
estrangeira ou forçam o original da LM a uma forma que não lhe é natural. No
entanto,
frequentemente,
as
línguas
se
adaptam
e
absorvem
os
“estrangeirismos” e as “literalidades”.
É importante que o tradutor, que irá verter um texto científico, esteja
familiarizado com o tipo de redação e, também, com os termos mais
adequados a cada subárea das Ciências Sociais. Essa é uma das condições
apontadas pelos autores por facilitar que os textos sejam publicados de
acordo com padrões internacionais. Tanto os tradutores e pesquisadores da
área quanto os estudantes de tradução seriam diretamente beneficiados com
os resultados de trabalhos voltados para esses propósitos.
No âmbito de obras de cunho cultural, político e social, Michaela Wolf,
em seu artigo Translation as a Process of Power: aspects of cultural
anthropology in translation (1995), salienta que é nestes textos, assim como
em textos literários, que as assimetrias de transferência cultural tornam-se
mais visíveis; isso porque a questão de poder entre as sociedades dominantes
e dominadas está nitidamente expressa nas escolhas linguísticas de autor e
tradutor.
Tendo por base tais questões, apresenta-se uma investigação sobre a
tradução de termos simples, expressões fixas e semifixas da subárea de
Antropologia da Civilização com vistas ao seu uso por tradutores e
especialistas em Ciências Sociais.
De acordo com BARROS (2004), termos caracterizam-se por designarem
conceitos específicos de um domínio de especialidade. Por sua vez, BAKER
(1992) salienta que as expressões fixas tratam-se de expressões consagradas,
referentes a determinado tipo de texto e que permitem pouca ou nenhuma
variação. No caso das expressões semifixas, CAMARGO (2005) aponta que estas
apresentam maior variação e carregam consigo todo um contexto, podendo
ser consideradas específicas de uma determinada língua de especialidade.
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Para o levantamento foram utilizadas as ferramentas WordList, Keywords
Concord do software WordSmith Tools, as quais facilitam a compilação dos
termos e de seus contextos.
3. Material e Método
Para esta investigação, foram compilados os seguintes corpora: 1) um
subcorpus principal paralelo de Antropologia da Civilização, constituído pela
obra científica O processo civilizatório (OPC), de autoria de Darcy Ribeiro,
publicada originalmente em português no ano de 1968 (total de itens:
63.159), e a respectiva tradução para o inglês, realizada por Betty J. Meggers
sob o título The Civilizational Process, publicada em 1968 (total de itens:
53.464); 2) um subcorpus principal paralelo constituído pela obra O povo
brasileiro: a formação e o sentido do Brasil(OPB), de autoria de Darcy
Ribeiro, publicada originalmente em português, no ano de 1995 (total de
itens: 115.474), e a respectiva tradução para o inglês, realizada por Gregory
Rabassa, sob o título The Brazilian People: formation and meaning of Brazil,
publicada em 2000 (total de itens: 139.858); 3) um corpus comparável de
controle, composto por 15 obras da mesma subárea escritas originalmente em
português; 4) um corpus comparável de controle, composto por 15 obras da
mesma subárea escritas originalmente em inglês.
As obras que compõem o corpus comparável em português representam
publicações de pesquisas relacionadas à constituição do povo brasileiro, de
autoria dos nossos mais importantes antropólogos, como por exemplo,
Gilberto Freyre, Eduardo Viveiros de Castro, Marcio Goldman e Roberto
DaMatta, publicadas entre as décadas de 1930 e 1990 do século XX.
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da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Para a formação do corpus comparável em inglês foram utilizados textos
clássicos da Antropologia Britânica e Americana, desenvolvidos por autores
consagrados, como Bronislaw Malinowski, Radcliffe-Brown, Margaret Mead,
Franz-Boas e Mary Douglas, e publicados entre os séculos XIX e XX. Cabe
salientar que as obras destes autores constam da bibliografia utilizada para a
composição das teorias revolucionárias de Darcy Ribeiro.
Também foram utilizados dois corpora de referência para a extração de
palavras-chave. Em português, foi utilizado o corpus Lácio-Ref 4, composto de
textos em português brasileiro, escritos respeitando a norma culta. Para a
extração de palavras-chave em inglês, empregou-se como corpus de
referência o British National Corpus (BNC Sampler) 5, composto por textos
originalmente escritos em inglês.
4. Análise e discussão dos resultados
Para o levantamento de termos simples, expressões fixas e semifixas de
Antropologia
de
Civilização
foram
selecionados
os
vocábulos
mais
representativos de base substantival e adjetival do subcorpus de estudo.
A análise da obra OPC foi realizada por meio das listas de frequência de
palavras extraídas com o auxílio da ferramenta WordList. Apresentam-se, a
seguir, as Tabelas 1 e 2 com as dez palavras mais frequentes nos textos fonte
(TFs) e nos TMs.
1. Sociedades
2. Povos
3. Social
4. Revolução
5. Processo
6. Desenvolvimento
7. Trabalho
8. Evolução
9. Poder
10. Cultural
4
O Lácio-Ref é um corpus aberto e de referência do português contemporâneo do
Projeto Lácio-Web, composto por textos em português brasileiro.
5
O BNC Sampleré um subcorpus do British National Corpus, o qual contém amostras de
língua falada e escrita, subdivididas para utilização em dois bancos de dados distintos.
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Tabela 1: Lista das dez palavras mais frequentes no subcorpus principal da
obra OPC em português
1. Social
2. Revolution
3. Societies
4. Process
5. Cultural
6. System
7. Civilizational
8. Development
9. Peoples
10. Labor
Tabela 2: Lista das dez palavras mais frequentes no subcorpus principal da
obra OPC em inglês
Das palavras presentes na Tabela 1, foram encontradas oito equivalentes
na Tabela 2: “sociedade/s”  society/ies; “povo/s”  people/s; “social/is”
 social/s; “revolução/ões”  revolution/s; “processo/s”  process/es;
“desenvolvimento”  development/s; e “trabalho/s”  labor/s.As outras
duas palavras que não constaram entre as dez primeiras (“evolução/ões” 
evolution/s;“poder/es”  power/s) apareceram entre as cem palavras mais
frequentes na lista de palavras do subcorpus dos TMs. Também foi possível
notar que vocábulos de maior ocorrência, como por exemplo, “sociedade/s"
(204) 6, “povo/s” (203) e “social/is” (182) fazem parte da linguagem geral das
Ciências Sociais. A observação da frequência de tais itens lexicais na primeira
obra da série Antropologia da Civilização permite reconhecer quais os
principais assuntos abordados pelo autor, que trata dos processos de
civilização dos países latino-americanos, considerando que a pesquisa foi
desenvolvida com o objetivo de traçar um panorama arqueológico geral da
fundação dos Estados Neolatinos na América. Dessa forma, uma vez presentes
na lista de palavras mais frequentes e mais representativas do subcorpus, os
termos foram mantidos na análise da subárea antropológica.
Com o auxílio da ferramenta Keywords foram geradas as listas de
palavras-chave do subcorpus de TF, tomando para contraste o corpus de
referência Lácio-Ref. Após este levantamento foram também observadas as
palavras-chave a partir do TM, tendo como corpus de referência o BNC
6
Os números entre parênteses correspondem à frequência em que os termos ocorreram
no corpus principal paralelo.
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Sampler. A seguir, apresentam-se as Tabelas 3 e 4 com as respectivas dez
palavras-chave de maior índice:
1. Sociedades
2. Povos
3. Social
4. Revolução
5. Processo
6. Sistema
7. Desenvolvimento
8. Poder
9. Produção
10. Impérios
Tabela 3: Lista das dez palavras-chave a partir do subcorpus principal da
obra OPC em português
1. Socialism
2. Socialist
3. Sectors
4. Subsistence
5. Feudalism
6. Export
7. Industrialization
8. Tribal
9. Conquest
10. Collectivist
Tabela 4: Lista das dez palavras-chave a partir do subcorpus principal da
obra OPC em inglês
Para dar suporte à seleção de tais dados, realizou-se uma consulta a um
corpus de apoio formado por dicionários das subáreas das Ciências Sociais, a
saber: Antropologia, Ciência Política, Economia e Sociologia, com o objetivo
de confirmar sua inclusão ou exclusão nas análises.
Da mesma forma, foram realizadas investigações semelhantes para o
subcorpus da obra OPB. A seguir, apresentam-se as Tabelas 5 a 8 com as dez
palavras mais frequentes e as dez palavras-chave dos TFs e dos TMs.
1. Índios
2. População
3. Trabalho
4. Social
5. Sociedade
6. Negros
7. Brasileiros
8. Mundo
9. Gente
10. Nacional
Tabela 5: Lista das dez palavras mais frequentes no subcorpus principal da
obra OPB em português
1. Indians
2. Peoples
3. Brazilian
4. Land
5. Population
6. Social
7. World
8. Order
9. Society
10. Work
Tabela 6: Lista das dez palavras mais frequentes no subcorpus principal da
obra OPB em inglês
1. Índios
2. População
3. Terra
4. Sociedade
5. Negros
6. Brasileiros
7. Gente
8. Povo
9. Economia
10. Escravos
Tabela 7: Lista das dez palavras-chave a partir do subcorpus principal da
obra OPB em português
1. Indians
2. People
4. Population
5. Land
7. World
8. Order
10. Slaves
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da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
3. Brazilian
6. Social
9. Society
Tabela 8: Lista das dez palavras-chave a partir do subcorpus principal da
obra OPB em inglês
Notou-se
que
as
listas
de
palavras-chave
destacaram
a
representatividade do subcorpus, uma vez que apresentavam as palavras de
maior chavicidade a partir de um corpus de referência com mais de um milhão
de palavras, o que indica uso frequente de palavras apontadas como fortes
candidatas a termos na subárea de Antropologia da Civilização. Tal resultado
mostra a validade de um levantamento de termos com a metodologia da
Linguística de Corpus e da Terminologia, dado que auxiliou no refinamento
das listas apresentadas neste trabalho, as quais poderão assessorar o tradutor
ao lidar com textos específicos de Ciências Sociais. Os dados apontam uma
diferença na tradução terminológica na subárea em análise, mostrando que os
tradutores optaram por algumas escolhas léxicas distintas ao levarem a teoria
de Darcy Ribeiro para o público alvo. No entanto, a maioria dos candidatos a
termos observados apresentou traduções semelhantes em ambas as obras em
língua inglesa, como, por exemplo, em: “desenvolvimento” development;
“povo/s”
people/s;
“população/ões”
population/s;
“processo/s”
process/es; e “sociedade/s” society/ies.
Dessa maneira foi possível reconhecer pelo menos quatro possíveis
subdivisões para a composição terminológica em Antropologia da Civilização:
(1) termos relacionados aos atores de mudança social, como, por exemplo,
escravos e indígenas; (2) grupos ou padrões de coletividade, no caso de
populações; (3) processos e atividades sociais, como a abolição e o
feudalismo; (4) locais de interação sociocultural e política, como latifúndios e
fazendas.
As palavras-chave selecionadas a partir dos subcorpora principais dos TFs
foram comparadas às palavras-chave extraídas a partir dos TMs. A
investigação dos termos mais frequentes permitiu constatar que, em grande
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semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
parte, as palavras-chave dos subcorpora principais em língua inglesa
coincidiam com as palavras-chave de língua portuguesa em ambas as
subáreas. Tal ocorrência facilitou a análise das possíveis traduções para os
referidos termos.
Com base nesses dados, apresentam-se, a seguir, as Tabelas 9 e 10 com
os dez primeiros candidatos a termos simples mais frequentes nos TFs e as
respectivas traduções, extraídos dos subcorpora paralelos:
TF
1.
2.
3.
4.
5.
Sociedades
Povo
Social
Revolução
Processo
6.
7.
8.
9.
10.
Sistema
Desenvolvimento
Poder
Produção
Impérios
1.
2.
3.
4.
5.
TM
Societies
People
Social
Revolution
Process
6. System
7. Development
8. Power
9. Production
10. Empires
Tabela 9: Dez candidatos a termos simples mais frequentes no TF da obra
OPC e respectivas traduções no TM
TF
1.
2.
3.
4.
5.
Índios
População
Terra
Sociedade
Negros
6.
7.
8.
9.
10.
Brasileiros
Gente
Povo
Economia
Escravos
1. Indians
2. Population
3. Land
4. Society
5. Blacks/Negroes
TM
6. Brazilians
7. People
8. People
9. Economy
10. Slaves
Tabela 10: Dez candidatos a termos simples mais frequentes no TF da obra
OPB e respectivas traduções no TM
Foi possível notar que o processo de análise dos termos mais frequentes
das obras revela algumas recorrências de terminologia, o que demonstra que o
autor desenvolveu um estudo em que as teorias foram sendo aprimoradas e
reavaliadas a cada nova obra. Dessa forma, ao concluir a análise em
Antropologia da Civilização com a publicação de O povo brasileiro, Ribeiro
procurou sintetizar as descobertas acerca da constituição da civilização
brasileira e demonstrar a evolução dos dados apresentados na obra
precedente O processo civilizatório.
A partir das palavras-chave levantadas foi realizada a observação das
linhas de concordância, dos agrupamentos lexicais (clusters) e dos colocados
(collocates) com a utilização da ferramenta Concord. A seguir, apresentamTradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
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semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
se, nas Tabelas 11 e 12, cinco dos candidatos a termos mais frequentes em
ambas as subáreas e as expressões por eles formadas (“sociedade/s”,
“economia/s”, “desenvolvimento/s”, “processo” e “sistema/s”):
SOCIEDADE/S
Sociedades Humanas - Sociedades Subalternas - Sociedades Industriais Sociedades Capitalistas - Sociedades Subdesenvolvidas - Sociedades
Industrializadas - Sociedades Agrícolas - Sociedades Estratificadas Sociedades Socialistas - Sociedades Atrasadas Na História -Sociedades
Nacionais - Sociedades Agrárias - Sociedades Hidráulicas - Sociedade
Periférica - Sociedade Civilizadora
ECONOMIA/S
Economias Periféricas - Economia Autônoma - Economia Industrial Economias Camponesas - Economias Capitalistas - Economias Nacionais Economias Atrasadas - Economias Rurais/Artesanais - Economia LivreEmpresarial - Economia Agrícola - Economia Agrária - Economia Monetária Economia Escravista - Economia Mercantil - Economia Pastoril - Economia
Mista - Economia Urbana - Economia Rural - Economia Colonial - Economia
Monetária
DESENVOLVIMENTO
Desenvolvimento
Econômico
Desenvolvimento
Industrial
Desenvolvimento Capitalista- Desenvolvimento Tardio - Desenvolvimento
Capitalista Pleno - Desenvolvimento Humano - Desenvolvimento Evolutivo Desenvolvimento
Acumulativo
Desenvolvimento
Econômico
Desenvolvimento Histórico - Desenvolvimento Cultural - Desenvolvimento
Social - Desenvolvimento Sociocultural
PROCESSO/S
Processo Civilizatório - Processo de Modernização Reflexa
Produtivo - Processo de Restauração Imperial - Processo de
Histórica - Processo Colonial - Processo Histórico - Processo
Processo de Aceleração Evolutiva - Processo de Sucessão
Processo Produtivo
SISTEMA/S
- Processo
Atualização
Evolutivo Ecológica -
Sistema Capitalista Industrial - Sistema Produtivo - Sistema Econômico Sistema Mercantil - Sistema Agrário - Sistema Capitalista - Sistema Colonial
- Sistemas Bilineares De Parentesco - Sistemas Classificatórios de
Parentesco - Sistema Social - Sistema Ideológico - Sistema Político -Sistema
Agrícola
Tabela 11: Candidatos a termos simples e expressões fixas e semifixas
extraídos do subcorpus principal da obra OPC em língua portuguesa
SOCIEDADE/S
Sociedade Parasitária - Sociedade Nascente - Sociedade Brasileira Sociedades Tribais Autônomas - Sociedade Tribal - Sociedade Cabocla Sociedade Colonial - Sociedade Agrária - Sociedade Sertaneja - Sociedade
Solidária - Sociedade Subalterna - Sociedade Democrática- Sociedade
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semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Multiétnica - Sociedade Igualitária - Sociedades Nacionais
ECONOMIA/S
Economia Pastoril - Economia Mercantil - Economia De Subsistência Economia Agrária - Economia Extrativista -Economia Comunitária Economia Agrícola - Economia Granjeira - Economia Familiar - Economia
Artesanal - Economia Cafeeira - Economia Açucareira - Economia Solidária Economia Caipira - Economia Colonial - Economia Monocultora
DESENVOLVIMENTO
Desenvolvimento Regional - Desenvolvimento Industrial - Desenvolvimento
Autônomo
PROCESSO/S
Processo Civilizatório - Processo Produtivo - Processo De Gestão Étnica Processos Políticos - Processo de Atualização Histórica - Processo
Extrativista - Processo Deculturativo
SISTEMA/S
Sistema Pastoril - Sistema Senhorial - Sistema Produtivo - Sistema Mercantil
-Sistema Fundiário - Sistema De Parceria - Sistema Latifundiário Primitivo Sistema Econômico - Sistema de Coivara - Sistema de Colonato - Sistema
Agrário-Mercantil - Sistema Granjeiro - Sistema Socioeconômico
Tabela 12: Candidatos a termos simples e expressões fixas e semifixas
extraídos do subcorpus principal da obra OPB em língua portuguesa
Verificou-se que algumas expressões fixas e semifixas estão presentes
nos subcorpora de ambas as obras, revelando, novamente, o desenvolvimento
da teoria proposta pelo autor e a inter-relação entre as hipóteses
apresentadas na primeira e na última obra da subárea em estudo. A seguir,
apresenta-se a Tabela 13 com as expressões coocorrentes em ambas as obras
e as respectivas traduções:
Expressões fixas e
semifixas
coocorrentes
nas
obras do corpus de
estudo em língua
portuguesa
Sociedade Subalterna
Sociedade Agrária
Sociedade
Estratificada
Sociedade Nacional
Economia Nacional
Economia Agrícola
Economia Agrária
Economia Mercantil
Economia Colonial
Expressões fixas e semifixas
em
língua
inglesa
na
tradução The Civilizational
Process
Expressões
fixas
e
semifixas em língua
inglesa na tradução
The Brazilian People
Subordinate Society
Agricultural Society
Society Stratified
Subordinate Society
Agrarian Society
Stratified Society
National Society
National Economy
Agricultural Economy
Agricultural Economy
Mercantile Economy
Colonial Economy
National Society
National Economy
Agricultural Economy
Agrarian Economy
Mercantile Economy
Colonial Economy
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da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Desenvolvimento
Industrial
Processo Civilizatório
Processo Produtivo
Sistema Capitalista
Sistema Produtivo
Sistema Mercantil
Sistema Econômico
Sistema Colonial
Industrial Development
Industrial Development
Civilizational Process
Productive Process
Capitalist System
Productive System
Mercantile System
Economic System
Colonial System
Civilizing Process
Productive Process
Capitalistic System
Productive System
Mercantile System
Economic System
Colonial System
Tabela 13: Lista de expressões fixas e semifixas coocorrentes em OPC e
OPB que apresentam variações na forma lexical dos adjetivos no corpus
dos TMs
Os dados demonstram uma pequena variação no uso dos adjetivos
agriculturale agrarian; civilizationale civilizing; e capitaliste capitalistic.
Dessa forma, com o objetivo de confirmar o uso real de alguns deles, foi
realizada uma busca a sites da internet, procurando encontrar a ocorrência de
sua utilização, além dos limites de nossos corpora. Observou-se que as
expressões que manifestaram alterações em ambas as obras apresentam na
web as seguintes ocorrências: agricultural society (16.600.000), agrarian
society (465.000), civilizational process (42.900.000), civilizing process
(153.000), capitalist system (1.560.000) e capitalistic system (189.000).
Notou-se que as traduções de Betty J. Meggers apresentam maior ocorrência
em textos de língua inglesa na rede que as escolhas lexicais propostas por
Gregory
Rabassa.
Entretanto,
a
maioria
das
expressões
apresentou
regularidade e padronização concernentes ao emprego nas Ciências Sociais e
nas suas subáreas.
Com base nesses resultados, foi verificado se as palavras-chave a partir
dos corpora comparáveis de textos originalmente escritos em português (TOPs)
e de textos originalmente escritos em inglês (TOIs) coincidiam com as
palavras-chave dos TFs e dos TMs e quais eram os termos e as expressões que
também estavam presentes nesses corpora.
Dessa maneira, notou-se que a subárea não apresentou no corpus
comparável em português todos os termos simples que haviam sido levantados
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
nos subcorpora de estudo em língua portuguesa. Além disso, foi verificado se
as escolhas lexicais da tradutora Betty J. Meggers poderiam fornecer
diferentes opções de tradução na língua inglesa para os termos e as
expressões fixas e semifixas de Antropologia da Civilização em relação às
estratégias utilizadas por Gregory Rabassa no processo tradutório da mesma
subárea. Apresenta-se, a seguir, a Tabela 14 com os termos simples
coocorrentes de maior chavicidade em ambas as obras e suas respectivas
traduções por Meggers e Rabassa.
Termos
simples
coocorrentes no par
de obras em língua
portuguesa
Adorno/s
Agregado/s
Termos simples na tradução
The Civilizational Process
Termos SIMPLES na tradução
The Brazilian People
Ornament/s
Retainer/s
Chefe
Cidadania
Clientelismo
Head
Citizenship
Patronage System
Convívio
Conviviality
Culto
Rite
Divindade
Escambo
Negros
Deity
Trading
Nigers
Adornment/s
Hired hands
Sharecroppers
Workers
Household servants
Chief
Citizenry
Brazen service
Favoritism
Group Living
Companionship
Communal Live
Living
Cult
Worship
Ritual
Divinity
Barter
Blacks
Tabela 14: Termos simples de maior chavicidade coocorrentes nas obras do
corpus de TFs e variações nas traduções no corpus de TMs
No âmbito das expressões fixas e semifixas também tem-se a
oportunidade de verificar a variação lexical na tradução. Apresenta-se, a
seguir, a Tabela 15 com alguns dos exemplos nas duas obras:
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Expressões
fixas
e
semifixas coocorrentes
no par de obras em
língua portuguesa
Aldeia
Indígena
Diferenciada
Atualização Histórica
Expressões
fixas
e
semifixas na tradução The
Civilizational Process
Expressões fixas e semifixas
na tradução The Brazilian
People
Undifferentiated
Horticultural Village
Historical Incorporation
Cidades Urbanizadas
Concessão de Terras
Condição Humana
Condição Social
Cities
Concession of Land
Condition of Mankind
Social Condition
Undifferentiated Agricultural
Village
Historic Updating
Historical Modernization
Towns
Awarding of Land Grants
Human Condition
Social Status
Condição Tribal
Convívio Social
Escravização
Indígena
Espoliação Colonial
Tribal Condition
Community Spirit
Enslavement
of
Indigenous Population
Colonial Exploration
do
the
Tribal Affiliation
Social Companionship
Enslavement of Natives
Colonial Exploitation
Tabela 15: Expressões fixas e semifixas de maior chavicidade coocorrentes
nas obras do corpus de TFs e variações nas traduções no corpus de TMs
Embora os TMs apresentem possíveis traduções que foram confirmadas,
em sua maioria, no corpus comparável de língua inglesa, muitos termos e
expressões da subárea de Antropologia da Civilização ocorrentes no corpus de
estudo não foram confirmados no corpus de TOIs, devido ao seu limite de
extensão. Dessa forma, realizou-se uma busca a sites da internet, procurando
mostrar que os termos e as expressões em inglês que compõem as opções de
tradução de Meggers e Rabassa fazem parte do uso real dos falantes,
atestando o trabalho desses profissionais e apresentando a utilização além das
fronteiras do corpus comparável.
No caso dos termos simples, apresenta-se a Tabela 16 contendo alguns
dos principais termos do corpus de estudo, que não ocorrem nos corpora
comparáveis, e suas respectivas traduções com o número de ocorrências de
uso na web.
Termos
simples
de
Termos
simples
de
Frequência de ocorrência
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
Antropologia
Civilização nos TFs
Açucocracia
Amansadores
Antitropicalismo
Arranchamento
Balateiro
Biscateiro
da
Corvéia
Feitor
Feudalização
Muleiro
Antropologia da Civilização
nos TMs
Sugar Regime
Trainers
Anti-tropicalism
Shack Dwellers
Balata-Gum Gatherer
Odd-Job Worker
Biscuit Seller
Unpaid Work
Foreman
Overseer
Feudalization
Muletter
dos termos simples em
inglês, na web
66.000
32.200.000
79
11.500
1
91.500
1.490
3.100.000
17.200.000
13.400.000
57.000
1.560
Tabela 16: Termos simples ocorrentes nos TFs e respectivas traduções nos
TMs com o número de frequência na web
Com relação às expressões fixas e semifixas, uma análise semelhante foi
realizada. A seguir, apresenta-se a Tabela 17 com exemplos de expressões
fixas e semifixas e o grau de frequência de ocorrência na internet.
Expressões
fixas
e
semifixas de Antropologia
da Civilização nos TFs
Expressões fixas e semifixas
de Antropologia da Civilização
nos TMs
Abrasileiramento Cultural
Ação Aculturativa
Cerimonial Antropofágico
Cooperação Inter-Comunal
Hierarquia
GuerreiroSacerdotal
Justiçador Divino
Cultural Brazilianization
AcculturativeAction
Anthropophagous Ceremony
LinesofCooperation
Warrior-PriestlyHierarchy
Lágrimas de Devoção
Oligarquia Cafeeira
População Desindianizada
Sociedade Fundada no
Parentesco
TearsofDevotion
CoffeeOligarchy
De-indianizedPopulation
SocietyBasedonKinship
SeekerofDivine Justice
Frequência
de
ocorrência
das
expressões
fixas
e
semifixas em inglês, na
web
8.140
1
4
44.300
1
Não há ocorrências
30.700
4.430
3
22.700
Tabela 17: Expressões fixas e semifixas ocorrentes nos TFs e respectivas
traduções nos TMs com o número de frequência na web
Entre os exemplos, notou-se que, em sua maioria, as traduções
mostraram que os correspondentes foram escolhidos apropriadamente,
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
adequando-se ao uso pelos especialistas em Antropologia Social e Cultural de
países de língua inglesa.
Também, foi observado que, quanto às questões relacionadas às opções
de tradução adotadas por Meggers e Rabassa, é importante considerar, a
princípio, a formação sociocultural envolvida no processo de constituição dos
TMs em diferentes períodos históricos e sob a influência de diferentes
sociedades e culturas.
Sabemos que Betty J. Meggers foi uma renomada arqueóloga americana,
membro do Instituto Smithsonian e da Associação Antropológica. A escolha de
Ribeiro pela tradução de Meggers deveu-se ao destaque de seus trabalhos
enquanto pesquisadora acerca da adaptação humana na floresta tropical e da
expansão dos povos civilizados pelos territórios de mata nativa latinoamericanos.
Depois de 27 anos de pesquisa e mais quatro livros produzidos na subárea
de Antropologia da Civilização, o antropólogo brasileiro apresentou, no ano de
1995, suas considerações finais acerca da constituição da identidade nacional
na obra O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Neste caso, a
versão em língua inglesa ficou a cargo do renomado tradutor e pesquisador
Gregory Rabassa, especialista em Estudos Culturais. O trabalho foi concluído
no ano de 2000, sem ter sido revisado e comentado por Darcy Ribeiro, que
faleceu em fevereiro de 1997.
Ao contrário de Meggers, o tradutor optou por manter a estrutura
linguística do texto de Ribeiro, revelando a explicitação dos elementos
culturais brasileiros por meio da escolha de termos diferentes para expressar
um mesmo conceito presente na sociedade nacional, por exemplo, a ideia de
“agregado” que é traduzida por hired hands, sharecropper, workers e
household servants. Observou-se que Rabassa constrói, ao longo do TM, uma
imagem dos fatores geográficos, folclóricos e comunais dos grupos brasileiros,
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
a qual vai formulando-se de modo gradual no imaginário do público leitor de
língua inglesa.
O estudioso concluiu que a Sociologia e a Antropologia de Darcy Ribeiro
são importantes para reconhecer o Brasil como um país autônomo em sua
produção científica no ramo das Ciências Sociais, auxiliando a mudar as
concepções preconceituosas e dominadoras impostas pela visão eurocêntrica.
A tradução enquanto ato social e o TM como produto das relações
humanas apresentam os elementos linguísticos como importantes fatores de
construção do imaginário ideológico brasileiro para os leitores de língua
inglesa. Ao se descrever as opções adotadas por Meggers e Rabassa para a
tradução de termos e expressões recorrentes nas obras que traduziram,
considera-se muito mais que a terminologia antropológica; analisa-se valores
sociais envolvidos na produção textual de Ribeiro e na interpretação dos
tradutores que reescrevem as ideologias de acordo com seus comportamentos
comuns.
No que concerne ao uso de termos e expressões referentes ao contexto
geral da estrutura e da formação das sociedades, os tradutores compartilham
de condutas semelhantes que conduzem ao comportamento recorrente da
tradução literal e das transposições, principalmente na descrição de
atividades relacionadas a processos produtivos, relações comerciais e trocas
monetárias. Pode-se citar, neste ínterim, os seguintes exemplos: “sistema
econômico”  economic system; “sistema colonial”  colonial system;
“economia mercantil”  mercantile economy; “sociedade subordinada” 
subordinate society; “sociedade nacional” national society.
Quanto aos brasileirismos terminológicos, nota-se que Rabassa faz de
suas escolhas lexicais uma maneira de explicar, ao longo do processo
tradutório, os elementos brasileiros, alternando as possibilidades de
representação da LM e construindo passo a passo a compreensão do ideológico
nacional, como, por exemplo, ao traduzir “escravaria” ora por slaves ora por
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
slave groups; “arraial” por settlement, camp, encampment, town, hamlet e
gathering. Meggers, por sua vez, tende a realizar omissões de trechos do TF e
a utilizar um mesmo vocábulo como forma de tradução para diferentes
termos, por exemplo, people como correspondente para “pessoas”, “povo”,
“gentes” e “gentio”.
As relações entre os grupos sociais e as etnias também constituem
caráter relevante nas obras de Ribeiro, considerando que o autor elabora uma
teoria de assimilação das diferentes raças no Brasil como resultado para a
formação de um povo novo. Com isso, os TMs refletem a postura adotada
pelos tradutores ao conceituarem a posição social dos indivíduos por meio das
escolhas lexicais que representam os grupos raciais. Essa caracterização fica
bastante evidente nas opções de Meggers e Rabassa para o termo “negro”.
Na tradução de O processo civilizatório, a arqueóloga utiliza o vocábulo
inglês negro nos contextos em que o autor procura salientar os elementos
constitutivos da racialidade, revelando, com isso, uma ideologia ainda
relacionada ao conceito de sub-raça de nariz achatado, lábios grossos e
cabelos enrolados, ou seja, as depreciações físicas e os preconceitos ficam
marcados na opção lexical da tradutora. Contudo, a tradução de O povo
brasileiro expõe a visão de Rabassa como conhecedor do universo cultural
brasileiro e desvenda uma postura menos racista para o termo “negro”, o qual
passa a ser traduzido por black. O tradutor considera no prefácio de sua obra
O negro na ficção brasileira: meio século de história literária (1965), que o
Brasil situa-se entre as nações do mundo em que o modelo de relações raciais
está livre de preconceito. Considera que, embora o governo brasileiro tenha
demorado a colocar fim ao regime escravocrata, a razão principal da extensão
do processo de escravidão deveu-se ao fato de que em comparação com
outros países, no Brasil, os negros eram tratados com certa benevolência.
Ao empreender seu estudo sobre o Brasil, Rabassa observou o problema
de encontrar um critério que determine quem é negro. Mostrando-nos que a
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
definição corrente nos Estados Unidos, que geralmente considera como negro
qualquer um que tenha uma proporção de sangue africano, é bem diferente
da adotada no Brasil, onde se faz a distinção entre o negro e o mulato.
Rabassa afirma que no Brasil o termo negro só se aplica a pessoas que são
aparentemente de ascendência africana predominante, enquanto que é
mulata uma pessoa aproximadamente meio negra, meio branca. O autor ainda
salienta que se um homem é de ascendência predominantemente europeia,
um pouco de sangue negro não impede que seja incluído entre os brancos.
A partir dos exemplos apresentados, verificou-se que o trabalho dos
tradutores revela um avanço na tendência de permitir a introdução de suas
identidades ao contexto da produção dos TFs, considerando ainda as
diferenças de sentido implícitas na própria linguagem. Notou-seque o processo
tradutório mostra-se mais próximo das áreas de especialidade conhecidas pela
arqueóloga, havendo um apagamento de características culturais e mesmo
terminológicas no texto de Meggers, ao passo que Rabassa parece refletir
sobre as opções lexicais que se apresentam em língua inglesa, recorrendo a
textos de outra natureza, como a produção literária nacional, para realizar
uma pesquisa de adequação cultural.
5. Considerações finais
Pôde-se verificar que o software WordSmith Tools, por meio de suas
ferramentas, facilita consideravelmente a análise de grande quantidade de
dados, obtidos de maneira muito mais rápida e exata do que manualmente. A
consulta ao corpus de apoio é essencial para estudos desta natureza. Alguns
termos
e
expressões
levantados
nos
corpora
principais
apresentam
possibilidades de diferentes correspondentes em língua inglesa, como por
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
exemplo, no caso do termo “vilarejo”, que apresentou três possibilidades de
correspondência: village (utilizada por Meggers e Rabassa), hamlet e
settlement (utilizados apenas por Rabassa). As diversas opções dos tradutores
apontam variações de uso nas escolhas lexicais, evidenciando, possivelmente,
tentativas de apresentar ao público alvo a versatilidade da sociedade
brasileira e, assim, desenhar, de maneira mais ampla, o contexto em que eles
representam as diferentes facetas da cultura e da língua brasileiras.
Com relação a aproximações observadas entre os corpora de estudo de
TFs e TMs, pôde-se notar que a maioria dos termos e expressões científicos
levantados encontra correspondência de uso em língua inglesa e também está
presente nos corpora comparáveis como, porexemplo, em “alienação”
alienation, “comunidade”  comunitye “violência”  violence. Por outro
lado, há vários termos e expressões relacionados à cultura brasileira que não
encontram correspondência nos corpora comparáveis escritos por autores de
língua portuguesa e de língua inglesa.Ocorre, com isso, um processo de
intensa
variação
linguística
na
escolha
dos
tradutores,
como,
por
exemplo,em: “seringueiro”  tapper/rubber worker; “sertanista”  sertão
scout/man of sertão superior/expeditionaty; “sertão”  sertão/backland;
“vagabundagem”

vagrancy/
vagaboundage;
“vaquejada”

roundup/cowmen.
Devido ao fato de boa parte dos termos e das expressões analisadas não
constarem em dicionários especializados, a busca por correspondentes pode
trazer dificuldades ao tradutor que procure encontrar expressões adequadas
para retratar a sociedade brasileira, da melhor maneira possível, para o leitor
da língua e cultura meta.
Não existe uma definição de sociedade que seja única e aceita de modo
geral, pois cada grupo humano organiza-se de maneiras distintas e vê o mundo
sob diferentes perspectivas. De maneira geral, os estudiosos das Ciências
Sociais procuram estabelecer uma totalidade das relações sociais entre as
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
criaturas humanas, e a terminologia concernente ao panorama geral dos
conhecimentos socioculturais torna-se, de certa forma, padrão. A alternância
na escolha de termos fica mais evidente em elementos que são marcados
socialmente por valores folclóricos e representações de atos, atores e lugares
culturalmente apresentados.
Dessa forma, diante dos resultados obtidos, espera-se que este estudo
possa oferecer uma contribuição para os Estudos da Tradução Baseados em
Corpus e para a Linguística de Corpus. Espera-se também que os dados aqui
apresentados possam fornecer subsídios a professores, pesquisadores,
tradutores, alunos de tradução, bem como profissionais da área de Ciências
Sociais, no sentido de promover a conscientização acerca das diferenças
socioculturais contidas no léxico de especialidade e, também, de oferecer
material de suporte para futuras traduções e pesquisas na área antropológica
e social.
6. Referências bibliográficas e Bibliografia
consultada
Textos selecionados para a compilação dos corpora
Corpus principal (paralelo) de Antropologia da Civilização
RIBEIRO, D. O processo Civilizatório. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira S.A., 1968.
______.The Civilizational Process.Translated by Betty M. Meggers.Washington:
SmithsonianInstitution Press, 1968.
______. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
______. The Brazilian People: formation and meaning of Brazil, Translated by
Gregory Rabassa. Gainesville: University Press of Florida, 2000.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
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Serpa, T. & Camargo, D. C. – Antropologia da civilização: um estudo
da tradução para o inglês de termos simples, expressões fixas e
semifixas recorrentes em duas obras de Darcy Ribeiro
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192-198].
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 14-42
http://tradterm.vitis.uspnet.usp.br
A noção de equivalência e a sua
especificidade na tradução
especializada
Maria Emília Pereira Chanut*
Abstract: We propose in our study a reflection on “functional equivalence” based on
a comparative/ terminological bilingual (Portuguese from Brazil/ French from
France) approach of specialized texts (certified) due to difficulties that are
aggravated by particularities from Switzerland French. A presentation of the
equivalence notion in translation theories is necessary to introduce the central issue
of this article, namely, to show that “the functional equivalence” seems, in the case
of the specialized translation, most appropriate. This happen because legal terms
and/or legal gifts in official documents are, in its essence, culturally marked,
presenting a direction or different use, even though improper in countries that speak
the same language, such as France and Switzerland.
Keywords: functional equivalence; specialized translation; cultural content; French
from France; Switzerland French; Portuguese from Brazil.
Resumo: Este estudo, partindo de uma abordagem comparativa/terminológica
bilíngue (português do Brasil/francês da França) de textos especializados
(juramentados), cujas dificuldades são agravadas por particularidades do francês da
Suíça, propõe uma reflexão sobre a “equivalência funcional”. Uma apresentação das
teorias referentes à noção de equivalência em tradução nos serve para introduzir a
ideia central deste artigo, a saber, mostrar que a equivalência “funcional” é, no caso
da tradução especializada, a mais apropriada, uma vez que os termos legais e/ou
jurídicos presentes nos documentos oficiais são, em sua essência, culturalmente
marcados, podendo apresentar sentido ou uso diferente e até mesmo equivocado em
países que falam a mesma língua, tais como a França e a Suíça.
Palavras-chave: equivalência funcional; tradução especializada; conteúdo cultural;
francês da França; francês da Suíça; português do Brasil.
*
Professora assistente doutora, Disciplina Língua francesa, no IBILCE-Unesp – São José do Rio
Preto. Email: [email protected].
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 43-70
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
1. Introdução
Em um estudo desenvolvido no âmbito de pesquisas sobre o francês da
Suíça relacionado aos particularismos lexicais empregados na linguagem
administrativa oficial, foi enfatizada a questão da “equivalência funcional” na
tradução juramentada de documentos civis e escolares. O estudo abordou as
diferenças socioculturais entre a França e a Suíça a partir dos termos
relevantes nos domínios citados, retirados de um corpus de traduções
juramentadas. Uma lista não exaustiva de termos foi apresentada como
ilustração da problemática, com ênfase nos particularismos suíços, os
chamados statalismes, encontrados a partir do “francês padrão” da França.
Parte dos resultados desse estudo foi recentemente divulgada no Colóquio
Traduction, terminologie, rédaction technique: des ponts entre le français et
le portugais, realizado na Maison de l´Europe, Université Sorbonne Nouvelle –
Paris 3, nos dias 13-14 de janeiro de 2011 1.
A partir dos particularismos encontrados, o estudo desenvolveu
paralelamente uma reflexão sobre a noção de “equivalência funcional”. A
pesquisa nos confirmou o que a prática da tradução juramentada nos sugeria,
ou seja, que nesse tipo de tradução, o tradutor, além de possuir profundo
conhecimento nas duas línguas em questão e alguma familiaridade com a
linguagem cartorária e jurídica, deve buscar concretamente em ambas as
línguas os termos suficientemente semelhantes e explícitos em sua
“equivalência funcional”, a fim de garantir a compreensão e a comunicação e,
principalmente, a confiabilidade. Em outras palavras, o tradutor deve buscar
o termo que é admissível e assimilável a título funcional, uma vez que se
trata de cumprir um ato de comunicação pertinente e eficaz na cultura de
recepção.
1
Todas as citações neste artigo cujas referências estão em língua francesa foram traduzidas
pelo autor do artigo.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 43-70
http://tradterm.vitis.uspnet.usp.br
45
Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
Pretende-se, no caso específico deste artigo, divulgar, primeiramente,
algumas considerações teóricas em torno da noção de “equivalência”, uma
vez que a mesma vem sendo historicamente utilizada por vários autores de
formas diferentes e em disciplinas distintas. Em seguida, será abordada a
questão da equivalência no texto de especialidade.
2. A equivalência e as teorias da tradução
O “grau de equivalência” do texto de chegada com relação ao texto de
partida foi, durante muito tempo, o objeto de controvérsias, principalmente
no curso dos anos 1970, embora mesmo antes disso alguns estudiosos já
tivessem tentado sistematizar tipologias, como por exemplo, Vinay e
DARBELNET (1958), que se debruçaram sobre sete métodos de tradução,
considerados hoje como uma taxonomia clássica das variações em tradução.
Até então, a tradução era percebida ou como uma atividade literária,
ou como um fenômeno não literário. Só havia, na prática, dois modos de
pesquisa: o primeiro se voltava para os problemas literários e rejeitava todo
postulado teórico, toda norma e todo jargão da linguística, ao passo que o
segundo se interessava por questões linguísticas e pretendia seguir um
procedimento científico. Durante os anos 1970, como indica EDWIN GENTZLER
em sua obra Contemporary Translation Theories (1993), o procedimento
adotado nas pesquisas de tradução sofreu uma transformação: em lugar de
tentar resolver os problemas filosóficos se apoiando na natureza do sentido, a
tradutologia passou a se preocupar mais com o modo como o sentido se
desloca, tornando-se assim uma disciplina caracterizada por uma abertura ao
trabalho interdisciplinar. Também, os especialistas da literatura começaram a
trabalhar em projetos conjuntos com lógicos, linguistas e filósofos. Por outro
lado, termos como correto, incorreto, literal, livre etc. passaram a diminuir
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
em importância. Notou-se, portanto, uma mudança de tom nas teses e nas
propostas apresentadas pelos diferentes teóricos. Ainda de acordo com
Gentzler, essa mudança de orientação dos estudos e das pesquisas no domínio
da tradução é atribuída, entre outros, principalmente a James Holmes 2, a
quem devemos o termo Translations Studies – tradutologia em português – e a
André Lefevere 3. Os trabalhos de Holmes e Lefevere estão na base da teoria
da equivalência tal como a conhecemos e a aplicamos hoje. Igualmente
importantes são os trabalhos de JOHN CATFORD (2000) e de GIDEON TOURY (1995).
Embora este estudo não tenha o objetivo de abordar extensamente as
mais variadas teorias da tradução que, desde os anos 1950 (Vinay, Darbelnet,
Catford e outros), buscam determinar as diferentes tipologias textuais, julgase fundamental para este trabalho traçar uma breve retrospectiva em torno
da noção geral de “equivalência”. Lembremos que a equivalência é um
conceito pertencente ao domínio da tradutologia. A linguística contrastiva
utiliza o conceito de correspondência, sendo que este designa um fenômeno
diferente da equivalência.
Segundo VLADIMIR IVIR (1981), “a correspondência formal é um termo
usado em análise contrastiva enquanto equivalência tradutória pertence à
metalinguagem da tradução” (apud RODRIGUES, 2000, p. 19). Este autor explica
que as duas áreas de estudo, a linguística contrastiva e a tradução, passam,
especialmente nos anos 1960 e 1970, a discutir sobre a equivalência, mas que,
na prática, estudiosos das duas áreas julgam necessários ambos os termos.
2
Poeta e tradutor americano que ensinou tradução na Université de Amsterdã e que escreveu
muitas obras de tradutologia, como The Name and Nature of Translation Studies, in The
Translation Studies Reader, editada por Lawrence Venuti, London, Routledge, 2000, pp. 172185.
3
Foi professor do Departamento de línguas germânicas da University of Texas, em Austin, e
professor honorário de Tradutologia na University of Warwik. Ele é o autor de muitos livros
como Translation of Poetry: Seven Strategies and a Blue Print, Assen, Van Gorcum, 1975 e
Translation, Rewriting & the Manipulation of Literary Frame, London, Routledge, 1992, 176
p, coll. « Translation Studies ».
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
Embora não seja a proposta deste artigo, vale lembrar que a linguística
contrastiva, cujo principal objetivo é analisar (comparar) duas línguas a fim
de identificar suas diferenças gerais e específicas, tem como campo de
aplicação a aprendizagem de uma segunda língua. Isso significa que ela se
refere à língua enquanto sistema. A correspondência é um conceito utilizado
na análise contrastiva para descrever as frases e as estruturas que
correspondem na língua de partida e na língua de chegada. Quanto à
equivalência, ela se refere, sobretudo, ao “grau” de equivalência em que uma
palavra, uma frase, ou mesmo um texto da cultura de partida pode ser
considerado na língua e na cultura receptora. A equivalência tem traços do
discurso ou da palavra e depende da tradução.
Os teóricos que definem a tradução por meio do conceito de
equivalência são numerosos. Mais especificamente no âmbito da linguística
temos JOHN CUNNISON CATFORD (2000), que tenta defini-la como a substituição
de materiais textuais de uma língua por materiais equivalentes em outra
língua. Eugene Nida, por sua vez, propõe que “a tradução consiste em
produzir na língua de chegada o equivalente natural mais próximo da mensagem
da língua de partida, primeiramente quanto à significação, depois quanto ao
estilo” (apud MOUNIN 1986: 278). Segundo RODRIGUES (2000: 142-144), Gideon
Toury propõe um reexame do conceito de equivalência, fazendo uma
distinção entre os dois usos da palavra “equivalência”, o “teórico” e o
“descritivo”. Para Toury, cuja abordagem descritiva adere aos princípios das
teorias
funcionalistas,
a
tradução
é
percebida
como
um
processo
4
sociocultural . TOURY (1995) propõe um procedimento para se determinar se a
tradução, na relação com seu original, se orienta para a língua de partida –
dita “formal” – ou para a língua de chegada – dita “funcional”.
4
Conferir anotações a respeito da obra e do método da análise de Toury em: Edwin Gentzler,
Contemporary Translation Theory, Routledge, 1993, pp. 121-134.
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
ANTHONY PYM (1992), teórico da tradução, ressalta que a equivalência é
uma criação necessária para estabelecer uma comunicação intercultural. A
dimensão cultural da comunicação constitui o eixo central da abordagem
deste autor.
A origem da noção de equivalência é difícil de determinar, tanto que,
como sabemos, Jakobson já utilizava esse termo em 1959 5. Certos teóricos
afirmam que o termo entrou no domínio da tradutologia depois de ter
aparecido nos estudos de matemáticos. Esta hipótese poderia ser justificada
pelo fato de que, nesse domínio, o termo equivalência designa uma relação
simétrica entre os dados que poderiam ser substituídos um pelo outro sem
provocar diferenças significativas. É inegável que o termo equivalência
subentenda uma relação de valor igual, o que justifica seu emprego nos
estudos matemáticos. Convém, todavia, analisar as diferenças do uso desse
termo na linguística e na tradutologia.
A noção de equivalência é, de qualquer forma, partilhada pelos
linguistas e teóricos da tradução. Os linguistas a associam à língua enquanto
sistema e estudam suas diferentes estruturas e funções. Quanto aos teóricos
da tradução, eles põem a equivalência no plano do discurso e a percebem
como fruto da interação entre o tradutor e seu texto. Desse modo, a operação
tradutória é considerada como um processo dinâmico de produção e não como
um simples processo de substituição de estruturas ou de unidades
preexistentes em uma língua por aquelas de outra língua. A equivalência ideal
seria, portanto, aquela que, em uma situação de assimetria, permitiria ao
texto de chegada funcionar ou ter uma utilidade, uma finalidade prática na
cultura receptora da tradução.
Os primeiros debates sobre o tema da equivalência no domínio da
tradutologia procuravam compreender o que devia ser equivalente: as
5
Jakobson (2000) supõe que não há equivalência completa entre as diferentes línguas e que
mesmo os sinônimos de um mesmo código não são sinônimos perfeitos ou completos.
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
palavras, as frases, as partes do texto, ou o texto inteiro. Até os anos 1970, o
texto era percebido como uma sequência linear de unidade e a tradução como
uma operação de decodificação, ao decorrer da qual o tradutor mudava as
unidades do texto de partida pelas unidades equivalentes na língua de
chegada. Hoje, a noção de “unidade equivalente” pode, segundo os diferentes
teóricos, referir-se a uma palavra ou a um texto no seu conjunto. As teorias
postas em evidência durante os anos 1970 abriram caminho para novas
maneiras de abordar os problemas de tradução.
As teorias funcionalistas revolucionaram a tradutologia, analisando a
tradução como um processo de comunicação pragmática na qual os textos de
partida ou de chegada podem ter “funções” ou finalidades diferentes. Holmes
(2000) considera a tradução, enquanto processo, como uma sequência de
decisões que o tradutor toma para chegar ao seu destino e crê que essas
decisões abrem algumas portas e fecham outras. Assim, o tradutor, mediador
da
comunicação
interlinguística
e
intercultural,
deve
procurar
uma
equivalência que torne o texto de chegada “funcional” na cultura receptora.
O tradutor não ignora, em sua prática, que a língua lhe impõe armadilhas
quando lida com equivalências formais ou literais, ou seja, quando lida com
termos que aparentemente podem ser traduzidos literalmente, pois são
lexicalizados na língua de chegada.
É importante notar que o sentido do termo equivalência toma aqui uma
nova dimensão. Quando utilizado em tradução, esse termo se remete a uma
situação ou a um elemento equivalente no plano do discurso e não no plano
do sistema da língua.
A tradução literária é a fonte à qual têm recorrido outros domínios da
tradução, e isso compreende a tradução jurídica. A tradução especializada
herdou os debates sobre a equivalência, os quais tomaram novas dimensões
segundo os diferentes domínios de especialidade.
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
A noção de equivalência – quando tratamos do texto de especialidade
e, mais especificamente, de textos jurídicos ou aqueles submetidos à
tradução juramentada – adquire uma significação bem particular, na medida
em que os aspectos culturais e as diversidades sociopolíticas dos sistemas
jurídicos determinam o uso dos termos em documentos oficiais, como veremos
mais adiante.
3. A importância do interesse pelas variedades
geográficas
A ferramenta básica e fundamental no trabalho de busca das
equivalências em tradução especializada é o dicionário bilíngue. Além do
desconhecimento das diferenças culturais entre duas línguas diferentes, como
o português e o francês, acrescentado a seus sistemas jurídicos e
administrativos diferentes, um desconhecimento das variedades geográficas
(no caso desta pesquisa, o francês da Suíça, e suas diferenças socioculturais
em relação ao francês da França) pode agravar a situação.
Os particularismos próprios ao francês empregado fora da França
foram, em geral, negligenciados pelos autores de dicionários ao longo dos
anos, como comprova a história da lexicografia francesa. O francês da Suíça,
assim como o da Bélgica e do Quebec eram, até o final dos anos 1970,
considerados e descritos como uma variedade regional do “francês padrão”,
ou francês de referência. A partir dos anos 1980, sobretudo, a situação mudou
e uma valorização crescente começou a ser percebida principalmente pela
presença das diferentes variedades do francês, presentes nas obras
lexicográficas
e
na
produção
terminológica
e,
além
disso,
pelo
reconhecimento da importância da variação lexical geográfica dos organismos
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
internacionais de normalização. Surge no meio francófono uma nova
disposição no sentido de preservar as identidades culturais nacionais e ao
mesmo tempo encorajar a comunicação internacional. O francês da Bélgica,
assim como o do Québec e da Suíça passam então a ser definidos como
variedades nacionais e as designações de suas particularidades lexicais são
chamadas, respectivamente, de belgicismos, quebecismos, e helvetismos
(HAUSMANN 1986: 4-5, apud GALARNEAU; VÉZINA 2004: 6) 6.
Atualmente, cresce, portanto, a tendência da abordagem dita
“variacionista” 7 em obras de vocabulários especializados, de léxicos e de
bancos de dados terminológicos, com o objetivo de atender as necessidades
de intercomunicação entre os francófonos, principalmente quando se trata de
um uso oficializado de termos culturalmente marcados, como é o caso do
léxico jurídico e/ou administrativo.
Os termos oficiais do francês da França e do francês da Suíça muitas
vezes são diferentes ou têm um uso diferente e um tradutor juramentado
deve conhecer essas realidades, que normalmente não estão informadas nas
obras lexicográficas disponíveis.
Quanto à noção de français de référence, vale informar que está
atualmente bem estabelecida; esta foi assunto de um importante colóquio em
Louvain-la-Neuve (Bélgica), em novembro de 1999, cujos Anais (Actes)
constam nos Cahiers de l’Institut de linguistique de Louvain, vol. 26 et 27,
2000 e 2001 (edição de MICHEL FRANCARD com a colaboração de GENEVIÈVE GERON
e RÉGINE WILMET) 8.
6
Disponível em:
<http://www.oqlf.gouv.qc.ca/ressources/bibliotheque/officialisation/reflexion_topolectale_
20080425.pdf>. Acesso em: 20/07/2010.
7
FAULSTICH, ENILDE. Aspectos de terminologia geral e terminologia variacionista. In TradTerm,
7, p. 11-40, 2001.
8
Disponível em: <http://www.bdlp.org/bdlp.pdf>, nota n. 23. Acesso em: 21/07/2010.
Trata-se de um documento de apresentação da BDLP (Base de Données Lexicographiques
Panfrancophone), organizado pelo Trésor des vocabulaires français – Réseau «Étude du
français en francophonie» – AUF.
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
Há um grande número de denominações empregadas para designar a
variedade central à qual nos referimos para determinar os traços
característicos de uma variedade geográfica do francês e, sem dúvida, a mais
conhecida é o français standard (francês padrão). Porém, essa denominação
tem a desvantagem de evocar uma dimensão normativa em contextos onde
esse aspecto não deveria ser levado em conta. Assim, passou-se a dar
preferência à denominação de “francês de referência”, por ser mais neutra e
não ser ambígua. São considerados como pertencentes a esse francês todos os
empregos repertoriados nos dicionários e outras fontes (por exemplo, as
gramáticas) que descrevem essa variedade “de prestígio” levada em conta
pelos lexicógrafos da França. “Francês de referência” tem a vantagem de
expressar claramente a ideia de que a variedade assim designada é tomada
em posição de comparação. O francês dos dicionários da França é a única
variedade conhecida por toda a francofonia; é a ele que se referem todos os
professores de francês do mundo inteiro. É então por comparação com esse
francês que será determinado se um emprego lexical é uma particularidade,
ou variedade geográfica. Este método diferencial possibilita-nos evidenciar o
que é comum ou o que é particular à variedade do francês estudada.
Esta pesquisa, ao incluir os particularismos da variedade suíça no
repertório com vistas a um futuro glossário, considerou que, no caso da
tradução especializada, o fator cultural que diferencia os usos em função da
variação geográfica compõe um conjunto lexical específico e considerado
como uma língua à parte.
Porém, ao buscar as equivalências terminológicas em outra língua, é
preciso ter consciência de que “uma mesma realidade extralinguística pode
ser analisada de pontos de vista muito divergentes em línguas diferentes, a
partir dos laços profundos e complexos que existem entre estrutura da língua
e visão de mundo” (ALPÍZAR-CASTILLO 1997: 102). Por essa razão, para um termo
na língua A não haverá necessariamente um termo equivalente na língua B.
Ainda segundo ALPÍZAR-CASTILLO (1997: 101), “a correspondência entre termos
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
de línguas diferentes situa-se em um diapasão de possibilidades que vai do
total recobrimento do conteúdo do termo da língua A por um da língua B, até
a total falta de equivalência, passando por uma variada gama de
recobrimentos parciais”.
4. A equivalência no texto de especialidade
No direito, a definição de um conceito pode a qualquer instante ser
modificada no interior do mesmo sistema por meio da legislação ou da
jurisprudência. Essa instabilidade intensifica uma dificuldade intrínseca a essa
disciplina, originalmente escorada em noções fundamentais relativamente
imprecisas. Em outras palavras, a nomenclatura do direito se distingue por sua
característica incerta que provém, segundo GÉMAR (1995), do caráter
impreciso de seus conceitos. Tomemos como exemplo o termo direito. GÉMAR
(1979) verificou a definição dada por diferentes dicionários. Ele constatou que
as definições variam de um dicionário para outro. No entanto, trata-se de um
termo chave no domínio jurídico.
Além disso, em uma perspectiva comparatista, a situação se complica
ainda mais. Na tradução jurídica, lida-se com mundos reais diferentes, ou
seja, não se trata simplesmente de uma visão de mundo diferente em função
da língua de quem o percebe, pois não é a percepção do mesmo referente que
muda, é o próprio referente que é diferente. Estamos falando da
confrontação de duas culturas jurídicas, cada uma com suas particularidades
e seus termos específicos. Às vezes, existe um referente idêntico na outra
cultura, em outros momentos, um referente comparável, mas com diferenças
significativas e, muitas vezes, não existe nenhum referente comparável. Ou
seja, não há “equivalente” linguístico, quando comparadas culturas jurídicas
diferentes, nem nas que empregam a mesma língua.
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
O teor textual da tradução juramentada possui, como todo texto
especializado, uma finalidade comunicativa específica, uma forma discursiva
determinada e uma terminologia exclusiva. Isso significa que, embora a
mensagem seja transmitida por meio da língua escrita, no caso do texto
especializado, a língua é um instrumento de comunicação, uma ferramenta na
transmissão da mensagem. Como esclarece ANTOINE BERMAN (1991) “no caso do
texto especializado, o que é transmitido é um conjunto delimitado de
informações delimitadas relativas a um domínio ele próprio delimitado
pertencente a este conjunto que denominamos as ‘tecnologias’” (p. 11).
Nesse texto, intitulado Traduction spécialisée et traduction littéraire 9,
Antoine Berman tem uma proposta estratégica: busca diferenciar os dois
gêneros de tradução mostrando a necessidade de se conservar a essência do
ensino da tradução literária ainda que encorajando o papel promotor da
comunicação no ensino da tradução especializada. Em outras palavras,
segundo ele, é por essa diferenciação, pela oposição mesmo dos dois gêneros
de tradução que se torna possível “cumprir o destino tradicionalizante” na
tradução de obras e o “destino comunicacional” na tradução especializada.
Essa preocupação, voltada especialmente ao ensino da tradução nas
universidades, serviu-nos aqui em outra direção. Tentamos redefinir, em
consonância com esta diferenciação fundamental exposta por Berman, o que
se costumou chamar de “equivalente” em tradução, e mais especificamente,
de textos técnicos e especializados. Berman completa:
A transferência lingüística (sic) desse conjunto obedece a um conjunto
de regras estratégicas determinadas: as informações devem ser
transmitidas de modo claro, confiável e eficaz; sendo o texto de
origem destinado a um público X determinado, sua transferência
lingüística (sic) deve adaptá-lo a um novo público X, ele próprio
determinado; tendo o texto de origem uma estrutura discursiva
9
Texto presente nas Atas do Colóquio Internacional organizado pela Associação Europeia de
Linguístas e de Professores de Línguas (AELPL), realizado em 21 e 22 de março de 1991, na
Escola Nacional Superior de Artes, em Paris. Editado por La Tilv, Paris, 1991, p. 157.
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
determinada, até certo ponto, pela “gramática cultural” (Gouadec) de
seu local de produção, sua tradução tem a obrigação de remanejar,
até certo ponto, esta estrutura discursiva, de modo a adaptá-lo à
“gramática cultural” de seu local de destino, a fim de ele seja stricto
sensu receptível. (p. 11)
“Essas regras são absolutas”, ele acrescenta, afirmando que tais regras
determinam, por sua vez, metodologias precisas que garantem que a
transferência de informação poderá se desenvolver de modo satisfatório.
As dificuldades da tradução jurídica são, todavia, maiores, porque
comportam, além da passagem de uma língua para outra e de toda cultura
onde está inserida, um componente a mais: trata-se da transposição da
mensagem de um sistema de direito para um outro. Ou seja, além do contexto
ligado ao documento original, um termo pode igualmente ser indissociável do
contexto legal no qual ela intervém.
As dificuldades da equivalência lexical se manifestam não somente na
tradução legislativa ou jurídica, mas também na tradução de documentos
comuns de direito comercial, por exemplo, especialmente se estes envolvem
empresas constituídas de acordo com o sistema de direito de países
diferentes. Ainda de modo mais geral, as dificuldades de tradução dos termos
com forte conteúdo cultural não se limitam somente ao campo da tradução
jurídica propriamente dita, pois nem mesmo os documentos administrativos
relativamente simples estão livres de tais termos. Dependendo do tipo de
tradução solicitada, juramentada ou livre, o tradutor disporá de abordagens
tradutivas mais ou menos livres. Lembremos que as normas que regem a
profissão
recomendam
uma
tradução
juramentada
“transparente
e
absolutamente literal”, a ponto de ter de reproduzir até os eventuais erros do
original 10.
10
Essas questões de fidelidade e literalidade são complexas e vale mencionar nesse sentido o
precioso trabalho desenvolvido pelo Tradutor Juramentado e Professor de Linguística da
FFLCH-USP, Francis Aubert, do qual destacamos o artigo “Tipologia da tradução: o caso da
tradução juramentada” (1996), e os diversos artigos publicados na Ipsis Literis, uma revista
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
Os tradutores, quando estão a serviço da justiça, têm geralmente o
dever de traduzir “literalmente”. Para os juízes em geral, e inclusive nas leis
que prescrevem as normas da profissão, a tradução literal significa “tradução
fiel”. Mas, o que significa “traduzir literalmente”? A maioria dos dicionários
define a tradução literal como aquela feita “palavra por palavra”, ou seja, em
conformidade exata com o texto original. O dicionário eletrônico Houaiss, por
exemplo, define literal como: “que reproduz exatamente, palavra por
palavra, determinado texto ou trecho de um texto”. Felizmente, o antigo
debate entre os defensores da tradução literal e os da tradução livre que
dividiu os linguistas e os tradutólogos parece ter ficado no passado e hoje as
noções de fidelidade e de literalidade na tradução foram substituídas por
outras noções menos radicais, como os “graus ou níveis da equivalência” entre
o original e sua tradução.
Muitos tipos de equivalências se cruzam, ou seja, elas recebem
denominações diferentes segundo os teóricos, mas elas designam geralmente
o mesmo conceito ou conceitos que apresentam uma ínfima diferença. Alguns
teóricos, SNELL-HORNBY (1995), por exemplo, assumem ter identificado mais de
57 equivalências, entre outras, linguísticas, paradigmáticas, estilísticas,
semânticas, formais, referenciais, pragmáticas, dinâmicas e, seguramente, a
equivalência
funcional.
Esses
são
os
tipos
de
equivalências
mais
frequentemente analisados, porém, é necessário perceber que esses
equivalentes situam-se em planos diferentes. A equivalência linguística, por
exemplo, situa-se no plano da semântica, a equivalência paradigmática situase no plano gramatical e a equivalência pragmática situa-se no plano
extralinguístico.
VINAY e DARBELNET (1958) foram os pioneiros na elaboração de uma
tipologia de procedimentos comparando sistematicamente textos originais
com suas traduções. Vinay e Darbelnet defendem que os diferentes métodos
da ATPIESP (Associação Profissional dos Tradutores Públicos e Intérpretes Comerciais do
Estado de São Paulo).
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
ou procedimentos poderiam ser resumidos em apenas sete, cuja utilização
pode dar-se de maneira isolada ou combinada: o empréstimo, o decalque, a
tradução literal, a transposição, a modulação, a equivalência e a adaptação.
Segundo esses autores, quando uma mesma situação é expressa em dois textos
com métodos estilísticos e estruturais totalmente distintos, tem-se um caso
de equivalência. Derivadas também da proposta de Vinay e Darbelnet são as
modalidades de tradução de FRANCIS AUBERT (1998). Elas integram um modelo
de pesquisa tradutológica com base em corpus e que visa, principalmente, a
análise quantitativa de traduções. Uma revisão dessas modalidades foi
proposta por Aubert em 2006, onde ele define que “as modalidades de
equivalência são aquelas em que a atuação, interferência e coautoria do
tradutor tornam-se mais visíveis” (2006: 65). Em outras palavras, a estratégia
da “equivalência” está presente quando o tradutor deixa à mostra a sua
preocupação com a receptividade do texto na cultura de chegada.
O tradutor experiente sabe que uma equivalência “perfeita” entre
termos de línguas diferentes não ocorre frequentemente. Para DUBUC (1985:
69) há equivalência “quando o termo na língua de chegada exibe uma
identidade completa de sentidos e de usos com o termo da língua de partida,
no interior de um mesmo domínio de aplicação”. Segundo este autor, essa
equivalência perfeita só seria possível se fossem observados três critérios
entre os termos: identidade de sentido, de nível sociolinguístico e de uso. Na
maioria dos casos, principalmente em tradução jurídica, encontramos o que
Dubuc denomina de equivalência parcial ou correspondência, ou seja, quando
“o termo da língua A só recobre parcialmente o campo de significação do
termo da língua B e vice-versa” (1985: 69). É o caso dos termos Maire x
prefeito, que abordaremos no item 5.
Atualmente, há numerosos estudos linguísticos sobre a tradução
jurídica, especialmente no Canadá, desenvolvidos por juristas linguistas como
Jean-Claude Gémar, que elaborou em 1979 uma tipologia sobre os problemas
da tradução jurídica. Essa primeira obra, bem como a maioria dos artigos que
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
escreveu ao longo de sua carreira, foram retomados e publicados em 1995 em
uma obra de dois tomos, intitulada Traduire ou l’art d’interpreter. LouisPhilippe
Pigéon,
autor
de
La
traduction
juridique.
L’équivalence
fonctionnelle (1982), é advogado, juiz e professor na Universidade de Laval
(Québec) e considerado um importante teórico canadense, cuja obra foi
fundamental neste estudo, pois trata da “equivalência funcional” em
tradução jurídica.
Particularmente, o francês Malcolm Harvey, da Universidade Lumière,
de Lyon, especialista em tradução jurídica, é autor de um texto intitulado
Traduire
l’intraduisible,
Stratégies
d’équivalence
dans
la
traduction
juridique (2002), no qual descreve quatro técnicas em tradução jurídica: a
equivalência funcional, a equivalência formal, a transcrição, a tradução
explicativa.
Harvey afirma que há três tipos de termos cujas diferenças
interculturais constituem um perigo para o tradutor jurídico: os conceitos (ex:
habeas corpus); as instituições (ex: Tribunal Superior Eleitoral); os atores
jurídicos (ex: tabelião, juiz etc.). Nesta pesquisa, nos interessamos
particularmente pelos dois últimos, acrescentando-se a esses especialmente
os termos usados em documentos civis ou escolares.
O
que
Dubuc
chama
de
“correspondência”,
referindo-se
aos
equivalentes parciais, é tratado por Lerat (1995: 95) como equivalentes
funcionais.
Mas, o que se entende por “equivalência funcional’?
5. A noção de “equivalência funcional”
A equivalência funcional, tal como a compreendemos atualmente,
refere-se ao procedimento pelo qual o tradutor procura, na língua de
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
chegada, os elementos linguísticos, contextuais e culturais permitindo-lhe
restituir um texto que pode ser funcional na cultura receptora. O qualificativo
funcional deve ser entendido aqui no sentido pragmático. Quer dizer que o
objetivo do tradutor é devolver um texto que permite cumprir os mesmos
atos, jurídicos ou administrativos, que o texto de partida.
Traduzir, nesse sentido, é um processo que vai além da simples
substituição dos elementos lexicais e gramaticais de uma língua por aqueles
de outra língua. O êxito da equivalência pode, de fato, compreender “a
perda” de elementos linguísticos de base presentes no texto de partida, os
quais são substituídos por elementos linguísticos da língua de chegada que
tenham uma função equivalente. Isso quer dizer que, nessa busca de uma
equivalência funcional, o tradutor se distancia da equivalência linguística, ou
seja, aquela que ele obtém traduzindo palavra por palavra.
Traduzir segundo o procedimento da equivalência funcional significa
aceitar que a tradução não é uma ciência que comporta termos precisos e
unívocos, mas antes, termos aproximativos e desiguais na maior parte do
tempo. Os provérbios e as expressões idiomáticas fornecem bons exemplos de
equivalência funcional. A equivalência não deve ser procurada nos elementos
linguísticos do provérbio e da expressão idiomática, nem na frase em si, nem
nas imagens contidas nesta última, mas antes na “função” do provérbio ou da
expressão idiomática. O provérbio ou a expressão idiomática de partida é
substituído por uma expressão na língua de chegada que tenha as mesmas
funções na cultura receptora.
Segundo Harvey, há quatro técnicas de tradução utilizadas pelos
tradutores na expressão de noções próprias a uma cultura jurídica. Embora a
equivalência funcional seja, nesse caso, a estratégia considerada mais
adequada, poderemos observar que, na prática, as outras três técnicas de
tradução têm sido amplamente utilizadas pelos tradutores jurídicos ou
juramentados.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 43-70
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
A equivalência funcional, segundo Harvey (2002), é um procedimento
que consiste em encontrar, na língua de chegada, um referente que preencha
uma função semelhante. Trata-se de uma adaptação intercultural. Citaríamos
como exemplo do francês para o português: Tribunal du commerce como
equivalente funcional de “Junta comercial”. Harvey afirma que este é o
“método ideal de tradução”, mas a seguir faz a ressalva de que essa técnica
de tradução é satisfatória para “o grande público”, mas que deve ser
manipulada com precaução em textos jurídicos mais complexos. É por essa
razão que os juristas linguistas atualmente valorizam não a identidade da
formulação escolhida, mas a identidade dos efeitos jurídicos nas duas versões
de um mesmo texto. Ou seja, o importante é a função comunicativa do texto
traduzido, como anteriormente descrito por Berman, o que confirma a famosa
teoria do Skopos formulada por Vermeer 11. Enfim, ele observa que a tradução
de uma especificidade cultural por outra especificidade cultural também pode
obscurecer o entendimento.
