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EPISTEMOLOGIA E COMUNICAÇÃO: UM ENSAIO SOBRE O OBJETO COMUNICACIONAL. 1 Prof. Dr. Daniel Christino 2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Gostaria de começar a conferência com uma nota sobre seu título. Intencionalmente, escolhi o conectivo (e) e não o possessivo (de + a) para sublinhar o fato de que este texto procura mapear pontos de contato entre dois discursos e não fundamentar o campo comunicacional, ou fornecer uma descrição suficiente das condições de possibilidade do conhecimento específico à comunicação. Estas tarefas estão muito além do escopo desta fala. Entretanto é necessário oferecer uma definição acessível de epistemologia, se quisermos seguir com nossa associação. Há, em geral, dois modelos possíveis para a definição de um conceito. Podemos abordá-lo desde a perspectiva filológica, ou seja, acessar seu conteúdo semântico tradicionalmente copilado no dicionário e, a partir daí, notarmos as modificações que o conceito sofreu durante seu percurso na história do pensamento – e, neste caso específico, sua transformação em disciplina filosófica. Mas também podemos tentar entende-lo em seu uso cotidiano, pragmaticamente. Neste sentido, interroga-se sobre o significado do termo em suas diversas situações de uso. De qualquer forma, começa-se sempre pela pergunta aristotélica clássica – estrutura que ele acreditava capaz de fornecer a “fórmula da essência” de um conceito: o que é epistemologia? O uso filosófico moderno do termo começa com Kant. Em sua Crítica da Razão Pura, Kant se pergunta, em geral, porque devemos acreditar que a física newtoniana é correta e seus juízos acerca do mundo podem ser considerados como conhecimento científico. Nos termos de Kant, a questão epistemológica se articulou como a questão sobre a condição de 1 Palestra proferida na abertura do IV Seminário de Mídia e Cultura do Mestrado em Comunicação da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG. Goiânia, 23 de Novembro de 2013. 2 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de Brasília, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Programa de Pós-graduação Facomb/UFG. Líder do Grupo de Pesquisa em Narrativa e Transmídias do CNPq/UFG. 1 possibilidade da verdade de certos juízos sobre o mundo. Ou seja, o problema clássico da justificação. A resposta de Kant supunha ser possível atribuir à evidência experimental um fundamento transcendental conformado numa analítica da subjetividade. Ele usa o mesmo esquema quando analisa os juízos morais e estéticos. Sua validade encontra-se tanto na experiência quanto em estruturas cognitivas inatas – que ele denomina com a expressão latina a priori. Há sérios problemas com a resposta kantiana à questão que ele mesmo formulou: o que posso saber? Não nos cabe aqui aprofundar a crítica sobre o modelo kantiano. Sua filosofia nos interessa na medida em que sua formulação determinou o modo como se discutiria epistemologia a partir de então. Mas há um pressuposto em Kant que devemos abordar se quisermos compreender o papel importante da reflexão epistemológica na comunicação e, para tanto, precisamos recuperar a distinção cartesiana entre res cogitans e res extensa (dualismo) e, em seu desdobramento, as conclusões que Newton retira desta separação. A grande mudança que Descartes provocou no conhecimento escolástico no qual ele havia se formado foi imaginar que o conhecimento não estava fundamentado na existência divina. Segundo Etienne Gilson, a epistemologia moderna entra no mundo a partir das Meditações de Descartes. Até então, a possibilidade do saber estava dada pelo fundamento ontológico da criação. Ambos, homem e mundo, haviam sido criados por Deus e, portanto, compartilhavam o mesmo status ontológico. O ser do homem medieval, assim como o ser do mundo, é ser criação divina. Nesta situação a discussão sobre o saber se resumia à gnosiologia, ou seja, ao debate sobre os diversos tipos e formas de conhecimento e não sobre sua possibilidade. A separação cartesiana entre sujeito e objeto introduz o problema da possibilidade. E Descarte procura resolvê-lo a partir da constituição ontológica do sujeito e, com isso, atribuilhe, além da condição de criatura, o locus a partir do qual todo o conhecimento pode surgir e se basear. Um conhecimento racional, abstrato e dedutivo; em suma, matemático. Isto não seria suficiente. Como bem apontaram Bacon, Locke, Hume e os empiristas ingleses, as ideias inatas de Descartes não dão conta do conhecimento obrigatoriamente derivado da experiência. O sujeito cartesiano pensa a experiência como uma derivação da racionalidade e, portanto, não dá conta da física. É possível dizer que o embate entre 2 racionalistas e empiristas continua até hoje, com ênfase para um lado ou para o outro na medida em que a ciência avança e se modifica historicamente. Newton dialoga diretamente com Descartes. No início de sua produção filosófica, Descartes escreve – e deixa inacabado – um pequeno tratado chamado Regulae ad directionemingenii3 no qual delineia o que seria seu “método” geométrico/dedutivo. Já nos PhilosophiæNaturalis Principia Mathematica4 Newton inclui uma discussão, denominada exatamente “regras para a direção do espírito”, na qual procura enumerar as leis fundamentais que norteiam o uso da razão na ciência. As regras, ou hipóteses, são as seguintes: 5 a) Não se hão de admitir mais causas das coisas naturais do que as que sejam verdadeiras e, ao mesmo tempo, bastem para explicar os fenômenos de tudo. A natureza, com efeito, é simples e não se serve do luxo de causas supérfluas das coisas. b) Logo, os efeitos naturais da mesma espécie têm as mesmas causas. Assim, as causas da respiração no homem e no animal, da descida das pedras na Europa e na América, da luz no fogo de cozinha e no sol, da reflexão da luz na terra e nos planetas. c) Todo corpo pode transformar-se num corpo de qualquer outra espécie e adquirir sucessivamente todos os graus intermediários das qualidades.6 d) O centro do sistema do mundo está em repouso.7 A grande diferença entre eles, tanto aqui como na totalidade de seus sistemas de explicação da física, encontra-se no papel preponderante que a experiência possui em Newton, enquanto Descartes se baseia quase que inteiramente no racionalismo dedutivo. No caso específico das regras newtonianas cada uma equivale a um princípio organizador do pensamento: simplicidade; uniformidade; homogeneidade; controle (experiência). O que nos interessa particularmente nas regras newtonianas é sua dupla natureza. Elas são ao mesmo tempo normativas e descritivas. São normativas na medida em que indicam os 3 Regras para a direção do espírito Princípios Matemáticos da Filosofia Natural 5 NEWTON, Issac. Princípios Matemáticos. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Coleção Pensadores. 6 A formulação da segunda edição é mais clara: “as qualidades dos corpos que não podem ser aumentadas e diminuídas, e aquelas que pertencem a todos os corpos nos quais é possível realizar experiências devem ser consideradas qualidades de todos os corpos”. 7 Novamente, na segunda edição temos: “Na filosofia experimental devemos considerar as proposições inferidas dos fenômenos por uma indução geral como exatas ou ao menos como aproximadamente verdadeiras, não obstante qualquer hipótese contrária que se possa imaginar, até o momento em que outros fenômenos ocorram que as façam mais exatas ou sujeitas a exceções.” 3 4 critérios sob os quais todo tipo juízo deve se submeter se quiser pretender constituir-se conhecimento. Descritiva na medida em que indica os elementos que compõem a ideia – metafísica – de natureza que está na base da ciência moderna. As regras newtonianas são ao mesmo tempo uma receita para a justificação dos juízos científicos e uma descrição da ideia de natureza como totalidade, de sua ontologia. Foi isso que Kant percebeu e elaborou com obsessão verdadeiramente alemã. Suas três críticas constituem um aprofundamento da concepção cartesiana de subjetividade, seu desdobramento em diversas faculdades (inclusive a genial descrição do tempo e do espaço como estruturas a priori da percepção) e o estabelecimento das condições de justificação do conhecimento científico. Desta discussão introdutória pode-se entender que a noção de epistemologia adotada aqui compreende tanto uma discussão sobre o problema da justificação – quais são as bases para que as proposições enunciadas pela “ciência da comunicação” tenham alguma pretensão de verdade – quanto uma caracterização do sujeito envolvido na configuração – ou cena – epistemológica fundamental (a oposição fundante entre sujeito e objeto proposta por Descartes). Assim, refletir sobre epistemologia é refletir, em princípio, sobre estas duas coisas. Quais são as condições básicas para distinguir uma proposição verdadeira de uma falsa no campo comunicacional? Que tipo de sujeito está implicado nas teorias da comunicação que compõem o campo? DUAS DIREÇÕES POSSÍVEIS Se observarmos os textos sobre teorias da comunicação veremos que alguns deles procuram distinguir dois eixos principais de caracterização das teorias existentes que vou exemplificar aqui a partir da obra Relevance: Communication and Cognition de Dan Sperber e Deirdre Wilson8. Na introdução os autores propõem entender o fenômeno da comunicação intersubjetiva a partir de dois modelos. Na primeira, que eles chamam “codemodel” (ou modelo em código) a comunicação é vista como um processo computacional, e.g., a teoria matemática da comunicação. O pressuposto envolvido aqui é o de que a comunicação resume8 Uma distinção parecida encontra-se na análise heideggeriana da linguagem em Ser e Tempo (§34). “Comunicação nunca é a transposição de vivências, por exemplo, de opiniões e desejos do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito. A copresença já se revelou essencialmente na disposição e compreender comuns. O Ser-com é partilhado “expressamente” na fala”. Cf. também Kusch, M.. Linguagem como cálculo versus linguagem como meio universal. São Leopoldo: Unisinos, 2003. 4 se a um processo de codificação e decodificação informacional aplicável a qualquer contexto no qual aconteça uma dinâmica interacional. Dito de outro modo, mesmo a comunicação humana nada mais é do que uma sofisticação, por vezes um complicador, do modelo básico. A teoria matemática da comunicação foi uma das primeiras a teorizar os elementos constitutivos do processo comunicacional enquanto tal e a falar em comunicação como um fenômeno independente, embora articulado numa totalidade sistêmica. Independente da eficiência explicativa do modelo, herdamos dela um tipo de “configuração” do objeto comunicacional que ainda permanece ativo nos debates atuais. Configuração, neste contexto, significa o modo pelo qual visualizamos o objeto epistemológico do campo, e pode ser ilustrado de modo mais claropara nós, pelo modelo de Lasswell 9. As perguntas “Quem? O quê? Para quem? Qual canal? Com que efeito?”constituem outro modo de apresentação da mesma figuração – na verdade uma tradução do modelo matemático para o campo sociológico.Em certo sentido, quando usamos a expressão ciência da comunicação, estamos nos referindo – seja diretamente, seja de modo oblíquo ou metafórico – a esta configuração modelar. O pressuposto essencial é o de que comunicar é transferir informação; seja entre dois polos mecânicos – dois computadores –, ou humanos. Há comunicação quando há codificação, transferência e decodificação. Obviamente o modelo foi se sofisticando ao longo do tempo, mas sua essência permaneceu a mesma, ou seja, um modelo linear (não importa se integrando ou não o feedback ao esquema) que não integra o sentido das proposições à eficiência do processo; ou melhor, reduz o fenômeno do sentido ao da codificação e decodificação informacional. Vale a pena notar que esta ideia de comunicação está na base da atual analogia da mente com o computador (uma analogia altamente explicativa e cujos resultados aprofundaram enormemente o conhecimento que se tem sobre o funcionamento do cérebro), derivada em grande parte de uma intuição do matemático Alan Turing. De acordo com o sentido de epistemologia adotado nesta conferência a pergunta que se deve fazer agora é a seguinte: o que há de verdadeiro neste modelo? Que tipo de sujeito ele implica? 9 A referência a Lasswell é meramente ilustrativa. Os estudos sociológicos da comunicação já ultrapassaram em muito a necessidade de uma fundamentação cientificista do seu conhecimento como a que inspirou as primeiras pesquisas funcionalistas da comunicação. 5 Na tradição dos estudos em comunicação esta configuração se impôs como estrutura fundamental do objeto. Menos por motivos ideológicos do que por sua força explicativa. Em certo sentido, o modelo matemático da teoria da comunicação – ou, modelo da comunicação em código – iluminavários aspectos do fenômeno comunicacional assim como ele foi visto tradicionalmente. Isto que chamei “configuração” acabou se estabelecendo como o padrão para os discursos sobre o objeto comunicacional de modo que a maioria das teorias acabe sendo uma derivação ou confirmação desta configuração. Seus elementos constituem a base para as descrições e explicações dos fenômenos comunicacionais. Assim, a publicidade, por exemplo, nada mais é do que um modo – em certo sentido uma técnica – de composição das mensagens que trafegam por certo canal (ou mídia) operando a mediação entre os sujeitos engajados num mesmo ambiente social cujo traço determinante é a ideia de consumo. A própria ideia de mediação pode ser entendida como uma derivação deste modelo em código, ou linear, ou matemático. Tais derivações, assim como em Lasswell, operam modificações adaptativas à configuração original, atribuindo ênfase a determinados aspectos cujo protagonismo acaba determinando o discurso epistemológico específico àquela região da comunicação. As atuais tentativas de se fundar uma teoria do jornalismo, por exemplo, não tem conseguido escapar a esta configuração original, em parte, acredito, porque deixam propositadamente de abordar o problema geral da comunicação. Em oposição ao modelo em código, Sperber e Wilson defendem o que denominam modelo inferencial ou teoria da relevância. Os autores definem o processo cognitivo de codificação e decodificação como o emparelhamento entre sinais fonéticos e significados pragmáticos (utterance). Para eles, a questão encontra-se na enunciação das sentenças. Com isso pretendem pensar a comunicação “em movimento” e não apenas em referência a um modelo estático. Em geral, tal abordagem enfatiza a intencionalidade do enunciador e, claro, do receptor. Ainda estamos dentro da configuração matemática da comunicação, mas com uma variante muito importante: o processo de codificação e decodificação não se encontra no processamento das linhas de código, isto é, não está contido nas regras de funcionamento exclusivamente inerentes à linguagem. Apoiados na tradição pragmática da filosofia de linguagem, eles introduzem a noção de inferência no modelo cognitivo e descritivo do sujeito engajado nestas relações de comunicação. Isso quer dizer: a comunicação não está circunscrita à limpidez do código, mas depende necessariamente do modo como os falantes acessam o mundo semântico no qual estão inseridos; depende necessariamente do ruído para ser compreendida e não da sua supressão. 6 O que nos interessa nesta teoria da inferência – aqui apenas delineada – é a ideia de que a comunicação depende do modo como acessamos aquilo que está, a princípio, fora do processo comunicativo entendido apenas como processamento de um código. O mundo (e precisamos especificar o que se pode entender por esta expressão) é essencial para o sucesso ou fracasso de qualquer comunicação. Ele pode ser considerado como o verdadeiro meio no qual se dá a interação comunicativa. Epistemologicamente falando, o modelo inferencial de comunicação tematiza a questão do sujeito que deixamos suspensa no início da nossa fala. Apontamos, inicialmente, que a discussão epistemológica deveria endereçar duas questões essenciais: a justificação e a subjetividade. Estas questões estão necessariamente imbricadas e podemos tematizá-las conjuntamente. Para tanto devemos nos perguntar, finalmente, o que de fato caracteriza a comunicação humana e a separa, por exemplo, da comunicação entre sistemas artificiais ou biológicos. A resposta encontra-se no modo como o ser humano constitui sentido (Sinn). O modelo inferencial defendido por Sperber e Wilson nos indica que este sentido, embora seja construído a partir de uma operação cognitiva articulada pela linguagem natural, é existencialmente enraizado, isto é, está essencialmente amarrado a uma noção simbólica de mundo. Dito de outro modo, só nos é possível interpretar o sentido das enunciações nos referindo à experiência de mundo na qual tanto nós mesmos quanto nossa linguagem está mergulhada. Não nos cabe nesta conferência mergulhar no problema filosófico da subjetividade – tarefa necessária se quisermos aprofundar a investigação –, mas é possível afirmar que a constituição de tal sujeito não pode mais ser, ao modo cartesiano, uma espécie de mônada isolada de seu contexto. É essencial para se compreender a comunicação e fundamentá-la epistemologicamente que o elo entre o sujeito e seu mundo simbólico seja esclarecido. Neste sentido, o essencial da comunicação não se encontra, como tradicionalmente se tem afirmado, num dos polos da cena epistemológica informacional. Ele talvez se encontre no espaço que constitui o “entre” destes polos. O sentido de mediação implicado nos fenômenos comunicacionais talvez esteja mais próximo da ideia de ambiente do que da ideia de conexão. A COMPLEXIDADE DO OBJETO COMUNICACIONAL Devemos nos perguntar pelo sujeito comunicacional, ou seja, pela concepção de subjetividade assumida nas teorias da comunicação que estudamos na academia. É ela que guia nosso entendimento dos processos e dos produtos estudados neste campo. O sujeito 7 cartesiano, isolado em sua ipseidade, vem modulando secretamente nossos estudos e está subentendido no modelo informacional que orienta nossa configuração do fenômeno. Mas não seria possível pensar outro tipo de subjetividade engajada nos processos comunicativos? Não teria este estudo que se encaminhar numa direção oposta a este modelo, na direção das humanidades? A complexidade do fenômeno comunicacional deriva exatamente desta ambiguidade epistemológica: nosso objeto pertence tanto às ciências do espírito quanto às ciências da natureza – para usar a clássica terminologia do século XIX alemão. Nada demonstra esta realidade com maior clareza do que a persistência do modelo em código como base ainda em uso para nossa configuração do objeto. Diversas teorias da comunicação nada mais fazem do que transpor tal configuração para o campo das ciências humanas (e sociais), como o exemplo de Lasswell deixou bem claro. A herança newtoniana que ainda hoje alimenta com vigor as condições de possibilidade para atribuição de valores de verdade aos juízos científicos pulsa forte nas teorias ligadas aos processos informacionais. E, devemos dizê-lo, elas não podem simplesmente ser consideradas sem valor ou mesmo ultrapassadas. Por outro lado, os aspectos qualitativos dos processos comunicacionais, seu sentido e uso no mundo humano, seu significado – especificamente para o campo da ética – escapa a qualquer tentativa de redução a este modelo informacional, não obstante seu caráter paradigmático na definição do objeto comunicacional. Tão claro como o fato de que o modelo informacional explica certos aspectos do fenômeno comunicacional (inclusive aspectos humanos), ele é incapaz de explicar as dimensões culturais e sociais que extrapolam e – como indica o modelo inferencial – determinam certas dinâmicas destemesmo fenômeno. A comunicação é, portanto, um objeto complexo porque extrapola a distinção fundamental entre modos de saber (próprios das ciências da natureza em oposição às ciências sociais), provocando uma tensão epistemológica que tem feito tanto as teorias quantos as tentativas de justificação esbarrarem em seus limites enunciativos. Por outro lado, a ideia de uma teoria unificada do campo comunicacional – a verdadeira tarefa de qualquer fundamentação – parece uma utopia distante. Por fim, estudar epistemologia é exatamente enfrentar estes problemas formal e historicamente, não se furtando aos diálogos necessários tanto com a história da ciência e da filosofia quanto com os modelos explicativos pertinentes ao próprio campo comunicacional. 8 Resta-nos, como pesquisadores, tentar, com todas as nossas forças, alcançar a profundidade destas questões. REFERÊNCIAS HABERMAS, J. Verdade e Justificação. São Paulo: Loyola, 2004. HEIDEGGER, M. Kant and the problem of Metaphysics. Indianapolis: Indiana University Press. 1997. KUSCH, M. Línguagem como cálculo versus linguagem como meio universal. São Leopoldo: Unisinos, 2003. NEWTON, Isaac. Princípios Matemáticos. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Coleção Pensadores. ROSSI, P. O nascimento da ciência moderna na Europa. EDUSC. Bauru:2001. MARQUES, J. Intersubjetividade e Comunicação em Martin Heidegger. In: A. N. Heck, Interação Comunicativa - aproximações filosófico-linguísticas. Goiânia: UFG 2000. p. 0924 SCHUTZ, A. The Phenomenology of the Social World. Illinois: Northwestern University, 1967. SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Relevance, Communication and Cognition. Oxford: Blackwell, 2004. STEGMÜLLER, W. A filosofia Contemporânea. E.P.U.São Paulo: 1977. 9 A COMUNICAÇÃO E O PROBLEMA DAS CIÊNCIAS 1 Prof. Dr. Luiz Signates2 Antes de comentar as ideias do professor Daniel Christino, gostaria de efetuar um registro, que reputo como sendo da maior importância. Há quatro anos, o nosso PPG está inserido num dos mais produtivos e relevantes PROCADs da área de comunicação no país: aquele que une nosso Mestrado e o PPG da UFJF, sob a liderança de quatro professores da Unisinos, voltado para os estudos críticos de epistemologia da comunicação, que inclusive já contribuiu para a formação sanduíche de vários de nossos mestrandos. Contudo, é a primeira vez que um seminário promovido pelo nosso PPG confere o destaque a esta temática, posicionando-a na conferência de abertura. Sinto que, enfim, nosso programa se introduz, de modo concreto, numa das mais importantes discussões que têm sido feitas em nossa área, sobretudo no GT Epistemologias da Comunicação da Compós, que, aliás, pela segunda vez, é coordenado por um docente da Facomb, atestando que, no meio científico brasileiro, estamos adquirindo uma visibilidade interessante, que deve ser adensada, com o empenho de mais gente, entre nós, nos estudos dessa temática. Para adentrar o tema, é preciso que se diga que, evidentemente, estes comentários não têm nem podem ter a pretensão de exaurir os enormes problemas brilhantemente levantados pelo conferencista. Um brilho não apenas filosófico, mas também didático, revelando a realização do potencial do jovem professor Daniel, como docente e filósofo da comunicação. Ser a conferência de abertura deste Seminário pronunciada por ele significa, ao mesmo tempo, o reconhecimento de sua competência intelectual e, ao mesmo tempo, a valorização da “prata 1 Comentários à conferência de Daniel Christino, na abertura do IV Seminário de Mídia e Cultura do Mestrado em Comunicação da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG. Goiânia, 23 de Novembro de 2013. 2 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília. Professor do Programa de Pós-graduação Facomb/UFG. Líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Religiosidade do CNPq/UFG. 1 da casa”, algo que já havia passado da hora de fazermos. Por tais razões, honra-me muito compartilhar o debate e as preocupações teóricas com o professor Daniel Christino e o professor Goiamérico Felício, hoje. Eis porque a pretensão deste comentário é, neste momento, tão somente, dar efetividade intelectual às interessantes perguntas que ele faz e dar início ao debate epistemológico entre nós, que, repito, é hoje um dos mais importantes da área de comunicação no Brasil. A fala de Daniel se inicia com um cuidado especial para com o rigor intelectual. Algo que às vezes sinto que ainda falta entre nós, teóricos e pesquisadores da comunicação. Ao invés de falar em uma “epistemologia da comunicação”, ele preferiu tecer considerações sobre as eventuais interfaces entre o debate da epistemologia (vista como disciplina filosófica específica) e o da comunicação (mencionada aqui como o arranjo teórico com pretensões científicas advindo de várias áreas do saber e reunido, nem sempre com método, pelas academias do campo da comunicação). Eu, na verdade, gostaria que o palestrante dissertasse mais sobre essa disjunção ou pela possibilidade de que se torne uma injunção, razão pela qual, nestes comentários, não me comprometerei a ficar no âmbito que ele propõe – até para viabilizar algumas perguntas que, se válidas, podem inspirar novas buscas nesse âmbito que nos une. O texto do professor Daniel se divide em três partes, conectadas, porém distintas. Uma primeira, em que se debruça sobre a discussão epistemológica geral, como prosperou no campo da filosofia; uma segunda parte, na qual insere o debate comunicacional, numa perspectiva de diálogo entre o cognitivismo e a fenomenologia, com interessantes resultados epistemológicos; e, por fim, uma terceira e última parte, onde elabora o corolário desse percurso e na qual lança o repto deste texto e o que, em minha opinião, o torna brilhante: a ousada e sedutora tese de que o debate epistemológico na comunicação deve se situar justamente na ruptura entre as ciências naturais e as ciências do espírito. Ou, em outros termos, e aí já estou interpretando, que a condição de possibilidade de uma epistemologia da comunicação se situa na ruptura com esta ruptura, seja por meio do esboroamento da disjunção entre fundamentação e subjetividade, seja ao menos pelo enfrentamento produtivo desta tensão. Em cada uma destas partes, ocorre-me efetuar indagações, a partir do campo comunicacional. Da primeira parte, ante a questão original da filosofia do conhecimento: 2 donde deriva o conhecimento, do exercício da razão ou da experiência? Ocorre-me indagar sobre o que há de especificamente comunicacional no saber. Se Habermas estiver certo, toda a possibilidade da razão encontra-se na permuta de saberes dos sujeitos entre si. O sujeito habermasiano, por ser intersubjetivo, não tem outra alternativa senão construir o conhecimento de modo comunicativo. O modo da descoberta científica, por exemplo, poderia eventualmente ser descrito na figura isolada do cientista no laboratório, mas não há legitimação da descoberta sem o reconhecimento dos pares, mesmo que a experiência empírica não possa ser replicada. De forma semelhante, o saber filosófico, que não se ancora na empiria, e sim nas condições de exercício da lógica, ratifica-se no episódio da argumentação – oral ou escrita – dos filósofos entre si. Por ser produto simbólico, todo o conhecimento é feito de linguagem e, portanto, encontra na comunicação seu próprio modo de ser. A comunicação é, portanto, o laço complexo entre a racionalidade e a empiria, ancorado este laço na presunção inescapável de que todo conhecimento, para tornar-se válido, necessita de realizar-se como legítimo. Ao lado, pois do problema da justificação, o sujeito do conhecimento busca, para si e para o saber, o status da legitimidade, obtido comunicativamente. Não foi a toa que o debate epistemológico do século XX, logo depois de atingir seu ápice lógico, com a lógica da descoberta científica de Popper, migrou rapidamente com Thomas Kuhn para o terreno fértil da sociologia do conhecimento e para o relativismo provocador de Paul Feyerabend: a partir de então, era de legitimidade que se falava, ao se falar em justificação. As possibilidades da ciência são, pois, as possibilidades da comunicação. Daí advém a importância epistemológica da resposta teórica à definição da comunicação. E o que encontramos, ao acompanharmos o pensamento do professor Christino? A bipartição entre homem e natureza se reproduz entre nós como teoria da informação e teoria da comunicação (adotando uma apreensão bem generosa para o termo “teoria” como algo próximo de “modelo” ou “padrão de articulação conceitual”). O modelo “emissor-receptor-meio-mensagem” arrancado dos elementos que compuseram o sistema da retórica em Aristóteles, atualizados pelo funcionalismo de Lasswell e dos matemáticos da informação, se situa num quadro de enorme tensão. Por um lado, ele se revela claramente insuficiente para explicar as complexas relações comunicativas dos homens entre si, sendo mesmo possível afirmar que, como interpretam os construcionistas, mesmo quando alguém aprende algo com outrem, não há transferência de informação, de modo 3 análogo ao que ocorre a cópia de arquivos entre máquinas. A área da educação, desde Paulo Freire, foi fértil nessa crítica, ao que chamou, curiosamente, de educação bancária – era justamente a crítica do informacionalismo que se fazia: o que quer que seja educar, trata-se de um fenômeno comunicativo e não informacional. Neste ponto, é preciso que se esclareça essa posição, antes que alguém queira me refutar dizendo que “há informação na comunicação”, pois há aprendizado, há compartilhamentos de sentidos e significados etc. Não estou evidentemente querendo dizer que toda a comunicação é mero vínculo social, sem permutas ou compartilhamentos de saber. O que estou afirmando é que a teoria informacional, com seus padrões hauridos do positivismo lógico, não tem condições de explicar a comunicação humana. A capacidade da teoria informacional de produzir o efeito de verdade é limitada, justamente porque desconsidera a subjetividade complexa que o fenômeno comunicacional envolve. Como falar no “entre”, em termos informacionais? Como referir-se a um sujeito não separado do outro sujeito (o mundo, fenomenologicamente falando) em termos informacionais? Tais limitações me parecem quase uma evidência de fato, de tão óbvias. Contudo, o reconhecimento desta limitação específica não pode nos cegar para o fato de que esta articulação teórica teve enorme sucesso, naquele âmbito que, conforme demonstra Daniel, é a sua natureza: o âmbito das ciências naturais. Quando nos referimos às coisas e à tecnologia, é de informacionalismo que se trata. Entre computadores, os arquivos são, sim, copiados, há transferência de informação, sendo inclusive possível dizer que é assim também que os nossos corpos funcionam. Penso que uma das mais importantes dificuldades da teoria da comunicação é afirmarse como legítima, ante o episódio de sucesso da teoria matemática da informação no mundo contemporâneo. No nosso campo científico, já falamos em mediações, circulação de sentidos, construção das visões de mundo, mundo da vida, formações discursivas e por aí vai. E somos capazes de brandir tais categorias junto com aquelas do informacionalismo, referindo-nos a emissores e receptores, meios e mensagens, como se a diferença epistemológica entre o naturalismo e o construcionismo não fosse algo que tivéssemos que levar em consideração. E é aí que a exigência epistemológica se faz sentir com mais ênfase: ao fazermos isso, sem a necessária justificação, sem o enfrentamento racional do problema, incorremos em mera falta de rigor e nos situamos em algum lugar entre a ingenuidade epistemológica e a mera confusão teórica. 4 A pergunta que serviu de corolário à exposição de Daniel Christino dá a partida para esse enfrentamento. Ao sugerir que a dificuldade que enfrentamos de definir o nosso objeto deriva diretamente do conflito epistemológico das ciências, ele, de forma sedutora mas igualmente perigosa, nos localiza no olho do furacão. É sedutor porque, se ele estiver certo, isso significa dizer que o problema da fragmentação científica é um problema comunicacional, no sentido epistemológico do termo. E perigoso, porque desloca a condição de possibilidade de uma epistemologia da comunicação para o âmbito da disjunção entre natureza e cultura, entre inconsciente e consciente, entre a finitude do conhecimento e da temporalidade humanas e a infinitude do próprio universo como objeto de conhecimento. E com certeza não estamos preparados para um enfrentamento nessa proporção. 5 Reflexões sobre a Lei de Acesso à Informação no Brasil: o diálogo entre cidadão e Estado na construção de uma sociedade democrática1 Elisa Costa Ferreira Rosa2 Tiago Mainieri de Oliveira3 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO Resumo Com o direito à informação, conquistado ao longo dos debates na esfera pública, emerge um novo elemento na construção da cidadania: a comunicação pública. A partir da análise da nova Lei de Acesso à Informação no Brasil reflete-se como o diálogo entre os cidadãos e o Estado, base para uma comunicação pública, torna-se elemento fundamental para a construção de uma sociedade democrática. Palavras-chave Comunicação pública; cidadania; democracia; Lei de Acesso à Informação. Introdução A relevância do direito à informação é um tema cada vez mais frequente nas discussões da sociedade civil, da academia, dos meios de comunicação e dos governantes. O acesso à informação pública e a possibilidade do cidadão dar um retorno ao Estado a partir dessa informação é chamada de Comunicação Pública. Esse processo dialógico é o centro da democracia e é fundamental para o cumprimento dos direitos humanos. Nas últimas décadas, houve uma verdadeira revolução no direito à informação no Brasil. O melhor exemplo disso é a Constituição Federal Brasileira de 1988. A transparência dos órgãos públicos é um direito que consta na Constituição Federal Brasileira e nas normas administrativas. Portanto, é dever do Estado fornecer 1 Trabalho apresentado no GT 2 – Comunicação, Mídia e Direitos Humanos, do VI Seminário de Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Graduada em Comunicação Social habilitação em Relações Públicas, especialista em Comunicação e Marketing, graduanda em Direito e mestranda em Comunicação na linha de pesquisa Mídia e Cidadania pela FACOMB/UFG. Integrante do grupo de estudos e pesquisa da “Comunicação em Contextos Organizacionais” CNPq/UFG. E-mail: [email protected]. 