Em seguida, Harvey analisa a equivalência formal, um procedimento
que, como sabemos, é intensamente utilizado na tradução juramentada no
Brasil, pois parece “cumprir” melhor a exigência de “fidelidade”. Para o
autor, trata-se de uma equivalência linguística que consiste em traduzir de
maneira tão literal quanto possível. Ele cita algumas vantagens desta
estratégia, como por exemplo: ela é transparente e sem ambiguidade,
permitindo buscar sem dificuldade o termo de origem, embora o texto possa
parecer, muitas vezes, “estranho” ao leitor da língua de chegada. Por outro
lado, o maior inconveniente é que na tradução literal corre-se um grande
risco de se utilizar um falso cognato. Há muitos termos cujos significantes
aparentemente “equivalentes” (caso de homônimos, parônimos e outros, cuja
11
O termo skopos é de origem grega e significa objetivo ou finalidade. Foi introduzido
durante os anos 1970 pelo teórico alemão Hans J. Vermeer para designar o objetivo do texto
de chegada e da ação tradutória. Hans J. Vermeer, « Skopos and Commission in Translational
Action », editado por Lawrence Venuti, London, Routledge, 2000, p. 223. (Tradução do autor
deste artigo do texto em inglês). Aproximou-se aqui a equivalência funcional no sentido de
um “objetivo prático” na cultura receptora da tradução.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 43-70
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
semelhança morfológica é resultante de mera coincidência fonética ou
gráfica) são relativamente próximos – às vezes, idênticos – ao passo que seus
significados ou usos são distintos. Sem contar que há numerosos falsos
cognatos ou locuções semelhantes na expressão significante que fazem, em
cada país ou região, referências a realidades ou situações legais e jurídicas
distintas. Citaríamos, como exemplo, um falso cognato duplamente perigoso,
pois se trata de um termo francês que tem uso particular na Suíça e cuja
tradução literal para o português assim como o seu uso inadequado na França
passariam despercebidos por um tradutor desavisado. Trata-se do termo
syndic (equivalente ao maire na França) que, na Suíça romanda, faz parte de
uma terminologia oficial. Na Suíça, não constam as acepções em uso no Brasil
e na França para o termo morfologicamente correlato (síndico/syndic), onde
esse termo tem acepções idênticas. A definição do termo syndic segundo o
Dictionnaire suisse-romand é: premier magistrat d'une commune, maire
(THIBAULT 1997: 681). Mais adiante, trataremos da questão da equivalência
envolvendo os termos maire e prefeito.
Harvey cita ainda dois últimos procedimentos que, a nosso ver, são
frequentemente utilizados na tradução juramentada, portanto, julgamos
interessante mencionar a título de curiosidade. A técnica da transcrição
consiste em reproduzir o termo de origem, acrescentando eventualmente uma
glosa por ocasião da primeira ocorrência: por exemplo, citaríamos o caso de
um documento exigido na Suíça denominado certificat de passage. Não há
como identificar a função desse documento se não for explicado ao leitor
brasileiro que se trata de um documento escolar atestando a mudança de
nível (também denominado bulletin de passage), portanto, o mais adequado,
neste caso, seria utilizar a técnica da transcrição do termo original, com o
acréscimo de glosa. Harvey comenta que essa técnica de tradução é isenta de
ambiguidade pelo fato de “não traduzir” e por privilegiar a transparência e a
precisão em detrimento da elegância e da concisão. Além disso, permite que
se explique detalhadamente na glosa as diferenças significativas entre os
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
sistemas das duas culturas. O autor ainda comenta que considera a transcrição
uma técnica interessante no caso de “manuais de direito”, por exemplo.
Porém, os tradutores juramentados sabem que este recurso é extremamente
indesejável, principalmente em um documento pessoal, cujo formato deveria
permanecer o
mais próximo
possível do
original,
por
questões de
funcionalidade e até mesmo de estética. A última técnica descrita por Harvey
é a tradução descritiva, que consiste em traduzir as especificidades culturais
utilizando termos genéricos, ou seja, evitando longas glosas explicativas,
procedimento muito útil no caso dos termos que não possuem equivalentes.
Porém, ele critica a técnica descritiva pelo fato de provocar facilmente
ambiguidades de interpretação e aconselha que se coloque o termo original
entre parênteses. Como exemplo, poderíamos traduzir por “delito” ou
“fraude” algum tipo de ação ilegal mais específico cujo termo em francês não
tivesse um equivalente em português, mas com o cuidado de deixar o termo
original entre parênteses para leituras ou avaliações posteriores.
6. A equivalência na tradução de documentos
civis e escolares
A prática como tradutora juramentada, assim como os resultados
anteriores de pesquisas feitas pelo autor deste artigo e as de outros
pesquisadores nesse domínio (BARROS; AUBERT; CAMARGO, 2008b, 2008c)
mostram que os tipos de documentos mais comumente solicitados à TJ no par
de línguas português/francês são os escolares (diplomas, históricos escolares
etc.) e pessoais (certidões de nascimento, casamento, óbito, procurações,
carteiras de habilitação etc.), além dos jurídico-societários (estatutos sociais,
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
atas de assembleias e outros), e os jurídico-comerciais (contratos de diversos
tipos e outros).
Destaca-se a importância que os documentos escolares possuem na
sociedade, uma vez que definem e identificam o perfil estudantil e são
documentos exigidos no percurso acadêmico e profissional.
Constatou-se no trabalho anterior que um desconhecimento dos
sistemas educacionais dos países envolvidos, aliados à tendência literalizante
da tradução juramentada, são fatores que podem levar o tradutor a cometer
graves erros na transmissão das informações fundamentais presentes em
documentos escolares, como por exemplo, nível de estudos, título obtido,
formação, curso, disciplinas, notas etc., assim como termos relacionados à
redação dos atestados, certificados, diplomas, enfim, toda terminologia da
documentação escolar.
Os textos que a Jucesp denomina “comuns” – documentos civis em
geral – testemunham como a tradução e a versão juramentada lidam, antes de
tudo, com a necessidade de informar, esclarecer e confirmar a legalidade do
ato administrativo, notarial ou jurídico. É essa dimensão pragmática que exige
do tradutor juramentado uma consciência da importância de se adotar uma
estratégia tradutória adequada na busca dos equivalentes. Trata-se de
privilegiar a fidelidade linguística ou jurídica? Se o documento oficial a ser
traduzido tem validade jurídica, o tradutor deverá levar em conta o sistema
jurídico da língua receptora de sua tradução, facilitando a compreensão para
que
os
fins
legais
sejam
perfeitamente
atingidos.
Ou
seja,
é
a
“funcionalidade” e a validade legal do texto que importam.
Os documentos civis, particularmente, devem ser traduzidos de forma
documental, ou seja, o objetivo não é uma adaptação ao modelo ou formato
do país receptor, mas a apresentação correta e fidedigna dos dados
informados. Uma Carteira de Habilitação, por exemplo, deverá servir para que
o portador consiga obter um documento similar no país estrangeiro. Não há,
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 43-70
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
portanto, necessidade de se imitar as convenções do país de origem, mas
apenas as informações essenciais à finalidade de uso da tradução. No caso das
certidões de nascimento, ao compararmos os documentos franceses e
brasileiros, veremos que eles têm formatos completamente diferentes,
porém, uma reprodução fiel do formato original, com todas as informações
adequadamente traduzidas, poderá ser útil no caso de um cotejo com o
documento original. Pode ser questionada por alguma autoridade, a razão
pela qual a tradução do documento francês não informa, por exemplo, os
nomes dos avôs e avós paternos e maternos, nem das testemunhas. Por outro
lado, uma tradução para o francês da certidão brasileira não poderá omitir
esses dados, obrigatoriamente presentes no documento brasileiro.
Outra diferença relativa às certidões civis é que, no Brasil, temos
apenas um tipo de documento, denominado “certidão”, mas na França,
existem três tipos de documentos para o mesmo evento, por exemplo:
déclaration, acte e extrait de naissance. Na França, a déclaration de
naissance é o documento feito imediatamente após o nascimento, no Registro
civil do local do nascimento, que se encontra instalado na Mairie
(“Prefeitura”); ela é feita geralmente pelo pai e testemunhada pelos médicos
responsáveis presentes no parto. O acte de naissance é o documento jurídico
original definitivo, emitido posteriormente pelo Registro civil e assinado pelo
responsável, geralmente o Maire ou seu substituto (par délégation); o extrait
de naissance é a “cópia” do documento original (acte), válida no país apenas
por três meses, podendo ser emitida uma cópia integral (copie intégrale),
com todas as informações e inclusive averbações, ou uma cópia resumida, o
extrait, nas versões “com filiação” e “sem filiação”. Este último, o extrait de
naissance, é o documento francês que geralmente chega às mãos do tradutor
juramentado.
Lembrando que, além da problemática da equivalência, outra grande
dificuldade está ligada às diferenças entre os dois sistemas administrativos e
jurídicos. Os certificados de registro civil são emitidos na França pela
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
administração pública (municipal, regional, departamental ou cantonal, no
caso da Suíça) enquanto que, no Brasil, eles são expedidos e oficializados por
tabelionatos ou cartórios.
De acordo com Rosiléa Pizarro Carnelós 12
Os cartórios brasileiros, assim como as instituições equivalentes na
França, Luxemburgo, Suíça e Itália, por exemplo, representam um
marcador cultural extralingüístico (sic) muito importante que pode
influenciar o fazer tradutório. A título de exemplo, poderíamos pensar
na tradução de “escrevente” em francês e italiano. Essa função existe
nos cartórios dos países acima? Iniciemos nossa reflexão por uma
distinção: só no Brasil existe o cartório de Registro Civil. Nos outros
países em questão, o Registro Civil está vinculado à Prefeitura de cada
município, e o responsável pela emissão de documentos do Registro
Civil normalmente é o Oficial, o próprio Prefeito ou seu Delegado.
(p.27)
Voltando, portanto, à questão da equivalência do termo prefeito, é
surpreendente constatar que os dicionários indiquem “prefeito” como o
“único” equivalente de maire, uma vez que prefeito é um equivalente de
maire apenas parcialmente, ou seja, na função de “chefe do poder executivo
nas municipalidades” (Houaiss). Quando este ocupa a função do responsável
pelo registro civil e assina as certidões, parece-nos inadequado traduzir maire
por “prefeito”, então, sugerimos que a assinatura seja identificada pela
função de “oficial” que é o “responsável pelo registro civil”. No caso das
versões das certidões brasileiras para o francês, a tradução das assinaturas
dos responsáveis costuma conservar a realidade cartorial brasileira por meio
de uma tradução mais formal e menos funcional. O “oficial de registro civil” é
uma função existente no notariado brasileiro, mas nesses documentos civis
outras pessoas também assinam e essas funções variam muito (secretário,
oficial maior, oficial interino, escrevente substituto, escrivão, tabelião etc.).
Portanto, não há apenas um só responsável e uma só assinatura, como no
12
Tese de Doutorado em Linguística de Rosiléa Pizarro Carnelós – USP - 2005- Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/dl/pos/teses/CARNELOSrosilea.pdf>. Acesso em: 30/06/2010.
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
documento francês, porém, o dever do tradutor é traduzir todas as
informações, nomes e assinaturas, inclusive carimbos pessoais dos assinantes.
Fica claro e evidente em uma versão do português para o francês que se trata
de realidades completamente diferentes.
A mesma “confusão” ocorre com a figura do préfet na França (no
Brasil, um cargo semelhante àquele do nosso Governador estadual, mas cuja
função é mais próxima daquela exercida pela Polícia Federal; no caso da
França, é o administrador regional). Trata-se de um termo cujo provável
correlato em português, pela semelhança morfológica, seria “Prefeito”, mas
trata-se de um falso cognato, pois como vimos, a função “parcialmente”
equivalente do prefeito é exercida pelo Maire 13.
Para finalizar este artigo, apresenta-se a seguir alguns exemplos de
termos franceses que, caso estivessem presentes em um documento oficial,
necessitariam de uma tradução mais atenta às especificidades culturais.
Exemplos 14:
1. canton n. m. « division administrative (inférieure au
département) regroupant plusieurs communes » (inclusive, na
Suíça e no Canadá, a palavra designa outra coisa)
2. carte grise n. f. « carte de couleur grise tenant lieu de titre de
propriété d’un véhicule immatriculé (automobile ou
motocyclette), indispensable pour sa mise en circulation »
3. hypokhâgne n. f. « première année d’école préparatoire »;
khâgne n. f. « deuxième année d’école préparatoire »
4. préfet n. m. « haut fonctionnaire nommé par le président de la
République par décret pris en Conseil des ministres, et
représentant l’État et le gouvernement dans chaque
département français »
5. UFR « unité de formation et de recherche (au sein d’une
université) »
13
Para mais detalhes do estudo específico deste termo, relacionado ao francês da Suíça,
conferir o artigo publicado no número 15 da TradTerm (2009).
14
Exemplos retirados do Dictionnaire suisse romand (1997).
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
Alguns
termos,
por
dependerem
de
estruturas
do
governo
(administração pública, educação pública etc.), são exclusivos de um país e
não são empregados em nenhum outro lugar. Os termos apresentados são
termos franceses empregados apenas na
França.
Uma
“equivalência
funcional” na tradução de tais termos será possível apenas quando a mesma
“realidade” existir na língua de chegada, como o caso do maire, mencionado
anteriormente, cujo equivalente funcional no caso de documentos pessoais
brasileiros é o “oficial de registro civil” e, no caso de documentos suíços, o
equivalente é o syndic. No caso anterior, o termo carte grise é o equivalente
funcional do documento brasileiro denominado Certificado de Registro de
Licenciamento de Veículo (CRLV). Os outros termos apresentados podem ser
considerados
sem
equivalentes
na
realidade
brasileira
e,
portanto,
necessitariam de nota explicativa.
7. Considerações finais
O presente trabalho deu ênfase ao método da “equivalência funcional”
por se tratar de um procedimento que valoriza o termo na cultura receptora,
pois os particularismos das variedades regionais ou nacionais nos provam que
até dentro de uma mesma língua um termo pode ter usos administrativos ou
jurídicos diferentes.
Em sua perspectiva predominantemente teórica, este estudo buscou
investigar se a abordagem funcionalista ou, particularmente, o emprego da
“equivalência funcional” constituiria um procedimento mais adequado na
tradução juramentada ou jurídica. Esta adequação poderia, assim, liberar o
tradutor do conflito relacionado à questão de se traduzir “literalmente”
forma/conteúdo dos termos envolvidos. O estudo concluiu, em um primeiro
momento, que a questão da literalidade parece ter menos importância na
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Chanut, M. E. P. – A noção de equivalência e a sua especificidade na
tradução especializada
medida em que a atenção do tradutor se volta fundamentalmente para um
texto de chegada que possa ser “funcional” na cultura receptora. Portanto, o
estabelecimento dessa equivalência se situaria, então, em uma espécie de
paradoxo: uma vez que a passagem de uma língua para outra é acompanhada
pelo resvalamento de uma tradição jurídica para outra, essa “equivalência”,
que
deveria
ser
“exata”,
“precisa”,
“fiel”,
na
realidade
só
o
é
aproximativamente.
Em outras palavras, este estudo constata que a exatidão exigida do
tradutor jurídico ou juramentada (literalidade, cópia fiel e/ou exata)
depende, paradoxalmente, de conceitos que são relativamente imprecisos
pelo fato de estarem prisioneiros da tradição histórica e jurídica na qual se
desenvolveram.
Enfim, a proposta de uma reflexão sobre a equivalência funcional na
tradução juramentada abordou casos de termos consagrados pelos dicionários
bilíngues que consideramos inadequados e os resultados dessa análise foram
divulgados na Revista TradTerm n. 15, como já mencionado anteriormente.
Convém assinalar que o presente trabalho restringiu essas abordagens a
um questionamento da noção de “equivalência”, sem, todavia, ter a
pretensão de propor soluções tradutórias definitivas aos termos aqui
apresentados.
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TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 43-70
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Tecnologias de tradução:
implicações éticas para a prática
tradutória
Érika Nogueira de Andrade Stupiello *
Abstract: This paper examines the ethical implications for the contemporary practice
of translation with the use of translation memory systems. While considering ethics,
it puts forward an analysis of the extension of the translational responsibility in the
light of thoughts and proposals concerning an ethical attitude by the translator. This
analysis is brought to the work scenario of the contemporary translator, who employs
technological tools, integrates work groups with specific task assignments and is
advised to carry out the work so as to recover previous translation options and turn in
his/her terminological production together with the translation. We conclude that
this work configuration ends up dissipating the translator’s responsibility whereas it
recovers the conception of translation as transposition of meaning between different
languages.
Keywords: ethics; responsibility; translation; translation memories.
Resumo: Este trabalho compreende uma reflexão sobre as implicações éticas para a
prática contemporânea de tradução com o uso de sistemas de memórias. Ao pensar
em ética, propõe-se uma análise da extensão da responsabilidade tradutória à luz de
pensamentos e propostas que versam o que constituiriam atitudes éticas por parte do
tradutor. Essa análise é trazida para o cenário de atuação do tradutor
contemporâneo, que faz uso de ferramentas tecnológicas, integra equipes de
trabalho com designação específica de tarefas e é orientado a conduzir sua prática
de forma a recuperar opções anteriores de tradução e a fornecer sua produção
terminológica em conjunto com a tradução. Concluiu-se que essa configuração de
trabalho acaba por dissipar a responsabilidade do tradutor ao mesmo tempo em que
retoma a concepção de tradução como transposição de significados entre diferentes
línguas.
Palavras-chave:
ética;
responsabilidade;
tradução;
memórias
*
de
tradução.
Doutora em Estudos Linguísticos (Linguística Aplicada) pela Universidade Estadual Paulista
(campus de São José do Rio Preto). Email: [email protected].
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 71-91
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72
Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
1. Introdução
O discurso de caráter ético em tradução tem se pautado, em diferentes
épocas e pela perspectiva da tradição ocidental 1, no estabelecimento de um
conjunto ideal e universalmente aplicável de regras que delimitem o espaço
de atuação do tradutor no trabalho de recuperação de sentidos determinados
no texto de origem. Desde as remotas prescrições do humanista francês
ETIENNE DOLET (1540), a tradução tem sido descrita como uma atividade que
dependeria do estabelecimento de normas que, idealmente, dariam conta de
determinar uma conduta específica para o trabalho do tradutor, fato que tem
reflexos, até os dias de hoje, na forma como grande parte da sociedade
concebe sua profissionalização.
Dos “princípios” estabelecidos por PYM (1997) para uma ética do
tradutor, nas propostas mais recentes, como o “juramento” de CHESTERMAN
(2001), ou mesmo códigos de ética profissionais locais, como o Código do
Sindicato Nacional de Tradutores (Sintra) no Brasil, o que se busca é um
comprometimento ético por esse profissional, que seja guiado por valores
generalizantes que não compreendem as diversas situações vividas pelo
tradutor contemporâneo.
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre como algumas posturas
associadas ao pensamento tradicional em relação à tradução afloram, ainda
que implicitamente, nas expectativas de conduta do tradutor que, cada vez
mais, faz uso de recursos tecnológicos com o intuito de conquistar ganhos em
produtividade e se tornar mais competitivo.
1
Segundo LEFEVERE (1992: 6-7), o pensamento ocidental sobre tradução, da época da república
romana até as primeiras publicações de cunho linguístico por Nida e Fedorov na década de
1930, seria caracterizado por uma forte inclinação normativa, restringindo o trabalho de
tradução em termos de preceitos e categorizações do tipo “certo”, “errado”, “fiel” ou
“livre”.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 71-91
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73
Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
Entre
as
diversas
ferramentas
atualmente
disponibilizadas
aos
tradutores, os sistemas de memórias de tradução parecem ter encontrado
melhor receptividade em meio aos profissionais que trabalham para a
indústria de localização ou que prestam serviços em domínios especializados
do conhecimento, como a tradução de manuais técnicos e outros textos que
acompanham produtos comercializados em diferentes países.
Com base na análise das condições de trabalho do tradutor que
emprega essas ferramentas, propôs-se um exame da extensão de sua
responsabilidade ao integrar um processo maior de produção e distribuição de
informações para públicos situados nos mais diversos locais do mundo,
falantes de diferentes línguas e representantes de vasta diversidade cultural.
2. A urgência da comunicação eletrônica
multilíngue e as ferramentas de auxílio à
tradução
Em uma era que "tempo e espaço foram de tal modo comprimidos pelos
satélites de telecomunicações e pelos meios eletrônicos, [...] que o tempo
tornou-se sinônimo de velocidade e o espaço, sinônimo da passagem
vertiginosa de imagens e sinais" (CHAUÍ 1992: 347), o papel mediador do
tradutor na comunicação de materiais textuais circulados eletronicamente é
encoberto na mesma medida em que aumenta a ênfase na imprescindibilidade
da adoção e do domínio dos recursos das novas tecnologias de auxílio à
tradução para atender às exigências de tempo e prazo do mercado global. As
mudanças na forma como a comunicação se realiza, conforme descritas por
Chauí, implicam em aumento na invisibilidade do tradutor, visto que a
intervenção humana na tradução da comunicação entre diferentes línguas
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
parece ser incongruente em uma era considerada global. O esquecimento do
caráter humano envolvido na tradução é uma das consequências da
superioridade conferida às ferramentas tecnológicas, em especial, em sua
capacidade de tornar o trabalho do tradutor mais rápido e preciso.
A ênfase está na urgência da comunicação multilíngue, sendo assim,
empregar com eficiência ferramentas eletrônicas, como as memórias de
tradução, torna-se uma exigência para o tradutor que presta serviços a
segmentos como o da indústria de localização. O alcance do desempenho
esperado para esse mercado acarreta necessariamente a observância de
regras predefinidas para o trabalho com o texto, de forma que a conclusão de
uma tradução promova o desenvolvimento de trabalhos futuros, em que
trechos de textos traduzidos tornem-se úteis para aumentar o rendimento do
tradutor, reduzindo, desse modo, custos e prazos. A aplicação dessas práticas
de trabalho em tradução é favorecida pela constituição da comunicação
textual no mundo contemporâneo, em que:
[...] em lugar da linguagem como rede de significantes e significados,
signos e significações, haveria "jogos de linguagem" sem sujeito, e a
comunicação seria feita por uma "nuvem de elementos narrativos", por
séries de textos em intersecção com outros, produzindo novos textos
nas instituições e fora delas (CHAUÍ 1992: 347).
Os textos eletrônicos que circulam pela internet são, em sua maioria,
disponibilizados em versões em duas ou mais línguas e desprovidos de
qualquer referência autoral. A partir de um texto eletrônico é possível acessar
outros textos por meio de links automáticos, que conduzem o usuário a
realizar várias leituras, porém, muitas vezes sem qualquer indicação de início
ou fim desses materiais. Essas características promovem a ilusão da
possibilidade de produção e circulação de textos sem qualquer vínculo com
seus autores e tradutores.
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
No caso específico da tradução, essa situação evidencia-se na própria
divisão dos vastos projetos atualmente traduzidos em prazos sempre
inversamente proporcionais à extensão e, por vezes, à complexidade dos
textos. Para possibilitar a produção e a rápida circulação de informações em
diferentes línguas, é comum a divisão dos trabalhos em equipes de tradutores
que, situados em vários locais, recebem textos ou partes de textos extensos,
muitas vezes parcialmente traduzidos e acompanhados por glossários para
garantir a padronização dos trabalhos. Para textos de origem que precisam de
referência autoral, é comum a expectativa de fidelidade, por parte do
contratante, atrelar-se ao conteúdo dos dados terminológicos e fraseológicos
cedidos com o propósito de guiarem as escolhas do tradutor. No contexto
contemporâneo, a preocupação do contratante de uma tradução não se
restringe à qualidade do produto final, mas também, à adequação dessa
produção aos recursos oferecidos pelos sistemas de memórias para alcançar
opções de tradução padronizadas e reaproveitáveis.
A consecução deste objetivo depende da aplicação de regras
preestabelecidas de trabalho com o texto em conjunto com os sistemas de
memórias. Essas regras visam manter o controle das opções e da elaboração
da tradução pelo tradutor e em parte relembram algumas das prescrições
outrora
estabelecidas
para
regular
a
prática.
A
aplicabilidade
de
preceituações relacionadas ao pensamento tradicional sobre tradução e de
proposições
éticas
para
a
prática
contemporânea
de
problematizada a seguir.
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tradução
é
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
3. A relatividade de proposições éticas frente
à aparente invisibilidade tradutória
contemporânea
À primeira vista, a situação atual que se descreve para a prática de
tradução de textos em meio eletrônico e para a indústria da localização
parece não relembrar as posturas que contemplam, acima de tudo, o
estabelecimento de normas para a condução e a avaliação do trabalho do
tradutor. Se voltarmos ao passado, ainda que brevemente, veremos que
muitas teorias que invocavam o critério de fidelidade incondicional em
tradução fundamentavam-se no estabelecimento de “regras” para a atitude
do tradutor diante de um consagrado autor estrangeiro e da superioridade do
texto de origem. Um exemplo bastante conhecido nos estudos sobre tradução
são as preceituações de DOLET (1540), considerado por BASSNETT (1980) um dos
primeiros teóricos a formular uma teoria de tradução regida pela ética do
dever. Em sua relação dos cinco princípios para uma boa tradução, Dolet
simboliza o pensamento de sua época por defender, sobretudo, a
imprescindibilidade de um entendimento perfeito do texto de origem pelo
tradutor, uma vez que o sentido já estaria incrustado na fonte a espera de ser
restituído em outra língua. Por esse prisma, a postura ética do tradutor
adviria da subserviência a regras que projetavam sobremaneira a imagem da
tradução como uma simples reprodução de um conteúdo predefinido.
A ordenação de Dolet e de muitos de seus sucessores como, por
exemplo, TYTLER (1791/1978) 2 e seus "princípios" definidores de uma "boa
tradução", sintetizam, segundo ARROJO (1997), aquilo que o "senso comum" e
2
A primeira proposta de Tytler foi publicada em 1791. A leitura para este trabalho baseou-se
na edição de 1978, publicada pela John Benjamins.
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
grande parte das teorias correlatas sobre tradução há anos têm defendido
como "princípios éticos" para o tradutor, fundamentados na crença da
[...] possibilidade de elaborar uma ética geral que pudesse ser
implementada universalmente, abrangendo todas as atividades de
tradução, independentemente das línguas, e dos interesses
ideológicos, culturais, políticos e históricos e das circunstâncias
envolvidas (ARROJO 1997: 6) 3.
À luz das reflexões de cunho pós-estruturalista, propostas de
estabelecimento de uma ordenação ética totalizadora e aplicável à
diversidade de situações de trabalho do tradutor são questionadas e
desaprovadas por "revelarem um código de ética que está indiscutivelmente
associado aos interesses e aos valores que os produzem e os tornam possíveis"
(ARROJO 1997: 16). Cada norma ou prescrição, ainda que suavizadas como
“orientações” de um manual de usuário, refletem a imagem da tradução em
um determinado tempo e lugar, assim como a expectativa de que a
obediência a esses preceitos garantiria a qualidade do trabalho final.
Para PYM (1997), o estabelecimento de normas de conduta do tradutor
seria uma tentativa de impor responsabilidade sobre o trabalho que realiza,
além de uma forma de promover a consecução da tradução pela submissão a
regras idealizadas. Conforme explica,
[...] governar as relações de modo prescritivo significa, acima de tudo,
determinar o que os outros têm o direito de exigir do tradutor:
fidelidade, exatidão, rapidez, preços razoáveis, solidariedade em
relação aos outros tradutores, respeito ao segredo profissional. Esses
princípios relacionais constituem um tipo de pensamento ético. Eles
estabelecem o que o tradutor deve ou não fazer (PYM 1997: 68).
Idealmente, um tradutor capaz de se adequar e seguir as regras de
conduta a ele determinadas seria, na visão de quem as prega, "um tradutor
3
Esta e as demais traduções de citações em língua estrangeira foram feitas pela autora do
trabalho.
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
altamente profissional, um produto puro dos códigos da profissão” (PYM, 1997:
68). Seria também pela imposição de normas de conduta profissional que o
contratante de uma tradução teria a possibilidade de controlar o processo de
forma a atingir o produto por ele almejado. Como afirma CHESTERMAN (2001), o
estabelecimento de normas seria uma forma de buscar o atendimento de
expectativas determinadas, sendo tais normas
[...] geralmente aceitas (em uma cultura específica) na medida em
que parecem servir a valores prevalecentes, inclusive valores éticos
como verdade e confiança. Comportar-se de maneira ética, desse
modo, significa comportar-se da maneira esperada, de acordo com as
normas, não surpreendendo o leitor ou o cliente (CHESTERMAN 2001:
141).
De acordo com PYM (1997) e CHESTERMAN (2001), a postura ética do
tradutor adviria de sua adoção da conduta desejada por quem a prescreve.
Preceituar o fazer tradutório seria uma forma de fixar uma determinada
maneira do tradutor trabalhar, conforme a imagem idealizada especialmente
sobre o produto desse trabalho, a tradução. Essa imagem é descrita por Pym
ao relacionar a produção tradutória a um “processo de fabricação”, do qual se
espera resultar um produto acabado, um “text achevé”, pois, como questiona
o próprio autor:
[...] para traduzir plenamente, isto é, para ocupar o espaço próprio do
tradutor, deve-se produzir traduções, objetos acabados, concluídos.
Afinal, sem objeto, sem tradução material, sem realização, sem
trabalho cumprido, pelo que o tradutor será responsável? (PYM 1997:
74).
A expectativa do contratante de uma tradução é a de que o texto a ser
traduzido expressará todo o conteúdo do texto de origem e é essa a
responsabilidade que se impõe ao tradutor. Para Pym, no momento em que o
tradutor aceita realizar um trabalho, ele já se torna responsável pelo produto
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
final. Esse é o primeiro princípio para uma ética do tradutor proposto por esse
teórico a partir do questionamento "Faut-il traduire?" [Deve-se traduzir?]. Sua
decisão de realizar uma tradução ou deixar de fazê-la estabelece, como
segundo princípio, a medida da responsabilidade tradutória, ou seja, o
tradutor é responsável na medida em que aceita e se dispõe a traduzir. Como
defende PYM (1997: 136), “o tradutor não é diretamente responsável pela
matéria a ser traduzida, pelas normas da tradução”, mas profissionalmente
por sua decisão de aceitar ou não uma tradução.
Como terceiro princípio, o autor determina que os “processos
tradutórios não devem ser reduzidos à oposição entre duas culturas” e que a
ética do tradutor "deve ser rigorosamente intercultural" (PYM 1997: 136).
Observa-se neste preceito uma postura que idealiza a neutralidade das
relações que se constroem entre duas línguas pela tradução, assim como a
possibilidade do tradutor realizar seu papel de mediador, mantendo-se
imparcial em seu trabalho com diferentes línguas e culturas.
Por quarto princípio, PYM (1997: 136-7) defende que “os gastos de
recursos suscitados pela tradução não devem ultrapassar o valor dos
benefícios da relação intercultural correspondente”, sendo o esforço investido
na tradução tão importante quanto seu resultado. No quinto e último
princípio, o teórico assevera ser responsabilidade do tradutor “contribuir para
estabelecer a cooperação intercultural estável e em longo prazo”.
Enumerada em cinco máximas, a ética do tradutor de Pym busca
favorecer a cooperação entre o tradutor e seu cliente. Acima de tudo, o
“tradutor ético" por ele vislumbrado seria aquele que avalia a finalidade da
tradução para decidir o que e como traduzir, de forma a maximizar a
colaboração com o cliente e “a concentrar os esforços de tradução onde os
mal-entendidos impedem a cooperação" (PYM 1997: 123).
Atribuir ao tradutor a responsabilidade pelo produto de seu trabalho,
ainda que este seja caracterizado como um ato de cooperação para a
realização da comunicação, pode parecer ser uma forma de legitimar a
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
profissão, pela escolha feita pelo tradutor de traduzir ou não um texto ou
parte dele. Pym parece instaurar um paradoxo entre o tradutor soberano que
vislumbra, responsável por suas escolhas (até mesmo pela opção de não
traduzir), e aquele que se subordina as relações de diversas ordens como “as
coisas, as orientações do cliente, as normas em vigor que se aplicam à
tradução, suas próprias condições de trabalho” (PYM 1997: 97). Entretanto,
esses condicionantes não são levados em consideração em seus princípios
éticos, que se atêm a atrelar a responsabilidade tradutória à promoção da
comunicação entre línguas e culturas, deixando de considerar os limites dessa
responsabilidade em relação à diversidade de condições impostas ao tradutor
em seu trabalho. Na visão de GODARD (2001: 57), a proposta de PYM seria de
cunho instrumentalista e falharia por sua abordagem generalizante, na
medida em que "persegue uma ética para todas as modalidades de tradução,
independentemente de seus conteúdos”.
A prática de tradução como um ato de cooperação com o intuito de
promover o entendimento fundamenta também a reflexão de CHESTERMAN
(2001: 141), que atribui ao tradutor a tarefa principal de perseguir a
compreensão entre as culturas, pelo “entendimento de textos, mensagens,
sinais, intenções, significados etc.”. Cuidadoso em relativizar a noção de
“entendimento” que prega, Chesterman defende que “entender uma tradução
significa chegar a uma interpretação compatível com a intenção comunicativa
do autor e do tradutor (e em alguns casos também do cliente) a um grau
suficiente para um determinado fim” (2001: 141).
A postura ética do tradutor de Chesterman seria regida por uma
proposta de um “juramento hieronímico”, em referência a São Jerônimo.
Formulada com base no juramento hipocrático, a lista com os princípios
elencados por esse teórico é valorizada como uma forma de “fortalecer o
credenciamento internacional de tradutores”. O comprometimento do
tradutor com o próprio juramento encabeça a lista, que abrange valores como
verdade, clareza, lealdade e confiabilidade:
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
1. Juro preservar este Juramento com o melhor de minha capacidade e
de meu julgamento. [Compromisso]
2. Juro ser um membro fiel da profissão dos tradutores, respeitando
sua história. Estou disposto a compartilhar meus conhecimentos com os
colegas e transmiti-los a tradutores em treinamento. Não trabalharei
por honorários ilegítimos. Sempre traduzirei com o melhor de minha
capacidade. [Lealdade à profissão]
3. Usarei meus conhecimentos para maximizar a comunicação e
minimizar
desentendimentos
entre
barreiras
linguísticas.
[Entendimento]
4. Juro que minhas traduções não representarão seus textos de origem
de maneiras injustas. [Verdade]
5. Respeitarei meus leitores tentando tornar minhas traduções o mais
acessíveis possível, de acordo com as condições de cada trabalho de
tradução. [Clareza]
6. Comprometo-me em respeitar os segredos profissionais de meus
clientes e não tirar proveito dessas informações. Prometo respeitar
prazos e seguir as instruções dos clientes. [Confiabilidade]
7. Serei honesto sobre minhas próprias qualificações e limitações. Não
aceitarei trabalho que não seja de minha competência. [Honestidade]
8. Informarei meus clientes sobre problemas não resolvidos, e estou de
acordo em resolver casos de controvérsia por meio de arbitragem.
[Justiça]
9. Farei tudo o que puder para manter e aprimorar minha
competência, inclusive todo o conhecimento e as habilidades
linguísticas, técnicas e outros. [Empenho pela excelência] (CHESTERMAN
2001: 153).
A ética defendida por Chesterman fundamenta-se no compromisso
assumido pelo tradutor em "fazer a coisa certa", ao empenhar-se ou, pelo
menos, prometer se empenhar, em por em prática uma série de atitudes, que
vão desde a lealdade à profissão, ao contínuo esforço pelo aprimoramento
profissional, e culminam na concepção de um profissional digno de confiança.
Subjacente aos valores listados estaria a capacidade de entendimento, uma
vez que, o tradutor digno de confiança teria condições de entender a
mensagem do texto que traduz, afinal, como defende o teórico, "para o
tradutor, essa é naturalmente uma tarefa primária: entender o que o cliente
quer, entender o texto de origem, entender o que se espera que os leitores
entendam" (CHESTERMAN 2001: 152).
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
Em relação às prescrições de DOLET (1540) e TYTLER (1978), é notória em
CHESTERMAN (2001) a mudança de abordagem no que diz respeito à intenção de
prever e controlar o trabalho do tradutor. Os primeiros teóricos citados
apoiaram-se em regras e normas específicas, com o intuito de reger e limitar
a interferência do tradutor no texto de origem. Suas ordenações visavam
impelir o tradutor a se prender à reprodução do conteúdo de origem e se
manter subserviente ao texto e ao autor. A concepção de ética por eles
sustentada estava diretamente relacionada à noção de fidelidade à origem.
Nas máximas apresentadas por PYM (1997) e no juramento de
CHESTERMAN (2001) temos por característica comum a generalidade na
expressão das proposições dos autores. Ambos os teóricos atrelam suas
propostas à pressuposição de responsabilidade do tradutor por seu trabalho.
Nas palavras de PYM (1997: 67), “se o tradutor não fosse responsável, se não
tivesse de aceitar a responsabilidade por nenhuma de suas escolhas, não teria
nenhum problema de ordem ética”. A adoção de um discurso abrangente
constitui um aspecto bastante comum em princípios qualificados como éticos,
especialmente pelo fato de terem por objetivo primário guiar e orientar a
conduta de uma determinada prática, sejam eles usados em um discurso
normativo, como o postulado por Dolet, ou expostos em forma de axiomas ou
juramento, como propõem PYM e CHESTERMAN, respectivamente.
O tratamento da ética por Chesterman, por exemplo, que substitui o
ato de “dever” pelo de “prometer”, abrange as relações com o contratante
de uma tradução, entre tradutores e do tradutor consigo, em seu empenho
pelo constante aprimoramento. Seu foco é o tradutor inserido em sua prática
e não mais a aspiração pela neutralidade de sua prática. Ainda assim, vemos
que, apesar de almejar a generalização de qualidades universalmente
desejadas e consideradas nobres em qualquer profissional, valores (expressos
entre colchetes) como compromisso, lealdade, verdade, clareza, honestidade
e confiabilidade parecem se dispersar pela própria forma como o trabalho do
tradutor é concebido e contratado e nas situações em que esse profissional
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
desempenha seu trabalho para mercados como o da localização, que lidam
com textos volumosos e em formato eletrônico.
Essa é também uma questão problemática para o único código de ética
que determina os princípios para a conduta de trabalho do tradutor
profissional no Brasil. A responsabilidade profissional, prevista no Capítulo V,
e o respeito ao trabalho confiado, o texto de origem, constituem máximas do
Código de Ética do Tradutor adotado pelo Sindicato Nacional de Tradutores do
Brasil (Sintra), conforme determinam os princípios do referido código
elencados a seguir:
CAPÍTULO I
Princípios Fundamentais
Art. 1º - São deveres fundamentais do tradutor:
§1º respeitar os textos ou outros materiais cuja tradução lhe seja
confiada, não utilizando seus conhecimentos para desfigurá-los ou
alterá-los;
§2º exercer sua atividade com consciência e dignidade, de modo a
elevar o conceito de sua categoria profissional;
§3º utilizar todos os conhecimentos linguísticos, técnicos, científicos,
ou outros a seu alcance, para o melhor desempenho de sua função;
§4º empenhar-se em participar da tomada de decisões do seu órgão de
classe e em vê-las acatadas, em particular no que se refere à
remuneração justa, às condições de trabalho e ao respeito aos direitos
do tradutor;
§5º solidarizar-se com as iniciativas em favor dos interesses de sua
categoria, ainda que não lhe tragam benefício direto.
CAPÍTULO II
Relações com os Colegas
Art. 2º - O tradutor deve tratar os colegas com lealdade, respeito e
solidariedade.
Art. 3º - O tradutor deve abster-se de qualquer ato que signifique
concorrência desleal a outros tradutores ou exploração do trabalho de
colegas, seja em sentido comercial ou outro.
CAPÍTULO III
Relações com o Contratante do Serviço
Art. 4º - O tradutor deve servir lealmente ao interesse de quem lhe
contratou o serviço.
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
Art. 5º - O tradutor deve empenhar-se em lavrar previamente por
escrito, com o contratante do serviço, as obrigações recíprocas
concernentes ao trabalho em causa.
CAPÍTULO IV
Do Segredo Profissional
Art. 6º - O tradutor é obrigado a guardar segredo sobre fatos de que
tenha conhecimento por tê-los visto, ouvido ou deduzido no exercício
de sua atividade profissional, a menos que impliquem delito previsto
em lei ou que possam gerar graves consequências ilícitas para
terceiros.
CAPÍTULO V
Responsabilidade Profissional
Art. 7º - O tradutor é responsável civil e penalmente por atos
profissionais lesivos ao interesse do contratante de seus serviços,
cometidos por imperícia, imprudência, negligência ou infrações éticas.
CAPÍTULO VI
Aplicação deste Código
Art. 8º - Cabe ao Sindicato Nacional de Tradutores - SINTRA a apuração
de faltas cometidas contra este Código de Ética, a aplicação das
penalidades previstas nos Estatutos do SINTRA e, quando cabível, o
encaminhamento do caso aos órgãos competentes.
Art. 9º - Com discrição e fundamento, o tradutor dará conhecimento ao
SINTRA dos fatos que constituam infração às normas deste Código.
(SINTRA, Sindicato Nacional dos Tradutores, Estatutos, Código de Ética
do Tradutor, 13 dez. 2004.) 4
É notório como o Código de Ética do Tradutor do Sintra confere
visibilidade ao tradutor, como agente que responde diretamente por seu
trabalho e nas relações estabelecidas com clientes e outros tradutores. O
referido código, em seu Capítulo V, até mesmo estabelece que o tradutor é
“responsável civil e penalmente” por suas ações no exercício de sua profissão,
o que imprime comprometimento com o serviço que lhe é confiado pelo
cliente. Por outro lado, se aplicarmos as disposições específicas desse capítulo
à atuação do tradutor brasileiro no segmento de localização, que se
caracteriza pela compartimentação do trabalho entre diferentes prestadores
de serviço, percebe-se como se torna complexo vincular o tradutor a esses
4
Conforme informado pela ex-presidente do Sintra, Profa. Dra. Heloisa Gonçalves Barbosa,
entre 2003 e 2005, esse código foi retirado da página eletrônica do Sindicato, embora
continue fazendo parte dos estatutos dessa associação profissional.
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a prática tradutória
princípios e, em particular, atribuir-lhe a responsabilidade pelo trabalho final
assim produzido.
As condições de produção de trabalhos de tradução em meio
eletrônico, especialmente para a indústria da localização, favorecem o
deslocamento da responsabilidade tradutória pelo trabalho final. A obtenção
do desempenho esperado atrela-se necessariamente à observância de regras
predefinidas para o trabalho com o texto, de forma que a conclusão de uma
tradução promova o desenvolvimento de trabalhos futuros, em que trechos de
textos traduzidos tornem-se úteis para aumentar o rendimento do tradutor,
reduzindo, desse modo, custos e prazos. Nesse contexto, é problemática a
visão de tradução de Pym como “um produto acabado”, considerando-se a
fragmentação do texto de origem para tradução em equipe e as diversas
etapas pelas quais passa o texto até sua conclusão. O tradutor autônomo que
presta serviços para essa indústria é, pelo menos aos olhos de quem o
contrata, apenas um membro de uma equipe coordenada por gerentes de
projetos e que inclui também engenheiros de software, revisores e
profissionais de editoração. Nesse espaço de produção de traduções, grande
parte das estratégias colocadas em prática, envolvendo a adoção de uma
terminologia específica, seu reaproveitamento com o auxílio dos sistemas de
memória e seu controle com o uso de banco de dados, não constituem
decisões do tradutor, devendo ser por ele acatadas e cumpridas. Esse fato
favorece o descomprometimento do tradutor que, por não conhecer ou ser
mantido afastado do processo de preparação do material traduzido como um
todo, não se vincula à sua conclusão. Como consequência, o tradutor torna-se
e faz-se, ainda que aparentemente, invisível aos olhos do contratante e do
usuário final da tradução.
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
4. Considerações finais
Quando grande parte dos textos de origem encontra-se em meio digital,
se dispersa a responsabilidade do tradutor, que passa a lidar com um original
em constante processo de atualização e, em geral, fragmentado para
possibilitar a tradução e o tratamento em equipe. Sendo o comprometimento
do tradutor com o trabalho que realiza limitado também pelas ferramentas
que o auxiliam, desfazem-se as relações que o tradutor constrói com o texto
que produz, um fato que repercute diretamente na concepção ética da
prática.
Como discutido neste trabalho, no momento em que a atuação do
tradutor é ocultada ou relegada a um segundo plano em relação ao
desempenho de ferramentas como aos sistemas de memórias, sua relação com
o texto que traduz limita-se ao pequeno espaço que lhe é permitido intervir
no texto. Nesse sentido, o trabalho humano de recriação de sentidos é
encoberto na produção tradutória, especialmente pela determinação de
reutilização de opções anteriores de tradução recuperadas pelos sistemas de
memórias e pelo confinamento do trabalho do tradutor aos segmentos
predefinidos de texto. Essa restrição da atuação do tradutor limita também a
medida de sua responsabilidade, já que não seria cabível ele responder por
um trabalho do qual só traduziu trechos e que desconhece na íntegra.
Seus conhecimentos linguísticos e a especialidade em uma determinada
área do conhecimento podem ser colocados em segundo plano se entrarem em
conflito com determinada opção anterior de tradução armazenada na
memória a espera de se fazer valer em uma nova tradução. A expectativa e a
prescrição de aproveitamento máximo do que é oferecido pela memória de
tradução confere primazia às relações textuais formadas por esse sistema, em
especial ao se considerar que:
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
[...] nossas tecnologias agora realizam o trabalho de memória para
nós. A linguagem do passado é, assim, retirada de seus contextos
subjetivos; é armazenada; torna-se anônima e desumanizada. Nossas
relações com o outro, através de culturas no tempo e no espaço são
lembradas para nós, e, dessa maneira, não se tornam parte de nós
(PYM 2004: 126).
Não sendo “parte” do tradutor e, assim, deixando de lhe oferecer a
possibilidade de construir uma relação com outra língua e cultura, o texto que
lhe cabe traduzir é reduzido aos fragmentos contextuais recuperados da
memória de tradução. Segmentos de traduções reaproveitados e introduzidos
no novo contexto do trabalho em desenvolvimento tendem a encobrir a
intervenção tradutória, inclusive pelo não reconhecimento, por parte do
contratante do trabalho, da revisão e da adequação feitas pelo tradutor para
que esses segmentos tornem-se coerentes com o texto traduzido de que farão
parte.
Ciente do papel que desempenha na produção de textos para circulação
em meio eletrônico e do pouco controle que exerce sobre a produção final dos
textos que é contratado a traduzir, o tradutor também encontra conveniência
no encobrimento de sua intervenção, até mesmo, aceitando que seu nome
não conste no trabalho realizado. Frequentemente parte de uma equipe, o
trabalho do tradutor e sua intervenção difundem-se entre as traduções
realizadas por outros tradutores para, então, fundirem-se em um só texto,
uma "colcha de retalhos” cujas emendas seriam garantidas pelo controle
terminológico promovido com o auxílio dos bancos de dados formados pelos
sistemas de memórias.
As condições de trabalho do tradutor contemporâneo que faz uso de
sistemas de memórias de tradução convidam a retomarmos as concepções
sobre ética de teóricos como PYM (1997) e CHESTERMAN (2001). Se pensarmos
como Pym que:
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
[...] uma tradução só existe plenamente graças à crença, por parte do
receptor, que tal texto, denominado tradução, foi produzido segundo
um processo, que se chama traduzir, e que o outro, denominado texto
fonte ou original, é o ponto de partida desse processo, mas não
provém, ele mesmo, do traduzir. Dito de outra maneira, o receptor crê
que a tradução representa plenamente o original. Frequentemente
falsa, ideologicamente muito manipulável, talvez seja por essa crença
– ilusão, até mesmo mentira – que o tradutor é, em última instância,
responsável (PYM 1997: 76).
Talvez, possamos inferir que os valores contidos na proposta de
juramento ético do tradutor como “lealdade à profissão”, “entendimento”,
“verdade”, “clareza”, “confiabilidade” e “honestidade” baseiam-se em
crenças sobre o que constituiria o comportamento ideal em determinadas
condições de trabalho. Nas situações descritas neste trabalho, esses valores
ganham nova dimensão pelo modo como o tradutor executa seu trabalho ao
fazer uso dos recursos tecnológicos a ele disponibilizados, ou até impostos,
para manter-se atuante diante das exigências de mercados como o de
localização.
Se retomarmos o juramento proposto por Chesterman no contexto de
atuação do tradutor que faz uso de ferramentas tecnológicas de auxílio à
tradução, pode-se repensar como se constrói a relação de "lealdade à
profissão", defendida por esse autor, na atualidade. Ser leal pode significar
compartilhar memórias para colaborar com colegas autônomos que se sentem
em desvantagem em relação aos extensos bancos de dados terminológicos
com que muitas agências contam, pelo fato de exigirem dos tradutores que
lhes prestam serviços que forneçam a memória formada com a tradução
contratada. Por esse prisma, a lealdade à profissão pode ser contrária à
virtude de confiabilidade por parte do tradutor, também pregada por
Chesterman, especialmente em se tratando do respeito ao segredo
profissional do cliente. Compartilhar bancos de dados formados a partir de
traduções contratadas pode constituir uma forma de “tirar proveito dessas
informações”, um ato contrário àquele defendido por CHESTERMAN (2001: 153).
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
A busca por “entendimento” para “maximizar a comunicação e
minimizar desentendimentos”, sobre a qual se assenta a proposta de
Chesterman, pode estar sendo influenciada pelo modo como as memórias são
projetadas e empregadas pelo tradutor. O próprio projeto desses sistemas,
com ambientes de trabalho que limitam o olhar do tradutor a caixas com
textos segmentados para tradução ou, ainda, colunas com texto de origem e
tradução compartimentados e alinhados, induz o tradutor a se apegar às
opções oferecidas pela memória, atendo-se às orientações fornecidas para
reaproveitamento máximo de trabalhos anteriores na execução de uma nova
tradução. Do modo como é executado com o apoio dos sistemas de memórias,
o trabalho de tradução é controlado a fim de produzir textos traduzidos
idealmente padronizados e, de preferência, que ocultem a intervenção da
interpretação do tradutor. Língua e cultura perdem o vínculo nesse esforço
para padronização de traduções com o uso das memórias, à medida que a
expressividade particular de cada língua é deixada de lado na perseguição por
pares bilíngues simétricos na operação de recuperação promovida pelos
sistemas de memória. O empenho pela “clareza” e por respeito aos leitores já
não dependeria mais exclusivamente das escolhas do tradutor na elaboração
do texto traduzido, mas principalmente das circunstâncias em que ele exerce
seu trabalho. Essa situação, levada às últimas consequências, pode por em
xeque o esforço em prol do “entendimento entre culturas” defendido por
CHESTERMAN (2001).
Nesse sentido, pode-se concluir com KOSKINEN (2000: 108) que “a ética
da tradução não pode ser totalmente coberta pelo regulamento das relações
entre os textos de origem e meta, e nem entre os participantes imediatos no
processo de tradução”. O modo como são contratados e desenvolvidos
projetos de tradução contemporâneos assistidos por ferramentas eletrônicas,
como os sistemas de memória, têm promovido mudanças definitivas na
maneira como o tradutor atua e em como seu trabalho é reconhecido e
remunerado.
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Stupiello, E. N. A. – Tecnologias de tradução: implicações éticas para
a prática tradutória
Concluiu-se que a tradução está experimentando um retorno à tão
combatida concepção de transposição de significados entre línguas, feita por
um tradutor com condições de se manter neutro. Essa aparente neutralidade
seria garantida pela divisão e dispersão do trabalho entre vários tradutores.
As diversas redes de relações linguísticas e culturais outrora, e ainda em
outros setores de trabalho, construídas pelo tradutor na tradução já não são
mais suas, mas misturam-se e difundem-se entre os diversos agentes de um
trabalho incessantemente segmentado e pelo qual já não se pode mais
atribuir um responsável.
5. Agradecimento
Agradeço à Fapesp pelos recursos da bolsa de doutorado (processo no.
06/60974-5) que possibilitaram a pesquisa para elaboração deste artigo.
6. Referências bibliográficas
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A Teoria Interpretativa da Tradução
(Théorie du Sens) revisitada: um
novo olhar sobre a desverbalização*
Reynaldo José Pagura †
Abstract: The Interpretive Theory of Translation, also known as Theory of Sense
(Théorie du Sens), appeared in the 1960’s from the thinking of Danica Seleskovitch as
an interpreter, teacher, and researcher. Seleskovitch is soon joined by Marianne
Lederer. It reaches its heyday in the 1980’s, but in the 1990’s begins to be
questioned by empiricist theoreticians, who defend the use of research methods
borrowed from the so-called “hard sciences” for interpreting and translation studies,
an approach always rejected by both Seleskovitch and Lederer.
Interesting enough, after Seleskovitch’s death ten years ago in 2001, the theory
begins to be reexamined by several researchers in interpretation and translation,
who begin to establish an interface between the théorie du sens and several other
approaches to the study of translation and interpretation. They show that the
concept of deverbalization, which is at the core of the interpretive theory of
translation, is still very much alive and underlies many other translation and
language theories, even when not specifically mentioned. This article intends to
discuss these new looks at the concept of deverbalization, showing how alive and upto-date this concept is in today’s translation and interpreting studies.
Keywords: interpretive theory of translation; sense; deverbalization; translation
theories.
Resumo: A Teoria Interpretativa da Tradução, também conhecida como Théorie du
Sens (Teoria do Sentido), surgiu na década de 1960, a partir da reflexão de Danica
Seleskovitch como intérprete, professora e pesquisadora, a que se uniu Marianne
Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada, em forma oral, no Colóquio de
Comemoração dos 50 Anos da Escola Superior de Intérpretes e Tradutores, Universidade Paris
III (Sorbonne Nouvelle), em novembro de 2007.
*
Professor do Departamento de Inglês da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Email: [email protected].
†
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 92-108
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Lederer. Chega ao seu ápice em termos de aceitação na década de 1980, mas nos
anos 1990 começa a ser questionada por teóricos empiricistas, que defendem o uso
de metodologia de pesquisa quantitativa, utilizada em outras ciências, para os
estudos da interpretação e da tradução. Tal abordagem sempre foi rejeitada por
Seleskovitch e Lederer. Após a morte de Seleskovitch, em 2001, a teoria começa a
ser reexaminada por diversos pesquisadores nos estudos da interpretação e da
tradução, que começam a estabelecer interfaces entre a Théorie du Sens e outras
diversas abordagens para os estudos da tradução e da interpretação. Demonstram
que o conceito da desverbalização, que está no cerne da teoria interpretativa da
tradução, continua em evidência e subjaz a diversas outras teorias da tradução e
teorias linguísticas, mesmo quando não mencionado especificamente. O presente
artigo pretendeu discutir esses novos olhares sobre o conceito da desverbalização,
mostrando como tal conceito permanece atual nos estudos da tradução e da
interpretação nos dias de hoje.
Palavras-chave: teoria interpretativa da tradução; sentido; desverbalização; teorias
da tradução.
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
O surgimento da teoria
A Teoria Interpretativa da Tradução (TIT), também conhecida como
Théorie du Sens [Teoria do Sentido], surgiu a partir da prática em
interpretação de conferências, do exercício docente e da pesquisa acadêmica
de Danica Seleskovitch e, posteriormente, Marianne Lederer, na École
Supérieure d’Interprètes et de Traducteurs (ESIT), da Universidade Paris III,
Sorbonne Nouvelle. A noção de desverbalização, que é um dos pontos centrais
da Teoria do Sentido, apareceu formalizada pela primeira vez em 1968,
quando Seleskovitch publicou sua primeira obra (SELESKOVITCH 1968, 1978),
sendo desenvolvida em detalhes em sua tese de doutorado, defendida em
1973 e publicada em 1975 (SELESKOVITCH 1975).
É preciso deixar bem claro que toda a reflexão teórica de Seleskovitch
se dá a partir dos processos observados na interpretação de conferências (ou
tradução oral), especificamente na interpretação consecutiva tradicional, em
que o intérprete escuta longos trechos de um discurso ou todo o discurso,
para só depois traduzi-lo oralmente. Exemplifica Seleskovitch em sua obra
introdutória:
Imaginemos que acabamos de fazer um breve discurso de três minutos.
Não seríamos capazes de repetir essas quatrocentas ou quinhentas
palavras textualmente, com os gestos e a entoação originais, mesmo
que nos fosse solicitado fazê-lo imediatamente após o fim do discurso.
Normalmente, não saberíamos quais palavras e gestos utilizamos —
nem nós nem nossos ouvintes. O que nossa mente retém é o sentido,
claro e preciso do que dissemos em voz alta, mas já registrados de
maneira amorfa em nossa memória. A maioria das palavras
pronunciadas (...) se apagaram na memória do orador e dos ouvintes, e
apenas o sentido por elas transmitido permanece. Desse modo, tanto o
orador como o ouvinte sabem “o que” foi dito (1978: 16). 1
1
Todas as traduções das citações originais em inglês ou francês são do autor do
presente artigo.
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
O conceito da desverbalização surgiu, pois, originalmente dessa
situação específica e não a partir da tradução escrita, nem mesmo da
interpretação
simultânea.
LEDERER
(1998)
diz
textualmente
que
“a
desverbalização é um fenômeno natural na tradução oral, pelo menos na
interpretação consecutiva. (...) Claramente visível na interpretação, a
desverbalização é mais difícil de ser observada na tradução escrita” (meus
grifos). Fica fácil perceber aqui a admissão de que pode não haver uma
desverbalização completa nas outras modalidades de tradução, que não a
interpretação consecutiva. LEDERER (1985) esclarece ainda que “a palavra
escrita está sempre disponível, permitindo uma apreensão em ritmo mais
lento”. No entanto, diz ela, o leitor “apreende simultaneamente um certo
número de signos, que se ‘coagulam’ em pequenos sentidos, cada um deles
integrado aos seguintes para constituir o sentido geral do texto”.
SELESKOVITCH (1978) também faz questão de deixar clara a diferença entre a
percepção do discurso oral e do texto escrito:
Quando a percepção auditória é comparada à percepção visual do
texto escrito, que por sua própria natureza permite uma outra análise,
permitindo que tanto as palavras quanto a forma permaneçam,
chegamos à conclusão que a percepção auditória tem uma qualidade
especial que permite separar o sentido do palavreado, permitindo que
retenhamos assim o sentido e nos esqueçamos das palavras. (p.16).
É ainda importante lembrar que o raciocínio teórico de Seleskovitch
veio a se opor às ideias correntes na Linguística da época, a saber, o
gerativismo e o estruturalismo. Ela salienta constantemente a relação
existente entre a língua e o mundo exterior, destacando que o processo
tradutório ocorre em nível de parole e não de langue, utilizando-se da
dicotomia saussuriana. “O estruturalismo de Bloomfield e Saussure se
distanciou da relação língua-mundo exterior e língua-pensamento coletivo,
para
examinar
nada
mais
do
que
as
relações
intralinguísticas,
o
funcionamento de um sistema, onde os fonemas se opõem e onde as palavras
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
se definem por oposição umas às outras” (SELESKOVITCH 1976). Reitera ainda a
autora:
(...) estruturalistas como G. Mounin ou R. Jakobson que viram a
tradução humana exclusivamente sob o ângulo do funcionamento da
língua, e um gerativista como N. Chomsky, que trabalhou
indiretamente a favor da tradução mecânica, não perceberam que,
para estudar a tradução, deve-se abandonar o domínio dos sistemas de
signos articulados, o domínio da competência linguística neutra de um
“native speaker” [em inglês no original francês], a fim de penetrar no
domínio do ato de comunicação que é, por sua vez, a realização da
língua e a expressão de um pensamento individual, o domínio das
mensagens transmitidas pela fala e que são, ao mesmo tempo,
compostas da língua e de conteúdos cognitivos ligados aos signos
linguísticos apenas de maneira transitória. O estudo da tradução exige
que se levem em consideração não apenas a competência linguística do
indivíduo que compreende e fala, mas também sua bagagem cognitiva
e suas capacidades lógicas. (...) Compreender um texto ou discurso
não consiste apenas em identificar os conteúdos semânticos
permanentes dos signos linguísticos e a eles atribuir a significação que
se depreende de sua combinação sintática em frases, mas também
discernir os demais elementos cognitivos não-linguísticos que, em uma
dada situação, estão ligados ao enunciado (1980: 403).
A desverbalização e a transcodificação
A
desverbalização,
posteriormente
“conceitualização” (LEDERER 1981, DEJÉAN
LE
também
mencionada
como
FÉAL 1998), constitui o cerne da
TIT e é considerada fundamental para a apreensão do sentido. Resulta da
associação do significado linguístico das palavras com conhecimentos nãoverbais anteriores (“conhecimento enciclopédico”) e com o “contexto de
situação”, que é o conhecimento da situação em que o intérprete se
encontra, envolvendo informações tais como o tema da conferência, quem são
os oradores, qual a posição de cada um em relação a um determinado tópico
etc (LEDERER 1978, 1990).
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
O processo interpretativo é resumido por SELESKOVITCH (1978) do
seguinte modo:
1. Percepção auditiva de um enunciado linguístico que é portador de
significado. Apreensão da língua e compreensão da mensagem por
meio de um processo de análise e exegese;
2. Abandono imediato e intencional das palavras e retenção da
representação mental da mensagem (conceitos, ideias, etc.);
3. Produção de um novo enunciado na língua-alvo, que deve atender a
dois requisitos: expressar a mensagem original completa e ser voltado
para o destinatário (p.9).
Seleskovitch enfatiza diversas vezes que um discurso oral se apresenta
sem ruptura em sua continuidade e que um ouvinte não se concentra em
palavras ou expressões isoladas para o entendimento da mensagem. Caso
tente se deter em palavras isoladas ou qualquer outra marca linguística,
rapidamente perderá a sua compreensão global (SELESKOVITCH 1981, 1991,
1996).
A transcodificação, por outro lado, é a tradução sem desverbalização,
em que se traduzem as palavras de uma língua por equivalências
convencionalmente pre-estabelecidas em outra língua. A TIT admite que deve
haver transcodificação nos casos de números, nomes próprios, siglas e
palavras técnicas específicas. Por exemplo, emphysema em inglês será
automaticamente transcodificado em português por “enfisema”; carburator
será “carburador”, independente de contexto. Datas, quantias e outras
expressões numéricas são normalmente anotadas pelo intérprete quando
ouvidas em uma língua e, posteriormente, lidas na língua de chegada no
momento certo do discurso, sem que seja necessário haver qualquer operação
tradutória. O uso da anotação aqui desobriga o intérprete de ter de “traduzir”
a expressão numérica, economizando também sua memória de trabalho.
Há ocasiões em que, devido à falta de compreensão do sentido, o
intérprete acaba recorrendo à transcodificação pura e simples, até que
consiga compreender o sentido de um trecho de discurso. Isso ocorre,
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
usualmente, no início de um discurso sendo interpretado em simultânea,
quando o intérprete não depreendeu qual a intenção (vouloir-dire, na TIT) do
orador. Dificilmente ocorrerá na consecutiva, em que o intérprete só traduz
após ter ouvido um longo trecho do discurso na língua original. O intérprete
voltará a recorrer à transcodificação caso haja opacidade no discurso em
algum trecho ou quando for citada uma lista de nomes ou cifras e estatísticas.
A essa alternância entre desverbalização e transcodificação, LEDERER (1981
1982) dá o nome de “movimento pendular”, admitindo, desse modo, a sua
existência.
Em resumo, o conceito de desverbalização surgiu da análise da
interpretação consecutiva, feita da língua estrangeira para a língua materna
do intérprete (LEDERER 1985), admitindo-se processos diferenciados na
interpretação simultânea e na tradução escrita. Florence Herbulot, conhecida
tradutora francesa e ex-presidente da Federação Internacional de Tradutores,
chega a dizer que “Danica Seleskovitch começou por recusar que ela [a TIT]
pudesse ser aplicada à tradução escrita. Foram os tradutores que a
convenceram do contrário (HERBULOT 2004).
Críticas à Teoria Interpretativa da Tradução
A TIT sempre sofreu muitas críticas, pois, segundo a maior parte de
seus críticos, as proponentes da teoria nunca provaram “cientificamente” a
existência da desverbalização. No entanto, a tese de doutorado de
Seleskovitch, já referida acima, e a de Lederer, publicada em 1981 (LEDERER
1981a) se apoiam em vastos corpora de gravações de interpretações de
conferências. JENSEN (1985), em um artigo dedicado quase inteiramente a
criticar a TIT, inclui uma declaração pela qual, talvez, ele seja mais
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revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
conhecido do que por qualquer outra que já tenha feito: “Não se consegue
provar que Seleskovitch esteja errada, do mesmo modo que ela não consegue
provar que esteja certa”.
Daniel Gile, matemático de formação e um dos mais prolíficos
pesquisadores na área de interpretação de conferências, foi também um dos
mais frequentes críticos da desverbalização e de outros postulados da TIT.
Segundo ele, as afirmações das proponentes são sempre “categóricas demais e
com uma série de comentários que não são provados por evidências
suficientes”. Questiona constantemente a falta de medidas empíricas (ver GILE
1995a).
GILE (1995b) afirma ainda que “a ‘teoria do sentido’ dá a essa
estratégia [a desverbalização] uma justificativa doutrinária que dispensa seus
defensores de uma justificativa teórica ou experimental”. No mesmo capítulo,
justifica a “sólida implantação” da TIT por “fatores sociológicos”, por ter
Seleskovitch defendido o primeiro doutorado na França sobre interpretação,
por ter ela criado o primeiro programa de doutoramento da área na França e
por ter havido uma série de teses de doutoramento defendidas ainda nos anos
1970 nesse mesmo programa (ver GILE 1995b: 55). Em outra publicação, GILE
(1995 (c)) refere-se à TIT como “engajada em uma teorização especulativa e
introspectiva”, opondo-a a uma tendência teórica surgida a partir de meados
da década de 1980, a que ele denomina “aspirante à ciência”. Em publicação
posterior, GILE (2001, s/pág.) admite:
Um exemplo importante [sobre a reflexão a respeito da interpretação
estimulada pela pesquisa] é o da “desverbalização”, estágio da
interpretação postulado por Seleskovitch no qual o discurso de origem
desaparece completamente em sua forma linguística na mente do
intérprete, e é substituído por um tipo de representação não
linguística do seu “sentido”. A existência de tal estágio na memória do
intérprete nunca foi demonstrada, mas esse conceito é, no entanto,
um dos principais na medida em que afirma a legitimidade da
interpretação baseada no significado (oposta à interpretação baseada
em palavras), e parece ser aceito e praticado por intérpretes e
formadores de intérpretes em todo o mundo. (meu grifo).
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100
Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
PÖCHHACKER (1995), um dos defensores do empiricismo afirma que “a
pesquisa em interpretação ganhou novo ímpeto a partir de meados dos anos
1980. A longa dominação da escola de pensamento representada por Danica
Seleskovitch (...) em Paris veio a ser desafiada pelos esforços de
pesquisadores de vários locais, com abordagens e paradigmas diferentes,
levando alguns a falar de uma “nova era” ou de um “Renascimento” na
pesquisa em interpretação.” Mas o mesmo autor já havia afirmado em
publicação anterior (1992), ao analisar o papel da TIT: “De fato, Mme
Seleskovitch merece total reconhecimento por ter feito oposição às estreitas
concepções linguísticas a respeito da língua, que ainda prevaleciam no início
dos anos 70”.
SCHJOLDAGER (1995) afirma que “como seus críticos repetidamente
apontaram, essa ‘teoria” [a TIT] é, no máximo, uma hipótese tentativa que
nunca foi empiricamente comprovada. Seria extremamente perigoso confundir
tal hipótese com a teoria da interpretação. É triste notar “(...) que a maioria
dos seus pesquisadores provavelmente não percebe tal fato“.
Em resumo, todos os pesquisadores citados nesta seção do presente
trabalho criticam a falta de comprovação empírica da desverbalização pelos
proponentes da TIT, apesar dos inúmeros exemplos retirados de corpora de
gravações reais apresentados pelos proponentes, principalmente por Lederer.
Parece que as únicas provas aceitáveis para tais críticos seriam a
quantificação, as medidas estatísticas que dominam as ciências naturais. É a
eterna busca do cientificismo, que Seleskovitch sempre criticou nas teorias
linguísticas, como já citado anteriormente (ver SELESKOVITCH 1980). DEJÉAN
LE
FÉAL (1998) afirma que todos os pesquisadores apregoam que a “análise
cognitiva é necessária na interpretação”. Corroborando a ideia de Dejéan le
Féal, sabe-se que muitos dos pesquisadores da chamada escola científica —
Barbara Moser-Mercer, Silvie Lambert, Dominique Masaro — são, de fato,
psicólogos cognitivistas de formação. Continua Dejéan le Féal:
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
Em meu entendimento, a desverbalização/conceitualização é
simplesmente a análise cognitiva levada ao extremo — o mesmo
conceito, porém mais detalhado. De fato, não há indicação na
literatura sobre a extensão em que a análise cognitiva deva ser
empreendida. (...) Se os críticos da théorie du sens [em francês, no
original inglês] especificassem até onde deve chegar a análise
cognitiva, seria possível uma discussão mais objetiva da diferença
entre os dois conceitos (p. 43).