3 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA/USP), com doutorado sanduíche na Universidade da Flórida (EUA). Mestre em Engenharia da Produção e bacharel em Relações Públicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente é professor e pesquisador dos cursos de graduação e de pós-graduação em Comunicação (mestrado e especialização) da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Líder do grupo de pesquisa e estudos da “Comunicação em contextos organizacionais” – CNPq/UFG. Membro sócio da Abrapcorp e da Intercom. E-mail: [email protected] informações verdadeiras e completas para a sociedade. Trata-se, destarte, de exercício de um dos direitos fundamentais que integram a cidadania. Um direito conquistado e edificado ao longo dos debates públicos na arena política. Todavia, nem sempre a transparência esteve presente nas relações entre agentes administrativos e sociedade civil. A conquista, paulatinamente, consolidou-se ao longo da história da humanidade. Atualmente, o princípio da transparência nas atividades administrativas deve permear todos os atos da administração pública. Com a formação das esferas públicas burguesas, os intelectuais aspiravam por uma nova espécie de governo. Eles (os burgueses) desejavam participar e ter conhecimento efetivo da administração pública. Conforme Habermas (1984: 35), há dois significados para a palavra público: um refere àquilo que é comum a todos, e o outro trata exatamente de “tornar visível o invisível”. Ou seja, a informação deve ser “genericamente acessível”. Os órgãos públicos enquanto departamentos de um governo democrático têm por obrigação tornar conhecidos os atos praticados pela administração, ou seja, trazer a visibilidade. No caso da democracia brasileira, esse princípio confere a qualquer cidadão a possibilidade de protestar e interferir em coletivo. Para que se cumpra este princípio de transparência, a ética deve permear todo o processo comunicativo dos órgãos governamentais. Nem sempre a informação fornecida ao cidadão é correta ou completa. A maior preocupação por parte dos órgãos do governo é ter a opinião dos diferentes públicos favoráveis a eles. Nisso, não há problema algum. O problema surge quando um "theatrum politicum” (GOMES, 2004: 291) é montado para manipular o processo de produção da opinião pública, fruto do debate e da livre consideração de opiniões entre os indivíduos e potenciais eleitores. No presente artigo, o objetivo é discutir como o processo da comunicação pública e a construção da cidadania podem evidenciar traços democráticos de uma dada sociedade. Propõe-se também analisar a Lei de Acesso à Informação e suas implicações para a sociedade brasileira. A transparência, o direito à informação, a comunicação pública, o interesse coletivo e a cidadania são, a partir do nosso entendimento, características democráticas essenciais para a organização e estruturação de uma sociedade. Assim sendo, com este artigo, propomos uma reflexão acerca desse direito à informação pública como maneira de consolidar a democracia. Democracia e Cidadania Cidadania, de acordo com Hannah Arendt, é o direito a ter direitos (ARENDT, apud MAZZUOLI, 2003: 7). Conforme esta concepção, os direitos não são dados, mas construídos dentro de uma comunidade política. Logo, a cidadania é uma conquista alcançada por meio de um processo conflituoso de negociação e debate pelo qual os sujeitos adquirem autonomia e tornam-se atores políticos: dignos de respeito, estima e reconhecimento. Miranda (2002) nos elucida o conceito de democracia a partir de um ponto de vista que engloba pensamentos sociológicos e jurídicos que vão ao encontro do tema deste trabalho. Para ele, Democracia é a participação do povo na ordem estatal: na escolha dos chefes, na escolha dos legisladores, na escolha direta ou indireta dos outros encarregados do poder público[...] Mas democracia somente há, se existe a co-decisão. Chama-se co-decisão e deliberação em comum, pelo povo ou por pessoas escolhidas pelo povo, isto é, não por pessoas oriundas de atos de força, ou de fato estranho ao querer da população. (MIRANDA, 2002: 191) Continuando, segundo o autor, quando remetemos ao termo “democracia” está presente o elemento “governo”. Ao falarmos de país democrático ou povo democrático na acepção de igualdade, significa falarmos em outra noção e uso do termo diferente daquela primeira. Desde que o grande número decide, pelo voto escrito, oral, ou em gestos, ou escolhe quem o faça, sem dar a essa escolha caráter de escolha definitiva, sem termo e sem revogação possível – há democracia. Seja essa a primeira noção de que nos servimos para melhor entendimento do dado (democracia) e da sua técnica. Na linguagem vulgar, fala-se, às vezes, de país democrático, povo democrático, no sentido de povo sem discriminações de classes nos hábitos exteriores, nos casamentos e na miscibilidade. Aí, confundem-se igualdade e democracia. Em “democracia”, há o elemento “governo” [...] (MIRANDA, 2002: 191) Para Bobbio (1999), em termos gerais a democracia representativa remete-nos a deliberações coletivas que são tomadas por pessoas elegidas para esse fim. Do ponto de vista histórico, para o autor, o regime parlamentarista é uma aplicação do princípio de representação. No entanto, mesmo em repúblicas presidencialistas como nos EUA existe um Estado representativo. Atualmente, não há nenhum Estado representativo cujo princípio da representação seja exclusivo de um parlamento; outras instâncias são responsáveis pelas deliberações coletivas, como os municípios, províncias e regiões. (BOBBIO, 1999: 52) Contudo, apesar das mudanças, a significação do conceito de cidadania bem como o de democracia ainda está ligada a participação na vida política (CARDOSO, 1985: 28-29). Essa participação na vida política só foi assegurada a partir do momento que surgiu o estado democrático de direito, no século XVIII. “A influência de ideais republicanos [...] desencadeia um processo de democratização do Estado, implicando a submissão da lei à vontade geral, garantindo a participação do povo no exercício do poder político.” (OLIVEIRA e SIQUEIRA JUNIOR, 2009: 103) No estado democrático de direito o ponto primordial é a participação do povo nos negócios do Estado. Mas mesmo com esse direito resguardado, a cidadania não é efetivada nos moldes garantidos pela Constituição, pois muitos indivíduos não são capazes de se articularem para as lutas pelos direitos, seja por desconhecimento desses direitos, falta de oportunidade de participação na esfera pública, por inabilidade ou mesmo por falta de uma lei que regulamente o cumprimento de tais direitos. Para garantir a participação política do cidadão, as organizações sociais representam um importante instrumento de mobilização e articulação dos indivíduos. No século XVIII, surgem os chamados direitos de primeira geração, listados por Marshall. Segundo Vieira (1997: 22-27), os direitos de primeira geração são os direitos civis (os direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, vida, segurança) e os direitos políticos (liberdade de associação e reunião, organização política e sindical, participação política e eleitoral). Dessa forma, percebe-se que a efetivação da cidadania sempre esteve ligada à conquista dos direitos. A partir dessa conquista, surgem os direitos de segunda geração, impetrados no século XX como herança das lutas sociais, principalmente na Europa. Esses direitos estão relacionados aos direitos sociais (direitos individuais de trabalho, saúde, educação, aposentadoria, seguro desemprego). Enfim, uma cobrança maior do Estado para a garantia de bem-estar social (KUNSCH, 2005: 22). Os direitos de terceira geração – segunda metade do século XX – são os direitos cuja titularidade pertence ao povo, à nação, coletividades étnicas ou a própria humanidade. Autodeterminação dos povos, desenvolvimento, paz, meio ambiente e comunicação são exemplos de tais direitos. Cidadania, então, adquire a dimensão de uma relação política e dialógica/comunicativa entre os membros das esferas administrativas e das esferas que integram a sociedade civil. De acordo com Marshall (1967), a cidadania é composta por três componentes: parte civil, ligada aos direitos da liberdade individual; parte política, relativa ao direito de participação política, e parte social, que vai desde o bem-estar econômico até a chamada herança social. Resumindo o ideal de cidadania, remetemos à Kunsch: “Falar em cidadania implica recorrer a aspectos ligados a justiça, direitos, inclusão social, vida digna para as pessoas, respeito aos outros, coletividade e causa pública no âmbito de um Estadonação” (KUNSCH, 2007: 63). A conquista dos direitos no Brasil Carvalho (2002) apresenta como aconteceu a conquista dos direitos no Brasil: os direitos alcançados vieram de forma invertida, considerando as gerações expostas por Marshall. A cronologia e a lógica da sequência descrita por Marshall foi invertida no Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis. Depois vieram os direitos políticos. A maior expansão do direito do voto deu-se em um período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Infelizmente, ainda hoje, muitos direitos civis continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo. (CARVALHO, 2002: 219-220) Com a Constituição Federal de 1988, o brasileiro passa a ter sua carta magna chamada de Constituição Cidadã. Contudo, a maior parte dos brasileiros a desconhece. Esses fatos revelam a inexistência de uma prática de reivindicação e de luta legítima para a conquista de direitos coletivos. A cultura de se buscar os direitos no sentido de fazer com que eles sejam elaborados e implementados ainda está em formação. É preciso instaurar uma nova lógica de organização da sociedade civil onde, por meio de movimentos sociais, ela pode interferir na construção e consolidação de seus próprios direitos. Os movimentos sociais permitem a mobilização e articulação política da sociedade na garantia dos interesses da coletividade. Comunicação Pública – conceitos e reflexões Podemos remeter a Maquiavel, em seu livro “O Príncipe”, para entendermos como a comunicação pública é muitas vezes concebida. Nesta obra, o personagem protagonista, na figura do príncipe, é aconselhado a transmitir parte das informações ao povo, podendo o rei, filtrar ou manipular estas informações, antes de repassá-la aos súditos (MAQUIAVEL, 1999: 101). Esse comportamento, comum no período em que imperava o modelo absolutista, permanece sendo ainda uma prática velada em nações democráticas. Conforme o mandamento de Maquiavel, os reis não deveriam ser transparentes nem adotar o princípio da publicidade, hoje um dos mais necessários para o desenvolvimento de sociedades que cultivam a cidadania. Contudo, a maneira com que a comunicação pública é trabalhada evoluiu ao longo dos anos e várias vertentes se desenvolveram. O termo é um conceito amplo que abarca vários sentidos e concepções. Segundo Brandão (2009), existem cinco áreas diferentes, na perspectiva da comunicação pública. A primeira é a comunicação pública identificada com os conhecimentos e técnicas da área de comunicação organizacional. O segundo significado é de comunicação pública identificada com comunicação científica. O outro aspecto abordado pela autora é a comunicação pública relacionada com comunicação política. A penúltima área definida como comunicação pública é a identificada com estratégias de comunicação da sociedade civil organizada. (BRANDÃO, 2009) Contudo é o último conceito que vai ao encontro do tema deste trabalho e que está relacionado à comunicação pública enquanto comunicação do Estado e/ou governamental. Nessa concepção, entende-se que é dever do Estado e do governo manter uma comunicação de via de mão dupla com seus cidadãos. Nesse sentido, entende-se que comunicação pública é (...) um processo comunicativo das instâncias da sociedade que trabalham com a informação voltada para a cidadania. Entre elas, órgãos governamentais, organizações não governamentais, associações profissionais e de interesses diversos, associações comunitárias, enfim, o denominado terceiro setor, bem como outras instâncias de poder do Estado, como conselhos. Agências reguladoras, empresas privadas que trabalham com serviços públicos, como telefonia, eletricidade etc. (BRANDÃO, 2009: 5) Entendida dessa forma, a comunicação promovida pelos governos (federal, estadual ou municipal) pode ter a preocupação de despertar o sentimento cívico; informar e prestar contas sobre suas realizações, divulgando programas e políticas que estão sendo implementadas; motivar e/ou educar; chamando a população para participar de momentos específicos do país; proteger e promover a cidadania (campanhas de vacinação, acidente de trânsito etc.), ou convocar os cidadãos para o cumprimento dos seus deveres (o „Leão‟ da Receita Federal, alistamento militar). (BRANDÃO, 2009: 5) Além dessa comunicação por parte do governo com a sociedade, há também a comunicação da sociedade com o governo. Canais de comunicação têm sido criados e difundidos para saber o que os cidadãos querem e precisam falar e/ou reclamar para o governo. Ainda nesse sentido, Duarte (2011) afirma que a comunicação pública tem origem na comunicação governamental, sendo a sua evolução condicionada à transformação da sociedade. Para o autor, a comunicação pública acontece no espaço formado pelos fluxos de informação e de interação entre agentes públicos e atores sociais (governo, Estado e sociedade civil) em temas de interesse público. Ela trata de compartilhamento, negociações, conflitos e acordos para que os interesses públicos possam ser atendidos. Dagnino (2002: 96) afirma que a maior expressão do diálogo entre a sociedade civil e o Estado é a democracia. Pelo ângulo da dinâmica da sociedade, os direitos estabelecem, antes de mais nada, o modo como as relações sociais se estruturam. Os direitos atuam como princípios reguladores das práticas sociais, definindo as regras das reciprocidades esperadas na vida em sociedade por meio das atribuições mutuamente acordadas das obrigações e responsabilidades de cada um. Como meio de sociabilidade e regra de reciprocidade, os direitos constroem vínculos civis entre os indivíduos, grupos e classes. Dessa forma, é lógico pensar que se tudo isso passa por uma ordem legal e institucional, depende de uma cultura pública e democrática que esteja aberta ao reconhecimento da legitimidade dos conflitos e dos direitos demandados como exigência de cidadania. (TELLES, 1999: 138 e 139). Assim, a comunicação pública está diretamente relacionada à interação e ao fluxo comunicacional com assuntos que tenham relevância para a sociedade. Ela tem abrangência em tudo o que está ligado ao Estado, ao governo, às empresas públicas, sociedades de economia mista, terceiro setor e demais lugares onde estão aplicados recursos públicos. Existem ainda outros autores cuja definição de comunicação pública corrobora da discussão que propomos neste artigo. Matos (2003: 24) afirma que comunicação pública é o “processo de comunicação instaurado em uma esfera pública que engloba Estado, governo e sociedade; um espaço de debate, negociação e tomada de decisões relativas à vida pública de um país”. Monteiro, ao pesquisar o que os diversos autores pensam acerca da comunicação pública, conclui: A comunicação pública tem as seguintes finalidades principais: responder a uma obrigação que as instituições públicas têm de informar o público; estabelecer uma relação de diálogo de forma a permitir a prestação de serviço ao público; apresentar e promover os serviços da administração; tornar conhecidas as instituições (comunicação externa e interna); divulgar ações de comunicação cívica e de interesse geral e integrar o processo decisório que acompanha a prática política. (MONTEIRO, 2009: 39) Desse modo, acreditamos em uma comunicação pública que amplia as possibilidades de debate acerca dos assuntos de interesse coletivo da sociedade. Uma comunicação pública que traz o cidadão, o Estado e a sociedade civil para um amplo diálogo em prol da coletividade. Lei de Acesso à Informação A Constituição Federal de 1988, marco na sociedade brasileira, promulgada após um longo período de ditadura militar abrangeu diversos aspectos sociais, reflexo de um povo que almejava por uma mudança estrutural nas políticas públicas. O período ditatorial, pelo qual a nação brasileira passou, não permitia nenhum tipo de acesso às informações públicas. Podemos verificar o desejo de democracia e de participação popular em toda a Carta Magna. Segundo a Constituição Federal, o acesso a informações públicas é um direito fundamental garantido a todo cidadão brasileiro. Artigo 5º, XIV, “ é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”, Artigo 5º, XXXIII “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. O artigo 37, § 3º, II, estabelece que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá (dentre outros) ao princípio da publicidade, sendo que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo. E ainda, o artigo 216 da mesma Carta determina que cabe à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. E, justamente no sentido de regulamentar tais direitos, com o intuito de consolidar uma democracia efetiva, foi criada a Lei de acesso à Informação. Embora o acesso à informação pública, a publicidade dos atos administrativos e o acesso aos documentos governamentais já estivessem positivados pela Constituição Federal, faltava uma legislação específica que a regularizasse e providenciasse como obter tais acessos, por meio de uma lei complementar, baseada nos artigos e incisos já citados acima. A Lei nº 12.527, foi sancionada em 18 de novembro de 2011, pela atual Presidenta da República do Brasil, Dilma Roussef, com objetivo de regulamentar o direito constitucional de acesso dos cidadãos às informações públicas. A lei passou a ser vigente desde o dia 16 de maio de 2012. Sua sanção representa mais um importante passo para a consolidação do regime democrático brasileiro e para o fortalecimento das políticas de transparência pública. A Lei estabelece que o acesso à informação pública é direito de todo o cidadão. No sentido de garantir a efetividade da lei, está prevista a responsabilização para os agentes públicos que negarem indevidamente a entrega das informações para o cidadão. Contudo, caso haja riscos para a segurança da sociedade ou segurança nacional, as informações devem permanecer em sigilo. Estão sujeitos à lei os órgãos e entidades públicas dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), de todos os níveis de governo (federal, estadual, distrital e municipal), assim como os Tribunais e Contas e o Ministério Público, bem como as autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Enfim, todos os órgãos e instituições que tenham algum tipo de vínculo e/ou investimento do Estado. A CGU (Controladoria Geral da União), além de ser responsável pela apreciação dos recursos em caso de negativa ou de ausência de resposta, criou uma cartilha – divulgada no próprio site - com o intuito de instruir os servidores públicos sobre a nova Lei e como atender o cidadão que busca por ela. Esta cartilha possui oito eixos centrais que abordam desde o acesso à informação como um direito universal, passando pelas resoluções da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre a transparência das informações públicas como um direito fundamental de todo cidadão, abordando também a dificuldade de se implantar no Brasil uma cultura de acesso por informações públicas. (FELIZOLA e MENEZES, 2012, online) Esse documento – a cartilha – foi resultado de uma parceria entre a CGU e a UNESCO dentro do projeto “Política Brasileira de Acesso à Informações Públicas: garantia democrática do direito à informação, transparência e participação cidadã”, cujo objetivo é garantir a parceria entre o Poder Executivo Federal e a Unesco “para que o direito de acesso à informação seja garantido a cidadãos e cidadãs brasileiros de forma eficiente, eficaz e efetiva.” (FELIZOLA e MENEZES, 2012, online) Comunicação pública e cidadania – lançando as bases da sociedade democrática Quando bem utilizado, o direito à informação tem uma capacidade incrível de proporcionar relevantes benefícios para a sociedade civil. Trata-se de um pilar fundamental para a construção da democracia aumentando a possibilidade dos cidadãos em participar de forma concreta do governo e cobrar posicionamento correto de seus governantes. O uso do direito – direto – à informação poderá ser utilizado para trazer à tona casos de corrupção, além de proporcionar um diálogo real entre sociedade civil e estado, representante e representado. Estes benefícios utilitaristas do direito à informação são reconhecidos desde, pelo menos, 1776, quando o conceito encontrou reconhecimento legislativo pela primeira vez na Suécia. De origem bem mais recente, contudo, é o reconhecimento do direito à informação como um direito humano fundamental, um aspecto do direito de liberdade de expressão que, ao amparo do direito internacional, garante não apenas o direito de transmitir, mas também de buscar e receber informações e idéias. Sendo assim, é um constituinte sine qua non para a efetivação da cidadania. (MENDEL, 2009, p. 162) Percebe-se que uns direitos precedem aos outros - o direito à vida e à liberdade, da mesma maneira que o direito à informação e à democracia são primordiais para a constituição de outros direitos. A ideia de que comunicar seja um direito de todo cidadão a se manifestar e ser ouvido, não se limita a questão de liberdade de acesso aos meios de comunicação. O direito à comunicação passa necessariamente pela participação do cidadão como sujeito ativo em todas as fases do processo de comunicação, tornando-o também emissor. (DUARTE, 2009: 106) Para se garantir uma democracia de fato, é necessário que haja diálogo entre os membros da sociedade civil, como afirma Habermas. A comunicação pública existe quando há o diálogo de questões atinentes ao interesse público, com a participação de toda a sociedade na consolidação da democracia e no exercício pleno da cidadania. O cidadão muitas vezes não consegue identificar qual a verdadeira realidade dos fatos e tampouco quais atividades e articulações ocorrem dentro das instituições públicas. Órgãos e departamentos, em diversos casos, não têm sequer uma assessoria de comunicação, e, quando a possuem, nem sempre repassam informações com clareza e objetividade. A comunicação, em geral, é impregnada da perspectiva de Maquiavel. Concretizar os direitos de cidadania deve ser um desafio da academia e da ciência, que há muito tempo deixou de ser simples mito de objetividade. O estudo científico pode também ser vetor de solidariedade, de transformação e de aplicação da justiça social. Daí surge a relevância de se entender o processo comunicativo entre Estado e sociedade. As práticas de acobertar informações públicas não correspondem a um modelo eficiente e adequado de administração. Tais comportamentos, se realmente existirem, devem ser identificados e abolidos em prol do interesse da coletividade. Assim, a comunicação pública pode conferir transparência da informação, sedimentar a cidadania e fortalecer nossa frágil sociedade democrática. Enquanto bem e direito fundamental de todos os cidadãos, a informação de interesse público deve ser disponibilizada pelo Estado. O ideal de uma sociedade democrática só poderá ser pleno quando os interesses coletivos permearem a esfera pública. Uma sociedade pautada pela transparência, pelo exercício da cidadania, pela participação ativa e política do cidadão é o que consideramos como sociedade democrática. O papel da comunicação pública é essencial para a manutenção dessa democracia. Para tanto, devemos compreendê-la como espaço de interlocução da, para e com a sociedade. Nesse sentido, a Lei de Acesso à Informação proporciona e facilita esse caráter dialógico que está imbricado ao sentido da própria comunicação. O cidadão, em posse das informações de interesse público que lhe são de direito e de interesse, tem a oportunidade de dar ao Estado uma resposta a partir de uma análise coerente, uma vez que agora possui todos os dados ao seu alcance. Portanto, o exercício da cidadania na consolidação de uma sociedade plenamente democrática perpassa a comunicação pública. A comunicação pública entendida como o lócus e a ágora da moderna democracia. Referências Biliográficas ARENDT, Hanna apud MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos humanos e cidadania: à luz do novo direito internacional. Campinas: Minelli, 2003. BOBBIO, Norberto. El futuro de la democracia. Tradução de SANTILLÁN, José F. Fernández. Carretera Picacho-Ajusco: Progresso, 1999. BRANDÃO, Elizabeth Pazito. Conceito de comunicação pública. In: DUARTE, Jorge (org.). Comunicação pública: estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Editora Atlas, 2009 BRASIL. Cartilha "Acesso à Informação Pública".Controladoria Geral da União. Disponível em <http://www.cgu.gov.br/acessoainformacao/destaques/cartilha.asp>. Acesso em 29 maio 2012 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. RT Legislação. Brasil. 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Percebeu-se que por se tratar de vilãs a violência contra as personagens são aceitas, diferentemente de quando é praticado contra as mocinhas, o que torna o discurso do contraditório. Palavras – chaves: Violência; Novela; Crimes de honra. Introdução Na América Latina nenhum outro gênero conseguiu ser tão popular quanto o melodrama. Barbero (2001) explica que “é como se estivesse nele o modo de expressão mais aberto ao modo de viver e sentir da nossa gente”. Assim a telenovela carrega em suas histórias as estruturas sociais e os sentimentos em que se constrói o imaginário coletivo. Os enredos representam parte do que somos – machistas, fatalistas, supersticiosos – e do que sonhamos ser, e por isso se constituem como lugar onde se produz sentido. O presente artigo busca fomentar a discussão sobre violência doméstica a partir de um olhar crítico sobre as cenas de violência contra as vilãs. Levando em consideração que a telenovela é um produto de entretenimento, logo sua função não é 1 Trabalho apresentado no GT 1 – Comunicação, Mídia e Direitos Humanos, do VI Seminário de Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Mestranda em Mídia e Cidadania pela Universidade Federal de Goiás. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão, formada também em Comunicação e Expressão Jornalística pela Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: [email protected] 3 Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). É professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG), onde também atua como Diretor da Faculdade. E-mail: [email protected] educativa, mesmo que no Brasil – de forma específica – o produto adote um perfil de conscientizar e suscitar debates sobre temas polêmicos para a sociedade atual. Reflexões iniciais sobre crimes de honra praticados contra mulheres Antes de começarmos uma discussão a cerca das questões que envolvem o tema, é preciso primeiro estabelecer o que estamos chamando de “crimes de honra”. Neste artigo trataremos como uma expressão que designa atos de violência contra mulher, praticados – geralmente - por familiares, tendo como motivador da ação a defesa da honra da família e dos chamados bons costumes 4. Crimes de honra formam um molde que perpassa diferentes comunidades, culturas, religiões e nações. Ocorrem de diferentes formas e até com outros nomes. São vistos de forma mais evidentes e ganham destaque na mídia internacional em países que a religião tem fortes influências sobre a esfera política, além dos ditames da vida privado-social, tal como os países muçulmanos, vale ressaltar que esta realidade não está ligada apenas aos praticantes desta religião. Em diferentes sociedades e contextos, mulheres e meninas carregam o fardo de guardar a chamada honra da família. A violência ocorre quando os padrões estabelecidos são quebrados, e como forma de punição, mulheres são agredidas e em muitos casos até mortas em nome da “honra”. O castigo para essas mulheres assume diferentes formas de violência dirigida, podendo variar desde o encerramento da mulher em casa, isolando-a de contato social, a espancamentos e insultos, e ao assassinato. Questões que estão embasadas na defesa da honra. Independentemente de credo e cultura, os crimes de honra ainda são realidades alarmantes. É importante lembrar que nas Américas, depois de estabelecido os primeiros acordos com os principais tratados e declarações internacionais de direitos humanos das mulheres5, os Governos se comprometeram a garantir a igualdade e a não discriminação perante a lei e na prática. Comprometeram-se, ainda, especialmente, a assegurar que se 4 Em termos jurídicos é o conjunto de regras morais e normas de conduta social, que são estabelecidas e aceitas pela sociedade em determinado momento. 5 Em especial a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, ONU, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994), ambas ratificadas por praticamente todos os países da América Latina – bem como em atenção à Plataforma de Ação de Beijing, da IV Conferência Mundial da Mulher (ONU, 1995). revoguem quaisquer leis que discriminem por motivo de sexo, bem como que se elimine o preconceito de gênero na administração da justiça. Mesmo assim, ainda é possível perceber violações refletidas, entre outros aspectos, em dispositivos legais penais discriminatórios referentes à violência sexual, por exemplo. Perceptíveis também em teorias, argumentos jurídicos e sentenças judiciais que utilizam da figura da legítima defesa da honra ou da violenta emoção para – de forma direta ou indireta – justificar o crime, culpar a vítima e garantir pelo menos a diminuição de pena em casos de agressões e assassinatos de mulheres, em geral praticados por alguém com vínculo afetivo com a vítima. No primeiro relatório apresentado por escrito na Assembleia Geral em agosto de 2011, a Relatora Especial sobre a Violência Contra a Mulher demonstrou atenção da ONU sobre o assunto ao destacar que: “Actualmente, el discurso de las Naciones Unidas con respecto a la violencia contra la mujer gira en torno a tres principios: en primer lugar, la violencia contra las mujeres y las niñas se aborda como una cuestión de igualdad y de no discriminación entre las mujeres y los hombres; en segundo lugar, se reconoce que la convergencia de múltiples formas de discriminación aumenta el riesgo de que algunas mujeres sean víctimas de discriminación específica, compuesta o estructural; y en tercer lugar, la interdependencia de los derechos humanos se refleja en esfuerzos como los encaminados a abordar las causas de la violencia contra la mujer vinculándolas con las esferas civil, cultural, económica, política y social. (...) Los informes temáticos y los informes de las misiones a países elaborados por la Relatora Especial ayudan a proporcionar un marco para abordar las distintas formas de violencia de género mediante el análisis de las causas y consecuencias de la violencia y para complementar la labor de otros agentes estatales y no estatales, así como de los interesados a nivel regional e internacional, en la lucha contra La violencia en los sectores público y privado. Los informes temáticos también aportan una base empírica para la formulación de políticas y una orientación para seguir perfeccionando las normas relativas a los derechos humanos de la mujer en el derecho internacional”. Crimes de Honra no Brasil No primeiro código penal e na constituição da república velha é possível perceber a elaboração e implantação de representações no discurso jurídico com a normatização da repressão e do controle social envolvendo os segmentos da formação social brasileira. A jurista Gizlene Neder observa que “(...) A mudança jurídica é fruto do conflito das classes sociais que tentam adequar as instituições de controle social a seus fins, impor e manter um sistema específico de relações sociais (NEDER, 1995, p.14)”. Mesmo com as reformulações jurídicas, nos anos seguintes, a violência doméstica era percebida como algo tolerável dentro de uma sociedade onde a noção de gênero era determinada por um discurso masculino e dominante. Ao homem era reservado o espaço público da ação e à mulher a tentativa de encarceramento no espaço privado, na esfera doméstica. Os conflitos na esfera privada não eram de competência do poder público, desta maneira não havia interesse e, tão pouco, motivos suficientes para legitimar uma possível intervenção, exceto nos casos em que a honra da família poderia ser denegrida. Com relação aos ‘crimes de paixão’ que podem ser interpretados também como crimes de honra, Neder destaca: “Nem todos os ‘crimes de paixão’ chegavam até aos tribunais, muitos eram registrados como ocorrência policial, quase sempre de ‘agressão de mulheres’.” (Cancelli, 2000, p. 140). As atualizações das penas foram feitas de acordo com a “necessidade da sociedade”. Emergiam valores de ordem sexual e moral que mereciam ser defendidos em relação a honra da família e das mulheres. A conduta se situava num contexto mais amplo, e a defesa pessoal era um fator a ser levado em conta no julgamento de um crime. Com relação a mulher, esta era vista pelo seu comportamento através da honestidade que poderia ser observado quando as mulheres exerciam um papel de boa mãe, mulher fiel, de poucos contatos e principalmente submissa às regras sociais que eram impostas. Vale ressaltar que: “(...) nos crimes de amor as ofendidas se tornavam mais que os acusados o centro da análise do julgamento. Os juristas avaliavam se o comportamento e os atos facilitavam e justificavam a ocorrência de uma agressão.” (Esteves, 1989. p43). O código penal vigente data de 1940, mas este passou por várias reformas legislativas. Hoje ‘os crimes de honra’ não são aceitos, pelo menos no direito positivo – escrito – mesmo assim é possível encontrar resquícios de uma sociedade conservadora, evidentemente, sendo livre para interpretações, ou seja, no artigo 65 que garante a atenuação da pena sob a influência de violenta emoção. O reflexo pode ser percebido em sessões de júri popular, quando se alegado a defesa da honra por um cometimento de um crime, o resultado pode ser influenciado pelo molde da proteção aos bons costumes. Alguns pontos sobre telenovela O formato da teledramaturgia é um dos principais produtos de entretenimento da televisão brasileira, além de pertencer a um universo de discussão sobre sua capacidade de introdução de hábitos e valores. O fato é que é perceptível o quanto a telenovela influencia e é influenciado pelos telespectadores – estes por sua vez participam ativamente no processo de recepção. O envolvimento do público com o enredo da telenovela ultrapassa o tempo de duração de cada capítulo. Questionamentos e discussões sobre os assuntos apresentados na trama se tornam algo comum no cotidiano dos telespectadores, e muitas vezes o debate gerado em torno de alguns temas interferem no percurso de uma personagem ou no desenrolar dos capítulos. De acordo com Figueiredo (2003), a telenovela ao penetrar o cotidiano do telespectador, passa a estabelecer relações estreitas e contínuas com seu público. Ressalta ainda que o formato da teledramaturgia brasileira procura incluir no seu texto fatos mais significativos para a sociedade, tomando para si não só o papel informativo do jornal, mas também o interpretativo, uma vez que julga o fato através da (re)ação de suas personagens. Para Lopes (2009) a telenovela “pode ser considerada como um novo espaço público, por ter essa capacidade de provocar a discussão e a polêmica nacional”. “A telenovela ocupa um espaço tão ou mais importante que os telejornais na programação diária das emissoras, pois satisfazem a necessidade d orientação do telespectador para sua vida prática, o capítulo diário da ficção seriada satisfaz a sua curiosidade com relação ao desdobramento da narrativa que se tece diariamente [...]”. (LOPES, 2003, p.22) Assim a teledramaturgia assume o papel de provocadora de debates e favorece a incorporação, apropriação e adaptação de novas demandas culturais e sociais. Hábitos podem mudar e se evidenciam quando o telespectador passa a adotar a linguagem utilizada pelo personagem, o jeito de se portar e vestir e algumas vezes até o jeito de pensar, algo que também pode ser preocupante, já que o telespectador se torna vulnerável. Neste contexto, segundo Horkheimer (1947), os produtos da indústria cultural, desde o mais típico, o filme sonoro, paralisam [a imaginação e a espontaneidade] pela sua própria constituição objetiva. Para Motter (2003) quando uma pessoa se põe em frente à TV esquece o sistema e todo turbilhão de coisas e acontecimentos que ela viveu no seu cotidiano, é neste momento que ela fica completamente desarmada, sem defesa alguma para pensar e criticar o entretenimento. “A ficção seria uma espécie de repouso do guerreiro em sua luta diária pela sobrevivência, onde a perspectiva de dotar a existência de uma base estável e durável funda o espaço de sucessivas batalhas contra a adversidade que o desafia a cada passo.” (MOTTER, 2003, p.37). Uma breve apresentação sobre o corpus da pesquisa Mulheres Apaixonadas Novela escrita por Manuel Carlos, exibida em 2003 pela Rede Globo. Foi reexibida na sessão Vale a Pena Ver de Novo em 2008. Totalizou 203 capítulos exibidos. A novela era classificada para Maiores de 14 anos, mas a Rede Globo conseguiu uma autorização do Ministério da Justiça para reprisar a novela. Sua trama foi rica em polêmicas, criando vários núcleos geradores de discussão a cerca de temas como: violência contra mulher, homossexualismo, virgindade, violência contra idosos, entre outros. Neste artigo vamos nos ater à personagem Dóris – interpretada por Regiane Alves -, uma vilã jovem e ambiciosa, que durante a trama mal trata os avós. Nos capítulos finais da novela a personagem é agredida e humilhada em público pelo pai Carlão – interpretado por Marcos Caruso. Avenida Brasil Escrita por João Emmanuel Carneiro, exibida em 2012 também pela Rede Globo, totalizou 179 capítulos. A novela se desenvolve a partir da vingança de Nina, também conhecida como Rita – interpretada pela atriz Débora Falabella -, contra Carminha – interpretada por Adriana Esteves. Foi sucesso de audiência e se tornou um fenômeno popular no Brasil. Foi considerada por alguns críticos como um retrato da nova classe média brasileira, uma mudança nas tramas da emissora, conhecida por retratar em seus programas a elite econômica, o que teria motivado tamanho sucesso, notadamente superior às suas anteriores, e adesão do público. Para o artigo o foco é na vilã Carminha. Uma mulher ambiciosa que para conseguir o que queria não media esforços, sendo capaz das mais diversas atrocidades, como abandonar uma criança no lixo e enterrar uma pessoa ainda viva. Nos capítulos finais da novela, a vilã foi desmascarada, sofreu agressões físicas e verbais de vários personagens. Violência contra vilã: a gente vê por aqui! As novelas em maioria dos casos conseguem estabelecer discussões a cerca de determinados temas muito mais que uma notícia em um telejornal, isso se estabelece pela proximidade que a teledramaturgia consegue firmar com o cotidiano dos telespectadores. A telenovela além de despertar interesse por temas polêmicos, também é capaz de desperta amor e ódio por suas personagens. Fato que fica bem definido em vilã e mocinha. Na novela Mulheres Apaixonadas a vilã Dóris despertou a raiva de muitos telespectadores ao protagonizar cenas de maus tratos contra seus avós, Flora e Leopoldo, interpretados por Elisa Lucinda e Oswaldo Louzada, além de a personagem ser ambiciosa e ter caráter duvidoso. Na mesma novela os telespectadores se comoviam a cada perseguição e espancamento sofridos por Raquel – interpretado por Helena Ranaldi -, vítima de violência doméstica por seu marido Marcos – interpretado por Dan Stulbach. As cenas de agressão à Raquel fomentaram a discussão sobre a criação de uma lei específica de proteção à mulher vítima de violência doméstica. A cena em que Raquel é espancada com uma raquete de tênis foi eternizada e ajudou a dar força ao movimento em prol a uma lei que tratasse com mais severidade casos de violência doméstica. Após 3 anos da exibição da novela foi sancionada a lei Maria da Penha – lei n°11340/2006. O fato é que existe uma contradição. Em uma mesma novela a sociedade se comove e se mobiliza em prol de proteção à mulher vítima de violência doméstica ao mesmo tempo em que vibra quando Dóris é punida por seu pai. A vilã é agredida e humilhada em público, nos capítulos finais da novela. Dóris assim como Raquel também foi vítima de violência doméstica. O que pesou no julgamento do público foi a conduta de Dóris e Raquel. A personagem interpretada por Helena Ranaldi era professora, tinha um comportamento aceitável pelo público – mesmo que no desenrolar da trama ela se envolva com um aluno, Fred – interpretado por Pedro Furtado -, logo Raquel conquistou o público que passou a se emocionar com o drama da personagem que se tornou vítima. Já Dóris, era vilã, o comportamento da personagem durante a trama despertou ódio e desejo de justiça. Os tapas que o pai lhes deferiu serviram de lição de moral, era a punição da personagem por atos cruéis feitos no decorrer da novela. Assim como Raquel, Dóris também foi vítima de violência doméstica, mas não teve o mesmo tratamento pelo público, por não conseguir bons resultados no julgamento moral, ou seja, o crime cometido pelo Marcão – pai de Dóris – foi em nome da honra da família e pelos bons costumes. Na novela Avenida Brasil a personagem Carminha também passou pelo julgamento moral do público e condenada. Tufão – personagem de Murílo Benício -, marido de Carminha, ao descobrir as mentiras e traições da mulher não se conteve e a agrediu, além de expulsá-la de casa. Junto com tapas, um conglomerado de insultos foi desferido contra a personagem, tanto por Tufão quanto por outros familiares do marido traído. Piranha, vadia, cachorra, foram alguns dos palavrões que Carminha recebe durante a cena de espancamento e humilhação. Nove anos se passaram desde a exibição de Mulheres Apaixonadas até exibição de Avenida Brasil, e muitas foram as transformações, tanto na esfera jurídica quanto na esfera social. Traçando um comparativo entre as duas novelas, especificamente, entre as cenas que as duas vilãs são agredidas pode ser notada diferença na forma de representação da violência. Na novela de 2003, Dóris é espancada, enquanto na novela de 2012, Carminha é agredida verbalmente e a violência física quase não é mostrada. A existência de uma lei de proteção pode ter contribuído para que a punição de Carminha fosse representada de forma diferente da de Dóris. Considerações A percepção que temos depois dessas reflexões é que os crimes de honra mesmo não existindo na forma expressa da lei ainda permeia o imaginário da sociedade, exemplos disso foram percebidos nas telenovelas brasileiras Avenida Brasil e Mulheres Apaixonadas, quando os telespectadores torceram para que os vilões sofressem e apanhassem. Isto não é provocado por maldade dos telespectadores, mas por um sentimento coletivo que a maioria das pessoas tem de que a vilania sempre deve temer e sofrer as consequências de seus atos, talvez, por convenção religiosa, da qual temos contato desde a infância, onde aprendemos que quem comete crimes, sempre receberá sua recompensa tanto “na terra, quanto no céu” segundo os ditames populares ou pelo sentimento pessoal, de que ao sermos aviltados, enganados e até mesmo sofrer um crime, queremos que quem o provocou, sofra e o receba na mesma moeda. Não é comum torcer pelo violão das tramas, afinal eles são os responsáveis pelo caos presente nas histórias, são inescrupulosos, mesquinhos e representam tudo o que há de ruim dentro da sociedade, justamente por transporem os limites do que é correto e moralmente aceito. Na história final de cada um desses personagens, houve momentos em que era possível se satisfazer com cada coisa que aconteciam a eles, no caso da Dóris, em Mulheres apaixonadas, ver a jovem que tanto maltratava os avós idosos, apanhar, fez o público vibrar e comentar nas ruas que ela merecia até mais, o que se repetiu no caso de Carminha, em Avenida Brasil. A imagem de mulher foi apagada no imaginário popular, sobressaindo apenas a imagem de vilã. A agressão sofrida tanto por Dóris, quanto por Carminha, foram agressões contra mulheres, assim como sofreu a “mocinha” Raquel em Mulheres apaixonadas. O julgamento moral dos personagens pode ser perigoso se pensarmos que este mesmo julgamento pode ser refletido na realidade. Assim uma meretriz ou uma mulher que trai o marido merece ser espancada ou até mesmo morta em nome da honra e dos bons costumes. É importante lembrar que a teledramaturgia tem como principal objetivo o de entreter e não de educar, e que a trama segue as características do melodrama, por tanto tendo o julgamento de que o vilão deve pagar pelos atos cometidos e a mocinha viver o esperado “feliz para sempre”. No entanto, já que no Brasil o produto ganhou algumas características, como por exemplo, despertar o público para debates de assuntos polêmicos é preciso identificar até que ponto a telenovela interfere na sociedade e a sociedade na telenovela. Se a teledramaturgia questiona a violência através de uma personagem, não pode ao mesmo tempo despertar o desejo de violência contra outra. Se a telenovela assume no Brasil uma característica de educar não pode haver contradição neste aspecto. Referências CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei (1889-1930). Brasília: Ed. UNB, 2000. COSTA, L.P.S. FREITAS, E.M. O crime contra a honra na historiografia brasileira. 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Crimes de honra – perspectivas de mulheres que vivem sob a lei muçulmana. Disponível em: <http://www.pagu.unicamp.br/sites/www.pagu.unicamp.br/files/colenc.04.a09.pdf> Acesso em: out/2012 Televangelização como Referência dos Direitos Sociais não atendidos1 Jackeline Gonçalves OSÓRIO2 Luiz Antônio Signates FREITAS3 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO Resumo Este artigo analisa o discurso do programa "Show da Fé" e sua particularidade nas mensagens em relação aos direitos sociais que são garantidos pela Constituição, porém negados pelo Estado. A partir de uma análise de discurso busca-se relacionar a mensagem propagada e o contexto social de produção e as inter-relações existentes no programa de TV. Palavras-chave: Televangelização; análise do discurso; comunicação; cidadania; direitos sociais. Introdução 1 Trabalho apresentado no GT 1 – Comunicação, mídia e direitos humanos, do VI Seminário de Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 3 Mestranda do Curso de Mídia e Cidadania da Facomb - UFG, email: [email protected]. Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação Social e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás, email: [email protected]. O presente artigo tem como objetivo analisar, sob a ótica dos direitos sociais que constam no artigo 6° e demais da Constituição, como o programa religioso “Show da fé”, veiculado em canais abertos, interage na articulação da cidadania. Com seu discurso de prosperidade, o programa reconhece a ineficácia do Estado e propõe soluções aos problemas humanos a partir do consumo de produtos que são a moeda de troca para os cidadãos terem o que denominam de graça de Deus. A tevê divulga o consumo como principal condição para o acesso aos direitos sociais e a mídia religiosa se utiliza das vantagens do meio eletrônico para apresentar a religião como a única saída para a satisfação social. O sujeito fragmentado sem um porto que assegure e efetive seus direitos fundamentais torna-se suscetível às formas de diálogos veiculados na TV. As conquistas materiais a partir somente da fé (exteriorização de uma oração) e de atos de fé (promessas, doação de ofertas, de dízimos, compra de produtos, etc.) são aceitas e almejadas pelos telespectadores, que reproduzem em casa os mesmos atos dos indivíduos no ambiente físico da igreja. O complexo conceito do termo ‘cidadania’ demonstra ao longo da história as dificuldades de aplicação e manutenção que tais direitos implicam na sociedade, causando, muitas vezes, frustrações nos indivíduos. A busca constante para que os direitos sejam plenos leva o cidadão a se envolver com o transcendental. Os direitos sociais, como parte de uma série de garantias que faz parte da cidadania, colaboraram com o bem estar de uma sociedade irregular como a brasileira que busca o mínimo para sobrevivência de seus integrantes. É necessário observar que o discurso realizado pela religião midiática não se direciona somente para a classe oprimida, mas também para detentores do poder de voz e financeiro, pois a manutenção desse status é essencial. Portanto, o presente artigo deseja lançar luz a uma suposta tentativa da televangelização em sugerir que tais garantias, não aplacadas pelo Estado, possam ser resgatadas no ambiente religioso. Para isso, a igreja deixa de lado práticas como o estudo bíblico, a leitura mais metódica da palavra cristã e lança mão de artifícios mercadológicos e culturais para prender a atenção dos indivíduos, notadamente aqueles que desejam ver seus direitos sociais atendidos. 1.Televangelização Desde a sua chegada, a TV trouxe um deslumbramento tecnológico para a sociedade, que a acolheu como produto primordial nos lugares de destaque nas casas, escolas, espaços públicos. A implantação da TV no Brasil teve várias situações de repercussão, passando por concessões polêmicas, imposições da ditadura e transformações tecnológicas que se sucederam na sua recente história. O caminho percorrido pode ser fragmentado em quatro partes resumidas. Fase da instalação (1950-1964) – compreende o período de chegada da televisão no Brasil, dominado por empresas vindas do rádio; Fase da expansão (1965-1984) – tem como marco a criação da TV Globo e da Embratel. As emissoras começam a ser organizadas em rede, aproveitando a infra-estrutura nacional de televisão instalada pelo governo militar; Fase da consolidação (1985-2002) – com o fim da ditadura, a televisão se consolida como um poder em si, nacionalmente, e passa a ocupar um espaço central para o poder político regional; Fase da convergência (2000) – o poder da televisão encontra-se em xeque, pelo poder econômico das empresas de telecomunicações e pelos efeitos da convergência de meios. (CRUZ, 2008, p.49-50) Em poucas décadas, a televisão se tornou o maior meio de comunicação do Brasil, sendo o mais utilizado pelas classes baixas, média e alta. Com produções constantes e variadas, esta modalidade de mídia passou a ser um veículo de relativa importância para as esferas sociais que visam visibilidade pública e obtenção de adeptos para os mais diversos segmentos. O espaço televisivo não tem barreiras inibidoras ou mesmo um controle social realizado pelos indivíduos, por isso tais empresas detentoras de concessões públicas aperfeiçoam, transformam e inventam programações para cativar a audiência. A TV transforma a rotina da sociedade, que passa a se estruturar de uma forma diferente. As pessoas modificam seus hábitos mentais. Substituem a reflexão pela intuição, a palavra ideia pela imagem-palavra. A fé enquanto privilegiava a fides quaerens intellectum se vê fortemente questionada por um novo modo de pensar que não busca a inteligência, mas a plasticidade, a imagem, a emoção, a representatividade (LIBANIO, 2004, p.49). A disputa pela atenção do telespectador se torna um fundamento essencial na formulação das características para captação de audiência. Não é somente à busca pela imposição da técnica, mas também o discurso à estética televisiva e o poder de persuasão do líder religioso. No caso dos programas evangélicos e o aumento crescente de igrejas concorrentes, exige-se um esforço para conquistar um novo adepto – consumidor em potencial. A pluralidade de instituições religiosas gera uma disputa cada vez mais acirrada pelos fieis. A qualidade simbólica dos bens oferecidos exige estratégias particulares de convencimento cada vez mais complexas para dar conta de todo o contexto de ofertas. Com efeito, não é possível fazer uma demonstração objetiva da eficácia material das práticas religiosas para quem não crê nelas – e a disposição para a crença é o primeiro requisito a ser conquistado no fiel. (MARTINO, 2003, p.135). A estratégia do discurso religioso na TV faz com que os indivíduos se identifiquem com o que é proposto. O sentimento de pertença é um ponto positivo na construção de um novo fiel: a razão diminui em detrimento da emoção. Através da mídia, a igreja busca recuperar a dessacralização que sofrera no passado e o aspecto transcendente e sobrenatural que se perdeu por um tempo com o a popularidade do pensamento laico. A sociedade se tornou midiatizada e a igreja acompanhou as alterações. “A religião acompanha as sociedades em mudança modificando-se concomitantemente e adaptando-se as necessidades onde quer que estejam” (MARTINO, 2003, p.51). O sujeito percebe a fragmentação no campo da religião, que aos poucos foi se infiltrando nos meios comunicacionais onde obteve espaço. O progressivo aumento desses novos programas e seus vários formatos e discursos se devem a aceitação da sociedade dividida que influencia ou é influenciada por tais produções religiosas. 2. Cidadania e direitos sociais Dependendo do contexto cultural e social, a cidadania assumiu várias formas e definições. Hannah Arendt colaborou com uma frase célebre sobre o conceito de cidadania, sendo esta o “direito a ter direitos”. No entanto, o conceito mais clássico referente aos direitos de cidadania tem sido aquele adotado por T. H. Marshall, que o dividiu em direitos civis, políticos e sociais. Os direitos sociais são o foco central deste artigo. O cidadão que não é atendido por tais demandas busca nos cultos das igrejas e nas práticas religiosas televisivas a concretização destes direitos. Os principais temas das mensagens, na maioria das vezes, se encaixam em alguma implicação dos direitos sociais, que, segundo Marshall, são os direitos ao trabalho, saúde, educação, aposentadoria, seguro desemprego, enfim a garantia de acesso aos meios de vida e bem estar social (VIEIRA, 1997, p.22). Liszt Vieira (1997) enfatiza que os direitos sociais demandam uma presença mais forte do Estado para serem realizados. É justamente pela insuficiência do governo nessa área que a mídia religiosa televisiva vem de forma enérgica construir seus discursos capturando os direitos dos cidadãos negados pelo Estado. Vieira relata que a religião foi essencial para a cidadania, ora favorecendo ora dificultando: (...) a versão calvinista do protestantismo reforçou o individualismo e favoreceu a cidadania, colocando ênfase na sociedade, e não no Estado. Já o protestantismo luterano na Alemanha foi diferente do calvinismo holandês. A religião é escolhida pelo Príncipe para o povo: Lutero reforça a obediência ao Estado. (VIEIRA, 1997, p.24) O que os programas religiosos oferecem não são soluções espirituais, mas sim de caráter social e de dever do Estado. Todas as garantias de direito legítimo que o governo omite dos cidadãos são fortemente trabalhadas pela mensagem religiosa. Assim, a desigualdade brasileira encontra a solução dos seus direitos negados na permuta com o sagrado. E como os indivíduos não sabem se articular para cobrar do Estado os direitos sociais fundamentais, estes ficam isolados na Constituição. Os direitos sociais que requerem um permanente movimento do governo são em resumo: (...) são aquelas posições jurídicas que credenciam o indivíduo a exigir do Estado uma postura ativa, no sentido de que este coloque à disposição daquele, prestações de natureza jurídica ou material, consideradas necessárias para implementar as condições fáticas que permitam o efetivo exercício das liberdades fundamentais e que possibilitam realizar a igualização de situações sociais desiguais, proporcionando melhores condições de vida aos desprovidos de recursos materiais. (JÚNIOR, 2009, p.716) 2.1 Neopentecostalismo e mídia religiosa A era da tecnologia da informação traz novos desafios para a sociedade, alterando o cenário das interações humanas. A escola, a igreja e outras instituições são agora desterritorializadas e os meios de comunicação colaboram para uma sociabilidade revolucionária. O emissor, o meio e o receptor articulam-se na construção de um novo líder através de modernos espaços que buscam um homem atual que representa a crise contemporânea. Inserido nesse novo contexto histórico, o sujeito social passa a valorizar o mundo externo das ideias pluralizadas e midiáticas. O cidadão inserido nessa sociedade globalizada, porém excluído dos direitos fundamentais da cidadania (civis, políticos e sociais), se viu isolado da estrutura social. Seu projeto de vida busca efetivar seus direitos para afastá-lo de uma vida menos miserável. É exatamente nesse contexto da sociedade que o Estado torna-se ineficaz e a igreja, através dos seus discursos midiatizados pela TV, oferece soluções para os seus problemas. A igreja intervém na sociedade, nas cidades, naquilo que “merece” ser recuperado. Trata-se aqui da visão da busca do “bem estar social”, com o alívio do sofrimento de algumas pessoas, em especial os pobres (CUNHA, 2006, p.10). Os líderes neopentecostais4 estabelecem seus sermões televisivos voltados para o êxito financeiro, saúde e segurança, sendo a maioria deles de direitos do cidadão. O indivíduo cansado da infelicidade, da tirania e da pobreza torna-se facilmente conquistado pelo líder que oferece uma solução para os problemas sociais existentes através da pregação da prosperidade. Ricardo Mariano afirma que: Essa doutrina, reinterpretando ensinos e mandamentos do Evangelho, encaixou-se como uma luva tanto para a demanda imediatista de resolução ritual de problemas financeiros e de satisfação de desejo de consumo dos fieis mais pobres, grande maioria, como para a demanda (infinitamente menor) dos que almejavam legitimar seu modo de vida, sua fortuna e felicidade. (MARIANO, 1999, p.149) Na modernidade, o que se vê nos grandes líderes do movimento neopentecostal é exatamente a figura do provedor de bens simbólicos prontos para consumo, ou seja, os detentores dessa indústria cultural são os principais representantes da religião. Max Weber é um dos primeiros a buscar no protestantismo algumas das raízes do capitalismo. (...) os líderes do mundo dos negócios e proprietários do capital, assim como dos níveis mais altos da mão de obra qualificada, principalmente o pessoal técnica e comercialmente especializado das modernas empresas, serem preponderantemente protestantes (WEBER, 1999, p.19) A religião refletida dentro da lógica do mercado e o seu discurso subordinado a esse sistema formam uma sociedade que reconhece o consumo como o principal passaporte para o paraíso terrestre e o pleno exercício da cidadania, em que os fieis - a partir da compra de algo - tornam-se libertos da opressão dos ricos e do Estado. A busca do sujeito pós-moderno é exatamente esse céu terreno sem sofrimento ou dor e repleto de riquezas, distante da insatisfação social existente. As crises políticas e sociais tornam-se terreno produtivo para o movimento neopentecostal. Tal corrente se identifica com a necessidade de determinadas classes sociais que passam a procurar algo que resolva ou pelo menos fantasie a resolução dos problemas. A busca pelo novo, pelo que demonstra poder, pela religião que responda às angústias pessoais (não importam quais sejam), faz o ser humano transitar (BECKER, 2002, p.110). ¹ Segundo Ricardo Mariano (1999), a igreja neopentecostal é a que mais se aproxima dessas características: É menos sectária e ascética, mais liberal e tende a investir em atividades extra igreja (empresariais, políticas, culturais, assistenciais), sobretudo naquelas tradicionalmente rejeitadas ou reprovadas pelo pentecostalismo clássico, quanto maior proximidade dessas vertentes a igreja poderá ser considerada neopentecostal. 3. Metodologia Para este artigo, utilizaremos a análise de discurso como metodologia ideal que possibilita perceber a intencionalidade do autor do texto, no caso, autor da fala que será extraída dos programas pré-selecionados. De forma sintética, a análise de discurso tem sido utilizada em uma longa tradição de pesquisa e comunicação, que se iniciou fortemente a partir da década de 1960, tendo, contudo, raízes anteriores em trabalhos de linguistas como Ferdinand de Saussure, Mikhail Bakhtin e pioneiros da semiótica. Difere da análise de conteúdo, por ser mais profunda e não se preocupar com estratificação numérica de resultados. Como advém da tradição materialista de estudos, por ser fenomenológica e atenta às intencionalidades, suporta perfeitamente a análise qualitativa dos dados pesquisados. O método aqui apresentado reúne apontamentos e preocupações de pesquisa já utilizados por autores como Michel Foucault (1998) e Eni Orlandi (1999). Busca-se extrair do discurso televisivo (e não da estética televisiva, bem como outras características que compõem o programa, mas que aqui não serão analisadas) um contexto e o texto. Por contexto entendemos o espaço e o processo histórico que condicionam a produção do discurso. E do produto da atividade discursiva, o texto, espera-se desvendar a avançar pela superfície da palavra e entrar em seu significado intencional. Para a análise da televangelização e dos direitos sociais, buscaremos no discurso termos e frases que se refiram às garantias contidas na abertura do artigo 6º da Constituição e naqueles propostos por Marshall. Em seguida, aplicaremos os entendimentos do que propõe a análise de discurso. Propõe-se, desta maneira, o seguinte quadro para guiar este estudo: Contexto Momento histórico-social em que ocorre a produção do texto (o programa de tevê) e suas circunstâncias, citações, motivações. Analisa-se e salienta-se, portanto, aspectos da realidade de autor e receptor. Nesta categoria de análise, busca-se perceber o autor e sujeito receptor, bem como a identidade social e histórica dos mesmos. Texto Será analisada a textualidade, características que fazem do texto um discurso: coerência (relação entre fatores subjacentes e o próprio discurso), coesão (é a demonstração coerência, é a linguística lógica da textual), intencionalidade (empenho em construir um discurso coerente, formal, baseado em fatos ou versões correntes. É o desejo de comunicar. Para isso, tem repetição, permanência de elementos e ênfase), receptividade (é o grau esperado da interpretação, que seja um texto que leve a ação ou interpretação, que apresente explicitamente ou implicitamente um comando, uma (apresentação ordem), sempre progressão de novas informações, renovando o discurso, para que não fique monótono) Passa-se, agora, ao estudo dos seguintes termos e frases coletados ao longo de cinco programas do “Show da Fé” veiculados de 28 de novembro a 2 de dezembro de 2011. 4. Análise de dados Todos os programas têm a parte final destinada para a venda dos produtos das empresas do RR. Soares. São emissoras, gravadoras, tevês – todas com apelo midiático. Em um dos programas é apresentado um desenho animado destinado ao público infantil. A história da animação se baseia em um menino que tinha vergonha do seu pai por ser gari. Numa conversa entre amigos, ele mente falando que seu pai era um político rico e famoso. Após um ato de honestidade do seu pai, todos descobrem que era um gari e que seu filho deveria ter orgulho dele. Trata-se de uma história infantil que demonstra um discurso simplista para crianças, mas que não deixa de enfatizar a desigualdade do Brasil e suas dificuldades trabalhistas com uma desigualdade chocante. Todos os finais dos cinco programas com petições e vendas de produtos, tem como propaganda principal que a partir da compra dos produtos todos os problemas que assolam o sujeito sejam eles de saúde, desemprego, doença serão resolvidos, ou seja, é a forma que a igreja oferece para o cidadão conquistar seus direitos mesmo comprando-os. 4.1.Discurso do ímpio Os conflitos na sociedade moderna continuam como nas eras remotas, a forma trabalhada pelas igrejas para superar esses desafios, frustrações e desamparo das minorias, e não somente delas, vem evoluindo. O programa “Show da Fé” com seu discurso vem beneficiar e contemplar a minoria que não tem voz nem capital. No primeiro programa analisado, a mensagem central fala dos ímpios, diz que esses não possuem “direitos” perante Deus. Logo no início do discurso, o líder evangélico declara: “Os direitos de Deus pertencem aos justos”. Em uma comunidade que brada por justiça em todos os níveis, os direitos de Deus e a justiça dele tornam-se uma boa opção a ser almejada. Para contextualizar o sermão que declara o ímpio como o sujeito sem direitos, o líder RR. Soares alerta que aceitar algumas situações é colaborar com o demônio: Programa “Show da Fé”, dia 28 de novembro de 2011, veiculado entre 20h e 20h30, na TV Bandeirantes, canal 11, assistido em Aparecida de Goiânia (GO). Expressão dita por RR Soares, missionário da Igreja Internacional da Graça de Deus “Apoiou o ladrão, isso é impiedade, seja quem for o ladrão, amigo ou inimigo. Está no erro, tem que dizer ‘isso é errado’. Mas ele ganhava pouco? Mas não pode consentir com o demônio, está tomando uma pessoa, ele é o verdadeiro ladrão tirando a saúde, felicidade, destruindo o casamento”. Sinteticamente, o autor do discurso utiliza uma linguagem figurada focada no ‘ladrão’ e no ‘amigo’ do ladrão. Aqui, o ‘ladrão’ é o ímpio, aquele que é desonesto, que faz coisas erradas, aquele que não paga o dízimo – algo que, por técnica de progressão, será dito em programa posterior. O termo ‘ímpio’ é bíblico e comum na linguagem das igrejas. Na terceira frase, o autor do discurso sentencia, por meio de uma narrativa que ele mesmo cria: “Mas ele ganhava pouco?”. Por fim, o discurso remete todos os ímpios, o ladrão e o amigo, ao diabo. Em nenhum momento o ‘missionário’ remete aos direitos sociais, que um cidadão deveria ter direito. Ao contrário, se rouba é porque tem o diabo, ou seja, é ímpio. Portanto, se a felicidade do indivíduo está comprometida, com o trabalho que não o remunera para garantir o básico e isso vem implicar no seu bem estar, o apoio do Estado não conta para RR Soares, pois o sujeito que se envolve em coisas ilícitas já está fora tanto dos direitos da terra quanto do céu. 4.2.Discurso para o patrocinador fiel Programa “Show da Fé”, dia 28 de novembro de 2011, veiculado entre 20h e 20h30, na TV Bandeirantes, canal 11, assistido em Aparecida de Goiânia (GO). Expressão dita por RR Soares, missionário da Igreja Internacional da Graça de Deus “Quem é patrocinador, nos ajudar correndo, eu agradeço em nome de Cristo. Final de mês e início de mês é o pior período para nós, é época de compromissos e Deus vai nos dar condição de honrar com esses compromissos e se você tem em casa uma oferta, um voto, um dízimo, acerta com Deus”. Há uma parte em todos os programas que é destinada aos patrocinadores. RR Soares faz o pedido para os contribuintes do programa, mas não somente com um discurso para ajudar na manutenção do “Show da Fé”, e sim em que os sujeitos recebem algo em troca. Aqui, RR Soares faz um apelo diretamente ao ‘patrocinador’, ou seja, aquele fiel que tem costume de contribuir de forma sistemática com a igreja. Na primeira oração, ele agradece “em nome de Cristo” a quem contribuir. Utiliza a estratégia da ênfase para deixar claro que está em necessidades por conta de compromissos não revelados, mas fruto do início do mês e “época de compromissos”. Reforça o pedido utilizando o termo legitimador ‘Deus’ três vezes em dois períodos. Ao fim, pede que os fieis acertem com ‘Deus’, sendo ele, o que subjacente ou subliminar, ele o ‘intermediador’. Portanto, ‘Deus’ permanece e se repete ao longo do discurso, sendo, possivelmente, o termo mais forte da expressão, mas não o intuito dela. O termo dinheiro não aparece no discurso. Todos os colaboradores após o pagamento recebem pelos correios uma revista “Show da Fé”. Os votos e promessas que são feitos mediante o compromisso de patrocinar o programa são baseados em pedidos de emprego, cura de alguma doença. Alguns contribuintes são selecionados em uma parte do programa para falar sobre as conquistas após a decisão de serem patrocinadores. 