Parece-nos que as duas “escolas de pensamento” sobre a interpretação
discordam mais a respeito dos métodos de pesquisa do que sobre os
postulados teóricos em si. Nenhum dos críticos da TIT conseguiu, até o
momento, provar, por meio dos métodos por eles mesmos preconizados, que a
proposta da desverbalização, que está no âmago da TIT, esteja errada. De
fato, a conhecida frase de JENSEN (1985) citada anteriormente, pode também
ser lida da maneira inversa: Seleskovitch não consegue provar que está certa,
do mesmo modo que não se consegue provar que esteja errada.
A desverbalização ressurge no século XXI
Coincidência ou não, após o falecimento de Seleskovitch em 2001, a
ideia da desverbalização, preconizada por ela, vem sendo retomada por
diversos pesquisadores em estudos recentes.
Robin Setton, pesquisador de interpretação sob a abordagem da
pragmática, considera Seleskovitch como “uma pragmatista à frente de seu
tempo” (SETTON 2002). Ele demonstra seu uso de entrevistas em suas
pesquisas, uma estratégia comum hoje em dia nas pesquisas sobre expertise e
uma técnica usada comumente em estudos cognitivos de tradução, sob o
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
nome de think-aloud protocols (TAPs). “No tocante à psicologia cognitiva, o
modelo de memória de Seleskovitch está de acordo com o princípio respeitado
da modularidade, em que processos diferentes competem por capacidade de
atenção. (...) Sua leitura dos dados de interpretação nos termos deste
modelo, apesar de impressionística, foi em si mesma uma importante
contribuição original” (SETTON 2002). Setton salienta ainda o imenso esforço
despendido [inutilmente] pelos opositores da TIT para torná-la apenas uma
coisa do passado. Em sua conclusão, ele demonstra esperança: “À medida em
que os estudos da interpretação amadurecem, talvez cheguemos a um
momento além dos dogmas polarizantes, para reler, atualizar e integrar a
perspicácia radical de Seleskovitch, num momento em que as ciências
cognitivas estão começando a desenvolver contexto e representação
intermediária nos modelos linguísticos e cognitivos” (SETTON 2002).
Antin Fougner Rydning, pesquisadora da Universidade de Oslo, na
Noruega, em recente trabalho (RYDNING 2005), propõe-se a revitalizar a
desverbalização, à luz da chamada blending theory (BT). Utilizando técnicas
de TAP e o software Translog, que registra todos os passos do tradutor no
computador, a pesquisadora demonstra, através de técnicas comumente
utilizadas hoje em dia em pesquisa de tradução, como duas tradutoras (e não
intérpretes) experientes “constroem o sentido”. Utilizando o modelo da
blending theory, a autora demonstra a percepção do sentido, na tradução do
francês para o norueguês, mostrando a fusão (blending) de diversos conceitos
na mente das tradutoras para chegarem a seu (diferente) resultado final no
texto de chegada. A autora afirma que “as palavras [do original] agem
meramente como sugestão para o sentido que nos levam a construir. Elas
disparam a imaginação, onde projetamos conceitos dentro de outros
conceitos” [o modelo da blending theory]. Segundo ela, a tradução “oferece a
pesquisadores da ciência cognitiva um ponto de vista excepcional em um dos
aspectos mais complexos da mente humana: a construção do sentido. Por
outro lado, a BT [blending theory] parece oferecer aos teóricos da tradução
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
um modelo geral de construção de sentido que lhes permite dar conta dos
mecanismos cognitivos que estão por trás da construção do sentido, o que é
central em tradução” (RYDNING 2005). O modelo proposto pela blending theory
parece provar a desverbalização por um mapeamento aceito pelas ciências
cognitivas. Será que estamos vendo o início da comprovação científica sempre
solicitada pelos detratores da TIT? Ou nada além de estatísticas será o
suficiente?
Em artigo publicado no mesmo número da revista Meta, o pesquisador
CLAUDE BOISSON (2005) utiliza modelos do gerativismo mostrando que o processo
da desverbalização de Seleskovitch, na tradução, pode ser integrado “em um
modelo cujo módulo central é um sistema que permite a geração sistemática
de formas lógicas variantes para as sentenças”. Ele declara explicitamente na
conclusão do artigo que seu objetivo é “esclarecer a natureza do processo de
desverbalização e reverbalização” (p. 494) por meio da geração de
“modelizações de conjuntos perifrásticos em abundância” (p. 494). Seria no
mínimo curioso ouvir a opinião de Seleskovitch, caso estivesse viva, a respeito
da “comprovação” de sua proposta de desverbalização por um modelo
gerativista, linha teórica a cuja utilização ela tanto se opôs para a explicação
do ato tradutório.
Por último cumpre mencionar o trabalho de Jean-René Ladmiral, ainda
no mesmo número de Meta, que também se propõe, em longo artigo, a
explicar a desverbalização. Segundo ele, “a tradução é caracterizada, a maior
parte do tempo, pela descontinuidade da transferência da língua-fonte para a
língua-alvo, operada por uma ruptura. Um procedimento de desverbalização
ocorre entre o texto de partida, “que não existe mais” e o texto de chegada,
“que ainda não existe”. Mas o conceito de desverbalização permanece
problemático, pois o sentido parece não existir sem um suporte, cuja
natureza ainda não foi definida.” (LADMIRAL 2005). O pesquisador reconhece,
como já o fizeram Seleskovitch e Lederer, que o processo da interpretação
consecutiva, do qual se originou o conceito de desverbalização, não é o
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Pagura, R. J. – A Teoria Interpretativa da Tradução (Théorie du Sens)
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mesmo da tradução escrita. Aponta duas diferenças fundamentais: a primeira
é a volatilidade da linguagem oral, que se contrapõe à constância da escrita;
a segunda é que na interpretação consecutiva, o original aparece em
sequências longas, de modo que não pode ser estocada na memória imediata
e traduzida instantaneamente como na interpretação simultânea. Parece
claro que Ladmiral pretende destacar que a interpretação consecutiva é
radicalmente diferente da interpretação simultânea e da tradução escrita,
como já mencionado anteriormente neste trabalho. Em outras palavras, existe
“mais desverbalização” na interpretação consecutiva do que na simultânea ou
na tradução escrita, o que foi admitido originalmente pelos proponentes da
TIT. Ladmiral recorre ao termo “para-verbal” para explicar a desverbalização,
admitindo que não se trata de algo totalmente “não-verbal”. Segundo ele, há
diferentes níveis de comunicação verbal. É lapidar a sua explicação, e cumpre
transcrevê-la na íntegra:
O conceito da desverbalização não pressupõe um momento da vida
mental que seja mudo entre dois momentos de verbalização, mas sim
que, entre esses dois, há necessariamente um desligamento da forma
acabada e que se prende às normas das duas línguas em contato
(língua de partida e língua de chegada). Parece incontestável que
todas as nossas representações e toda a nossa comunicação não podem
existir sem um “suporte”. Mas esse suporte não é constituído,
necessariamente, dos significantes de uma língua, de uma só língua,
nem, sobretudo, são esses significantes constituídos de um enunciado
bem formado, conforme às normas de uma determinada língua natural.
(p. 479).
Considerações finais
Ladmiral fornece no parágrafo citado uma das explicações mais claras
do que penso ser a desverbalização. Na interpretação consecutiva ela é,
praticamente, uma necessidade, pois não é humanamente possível que se
retenha o léxico e a estrutura sintática de vários minutos de um discurso. Na
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interpretação simultânea, o discurso de partida encontra-se sempre mais
presente na mente do intérprete, uma vez que a distância entre o momento
em que se escuta o original e se enuncia a tradução oral na língua de chegada
raramente é maior do que três a cinco segundos. A impressão da formulação
linguística original é, de fato, muito mais presente do que na consecutiva e a
desverbalização precisa ser consciente. Na tradução escrita, como já
mencionado, o texto original está presente e pode ser consultado
constantemente. É nesse processo que a desverbalização se torna mais difícil
e precisa, até certo ponto, ser “forçada”. Digo “precisa” propositadamente,
pois todo tradutor sabe que não se podem converter apenas as estruturas e o
léxico de uma língua para as estruturas e o léxico de outra, sob pena de ter
um texto de chegada não-idiomático. Há circunstâncias em que, obviamente,
a proximidade entre sintaxe e léxico das duas línguas em contato permite uma
transcodificação, para se usar a terminologia da TIT. Em outros, no entanto,
fica claro que o tradutor tem de compreender o que diz o texto de partida e
reexpressá-lo na língua de chegada, sem se deter na repetição da sintaxe da
língua de partida ou na escolha lexical calcada em cognatos dessa mesma
língua na língua de chegada. É o chamado “movimento pendular” de Lederer,
também já mencionado. É óbvio que não se trata aqui da tradução de poesia,
mas principalmente da de textos pragmáticos.
É no mínimo curioso notar que Meta, talvez o mais lido e,
possivelmente, um dos mais antigos e prestigiados periódicos científicos de
Estudos da Tradução, traga em um mesmo número recente, em seu 50º ano de
publicação, diversos artigos que se proponham a reabilitar ou explicar o
conceito de desverbalização, proposto por SELESKOVITCH (1968) há várias
décadas. O conceito que, segundo seus críticos, deveria estar morto por
nunca ter sido provado “cientificamente” parece continuar a despertar o
interesse de diversos pesquisadores não só da interpretação, como de fato se
propunha em sua origem, mas de tradução na sua modalidade escrita. São
pesquisadores de diferentes escolas de pensamento e de diferentes
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revisitada: um novo olhar sobre a desverbalização
instituições, que tentam explicar a desverbalização à luz de diferentes
teorias.
Concluo fazendo minhas as palavras de Paulo Rónai, que resumem, para
a tradução escrita e sem mencionar o termo, o próprio conceito da
desverbalização, conforme proposto por Seleskovitch: “O tradutor mais fiel,
já disse, seria aquele que, graças a uma capacidade excepcional, estivesse em
condições de esquecer as palavras da mensagem original e, logo depois, de
lembrar-se de seu conteúdo, para reformulá-la na própria língua, de maneira
mais completa” (RÓNAI 1981).
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As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e
terminologia
Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares *
Abstract: In 2009, seventy years after Sigmund Freud’s death, his work went into the
public domain. As a consequence, after decades of intense critics on the only and
indirect translation available in Portuguese, we finally have in Brazil three
translation projects of his writings being developed directly from the original in
German. The intention of this article is therefore to discuss about the challenges and
directions taken by these translators, above all, concerning the difficult task of
compromising Freud’s acclaimed literary style with a precise recuperation of his
psychoanalytical terminology. As an example, we conclude by investigating the
choices taken to translate Trieb, one of the most important of Freudian concepts.
Keywords: Sigmund Freud; Freud’s translation; Translation and Psychoanalysis; Trieb.
Resumo: Em 2009, 70 anos após a morte de Sigmund Freud, sua obra caiu em domínio
público. Como consequência, após décadas de intensas críticas sobre a única e
indireta versão disponível em língua portuguesa, tem-se finalmente três projetos de
tradução sendo desenvolvidos no Brasil a partir do original alemão. A intenção deste
artigo, portanto, foi a de discutir os desafios e as direções tomadas por esses
tradutores, sobretudo no que concerne à difícil tarefa de conciliar o aclamado estilo
literário de Freud e uma precisa recuperação de sua terminologia psicanalítica. A
título de exemplo, finalizou-se investigando as escolhas feitas para a tradução de
Trieb, um dos mais centrais conceitos freudianos.
Palavras-chave: Sigmund Freud; Tradução de Freud; Tradução e Psicanálise: Trieb.
*
Professor nomeado para a Área de Alemão DLM-FFLCH-USP. Doutor em Psicanálise e
Psicopatologia - Université Paris VII. Doutor em Teoria Literária – UFSC. Pós-doutorando em
Estudos da Tradução - PGET/UFSC. Email: [email protected].
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e terminologia
Sigmund Freud, fundador-idealizador da psicanálise, legou-nos uma
expressiva obra que, sem dúvidas, revolucionou não somente as ciências
clínicas, mas a própria cultura e a noção de sujeito na virada do século XIX
para o século XX. Suas proposições inovadoras e controversas, seus pontos de
vista a respeito do psiquismo e da cultura causaram em sua época, e ainda
hoje causam, celeuma e discussões de cunho hermenêutico e epistemológico
mesmo entre os leitores que puderam ter acesso à sua obra no idioma original
(texto-fonte): o alemão.
Ao longo do século XX, porém, à medida que sua obra era traduzida
para outras línguas europeias modernas e também à medida que avançavam
as recepções da psicanálise nos meios acadêmicos e nos institutos de
formação, questões concernentes à tradução passaram a se confundir com
uma dinâmica de poder institucional. Conforme o viés dado às traduções,
sobretudo
àquelas
que
privilegiaram
um
rigor
conceitual
acima
da
manutenção do estilo freudiano, passou-se a observar uma crescente disputa
entre os freudianos quanto a quem, em que língua, ter-se-ia mantido mais fiel
à obra do mestre.
A mais influente empresa de tradução da totalidade das obras de Freud
deu-se na Inglaterra, a cargo do casal James e Alix Strachey, que verteram a
obra de Freud do alemão ao inglês sob a supervisão teórica e tutela do então
principal representante político do freudismo naquele país: Ernest Jones. O
preço pago por esse pioneirismo foi uma considerável crítica, sobretudo das
escolas francesas de psicanálise que apontaram na Standard Edition dos
Strachey um viés excessivamente médico-biológico para a obra de um
pensador que, mesmo tendo suas origens na clínica médica, gradativamente
dela se afastou para ser um intelectual e pensador do sujeito e da cultura
mediados pela linguagem, pelo simbólico.
Na verdade, apesar da repercussão dessas críticas ser muito mais
vultosa na França e na América Latina, a mais emblemática reprimenda a essa
tradução foi feita nos Estados Unidos com a publicação de Freud and Man´s
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e terminologia
Soul de Bruno Bettelheim. Esse psicanalista vienense radicado nos Estados
Unidos via que o Freud vertido para o inglês perdera seu potencial humanista,
transformando-se em um autor tecnicista.
A explicação provável não é a leviandade ou negligência dos
tradutores, mas um desejo deliberado de perceber Freud estritamente
dentro do quadro da medicina e, possivelmente, uma tendência
inconsciente a se distanciarem do impacto emocional daquilo que
Freud procurou transmitir (BETTELHEIM 1982).
Fortemente influenciada pela leitura que JACQUES LACAN (1901-1981)
propôs em meados do século XX – do que ele chamou de “retorno a Freud”, a
partir de recursos como a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure –, a
intelectualidade francofônica propôs a necessidade de recuperar em Freud o
rigor dos elementos de linguagem, sobrepondo o simbólico ao enfoque médico
e positivista dado pelos britânicos e norte-americanos. Diante dessa
necessidade surge a tradução dirigida por Jean Laplanche, Pierre Cotet e
André Bourguignon, fortemente influenciada pelas ideias dos intelectuais
franceses em voga no período. Essa tradução, influenciada pelas apropriações
lacanianas
da
linguística
de
Saussure,
primou
pela
“fidelidade
ao
significante”, tornando-se uma tradução “terminológica”, sobrepondo o
conceitual ao estilo do autor. Para esses tradutores, expressamente: “A
exatidão inclui a recusa do embelezamento e da reparação” (BOURGUIGNON et
al. 1989). Entretanto, esses tradutores sofrerão pesadas críticas por não
levarem, muitas vezes, em consideração o não isomorfismo lexical entre as
línguas alemã e francesa. O exemplo mais patente é o caso de Angst traduzido
invariavelmente por angoisse (angústia), mesmo quando sua conotação
claramente seria a de peur (medo) ou anxiété (ansiedade).
Casos semelhantes, de discussão quanto aos critérios de tradução,
ocorreram com outras importantes traduções para idiomas europeus como,
por exemplo, o espanhol. Ainda que com uma repercussão muito menor em
um primeiro momento, foi neste idioma que se viu uma primeira empresa de
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e terminologia
tradução pretendendo a totalidade dos escritos freudianos. Trata-se da
tradução intitulada Sigmund Freud – Obras Completas, do espanhol Luís
Lopez-Ballesteros y de Torres, fomentado pelo filósofo Ortega y Gasset
realizada entre 1922 e 1938 (VILLAREAL in Orston 1992). Bastante incompleta e
com muitas imprecisões, esta edição foi revista e ampliada pelo argentino
Ludovico Rosenthal, na década de 1950.
Tantas correções provocaram na Argentina, talvez o mais freudiano dos
países, o debate sobre a importância de uma nova versão. Em tempo recorde,
entre 1978 e 1982, José Luis Etcheverry produziu para a Editora Amorrortu
uma tradução criteriosa e, ainda que sem os exageros e as inflexibilidades da
versão francesa, bastante preocupada com a fidelidade terminológica, sem
esquecer aspectos estilísticos, mesmo que os deixasse em segundo plano
(WOLFSON 2006). Esta é, sem dúvida, a versão mais consultada no Brasil pelos
estudiosos de Freud que não têm acesso ao seu idioma original e que
encontram, portanto, na castelhana língua irmã uma forma de consolo. No
Brasil, até muito recentemente, ficamos à mercê de traduções indiretas e de
comparações entre critérios adotados em traduções para outras línguas. Um
século depois da criação da psicanálise, a única versão da totalidade das obras
de Freud, a Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, é
uma tradução feita a partir da versão inglesa.
Quer dizer, até o final desse século, a única versão disponível em língua
portuguesa aos brasileiros era uma “tradução de tradução”, uma versão feita
a partir da referida tradução de James e Alix Strachey. A versão dos Strachey
divide os leitores de Freud, sendo aqueles criticados pelo viés ideológico que
deram a Freud, sua tradução, porém, foi bastante elogiada pelo pioneirismo,
organização, sistematização e, sobretudo, por um primoroso zelo. Seu aparato
editorial (notas, prefácios, índices, glossários) foi parcial ou totalmente
utilizado por praticamente todos os tradutores para outras línguas e veio a ser
incorporado inclusive á Studienausgabe (Edição de Estudos) alemã. No caso da
tradução brasileira, tradução dessa tradução, ela mostrou-se especialmente
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problemática, não somente por ter sido feita de modo indireto, mas também
por considerável debilidade em critérios e sistematização.
Para a tradutora MARILENE CARONE (1989), crítica mais mordaz dessa
versão, Strachey não seria o problema:
em momento algum os ‘pecados’ de Strachey são frutos da
incompetência do tradutor ou do desconhecimento da língua de
partida ou de chegada. São sempre expressões de uma intenção clara
de apresentar a psicanálise dentro de determinada orientação
ideológica (...). Mas com a edição brasileira não estamos sequer diante
de uma tradução razoavelmente correta do inglês. É muito, muito pior
(...). Trata-se pura e simplesmente de falta de competência e
responsabilidade no trabalho intelectual. Com ela, temos a
melancólica oportunidade de ver um escritor do porte de Freud
falando como um personagem de filme dublado de televisão,
cometendo erros crassos de português, usando uma linguagem
retorcida e pedante, assumindo incoerências teóricas e às vezes
fazendo afirmações inteiramente sem pé nem cabeça.
Atualmente, porém, com um século de atraso, surgem ao leitor
brasileiro simultaneamente três novas traduções de Freud sendo, desta vez
finalmente, traduções diretas do idioma original: o alemão. Este que
certamente pode ser considerado um fato histórico de tradução, que
testemunhamos a partir de 2010, apresenta claros motivos para a sua
compreensão e também pontos fundamentais para reflexão e investigação.
O motivo fundamental deste atraso parece simples: a editora brasileira
que detinha os direitos autorais que agora, 70 anos após o falecimento de
FREUD (em 1939), caem em domínio público era também a que possuía os
direitos da pioneira tradução dos Strachey para o inglês. Esta mesma editora,
a Imago, cinco anos antes de a obra entrar em domínio público, lançou em
2004 um primeiro volume de uma primeira tradução elaborada diretamente
do alemão (Obras Psicológicas de Sigmund Freud – Volume 1 – Escritos sobre a
Psicologia do Inconsciente), a cargo de uma equipe coordenada pelo
psicanalista e tradutor Luiz Hanns.
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Hanns já era uma referência nacional quanto a Freud e sua
terminologia original desde seu Dicionário Comentado do Alemão de Freud,
publicado em 1996 pela mesma editora Imago do Rio de Janeiro. Neste caso,
da tradução de Hanns, o atraso parece ser compensado por um inédito zelo e
minúcia marcados pelas exaustivas referências e notas, além de longa
introdução (45 páginas) dedicada aos Critérios de Tradução ali adotados.
Trata-se aí de um fato sem precedentes mesmo nas famosas traduções para o
francês ou para o espanhol. No caso do espanhol, Etcheverry chegou a
elaborar um breve livro adicional à edição da Amorrortu sobre sua tradução,
mas nada comparável ao que Hanns inseriu nos próprios volumes de suas
traduções.
Em paralelo, porém, outro reconhecido tradutor brasileiro, Paulo César
de Souza, vem elaborando outra versão das obras de Freud. Souza, que já
duas vezes foi agraciado com o prêmio Jabuti de tradução por suas versões
diretas do idioma alemão ao português das obras de Brecht e Nietzsche,
dedicou às traduções da obra de Freud sua tese de doutorado, posteriormente
publicada pela Editora Ática sob o título As Palavras de Freud – O Vocabulário
Freudiano e suas Versões (1999). A tradução de Souza veio a lume somente
em 2010, com os quatro primeiros volumes (de 20 programados) publicados
pela editora Companhia das Letras de São Paulo.
Uma terceira tradução da obra de Freud está a cargo de Renato Zwick,
bacharel em filosofia e tradutor de autores filosóficos e literários de
expressão alemã, pela editora L&PM de Porto Alegre. Também no ano de
2010, esta editora publicou dois primeiros volumes da tradução de Zwick,
desta vez de ensaios de Freud, a saber, O futuro de uma Ilusão (Die Zukunft
einer Illusion) e O Mal-Estar na Cultura (Das Unbehagen in der Kultur).
Temos, portanto, três traduções ocorrendo simultaneamente em três
localidades distintas do País. Diante deste fato ímpar para os estudos de
tradução, já começamos a observar os efeitos de intensos debates, criações
de grupos de estudos, embates entre defensores de uma das três traduções,
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e terminologia
entre tantos outros fenômenos. A importância de fato é compreensível já que
se trata de um autor que fez do simbólico e da linguagem o centro da
experiência humana. Alguém que influencia com sua obra de forma tão
contundente os Estudos de Tradução, a Literatura, a Análise de discurso,
entre outros domínios intelectuais relacionados à linguagem, certamente,
merece um criterioso debate a respeito de sua própria escrita.
O trabalho com a obra de Freud e sua transposição a outras línguas
impõe aos seus tradutores desafios de recomposição de uma escrita complexa
e multifacetada. Ao longo do desenvolvimento de sua teoria e técnica de
trabalho, assiste-se ao concomitante desenvolvimento de Freud enquanto
escritor. Não que desde o seu tempo de neurologista ou pesquisador de
laboratório suas publicações científicas fossem menos elaboradas no que diz
respeito a sua composição estilística. Mas, na passagem para a sua
Metapsicologia (como denominou sua empresa teórica) e nas suas descrições
de caso, os dotes de um Freud beletrista tomam um lugar de destaque. Sua
preocupação em divulgar a psicanálise serve como subsídio para o
aprimoramento de uma estilística elaborada, porém acessível, aproximandose de uma prosa científica. Ao mesmo tempo, suas obras como ensaísta e seus
relatos de casos clínicos fizeram enriquecer sua capacidade de escritor
imaginativo (Dichter) (TAVARES 2007).
Poderíamos dizer com SCHÖNAU (1968), portanto, que se fazia presente
no criador da psicanálise uma espécie de natureza dupla em sua escrita. Uma
espécie de prosa científica (Wissenschaftsprosa), com aspectos de uma
“prosa-poético-imaginativa”
(Dichtprosa),
mas
que
apelando
para
a
sensibilidade do leitor, através de recursos literários, procuraria transmitir
conhecimentos e apelar para a razão. Aqui, aludimos à busca de conciliação
de Freud entre o racional e o estético, admitindo o envolvimento estético de
quem o lê desde que isso não prejudique a Ratio (SOUZA 1998).
Walter Schönau, que exalta os dotes literários de Freud, de fato
defende a tese de um Freud firmemente calcado na ciência, encontrando no
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e terminologia
belo estilo não mais que um poderoso recurso comunicativo. “Estou ciente de
que
a
concentração
sobre
o
estético-literário
oculta
o
perigo
da
desfiguração” (SCHÖNAU 1968). Para este autor, Freud não deve ser visto como
escritor e sim como cientista. O “literário” em Freud “... trata-se aí de um
fenômeno secundário (...) sem negar que ele exerça um papel nada marginal
na estrutura global”. Apesar destas fronteiras entre o científico e o estético
nos parecerem hoje, de certo modo, ultrapassadas, cabe lembrar que
certamente não o eram na virada para o século XX.
Diferente e muito mais ousada é a visão de Walter Muschg, que já em
1930 – mesmo ano, aliás, em que Freud é agraciado com o Premio Goethe –
publica o sugestivo ensaio Freud como Escritor (Freud als Schriftsteller), no
qual sem negar seus dotes científicos apresenta-o como mestre da escrita.
Este importante crítico literário suíço inicia seu ensaio dizendo que “O
escritor Freud não pode ser separado do psicólogo...” e, sendo seu
contemporâneo concluiu considerando-o, “um dos mais impositivos autores da
Literatura (Schrifttum) atual” (MUSCHG 1930).
O estético aparece, de fato, em Freud como um importante recurso à
teorização. Sua opção pelo elemento literário, que se manifesta seja nas
numerosas epígrafes, citações ou analogias de suas construções teóricas com
autores cuja obra se articula à instituição do estético, ou mesmo no estilo
próprio de exposição de suas ideias, poderia ser observado como uma forma
de travestir o discurso teórico, tal qual ocorre com o estilo de escrita comum
a tantos autores da pós-modernidade (TAVARES 2007).
O estilo freudiano, mais do que dar harmonia, beleza e clareza às suas
construções teóricas, implica diretamente a elaboração dessas formulações.
Tomando aqui a ideia de Francesco Adorno, distinguir estilo de conteúdo seria
incorrer em um erro metodológico:
Se o estilo for uma ‘distorção coerente’ da linguagem, não é
necessário somente considerá-lo como modo de expressão, mas é
necessário analisá-lo como uma divergência em relação à norma
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lingüística (sic) que também tem a capacidade para organizar o texto
do pensamento. O ‘estilo’ é, assim, uma maneira de caminhar, um
gesto não textual, capaz também de organizar ‘o texto de um
pensamento’ (ADORNO 1996).
Falar, porém, de um estilo de Freud como um misto de uma escrita que
ora se vale do recurso do rigor e do convencimento, ora da figurabilidade e da
fruição, seria um reducionismo injusto. A colocação de Freud como um dos
maiores escritores do século XX justificar-se-ia se observássemos a riqueza de
seu(s) estilo(s). Qualquer tentativa de rotulá-lo, deveria antes passar pela
observação de seus tradutores franceses (LAPLANCHE, COTET & BOURGUIGNON
1989: 23-4) acerca do “elenco” de estilos manifestos em sua prosa:
-
-
o filósofo e didata da metapsicologia;
o dialético da Psicologia das Massas;
o conferencista real ou imaginário das Conferências e das Novas
Conferências;
o ensaísta da Recordação de Infância de Leonardo da Vinci;
o orador de Recordações Atuais sobre a Guerra e a Morte;
o debatedor que encontra, em Totem e Tabu ou na Análise de
uma Histeria, o movimento mesmo de uma reunião pública;
o polemista da Contribuição à História do Movimento
Psicanalítico;
o procurador que ajusta as contas com Jung, Adler ou Janet;
o panegirista de Charcot;
o biógrafo ou exegeta de Moisés;
o memorialista de si mesmo (Estudo Autobiográfico);
o prefaciador de ao menos 15 obras de confrades;
o linguista de “o Inquietante” (Das Unheimliche);
o poeta das horas de graça concedida pela natureza (“A
Transitoriedade”), pelo romance (Gradiva), pela comédia
shakespeariana (“o Tema das Escolhas dos Cofrinhos”);
o cronista de seus próprios sonhos ou de seus lapsos, inclinado à
confidência ou à confissão;
o dialoguista que sabe fazer falar tanto o pequeno Hans, como
o interlocutor parcial da “Análise Leiga”;
o contador das “Lembranças Encobridoras”;
o folhetinista da Viena burguesa, com suas ruas, suas moradias,
seus pátios, suas escadas, suas alcovas;
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-
o miniaturista do “Bloco Mágico”;
o humorista que gosta de ditos espirituosos e analisa aqueles
dos outros;
o mestre do aforismo, de todas as formas de imagens,
comparações e metáforas, do paralelo, da citação que ele
explora ou do exergo de que se apropria.
Em suma, dizer que Freud era um talentoso escritor talvez em muito se
deva a esta versatilidade, que impede qualquer definição estilística. O recorte
que procuraremos evocar aqui, no entanto, será quanto à insistente
preocupação que se encontra em sua prática, sua teoria e em seu estilo, de
transpor do visual para as palavras e, em via contrária, como suas construções
teóricas remetem à representação imagética, como é o caso dos recursos
topológicos. Segundo sua própria teoria dos sonhos, as imagens oníricas que,
no processo primário, estão associadas às palavras – ou talvez às
representações-palavras – serão traduzidas, a partir do processo secundário,
na busca das palavras que relatarão, e com isso interpretarão, o sonho como
faz o decifrador de um rebus.
Pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho nos são dados como duas
apresentações do mesmo conteúdo em duas línguas diferentes, ou
melhor, o conteúdo do sonho aparece como uma transposição dos
pensamentos de sonho em um outro modo de expressão cujos
caracteres e leis sintáticas podemos conhecer através da comparação
do original com a tradução. (Traumgedanken und Trauminhalt liegen
vor uns wie zwei Darstellungen desselben Inhaltes in zwei
verschiedenen Sprachen, oder besser gesagt, der Trauminhalt
erscheint uns als eine Übertragung der Traumgedanken in eine andere
Ausdrucksweise, deren Zeichen und Fügungsgesetze wir durch die
Vergleichung von Original und Übersetzung kennen lernen können)
(FREUD 1900).
Freud faz uso muito particular dos recursos imagéticos da língua alemã
para tratar justamente, pelo exemplo da narrativa envolvendo o sonho, da
transposição das imagens ao discurso. Neste sentido, demonstra o quanto o
trabalho do analista é um trabalho de tradução (idem).
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Sua versatilidade e sua erudição se destacam no estilo ou na escrita,
porém, à diferença do que se possa pensar, a sua terminologia, os elementos
fundamentais
de
sua
metapsicologia,
seus
Grundbegriffe
(conceitos
fundamentais), eram muito mais “familiares” e “comuns” no contexto de sua
cultura e língua de expressão do que se tende a imaginar a partir das
traduções mais difundidas. Isso, aliás, para aqueles que têm contato com o
seu pensamento no original alemão não é de se estranhar, uma vez que toda a
problemática de sua obra e do tipo de “tratamento psíquico” que sugere é
sobre e para as questões da vida cotidiana (FREUD 1901).
Se dizia que era necessário certo nível intelectual para se submeter à
análise, estava se referindo à capacidade de abstração e de elaborar metáfora
(de “traduzir” em última análise). Freud raramente quis fazer uso das
chamadas “línguas clássicas”, do latim e do grego, como recurso de
autoridade cientificista, tal como se observa em aspectos da erudita tradução
dos Strachey. Freud nunca falou em anáclise (anaclisis), e sim em apoio
(Anlehnung), nunca mencionou um neologismo de origem grega como catexia
(cathexis), mas tratou de algo acessível como a ideia de ocupação ou
investimento (Besetzung).
O objetivo mais amplo, portanto, a partir deste artigo, foi o de
fomentar a discussão sobre as interfaces entre Tradução e Psicanálise a partir
de certas reflexões quanto à situação da tradução das obras de Freud no
Brasil. O fato da elaboração das três novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão foi proposto como ponto de partida para um tema
muito mais amplo, a saber, o da interface entre Psicanálise e Tradução.
Desde a Traumdeutung, sua obra mestra, Freud compara o analista a
uma espécie de “decifrador de hieróglifos” (FREUD 1900) nos moldes de
Champollion, que transpõe a linguagem do inconsciente a uma linguagem
compreensível pela consciência. Ou para citarmos Mahony em seu Freud as a
Writer, “o objetivo mais geral do analista é fazer, por meio de suas
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traduções, a transposição do que é inconsciente para o que é consciente”
(1987: 7).
Freud e a psicanálise nos lembram que “toda língua nos é estrangeira”
(FREUD 1919), é uma lei na qual somos imersos por outro e a partir dos códigos
de um outro. É neste estranho/estrangeiro que constituiremos nossa morada.
A esta questão Freud dedicou seu ensaio de caráter mais linguístico: Das
Unheimliche (1919), no qual trabalhou exaustivamente as implicações deste
significante composto pela negação (prefixo un-) ao familiar (heimlich), ao
lar (Heim) e que dá conta paradoxalmente da “estranheza inquietante”
provocada
pelo
que
nos
é
próprio,
ainda
que
vivido
como
“estrangeiro/estranho” (fremd). Estranho e inquietante é tudo o que me toca
e me diz respeito sem que eu possa para isso encontrar tradução.
A tradução tem uma relação intrínseca com a psicanálise, já que os
primórdios das relações humanas são relações de tradução. “A tradução é
sempre incompleta e cheia de falhas e tropeços como o próprio sujeito. O
autor (...), a relação entre o tradutor e autor é conflituosa como a relação
com o desejo ou a relação psicanalítica” (MONTEIRO, 2009: 43). Acredita-se que
o
debate
entre
estes
fazeres
oferece
muitas
possibilidades
ainda
inexploradas.
Como bem ilustra o título do artigo de Paulo César de Souza, Nosso
Freud (SOUZA 1986), a intenção do autor deste artigo foi lançar luz sobre um
debate do quanto estas traduções contribuirão para uma apreensão direta da
obra de Sigmund Freud, com ou sem interferências de uma terceira língua.
Visou-se analisar as soluções encontradas para certas necessidades de
escolhas com a qual o tradutor tradicionalmente se depara ao estabelecer
suas ênfases ou critérios entre o estilo e a terminologia. Estas questões
fundamentais estão citadas a seguir:
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e terminologia
•
Adaptação ou recriação da terminologia: se Sigmund
Freud pretendeu com sua obra fundar uma disciplina
científica, torna-se difícil precisar o que deve ser
elevado à categoria de conceito e que opções de
vocabulário (filosófico, médico, psicológico) no
português deverão ser priorizadas em termos tais como:
Ich (ego / eu), Es (id/isso), Besetzung (catexia /
investimento / ocupação), Verdrängung (recalque /
repressão / repulsão), Vorstellung (representação /
ideia), Angst (angústia / medo / ansiedade), Verwerfung
(rejeição / forclusão), Zwang (compulsão / coerção /
obsessão), Versagung (frustração / impedimento) etc.
•
Adaptação ou recriação de estilo: se Freud é tido como o
pai da Psicanálise e o inventor de uma disciplina teórica,
não devemos esquecer que ele foi agraciado com o
Prêmio Goethe em reconhecimento ao seu talento como
escritor e ensaísta. Se a necessidade de uma precisão
quanto a sua terminologia é largamente debatida a
partir dos diferentes partidários do freudismo, o maior
prejuízo que acaba por se observar em decorrência
desta busca por um purismo conceitual é a perda da
fruição do texto e a elegância de seu estilo. Mister se
faz, portanto, observar as estratégias de preservação ou
reinvenção deste estilo.
•
Adaptação ou recriação tendo outras línguas como
interdiscurso: se a tradição do freudismo no Brasil foi e
é fortemente influenciada pelas leituras prévias de
autores influentes a partir de outras línguas como o
inglês, o francês e o espanhol (dada a forte tradição
psicanalítica argentina), deve-se observar de que modo
os tradutores sofrerão estas influências ou optarão
realmente por explorar de forma inédita os recursos da
língua portuguesa.
Por certo que os debates sobre essas três traduções prometem ser
intensos e talvez seja um tanto prematura a tentativa de uma ampla
investigação enquanto dispomos de tão pouco material publicado. É
importante esclarecer que até o momento não há nenhum texto de Freud que
tenha sido traduzido e publicado pelos três tradutores em questão.
Mesmo assim, passemos agora para uma primeira exploração das
direções tomadas a respeito do mais polêmico ponto concernente à tradução
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
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de Freud em sua terminologia. Trata-se do conceito fundamental Trieb *, que
através da tradução indireta da Standard Brasileira tornou-se instinto. Nas
críticas aos Strachey e sua “biologização” do texto freudiano, este, o uso de
instinct (e não o de drive) para o Trieb é por certo o exemplo mais evidente.
Em meio às décadas de espera por uma tradução direta, consagrou-se no
Brasil através da forte influência francesa e lacaniana o termo pulsão
(pulsion) como alternativa ao intensamente criticado instinto. Pulsão já
encontra inclusive no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa a acepção
psicanalítica:
substantivo feminino Rubrica: psicanálise. Processo dinâmico, força ou
pressão, que faz o organismo tender para uma meta, a qual suprime o
estado de tensão ou excitação corporal que é a fonte do processo.
Obs.: cf. instinto (psicn.) (HOUAISS & VILLAR 2001).
Nas três referidas traduções, encontramos três versões diferentes para
este que é talvez o segundo (após o termo Unbewusste - inconsciente) mais
central dos conceitos freudianos. Luiz Hanns adere aí à tradição predominante
que através da influência francesa adotou o termo pulsão. Hanns não se
declara plenamente satisfeito com a escolha. Aponta para o exagero daqueles
que separam radicalmente as acepções de instinto e pulsão, já que o Trieb
em certas acepções poderia ser tomado como sinônimo de instinkt, mesmo
que esse dificilmente seja o caso nos usos freudianos do termo. Eis como o
tradutor expõe a defesa de sua opção:
O termo “instinto” não foi adotado nesta tradução por ser mais
estreito que Trieb e levar a uma compreensão mais desligada dos
aspectos volitivos e representacionais também presentes em Trieb e
fundamentais para uma compreensão psicodinâmica e metapsicológica
*
O que aqui é apontado como um mero exemplo comparativo entre as três traduções diretas
da obra de Freud ao português brasileiro é exaustivamente abordado em outro artigo de
mesma autoria “As ‘derivas’ de um conceito em suas traduções: o caso do Trieb freudiano”,
atualmente sob análise para sua publicação em outro importante periódico acadêmico
brasileiro.
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
diretamente do alemão: estilo e terminologia
do inconsciente. Por este motivo a escolha recai sobre o neologismo
oriundo do francês e já usual na psicanálise brasileira “pulsão”, que,
apesar de menos compreensível do que instinto tem a vantagem de
remeter foneticamente a algo que “pulsa” e a “impulsão” (HANNS
2006).
Já Paulo César de Souza, crítico ferrenho da tradução francesa de
Laplanche e grande admirador da versão de Strachey (“... das traduções
atualmente disponíveis... a Standard é ainda a melhor...” SOUZA, 1999),
insiste em instinto colocando o termo entre aspas para diferenciar do
Instinkt, termo alemão que aponta de fato para a acepção fundamentalmente
criticada de determinismo biológico que o termo veicula na língua portuguesa.
Em sua defesa remete o leitor à origem etimológica do termo em “instigar,
aguilhoar, estimular”. Reforça sua opção por instinto em detrimento de
pulsão com o (no mínimo) inusitado comentário:
O mesmo ponto de vista foi saborosamente expresso por um amigo
homossexual, numa ocasião em que lhe perguntei o que achava do
termo “pulsão”. Ele respondeu “Pulsão têm os anjos, meu querido;
gente tem instinto” (registro o fato da sua homossexualidade porque é
freqüente (sic) os homossexuais terem uma percepção mais penetrante
da sexualidade – própria ou alheia) (idem).
Curiosamente, percebemos em outro caso, Hanns aderir mais às
tradições francesas e Souza às soluções da versão inglesa dos Strachey. É o
que ocorre com o também fundamental termo Verdrängung. Para Hanns
Verdrängung é recalque, tão próximo de refoulement (tradução francesa) e
para Souza repressão, tão próximo de repression (tradução inglesa). Souza
chega a traduzir kultur por civilização tal qual o faz Strachey como o termo
civilization.
Renato Zwick, por sua vez, adota para o Trieb uma opção bastante
original e ousada por impulso. Em uma tradução com parcas anotações
percebemos neste tradutor uma preocupação com o leitor não iniciado, ou
talvez uma tentativa de se fazer valer do léxico coloquial da língua
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portuguesa para se aproximar da melhor forma possível do termo freudiano.
Sua publicação de Das Unbehagen in der Kultur (O Mal-Estar na Cultura) é
acrescida de um breve apêndice “Sobre a tradução de um termo empregado
por Freud” no qual utiliza o dicionário de Hanns, alegando que o substantivo
Trieb derivado do verbo treiben significa ‘impelir, impulsionar, tocar para a
frente’” (ZWICK 2010).
O tradutor procura com isso superar a dicotomia certamente
colonialista de aderir ou à tradição anglo-saxã, e traduzir Trieb por instinct
(instinto), ou a francesa que impõe o inusitado pulsion (pulsão, para nós). Em
uma bela metáfora mitológica, aludindo à bravura do astuto Odisseu entre
dois gigantescos monstros marinhos argumenta:
Entre o Cila de um termo impreciso (instinct e por extensão “instinto”
parece mais adequado para verter o alemão instinkt) e o Caríbdis de
um horríssono neologismo (pulsion), acreditamos que haja uma
terceira possibilidade que consiste simplesmente em atentar para os
sentidos do termo alemão e buscar o seu equivalente em nosso idioma.
Por essa razão propomos a tradução de Trieb por “impulso”, termo
que, parece-nos, cobre perfeitamente os vários matizes de sentido da
palavra alemã (ZWICK in FREUD 2010).
A ousadia de Zwick é por alguns motivos louvável, mas principalmente
por ser a primeira autêntica preocupação de um tradutor de Freud em buscar
no nosso léxico e não nas tradições estrangeiras (inglesa/norte-americana,
francesa ou espanhola/argentina) o termo mais adequado ou mais próximo de
uma equivalência. A opção por impulso de fato resolve a ambiguidade
inerente ao Trieb, entre o biológico e o cultural. Não causa estranhamento
afinal que digamos ao mesmo tempo “impulso nervoso” em um texto médico e
“impulso consumista” em um texto sociológico. Este parece ser um poderoso
trunfo para sua defesa.
Entretanto, a ousadia de Zwick, que previu críticas “desdenhosas” dos
fascinados pelos jargões, sobretudo dos iniciados na arte freudiana, talvez
não tenha levado em conta um aspecto do vocábulo impulso que não “cobre
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Tavares, P. H. M. B. – As novas traduções de Freud feitas
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perfeitamente” a acepção freudiana de Trieb. Em Triebe und Triebschicksale
(1914), texto mais diretamente comprometido com a definição do conceito,
Freud esclarece que “o Trieb, entretanto, nunca opera como uma força de
impacto, mas sempre como uma força constante (konstante Kraft)”. Se a
crítica ao instinto era pelo uso que se faz, no alemão, de Instinkt, Freud
utiliza Impuls ou mesmo Antrieb em sua língua para tratar também de uma
força momentânea, passageira, abrupta, como de fato no nosso termo
impulso parece ser o caso.
Instinto, pulsão, impulso ou outro termo ainda? Ao que tudo indica, os
debates seguirão em aberto e tendem à expansão.
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Erostrato: reflexões sobre a
retradução de um conto de Jean
Paul Sartre
Felipe Cabañas da Silva *
Abstract: This paper proposes a reflection about the retranslation of the short story
Herostratus, one of the works of the book The Wall, written by Jean Paul Sartre.
Starting from the proposal of a new translation for the story, the paper intend to
analyse the effects of the lapse of time between both translations, the divergences
of interpretation and the different comprehension of translation involved in the two
projects.
Keywords: Sartre; retranslation; Herostratus; The Wall.
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão a respeito da retradução do conto
Erostrato, de Jean Paul Sartre, que integra a coletânea de contos O Muro. A partir da
proposta de uma nova tradução para o conto, pretendeu-se analisar os efeitos do
lapso de tempo entre as duas traduções, as divergências interpretativas, as distintas
concepções tradutórias envolvidas em cada um dos projetos.
Palavras-chave: Sartre; retradução; Erostrato; O Muro.
*
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo (USP). Email:
[email protected].
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
1. Introdução
O presente artigo se propôs analisar a retradução do conto Erostrato,
de Jean Paul Sartre, que integra a coletânea de contos O Muro, publicada em
1939 às vésperas da segunda Guerra Mundial. A partir de um ato prático de
tradução pretendeu-se desenvolver reflexões que dizem respeito à teoria da
tradução em si, mas também contribuir tanto quanto possível para a tradução
do livro.
Antes de iniciar, é imprescindível explicitar o contexto da escolha do
autor e da escolha do conto. A escolha da leitura de um autor nunca é
aleatória. Há forças que competem neste processo, e uma delas é certamente
social, para nos referirmos às ideias de GIDEON TOURY (2000), para quem há um
sistema de normas atuante não somente no processo em si de tradução, no
indivíduo tradutor, mas também em escolhas e diretrizes editoriais.
Assim, não é demais lembrar que vivemos em uma sociedade que por
inúmeras razões lê Sartre e por isso traduz Sartre. É evidente que nada do que
dizemos fazer em sociedade diz respeito à totalidade dos indivíduos, mas se
refere a eles em termos gerais, e aqui entra a liberdade individual de escolher
ler ou não Sartre dentro de uma sociedade que lê Sartre. Em outras palavras,
como o objetivo proposto foi traduzir um conto de Sartre e estabelecer
reflexões, a partir deste ato de tradução, em comparação a uma tradução
precedente e já estabelecida, de H. Alcântara Silveira, é necessário ter em
mente que Sartre é um autor fundamental para o pensamento ocidental do
século XX e por isso é traduzido em diversas partes do mundo.
Se ler Sartre não tem nada de aleatório, a escolha do conto Erostrato
para a realização da tradução que será discutida tem uma história mais
peculiar. Em primeiro lugar, um conto é uma obra literária acessível a uma
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
discussão tradutória em espaço mais limitado (realizar o mesmo procedimento
para um romance exigiria um espaço muito mais extenso).
Como o objetivo primordial desta tradução é o estudo, pela prática, da
tradução literária, o ideal foi desenvolvê-la a partir de um conto que ainda
não tivesse sido lido. E, além do mais, sem qualquer contato com a tradução
de H. Alcântara Silveira antes de concluir a tradução do conto. A tradução foi
feita, desta forma, como se não houvesse tradução brasileira do livro de
Sartre, sem interferências, com o objetivo de realizar uma curiosa
experiência de tradução e linguagem.
As surpresas, ao ler a tradução de H. Alcântara Silveira, foram muitas.
Surpresas em relação a escolhas tradutórias, escolhas de linguagem,
tratamento das ideias do autor, fidelidades e infidelidades. Surpresas que se
devem, em primeira instância, a um vácuo de meio século entre as duas
traduções. No fundo, o objeto deste artigo são essas surpresas.
Alguns outros pontos também merecem esclarecimento. O livro O Muro
encontra-se no Brasil em vigésima edição da tradução de H. Alcântara
Silveira, e entre o primeiro texto e o último ocorreram revisões editoriais. Ao
comparar o texto de 1966, de 1982 e de 1990 pode-se encontrar inúmeras
diferenças.
A vigésima edição, de 2005, encontra-se esgotada na Editora Nova
Fronteira. Mas, apesar da dificuldade de acesso à última edição, parece claro
que tanto maiores serão as diferenças quanto maior for o lapso de tempo. Por
isso a decisão de usar como base de comparação o primeiro texto, ainda sem
revisões, ou seja, sem nenhuma ação do tempo. Assim, mesmo que a última e
mais atual edição estivesse disponível, a escolha seria mantida em função dos
objetivos aqui propostos.
O estudo e a comparação dessas edições e suas transformações é
bastante interessante e também uma prova da discussão teórica que aqui será
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
central: o fato de as traduções não permanecerem estáticas e intocadas no
tempo, e sugerirem sempre revisões, reformulações, ou, simplesmente,
retraduções. No entanto, não será possível neste espaço efetuar todas essas
comparações e isso talvez possa constituir o objeto de outro artigo.
2. Questões teóricas
2.1 Tradução e linguagem. Linguagem e tempo
Uma das formas pelas quais podemos ver a tradução é pela relação que
se estabelece entre um povo e outro. Relação inevitável, de aceitação ou
estranheza, de paz ou guerra, de compartilhamento de valores ou
antagonismo. É fato que os povos se relacionam; com suas amplas diferenças
de vivência histórica, língua e cultura, os povos necessitam compartilhar um
espaço terrestre amplamente conhecido e explorado em seus menores
recantos.
Se o primeiro impulso (e o mais primário) da tradução é o convívio, ela
surge como mediadora. Mediadora da necessidade elementar da comunicação.
Por trás das línguas, como superfície, a linguagem, como núcleo comum
resgatado. Neste sentido, podemos pensar a tradução dentro da situação
mítica de Babel. Nas palavras de Jacques Derrida:
A “torre de Babel” não configura apenas a multiplicidade irredutível
das línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de
completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria
da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da
arquitetônica. O que a multiplicidade de idiomas vai limitar não é
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
apenas
uma
tradução
“verdadeira”,
uma
entr’expressão
[entr’expression] transparente e adequada, mas também uma ordem
estrutural, uma coerência do constructum (DERRIDA 2002: 12) [grifos do
autor].
Quando Deus condenou o homem à não compreensão nasceu a
tradução. Mediadora da multiplicidade dos idiomas que entre eles resgata
algo em comum. O que é este algo em comum? Precisamente a linguagem, a
faculdade humana essencial de representar o mundo em signos 2 e comunicálo.
A teoria da linguagem é vasta, multidisciplinar e ultrapassa o espaço de
um artigo. Filósofos se debruçaram sobre ela durante toda a história da
filosofia e os linguistas a compreendem sob diferentes vieses. Também é
fundamental para a antropologia, a psicologia e as ciências cognitivas, entre
outras ciências que, em algum momento e de alguma forma, precisam
reportar-se à linguagem.
Por isso, como para a maioria dos fenômenos humanos, não há
definição única e universal, não há conceitualização definitiva. Não há a
Verdade definitiva, com “v” maiúsculo, que o homem tanto busca em todas as
coisas. Neste sentido, estamos nos reportando ao pensamento de Friedrich
Nietzsche. Segundo Rosemary Arrojo:
(...) Nietzsche desmascara a grande ilusão sobre a qual se alicerçam
nossas “verdades”, nossa filosofia, nossas ciências, o pensamento que
chamamos de “racional”. Segundo Nietzsche, toda “verdade”
estabelecida como tal foi, no início, apenas um “estímulo nervoso”.
Todo sentido que chamamos de “literal” foi, no início, metáfora e
somente pode ser uma criação humana, um reflexo de suas
2
Signo, aqui, não no sentido saussuriano da conjunção significante-significado, mas no
sentido mais abrangente de Peirce, que compreende os signos sob todas as formas e
manifestações que assumem linguísticas ou não. Ou seja, signo como o meio da
representação.
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
circunstâncias e, não, a descoberta de algo que lhe seja exterior
(ARROJO 1993: 17) [grifos do autor].
Mas, apesar de tudo, é interessante atentarmos para a definição de
Georges Mounin, um linguista, em seu Dictionnaire de la linguistique. O
verbete langage é o que se segue:
L’aptitude observée chez tous les hommes à communiquer au moyen
des langues. Ou bien l’ensemble de toutes les langues humaines
considérées dans leurs caractères communs. Ou encore,
improprement, dans l’usage des philosophes, l’aptitude à
communiquer même avec d’autres systèmes que les langues naturelles
(= fonction symbolique). Ou enfin l’ensemble de tous les points de
vue, descriptifs ou explicatifs, concernant tous les aspects,
linguistiques,
psychologiques,
sociologiques,
sémiologiques,
idéologiques, sous lesquels on peut considérer les langues (MOUNIN
1974: 196).
Embora se reportar a apenas uma definição não dê conta da extensão e
da riqueza do debate, a definição de Mounin é interessante por diversos
motivos. Apesar de considerar o uso dos filósofos impróprio, em uma crítica
velada à consideração da comunicação para além do signo linguístico, a
definição de Mounin também deixa transparecer este conteúdo universal da
linguagem pulverizado nas línguas, este algo em comum que as línguas
embaralham e que é resgatado em um processo de mediação chamado
tradução. Mounin, ademais, estende a consideração das línguas a aspectos
não exclusivamente linguísticos, incluindo aspectos psicológicos, sociológicos,
semiológicos, ideológicos.
As considerações de Nietzsche sobre as nossas verdades, a demolição
de uma Verdade existente para fora de nossa constituição humana, podem ser
estendidas à linguagem como portadora destas “verdades” – nas aspas de
Rosemary Arrojo. Segundo ela:
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
As teorias da linguagem que emergem da tradição intelectual do
ocidente, alicerçadas no logocentrismo e no que Jacques Derrida
chama de “significado transcendental” têm considerado o texto de
partida como um objeto definido, congelado, receptáculo de
significados estáveis, geralmente identificados com as intenções de seu
autor (ARROJO 1993: 16) [grifos do autor].
Portanto, Arrojo identifica, a partir do pensamento de Jacques Derrida,
uma história intelectual calcada na centralidade do logos, conceito também
espinhoso da história da filosofia e que ganhou diversas definições, segundo as
tradições, mas que no pensamento de Derrida pode ser compreendido como a
centralidade do signo e da palavra – ou seja, da linguagem – como
organizadora de uma razão universal. Assim, podemos dizer que na mais forte
e mais tradicional concepção de linguagem, a compreensão da leitura é a que:
atribui ao leitor a tarefa de “descobrir” os significados “originais” do
texto (ou de seu autor). Ler seria, em última análise, uma atividade
que propõe a “proteção” dos significados originalmente depositados no
texto por seu autor. Embutida nessa concepção de leitura, delineia-se
a concepção de tradução que tem orientado sua teoria e prática:
traduzir é transportar, é transferir, de forma “protetora”, os
significados que se imaginam estáveis, de um texto para outro e de
uma língua para outra (ARROJO 1993: 16) [grifos do autor].
Ainda segundo Arrojo, é Nietzsche que abre a perspectiva em que o
homem não é mais visto como um descobridor de verdades originais, absolutas
e externas à sua constituição enquanto homem. O homem é visto então como
“um criador de significados que se plasmam através das convenções que nos
organizam em comunidades” (ARROJO 1993: 18). Freud, segundo ela, também
viria complementar o pensamento “desconstrutor” de Friedrich Nietzsche
acerca das relações entre sujeito e objeto, virando do avesso a noção até
então difundida de sujeito, o sujeito cartesiano definido pelo racionalismo: “o
homem cartesiano que se definia pelo seu racionalismo passa a definir-se pelo
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
desejo que carrega consigo, que molda seu destino e sua visão de mundo, e do
qual não pode estar plenamente consciente” (ARROJO 1993: 18).
Assim, esta desconstrução do logos sugere que vejamos a linguagem em
movimento e em relação ao sujeito. Ou seja, a linguagem passa a não ser mais
um arcabouço fixo, que organiza significados independentes de um sujeito e
de um momento histórico. A linguagem e suas diversas manifestações não são
uma estrutura fixa e eterna, onde encontraremos repetidamente os mesmos
significados.
A linguagem está inserida no tempo. Os significados passam por
verdadeiras revoluções segundo o momento e a cultura: a maneira de
conceber e dizer se transforma. A maneira de escrever se transforma. Nossas
palavras se transformam.
Basta pensarmos em um exemplo simples, o abismo que há entre a
palavra fromage em francês e queijo em português, para vermos que a
tradução não pode ser esse resgate de um significado original e estável, não
pode ser esta atividade em que a um signo de uma língua corresponde outro,
em outra língua, de valor e significado idênticos.
Ora, os franceses possuem diversas associações ligadas a fromage que
se perdem na palavra queijo em português. Inúmeros tipos de fromage típicos
que desconhecemos e que no fundo não podem tornar-se queijo; serão sempre
fromage. Em sentido inverso, podemos fazer as mesmas afirmações no que diz
respeito à nossa feijoada, incrivelmente diferente de um cassoulet francês.
Estes são dois exemplos muito simples da complexidade envolvida no
processo de significação e tradução. Signos que se referem a coisas análogas
no mundo real se distanciam extremamente no tempo e no espaço.
Mas, o que tudo isso sugere em relação à tradução do conto de Jean
Paul Sartre? Primeiramente, que tiremos uma carga do original, que não o
vejamos como um corpo fixo, quase um arcabouço de concreto cujo conteúdo
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
original deve ser resgatado com fidelidade inabalável. Sugere, assim, que
pensemos o conto de Jean Paul Sartre em suas polissemias.
Sugere também que as traduções tendem a ser revistas, repensadas,
reformuladas. Que a linguagem das traduções está vinculada ao tempo e nele
tende a perder-se. As traduções podem multiplicar-se no tempo e dialogar,
portanto, são objetos temporais. É pela tradução vista em sua inserção no
tempo que se faz necessário pensar o fato da retradução.
2.2 Tradução e retradução
Um autor central para a teoria da retradução é Antoine Berman que, no
artigo La retraduction comme espace de la traduction (1990), busca definir o
conceito.
Como o nome do próprio artigo indica, Berman considera a retradução
intrinsecamente ligada à tradução. Mais que intrinsecamente ligada, a
retradução seria a própria possibilidade de completude/realização –
accomplissement (BERMAN 1990: 1) – da tradução.
Segundo ele, enquanto os originais permanecem eternamente jovens,
as traduções envelhecem. As traduções correspondem a um estado
determinado da língua, da literatura, da cultura e por isso pode acontecer,
frequentemente em curto espaço de tempo, que elas não respondam mais ao
estado seguinte. Por outro lado, no que Berman parece concordar com uma
perspectiva desconstrutivista, nenhuma tradução pôde pretender ser “a”
tradução, e por isso a possibilidade e a necessidade da retradução estão
inscritas na própria estrutura do ato de traduzir. Em suas palavras:
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
Il faut retraduire parce que les traductions vieillissent, et parce
qu’aucune n’est la traduction: par où l’on voit que traduire est une
activité soumise au temps, et une activité qui possède une
temporalité propre: celle de la caducité et de l’inachèvement (BERMAN
1990, p. 1) [grifos do autor].
Nesta caducidade da tradução, Berman identifica as exceções:
traduções que perduram e que, por vezes, têm mais brilho que os originais.
São as grandes traduções. Alguns exemplos são: a Vulgata de São Jerônimo, a
Bíblia de Martinho Lutero, o Plutarco de Amyot, as Mil e uma noites de
Galland, o Shakespeare de Schlegel, a Antígona de Hölderlin, o Don Quixote
de Tieck, o Paraíso Perdido de Milton por Chateaubriand, o Poe de Baudelaire,
o Baudelaire de Stefan George.
“Si toute traduction n’est pas une grande traduction”, afirma Berman,
“toute grande traduction, elle, est une retraduction” (BERMAN 1990: 3). Esta
correlação não é absoluta. Pode haver uma primeira tradução que seja uma
grande tradução, pois a retradução diz respeito não somente a qualquer nova
tradução de um texto. Na concepção de Berman, basta que um texto de um
autor já tenha sido traduzido para que a tradução dos outros textos deste
autor entre no espaço da retradução. No conceito de retradução assim
estendido, é simples notar que as grandes traduções se realizam como
retraduções:
Il faut tout le chemin de l’expérience pour parvenir à une traduction
consciente d’elle même. Toute première traduction est maladroite: se
répète ici au niveau historique ce qui advient à tout traducteur:
aucune traduction n’est jamais une “première version” (BERMAN 1990:
4) [grifos do autor].
Berman propõe dois eixos fundamentais para abordar a retradução, que
chama o kairos e a défaillance (BERMAN 1990: 5). Toda tradução, segundo o
autor, é défaillante, ou seja, é falha, é defeituosa, envolve uma
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
incompletude,
uma
imperfeição,
forças
antitradutivas
que
são
particularmente evidentes nas primeiras traduções. A défaillance (palavra
francesa dificilmente traduzível em português) é simultaneamente a
incapacidade de traduzir e a resistência à tradução.
Também possui uma dimensão temporal, que faz com que seja em seus
primórdios que a défaillance esteja em seu nível mais alto. A retradução
surge, assim, da necessidade de reduzir a défaillance original.
Começa a surgir uma multiplicidade de novas traduções, cada uma
confrontando-se à sua maneira ao problema da défaillance. Às vezes, dentro
desta multiplicidade podemos encontrar uma grande tradução, que, por um
momento, suspende a sucessão das retraduções ou diminui sua necessidade.
Mas, a grande tradução só pode surgir no momento favorável, e este
momento favorável chama-se kairos, o momento em que brusca e
imprevistamente fica suspensa a resistência que engendra a défaillance, a
incapacidade de bem traduzir uma obra: “Catégorie temporelle, le kairos
renvoie à l’Histoire elle même. À un moment donné, il devient ‘enfin’
possible de traduire une oeuvre” (BERMAN 1990: 6) [grifos do autor].
Estas ideias de Antoine Berman são fundamentais para uma reflexão
sobre a retradução, ou para uma consideração da tradução como fenômeno
temporal, de repetição, historicamente marcado. O que também é
interessante notar é que Berman também considera a impossibilidade de
encontrar “a” tradução; nenhuma tradução pode pretender ser “a” tradução,
o que a coloca sujeita à riqueza da multiplicidade.
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
3. Erostrato em debate
Desta forma, foi realizada uma retradução do conto de Jean Paul
Sartre. As diferenças, ou as surpresas, como afirmado na introdução, foram
nítidas desde uma primeira leitura, despretensiosa, da tradução de H.
Alcântara Silveira.
No entanto, é necessário proceder a algum tipo de sistematização. Na
leitura, vemos diferenças nítidas, em grande número, e é preciso encontrar
critérios para classificá-las, encontrando as principais questões suscitadas.
Os dois fatos mais nítidos e visíveis desde o primeiro contato com as
duas traduções: a linguagem da primeira tradução envelheceu, atingiu a
caducidade de que fala Berman. Este envelhecimento, é bom que se tenha em
mente, não é nenhum tipo de julgamento de valor. Não equivale a dizer que a
linguagem renovada é a mais “adequada”, ou “correta”; simplesmente, a
constatação da ação do tempo, certa e inevitável, e da possibilidade da
renovação.
Em segundo lugar, uma questão não necessariamente relativa ao
tempo, mas que pode sim ter relações com um momento histórico: a primeira
tradução preza primordialmente pelo respeito ao original, prende-se
excessivamente a ele, produzindo determinadas construções sintáticas ou
utilizando determinado vocabulário que fazem pouco sentido em português.
Evidentemente, um debate recorrente da história da tradução.
Friedrich Schleiermacher discute “se o tradutor deixa o autor em paz e leva o
leitor até ele; ou deixa o leitor em paz e leva o autor até ele” (SCHLEIERMACHER
2001: 43). Um debate recorrente entre uma tradução estrangeirizadora e uma
tradução domesticadora, a última alvo da crítica do próprio Antoine Berman
em Translation and the trials of the foreign (2000).
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
É nítido que nisto também está implicada uma consideração do texto
em suas polissemias. Afirmar que podemos produzir uma tradução que se
distancie mais do original que outras, para ter cuidado com a língua/cultura
de chegada e o leitor da tradução, é afirmar ao tradutor uma margem de
manobra dificilmente possível em uma concepção excessivamente rígida do
original e do ato de tradução.
Estas são as duas questões fundamentais, primordiais, depreendidas a
partir do que foi proposto e, na realidade, já suscitam amplo debate. Todas
as outras discussões parecem ser apêndices dessas duas questões principais,
como por exemplo, o fato dos textos franceses serem sempre mais ricos em
pronomes pessoais, o que exige do tradutor um cuidadoso trabalho de seleção
e eliminação de pronomes em determinadas partes do texto. Mas, isto ocorre
se o tradutor realmente se preocupa com o texto da língua de chegada e não
fica excessivamente preso ao original.
Em determinados momentos, percebemos diferenças de sentido entre
uma tradução e outra, o que pode tanto ser consequência do lapso de tempo
entre as duas traduções quanto de um apego maior ao original em um caso e
menor no outro.
A primeira tradução fica visivelmente rente ao original. Já a tradução
aqui proposta se distancia um pouco mais, não somente por causa da busca de
um texto que seja coeso em português, como também por causa de uma
diferente concepção de respeito ao original.
As discussões levantadas na introdução deste artigo também sugerem
uma distinta concepção do sujeito tradutor. Não mais o transportador invisível
dos significados originais protegidos, mas personagem central; senão central,
ao menos visível, aceito, como sugerem por exemplo os trabalhos de AUBERT
(1994) e ARROJO (2003). Isto envolve também uma concepção distinta de
fidelidade. Como Arrojo sugere, “mesmo que tivermos como único objetivo o
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
resgate das intenções originais de um determinado autor, o que somente
podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse
autor e de suas intenções” (ARROJO 2003: 41) [grifos do autor]. Na visão de
Arrojo, inclusive, o escritor não é o autor soberano do texto que escreve,
pelas múltiplas dimensões envolvidas na atividade de linguagem, que
envolvem fatores inconscientes, subjetivos, como discutido anteriormente.
Neste sentido, na tradução aqui proposta foi priorizada uma linguagem
mais leve, um texto mais direto, mais fluente, não somente por causa da
língua portuguesa, mas também por causa de determinada maneira de ler
Sartre. O texto sartreano é direto, seco, os diálogos são curtos, poucas
descrições. O tema é árido, a visão do homem é dura e este fala livremente,
sem apegos morais e desprezando em determinados momentos a norma culta.
Além do mais, o conto Erostrato, especificamente, estabelece uma dura
crítica ao humanismo e seu personagem principal encontra-se inteiramente à
deriva. Buscou-se preservar tudo isto, com liberdade, mas uma liberdade
assistida, se assim se pode chamar.
Mas, obviamente, como discutido, esta é uma concepção da literatura
de Sartre e deste conto específico. Como a primeira tradução fica muito rente
ao original, algumas coisas se perderam em um excesso de respeito, que
prende o tradutor e o impede de enxergar o conto de maneira mais
abrangente. O excesso de pronomes pessoais em português, por exemplo,
impede a fluidez do texto, o que não ocorre no francês. Um texto em francês
pode ser direto mesmo com excesso de pronomes pessoais, pois em francês
não existe o pronome oculto. Já em português, um texto que repita todos os
pronomes do texto em francês (o que, diga-se de passagem, não ocorre na
tradução de Silveira neste nível de intensidade) seria ilegível.
Com estes pressupostos, procedamos a uma análise exemplificada das
duas traduções, lembrando que não se pretende esgotar o assunto e que
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
restarão ainda muitos aspectos não discutidos a propósito da tradução
específica deste conto, aspectos que podem ter passado despercebidos e
podem ser objeto de outras reflexões. Não se pretende, também, de forma
alguma, censurar o primeiro tradutor ou propor diretrizes à tradução de
Sartre ou do conto sartreano.
3.1 Linguagem renovada
Desta forma, retomando BERMAN (1990), as traduções envelhecem, pois
correspondem a um estado determinado da língua, da literatura e da cultura,
deixando de responder ao estado seguinte.
Neste sentido, é o primeiro choque na comparação entre a primeira
tradução e a retradução: a retradução parece mais leve, mais fluente, melhor
adaptada ao contexto. A primeira tradução já parece nitidamente deslocada.
Procurou-se elencar o máximo de exemplos, do início ao fim do conto,
relacionando
original,
tradução
e
retradução,
de
marcas
de
um
envelhecimento da linguagem. De modo geral, as diferenças são bastante
nítidas e marcantes.
Mas, alguns aspectos centrais e mais recorrentes incluem, em primeiro
lugar, uma colocação pronominal em mesóclise ou ênclise que hoje em dia
procuramos evitar. Atualmente, é mais corrente usarmos a próclise,
principalmente na fala direta de um personagem, como é o caso de
praticamente todo o conto, narrado em primeira pessoa pelo personagem
principal.
Este é um exemplo de construção sintática que cai em desuso ou
parece deslocado no tempo. O mesmo acontece com determinadas palavras,
determinados usos vocabulares que também parecem desgastados.
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
O uso da mesóclise é bastante frequente na tradução de Silveira e
contribui mais que a ênclise, usada quando necessário na retradução, para
certa aura de envelhecimento. Na retradução, as mesóclises estão ausentes,
justamente porque ao seu tradutor lhe parece ultrapassado usar mesóclises.
Um excesso de mesóclises em um tradutor atual é praticamente motivo de
censura em relação a uma linguagem excessivamente rebuscada.
Um período verbal que também parece contribuir consideravelmente
para uma impressão de envelhecimento ou deslocamento da primeira
tradução é o pretérito mais-que-perfeito, usado em poucas ocasiões por
Silveira para traduzir o passé-composé, passé du conditionnel ou imparfait de
l’indicatif. Ocorre poucas vezes, mas na retradução foram escolhidos outros
tempos verbais 3.
Quadro 1. Uso do pretérito-mais-que-perfeito
Original
1ª tradução
Retradução
1 Était tombé (p. 80) Caíra (p. 66)
tinha caído (p. 20)
2 s’était mise (p. 84)
tinha ficado (p. 22)
se pusera (p. 69)
3 je l’avais ahurie eu a perturbara (p. 71)
(p. 85)
eu a tinha abalado (p.
23)
4 J’avais glissé (p. Eu enfiara (p. 71)
Eu escorregava (p. 24)
86)
5 n’avais
jamais jamais ouvira (p. 73)
entendu (p. 88)
6 j’aurais voulu (p. desejara (p. 75)
jamais tinha ouvido
(p. 25)
gostaria (p. 26)
3
As referências bibliográficas de original e primeira tradução são, respectivamente, SARTRE
(1998) e SARTRE (1966). A retradução encontra-se em anexo no final do artigo.
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
91)
7 je m’étais entendu Contratara (p. 77)
me entendi (p. 27)
(p. 93)
8 j’avais
fait eu mandara construir (p. 78)
constuire (p. 95)
9 Tout
était
silence (p. 98)
eu tinha construído (p.
28)
d’un Tudo mergulhara num silêncio Pairava um silêncio (p.
(p.81)
29)
Segue, a seguir, quadro com todos os exemplos elencados de marcas de
um envelhecimento da linguagem, que incluem exemplos de vocabulário,
construções sintáticas e também uso verbal. O objetivo é apenas sugerir
através dos exemplos. Para uma visão mais completa é necessário, sem
dúvida, uma leitura completa do original, da tradução e da retradução. Mas,
embora alguns exemplos fiquem fora de contexto, podemos ter uma ideia
bastante completa das diferenças existentes por causa do lapso de tempo.
Quadro 2. Marcas de envelhecimento da linguagem
Original
épaules (p. 79)
1ª tradução
espáduas (p. 65)
Retradução
ombros (p. 20)
2
Je me penchais et je me mettais à rire: (p. 79)
Eu me debruçava a rir; (p. 65)
Eu me pendurava e começava a rir: (p. 20)
3
Au balcon d’un sixième: c’est là que j’aurais dû passer
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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144
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
toute ma vie. (p. 79)
A sacada de um sexto andar – eis onde eu deveria passar
tôda a vida. (p. 65)
Na varanda de um sexto andar: é onde eu deveria ter
passado toda a minha vida. (p. 20)
4
Voilà pourquoi (p. 79)
Eis porque (p. 65)
É por isso (p. 20)
5
Il était tombé sur le nez. (p. 80)
Caíra de bôrco. (p. 66)
Ele tinha caído de cara no chão. (p. 20)
6
Mais s’ils avaient pu deviner la plus infime partie de la
vérité, ils m’auraient battu. (p. 80)
Mas se pudessem adivinhar a mais ínfima parcela da verdade
ter-me-iam batido. (p. 66)
Mas se tivessem descoberto a mais ínfima parcela da
verdade, teriam me batido. (p. 20)
7
Ils m’envoyaient en riant des coups de pieds dans le
derrière. (p. 80)
Aplicaram-me, a rir, pontapés no traseiro. (p. 66)
Me deram chutes no traseiro, rindo às gargalhadas. (p. 20)
8
Une blonde qui fait le quart devant un hôtel de la rue du
Montparnasse. (p. 81)
Uma loira que se postava em frente a um hotel da rua
Montparnasse. (p. 67)
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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145
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
Uma loira que faz ponto na frente de um hotel da rua
Montparnasse. (p. 21)
9
La femme était assez lourde et s’arrêtait à chaque marche,
pour souffler. (p. 83)
A mulher era muito pesada e se detinha a cada degrau, para
respirar. (p. 68)
A mulher era bastante pesada e parava em cada degrau para
respirar. (p. 21)
10
Je me retournai; elle me tendit ses lèvres. Je la repoussai.
(p. 83)
Voltei-me; ela me ofereceu os lábios. Repeli-a. (p. 68)
Voltei-me: ela me ofereceu seus lábios e eu a repeli. (p. 22)
11
- Déshabille-toi, lui dis-je. (p. 83)
- Dispa-se, disse-lhe. (p. 68)
- Tire a roupa, disse. (p. 22)
12
La femme ôta sa robe puis s’arrêta en me jetant un regard
méfiant. (p. 83)
A mulher tirou a roupa, depois estacou deitando-me um
olhar desconfiado. (p. 69)
A mulher tirou o vestido e depois ficou parada me olhando
desconfiada. (p. 22)
13
le ramassa (p. 83-84)
apanhou-a (p. 69)
a recolheu (p. 22)
14
La putain (p. 84)
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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146
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
A meretriz (p. 69)
A puta (p. 22)
15
tranquillement assis dans un fauteuil (p. 84)
refestelado numa poltrona (p. 69)
sentado tranquilamente numa poltrona (p. 22)
16
me sourit coquettement: (p. 84)
sorriu-me galantemente: (p. 69)
sorriu graciosamente: (p. 22)
17
Elle s’assit sur le lit (p. 84)
Ela sentou-se na cama (p. 70)
Ela sentou na cama (p. 23)
18
Mais je ris de plus belle, alors elle se leva d’un bond et prit
son soutien-gorge sur la chaise. (p. 85)
Mas eu ri ainda mais, então ela se levantou de um salto e
pegou o soutien de sôbre a cadeira. (p. 70)
Mas eu ri ainda mais. Ela se levantou e pegou o sutiã sobre a
cadeira. (p. 23)
19
Elle l’a pris. (p. 85)
Ela pegou-a. (p. 70)
Ela pegou. (p. 23)
20
billet de cinquante francs (p. 85)
cédula de cinqüenta francos (p. 70)
nota de cinquenta francos (p. 23)
21
menthe (p. 86)
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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147
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
hortelã-pimenta (p. 71)
menta (p. 23)
22
la rue devait leur paraître toute bleue. (p. 86)
a rua devia parecer-lhes inteiramente azul. (p. 71)
a rua devia lhes parecer azul. (p. 24)
23
Je leur aurais tiré dans les reins. (p. 87)
Atirar-lhes-ia nos rins. (p. 71)
Atiraria em seus rins. (p. 24)
24
Competence blasée (p. 87)
Competência enfastiada (p. 72)
Competência blasé (p. 24)
25
Je leur exposai ma conception du héros noir: (p. 88)
Expus-lhes minha concepção do herói negro. (p. 72)
Eu lhes expus minha concepção do herói negro: (p. 24)
26
Il voulait devenir illustre et il n’a rien trouvé de mieux que
de brûler le temple d’Éphèse, une des sept merveilles du
monde. (p. 88)
Êle queria tornar-se ilustre e não achou nada melhor do que
incendiar o templo de Éfeso, uma das sete maravilhas do
mundo. (p. 73)
Queria ser ilustre e não encontrou nada melhor que queimar
o templo de Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo. (p.
24)
27
je m’enfermais dans ma chambre et je tirais des plans. (p.
89)
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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148
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
encerrava-me no meu quarto fazendo planos. (p. 73)
ficava trancado no meu quarto planejando coisas. (p. 25)
28
J’ai vu des photos de ces deux belles filles, ces servantes
qui tuèrent et saccagèrent leurs maîtresses. (p. 92)
Tinha visto os retratos dessas duas belas raparigas, duas
criadas que mataram e saquearam suas patroas. (p. 76)
Vi as fotos de duas belas garotas, empregadas que mataram
e roubaram suas patroas. (p. 26)
29
des trous dans la chair (p. 93)
Orifícios na carne (p. 76)
buracos na pele (p. 27)
30
Le 27 octobre (p. 94)
A 27 de outubro (p. 77)
No dia 27 de outubro (p. 27)
31
Je me vis soudain au coeur de cette foule, horriblement
seul et petit. Comme ils auraient pu me faire mal, s’ils
l’avaient voulu! (p. 94)
Vi-me,
de
repente,
bem
no
meio
dessa
multidão,
horrivelmente só e pequeno. Como êles teriam podido
fazer-me mal se tivessem querido! (p. 78)
Subitamente estava no meio dessa multidão, terrivelmente
sozinho e pequeno. Como podiam me machucar, se
quisessem! (p. 27)
32
soixante-dix centimes (p. 94)
setenta cêntimos (p. 78)
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149
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
setenta centavos (p. 27)
33
Je l’ai forcée à se mettre à genoux sous la menace de mon
revolver, à courir à quatre pattes; puis je l’ai attachée à un
pilier (p. 95)
Forcei-a a pôr-se de joelhos sob a ameaça de meu revólver,
e a andar de gatinhas, depois prendi-a a um pilar (p. 78)
Forcei-a, com meu revólver, a ajoelhar-se e correr de
quatro. Depois, amarrei-a numa pilastra (p. 28)
34
Ces images m’avaient tellement troublé que j’ai dû me
contenter. (p. 95)
Essas imagens perturbaram-me de tal maneira que tive de
satisfazer-me. (p. 78)
Essas imagens me transtornaram tanto que tive de me
contentar. (p. 28)
35
Les meubles se sont mis à craquer (p. 95)
Os móveis puseram-se a estalar (p. 79)
Os móveis começaram a estalar. (p. 28)
36
Je me suis arrêté devant la glace d’une chemiserie (p. 96)
Parei diante do mostruário de uma camisaria (p. 79)
Parei diante da vitrine de uma loja (p. 28)
37
Au bout d’un moment, je vis arriver trois hommes; je les
laissai passer: il m’en fallait six. (p. 96)
Depois de um instante vi chegarem três homens; deixei-os
passar; eu precisava de seis. (p. 79)
Após um momento vieram três homens. Deixei passar:
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150
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
precisava de seis. (p. 28)
38
- Il est emmerdant, aussi, ce morpion. (p. 96)
- Como é cacête, êsse chato! (p. 80)
- Ele enche o saco, também, esse moleque. (p. 28)
39
Je fis volte-face et je les suivis machinalement. (p. 97)
Voltei-me e segui-as maquinalmente. (p. 80)
Dei meia volta e fui atrás delas, maquinalmente. (p. 28-29)
40
Moi, je m’appuyai contre le mur. (p. 97)
Quanto a mim apoiei-me à parede. (p. 80)
Encostei no muro (p. 29)
41
Quand le gros homme me dépassa, je sursautai et je lui
emboîtait le pas. Je voyais le pli de sa nuque rouge (p. 97)
Quando o homem corpulento passou por mim sobressalteime e segui-o. Eu via a prega de sua nuca (p. 80)
Quando o homem gordo passou, tive um sobressalto e
comecei a segui-lo. Via a dobra de sua nuca (p. 29)
42
Il se dandinait un peu (p. 97)
Êle balouçava um pouco o corpo (p. 80)
Andava meio trôpego (p. 29)
43
Tout d’un coup le type se retourna et me regarda d’un air
irrité. Je fis un pas en arrière. (p. 97)
De repente o tipo voltou-se e me olhou com um ar irritado.
(p. 80)
De repente, o homem virou e me olhou irritado. (p. 29)
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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151
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
44
je lui lâchai trois balles dans le ventre. (p. 97)
Disparei-lhe três balas no ventre. (p. 81)
meti-lhe três balas na barriga. (p. 29)
45
Je m’enfuis. Je l’entendis tousser. J’entendis aussi des cris
et une galopade derrière moi. (p. 97-98)
Escondi-me. Ouvi-o tossir. Ouvi também gritos e uma
galopada atrás de mim. (p. 81)
Corri. Ouvi o homem tossir. Ouvi gritos também e uma
correria atrás de mim. (p. 29)
46
Quand je m’en aperçus, il était trop tard: (p. 98)
Quando o percebi, era muito tarde; (p. 81)
Quando percebi era tarde demais: (p. 29)
47
Une main se posa sur mon épaule. (p. 98)
Uma mão pousou no meu ombro. (p. 81)
Senti uma mão no meu ombro (p. 29)
48
Les gens se mirent à piailler et s’écartèrent. (p. 98)
As pessoas puseram-se a gritar e se separaram. (p. 81)
As pessoas começaram a gritar e se afastaram. (p. 29)
49
Je traversai le café dans toute sa longueur et je
m’enfermai dans les lavabos. (p. 98)
Atravessei o café em todo o seu comprimento e encerrei-me
na privada. (p. 81)
Atravessei todo o café e me tranquei no banheiro. (p. 29)
50
J’élevai mon arme jusqu’à mes yeux et je vis son petit trou
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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152
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
noir et rond: (p. 98)
Levantei minha arma até os olhos e vi seu pequeno orifício
negro e redondo; (p. 81)
Levantei a arma até meus olhos e vi o pequeno e redondo
buraco negro: (p. 29)
51
Il devait s’être plaqué de côté contre le mur (p. 99)
Devia estar encostado de lado, à parede (p. 82)
Provavelmente ficou grudado na parede, de lado (p. 30)
52
J’eus tout de même envie de tirer (p. 99)
Tive assim mesmo ânsia de atirar (p. 82)
Senti vontade de atirar, de qualquer forma (p. 30)
53
“S’ils me prennent, ils vont me battre, me casser des dents,
ils me crèveront peut-être un oeil.” (p. 99)
“Se êles me agarram, vão bater-me, quebrar-me os dentes,
furar-me um ôlho, talvez”. (p. 82)
“Se me pegarem vão me bater, quebrar meus dentes, talvez
me arrancarão um olho”. (p. 30)
3.2 O original como prisão
Portanto, outra diferença importante entre as duas traduções é o nível
de proximidade ao original. Como já foi sugerido, na tradução aqui proposta
considera-se que em determinados momentos é necessário, para melhor
traduzir, distanciar-se do original, não traduzir com literalidade excessiva,
justamente para não perder o sentido do próprio original.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 127-163
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153
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
Esta diferença marcante entre as duas traduções, como já afirmado,
também pode ser uma das consequências do lapso de tempo. Além da questão
de uma visão domesticadora ou estrangeirizadora da tradução, existe a defesa
de maior liberdade do tradutor, questão que emerge com muita força no final
do século XX.
E, de qualquer forma, temos dois tradutores diferentes, duas
subjetividades diferentes, duas posturas diferentes ante o original e o ato
tradutório. A maior ou menor distância com relação ao original também
decorre deste fato.
Ao contrário do envelhecimento da linguagem, aqui não será possível
elencar todos os exemplos de um excesso de proximidade, que resulta em
inúmeros casos em excesso de literalidade e perda de sentido. Pois, os
exemplos são muitos e muito extensos, e envolvem a observação de períodos
mais longos. Desta forma, buscaremos transcrever os excertos mais
contundentes.
(01)
Il fallait quelquefois redescendre dans les rues. (...)
J’étouffais. Quand on est de plain-pied avec les hommes, il est
beaucoup plus difficile de les considérer comme des fourmis:
ils touchent. Une fois, j’ai vu un type mort dans la rue. Il était
tombé sur le nez. On l’a retourné, il saignait. J’ai vu ses yeux
ouverts, et son air louche, et tout ce sang. Je me disais: (p. 80)
Às vezes era preciso descer de nôvo até à rua. (...) Sentia-me
sufocar. Quando se está na mesma altura dos homens é muito
mais difícil considerá-los como formigas; êles esbarram. Uma
vez, vi um tipo morto na rua. Caíra de bôrco. Tinham-no virado,
sangrava. Vi seus olhos abertos e seu ar espantado e todo
aquêle sangue. Dizia de mim para comigo: (p. 66)
Às vezes era preciso sair às ruas. (...) Eu sufocava. Quando
estamos na mesma altura dos homens é muito mais difícil vê-los
como formigas: eles pegam. Uma vez vi um homem morto na
rua. Ele tinha caído de cara no chão. Viraram-no, ele sangrava.
Vi os olhos abertos, e o ar estranho, e todo o sangue que
escorria. Pensava: (p. 20)
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154
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
Neste exemplo, vemos que o tradutor opta por traduzir verbos que
começam com “re” em francês com auxílio de “de novo” ou “tornar a”. Je me
disais se torna “Dizia de mim para comigo”. Silveira também traduz type por
“tipo”, termo pouco usual em português e que faz pouco sentido, deixando o
texto menos fluente.
(02)
J’étais désolé: je suis un imaginatif et je m’étais vivement
représenté le plaisir que je comptais tirer de cette soirée. (p.
82)
Eu estava desolado. Sou um imaginativo e tinha imaginado
vivamente o prazer que esperava tirar desta tarde. (p. 67)
Eu estava decepcionado: tenho uma imaginação fértil e tinha
representado vivamente o prazer que iria tirar daquela noite.
(p. 21)
Aqui, Silveira traduz literalmente je suis un imaginatif como “sou um
imaginativo”, o que faz pouco ou nenhum sentido em português. Dizemos,
preferencialmente, “tenho muita imaginação” ou “tenho uma imaginação
fértil”. “Desolado” também não é um termo usual em português, ao contrário
do francês.
(03)
À l’hôtel Stella, il ne restait qu’une chambre libre, au
quatrième. (p. 83)
No Hotel Stella não sobrava senão um cômodo livre, no quarto
andar. (p. 68)
No hotel Stella só havia um quarto vago, no quarto andar. (p.
21)
A construção il ne restait que é bastante usual em francês, mas “não
sobrava senão” não se encaixa na fluência do português. Este procedimento
de Silveira é recorrente e na retradução opta-se por usar simplesmente a
afirmativa, como no exemplo em questão: “só havia um quarto vago”.
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155
Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
(04)
- C’est haut, dit-elle, en essayant de me sourire. (p. 83)
- É alto, disse, ensaiando para sorrir. (p. 68)
- É alto, disse, tentando sorrir. (p. 22)
Aqui, uma visão clara de um excesso de literalidade cujo resultado é
incompreensível. Essayer pode significar “ensaiar”, mas no contexto significa
tentar. “Ensaiar para sorrir” é uma construção que não tem sentido em
português e não traduz satisfatoriamente o conteúdo do original. A
compreensão não é a mesma. Há uma perda.
(05)
Je tenais mon revolver de la main gauche, braqué droit devant
moi à travers la poche et je ne le lâchai qu’après avoir tourné
le commutateur. (p. 83)
Eu tinha o revolver na mão esquerda, apontado para a frente,
através do bôlso, e não o larguei senão após haver virado o
comutador. (p. 68)
Eu segurava o revólver com a mão esquerda, apontado para
frente dentro do bolso, e só larguei depois de acender a luz. (p.
22)
Mais uma vez um resultado incompreensível: “virar o comutador”. O
tradutor ateve-se às palavras e não percebeu que necessitava simplesmente
fazer compreender o que se passava na cena: um homem acendendo a luz.
(06) Le dimanche, je pris l’habitude d’aller me poster
devant le Châtelet, à la sortie des concerts classiques. Vers six
heures, j’entendais une sonnerie, et les ouvreuses venaient
assujetir les portes vitrées avec des crochets. (p. 86)
Habituei-me a ir, aos domingos, colocar-me diante do Châtelet,
à saída dos concertos clássicos. Pelas seis horas, ouvia a
campainha e as porteiras vinham prender com ganchos as portas
de vidro. (p. 71)
Peguei o hábito de ficar na frente do Châtelet, aos domingos,
na saída dos concertos clássicos. Em torno das seis horas eu
ouvia uma campainha e as portas eram abertas (p.22-23).
Neste caso, Silveira traduz me poster por “colocar-me”. É recorrente
no conto traduzir se poster por “colocar-se” ou “postar-se”, quando em
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
português é mais correto e fluente dizer “ficar” ou “estar”. Na retradução,
optou-se por ocultar a informação assujetir les portes vitrées avec des
crochets, por não fazer falta à compreensão e pela fluência do texto. Silveira
opta por traduzi-la literalmente.
(07)
Je les dégringolais comme des pipes, ils tombaient les uns sur
les autres, et les survivants, pris de panique, refluaient dans le
théatre en brisant les vitres des portes. (p. 87)
Eu os derrubava como cachimbos de barro, êles caíam uns sôbre
os outros e os sobreviventes, tomados de pânico, refluíam para
o teatro quebrando os vidros das portas. (p. 71)
Eu as derrubava e elas caíam umas sobre as outras. Os
sobreviventes, em pânico, voltavam para o teatro quebrando os
vidros das portas. (p. 24)
Acima optou-se na retradução por omitir comme des pipes e informar
somente que o personagem derrubava as pessoas. Silveira optou por manter, e
“cachimbos de barro” não faz sentido algum em português. Também traduziu
literalmente refluer. Na retradução optou-se por um verbo mais usual em
português.
(08)
Quand je descendais dans la rue, je sentais en mon corps une
puissance étrange. J’avais sur moi mon revolver, cette chose
qui éclate et qui fait du bruit. (p. 88)
Quando desci à rua, senti em meu corpo uma fôrça estranha.
Tinha junto a mim meu revólver, essa coisa que explode e faz
barulho. (p. 73)
Quando estava na rua, sentia em meu corpo um poder estranho.
Levava comigo o revólver, essa coisa que explode e faz barulho.
(p. 25)
É recorrente no texto de Silveira a tradução de descendre dans la rue
como “descer à rua”. Mas, em português esta não é uma forma usual: usa-se,
habitualmente, “sair na rua”. Neste exemplo, Silveira também traduz
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
literalmente J’avais sur moi como “Tinha junto a mim”. Na retradução optouse por dizer mais claramente “Levava comigo”.
(09)
“Monsieur,
“Vous êtes célèbre et vos ouvrages tirent à trente mille. Je
vais vous dire pourquoi: c’est que vous aimez les hommes. Vous
avez l’humanisme dans le sang: c’est bien de la chance. Vous
vous épanouissez quand vous êtes en compagnie; dès que vous
voyez un de vos semblables, sans même le connaître, vous vous
sentez de la sympathie pour lui. (p. 89)
“Senhor – Sois célebre e vossas obras alcançam tiragens de
trinta mil exemplares... Vou dizer-vos por quê – é que amais os
homens. Tendes o humanismo no sangue: eis a vossa sorte.
Desabrochais quando estais em boa companhia; quando vêdes
um de vossos semelhantes, mesmo sem conhecê-lo, sentis
simpatia por êle. (p. 74)
“Prezado,
“Você é famoso e já vendeu trinta mil exemplares de suas
obras. Vou lhe dizer o motivo: é que você ama os homens. Tem
o humanismo no sangue: que sorte. Você gosta de estar em
companhia; assim que vê um de seus semelhantes, sente
simpatia por ele sem nem mesmo conhecê-lo. (p. 25)
Este é um dos momentos mais importantes do conto. Paul Hilbert, o
personagem central, escreve uma carta para 102 escritores franceses. O
conteúdo é uma crítica aguda ao humanismo. Como é uma carta, envolve todo
o sistema francês de formalidade, com o uso do pronome “vós” e um tom
solene que Silveira tenta importar em sua tradução. Como no português e na
cultura brasileira esse sistema de formalidades faz pouco sentido, o resultado
é uma carta deslocada, fora de contexto, quase ilegível. Este é um dos
exemplos mais contundentes da proximidade em relação ao original da
primeira tradução e das diferenças entre tradução e retradução.
Procurou-se na retradução não utilizar o pronome “vós”, mas “você”, e
eliminar qualquer menção a “senhor”, que não necessariamente traduz
monsieur adequadamente em todas as situações. Além do mais, o original
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
repete constantemente o pronome vous, repetição mantida na tradução de
Silveira. Como afirmado anteriormente, em uma tradução francês/português
é sempre necessário ficar atento à repetição dos pronomes, para não criar um
texto pouco fluente em português.
(10)
Avant, leurs visages se balançaient comme des fleurs sages audessus de cols de piqué. Elles respiraient l’hygiène et
l’honnêteté appétissante. Un fer discret avait ondulé
pareillement leurs cheveux. Et, plus rassurante encore que
leurs cheveux frisés, que leurs cols et que leur air d’être en
visite chez le photographe, il y avait leur ressemblance de
soeurs, leur ressemblance si bien pensante, qui mettait tout de
suite en avant les liens du sang et les racines naturelles du
groupe familial. (p. 92)
Antes, seus rostos se balouçavam como flôres em cima das golas
de algodão. Respiravam higiene e honestidade tentadora. Um
ferro discreto havia ondulado igualmente seus cabelos. E, mais
tranqüilizada ainda que seus cabelos frisados, que suas golas e
seu ar de visita ao fotógrafo, havia sua semelhança de irmãs,
tão bem-pensantes e que punha imediatamente à mostra os
laços de sangue e as raízes naturais do grupo familial. (p. 76)
Antes, seus rostos eram como flores suaves sobre as golas de
algodão. Elas exalavam higiene e honestidade, os cabelos bem
arrumados, quase idênticos, e tinham aquele ar de estar em
visita ao fotógrafo. E, ainda mais tranquilizador que tudo isso,
havia sua semelhança de irmãs. Semelhança tão nítida que
imediatamente deixava transparecer os laços sanguíneos e as
raízes naturais do grupo familiar. (p. 26-27)
Este também é um dos exemplos mais contundentes de como Silveira se
prende excessivamente ao original. É um período muito complexo em francês,
e nitidamente necessita de alguma adaptação para a compreensão do texto
em português. Silveira traduz honnêteté appétissante como “honestidade
tentadora” e fer discret como “ferro discreto”. Na retradução optou-se por
omitir estas expressões pouco importantes e ater-se à compreensão do
contexto. Também não costumamos dizer “cabelos frisados” em português e
sim “cabelos encaracolados”, “cabelos crespos” ou “cabelos cacheados”.
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Jean Paul Sartre
Assim, enquanto a primeira tradução fica rente ao original, na retradução
optou-se por tornar o período mais fluente e mais compreensível em
português.
3.3 Abrandando o original
Outro aspecto importante da tradução de H. Alcântara Silveira e que
estranhamente vai em sentido oposto ao que acaba de ser analisado, é um
abrandamento do texto original. Onde o original é incômodo, onde há
vocabulário coloquial e uma fuga maior da norma culta, o tradutor parece não
mais querer a mesma proximidade.
Traduz pisser (p. 81) por “urinar” (p. 67). Mas, pisser não é “urinar” e
sim “mijar”, e esse vocabulário mais coloquial vem do original e é importante
que seja mantido.
Traduz putain (p. 84) por “meretriz” (p. 69) e “decaída” (p. 71),
abrandando a força do termo em francês, fazendo com que alguma coisa se
perca. Assim, na retradução optou-se por manter a força do termo, mais
plenamente traduzido como “puta” (p. 22 e 23), pois mais uma vez a
linguagem coloquial é importante no contexto do conto.
Também traduz à poil (p. 82) como “nua” (p. 68), mas o sentido é
diferente. À poil é mais forte que nu, é “pelado(a)”, e também tem a sua
importância no contexto. São poucos exemplos, pois o original usa pouco da
linguagem coloquial, mas neles fica nítido a tendência ao abrandamento.
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
3.4 Pequenos erros
Como não poderia deixar de ser, também é possível identificar
pequenos erros na primeira tradução. Pequenos detalhes que podem passar
despercebidos e que no fundo têm pouca importância para a compreensão
geral do texto. Alguns exemplos são: traduzir adjudant (p. 82) por “ajudante”
(p. 68), quando adjudant é um posto de hierarquia militar melhor traduzido
em português como “suboficial” (p. 21).
Vicieux (p. 84) é traduzido por “viciado” (p. 69). No contexto, vicieux
quer dizer “depravado” (p. 22), dando um sentido bastante distinto.
J’avais glissé ma main droite dans ma poche (p. 86) foi traduzido como
“Eu enfiara a mão esquerda no bôlso”.
Silveira traduz pertinent (p. 90) por “penitente” (p. 75), palavras
completamente distintas, de sentido completamente diferente, somente de
grafia quase idêntica. Um erro bastante comum.
Chapeau vert (p. 98) se torna “chapéu vermelho” (p. 81).
De qualquer forma, os erros também contribuem para provar que por
trás de uma tradução há sempre um ser humano, que é imperfeito e tem
limitações, e não tem o controle de absolutamente todos os aspectos de sua
tradução. Aqui estabelece-se uma nova tradução, de uma outra subjetividade,
de um outro momento histórico e, tanto quanto a primeira, está sujeita às
imperfeições, embora, todo tradutor se esforce para realizar o melhor
trabalho possível.
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4. Considerações finais
O objetivo aqui proposto foi realizar um exercício de prática de
tradução e em seguida a reflexão teórica a partir desta prática, um exercício
de comparação entre a primeira e a segunda tradução, que chamamos
retradução, a partir fundamentalmente da teoria de Antoine Berman.
Uma primeira consideração fundamental é a dificuldade de estabelecer
uma comparação absolutamente completa, que mapeie sem exceções todos os
fatores de divergência entre os dois trabalhos tradutórios. A meta foi,
portanto, identificar os eixos principais que diferenciam tradução e
retradução, seja pela distinção entre os dois sujeitos tradutores envolvidos,
seja pelo lapso de tempo decorrido entre os dois trabalhos.
Na realidade, tanto as divergências subjetivas entre os sujeitos e os
agentes da tradução, ou seja, os tradutores, quanto a diferença entre as duas
traduções por causa da distância no tempo, têm uma essência comum: o fato
dos textos e das traduções não serem estruturas fixas e imutáveis, quase
sólidas, em que não se permite divergências e transformações.
Traduzir e retraduzir: a partir de uma visão não restrita da tradução é o
que parece emergir como reflexão central. A tradução é um exercício
complexo, que envolve muitos sujeitos e a passagem do tempo histórico. A
tradução só atinge sua completude pela repetição: é um jogo de tentativa e
erro. E é nisto que se justifica a decisão de traduzir obras já traduzidas, a
atitude
de
retraduzir.
Atitude
que
se
mostra
necessária
para
o
amadurecimento das traduções.
Por causa da dificuldade envolvida nas comparações, ficou claro que as
marcas de envelhecimento da linguagem que elencamos são apenas alguns
aspectos do conto. A sensação de deslocamento, a impressão da passagem do
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Jean Paul Sartre
tempo na leitura, só se dá na leitura completa. Infelizmente, algo difícil de
ser comunicado em quadros e tabelas é a impressão da leitura que envolve
toda a nossa sensibilidade literária e só pode ser encontrada pela leitura
completa.
O
que
se
buscou
foi
formalizar
alguns
aspectos
deste
envelhecimento e estabelecer uma maneira funcional de identificá-lo no
texto.
Da mesma forma, um mea culpa se faz necessário quanto às questões
de proximidade e distância em relação ao original. Seria possível elencar o
dobro de exemplos, mas os exemplos elencados cumpriram a meta de
estabelecer os fatores mais importantes de divergências entre primeira
tradução e retradução, no que diz respeito à proximidade ou distância. E isto
envolve questões teóricas complexas que dizem respeito a literalidade e
adaptação, domesticação e estrangeirização. Se não foram aqui aprofundadas
é porque não eram o centro da reflexão.
Embora tenhamos identificado outras tendências de tradução, como o
abrandamento do original, os dois aspectos centrais identificados a partir do
trabalho
tradutório
e
das
reflexões
aqui
estabelecidas
foram
o
envelhecimento da linguagem e a maior distância do original por parte da
retradução.
O que é importante que fique claro é que estes são os dois principais
fatores de divergência entre duas traduções brasileiras do conto Erostrato de
Jean Paul Sartre e não necessariamente são reflexões que podem ser
estendidas a outras traduções que envolvam os mesmos momentos históricos
ou a outras traduções de Sartre.
E, apesar das dificuldades de estender as reflexões a outras obras de
Sartre, ao menos as reflexões sobre a tradução do conto Erostrato
estabelecem bons fundamentos para um projeto de retradução dos outros
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Silva, F. C. – Erostrato: reflexões sobre a retradução de um conto de
Jean Paul Sartre
contos do livro O Muro. Se assim for, as reflexões aqui estabelecidas terão
chegado a bom termo.
5. Referências bibliográficas
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Nelson Ascher discutem John Donne. In: ________. Tradução,
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O sentido e o som: três teorias da
tradução de poesia em diálogo
Beatriz Cabral Bastos *
Abstract: This article presents and discusses different theories of poetry translation
by the authors Henri Meschonnic, Haroldo de Campos and Paulo Henriques Britto.
Though quite different from each other, all the authors seem to somehow respond to
Susan Sontag’s famous 1964 essay, “Against Interpretation”. Our belief is that the
“hands on” work involved in translating poetry leads to a special attention not only
to the meaning of the poem, but to everything that concerns its materiality and
form. In addition to explaining and giving examples of the works of these three
theorists, we intend to show how the theory of poetry translation might be an
interesting space of reflection not just for translators but also language and literary
theorists in general. By bringing these theories together, we also intend to contribute
to the delineation of theories of poetry translation within the larger field of
Translation Studies.
Keywords: theory of translation; poetry; materiality; Henri Meschonnic; Haroldo de
Campos; Paulo Henriques Britto.
Resumo: Neste artigo são apresentadas e colocadas em diálogo as teorias da tradução
de poesia de Henri Meschonnic, Haroldo de Campos e Paulo Henriques Britto. Embora
bastante diferentes entre si, são teorias que parecem de algum modo responder à
tarefa colocada por Susan Sontag em seu famoso ensaio de 1964, “Contra a
interpretação”. A nossa aposta é a de que corpo a corpo do trabalho de tradução
conduz a uma atenção especial não apenas ao sentido do poema, mas a tudo que diz
respeito a sua materialidade, a sua forma. Além de aprofundar e trazer exemplos dos
trabalhos desses três teóricos, demonstra-se como a teoria sobre a tradução de
poesia pode ser um interessante espaço de reflexão não apenas para os tradutores,
mas também, de modo amplo, para os teóricos da linguagem e da literatura. Ao
reunir estes teóricos, pretende-se também contribuir para um mapeamento das
teorias de tradução de poesia, dentro do campo mais amplo dos Estudos da
Tradução.
Palavras-chave: teoria da tradução; poesia; materialidade; Henri Meschonnic;
Haroldo de Campos; Paulo Henriques Britto.
*
Doutoranda do Programa de Pós-gradução em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da
PUC-Rio. Email: [email protected].
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Introdução
Em “Contra a interpretação”, de 1964, Susan Sontag critica o que via
como
um
excesso
interpretativo
da
crítica,
que
ela
compara
ao
bombardeamento dos sentidos dentro do ambiente urbano, e acrescenta: “a
consequência é uma perda constante da acuidade de nossa experiência
sensorial” (SONTAG 1987: 23). Propõe então uma crítica de arte que possa
fornecer uma “descrição realmente cuidadosa, aguda, carinhosa da aparência
da obra de arte” (Ibid.: 22). Uma crítica que possa revelar a superfície
sensual da arte sem conspurcá-la.
O que importa agora é recuperarmos nossos sentidos. Devemos
aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais. Nossa tarefa não é
descobrir o maior conteúdo possível numa obra de arte, muito menos
extrair de uma obra de arte um conteúdo maior do que já possui.
Nossa tarefa é reduzir o conteúdo para que possamos ver a coisa em si.
Agora, o objetivo de todo comentário sobre arte deveria visar tornar as
obras de arte – e, por analogia, nossa experiência – mais e não menos
reais para nós. A função da crítica deveria ser mostrar como é que é,
até mesmo o que é que é, e não mostrar o que significa (SONTAG 1987:
23).
“Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”,
conclui SONTAG (Ibid.: 23). A nosso ver, o tradutor de poesia encontra-se em
uma posição de algum modo privilegiada para efetuar esta tarefa crítica de
ver mais, sentir mais e ouvir mais, pois a poesia – definida por Paul Valery
como uma hesitação prolongada entre o sentido e o som – talvez de modo
mais marcante que outros gêneros textuais, nos leve a refletir sobre tudo
aquilo no texto que está para além dos significados e da interpretação. O
tradutor, se deseja transpor para uma nova língua aquilo que faz um poema,
precisa, além de se preocupar com seu aspecto semântico, voltar sua atenção
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
para a materialidade do poema, isto é, também voltar sua atenção à forma,
ao seu aspecto visual e sonoro, ao seu ritmo.
Neste artigo, apresentaremos e colocaremos em diálogo o trabalho de
diferentes teóricos da tradução que voltaram sua atenção especialmente à
tradução de poesia. São teorias que buscam, cada uma ao seu modo, dar
conta não apenas do aspecto interpretativo do poema, mas que valorizam
também isso que estamos chamando de materialidade do texto poético, os
seus aspectos não exatamente semânticos. Primeiramente, traremos a
“poética do traduzir” de Henri Meschonnic, que, ao se dedicar à tradução da
Bíblia, elaborou, a partir disso, uma sofisticada teorização que dá importância
primordial à questão do ritmo. Em seguida, retomamos alguns pensamentos
de Haroldo de Campos sobre o conceito de “transcriação” e o seu enfoque na
tradução da forma. Por último, traremos também algumas reflexões de Paulo
Henriques Britto, cuja busca por certa objetividade na avaliação de traduções
poéticas proporciona, a nosso ver, ricas ferramentas de análise. Ao reunirmos
estes teóricos, todos eles também poetas e tradutores, pretendemos
contribuir para um mapeamento das teorias dedicadas à tradução de poesia,
dentro do campo mais amplo dos Estudos da Tradução.
Poétique du traduire - Poética do traduzir
Henri Meschonnic explica que a expressão “poética do traduzir” se
refere à poética de uma atividade e não apenas a um produto pronto. Para
ele, a teoria é um acompanhamento reflexivo de uma experiência. Seu
objetivo é delinear sua própria poética sobre o ato de traduzir, e seus
produtos, a tradução. A tradução, diz Meschonnic, pode ter um papel único
como reveladora do pensamento da linguagem e da literatura, e esta
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
possibilidade foi subestimada devido à condição auxiliar que lhe impôs a
tradição. Ao subverter esta tradição que sempre viu a tradução como algo
secundário e trazer a poesia para o centro de sua teoria da linguagem,
Meschonnic cria algo que não é apenas uma estratégia de tradução de poesia,
mas uma potente poética-crítica de caráter mais amplo.
Os textos de Henri Meschonnic, de modo geral, deixam transparecer
certa irritação, parecendo verdadeiros textos de luta 1. Sua batalha crítica é
contra diversas tradições de pensamento no campo da linguagem e da
literatura, como se dissesse: “apesar de vocês, a poesia resiste!”. Por isso,
marca seu lugar como defensor do ritmo, dizendo que só através de uma
escuta atenta ao ritmo do texto podemos nos livrar tanto do que ele
denomina o “império dos significados” – a tradição hermenêutica, focada na
interpretação – como dos excessos da tradição formalista, que separa a
linguagem poética da linguagem cotidiana. Afirma também que é preciso
reaprender uma escuta do ritmo, uma vez que a dicotomia estrutural inerente
à noção de signo (forma/sentido – significante/significado), ele diz, teria nos
deixado surdos. Para Meschonnic, é a própria poesia que faz essa crítica ao
signo, pois, apesar de tentarem sufocá-la e domesticá-la, ela estaria
carregada de “vida”.
A poesia transforma tudo em vida. Ela é esta forma de vida que
transforma tudo em linguagem. Ela só nos acontece se a própria
linguagem se torna uma forma de vida. Por isso ela é tão inquieta. Pois
ela não cessa de trabalhar sobre nós. De ser o sonho daquilo que somos
o sono. Uma escuta, um despertar que nos atravessa, um ritmo que nos
conhece e que nós não conhecemos 2 (MESCHONNIC 1989: 247).
1
Gabriella Bedetti também aponta para essa característica de Meschonnic: Um expoente
agressivo, ele ataca a imobilidade por todos os lados. (BEDETTI 1992: 433, tradução da
autora).
2
Todas as citações de Meschonnic são traduções feitas exclusivamente para este artigo, pela
autora. Original: La poésie fait vie de tout. Elle est cette forme de vie que fait langage de
tout. Elle ne nous arrive que si le langage même est devenu uns forme de vie. C’est pourquoi
elle est si peu paisible. Car elle ne cesse de nous travailler. D’être le rêve dont nous sommes
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A poesia teria mais a ver com o tempo por se encontrar mais no ritmo
do que nas palavras do poema. E o ritmo, mais do que o som ou uma
alternância entre sílabas fortes e fracas, é o modo de significar, é a
semântica prosódica e rítmica, e não deve ser confundido com o significado.
Para ele, a teoria do signo tentaria esconder e ignorar a poesia, mas ela “não
cessa de reaparecer”, pois pertence à vida, ao “contínuo irracional” (1989:
249). “Os signos [signes] não compreendem os cisnes [cygnes]” (1989: 250). A
noção de signo teria nos deixado surdos ao discurso como atividade do sujeito.
Por isso, afirma, é preciso reaprender um modo de escuta, é preciso ouvir o
sujeito, e o sujeito está no ritmo.
No livro Poétique du traduire, os principais alvos do autor enquanto
modos de se pensar a tradução são as teorias da linguagem do “tradutor
profissional” e a teoria da linguagem da hermenêutica. Para ele, é impossível
desvencilhar a teoria da linguagem do tradutor de sua prática tradutória e,
estando o tradutor amparado por essas teorias da linguagem, não terá
condições de fazer boas traduções.
Meschonnic dirá que o ponto de vista mais comumente adotado pelos
especialistas e profissionais da tradução é o da “estilística comparada” (1999:
14), cuja principal preocupação seria a de buscar a fidelidade e o apagamento
do tradutor diante do texto, fazendo esquecer que se trata de uma tradução.
Este ponto de vista se realizaria através de supostas noções de bom senso,
como língua de saída, língua de chegada, equivalência, fidelidade,
transparência, apagamento e modéstia do tradutor. O acompanhamento
tradicional destas noções seria a separação entre “sentido” e “estilo” e entre
“sentido” e “forma” (p. 21). Nestas noções, estaria imbuída a ideia de
tradução como interpretação, sendo que a boa tradução não passa apenas
pela interpretação:
le sommeil. Une écoute, un éveil qui nous traverse, le rythme qui nous connaît et que nous
ne connaissons pas.
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Paradoxalmente, uma boa tradução não deve ser pensada como
interpretação. Porque a interpretação é da ordem do sentido, e do
signo. Do descontínuo. Radicalmente diferente do texto, que faz aquilo
que diz. O texto conduz e comporta. A interpretação é apenas
conduzida. A boa tradução deve fazer, e não apenas dizer. Ela deve,
como o texto, comportar e conduzir 3 (MESCHONNIC 1999: 22).
O ponto fraco da visão “profissional” da tradução é que ela refletiria
apenas um pensamento da língua, não um pensamento da literatura – a
especificidade da literatura lhe escapa. Segundo Meschonnic, no mundo
literário, o ponto de vista hermenêutico e fenomenológico da tradução seria o
mais difundido. A fenomenologia, ao identificar a tradução à compreensão
dentro de uma mesma língua, ampliou uma concepção de tradução da
hermenêutica alemã do começo do século XX (p. 15). A paráfrase e a inserção
de glosas nas traduções, diz o autor, decorrem desta concepção de tradução.
Meschonnic reconhece uma dimensão hermenêutica inerente a toda tradução,
mas defende que fazer simplesmente uma hermenêutica da tradução é
permanecer no dualismo que desassocia significantes de significados, pois o
texto é colocado na compreensão, no intérprete, no “querer dizer”
fenomenológico (p. 72). Ocorreria aqui uma dupla hegemonia: do sentido e do
intérprete. E se a tradução for vista como uma atividade apenas
interpretativa, a poesia se torna mesmo o intraduzível, o inalcançável, não se
podendo ouvir a sua voz: “A hermenêutica aplicada à tradução transporta
apenas um cadáver. Ou melhor, um espírito. O corpo fica na outra margem. E
o espírito sozinho não tem voz” 4 (p. 152).
3
Original: Paradoxalement, une bonne traduction ne doit pas être pensée comme une
interprétation. Parce que l’interprétation est de l’ordre du sens, et du signe. Du discontinu.
Radicalment différent du texte, qui fait ce qu’il dit. Le texte est porteur et porte.
L’interprétation, seulement portée. La bonne traduction doit faire, et non seulement dire.
Elle doit, comme le texte, être porteuse et portée.
4
Original: L’herméneutique appliquée à la traduction ne transporte qu’un cadavre. Ou
plutôt son esprit. Le corps est resté sur l’autre rive. Et l’esprit seul est sans voix.
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
No século 20, diz Meschonnic, o pensamento linguístico teria passado,
pouco a pouco, de certa concepção de língua – com suas categorias lexicais,
morfológicas e sintáticas – ao discurso, ao sujeito ativo, inscrito prosódica e
ritmicamente na linguagem (p. 13). A tradução teria acompanhado esta
mudança:
Descobre-se que uma tradução de um texto literário deve fazer o que
faz um texto literário, através de sua prosódia, seu ritmo, sua
significância, como uma das formas de individuação, como uma formasujeito. O que desloca radicalmente os preceitos de transparência e
fidelidade da teoria tradicional [...]. A equivalência buscada não se
coloca mais de língua a língua, ao tentar fazer esquecer as diferenças
linguísticas, culturais, históricas. Ela se coloca de texto a texto, e
trabalha, ao contrário, no sentido de mostrar a alteridade linguística,
cultural, histórica, como uma especificidade e uma historicidade. 5
(MESCHONNIC 1999: 16).
O que deve ser traduzido, portanto, é o discurso, a oralidade, a
historicidade, o ritmo-sujeito, ou “a banalidade mesmo” (p. 12). Para
Meschonnic, quanto mais o tradutor estiver inscrito como sujeito na tradução,
mais esta dará continuidade ao texto. Um exemplo disso seriam as traduções
de São Jerônimo, que não pretendiam ser transparentes; ao contrário,
constituíam uma espécie de relação com o hebraico. A tradução não deve
deixar que se apaguem todas as particularidades que pertencem a um outro
modo de significar, não deve apagar as distâncias de tempo, de língua e de
cultura (p. 26). Na teoria e na prática, a função da tradução é “forçar a
reconhecer” a historicidade do poema, a sua diferença.
5
Original: On découvre qu’une traduction d’un texte littéraire doit faire ce que fait un texte
littéraire, par son prosodie, son rythme, sa signifiance, comme une des formes de
l’individuation, comme une forme-sujet. Ce que déplace radicalement les préceptes de
transparence et fidélité de la théorie traditionnelle [...]. L’équivalence recherchée ne se
pose plus de langue à langue, en essayant de faire oublier les différences linguistiques,
culturelles, historiques. Elle est posée de texte à texte, en travaillant au contraire à
montrer l’altérité linguistique, culturelle, historique, comme une spécificité et une
historicité.
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Meschonnic oferece vários exemplos de sua poética do traduzir.
Apresentamos sua tradução para o francês de um poema chinês clássico. O
poema é de MENG HA-JAN (689-740), um quarteto de versos de cinco
caracteres, no qual cada caractere é uma palavra monossilábica (a forma
clássica chinesa). Vejamos o poema em chinês, acompanhado de uma
tradução “literal” para o francês e de outras duas traduções para o francês
(essas, tiradas de antologias de poemas chineses):
Tradução “literal” em francês:
Déplaçant barque/accoster flot brumeux
Soleil couchant/tristesse du voyager ravivée
Plaine immense/ciel s’abaisser vers les arbres
Rivière limpide/lune se rapprocher des hommes
(1999: 193)
Tradução de François Cheng:
Dans les brumes, prés de l’ile, on amarre le barque.
Au crépuscule renaît la tristesse du voyager.
Plaine immense: le ciel se penche sur les arbres.
Fleuve limpide: la lune s’approche des humains.
(1999: 193)
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 164-187
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Tradução de Patrick Carré e Zeno Bianu:
Prés de l’îlot de brume notre bateau s’arrête,
Au couchant qui ravive toute mélancolie.
Par cette immensité, le ciel verse sous les arbres.
Sur le fleuve pur, la lune rejoint l’homme.
(1999: 193)
Primeiramente, Meschonnic faz algumas ressalvas sobre as traduções
apresentadas. Na primeira, de François Chen, haveria uma distorção da
sintaxe dos verbos em chinês, pelo uso do particípio e de infinitivos, pois,
lembra, não há formas conjugadas em chinês. Porém, o principal problema,
tanto da tradução de Chen como da tradução de Carré e Bianu, seria que, de
formas diferentes, elas mudam de lugar os grupos dos primeiros versos; e isso
porque ambas querem se aproximar do alexandrino, como se assim fossem
tornar o poema chinês mais poético, por aproximá-lo à tradição do “verso
nacional” francês. O princípio poético do original teria desaparecido, ao ser
trocado por outro. Assim, Meschonnic imagina um princípio poético que dê
uma ideia, em francês, da métrica chinesa. Se as alternâncias de tons não
podem ser transmitidas, a cesura e o monossilabismo podem. Para ultrapassar
os limites linguísticos, ele diz, é suficiente adotar células de duas sílabas
pronunciadas, e ater-se rigorosamente a esse princípio. Além disso, os brancos
entre essas células tomam o lugar da pontuação, transmitindo melhor a
indeterminação, o valor alusivo do poema chinês. Vejamos sua tradução:
vogue
la barque
aborde
une île
de brume
soleil
couché le vague
à l’âme
voyage
la plaine
est vaste
le ciel est bas
sur l’arbre
le fleuve est clair
la lune
est proche
à l’homme
(1999: 194)
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Mesmo se não lemos chinês, constatamos que, ao menos graficamente,
pelo modo como as palavras estão dispostas, a tradução de Meschonnic é a
única que se aproxima da visualidade do poema original e que não tenta fazer
do poema chinês um alexandrino, ou seja, não tenta convertê-lo a uma forma
que seja reconhecida como “poética” no francês. Ele permite que o estranho
permaneça estranho e, consequentemente, permite que o poema chinês
ganhe vida e corpo próprios na tradução.
Transcriação
México 5, D.F.
7 de maio de 1981
Caro Haroldo,
Obrigada por sua carta. Tenho pouquíssimo a comentar. Estou
de acordo com tudo o que você me diz. Sua carta maravilhou-me, não
só pela felicidade das soluções que você encontrou para cada
problema, como também pela forma com que você explica a razão
dessas soluções. Pouquíssimas vezes vi unidas, como no seu caso,
sensibilidade auditiva e semântica. Ao lê-lo, voltei a comprovar que
poesia é palavra dita e ouvida: uma atividade espiritual
profundamente física na qual intervêm os lábios e a sonoridade.
Atividade sensual, muscular, e espiritual. Por tudo isso, estou
duplamente agradecido a você, por sua tradução e por suas luminosas
explicações.
[....]
(Carta de Octavio Paz a Haroldo de Campos, publicada no livro
Transblanco.)
Octavio Paz escreveu essa carta a respeito da tradução para o
português que Haroldo de Campos fez de seu poema “Blanco”. Ele menciona
aspectos que são, a nosso ver, centrais na prática e na teoria de Campos: a
importância da sensibilidade auditiva e semântica, a visão da tradução como
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
uma atividade “espiritual profundamente física”, e a ênfase no aspecto
sensual da tradução.
Diferentemente de Meschonnic, que enfatiza o modo de significar,
Haroldo de Campos vai se concentrar na forma do poema, que ele descreve
como “modo de intencionalidade”. Grosso modo, podemos dizer que o que
Meschonnic chama de ritmo, Campos chama de função poética, seguindo uma
tradição mais formalista. O que importa é que tanto o ritmo, para
Meschonnic, quanto a função poética, para Campos, têm uma função
configuradora, servindo como uma espécie de partitura para a tradução.
Traduzir a forma, ou seja, o “modo de intencionalidade” (Art de
Meinens) de uma obra – uma forma significante, portanto, intracódigo
semiótico – quer dizer, em termos operacionais, de uma pragmática do
traduzir, re-correr o percurso configurador da função poética,
reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o, enquanto
dispositivo de engendramento textual, na língua do tradutor (CAMPOS
1981: 181).
Enquanto Meschonnic critica duramente a noção saussuriana de signo,
Campos entende que a materialidade está incluída na totalidade do signo e
que é exatamente essa totalidade que deve ser traduzida. Assim, parece-nos
que também aqui eles falam de coisas parecidas. Ambos enfatizam a
inutilidade da tradução de palavra por palavra, de sentido por sentido. Em
“Da tradução como criação e crítica”, de 1967, Campos afirma que a tradução
poética deve transcender a preocupação de fidelidade ao significado, a fim de
conquistar uma fidelidade ao signo estético “como entidade total, indiviso, na
sua realidade material” (p. 35).
Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou
criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de
dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto
possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza não
se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua
fisicalidade, sua materialidade mesma [...]. O significado, o parâmetro
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar
da empresa recriadora (CAMPOS 1967: 24).
Outro paralelo que pode-se estabelecer entre as teorias de tradução de
Meschonnic e Campos diz respeito à implicação do sujeito no ato de traduzir.
Eles recusam terminantemente o apagamento do tradutor, ou a ideia de
tradução como atividade passiva, quando o tradutor almeja naturalidade e
transparência no texto de chegada. Para ambos, a tradução deve ser uma
relação entre a historicidade do tradutor e a historicidade do texto; não se
devendo tentar apagar as diferenças de tempo e espaço. Partindo do princípio
de que a poesia é intraduzível, Campos conclui que traduzir só é possível se
for recriação, criação paralela, transcriação. Assim como o poema-texto é
uma “informação estética autônoma”, a tradução também deve sê-lo. Ou
seja, apesar da diferença entre as línguas, original e tradução “cristalizar-seão dentro de um mesmo sistema” (1967: 24) através da tradução
transcriadora.
Em um texto posterior, “Transluciferação mefistofáustica”, de 1981,
Campos critica, de um lado, as traduções mediadoras, as quais visariam
apenas auxiliar a leitura do original, e, do outro, as traduções que ele chama
de “medianas”, “que guardariam da aspiração estética apenas as marcas
externas de um dado esforço de versificação [...] e de um deliberado
empenho rímico” (1981: 184). O que ele apregoa é a leitura partitural, uma
leitura “verdadeiramente crítica”. Ou seja, é preciso fazer uma leitura que
seja “antes de tudo uma vivência interior do mundo e da técnica do
traduzido” (1967: 31). É preciso fazer uma “vivissecção implacável”, revolver
as entranhas do poema. E não menos importante, diz Campos, é a atenção ao
suporte físico, que deve muitas vezes tomar a dianteira nas preocupações do
tradutor (Ibid.: 35).
A proposta de transcriação de Haroldo de Campos fazia parte do
programa maior do concretismo e sua missão de reformular a poesia
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
brasileira. Os concretistas, além das atividades teóricas e de criação poética,
propunham uma “continuada tarefa de tradução” (Ibid.: 30). Herdeiros de
Ezra Pound em sua concepção sobre a função da crítica ecoavam diretamente
a prática poundiana de tradução. Haroldo de Campos chega a dizer que o
ensino da literatura é inviável se não for colocado “o problema da
amostragem e da crítica via tradução” (Ibid.: 34). Traduzir seria também um
relacionar-se com a tradição:
Um movimento tático de retorno, relendo o passado em modo
sincrônico com ganas de reatualizá-lo, repristiná-lo, de fazer –
pessoanamente – do outrora, agora. De certo modo, isso é inevitável,
pois se a tradução é uma leitura da tradição, só aquela ingênua e não
crítica – que se confine ao museológico [...] recusar-se-á ao “salto
tigrino” (W. BENJAMIM) do sincrônico sobre o diacrônico (CAMPOS 1981:
188).
As traduções convencionais, em oposição à transcriação, correriam o
risco de serem excessivamente acadêmicas ou conservadoras (o que remete
àquelas tentativas dos tradutores franceses de fazer do poema clássico chinês
um alexandrino francês). Por isso, seria importante esse tratamento
sincrônico da tradição, pois, na tradução, como em uma paródia, além da voz
do original, outras vozes textuais também se fazem ouvir. A tradução como
forma de apropriação do “patrimônio literário extante”; como modo de
capturar o “movimento plagiotrópico geral da literatura” (1981: 191).
Logo,
enquanto
Meschonnic
diz
que
não
se
deve
confundir
métrica/forma com o que ele chama de ritmo, Campos afirma que não se
pode confundir os aspectos mais óbvios e exteriores, como a métrica e o
rimário, com a “complexa e sutil dinâmica da função poética, em sua
multiplicidade configuradora” (Ibid.: 184). E Campos vai além: diz que apenas
a leitura partitural, própria da tradução radicalmente criativa, pode ter
acesso ao texto como um todo; e que o poeta-tradutor precisa ter um estoque
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
“mobilizável” de formas significantes, do contrário não terá êxito na
reconfiguração da “melhor poesia do passado” (Ibid.: 185).
Teoricamente, portanto, estão claras as exigências de tradução para
esses teóricos: de um lado, a ênfase no ritmo, do outro, a ênfase no “signo
total” e na tradução como recriação. Em ambos, a crítica ferrenha às
tentativas de se reduzir a poesia à métrica ou às rimas ou de se reduzir a
tradução a uma interpretação dos sentidos. No entanto, ao lermos as
explicações que eles dão para as suas traduções, não deixamos de encontrar
análises da métrica e das rimas, além de leituras microscópicas de todos os
jogos semânticos, sintáticos, morfológicos e prosódicos presentes no original.
Haroldo de Campos coloca em prática sua teoria ao traduzir uma
passagem do Fausto de Goethe, uma cena que é um breve diálogo entre o
Grifo e Mefistófeles. Segundo Campos, Roman Jakobson já teria usado esta
mesma cena para mostrar como “palavras ligadas por som e sentido
manifestam ‘afinidades eletivas’, capazes de modificar a confirmação e o
conteúdo das palavras envolvidas” (JAKOBSON e WAUGH apud CAMPOS 1981: 181).
É segundo esta perspectiva que Campos comenta e compara diferentes
traduções.
Original alemão, de Goethe:
GREIF, schnarrend:
Nicht Greisen! Greifen! – Niemand hört es gern,
Dass man ihn Greis nemt. Jedem Worte klingt
Der Ursprung nach, wo es sich her bedingt;
Grau, grämlich, griesgram, greulich, Gräber, grimmig,
Etymologisch gleicherweise stimmig
Verstimmen uns
MEPHISTOPHELES: Und doch, nicht abzuschweifen,
Gefällt das Grei im Ehrentitel Greifen.
(1981: 181)
Tradução para o espanhol, de Rafael Cansinos Assens:
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
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GRIFO – (Chirriando) ¡Nada de ancianos! ¡Grifos! A nadie le hace gracia
que lo llamen anciano. En cada palabra traslúcese el origen de donde
procede; gris, canoso, caduco, sepulcros, feo, que suenam
etimologicamente lo mismo, no resultam gratos a nuestros oídos.
MEFISTÓFELES – Y, sin embargo, para no divagar, lo de Grei no
desagrada en el título honroso de grifos.
(1981: 181)
Tradução para o português de Agostinho D’Ornellas:
GRIFO (rosnando) Não são velhos, são Grifos! – Ninguém gosta
De ouvir chamar-se velho. Cada termo
Da origem donde vem tira o sentido:
Velho, vilão, velhaco, vil, velhote,
Sons na etimologia quase análogos,
Desagradam-nos muito.
MEFISTÓFELES Todavia,
Para não divagar, direi que “garras”
À ideia traz o título de Grifo.
(1981: 186)
Tradução para o português de Jenny Klabin Segall:
GRIFO
(rosnando)
Grilos, não! Grifos! – ninguém quer que o chamem
De velho e Grilo! Inda que em todo o termo tina
O som de base de que se chama origina
Grileira, grima, grife, gris, sangria,
Há concordância de etimologia,
Mas soam mal pra nós.
MEFISTÓFELES
Sons não tarifo
Mas vale o grif no honroso título de Grifo.
(1981: 187)
Destacaremos apenas alguns pontos especialmente importantes da
análise de Campos dessas traduções. Certos aspectos do poema são
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
suficientemente visuais – como a diagramação e a repetição de letras – e não
é sequer preciso saber ler em alemão para percebê-los. Por exemplo, a
tradução para o espanhol é feita em prosaicas linhas corridas, o que já
sinaliza certa “traição” da forma do original. Além disso, diz Campos, o
tradutor espanhol se absteve totalmente de tentar transpor certas
dificuldades do texto (como as aliterações que ocorrem no alemão),
preferindo usar notas para explicar estas dificuldades (p. 185). A tradução
realizada por Ornellas, por sua vez, manteve os versos, a baliza métrica e
tentou “restabelecer a cadeia aliterativa do texto goethiano, fulcrando-a em
torno de ‘velho’”; porém, critica Campos, nada ficou do jogo de rimas do
original (p. 186). A tradução de Segall seria mais bem-sucedida, pois lida com
os diversos níveis do poema e procura manter a métrica e a rima. No entanto,
certas rimas, como entre “tarifo” e “Grifo”, seriam um tanto forçadas; e
certas escolhas semânticas não seriam boas, como o termo “grima”, em
desuso (p. 187). Ou seja, conclui o autor, Segall parece ter percebido o
“modo de intencionalidade” do original, mas não obteve sucesso em sua
recriação.
Estes seriam exemplos de traduções comuns, “naturais” (p. 184). A
tradução transcriativa, por sua vez, representaria um esforço de recriação.
Para explicitar o funcionamento de sua tradução, Campos faz uma lista do
“léxico chave” do original – todas as palavras iniciadas por “gr”, como greis,
greif e grimmig; explica os sentidos destas palavras; depois uma outra lista,
em português, com palavras equivalentes. Ou não exatamente equivalentes,
pois, como ele diz, tratar-se-ia de uma “reconstituição da ambiência fonosemântica” (p. 183). Campos mantém, além da sugestão semântica, aspectos
fônicos das palavras, pois em português todos esses vocábulos também
começam com “gr”. E expõe detalhadamente o modo como sua tradução é
capaz de recriar os efeitos aliterativos, os jogos de palavras, e a “força do
contágio de significantes convergentes e coincidentes” (p. 182). Para Campos,
a fala do Grifo evidenciaria, “ao nível mais imediato”, o caráter
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
autorreflexivo da função poética (p. 181). E sua transcriação, por sua vez,
deseja dar conta desta reflexividade.
UM GRIFO, resmungando:
Gri não de gris, grisalho, mas de Grifo!
Do gris de giz, do grisalho de velho
Ninguém se agrada. O som é um espelho
Da origem da palavra, nela inscrito.
Grave, gralha, grasso, grosso, grés, gris
Concertam-se num étimo ou raiz
Rascante, que nos desconcerta.
MEFISTÓFELES: O Grifo
Tem grito e garra no seu nome-título.
(1981: 182)
Avaliando traduções
Meschonnic e Campos, apesar de críticos quanto à preocupação com
“fidelidade” das traduções convencionais, ao se esforçarem por não deixar de
lado a especificidade e a historicidade dos poemas que traduzem, parecem
mais fiéis do que seria de se esperar. A tradução do poema clássico chinês
realizada por Meschonnic é de algum modo mais “fiel” ao original do que as
outras traduções. E podemos dizer o mesmo sobre as traduções dos
concretistas, ou seja, que, mesmo sendo transcriações, refletem tal
preocupação com a forma e com o espírito do original que acabam sendo mais
“fiéis” do que as traduções ditas convencionais.
Em “Augusto de Campos como tradutor”, de 2004, Paulo Henriques
Britto observa sobre as traduções de Hopkins feitas por Augusto de Campos:
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Se a linguagem poética é aquela que utiliza com o máximo de proveito
os diferentes planos da fonética, morfossintaxe, semântica e prosódia,
o que se pode exigir de uma tradução poética senão que ela reproduza
o máximo de efeitos do poema original em todos estes planos? O que
Augusto de Campos faz com o soneto de Hopkins pode ser chamado de
transcriação, transhopkinsação ou qualquer outro nome que se lhe
queira dar; mas é nada mais – nem nada menos – do que uma tradução
esplêndida. A meu ver, ao contrário do que eles apregoam, Augusto e
seus companheiros não inventaram nenhum processo novo e
revolucionário no campo da tradução de poesia, e sim elevaram o nível
de qualidade de seu ofício a um patamar raramente atingido antes
(BRITTO 2004: 333).
Podemos aproveitar o gancho deste comentário para expor o
pensamento deste outro poeta, tradutor e teórico da tradução de poesia. Sem
querer ser revolucionária, a teoria da tradução de Paulo Henriques Britto tem
o mérito de tornar mais próximo, mais analisável e mais objetivo o trabalho
de tradução de poesia. (Embora falar de objetividade no terreno da poesia
não deixe de ser uma ousadia.) O que Britto faz pode ser chamado em alguns
momentos de “prosódia comparada”, pois ele usa os termos língua-meta,
língua de saída, correspondência, fidelidade. Como adverte Meschonnic, ao
usar estes termos, corre-se o risco de encarar a tradução como mera
interpretação, de produzir um texto que seja apenas “portador” (porteur), de
perder o aspecto literário do texto. Porém, a nosso ver, a abordagem de
Britto permite uma complexidade na leitura do poema que também é
“partitural”, que também vai acessar seu “modo de significar”.
Em “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”, de
2002, Britto escreve:
Temos consciência de que o texto poético trabalha com a linguagem
em todos os seus níveis – semânticos, sintáticos, fonéticos, rítmicos,
entre outros. Idealmente, o poema deve articular todos esses níveis,
ou pelo menos vários deles, no sentido de chegar a um determinado
conjunto harmônico de efeitos poéticos. A tarefa do tradutor de poesia
será, pois, a de recriar, utilizando os recursos da língua-meta, os
efeitos de sentido e forma do original – ou, ao menos, uma boa parte
deles (BRITTO 2002: 54).
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Ao analisar um poema, o tradutor deve se perguntar qual, entre todos
os efeitos poéticos, se apresenta de forma mais regular ou mais constante no
poema original. Os efeitos poéticos dizem respeito tanto à forma quanto ao
aspecto semântico do poema. E como se trata de poesia, a complexidade vem
do fato de que é impossível discernir nitidamente formas e sentidos.
Britto propõe que seja feita uma espécie de hierarquização dos
diferentes efeitos poéticos. Olhando para a totalidade do poema, o tradutor
deve discernir quais são suas características mais marcantes, e se concentrar
nesses elementos ao traduzir. É com este aspecto do poema que o tradutor
deve buscar um maior nível de correspondência. Por exemplo, em sua análise
do poema “The shampoo”, de Elizabeth Bishop, Britto afirma que a métrica
deste poema não é rigorosa, mas o seu esquema de rimas é bastante regular.
Sendo assim, mais do que com o número de sílabas, a tradução deve se ocupar
das rimas (2002: 59). As “perdas” decorrem do fato de que nem todos os
elementos do poema poderão ser traduzidos, mas o tradutor pode se
considerar satisfeito se conseguir recriar os elementos mais importantes. Pode
acontecer também que efeitos poéticos do original, como as aliterações – um
recurso muito menos comum em português do que em inglês –, sejam
deslocados para outro verso do poema, funcionando como uma espécie de
compensação.
Seguindo Britto, podemos também pensar a relação entre tradução e
texto original em termos de correspondência funcional ou formal. A tradução
funcional é aquela mais preocupada com que a tradução funcione em um
determinado contexto tradutório, em determinada língua. A tradução formal,
ao contrário, é aquela que vai se apegar mais à forma, e o problema é que
uma mesma forma pode ter conotações muito diferentes em diferentes
línguas. Para que isso fique mais claro, vejamos o caso das traduções para
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
poemas de Emily Dickinson discutidas por Britto no texto “Correspondência
formal e funcional em tradução poética”, de 2006.
Em toda sua obra, Dickinson recorre às formas mais simples de que
dispõe o repertório prosódico do inglês — as formas de balada — para
por meio delas compor poemas de uma complexidade intelectual
notável. Assim, o contraste entre a singeleza da forma e a densidade
do sentido é um efeito importante de sua poesia. Isso nos leva ao
seguinte problema: ao traduzir Dickinson, devemos nos ater à
correspondência formal — i.e., tentar recriar formas análogas às do
original com os recursos do português — ou devemos buscar uma
correspondência funcional — procurar encontrar no nosso idioma
recursos formais que tenham, no contexto poético lusófono, um
significado análogo ao das formas utilizadas no original? (BRITTO 2006b:
57).
Faz parte da tradição incorporar formas estrangeiras ao repertório
poético, afirma Britto. O soneto, o haiku, a sextina, são formas que vieram
para o português de outras tradições poéticas e, portanto, é claro que a
tradução formal produz enormes ganhos. Mas, em sua própria tradução de
Dickinson, Britto opta por uma tradução funcional, isto é, ele usa a redondilha
maior, que seria o correspondente, no contexto lusófono, da balada inglesa,
trazendo suas conotações de simplicidade e folkiness. O fator complicador é
que, dentro do uso da forma simples da balada, Dickinson faz inovações. Ela
usa rimas consonantais que, segundo Britto, constituíram uma importante
inovação na prosódia do inglês, posteriormente adotada por muitos poetas
modernos. Em sua tradução, Britto usou rimas toantes para traduzir as rimas
consonantais de Dickinson, e embora ocorra uma boa analogia formal entre
estes dois tipos de rima, perde-se o caráter inovador do poema, pois em
português as rimas toantes já fazem parte do repertório popular, não
decorrem de uma escolha poética consciente.
Britto analisa as traduções de José Lira, que opta por uma tradução
formal, importando para o português a rima consonantal. Isso seria coerente –
afinal, se houve inventividade na forma em inglês, deve haver também em
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
português. O difícil, afirma o autor, é fazer com que a inventividade funcione.
Ao seu ver, a transposição das rimas consonantais para o português não
funciona. Elas não chegam sequer a ser percebidas como rimas, pois “a
centralidade das tônicas na rima portuguesa é incontornável” (BRITTO 2006b:
62). Nesse caso, a tentativa de importar uma forma poética não teria obtido o
efeito desejado.
Um último ponto das reflexões de Britto que gostaríamos de trazer está
colocado mais explicitamente no artigo “Fidelidade em tradução poética: o
caso Donne” (2006). Neste texto, Britto afirma a possibilidade de se avaliar
traduções de poesia de modo minimamente objetivo. Mais diretamente, o
autor está respondendo ao comentário de Rosemary Arrojo, quando esta diz:
“a tradução de um poema e avaliação dessa tradução não poderão realizar-se
fora de um ponto de vista ou de uma perspectiva, ou sem mediação de uma
‘interpretação’.” (ARROJO apud BRITTO 2006a: 239). Para Arrojo, como a
tradução é inevitavelmente da ordem da leitura e da interpretação, o fato de
considerarmos uma tradução superior a outra refletiria sobretudo uma
afinidade maior entre os nossos pressupostos e os pressupostos de
determinado tradutor; ou seja, preferimos uma tradução quando a nossa
leitura “combina” mais com a leitura de um certo tradutor. Britto, por sua
vez, não vê na instabilidade dos significados um impedimento para uma
avaliação mais objetiva. Sem negar que toda e qualquer tradução vai se dar
dentro de uma perspectiva, ele afirma a possibilidade de avaliar e comparar
diferentes traduções.
É verdade que não temos acesso ao real e que todas nossas opiniões
são qualificadas pelos nossos pressupostos, mas essa constatação não
leva à conclusão de que todas as traduções, ou todas as teorias, são
igualmente “legítimas e competentes”. Pelo contrário, é precisamente
porque não temos esse acesso direto ao real que é necessário analisar,
discutir e tentar estabelecer consensos, ainda que parciais – pois se o
real se oferecesse diretamente como evidência à inteligência humana,
o que haveria para discutir? (BRITTO 2006a: 240-241).