4.3.Discurso da Novela da Vida Real Programa “Show da Fé”, dia 30 de novembro de 2011, veiculado entre 20h e 20h30, na TV Bandeirantes, canal 11, assistido em Aparecida de Goiânia (GO). Discurso dito por José Lourenço, ator-real da “Novela da vida real” “A minha vida financeira antes de eu conhecer Jesus é que eu vivia bebendo, jogando, fazendo muita coisa errada, então fazia minha família triste, a minha esposa sempre reclamava”. Em seguida, a narradora da novela comenta: “Mas depois de voltar para Deus, José Lourenço destaca: “Assim que senti o chamado para patrocinar, eu comecei a patrocinar com 30 reais, que é o mínimo, e no mês seguinte Deus me inquietou para ajudar com mais 40 reais e no mês seguinte já foi 50, depois 70 e agora estou patrocinando com 100 reais, graças a Deus. Deus tem me abençoado, nunca tem faltado nada, as minhas dívidas foram todas pagas, meu mercadinho está próspero, tudo que eu comprei foi à vista, quebrei os cartões de crédito que eu tinha”. Como empresa, a televisão visa o lucro. Por isso utiliza os formatos mais variados para cativar o público. Para não perder adeptos, as criações já consagradas da tela são adaptadas para o religioso, assim como as novelas e os programas de entrevista. A religião midiatizada assume uma nova forma de dialogar com os telespectadores tendo, conforme Cunha (2007), um “componente de espetáculo, de teatralidade, de performance”(p.152). A novela da vida real do programa “Show da Fé” vem demonstrar esse processo de readaptação do profano com o sagrado, dicotomia clássica já estudada por Durkheim: “A partir da religião pode-se dividir toda a vida humana em duas esferas absolutamente heterogêneas: o sagrado e o profano (1999, p.4). A novela da vida real tem como título prosperidade e vitória, o ator principal apresenta a sua vida antes e depois de se tornar patrocinador do programa. Antes de ser “chamado” para contribuir, sua vida era difícil conforme relata o ator-cidadão: “Vinha fazendo muita coisa errada”. Após a apresentação da novela, volta novamente o líder RR. Soares, enfatizando no seu discurso que a pessoa, depois que se torna de Deus, ela cresce com os bens materiais. Percebe-se que em uma sociedade desigual, como a brasileira, é alta a exclusão das minorias na compra de bens materiais, daí que qualquer discurso que prometa progresso social seja bem vindo. A ideia que se passa, por meio do discurso de RR Soares, é a conquista rápida e certeira de todos os direitos privados pelo Estado. 4.4 . Discurso da prosperidade Programa “Show da Fé”, dia 30 de novembro de 2011, veiculado entre 20h e 20h30, na TV Bandeirantes, canal 11, assistido em Aparecida de Goiânia (GO). Expressão dita por RR Soares, missionário da Igreja Internacional da Graça de Deus “Há muitas pessoas que começam bem na obra de Deus. Elas estavam com problemas de todas as ordens, doentes, falidas, desesperadas, ouviram o evangelho e acordaram. A bênção do senhor enriquece financeiramente, enriquece nas habilidades pra fazer coisas, ela forma o caráter da pessoa, ela faz a pessoa ter aquela disposição para vencer”. Neste discurso, repetitivo em temática, RR Soares diz que as pessoas que ‘começam bem na obra de Deus” conquista habilidades e recursos materiais. A diferença é que cita o ‘evangelho’ como fato transformador. Promete, por meio de Deus, garantir o que o Estado garante, mas não cumpre: recupera falências, doentes, quem precisa sair bem nos estudos (enriquece habilidades). Conclusão A mídia televisiva tornou-se um dos principais investimentos da igreja. Estas instituições enxergaram nesse meio o espaço que precisavam para difundir seu discurso. Suas adaptações são crescentes e o discurso cada vez mais inovador para o segmento. Nelas, os líderes se revelam carismáticos e as produções demonstram ser estrategicamente pensadas. O programa “Show da Fé” analisado neste artigo é uma criação da Igreja Internacional da Graça de Deus que chega aos lares dos cidadãos no horário nobre concorrendo com os principais telejornais noturnos das demais emissoras, além de novelas. O discurso analisado propaga-se a partir da repetição. Sem uma análise mais profunda passa-se despercebida . Dos cinco programas analisados, três são continuações de discursos anteriores com inserção de novos elementos a cada edição. Os outros dois são utilizados como vitrine para os produtos comerciais do “missionário” RR. Soares. O texto do discurso é progressivo, sendo assim a mensagem recebe elemento novo e se readapta para falar do já dito. As pessoas são colocadas à prova da possibilidade de mudança a partir não só do Evangelho, mas também da aquisição de bens materiais. Portanto, as necessidades do cidadão negadas pelo Estado podem ser conquistadas pela fé ou simplesmente pelo pagamento do dízimo ou da oferta. A saúde, o trabalho e a segurança do indivíduo são colocados como dependência de uma vida com Deus. Caso não se estabeleça uma relação com o sagrado, todos os direitos fundamentais que deveriam ser garantidos pelo governo serão eliminados da vida do cidadão. O discurso é coerente com a situação da população brasileira, pois contempla aquilo que não é realizado pelo Estado. Um olhar mais cauteloso sobre os programas religiosos é necessário. A análise não deve ser simplista, visto a complexidade técnica dos discursos. A limitação temporal do estudo aqui apresentado pode sugerir uma análise profunda, pois demonstra a capacidade de persuasão a partir dos discursos religiosos e sua intencionalidade. Referências Constituição Federal da República do Brasil. Brasília: Planalto, 2012 CRUZ, Renato. TV digital no Brasil: tecnologia versus política. São Paulo: Senac, 2008. CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1998. JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Podium, 2009. LIBÂNIO, J. B. Jovens em tempos de pós-modernidade: considerações socioculturais e pastorais. São Paulo: Loyola, 2004. MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999. MARSHALL, Thomas Humprey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MARTINO, Luis Mauro Sá. Mídia e poder Simbólico. São Paulo: Paulus, 2003. ORLANDI, Eni. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 1997. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1999. Branquidade Normativa E Infância: Uma Análise Dos Programas Infantis Da Rede Globo Entre 1986 E 20111 Viviane Rodrigues Darif SALDANHAS2 Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR. RESUMO O presente trabalho objetivou analisar o papel da mídia televisiva na construção de modelos e padrões de representações sociais da branquidade normativa frente á infância brasileira, através da utilização de programas infantis. Para tanto, foi necessário identificar e levantar a participação dos afro-descendentes na mídia televisiva, averiguar se durante o período analisado houve alguma alteração ou mudança quantitativa em relação à participação de afro-descendentes veiculados nos programas.Tendo em vista que a rede globo de comunicação é a líder de audiência na televisão aberta e haverem somente três canais que possuem programação voltada para o público infantil, a pesquisa focou em programas voltados a este público e presentes na grade da referida rede entre os anos de 1986 até 2011. PALAVRAS-CHAVE: Branquidade normativa, mídia, infância. INTRODUÇÃO Ocorreram diversas transformações em nossa sociedade por meio do desenvolvimento cientifico e tecnológico. E essa “mudança tecnológica foi sempre crucial na história da transmissão cultural: ela altera a base material, bem como os meios de produção e recepção, dos quais depende o processo de transmissão cultural” (Thompson, 202, p.266). Através dos meios de comunicação de massa, a mídia contribui na disseminação de diversas informações, atingindo os mais variados públicos. E dentre esses meios de comunicação, o mais difundido na sociedade atual é a televisão, que ocupa em nossa sociedade um lugar de destaque, se transformando em parte integrante do cotidiano de indivíduos em quase todo o mundo, garantindo tanto acesso á informações quanto encontros com culturas diversas. 1 Trabalho apresentado no GT 1 - Comunicação, mídia e direitos humanos, do VI Seminário de Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Graduanda em Ciências Sociais –UFPR, e-mail: [email protected] 1 Contudo, o papel da mídia vai além da função de informar, ela também atua como agente formador de opinião, uma vez que a “sociedade contemporânea é cada vez mais mediada pela mídia, com suas imagens, fornece moldes e identidades para a modelagem pessoal” (Kellner, 2001, p.317). Considerando o papel que a mídia tem em nossa sociedade, urge a necessidade de estudar este temática, contudo, por esse assunto ser muito extenso, esse trabalho o pretende privilegiar os modelos de afrodescendentes que são perpassados na televisão, pautando-se na forma com que a branquidade normativa é disseminada na produções televisuais voltadas ao público infantil. Para tanto, nesse trabalho foi considerado o exame bibliográfico e a análise de conteúdo referente ás produções televisuais infantis presentes na grade da rede Globo de televisão entre os anos de 1986 até 2011. 1. A TELEVISÃO NA VIDA DA CRIANÇA Se antes da televisão, a criança estabelecia relações a partir da socialização com os adultos e seus pares, a partir desse advento, as interações com a realidade passam a ser mediadas tecnologicamente pela mídia, auxiliando na construção de realidades e habitus3. As experiências que fazem parte da vida das crianças e que auxiliam na construção de suas histórias excedem as instâncias tradicionais, presentes nas práticas infantis do brincar com amigos e freqüentar a escola. Tais vivências fazem parte do cotidiano infantil concomitantemente com outras, como acessar a internet, ouvir música, assistir televisão, dentre outras opções ofertadas pelo acesso ás mídias. Diferente do que o senso comum propõe, a função televisiva na vida da criança vai muito além do entretenimento. Uma vez que para muitas, os primeiros contatos com a diversidade cultural ocorrem através da tela de uma televisão. Pesquisas demonstram, que desde muito pequenas as crianças vivenciam uma realidade onde a presença da televisão converge para uma construção de representações do mundo à sua volta. Conforme a pesquisa divulgada pelo Ibope Mídia – media Workstation – PNT (Painel Nacional de Televisores), em 2011 a criança brasileira, entre quatro e 11 anos, passou em média, 5 horas, 17 minutos e 9 segundos por dia em frente à televisão. 3 [...] habitus, sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas" (Bourdieu, 1987, p. 201). 2 E de acordo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009 (Pnad), divulgada setembro de 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a presença televisiva esta em 96% dos lares brasileiros, percentual maior do que o de geladeiras, que apresentaram o índice de 93,9%%. Através desses dados, é possível perceber que as crianças fazem contato com uma grande quantidade de sons e imagens, que contribuem para uma construção, através de mecanismo de massificação da opinião, dos gostos e da necessidade de consumo, de conhecimentos culturais baseados em discursos midiáticos. E mesmo entendendo criança possui uma relação ativa com a mídia, ainda existem diversos questionamentos acerca de como acontece essa interpretação e a forma com que as mensagens transmitidas possam vir a contribuir na sua vivência. Uma vez que, Não há nada de transparente sobre programas de TV ou filmes infantis, mais mensagens vêm sendo enviadas ás nossas crianças com a intenção de trazer a tona pontos de vistas particulares e ações que são o maior interesse daqueles que os produzem. (Kincheloe, p.24). As crianças constroem significados a partir das articulações que fazem através de suas percepções de mundo e em diversas ocasiões, essas relações com a mídia se constituem a partir de determinadas conotações, transformando a televisão num agente homogeneizador. Dessa forma, as crianças passam a construir suas referências e preferências (e por vezes até mesmo comportamentos) através daquilo que assistem na televisão, através da integração de imagens e modelos construídos pela televisão à experiência vivida na infância, constituindo-se num reflexo da interação com o ambiente onde elas estão inseridas. Souza (2005) aponta que existem evidências suficientes de que os modelos existentes na mídia, independente de faixa etária, podem influenciar no comportamento do telespectador e diversas pesquisas demonstram essa ação exercida pela televisão sobre as crianças. Como por exemplo, em um estudo realizado com crianças da quarta série do ensino fundamental, sobre as instâncias socializadoras que influenciam na construção de ideais de identificação (Goya, Araújo, Machado, Cruz, Cunha, Saraiva, Bernardino e Melo, 2003), nesse estudo, perguntava-se ás crianças com qual pessoa elas gostariam de se parecer, e foram coletados dados de 1929 até 1944, onde demonstravam que a família era a principal fornecedora de modelos. Ao repetir a 3 análise em 1998 e em 2003, ficou demonstrado que 40% das crianças se identificavam mais com personagens da mídia e menos de 25% gostariam de se parecer com algum membro familiar, o que demonstra como a mídia tem tomado o espaço de instâncias socializadoras tradicionais como à família, a escola e as instituições religiosas na construção de ideais de identificação das crianças. Ou na pesquisa, realizadas com crianças da educação infantil, onde demonstra que os programas exibidos podem influenciar as crianças em seus padrões de interação social (Peres, Cunha, Watanabe, Silva e Cotonhoto, 2003), onde nessa pesquisa, durante 15 minutos foi exibido um programa infantil classificado como educativo (TOTS TV) e após a exibição do filme, em duas sessões, registrando os comportamentos interativos do grupo de sujeitos, comparando-os com os personagens. Este turbilhão de imagens que preenche o cotidiano das crianças e adolescentes vai formando sua personalidade ao mesmo tempo (mas provavelmente não da mesma forma) que suas experiências do mundo exterior, real, concreto. É importante lembrar que a televisão é um objeto técnico absolutamente integrado ao cotidiano das crianças que com ela interagem "naturalmente" da mesma forma como elas interagem com o gatinho ou com seus brinquedos. (Belloni, 2005, p.65). Segundo Belloni (2005), é através da reprodução de estruturas significativas ocorridas durante o processo uniformizador das mensagens televisuais, que a narrativa vai se constituindo a partir do que a autora chama de “fórmulas de sucesso”. E em virtude de cada repetição, estereótipos vão sendo aprimorados e acabam tornando-se mais intensos, de maneira que seu potencial comunicativo atue da forma persuasiva. E assim como no mundo adulto, para as crianças e adolescentes as vivências fora dos padrões culturais impostos pela sociedade são extremamente difíceis, ainda mais quando diversos deles são proposto por modelos televisivos, que buscam denotar status sociais ou estereótipos. Freqüentemente, esses modelos apresentam uma identificação com ela, fazendo com que se inspire neles, mas, nem sempre elas entendem que não podem ser exatamente como o modelo apresentado pelo personagem, talvez por falta de condições financeiras ou por simplesmente não ter nascido com determinada cor ou tipo de olho ou cabelo. Desse modo, é imprescindível analisar as imagens que a mídia, especialmente na televisão, através de programas infantis tem colaborado para construir e como esta imagem repercute, auxiliando na propagação de preconceitos e práticas racistas. 4 2. PROGRAMAS INFANTIS No Brasil, o desenvolvimento da programação infantil apresenta-se intimamente atrelada á televisão privada e a á busca por altas posições nos índices de audiência. Magalhães (2007) aponta que os programas voltados ao público infantil encontram-se divididos em dois modelos distintos: o “educativo”, que em sua maioria é realizado por emissoras estatais e basicamente visa agregar informações ao cotidiano, reforçando conhecimentos apreendidos na educação formal da criança e o “comercial”, que se encontra nas emissoras privadas e que além de ter a função de entreter, está intimamente atrelado ao mercado de consumo. De acordo com Sampaio (2004) mesmo com programas infantis como Vila Sésamo e Topo Gigio, dentre outros, na década de 70, foi somente a partir dos anos 80 que a criança e o adolescente passaram a ocupar posição de destaque na televisão brasileira. Esse fato fez com que os programas infantis estourassem nas grades de programação de diversas emissoras. A descoberta do potencial de consumo da criança é alavanca básica que deflagra esse processo. Em 86, verifica-se uma ampliação de programação infantil das emissoras. Além de programas consolidados da TV Criança (Bandeirantes) e do Bozo (TVS), quatro 20 novos programas marcam a sua estréia: o Xou da Xuxa (Globo), o TV Fofão (Bandeirantes), Dr. Cacareco e Cia. (Record) e Lulu Limpim Clapá Topô (Manchete). (Sampaio, 2004, p.147) Conforme apresenta Sampaio (2004), através dos programas infantis as emissoras perceberam que poderiam ampliar o seu público expressivamente, uma vez que através da criança atuando como interlocutor junto aos adultos possibilitaria chegar a toda família. Outro ponto relevante é que, ao direcionar uma programação voltada ao público infantil, as empresas podem buscar estabelecer relações instrutivas com as crianças, de maneira que possa ocorrer sua conseqüentemente a sua fidelização, através de relações comerciais futuras. Desse modo, as crianças se tornam alvo da chamada construção corporativa da infância, Também chamada pelos autores como cultura infantil, onde, de acordo com Steinberg e Kincheloe (2001) instituições comerciais tornam-se agências educadoras, ofertando de maneira pedagógica. Sob o disfarce de entretenimento, uma série de produtos culturais que fazem alusão á práticas e conceitos essenciais ao ser humano, transformando-se em referenciais para os processos de interiorização de valores e até na formação da identidade das crianças. Steinberg e Kincheloe (2001) assinalam que estas instituições 5 usam essas áreas pedagógicas, ou seja, áreas onde o poder4 é organizado e difundido, inclusive em livros, televisão, cinema, jornais revistas propagandas, dentre outros. Esse [...] poder produz imagens do mundo e das pessoas que o habitam que fazem sentido para aqueles que recebem essas imagens. Os filmes, livros, videogames e programas de tv da cultura infantil moldam a forma com que as crianças brancas, por exemplo, entendem a pobreza e as raças marginalizadas – e, por sua vez, como estas crianças, como brancos, vem a reconhecer seus próprios privilégios. Padrões de linguagem com essas produções de imagens conectados a essas produções de imagens para reforçar a influencia do poder são hábeis em abastecer o contexto no qual as crianças encontram o mundo. (Steinberg e Kincheloe, 2001, p.48). Segundo Brito (2005), os programas infantis passaram a ser comandados por apresentadoras a partir dos anos 80. E entre uma brincadeira e outra, estas aconselhavam e ensinavam as crianças atitudes cotidianas, como por exemplo, a tarefa de escovar os dentes. Porém, é importante perceber que estas situações, através de uma estratégia astuta e lúdica (como músicas, brincadeiras, gincanas, dentre outros) que transformava tudo em um apelo irrecusável ao consumo de marcas e produtos e “[...] outros itens, responsáveis pelo patrocínio do programa unificando, assim, as figuras de apresentador e vendedor”. (Brito, 2005, p.51) Sampaio (2004) aponta que estes programas, basicamente oferecem a mesma estrutura com desenhos, brincadeiras, números musicais e dançantes, miniquadros dramáticos e/ou mininovelas, sendo deixada de lado à preocupação quanto à produção cultural para a infância nas programações. Esse modelo se alastrou nas últimas décadas, na televisão brasileira, onde os apresentadores, séries e desenhos animados ocuparam lugar de destaque, tendo a função de conduzir a comercialização de marcas licenciadas em seus nomes e promovendo uma ampla gama de produtos que compreendem desde alimentos até eletrônicos, dentre muitos outros. De acordo com apontamentos de Sampaio (2004), esses programas são concebidos com o intuito de divertir e prender a atenção da criança, apostando numa fórmula cheia de ritmos frenéticos, não permitindo pausas para reflexão quanto ao que se vê ou mesmo para mudar de emissora. E devido à propagação desses programas infantis, que funcionam muito mais como mostruário de diversos produtos, a relação entre programação infantil e lucro se tornou cada vez mais latente. 4 Os autores utilizam o termo poder no sentido de “conjunto de operações que trabalha para manter o status quo e conservá-lo funcionando como o menor atrito (conflito social) possível”. (Steinberg e Kincheloe, 2001, p.19). 6 Contudo, esse convite ao consumo, não diz respeito somente a produtos e marcas, ele também se refere á adesão de atitudes e comportamentos. Além disso, é imprescindível observar que cada vez que uma representação é preferida em determinadas comunicações, outras são desprezadas, tornando-se necessário questionar quais são estas imagens e por qual motivo estão sendo escolhidas ou rejeitadas, tendo como referência não apenas o contexto televisivo, mas a própria sociedade brasileira. Do mesmo modo, deve ser levado em consideração que estas imagens também se constituem como modelos de determinados referenciais de beleza, estilo de vida e caráter para milhares de crianças, cooperando para que esses modelos apresentados pela televisão brasileira representem um ideal a ser alcançado, uma vez que E em virtude dessas influencias que a mídia, principalmente, a televisão reflete torna-se fundamental entender a questão acerca das relações étnico-raciais. Uma vez que esses programas infantis tornaram-se presença constante no cotidiano da criança, o papel destes deve ser submetido a um minucioso exame acerca de como auxiliam na construção de imagens e estereótipos, internalizados desde a infância, uma vez que muitos desses modelos que freqüentemente são almejados e apreciados são os mais próximos ao padrão euro-estadunidense. 3. ANÁLISE DO DISCURSO DA BRANQUIDADE NA MÍDIA Van Djik (2008) aponta que a maior parte das investigações relacionadas ao racismo são focadas nas formas de exclusão, desigualdade socioeconômica e atitudes preconceituosas de cunho étnicos raciais. Todavia, mesmo sendo importantes, esses exames não são capacitados o suficiente para esclarecer as variadas procedências do racismo e nem dos métodos de suas reproduções no cotidiano. E mesmo concordando que o racismo na América Latina foi enraizado pelo colonialismo e pelas dominações econômica, social e cultural, realizadas pelas elites brancas, o autor examina a ocorrência de que: As pessoas aprendem a ser racistas com seus pais, seus pares (que também aprendem com seus pais), na escola, com a comunicação de massa, do mesmo modo que com a observação diária e a interação nas sociedades multiétnicas. (Van Djik, 2008, p.15) De acordo com Van Djik (2008) esse processos de aprendizagem são vastamente discursivos, sendo apreendidos e baseados por meio de formas de textos e falas presentes nos mais variados eventos comunicativos. Além disso, diversas práticas de 7 racismo até podem ser apreendidas através de observações ou mesmo imitações, contudo, necessitam ser legitimadas, explanadas ou amparadas discursivamente. Conforme assinala Van Djik (2008), esses discursos racistas são amplamente assimilados e reproduzidos por meio de discurso dominante, difundidos através de grupos compostos por pessoas brancas que detém grande poder de influencia, podendo ser chamado de elites simbólicas brancas. Van Djik (2008) ainda observa que a maior parte dos grupos dominantes aprende a ser racistas em razão desses processos comunicativos. Aliás, o conhecimento que esses grupos possuem ou acreditam possuir, no que se trata da etnia dos Outros foram formuladas através dos mais diversos discursos. E através dessa base é que são estabelecidos conceitos e posturas, fazendo com que a maioria dos elementos de um grupo específico reproduza um status quo étnico, assumindo um consenso do grupo através das ideologias dominantes que os legitime. Ressalta Van Djik (2008) que cada elemento participante de um determinado grupo possui relativa liberdade de admitir ou não os discursos dominantes e suas ideologias subjacentes, contribuindo para que esse processo não seja determinante e nem aconteça automaticamente. Existe a possibilidade de desenvolverem atitudes diferentes, visando o desenvolvimento de uma ideologia alternativa, que seja não racista e anti-racista. Desse modo, Giroux (1999) assinala que as mídias eletrônicas, como televisão, cinema, música e notícias, tornaram-se importantes armas pedagógicas atuando no condicionamento do imaginário social do indivíduo, na forma como modela a visão que se tem de si mesmo, da sociedade e dos outros. E de acordo com Silva & Rosemberg (2007), ao produzir e veicular discursos que naturalizam e ressaltam a branquidade normativa, a mídia contribui na produção e reprodução de um racismo estrutural e simbólico dentro da sociedade. Isso ocorre na medida em que os atributos biológicos ou étnicos imputados aos brancos são negados de forma veemente tanto aos negros quanto às pessoas mestiças de pele mais escura. Silva & Rosemberg assinalam que através desses discursos nas produções culturais, o racismo brasileiro se mantém e age como produtor e reprodutor de desigualdades sociais tanto no plano estrutural quanto simbólico na sociedade brasileira, já “que produz e veicula um discurso que naturaliza a superioridade branca, acata o mito de democracia racial e discrimina os negros”. (Silva & Rosemberg, 2007, pg. 74) 8 Dessa maneira, é necessário compreender o papel desempenhado pela mídia, sobretudo pela televisão, no que se refere ás influencias causadas por ela na contemporaneidade, para entendermos como as imagens dos afrodescendentes são construídas e repassadas através da mídia televisiva. 4. A QUESTÃO DO NEGRO NA TELEVISÃO BRASILEIRA. Assim como ocorreu no processo histórico brasileiro, no que se refere ao lugar do negro, este também não foi considerado na mídia. Ainda “temos pouco acúmulo entre artistas e lideranças políticas e culturais no desenvolvimento de estratégias alternativas próprias na televisão brasileira e de confronto com a discriminação racial”. (Araujo, 1996, p.243) Ainda é bastante acentuado esse quadro de desigualdade entre os grupos étnicoraciais negros e brancos, especialmente no que se refere ás representações desses grupos na mídia, tornando se fundamental investigar o lugar do afrodescendente, sobretudo dentro do contexto televisivo brasileiro. Segundo números levantados por Silva & Rosemberg (2007) ainda que a televisão brasileira possa ter diminuído a percepção social em relação á discriminação racial (Costa, 1988; Leslie, 1995), permanecem a sub-representação dos negros em publicidades e propagandas televisivas (Hanselbag, 1988; Baccega e Couceiro de Lima, 1992; Data folha, 1995; Leslie, 1995; Araujo 2000; Oliveira, 2004). Araújo (2004) demonstra como os negros foram representados e as conseqüências dessas representações nos contexto construtivo da identidade do povo brasileiro ao empregar a análise referente ao papel da mídia na história da telenovela brasileira. Ele pesquisou 98 novelas produzidas pela TV Tupi, TV Excelsior e Rede Globo, entre os anos de 1963 a 1997. Com exceção das novelas que tinham como tema a escravidão, “não foi encontrado nenhum personagem afro-descendente em 28 delas e em apenas em 29 telenovelas o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar a marca de dez por cento do total do elenco”. (Araújo, 2004, p.305). Segundo Araújo (2004) os papéis imputados os negros foram apresentados de forma estereotipada, subalterna e negativa, nestes folhetins. Sendo destacados os aspectos da “malandragem” para os homens ou da sensualidade, no caso das mulheres mais novas, além de que as mulheres mais velhas, sempre colocadas em papéis de criadas e mães pretas. 9 Ainda em outra pesquisa, realizada pela Fundação Cultural Palmares, coordenada por Joel Zito Araújo e intitulada “Onde está o negro na TV pública”, foram consideradas as programações transmitidas pelos canais TV Cultura, TVE Brasil e TV Nacional pelo período de uma semana, buscando examinar discursos que fizesse qualquer menção à visibilidade negra. E a conclusão que se teve foi que ao todo, apenas 0,9% da grade horária desses canais são voltadas para a cultura afro-descendente, sendo que 82% da grade horária, não abordam, de nenhuma forma, assuntos relacionados a negros ou indígenas. Outra parte da pesquisa quantificou o número de apresentadores e jornalistas, que fazem parte da programação, e que sejam índio ou afro-descendentes, ficando constatado que 9,4% dos apresentadores e 6,7% dos jornalistas são negros ou indígenas. Esses dados evidenciam que a produção televisiva brasileira forneceu aparatos suficientes para a manutenção de uma branquidade normativa e além do mais, esta falta de pluralismo cultural apresentado na mídia brasileira, pode atingir também a auto-estima de negros e índios, uma vez que estes não há a representação destes na televisão. No Brasil, como é de conhecimento geral, as TVs comerciais e públicas não têm respeito pela maioria afro-brasileira. Não tem programação voltada para atendimento especifico dos seus valores, necessidades e história não têm negros nos altos cargos executivos e nem mesmo nas direções intermediárias, e não estão submetidas a nenhum tipo de controle desse imenso grupo étnico. (Araujo, 1996, p.246). Podemos perceber que a diversidade cultural e racial brasileira na televisão “transmuta-se em um Brasil branco, desrespeitando os anseios históricos não só das entidades culturais, políticas e religiosas negras, como também das nações indígenas” (Araujo, 2004, p.307). Contudo, Araújo (2004) aponta que entre as décadas de 1980 e 1990, ocorreram algumas mudanças nas telenovelas brasileiras, como por exemplo, negros como protagonistas e discussões acerca do racismo, sendo este período considerado pelo autor como um momento de ascensão do negro. Entretanto, ainda vigorava (e vigora) a ideologia da branquidade na sociedade brasileira, onde as imagens dominantes, “carregam, como subtextos, reforçam o elogio dos traços brancos como o ideal de beleza para todos os brasileiros”. (Araujo, 2004, p.306) E mesmo após tanto tempo, essas pesquisas demonstram que o lugar do negro não se alterou significativamente e ideais, como o branqueamento, permanecem sendo reproduzidos ainda na contemporaneidade. Através dessa rejeição da negritude e 10 promoção da branquidade, modelos de estética calcada nas concepções branca de mundo, as imagens televisivas “continuam confirmando a vitória simbólica da ideologia do branqueamento e da democracia racial brasileira”. (Araújo, 2004, p.38). E quando se trata das crianças esse problema se torna ainda maior, pois, enquanto as crianças brancas, principalmente as de padrão ariano (louras dos olhos claros), assistem a hiper-representação desses modelos em toda a mídia, a televisão brasileira praticamente não oferece a possibilidade de as crianças afrodescendente tenham modelos que possam promover a sua auto-estima. Desse modo, através dessas formas de representações a televisão brasileira atua provocando distorções nas imagens representadas tanto para as crianças negras quanto nas brancas. 5. O CORPUS E A PESQUISA Conforme já apresentado através da revisão bibliográfica, a televisão exerce uma grande influencia no que se refere à construção de imagens, mas não somente isso, ela viabiliza representações e significações que fazem parte do mundo infantil, passando a fornecer conteúdos para as situações de interação entre a criança, seus pares e os demais grupos em que se encontram inseridas. Ou seja, Na prática, as imagens transmitidas sem cessar pela televisão não só informam o indivíduo - mostrando-lhe o mundo - mas também formam sua personalidade, apresentando-lhe os modelos de comportamento vividos na telinha pelos personagens deste mundo idealizado da celebridade ao qual ele aspira. (Belloni, 2005, p.63). Assim este trabalho com a temática da representação da branquidade normativa nos programas infantis propõe analisar não somente o papel da televisão frente ás relações étnico-raciais, mas também as formas simbólicas da branquidade atuantes e que estabelecem hierarquias sociais desiguais entre brancos e os demais grupos étnicos que compõem a sociedade brasileira. Para tanto, foi necessário identificar e levantar a participação dos afrodescendentes na mídia televisiva, analisar e descrever o papel do afro-descendentes e sua participação em programas infantis e avaliar o modo como a mídia brasileira fornece modelos de afro-descendentes através de programas voltados especificamente ao público infantil. Contudo, mesmo já tendo definido a escolha da mídia, ainda não estava definido o veiculo a ser escolhido. Dessa maneira, a fim de aprofundar o escopo do trabalho foi realizada uma pesquisa com uma das principais emissoras de televisão aberta do Brasil, a rede Globo. 11 A referida emissora foi escolhida para ser analisada em virtude de sua colocação no ranking das principais emissoras do mundo, que segundo o Jornal do Brasil é a segunda posição, além de ser a maior emissora do mundo quando o quesito se trata de produção de conteúdo em Língua Portuguesa. Mas outro ponto bastante importante e que também influenciou amplamente nessa escolha foi à posição da emissora em relação à audiência, já que segundo Sacchitiello (2012) a rede Globo continua liderando a audiência televisiva no Brasil, com uma média geral de 15,7 pontos no ibope. Este trabalho pretendeu não apenas investigar a representação da branquidade normativa nos programas infantis da Rede Globo, mas também averiguar se durante o período analisado houve alguma alteração ou mudança nas representações em relação à participação de afro-descendentes veiculados nos programas. Portanto, foi realizada a análise de conteúdo dos programas infantis exibidos pela emissora, mas somente os programas que fizerem parte da grade fixa da emissora e não serão considerados os programas especiais, que são transmitidos em virtude de datas comemorativas e/ou de férias. Quanto ao recorte temporal, foi considerado o período entre 1986 e 2011 e em relação á analise de conteúdo, esta foi baseada na aparição de afro-descendentes. Contudo, somente os que fizerem parte de programas diários (considerando o período matutino e de segunda a sexta-feira), em elencos fixos e que forem humanos, sendo analisados também os personagens que representarem. Desse modo não foram consideradas personagens de desenhos animados, bonecos ou imagens virtuais. Culminando na tabela abaixo: Tabela 1: Grade dos programas analisados. Programa Ano Período de Exibição Periodicidade Balão Mágico Xou da Xuxa Show do Mallandro Angel Mix Banbuluá 1986 07/03/1983 até 28/06/1986 30/06/1986 até 31/12/1992 20/04/1992 até 17/04/1993 16/09/1996 até 30/06/2000 09/10/2000 até 30/12/2001 03/07/2000 até presente momento. 