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Britto procede então a análise e comparação das traduções de Augusto
de Campos e de Paolo Vizioli para o poema “Going to bed”, de John Donne.
Ele faz uma análise minuciosa das duas traduções, comparando-as ao original
e avaliando, entre outros elementos, perdas semânticas, acréscimos de
palavras, mudanças na sintaxe, rimas e associações fônicas. Desse modo,
elabora um tipo de análise em que o cotejo das traduções com o original
permite conclusões mais palpáveis do que apenas “esta tradução flui melhor”,
ou “esta tradução preserva o espírito do original”. A nosso ver, ao tornar mais
objetiva a comparação entre as traduções, assim como Meschonnic, Britto
também vai contra o “império dos significados”, colocando o sentido como um
dentre os vários aspectos que deve ser traduzido. E em sua busca por certa
objetividade, não deixa de estabelecer uma “erótica” da tradução.
Considerações finais
Na introdução, sugerimos que o trabalho de tradução poderia se
oferecer como um espaço privilegiado para se pensar a poesia de acordo com
os preceitos “contra-interpretativos” de Susan Sontag. Os três teóricos que
trouxemos parecem formular, cada um ao seu modo, suas próprias “eróticas”:
enfatizando o ritmo, a materialidade, os diversos níveis de efeitos que
compõem o poema e demonstrando como para traduzir é preciso fazer uma
“descrição realmente cuidadosa, aguda, carinhosa” do poema. Assim, o
aspecto semântico-interpretativo coloca-se como um dos momentos do
trabalho tradutório; e a própria instabilidade dos sentidos, na medida em que
é um dos efeitos da poesia, também deve ser incorporada ao texto traduzido.
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Bastos, B. C. – O sentido e o som: três teorias da tradução de poesia
em diálogo
Um dos aspectos interessantes do trabalho de tradução é que ele
parece necessariamente levar a este “corpo a corpo” com o texto. No
entanto, nem a nossa leitura particular, tampouco o texto, são transparentes.
O acesso ao texto vai sempre se dar através das ideias e da ‘historicidade’ de
cada um. Mas é justamente não perdendo de vista essa complexidade que
poderemos
ler/ouvir/tocar
melhor
o
poema,
torná-lo
mais
real
e,
consequentemente, realizar traduções mais interessantes.
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em diálogo
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Poéticas em conflito: a literatura
brasileira traduzida por Elizabeth
Bishop no contexto das trocas
culturais Brasil x EUA
Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista
*
Abstract: This article proposes to analyse, from a systemic approach of cultural
exchanges between different nations and languages, the Brazilian translation work of
American poet Elizabeth Bishop, produced in the 1950-70’s. Based on the
polysystem theory of Itamar Even-Zohar, and Andrè Lefevere’s theory of
rewriting, we demonstrate how the flow of literary translations often follows
dynamics that go beyond strictly literary criteria. Bishop’s view of Brazilian
literature is traced through the study of her translations and other textual production
and it shows a cultural conflict. This conflict is found in the contact of two different
literary poetics and two different modernist proposals: the Anglo-Saxon tradition in
which Bishop developed her literary career, and the Brazilian literature, until then
affiliate to French literary tradition. It is appointed in this article that this tension is
a consequence of this specific historical moment, when two central literary systems
dispute over one considered peripheral.
Keywords: Elizabeth Bishop; literaly translation; Brazilian modernism; polysystem
theory.
Resumo: Neste artigo propomos analisar a obra tradutória brasileira da poeta norteamericana Elizabeth Bishop, realizada nas décadas de 1950-70, a partir de uma visão
sistêmica das trocas culturais entre diferentes nações e línguas. Baseando-nos na
teoria dos polissistemas de Itamar Even-Zohar e na teoria da reescrita de André
Lefevere, mostramos como o fluxo de traduções literárias muitas vezes obedecem a
dinâmicas que vão além de critérios estritamente literários. Identificamos na leitura
que Bishop fez da literatura brasileira, por meio do estudo de suas traduções e outras
produções textuais, uma tensão entre duas diferentes poéticas literárias e duas
diferentes propostas modernistas, a da tradição em língua inglesa, da qual Bishop é
insigne representante, e a brasileira, até aquele momento histórico afiliada à
*
Doutor em Teoria e História da Literatura pela UNICAMP, pós-doutorando na ECA/USP.
Email: [email protected].
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tradição francesa. Essa tensão é vista como reflexo de um momento de disputa entre
dois sistemas literários centrais sobre um sistema considerado então periférico.
Palavras-chave: Elizabeth Bishop; tradução literária; Modernismo brasileiro; teoria
dos polissistemas.
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
Em sua teoria da reescrita, na qual aborda o poder de mediação e
criação de imagens culturais presentes na tradução, André Lefevere utiliza o
conceito de sistema literário, introduzido nos Estudos da Tradução pelo
estudioso Itamar Even-Zohar. Lefevere define sistema “como um termo
neutro, descritivo, usado para designar um grupo de elementos interrelacionados que compartilham certas características que os separam
daqueles vistos como não pertencentes ao sistema” (LEFEVERE 1992: 12) 1. O
conceito de sistema é empregado por permitir uma abordagem funcional em
que a literatura é vista em correlação a língua, sociedade, economia, política,
ideologia etc. Isso ocorre por ser a literatura autorregulada e ao mesmo
tempo condicionada por outros sistemas. Segundo Zohar, “qualquer sistema
semiótico (tal como a literatura ou a língua) é apenas um componente de um
(poli)sistema maior – o da ‘cultura’, ao qual é subjugado e com o qual é
isomórfico [...]” (ZOHAR 1990: 2). O polissistema da cultura “pode ser
concebido como um componente em um mega (poli)sistema, i.e., aquele que
organiza
e
controla
várias
comunidades”
(Ibidem:
24).
Os
diversos
polissistemas culturais se articulam em uma hierarquia em que não há apenas
um centro, mas diversos centros e periferias. Segundo Zohar, essa hierarquia
entre os polissistemas determina em grande parte a dinâmica das trocas
culturais, nas quais se incluem as traduções, que formam, por sua vez, um dos
subsistemas mais ativos do sistema literário.
Para Lefevere, as reescritas, principalmente as traduções, afetam
profundamente a interpenetração dos sistemas literários, não apenas por
projetar a imagem de um escritor ou obra em outra literatura, ou por não
conseguir fazê-lo, mas pela possibilidade de introduzir novas estratégias em
uma poética e preparar o caminho para alterações na mesma. Segundo a
teoria dos polissistemas, alguns sistemas literários ocupariam uma posição de
centralidade por possuírem uma literatura considerada forte, autossuficiente,
1
Esta e outras citações do artigo, originalmente em inglês, foram traduzidas pelo autor deste
artigo.
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
capaz de responder por si própria às suas demandas internas, enquanto os
sistemas periféricos necessitariam regular suas deficiências através do
empréstimo de modelos dos sistemas centrais. A partir dessa abordagem
funcional, os textos só constituem um fator dinâmico nas relações sistêmicas
em função de sua representatividade como modelos. Em função dessa
perspectiva
as
traduções
são
classificadas
como
primárias,
quando
representam novos modelos e trazem inovações ao sistema receptor; ou
secundárias, quando não trazem inovação e são consideradas conservadoras.
Nesse contexto, o sistema literário brasileiro pode ser considerado
periférico em boa parte de sua trajetória histórica, devido ao seu reduzido
relevo internacional, e por ter se mantido em relação de dependência junto
aos sistemas centrais ocidentais, norte-americano e europeus, durante seu
processo de formação. Apesar dessa relação de dependência, como situa
Zohar, ser típica da “juventude” de um sistema, ela pode se prolongar por
razões que vão além do estado do sistema literário como tal (ou seja, de sua
maturidade). Segundo Zohar, a tradução de obras de uma literatura periférica
para uma central não ofereceria inovações e seria moldada às normas já
estabelecidas no sistema receptor. Ela seria considerada como uma tradução
secundária. Como dissemos anteriormente, isso ocorreria em função do
sistema central ser considerado autossuficiente e não necessitar da influência
de modelos externos. Neste caso, a tradução não responderia às necessidades
do sistema literário, mas de outros sistemas, como político ou econômico. É o
que acreditamos ter ocorrido durante as décadas de 1950-60 nos EUA com
relação à América Latina, em que a disputa de influências ensejada pela
Guerra Fria gerou um intenso programa de intercâmbio cultural no qual se
incluía o financiamento de projetos de tradução. Como atesta Heloísa
Barbosa,
[...] no caso das traduções de obras literárias brasileiras e ficção em
prosa para a língua inglesa, o maior patrocinador parece ter sido o
governo norte-americano, que desejou promover comunicação
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
intercultural em função de promover a amizade entre as nações do
continente americano [...]. Entretanto, o governo norte-americano não
parece ter selecionado diretamente os textos para tradução, ou
contratado tradutores para realizar as traduções. Esse trabalho parece
ter sido assumido pelos experts das agências que forneceram os fundos
(tais como as fundações Rockfeller e Ford) (BARBOSA 1994: 104-105).
Não houve por parte do sistema literário norte-americano um
movimento de interesse pelos textos (enquanto modelos poéticos) latinoamericanos, mas um interesse político, que gerou uma demanda no sistema
cultural. O resultado disso é que apesar do boom tradutório da literatura
latino-americana nos anos 1960 nos Estados Unidos (no qual se incluiu o
Brasil 2), não se pode falar de uma influência daquela no sistema literário
norte-americano. É o que demonstra a avaliação de Barbosa sobre a recepção
do Modernismo brasileiro nos países de língua inglesa:
[...] apenas duas das obras traduzidas no período [décadas de 1920-30]
foram obras produzidas por escritores relacionados ao movimento
Modernista: “Urupês”, de Monteiro Lobato (1918, “Brazilian short
stories”, 1925), e “Amar, Verbo Intransitivo”, de Mário de Andrade
(1927, “Fraulein”, 1932), além de não serem obras significativas no
movimento. “Macunaíma”, por exemplo, não foi publicado em língua
inglesa antes de 1984. Esses fatos se colocam contra a existência de
um maior interesse pela expressão literária do movimento Modernista
brasileiro de parte do mundo falante da língua inglesa (BARBOSA 1994:
32).
Talvez, o realismo-fantástico pudesse ser considerado como um
elemento da poética latino-americana que foi exportado à época. Barbosa, no
entanto, sugere que o boom da literatura realista-fantástica tenha sido acima
de tudo um fenômeno tradutório, encontrando sua origem antes na reescrita
efetuada pelos tradutores e críticos estrangeiros do que em um movimento
literário criado e exportado pelos escritores latino-americanos:
2
Segundo Barbosa, o número de obras literárias brasileiras traduzidas para o inglês quase
triplicou nos anos 1960 (BARBOSA 1994: 44).
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
[...] sendo este o caso, o boom seria aqui visto como algo vindo de
fora, não algo gerado no espaço chamado “América Latina”.
Consequentemente, não é possível ver o boom como se iniciando na
publicação de obras originais em espanhol. A visão tomada aqui é de
que o boom é antes de tudo um fenômeno de tradução (BARBOSA 1994:
40).
O boom literário latino-americano estaria vinculado a um crescimento
do mercado ocidental para seus produtos culturais, aliado aos interesses
políticos já descritos. A restrita abertura do sistema literário norte-americano
a modelos literários estrangeiros, especificamente os dos sistemas literários
considerados periféricos, pode ser confirmada pela tradição norte-americana
na abordagem tradutória, que Lawrence VENUTI (1995) caracteriza como
conservadora e dominada pela estratégia “domesticadora”, transformando-as
nas traduções secundárias de que fala Zohar. Essa estratégia resulta em
traduções como as feitas pela poeta Elizabeth Bishop nos anos 1950-70, que
assimilam e apagam a originalidade dos textos, diluindo sua capacidade de
influenciar o sistema receptor, como apontado em artigo anteriormente
publicado (BATISTA 2005). Essa estratégia se justificaria não por uma intrínseca
“inferioridade” do texto periférico, mas pelas relações dos sistemas literários,
determinadas por suas respectivas posições hierárquicas e pela tentativa de
imposição de uma poética sobre outra, tendência a acontecer quando uma
literatura central traduz uma periférica. Em um movimento contrário − na
tradução de um texto de uma literatura central para uma periférica − a
abordagem é inversa e o alto status da obra (em parte devido ao status do seu
sistema de origem) leva a uma tradução cuidadosa no sentido de preservar no
texto as características do que é considerado como sua originalidade (ou seja,
aquilo que distingue sua poética daquela em vigor no sistema receptor). Neste
caso, a tradução é orientada para o sistema de origem, em uma tentativa de
preservar as especificidades do texto e apresentá-lo como modelo a ser
copiado.
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
A dinâmica das trocas intersistêmicas ajuda-nos a entender a
abordagem “domesticadora” de Bishop, revelada pela adoção do método
literal e pela seleção de textos que encontrassem modelos já existentes na
literatura em língua inglesa. Como nos diz Lefevere, a tradução de textos de
um sistema periférico para um central leva o tradutor a “concentrar-se em
encontrar os melhores modelos secundários prontos para o texto estrangeiro,
e o resultado com frequência é uma tradução não adequada ou uma grande
discrepância entre a equivalência alcançada e a adequação proposta”
(LEFEVERE 1992: 52). São os inconvenientes do método literal na forma
empregada por Bishop, que dilui os textos na tradição receptora e anula suas
melhores qualidades poéticas, tornando-as assim traduções secundárias,
conservadoras e incapazes de influenciar o sistema receptor. As traduções de
Bishop são consideradas de baixa qualidade, em grande parte devido ao seu
desconhecimento da língua portuguesa, o que a levou a erros gramaticais e
semânticos. Considerando o extremo profissionalismo e dedicação que Bishop
dispensava ao seu trabalho poético, em função do qual produziu uma obra
reduzida, mas elogiada por sua precisão e cuidado artesanal – alguns de seus
poemas levaram anos para serem concluídos, como “The Moose”, que levou
cerca de vinte anos –, a falta de cuidado que marcou suas traduções pode ser
explicada por sua postura etnocêntrica. Apesar de seu interesse pessoal pelos
autores e textos traduzidos, Bishop enxergava nossa literatura como inferior,
uma cópia atrasada da literatura europeia, julgamento que se estendia de
uma forma geral a toda a alta cultura brasileira, considerada uma importação
de modelos estrangeiros. Seu interesse restringia-se à cultura popular, que
considerava “original” e “autêntica”. Provavelmente essa postura explica ter
se envolvido nos projetos de tradução e antologização de nossa literatura,
mesmo não se considerando totalmente apta para essas tarefas. Bishop não
possuía nenhuma formação na área − literatura brasileira − e nem mesmo um
conhecimento autodidata que fosse consistente. Como nossa alta literatura
não lhe interessava, não desenvolveu nenhum estudo mais sistemático do
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
assunto e, provavelmente, além do pouco de ficção e poesia que leu (a maior
parte traduzida para o inglês), não leu nenhum crítico ou historiador literário
brasileiro (pelo menos não cita nenhum em suas cartas e entrevistas) 3. Suas
declarações são de uma pessoa com conhecimentos limitados sobre o assunto,
carregadas de idiossincrasias e opiniões pessoais, pouco apropriadas a um
público acadêmico, como o dos estudantes, principal alvo da antologia de
poemas brasileiros que editou pela Wesleyan University em 1972. Além do
interesse pessoal de Bishop pelos autores traduzidos, seu envolvimento parece
explicar-se mais por razões financeiras e circunstanciais: a conjunção entre a
presença de uma escritora norte-americana famosa no Brasil e o mercado que
se formou à época nos Estados Unidos para produtos culturais relacionados à
América Latina. Perfil que compartilha com grande parte dos tradutores de
obras brasileiras para a língua inglesa, como sugere Barbosa em seu
levantamento dos tradutores de nossa literatura – “aqui o maior elemento de
aleatoriedade surge na pesquisa. O acaso parece enviar pessoas ao Brasil. O
acaso parece levar pessoas a aprenderem português na universidade. Essas
pessoas eventualmente traduzem obras brasileiras para o inglês” (BARBOSA
1994: 345).
Não se pode considerar que os textos de origem periférica não
ofereçam nenhuma inovação e capacidade de influência sobre um sistema
central, mas a própria postura com que tais textos são abordados impede que
as possíveis inovações apareçam e sejam capazes de oferecer alguma
influência, uma vez que as diferenças são negadas e apagadas, nas traduções
literais e conservadoras, como as realizadas por Bishop. No caso em que
estamos estudando, apesar do processo de “domesticação”, acreditamos que
Bishop recebeu uma influência dos textos que traduziu, como os de João
3
Como afirma Paulo Henriques Britto “já nas primeiras cartas escritas aqui a poeta revela o
desânimo que lhe inspiraram a pobreza do ambiente cultural brasileiro, o provincianismo dos
intelectuais locais e a falta de perspectiva do país – uma visão do Brasil que certamente não a
estimulava a empreender uma imersão mais profunda na literatura brasileira” (BRITTO 1999:
17).
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
Cabral de Melo Neto, que lhe sugeriram formas poéticas (a balada para “The
burglar of Babylon”), e especialmente Carlos Drummond de Andrade, que a
inspirou a escrever textos com temas como memória e família (fazendo-a
romper com sua poética impessoal) 4, e que também a influenciou
formalmente (segundo a crítica literária Helen Vendler, Drummond lhe teria
sugerido a estrofe de três versos usada em “In the waiting room” (VENDLER
1983: 312)). Uma vez que Bishop recebeu uma influência efetiva desses
autores e por ocupar um lugar de centralidade no sistema literário norteamericano, podemos considerar que apesar da estratégia “domesticadora”, as
traduções exerceram uma influência sobre o sistema receptor. Neste caso isso
ocorreu apenas pelo fato de se conjugarem em uma mesma personagem a
tradutora e uma escritora canonizada. Esta não é uma situação frequente nos
Estados Unidos, diferentemente da América Latina, onde há uma tradição de
escritores famosos se dedicarem à tradução de textos estrangeiros. Tal fato
não deixa de possuir uma ligação direta com a dinâmica entre os sistemas
centrais e periféricos que estamos analisando, na medida em que os escritores
do sistema periférico se dirigem ao centro em busca de modelos, através das
traduções, como o fizeram Machado de Assis (tradutor de Edgar Allan Poe),
Manuel Bandeira (tradutor de Marianne Moore) e Carlos Drummond (tradutor
de Guillaume Apollinaire).
Além da dinâmica entre os sistemas periféricos e centrais outros
fatores, segundo Lefevere, controlam o sistema literário, sendo classificados
como internos e externos. O controle interno é exercido pelos profissionais da
área (escritores, professores de literatura, críticos, tradutores etc.), que
possuem autonomia e status no seu campo particular. O controle externo é
4
Segundo Pryzbicien “vários críticos americanos têm atribuído a mudança na produção
poética posterior de Bishop à poesia confessional de [Robert] Lowell. Meu ponto de vista é de
que foi Carlos Drummond de Andrade, não Lowell, quem a ensinou a balancear temas
intensamente pessoais com um tom irônico em seus poemas sobre memória”. [“Several
American critics attribute the shift in Bishop’s late poetic production to Lowell’s confessional
poetry. My view is that it was Carlos Drummond de Andrade, not Lowell, who taught her to
balance intensely personal themes with an ironical tone in her memory poems” (PRYZBYCIEN
1998: 103).
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
exercido pela patronagem, que deve ser entendida, segundo Lefevere, como
“os poderes (pessoas, instituições) que podem promover ou obstruir a leitura,
escrita e reescrita da literatura” (LEFEVERE 1992: 15). A patronagem se
interessa mais pela ideologia do que pela poética e delega competência aos
profissionais quando se trata de questões relativas à segunda esfera. A
patronagem pode ser exercida tanto por indivíduos, como os mecenas, como
por grupos de pessoas ou instituições, como as fundações Rockfeller, Ford,
Fullbright e a editora Time Life, que patrocinaram projetos de Bishop sobre o
Brasil. Os patronos não são os responsáveis pela reescrita, mas por sua
publicação e divulgação, atuando de forma direta na seleção das reescritas a
alcançarem o grande público. De uma forma geral, os patronos estão ligados à
ideologia dominante, representada nos quadros dirigentes das instituições de
ensino, revistas, jornais etc. A patronagem dá o tom ideológico às reescritas,
uma vez que, segundo Lefevere, “a aceitação da patronagem implica a
integração em um certo grupo de apoio e seu estilo de vida” (LEFEVERE 1992:
14).
Acreditamos que as traduções realizadas por Bishop tenham sido
movidas antes de tudo por seu interesse pelos autores escolhidos e por suas
obras. Mas, a oportunidade de publicá-las e de obter um retorno financeiro
está diretamente ligada ao amplo mercado que se abriu para estudos
acadêmicos, ficção, artigos, livros de viagem, matérias jornalísticas,
documentários e outras representações sobre a América Latina, fomentado
pela política cultural norte-americana para o hemisfério durante a Guerra
Fria. Esse mercado era financiado antes de tudo pelo governo norteamericano, que atuava em conjunção com instituições privadas. A patronagem
do governo e das instituições com as quais cooperava parece não ter oferecido
a Bishop grandes embaraços, como ofereceram ao cineasta Orson Welles, cujo
documentário sobre o Brasil (It’s all true, rodado em 1942), patrocinado pelo
Departamento de Estado norte-americano, teve seu projeto cancelado a meio
caminho por não se adequar à agenda política de sua patronagem. O
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
Departamento de Estado não estava preocupado em conhecer a realidade do
povo brasileiro (através de um documentário que mostrava a vida de um
jangadeiro em Fortaleza e de um negro em uma favela do Rio de Janeiro),
mas queria apenas um motivo para reforçar seus laços de influência, objetivo
melhor realizado pelo longa-metragem de Walt Disney Alô amigos, lançado no
ano de 1942, e que apresenta o Brasil estereotipado do samba, do carioca
malandro e da baiana brejeira.
Bishop parece ter professado a mesma ideologia de sua patronagem, as
grandes publicações norte-americanas sobre literatura, como The New Yorker,
The New York Times, Partisan Review, e outras, nas quais suas obras eram
presença frequente e cujos diretores muitas vezes eram seus amigos pessoais.
Segundo Lefevere, os reescritores são delegados pelos patronos para
manterem o sistema literário alinhado com sua própria ideologia. A aceitação
da patronagem implica que os reescritores trabalhem dentro dos parâmetros
colocados por seus patronos. A posição de centralidade de Bishop no sistema
literário norte-americano sugere seu alinhamento com a ideologia dominante
e pode ser comprovado por sua postura conservadora (tanto literária quanto
politicamente) e pouco crítica ao status quo.
A interferência da patronagem no trabalho de Bishop pode ser melhor
apreciada no episódio do volume Brazil, encomendado pela Time-Life para a
coleção Biblioteca Internacional. Em carta de 1961, Bishop relata o projeto à
sua tia Grace:
A revista Life me pediu para escrever o texto de um livrinho sobre o
Brasil. Eles publicam uma série destes livros – cada um sobre um país
diferente. O mais provável é que ninguém leia o texto, mesmo, e só
veja as fotos, que normalmente são maravilhosas [...]. Mas escrever
esse tipo de coisa é difícil para mim, e tenho que cobrir todo o país –
história, economia, geografia, artes, esportes – tudo, ainda que de
modo superficial. Porém vou ser bem paga [...]. Não gosto da revista e
não gosto deles [...] – mas quero ganhar dinheiro – e a esta altura de
fato sei muita coisa sobre o Brasil, querendo ou não (BISHOP 1995: 434).
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
Na finalização do livro, Bishop se desentendeu seriamente com os
editores, que sugeriram diversas alterações ao seu projeto. É o que declara
em carta de 1962, quando o livro foi publicado − “o livro Brazil é mesmo um
horror; tem algumas frases que simplesmente não fazem sentido. E pelo
menos as fotos podiam ser boas. Se você se der ao trabalho de ler o livro, é
possível que encontre aqui e ali algum vestígio do que eu pretendia dizer
originariamente” (BISHOP 1995: 443). O convite de Bishop para assinar o livro
devia-se antes de tudo ao seu status de escritora reconhecida (já havia
conquistado o prêmio Pullitzer) e de “conhecedora” do Brasil. Nesse sentido
seu nome na capa do livro serviria como uma estratégia de marketing com
vistas a vendas lucrativas. Os desentendimentos entre Bishop e os editores
parecem ter se dado pela imposição de um modelo padronizado que Bishop
não queria seguir. Não houve exatamente um choque ideológico, mas as
preocupações de Bishop parecem ter se dirigido mais aos aspectos estéticos
do livro, como declara em carta de 1962: “acho que o pior de tudo é como
eles vulgarizam os títulos de capítulos e legendas” (Ibidem: 714). Completa:
[...] as fotos são mesmo o mais imperdoável de tudo – o que não falta
é material, tem coisas maravilhosas [...]. Eles receberam minhas ideias
com entusiasmo, só que não tomaram nenhuma iniciativa. [...] Imagine
um Rio de Janeiro sem nenhum pássaro, nenhum bicho, nenhuma flor.
E existem fotos maravilhosas de índios, suas casas, seus adereços, suas
danças, etc. – não saiu nada (BISHOP 1995: 714-15).
Aparentemente a imagem do Brasil de Bishop não entrou em acordo
com a imagem pretendida pela Time-Life. Bishop tentou projetar no livro uma
imagem que se concentrava naqueles aspectos que considerava naturais e
originais e que entravam em concordância com sua imagem do país formada
pelo dualismo “natureza exuberante” e “sociedade primitiva e autêntica”.
Como declara na mesma carta de 1962 – “eu insisti que devia haver pelo
menos uma página de fotos de animais [...] – escrevi duas ou três páginas boas
sobre a natureza – o efeito dela sobre a linguagem – bichos de estimação –
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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pássaros de gaiola etc. – cortaram tudo” (BISHOP 1996: 716). Os editores, ao
contrário, pretendiam divulgar uma imagem do Brasil desenvolvimentista, que
havia definitivamente entrado na sua etapa industrial com o governo de
Juscelino Kubitschek, no final da década de 1950. Bishop critica a
tendenciosidade dos editores que, segundo ela, estavam mais interessados em
apregoar as benesses da industrialização, criando uma imagem do país onde
“dão a entender que a solução de todos os problemas da vida é a
‘industrialização’” (BISHOP 1996: 715). É nesse sentido que os títulos
“sugestivos” de Bishop para os capítulos do livro, como, “Cap. 2 A terra do
pau-brasil, Cap.5 Animal, vegetal, mineral, Cap.6 As artes espontâneas”, são
substituídos por títulos como “Esplendores modernistas de uma capital na
fronteira”. Na verdade Bishop não se opunha à ideologia de sua patronagem,
como declara na mesma carta – “não há dúvida de que a industrialização é a
única coisa que pode salvar o Brasil, seja boa ou má, mas a maneira como eles
colocam a coisa [...]” (BISHOP 1996: 715), ela apenas apresentava uma imagem
mais idealizada e estetizada do país. Como nota Lefevere, a patronagem
interessa-se principalmente pelos fatores ideológicos e econômicos. Quando
há um confronto entre um desses fatores e o poético, os primeiros tendem a
vencer o segundo. O resultado é que Bishop renegou o livro (costumava
corrigir pessoalmente os exemplares que encontrava nas casas dos amigos),
que foi publicado como uma coedição entre a poeta e os editores da TimeLife.
Outro viajante norte-americano que visitou o Brasil na década de 1950
foi o escritor John dos Passos, que esteve aqui em 1958 visitando Brasília para
escrever um artigo para a revista Reader’s Digest a convite do Departamento
de Estado dos EUA, e que visitou Bishop e sua amiga Lota de Macedo Soares
em Samambaia. Além do artigo, dos Passos acabou publicando também um
livro sobre o Brasil, que Bishop considerou “uma porcaria tão grande que nem
consegui ler, e muito superficial” (BISHOP 1996: 463). Intitulado “Brasília, uma
capital surge no sertão”, o artigo de dos Passos que inicialmente o trouxe ao
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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país parece seguir o estilo dos editores da Time-Life, retomando o discurso do
“país do futuro”, no qual os imigrantes de Brasília são comparados aos
“colonos americanos do oeste dos EUA ha cem anos atrás” (DOS PASSOS 1960:
19). O texto é marcado pelo ufanismo que vangloria as dimensões do país e do
empreendimento da construção de Brasília, e seu tom geral pode ser
entrevisto no período com que o texto se inicia: “Num planalto do sertão, a
mais de 1.000 quilômetros do mar, a maior nação da América do Sul e o
quarto país do mundo em superfície está terminando uma nova capital” (DOS
PASSOS 1960: 15). O artigo de dos Passos apresenta o mesmo tipo de imagem
do país presente nas intenções dos editores da Time-Life de Brazil,
apregoando sua capacidade de desenvolvimento e as vantagens que o
processo de industrialização trará ao país, integrando-o ao capitalismo
ocidental.
Além de financiar o trabalho dos reescritores, a patronagem é
principalmente responsável pela divulgação das reescritas. Foi através do
projeto da Wesleyan University de editar uma antologia de poesia brasileira
que Bishop pôde aumentar o público leitor de suas traduções, até então
restrito aos leitores especializados dos jornais e revistas literárias nas quais as
havia publicado originalmente. O interesse da universidade em patrocinar
uma antologia brasileira parece ter sido uma resposta à demanda criada pelos
estudos brasilianistas e por todo o interesse que se formou sobre a América
Latina no período. Como nos alerta Lefevere, as antologias são publicadas
quando a cultura em questão ocupa um papel de destaque.
Segundo Lefevere, as antologias são os tipos mais potenciais de
reescritas, por apresentarem em um volume três processos de manipulação: a
seleção, a tradução e a crítica. Isso decorre em razão das antologias se
constituírem de uma seleção de textos, traduzidos (se estrangeiros) e
apresentados por introduções e prefácios de caráter crítico sobre as obras
editadas. Cada um desses processos representa uma reescrita, que pode ser
realizada pela mesma pessoa (no caso de Bishop), ou por três diferentes
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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instâncias (o tradutor, o editor e o prefaciador). A capacidade das antologias
de criarem imagens de uma literatura é grande devido ao seu objetivo
representativo e introdutório de uma literatura estrangeira ou de um
determinado tema literário. Se levarmos em conta que as antologias são
muitas vezes utilizadas como textos de consulta em cursos de literatura, o
poder de que falamos se potencializa ainda mais, por tornar-se referência
básica
para
estudantes
que
muitas
vezes
se
tornarão
posteriores
retransmissores daquele conhecimento − e daquela imagem. Como nota
Lefevere, o sistema educacional é um dos principais responsáveis pela
canonização e manutenção da posição canônica dos textos, e que por sua vez
age em sintonia com as editoras, formando um ciclo de produção e consumo.
Para Lefevere, a canonização de obras literárias
[...] encontrou seu mais impressionante – e rendoso – monumento na
publicação da híbrida cristalização da cooperação estreita e lucrativa
entre editoras e instituições superiores de ensino: a antologia
introdutória, que oferece uma seção cruzada de textos canonizados
prefaciados por uma curta exposição da poética que garantiu sua
canonização (LEFEVERE 1992: 22).
A antologia é um importante elemento canonizador, tornando as obras
antologizadas atemporais e inquestionáveis, promovendo sua canonização em
níveis transnacionais e transculturais. A Introdução de Bishop à antologia
publicada pela Wesleyan University apresenta uma imagem pouco positiva de
nossa literatura, considerada como um reflexo atrasado da literatura europeia
e dotada de características linguísticas problemáticas. Essa visão decorre de
vários fatores, entre os quais o confronto entre as diferentes poéticas dos dois
sistemas literários envolvidos. A poética seria, para Lefevere, o segundo fator
a atuar sobre as reescritas, junto à patronagem.
O confronto entre duas diferentes concepções poéticas parece estar
por trás de certos desentendimentos de Bishop com relação à nossa cultura e
literatura, o que pode ser entrevisto em primeira mão pela oposição que ela
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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estabelece entre sua origem anglo-saxônica e a origem latina da cultura
brasileira (em especial nossa filiação à cultura francesa), e que revela uma
divergência entre as poéticas dos dois sistemas literários envolvidos. Essa
oposição pode ser vista nas cartas onde relata suas discussões com os
intelectuais brasileiros: “[...] não conhecem nossos críticos em absoluto,
limitam-se a repetir as ideias de um punhado de franceses católicos
antiamericanos, que também não sabem muita coisa sobre os Estados Unidos e
os escritores americanos – ou só conhecem muito pouco” (BISHOP 1997: 356), e
na Introdução à antologia, onde se irrita com a filiação brasileira à poética
francesa, considerada ultrapassada: “[...] aparentemente os poetas são
influenciados, ou talvez simplesmente copiem, a norma francesa” (BISHOP
1972: XVI). Isso em um momento em que a influência cultural norteamericana sobre o país começa a se estabelecer, como nota a própria Bishop
na Introdução da Antologia:
[...] a literatura e a filosofia francesa foram, e permaneceram, até
muito recentemente, as influências mais fortes no pensamento e na
literatura brasileira. Elas são ainda de importância fundamental, mas a
prosa e a poesia inglesa, e principalmente, a norte-americana, estão
se tornando rapidamente conhecidas. O inglês está agora se tornando a
língua estrangeira mais na moda e mais importante (BISHOP 1972: XVIII).
A disputa entre as duas metrópoles pelo mercado cultural brasileiro
(que passa a ser ganha pelos EUA exatamente a partir da época da vinda de
Bishop ao Brasil) nos confirma a situação periférica do sistema literário
brasileiro naquele momento, e explica em parte a antipatia de Bishop para
com as influências francesas em nossa poética.
Além
da
ascendência
francesa,
nossa
literatura
possui
outras
características específicas que foram motivos de estranhamento para Bishop e
que entraram em choque com sua poética, diretamente filiada ao alto
modernismo norte-americano. Essa poética era representada pelo nome de T.
S. Eliot, um de seus maiores defensores, seja através de seus poemas, seja
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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através de sua obra crítica e teórica, que, vinculada ao New Criticism,
pregava a imanência da obra literária e o seu valor autônomo como objeto
artístico (recusando-se a reconhecer as origens ideológicas dos valores
críticos). O discurso do modernismo literário representado pelo pensamento
de Eliot apresentava-se como apolítico, rompendo as fronteiras nacionais
através do trânsito de seus principais participantes entre a Inglaterra e a
América. Como aponta Stan Smith, em The origins of modernism (1994), “o
modernismo enquanto operação ideológica recusa suas origens nas políticas de
gênero, classe e nacional de seu momento […] situando-se antes e depois, mas
nunca ‘no’ reino do Evento histórico” (SMITH 1994: 19). No modernismo norteamericano essas esferas (gênero, classe, nacional) são obliteradas, e seu
discurso paira acima delas, produzindo obras que pretendem refletir valores
universais e humanistas, que transcendem o tempo. Em decorrência disso
muitos críticos contrastam o radicalismo artístico trazido pelo movimento ao
seu reacionarismo social e político, representado tanto pela defesa do
fascismo feita por Ezra Pound, quanto pela tríade eliotiana do classicismo,
anglicanismo e monarquismo.
Enquanto o modernismo em língua inglesa se distinguiu por um caráter
aristocrático, o brasileiro, por sua vez, procurou apresentar um viés mais
democrático, inspirando-se na linguagem coloquial e parodiando a cultura
popular. Apesar de ter se constituído como um movimento elitizado
(patrocinado pela elite e a ela dirigido, no sentido de criar para as classes
dominantes nacionais uma imagem do país que fosse mais atualizada em
relação aos modelos europeus) 5, as inspirações populares impediram que o
movimento brasileiro alcançasse o caráter erudito apresentado pelo
modernismo norte-americano. Na tentativa de definir nosso Modernismo,
Wilson Martins consegue sintetizar (apesar de aparentemente não ser esta sua
5
Segundo Wilson Martins “[...] não só o Modernismo como todas as revoltas militares e
institucionais, até 1932, foram revoluções burguesas, não só porque foi afinal a burguesia que
delas se beneficiou, mas, ainda, porque se originaram numa ideologia burguesa e desejavam a
consolidação dos ideais burgueses de vida” (MARTINS 1969: 131).
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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intenção) em uma sentença todas as antinomias existentes entre os
movimentos brasileiro e estadunidense: “o Modernismo [brasileiro] opta pelo
rumo nacionalista contra o cosmopolitismo, primitivo contra o artifício,
sociológico contra o psicológico, folclórico contra o literário, e político contra
o gratuito” (MARTINS 1969: 92). Ou seja, enquanto nosso movimento se definia
pela forte marca local, como símbolo do nacional, através do apelo popular
do primitivo e do folclórico, apresentando ainda uma proposta social (mesmo
que esta venha a se esgotar em seu discurso), o movimento norte-americano
se pautava por uma erudição literária e linguística, em que uma suposta
gratuidade da arte lhe garantia um espaço acima das esferas políticas e
sociais.
Em um certo sentido, portanto, pode-se dizer que o nosso modernismo
diferenciou-se do norte-americano, por trazer um viés social e político que só
seria incorporado ao segundo posteriormente. Como afirma Eliana Bastos, em
sua comparação da Semana de Arte Moderna brasileira de 1922, com o Armory
Show norte-americano, realizado em 1917, “a noção de nacionalismo,
claramente definida como um valor, só aparece um tanto tardiamente no
modernismo americano” (BASTOS 1991: 62). No Brasil, por exemplo, a
incorporação da imagem do negro e do mestiço na literatura canônica se dará
de forma mais positiva (ainda que questionável) logo a partir do movimento
modernista de 1922, que teve um de seus marcos no lançamento de Juca
Mulato de Menotti Del Picchia, ou nos poemas de Oswald de Andrade,
enquanto na literatura norte-americana, esse tema só será integrado ao
cânone a partir das décadas de 1950-60, como resposta aos movimentos
sociais dos negros 6. Como sugere ainda Bastos, “devido ao preconceito racial
e ao princípio da não miscigenação, só muito mais tarde a cultura do negro
veio a ser incorporada como um valor, com exceção do jazz, mesmo assim só
6
Excetuando-se A Cabana do pai Tomás que, como os poemas de Castro Alves, surgiu para
fortalecer a propaganda abolicionista. E o movimento Harlem Renaissance, que eclodiu entre
os anos 1920-1930.
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
aceito como expressão de cultura popular” (BASTOS, 1991: 63). É só a partir
dessa época que a literatura norte-americana se abriu para as questões
sociais, incorporando não só a problemática do negro, mas da mulher e outras
“minorias”, seja através do movimento Beat, profundamente questionador do
status quo
norte-americano,
quanto
através dos movimentos sociais
setorizados, mudanças das quais Bishop manteve-se à parte 7.
Por outro lado, o propalado viés apolítico do discurso modernista em
língua inglesa revela, obviamente, uma posição política, como atesta Fredric
Jameson, em Modernism and imperialism: “um dos estereótipos mais
comumente mantidos sobre o modernismo tem sido em geral, é claro, o de
seu caráter apolítico, […] sua crescente subjetificação e psicologização
introspectiva e, ainda, seu esteticismo e compromisso ideológico ao supremo
valor da agora autônoma Arte” (EAGLETON, JAMESON, SAID 1990: 45). O suposto
caráter apolítico do modernismo representava na verdade uma ausência de
discussão política no discurso literário e, portanto, a aceitação do status quo,
daí seu conservadorismo. A asserção de determinados valores (estéticos,
intelectuais e psicológicos) como universais, reflete uma atitude política
etnocêntrica que é questionada por Joan Rosalie Dassin, e pode ser preciosa
no entendimento da avaliação feita por Bishop sobre nossa literatura – “a
proclamada independência entre política e cultura disfarça uma tendência
elitista que se torna bem óbvia quando o crítico norte-americano branco
aborda a arte e a literatura dos países chamados ‘subdesenvolvidos’,
aplicando
‘objetividade’
e
‘distanciamento
intelectual’
como
valores
universais” (DASSIN 1978: 26).
7
Pode-se dizer que já a partir da década de 1930 surge uma preocupação social na literatura
norte-americana, especialmente em decorrência da depressão gerada pelo crash da bolsa de
1929, incorporando temas do marxismo e do socialismo, mas apesar disso a poética
representada pelo New Criticism e por Eliot permaneceu em desenvolvimento e vigor até
praticamente a II Guerra Mundial. Com relação a esse tema, Bishop declara em entrevista de
1978 – “mas eu não fui tão afetada pela Depressão como alguns de meus contemporâneos;
não tanto quanto meus amigos disseram que eu deveria ter sido. Eu sempre estive mais
interessada em coisas visuais do que em política” (BISHOP 1996: 113).
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
É perfeitamente compreensível que imersa na poética modernista
norte-americana Bishop tenha estranhado tanto nossa literatura, que tem
como uma de suas especificidades exatamente o engajamento em uma
reflexão nacional. Como coloca Antonio Candido “poucas [literaturas] têm
sido tão conscientes de sua função histórica” como a brasileira (CANDIDO 1981:
26). Posição que se confronta diretamente com a abordagem imanentista
pregada por Eliot. Além da pretensa atemporalidade e universalidade, a
poética do modernismo norte-americano trazia ainda outro fator de choque
com a literatura brasileira: a “teoria impessoal da poesia”, de Eliot,
apresentada em seu artigo “Tradição e talento individual”. Nesse artigo,
Eliot, ao explicar a tarefa do poeta, utiliza-se da imagem do filamento de
platina que atua como catalisador em um processo químico, onde a mistura
de dois gases forma o ácido sulfúrico, sem que o filamento altere-se ou deixe
resíduos no produto formado: “[...] a mente do poeta é o fragmento de
platina. Ela pode, parcial ou exclusivamente, atuar sobre a experiência do
próprio homem, mas, quanto mais perfeito for o artista, mais inteiramente
estará separado nele o homem que sofre e a mente que cria [...]” (ELIOT 1989:
42). Segundo a teoria de Eliot, o poeta não deve deixar sua marca pessoal na
obra. A obra deve falar por si própria, e não pela voz do seu autor. A filiação
de Bishop a essa poética, que prega uma literatura pretensamente
desistoricizada e impessoal, é percebida em sua obra, marcada por uma
proposta esteticista e pela impessoalidade e aparente ausência de uma voz.
Ela mesma declarava: “politicamente, eu me considero uma socialista, mas
desaprovo uma escrita socialmente engajada. Eu defendia T. S. Eliot quando
todos estavam falando sobre James T. Farrel” (BISHOP 1996: 22), ou ainda
quando declara que “poesia não deveria ser usada como veículo de nenhuma
filosofia pessoal” (Ibidem: 104). É em função dessa poética, professada por
Eliot e seguida por Bishop, que ela criticava tenazmente a literatura
confessional (por ser pessoal demais) e a literatura feminista 8 (por ser social
8
Bishop se recusava terminantemente a participar de antologias de mulheres escritoras e
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
por Elizabeth Bishop no contexto das trocas culturais Brasil x EUA
demais). É também em função dessa visão impessoal da poesia que seu senso
estético vai entrar em choque com a poética brasileira, marcada tanto pelo
viés histórico-social como por um sentimentalismo e lirismo que lhe
pareceram por demais pessoais. Esses dois elementos (pessoalidade e
historicidade) são considerados por Bishop como marcas de uma prémodernidade, atribuindo à nossa literatura a permanência de valores
românticos, como declara em carta: “amor e ‘comentário social’ é mais ou
menos o estágio em que todos estão aqui [...]” (BISHOP 1995: 720). Ou quando
responde ao repórter sobre o que quis dizer ao afirmar que as literaturas
brasileira e norte-americana seguiram por caminhos diferentes:
O que aconteceu com Eliot e Pound logo em 1910 – o modernismo. A
poesia brasileira é muito mais formal que a nossa – ela é mais distante
do popular. É verdade que eles tiveram um movimento modernista em
1922, liderado por Mário de Andrade e outros. Mas eles ainda não
escrevem do modo que falam. E eu suponho que eles nunca escaparam
do romantismo (BISHOP 1996:19) (grifo meu).
A crítica à presença incômoda de valores românticos em nossa cultura
moderna não é exclusiva de Bishop e, além de refletir um descompasso entre
poéticas, aponta para uma característica de nossa cultura. É o que questiona
Paulo Prado em Retrato do Brasil lançado em 1927, em pleno efervescer do
movimento modernista, e que inclui o romantismo como um dos males
brasileiros. Segundo ele
[...] basta abrir um jornal, ouvir uma conferência, ou folhear o último
livro publicado para se descobrirem, latentes, inconscientes, mas
indeléveis, os traços sintomáticos da infecção romântica. Apesar da
crescente influência modernista [...] nossa indolência primária ainda
se compraz no boleio das frases, na sonoridade dos palavrões, nas
“chaves de ouro” (PRADO 1997: 180).
odiava “crítica de gênero”, pois não aceitava a ideia de haver algo como uma literatura
produzida por mulheres, havia apenas a “alta literatura”, no sentido imanentista pregado por
Eliot – acima das esferas de gênero, política, classe, etc. A esse respeito ver entrevista a
Eileen Farley de 1974 (BISHOP 1996: 54).
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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Comentando Prado, Wilson Martins (1969), já na segunda metade do
século XX e refletindo sobre o modernismo, concorda, em termos, com o
autor, diz ele – “não é o romantismo que concorre como um elemento na
constituição da psicologia brasileira, é esta última que, sendo o que é,
resultaria forçosamente numa literatura e num temperamento de fortes
características românticas” (MARTINS 1969: 183). Ambos concordam com a
presença
do
romantismo
na
sociedade
brasileira,
impregnando
suas
manifestações mais diversas, mas enquanto o primeiro o vê como um mal que
invadiu o país e “deformou insidiosamente o organismo social” (PRADO 1997:
179), o segundo vê sua presença na própria constituição psicológica do povo
brasileiro, não sendo, portanto, um mal que o invade, mas que lhe é próprio.
Ao apontar nossa tendência romântica, Bishop não apenas contrapõe sua
própria poética à nossa (uma vez que a poética de Eliot apresentava-se como
essencialmente antirromântica e antilírica), mas parece ter acertado no
calcanhar de Aquiles da literatura brasileira 9. A presença romântica em nossos
escritores, que Bishop critica, também é alvo de Martins, que no seu estudo
sobre o modernismo, ao abordar, por exemplo, Manuel Bandeira, questiona o
que Paulo Prado chamou de “indolência primária”: “nem tudo, em Manuel
Bandeira, é Manuel Bandeira: muitas vezes ele é apenas o poeta ‘bonzinho’ de
que falava Mário de Andrade” (MARTINS 1969: 210).
Apesar de muito admirado, Manuel Bandeira foi um dos principais alvos
das críticas de Bishop, que o considerava o estereótipo do poeta brasileiro. A
figura e o papel do poeta em nossa cultura, representado por Bandeira, pode
ser considerado outro ponto de “obstrução” na relação de Bishop com nossa
literatura, em função da contraposição de diferentes “papéis culturais”
(cultural scripts), termo usado por Lefevere para definir “o padrão aceitável
de comportamento de pessoas que preenchem certos papéis em uma certa
cultura” (LEFEVERE 1992: 92). A ampla difusão da prática poética no Brasil por
9
Pelo menos até a metade do século XX.
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Batista, E. L. A. O. – Poéticas em conflito: a literatura brasileira traduzida
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vezes era considerada positiva por Bishop, devido à alta consideração dada
aos poetas; mas por outro lado a desagradava, por gerar uma massa
indiscriminada de poetas bissextos que produziam poesia de baixa ou
nenhuma qualidade (em suas palavras), o que ia contra sua concepção do
poeta como um profissional especializado. Incomodava-se também com a
atitude do poeta brasileiro, considerado acomodado e, após ver uma foto de
Bandeira deitado em uma rede, comentou que essa seria a imagem do poeta
brasileiro, e o “problema” da literatura brasileira. Ora, a visão de Bishop do
papel cultural do poeta está muito mais ligada à imagem do pernóstico Eliot e
da
reticente
Marianne
Moore,
dedicados
profissionais
da
escrita,
representantes de um momento de especialização nos meios literários e
acadêmicos nos Estados Unidos. Esse momento foi dominado pelo New
Criticism,
que
como
concomitantemente
com
um
o
fenômeno
surgimento
do
do
pós-guerra
desenvolveu-se
magistério
superior
e
a
institucionalização dos estudos literários enquanto profissão burguesa nos
Estados Unidos. Segundo Dassin:
[...] os professores e críticos de literatura, sobretudo, criaram uma
ideologia de autossustentação ao exaltarem o empenho humanístico
como veículo para a autorrealização e, ao mesmo tempo, postularam
uma sociedade pluralista que lhes permitisse o máximo de liberdade
individual como paradigma do ambiente intelectual perfeito. A
literatura divorciava-se assim do contexto social [...]. O McCarthismo e
a Guerra Fria forçaram a maioria dos intelectuais do sistema a declarar
sua obra apolítica [...] Tendo atingido privilégios sociais e econômicos
com base na habilidade intelectual ou técnica, os intelectuais tinham
que valorizar essa mesma habilidade como um fim em si mesmo (DASSIN
1978: 130).
Podemos averiguar essa situação de profissionalização do intelectual
através da extensa relação de bolsas e prêmios que Bishop recebeu e que a
ajudaram a manter-se financeiramente (além, é claro, dos valores recebidos
por seus livros publicados, assim como artigos e entrevistas em jornais e
revistas), e que incluem, entre outros, o Prêmio Shelley Memorial, de 1952, o
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Prêmio Pullitzer de poesia de 1956, o Prêmio National Book Award, de 1968, o
Prêmio de viagem Amy Lowel, e a bolsa da Academy of American Poets, além
de cargos como professora convidada ou poeta visitante de universidades
como University of Washington, University of New York, Harvard University e
MIT.
O papel cultural do poeta, para Bishop, estava vinculado a uma postura
extremamente profissional e erudita, que não entrava em acordo com a
imagem do poeta brasileiro displicentemente estendido em uma rede. Bishop
recebeu de presente de Bandeira uma rede, mas provavelmente não a
definiria como o melhor lugar para trabalhar 10. Se a obra poética é fruto de
um trabalho árduo e meticuloso, como poderia ser realizado naquilo que se
considera um símbolo do descanso e relaxamento?
A aplicação de toda a perspectiva representada pelo New Criticism a
uma avaliação da literatura latino-americana, incluindo a brasileira, através
da transposição do conceito de “objetividade”, e de uma crítica formal e
estética, é contraproducente, e não ajuda a esclarecer suas especificidades,
estando desde seu início fadada ao fracasso. Não é possível desvincular no
estudo da literatura latino-americana as esferas política e social, e seria
ingenuidade supor que o mesmo não se aplica às outras literaturas, como a
própria estadunidense. Segundo essa abordagem formalista, os artistas latinoamericanos seriam realmente modernos apenas quando “contemporâneos”, ou
“internacionais”, não vinculados ao “passado” através do nacionalismo,
figurativismo, realismo social e outras tendências consideradas similarmente
anacrônicas. Não é, portanto, por puro preconceito, que Bishop tenha
criticado tanto nossa literatura. Sua postura é antes de tudo o reflexo do seu
modo de pensar e fazer literatura.
10
Em entrevista a Ashley Brown em 1966, ao ser questionada sobre a inspiração da paisagem
em sua casa (Samambaia, em Petrópolis), Bishop disse que para trabalhar qualquer poeta
deveria preferir “um quarto de hotel completamente vazio de distrações” (BISHOP 1996: 18).
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Investigações sobre a construção do
fitônimo CAPOEIRA: aspectos do
campo léxico-semântico e
geolinguística indígenas
Carlos Alberto Rizzi *
Abstract: The word capoeira is a vernacular phrase in Tupi Brazilian Portuguese. Kaáuêra, carries the notion of “forest which is not the same as it was”. This sentence
shows the elegant interpretation of data on the indigenous tradition of the
landscape. Today, capoeira term is widely used in scientific discourse, near your
namesake of the Western tradition: secondary forest. We intend to develop here the
question of why there is a strange difference between the intellectual direction of
the secondary forest and capoeira? This oddity is the fact the word capoeira has a
lexical-semantic field that includes not only the vegetation related training, as well
as homologous and complementary range of phenomena of the environment, fauna
and flora. Something similar does not happen with the term secondary forest. To try
to understand why this observation, we assume that the first term is the result of a
totalizing thought, continuing a tradition handed down from the ancient past, while
the second term is the heir to a recent split: the fragmentation of Hellenistic
thought. In the West, this fragmentation has a symbolic moment: the trial of
Socrates. Armed with studies of Hannah Arendt, we see elements of this
fragmentation of the "separation between the philosopher and the life in the city
[which] means the separation between thought and action" (WAGNER 2002), which
resulted in the separation "between thought and [...] between a philosopher and
political reality" (WAGNER 2002). The result of this split was the largest facility in the
Western tradition, the dichotomy between the vita activa and vita contemplativa
who officiated at the same split between thought and action. We believe this is the
intellectual heart of the distinction between the term secondary forest and capoeira,
the dual languages produced by the subsequent division of the absolute and relative
space and nature and society, an issue noted by SMITH (1988).
*
Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-graduação do Departamento de Geografia
(FFLCH-USP). Email: [email protected].
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p.
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Keywords: Toponymy; Geolinguistics; lexicology; space; the Western tradition;
wilderness.
Resumo: O termo capoeira é um vernáculo, uma sentença tupi no português do
Brasil. De kaá-uêra procede a noção de “mato que já não é o mesmo que foi”. Essa
sentença demonstra a elegante interpretação da tradição indígena acerca dos dados
da paisagem. Atualmente, o termo capoeira é muito utilizado no discurso científico
ao lado de seu homônimo da tradição ocidental: mata secundária. Pretendeu-se aqui
desenvolver a seguinte indagação: porque há uma estranha diferença intelectual
entre o sentido de capoeira e mata secundária? Essa estranheza reside no fato do
termo capoeira possuir um campo léxico-semântico que abarca, não somente a
formação vegetacional correspondente, como também ampla gama homóloga e
complementar de fenômenos do ambiente, da fauna e da flora. Algo similar não
ocorreu com o termo mata secundária. Para tentar entender o porquê dessa
constatação, supôs-se que o primeiro termo é resultado de um pensamento
totalizante, de uma tradição contínua repassada desde o passado ancestral, ao passo
que o segundo termo é herdeiro de uma recente ruptura: a da fragmentação do
pensamento helênico. No Ocidente, essa fragmentação possui um momento
simbólico: o julgamento de Sócrates. Munidos dos estudos de Hannah Arendt, foram
vistos elementos dessa fragmentação na “separação entre o filósofo e a vida na polis
[que] significou a separação entre o pensamento e a ação” (WAGNER 2002), o que
teve como consequência a “separação entre pensamento e política [...] entre
filósofo e realidade” (WAGNER 2002). O resultado maior dessa cisão foi a instalação,
na tradição ocidental, da dicotomia entre a vita activa e a vita contemplativa que
oficializou a própria cisão entre pensamento e ação. Acreditou-se ser esse o cerne da
diferenciação intelectual entre o termo capoeira e mata secundária, dicotomia
linguística produzida pela consequente cisão do espaço em absoluto e relativo e em
natureza e sociedade, questão observada por SMITH (1988).
Palavras-chave: Toponímia; geolinguística; lexicologia; espaço; tradição ocidental;
wildernes.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
1. Introdução
Segundo WITTGENSTEIN (1996) é a vaguidade de um termo e seu uso
ostensivo a verdadeira força de sua consolidação enquanto conceito portador
de significado. Desde o primeiro parágrafo (§) de sua obra “Investigações
Filosóficas” é demonstrado o valor dos vocábulos. Wittgenstein foi um
pensador simpático à noção de que “as palavras da linguagem denominam
objetos” como se fossem simples nomeação e comunicação: uma palavra, um
sentido, mas ainda assim, incapaz de trazer um sentido mais geral se não
compartilhado a outras palavras em conjunto. Para ele, o conjunto está
objetivado a formar uma sentença, “frases [...] tais ligações de tais
denominações [...] Esta significação é agregada à palavra. É o objeto que a
palavra substitui” (WITTGENSTEIN 1996).
Poderíamos simplesmente afirmar ser o presente artigo uma análise de
como a palavra capoeira faz derivar denominações múltiplas a objetos
espaciais. Essa facilidade foi negada porque, o estudo revelou que o termo
capoeira é mais que um modelo de comunicação. Capoeira trata-se de uma
sentença vernaculizada para o português do Brasil. Essa descoberta levou o
autor deste artigo a investigar o mundo dos jogos de linguagem e seu papel na
interpretação dos objetos geográficos, assim como à inevitável comparação
performática desse termo com seu homônimo ocidental: mata secundária.
O primeiro tópico chamado Kaá-puêra: etimologia, vernaculização e
socioespacialidade no brasílico, apresenta ao leitor o termo capoeira em sua
raiz original e na vernaculização no português do Brasil. O segundo tópico
chamado As acepções da kaá-puêra nos dicionários e nos trabalhos científicos
apresenta alguns exemplos de como o termo capoeira está presente no
discurso científico e geográfico moderno. O terceiro tópico chamado O
vocábulo capoeira como um catalisador no espaço geográfico pretende
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
apresentar o termo como um fenômeno geolinguístico dinâmico no espaço
geográfico. O seu dinamismo ocorre a partir de sua flexão sobre outros
objetos espaciais referentes aos aspectos da fauna, flora, geografia humana e
territorialização, fenômenos derivados do seu significante.
Os três tópicos finais procuram esboçar uma interface ainda
introdutória entre a linguagem e a geografia. O quarto tópico chamado Entre
a linguagem e a geografia: Wittgenstein e Santo Agostinho procura apresentar
a linguagem enquanto técnica produtora do conhecimento. Neste tópico
objetivou-se entender a produção espacial do termo capoeira. O quinto tópico
chamado Fora do intramuros da pólis pré-filosófica: Hannah Arendt e Neil
Smith é uma tentativa de se encontrar as raízes da cisão entre pensamento e
ação estudada por Hannah Arendt e da cisão do espaço em natureza, espaço e
sociedade analisada por Neil Smith. Este tópico procurou esclarecer a raiz
filosófica das limitações do termo Mata Secundária, vinculadas à tradição
filosófica ocidental, observadas na contraposição ao termo capoeira. O sexto
tópico chamado Fora da pólis pré-filosófica: Hannah Arendt, Neil Smith,
Milton Santos e wilderness é uma tentativa de reencontrar, no discurso
científico
geográfico
moderno,
um
caminho
alternativo
à
geografia
aristotélica ao apresentar uma visão crítica à atual limitação científica em
torno da ideia de wilderness (natureza selvagem e intocada) e sociedade e da
relação sociedade/natureza.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
2. Kaá-puêra: etimologia, vernaculização e
socioespacialidade no brasílico
As toponímias1, quais forem, têm valor inestimável para o patrimônio
civilizacional da humanidade. As toponímias são evidências imateriais de
campos léxico-semânticos, parte do “tesouro vocabular” de um povo. Como
nos falam os especialistas, o “léxico é a testemunha de uma cultura, porque é
exatamente no domínio do léxico que as influências de substrato (indígena) e
superestrato (africano) mais se manifestam” (AGUILERA 2006).
Na América do Sul, a “família linguística Tupi-Guarani” abrange um
enorme território que se estende do Pampa e Chaco Paraguaio até as regiões
da Caatinga e Amazônia. É composta por volta de “50 línguas atuais e
distintas”, das quais, as “mais conhecidas são o Tupi antigo (Tupinambá) e o
Guarani”. Atualmente, o “Nheengatu (Tupi moderno), falado na Amazônia” é
a “continuação” do Tupi antigo. O Guarani se concentra principalmente no
Paraguai, “onde o dialeto ou língua Guarani mais comum é conhecido como
Avañeém ou Guarani moderno”. O Guarani também se propaga pela
“Argentina, Bolívia e Brasil”, nos quais “existem vários dialetos” (DOOLEY
1998).
1
“Em sua origem, a Toponímia não constitui um corpo disciplinar autônomo, à semelhança
do que ocorre hoje, vinculando-se à antiga cadeira de Etnografia e Língua Tupi, no âmbito
dos cursos de História e Geografia. Mas o ponto vital e ordenador de todo o questionamento
que se colocava era a preocupação latente com a dialetologia indígena brasileira,
especialmente a tupi. A Toponímia nascente conformava, porém, um duplo objetivo: não só o
ensino de suas básicas e de seus fundamentos gerais, segundo os modelos assentados pelo
ramo europeu da onomástica, mas, principalmente, a função instrumental de um marcador
vocabular brasílico (estudo etimológico dos topônimos tupis), cuja freqüência, no sistema
lexical português, sempre atingiu índices expressivos nos mais variados itens semânticos (a
exemplo de zoonímia, fitonímia, hidronímia geomorfonímia, ergonímia)” (DICK 1994).
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
O termo capoeira e seu campo léxico-semântico são encontrados nessas
regiões. Foram abordadas as características vernáculas (brasileirismos) e os
sentidos etimológicos (sentidos dos termos no tupi original) do fitônimo
capoeira. O objetivo principal foi descobrir se os sentidos originais dos
conhecimentos explicitados pelo termo capoeira possuem aderência direta
com o fenômeno a que destina representar e se, mesmo com a
vernaculização, tal sentido mantém-se inato na compreensão dos respectivos
fenômenos espaciais a que se destina representar. Para tanto, técnicas de
geolinguística e de lexicologia foram utilizadas para se decifrar o
conhecimento encerrado na vernaculização capoeira, presente em diferentes
grafias. O objetivo de tal método foi delimitar a “distribuição diatópica de
itens lexicais” 2 de base tupi-guarani encontrados, no caso, do campo léxico
semântico
do
termo
capoeira.
O
método
consistirá
em
identificar
características do campo léxico-semântico derivado do topônimo, suas
expressões no pensamento científico e uma consequente comparação com seu
homônimo ocidental: mata secundária.
O estudo da toponímia, desde o precursor trabalho de SAPIR (1969), tem
se especializado na arte de decodificar tais frases criptografadas. É a sua
estrutura o que se apercebe no âmago de uma vernaculização: seu substrato
sempre se reporta à base linguística que a origina. É seu substrato, ao passo
que os insertos posteriores (africanismos) são considerados superestratos.
Aqui, o que interessa é o substrato, mais profundo e de longa duração.
Destacou-se para tanto, o trabalho de AYROSA (1967) no que diz respeito ao
seu estudo sobre o verbete fitonímico capoeira estudado por ele em seu
trabalho Termos tupis no português do Brasil. Essa importante figura atuou no
campo
de
estudo
da
linguística
tupi-guarani,
tendo
trabalhado
especificamente com alguns povos indígenas tradicionais do litoral paulista.
2
Para exemplos de utilização de princípios de geolinguística e de lexicología ver AGUILERA
2006.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Em destaque, há o trabalho com as populações guaianá e a tentativa de
encontrar um vínculo etnológico destes com demais povos litorâneos. No
trabalho do autor, percebeu-se que o termo capoeira, oriundo do tupi,
apresenta inúmeras diferentes formas de escrita que, em sua estrutura
original e geral, representa uma frase composta pela seguinte estrutura: káa
(mato) + uêra (indicativo de passado) = capoeira.
No referido estudo, Ayrosa analisa a construção de algumas palavras de
origem tupi. No caso do termo capoeira, elucida as discordâncias entre
estudiosos acerca da real significação desse termo no português do Brasil. Ali,
deixa claro a diferenciação entre as origens do termo capoeira no português
de Portugal e do termo capoeira como arte marcial brasileira (AYROSA 1967).
No decorrer de sua argumentação, analisa acepções incorretas de
diferentes autores para o referido vocábulo. Sobre os erros de interpretação,
constam no texto de Ayrosa diversas traduções e, a maioria, como esperado,
passou ao largo de uma interpretação correta para a construção simbólica
dessa
sentença
(AYROSA
1967).
Segundo
o
autor,
as
incoerências
interpretativas decorrem de uma referência direta e irrestrita de algo que já
se foi, o mato velho em si.
No Quadro 1 estão reproduzidas as traduções equivocadas compiladas
pelo
autor.
Estas
não
atentam
para
o
caráter
totalizante
dessa
vernaculização. Por exemplo, as assertivas, “mato redondo que existiu” e
“mato raso, por já ter sido cortado”, retratam uma interpretação por etapas
do objeto. Essa perspectiva, na qual as coisas são vistas sempre imóveis e
estáticas, está intrinsecamente ligada à tradição aristotélica.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Quadro 1. Erros de Tradução para a Vernacularização [káa-uêra = capoeira ]
1.João Ribeiro
Suposta frase
gênese do termo
ca-poan-êra
2.José de Alencar
caá-apuan-êra
capoeira
3.Batista Caetano
caá-puan
capoeira
4.Batista Caetano
5.Figueired
6.Teschauer
7.Montoya
8.Beaurepaire Rohan
ca-poan-êra
co-poéra
co-poéra
co-cuêra
cocuéra
capoeira
capueira, capoeira
capueira, capoeira
capoeira,copoeira
capoeira
Estudiosos
Vernacularização
Interpretação incorreta
capoeira
mato redondo que existiu;
mato raso, por já ter sido
cortado;
mato redondo, mato erguido,
mato alto;
mato redondo que existiu;
mata destinada a roçar-se;
mata destinada a roçar-se;
roça velha;
roça extinta;
Fonte: AYROSA, 1967
Adaptação de Carlos A. Rizzi
Essas informações nos são importantes, pois fazem atentar para o
sentido profundo e dinâmico a que o termo capoeira nos remete. Como será
mostrado, essa visão por etapas da realidade olvida com frequência o
significado da linguagem constituída sob um prisma totalizante, algo que diz
respeito unicamente à fragmentação do pensamento ocidental. MITHEN (2002)
apresenta aspectos dessa elegante e refinada visão de mundo enquanto KOYRÉ
(2006) demonstra o conteúdo da questão epistemológica ocidental.
Seguindo esse raciocínio, uma tradução correta para a frase
vernaculizada káa-uera tem de considerar o caráter dinâmico do pensamento
indígena e não deve se orientar pela concepção aristotélica da realidade.
Sendo assim, e é AYROSA (1967) quem nos explica, no lugar de mato velho em
si, káa-uera passa a representar mato que já não é o mesmo que foi. Ele não
é mais o mesmo, mas ainda é mato, conectado de algum modo ao mato
virgem que existiu: quando é visto, sua presença remete-se, sobretudo, a seu
antepassado, a algo que o precedeu e que lhe dá sentido e significado no
presente e no concreto.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
O indígena via a vegetação em processo com tempo e espaço de forma
indissociável. Sua perspectiva é engajada ao passo que o modelo aristotélico é
contemplativo. No real designado da sentença tupi, a dinâmica espacial em
questão é a revegetação. O processo que consiste na substituição de uma
mata primeira, evidenciada por uma mata secundária é o foco da construção
intelectual da frase em língua original. Esta demonstração indica um mato
velho que existiu, não aparte do novo, nem ambíguo a ele, e sim, dotado de
vínculo, de espacialidade, de identidade: “no local das velhas matas extintas
aparece sempre mato novo, de pequeno porte a altura, faz-se referência a
ele lembrando a antiga floresta que aí existiu”. Assim, capoeira tem de ser
entendida “em sentido figurado ou translato” (AYROSA 1967). Esse autor se
utiliza dos estudos de José Veríssimo para apresentar a correta tradução para
capoeira, e a respectiva frase que lhe originou:
capoeira – mato novo que cresceu em lugar onde existiu uma mata
virgem; mato ralo. Nos dicionários citados (Grande Dic. de Fr.
Domingos Vieira e Dic. Contemporâneo de Caldas Aulete) vem com
significação errada.
De kaá, mato, e forma de pretérito poêra = coéra = êra: mato que já
não é o mesmo que foi (AYROSA 1967).
Vê-se então que capoeira é uma frase composta pela palavra kaá que
designa mato e uêra, indicativo de passado: mato que foi. O interessante é
que o homem tupi observava não a mata como um estágio, algo típico das
sociedades marcadas pela fragmentação das ciências, mas sim como algo
uníssono. Essa qualidade de ver as coisas em movimento e de forma nunca
estática também é produto de certas tradições antigas. Tais se diferenciavam
em forma e em conteúdo da vertente filosófica aristotélica, progenitora da
moderna ciência. Segue uma citação esclarecedora:
Un rasgo importante de esa ciencia antiga [cosmologias não-ocidentais]
fue el hecho de que procuraba estudiar las cosas en movimiento, en
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
tanto que nuestra ciencia actual ha procurado siempre estudiar las
cosas inmobilizándolas, como hizo Aristóteles, método que solo la
física más reciente ha superado (IBARRA GRASSO 1982: p.320).
Pretendeu-se aqui desenvolver a seguinte indagação: porque há uma
estranha diferença intelectual entre o sentido de capoeira e mata secundária?
Essa estranheza reside no fato, explicitado a seguir, do termo capoeira possuir
um
campo
léxico-semântico
que
abarca,
não
somente
a
formação
vegetacional correspondente, como também uma ampla gama homóloga e
complementar de outros fenômenos espaciais do ambiente, da fauna e da
flora. Com o termo mata secundária não aconteceu algo similar. Para tentar
entender o porquê dessa constatação, supôs-se que o primeiro termo é
herdeiro de um pensamento totalizante ligado direto a uma tradição
repassada ininterruptamente desde o passado ancestral, ao passo que o
segundo termo é herdeiro de uma recente ruptura: a da fragmentação do
pensamento helênico. No Ocidente, essa fragmentação possui um momento
simbólico: o julgamento de Sócrates. Munidos dos estudos de Hannah Arendt,
foram vistos elementos dessa fragmentação e como ela foca “A separação
entre o filósofo e a vida na polis [que] significou a separação entre o
pensamento e a ação” (WAGNER 2002), a qual também teve como
consequência, a “separação entre pensamento e política [...] entre filósofo e
realidade” (WAGNER 2002). O resultado maior dessa cisão foi a instalação, na
tradição ocidental, da dicotomia entre a vita activa e a vita contemplativa
que oficializou a própria cisão entre pensamento e ação 3. Acreditou-se ser
esse o cerne da diferenciação intelectual entre o termo capoeira e mata
3
“Em ‘Trabalho, Obra e Ação’, ao fazer a pergunta: ‘em que consiste a vita activa?’, Arendt
reconhece que, levando essa questão, está admitindo a ‘validade de uma velha distinção
entre uma vita contemplativa e uma vita activa, que nós encontramos na tradição do
pensamento filosófico e religioso ... Apesar de não existirem referências a um modo de vida
contemplativo na polis pré-filosófica, essa pensadora não rejeita, em sua análise, a
expressão vita contemplativa por ter-se constituído esta, posteriormente, o modo de vida
efetivo dos filósofos. O que Arendt recusa-se a aceitar é a superioridade que estes
atribuíram à vita contemplativa, uma superioridade que, construída a partir de um
pensamento desvinculado da realidade, acabou por ignorando as diferentes formas de
expressão da vita activa” (WAGNER 2002).
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
secundária, dicotomia linguística produzida pela consequente fragmentação
do espaço em absoluto e relativo e em natureza e sociedade. Essa segunda
interpretação foi orientada pelos estudos de SMITH (1988).
Com isso, o termo capoeira
demonstrará o refino intelectual da
lembrança do tupi: de um mato velho que existiu, não aparte do novo, nem
ambíguo, estanque, separado, alienado ou hierárquico a ele. Nessa visão de
mundo, a coisa (a ser objeto da nomeação) é dotada de vínculo direto com o
passado. É o próprio passado materializado no presente. Algo munido de
espacialidade. Nessa visão de mundo o vivido, o mítico e o material estão em
uníssono no mundo.
Nesse sentido, o fitônimo capoeira adquire a qualidade de forma
espacial. Por exemplo, no Estado do Paraná, em especial, nas regiões de
passagem dos antigos tropeiros, comumente surgiu o termo capoeira enquanto
designativo de “formações campestres que se constituem pelas tipologias de
vegetação que correspondem aos campos e campinas do planalto” (ZAMARIANO
2006). Além do campo léxico-semântico direto, capoeira adquire a
característica de “formações de campo” e mesmo de localidades. A seguir,
uma citação que bem demonstra a integração do fitônimo capoeira à
geografia política:
Desse modo, valorizaram-se as formações de campos, definidos como
um terreno plano, extenso, com poucos acidentes, destituído de
árvores e destinado à agricultura ou às pastagens e campina(s) que se
refere a um campo extenso desprovido de árvores e normalmente
revestido de gramíneas, subarbustos e ervas. Encontram-se nos
designativos de lugares, além da referência a estes tipos de vegetação,
os matos, as capoeiras, os capins, os sapés e uma menção a caatinga
que se caracteriza como vegetação típica e/ou região do Nordeste
brasileiro.
Particularmente, neste aspecto, registra-se: Campo das Cinzas (serra –
Jaguariaíva), Campo Real (rio – Guarapuava), Campo Novo (rio –
Guarapuava, Matinhos, ribeirão – Rio Negro, Ipiranga, arroio – Tibagi),
Campinas Belas (arroio – Ivaí, Reserva), [...], Capoeira (arroio da –
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Araucária e Campo do Tenente), Capinzal (rio – Araucária, ilha do –
Guaratuba) [...] (ZAMARIANO 2006).
3. As acepções da kaá–puêra nos dicionários e
nos trabalhos científicos
A própria construção da frase kaá-puêra denuncia uma específica
linguagem utilizada para a produção de um conhecimento geográfico. O
simbolismo humano, tão buscado no passado geológico do Homem (WONG,
2005), encontrou na abstração dos fatos espaciais e de sua sucessão na
dinâmica
espaço/temporal,
um
conhecimento
tão
caro
para
nosso
pensamento geográfico moderno que, de tão eficiente, veio a ser figurar em
manuais e dicionários ocidentais, não por simples jogo de nomeação
decorativa ou mero modelo de comunicação e sim pela capacidade cognitiva
em bem representar um significante.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Figura 1: Uso do termo capoeira no discurso científico
Biótopos de Formações Vegetacionais
Matas, Capoeira,
Reflorestamentos e
Conjuntos
Arbustivos
Subdivisões devem ser feitas com referência ao tipo de formação florestal. Códigos
complementares devem ser inseridos para a designação de parâmetros como:
aspectos fitofisionômicos de destaque, espécias de árvores e arbustos dominantes,
presença de sub-bosque, grau de umidade do solo, tipo de solo ou substrato, formas
de uso e manejo, etc. como, por exemplo:
º
florestas semideciduais estacionais em estágio de regeneração avançado
florestas de Eucaliptus spp. Maduras com sub-bosque
º
º
áreas de reflorestamento mistas, com espécies exóticas e nativas
Fonte: Manual para Mapeamentos de Biótopos no Brasil, 1997, p.14.
Fonte: LIMA, Adriano José Nogueira, et al., 2007.
Fonte: LIMA, et al., 2007. p.51.
Oficialmente
assim
se
define
o
termo
capoeira:
“capoeiras:
denominação popular usada para designar florestas secundárias” (GLOSSÁRIO
2004). No âmbito do discurso geográfico, o uso do termo capoeira é corrente
(ver Figura 1).
A diversidade de usos na linguagem científica é clara. Na Figura 1,
nota-se como o termo capoeira está presente desde a etapa de conceituação
de biótopos (1) até o levantamento técnico e aritmético de biomassa (2).
Possui mesmo espécies que lhe são típicas, em conjunto, caracterizadoras de
uma formação vegetacional (3).
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Note-se que o fenômeno capoeira não se trata de um fenômeno
estático. Sua nomeação diz respeito, na maior parte das vezes, a um processo
espacial em ação, o uso de sua forma e conteúdo. Sua forma é um produto de
diferentes condicionantes e está vinculada a um momento da ação humana,
permeada de teleologia: uma visão de mundo, em um dado ponto do espaço e
carregado de intencionalidade (MORAES 1988).
O exemplo a seguir, diz respeito a um estudo objetivado em gerar uma
“análise temporal das transformações do uso da terra do Parque Municipal da
Lagoa do Peri” (SALGADO; LOCH 2002), para a formação de uma base de dados
tematizados. As autoras utilizaram fotografias aéreas de 1938, 1978 e 1998:
Em função da área apresentar remanescentes da vegetação nativa
formada pela vegetação secundária em diversos estágios de
regeneração optou-se por considerar na interpretação as seguintes
classes de vegetação: vegetação secundária em estágio avançado de
regeneração, vegetação secundária em estágios primários de
regeneração [...]
Desta forma, optou-se por classificar a vegetação em secundária, nos
estágios primários de regeneração considerando as áreas ocupadas por
estágio pioneiro, capoeirinha e capoeira, e vegetação secundária em
estágios avançados de regeneração representada pelo estágio de
capoeirão e/ou floresta secundária.
Para a série histórica de 1938 considerou-se as seguintes classes:
vegetação secundária em estágio avançado de regeneração, vegetação
secundária em estágios primários de regeneração, vegetação aluvial
herbácea, agropecuária, dunas/praia, hidrografia e constituição das
vias (SALGADO; LOCH 2002).
Noutros estudos, como é o caso da representação gráfica da Figura 2, a
capoeira aparece como uma variável legítima, detentora de especificidades
que lhes são características. No Atlas Ambiental do Município de São Paulo, o
mapa Cobertura Vegetal apresenta uma legenda onde, acompanhada da
nomenclatura oficial das formações vegetacionais, estão correlacionados
Capoeira para Floresta Ombrófila Densa: [...] Secundária Inicial e Capoeirão
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
para Floresta Ombrófila Densa: [...] Secundária Tardia. A seguir algumas de
suas aparições oficiais:
Figura 2: Uso do termo capoeira no discurso científico
Interessante nesse exemplo é observar que o termo capoeira não
somente é utilizado, como também aparece como desdobramento derivado do
campo léxico-semântico capoeirão, como se analisará a seguir. Ali, também
pode-se reforçar a visão sugerida de uma floresta ombrófila densa, tardia e
secundária.
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
4. O vocábulo capoeira como um catalisador
no espaço geográfico
“todas as coisas presentes no Universo
formam uma unidade”
Santos 2002
A realidade é uma totalidade em movimento e, como tal, os fenômenos
e as dinâmicas estão entrelaçadas.
Do mesmo caldo socioespacial de ações produtoras de significante, que
permeiam a construção do termo capoeira, surge uma miríade de novos
fenômenos. Isto é passível de comprovação a partir do próprio discurso oficial,
no qual há uma segunda variação do termo capoeira: “capoeirões: Capoeiras
em avançado estágio de recomposição, de sucessão vegetal” (GLOSSÁRIO 2004).
Não há qualquer menção ao termo mata secundária nessa segunda
citação. Evidentemente, como apresentado no Quadro 2, o termo capoeira
tem uma versatilidade peculiar. Para os intérpretes tradicionais do estudo
toponímico, o vocábulo capoeira se apresenta como uma “expressão elegante
do indígena – mato que existiu – caá, mato, e coêra, que passou” (AYROSA
1967).
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CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Quadro 2 - Campo léxico-semântico do fitônimo capoeira
Significante
Significado
mato ralo, de pequeno porte, que nasceu em lugar de mato
velho derrubado;
1.capoeira
2.capoeirão
capoeira já incorporada ou que ocupa grande extensão de
terreno;
3.capoeirinha
capoeira muito nova, que começa a se formar;
4.capoeiro
5.capoeira
matuto, indivíduo que vive na capoeira;
lenha que se retira da capoeira, lenha miúda;
6.capoeira
certa ave também chamada unú no Rio de Janeiro. Nome
científico: Odondopophorus capueira;
7.capoeirenta
8.capoeireiro
9.capoeirada
10.capoeirar
11.encapoeirado
12.encapoeirado
zona coberta apenas pelas capoeiras;
dedignativo de certo veado;
conjunto de capoeiras;
andar pelas capoeiras, bater capoeiras;
metido na capoeira, escondido na região das capoeiras;
terreno já coberto de capoeiras;
Fonte: Ayrosa, 1967
Adaptação de Carlos A. Rizzi
No Quadro 2, observou-se que as variações do termo capoeira são designações
de fenômenos produzidos no ambiente físico-territorial da capoeira. SAPIR (1969)
atribuiu a formação dos topônimos – e no neste caso, pode-se atribuir o mesmo sentido
– ao que denominou por “ambiente” como forte agente construtor dos nomes de
fenômenos geográficos 4.
4
“De maneira geral, é melhor empregar o termo ‘ambiente’ apenas quando se faz referência
a influências, principalmente de natureza física, que escapam à vontade do homem. Não
obstante, tratando-se da língua, que se pode considerar um complexo de símbolos refletindo
todo o quadro físico e social em que se acha situado o grupo humano, convém compreender
no termo ‘ambiente’ tantos os fatores físicos como os sociais. Por fatores físicos se entende
aspectos geográficos, como a topografia da região (costa, vale, planície, chapada ou
montanha), clima e regime de chuvas, bem como o que se pode chamar a base econômica da
vida humana, expressão em que se incluem a fauna, a flora e os recursos minerais do solo.
Por fatores sociais se entendem as várias forças da sociedade que modelam a vida e o
pensamento de cada indivíduo. Entre as mais importantes dessas forças sociais estão a
religião, os padrões éticos, a forma de organização política e a arte” (SAPIR 1969).
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Logo após a derrubada e mesmo a queimada da mata, a vegetação que
ali surge é chamada de capoeira, basicamente composta por plantas
oleaginosas e leguminosas. Essas espécies vão atrair animais e mesmo o
homem. Com baixa densidade florística é possibilitada a entrada dessas
espécies, assim como o desenvolvimento mais rápido das espécies vegetais de
maior porte. Este termo acaba por conformar, portanto, um campo léxicosemântico. Trata-se de uma série lexical, ligada ao elemento fito (AYROSA
1967), que foi reproduzido no Quadro 2.
Isso é deveras importante, porque há uma diferença na aplicabilidade
do termo capoeira e do uso do termo mata secundária: capoeira alcança não
apenas o estrito entendimento do significante “mata que foi”; conforma,
pois, um campo léxico-semântico. Já o termo mata secundária dá conta da
objetividade da observação do objeto visto, seja como desmatamento, seja
como revegetação; porém, não conforma um campo léxico-semântico como o
primeiro.
Prova disso, é sua presença em várias outras acepções: a capoeira está
presente na nomeação de uma espécie de ave, o Ondontophorus capueira (6);
no nome de um mamífero, o capoeireiro (8); na designação dos fugitivos do
período escravocrata, os encapoeirados ou os metidos na capoeira, escondidos
na região das capoeiras (11); no capoeiro, figura humana produto da presença
europeia no atlântico sul português (4).
Como foi visto na descrição da formação da vegetação secundária e
mesmo na concepção de campos paranaenses, o campo léxico-semântico não
dá conta somente de elementos da fauna, da flora e de dados culturais. Além
desse conjunto que por si só compõe consideravelmente o espaço geográfico
respectivo à capoeira, também o campo revela a capacidade persuasiva do
termo em sistema de mensuração, tendo relação direta com a rotina de
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
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zoneamento econômico-ecológico e com o uso do solo: rotinas de cartografia
caras ao planejamento e ao geoprocessamento.
No Quadro 2 estão reproduzidos alguns exemplos: encapoeirado
“terreno já coberto de capoeiras” (12); capoeirenta, isto é, uma “zona
coberta apenas pelas capoeiras” (7); capoeirinha, ou “capoeira muito nova,
que começa a se formar” (3) e, capoeirão, ou “capoeira já incorporada ou
que ocupa uma grande extensão de terreno” (2).
Foram observadas as interpretações dadas ao termo capoeira descritas
por Ayrosa e que não sofreram alteração, de fato, na estrutura da própria
palavra: capoeira, lenha que se retira da capoeira, lenha moída e; capoeira,
certa ave também chamada uru; nome científico: Odondopophorus capueira
(Figura 3).
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CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
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5. Entre a linguagem e a geografia:
Wittgenstein e Santo Agostinho
“O fato simples de reconhecer e nomear um objeto supõe um
aprendizado, explícito ou implícito. A linguagem tem um papel
fundamental na vida do homem por ser a forma pela qual se identifica
e reconhece a objetividade em seu derredor, através dos nomes já
dados. Para alguns atores, o ato fundador é dar um nome e, por isso, é
a partir do nome que produzimos o pensamento e não o contrário”
(SANTOS 2002).
Wittgenstein já confirmara, em Santo Agostinho, ser sua interpretação
das palavras apenas um modelo de comunicação. Para o religioso, a própria
palavra não é apenas um substantivo comum, e sim, uma frase inteira presa
em uma contração linguística. Uma interpretação primitiva da linguagem,
como em um jogo de decoração e gravação, no qual as palavras podem ser
transformadas em substantivos inócuos e estanques, se isolados. Wittgenstein
diria logo a seguir ser a linguagem, um sistema similar a um “ensino ostensivo
das palavras” (1996), no qual cada palavra não é apenas algo incompleto, e
sim, um mecanismo potencialmente infindável de significado.
No cerne desse embate entre Wittgenstein e Santo Agostinho, o estudo
do termo capoeira, bem como do significante que trás em ser entorno,
conduziu-nos, de certa forma, à afirmativa do filósofo austríaco acerca da
arqueologia da linguagem:
Dissipa-se a névoa [do conceito geral da significação das palavras]
quando estudamos os fenômenos da linguagem em espécies primitivas
do seu emprego, nos quais pode-se abranger claramente a finalidade e
o funcionamento das palavras (WITTGENSTEIN 1996).
Se em Wittgenstein, a linguagem é a produtora do conhecimento, em
Milton Santos, no entanto, a técnica é a produtora do espaço. O filósofo
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Rizzi, C. A. – Investigações sobre a construção do fitônimo
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Wittgenstein, ao longo de sua obra, demonstra acreditar não haver essência
nas coisas. Para ele, o que há são semelhanças, comuns a todos, em uma
espécie de familiaridade. O que nos permite associar diretamente ao
pensamento de SANTOS (2002) quando este afirma ser o espaço um todo
indissociável, e que deve ser interpretado a partir de suas partes, mas, sem
perder o foco na totalidade. Para o geógrafo, “os objetos técnicos atuais se
encontram praticamente em todas as latitudes e longitudes. Daí vem o ar de
família de tantos lugares, sua aparência repetitiva.
A obra do professor Milton Santos é cara para o presente estudo. Várias
são as noções adotadas. Serve mais um adendo de sua obra: a noção de uma
diferenciação entre os objetos e as coisas. Para Milton Santos, a palavra coisa,
entendida em um sentido estritamente filosófico, designa por convenção,
elementos naturais intocados. A apropriação dessas coisas pela sociedade – a
partir de sua nomeação – transmuta-as para a condição de objetos.
No princípio, tudo eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto,
já que as próprias coisas, dádivas da natureza, quando utilizadas pelos
homens a partir de um conjunto de intenções sociais, passam,
também, a ser objetos (SANTOS 2002).
Milton Santos, assim como afirmara Wittgenstein em suas Investigações
Filosóficas, considera a linguagem a técnica fundadora do conhecimento. E
assim como WITTGENSTEIN (1996) reconhecera nas entrelinhas das palavras de
Santo Agostinho, Milton Santos constata ser a partir da nomeação onde se
situa a produção dos objetos.
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6. Fora do intramuros da pólis pré-filosófica:
Hannah Arendt, Neil Smit, Milton Santos e
wilderness
Três ressalvas são listadas aqui. Em primeiro lugar, como nos alertam
os especialistas, dentro do simbolismo da linguagem, os signos toponímicos
podem nos pregar peças semânticas, visto que “há os que são facilmente
compreensíveis, porque o semantismo que sugerem ainda não se cristalizou;
outros apresentam dificuldade dupla, seja quanto à origem genética da
palavra ou quanto ao significado intrínseco” (DICK 1999).
A segunda ressalva diz respeito ao vínculo do topônimo com o
fenômeno que lhe deu origem. DICK (1999) nos orienta que “nem sempre os
nomes estudados [estão] vinculados diretamente ao denominador e às
situações originais que condicionaram a denominação primitiva”. Isto porque
pode haver uma defasagem espaço-temporal entre os “atores do processo de
nomeação”. Também, a afirmativa da significação do nome e as condições do
lugar podem apenas ser explicadas pela virtualidade “das lexias disponíveis no
sistema” (DICK 1999). Como veremos adiante, o termo toponímico capoeira
pode ser um desses exemplos.
A terceira ressalva é o relativo desprendimento do denominador com o
compromisso de “representar fidedignamente a paisagem”. Trata-se de um
dado da intersubjetividade. Nesta perspectiva, o denominador irá buscar em
seu aporte psíquico e no seu conhecimento predefinido “injunções de diversas
ordens, afastando-se de qualquer tendência objetiva, presa às condições do
meio” (DICK 1999).
O topônimo, enquanto um nome próprio de um elemento geográfico e o
próprio elemento em si conforma uma “relação binômica” (DICK 1992).
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CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
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Formam-se então duas partições descritas por Dick como constituidoras da
estrutura do topônimo: de um lado, uma entidade gerada localmente pela
sociedade que vivencia um espaço em um determinado tempo, e de outro
lado, uma denominação convencionada do que se entende por aquela mesma
entidade 5.
No que tange ao chamado “pensamento ocidental”, foi utilizado o
pensamento de Hannah ARENDT, que busca discernimento na polis préfilosófica do que poderia ser a condição humana antes da cisão entre
pensamento e ação. Ela encontra no intra-muros da pólis o “espaço físicogeográfico capaz de emprestar permanência e estabilidade à ação e à
palavra” (WAGNER 2002). Mas aqui não se trata de simples materialidade. Não
é apenas o muro, pois o mesmo é apenas uma representação. O intra-muros a
que se refere Arendt, é uma construção humana: “onde quer que vás, serás
uma polis” esta assertiva quer dizer que é a “convivência entre os homens”, o
pressuposto funda para a construção de um lugar capaz de sediar ação e
discurso “capaz de situar-se adequadamente em qualquer tempo e lugar”
(WAGNER 2002).
Enquanto Hannah Arendt foca na cisão entre o pensamento e a ação,
entre o filósofo e a realidade, entre vita activa e vita contemplativa, Neil
SMITH (1988) se preocupa com a cisão entre o espaço, a natureza e a sociedade
advindos do mesmo seio. Hannah Arendt aproxima-se de Neil SMITH quando
este escreve sobre a visão indissociável entre o mítico, o vivido e o material
das sociedades ancestrais e tradicionais e sobre a separação entre o espaço
absoluto e o espaço relativo. Com esta cisão, foi possível cindir,
5
Termo ou elemento genérico, relativo à entidade geográfica que irá receber a
denominação, e o outro, o elemento ou termo específico, ou topônimo propriamente dito,
que particularizará a noção espacial, identificando-a e singularizando-a dentre outras
semelhantes (DICK 1992).
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cognitivamente, o espaço, a natureza e a sociedade em entes supostamente
autônomos (SMITH 1988).
A apreensão abstrata das coisas é, pois, a dita fina flor que define o
que é civilização do “resto”. Esse espelho de narciso é entendido como um
divisor de águas do pensamento (SMITH 1988). Prova disso é sua busca febril
nos outros modos de vida: no passado com as sociedades primitivas (WONG
2005), no presente das sociedades tradicionais, no subterrâneo da mente
humana (DELOACHE 2005) e nas espécies animais (SCHAIK 2006) 6.
O autor desenvolve sua argumentação a partir da construção do
pensamento ocidental. Um momento decisivo de sua hegemonização no
mundo, para o autor, ocorre com a formatação final do pensamento filosófico
nas formulações de Newton. Segundo o autor, a concepção de espaço que
Newton desenvolveu foi tão convincente que tornou o espaço em um “dado
universal da existência” 7. Newton congrega as várias concepções de espaço
até então dispersos “muitas vezes existindo um ao lado do outro, somente
mais ou menos relacionados”. Newton integrou-os em uma mesma base
cognitiva unificada, para incorrer em uma conceituação/unificação do espaço.
[...] com o conceito de espaço absoluto e sua relação ao espaço
relativo, ele [o espaço] se apresentou, como de fato o era [nas
diversas concepções integradas por Newton], uma simples abstração. O
espaço se tornou algo em si mesmo. Mas o que se ganhou em
6
Esse exotismo nos fascina, pois estamos enclausurados na autoritária lógica euclidiana e
aristotélica. Tudo que funciona fora desse sistema é diametralmente nebuloso, fantástico e
esotérico para nossas mentes. Neil Smith aventura-se para além do divisionismo realizado
pela filosofia ocidental e procura adentrar o mundo do pensamento totalizante. Para ele, a
divisão, entre tempo e espaço, entre sociedade e natureza, evita a fusão conceitual entre
espaço e sociedade que possibilitaria “se conceber uma extensão espacial para além da
extensão imediatista” (SMITH 1988).
7
Hoje, aproximadamente três séculos depois, não é o conceito de seus adversários mas o
próprio conceito absoluto de Newton que indiretamente informa o senso comum com relação
ao espaço. Hoje, no avançado mundo capitalista, todos nós concebemos o espaço como vácuo,
como um receptáculo universal no qual os objetos existem e os eventos ocorrem, como um
quadro de referência, um sistema coordenado (juntamente com o tempo) em que toda
realidade existe (SMITH 1988).
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generalidade com o conceito de espaço absoluto foi conseguido a alto
custo (SMITH 1988).
O custo dessa unificação foi a cisão do espaço em absoluto e relativo e
a autonomização de suas partes em natureza e sociedade. A tradição
toponímica ocidental recebeu tal influência, algo patente no termo mata
secundária. É então construída conceitualmente, uma realidade dos detalhes
dos objetos e dos eventos, um espaço individual, absoluto, passível de ser
mensurado e monitorado por leis mais gerais. Tudo o que não poderia aí ser
encaixado nesse universo de explicações foi excluído. Deixado de lado, esse
caldo de realidade foi posteriormente autonomizado e novamente bipartido
em natureza e sociedade. Respectivamente, o primeiro, entendido como um
espaço físico, somente apreensível pela Matemática, o segundo, algo amorfo,
conjunto de relações sociais em si, destituídas de espaço, mas subentendido
como um espaço relativo, em detrimento do espaço absoluto das constantes
newtonianas 8.
A cisão do conceito de espaço significou igualmente a cisão da
realidade nos conceitos de natureza ou espaço físico e sociedade ou espaço
social. “Como o espaço relativo de Newton é um subconjunto diferenciado do
espaço, o espaço social surgiu como um subconjunto diferenciado do espaço
físico” (SMITH 1988). A geometria newtoniana, assim como a euclidiana,
necessitava de uma “verificabilidade direta” da matéria. Dito de outro modo,
a matéria e o espaço ainda seriam a mesma coisa, de certo modo, portanto,
ainda estavam unificados. A verificação in loco, empírica e observável não
mais era fundamental (SMITH 1988). A morte de Stelluti, a mordaça em Galilei
e o fim da Academia do Lince em 1651 (BIGNAMI 2004) serão prenúncios dos
8
A separação do espaço relativo e do espaço absoluto ofereceu meios pelos quais um espaço
social poderia ser separado do espaço físico, sendo o espaço social definido não em relação a
uma natureza primeira independente e exterior, mas a uma segunda natureza humanamente
produzida (SMITH 1988).
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próximos séculos na arquitetura da matematização do espaço e da
autonomização de suas partes.
A descrição matemática, com Einstein, pôde, por fim, prever os
movimentos da matéria no espaço, inundando a relação entre natureza e
espaço,
mediando-os e
separando-os
profundamente.
“Sua
separação
significou que a descrição do espaço físico não precisava mais de tal
verificação experimental direta” Agora, a observação poderia ser no quadro
negro, nas simulações computacionais ou nos acelerados de partículas. Esse
espaço agora era plenamente entendido como matemático, plenamente
abstrato, passível de ser destituído de um espaço físico (SMITH 1988). 9
O entendimento da natureza afinal, permaneceu preso ao “Princípio
de Mach”, aceito por Einstein e ainda não superado, onde a estrutura do
espaço está “completamente subordinada à distribuição e ao movimento da
matéria, isto é [...] vitória do espaço relativo sobre o espaço absoluto” (SMITH
1988). O espaço físico posteriormente construído a partir dessa concepção
fundadora necessitou da mediação dos índices e das séries históricas para
existir:
o espaço físico é substituído pelo espaço matemático. Enquanto o
conceito de espaço físico sempre conservou alguma referência à
experiência humana prática, o espaço matemático é uma completa
abstração para além daquele (SMITH 1988).
É o próprio Einstein quem posteriormente defende a separação entre
matéria e espaço: “Embora a matéria possa constituir a base epistemológica
para o campo métrico [...] ela não tem necessariamente prioridade
9
Em Einstein, as geometrias não-euclidianas finalmente conseguiram um referencial
material, pois “até a teoria da relatividade elas permaneceram como construções
matemáticas puramente abstratas desligadas da experiência material”, e finalmente
puderam ser “coladas” à realidade e secundarizar Euclides na explicação do mundo “que era
diretamente verificável na experiência material”. A matéria permaneceu no espaço de fato,
mas o espaço foi transformado em matemática. A Natureza, nessa condição, foi reduzida a
simplesmente relação espaço-tempo, ou matéria em movimento (SMITH 1988).
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ontológica para o sobre ele” (SMITH 1988). Com essa contraposição posta entre
espaço, a cisão está consolidada quando se reconstruir cognitivamente a
realidade, pois “a segunda natureza não conduz a exatamente a um
desenvolvimento conceitual, mas ao desenvolvimento de um espaço
produzido socialmente (e tão real quanto ele) e partir do espaço natural”
(SMITH 1988) 10.
O termo capoeira, como apresentado, possui potência para concatenar
o pensamento de um mundo como ponte para outro, fato exemplificado na
existência de seu campo léxico-semântico. É um termo totalizante por
natureza, vinculado a uma verificação dos processos mais gerais da
constituição da sociedade, do espaço e dos territórios a partir de um enfoque
global dos fenômenos (SANTOS 1978). A afirmação do autor sobre a sociedade
ser uma totalidade em um determinado estágio, sempre dinâmico e mutante
(SANTOS 2002) encontra lugar comum no presente texto quando é verificada a
vernaculização do termo capoeira e o surgimento de seu campo léxicosemântico. O termo capoeira é totalizante, dinâmico e mutante assim como é
o espaço geográfico. Esta afirmação está de acordo com a assertiva de que “o
geógrafo se esforça por realizar o velho sonho do filósofo: apreender o real
em sua totalidade” (SANTOS 2002), e o faz na busca de uma filosofia menor,
pautada em seu campo de saber.
O estudo do termo capoeira buscou evitar a visão de uma “totalidade
tautológica em que as relações representacionais se cancelam mutuamente,
porque sem referência a realidade” (SANTOS 2002). Para tanto, buscou
10
Neil Smith faz afirmações contundentes sobre as consequências de se exaltar a cisão entre
a apreensão empírica e a apreensão abstrata: com a existência da conceituação de uma
segunda natureza, “surge a separação conceitual entre sociedade e espaço”, e se abre espaço
para a possibilidade de uma conceituação a-espacial da sociedade. Esse espaço, visto como
um produto social torna assimétrica uma relação com a natureza que na realidade, é
simétrica. Com isso, é legitimada a afirmação de que a sociedade pode pairar por sobre o
espaço como um ser etéreo. O espaço é reduzido a palco shakespeariano, ou como fundo
negro do teatro moderno, mero contexto paisagístico (SMITH 1988).
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CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
resgatar a vernaculização da frase tupi para o português bem como sua
utilização nos dicionários e trabalhos científicos. Também, buscou-se observar
seu campo léxico-semântico. Ainda aí, e para encerrar esta explanação, cabe
destacar o valor ecológico e ambiental que essa diferenciação levanta a
respeito da visão de mundo ocidental e não-ocidental sobre a natureza. O
desdobramento consequente da cisão entre espaço, sociedade e natureza
apresentado por Neil Smith levou, dentro da tradição ocidental, à produção
de espaço da natureza naquilo que intelectuais têm registrado sob o termo
wilderness.
A ideia de wilderness (natureza selvagem e intocada) levava a crer
“que havia recursos naturais ilimitados nas regiões onde havia ‘natureza
selvagem’, não levava em conta ocupação indígena, pois era considerada
diferente da dos colonos”. A contradição entre o tipo de ocupação do solo dos
indígenas americanos – baseados em migrações e posse comunal – e o tipo
puritano – baseado na “propriedade particular titularizada” – associado ao
desprezo do Estado norte-americano acerca da relação dos direitos ancestrais
desses sobre o solo, contribuiu para o genocídio desses povos e para a
consequente desertificação das regiões ditas selvagens (DIEGUES 2001). Esse
processo, contraditoriamente, leva a uma moderna re-valorização da
natureza, agora, porém, reduzida à condição de paisagem. Não mais “a
Natureza” e sim as paisagens naturais, mais especificamente, as belas e
contemplativas paisagens passam a ser o foco do planejamento do Estado. E a
cisão ontológica entre o homem e a natureza passa a ser novamente
empenhada a ferro e fogo 11.
11
No interior da sociedade urbana os mitos ainda estão presentes, “há persistência do
pensamento mitológico em regiões rurais distantes e atrasadas, mas também há uma
ressurgência de mitos no mundo urbano” (DIEGUES 2001). Em especial, um desses neomitos é a
soma da idéia subconsciente de “paraíso perdido” expressa no “pensamento empíricoracional, como a existência de funções ecológicas e sociais da natureza selvagem (o conceito
de biodiversidade, por exemplo), dos processos ecológicos do ecossistema”. Neste neomito, a
apreciação do belo, que é a contemplação da natureza intocada, paradisíaca, é um conjunto
de sensações tidas como refratárias de uma suposta “beleza primitiva da natureza anterior à
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CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
Enfim, o termo capoeira, detém um diferencial epistemológico. Não ter
passado pela fragmentação do pensamento, já bastante abordado por filósofos
ocidentais, tais como Arendt e Smith aqui mencionados, significa participar de
um outro modus operandi do pensamento, em especial, não-aristotélico. Um
movimento de renovação da epistemologia da tradição científica ocidental
busca aliar os avanços dessa tradição a uma concepção totalizante do espaço.
Há, em especial, o pioneiros e decisivo esforço de Milton Santos, mas também
há investidas contemporâneas como as de LATOUR (1994, 2001, 2004). Em
especial, este último busca construir uma via alternativa dentro da tradição
ocidental para a crise do objeto científico.
A busca pela superação da dicotomia sujeito-objeto no sentido de
encontrar formas híbridas de pensamento, como a recente demanda por uma
geografia híbrida que vê as coisas não como concretas e sim como coisas
sempre concatenadas, nunca puras (WHAMORE 2002), pode vir a contribuir no
estudo de formas cognitivas que só agora a psicologia evolucionista (MITHEN
2002) tem mostrado à comunidade científica tradicional, em que a visão de
mundo não ocidental pode contribuir efetivamente para o alargamento das
fronteiras da ciência do futuro.
7. Considerações finais
Como visto, o termo capoeira não compromete o entendimento da
sucessão vegetacional que o termo mata secundária busca expressar. Antes,
adiciona a linguagem e ao intelecto uma ligação direta com o passado daquele
intervenção humana, da exuberância do mundo natural [...] o harmonioso, a paz interior
proveniente da admiração da paisagem intocada”. É o wilderness, noção, premissa e
pressuposto básico para a criação da proteção integral de lugares verdes contra um homem
destruidor (DIEGUES 2001), pressuposto da própria produção de natureza.
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CAPOEIRA: aspectos do campo léxico-semântico e geolinguística
indígenas
lugar sem que se exclua a possibilidade daquele dado lugar voltar a ter uma
vegetação totalmente regenerada, similar a anterior.
Para expor as razões dessa semântica, a argumentação do autor deste
artigo residiu na constatação da inclusão de elementos provenientes de
geografias não-ocidentais ao corpo do pensamento geográfico. Concluiu-se
que os pilares dessas outras geometrias não são fragmentários como o estudo
pode demonstrar. Não houve a pretensão de se esmiuçar todo o temário da
toponímia, nem apresentar alguma tese acerca dessas argumentações.
Tentou-se tão somente, observar como esses fitônimos estão (e são)
densamente carregados de informações sobre dinâmicas espaciais. Neste
trabalho, atentou-se para a questão dos fitônimos de origem indígena,
exemplificados pelo termo capoeira. Termos como esse carregam em si certa
densidade do pensamento abstrato, de suas visões de mundo que não
passaram pela fragmentação do pensamento, como o caso da tradição
helênica. No caso do termo capoeira sua estrutura original kaa-uêra detém
noções de espaço, de natureza e de sociedade, que parecem não estar
dissociadas. Prova disso é o resultado linguístico e toponímico de seu uso: o
surgimento de um campo léxico-semântico coeso.
Viu-se o fitônimo capoeira como uma forma-conteúdo, uma forma
carregada de significado, resultante de uma acumulação espaço-temporal de
momentos históricos e modos de produção. A ideia da relação entre
significante (matéria, espaço geográfico) e significado (ideia, ação, visão de
mundo) é vista como um todo indissociável do autor (grupos sociais, classes
sociais), da obra (fitônimo propriamente dito) e da época (períodos da história
brasileira e mundial).
No corpo do texto foram apresentados os fitônimos dentro de uma
análise geográfica e linguística. A incidência e a configuração desses fitônimos
no espaço geográfico, assim como suas interpretações em Plínio Ayrosa e no
corpo teórico da toponímia, foram algumas abordagens realizadas. A
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aderência do termo capoeira e as suas consequentes derivações conceituais
foram creditadas à noção de totalidade social e espacial de Milton Santos; já o
termo mata secundária foi observado a partir dos estudos de Hannah Arendt e
Neil Smith a respeito das consequências da fragmentação do pensamento
helênico simbolizado pelo julgamento de Sócrates.
Portanto, acredita-se que o uso frequente do termo sobre seu
nomeado, bem como sua relativa maleabilidade em subsidiar a descrição de
fenômenos dele derivados, concede-lhe poder, consolida-o, torna-o quase
concreto, pois está mais “adaptado” à dinâmica do espaço geográfico. Isso é
consequência do espaço geográfico ser uma totalidade em constante
movimento e em incessante mutação, algo que apenas linguagens igualmente
dinâmicas podem eficientemente captar.
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A terminologia empregada aos
criminosos e/ou infratores pela
polícia civil do Rio Grande do Sul
Maria Izabel Plath da Costa *
Abstract: The Civilian Police, or the Judicial Police, has as its core activity to
criminal prosecution, anchoring the action which, in theory, culminating in the
process that generates the sentence. For the criminal prosecution, the police record
your steps through specialized texts, composed of technical terms specific to this
specialized area, the documents making up the procedures that are instituted to
ascertain the fact that was recorded by people. In the legal sphere, the terms
employed by the Judicial Police are legal-police terms. However, due to the
stigmatization of the target activity, these terms are not included in the legal
dictionaries. The experts who use the the range of terminology legal-police pick
given terminology based on empiricism, and these cognitive choices assure the
applicability of criminal law. The present study describes the work of the Judicial
Police, the procedures that are instituted for the applicability of criminal law and
terminological units (UTs) to employed participants in these procedures. Through the
representation of these UTs on conceptual maps of the type hierarchy, has been
established that the UTs to designate the person who commits the crime or the
offense, have a hierarchical relationship between them.
Keywords: Judicial Police; legal-police terminology; conceptual maps.
Resumo: A Polícia Civil, ou Polícia Judiciária, tem como atividade precípua a
persecução penal, ancorando a ação que, em tese, culmina no processo que gera a
sentença. Para a instrução penal, essa polícia registra as suas diligências através de
textos especializados, compostos por termos técnicos específicos dessa área
especializada, cujos documentos compõem os procedimentos que são instaurados
para apurar o fato que foi registrado pelo cidadão. Em virtude de insurgir da esfera
jurídica, os termos empregados pela Polícia Judiciária são termos jurídico-policiais.
Entretanto, em virtude da estigmatização da atividade-fimesses termos não são
*
Mestra em Estudos Linguisticos do Léxico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Email: [email protected].
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contemplados nos dicionários jurídicos. Os especialistas que utilizam a gama
terminológica jurídico-policial escolhem dada unidade terminológica com base no
empirismo, sendo que essas escolhas cognitivas asseguram a aplicabilidade da lei
penal.O presente estudo descreve o trabalho da Polícia Judiciária, os procedimentos
que são instaurados para a aplicabilidade da lei penal e as unidades terminológicas
(UTs) empregadas aos partícipes nesses procedimentos. através da representação
dessas UTs em mapas conceituais do tipo hierárquico, foi possível constatar que as
UTs que designam a pessoa que comete o crime, ou a infração, mantêm uma relação
hierárquica entre si.
Palavras-chave: Polícia Judiciária; terminologia jurídico-policial; mapas conceituais.
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
1. Introdução
A terminologia que é utilizada pela Polícia Civil, também chamada de
Polícia Judiciária, não foi repertoriada ou descrita até o presente momento.
Em virtude disso, determinadas unidades terminológicas (UTs) são escolhidas
de
modo
empírico
pelos
especialistas,
com
base
no
conhecimento
especializado que é adquirido no exercício da atividade-fim. Essas escolhas
cognitivas são registradas nos documentos que sustentam a aplicabilidade da
lei e a consequente sanção penal. Considerando a finalidade da comunicação
dessa polícia é importante que o especialista entenda o vocabulário de que
faz uso. A partir dessas constatações, este artigo apresenta uma pequena
parte da terminologia que é empregada pela Polícia Judiciária para designar
os partícipes em procedimentos policiais, com enfoque especial aos termos
que denominam a pessoa que comete o crime ou a infração. Aborda
sucintamente o trabalho da Polícia Judiciária, os procedimentos que são
instaurados para a aplicabilidade da lei penal, e descreve, através de mapas
conceituais,
a
terminologia
aplicada
aos partícipesnos procedimentos
policiais. Através dos mapas procurou-se mostrar que há variação/mudança na
designação dada aos partícipes à medida que a investigação avança e que
existe uma hierarquia entre as diferentes denominações.
Para a escolha dos termos jurídico-policiais que são descritos neste
artigo foram adotados dois critérios 1: a ocorrência dos termos em um corpus
formado por 25.000 históricos de BOs, registrados por policiais em todo o
território gaúcho; e a condição de especialista da signatária, que exerce a
1
A orientadora e co-orientadora desta pesquisa, Dra. Cleci Regina Bevilacqua e Dra. Anna
Becker Maciel, especial agradecimento pela atenção dispensada. Ao Chefe da Polícia Civil do
Rio Grande do Sul, Del. Ranolfo Vieira Junior, ao Diretor da Diplanco, Del.Antonio Carlos
Pacheco Padilha, e aos colegas do Serviço de Estatística, Com. Adoniro Ferraz e Com. Eloy
Carvalho, obrigada pelo apoio e pelos valiosos esclarecimentos.
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
função de Inspetora de Polícia, é mestra em Letras e doutoranda no Programa
de Pós-graduação da UFRGS, linha de pesquisa Teorias Linguísticas do Léxico.
2. A Polícia Judiciária
A Polícia Judiciária tem a competência de registrar as ocorrências
criminais e, após o devido registro, investigar para apurar a autoria do fato
que foi registrado. A investigação profícua instrui a ação penal que, por sua
vez, dependendo do caso, desenvolve o processo penal, através do qual o
Poder Judiciário irá imputar a sanção ao criminoso ou infrator. Em virtude da
atividade-fim, inserimos a linguagem empregada pela Polícia Judiciária na
esfera das linguagens jurídicas, pois, conforme aponta Maciel (2001), não se
pode falar em linguagem jurídica, mas no uso da língua na área jurídica, ou na
utilização da língua comum em dada situação especializada com propósitos
determinados, porque a terminologia não é exclusividade da linguagem do
especialista,
considerando
que
os
termos
que
são
empregados
em
determinadas áreas técnicas são usados na língua geral, em um processo
chamado de terminologização. COSTA (2009) entende as linguagens jurídicas
sob a forma icônica, sendo que na base está situada a linguagem empregada
pela Polícia Judiciária e, no topo, a que é utilizada pelo Poder Judiciário.
Todas as atividades da Polícia Judiciária são registradas através da
escrita, pelo uso de uma gama de UTs que carecem de descrição. Assim,
temos uma terminologia rica e inédita que não consta nos dicionários
jurídicos, pois, segundo COSTA (op.cit.), o estudo da UT jurídica contempla
apenas a fase do Poder Judiciário. A fase embrionária que acontece no âmbito
investigativo, e que é realizada através de atividades estigmatizadas pela sua
essência, como por exemplo, o cumprimento de Mandados de Busca e
Apreensão, as campanas, as diligências e as prisões in loco, não tem a
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
relevância que merece no estudo das UTs jurídicas e, por isso, os termos
jurídico-policiais não são descritos nos dicionários jurídicos.
A atividade da Polícia Judiciária é estigmatizada, em relação àquela
realizada pelo Poder Judiciário, porque a área de atuação deste Poder é mais
distante do trabalho in loco que é feito pela Polícia. Em outras palavras,
enquanto o Juiz (e seus agentes) profere a sentença nas dependências da sede
do Poder Judiciário, o Delegado de Polícia (e os policiais), para instruir os
procedimentos policiais, necessita acampanar e diligenciar, derrubar portas,
realizar perseguições e prisões, lavrar flagrantes e pregressar, tendo contato
direto com a casta que margina a lei. Por isso, muitos dos termos policiais que
são desprestigiados no estudo do termo jurídico tornam-se opacos para os
policiais que deles fazem uso, considerando a inexistência de instrumento que
descreva esses termos.
Tendo em vista que a Polícia Judiciária serve ao Poder Judiciário na
persecução penal, é possível afirmar que a terminologia jurídico-policial
alicerça e embasa a ação penal. Logo, a ininteligibilidade dos termos jurídicopoliciais influi negativamente no desenrolar do processo penal. A opacidade
no entendimento de quatro termos jurídico-policiais utilizados pela própria
Polícia para designar o crime de furto foi mostrada em dissertação por COSTA
(2009). O estudo foi realizado do seguinte modo: foram analisados 3.000
textos de históricos de ocorrências policiais dos modi operandi (MOps) furto
chuca, furto descuido, furto mão grande e furto punga, em um corpus que
totalizou 12.000 textos. A análise mostrou que o modo como os policiais
entendem esses quatro MOps difere do modo como eles estão registrados em
um manual de informática policial, que é o único registro escrito que a Polícia
Civil gaúcha dispõe para os seus termos. O resultado da análise é mostrado na
Tabela1:
MOp
Furto chuca
Base: registro do manual de
informática
Abrir a bolsa
Base: análise dos dados dos
históricos de BO
Furtar a bolsa, da bolsa ou do
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
bolso, com ou sem a percepção
da vítima.
Por atitude descuidada da
vítima, furtar a bolsa, da bolsa
Aproveitar-se
de
atitude ou do bolso, com ou sem a
Furto descuido
relaxada
percepção da vítima.
Furtar a bolsa, da bolsa ou do
bolso, com ou sem a percepção
Furto mão grande
Tirar objeto
da vítima.
Furtar a bolsa, da bolsa ou do
bolso, com ou sem a percepção
Furto punga
Retirar a carteira do bolso
da vítima.
Tabela 1 – Definições de quatro MOps do crime de furto.
2.1 A terminologia empregada pela Polícia
Judiciária
A linguagem, que é única, se desdobra em linguagens especializadas
que são geradas pelas especificidades da área na qual são utilizadas. HOFFMANN
(1998) define linguagem especializada como o conjunto de todos os recursos
linguísticos (da linguagem geral, de todas as linguagens especializadas e de
dada
linguagem
especializada)
que
são
utilizados
em
um
âmbito
comunicativo, delimitado por uma especialidade, a fim de garantir a
compreensão entre as pessoas que trabalham nesse âmbito, em outros
âmbitos e entre os leigos que interagem com as áreas especializadas. A
linguagem especializada se processa por meio de um vocabulário específico
que, dentre as possíveis formas de expressão, se manifesta nos textos, aqui
entendidos, de acordo com ECO (1984), como a expansão da virtualidade de
um sistema de signos no processo de comunicação.
Os textos produzidos pela Polícia Judiciária são especializados,
resultado de uma atividade comunicativa especializada que corresponde à
realidade objetiva, como postula HOFFMANN (1998). Produzidos por policiais
para a instrução penal, visam comunicar o fato criminoso que foi noticiado
pela vítima ou testemunha e, por isso, para CISPUSCIO (2002), têm caráter
especializado delimitado pelos usuários, pela finalidade e pela temática.
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
Para COSTA (2009), o que faz o Direito permanecer é a escrita, por isso,
o trabalho da Polícia Judiciária se concretiza através de documentos
probatórios do fato típico, não conformando prova, portanto, a investigação
verbal. CAPEZ (2003) assevera que todas as partes que compõem os
procedimentos policiais são registradas através da escrita. Essa escrita, que é
produzida por especialistas da área, reflete as UTs que são empregadas na sua
comunicação especializada. As UTs, segundo CABRÉ (1999), são unidades de
conhecimento, significação, denominação e comunicação especializada,
utilizadas na linguagem em uso no âmbito de uma área temática. Elas não
diferem das palavras quando vistas através dos critérios pragmáticos e
comunicativos e, como não compõem um sistema lexical independente, têm a
forma fonética e gráfica em conformidade com a estrutura fonológica de cada
linguagem em que são empregadas. Por muito tempo, as UTs foram
consideradas como marca distintiva prioritária da linguagem especializada;
porém, conforme aponta MACIEL (2001), de acordo com uma concepção
comunicativa mais ampla, considerando o caráter representativo dos termos,
as terminologias são vistas como um dos elementos que configuram a
linguagem especializada. A ênfase é dada a quem usa os termos, às condições
de uso e às características temáticas e pragmáticas do meio que as
circundam.
O trabalho da Polícia Judiciária é embasado nas leis penais. Logo, os
termos que compõem a norma têm o caráter de preceituar a conduta
criminosa e a respectiva sanção penal por meio da normalização terminológica
que, segundo FILHO (2010), é um processo institucional por meio do qual a
fixação e a utilização de um termo ou de um conceito servem para veicular e
atender aos propósitos de comunicação de uma dada instituição. Entretanto,
a normalização não limita, segundo o autor, a formação de terminologias de
um domínio de especialidade, por isso, é preciso considerar a variação como
resultado de dois fenômenos: da evolução da língua e do fato de que o termo
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
reflete a maneira como os especialistas pensam, sentem e percebem a
realidade especializada da qual fazem parte.
Considerando que o conhecimento jurídico é condição sinequa non para
o desempenho da função policial, conforme aponta HAGEN (2006); e que o prérequisito para o ingresso no quadro de agentes policiais é formação superior
em qualquer curso, a visão de mundo entre os policiais difere em nível de
competência jurídica. Por isso, entendemos ser necessário considerar, ao
repertoriar a terminologia jurídico-policial, a variação como fenômeno
ocorrente e adotar, na formulação de conceitos a esses termos, um viés
descritivo consoante ao contexto no qual os termos ocorrem.
A estigmatização da atividade realizada pela Polícia Judiciária é
refletida na sua terminologia, gerando certo desprestígio a essa linguagem,
que é jurídico-policial, ao desconsiderar, no estudo do termo jurídico, a etapa
principal da ação penal, que é a da sua propositura. Em virtude disso, existe
uma opacidade que torna algumas UTs policiais ininteligíveis até mesmo para
os próprios especialistas que as utilizam. Essa ininteligibilidade pode influir
negativamente na sanção penal quando da aplicação da sentença.
2.2 Os procedimentos instaurados pela Polícia
Judiciária
Para a persecução penal, o trabalho da Polícia Judiciária soma na
instauração de três tipos-base de procedimentos, que são os seguintes:
1) Termo Circunstanciado de Ocorrência (TC) – postulado pela Lei
9.099/95 2, é o registro de um fato tipificado como crime de menor potencial
ofensivo, ou seja, de menor relevância, que tenha pena máxima cominada em
2
Juizados Especiais Cíveis e Criminais – JEC.
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
até 2 (dois) anos de cerceamento de liberdade ou multa, e que tenha sido
cometido por pessoa maior de idade.
2) Inquérito Policial (IP) – disciplinado nos artigos 4º ao 23º da Lei
3.689/41 3, é o instrumento formal da investigação que compreende o
conjunto das diligências realizadas pela Polícia Judiciária para apurar o fato
criminoso e descobrir a pessoa, maior de idade, que o cometeu, formando a
documentação dessas diligências ordenadas cronologicamente. O IP pode ser
instaurado por Portaria (nos crimes que ocorram sem situação de flagrante
delito) e por Auto de Prisão em Flagrante (para crimes que geram prisão em
flagrante delito).
3) Procedimento de Apuração de Ato Infracional (PAAI) – disciplinado
pela Lei 8.069/90 4, ou Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é
empreendido para apurar ato infracional praticado por menor infrator e
subdivide-se do seguinte modo: Auto de Apreensão em Flagrante (AAF) –
instaurado para ato infracional cometido por adolescente apreendido em
flagrante, cuja situação ofereça violência ou grave ameaça à vítima (art. 172
do ECA); Boletim de Ocorrência Circunstanciado (BOC) – instaurado para ato
infracional cometido por adolescente em situação de flagrância, sem violência
ou grave ameaça à vítima (art.173, Parágrafo Único do ECA); Relatório de
Investigação (RI) – instaurado quando o ato infracional, cometido por menor
de idade não configurar situação de flagrância (art. 177 do ECA).
3. Características do inquérito policial
A investigação soma uma série de atividades táticas e técnicooperacionais de âmbito interno e externo, sendo que todas as diligências
3
4
Código de Processo Penal.
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990).
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
devem ser tomadas a termo e registradas através da escrita, formando assim,
a gama dos documentos que instruem os procedimentos policiais. Demonstrase, a seguir, algumas das atividades de Polícia Judiciária, através da descrição
das principais características do IP:
- sigiloso: o sigilo faz parte da essência da atividade investigatória para
surtir resultados. O art. 20, Caput, do Código de Processo Penal (CPP,1941)
prevê que o IP poderá ser ou não sigiloso, incumbindo à autoridade policial
determinar o sigilo, do início ao fim das investigações, se necessário à
elucidação dos fatos e, também, pelo interesse social, a exceção do Ministério
Público, Poder Judiciário e advogado do indiciado;
- escrito: o IP deve ser capeado e constitui o registro dos atos
promovidos pela Polícia Judiciária, sendo que tudo o que é feito deve ser
reduzido à peça escrita (Art. 9o, Lei 3.689/41);
- inquisitivo: no IP não vige o contraditório e a ampla defesa, que são
características do processo. Ocorre a ampla defesa e o contraditório quando
há lide, ou seja, quando as partes alegam direitos e fatos controversos. No IP
não há partes (autor e réu), o delegado de polícia não é considerado autor e o
indiciado não é considerado réu. Distingue-se, nesse patamar, a terminologia
jurídico-policial da terminologia jurídica do Poder Judiciário (autor e réu). Em
razão desta característica é pacífico que ninguém pode ser condenado apenas
com base nas provas produzidas no IP.
Conforme o CPP (1941), art. 6o e 7o, as diligências praticadas pela
Polícia Judiciária para a instrução do IP são a preservação do local do crime
(necessária em crimes como homicídio, latrocínio, extorsão mediante
sequestro, dentre outros); a apreensão ou arrecadação de objetos (produto
direto do crime, que configura a res furtivae); a coleta das provas
(documentais,
periciais
em
documentos,
grafotécnicas,
testemunhais,
periciais ou balísticas); a oitiva das partes e o indiciamento do agente,
realizado a partir da suspeita (aspecto subjetivo). Com base nas investigações
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258
Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
é feito o indiciamento, que corresponde ao conjunto de atos que oficializam a
suspeita que recai sobre dada pessoa.
Após indiciado pela Polícia Judiciária, o autor do fato pode
transformar-se em réu no Poder Judiciário. Até ser chamada de indiciada, a
pessoa que comete o crime é denominada por outras UTs que sofrem
modificações de acordo com a evolução da investigação. Denominar como
indiciada a pessoa que comete o crime, antes do efetivo indiciamento, é
passível de ação contra o Estado. Por isso, é muito importante que o
especialista entenda esse processo, uma vez que inexiste, até o momento,
dicionário jurídico-policial para dirimir eventuais dúvidas acerca do emprego
dos temos adequados.
4. Os partícipes nos procedimentos policiais
A terminologia aplicada aos partícipes nos procedimentos policiais
difere em conformidade com a condição da participação, que pode ocorrer da
seguinte forma:
- Quem comunica ou testemunha o fato: comunicante, condutor,
testemunha, declarante, responsável, informante.
- Quem sofre a ação criminosa: vítima.
- Quem comete a ação criminosa ou ato infracional: suspeito, acusado,
autor, indiciado, infrator, conduzido, apreendido, informante.
Na terminologia aplicada aos partícipes, a pessoa que noticia o BO é
comunicante, ou, nos casos de prisão em flagrante, esse comunicante é
chamado de condutor. Quem testemunha o fato é chamado de testemunha.
No momento de depor, após o registro do BO, a testemunha pode ser chamada
de declarante, informante (se menor de idade) ou responsável (quem
acompanha menor de idade em depoimento). A pessoa que sofre a ação
criminosa é sempre chamada de vítima. À pessoa que comete o crime é
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
atribuída uma variação terminológica que obedece à situação comunicada ou
à evolução da investigação e, por esse motivo, denominamos essa variação de
relação hierárquica entre as UTS, conforme será visto a seguir.
4.1 Relação hierárquica entre as Uts
Os partícipes nos procedimentos policiais, desdobrados entre vítima,
criminoso e testemunha, foram anteriormente descritos, sendo a condição da
participação legada pelo contexto especializado, ou tarefa investigativa, e
expressada pela terminologia. No caso do IP, as UTs que designam a pessoa
que comete o crime se modificam no decorrer do processo e estabelecem,
entre si, uma relação hierárquica que obedece à evolução da investigação. Em
outras palavras, essas UTs dependem da eficácia da investigação para
originarem outras UTs. Se a investigação é profícua, a terminologia evolui e
modifica a designação do partícipe; se a investigação é estanque, a
designação do partícipe acompanha a estagnação e não é modificada.
Para dar conta de explicar esse fenômeno, cumpre descrever as três
formas de solução aplicadas ao IP, em relação à identificação do criminoso,
que interferem na terminologia do partícipe, que são as seguintes:
1) autoria elucidada: o IP termina com o indiciamento do criminoso e a
terminologia do partícipe, conforme o caso, evolui do suspeito ao acusado, e
deste ao indiciado;
2) autoria não elucidada: o IP termina sem o indiciamento do
criminoso. Nesta modalidade pode existir testemunha, suspeito ou acusado;
porém, o indiciamento não ocorre por falta de elementos comprobatórios. A
terminologia do partícipe pode variar entre suspeito e acusado, mas não
evolui para o indiciado;
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
3) sem indiciamento: o IP termina sem o indiciamento do criminoso
porque não existem testemunha, suspeito ou acusado.
Optamos
por
representar
essa
terminologia
através
de
mapas
conceituais. Segundo a Teoria Cognitiva de Aprendizagem, proposta por
Ausubel (1978), a forma como o ser humano organiza no seu intelecto o
conteúdo de determinada área do conhecimento corresponde a uma espécie
de estrutura hierárquica, na qual as ideias mais inclusivas ocupam uma
posição no topo da estrutura. Os mapas, que neste estudo são do tipo
hierárquico, correspondem a dois termos conectados por uma palavra de
ligação para formar diagramas que indicam as relações entre os termos e a
organização conceitual do sujeito sobre a área de conhecimento que
representa.
Entendemos a construção do mapa hierárquico do seguinte modo:
Figura 1 – Mapa conceitual hierárquico.
a) Conceito + genérico – corresponde ao conceito mais abrangente, ou
hiperônimo, em relação à terminologia empregada pela PC/RS, ou
seja, é o CBP (1940), latu sensu, quanto aos modi operandi (MOps)
empregados pela PC/RS, strictu sensu.
b) Palavra de ligação ou vetor – diz respeito ao conector que une o nó
ao conceito + geral e ao conceito + específico. Ao nosso entender, a
palavra de ligação, ou vetor, indica o contexto que define o MOp. Para
nós, o contexto é a situação real de uso do texto especializado e, por
isso, é contexto pragmático.
c) Nó – determinante circunstancial (determina a circunstância ou o
modo de ação) da palavra de ligação, ou vetor, e do conceito mais
específico.
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
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d) Conceito + específico – é o conceito utilizado pela PC/RS e, por isso,
entendido como o mais específico, ou hipônimo, em relação ao
conceito mais genérico, que é o hiperônimo.
Na Figura 2, mapeamos a relação hierárquica das UTs aplicadas ao
criminoso, em relação à evolução e à estagnação investigativa e,
consequentemente, terminológica. Do mapeamento, insta destacar que
denominamos investigação ineficaz aquela que ocorre pela precariedade das
informações, e não em virtude do trabalho realizado pela Polícia Judiciária.
Figura 2 – Procedimentos policiais e partícipes.
Na Figura 2, mostramos o modo como entendemos os três momentos da
terminologia que designa a pessoa que comete o crime, aos quais atribuímos a
seguinte denominação:
Mapa a) – Evolução da UT: permite a transição hierárquica da UT de
suspeito a acusado, e deste a indiciado, gerando, assim, um IP elucidado.
Mapa b) – Estagnação da UT: a UT não passa da pessoa do suspeito em
virtude da ineficácia investigativa, convergindo em IP não elucidado.
Mapa c) – Esvaziamento da UT: o IP não passa do registro do Boletim de
Ocorrência (BO) e, nele,não se tem nenhum elemento que permita a
investigação. Essa possibilidade resulta em IP sem indiciamento.
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
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A evolução das UTs empregadas para denominar a pessoa que comete o
crime sustenta a ação penal.Através do trabalho da Polícia Judiciária, as
provas produzidas na investigação transformam a terminologia do suspeito em
acusado, que, por sua vez, se transforma, ao final do IP, em indiciado. Esse
indiciado será réu no PJ, configurando, assim, outra etapa da UT, cuja
evolução ocorre fora do contexto policial, do indiciado ao réu, caso a
denúncia seja aceita pelo PJ e, estagnando em indiciado se o PJ não aceitar a
denúncia.
Mapeamos, na Figura 3, as UTs empregadas aos partícipes nos
procedimentos policiais,e a evolução das UTS que denominam a pessoa que
comete o crime no âmbito jurídico-policial:
Figura 3 – Procedimentos policiais e evolução da terminologia dos partícipes.
A relação hierárquica das UTs aplicadas à pessoa que comete a
transgressão legal segue a hierarquia do IP no PAAI e no TC e, por isso, têm as
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
mesmas possibilidades de evolução terminológica, a exceção da última
hierarquia da UT no PAAI, que é infrator, e no TC, que é autor.
5. Considerações finais
A investigação condiciona a evolução das UTs que são empregadas à
pessoa que comete o crime. Concluímos que o contexto especializado
jurídico-policial, além de atribuir a certas unidades da linguagem o estatuto
de UT, também é responsável, em alguns casos, pela transformação de dadas
UTs em outras, com o intuito de atender às peculiaridades profissionais da
área a que servem. Obedecer a esses critérios, que estão condicionados à
tarefa investigativa, garante a produção das provas que instruem o
procedimento policial que será enviado ao Poder Judiciário. No caso do IP, é
importante lembrar que o indiciado pode ser chamado de acusado ou de
suspeito, porque essas duas UTs antecedem à UT indiciado, que é a última na
cadeia hierárquica. Entretanto, o suspeito não pode ser chamado de indiciado
até que haja o efetivo indiciamento, que é produzido através das provas que
instruem o IP. Por isso, é importante que o especialista entenda a
terminologia da qual faz uso para designar a pessoa que comete o crime. Para
possibilitar o entendimento dessa terminologia por parte dos policiais que
dela fazem uso para a comunicação entre si e com os seus pares, está sendo
desenvolvida, pela signatária, tese de doutoramento com o objetivo de
delinear a base de um glossário eletrônico de termos jurídico-policiais, que
será atrelado aos sistemas de informações policiais.
Esse estudo gera uma pequena contribuição para a tarefa de atestar
caráter científico à terminologia policial e de reconhecer as UTs empregadas
pela Polícia Judiciária como terminologia jurídico-policial.
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Costa, M. I. P. – A terminologia empregada aos criminosos e/ou
infratores pela polícia civil do Rio Grande do Sul
6. Referências bibliográficas
AUSUBEL, D. P.; NOVAK, J. D.; HANESIAN, H. Educational Psychology: A Cognitive
View. 2 ª.ed. New York: Holt, Rinehart & Winston, 1978.
CABRÉ, M. T. La terminología: representación y comunicación: elementos para
una teoria de base comunicativa e otros artículos.Barcelona: IULA,
1999. p. 369.
CAPEZ, F. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p.50-97.
CIAPUSCIO, G. E. Textos especializados y terminologia. Barcelona: IULA, 2003.
COSTA, M. I. P. Estudo preliminar da terminologia empregada pela Polícia Civil
do RS no Boletim de Ocorrência Policial [dissertação]. Porto Alegre:
UFRGS, 2009.
ECO, U. Conceito de texto. São Paulo: T.A. Queiroz, 1984. p. 4.
FILHO, S. C.S. A variação e a relação conceito/termo: uma questão de ponto de
vista. Revista Trama, vol.06, no.12, 2010, p. 75-86. Disponível em:
<http://erevista.unioeste.br/index.php/trama/issue/view/386/showToc>.
Acesso em: 28/05/2012.
HAGEN, A. M. M. O trabalho policial: estudo da Polícia Civil do Estado do Rio
Grande do Sul. São Paulo: IBCCRIM, 2006.
HOFFMANN, L. Llenguatgesd´especialitat. Barcelona: UniversitatPompeuFabra.
InstitutUniversitari de Lingüística Aplicada, 1998.
MACIEL, A. M. B (Org.). Temas de Terminologia. Porto Alegre: Ed. da UFRGS,
2001. p. 62-81.
Legislação
BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
BRASIL. Decreto-lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo
Penal.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente, e dá outras providências.
BRASIL. Lei 9.099/95, de 26 de setembro de 1995, Dispõe sobre os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.
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O discurso do rei: tradução e poder
Terezinha Rivera Trifanovas *
Abstract: The movie The King’s Speech is the object of this study aimed to observe
the communicative interactions between the leading characters (the British King
George, the VI, and the Australian therapist Lionel Logue) in order to analyze effects
of meaning identified around the power relationship in the original screenplay in
English as well as in the subtitled translation in Portuguese. To accomplish this
objective, the most representative dialogues concerning power relationship were
selected and the linguistic materiality was analyzed from a discursive perspective
based on the relations of language, subject and history which considers the
conditions of production and the effects of meaning. It is important to emphasize
that the objective of this article is not to analyze the translation quality but to
observe how the effects of meaning are constructed regarding the power relationship
from English to Portuguese language.
Keywords: discourse; translation; power and knowledge relationship.
Resumo: Tomando como objeto de estudo o filme intitulado O discurso do rei,
observou-se, particularmente, as interações comunicativas entre os protagonistas (o
rei britânico George VI e o terapeuta australiano Lionel Logue), com o intuito de
analisar os efeitos de sentido identificados, pelos autores do artigo, em torno das
relações de poder presentes no discurso original em língua inglesa e na tradução
legendada para a língua portuguesa. Para isso, foram selecionados os diálogos mais
representativos das relações de poder entre as referidas personagens e empreendida
a análise da materialidade linguística por uma perspectiva discursiva, centrada no
estudo das relações entre linguagem, sujeito e história, que considera as condições
de produção e os efeitos de sentido. Ressalta-se, porém, não ser a intenção analisar
a qualidade da atividade tradutória, mas, sim, observar como se dá a construção de
efeitos de sentido relacionados às relações de poder de um idioma para outro.
Palavras-chave: discurso; tradução; relações de poder-saber.
*
Professora do Centro de Linguagem e Comunicação (CLC), Faculdade de Letras, da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUC – Campinas). Email: [email protected].
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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266
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
1. Considerações iniciais
Este estudo foi concebido a partir do filme intitulado O discurso do rei 1
que, baseado na história real do rei George VI, retrata os problemas do
monarca em expressar-se publicamente. Após a morte de seu pai, o rei
George V, e a abdicação escandalosa de seu irmão, o rei Eduardo VIII (príncipe
de Gales), Albert George (duque de York), vítima de um problema de fala por
toda a sua vida, de repente é coroado rei George VI da Inglaterra. Com a
iminência da guerra e o país necessitando desesperadamente de um líder, sua
esposa, Elizabeth (duquesa de York), a futura rainha mãe, envia o marido a
uma consulta com um excêntrico terapeuta da fala, Lionel Logue, um
fracassado ator australiano.
Após um começo difícil, os dois embarcam em um tratamento pouco
ortodoxo e, eventualmente, formam um vínculo inquebrável. Com o apoio de
Logue, de sua família, de seu governo e de Winston Churchill, o rei vai superar
sua gagueira e proferir o seu mais importante discurso no rádio às vésperas da
Segunda Guerra Mundial. A partir desse enredo, apresenta-se, a seguir, o
estudo de caso das trocas comunicativas produzidas entre o rei George VI, o
terapeuta da fala Lionel Logue e a Duquesa Elizabeth, observando,
particularmente, se as relações de poder-saber são evidenciadas na tradução
desses diálogos.
Partindo do pressuposto que figuras soberanas e membros de famílias
reais produzem, no imaginário coletivo, imagens de poder, de autoridade, de
força e de segurança, apresenta-se a hipótese de que o ato tradutório está
permeado por esse imaginário coletivo, refletindo sobremaneira na atividade
do sujeito tradutor. Em consonância com esta hipótese, o objetivo geral deste
1
The king’s speech. Produção de Iain Canning, Emile Sherman, Gareth Unwin. Roteiro de
David Seidler. Direção de Tom Hooper. Protagonistas: Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena
Bonham Carter e Guy Pearce. The Weinstein Company e UK Film Council. Paris Filmes. 2010.
Lançamento, nos EUA, em 24/12/2010 e, no Brasil, em 11/2/2011.
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267
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
artigo foi o de problematizar as relações de poder/saber observadas na
legendagem 2 das interações comunicativas dos protagonistas do filme.
Apoiaremo-nos nas contribuições teóricas de Foucault, que afirma que
as relações de poder estão disseminadas por todo o tecido social (FOUCAULT
1976[1984: 89]) 3, e de Pechêux, que, relativizando a noção de interpretação,
problematiza a suposta transparência e evidência do sentido. Ademais, a
análise da materialidade linguística, ou seja, do intradiscurso, do fio do dizer,
propicia a identificação dos sentidos contidos nos enunciados, não pelo desejo
de
encontrar
sentidos
ocultos,
mas,
ao
contrário,
para
evidenciar
possibilidades de sentido delineadas pelas condições de produção, com seus
desdobramentos na constituição das subjetividades.
Uma das grandes contribuições trazidas por Foucault diz respeito à
proposta de não se esgotar a possibilidade de detectar e analisar como e onde
as relações de poder são legitimadas. Não se trata apenas de dizer se há ou
não poder em uma dada circunstância, nem mesmo de dizer quem detém o
poder, mas de, constantemente, identificar e descrever como relações de
poder são configuradas e quais as suas consequências na constituição dos
sujeitos. Para Foucault, o poder está presente no cotidiano familiar,
profissional, acadêmico ou político-social, como ele próprio afirma:
Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo
sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em
todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro.
O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares (FOUCAULT 1976[1984: 89]).
Dos diálogos entre o Duque Albert, o terapeuta Lionel e a Duquesa
Elizabeth foram selecionados recortes discursivos que constituíram o corpus
de pesquisa, para efetuar a análise da materialidade linguística e das
2
O corpus de pesquisa é advindo da legendagem produzida pela Equipe Victorians (tradução,
revisão e sincronia), disponibilizada em 25/4/2011. O lançamento nacional do filme, em DVD,
ocorreu em 22/06/2011.