12/10/2001 até segunda a sexta-feira segunda a sábado segunda a sexta-feira segunda a sexta-feira segunda a sexta-feira segunda a sexta-feira segunda a 07/12/2007 28/10/2002 até 31/12/2004 04/04/2005 até 31/12/2007 sexta-feira segunda a sexta-feira segunda a sexta-feira 1986 1992 1996 2000 TV 2000 Globinho Sítio do PicaPau 2001 Amarelo - 2ª versão Xuxa no Mundo 2002 da Imaginação TV 2005 Xuxa FONTE: Elaborado pela autora. Quantidade de Personagens Principais 4 Quantidade de Personagens Afro-descendentes 1 23 0 1 0 7 1 1 35 3 8 3 1 0 3 0 12 CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer dessa análise bibliográfica, podemos perceber uma importante relação entre a mídia, principalmente da televisão e o público infantil e a partir de tudo que foi exposto, tem-se condições de buscar algumas considerações finais. Após analisar brevemente a construção social da infância buscando compreendela hoje, urgiu a necessidade de alargar o olhar para observar as diversas infâncias e as constantes transformações vivenciadas por elas, principalmente no que diz respeito à mídia e as imagens que ela apresenta diariamente ás crianças. As crianças estabelecem relações através do contato com produções televisivas e que estas produções interferem na construção das culturas de infância. Através dos programas infantis, a mídia apresenta às crianças conteúdos, imagens e personagens que pautam valores e modelos de papéis com os quais as crianças são convidadas a se identificar. Em 25 anos pouca coisa mudou na programação voltada ao público infantil da rede globo e dos 10 programas pesquisados, apenas 5 deles haviam personagens fixos afro-descendentes. Quando analisamos em termos de quantidade, fica ainda pior, uma vez nesse período dos 90 personagens fixos (humanos) que existiram na grade da programação infantil da TV Globo apenas 9 eram afro-descendentes. Isso significa que somente de 10% dos personagens ou atores eram afro-descendentes. Nas programações das emissoras das televisões abertas brasileiras o modelo padrão é euro-americanizado. Dessa forma, os programas televisivos e a mídia em geral, contribuem significativamente para a consolidação de uma branquidade normativa, onde os brancos são escolhidos para representar o ideal de beleza do povo brasileiro, colaborando para que se perpetue uma estética produzida pela persistência da ideologia do branqueamento em nossa sociedade. Nos programas infantis, em sua totalidade, expressa um euro-americanizado, exaltando o branco e, conseqüentemente a invisibilidade e inferioridade do negro. Deste modo, a criança de descendência negra acaba sendo deslocada nessa estruturas para as margens ou tendo que se “adaptar” dentro dos padrões impostos. É muito importante a presença de negros na televisão para a construção da imagem de si mesmo, entretanto, como já vimos no decorrer desse trabalho, é raro perceber uma imagem de afro-brasileiro no mundo midiático, imagens positivas então, são mais difíceis ainda. Quando são retratados, os afro-descendentes estão em papéis 13 de: criados, domésticos, novelas da época da escravidão, dramas sociais, dançarinos, musicas, atuando como comediantes ou mesmo serviçais. Muitas dessas noções raciais aprendidas pelas crianças são apresentadas através da mídia televisiva, que contribuem significativamente para a consolidação da imagem do branco como ideal, não apenas estético, mas como padrão de superioridade, fato que culmina na negação e inferiorizarão do negro. Uma criança, de qualquer etnia não branca, ao ver as apresentadoras de programas infantis, personagens brancos em posição de “superioridade” em relação aos outros, provavelmente terão dificuldades para perceber a beleza de uma pessoa que tem sua cor de pele, raça ou nacionalidade. Com isso, é imprescindível a análise acerca dessas imagens repassadas através da mídia televisiva. A criança precisa se perceber enquanto negra, despertando, assim, um processo de alto-estima em ralação a sua negritude e dos valores dos seus antepassados. No entanto, essa percepção só será possível quando a criança negra conseguir se reconhecer em imagens positivas. Portanto, torna-se imprescindível discutir essa questão em todo âmbito social, buscando ações para reverter o quadro. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora, Senac, 2004. BELLONI, Maria Luiza. O que é Mídia-Educação?. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. GIROUX, Henry A. Por uma pedagogia e política da branquidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 107, p. 97-132, jul. 1999. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. MAIOR, Marcel Souto. Almanaque Da Tv Globo 1a.ed., Globo Livros. MAGALHÃES, C. M. Os programas infantis da TV: teoria e prática para entender a televisão feita para crianças. Belo Horizonte: Autêntica,2007. SACCHITIELLO, Bárbara. Ibope: só o SBT cresce em 2011, Brasil, 04 de janeiro de 2012. Disponível em: <http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2012/01/04/Ibopeso-o-SBT-cresce-em-2011.html>.Acesso em: 6 ago. 2012. SAMPAIO, Inês Sílvia Vitorino. Televisão, publicidade e infância. São Paulo: AnnaBlume, 2000. 14 SILVA, P. V. B.; ROSEMBERG, F. Negros e brancos na mídia brasileira: discurso racista e práticas de resistência. In: Teun van Dijk. (Org.). Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2007. STEINBERG, S. R. & KINCHELOE, J. L. Introdução. In : STEINBERG, S. R. & KINCHELOE, J. L. (orgs.). Cultura infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicaçao de massa. 6. ed. Petropolis, RJ: Vozes, 2002. TOLIPAN, Heloisa. Globo sobe em ranking e torna-se segunda maior emissora do mundo, Brasil, 09 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.jb.com.br/heloisatolipan/noticias/2012/05/09/globo-sobe-em-ranking-e-torna-se-segunda-maior-emissora-domundo/>.Acesso em: 6 ago. 2012. VAN DIJK, Teun A. Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008. 15 O programa de televisão feminina e as possíveis identidades das mulheres goianas na década de 19801 Carolina R. FREITAS2 Ana Carolina R. P. TEMER3 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás Resumo Esta é uma proposta de diálogo entre um projeto de pesquisa em andamento sobre o programa de televisão regional Feminina, produzido e exibido no início da década de 1980 em Goiás e as reflexões de Stuart Hall (2003) sobre as identidades culturais na pós-modernidade.A ideia é investigar a “condição feminina” que o programa refletiu e ajudou a construir em uma relação espaço temporal singular, no caso, Goiás nos anos 1980, em que a mulher goiana passou por profundas transformações sociais que reconfiguraram tanto o seu lugar na sociedade e a sua cidadania, quanto a sua autoimagem e a sua subjetividade. Palavras-chaves: Estudos Culturais; Identidades culturais; Mulheres; História da Mídia Goiana. Introdução Expoente dos Estudos Culturais, Hall (2003) chama a atenção para uma “crise de identidade” que se iniciou na chamada modernidade tardia, relacionando-a às novas formas de representação das identidades culturais engendradas pelo processo de globalização. Tal crise tem deslocado o sujeito, fragmentando e descentrando o projeto moderno típico de construção de uma identidade una e coerente. Nesse sentido, entende-se a mídia como principal sistema de representação da atualidade e a imprensa feminina como um gênero midiático importante no processo de formação das identidades da mulher, que a partir do século XIX reivindica para si a posição de sujeito. 1 Trabalho apresentado no GT 1 - Comunicação, mídia e direitos humanos, do VI Seminário Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Mestranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação – PPGCOM da Universidade Federal de Goiás – UFG na linha de pesquisa Mídia e Cidadania, bolsista da Fapeg. 3 Orientadora do trabalho. Professora Efetiva do Programa de Pós-Graduação em Comunicação – PPGCOM, da Universidade Federal de Goiás – UFG 1 É importante ressaltar que, como a literatura, a mídia é “portadora de um saber sobre o presente, capaz de ao mesmo tempo compor um painel sobre o 'estado das coisas' em crise ou em transformação em um determinado período” (KEHL, 2008: 98). Com base neste pressuposto, entende-se o Feminina como objeto significativo e locus privilegiado para se compreender como as novas formas de representação da mulher, colocadas em cena no Brasil principalmente pelos movimentos feministas das décadas de 1960 e 1970, afetaram as identidades e subjetividades das mulheres em Goiás na década de 1980. 1. O sujeito descentrado de Hall Para Stuart Hall (2003), a “crise de identidade” na pós-modernidade é resultado do declínio das velhas identidades e do surgimento de novas identidades, que fragmentam tanto o indivíduo moderno quanto “as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais” (p.9). A “crise” é vista “como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (p.7), processo engendrado pela fase mais atual da globalização. O forte impacto que a globalização tem sobre as identidades, é explicado “à medida que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras e ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra – e a natureza das instituições modernas (GIDDENS, apud HALL, 2003, p. 15). Recorrendo à Laclau, Hall (2003, p. 17 e 18) aponta o deslocamento como característica da sociedade pós-modernidade, em que já não existe apenas um centro, mas “uma pluralidade de centros de poder” e que o atravessamento da diferença produz uma variedade de diferentes “'posições de sujeito', abrindo a possibilidade de novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos.” Para explicar melhor tais mudanças, Hall diferencia três tipos de sujeitos: o do Iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. Para os fins deste artigo tomaremos apenas o primeiro e o último, as duas pontas da análise. O sujeito do Iluminismo era aquele “individuo soberano”, liberto dos “apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”, cujo nascimento resulta da ruptura que 2 representou o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII. Este sujeito estava baseado na concepção do indivíduo centrado, unificado, cujo projeto de vida era a constituição de uma identidade una e coerente. Neste ponto, vale ressaltar que este sujeito era usualmente descrito (representado) como masculino, uma vez que a mulher ainda não era considerada sujeito. Cinco avanços na teoria social e nas ciências humanas, ocorridos na modernidade tardia (segunda metade do século XX), teriam contribuído para o descentramento do sujeito cartesiano: 1) as contestações de Marx à ideia de essência universal do homem e a luz que o seu pensamento joga sobre a importância das relações sociais no desenrolar da história humana; 2) a descoberta de Freud do inconsciente como força estruturante da identidade para além da razão; 3) a linguística estrutural de Saussure e o reposicionamento do sujeito no interior das regras da línguas e dos sistemas de significado; 4) os apontamentos de Foucault acerca do poder disciplinar que incide sobre os indivíduos e 5) os questionamentos do feminismo sobre a formação das identidades sexuais e de gênero, que despertaram a sociedade para a questão da diferença sexual. Todas essas mudanças conceituais fizeram da identidade algo aberto, inacabado e fragmentado. O sujeito que emerge na pós-modernidade é outro. Diferentemente do indivíduo construído no período iluminista, o pós-moderno deve construir e reconstruir sua identidade, sendo desafiado a todo o momento a assumir diversas identidades, algumas vezes contraditórias e conflitantes (HALL, 2003). No cenário pós-moderno, a classe deixa de ser a “identidade mestra” através da qual todas as identidades podem ser reconhecidas ou representadas (MERCER, apud HALL, 2003), emergindo novas identidades definidas pelo novos movimentos sociais, entre eles, o feminismo, que enfatiza o gênero como um fator identificatório. As velhas “paisagens sociais” que conformavam as subjetividades às necessidades objetivas da cultura estraram em colapso e “o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. A identidade é politizada, ou seja, não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado (HALL, 2003, p. 12 e 21). Diante deste quadro surgem três possíveis consequências: 1) as identidades tradicionais estão se desintegrando como resultado da homogeneização cultural e do 3 “pós-moderno global”; 2) as identidades tradicionais estão sendo reforçadas pela resistência à globalização ou 3) as identidades tradicionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando seu lugar4 (HALL, 2003). Falaremos mais sobre essas possíveis consequências, pensando especificamente nas identidades disponíveis às mulheres. Apesar de tocar na questão da mulher e do feminismo, Hall não se detêm no assunto. Procuraremos olhar com um pouco mais de atenção de que forma a “crise”, apontada pelo autor, afeta a identidade da mulher e a “condição feminina”, nos atentando para o papel do feminismo no descentramento da mulher, que, diferentemente do homem, precisou empreender uma outra luta para ser reconhecida como sujeito. É nosso interesse ainda lançar luz sobre a mídia, como principal sistema de representação pós-moderno, buscando entender, em especial, como os programas de televisão femininos contribuem com a configuração das identidades que compõem as “paisagens sociais”, ao apresentar à mulher as identidades possíveis. 2. Descentrando a mulher A chamada “condição feminina” começou a entrar em crise no final do século XIX, quando se começou a questionar o lugar da mulher na sociedade. Os movimentos feministas que emergiram nessa época eram a expressão mais explícita de uma revolução muito maior que a mulher começou a viver desde então. A revolução feminina teve como fonte de inspiração o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, responsáveis por libertar o homem, enquanto sujeito dotado de razão, das estruturas sociais tradicionais e lançá-lo de vez na modernidade. Hall (2003) enxerga neste momento o nascimento do sujeito moderno, cuja existência era centrada no projeto de constituir uma identidade una, estável e coerente. No entanto, até o início do século XIX a posição de sujeito era algo acessível apenas aos homens, que, donos de seus destinos, circulavam livremente pelo espaço público no afã de construir o sujeito que gostariam de ser, enquanto as mulheres ainda viviam restritas ao ambiente doméstico, sob a tutela do pai ou do marido, e com os destinos traçados: ser dona de casa, esposa e mãe, apenas. 4 Hall fala especialmente das identidades nacionais, mas, como ele mesmo sugere, o raciocínio serve para quaisquer outras formas de identificação cultural, incluindo a de gênero. 4 Mas as profundas mudanças sociais ocorridas no mundo ocidental a partir do Renascimento e do Iluminismo desencadearam as configurações que possibilitaram a mulher almejar novos lugares social, além daquele reservado a ela pela sociedade tradicional. O projeto burguês de modernidade, que fundou “um outro” homem, o moderno, foi captado também pelas mulheres que, no século XIX, não mais se conformavam com o papel de rainha do lar e desejavam também se tornar “uma outra” mulher, ou seja, ocupar outras posições sociais além da posição feminina tradicional. O século XIX pode ser definido como o “momento histórico em que a vida das mulheres se altera, ou mais exatamente o momento em que a perspectiva de vida das mulheres se altera […], em que se torna possível uma posição de sujeito, indivíduo de corpo inteiro e atriz política, futura cidadã” (FRAISE & PERROT, 1995, p. 9). Já no século XX, os anos 1960 e 1970 foram especialmente profícuos para o movimento feminista, que teve o seu projeto de emancipação da mulher repercutido de forma muito mais ampla em todo o mundo ocidental. O feminismo faz parte do grupo de “novos movimentos sociais que emergiram durante os anos sessenta (o grande marco da modernidade tardia)”, questionando a distinção entre público e privado e contestando arenas antes intocadas, como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, fazendo da constituição dos indivíduos por gêneros uma questão politica e social, ou seja, politizando a subjetividade e a identidade (HALL, 2003, p. 5). Mais do que contestar a posição social das mulheres, os movimentos feministas deste período “questionaram a noção de que homens e mulheres eram parte da mesma identidade, a “Humanidade”, substituindo-a pela questão da diferença sexual (HALL, 2003, p. 44). O movimento feminista desta época não foi exclusividade europeia. No Brasil, grupos começaram a se formar em um contexto favorável para a difusão de suas ações e discursos, com o crescente ingresso das mulheres brasileiras no mercado de trabalho e no mundo do consumo, o que dava à elas mais autonomia para lutar por seus direitos e ampliava suas perspectivas de uma emancipação econômica, politica e social ainda maior. Após a instalação da ditadura militar no Brasil, em 1968, muitas feministas integraram a luta pela emancipação da mulher àquela pela democracia, participando de grupos clandestinos que se levantaram contra o regime e radicalizando suas ações. 5 Com a abertura política, nos anos 1980, houve um abrandamento tanto das ações quanto dos discursos feministas, sendo que muitas mulheres se integraram aos novos grupos políticos formados no final do regime militar por entenderem que a institucionalização fortaleceria a luta da mulher. Como resultado dos gritos feministas dos anos anteriores e da consolidação da mulher no mercado de trabalho, a mulher que emergiu na década de 1980 tinha uma liberdade muito maior que àquela das décadas passadas. A independência econômica e as conquistas políticas e sociais, que a tiraram da clausura doméstica, despertaram de vez a sociedade para a condição de sujeito da mulher. Enquanto sujeitos recém reconhecidos socialmente, a “crise” que atinge o sujeito pós-moderno é vivenciada de maneira especial pela mulher que, de uma identidade rigidamente fixada pela sociedade tradicional, passa à possibilidade de escolher entre uma “multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis”(HALL, 2003, p. 12). Mas, diferentemente do que se possa imaginar, a identidade feminina tradicional de “rainha do lar” não foi enterrada pela “nova mulher”, que trabalha fora e sustenta o seu consumo. A “crise” de identidade feminina está justamente no conflito que a mulher pós-moderna vive entre a possibilidade de ser “uma outra”, sujeito do seu destino e senhora de si mesma, e os apelos sociais para que ela continue sendo “mulher” no sentido tradicional, ou seja, que continue a ser mãe, esposa e dona de casa. A mulher pós-moderna é independente, liberada, emancipada, mas ainda mantem vários traços identificatórios com o ideal feminino da sociedade tradicional. Tudo se passa como se a nova legitimidade do poder feminino só pudesse se afirmar socialmente, moldando-se à imagem arquetípica do feminino (LIPOVETSKI, 2000). Assim, a mulher, enquanto novo sujeito surgido da diferença que atravessa as sociedades pós-modernas, é desafiada a todo o tempo a negociar com a identidade feminina tradicional e as diversas outras identidades que ela pode assumir, situação que em diversos momentos se torna contraditória e coloca a mulher em conflito com a sociedade e consigo mesma. Apesar dos avanços e conquistas da mulher, permanece na pós-modernidade o “mito do eterno feminino” que ao longo da história vem identificado a imagem social da mulher a uma suposta “natureza feminina”, que a define como um ser emotivo, frágil, belo, sedutor e doce, atributos que justificavam o seu irrevogável destino como dona de casa, esposa e mãe. 6 As descobertas da medicina e da biologia e o advento de novos saberes no século XIX foram responsáveis por imprimir credibilidade científica aos discursos sociais sobre a mulher, ratificados por poetas, pintores e romancistas. Nesse sentido, a mulher se tornou, objeto de uma produção discursiva a partir da qual foi sendo estabelecida a verdade sobre sua “natureza”’, sem que tivesse consciência de que aquela era a verdade do desejo de alguns homens - sujeitos dos discursos médico e filosófico que constituem a subjetividade moderna. A esta produção simbólica vai-se contrapondo uma produção literária voltada ao público feminino, que tenta dar uma resposta imaginária aos anseios reprimidos de grande parte das mulheres das classes médias: anseios de viver a grande “aventura burguesa”, para além do papel honroso que lhes era concedido, de mãe virtuosa e rainha do lar (KEHL, 1998, p. 12). Como afirma Hall (2003), na pós-modernidade, as identidades tradicionais não estão se desintegrando nem tão pouco sendo reforçadas, mas estão se transformando em identidades marcadas pela hibridização. Com base nisso, pode-se dizer que a identidade feminina tradicional está dando lugar a uma identidade feminina que a todo o momento busca conciliar a “antiga” e a “nova” mulher. 3. Imprensa feminina: lugar da antiga nova mulher No contexto das sociedades pós-modernas a mulher já não tem uma identidade fixa, essencial, permanente, uma vez que “a identidade torna-se uma celebração móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1987, p. 13). Na medida em que “os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam” e “somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 1987, p. 13), a mulher vive uma “crise”, instalada pelas contradições e conflitos das suas diversas possíveis identidades. Como principal sistema de representação da pós-modernidade, a mídia reflete e ajuda a criar esses conflitos e contradições vividos pelos sujeitos, ao ligar pontos distantes do mundo, apresentando uma multiplicidade de modos de viver, de pensar e de agir. No Brasil, esse papel é desempenhado sobretudo pela televisão, maior campo midiático brasileiro. 7 Direcionada às mulheres, a imprensa feminina se configura em um importante dispositivo midiático a partir do qual pode-se vislumbrar a “crise de identidade” feminina. O advento da chamada imprensa feminina no Brasil remonta a meados do século XIX, quando a maioria dos primeiros periódicos foi lançada no país. O desenvolvimento da sociedade brasileira, que acarretou o crescimento do mercado interno e a ampliação da classe média e sedimentou o poder de consumo das mulheres foi a base para a consolidação da imprensa feminina, fato relacionado ainda ao fortalecimento das indústrias voltadas para o público feminino. Ligado a necessidade das mulheres brasileiras de alto poder aquisitivo se expressarem e se projetarem no espaço público, o gênero surgiu, inicialmente, na versão imprensa, como revistas, sendo posteriormente adaptado à televisão, onde se firmou como altamente rentável. Buitoni (2009) identifica dez formas de representação da mulher pela imprensa feminina brasileira ao longo do século XX: 1) Em 1900, a “mulher oásis” identifica a mulher com o que há de melhor na natureza; 2) Em 1910, a “mãe sofredora” recorre ao clichê do amor materno para identificar a mulher à emoção e ao sentimento; 3) Em 1920, a “sacerdotisa da beleza” inaugura o culto à beleza feminina, mas ainda concebido de forma etérea, transcendental; 4) Em 1930, a “Iracema de lábios grossos” vislumbra a mulher como uma pessoa real, que sofre e ama, mas que ainda é vista como uma coitada, um ser inferior; 5)Em 1940, a “mulher-celuloide” é aquela que, apresentada a certos “padrões femininos”, é incitada a se encaixar em um deles; 6)Em 1950, a “garota moderna” precisa mudar para se enquadrar no “novo mundo moderno”, sem perder de vista o objetivo de conseguir um marido; 7) Em 1960, a “dona de casa insatisfeita” ainda define a mulher pelo seu papel social: dona de casa; 8) Em 1970, a “liberada e marginal” alia consumo e prazer em uma articulação para compor a “nova mulher”: antiga por dentro e nova por fora; 9) Em 1980, a “gatinha” é a mulher moderna, independente, trabalhadora, mas que ainda precisa ser “a boneca de luxo” e 10) Em 1990, a “segura e sexy” é liberada sexualmente, independente e sabe o que quer: conquistar o olhar masculino. Todas essas representações podem ser entendidas como possíveis identidades que podem ser assumidas pela mulher. No entanto, é interessante notar como a possibilidade de ser “outra” é condicionado a conformidade com os papeis socialmente 8 reconhecidos como femininos, ou seja, as identidades da mulher ainda estão ligadas a sua “natureza feminina”, que a define como emotiva, frágil, bela, sedutora e doce. Ao longo de sua história, a imprensa feminina se converteu em verdadeiros guias das mulheres modernas, difundindo modelos de comportamento e sendo referência para as mulheres que desejam ser modernas, bem-sucedidas e felizes (MIGUEL, 1999). Em uma articulação entre informação, serviço e entretenimento, cedem pouco ou nenhum espaço à política, considerado como “assunto de interesse masculino” e reservam lugares privilegiados à cultura e aos valores “da família”, com abordagens que valorizam assuntos reconhecidos como tipicamente femininos, como cuidados com os filhos, culinária, decoração, moda e beleza, formato que contribui para a propagação do mito do “eterno feminino”, reforçando as estruturas que historicamente condicionam os papeis femininos na sociedade (TEMER, 2011). Utilizando o termo empregado por Hall (2003), pode-se dizer que a imprensa feminina “joga o jogo das identidades”, uma vez que o próprio ato de dar voz à mulher se configura em algo novo, que rompe com o silêncio daquela mulher que ainda tinha como único espaço de vivência o ambiente doméstico. No entanto, o “discurso feminino” que se apresenta não é novo, próprio da mulher, mas a reprodução do tradicional discurso patriarcal sobre a mulher. Na imprensa feminina, a mulher tem voz, mas não discurso próprio. Desde a sua origem, no século XIX, a imprensa feminina assume um discurso contraditório que, ora incentiva atitudes progressistas, ora reafirma modelos conservadores e opressores. Aliando modernidade e tradição, anuncia a “nova mulher”, ancorada no “mito do eterno feminino”, fundado pela tradicional sociedade patriarcal. A mulher representada pela imprensa feminina é tida como moderna, emancipada, mas não rompe com os papeis tradicionalmente destinados a ela. Mesmo quando incentiva o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a imprensa feminina o faz dizendo a mulher que ela deve se inserir em áreas para as quais tem um “dom natural”, como beleza, moda e cozinha. Nesse sentido, Para compensar as eternas funções femininas, casa, esposa, filhos, em oposição antitética com o devenir masculino, cuja ação se inscreve na dialética de uma realidade de luta e dominação do mundo, a mulher é chamada para o moderno […] para criar o simulacro da mudança. […] A modernidade como ideologia e prática, quer trazer a mulher de “dentro” para “fora”, ou melhor, veio lhe dar a ilusão de que, integrando-se aos signos do novo, ela está agindo no mundo (BUITONI, 2009, p. 198). 9 Assim, apesar de todo o discurso de modernidade, novidade, enfim, do império do “novo” na imprensa feminina, pode-se dizer que o que ela traz de realmente novo é a ocupação da mulher no novo espaço público da pós-modernidade, a mídia, uma vez que o espaço público era tido como um lugar reservado somente aos homens. No entanto, mesmo se intitulando como porta-voz dos tempos modernos, a imprensa feminina, com o seu discurso, acaba por recolocar a mulher em seu “antigo” lugar: o de objeto do discurso patriarcal. Entendendo a mulher pós-moderna como um híbrido cultural, que precisa negociar o tempo todo com antigas e novas identidades, pode-se definir a imprensa feminina como um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade, uma vez que nega à mulher a diversidade que resulta dos seus vínculos de classe, etnia, etc, para unificá-las em torno de uma única identidade feminina. Ao se apoiar em antigas estruturas, a imprensa feminina reforça essas estruturas de forma que o novo que ela traz é novo apenas “por fora, de superfície . O novo na imprensa feminina trabalha num nível secundário, na aparência […] sua aspiração máxima é ser a novidade que venda […], é o novo que serve ao consumo” (BUITONI, 2009, p. 195). 4. Feminina: uma contradição goiana O início da década de 1980 foi marcado no Brasil pela crise econômica e a abertura política. Ao mesmo tempo em que havia um clima de euforia pela volta dos direitos políticos, a frustração era geral, causada pelos altos índices de inflação e desemprego. Neste período, a cidade de Goiânia já era considerada uma metrópole, posição alcançada, em grande parte, devido a construção de Brasília na região Centro-Oeste na década de 1960. A medida que a capital do Estado crescia, os modos de vida da população se modificavam, acompanhando as tendências do eixo Rio-São Paulo. Com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e transporte, que proporcionava maior acesso à televisão e às viagens interestaduais, houve um aumento do contato da população goiana com a dos grandes centros nacionais e internacionais. A mulher goiana dos anos 1980 já não se conformava com os papeis femininos tradicionais. Os discursos e ações feministas das décadas de 1960 e 1970 e os avanços e conquistas da mulher neste período, como o ingresso cada vez maior no mercado de 1 trabalho, despertavam-na para a possibilidade de ser uma “outra” mulher, mais independente, emancipada. No entanto, os modos de vida mais liberados das mulheres paulistas, cariocas, europeias e norte-americanas contrastavam com a cultura local paternalista e machista, onde o senso comum era de que a mulher devia ser agradável para o olhar masculino a fim de conseguir um bom casamento e constituir uma bela família 5. A mulher goiana dos anos 1980 queria ser moderna, mas também se via impelida a manter os tradicionais papeis femininos. A análise dos jornais da época mostram essa contradição. Em 1980, a moda nas praias do Rio de Janeiro era o topless e, para acompanhar a “tendência carioca”, moças começaram a circular nuas nas tardes de domingo na Praça Tamandaré6, em motocicletas, bicicletas ou carros elas chocaram a sociedade goiana, conservadora da moral e dos bons costumes e desafiaram a polícia, que por diversas vezes tentou prendê-las por atentado ao pudor. Os jornais noticiavam a proeza dizendo que o grupo, composto também por rapazes, queria “implantar o nudismo” em Goiás. Se alguns queriam romper com as tradições, outros reivindicavam o seu retorno. É conhecido da mesma época o Movimento dos Machistas Mineiros, que contando com nomes famosos como o cartunista Ziraldo, o cantor Valdick Soriano e o comediante Pedro de Lara, realizaram passeatas e manifestações pedindo a volta da mulher “Amélia”7. Em Goiás, a resistência à mudança da “posição feminina” também eram grande, expressão disso é a pichação feita no ano de 1983 no muro do Cemitério Santana 8 em que se lia: “feminista comigo é no cacete”. A entrada da mulher no mercado de trabalho também não era vista com muita simpatia por vários segmentos sociais mais conservadores. Como o tempo era de crise econômica, um deputado estadual falou a um jornal local que o fato não podia ser entendido como uma conquista, porque a mulher “foi forçada a entrar no mercado de trabalho em função das necessidades financeiras, fazendo o jogo dos grupos econômicos”. 5 Mesmo de forma velada, esse discurso resiste ainda hoje em Goiás, onde mulher é valorizada sobretudo por sua beleza. Exemplo disso é o orgulho que os goianos têm de disser que “Goiânia é a capital das mulheres bonitas”. 6 A Praça Tamandaré fica no Setor Marista, bairro nobre da capital, e era o principal ponto de encontro da juventude goiana pertencente à elite econômica na década de 1980. 7 “Amélia” se tornou sinônimo da mulher que se dedica inteiramente aos cuidados com a casa e o marido por causa da música com este nome, de autoria do compositor brasileiro Ataulfo Alves, na qual, de forma saudosista, diz que aquela seria “a mulher de verdade”. 8 O principal cemitério de Goiânia na época, localizado no Setor Campinas, centro comercial com grande circulação de pessoas. 1 Tal afirmação era validada pela dura realidade econômica que o país enfrentava na época, que fez com que muitas mulheres, principalmente as mais pobres, começassem a trabalhar não por vontade de ser independente, mas para sustentar suas famílias, uma vez que seus maridos estavam desempregados, ganhavam pouco ou elas não eram casadas9. Mesmo se configurando em uma iniciativa de um grupo de mulheres da classe alta, o programa de televisão Feminina, produzido e exibido de 1981 a 1986 pela TV Anhanguera, empresa pertencente ao grupo Organização Jaime Câmara e afiliada da Rede Globo, não deixa de ser um retrato de sua época, a partir do qual pode-se vislumbrar as identidades, subjetividades e sociabilidades próprias das mulheres goianas daquele tempo. A ideia de criar o programa surgiu originalmente das discussões do Grupo Feminista de Estudos da Mulheres, composto por artistas, professoras, estudantes, jornalistas que viviam em Goiânia no início dos anos 1980 e que se reuniam na Galeria Casa Grande, comandada pela marchard e galerista Célia Câmara. Influenciado pelos discursos e ações feministas e pelos avanços e conquistas da mulher nas décadas de 1960 e 1970, o grupo ansiava por projetar suas discussões no espaço público, contribuindo com a libertação da mulher goiana do espaço doméstico e com a sua entrada no mercado de trabalho e alavancando a sua independência e emancipação. Ocupar o espaço público mediado parecia muito conveniente já que Célia Câmara, que participava do grupo, era esposa de Jaime Câmara, sócio proprietário da Organização Jaime Câmara e poderia usar sua influência para alcançar esse objetivo. A partir de 8 de março de 1981, o programa idealizado pelo grupo passou a ser exibido de segunda a sexta-feira, das 11 e meia às 12 horas pela TV Anhanguera, sob o comando de Teresa Sabino Louza10, amiga de Célia Câmara. Tanto Teresa quanto Célia eram tidas como referências de mulheres modernas, requintadas e elegantes e foram essas marcas que elas tentaram imprimir no Feminina. Inicialmente com o nome de Mulher, o programa foi posteriormente denominado Feminina – A revista da mulher goiana. O intuito era fazer um programa nos moldes do 9 Segmentos mais conservadores da sociedade ainda hoje tendem a ver o trabalho da mulher como secundário, sendo necessário somente quando o homem (pai ou marido) não consegue sustentar a família. O trabalho da mulher é visto como ajuda e complemento do trabalho do homem. 