3
A primeira data refere-se à publicação original e a segunda refere-se à tradução consultada.
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
condições de produção, as quais, quando agrupadas, constroem efeitos de
sentido e, assim, foram observadas as configurações de relações de
poder/saber pelo viés do discurso.
No que diz respeito à análise da materialidade linguística, foram
focalizadas as estratégias argumentativas de natureza verbal. Abordou-se, por
exemplo, a modalização no discurso dos protagonistas do referido filme, a fim
de analisar as ocorrências enunciativas que legitimam as relações de poder de
um sobre o outro.
No que tange à perspectiva discursiva a partir das condições de
produção, CORACINI (1991: 339) aponta que há duas possibilidades de
abordagens metodológicas: 1) análise de texto ou linguística textual, que
parte do texto para recuperar vestígios extralinguísticos da situação de
enunciação; 2) análise de discurso que parte de uma representação das
condições de produção do discurso (que nunca podem ser realmente
restabelecidas), sem excluir a situação de enunciação. Neste estudo decidiuse pela segunda orientação metodológica, a discursiva, a fim de compreender
a complexidade das condições de produção que possibilitam a realização
linguística. Coracini (1991) sugere que:
[…] a metodologia de Análise de Discurso que privilegia as condições de
produção como norteadoras de sua análise, na medida em que não
fecha a questão, pré-determinando (sic) formas linguísticas capazes de
veicular subjetividade ou objetividade, denotação ou conotação, está
mais apta a assimilar uma visão pós-modernista de ciência que apesar
de reconhecer “o peso das instituições que impõe limites aos jogos de
linguagem e assim restringem a inventividade dos parceiros em matéria
de lance” (LYOTARD 1988: 31), entende que é possível romper com as
regras pré-estabelecidas (sic) “se os limites da antiga instituição forem
ultrapassados (op. cit. 32)” (CORACINI 1991: 351).
Objetivando delinear mais amiúde a perspectiva discursiva adotada
nestas análises, apresenta-se, a seguir, uma breve compilação acerca de
algumas noções fundadoras concebidas pelos estudos do discurso e pelos
estudos da tradução em uma perspectiva desconstrutivista. Alguns conceitos
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269
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
norteadores da Análise de Discurso dizem respeito à análise da configuração
discursiva, introduzindo noções de polissemia e de efeitos de sentido.
Etimologicamente, a palavra discurso tem em si a ideia de curso, de percurso,
de correr para diversas partes, de pôr em movimento, de tomar várias
direções. “O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem.
Com o estudo do discurso observa-se o homem falando” (ORLANDI 2001: 15).
Entende-se, pois, o discurso a partir do funcionamento dos efeitos de sentido
entre locutores e outros discursos (interdiscurso) e da configuração das
condições de produção; todos esses elementos contribuem para se pensar a
equivocidade e a opacidade constitutiva da linguagem.
Diante do fato do discurso ser interpenetrado por outros discursos é que
se pode considerar a heterogeneidade discursiva constitutiva (AUTHIER-REVUZ
1998), ou interdiscurso, como inerentemente dialógica. A heterogeneidade
discursiva consiste de fragmentos de múltiplos discursos com aparições
esporádicas
em
determinados
pontos
de
emergência;
é
também
a
manifestação da memória discursiva, ou seja, inúmeras vozes anteriores e
exteriores entrelaçadas em uma rede de sentidos, quase apagando suas
origens. Se o interdiscurso é esse entrelaçamento de discursos disseminados
que aparecem explícita ou implicitamente na superfície discursiva –
heterogeneidade discursiva mostrada (AUTHIER-REVUZ 1998) –, o intradiscurso é
a materialidade linguística, é o fio discursivo que se materializa, constituindo
o próprio texto.
Nas teorias de discurso, é essencial observar as condições de produção
do discurso, isto é, toda a circunstancialidade sociopolítico-histórica ao redor
do ato enunciativo. Essa contextualização está consideravelmente atrelada às
formações discursivas propostas por FOUCAULT (1969 [2005: 130]), entendidas
como sendo o discurso em formação, sempre em mobilidade, instável,
mapeando em um dado momento histórico-social as possibilidades de
expressão. CORACINI (2007: 9) afirma que “essa rede conforma e é conformada
por valores, crenças, ideologias, culturas que permitem aos sujeitos ver o
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
mundo de uma determinada maneira e não de outra, que lhes permitem ser,
ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes.”
2. Contextualização do enredo
Em O Discurso do Rei, as amarguras emocionais do futuro rei George VI
(Albert George, duque de York) ganham destaque, em toda a Inglaterra, a
partir de sua dificuldade de se expressar, principalmente em pronunciamentos
públicos, devido à sua gagueira. Solidária ao marido, e após tentativas
fracassadas com vários médicos renomados, a duquesa de York (futura rainhamãe do trono britânico) busca a ajuda do terapeuta da fala Lionel Logue,
detentor de um método inusitado nas primeiras décadas do século XX. O
método de Lionel advém de sua fracassada carreira teatral, de sua paixão
pelo teatro de Shakespeare e de sua experiência tratando soldados
traumatizados, após o fim da primeira guerra mundial. Lionel desenvolverá
uma relação de amizade com Albert George, segundo nome na lista de
sucessão ao trono britânico.
Durante as sessões em que são trabalhados o relaxamento muscular e o
controle respiratório, a gagueira do príncipe Albert traz muito mais do que
uma mera dificuldade de fala. Há todo o lado psicológico, e até mesmo social,
por trás dela, desde o modo de criação na infância, considerado corriqueiro
para a educação formal entre os nobres da época – a severidade do pai, a
repressão por ser canhoto, o doloroso tratamento de seu joelho, a crueldade
de uma babá que preferia seu irmão mais velho e a morte de seu irmão mais
novo, príncipe John –, até o peso carregado pela posição que ocupa. Ademais,
George conhece bem os deveres e o ônus do ofício de ser rei e não se
considera apto para a função em virtude de sua gagueira.
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
Muito mais do que propor exercícios vocais, Lionel atua como psicólogo
do monarca, mesmo enfrentando uma pesada barreira de desconfiança e de
diferença de classes. Embora Albert George seja complacente para com o
cidadão comum, ele reforça a diferença social e hierárquica entre nobres e
plebeus. Prova disso é a atitude elitista de Albert em resistir à proposta de
Lionel de ambos se tratarem como iguais. Lionel, por sua vez, insistia em
chamar o monarca pelo apelido de Bertie, de uso exclusivo dos familiares e
amigos íntimos. Assim, há o contraste entre o temperamento explosivo do
membro da realeza e a ousadia de um homem comum, bem como a
cumplicidade que alicerça uma amizade construída pela distância e, ao
mesmo tempo, pela aproximação, ou seja, o paradoxo de dois homens: um
falante competente da língua que não obteve sucesso profissional (o ator
fracassado) e um falante deficitário da língua que possuía tudo para obter
sucesso histórico (o monarca em fracasso).
Articulando tal discussão ao objetivo geral do artigo de problematizar
as relações de poder/saber produzidas durante as interações comunicativas
entre os protagonistas do filme, decidiu-se, inicialmente, apresentar a
transcrição completa de uma cena do filme (corpus de pesquisa) e, em
seguida, selecionar algumas falas e contrastá-las com a tradução legendada,
produzindo, assim, recortes discursivos (RD) para análise da materialidade
linguística.
Com
isso,
foi
possível
alcançar
os
objetivos específicos
pretendidos, quais eram: a) discutir a escolha lexical da tradução em
português do Brasil; b) observar a legitimação de poder por meio da tradução;
c) refletir sobre a construção, em uma perspectiva discursiva, de efeitos de
sentido presentes na tradução.
3. Dispositivo analítico
A cena, a seguir, retrata o momento em que a Duquesa de York vai ao
consultório do terapeuta da fala, Sr. Lionel Logue, a fim de conhecê-lo e,
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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272
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
possivelmente, convencer o marido, Duque de York, a iniciar um tratamento
para a gagueira dele. De antemão, ambos tentam estabelecer as bases para o
relacionamento interpessoal. Ela, lentamente, revelando sua superior posição
social e, ele, rapidamente, demandando igualdade de tratamento. A
assimetria das posições desses sujeitos ocasiona atrito e ruído nas relações de
poder.
DIÁLOGO 1: Vídeo (tempo 0:09:04 – 0:12:16)
Roteiro (páginas 7 - 10)
ELIZABETH
LIONEL
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
Hello. Is anyone there?
I’m just in the loo.
“Poor and content is rich and rich enough”
I beg your pardon?
Shakespeare. I’m sorry, there’s no receptionist. I like to
keep things simple. How are you Mrs. Johnson? I’m afraid
you’re late.
I’m afraid I am.
Where’s Mr. Johnson?
He doesn’t know I’m here.
That’s not a promising start.
My husband has seen everyone to no avail. He’s given up
hope.
He hasn’t seen me.
You’re awfully sure of yourself.
I’m sure of anyone who wants to be cured.
Naturally he wishes to be cured.
My husband is required to speak publicly.
Perhaps he should change jobs.
He can’t.
Indentured servitude?
Something of that nature.
Well have your hubby pop by...Tuesday would be
good...to give his personal history and I’ll make a frank
appraisal.
I do not have a “hubby”. We don’t ‘pop’. We never talk
about our private lives. You must come to us.
Sorry, Mrs. Johnson, my game, my turf, my rules.
And what if my husband were the Duke of York?
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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273
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
LIONEL
ELIZABETH
ELIZABETH
The Duke of York?
Yes the Duke of York.
I thought the appointment was for “Johnson”? Forgive
me, your Royal...?
Highness.
Your Royal Highness.
Johnson was used during the Great War when the Navy
didn’t want the enemy to know ‘he’ was aboard. We are
operating under the strictest of confidences.
Of course. I’m considered the enemy?
You will be if you remain unobliging.
How did you find me?
The President of the Speech Therapists Society.
Eileen McCleod? She’s a sport.
Dr. McCleod warned me your antipodean methods
were “unorthodox and controversial”. I warned
her...they were not my favorite words.
I succeed.
So she says.
I can cure your husband. But for my method to work
there must be trust and total equality in the safety of
my consultation room. No exceptions.
Well then, in that case...
When can you start?
Vejamos, a seguir, como as falas selecionadas em negrito foram
traduzidas, a fim de observarmos a produção de efeitos de sentido.
RD 1
ELIZABETH
LIONEL
My husband is required to speak publicly
Meu esposo é... Ele precisa falar em público.
Indenturedservitude
Contrato a prazo fixo?
Primeiramente, observamos a utilização de reticências e a repetição do
sujeito oracional (Meu esposo é... Ele), que aponta para a possibilidade de o
tradutor ter a intenção de marcar o trabalho de interpretação cênica do ator,
considerando que tal repetição não consta do roteiro. Em seguida, a escolha
pelo verbo “precisar”, no presente simples, em lugar da voz passiva da
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
locução verbal em inglês (is required), aponta para uma modalização do
discurso, considerando que as possibilidades em português – ser exigido, ser
demandado, ser obrigado –, poderiam soar negativamente na tradução da fala
de uma personagem de origem nobre. Neste sentido, o tradutor encontra
maior desafio com o vocábulo indentured, pois, na tentativa de manter a
modalização do discurso da personagem nobre, optou por “contrato a prazo
fixo”, quebrando, assim, o paradoxo do vocábulo que denota serviço quase
escravo.
A partir dessa escolha vocabular, emerge efeitos de sentido de que,
durante o ato tradutório, há a preocupação com uma propriedade lexical em
detrimento do paradoxo possivelmente desejado pelo roteirista. Ou seja, um
diálogo velado entre personagens: uma duquesa da família real britânica que,
ao tentar dissimular sua identidade e a do esposo, se vê presa em um jogo de
perguntas nada familiar e, de outro lado, um plebeu se apossando de frestas
discursivas, detectadas por seu raciocínio rápido e viabilizadas por sua
destreza lexical.
RD 2
ELIZABETH
You will be if you remain unobliging.
Será, se prevalecer a imprudência.
Enfatizando que neste estudo não se objetivou verificar a qualidade da
tradução, mas, sim, refletir sobre a possibilidade de relações de poder
advindas da temática do filme – o poder do soberano e a autoridade médica –,
influenciar o ato tradutório. Assim, não parece adequado pensar que, em RD
2, a tradução para os verbos remain e unoblige seja resultado de descuido ou
inexperiência. Pensamos que a escolha (prevalecer a imprudência) remete ao
próprio momento da enunciação, que parece revelar o lugar instável do
sujeito tradutor capturado na trama do enredo, considerando que remain
unobliging aponta para uma possível ameaça da interlocutora, dirigida ao seu
interlocutor, levando-se em consideração que a escolha tradutória por
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275
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
“imprudência” se mostra mais categórica do que a possibilidade tradutória
por “continuar desobrigado”. Com isso, o sujeito tradutor tenta assegurar a
autoridade da personagem nobre sobre a do plebeu, ao demandar respeito aos
desígnios de um soberano.
RD 3
ELIZABETH
Dr. McCleod warned me your antipodean methods
were “unorthodox and controversial”.
Ela me advertiu que seus métodos eram “heterodoxos e
controversos”.
A priori, há pouca dificuldade em encontrar tradução para a palavra
antipodean (antípoda), contudo, a omissão deste vocábulo produz o efeito de
que a inclusão de mais uma palavra requintada (em conjunto com heterodoxo
e
controverso)
seria,
talvez,
para
o
sujeito
tradutor,
um
excesso
desnecessário para definir os métodos do terapeuta plebeu. Tal possibilidade
reforça a análise apresentada, em RD 2, acerca do lugar instável do tradutor
que se reverencia diante da personagem nobre, por meio de sua escolha
lexical, ou seja, o tradutor faz escolhas lexicais a partir da posição social da
personagem, subvertendo o roteiro em subserviência à personagem soberana.
Dando prosseguimento, a próxima cena se desenrola em torno do
primeiro encontro entre o terapeuta e o príncipe, que fora persuadido por sua
esposa a ir ao consultório do inusitado especialista. Vemos, neste encontro, a
exposição das personalidades de ambos: um príncipe ansioso, impaciente e
inseguro e um terapeuta firme, paciente e seguro.
DIÁLOGO 2
19 – 25)
Vídeo (tempo 20:23 – 28:48)
Roteiro
LIONEL
LIONEL
I was told not to sit too close.
I was also told, speaking with a Royal, one waits for the
Royal to choose the topic.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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(páginas
276
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
Waiting for me to commence a conversation one can
wait a rather long wait.
Know any jokes?
Timing isn’t my strong suit.
Cuppa tea?
No thank you.
I think I’ll have one. Turns on the hot plate.
Aren’t you going to start treating me Dr. Logue?
Only if you’re interested in being treated. Please, call
me Lionel.
I prefer Doctor.
I prefer Lionel. What’ll I call you?
Your Royal Highness, then Sir after that.
A bit formal for here. What about your name?
Prince Albert Frederick Arthur George?
How about Bertie?
Only my family uses that.
Perfect. In here, it’s better if we’re equals.
If we were equals I wouldn’t be here.
I’d be at home with my wife and no-one would give a
damn.
Don’t do that.
I’m sorry?
Sucking smoke into your lungs will kill you.
My physicians say it relaxes the throat.
They’re idiots.
They’ve all been knighted.
Makes it official then. My ‘castle’, my rules. What was
your earliest memory?
What an earth do you mean?
First recollection.
I’m not here to discuss personal matters.
Why’re you here then?
Because I bloody well stammer!
You have a bit of temper.
One of my many faults.
When did the defect start?
I’ve always been this way!
I doubt that.
Don’t tell me! It’s my defect!
It’s my field. I assure you, no infant starts to speak with
a stammer. When did it start?
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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277
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
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BERTIE
BERTIE
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BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
BERTIE
LIONEL
LIONEL
Four or five.
That’s typical.
So I’ve been told. I can’t remember not doing it.
That I believe. Do you hesitate when you think?
Don’t be ridiculous.
One of my many faults. How about when you talk to
yourself?
Everyone natters occasionally, Bertie.
Stop calling me that!
I’m not going to call you anything else.
Then we shan’t speak!
Are you charging for this, Doctor?
A fortune. So, Bertie...when you talk to yourself, do
you stammer?
Of course not!
Thus proving your impediment isn’t a permanent part of
you.
What do you think was the cause?
I don’t know! I don’t care! I stammer. And no one can
fix it.
Bet you, Bertie, you can read flawlessly, right here,
right now.
And if I win, I get to ask questions.
And if I win?
You don’t have to answer.
One usually wagers money.
A bob each to sweeten it? See your shilling.
I don’t carry cash.
I had a funny feeling you mightn’t.
Stake you. Pay me back next time.
If there is a next time.
I haven’t agreed to take you on.
I can’t possibly read this.
Then you owe me a shilling for not trying.
“To be or not to be, That is the question. Whether it is
wiser...” There!
I can’t read!
I haven’t finished yet.
I’m going to record your voice and then play it back to
you on the same machine.
This is brilliant. It’s the latest thing from America: a
Silvertone.
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
There’s a bob in this, mate. You can go home rich!
You’re playing music.
I know.
How can I hear what I’m saying?!
Surely a Prince’s brain knows what its mouth is doing?
You’re not well acquainted with Royal Princes, are you?
Hopeless. Hopeless!
You were sublime. Would I lie to a prince of the realm
to win twelve pence?
I’ve no idea what an Australian might do for that sort of
money.
Shall I play it?
No.
If you prefer, we’ll just get on to the questions.
Thank you Doctor, I don’t feel this is for me.
Sir? The recording is free. Please keep it as a souvenir?
Vejamos, a seguir, como as falas selecionadas em negrito foram
traduzidas, a fim de observarmos a produção de efeitos de sentido.
RD 4
LIONEL
BERTIE
Perfect. In here, it’s better if we were equals.
Perfeito. Aqui, é melhor se estivermos entre iguais.
If we were equals I wouldn’t be here.
Se fôssemos iguais, eu não estaria aqui.
Neste RD4, a tradução da expressão IF we were equals mostra a falta
de paralelismo verbal para o mesmo enunciado, com a utilização do verbo
estar (estivermos) e do verbo ser (fôssemos). No caso da conjugação
“estivermos”, na primeira pessoa do plural no futuro simples do subjuntivo
(que expressa um fato que poderá acontecer no futuro em relação ao
momento atual; uma possibilidade ou um desejo) faz emergir a possível
preocupação do sujeito tradutor em tratar a fala do terapeuta como incerteza
presente, em uma tentativa de apagar a arrogância da personagem, ou mesmo
de retirar o que ele demanda durante todo o enredo, ou seja, igualdade. Isso,
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
talvez, encontre justificativa na noção construída no imaginário coletivo de
que um soberano não recebe exigências de um homem comum.
Já a conjugação “fôssemos”, na primeira pessoa do plural no pretérito
imperfeito do subjuntivo (que indica uma condição contrafatual, ou seja, que
não se verifica na realidade, que teria certa consequência, podendo se referir
ao passado, ao presente ou ao futuro) revela que a fala da personagem do
duque é tratada como hipotética, ou mesmo irreal, ou seja, eles nunca seriam
ou serão iguais. Assim, o sujeito tradutor faz emergir o desejo de fortalecer
ou asseverar a posição do nobre que tem sua posição de soberano desafiada,
ou mesmo desacreditada, por um plebeu. Diante isso, o sujeito, na posição de
tradutor, constitui-se pela linguagem como sujeito pós-moderno, clivado e
cindido, durante a tarefa de tradução.
RD 5
BERTIE
I’d be at home with my wife and no-one would give a
damn.
Eu estaria em casa com minha esposa e ninguém se
importaria.
Quanto à escolha tradutória da expressão give a damn traduzida por
“importaria”, reforça o raciocínio exposto em RD 4. Se um homem comum não
pode demandar nada de um nobre, tampouco é apropriado que um príncipe,
cujo pai é o representante maior da igreja anglicana, use uma expressão que
remete a uma blasfêmia religiosa (maldição, danação). Em uma palavra, o
sujeito, na função de tradutor, exclui um plebeu do jogo simétrico de
relações de poder e impede que uma palavra mundana seja proferida por um
nobre.
RD 6
LIONEL
You have a bit of temper.
Você é nervoso?
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280
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
Acentuando, ainda mais, a resistência do tradutor aos artifícios da
personagem eloquente do terapeuta, vemos a afirmação you have a bit of a
temper ser traduzido na forma de uma pergunta “você é nervoso?”,
reforçando as duas análises anteriores de que o especialista deve ser submisso
diante de um príncipe, fazendo perguntas pertinentes à área médica e não
lançando afirmações desconcertantes sobre a personalidade do monarca.
No próximo diálogo, uma sessão iniciada no consultório e terminada em
um parque,o príncipe George relata a Lionel Logue uma discussão que teve
com seu irmão David, recém-coroado Rei Eduardo VIII, lamentando sua
incapacidade de revidar verbalmente às provocações do irmão. O príncipe
discorre também sobre a situação amorosa do Rei que planeja casar-se com a
americana Wallis Simpson (futura Duquesa de Windsor), à época duplamente
divorciada, o que comprometeria sua permanência no trono e, possivelmente,
resultaria na coroação do príncipe George, sucessor direto ao trono britânico.
DIÁLOGO 3 Vídeo (tempo 1:02:34 – 1:04:23)
(páginas 56 – 58)
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
Roteiro
What’s wrong? What’s got you so upset?
Logue, you have no idea
My brother is infatuated with a woman who’s been
married twice - and she’s American.
Some of them must be loveable.
She’s asking for a divorce and David is determined to
marry her.
Mrs. Wallis Simpson of Baltimore.
That’s not right. Queen Wallis of Baltimore?
Unthinkable.
Can he do that?
Absolutely not. But he’s going to anyway. All hell’s
broken loose.
Can’t they carry on privately?
If only they would.
Where does that leave you?
I know my place! I’ll do anything within my power to
keep my brother on the throne.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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281
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
Is that serious?
Your place might well be on the throne.
I am not an alternative to my brother.
You can outshine David...
Don’t take liberties! That’s bordering on treason.
I’m just saying you could be King. You could do it!
That is treason!
I’m trying to get you to realize you need not be
governed by fear.
I’ve had enough of this!
What’re you afraid of?
Your poisonous words!
Why’d you show up then?
To take polite elocution lessons so you can chit-chat at
posh tea parties?
Don’t instruct me on my duties! I’m the brother of a
King...the son of a King...
we have a history that goes back untold centuries.
You’re the disappointing son of a Brewer!
A jumped-up jackeroo from the outback! You’re nobody.
These sessions are over!
Vejamos, a seguir, como as falas selecionadas em negrito foram
traduzidas, a fim de observarmos a produção de efeitos de sentido.
RD 7
LIONEL
Where does that leave you?
E qual é o seu papel em tudo isso?
Observa-se que a escolha que o sujeito tradutor encontrou para
traduzir uma sentença relativamente simples (where does that leave you?)
aponta para a possibilidade de o tradutor ser fisgado pela trama do enredo
que ele interpreta e traduz ao mesmo tempo. O tradutor, simultaneamente,
se coloca nas posições de leitor ativo que interpreta, de tradutor que escreve
e de expectador que legenda as falas. Assim, este sujeito cindido e
fragmentado, talvez, perceba na trama um desejo inconsciente da
personagem do terapeuta e o materializa ao traduzir Where does that leave
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282
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
you? por “E qual é o seu papel em tudo isso?”, em que o verbo estático leave,
que denota passividade, é substituído pelo verbo de ação “ser”.
Com tal escolha, há a possibilidade do sujeito tradutor vislumbrar que a
personagem do terapeuta sabe que seu interlocutor, o duque de York,
concebe uma ideia que não consegue admitir, a de querer ser rei e, mais
ainda, a de que esteja tendo um papel determinante nas discussões para que
isso realmente ocorra. Mas, não só o sujeito tradutor percebe o desejo
contido da personagem do soberano, mas também o do terapeuta, que
percebe o que o príncipe, conscientemente, é incapaz de dizer, ou seja,
admitir sua participação velada na possível renúncia de seu irmão.
RD 8
LIONEL
I’m just saying you could be King. You could do it!
Só estou dizendo que pode ser rei. Você consegue.
Da mesma forma que em RD 7, a tradução da fala, quase conseguinte,
dos modais could por “pode”, em lugar de “poderia”, e, logo após, could por
“consegue”, e não por “poderia”, remete a efeitos de sentido de que, ao
retirar a condição subjuntiva, o tradutor faz emergir, no discurso, seu
inconsciente, por meio de uma falha gramatical; não por não saber
diferenciar um modal de outro, mas por já estar constituído pelo discurso que
emerge no dizer das personagens. Em síntese, o terapeuta percebe o que o
príncipe concebe secretamente e o tradutor percebe este desejo no
interstício das falas que traduz. Este raciocínio tem respaldo na reação feroz
do príncipe diante da insinuação do terapeuta de que o trono seja o lugar
legítimo de seu paciente. Diante de tal invasão à sua pessoalidade, o príncipe
humilha impiedosamente Lionel, não o terapeuta, mas o amigo que já se
configurava como tal por já ter sido merecedor de confidências pessoais de
sua família real.
Após esta discussão, o tratamento e a amizade são interrompidos por
algum tempo. Lionel tenta pedir desculpas pelo seu atrevimento, mas George
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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283
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
não o recebe. Após a abdicação de seu irmão, Eduardo VIII, o príncipe se
reconcilia com o terapeuta. O diálogo, a seguir, se passa na Abadia de
Westminster, durante os preparativos para a coroação do príncipe como o Rei
George VI. Contudo, nesta cena, apresenta-se mais um conflito entre ambos,
pois o monarca confronta Lionel pela falta de diploma médico, conforme
informações recebidas do Arcebispo de Canterbury, Cosmo Lang. O futuro rei,
novamente, discute com Lionel.
DIÁLOGO 4 Vídeo (tempo 1:24:05 – 1:28:32)
(páginas 71 – 74)
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
Roteiro
I can’t believe I’m walking on Chaucer and Handel and
Dickens.
Everything all right? Let’s get cracking.
I’m not here to rehearse, Doctor Logue.
True, you never called yourself ‘Doctor’. I did that for
you.
No diploma, no training, no qualifications. Just a great
deal of nerve.
Ah, the star chamber inquisition, is it?
You asked for trust and total equality.
Bertie, I heard you at Wembley, I was there. I heard
you.
My son Laurie said “Do you think you could help that
poor man?”
I replied “If I had the chance”.
What, as a failed actor!?
It’s true, I’m not a doctor, and yes I acted a bit, recited
in pubs and taught elocution in schools. When the Great
War came, our boys were pouring back from the front,
shell-shocked and unable to speak and somebody said,
“Lionel, you’re very good at all this speech stuff. Do you
think you could possibly help these poor buggers”. I did
muscle therapy, exercise, relaxation, but I knew I had
to go deeper. Those poor young blokes had cried out in
fear, and no-one was listening to them. My job was to
give them faith in their voice and let them know that a
friend was listening. That must ring a few bells with
you, Bertie.
You give a very noble account of yourself.
Make inquiries. It’s all true.
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284
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
BERTIE
LIONEL
Inquiries have been made!
You have no idea who I have breathing down my neck.
I vouched for you and you have no credentials.
But lots of success! I can’t show you a certificate - there
was no training then. All I know I know by experience,
and that war was some experience. My plaque says, ‘L.
Logue, Speech Defects’. No Dr., no letters after my
name. Lock me in the Tower.
I would if I could!
On what charge?
Fraud! With war looming, you’ve saddle this nation
with a voiceless King.
Destroyed the happiness of my family... all for the sake
of ensnaring a star patient you knew you couldn’t
possibly assist! It’ll be like mad King George the Third,
there’ll be Mad King George the Stammerer, who let his
people down so badly in their hour of need!
What’re you doing? Get up! You can’t sit there!
Why not? It’s a chair.
No, it’s not, that is Saint Edward’s Chair!
People have carved their initials into it!
That chair is the seat on which every King and Queen
It’s held in place by a large rock!
That is the Stone of Scone, you are trivialising
everything
I don’t care. I don’t care how many Royal arses have
sat in this chair
Listen to me... !
Listen to you?! By what right?
Divine right, if you must! I’m your King!!!
Noooo you’re not! Told me so yourself.
Said you didn’t want it. So why should I waste my time
listening to you?
Because I have a right to be heard!
Heard as what?!
A man! I HAVE A VOICE!!!
Yes you do. You have such perseverance, Bertie, you’re
the bravest man I know.
And you’ll make a bloody good king.
Vejamos, a seguir, como as falas selecionadas em negrito foram
traduzidas, a fim de observarmos a produção de efeitos de sentido.
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
RD 9
BERTIE
You have no idea who I have breathing down my neck.
I vouched for you and you have no credentials.
Você não tem ideia da pressão que suporto. Dei-lhe o
meu aval e você não tem credenciais.
Considerando que a expressão idiomática breathing down my neck
significa pressão exercida, por um superior, sobre alguém inferior, a escolha
tradutória não permite efeitos de sentido similares. Coadunando com as
análises anteriores, este recorte reafirma o raciocínio de que o sujeito
tradutor resiste em posicionar o soberano inferiormente. Assim, prefere uma
tradução mais condizente (Você não tem ideia da pressão que suporto) com a
posição de poder e de autoridade da personagem, capaz de suportar pressão
advinda da grande responsabilidade que carrega.
Da mesma maneira, ao preferir traduzir I vouched for you por “Dei-lhe
o meu aval”, o sujeito tradutor parece contrariar sua empreitada de assegurar
a posição de poder do soberano – mesmo em se tratando de um monarca
infantilizado e inseguro –, pois “dar aval” remete a um ato corriqueiro, do
cotidiano de homens comuns e não de homens nobres. Já voucher for you
pressupõe a necessidade de um estar em posição superior a de um outro,
neste caso, o soberano, em condições de proteger o homem comum, lançando
mão de sua posição de poder. Esta escolha tradutória sugere um possível
deslize de sentido do tradutor, cuja posição sujeito já se encontra
multifacetada pelas condições de produção em relação ao enredo, à tradução,
aos personagens e à atuação dos atores. Neste enunciado, George se
apresenta consciente de seu poder, declarando que Lionel estava sob sua
proteção.
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286
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
RD 10
BERTIE
With war looming, you’ve saddle this nation with a
voiceless King.
Com guerra iminente, você selou esta nação sem a voz
do rei.
Contudo, logo a seguir, o sujeito tradutor retoma a tentativa de colocar
a personagem do príncipe em posição de superioridade, responsabilizando o
terapeuta por agir sem a autorização do rei (sem a voz do rei), o que
contradiz a fala original do monarca que se reconhece inferior por não ter voz
(a voiceless king). Assim, o sujeito tradutor tenta novamente amenizar a
figura de um monarca sem poder e sem autoridade.
RD 11
LIONEL
I don’t care. I don’t care how many Royal arses have
sat in this chair.
Não me importa quantos traseiros reais sentaram-se
aqui.
Por fim, ao traduzir a palavra arses por “traseiros” observa-se o
conceito doublebinding, da teoria de Derrida, que reflete o dilema do
tradutor em escolher por duas possibilidades cujos sentidos são distintos ou,
por vezes, contraditórios, por exemplo, pharmacón pode ser traduzido por
remédio ou por veneno. Neste recorte, o sujeito tradutor parece incapaz de
conceber que qualquer referência a ilustres soberanos possa estar aliada ao
adjetivo “jumentos” e, por isso, prefere o substantivo “traseiros”.
Ressaltamos que tanto as palavras ass, asses, arse ou arses podem ser
traduzidas como “traseiro(s)”, “asno(s)” ou “jumento(s)”.
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Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
4. Conclusão
A partir do dispositivo analítico, pudemos confirmar nossa hipótese,
observando que o sujeito tradutor faz emergir, esporadicamente, em seu
discurso, nuances do imaginário coletivo. Vimos, também, os desafios da
tradução no que se refere às escolhas lexicais. Considerando a “imperfeição”
das línguas, haverá sempre a falta de algo que será encontrado em outra
língua, pois mesmo diferentes, as línguas se misturam umas as outras.
Contudo, a junção de todas as línguas é impossível e a completude definitiva
nunca será possível – mito da Torre de Babel: a língua pura. Freud, ao longo
de sua obra, ensina que quando se consegue interpretar algo que veio à tona é
tradução e não interpretação.
Finalizamos, ressaltando que não objetivávamos uma verificação da
qualidade da tradução e, sim, a reflexão de como o embate das relações de
poder ocorreriam durante o ato tradutório. Há que se pensar que o texto está
sempre à espera do tradutor, pois o ato tradutório faz emergir aspectos do
texto que ficaram imperceptíveis na língua de origem; só a tradução traz o
acontecimento linguístico que não se reduz a simples transmissão de um texto
de uma língua para a outra.
5. Referências bibliográficas
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas: As Não–Coincidências do Dizer. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1998.
CORACINI, M.J.R.F. Análise de Discurso: em Busca de uma Metodologia.
D.E.L.T.A. São Paulo, Associação Brasileira de Lingüística, 1991. vol.
7, n. 1, p. 333-355.
CORACINI, M.J.R.F. A Celebração do Outro: Arquivo. Memória e Identidade:
Línguas (Materna e Estrangeira), Plurilingüismo e Tradução.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007.
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288
Trifanovas, T. R. – O discurso do rei: tradução e poder
FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. 7ª ed, 1ª reimpressão.Tradução de Luiz
F. B. Neves. Rio de Janeiro, RJ: Editora Forense Universitária, 2005
[1969].
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. 5ª ed. Rio de
Janeiro, RJ:Edições Graal, 1984 [1976].
ORLANDI, E.P. Análise de Discurso – Princípios e Procedimentos. 3ª ed.
Campinas, SP: Pontes, 2001.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 265-288
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Video game localization: the case of
Brazil
Ricardo Vinicius Ferraz de Souza*
Abstract: When the first video games appeared back in the 1950's, they presented
themselves as a technology with great potential and a bright future. What not many
people expected is that, nearly half a century later, video games would become a
multibillion dollar industry, rivaling other important industries of the entertainment
world such as the film and the music industries in terms of revenue and popularity.
With the growing expansion of the sector, combined with the necessity of making
their games global, many developers and publishers are increasingly investing in
translation and localization. This paper gives an overview on the relation between
video games and translation at different stages of the development and evolution of
the industry. It also addresses, through the analyses of a number of games, the
different stages of video game localization in Brazil, with its particularities and
idiosyncrasies. The analysis is based on the concept of “gameplay experience” by
Mangiron and O’Hagan, in addition to making use of other principles presented by
Bernal Merino, Scholand and Dietz. It also focuses on the historical development of
video games in Brazil and the way translation is utilized and displayed on the screen
from the perspective of a video game player.
Keywords: Video Games; translation; localization; video game localization in Brazil.
Resumo: Quando os primeiros videogames apareceram na década de 1950, eles se
apresentaram como uma tecnologia de grande potencial e com um futuro promissor.
O que muitos não esperavam é que, cerca de meio século depois, o videogame se
tornaria uma indústria multibilionária, rivalizando com outras indústrias importantes
do mundo do entretenimento em termos de faturamento e popularidade, tais como
as indústrias do cinema e da música. Com a crescente expansão do setor, aliada à
necessidade de internacionalizar seus jogos, muitas desenvolvedoras e editoras estão
*
Master’s degree student in Translation Studies at the University of São Paulo (USP), Brazil.
Email: [email protected].
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investindo cada vez mais em tradução e localização. Este artigo visou traçar um
panorama acerca da relação entre videogames e tradução ao longo dos diferentes
estágios de desenvolvimento e evolução da indústria e também abordou, por meio da
análise de alguns jogos, os diferentes estágios da localização de jogos no Brasil, com
todas as suas particularidades e idiossincrasias. A análise se baseou no conceito de
“experiência de jogabilidade” de Mangiron e O’Hagan, além de fazer uso de outros
princípios apresentados por Bernal Merino, Scholand e Dietz; também focou o
desenvolvimento histórico dos videogames no Brasil e a maneira como a tradução é
utilizada e exibida na tela sob o ponto de vista de um jogador de videogames.
Palavras-chave: Videogames; tradução; localização; localização de jogos no Brasil.
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
1. Introduction
"After the end of World War II, the world was split into two - East and
West. This marked the beginning of the era called the Cold War."
The sentence above, taken from the game Metal Gear Solid 3: Snake
Eater (Konami, 2004), accurately portrays the international context of most of
the second half of the twentieth century. After the end of the Second World
War in 1945, the world witnessed the rise of two superpowers which would
exert a huge influence in the postwar world: the United States and the Soviet
Union. Due to their enormous political, economic, and especially military
power, they divided the world into two political systems (capitalism and
communism) and split it into zones of influence, often giving other countries
little choice but to align themselves to one of the superpowers. On account of
the existing antagonism between capitalism and communism, the relations
between both blocs were usually conflictive, but always treated with extreme
caution. In fact, the Cold War was marked by a constant state of fear, as a
result of the mutual concern that a single "misstep" could lead to a nuclear
war between the USA and the USSR, which, in practical terms, could mean the
total annihilation of the world. For this reason, most of their clashes were
waged in the political and strategic spheres: while attempting to attract more
countries to their sphere of influence, the USA and the USSR were conducting
research so as to develop new technologies that could help them not only to
enhance their weapons (giving them a bigger and more devastating
firepower), but also to enable them to predict or anticipate the opponent's
possible next moves, providing them time to outline the best strategy for a
more effective response. And it was precisely this technology which
eventually gave birth to an industry that would forever change the
entertainment world: video games.
In 1958, during the preparations for the annual visitor's day at
Brookhaven
National
Laboratory,
the
American
scientist
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 289-326
http://tradterm.vitis.uspnet.usp.br
William
A.
292
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Higinbotham was thinking of alternatives of how to make the visits to
Brookhaven more pleasant for the public. After thoroughly examining the
instruction manual for one of the analog computers, he realized that the very
same technology used to calculate and simulate the trajectory of missiles or
bullets could also be utilized to create some sort of interactive game, capable
of entertaining the public during the visit (LAMBERT 2008; NOWAK 2008). With
the help of the engineer Robert Dvorak, Higinbotham managed to project on
the oscilloscope an interactive experience which simulated a tennis game
with a lateral perspective, and which allowed players to control the
movement of the ball through two control boxes connected to the analog
computer (LAMBERT 2008; NOWAK 2008). On October 18, Higinbotham
introduced the public to Tennis For Two, which is considered by many as the
first video game in history2 (LAMBERT 2008; NOWAK 2008). Four years later, in
1962, Steve Russell and his staff at the Massachusetts Institute of Technology
presented Spacewar!, a game which simulated a battle between two
spaceships while traveling in outer space. Unlike Tennis For Two, Spacewar!
was far beyond a mere pastime for visitors to a laboratory. Actually,
Spacewar!
was
a
revolutionary
game
inasmuch
as,
in
addition
to
demonstrating the potential of the video game technology (BERNAL MERINO
2006), it would introduce and establish some of the canons which can still be
observed in modern video gaming (BARTON & LOGUIDICE 2009b). Nonetheless,
video games would have to wait for a decade to leave the laboratories and
reach the masses. Pong (ATARI 1972) is commonly seen as the first game to be
directed to a broader audience. The game had a concept which combined
simplicity and fun, and its commands were easy to learn, which meant that
everyone was able to play it without major complications. Thus, with a
formula intended to make the player's task as easy as possible, Pong soon
2
The question regarding which is the first video game in history is quite controversial.
Notwithstanding, although there are claims that other games came before Tennis For Two, it
is commonly believed that "Higinbotham's design was the first to feature moving graphics, or
video, and incorporate what would become the three essentials of a video game: a computer
connected to a graphical display and handheld controller" (NOWAK 2008).
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293
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
became a resounding success, which is why the game is usually considered to
be that which turned video games from a laboratory experience into a
promising industry (DISCOVERY CHANNEL 2007). In the following years, although
Pong's formula was exhaustively copied, some developers were working on
new ideas which could help them perfect it. In this regard, games like Space
Invaders (TAITO 1978), Pac-Man (NAMCO 1980), and Donkey Kong (NINTENDO
1981) were of fundamental importance, not only to help to place Japan at the
forefront of the video game industry (along with the United States), but
especially to move away from the prevailing paradigm at the time and
introduce innovative ideas. By introducing charismatic characters, more
interesting narrative elements, and more compelling soundtracks and effects,
these games planted the seeds that would contribute decisively to shaping
video games as we know them today. The result of this process can be better
observed in Super Mario Bros. (NINTENDO 1985). The charismatic Mario (from
Donkey Kong) was back to save the princess; but this time, in a totally
different way. As a matter of fact, the player was introduced to an innovative
style of game to which he/she was not accustomed to up until then. The
player was no longer confined to a fixed screen, and could now explore the
environment by advancing from the left to the right of the screen, with the
world being unveiled as he/she progressed (DISCOVERY CHANNEL 2007). The
physiognomy of the characters also improved and seemed more convincing
than in previous years. And the scenery and enemies were more diversified,
providing a more challenging, varied and fun game experience, turning the
"simple" task of saving the princess into an epic journey, full of dangers and
adventures. All this, enriched by a striking soundtrack, made Super Mario
Bros. a huge success worldwide, and contributed to make Nintendo into the
leading company on the video game market. From then on, it was noticed
that the concept of simplicity popularized by Pong no longer sufficed to make
a game attractive; it was necessary to combine technological evolution with a
good story and a more balanced level of difficulty. This perception was
accentuated during the late 1980's and early 1990's, when Nintendo began to
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
have the competition of Sega in an intense dispute for the hegemony of the
video game market. On account of the fierce competition, both companies
were obliged to search for alternatives to make their products more
interesting, which caused the quality of their games to rise considerably.
However, video games were still seen as "children's stuff" and many did not
take them seriously. But that would change in 1994, when an "intruder" in the
dispute between Sega and Nintendo would take the decisive step to lead the
industry to a new level. After all, the technological and conceptual
innovations introduced by Sony Playstation allowed a much more mature
approach. With more storage capacity provided by CDs (in comparison to the
traditional cartridges) and the possibility of inserting more realistic graphics,
the games became more sophisticated and compelling. Narratives became
much richer and denser, approximating them even more to those seen in the
movies or in the literature. Games like Resident Evil (CAPCOM 1996), Final
Fantasy VII (SQUARE 1997) and Metal Gear Solid (KONAMI 1998) are considered
true masterpieces, among other reasons, for dealing with the narrative from a
much more adult and profound perspective, causing the bond between the
player and the game to be no longer just visual, but also emotional. Thus, it
can be said that it was in the Playstation era that video games reached their
point of maturity, when they were finally able to break away from the label
of "children’s toy" to become established as a serious and professional
industry. Nowadays, video games are one of the most powerful and profitable
industries in the entertainment world. It is also one of the fastest growing
worldwide: with the increase in the number of platforms available and with a
wide range of games of the most varied kinds, genres and levels of
complexity, video games have gained an increasingly larger and more diverse
consumer audience. Estimates project that the video game industry sales
might reach an annual growth rate of 18.7 percent, with a potential global
revenue of US$ 64.9 billion by 2013 (UOL JOGOS 2010). By maintaining this
pace, video games have what it takes to become consolidated not only as a
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
global and multibillion industry but also as one of the leading forms of
entertainment in the twenty-first century.
2. The History of Video Game Localization
In the first decade of the existence of video games, the role played by
video game localization was practically null. This is probably due to the
technological limitations of the time. During these years, the technology,
although promising, was still in its infancy, which frustrated any attempt to
develop something more complex. For this reason, the games often presented
very simple mechanics and somewhat rustic graphics. The scarcity of in-game
linguistic content also caused video game localization to be put on the
backburner; for developers, their primary concern was to invest their time,
effort and money in improving the technology. Yet this scenario began to
change from the mid-1980's. Encouraged by the success of Super Mario Bros.
and the positive impact that it had on the sales of the Nintendo
Entertainment System (NES), many Japanese companies saw in the video
game localization a chance to expand their business into other markets,
especially that of North America. With an increasing amount of in-game
linguistic content, a good number of the games to be released thereafter
would be available in a Japanese version, aimed at the local audience, and a
localized English version, destined for the North American and international
audience. But not all was a bed of roses: this time it was the localization
process which proved too primitive. Many companies used non-native
translators, whose knowledge both of English and of translation techniques
and theory was quite limited. Some translations were so “unique” that they
ended up becoming hilarious. This was the birth of Engrish, the name whereby
this "process of localization" is known today, and which immortalized
sentences like "Congraturation. This story is happy end. Thank you" (Ghosts 'n
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Goblins, CAPCOM 1986) or "A winner is you" (Pro Wrestling, NINTENDO 1986). This
kind of practice gradually ended, especially during the transition from the 8bit to the 16-bit era in the early 1990's. The industry began to have a wider
perception of the importance of video game localization, which consequently
improved the quality of the translations (ACTIVE GAMING MEDIA 2010). This period
also marked the end of "bilingualism" in the consoles: many games, in
particular those with a bigger popular appeal and/or sales potential, began to
receive versions in other languages (ACTIVE GAMING MEDIA 2010). That was the
case of the Sega Genesis/Mega Drive version of Fifa International Soccer
(ELECTRONIC ARTS 1993), which offered the option of playing the game in
English, French, German or Spanish. Nonetheless, the turning point for video
game localization would only come in the mid-1990's (BERNAL MERINO 2006): as
the games became more complex and presented new features (such as oral
dialogues), the players became far more demanding, obliging companies to
offer not only technological improvements, but also linguistic ones. Thus, if
developers and publishers wanted to make their games global, they would
have to provide an impeccable localization service. Nowadays, video game
localization has become a very professional service, with a very strict process
of quality control. The concept of "localization" goes far beyond a mere
linguistic transfer; it involves a series of other variables like history, culture,
customs, linguistic and numerical conventions (SCHOLAND 2002), in short, all
the local specificities that make a determined geographical region unique in
relation to others. This notion can be better understood by examining the
images below:
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297
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Image 1: Starcraft II: Wings of Liberty
TV commercial (United States).
Image 2: Starcraft II: Wings
of Liberty
TV commercial (Brazil).
These are images from the TV commercials of Starcraft II: Wings of
Liberty (BLIZZARD 2010) in both the American and Brazilian versions. At first
glance, one aspect already stands out: date conventions. In this case, the
date needed to be adapted from the convention used in American English
(mm/dd/yy) to that utilized in Brazilian Portuguese (dd/mm/yy). Another
element of localization found in the images is the presence of the respective
regulatory bodies: the symbol of the American body ESRB3 was replaced by
the Brazilian body DJCTQ4, along with their respective age ratings for both
North American and Brazilian audiences. Finally, the linguistic content was
also localized, with the excerpt All Rights Reserved being translated by its
equivalent in Portuguese Todos os direitos reservados.
Another key point for a successful localization resides in what Mangiron
and O’Hagan call "gameplay experience":
The main priority of game localisation is to preserve the gameplay
experience for the target players, keeping the ‘look and feel’ of the
original. The brief of the localiser is to produce a version that will
allow the players to experience the game as if it were originally
developed in their own language and to provide enjoyment equivalent
to that felt by the players of the original version (MANGIRON & O’HAGAN
2006).
As seen above, the translator’s main goal is to grant gameplay
experience, which causes his/her job to be of fundamental importance for the
success of the localized version. A poor translation might simply ruin
gameplay experience by diverting the player's main focus from the game to
the translation. A good example of this can be seen in Call of Duty: Modern
3
Entertainment Software Rating Board.
Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (Department of Justice,
Rating, Titles and Qualification).
4
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 289-326
http://tradterm.vitis.uspnet.usp.br
298
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Warfare 2 (ACTIVISION/INFINITY WARD 2009) and its respective localization into
Japanese. One of the missions in the game is called No Russian, wherein the
leader of a terrorist group orders his subordinates not to speak Russian. During
the Japanese localization, the sentence was mistranslated as Kill them; They
are Russian (UOL JOGOS 2009). Obviously, Japanese players were very unhappy
about it, with many claiming they would rather buy the original English
version or not buy it at all. Therefore, translators must be extremely careful,
because they are not just translating a language; they are translating
experience (O’HAGAN 2007).
As for the linguistic content, there are also a number of aspects to
consider when localizing a video game. First, translators must know about the
different types of video game genres, insofar as each one of them requires a
different approach. An RPG cannot be translated the same way as an action
game, as each has its own characteristics, idiosyncrasies, and consequently,
its own kind of language. It is also important to be familiar with each game’s
genre terminology and conventions, which may range from literary language
to more technical and specific terms (DIETZ 2007). A different approach is also
required when translating the various kinds of linguistic contents present in a
game. Due to the extensive material to be translated and their distinct
purposes (BERNAL MERINO 2007), different kinds of textual genres must be
applied in the translation: while the dubbing, for example, must serve as a
faithful reproduction of the speech, the User Interface requires a clear and
concise language. One final aspect refers to a very common characteristic of
video game localization: space constraints. As there is a strict limit on the
number of characters to be used, translators must choose words very
carefully, not only to respect space constraints but also to convey and
preserve the idea of the original. In this regard, translators must be very
creative in order to successfully capture the same message from the original,
and, at the same time, not exceed the permitted number of characters.
But most of all, translators must be fully aware of their target
audience. In this regard, Essential Facts About The Computer and Video Game
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 289-326
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299
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Industry shows some interesting facts about the gamers' profile. With
reference to their average age, it shows a very different result from what
many people usually think: 53 percent of the players are in the 18-49 age
group, whereas a significant 29 percent belongs to the 50+ years; the
"children’s age group", namely, that under 18 years old, accounts for only 18
percent of gamers (ESA5 2011: 2). Therefore, translators must always bear in
mind that video game localization is an adult service aimed at an adult
audience, and mistakes like those seen during the Engrish era are no longer
accepted or tolerated.
3. Video Game Localization in Brazil
Although the first games to offer localized content date from the
1980's6, the golden age for video game localization in Brazil is undoubtedly
the early 1990’s. As seen previously, there was fierce competition between
Sega and Nintendo, both seeking to expand their business around the world. In
search for markets unexplored by the rival Nintendo (SUZUKI 2009), Sega signed
a partnership with Brazilian company Tec Toy so as to have its products
commercialized in Brazil. Thus, Sega Master System was officially released in
Brazil in 1989 and was an instant success. This popularity was only possible
thanks to the strategy Tec Toy adopted: besides distributing the games
officially in Brazil, some games came into Brazilian Portuguese in fully
localized versions. Because it is an extremely fruitful period for video game
localization in Brazil, let us examine some of the localized games that were
officially distributed at that time:
5
Entertainment Software Association.
When Odyssey 2 was released in Brazil, Phillips decided to commercialize the games with
their respective titles in Portuguese. Because linguistic content was practically non-existent,
the localization process basically consisted of translating the titles, boxes, manuals and, in
certain cases, the characters.
6
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300
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
 Phantasy Star (SEGA 1987)
Sega’s RPG Phantasy Star, released in Brazil in 1991, is of special
importance to video game localization in Brazil as it was one of the first
console games to be localized into Brazilian Portuguese, which is why many
players say that it was the first game they ever had. As can be inferred,
translation played a key role in the game’s success. Moreover, because RPGs
were still not widely known to the Brazilian audience, the translation, in
addition to being a decisive factor for many players to buy the game, also
helped boost and consolidate RPGs as a genre that should be taken seriously
and which, just like the other genres, could very well provide fun. Finally, as
one of the first games to be localized into Brazilian Portuguese, Phantasy Star
gained attention from the media, and the extensive marketing campaign
adopted by Tec Toy helped popularize the game.
Image 3: Tec Toy's Advertisement for Phantasy Star.
(Source:http://gazetadealgol.com.br/_media/diversos/scans/scanps1_propaganda.jpg)
The advertisement above shows that Tec Toy’s strategy to popularize
the game was exactly to explore the language and the genre issues. The
message in the black box on the right makes it clear:
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301
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
This game lasts for three months, has subtitles in Portuguese and a
villain who thinks you are nothing.
The message tries to emphasize that the player is before something
completely different to everything he/she has ever seen. First, it emphasizes
the duration of the game: RPGs are commonly longer than games from other
genres. Consequently, the player will not come across something that he/she
may play for a week and then simply put it away; he/she will be entertained
for at least three months. Then, the message appeals to something even
stronger: the game has subtitles in Portuguese. This is enough to arouse the
player’s interest in buying the game for a simple reason: most games released
in Brazil at the time came in other languages (especially English). Now,
he/she has the opportunity to fully understand and enjoy a game, since the
reality of the game has been brought within his/her reach. Games are no
longer "outsiders"; now, the game and the player "speak the same language".
The localization of Phantasy Star was indeed a great achievement; but
it also represented a great challenge for the people involved in the
localization process, requiring a good deal of effort and creativity by the
translators ("Gagá" ROB 2009: 27). In effect, the challenges had already begun
when localizing the game from Japanese into English. The process of
localization for the western market had to go through certain adaptations,
which had certain implications for the names of some characters. Due to
technical limitations, the names of the protagonists could not exceed four
characters ("Gagá" ROB 2009: 19); for this reason, Arisa (アリサ), Tairon
(タイロン) and Rutsu (ルツ) became Alis, Odin and Noah respectively. The
only one to keep its original name intact was Myau (ミャウ). One of the
antagonists'
names
has
a
quite
curious
particularity:
Dāku
Farusu
(ダークファルス) is apparently an allusion to the English term Dark Force. The
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302
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
problem is that one of the possible translations of the word Farusu (ファルス)
is Phallus, which, for most people, is not an appropriate name. Luckily, the
name Dark Phallus exceeded the eight character-limit for antagonists' names,
and was renamed as Dark Falz ("GAGÁ" ROB 2009: 19).
The localization of the Portuguese version was probably based on the
English version. Hence, the names of the protagonists, antagonists, other
enemies and locations were unchanged7. On the other hand, the items,
weapons, and magic spells were translated and/or adapted to the appropriate
context. But what most drew the attention of the Brazilian audience was the
translation of the menus and especially the dialogues, which was of great help
for the complete understanding of the plot. Let us now go over some of the
strategies used during Phantasy Star’s localization process.
Image 4: Phantasy Star’s start menu
(English version).
Image 5: Phantasy Star’s start
menu
(Portuguese version).
These are Phantasy Star’s start menus from both English and
Portuguese versions. The first traces of the difficulties faced by the
translators can already be seen here. The commands Start and Continue were
translated as Inicia and Continua respectively. If analyzed by modern
standards and by the way menus are usually translated into Portuguese, the
verbs should be in their infinitive forms Iniciar and Continuar. Probably due to
7
One exception is the planet Dezoris, which was changed by the shortened form Dezóri.
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303
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
space constraints, this was not an option. Another possibility could be to
translate Start as Início. But this was not feasible for two reasons: the first is
the absence of certain accented letters from the Portuguese language (as will
be seen in the next paragraph), such as Í. This could cause some confusion,
since the presence or absence of the acute accent above the I would change
the meaning and the pronunciation of the word: Início [i'nisju] is a noun whose
equivalents in English are Start/Beginning, whereas Inicio [ini'siw] is the first
person singular in the present tense which means I start/I begin; and the
second is that the conversion of Start into the noun Início would imply in the
conversion of Continue into the noun Continuação ("Continuation" in English),
which would cause the word to have three extra characters. For this reason,
the decision to translate Start and Continue as Inicia and Continua (both in
their imperative forms) seemed fortunate, given that the original idea was
successfully preserved.
Image 6: Fragment from
Phantasy Star’s
Intro (English version).
Image 7: Fragment from
Phantasy Star’s
Intro (Portuguese version).
Translation is not the problem here; on the contrary, the sentence is
clear and the original idea was accurately reproduced. What the images show
us is another common challenge faced by Phantasy Star’s translators and by
translators in general during those years: the absence of accented letters
from the Portuguese language. As the game was probably localized based in
the English version, the translators must have been limited to use only the
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304
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
existing characters in the English language. As a result, characters which are
non-existent in English, as is the case of Ç (c-cedilla) or accented vowels,
could not be used. It did not harm the full comprehension of the sentence as
the context helped to elucidate any possible ambiguities. But in a different
context, this could have caused problems, as twelve accented letters are
missing: Á/ À/ Ã/ Â/ É/ Ê/ Í/ Ó/ Ô/ Õ/ Ú/ Ç. And they do not merely alter
pronunciation; in some cases, they may change the meaning of the word.
Take the word Esta as an example: as well as Início and Inicio, the presence
or not of the accent is determinant. In the sentence above, the correct would
be Está [es'ta8], which is the equivalent of is in Portuguese. Without the acute
accent, the word becomes Esta ['εsta9], whose translation would be this.
Thus, if not contextualized, the excerpt Lassic está conduzindo ("Lassic is
leading") would turn into Lassic esta conduzindo ("Lassic this leading"), which
is an ungrammatical construction. The expression a destruicao also highlights
the absence of three other important characters: À, Ã and Ç. With reference
to the latter two, the difference is that of sound. The character à represents
a variant sound of the letter A, whereas A denotes an oral realization which
leads to the phoneme /a/ (except preceding nasalized consonants like m or
n), while à indicates a nasalized sound, represented by the phoneme /ɐ/. C
and Ç also represent two different phonemes: /k/ (preceding a, o and u) and
/s/ (preceding the same previous vowels) respectively. Therefore, by the way
it is written above, the word destruição [destruj'sɐ w10], becomes destruicao
[destruj'kaw], realization not found in any variant of Portuguese. On the other
hand, the character À represents an orthographic difference in relation to A,
as they are both pronounced /a/ (although sometimes À might be pronounced
as a long vowel and A as a short one). This happens because the character A
may refer both to an article and a preposition. In the former case, A refers to
the feminine definite article, whose equivalent in English is the; as for the
8
Other possible realizations of the word "Está" were not considered.
Other possible realizations of the word "Esta" were not considered.
10
Other possible realizations of the word "Destruição" were not considered.
9
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305
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
latter, A denotes a preposition which indicates "direction in space" (MICHAELIS,
1998-2007), having in the preposition to its main equivalent in English. When
both article and preposition need to be used in the same sentence, they
merge into À, in order to avoid repetition. This way, the term a destruição
can only be used if it merely refers to the destruction; if intended to
reproduce the idea to (the) destruction, the correct form would be à
destruição. Thus, the correct form of the sentence would be (including the
missing characters):
Alis, escute! Lassic está conduzindo nosso mundo à destruição!
Although these hurdles may have made the translators’ job more
difficult, they were able to convey the necessary game experience to offer
the player a high degree of entertainment. Actually, Phantasy Star was a
pioneer in Brazil, as it opened a whole new range of opportunities for video
game localization in the country.
 Mônica no Castelo do Dragão (TEC TOY 1991)
While Phantasy Star was basically a "translation", Mônica no Castelo do
Dragão ("Monica in the Dragon’s Castle") contained more elements of
localization. Released in 1991, the game was adapted from Wonder Boy in
Monster Land (SEGA 1988). Although aspects like graphics and gameplay were
kept intact, much of the game was changed. Initially, the protagonist was
changed: a neutral Wonder Boy was replaced by Mônica, a very popular and
charismatic Brazilian comic character. This decision was responsible for
creating a higher level of identification between the player and the game,
given that a cultural element that everyone was familiar with was added to
the plot. The protagonist’s main weapon was also modified not only to adapt
to the Brazilian audience, but also to be coherent with the comics. As anyone
who reads her stories probably knows, Mônica has an inseparable friend:
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306
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Sansão ("Sansom"), her blue stuffed bunny, which she uses not only as a toy,
but also as a way to punish some of her friends, who often torment her.
Consequently, the decision to replace Wonder Boy’s swords (his main
weapons) by Sansão was natural. Another interesting fact concerns the
antagonist. In Wonder Boy in Monster Land, the main antagonist is a dragon
named Meka, while in Mônica no Castelo do Dragão, the same dragon is
renamed to Cospe-Fogo ("Spitfire"). However, he is no longer the main villain,
but a powerful ally of the new antagonist, Capitão Feio ("Captain Ugly"), a
very well-known character in Mônica’s comic stories. Even though Capitão
Feio is presented as the main antagonist, he does not appear in the game,
being just mentioned as the evil mind behind the plot. All of Mônica’s
enemies (even Cospe-Fogo) act on Capitão Feio’s behalf.
Image 8: Wonder Boy in
Monster Land’s
Status Screen.
Image 9: Mônica no Castelo do
Dragão’s
Status Screen.
These are the status screens, which show some of the collectible items
the player can obtain throughout the game, the character’s health
(represented by the word Life) and the amount of money earned (represented
by the word Gold). The latter two were not translated and were kept as it is
in the original. The decision not to translate the word Gold was possibly based
on usage, given that its respective translation Ouro has the same number of
characters. The most used and appropriate word for the case in question
would be Moeda ("Coin"), used in its plural form Moedas. But it would
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307
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
probably stumble on space constraints: Moedas would exceed Gold by two
characters, which, as seen above, was not possible. And because Gold was not
translated, the word Life was not translated either. Although Vida, its
equivalent in Portuguese, has the same number of characters, it might have
caused
some
misunderstandings,
since
Vida
admits
two
different
interpretations: it may refer to the character’s health (as is the case) or to
the number of lives the character is entitled. In regard to the remaining
items, there are certain aspects that should be mentioned. As discussed
previously, the weapons were altered to suit the Brazilian audience. As a
result, a slight change was also necessary on the status screen to make it
consistent with the changes made. Throughout the game, Wonder Boy has to
defeat numerous enemies, including the bosses (the dragon’s henchmen) in
order to advance to the next stage. This also grants him the opportunity to
upgrade his equipment and get stronger weapons. As the weapon changes, it
is displayed on the status screen. As for Mônica, her main weapon is a stuffed
bunny (Sansão), which will follow her during the entire journey, even when
she defeats the bosses and "gains" Wonder Boy’s swords. The solution for this
problem was to apply a level of strength (Fraco/ Médio/ Forte/ Super/ Híper
- Weak/ Average/ Strong/ Super/ Hyper, respectively) to the bunny every
time Mônica defeats a boss and receives a sword. When this takes place, the
bunny’s level of strength increases, allowing Mônica to inflict greater damage
on her enemies. As for the other items, as the character advances in the
game, he/she will face stronger enemies, and, if not well equipped, the
chances of failing are considerable. To solve this problem, the player can visit
the various shops spread around the game to buy items, which are basically
four: armor, shields, boots and magic spells. Each one contributes to
strengthen the character and increase his/her "firepower". As for the
translation, some items were translated literally, but most were changed to
fit Mônica's stories.
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308
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Table 1
Armor/Armadura
Boots/Botas
Wonder Boy
Mônica
Wonder Boy
Mônica
Light Armor
Armadura Simples
Cloth Boots
Botas de Pano
Heavy Armor
Armadura de Bronze
Leather Boots
Botas de Couro
Knight Armor
Armadura Especial
Ceramic Boots
Botas Especiais
Hard Armor
Armadura de Aço
Legend Boots
Botas Mágicas
Legend Armor
Armadura Diamante
Wing Boots
Botas Voadoras
Shields/Escudos
Weapons & Magic Spells/Armas &
Magias
Wonder Boy
Mônica
Wonder Boy
Mônica
Light Shield
Escudo Simples
Bombs
Bombas de Limpeza
Knight Shield
Escudo de Ferro
Tornado
Rodamoinho Mágico
Hard Shield
Escudo de Aço
Fire Ball
Detergente
Legend Shield
Escudo Diamante
Thunder Flash
Raio Limpo
It is possible to observe that the English version privileges the use of
military terms, which approximates Wonder Boy to the Ancient and Middle
Ages, insofar as the name of many items derive from those used by the armies
of those times, especially for armor and shields. In the Portuguese version,
the terms are related to a more imaginary world, which is justifiable given
that Mônica’s stories are directed to children. It becomes evident when we
compare some of the terms. For example, the term Light Armor became
Armadura Simples ("Simple Armor") in the Portuguese version. Light Armor is
a very specific term, used to identify the kind of armor worn by a light
infantryman. The same applies to Heavy Armor and Knight Armor, which
refers to the equipment utilized by soldiers belonging to the heavy infantry
and cavalry respectively. In the Portuguese version, these terms were
"neutralized", giving preference to the kind of material with which the
equipment was made, as is the case of Armadura de Bronze ("Bronze Armor"),
Armadura de Aço ("Steel Armor"), Escudo de Ferro ("Iron Shield") and Escudo
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309
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
de Aço ("Steel Shield"). In contrast, there are various terms in the Portuguese
version that suggest a world of magic and dreams, commonly seen in fantasy
literature. As an example, we can take the terms Ceramic Boots and Legend
Boots. In the former case, it was chosen not to translate it literally, changing
Botas de Cerâmica into Botas Especiais ("Special Boots"). The substitution of
the English word Ceramic by the Portuguese word Especial gave a more
abstract sense to the boots, which can also be linked to the world of fantasy.
The same occurs with regard to Legend Boots. Although the word Legend may
refer to something imaginary, it may also refer to something or someone real.
For example, one can say that Pelé is a soccer legend; we are not talking
about an imaginary person but a real one. Thus, it was decided to replace
Botas Lendárias (the equivalent in Portuguese of Legend Boots) by Botas
Mágicas ("Magic Boots"), which suppressed any element of "reality", giving the
term a more imaginary sense. Finally, let us focus on the weapons and magic
spells. It is important to recall that Mônica’s main antagonist in the game is
Capitão Feio, a character who is marked by his relation to dirt and filth. For
this reason, Mônica must have tools which are capable of countering his "dirty
powers". This led to some sort of adaptation of the names of her weapons and
magic spells, which were renamed so as to make them verisimilar to Mônica
and Capitão Feio’s stories. Therefore, Bombs became Bombas de Limpeza
("Cleanliness Bombs"), Fire Ball turned into Detergente ("Detergent"), and
Thunder Flash was changed into Raio Limpo ("Clean Thunderbolt"). The only
term that did not follow the pattern above is Tornado, which was translated
as Rodamoinho Mágico ("Magic Whirlwind").
One last aspect about Mônica no Castelo do Dragão can be seen in the
images below:
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310
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Image 10: One of the item shops in
Wonder Boy in Monster Land.
Image 11: One of the item
shops in
Mônica no Castelo do Dragão.
Although the game was very well translated, an important detail cannot
go unnoticed: the absence of one letter can change the entire meaning of a
sentence. As seen above, the sentence Come Again With Some Money was
translated as Vote Quando Tiver Algum Ouro. The problem resides in the
translation of the excerpt Come Again: the literal translation would be Venha
Novamente, which was obviously rejected due to the excessive number of
characters. The solution for this problem was to use the verb Voltar ("To
Come Back") in its imperative form Volte. But the letter L was not inserted in
the word, turning Volte ['vɔwtʃi11] into Vote ['vɔtʃi12]. What occurs is that Vote
is the imperative form of the verb Votar ("To Vote"). Hence, instead of Volte
Quando Tiver Algum Ouro ("Come Back When You Have Some Gold") the
sentence became Vote Quando Tiver Algum Ouro ("Vote When You Have Some
Gold"). And, even though the context prevents any kind of misinterpretation
(this sentence only appears when the player has no money to buy the items),
this could have caused problems, since Vote Quando Tiver Algum Ouro could
indicate some kind of obscure political relationship or something of that sort.
Therefore, it is extremely important to be attentive to all the details that
touch on the translation process, in order to prevent something like this from
happening.
11
12
Other possible realizations of the word "Volte" were not considered.
Other possible realizations of the word "Vote" were not considered.
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311
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Even with all the problems and limitations, the early 1990’s was the
most productive period for video game localization in Brazil. Sega Master
System and its successor Sega Genesis/Mega Drive were extremely successful
in Brazil, although the latter had to compete with the Super Nintendo
Entertainment System (SNES). And the next generation of consoles was on the
verge of being released. There was great expectation and all the predictions
were the most optimistic possible. However, as we all know, things change.
After Sony Playstation's release, the video game sector in Brazil went
through an intense downturn, exposing two problems that have plagued the
local market and which contributed decisively to its marginalization: piracy
and the tax burden. Piracy has always been a problem in Brazil, but from the
mid-1990’s it grew enormously. With the transition from cartridges to CDs,
the cost of manufacturing and large-scale production of pirated games fell
dramatically, causing a boost in piracy and discouraging many companies from
investing in Brazil. It even caused a curious situation: despite having never
released Playstation officially in the country, Sony became the absolute
leader in the Brazilian market. Due to the lack of the official products in the
country, whoever wanted to buy the original console and/or games had to
import them. However, for a game or console to be legally imported in Brazil,
the importer had to pay an array of taxes, whose total could inflate the final
price of a game by up to 80 percent, or, in the case of the consoles, by more
than 100 percent (EDGE 2010). It obviously caused a serious damage to the
Brazilian market, and, the consequences for video game localization were
inevitable: the number of games localized into Brazilian Portuguese declined
considerably, and finding them was not an easy task, especially in the
consoles. Not all was lost, though. It can be said that PC games were the
responsible for the "survival" of video game localization in Brazil. Even though
piracy also affected them, the tax burden was somewhat lower than in the
consoles, which allowed more competitive prices and reasonable sales
numbers. For this reason, some multiplatform games had their PC versions
localized into Portuguese and were officially marketed in Brazil.
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312
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
 Max Payne (REMEDY ENTERTAINMENT /3DREALMS/GATHERING OF
DEVELOPERS 2001)
Distributed and marketed in Brazil by Greenleaf, Max Payne was
released in Brazil in December, 2001, in a version fully adapted to the
Brazilian audience. Due to the technological advances, Max Payne's process of
localization may be considered a bit less "thorny" than Phantasy Star's. It
already becomes evident when examining the installation menu:
Table 2
Installation Menu
Menu de Instalação
Play
Jogar
Uninstall
Desinstalar
Re-install Max Payne
Re-instalar Max Payne
View Readme
Ver o Leia-me
Max-Fx Tools
Ferramentas Max-Fx
About
Sobre
Browse CD Contents
Pesquisar o Conteúdo do CD
Exit
Sair
Here, the menu is much more adjusted to the linguistic conventions of
the Portuguese language, insofar as the prevalence of infinitive verbs denotes
a much more natural way of reproducing a menu in Portuguese. The alphabet
was also completely adapted to the reality of the language, enabling the use
of all of its characters, even those which were absent in Phantasy Star. This is
what allowed the term Options to be translated into its equivalent Opções
[op'sõjs13], instead of the non-existent Opcoes [op'koes]. Another important
aspect is that, when compared to past generations, space constraints became
a bit more "generous". This "flexibility" made possible the employment of
13
Other possible realizations of the word "Opções" were not considered.
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313
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
more refined sentences, ensuring a greater fidelity to the original text. The
main example in this regard is the sentence Browse CD Contents, translated
as Pesquisar o Conteúdo do CD, construction which used twenty-six characters
(with spaces), something unthinkable in previous generations and considered
high even by modern standards.
With reference to the audiovisual content, both dubbing and subtitling
were present in the game: in-game dialogues were dubbed, whereas the
cutscenes (presented as parts of a graphic novel) were both dubbed and
subtitled. The subtitling did not show changes in respect to the dubbing,
serving as a faithful reproduction of what was being said. For its part, the
dubbing of the in-game dialogues fulfills its role, with a special emphasis on
the performance of the protagonist (carried out by Brazilian actor Mauro
Castro). But one detail attracts attention: the constant use of the ênclise
pronominal ("pronominal enclisis"), particularly in imperative affirmative
sentences. Before analyzing the linguistic issues in the game, it is important
to examine this aspect of the Portuguese language. The term ênclise
pronominal is defined as:
The placement of the personal object pronoun after the verb
(MICHAELIS 1998-2007).
Normative grammar says that it is incorrect to start a sentence with an
object pronoun. In these situations, the use of the enclisis is required,
inasmuch as the sentences must always obey the sequence "Verb + Object
Pronoun". Thus, constructions like Tell me are supposed to be translated as
Diz(e)-me/Diga-me instead of Me diz/Me diga. Normative grammar also
establishes that a verb in its imperative form must never be followed by a
subject pronoun. For this reason, constructions like Pega-o/Pegue-o ("Get
him") would be considered perfect examples of the application of this rule,
whereas Pega ele/Pegue ele (literally "Get he") would be considered
ungrammatical. But grammar is not the only element that constitutes a
language; usage (particularly in speech) is another important factor that
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314
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
cannot be disregarded. In speech, the use of the above rules is different in
the European and Brazilian variants of Portuguese: the former tends to follow
these rules, privileging the use of the enclisis and the use of object pronouns
after imperative verbs, whereas the latter prefers the proclisis (object
pronouns placed before the verbs) and the use of subject pronouns after
imperative verbs. While the constructions Me diz/Me diga and Pega ele/Pegue
ele might sound odd and incorrect in Portugal, they are common in Brazil. And
although normative grammar is usually respected in formal writing, it is quite
rare to observe it in the everyday speech in Brazilian Portuguese, even among
educated speakers. Thus, it can be said that there are two distinct educated
standards in Brazilian Portuguese: an educated written standard, which must
strictly follow the normative grammar, and an educated spoken standard,
more informal, flexible and dynamic than the written standard.
That said, let us now go over the linguistic issues observed in the game.
Throughout the game, Max Payne tries to find out everything he can about a
new drug called Valkyr. During his investigations, he runs into a large number
of enemies, who will do what they can to stop him. When they notice Max
Payne's presence, they utter sentences like Mate-o ("Kill him"), Acerte-o ("Hit
him"), Pegue-o ("Get him"), and Derrube-o ("Knock him down"). These
sentences are totally in accordance with normative grammar. However, the
use of the enclisis is more common in written language, being rarely seen in
spoken language. Consequently, its use would be more appropriate in
subtitling, since it is the audiovisual resource which usually follows the
educated written standard. As they were used in the dubbing, the above
sentences were perfectly comprehensible, but they sounded too formal for
the spoken language. Another interesting point is that, regardless of the large
use of the enclisis throughout the game, some "proclitic islands" can be
observed amid the vast "enclitic sea". It can be seen more clearly in the
prologue of Chapter III: A Bit Closer To Heaven, wherein Max Payne gets
beaten and injected with an overdose of Valkyr by a group of enemies under
the orders of Nicole Horne, president of Aesir (the company responsible for
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315
Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
the production of the drug). The cutscene is divided in three illustrations,
placed in chronological order from the left to the right. The sentences below
belong to the first and second illustrations:
Table 3
First Illustration: Nicole Horne, right after her henchman applied the overdose on
Max Payne
English:
Gentleman, we are done here. Take me to Cold Steel.
Portuguese: Cavalheiros, terminamos aqui. Levem-me para Cold Steel.
Table 4
Second Illustration: Max Payne describing the effects that Valkyr was having on
him
They turned to steam. They did a fade on me. I had never had a
English:
chance.
Eles se transformaram em vapor. Me apagaram. Em nenhum
Portuguese: momento tive chance
In the first illustration, the expression Take me was translated as
Levem-me, in total conformity with normative grammar. Although the
proclisis is more used in spoken language, the use of the enclisis follows the
pattern adopted during the entire game. On the other hand, the second
illustration shows exactly the opposite: They did a fade on me was translated
as Me apagaram (literally "Blacked me out"), countering everything that had
been done thus far. In this case, the use of the proclisis is "forbidden" by
normative grammar, which indicates two options to solve the "problem": a.) to
include a subject pronoun in the beginning of the sentence, changing Me
apagaram into Eles me apagaram, in which Eles is the equivalent in
Portuguese of They; b.) to use the enclitic construction Apagaram-me. Eles
me apagaram would sound a little strange, for the subject pronoun Eles might
give an idea that a group of people (and not the agents of the drug) were the
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
responsible for him to lose consciousness. And if the context points to a group
of people as the perpetrators of the action, the meaning of the sentence
would also change, given that, aside from the idea of "To Lose Consciousness",
the verb Apagar (particularly if preceded by a subject pronoun) may also
mean "To Kill" in colloquial Brazilian Portuguese. As for the enclisis, its use
would be more comprehensible, not as it is the best option, but as a matter of
textual coherence: even though the use of the proclisis makes the sentence
more natural, the enclisis was used during the entire game, resulting in its use
in this case to be more coherent to the whole.
One last aspect to consider regards the presence of in-game graphic
arts. In Max Payne’s localization process, it was decided not to translate
(except during the cutscenes) the linguistic elements present in in-game
signs, posters, drawings, etc. Considering that the game takes place in New
York City, this was a correct decision, since all the environment of the city
was preserved: not only is the city cited during the entire game, but other
elements like the incessant snow and the harsh winter give a quite different
sense of reality from that of living in Brazil, where most people live in a warm
climate. Even so, the translator must always be attentive to one question: can
the lack of translation affect gameplay? In Max Payne’s case, in ninety-nine
percent of the game it did not. In one section of the game, though, it might
cause some problems. In Part II: A Cold Day in Hell, Chapter II: An Offer You
Can’t Refuse, Max Payne is in search of the cargo ship Charon. During the
mission, he comes across a drawbridge, which had been lifted by the enemies
to block his way through. When looking for an alternative route, he finds a
fence (also blocking his way) and a truck parked on the other side. That is
when the problem comes up. Apparently blocked on all sides, the player
starts going back and forth in search for alternatives on how to overcome this
hurdle. After some time without finding any solution, he/she feels stuck and
does not know what to do. More attentive players will probably notice the
existence of a poster near the fence, which supposedly provides the necessary
instructions to go on. The poster displays the sentence Caution! Use wheel
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
blocks when parking in this area. Right below it, there is a drawing of a wheel
block protecting the truck from moving. At first glance, the non-translation of
the message does not make much difference, insofar as the drawing solves all
the problems, by showing the player that he/she has to shoot the wheel block
in order to cause the truck to move and unblock the passage near the
drawbridge. However, the simple fact that the message in the poster is in a
foreign language makes most players ignore it and turn their attention to
solving their most urgent problem, which is to find a way through; and as they
cannot, they get really frustrated. Here, the interference that the nontranslation causes in gameplay is evident. It is true that keeping the sentences
in English was a correct decision to recreate the environment of New York
City. But, in this specific case, the translation of this poster could have
avoided the annoyance many players eventually had.
The aforementioned issues did not take the shine away from the
Portuguese version of Max Payne; on the contrary, the game is regarded by
many as the best localized game ever to be sold in Brazil. Nonetheless, the
game was just a sporadic attempt amid the unfortunate reality experienced
by the Brazilian market during those years. Notwithstanding, new winds would
blow and start changing once again the course of video games in Brazil.
The 2000's (in particular the second half of the decade) saw great
changes in Brazil. With the economic growth and the consequent increase in
the purchasing power of Brazilians, the country began to position itself on the
international scene as an emerging superpower, which aroused the interest of
many foreign companies that viewed Brazil as a potential market with great
prospects for expansion. The video game market was no different: despite all
the problems described in the previous paragraph, the local market was
reinvigorated by the official arrival of many video game giants like Microsoft,
Sony, Ubisoft, Blizzard among others, all of which officially released their
consoles and/or games in Brazil. As a result, the impact on video game
localization was considerable, with the gradual growth in the number of
games localized into Brazilian Portuguese. Another important point is that
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
since Level Up released a localized version of Ragnarök Online (GRAVITY 2002)
in 2004, an increasing number of MMO14 games have been appearing in Brazil
in completely localized versions in Brazilian Portuguese and directed to the
needs of the local audience. This demonstrates that, even with all the
difficulties, the video game sector is slowly getting back on track, revealing
all its potential and capability of returning to its days of glory and becoming
consolidated as one of the key markets in the video game industry.
 Pro Evolution Soccer 2009 (KONAMI 2008)
As it is a simulator of the most popular sport in Brazil, Pro Evolution
Soccer is one of the best loved series with Brazilian gamers, which has
certainly contributed to make it one of the top selling games in the country.
In this regard, Pro Evolution Soccer 2009 (commonly abbreviated as PES 2009)
is of fundamental importance as it is the first edition of the game to offer
Portuguese (European) as one of the languages available, along with English,
French and Spanish. But, perhaps due to the fact that it was being used for
the first time, the Portuguese version had some important differences in
relation to the other three languages.
A first point to be observed is that the Portuguese version received just
a partial localization. Unlike the English, French and Spanish versions, where
both in-game texts and audio were localized, the Portuguese version only
featured the translation of the former. Any player wanting to play the game
in Portuguese would have to be contented with just the in-game texts; the
audio would have obligatorily to be in English, French or Spanish. The partial
localization also affected the names of the countries. For some unknown
reason, they were not translated, not only into Portuguese, but neither into
Spanish or French. In an exhibition game between Germany and Switzerland,
for example, the screen will always display the English terms Germany and
Switzerland, regardless of the language that the player has selected. This
14
Massive Multiplayer Online.
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
ends up being frustrating, seeing that when the player chooses to play the
game in one language, he/she expects to enjoy everything the game has to
offer in that language. The impossibility of doing so will possibly decrease the
level of identification the player can create with the game, causing a
sensation of "incompleteness". As a result, gameplay experience will be fatally
compromised, for not entirely conveying in the localized version the same
experience as the original.
On the other hand, the absence of the audio made the translation
process much simpler. Although the European variant was taken as a
reference, the fact that it was basically an orthographic translation made, in
a way, the version very accessible for both Brazilian and Portuguese
audiences. Even though some lexical choices may sound somewhat strange to
Brazilians - as is the case of the word Ecrã ("Screen"), whose equivalent in
Brazil is Tela -, the translation as a whole was very clear and objective,
regardless of the variant. By looking at the main menu, this becomes evident:
Table 5
Main Menu
English
Portuguese
French
Spanish
Uefa Champions
Uefa Champions
League
League
League
Exhibition
Exhibition
Exhibition
Exhibición
Become a Legend
Rumo ao
Vers une Légende
Ser uma Leyenda
Master League
Estrelato
Ligue des Masters
Liga Master
League - Cup
Liga Master
Ligue - Coupe
Liga - Copa
Network
Liga - Taça
Réseau
Red
Legend
Network
Légendes
Leyendas
Messages
Estrelas
Messages
Mensajes
Training
Mensagens
Entrainement
Entrenamiento
Edit
Treinos
Modifier
Editar
Gallery
Editar
Mode Galerie
Galería
System Settings
Galeria
Réglages Systéme
Ajuste de Sistema
Uefa Champions League Uefa Champions
Definições de
Sistema
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
From the twelve terms from the Main Menu, eight were fully translated
into Portuguese, one was partially translated (Master League became Liga
Master), whereas the three remaining options (Uefa Champions League,
Exhibition and Network) were not changed. With respect to the partial
translation, the term Master League has been in use in the series for many
years, and players all around the world are already very familiar with it. A full
translation, something like Liga Mestre or Liga Mestra, would mischaracterize
it, by replacing a term long known by any fan of the game by another which
has no affective appeal. For this reason, two possible options emerged as
solution for the problem: either maintain the already established term Master
League or perform a partial translation. In this case, the second option was
chosen: the word League was replaced by its equivalent in Portuguese Liga,
while the term Master, which could retain some kind of affective bond with
the original term, remained untouched. Next, we have three non-translated
terms: Uefa Champions League, Exhibition and Network. In the former case,
although the term is already quite widespread throughout the world, it could
perfectly be translated as Liga dos Campeões da Uefa, since it is a term
widely known and used in both Brazil and Portugal. The probable reason for
the non-translation is that Uefa Champions League is the official name of the
competition, and, as such, should not be translated. As for Network and
Exhibition, even though their equivalents in Portuguese, Rede and Exibição,
are not the most suitable options, the reason for which they were not
translated is unknown, especially when considering that these terms received
their respective translations into French and Spanish. Hence, while the menus
in the French and Spanish were fully translated (except for Uefa Champions
League as mentioned), it can be said that the Portuguese version received a
"bilingual translation". In general, the translation is competent, with
recognizable terms for both Brazilian and Portuguese players, since many of
the terms utilized are common to both variants of the language. The only
"differences" reside in the words Taça and Definições, whose equivalent and
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
more used terms in Brazil are Copa and Configurações. But this is not a
difference that can interfere in the comprehension of the term, since every
Brazilian knows the meanings of Taça and Definições; it is more of a matter of
habit and usage.
One final aspect does not involve any linguistic issue, but very clearly
demonstrates the concept of "to make local", essential for a successful
localization. In the case of soccer simulators, this conceptual approach can be
made by offering the local teams among the options to be selected. For the
Portuguese audience, this approach was partially realized: although the
Portuguese League was not licensed, the three most popular teams in the
country (SL Benfica, FC Porto and Sporting CP) were available. Thus, many of
the Portuguese players were able to play the game with their favorite teams.
The same cannot be said of the Brazilian audience: only SC Internacional was
available in the game. And in spite of the fact that SC Internacional is an
important team, Brazil has eleven other giants: C Atlético Mineiro, Botafogo
FR, SC Corinthians P, Cruzeiro EC, CR Flamengo, Fluminense FC, Grêmio
FBPA, SE Palmeiras, Santos FC, São Paulo FC and CR Vasco da Gama. Thus,
most Brazilian players were not able to play the game with their favorite
teams, having to resort to the Edit Mode to create them. This turned out to
be somewhat annoying due to the excessive time spent to create the teams; it
is not uncommon to hear from players that they spent more time editing the
teams than actually playing the game. This definitely compromises gameplay:
instead of creating a fun experience, it delivers a quite tiring one.
All in all, the presence of the Portuguese language in a series the
caliber of Pro Evolution Soccer is laudable. Problems like the aforementioned
may cause some nuisance for some players, but the presence of the language
is important to give the opportunity for these problems to be corrected. And
that is what happened: in PES 2010, both in-game texts and comments were
fully localized into Portuguese (European); PES 2011 features comments in
both European and Brazilian Portuguese (made by Pedro Sousa and Luis Freitas
Lobo in the former and by Silvio Luiz and Mauro Beting in the latter), whereas
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
four teams from Portugal (SL Benfica, SC Braga, FC Porto and Sporting CP)
and the five Brazilian teams present in the 2010 Copa Santander Libertadores
(SC Corinthians P, Cruzeiro EC, CR Flamengo, SC Internacional and São Paulo
FC) were present in the game. Finally, in addition to once again featuring
comments in both variants of the language, PES 2012 (on the verge of being
released in Brazil at the time of writing) will bring back the six Brazilian
teams in the 2011 Copa Santander Libertadores (SC Corinthians P, Cruzeiro
EC, Fluminense FC, Grêmio FBPA, SC Internacional and Santos FC) and, for
the first time in the franchise, the Portuguese League will appear in the
game, although partially licensed15.
4. Perspectives
Perspectives for the future of video games in Brazil could not be
brighter. Each day, more and more companies start their business operations
in the country, opening a new range of opportunities not only for the
development of the local market but also for video game localization. Games
like Halo: Reach (MICROSOFT/BUNGIE 2010), Killzone 3 (SONY/GUERRILLA 2011),
Mortal Kombat (WARNER BROS/NETHERREALM 2011), Infamous 2 (SONY/SUCKER
PUNCH 2011) and Gears of War (Microsoft/Epic Games, 2011) were recently
released in versions localized into Brazilian Portuguese16. Also, at the time of
writing, the upcoming games Assassins Creed Revelations (UBISOFT), Batman:
Arkham City (WARNER BROS/ROCKSTEADY), World of Warcraft (BLIZZARD) and
Uncharted 3: Drake’s Deception (Sony/Naughty Dog) are also set to offer
Portuguese as one of the languages available17. Moreover, there is the project
15
Only SL Benfica, FC Porto and Sporting CP will be fully licensed; the remaining teams will
appear with fictitious names.
16
Halo: Reach, Killzone 3 and Infamous 2 were both dubbed and subtitled; Mortal Kombat
and Gears of War 3 were only subtitled.
17
World of Warcraft and Uncharted 3: Drake’s Deception will be both dubbed and subtitled;
Assassins Creed Revelations and Batman: Arkham City will be only subtitled.
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Souza, R. V. F. – Video game localization: the case of Brazil
Jogo Justo (FAIR GAME), which aims at showing the government all the benefits
that a tax reduction on video games can bring to the Brazilian economy, not
only for increased tax revenues or job creation, but also as a strategy to
combat piracy. Finally, on September 27th, 2011, two more good pieces of
news: Microsoft officially announced the manufacturing of its Xbox 360 in
Brazil (AZEVEDO 2011), thereby allowing a significant reduction in its prices
and, at the same time, offering potential consumers the perspective of
greater access to the console in the country; on the same day, the Executive
Secretary of the Ministry of Science, Technology and Innovation, Luis Antonio
Rodrigues Elias, stated that the other two giants, Sony and Nintendo, are both
negotiating with the Government in order to also manufacture their consoles
in Brazil (UOL JOGOS 2011); however, at the time of writing, there has still
been no official confirmation by both companies on the subject. In view of all
this, it can be said that Brazil has what it takes to become a superpower, not
only in the international scene, but also in the magical world of video games.
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MÔNICA NO CASTELO DO DRAGÃO (Brazil, 1991). TEC TOY: Master System.
PAC-MAN (Japan, 1980). NAMCO: Arcades.
PHANTASY STAR (Japan, 1987). SEGA: Master System.
PONG (United States, 1972). ATARI: Arcades.
PRO EVOLUTION SOCCER 2009 (United States, 2008). KONAMI: Playstation 3/ Xbox
360/ Wii/ PSP/ Playstation 2/ PC (Windows)/ Mobile .
PRO WRESTLING (Japan, 1986). NINTENDO: Nintendo Entertainment System (NES).
RAGNARÖK ONLINE (Korea, 2002). GRAVITY: PC (Windows).
RESIDENT EVIL (Japan, 1996). CAPCOM: Playstation.
SPACEWAR! (United States, 1962). STEVE RUSSELL: PDP1 Computer.
SPACE INVADERS (Japan, 1978). TAITO: Arcades.
STARCRAFT II: WINGS OF LIBERTY (United States, 2010). BLIZZARD: PC (Windows/ Mac
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SUPER MARIO BROS. (Japan, 1985). NINTENDO: Nintendo Entertainment System
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TENNIS FOR TWO (United States, 1958). William A. Higinbotham: Analog
Computer/ Oscilloscope.
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TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 289-326
http://tradterm.vitis.uspnet.usp.br
Acorde estrangeiro: representação
e confrontos linguísticos na música
brasileira
Marly D’Amaro Blasques Tooge *
(...) a música popular brasileira é a mais
completa, mais totalmente nacional, mais forte
criação de nossa raça até agora.
Mário de Andrade
Abstract: This paper is a study on contemporary “Brazilian cultural representation”
through texts produced in the scope of Brazilian music. Such texts, in the format of
songs, build a corpus which can reveal different usages of languages, in order to
articulate the relation with “the foreign other”. Such artistic manifestation has
been, for a long time, the stage for debates and discussion on national identity.
Ideological clashes and identity projects have produced different uses of languages,
which revealed not only trends of harsh nationalism, but also those of consent to
foreign influence, something that can be easily demonstrated in the aforementioned
corpus. As an instrument of language and culture dissemination, music shows how
artists manipulated the languages, creating “strategies of linguistic confrontation”,
in order to make survive element of the so called “Brazilian Culture”.
Keywords: translation; representation; transculturation; Brazilian music; identity.
Resumo: Neste trabalho, buscou-se estudar a “representação cultural brasileira” na
contemporaneidade, através dos textos produzidos dentro do contexto da música
brasileira. Acreditamos que tais textos, no formato de canções, montam um corpus
de estudo que pode revelar diferentes usos das línguas para articular a relação com o
“outro estrangeiro”. Tal atividade artística tem sido, há tempos, palco de discussões
e negociações sobre a identidade nacional. Tensões ideológicas e projetos
identitários produziram usos variados dos idiomas, refletindo tanto correntes de
*
Doutoranda da área
[email protected].
de
Estudos
Linguísticos
e
Literários
em
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 327-345
http://tradterm.vitis.uspnet.usp.br
Inglês.
Email:
nacionalismo acirrado, quanto de abertura à influência estrangeira, movimentos que
podem ser claramente verificados nesse corpus. Como instrumento de difusão de
língua e cultura, a música revela usos de idiomas e “estratégias de confronto
linguístico”, na busca da sobrevivência de elementos da “cultura brasileira”.
Palavras-chave:
identidade.
tradução;
representação;
transculturação;
música
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 327-345
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brasileira;
329
Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
1. Introdução
O título deste artigo, que reproduz aquele da tese de doutorado do autor
deste trabalho, tem propositalmente um sentido múltiplo: “acorde” tanto
representa a escrita ou a execução simultânea de notas musicais, quanto a
forma imperativa do verbo “acordar” na terceira pessoa do singular. Esta, por
sua vez, é utilizada para a conjugação do pronome “você” - tipicamente
utilizado em várias regiões do Brasil, mas não em Portugal. O verbo
“acordar”, todavia, também tem dupla significação: pode referir-se a
“despertar”, “tomar consciência de algo”, ou a “entrar em acordo”. Dessa
forma, a expressão “acorde estrangeiro” faz alusão tanto ao som produzido
pelo estrangeiro, aquele que nos é “estranho” ou “exótico”, quanto a uma
ordem para que o estrangeiro ganhe consciência do que está ocorrendo, ou,
ainda, de que ele “entre em acordo” – aquele da “negociação” existente em
todo o trâmite de “representação do outro”. Essa complexa multiplicidade de
sentidos nos parece adequada para falar da representação da(s) cultura(s)
brasileira(s) através da música, no ambiente internacional. A ideia de tal
título teve como inspiração, a princípio, o nome do disco do compositor
Caetano Veloso gravado em 2004: A Foreing Sound. Nele existe, em nossa
opinião, ao mesmo tempo uma ideia de “estranheza” causada pela sonoridade
e pela “voz” de uma cultura estrangeira e proposta de atração do compositor
por esse mesmo ritmo e essa mesma cultura. Já nosso “acorde estrangeiro”
amplia essa dualidade e propõe que “despertar” para os sons, as vozes do
estrangeiro, é também conscientizar-se de sua riqueza cultural. A escolha do
termo “enfrentamentos” se deu não em função da alusão a disputas, mas sim
à ideia de colocar “frente a frente” os idiomas.
Este artigo filia-se à área dos Estudos da Tradução, campo de estudo que
tem expandido nas últimas décadas, graças a propostas como as da professora
da Universidade de Massachusetts, Maria Tymoczko, para quem o campo de
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330
Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
estudos deve abrir-se a uma maior diversidade de textos e expandir seu
objeto de trabalho (TYMOCZKO 2003: 17-19). Tymoczko também defende a
exploração
de
novos
modos
de
interface
cultural,
entre
eles
a
“representação” (a construção e a exibição de imagens, reconhecendo a
necessidade de pensar os aspectos ideológicos envolvidos nesse processo) e a
“transculturação” (a transmissão de características culturais de um grupo
cultural a outro, indo além da transferência de materiais verbais, e incluindo
a transferência de ideias sobre religião, governo, divulgação de formas
artísticas e materiais de mídia [TYMOCZKO 2003: 21-24]). Faz parte, ainda, das
propostas da autora inserir no campo de estudos a sondagem dos processos
envolvidos na “tradução” de formas artísticas, como a música e as artes
visuais (TYMOCZKO 2003: 23). É com base em tais propostas que buscou-se
estudar os processos de transculturação e de representação dentro do âmbito
da música brasileira.
Para isso, foi levantado um corpus de estudo composto por letras de
canções elaboradas desde o início do século XX no Brasil. O período não foi
escolhido aleatoriamente, mas por ser um período de grandes modificações ou
transições políticas e sociais no Brasil: no princípio do século, escravos
libertos haviam migrado para o Rio de Janeiro (SEVCENKO 2003: 41),
enfrentando mais tarde as políticas sanitaristas da Velha República (SANTOS
1985: 194); o governo ainda dava continuidade à “americanização da política
externa brasileira” iniciada por Rio Branco (BETHELL 2009); aumentava o
processo de imigração e de industrialização no Brasil, enquanto diferentes
grupos de intelectuais buscavam redefinir a ideia de nação brasileira.
Em meio a toda a efervescência da época, acontecia a primeira
transmissão de rádio no Brasil, no Rio de Janeiro, inaugurando as transmissões
na segunda década do século XX. O primeiro grande veículo de comunicação
do século logo veria nascer a “Era de Ouro do Rádio”, a consagração de um
instrumento que trouxe, entre outras coisas, a música para dentro das casas
dos brasileiros.
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
A partir daí, um processo crescente de reformulação identitária passaria
a ser associado à música. Nas palavras de Michell Nicolau Netto:
(...) a música popular desde o começo do século XX foi tratada – a
partir de uma série de processos de ressignificação, como
procuraremos mostrar – como um símbolo identitário nacional
privilegiado, um símbolo que passou a ser discursado sob o registro da
brasilidade, daquilo que nos propõe uma forma enquanto povo. Ainda,
é a indústria da música popular a mais impactada pelos avanços
tecnológicos em termos de circulação. Por ser de produção muito mais
simples do que um filme ou um programa de TV e por se adaptar com
mais competência ao ímpeto individualista da sociedade
contemporânea, ela é mais competente em se relacionar com os novos
meios de comunicação para se espalhar sobre as fronteiras. No caso da
música popular brasileira, então, ao fazer isso ela leva consigo a
identidade nacional para um espaço global e, com isso, seu estudo
permitirá entender como esta identidade passa a ser articulada a
partir de seu deslocamento (NICOLAU NETTO 2009: 17).
Mas, o processo de transmissão dos elementos das camadas populares
para o centro do sistema musical brasileiro como símbolo nacional não foi
nada simples. José Ramos Tinhorão explica, em seu ensaio Música Popular —
um tema em debate (TINHORÃO 1967: 17-21), como “Os gêneros da música
urbana reconhecidos como tipicamente cariocas — o samba e a marcha —
surgiram e se fixaram no período de 60 anos que vai de 1870 (...) até 1930
(...)”. O samba, juntamente com a marcha, como “criação consciente,
destinada a atender a fins específicos: a necessidade de ritmos capazes de
servirem à cadência das lentas passeatas dos ranchos (...) e à procissão
desvairada dos blocos e cordões carnavalescos” (TINHORÃO 1967: 17) resultaria,
na década de 1930, já “amansado” para “o gosto das novas camadas da classe
média”, com uma série de variações em torno do ritmo fundamental de 2/4.
Diz Tinhorão:
A história do samba carioca é, assim, a história da ascensão social
contínua de um gênero de música popular urbana, num fenômeno em
tudo semelhante ao do jazz, nos Estados Unidos. Fixado como gênero
musical por compositores de camadas baixas da cidade, a partir de
motivos ainda cultivados no fim do século XIX por negros oriundos da
zona rural, o samba criado à base de instrumentos de percussão passou
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
ao domínio da classe média, que o vestiu com orquestrações logo
estereotipadas, e o lançou comercialmente como música de dança de
salão (TINHORÃO 1967: 18).
Dessa forma, para Tinhorão, o samba seria o resultado da apropriação de
ritmos populares pelas classes mais altas. Ana Maria Rodrigues parece ter uma
opinião similar, defendendo que a criação da ideia de democracia racial
brasileira, para ela uma estratégia de branqueamento, tivesse sido uma forma
de enfraquecer o caráter étnico das “associações carnavalescas dos negros” e
impedindo que surgisse uma “consciência negra” (NAPOLITANO & WASSERMAN
2000: 181). Muniz Sodré vê o samba “como um movimento de continuidade e
afirmação dos valores culturais negros, uma cultura não oficial e alternativa,
que seria uma forma de resistência cultural ao modo de produção dominante
da sociedade carioca do início do século XX” (idem). Enquanto isso, Hermano
Vianna enfatiza o panorama cultural das primeiras décadas do século XX, com
o surgimento do elogio à mestiçagem, quando ganhava força a busca pelas
“raízes da nação” e quando a ação de “mediadores culturais”, como Noel
Rosa, teria sido de fundamental importância para elevação do samba a “ritmo
nacional”, suprindo a necessidade de unificação do País (VIANNA 1995: 115).
Seja como forma de resistência, por temor político, pela ação dos
“mediadores culturais” ou simplesmente pela atração que os ritmos populares
causavam nas classes sociais mais elevadas, elementos culturais das chamadas
camadas “populares” passaram para o centro do sistema musical brasileiro. A
música, veículo da oralidade dessas camadas, chegava às recém-criadas rádios
em um clima de grande efervescência política que culminou com a Revolução
de 1930 e incorporou o forte nacionalismo da “Era Vargas”.
É nesse contexto que vemos as primeiras canções tocadas no rádio,
trazendo as primeiras marcas dos “confrontos linguísticos” na música
brasileira.
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
2. A corrente de resistência e a utopia da
mestiçagem
Músicos da década de 1930 já criavam, assim, canções de forte cunho
humorístico 2, típicas do clima que invadia os programas de rádio brasileiros,
para rebater a influência estrangeira.
Como conta Ramiro Lopes BICCA JUNIOR (2001), se a França foi “o primeiro
modelo de sociedade para a elite brasileira (...) a influência americana, na
realidade, refletia-se mais nas expressões idiomáticas da população brasileira"
(BICCA JUNIOR 2000: 1). Entretanto, as canções populares revelavam mais do
que isso: elas transmitiam as narrativas orais de uma população que vivia na
tensão do nacionalismo em uma época de questionamentos constantes sobre
sua identidade. Em função disso, as línguas passaram a ser instrumentos de
artistas para realizar tal embate ideológico da nacionalidade.
O “fox-nonsense”, ou “soneto-piada”, conforme definição de SALIBA
(2002: 280), Canção para inglês ver, de LAMARTINE BABO (1931), mostrava que a
ordem era ironizar. Babo criara uma paródia onde, através da homofonia,
desmistificava o uso do idioma inglês, transformando-o em “galhofa” (SALIBA
2002: 282) 3. Os sons que imitam o idioma inglês na canção misturam-se a
termos de origem indígenas como “itapiru” ou “jaceguai”, ou ainda como o
nome tipicamente português “Silva Manoel”, e o tom “elevado” do idioma
2
Elias Thomé Saliba, em Raízes do Riso (SALIBA : 2002) afirma que “quando o rádio procura
uma linguagem própria, rápida, concisa e colada no dia-a-dia, suscetível de registrar o
efêmero do cotidiano, ele vai encontrar aquilo que as criações humorísticas já haviam de
certa forma elaborado em estreita ligação com o teatro musicado, o teatro de revista, as
primeiras gravações fonográficas, e até mesmo as primeiras produções cinematográficas: a
mistura linguística, a incorporação anárquica de ditos e refrãos conhecidos por ampla maioria
da população, a concisão, a rapidez, a habilidade dos trocadilhos e jogos de palavras, a
facilidade na criação de versos prontamente adaptáveis à música, aos ritmos rápidos da dança
e aos anúncios publicitários” (SALIBA 2002: 228).
3
As inúmeras referências e chaves de época são analisadas mais profundamente por SALIBA
(2002: 280-283).
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
estrangeiro é rechaçado, através de referências banais de nosso cotidiano,
como “salada de alface”, “abacaxi” e “sanduíche”. Tais referências não são
ingênuas
ou
aleatórias,
mas
históricas
e
pontuais,
“delatando”
acontecimentos da época, como a instalação da companhia Shell ou da
Standard Oil no Brasil:
I love you / Forget sclaine / Maine Itapirú / Morguett five underwood / I shell / no
bond Silva Manoel / Manoel... Manoel... I love you To have steven via-Catumby /
Independence lá do Paraguay / Studbaker... Jaceguay / Yes my glass (bis) / Salada de
alface (bis) / Fly Tox my till.. / Standard oil... / Forget not me / Oi!
Contrário ao “estrangeirismo”, Assis Valente, em 1932, lançou “Tem
francesa no morro”, para “destronar” o idioma francês. Sua “petite francesa”
acaba dançando samba “em cime de mesa”:
Donê muá si vu plé lonér de dancê aveque muá / Dance Ioiô / Dance
Iaiá / Si vu frequenté macumbe entrê na virada e fini por samba /
Dance Ioiô / Dance Iaiá / Vian / Petite / francesa / Dancê le classique
/ Em cime de mesa (...)
Já sua crítica ao uso do idioma inglês é apresentada na canção Good-bye
boy, também de 1932, onde Valente fez uso de empréstimos da língua
estrangeira para criticar o “moreno frajola que nunca frequentou as aulas da
escola” por ter “mania de inglês”. Mais ainda, sua crítica se vira contra a
própria instauração da companhia canadense “Light” como monopolizadora da
distribuição de energia elétrica local. Mas, a grande ironia foi a canção
tornar-se popular justamente na voz da futura “embaixadora da Boa
Vizinhança” do Brasil nos Estados Unidos, Carmen Miranda:
Good-bye, good-bye boy, deixa a mania do inglês / É tão feio p'rá
você, moreno frajola que nunca frequentou as aulas da escola (...) Não
é mais boa noite, nem bom dia / Só se fala "good-morning, good-night"
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
/ Já se desprezou o lampião de querosene / Lá no morro só se usa a luz
da Light (oh, yes!)
O discurso de resistência à influência estrangeira, resultante da
reviravolta identitária modernista, se cristalizaria em 1933 na canção “Não
tem Tradução” de Noel Rosa, onde o “poeta da Vila” afirmaria que:
O cinema falado é o grande culpado da transformação / Dessa gente
que sente que um barracão prende mais que o xadrez / Lá no morro,
seu eu fizer uma falseta / A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês
/ (...) Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição / Não
entende que o samba não tem tradução no idioma francês / Tudo
aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia é brasileiro, já
passou de português (...) (NOEL ROSA 1933).
Essa corrente de crítica ao estrangeirismo na música brasileira não
morreu nos anos 1930. Ainda nas últimas décadas, surgiram canções como O
Samba do Approach de ZECA BALEIRO (1999), onde vigora a crítica ao “exagero”
do uso de termos estrangeiros no Brasil 4.
3. Entrega e sedução
Mas, as décadas seguintes trariam novidades para a música brasileira.
Com a política da Boa Vizinhança, Carmen Miranda seria “exportada” para os
Estados Unidos e se tornaria “the Brazilian Bombshell”. Através de Carmen, o
português seria cantado pela primeira vez em filmes de Hollywood. Em 1938,
o ator americano Tyrone Power, em visita ao Brasil, já afirmava: “Não é
preciso entender o que ela canta. Não é preciso saber o português para
entender o samba, cantado por ela com tanta expressão, tanto bulício, tanto
encanto nas suas canções que não há quem não fique cativo” (in MENDONÇA
4
Uma canção mais agressiva chamada Estrangeirismo, de Carlos Silva e Sandra Regina,
também faz crítica acirrada à americanização no Brasil, tentando reproduzir um linguajar
“regional”.
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
1999: 15). Então, para quê cantar? Porque não apenas dançar? Carmen
cantava porque os sons que emitia representavam algo, ainda que não o que
ela imaginava: o “bulício”, o “encanto”, a “sedução”. Carmen cantava em
português, em inglês ou usando a “inversão de código”, ou seja, inserindo o
português no meio de uma canção em inglês. O idioma lusófono “emergia”,
como quem sobe à tona na tentativa desesperada de não se afogar, para não
fenecer. É o caso de “I’m just wild about Harry”, canção cantada por Carmen
no filme Greenwich Village (Serenata Boêmia) de 1944. Ainda que a escolha
da introdução da língua portuguesa não fosse sua, e provavelmente estivesse
ali como mais um elemento de exotismo, através dela Carmen levava para o
“Tio Sam” aquilo que imaginava ser a “verdadeira cultura brasileira”:
Oh, I'm just wild about Harry / And Harry's wild about me / The
heavenly blisses of these kisses / It fills me with ecstasy / (...) Hey!
I'm just wild about / Samba, batucada, carnaval e café / Por
macumba, viramundo e uma figa de Guiné / And Harry's wild about /
Ser uma baiana com sandália no pé / E provar um vatapá com um
pouco de acarajé / The heavenly blisses of his kisses / It fills me with
ecstasy / Se gosta de baiana é pra mim de colher (...)
Os elementos referentes ao elogio à mestiçagem, ideal que crescia desde
o princípio do século XX e se consolidava na obra Casa Grande e Senzala, de
GILBERTO FREYRE (1933), marcavam a fala de Carmen Miranda nessa canção (e
em outras).
Em trabalho anterior (TOOGE 2009: 97) demonstrou-se que a imagem
sedutora de Carmen Miranda, ícone que mais fortemente incorporou as
características
de
sensualidade,
exotismo
e
de
“paraíso
tropical”
encapsuladas no mito fundador da identidade nacional brasileira (CHAUÍ 2000),
reproduziu-se constantemente, influenciando a recepção de uma forte
sucessora, a heroína “Gabriela” de Jorge Amado, nos Estados Unidos em 1962.
Criada a aura de sedução em torno dos filmes hollywoodianos, a imagem do
Brasil ficaria, por muitos anos, vinculada à imagem exótica de Carmen.
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
4. A utopia desenvolvimentista
Ary Barroso, compositor/parceiro de Carmen, criou em 1939 sua
“Aquarela do Brasil”, a canção de elogio à pátria e às belezas da nação, que
se tornaria o marco da criação do gênero “samba exaltação”. A canção traz as
marcas da ideologia da época, com o elogio ao “mulato inzoneiro”, cantado
nos versos de Barroso. A terra de “samba e pandeiro” de Ary Barroso é
também a “terra de nosso Senhor”, imitando o ditado popular “Deus é
brasileiro”. Ary Barroso também viajou aos Estados Unidos, e sua “Aquarela
do Brasil” foi tornada um “hino-nacional brasileiro” no exterior (FREIREMEDEIROS 2005: 21), principalmente após ter sido tema do filme Saludo
Amigos, de Walt Disney, em 1942. Mas, a canção só ganhou letra no idioma
inglês em 1957, quando Bob Russel escreveu a letra de “Brazil”. Nela, as
menções à mestiçagem ou às origens africanas, como em “mulato inzoneiro”,
“mãe preta” ou “rei congo”, marcas do caráter ufanista da canção,
desaparecem totalmente e o tom da canção se aproxima da nova linha
romântica de sucessos brasileiros nos Estados Unidos: a Bossa Nova.
“Brazil / The Brazil that I knew / Where I wandered with you / Lives
in my imagination. / Where the songs are passionate, / And a smile
has flash in it, / And a kiss has art in it, / For you put your heart in it,
/ And so I dream of old Brazil / Where hearts were entertaining June,
/ We stood beneath an amber moon / And softly murmured “someday
soon” / We kissed and clung together, / Then tomorrow was another
day / The morning found me miles away / With still a million things to
say / Now when twilight dims the sky above, / Recalling thrills of our
love, / There’s one thing I’m certain of; / Return I will / To old
Brazil.”
No Brasil, músicos, artistas e público da Bossa Nova “respiraram” o
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
“oxigênio mental” 5 da política desenvolvimentista do governo Juscelino
Kubitschek, cuja obra musical mais representativa talvez seja a “Sinfonia da
Alvorada”, encomendada pelo presidente a Antônio Carlos Jobim e Vinicius de
Moraes em 1958. Nas palavras de Adriana Evaristo Borges:
A princípio (...) a música bossa nova não tinha a intenção de
transformar-se em objeto político, mas essa aproximação aconteceu
em função de uma concordância de intenções dos produtores da bossa
nova e o projeto político de JK, onde o urbano servia como referencial
de modernidade. E, nesse aspecto, naquela conjuntura música e
política parecem ter cumprido seu papel (BORGES 2007: 1).
Os Estados Unidos ouviram muitas das canções da Bossa Nova também na
voz de Sinatra. Foi paradigmático seu dueto “bilíngue” com Tom Jobim
cantando a “Garota de Ipanema”, agora “Girl from Ipanema” (1963),
alternando versos da letra em inglês de Norman Gilbel com os da canção em
português. Segundo CHARLES A. PERRONE (2002: 17), o sucesso da canção [nos
Estados Unidos] foi maior do que o alcançado por qualquer canção
estrangeira. Novamente temos a imagem da mulher sensual, alegre, divertida
e sedutora: “Tall and tan and young and lovely” é a garota brasileira que
caminha em direção ao mar de Ipanema, sem olhar para seu pobre
apaixonado.
Várias outras canções brasileiras de Bossa Nova ganharam versões em
inglês, entre elas “O Barquinho”, “Desafinado”, “Samba de uma nota só”,
“Corcovado” e “Chega de Saudades”. Estavam entre os “letristas” Gene Lees,
Arto Lindsay, Norman Gimbel e o próprio Tom Jobim. A Bossa Nova deixou
também vários “herdeiros”, sendo Bebel Gilberto, filha de João Gilberto, uma
das cantoras de maior sucesso nos Estados Unidos. Entretanto, o fato mais
interessante da Bossa Nova foi a canção “Mais que nada” (1963), que
“alcançou na interpretação de Sérgio Mendes, o topo da lista das canções
5
A expressão “oxigênio mental” foi cunhada pelo Prof. Dr. Elias Thomé Saliba em sua obra
Raízes do Riso (2002: 302).
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
mais tocadas nos Estados Unidos de acordo com o ranking da BillBoard”
(CHAVES 2010: 2) 6 sem nunca ter sido traduzida para o inglês. O fato
demonstra mais uma vez que os “sentidos” passados pelo ritmo e pelo “clima”
gerado pelas canções se sobrepunham à curiosidade do público quanto ao
significado das palavras, do “idioma” cantado. Em uma pesquisa piloto do
governo brasileiro, realizada em 2005, quando os entrevistados foram
perguntados se o idioma era ou não uma barreira para a divulgação da música
brasileira no exterior, 66,6% dos entrevistados responderam que “não”.
Segundo a pesquisa, apesar do grande número de entrevistados [serem]
falantes de português, “(...) as respostas (...) referem-se ao senso comum,
corroborando a impressão de que o público de música brasileira e o
estrangeiro têm a expectativa de ouvir os artistas cantarem em sua língua
materna, ainda que não compreendam o significado das letras” 7. Essa barreira
a uma maior compreensão da cultura e da língua através da “palavra cantada”
teria, entretanto, novos inimigos, que nasceriam do próximo movimento
musical de nossa história: a Tropicália.
5. Tropicália e a utopia antropofágica
Que a música popular centralizasse as energias
(...) só reafirma a força de uma tradição que
possibilitou a bossa nova: a música popular
brasileira tem sido, de fato, para nós como para
estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento
sonhado. (...) Ela é a mais eficiente arma de
afirmação da língua portuguesa no mundo,
tantos
insuspeitados
amantes
esta
tem
conquistado por meio da magia sonora da palavra
cantada à moda brasileira, tantos insuspeitados
amantes esta tem conquistado por meio da magia
sonora da palavra cantada à moda brasileira.
Caetano Veloso
6
A canção esteve várias vezes entre as dez mais tocada da revista Billboard, desde seu
lançamento em 1967.
7
Estes dados foram gentilmente fornecidos pelo músico responsável pela pesquisa piloto,
Felipe Radicetti.
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
A década de 1960 também foi marcada por diferentes formas de
nacionalismo, agora muito vinculadas à tensão política que resultou no golpe
militar de 1964 e se expandiu com ele. Enquanto a Jovem Guarda, muito
influenciada pelo rock americano, ganhava numerosos fãs no Brasil e juntavase à Bossa Nova na aceitação dos modelos externos, uma corrente de
resistência representada principalmente pelo movimento estudantil também
se fortalecia. Se a Guerra Fria fizera crescer a influência comunista na
política brasileira, com a derrota para os militares, o nacionalismo de
esquerda se tornara mais agudo e era pesada a crítica contra aqueles
“coniventes com o imperialismo norte-americano”. Vivia-se o momento das
canções engajadas, que precisavam driblar a rígida censura da ditadura. Já os
militares incentivavam o nacionalismo “patriótico”, também rejeitando a
influência externa.
Em meio a tais pressões no meio artístico, os membros da futura
Tropicália se rebelavam, paradoxalmente “decretando” ser “proibido
proibir”. Seu ideal: “retomar a linha evolutiva da música brasileira” 8. Nas
palavras de Caetano Veloso:
De fato, nós tínhamos percebido que, para fazer o que acreditávamos
que era necessário, tínhamos nós que livrar do Brasil tal como o
conhecíamos. Tínhamos que destruir o Brasil dos nacionalistas,
tínhamos que ir mais fundo e pulverizar a imagem do Brasil carioca
(V ELOSO 1997: 46).
Assumindo
um
caráter
antixenofóbico,
os
Tropicalistas
se
autodenominaram neoantropofágicos e, sofrendo a influência dos poetas
concretistas Augusto e Haroldo de Campos, buscaram unir tradição e
modernidade, primitivo e tecnológico, nacional e estrangeiro. A linguagem
dos Tropicalistas, à maneira oswaldiana, era telegráfica, privilegiando a
8
Para o conceito de “linha evolutiva” ver: NAPOLITANO (2007: 95-108).
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
hibridação lexical.
É, no entanto, a partir do exílio de Caetano e Gil, que a relação com o
estrangeiro mais aparece nas canções dos dois artistas, em especial nas de
Caetano. Seu álbum Transa, lançado em 1972, praticamente um álbum de
exílio, traz aquela que parece ser a primeira canção do compositor
direcionada ao estrangeiro: “You don’t know me”. A canção, escrita
originalmente em língua inglesa, fala do desconhecimento do “outro”, da
barreira que impossibilita a troca, e chega ao refrão com uma quebra tanto no
ritmo quanto na linguagem: a intertextualidade se une à técnica da
alternância de códigos, e ambas são utilizadas para inserir a “identidade” do
interlocutor: a história de escravidão surge nas palavras “devoradas” da
canção “Maria Moita” de Carlos Lyra, enquanto a religiosidade surge nos
versos de “Reza” de Edu Lobo. A marca de seu próprio “Saudosismo” aparece
nas rimas de sua canção homônima:
You don’t know me / Bet you’ll never get to know me / You don’t
know me at all / Feel so lonely / The world is spinning round slowly /
There’s nothing you can show me / From behind the wall / Show me
from behind the wall / Show me from behind the wall / Show me from
behind the wall / Nasci lá na Bahia de mucama com feitor / O meu
pai dormia em cama, minha mãe no pisador / Laia ladaia sabadana
ave maria / Laia ladaia sabadana ave maria / Eu você nós dois, já
temos um passado meu amor / Um violão guardado, aquela flor (…)
A técnica de inserir o português estrategicamente nos refrãos das
canções, buscando seduzir o ouvinte a cantar no idioma português, assim
como a tentativa de inserir elementos da cultura de origem do compositor na
canção elaborada em idioma estrangeiro parece ter ecoado entre vários
artistas brasileiros que se apresentam fora do Brasil. Representar de forma
“missionária” sua “nação”, através da tentativa de “transmitir elementos
culturais”, ou seja, promover a “transculturação”: essa também parece ser a
ideia que origina canções como as do grupo “Forró in the Dark”, conjunto cujo
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
nome por si só já revela a vontade de “misturar” ou “hibridizar” ritmos,
línguas, canções, culturas. Gravada na voz de David Byrne, o sucesso de Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira, “Asa Branca”, leva o drama do migrante que
foge da cruel ação da natureza, da seca nordestina, deixando lá o amor e a
promessa de regresso. A versão do “Forró in the Dark” apresenta uma
tentativa forte de manutenção de elementos culturais brasileiros, com a
menção à festa de São João mantida no português, a exclamação “adeus
Rosinha” intercalada com versos em inglês e a mesma estratégia de trazer no
refrão a inversão de códigos:
ASA BRANCA (Luiz Gonzaga /
Humberto Teixeira)
Quando oiei a terra ardendo
ASA BRANCA (Forró in the Dark David Byrne)
When I heard the land was burning
Qual a fogueira de São João
Like the bonfires of São João
Eu preguntei a Deus do céu, ai
I asked God up there in his heaven
Por que tamanha judiação
What is happening to us now?
Que braseiro, que “fornaia”
What a hellfire, what a furnace
Nem um pé de “prantação”
Not a tree was left alive
Por farta d'água perdi meu gado
And all my cattle, they laid there dying
Morreu de sede meu alazão (...)
And even my horse steed did not survive
Inté mesmo a asa branca
And the white wing dove
Bateu asas do sertão
has flown now, far away from this backland
"Intonce" eu disse adeus Rosinha
So I say now, "adeus Rosinha"
Guarda contigo meu coração
Know in your heart, I'll be back again
“Intonce” eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração (…)
“Intonce” eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração (…)
Na versão inglesa de Asa Branca, a voz do sertanejo aflora e se mostra,
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linguísticos na música brasileira
reunindo-se novamente ao ritmo ao qual pertence e cujo espaço houvera
cedido. Exílio, fuga de um ambiente hostil e melancolia do regresso são temas
que certamente trazem um apelo ao público internacional, já que as guerras e
as disputas de terra, os diversos “exílios” e “diásporas” trazem consigo a
mesma carga nostálgica. Tais características não passaram despercebidas ao
produtor David Byrne.
6. Conclusão
Os processos de busca de representação, construção identitária e
“confrontos linguísticos” aqui descritos certamente não se esgotam aí, mas o
que foi apresentado serve como base para compreender as diversas tentativas
de
representação
da
cultura
brasileira
vinculadas
a
diferentes
“nacionalismos” na música brasileira. Em algumas delas, a hibridação, assim
como os processos de representação e de transculturação foram mais
marcantes. Mas, todas refletiram as ansiedades sociais resultantes dos
acontecimentos históricos dos últimos séculos.
Diferentes
grupos
de
artistas,
“mediadores
culturais”
ou
“representantes" debateram-se, e ainda se debatem, entre sua inserção no
mercado mundial e a valorização da cultura brasileira, enfrentando a
ansiedade de transmitir uma identidade “desejada”, ou “imaginada” e a
“imagem congelada” pelo mito fundador. Nessa constante busca de
reelaboração da “identidade brasileira”, a “palavra cantada” transformou-se
em um novo instrumento para desconstruir as imagens monolíticas e
congeladas da “nação brasileira”.
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Tooge, M. D. B. – Acorde estrangeiro: representação e confrontos
linguísticos na música brasileira
7. Referências bibliográficas
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Dados dos autores
Beatriz Cabral Bastos
É bacharel e licenciada em Português e Literaturas Correspondentes (PUC-Rio
2003), mestre em Letras (PUC-Rio, 2010) e, atualmente, doutoranda do
programa “Literatura, Cultura e Contemporaneidade” (Letras, PUC-Rio).
Através da tradução dos poetas Adília Lopes e Frank O’Hara, sua pesquisa
procura refletir sobre aspectos teóricos e práticos da tradução de poesia.
Publicou os livros de poesia Pandora – fósforos de segurança (Azougue, 2003)
e Da ilha (Editacuja, 2009), e os artigos “Poesia e tradução: sobre ‘presença’”
(Revista de Letras, UNESP, 2009) e “Hilda Hilst: dois poemas, duas versões”
(Tradução em Revista, 2009).
Carlos Alberto Rizzi
"Doutorando em Geografia Humana pelo Programa de Pós-graduação do
Departamento de Geografia (DGEO-FFLCH-USP); mestre em Geografia Humana
(DGEO-FFLCH-USP), com dissertação indicada para publicação; graduação:
Geografia Urbana (DGEO-FFLCH-USP); membro desde 2008 da equipe júnior da
revista franco-brasileira Confins.
Diva Cardoso de Camargo
Doutora em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo em 1993.
Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em
Estudos da Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: tradução
literária, tradução juramentada, estudos da tradução baseados em corpus,
linguística de corpus, e literatura brasileira traduzida. É autora da obra
Metodologia de pesquisa em tradução e linguística de corpus. Cultura
Acadêmica/Laboratório Editorial do IBILCE, UNESP, 2007).
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 346-350
http://tradterm.vitis.uspnet.usp.br
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Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista
Pós-doutorando em História da Arte (ECA-USP). Doutor em Teoria e História da
Literatura (IEL-UNICAMP), com estágio no Queen Mary College, University of
London. Mestre em Estudos Literários (FALE-UFMG). Bacharel em Tradução da
Língua Inglesa (ICHS-UFOP). Participa do grupo de estudos “Arte e Fotografia
no Brasil – séculos XIX e XX” (ECA-USP). Principais publicações: (1) Blaise
Cendrars - o terceiro elemento do movimento Pau-Brasil. Itinerários,
Araraquara, n. 33, p.139-156, jul./dez. 2011. (2) A recepção do Modernismo
brasileiro nos EUA: um estudo das antologias de poesia brasileira editadas por
Elizabeth Bishop e John Nist. Cadernos de Literatura em Tradução. São Paulo,
v.11, p.71-92, 2010.
Érika Nogueira de Andrade Stupiello
Doutora em Estudos Linguísticos (Estudos da Tradução) pela Unesp de São José
do Rio Preto. Mestre em Estudos Linguísticos pela Unesp de São José Rio
Preto/SP. Professora de Prática de Tradução na Unesp de São José do Rio
Preto.
Pesquisadora
(CNPq)
membro
do
Grupo
de
Abordagens
Multidisciplinares de Tradução (Multitrad ), com pesquisas sobre ferramentas
de tradução, ética tradutória e localização. Possui trabalhos apresentados em
eventos no Brasil e no exterior (Canadá e Alemanha). Tradutora pública e
intérprete de conferências (inglês/português).
Felipe Cabañas da Silva
Bacharel (2008) e licenciado (2010) em geografia pela USP, é tradutor francês
< > português, tendo trabalhado para a Editora Martins Fontes durante dois
anos, na tradução de um Dicionário de Ciências Humanas, publicado em 2010.
Atualmente, é aluno ingressante do mestrado em Geografia Humana da
FFLCH/USP, onde dedica-se a pesquisas voltadas à área de geografia literária.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 346-350
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Maria Emília Pereira Chanut
Profa. Dra. da Área de Língua francesa do Dep. de Letras Modernas do IBILCEUNESP (S. J. do Rio Preto-SP). Graduada no curso Bach.Letras com Hab.de
Tradutor, UNESP (1982). Desenvolve pesquisa em tradução especializada.
Tradutora juramentada (JUCESP n.1319). Últimas publicações: Os statalismes
– particularismos lexicais do francês da Suíça na tradução juramentada.
Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores, v.22, p.91-103,
2011; A tradução juramentada de documentos suíços Resultados parciais em
torno dos termos estudados. Tradterm, v. 15, p. 155-171, 2009.
Maria Izabel Plath da Costa
Mestra e doutoranda em Letras no Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Inspetora e docente na Polícia
Civil do Estado do Rio Grande do Sul. Interesse na linguagem jurídico-policial.
Principais publicações: A diversidade terminológica dos partícipes nos
procedimentos da Polícia Civil do Rio Grande do Sul: Cadernos do IL. n. 40. A
textualidade no Termo de Declaração de inquéritos policiais de homicídio
sem autoria conhecida: Cadernos do IL. n. 40. Proposta parcial de organização
e análise da terminologia da polícia civil: os modus operandi furto chuca,
furto descuido, furto mão grande e furto punga. Debate Terminológico. n. 06.
Marly D’Amaro Blasques Tooge
Tradutora pública e Intérprete Comercial do Estado de São Paulo, mestre e
doutoranda na área de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da FFLCH da
USP. Autora de vários artigos sobre língua, tradução e identidade e bolsista do
CNPQ, também publicou a obra Traduzindo o “Brazil”: o país mestiço de
Jorge Amado (2009), lançado pela editora Humanitas com o auxílio da
FAPESP, livro que resultou de sua dissertação de mestrado. Atualmente se
dedica ao estudo da representação do Brasil, vinculada ao uso de idiomas no
âmbito da música brasileira.
TradTerm, São Paulo, v. 19, novembro/2012, p. 346-350
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349
Pedro Heliodoro Tavares
Professor da Área de Alemão – Língua, Literatura e Tradução - da Universidade
de São Paulo (USP). Doutor em Psicanálise e Psicopatologia (Université Paris
VII) e Doutor em Teoria Literária (UFSC). Realizou Pós-Doutorado em Estudos
da Tradução (PGET-UFSC) investigando as traduções da Obra de Sigmund
Freud. Suas pesquisas e decorrentes publicações acadêmicas abordam
principalmente as relações entre Letras e Psicanálise. É autor dos livros
“Freud & Schnitzler” (Annablume, 2007) e “Versões de Freud” (7Letras,
2011).
Reynaldo José Pagura
Doutor em Letras pela USP e Mestre em Linguística Aplicada pela Brigham
Young University, nos Estados Unidos. É professor do Departamento de Inglês
da PUC-SP, do qual é chefe desde 2005, e do Departamento de Tradução e
Interpretação, da Associação Alumni, em São Paulo. É Tradutor Juramentado
do Estado de São Paulo e tradutor certificado pela American Translators
Association. Tem diversas publicações na área de Estudos da Interpretação e
Estudos da Tradução, em periódicos nacionais e internacionais e em anais de
congressos.
Ricardo Vinicius Ferraz de Souza
Graduado em Letras (Português/Espanhol) pela Universidade de São Paulo.
Possui experiência no ensino de inglês como língua estrangeira. Atualmente, é
mestrando em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo. Áreas de
interesse: teoria e prática de tradução, localização, videogames.
Talita Serpa
Mestranda em Estudos da Tradução pelo programa de Pós-Graduação da
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do curso de LetrasTradutor da União das Faculdades dos Grandes Lagos–São José do Rio Preto.
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Gruaduação: Bacharelado em Letras com Habilitação para Tradução (UNESP) e
Bacharelado em Ciências Sociais (UFSCar). É autora dos artigos Tradução de
termos simples, expressões fixas e semifixas em ciência política e economia
política: um estudo baseado em corpus (Entretextos – UEL, 2011) e A tradução
para o inglês de termos e expressões em Antropologia da Civilização: traços
de explicitação em duas obras de Darcy Ribeiro (Intersecções, 2012).
Terezinha Rivera Trifanovas
Doutoranda em Linguística Aplicada pela Unicamp. Mestre em Linguística
Aplicada pela Unicamp. Especialista em Tradução pela Universidade Gama
Filho. Graduada em Letras Português e Inglês (licenciatura e bacharelado)
pela PUC-Campinas. Docente da Faculdade de Letras da PUC-Campinas.
Artigos científicos publicados: 1) A discursivização do perfil de autonomia do
aprendiz de EaD como forma de homogeneização das subjetividades; 2) Email: dispositivo sinóptico de legitimação de poder; 3) O agenciamento
neoliberal na constituição das subjetividades: o professor exemplar.
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2. DA APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS
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2.1 Estrutura geral: O original deve ser apresentado na seguinte sequência:
Título do trabalho (fonte Trebuchet MS 26 sem negrito ou itálico,
centralizado), seguido de dois espaços, nome(s) do(s) autor(es) (Trebuchet MS
16), dois espaços, Resumo (Abstract) e Palavras-chave (Keywords) em inglês e
em português (Trebuchet MS 11, separados por dois espaços), Texto
(Trebuchet MS 12 – iniciado na página seguinte), Referências bibliográficas.
2.1.1 A filiação institucional e/ou atividade principal do(s) autor(es), seguida
dos respectivos e-mails deve constar em nota de rodapé demarcada com
asterisco junto ao nome do(s) autor(es). Para dúvidas quanto à formatação
das diferentes notas de rodapé consulte aqui.
2.1.2 Caso haja Epígrafe, esta deve ser inserida entre o nome do autor e o
abstract, separada dos mesmos por um espaço antes e um depois. O texto da
epígrafe deve ser centralizado, fonte Trebuchet MS 10 e o nome do autor da
epígrafe deve estar alinhado à direita, fonte Trebuchet MS 10.
2.2 Abstract/Resumo e Keywords/Palavras-chave: O Resumo (Abstract) não
deve ultrapassar 900 caracteres com espaços, seguido de, no máximo, 6
Palavras-chave (Keywords). Devem ser apresentados em inglês (Abstract;
Keywords) e português (Resumo; Palavras-chave). Em se tratando de língua
diversa das mencionadas no item 1.3, o autor tem a opção de acrescentar um
resumo na mesma, imediatamente após o corpo do texto e seguindo a mesma
formatação dos Abstracts/Resumos.
2.3 Parágrafos e espaçamento: Pede-se que os textos sejam justificados e
digitados com espaçamento 1,5 entre linhas, 3 pontos antes e 3 pontos
depois. Os parágrafos devem vir assinalados com tabulação de 1,25 cm na
primeira linha. A fonte a ser usada deve ser Trebuchet MS, tamanho 12 para o
corpo do texto, 26 para o título principal, 16 para o nome do autor, 11 no
Resumo e Abstract, 10 nas notas de rodapé. Os subtítulos devem ser
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separados por um espaço dos parágrafos que os sucedem e por dois espaços
dos parágrafos que os precedem. (acrescentar subtítulos com 1.2 e etcs)
2.4 As indicações bibliográficas no corpo do texto deverão resumir-se à
indicação, entre parênteses, do sobrenome do autor (em Versalete), ano de
publicação e página(s). Ex.: (AUBERT 2005: 61). No caso de mais de uma
publicação do autor da mesma data, acrescentar à data a sequenciação
alfabética (1993a, 1993b etc.).
2.5 Citações:
2.5.1 As citações que contêm até três linhas devem vir entre aspas, sem
itálico, seguidas do sobrenome do autor (em Versalete), ano de publicação e
página(s):
PLAZA (1987: 57) afirma ainda que “por um lado, a recuperação imediata (on
line) da informação em tempo real (...) modifica a nossa percepção dessa
mesma informação, provocando tradução e contaminação”.
2.5.2 Com mais de 3 linhas, acrescente-se recuo de 1, 50 cm em ambas as
margens, fonte Trebuchet 11, sem aspas, sem itálico, espaçamento simples,
três pontos antes e três pontos depois. São seguidas do sobrenome do autor
(em Versalete), ano de publicação e página(s). As citações em língua
estrangeira devem vir em itálico:
A identificação de sintagmas terminológicos é um dos temas mais
complexos tanto para a Terminologia teórica, quanto aplicada.
Esse assunto motiva a valiosa pesquisa apresentada pela autora,
cuja origem vincula-se a uma experiência prática sua com o
reconhecimento da terminologia de Geociências para a
composição de um dicionário bilíngüe (BORGES 2001: 430).
2.5.3 Citação de citação:
Nesse sentido, [...]KRIEGER (apud KRIEGER et al 2000: 144) argumenta que
(...) não sendo mais facilmente identificados, como ocorria
quando, ao modo das nomenclaturas, correspondiam a palavras
muito distintas da comunicação ordinária e permaneciam
praticamente restritos aos diferentes universos comunicacionais
especializados. Hoje, os termos circulam intensamente, porque
ciência e tecnologia tornaram-se objeto de interesse das pessoas
(...).
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2.6 Itens de destaque: Os seguintes itens devem ser observados na elaboração
dos textos:
• Versalete nos nomes de autores em referências e citações. O nome deve ser
digitado com apenas a primeira letra em caixa alta;
• itálico para palavras estrangeiras e neologismos;
• itálico para títulos de obras e publicações, com apenas a primeira letra do
título em caixa alta.
2.7 Notas de rodapé: Devem ser inseridas como tais e não no final do artigo.
Os respectivos números de referência – sempre em ordem numérica crescente
e começando pelo nº 01 – devem ser sobrescritos no texto, sem parênteses,
imediatamente após a passagem a que se referem. Evite utilizar notas de
rodapé para referências bibliográficas. [vide 2.1.1]
2.8 Referências bibliográficas: inseridas ao final do texto, devem listar apenas
as obras citadas no corpo do texto e seguir a seguinte estrutura:
2.8.1 A primeira linha não deve apresentar recuo; já as demais devem
ter um recuo de 1,5 cm da margem esquerda;
2.8.2 Livros no todo – nome do(s) autor(es) (em Versalete), título do
livro (em itálico), edição (quando aplicável), local, editora, data de
publicação, data da primeira edição (quando aplicável);
Exemplo:
JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. 19º ed. São Paulo: Cultrix, 2003
[1969].
2.8.3 Partes de livros – nome do(s) autor(es), título do capítulo ou
similar (sem destaque), a preposição "in" seguida das referências tais
como indicadas em 2.8.2, com a adição dos números de páginas;
Exemplo:
ALBIR, A. H. A Aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e
didáticos. In: PAGANO, A.; MAGALHÃES, C.; ALVES, F. Competência e
tradução. Cognição e discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005:
15-57.
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2.8.4 Artigo de periódico - nome do(s) autor(es), título do artigo (sem
destaque) seguido do nome do periódico (em itálico), volume e/ou n.°,
local e data de publicação, n.os da(s) página(s).
Exemplo:
LUYEN, S. Onomatopeias e mímesis no mangá: a estética do som. Revista USP,
n. 52, São Paulo (CCS-USP), dez/jan/fev 2001-2002, pp. 176-188.
2.9 Dados dos autores: O autor deverá enviar, em arquivo separado (formato
.doc, Trebuchet 12, parágrafo 1,5, 3 pontos antes e 3 pontos depois), um
currículo resumido, em que constem formação, vinculação institucional,
atividade profissional e publicações mais relevantes, se houver (máximo 600
caracteres com espaço).
2.10 Documentos iconográficos (ilustrações, figuras, quadros, HQs e
semelhantes) devem conter os seguintes elementos identificadores: tipo de
documento, autor(es), título (ou “extraído de” quando for o caso), data e
especificação do suporte. Devem ser identificados tanto em sua ocorrência no
corpo do texto como nas Referências Bibliográficas. Quando necessário,
podem ser acrescentados elementos complementares à referência que melhor
identifiquem o documento.
Exemplos:
Figura 1: Extraído de GOSCINNY, R. & UDERZO, A. Asterix e a Cizânia. São Paulo:
Record, 1970. p.10.
Extraído de EVANGELHO DE JOÃO, Ms. Codex Sangallensis nº60, séc. VIII,
pergaminho. Depositado em Sankt-Gallen, Stiftsbibliothek. 70 fls.
Folio 37r.
FRAIPONT, E. Amilcar II. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 nov 1998.
Caderno 2, Visuais. P.D2. 1 fotografia, p&b. Foto apresentada no
projeto ABRA/Coca-cola.
2.11 Documentos de acesso eletrônico: compreendem páginas de internet,
bases de dados, listas de discussão, sites, arquivos em disco rígido,
programas, conjuntos de programas, mensagens eletrônicas e similares.
Devem incluir, quando houver, autor(es), título, versão e descrição do
produto, serviço ou artigo, seguidos do endereço eletrônico. No caso de
artigos, capítulos de livros ou similares, aplicam-se as mesmas normas
definidas nas seções anteriores, acrescidas da indicação do endereço e, entre
parênteses, a data do último acesso.
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Exemplos:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Biblioteca Central. Normas.doc. Curitiba, 1998.
5 disquetes.
SINCLAIR, J. Corpus and text: basic principles. In: WYNNE, M. (ed.). Developing
linguistic corpora: a guide to good practice. Oxford: Oxbow Books.
Pp.01-16. Disponível em: <http://ahds.ac.uk/linguistic-corpora/>.
(30/10/2006).
2.12 Filmes, DVD e similares: devem conter título, nome do(s) diretor(es),
produtor(es), local, produtora, data e especificação do suporte em unidades
físicas.
Exemplo:
O AMIGO do povo. Direção e produção Jean Koudela. São Paulo: Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 1969. 1 bobina
cinematogr. (10 min): son., p&b: 16 mm.
Quando necessário, acrescentam-se elementos complementares para melhor
identificar o documento.
Exemplo:
BLADE Runner. Direção: Ridley Scott. Produção: Michael Deeley. Trilha sonora:
Vangelis. Los Angeles: Warner Brothers, c1991. 1 DVD (117 min),
widescreen, color. Baseado na novela “Do androids dream of eletric
sheep?” de Phillip K. Dick.
2.13 Elementos de caráter misto ou de natureza indefinida: No caso de
inserção de capturas de tela de programas no corpo do texto, HQs obtidos em
meio eletrônico e outros elementos de natureza indefinida, os mesmos devem
ser referenciados sempre que forem inseridos no texto, bem como nas
Referências Bibliográficas, seguindo os parâmetros definidos nos itens 2.8,
2.10, 2.11 e 2.12.
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