10 Considerada uma “socialite” goiana, Teresa pertencia a uma rica e tradicional família de Goiás, sendo casada com Lincoln Louza, irmão do proprietário do Flamboyant, maior shopping do Estado ainda hoje. Ela era reconhecida como a responsável por criar a grande moda da capital goiana, juntamente com sua irmã, Daira Sabino. 1 TV Mulher, programa da Rede Globo exibido de 1980 a 1986, também no período da manhã, e que tinha como proposta falar à mulher moderna, independente, que já trabalhava fora de casa ou queria trabalhar. Nesse período, a TV Anhanguera se empenhava em consolidar o padrão global em sua programação. Isso fez com que grande parte dos seus programas locais fosse extinta, restando apenas alguns poucos de cunho regional e outros jornalísticos. Assim, a exibição do Feminina, que pode ser compreendido como a tradução local do TV Mulher, estava em sintonia com as políticas da empresa. Como o TV Mulher, a proposta do Feminina era apresentar à mulher goiana os diversos avanços e conquistas da mulher em todo o mundo, tendo como público-alvo uma telespectadora moderna ou que queria ser, no entanto, ao reproduzir na tela os discursos sobre a mulher da sociedade patriarcal, o programa contribuiu muito mais para que a mulher goiana não saísse do lugar historicamente condicionado a ela. Se constata as contradições do discurso tanto do TV Mulher quanto do Feminina até mesmo pelo horário em que ambos eram exibidos, pela manhã, quando a mulher que trabalhava fora ou que queria trabalhar não poderia assistir. Assim como o programa da Globo, o regional da TV Anhanguera se dizia e queria ser moderno, mas acabou por reafirmar diversos valores conservadores, ao ceder pouco ou nenhum espaço à política e reservar lugares privilegiados a assuntos considerados como tipicamente femininos, como cuidados com os filhos, culinária, decoração, moda e beleza. Ao longo dos seis anos em que esteve no ar, o programa buscou modelar, dar forma à mulher goiana a partir da representação de um conceito tradicional de feminilidade e disso pode-se ressaltar que o próprio nome do programa é bastante sugestivo. Considerações finais A história do programa de televisão regional Feminina é significativo do impasse vivenciado pela mulher goiana no início da década de 1980, diante das possibilidades de ser uma “outra”, que o reconhecimento social de sua posição de sujeito lhe forneciam, e dos apelos da sociedade goiana conservadora para que ela continuasse a ser “mulher” no sentido tradicional. 1 O Feminina nasceu da vontade de um grupo de mulheres de serem modernas, emancipadas, independentes e de contribuir para que outras mulheres também o fossem, mas como a mulher do seu tempo, ele também se deparou com um discurso já construído sobre a mulher e não conseguiu se desvincular dele. Com a sua história, o programa representou o impasse da mulher pós-moderna: o grupo que criou o Feminina quis e teve diante de si a possibilidade de fazer um programa que representasse uma “outra” mulher, que não aquela do “velho” discurso, no entanto, diante da força conservadora da sociedade goiana, acabou se conformando em representar a mulher que não chocaria. O que se denomina aqui como impasse vivenciado pela mulher goiana é colocado por Hall (2003) como “crise de identidade” que atinge não somente as mulheres de uma tempo e espaço específicos, mas os sujeitos da modernidade tardia de forma geral, que diante do “supermercado cultural” no qual o consumismo global transformou o mundo se vêem constantemente divididos e fragmentados em diversas identidades, que são muitas vezes contraditórias e conflitantes. Este trabalho teve como interese verificar como isso se refletiu (ou não) na produção midiática direcionada às mulheres em Goiás no início dos anos 1980, compreendendo que tais transformações identitárias e representacionais tanto refletem quanto implicam em profundas transformações do lugar social da mulher e da sua cidadania. Bibliografia BEAUVOUIR, Simone. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4ª edição. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970. BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher na imprensa feminina brasileira. São Paulo, Loyola, 1981. FRAISE, Geneviève. PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Porto, Afrontamento, 1995. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 1987. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. 2a edição. Rio de Janeiro, Imago, 1998. 1 LIPOVETSKI, Gilles. A terceira mulher. Permanência e revolução do feminino. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. MIGUEL, Luis Felipe. O jornalismo como sistema perito. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. 11 (1), maio, 1999. TEMER, A. C. R. P. .A revista feminina e a valorização do trabalho doméstico. Revista PJ, Br, v. 00, p. 00-00, 2011. 1 Celebridade 2.0: um novo tipo de talento1 Renata de Souza PRADO2 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO RESUMO O presente artigo tem como objetivo perceber e entender o novo status das celebridades na sociedade atual, mais especificamente dentro do universo da internet e das redes sociais. Serão analisadas as formas como as ferramentas e plataformas permitem essa configuração, e como se dão as relações de poder e admiração entre fã e celebridade. Será feita também uma reflexão das conseqüências desse cenário à luz dos direitos humanos. PALAVRAS-CHAVE: Celebridades; internet; direitos humanos; superexposição; violação de privacidade. INTRODUÇÃO Uma matéria recente de uma revista sobre tecnologia falava justamente sobre a questão das celebridades na internet: não importa a plataforma, as pessoas sempre procurarão uma maneira de fazer com que haja ali um grupo de destaque. Portanto o ciberespaço não foge à regra: existirão pessoas que tem um maior destaque frente às restantes, grupo este que se convencionou chamar webcelebridades. A busca do homem pela fama é algo que pode ser caracterizado como inerente ao indivíduo. Para entender um pouco dessa sede pelo poder, relembramos um mito bastante difundido, o de Narciso, em que o jovem rapaz, enamorado e inebriado pela própria imagem no reflexo de um rio acaba afogando-se, perdido na contemplação de sua própria beleza. 1 Trabalho apresentado no GT 1 – Comunicação, Mídia e Direitos Humanos do VI Seminário de Mídia e Cidadania realizado em 26 de Novembro de 2012. 2 Mestrando do Curso de Comunicação da Facomb-UFG, email: [email protected]. 1 A característica de destaque, ou o talento de Narciso era a beleza, a circunstância que o diferenciava de qualquer outra pessoa. Saindo um pouco do mito e pensando no mundo real, várias características ou talentos podem diferenciar alguns indivíduos dos demais: habilidades de canto, dança, interpretação, prática esportiva e assim por diante. Essas habilidades envolvidas numa esfera de publicidade, glamourização e sedução é o que conferia a essas pessoas o status de celebridade. Há de se perceber que a palavra chave no caso do processo de consagração de uma celebridade é sempre um talento a se destacar. Pode-se observar porém uma mudança de paradigmas nesse processo, o que faz pensar em duas saídas diferentes: ou o processo de formação de celebridades se modificou, ou o uso de plataformas distintas foi quem causou essa diferenciação. Porém que diferenciação é essa? Falemos um pouco de internet, mais especificamente de redes sociais. O princípio básico de qualquer rede social na internet basicamente é compartilhar algo de si: uma foto, um momento, uma localização. Isso tudo amplificado pela rapidez da evolução das plataformas e de uma adesão cada vez maior de público a essas redes. É necessário dizer também que nas redes sociais exacerba-se também essa peculiaridade da alta exposição, uma vez que as formas de produzir e consumir conteúdo são bastante facilitadas pela própria plataforma: basta uma câmera na mão e uma conexão razoável para disseminar conteúdo para quem quiser consumi-lo. Mas essa não é uma cultura da internet, exclusivamente. O culto ao excesso de exposição surge com os próprios reality shows da TV, sendo o programa Big Brother o mais claro exemplo. O sobrevivente a uma série de provas de resistência tanto físicas quanto psicológicas sob o olhar atento do telespectador tem como premiação a glória do dinheiro e de contratos publicitários: torna-se, portanto, uma estrela. Dessa maneira percebe-se claramente uma nova forma de atingir a fama: abrindo a própria vida ao olhar de terceiros. Talvez o excesso de exposição possa ser configurado como um talento porque exige de uma forma ou de outra que o indivíduo saiba tirar proveito da condição de sua imagem explorada. Ou como disse a reportagem citada na introdução deste artigo: apesar da mudança de plataforma, as vias para se sair do anonimato não se tornaram drasticamente diferentes. O mesmo indivíduo que teria um bom desempenho na TV por exemplo, tem chances de se destacar também em redes sociais. Isso não descaracteriza, contudo, essa espécie de democratização do processo. A saturação gera conseqüências nem sempre muito agradáveis. Tendo a superexposição 2 como uma variável muito mais valorizada, temos mais e mais pessoas dispostas a fazerem de tudo para alcançar a fama. E é aí que é necessário refletir a respeito dos excessos. O processo de celebrização não é uma via de mão única. O alimento da celebridade é sempre a admiração de terceiros. Sem um fã, a celebridade simplesmente não existe. E a transposição dessa relação para o ciberespaço também configura uma relação diferente entre o fã e a celebridade, baseada nas mesmas características de facilidade do acesso e produção de conteúdo. Nas reflexões propostas neste artigo, a celebridade torna-se uma figura muito mais próxima do cotidiano do fã. Consequentemente essa proximidade traz uma relação de intimidade, ou pelo menos do desejo dela, muito mais próxima. E é dentro dessa perspectiva que temos a maior e talvez pior conseqüência desse novo paradigma, que é o paradoxo entre uma superexposição consentida, pelo lado da celebridade ou do aspirante a famoso contraposto a uma violação de privacidade que é quase que sacramentada pelo público geral usuário da web. Qualquer indivíduo um pouco mais familizarizado com o ambiente da internet e das redes sociais já ouviu dizer que “na internet tudo pode” ou que a internet é uma “terra sem lei”. Mas esse antagonismo de relação entre a superexposição e a invasão de privacidade se agrava quando dele decorre a violência, que pode ser de diversos tipos: ideológica, física etc. Como fica a integridade do indivíduo quando dessa relação surgem histórias falsas que não lhe dizem respeito e lhe prejudicam no mundo material, longe dos computadores e das conexões de internet? Existem casos de pessoas que tiveram sua identidade apropriada por terceiros, que de posse de uma identidade falsa e virtual, passaram a aplicar golpes em outros. Há casos também de homens e mulheres, que por estarem tão expostas e vulneráveis na rede foram vítima de violência sexual ou até mesmo assassinatos. Mesmo que a materialização da violência não justifique uma situação anterior de superexposição, é preciso trazer essa discussão para uma luz mais científica na medida em que nos tornamos vítimas de uma violência que é fruto do nosso próprio consentimento e até mesmo incentivo desse uso das plataformas com fim narcísico. Em termos de cidadania torna-se então fundamental entender como funcionam essas dinâmicas para melhor delimitar direitos, deveres e punições legais para todos os indivíduos presentes no ciberespaço. A mutação da forma dessas relações é 3 perfeitamente aceitável uma vez que historicamente temos gerações de direitos humanos diferentes para cada momento específico da civilização. É a descoberta desse sentido nessas relações que nos fará caminhar e evoluir para uma nova forma de entender e aceitar esse novo paradigma da sociedade e da tecnologia, sem contudo deixar que os valores da cidadania e da democracia se façam presentes. 1. A CELEBRIDADE: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO O termo deriva do latim, celebritas, e designa um indivíduo possuidor de fama, enaltecido e reconhecido como tal pela sociedade. Ultimamente surgiram neologismos derivados, como subcelebridades, para designar uma nova safra de pseudo-famosos advindos de reality shows, e webcelebridades, denominando os famosos que obtiveram reconhecimento da sociedade nas plataformas ciberespaciais. O sociólogo inglês Chris Rojek (2008) em seu trabalho busca fazer uma análise do termo e suas implicações sociais, diferenciando celebridades conferidas (que são ligadas à linhagem), adquiridas (que é o reconhecimento de algum mérito próprio) e ainda as celebridades atribuídas, resultado de uma exposição na mídia e que são o foco de discussão deste artigo. Este último tipo de celebridade é um fruto da era moderna, do surgimento e da consolidação dos meios de comunicação de massa. Essa ação “sem querer lançou as bases para a emergência de novas formas de distinção.” (ROJEK, 2008, p.31-32). O autor se concentra em três abordagens diferentes para o fenômeno das celebridades: a primeira como sendo uma análise singular dos personagens; a segunda uma relação estrutural do comportamento das celebridades com a história; e por fim uma análise sobre os efeitos do fenômeno da celebrização dos indivíduos, nas imagens e nas histórias desenvolvidas e reproduzidas a respeito das celebridades, sendo que o foco para as três abordagens é o de uma perspectiva a partir da própria mídia. Rojek articula a celebrização com o rito de adoração, uma clara comparação entre as imagens de celebridades e deuses. Dessa forma também relacionamos com o processo de formação de uma celebridade midiática e todo o universo abrangido uma espécie de plastificação do cotidiano: o dia a dia de um ponto de vista estético, a glamourização. “O modo público de ser é elaborado através de novos idiomas do corpo, critério de notabilidade e estilos de comportamento.” (idem, 2008, p.112). 4 A maior contribuição do autor portanto talvez seja a sua visão de celebridade atrelada a uma máquina social, com uma grande carga de elementos culturais e midiáticos. De uma forma bastante resumida: a construção de celebridades na civilização ocidental nada mais é do que um reflexo da relação entre democracia, mídia e povo. Os estudos de Edgar Morin (1989) nos levam a pensar o processo da formação das celebridades como uma reafirmação da personalidade narcísica: todo aspirante à fama é no fundo um apaixonado por si mesmo. No mito, o jovem Narciso ao olhar para a água, apaixona-se perdidamente pela própria imagem refletida. Na sociedade, o narcisista é um indivíduo extremamente auto-centrado e egoísta, que fará o que estiver ao seu alcance para obter o desejado destaque de sua própria imagem. Dentro da perspectiva de formação das celebridades, não podemos esquecer a relação da celebridade com o fã. Este também torna-se um narcisista na medida em que o famoso torna-se o seu espelho. A relação é muito maior que a simples admiração, torna-se projeção, e um misto também de inveja. Segundo Alex Primo (2009): “Sua idolatria (a do fã) pode a qualquer momento se transformar em raiva tão logo alguma imagem da celebridade lhe recorde de sua insignificância”. A relação do fã com o ídolo para aquele, principalmente quando nos ambientamos na internet é a de vigília com a sensação de proteção, uma vez que não há um confrontamento real. Logo mais analisaremos como essa premissa pode tornarse perigosa no sentido de materializar comportamentos violentos. Considerando um contexto de mudança de valores na sociedade, reorganização de estruturas familiares, inconsistência de ideologias e uma intervenção da mídia no sentido de estimular o consumo exacerbado e banalizar comportamentos individualistas, podemos pensar em uma sociedade que esteja totalmente voltada para o rito narcísico, centrada na auto-valorização. Percebemos que em sociedades onde o consumo é mais valorizado, como as ocidentais, fama e poder são variáveis muito mais valorizadas que outras como o senso de coletividade e a honestidade, como demonstraram algumas pesquisas (PRIMO, 2009, p. 3). Dessa forma, há uma mudança de paradigma tanto na busca da fama quanto no reconhecimento da mesma. Essa mudança foi reforçada pela mídia, principalmente depois do surgimento de reality shows, como o Big Brother. Nesse contexto inclusive 5 surge uma variação do conceito de celebridade, designando como “subs” as celebridades que ganham destaque exclusivamente expondo seus dotes físicos. (ELLEN, 2010). Este novo cenário exclui cada vez mais a valorização de talentos e esforços pessoais e dignifica a exposição e uma certa dose de sagacidade ao escolher o melhor momento de lançar-se como produto na mídia. E como um produto da mídia as celebridades precisam jogar o seu jogo no sentido de que precisam desempenhar papéis midiáticos, quase que como numa novela: estarem inseridos em tramas, enredos, figurarem em joguetes. Só dessa forma existe sentido, segundo Redmond (apud PRIMO, 2009, p. 5): “celebrities appear on reality TV pretending to be ‘themselves’ because without the referentiality of fame they no longer exist at all”. 2. A CELEBRIDADE INSERIDA NO CONTEXTO DA CIBERCULTURA Antes de inserir a celebridade neste contexto, entendamos um pouco alguns dos conceitos da internet a fim de fazermos uma reflexão mais eloqüente e lógica de um ponto de vista correlacional. Aqui consideraremos o conceito das redes sociais do ponto de vista do ciberespaço, ou seja, onde não há necessidade de presença física do homem. As redes sociais fazem parte de uma geração da internet chamada Web 2.0. Embora o termo tenha uma conotação de uma nova versão para a Web, ele não se refere à atualização nas suas especificações técnicas, mas a uma mudança na forma como ela é encarada por usuários e desenvolvedores, ou seja, o ambiente de interação e participação que hoje engloba inúmeras linguagens e motivações. O conceito foi primeiro empregado por Tim O’Reilly: "Web 2.0 é a mudança para uma internet como plataforma, e um entendimento das regras para obter sucesso nesta nova plataforma. Entre outras, a regra mais importante é desenvolver aplicativos que aproveitem os efeitos de rede para se tornarem melhores quanto mais são usados pelas pessoas, aproveitando a inteligência coletiva" (2005) Partindo para a definição das redes sociais: "Uma rede social é uma estrutura social composta por pessoas ou organizações, conectadas por um ou vários tipos de relações, que partilham valores e objetivos comuns. Uma das 6 características fundamentais na definição das redes é a sua abertura e porosidade, possibilitando relacionamentos horizontais e não hierárquicos entre os participantes. "Redes não são, portanto, apenas uma outra forma de estrutura, mas quase uma não estrutura, no sentido de que parte de sua força está na habilidade de se fazer e desfazer rapidamente." (Idem) O ponto mais importante nas redes sociais , quer sejam elas profissionais, de relacionamento ou de qualquer outro tipo é a característica comum de que todas se baseiam no compartilhamento de informações, conhecimentos, interesses e esforços em busca de objetivos comuns. A intensificação da formação das redes sociais nesse sentido reflete um processo de fortalecimento da sociedade civil, em um contexto de maior participação democrática e mobilização social. Esse conceito vai ao encontro da proposta da aldeia global de McLuhan (1974), quando ele diz que o uso da tecnologia pelo homem estaria retribalizando o homem formando uma aldeia global que permitiria a intercomunicação direta. Um ponto interessante das redes sociais e da Web 2.0 de uma forma geral é que quase toda ela está baseada no conceito de cloud computing, que é a forma pela qual os dados ficam armazenados: "Cloud computing refere-se à utilização da memória e das capacidades de armazenamento e cálculo de computadores e servidores compartilhados e interligados por meio da Internet, seguindo o princípio da computação em grade. O armazenamento de dados é feito em serviços que poderão ser acessados de qualquer lugar do mundo, a qualquer hora, não havendo necessidade de instalação de programas x ou de armazenar dados. O acesso a programas, serviços e arquivos é remoto, através da Internet - daí a alusão à nuvem. O uso desse modelo (ambiente) é mais viável do que o uso de unidades físicas". (DUARTE e FREI, 2008, p.156) Pela própria forma como os dados ficam armazenados - na própria internet - eles ficam mais acessíveis a qualquer indivíduo de qualquer lugar do mundo. Assim, relevando questões de segurança na rede, em primeira instância esses dados também estariam mais fragilizados. Aparentemente, produzir, disseminar e consumir conteúdo nunca esteve tão acessível ao cidadão comum quanto neste novo cenário. Dentro de toda a problemática a respeito das celebridades exposta no tópico anterior, essa proximidade maior entre as 7 pessoas torna também o fã e o ídolo muito mais próximos um do outro do que na mídia convencional. É quase como se houvesse uma familiaridade entre os sujeitos. Nas redes sociais a forma como os indivíduos se destacam e se tornam celebridades, ou melhor, webcelebridades, para usar o neologismo, não difere muito de como estas se consolidam no mundo real, da mídia convencional. Segundo Shirky (apud PRIMO, 2009, p. 11), duas variáveis são necessárias e “nenhuma delas tem a ver com tecnologia. A primeira é escala, ou seja, o tamanho da audiência é fundamental. Em segundo lugar, existe uma incapacidade de se responder a toda atenção recebida”. Dessa forma a essência da formação da celebridade prevista por Rojek se confirma como uma questão muito mais social do que tecnológica, já que o trato narcisista da celebridade (e também do fã) se mantem na unilateralidade da visão no espelho, tanto na internet, quanto na mídia convencional. Portanto a conversação não tem como ser totalitariamente horizontal. A questão é que na web essa cultura da fama parece superestimada, principalmente pelo fato de que sob a alcunha de um pseudo-anonimato, os indivíduos passam a assumir personas e fazer projeções de sentido e desejos de sua própria vida em outras personas, uma espécie de “cultura do avatar”. E como aparentemente tudo na vida virtual é mais simples, alguns estudiosos falam de uma espécie de infantilização dos comportamentos nas redes sociais, em que a prática do jogo e da disputa são levados para a vida real. 3 sites de relacionamento, por sua vez, acabam incentivando a vaidade e competição. Dentro disso, as pessoas se esforçam por aparecer da forma mais extremada possível: fotos, vídeos, depoimentos. Cria-se uma disputa quantitativa, em que a maior quantidade de fãs, amigos ou seguidores é o que realmente importa. Já que o custo de propagação da mensagem é mínimo ou praticamente inexistente, e em algumas redes sociais como You Tube ou Twitter a audiência pode vir de forma bastante rápida, o que de certa forma democratiza a fama quando esta é pautada na exposição. Uma grande prova disso é que vídeos muito visualizados no You Tube, de indivíduos com status de webcelebridade muitas vezes não fazem o espectador vislumbrar talento algum. Pelo contrário, muitos parecem uma ode à imbecilidade. Twenge e Campbell (apud PRIMO, 2009 p. 11) alertam também para o fato de que na internet, no mesmo contrapeso em que a fama chega rapidamente, ela também se 3 Este conceito de transplantar tarefas de jogos, ou desafios do vídeo game para a vida real se chama Gamification. 8 esgota rapidamente, um movimento natural considerando um alto fluxo de dados vindos de mais e mais pessoas em busca da fama pela web. 3. O PARADOXO DA EXPOSIÇÃO E A CONFIGURAÇÃO DA VIOLÊNCIA A relação entre o fã e a celebridade na web e a aparente liberdade de interação num envoltório de personas entre os indivíduos cria uma paradoxo comportamental. Se de um lado temos o excesso de exposição motivado pela constante busca pela fama, de outro lado passamos a ter uma visitação e uma participação maior de terceiros na vida publicizada desse indivíduo. Em alguns casos essa relação torna-se conflituosa e é nesse ponto que devemos nos ater. Diante desse cenário percebe-se também uma nova modalidade de violência, caracterizada pelo ultrapasse do espaço individual, seja físico em casos mais extremos, seja simbólico. Muitos casos podem ser citados, porém alguns são vistos com mais frequência: stalking, falsidade ideológica, fraude, estelionato e muitas vezes até mesmo violência física, como no caso de pessoas que são por muito tempo vigiadas online e depois acabam espancadas ou mortas. Quando falamos desse tipo de violência nos referimos àquela que é intrínseca e fruto do processo civilizacional do homem, entendendo que quase sempre a motivação que leva o indivíduo a cometer esse tipo de infração diz muito mais respeito à sua forma de conviver em sociedade e como esse processo toma forma na sociedade como um todo. Maffesoli (1987) em sua obra defende um processo de domesticação da violência que não elimina ainda assim o potencial violento do homem. Nas sociedades antigas existiam rituais e outras formas de canalizar essa violência. Com a evolução das sociedades esse escape passa a estar representado pela mídia e pelo consumo. Assim uma vez que o cidadão fica privado dessas alternativas ele busca outras formas de liberar essa agressividade irracionalizada. Para complementar essa visão, citamos Pereira: “A violência tem duas conotações primordiais: física e moral. Ela pode ser ostensiva ou secreta. Ser praticada fisicamente, através da agressão material. Mas também evidenciada por meio de gestos, atitudes, palavras, orais ou escritas, e até mesmo pelo simples olhar. Numerosas são as formas de que se reveste a 9 violência como ingrediente de muitas ações humanas (Pereira, 1975, p.61).” Considerando ainda o processo de celebrização como um jogo também de mídia, e essa relação muitas vezes abusiva do fã com o ídolo, não devemos deixar de citar Sodré (2006). O autor fala de um sadismo por parte do público, de um prazer de ser espectador do sofrimento do outro. A visão do fato violento, exibida de forma dramática ou não, funcionaria como é uma tentativa, muitas vezes infantilizada, de se lidar com a banalização do trágico no dia a dia. “O desastre, a agressão, a monstruosidade teatralizados, discursivamente encenados funcionam como objeto fóbico capaz de circunscrever àquela representação específica a angústia generalizada em face da destrudo social”. Percebemos isso na relação sádica do fã quando se trata de expor as fraquezas de seu ídolo: “Não se trata mais da velha identificação projetiva com uma figura mítica e distante - em que se dá a perda do si no outro -, mas de um espelhamento total, com vistas à conservação imaginária de si mesmo”. Algumas reflexões a respeito desses tópicos devem ser feitas com relação a alguns aspectos: o primeiro é uma questão dos direitos e da própria legislação e burocracia cujos papéis são condizentes ao Estado: quando Bobbio (2004) fala em gerações de direitos e quando pensamos numa geração de direitos referentes ao uso do ciberespaço percebemos o quanto ainda a estrutura é falha. É fundamentalmente necessário que essas questões sejam vistas e atualizadas pelo processo legislativo. Talvez na esfera da mídia, de acordo com o conceito de esfera pública de Habermas (2003) a sociedade já esteja de alguma forma usando a própria internet como cenário de discussão a esse respeito. Para citar um exemplo um grupo de mulheres em São Paulo tem usado as próprias redes sociais para divulgar e monitorar informações sobre locais com altos índices de violência contra a mulher. É uma ótima oportunidade levar essa discussão para o âmbito do Estado para que se possam desenvolver estratégias que integrem a tecnologia em favor da cidadania. O segundo ponto, é que é preciso também refletir na instância das significações os limites da exposição da própria imagem na web e a questão do interesse pelo outro, dentro do universo dos direitos humanos. À medida em que certas comunicações se banalizam e se naturalizam, como é possível estabelecer a cidadania na esfera da web? Vimos que à medida em que a história caminha, seus contextos permitem modificações 10 nos direitos humanos. Para proteger a integridade dos indivíduos é preciso repensar a educação, formal e não-formal, e também a estrutura societária. Mas talvez antes disso repensar também os limites e os direitos de cada cidadão seja também primordial. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos perceber a contravenção de alguns valores, o enfraquecimento de algumas ideologias e a evolução da sociedade como um todo permitiram a construção de um cenário em que sentimentos egoísticos predominem: muitas vezes a cultura do online valoriza o excesso de individualidade. E com a facilidade de acesso à produção e propagação de conteúdo em websites e redes sociais a busca pelos quinze minutos de fama torna-se mais acirrada e agressiva. Em qualquer página que se abra poderemos nos deparar com uma foto, um vídeo, uma súplica para que dispensemos um pouco de audiência a essas pessoas. Cria-se um ambiente que se torna uma espécie de indústria de formação de celebridades: cada um a seu momento poderá ter alguns minutos de glória. O grande problema dessa fama enlatada é que ela é vazia e não está embasada em qualquer espécie de reconhecimento de mérito. Outro problema é que ela é tão efêmera quanto a memória de uma sociedade bombardeada por excesso de estímulos informacionais. Um ciclo de fama de uma vida inteira transforma-se num pequeno período de contratos publicitários e capas de revista que só durará até a próxima edição do reality show. Quanto a essa efemeridade da fama a grande preocupação é apenas com a moral do indivíduo: o “sucesso”, se é que podemos usar a denominação, vem de uma inversão de reconhecimentos: o tosco, o grotesco, o ridículo e o imbecil são características que podem tornar as pessoas reconhecidas. Mas um problema maior e mais alarmante para a nossa sociedade decorre dessa condição: a integridade do indivíduo se desfragmenta, e muitas vezes é a integridade física o objeto. Na busca incessante pela fama o indivíduo passa a se expor de uma forma impensada e irresponsável e ele mesmo, consentidamente, cria mecanismos para que seja alvo de pessoas de má fé. Uma pesquisa recente da agência Click mostra que as pessoas não se preocupam com o conteúdo que estão compartilhando no Facebook ou em outras redes sociais. Ou seja, elas não se importam em dizer onde estão, o que estão consumindo ou detalhes de sua vida íntima. 11 Talvez essa falta de preocupação seja porque no Brasil ainda não é uma realidade essa espécie de informatização do crime. Não chegamos a viver casos freqüentes como na Inglaterra em que seqüestros, roubos e até mesmo execuções são planejados conforme informações que as pessoas disseminam em suas próprias redes sociais. Assim mesmo, esparsadamente, começamos a ver que essa poderá ser em breve uma realidade brasileira. E para a democracia e a cidadania estes são pontos importantes, e que merecem sim discussão. Precisamos considerar todas as mudanças e nuances de nossa legislação, dos direitos dos indivíduos no ambiente da rede e propor um novo cenário de leis, punições e o que mais o nosso aparato jurídico puder fomentar. Porém não estamos parados. A cada dia cresce o número de pessoas que considera essas discussões acerca de webcelebridades, superexposição e invasão de privacidade. Para esses indivíduos parece emergir o resgate de talentos reais, de valores cidadãos e principalmente: a noção de que a internet mesmo com todas as suas possibilidades e facilidades de acesso é uma ferramenta de comunicação que necessita de limites e supervisão quanto a direitos. A prova disso são os crescentes grupos de monitoramento de violência, o aumento do número de denúncias de crimes online e o surgimento de redes sociais voltadas para a prática de cidadania. Assim poderemos pensar na internet como um ambiente seguro, sem excessos, e que para onde houver crime não haverá impunidade. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. DUARTE, Fábio e FREI, Klaus. Redes Urbanas. In: Duarte, Fábio; Quandt, Carlos; Souza, Queila. (2008). O Tempo Das Redes, p. 156. Editora Perspectiva S/A. ELLEN, Bárbara. Celebrity is dead. Long-live the sub-celebrity. In: The Observer: 03/01/2010 << http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/jan/03/barbara-ellencelebrity-big-brother>> HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. MAFFESOLI, M. Dinâmica da violência. São Paulo: Vértice, 1987. McLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensão do homem. Tradução de Décio Pignatari. São Paulo, Cultrix, 1974. 4° ed. 12 MORIN, Edgar. As estrelas: Mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. O’REILLY, Tim. What is Web 2.0. In: O’Reilly: 30/09/2005 <<http://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html>> PEREIRA, José. Violência: Uma análise do 'homo brutalis'. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. PRIMO, Alex. A busca por fama na web: reputação e narcisismo na grande mídia, em blogs e no Twitter. In: XXXII Intercom, 2009, Curitiba. ROJEK, Chris. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. SODRÉ, Muniz. Sociedade, mídia & violência. Porto Alegre: Sulina: Edipucrs, 2006. 13 O Transpor Relativo da Subcidadania do Gênero Feminino à Conquista do Status de Cidadã. 1 Kátia SOUZA2 Magno MEDEIROS ³ RESUMO Esse artigo é um estudo de caso que apresenta um relato de mulheres que fugiram da condição de subcidadãs do mundo e passaram a possuírem o “status” de cidadania, uma vez que venceram obstáculos do extremo isolamento conceitual e de pertença a uma sociedade, além da pobreza e discriminação racial sem perder o foco nos estudos, conseguindo assim ocupar postos mais elevados no campo da política. A pesquisa versa sobre o caminho construído pelo gênero feminino e suas constantes lutas e desafios que só foram superados após sua introdução no cerne do intelecto conceitual. Foi pesquisado desde o início das atividades da Câmara e Senado Federal, como foi a evolução participativa deste gênero nas ações políticas tendo como propósito evidenciar se após a evolução de seu conhecimento a mesma passou a ocupar cargos mais altos no poder público, ou se seu crescimento teórico não alcançou tal feito. Palavra chave: Câmara Federal, Educação, Gênero Feminino, Senado Federal. INTRODUÇÃO A aparente segmentação de idéias presentes neste título, não deve induzir os leitores apenas quanto ao entendimento conceitual e isolado de cada um dos termos que compõem o tema deste artigo, embora seja de extrema relevância suas significações, o intuito deste escrito está em conduzir quanto aos aspectos associativos destas palavras, visto que é possível interligá-las para melhor vislumbramento as transformações sociais ocorridas até o século XXI, que alteraram o comportamento e “status” de cidadão do gênero feminino, bem como sua participação na política brasileira, aqui representada pela Câmara e Senado Federal. 1 Trabalho apresentado no VI SEMINÁRIO DE MÍDIA E CIDADANINA, GT1 – Comunicação, Mídia e Direitos Humanos, realizado dia 23 de Novembro de 2012, no Campus Samambaia – Goiânia – GO. 2 Mestranda Universidade Federal de Goiás, e-mail: [email protected] ³ Orientador: Prof. Dr. Magno Medeiros, Diretor FACOMB, UFG/GO, [email protected] 1 Este artigo foi elaborado apresentar analiticamente com base no percurso histórico realizado pelo gênero feminino para alcance do “título” de cidadania, pois a própria etimologia desta palavra, de origem grega cita a mulher como membro excludente de tal titulação. Pretende-se então embasado em um conjunto de obras relevantes para o mundo da sociologia, da política e da comunicação, demonstrar como a mulher, que durante várias décadas fora considerada subcidadã, conseguiu o feito não só ser reconhecida como cidadã em quase todo o mundo, como também de ocupar cargos diretivos e de extrema importância política no quadro representativo, em específico neste artigo, nas esferas públicas brasileiras. Dentro deste contexto, pretende-se também conectar a importância e contribuição significativa da comunicação para que esta passagem pudesse ser realizada. Em suma, foi percorrendo o caminho sociológico em busca de um entendimento mais completo sobre subcidadania, cidadania, gênero feminino, política brasileira – Câmara e Senado Federal - e comunicação, todos de forma interligada seqüencialmente, que despretensiosamente possibilitou uma abordagem demonstrativa de como ocorreu à passagem histórica da subcidadania para a cidadania do gênero em questão. As idéias conceituais dos termos: Subcidadania e Cidadania Alguns autores ao longo de suas vidas e da construção de suas obras, se tornaram relevantes para o mundo da sociologia. Pode-se citar como exemplo os autores Charles Taylor, Pierre de Bourdieu, Freyre, Florestan Fernandes, dentre outros, e através da análise destas obras o autor Jessé Souza buscou evidanciar a desigualdade social como sendo “a mais importante contradição da sociedade brasileira, considerando-a como um significado opaco ao revelar-se como um processo naturalizado de gente, sub-gente e não-gente”. (SOUZA, 2003, p.47) Para Jessé, quando o indivíduo não detinha reconhecimento social e político, este passava a compor o grupo dos subcidadãos, ou seja, o grupo dos indivíduos não pertencentes, anulados, reconhecidos, da “ralé”. Devido a esta extensa e dura classificação, passou a ser fundamental o aprofundamento nesta questão, antes de evidenciar a idéia conceitual do que pode ser entendido como subcidadania. De acordo com os estudos deste sociólogo, é através de uma análise central de categorias como “personalismo, familismo e patrimonialismo” – aquilo que o autor 2 acertadamente designa por tradição “culturalista essencialista” – que passa a ser possível o entendimento e compreensão “mazelas” sociais de países periféricos como o Brasil (SOUZA, 2003, p.23). De acordo com Jessé, a tentativa de construção de um “paradigma alternativo” de entendimento é que estabelecem a capacidade de manter o acesso a realidades culturais e simbólicas (2003, p.23). Souza procura deslocar o eixo do processo de marginalização permanente de grupos sociais, estabelecido sobre a base cultural e preconceituosa de cor, para o a construção de um “habitus precário” empregado sobre concepções morais e políticas. O “habitus precário”, conceito construído sobre a base de um criativo trabalho de síntese entre Bourdieu e Taylor, traduz um tipo padrão de comportamento que afasta indivíduos e grupos dos padrões utilitários oriundos do universo mercantil, inviabilizando um moderno reconhecimento social do significado de ser “produtivo” na sociedade capitalista, tanto a central como a periférica (2003, p.43). O que se vê nas relações sociais, de acordo com as palavras do próprio autor, é aquilo que nos é visível, são os iguais – “todos são iguais perante a lei”, - mas há o invisível, o que as pessoas não percebem, porque não está na letra legal, ou seja, não contido no direito escrito. A concepção do eu e do outro que a sociedade tem, é outra coisa. A percepção social que o brasileiro tem, no fundo, tem a ver com a nossa cultuada desigualdade enraizada. Essa é a realidade brasileira, segundo Jessé, porque desigualdade há em todo lugar; mas, aqui, nossa desigualdade é mais desigual, e por isso o autor afirma tal questão com propriedade, uma vez que faz parte desta realidade. Para Souza o cidadão que trabalha com bases conceituais desenvolvidas recebem salários superiores quando comparado aos colaboradores de classes sociais desconstituídas de educação e conhecimento, pois é visto como um indivíduo sem alma, não detentor de capital intelectual, e por isso é tratado como um nada, logo, definindose como subcidadão (2003, p.147). Por estes e outros estudos, o autor analisado infere que a palavra que melhor traduz a idéia conceitual de subcidadania é “Reconhecimento”, visto que para ser cidadão, o valor social deste precisa ser reconhecido, e este reconhecimento está atrelado a nossa subjetividade, uma vez que, quando não reconhecido estes passam a integrar uma cadeia de “subgente”. 3 O contexto acima despretensiosamente apenas propõe uma resumida reflexão sobre sociedade periférica e excludente, e neste sentido torna-se oportuno interligar a idéia de subcidadão ao gênero feminino para melhor compreensão deste viés sociológico. Esta conexão fora realizada historicamente quando o papel da mulher na sociedade resumia-se a casa e a família, sendo sua educação orientada para estes fins e não para o seu desenvolvimento pessoal e profissional. O afastamento intelectual do gênero feminino o mantinha cada vez mais distante de participar da sociedade de maneira profissional, social e/ou político, ou seja, se distancia longinquamente de seu reconhecimento como cidadãs e até se afastam da possibilidade de conquista da plena cidadania. O fato é que quanto mais passivo era o indivíduo, mais isolado e não reconhecido este se fazia, tornando-se então uma “ralé”, ou seja, um subcidadão, logo se a mulher era historicamente um membro social passivo e isolado de participação efetiva no contexto da sociedade, este genero deixava de ser reconhecido, se inserindo no quadro de subcidadãos. Para o alcance da “titulação” de cidadã a mulher teve antes que conhecer seus direitos e deveres, bem como exercé-los, mas sem o exercício do pensar, este status não seria possível em virtude desta educação, a conquista e práticas sociais efetivas se estabelecem de forma real e efetiva. Até aqui, não falamos de conceitos, e sim de ideias conceituais, visto que não há um concenso entre muitos autores para a definição única de alguns termos, e a ideia conceitual de cidadania perpassa os mesmos pré-ambulos. Peyrot diz que: A etimologia latina da palavra cidadania define simplesmente a qualidade de ser cidadão, isto é, o habitante da cidade – civita – lugar onde vive reunida uma comunidade. Na tradição medieval européia, tal aglomerado se transforma em burgo, sítio fortificado onde vivem os livres burgueses. Mais recentemente, as mudanças trazidas pelo movimento revolucionário iluminista que contrapõem a cidade - bleu – lugar que adere aos motes revolucionários de 1789, – ao campo blanche – lugar da conservação do antigo regime (2006, p. 136-137). Assim, o cidadão burguês, não o camponês, se torna cada vez menos um simples morador da cidade e cada vez mais como um indivíduo que se apropria dos princípios de um Estado republicano. 4 Marshall (apud VIEIRA, 2001), em 1949, fala sobre o conceito de cidadania como direitos de ter direitos, segmentando este conceito em: cidadania civil, políticas e sociais. Para a elaboração de idéias conceituais sobre o tema, é importante mencionar que cidadania não foi à idéia central nas ciências sociais, entretanto, é importante compreendê-las intimamente para melhor abordá-la. “Cidadania é a pertença passiva e ativa de indivíduos em um Estado-Nação com certos direitos e obrigações universais em um específico nível de igualdade” (JANOSKI, 1998 apud VIEIRA, 2001, p. 34). Seqüencialmente, o que passa a ser o centro da discussão é o entrelaçamento de relações que se efetivam entre o Estado, como base institucional sobre o qual se realiza o gozo dos direitos, e a participação do cidadão à vida comunitária. Segundo o Instituto Houaiss, a cidadania pode se estabelecer de maneira ativa, passiva, cultural e multicultural, política, legal, social, econômica, de gênero. Da mesma forma, o cidadão pode ser de primeira ou segunda classe, simples, honorário, do mundo etc (2004, p.53). Peyrot afirma que: Cidadania pode ser algo interior: isto acontece quando, para exercer completamente os direitos de cidadão, o indivíduo deve apreender algumas noções fundamentais em seu foro íntimo. Através da autopersuasão, para se reconhecer como importante para a sua comunidade, o sujeito deve desenvolver uma forma de conscienciosidade: a cidadania interior. Esta pode ser considerada a parte subjetiva do direito, a formatação interna que faz representar publicamente o indivíduo como titular daquela prerrogativa legal. (Peyrot, 2006, p. 913). Sem a cidadania interior, não há consciência individual que se é cidadão, sem esta consciência não há reconhecimento do direito, por exemplo, à diferença de gênero, à própria História de vida, à autobiografia, à vitória sobre a própria guerra interior ou ao concebimento da democracia como um raciocínio complexo (idem). Em resumo, esta “dimensão psicológica da cidadania”, segundo Carens (2000, p.38), transferida para o plano coletivo, altera a coesão e a integração social de uma comunidade estabelecida em um determinado espaço. Na percepção do autor Barth, quanto mais os indivíduos se identificam enquanto membros de um grupo social, mais forte será a idéia geral de sua pertença comunitária (1999, p.56). Hoje, por compreensão, a cidadania não é mais apenas uma qualidade, mas condição da “pessoa que, como pertencente de um Estado, se acha no gozo de direitos 5 que lhe permitem integrar a vida política” (Instituto Houaiss, 2004). Em outras palavras, a cidadania transformou-se de qualidade passiva em condição ativa. A mulher dentro deste conceito aflora de seu submundo de passividade, e passam a interagir com os acontecimentos sociais presentes ou futuros, devendo para tanto exercer seus direitos, bem como buscá-los ativamente, exercendo então sua cidadania. Esta passagem de subcidadã para cidadã só se fez real visto que o gênero feminino encontrou formas de efetivá-la, encontraram meios e métodos de inserção na vida civil, político e social, mostrando ao mundo sua força e representatividade significativa. Quando um membro anteriormente excludente de algum direito ou dever passa a poder exercê-lo é fundamental que sua inserção se apresente de forma imediata e contundente, pois ao contrário apenas o terá na letra, não o possuindo na prática. Isso não ocorreu com as mulheres, pois após deterem de tal “titulação”, as mesmas providentemente passaram a incorporá-las em suas práticas e ações diárias, buscando e assumindo seu espaço. Espera-se que até o presente momento as terminologias averiguadas tenham possibilitado uma assimilação através das singularidades, e das conexões existentes nos conceitos de subcidadania e cidadania, bem como tenham compreendido que a mulher até então pertencente ao submundo passou a deslocar-se em direção a novas ações e status. Gênero Feminino: Um breve Histórico da Política Brasileira e a Relação de suas Conquistas Instaladas por meio dos Processos de Comunicação Durante o século XIV que começaram a surgir os idealismos de que uma mulher sem conhecimento não saberia educar os filhos, gerando então os defensores de que o gênero feminino também devesse ser educado. Com a ampliação de conhecimentos o gênero feminino inicia uma exigência de participação real e ativa na sociedade, buscando em primeiro lugar a conquista do direito ao voto, bem como o direito de representar seus próprios interesses, dentre outras conquistas. Os dados contidos neste tópico foram obtidos através de pesquisa realizada no Dicionário Mulheres do Brasil, de 1500 até a atualidade. Os passos iniciais da mulher na política brasileira foram traçados por Carlota Pereira de Queirós. Deste princípio até a ocupação do cargo mais alto do poder 6 passaram-se 76 anos, momento onde a atual presidenta Dilma Roussef reafirma a importância do gênero feminino na construção social e política do Brasil. De uma forma geral sabe-se que esse passo de tamanha relevância não fora realizado apenas por Carlota, e na mesma proporção é incerto afirmar, de quem será o último, contudo independente de passos iniciais ou finais, o importante é o caminho que foi e está sendo construído pelo gênero, permitindo que outras mulheres possam trilhar os mesmos caminhos e até mesmo conquistar novos percursos. Por trás de tantas mulheres que almejaram um importante espaço social, faz-se necessário apontar algumas personalidades femininas que foram marcantes neste contexto histórico de conquistas de espaços dignos para o exercício da cidadania feminina, como apresentado abaixo. Considerada a pioneira na luta dos direitos humanos, podemos citar Madalena Caramuru, uma vez que foi a primeira mulher alfabetizada no Brasil, e utilizando os conhecimentos adquiridos, solicitou ao Bispo de Salvador, o término dos maus-tratos contra crianças escravas. Maria Quitéria pode ser comparada à Joana Darc, por ter sido uma guerrilheira na luta pela independência. Como destaque neste contexto histórico, participou também a Princesa Isabel, que em 13 de maio de 1888 assinou no Brasil a Lei áurea, com o propósito de libertação dos escravos, agindo contracorrente do conservadorismo. A criação de datas comemorativas sugeridas ao presidente Getúlio Vargas como o dia das mães e o dia internacional da mulher no Brasil, e outras ações relacionadas ao surgimento da Petrobras, contou com a presença feminina marcante de Alice Tibiriçá. Outra representante de conquistas para este gênero foi, Celina Guimarães Viana a pioneira na America Latina a alistar-se como eleitora no Rio Grande do Norte em 1927. Na Europa que Bertha teve contato com o movimento feminista pela primeira vez, fundando em 1922 a Federação brasileira para o progresso Feminino, e em 1934 foi eleita Deputada Federal, lutando por melhorias na legislação trabalhista em relação ao trabalho feminino e infantil, como redução da jornada de trabalho, licença maternidade de três meses e igualdade salarial. Em 1927, Alzira Soriano se elege aos 32 anos a primeira prefeita da América Latina, porém perdeu seu mandato por discordar da ditadura de Vargas. Não menos importante Esther de Figueiredo Ferraz torna-se a primeira mulher a ocupar uma pasta na Esplanada dos Ministérios, como ministra da Educação entre 1982 e 1985. Foi também a primeira a lecionar na tradicional Universidade de São Paulo, primeira a ocupar uma cadeira na Ordem dos Advogados do Brasil e defendeu grandes casos penais. 7 Por trás de tantos nomes importantes na história política brasileira estão às conquistas feitas pelas mulheres, que buscaram seu espaço mostrando para a sociedade, que são tão, ou mais capazes de liderar, governar e gerenciar organizações, que o sexo masculino. Durante o século XX as mulheres alcançaram outras grandes conquistas como: o direito ao voto, o acesso a métodos contraceptivos, a inserção e participação no mercado de trabalho, entre outras, e diferentemente de outros contextos históricos e revolucionários, estas conquistas foram legais e extensíveis a todo o gênero, independente de cor, raça, credo ou religião. Em pleno século XXI, as mulheres aparentemente venceram em grande parte sua exclusão no mercado de trabalho, mais ainda não ultrapassaram as desigualdades de gênero, contudo nota-se que sua identidade definitiva está em fase de redefinição, onde em certa medida não gozar do direito à cidadania significa não participar da vida comunitária de forma plena, não ser parte do Estado e, para tanto, estar cercado por fronteiras culturais, raciais, lingüísticas, legais dentre outras, e isto significa ser uma “não pessoa”. Marshall, já discutia em seus estudos o isolamento do gênero feminino, quando no plano da discussão sobre cidadania (1950, p.85). Isto significou pensar na cidadania como reconhecimento da relevância política das diferenças de cultura, classe, gênero, raça e na importância de sua representação no panorama político – sem priorização exclusiva de nenhuma, mas dando especial importância à preservação dos direitos das minorias. A idéia conceitual de cidadania, não é hoje somente uma qualidade, mas torna-se condição da “pessoa que, como membro de um Estado, se acha no gozo de direitos que lhe permitem participar da vida política” (Instituto Houaiss, 2004). Com esta redefinição de conceitos fica evidente que o gênero feminino que antes apenas zelava pela educação dos filhos, cuidados domésticos dentre outros, tiveram que abandonar tais hábitos e construírem uma nova plataforma de vida, onde a necessidade de busca pelo conhecimento, pela inserção na vida política e social de um país ou nação fez se presente e necessária. Vale salientar que a participação do gênero feminino deve ser vista de forma ampla e que contemple desde sua participação em organizações sociais, partidárias, políticas, sindicais, até a ocupação de mandatos eletivos, em todas as esferas dos poderes públicos, sejam eles federais, estaduais, distritais ou municipais. 8 É evidente que esta conquista para o exercício e direito à cidadania não foi uma batalha fácil, nem tão pouco curta, porém foi uma luta de fortalecimento, crescimento e desenvolvimento progressivo e significativo para o gênero. A mulher de ausente (subcidadã) torna-se presente (cidadã), podendo exercer direitos legais que historicamente, foram construídos passo a passo, através de processos morosos e carregados de obstáculos. Com o objetivo de cidadania universal, a comunicação exercia neste contexto histórico do gênero feminino, o papel fundamental de interligar os cidadãos de todo mundo em uma cadeia global, ou seja, uma mesma rede de direitos civis, políticos, sociais e difusos. A comunicação para ser cidadã, deve reforçar o sentimento de pertença do indivíduo com a sociedade e também não atuar de forma distintiva. O direito à comunicação permite a defesa e a conquista de demais direitos. É através da comunicação que vários cidadãos se unem para reivindicar mudanças necessárias. A comunicação facilita o acesso aos meios de informação, fazendo assim com que o homem possa contestar a verdade dos fatos e não aceitar as ideologias dominantes. A comunicação permite a luta de classes, da mesma forma que possibilita acordo e auxílio mútuo entre elas e neste momento, comunicação e cidadania se fundem. A comunicação é então estabelecida através da interconectividade, e dependendo da maneira com que é exercida, pode resultar em conflitos funcionais ou disfuncionais, sendo este último o reforço da idéia de subcidadania. Portanto, a comunicação cidadã deve ser aquela que não faz distinção entre classes, que unifica ou aperfeiçoa todas e que funciona como solucionadora de conflitos. Cabe à comunicação fornecer aos cidadãos instrumentos para perceber direitos e deveres, disseminando valores de igualdade, liberdade e respeito. Deve haver também investimento em educação, para que haja a democratização da comunicação. Weick, Sutcliffe e Obstfeld (2005) consideram que a comunicação é um componente central na produção de significados (sensemaking) e neste sentido o sexo feminino faz uso da comunicação para fazer valer suas lutas. Como exemplos podemos citar: Madalena Caramuru, que utilizando da comunicação escrita, solicita ao Bispo de Salvador o fim dos maus tratos contra a criança, a assinatura da lei Áurea em 1888, pela princesa Isabel, também conquistada após exaustiva batalha e discussões, que teve sua conclusão positiva ancorada também em técnicas presentes na estrutura do processo comunicacional, Celina Guimarães que 9 através do 1° voto também estabeleceu uma forma de expressão da exercida pela comunicação, dentre outras que através da comunicação conquistaram o título e o direito de exercício da cidadania para as mulheres. Uma Breve Abordagem Sobre o Papel da Câmara e do Senado Federal O Poder Legislativo, segundo site da Câmara dos Deputados Federais, desempenha função indispensável diante a sociedade do País, visto que realizam três papéis importantes e funções para a concretização da democracia. São elas: representar o povo brasileiro, legislar a respeito de contextos de importância nacional e fiscalizar a aplicação dos recursos públicos. Neste contexto, a Câmara dos Deputados, torna-se legítima representante da população brasileira. As atividades na Câmara Federal tiveram início em 1959 sendo praticadas até o presente mandato, 2011 a 2015. O gráfico abaixo apresenta uma curva evolutiva da participação ativa da mulher no decorrer destes 52 anos. Gráfico 1 – Evolução participativa do gênero feminino Fonte: Site da Camara. Acesso em 16 de julho de 2011 Criação: Próprio autor Através deste gráfico é possível observar que a mulher veio aumentando sua participação na Câmara dos Deputados de 1959 até os dias atuais, porém esta evolução atingiu pontos máximos nos anos eletivos de 1995 a 1999 com 42 deputadas em exercício e nos mandatos de 2003 a 2011, com um total de 52 mulheres eleitas a Deputadas Federais. Efetivamente pode-se inferir deste gráfico, que a mulher entra com uma representatividade constante, embora não elevada em termos percentis a partir de 1987, podendo se conciliar esta data com a transformação e participação histórica da mulher não só na esfera pública, mas também na privada, bem como devido aos aspectos 10 sociais corridos na época, fatos estes devido ao aumento de conhecimento, habilidades e atitudes adquiridos e reinvindicados evolutivamente pelo gênero. O gráfico seguinte demosntra a perspectiva histórica do gênero feminino em comparação à participação do gênero masculino, no intuito de ressaltar que embora a mulher se faça presente nesta esfera política, ainda assim a participação do gênero oposto opera de forma mais expressiva, o que não inviabiliza, nem reduz a importância e conquistas obtidas pelas mulheres. Gráfico 2 – Perspectiva histórica – Gênero Feminino x Gênero Masculino Fonte: Site da Camara. Acesso em 16 de julho de 2011 Criação: Próprio autor Estas conquistas talvez se justifiquem pela fuga da caverna, do mundo isolado, escuro, fechado à luz da razão, e com tal transposição de mundos a mulher busca seus direitos à luz da razão, do conhecimento, sendo este um possível fator quanto à elevação do reconhecimento pertinente ao gênero. O gênero feminino que antes apenas zelava pela educação dos filhos, cuidados domésticos dentre outros, tiver que abandonar tais hábitos e construir uma nova plataforma de vida, onde a necessidade de busca pelo conhecimento, pela inserção na vida política e social de um país ou nação se fez presente e necessária, logo se pode inferir dentro deste contexto que a formação acadêmica do gênero em análise, fora fator determinante para a construção deste processo de transformação. 11 Gráfico 3 – Perspectiva histórica – Ocupação profissional Fonte: Site da Camara. Acesso em 16 de julho de 2011 Criação: Próprio autor A tabulação gráfica acima mostra que a mulher vem buscando cada vez mais uma adequada qualificação a fim de se tornar apta para o mercado de trabalho. As mesmas se profissionalizam em diversas áreas no intuito de competir igualitariamente com o gênero masculino. De acordo com dados obtidos no site do Senado Federal, o mesmo é o representante dos estados no Congresso Nacional do Brasil. Foi criado junto com a primeira constituição do Império, outorgada em 1824. Os senadores representam os estados e não a população. O artigo 52 da constituição Federal cita detalhadamente os deveres exclusivos do Senado Federal, não sendo, portanto necessário citá-los pontualmente neste artigo. Percorrendo os mesmos caminhos utilizados para demonstração quantitativa da Câmara dos deputados federais, faço valer a representação gráfica também para fins de esclarecimento numérico do Senado Federal. O gráfico abaixo apresenta a curva evolutiva de participação das mulheres em comparação aos homens, ficando também evidente que embora a mulher tenha se tornado integrante ativa da política brasileira, ainda assim não atingiu os mesmos patamares de participação do gênero oposto. 12 Gráfico 4 – Perspectiva histórica – Participação evolutiva do gênero feminino Fonte: Site do Senado Federal. Acesso em 16 de julho de 2011 Criação: Próprio autor No período de 1890 até os dias atuais a mulher buscou e conquistou grandes espaços na vida pública mais ainda está longe de alcançar uma paridade com o gênero masculino, fato este que pode ser verificado pela curva gráfica acima representada, onde o máximo de participação masculina chega a 120 senadores contra apenas 9 senadoras, sendo este o número máximo de representantes do gênero feminino na esfera pública do Senado Federal. Retomando à questão da elevação do nível educacional, abaixo está apresentado de forma gráfica a formação acadêmica do gênero feminino, realizado no intuito de melhor visualização e convalidação das hipóteses anteriormente apresentadas. Gráfico 5 – Perspectiva histórica – Ocupação Profissional do gênero feminino Fonte: Site do Senado Federal. Acesso em 16 de julho de 2011 Criação: Próprio autor Visto sob esta plataforma analítica quantitativa, fica mais fácil interligar a construção da cidadania do gênero feminino à elevação de seu nível educacional, sendo possível também associar a inserção das mulheres na vida política ao ítem educação, 13 uma vez que através da luz da razão torna-se possível vislumbrar e conquistar novos horizontes até então inexplorados, como fizeram as mulheres. CONCLUSÃO Após um levantamento histórico de diferentes formas de evolução do gênero feminino, após verificar as idéias conceituais de subcidadania e cidadania, posteriormente uma abordagem da significativa importância da comunicação durante todo este processo de busca pela cidadania e depois de analisar brevemente os papeis da Camara e Senado Federal de forma descritiva e quantitavita, fica evidente que a inserção do gênero feminino nestas casas, obteve sgnificância absoluta a partir de uma inserção substancial de conhecimento inteclectual aplicado à mulher, bem como uma forte pressão e comunicação exercida pelo gênero, para que sua participação se tornasse aceitável e importante. Não se pode negar a verdadeira importância da mulher neste processo hitórico de construção da democracia cidadã, não apenas por serem brasileiras ou estarem assistidas pelo direito de igualdade determinado pela constituição de 1988, mas pela efetiva contribuição que este gênero trouxe para a sociedade, ao agregar a sua experiência, história e sensibilidade, para a elaboração de pólitcas públicas que traçam cada vez mais uma linha de equidade e igualdade entre os gêneros, transformando assim as relações humanas em relações efetivamente justas, sociais e democráticas. Desta forma se finda a proposta deste artigo, onde a conectividade entre os conceitos de subcidadania, cidadania, gênero feminino, política e comunicação se entrelaçam no intúito de demonstrar como ocorreu parte da batalha histórica da mulher em busca da transposição de “status”, bem como sua inserção efetiva na política brasileira, alcançada graças ao conhecimento adiquirido por intermédio da educação, bem como por influência e méritos dos meios e canais de comunicação, uma vez que estes foram responsáveis pela reprodução das necessidades, vontades e conquistas do gênero. REFERENCIAS ANTÔNIO HOUAISS, Instituto. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, 2004. 14 BARTH, Fredrik. "Les groupes ethniques et leurs frontières" in POUTIGNAT, Philippe and Jocelyne STREIFF-FENART. (ed.) Teorias da Etnicidade. Sao Paulo, UNESP, 1995. “Dicionário Mulheres do Brasil de 1500, até a Atualidade", coordenação de Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, editora Jorge Zahar Editor. Huffington, Arianna, Mulheres Corajosas sempre vence. São Paulo/SP. Editora Larousse do Brasil. – 2007. 1ª edição. JESSE SOUZA. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003. MARSHALL, Thomas Humphrey. Citizenship and Social Class and Other Essays. Cambridge, CUP, 1950. PEYROT, Bruna. La cittadinanza interiore. Troina, La città aperta, 1996. SILVA, S. V. da, Os estudos de gênero no Brasil: Algumas Considerações, 1996. Disponível em http://www.ub.es/geocrit/b3w-262.htm. Acesso em maio de 2012. Weick, K., Sutcliffe, K. M., & Obstfeld, D. 2005. Organizing and the process of sensemaking. Organization Science, 16(4): 409-421 Disponível em: http://www2.camara.gov.br/. Acesso em 18 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.senado.gov.br/, acesso em 25 de agosto de 2012. 15 Educação Para a Paz nas Escolas 1 Suzy Meiry Silva2 Tiago Mainieri de Oliveira3 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO Resumo A escola é um agente fundamental na edificação de uma sociedade de paz, por ser responsável pela educação formal e por contribuir para a educação não formal das pessoas, sendo capaz de disseminar valores como a liberdade, a igualdade, a justiça, a democracia e o respeito aos direitos humanos. Esses valores devem nortear não apenas o discurso da escola, mas principalmente suas ações, para que a formação dos cidadãos seja orientada para uma cultura de paz Palavras-chave: paz, educação, valores. Ao longo da história, testemunhamos o progresso cultural, avanços científicos e tecnológicos e presenciamos o enriquecimento de nações. É lamentável constatar que apesar de todo o esforço intelectual empreendido na evolução humana tenha sido acompanhado do materialismo exacerbado, do egoísmo, da corrupção que se materializou na desigualdade social até hoje existente e que mantém a muitos em condições subumanas. Estamos diante de condições científicas e tecnológicas capazes de assolar misérias e doenças, mas não temos ainda condições políticas e humanas de viabilizá-las. É lamentável que não se foi capaz de ensinar aos homens e mulheres que hoje estão na cena do 1 Trabalho apresentado no GT 1 – Comunicação, Mídia e Direitos Humanos, do VI Seminário Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Mestranda do curso de Mídia e Cidadania da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás - FACOMB /UFG, especialista em Assessoria em Comunicação e graduada em Relações Públicas pela UFG. email: [email protected]. 3 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA/USP), com doutorado sanduíche na Universidade da Flórida (EUA). Mestre em Engenharia da Produção e bacharel em Relações Públicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente é professor e pesquisador dos cursos de graduação e de pós-graduação em Comunicação (mestrado e especialização) da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Líder do grupo de pesquisa e estudos da “Comunicação em contextos organizacionais” – CNPq/UFG. Membro sócio da Abrapcorp e da Intercom. E-mail: [email protected]. mundo que o resultado de suas ações, voltadas aos seus interesses exclusivos, repercute de maneira prejudicial na vida de outras pessoas. Mas em meio a essa realidade, persiste o esforço em transformá-la. Existe o sonho, a esperança e a dedicação de muitos para edificar uma sociedade em que todas as pessoas possam compartilhar de condições dignas de vida, gozar de direitos, assumir deveres e se realizar, contribuindo com o mundo com os seus saberes e fazeres. A escola é um espaço onde estão muitos dos sonhadores comprometidos a melhorar o mundo. Não é de um dia para o outro que aprenderemos a viver plenamente em sociedade, participando ativamente, deixando participar, convidando e incentivando todos os atores, mas temos que aproveitar o momento para praticar o futuro, nas condições que agora temos, preparando as novas gerações para viverem melhor que hoje. O conceito de paz A definição de paz não é unânime. Há os que a definem como a ausência de guerra e presença de um estado de tranquilidade, harmonia e passividade. Para Jares, trata-se de “um processo dinâmico – não uma referência estática e imóvel – que exige a participação da cidadania em sua construção” (JARES, 2002,131). O que se depreende de diferentes ideias é que a paz é uma condição sonhada e desejada. No final da década de 50 teve início a formação dos primeiros grupos de pesquisa sobre paz e o resultado do trabalho desses grupos trouxe a compreensão de uma nova conceituação: paz positiva e paz negativa, “a primeira seria a ausência de violência estrutural e a segunda, a ausência de violência direta”(GALTUNG apud JARES, 2002,82). “A concepção de paz [de Galtung] repousa em duas ideias essenciais: - Em primeiro lugar, a paz já não é contrário de guerra, mas sim de sua antítese, que é a violência, dado que a guerra é apenas um tipo de violência, mas não o único. Em segundo lugar, a violência não é unicamente a que se exerce mediante a agressão física direta ou por meio de diferentes artifícios bélicos que se podem usar, mas é preciso levar em conta também outras formas de violência menos visíveis, mais difíceis de reconhecer, mas também mais perversas no sentido de produzir sofrimento humano” (JARES, 2002, 123-124). A partir dessas reflexões, atualmente o entendimento de paz compreende o respeito aos direitos humanos e à democracia e, também, o conceito de justiça social e desenvolvimento. Paz e direitos humanos O conceito de direitos humanos e paz estão intrinsecamente relacionados. Os direitos humanos pressupõem o acesso às condições fundamentais para que as pessoas vivam com dignidade, compreendendo a disponibilidade de condições que atendam suas necessidades vitais, de vida em sociedade, de desenvolvimento humano, com liberdade e igualdade. Sem tais condições, manifesta-se o sofrimento humano e compromete-se seu pleno desenvolvimento, então, a paz não se faz presente. Galtung alerta que “chamar de paz uma situação em que imperam a pobreza, a repressão e a alienação é uma paródia do conceito de paz” (GALTUNG apud JARES, 2002, 125). Paz e democracia A democracia é uma forma de governo coerente com a paz. Pressupõe um governo do povo para o povo. O dicionário Aurélio define democracia como: “1.Governo do povo; soberania popular. 2. Doutrina ou regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição equitativa de poder”. Uma verdadeira democracia compreende uma visão de sociedade que requer a participação popular, respeito à liberdade e igualdade para todos, em toda e qualquer circunstância da vida coletiva. Na concepção de Pérez Gómez, democracia é: “mais um estilo de vida, uma ideia moral que uma forma de governo, em que os indivíduos, respeitando seus diferentes pontos de vista e projetos vitais, esforçam-se mediante o debate e a ação política, a participação e a cooperação ativa, por criar e construir um clima de entendimento e solidariedade, no qual os conflitos inevitáveis são oferecidos abertamente ao debate público, em que é preciso fomentar a pluralidade de formas de viver, pensar e sentir, estimulando o pluralismo e cultivando a originalidade das diferenças individuais como expressão mais genuína da riqueza da comunidade humana e da tolerância social” (GÓMEZ apud JARES, 2002, 130). A democracia coaduna com paz na medida em que defende e busca as condições e oportunidades para que as pessoas se desenvolvam plenamente. Seria de esperar-se, então, que em países que adotam esse princípio político as desigualdades sociais e a pobreza fossem combatidas e o esforço de gestão do país seria sempre no sentido de oferecer melhor condição de vida para todos. No entanto, há países em que a expressão da democracia se restringe ao momento do voto, negligenciando à população o direito a participar da distribuição da riqueza nacional, revertida em serviços públicos como saúde, educação, transporte, lazer entre outros. Pode-se dizer que nesses países a democracia está em processo e que para instaurar-se dependerá do amadurecimento da sociedade quanto à participação nos processos decisórios que incidem sobre os seus direitos, o que não ocorre celeremente. O amadurecimento da sociedade quanto ao exercício da cidadania está diretamente relacionado à educação da população. Em países onde a média de escolaridade é maior, a população tem maior consciência sobre direitos e deveres e exerce maior pressão para ter seus direitos assegurados. Paz e desenvolvimento A paz está vinculada ao desenvolvimento em função das possibilidades que oferece para promover melhorias na condição de vida das pessoas. Em sociedades desenvolvidas economicamente há maior condição de atender as necessidades básicas e promover o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas, contribuindo para um contexto favorável à paz. No entanto, o desenvolvimento econômico nem sempre é compartilhado e revertido em distribuição da riqueza do país, comprometendo o desenvolvimento humano e até mesmo a sobrevivência de parcelas mais carentes da população, que ficam em situação similar à de localidades subdesenvolvidas, onde a carência é generalizada. Sem condições dignas de desenvolvimento, compromete-se a vida humana e constata-se a ausência de paz. No entendimento da Organização das Nações Unidas – ONU, composta por 193 países, “o desenvolvimento social deve ter o ser humano como objetivo principal” (apud JARES, 2002, p. 128). O acesso às melhorias propiciadas pelo desenvolvimento deve ser estendido à população planetária. É papel dos organismos internacionais promover ações solidárias para auxiliar os países em dificuldade a superar o subdesenvolvimento. “A paz se cria e se constrói com a superação das realidades sociais perversas. A paz se cria e se constrói com a edificação incessante da justiça social” (FREIRE apud JARES, 2002, p. 127). Educação para a paz nas escolas Ao lado da família, a escola é um espaço social fundamental na formação das pessoas. Portanto, seu papel precisa ser bem desempenhado, assumindo a tarefa de ensinar conteúdos formais mas, também, de oportunizar experiências relevantes para a edificação de uma sociedade fundamentada nos valores e princípios de paz. Há pensadores que desacreditam que a escola possa contribuir para uma educação para a paz, diante das características conservadoras e repressoras da instituição. Eles questionam a rigidez das estruturas, a reprodução das hierarquias sociais, a comunicação unilateral, o fomento à competitividade, ao individualismo, à dependência, ao conformismo, à passividade, entre outros – características contraditórias aos valores e princípios associados à paz. Essa visão pessimista desconsidera a capacidade da escola de se modificar, de evoluir e de se adaptar ao projeto de uma sociedade mais solidária. Em contrapartida, outros pensadores comprometeram-se com a promoção da paz e, no final da década 50, teve início a formação dos primeiros grupos de pesquisas sobre a paz. Os frutos dos trabalhos desenvolvidos fundamentaram experiências de educação para a paz iniciadas nos anos 70. O brasileiro Paulo Freire destaca-se como um dos principais pensadores que influenciaram as experiências de educação para a paz pelo mundo. Freire contribuiu, em especial, no aspecto pedagógico e filosófico da educação, inspirando educadores com ideias humanistas. Um dos pontos que conceitua com destaque é a conscientização, ideia utilizada por muitos pesquisadores, segundo afirma Jares (2002, p. 85). A ideia de conscientização está expressa nas seguintes palavras de Freire: “É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperaça. “Não sou esperançoso”, disse certa vez, “por pura teimosia, mas por exigência ontológica” (Freire, 1996, 58). Para Freire, a educação não ocorre como tradicionalmente praticada em nossas escolas, caracterizada por ele como educação bancária, na “qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos”, estabelecendo dessa uma “cultura do silêncio”, em que o educador é “o sujeito do processo; os educandos, meros objetos” (FREIRE, 2011, 82-83). Ao contrário, defende que deve prevalecer uma educação libertadora, que acontece no diálogo sobre o mundo para possibilitar a conscientização dos cidadãos para uma prática transformadora da ordem social. Em suas palavras: “(...) o diálogo é a “essência” da ação revolucionária. Daí que na teoria desta ação, seus atores, intersubjetivamente, incidam sua ação sobre o objeto, que é a realidade que os mediatiza, tendo, como objetivo, através da transformação daquela, a humanização dos homens” (FREIRE,2011, p. 182). O papel socializador da escola alcançará maior relevância à medida que valorizar o aspecto humano tanto quanto o científico no processo educativo, buscando desenvolver competências intelectuais como valores morais que favoreçam uma cultura de paz em que o sentimento de solidariedade irrestrita se sobreponha a toda forma de opressão. Uma experiência bem sucedida A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Unesco tem incentivado e acompanhado projetos de educação em diversos países. A organização tem como um como um de seus principais propósitos garantir a paz por meio da cooperação intelectual entre as nações, contando, atualmente, com 112 países associados, comprometidos com os mesmos ideais, pesquisando, discutindo e traçando diretrizes de ação para a paz. Os documentos normativos elaborados pela Unesco norteiam planos e projetos das nações associadas e “expressam horizontes sobre os quais há relativo acordo, mas que exige que se percorra um árduo caminho até serem alcançados” (Wertheim, p. 13). No que tange à educação, esta “foi concebida como um processo formativo de valores e atitudes em favor da paz, da compreensão internacional, da cooperação, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” (GOMES, p. 23-24). Na visão da Unesco, o processo de ensinar deve estar apoiado em quatro pilares: “Aprender a conhecer: levar o aluno a dominar instrumentos para o conhecimento, em vez de adquirir um repertório de saberes codificados; Aprender a fazer: preparar o aluno para colocar em prática os conhecimentos e adaptar a educação ao trabalho futuro; Aprender a viver juntos: construir um contexto igualitário para os alunos perseguirem projetos comuns, em vez de apenas propiciar a comunicação entre membros de grupos diferentes; Aprender a ser: desenvolver integralmente a pessoa do aluno: inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade e espiritualidade” (Relatório Cuéllar, 1997 apud GOMES, 2001). As ideias gerais definidas pela Unesco são coerentes com as pesquisas para a paz e norteiam projetos de educação para paz desenvolvidos nas escolas brasileiras, onde muitos educadores estão empenhados em conseguir fazer de seu trabalho uma contribuição decisiva para a edificação de uma sociedade de paz. Um exemplo é o Colégio Estadual Edmundo Rocha, na periferia de Goiânia, que após vivenciar diversas situações de violência, reagiu de forma positiva e transformou o ambiente escolar. Inicialmente, a direção promoveu o diálogo entre os membros da escola, buscou apoio da sociedade, desencadeou um processo de conscientização sobre as consequências da violência na vida dos alunos e mobilizou a comunidade para o enfrentamento da questão. Dentre as ideias colocadas em prática está a abertura da escola nos finais de semana para atividades da comunidade, a disponibilização do pátio e da quadra para a comunidade e projetos pedagógicos que fizeram com que os alunos se sentissem valorizados ao perceber o empenho dos professores na aprendizagem deles. Pelos resultados positivos alcançados, como superação do quadro de violência, aumento no índice de aprovação e redução da evasão escolar, a escola obteve o reconhecimento da Unesco, em 2003. e recebeu como prêmio a construção de uma quadra esportiva. A publicação da Unesco registra que: “Pais e professores reconhecem que está havendo mudanças no comportamento dos jovens estudantes e percebem que, no que tange à violência, houve transformações significativas. Conforme assinala um professor: Antes da construção do muro, a violência existia... Hoje, não existe mais. Primeiro, pela construção do muro; depois, pela realização de um trabalho de conscientização e sociabilidade com os alunos (ABRAMOVAY, 2003, 192)”. Experiências semelhantes e outros projetos inovadores estão em andamento em escolas no Brasil e no mundo, apresentando resultados animadores no cotidiano dos envolvidos. Embora apresentem resultados circunscritos às comunidades envolvidas, os projetos demonstram aplicabilidade e merecem ser ampliados para que os resultados possam ser percebidos pela sociedade. Reflexões para uma prática democrática nas escolas Um dos aspectos que precisa ser trabalhado nas escolas é a coerência de suas ações com o princípio democrático. Elas devem identificar os aspectos contraditórios, que cerceiam a participação, a expressão, a liberdade e promove injustiças. Jares apresenta quatro sugestões que podem orientar as escolas a uma prática democrática. Em primeiro lugar, recomenda a avaliação sobre como a escola exerce o poder e a tomada de decisões sobre recursos econômicos, utilização de espaços, definição de horários, fontes de informação, capacidade de controlar/manipular o que o outro deseja. Em segundo, esclarece que é importante reconhecer que o poder na escola está matizado pelo jogo de interesses e procurar evitar que isso se instale como cultura, incentivando uma cultura participativa, que incentive os grupos menos influentes a participarem, como alunos, pais de menor formação escolar, mulheres. Em terceiro, a participação deve ser fomentada com diálogo permanente e debate aberto; não deve ser restringir há somente alguns momentos de decisão, mas ser requisito em todas as instâncias de decisórias. Em quarto lugar, deve haver o respeito às diferenças de opinião, devendo ser consideradas, discutidas, sem perseguições e retaliações, compreendendo que as diferenças podem ser somadas e comporem soluções enriquecedoras. Nesse processo de revisão da conduta escolar, a comunicação é um aspecto que também precisa ser ajustado para contribuir com o processo de gestão democrática, imprescindível para se construir uma cultura de paz nas escolas. Galtung adverte que, nas escolas: “a violência estrutural subsiste nas formas usuais: uma visão do trabalho fortemente vertical, que se expressa na comunicação em um único sentido; a fragmentação da comunicação dos receptores, já que não podem desenvolver uma interação horizontal, organizar e ao final mudar a direção da comunicação; ausência de uma real multilateralidade” (apud JARES, 2002, p. 191). As palavras de Galtung trazem a advertência de que a comunicação nas escolas não pode se dar de mão-única, fragmentada, inconstante. Ao contrário, deve propiciar a troca de ideias, ser livre e permanente, uma vez que sem o diálogo, a participação dos agentes escolares nas decisões fica comprometida e a vivência escolar menos atraente e motivadora, repercutindo negativamente na aprendizagem da cidadania. Na obra Educação para a paz: sua teoria e sua prática, 2002, Jares compartilha seus conhecimentos de educador, apresentando sugestões que contribuem para experiências democráticas no âmbito da escola. No aspecto estrutural, ele valoriza a formação de conselhos de pais, de professores, de alunos e de representantes da comunidade, que podem atuar na vida escolar, em conjunto ou separadamente, apresentando suas considerações e ajudando a decidir o destino da escola. No aspecto didático e pedagógico, sugere a transdisciplinaridade na abordagem dos conteúdos, indicando que temas da atualidade e do cotidiano dos alunos sejam abordados por diferentes disciplinas, tais como desarmamento, violência, movimentos alternativos, ecologismo, guerra, direitos humanos. Jares também estimula a interação pessoal na escola, valorizando as relações pessoais, a participação, a interação, o autoconhecimento, o reconhecimento do outro e estimula o reconhecimento dos fatores que interferem na tomada de decisão. Conclusão Ao lado da família e de outros espaços socializadores, comprometidos com a paz e os direitos humanos, a escola pode prestar significativa contribuição para solidificar valores ao propiciar vivências de respeito à liberdade, à igualdade e à diferença, estimulando a responsabilidade e compromisso com a vida individual e coletiva. A viabilidade de mudanças no ambiente escolar, com vistas a uma cultura de paz, depende, em parte, da disposição dos educadores da equipe escolar em repensar e renovar suas práticas, e por outro lado, de apoio governamental para garantir a estrutura e os recursos necessários. A experiência de Jares, apoiada em ideias humanistas de pensadores como Paulo Freire e Galtung, contribui com reflexões e ideias para melhorar o contexto escolar, servindo de apoio a educadores para edificar uma cultura de paz a começar nas escolas. Se os seres humanos aprendem quando se sentem incompletos, como nos ensina Paulo Freire (FREIRE, 1996, 58) é preciso debater e solucionar em conjunto o problema de a vida em sociedade padecer de mazelas advindas de uma comunicação insuficiente e incapaz de gerar o consenso. E, depois desse esforço, talvez a realidade revele à teoria seu verdadeiro significado, nascido de uma prática orientada pela ciência e vivência humanas, onde a paz figure entre as necessidades primárias da sociedade, que busca completude, harmonia e um constante processo de reinvenção e questionamento daquilo que se aprende e se pratica. Referências bibliográficas ABROMOVAY, Miriam (Org.). Escolas inovadoras: experiências bem sucedidas em escolas públicas. Brasília: Unesco, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GOMES, Cândido Alberto. Dos valores proclamados aos valores vividos: traduzindo em atos os princípios das Nações Unidas e da Unesco para projetos escolares e políticas educacionais. Brasília: Unesco, 2001. JARES, Xésus. Educação para a paz: sua teoria e sua prática. Porto Alegre: Artmed, 2002. SILVA, Sônia Aparecida Ignacio. Valores em educação: o problema da compreensão e da operacionalização dos valores na prática educativa. Petrópolis: Vozes, 1988. Secretaria de Educação a Distância. Salto para o futuro: reflexões sobre a educação no próximo milênio. Brasília: Ministério da Educação, SEED, 1998. O cidadão e o jornalista: construção da identidade como convergência entre mídia, 1 cultura e cidadania José Eduardo M. Umbelino Filho2 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO RESUMO O que se pretende realizar nesse artigo é um esforço teórico para relacionar a atividade midiática dos jornalistas com a construção de uma identidade cidadã e de uma cultura baseada nessa identidade. Pergunta-se até se o conceito jornalístico de cidadão se confunde com o conceito social de cidadão, e que elementos constitutivos desse conceito refletem aspectos, interesses e posicionamentos dos jornalistas como um campo cultural e profissional. O objetivo não é gerar conclusões teóricas definitivas mas, principalmente, expor novas inquietações e algumas compreensões a partir da experiência obtida em 2011. PALAVRAS-CHAVE: Cidadania, Identidades, Mídia, Jornalismo. Introdução A questão que norteia esse artigo surgiu a partir de uma inquietude acadêmica. O Mestrado em Comunicação da UFG está dividido em duas linhas de pesquisa: Mídia e Cultura e Mídia e Cidadania. De certo modo, essa divisão docente polarizou os estudos, os autores e os prismas, criando uma fronteira imaginária entre os termos Cultura e Cidadania. Tal circunstância gerou o interesse por encontrar pontos de convergência entre esses três conceitos tão amplos: Mídia, Cultura e Cidadania. Como vinculá-los? A questão da Identidade, sua construção e afirmação, é um dos elementos que une as três pontas de interesse e proporciona uma abordagem valiosa. Por certo não é o único, mas trata-se do mais promissor para os âmbitos que pretendo pesquisar. Minha dissertação de mestrado gira em torno dos jornalistas e da imagem que eles criam de 1 Artigo para o VI Seminário de Mídia e Cidadania, GT 2 – Comunicação, Opinião e Imagem Pública – Facomb – UFG - 2012 2 Mestrando em Comunicação Social, linha de pesquisa Mídia e Cidadania, da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás ( UFG). 1 seus receptores, considerando-a como um elemento simbólico de uma cultura jornalística. Assim sendo, interessa-me a questão da construção de símbolos e identidades que, a um só tempo, na base da cultura, na meta da mídia e na origem da cidadania. Portanto, o que se pretende realizar nesse artigo é um esforço teórico para relacionar a atividade midiática dos jornalistas com a construção de uma identidade cidadã e de uma cultura baseada nessa identidade. Cultura e identidade Num primeiro momento, é importante recuperar os traços gerais do que se tem estudado e pensado acerca da sociedade contemporânea, suas mudanças e sua circunstância. Percebe-se e se enfatiza a influência decisiva das novas tecnologias midiáticas na construção, desconstrução ou remodelamento de culturas e identidades. O impacto das tecnologias comunicacionais sobre a cultura tem sido amplamente analisado e discutido. Torna-se evidente que as mudanças ou prerrogativas de mudanças observadas na sociedade não se devem apenas aos aparatos técnicos, mas são também resultado de reestruturações em outros âmbitos, seja nos conceitos que regem o cotidiano, seja nas aspirações e referências de futuro, de humanidade, de felicidade, etc.Não se pode relevar o fato de que as novas tecnologias só surgem porque a sociedade se estruturou de tal modo a poder pensa-las, cria-las e mantê-las. Ou seja, a internet hoje muda um mundo que já havia mudado o bastante para criar a internet. Hall (1999) demonstra como as mudanças no cerne da cultura pós-moderna não surgem do nada, mas podem ser entendidas a partir de rupturas nos fundamentos das sociedades que nos precederam. Esse autor cita o advento marxista, o desenvolvimento dos conceitos de inconsciente psicológico, as descobertas da linguística saussuriana, as concepções relacionadas ao poder e a disciplina de Foucault e a mescla de público e privado trazida pelo feminismo como bases para o surgimento do sujeito pós-moderno e de sua característica maleável e polissêmica. Sodré (2006), por sua vez, foca a importância da mídia e das tecnologias comunicacionais para as modificações que requisitaram dos indivíduos contemporâneos novos conceitos de consciência: Tempo real e espaço virtual operam o redimensionamento da relação espácio-temporal clássica. Tudo isso implica uma nova antropologia éticopolítica da comunicação, isto é, o empenho por uma redescrição das relações entre o homem e as neotecnologias capaz de levarem conta as 2 transformações da consciência e do self sob o influxo de uma nova ordem cultural, a simulativa... ( SODRÉ, 2006. Pág. 20) Para esse autor, a sociedade contemporânea rege-se pela midiatização, que implicaria uma “qualificação particular da vida, um novo modo de presença do sujeito no mundo” (SODRÉ, 2006. pág.22). Embora esse novo “bios” só possa surgir a partir das novas tecnologias, e por causa delas, é evidente que muitas de suas características são resultado de processos mais antigos. O principal desses processos, aquele que rege a midiatização e, portanto, sua bios, é o da lógica de mercado. O que se destaca dessas teorias sobre as mudanças é a insistência numa alteração cervical da cultura, ou seja, todos os adventos referidos afetam o conceito mais primário de qualquer sistema simbólico e cultural: o eu. É o indivíduo, a forma como ele se entende, como se situa e se coloca, quem está sendo deslocado e descentrado. O interesse aqui não recai tanto sobre o indivíduo como ente empírico e complexo, mas primordialmente sobre o conceito de indivíduo, o estereótipo ou signo que a cultura produz e toma para si como um representante vicário daquilo que ela não consegue efetivamente abarcar. Cidadania e identidade Para Cortina (2005), as sociedades atuais buscam sentimentos de identidade e pertencimento capazes de vincular os indivíduos aos seus grupos, uma vez que as velhas instituições passam por irremediáveis processos de remodelamento ou desconstrução. A configuração sociocultural das nossas sociedades está embasada numa concepção “individualista hedonista” de indivíduo, que tem dificuldades de compreensão dos laços comunitários e se sente mais confortável na demanda por direitos próprios que no reconhecimento de deveres para com o grupo. Essa postura, entretanto, prova-se insustentável pelo ressurgimento de forças coesivas e vinculativas, tais como as religiões e os movimentos nacionalistas que, ainda que se adequem às novas circunstâncias históricas e às novas roupagens, não perdem seu núcleo mais básico e essencial: o sentimento de pertencimento. É dentro desse contexto que Cortina situa a retomada das discussões sobre o conceito de cidadania. Elas se esforçam para responder à seguinte inquietação: “Como 3 fazer com que indivíduos que fazem do prazer presente o único objetivo de sua vida se disponham a se sacrificar pelo bem comum, quando necessário?” ( CORTINA, 2005. pág. 18). Para Cortina, a resposta mais relevante estaria no fortalecimento do espaço público, palco das obrigações, aspirações e atividades do indivíduo na condição de cidadão. É nessa condição que ele transcenderia as preocupações domésticas para se portar como um membro de um conjunto ativo de indivíduos ocupados na construção de um mundo social justo. Reconhecimento da sociedade por seus membros e consequente adesão por parte destes ao membros como pretensão, compõem esse conceito de cidadania que constitui a razão de ser da civilidade. ( CORTINA, 2005. pág 21) Está presente no conceito de civilidade a ideia de dupla legitimação -não é apenas o governo ou qualquer instituição coesiva que se apresenta como legitima em sua função, mas os indivíduos também a reconhecem como tal e dispõe de condições para se situar dentro dela e ali se identificar. Para que isso aconteça é necessário haver consenso e, tratando-se de grupos sociais, tal consenso só funciona se começar no âmbito simbólico. O sentimento de pertencimento surge a partir do compartilhamento de uma identidade comum e essa identidade justifica a estrutura da instituição. Não se trata, portanto e em primeira instância, de uma imposição escancarada, mas de uma espécie de acordo tácito. Entretanto, esse acordo só funciona quando se camufla através dos dispositivos simbólicos da cultura. Mecanismo semelhante ocorre na criação de uma identidade cidadã. Fica claro que o conceito de cidadão precisa ser construído e negociado. O que se tem tentado, no que Cortina ( 2005) chama de “liberalismo político” é encontrar uma teoria da justiça distributiva que possa ser aceita e comungada por todos os membros de uma sociedade até, por fim, refletir nas próprias instituições dessa sociedade. Os passos seriam: reconhecer os valores comuns a todos os integrantes de uma sociedade; construir, a partir deles, uma teoria da justiça abrangente e, por fim, moldar as instituições de modo a torna-las decorrência desses mesmos valores. A ideia, evidentemente, apresenta várias dificuldades. A primeira delas é o fato de que as instituições já foram moldadas ao longo da história de formas nem sempre conscientes ou planejadas. Além disso, a autora também ressalta que nossas sociedades são cada vez mais plurais, com valores e ideais de justiça e felicidade muito distintos. Mas, evitando 4 essa discussão, o que aqui nos é interessante é o fato simples de que, para quem determinado indivíduo se considere cidadão, faz-se necessário que ele reconheça, legitime e se inclua numa série de conceitos, de ideais e consensos quase sempre não definidos por ele próprio. Trata-se, pois, ao que tudo indica, de uma construção de identidade simbólica. O sistema simbólico O conceito bourdiano de sistema simbólico abrange as grandes abstrações “estruturadas e estruturantes” como a religião, a língua e a arte, que organizam e dão sentido à existência de determinadas sociedades. Estruturadas porque construídas segundo uma lógica homogênea e concordante e estruturais porque, a partir delas, outros sistemas se estruturam. Esses sistemas simbólicos, na visão de Bourdieu, permitem aos indivíduos que deles participam partilhar uma concepção resolvida e concatenada de todos os elementos da vida – do tempo, do espaço, da história, do outro, de si mesmo, etc. Isso é feito por meio da criação e manutenção de símbolos: Os símbolos são os instrumentos por excelência da “integração social”: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação ( cf. a análise durkheimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ´lógica´é a condição da integração ´moral´ (BOURDIEU,2003. Pág 10.) De tal modo que é o consensus o que buscam os símbolos sociais. Ou seja, a coincidência de sentido, a base lógica para uma impressão de pertencimento. As manifestações materiais de determinada cultura podem ser consideradas reflexos ou mesmo resíduos dessa lógica de pertença mais profunda, calcada nas mitologias consensuais do grupo. Há dois pontos interessantes na teoria bourdiana que aqui serão ressaltados. O primeiro é a condição fundamental para o exercício do poder simbólico – poder advindo do sucesso de determinado sistema simbólico e, evidentemente, de seus símbolos internos: “O Poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”(BOURDIEU, 2003.pág. 8). Em outras palavras, para que um sistema simbólico funcione e gere seu equilíbrio interno de poder e dominação, é 5 necessário que os indivíduos envolvidos não considerem sua estrutura como artificial, mas sim como natural ou, pelo menos, legítima. Ou seja, o poder simbólico só é exercido quando sua legitimação vem de dentro para fora, muito mais do que de fora para dentro. O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força ( física ou econômica), graças ao efeito específico da mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.( BOURDIEU, 2009. pág 14) O segundo ponto trata da formação, dentro da estrutura do sistema simbólico, de um grupo social que se legitima como responsável pela lida com os símbolos; sua criação, manutenção e difusão. Na concepção marxista, a função política dos sistemas simbólicos é colocada em evidencia. Nesse caso, as criações simbólicas se apresentam como ideologias, ou seja, como estruturas de símbolos que atendem a determinado interesse e que trazem ocultas em seu bojo, a “função da divisão”. Pois bem, Bourdieu determina como, em sociedades mais complexas, os símbolos não trazem em si apenas o interesse do grupo dominante, mas também o do grupo de especialistas que trabalham esses símbolos. Esses especialistas também são reconhecidos internamente como legítimos. O surgimento desses grupos de especialistas pressupõe o surgimento de seu próprio sistema simbólico, distinto daquele dos grupos dominantes e dos dominados. Esse sistema próprio influi de maneira particular sobre os sistemas vizinhos, pois se constituiu a partir da necessidade de manipulá-los e transmiti-los. Fala-se aqui, portanto, do surgimento de um sistema simbólico, ou pode-se dizer de uma cultura, não vinculada diretamente às raízes mais comuns de qualquer cultura. Os especialistas, portanto, não se legitimam por causa da origem étnica, do sangue, da mitologia histórica. Mas criam sua própria mitologia e justificativa. Hibridização e novas identidades Quando Cortina trata de cidadania intercultural, ela se aproxima de Hall na análise das culturas como acervos simbólicos dos povos. A atual reconfiguração de espaço e tempo cria o cenário de novos desafios para as nações; se por um lado a 6 chamada globalização atenua fronteiras sob o prisma do consumo, por outro esse mesmo fenômeno recrudesce manifestações nacionalistas, fundamentalismos religiosos e qualquer outro dispositivo cultural de resposta à perda do sentimento de pertença. Curiosamente, talvez seja o mesmo fenômeno que venha exigir um conceito e um exercício da cidadania. Cortina aponta o fato de que as sociedades atuais são cada vez mais multiculturais. Canclini( 2003) trabalha a mesma realidade quando volta sua atenção para os processos de hibridização na América Latina. Para esse autor, a hibridização não consiste em simples convivência de culturas distintas, mas na possibilidade de mescla que gera novas estruturas, objetos e práticas. La palabra hibridización aparece más dúctil para nombraresas mesclas enlas que no sólo se combinan elementos étnicos o religiosos, sino que se intersectan com productos de las tecnologias avanzadas y procesossociales modernos o posmodernos( CANCLINI, 2003. pág 9) É ponto pacífico então que a sociedade em vias de midiatização tem exigido novas configurações das culturas nacionais, étnicas, religiosas e etc. Mas é Hall em princípio que aponta para um outro fenômeno também importante: o surgimento de novas culturas que não são apenas fruto da hibridização mas resultam dos novos conceitos e circunstâncias apresentadas pela sociedade. Para além das identidades nacionais, que Hall (1999) define como “ Comunidades Imaginadas”, surge uma identidade que se pauta pela condição de membro participativo de determinada sociedade, independente das origens étnicas e históricas. O cidadão é plural culturalmente, e os aspectos divergentes de sua pluralidade são protegidos sob as asas ideológicas das liberdades – liberdade de expressão, de culto, individual etc. – mas ele precisa ser igual em seus direitos e deveres para com a sociedade em que vive. É nesse ponto que se pode falar de uma cultura cidadã. De tal modo que a aspiração da cidadania, em sua definição empírica, transpõe barreiras nacionais e étnicas e acompanha o espalhar de outro âmbito de cultura, podendo gerar, sem complicações de entendimento, termos como cidadão brasileiro, cidadão francês, cidadão judeu, etc. Certamente, o espalhar da cultura cidadã não ocorre porque sim, e nem de modo espontâneo e universal. Existe aí o desenvolvimento de uma simbologia que é parte de um sistema simbólico maior, de modo que o conceito de cidadania exige de seus cultores o reconhecimento de outros conceitos, o apoio a outros pontos de vista e, 7 sobretudo, a legitimação de outras ideologias. De maneira rasa e apenas ilustrativa, pode-se sugerir que a identidade de cidadão só faz sentido para aquele indivíduo que também entende a ideia de democracia, consumo, direitos e deveres, capitalismo e cultura midiática. Ou melhor, que entende e aceita esses conceitos como naturais ou, pelo menos, legítimos. Para que isso ocorra, faz-se necessário que tais idéias circulem dentro da sociedade e sejam afirmadas e mantidas pelos grupos legítimos. O jornalista e o cidadão Pois bem, a partir do exposto pode-se recuperar dois pontos importantes. Em primeiro lugar, entende-se que os sistemas simbólicos legitimam grupos como especialistas em divulgar, manter e criar símbolos. Esse grupo possui sua própria estrutura simbólica peculiar, situada entre a simbologia dos grupos dominantes e dos dominados. Em segundo lugar, entende-se que o conceito de cidadão é também um construto identitário, ou seja, um símbolo que procura unir e tornar lógica determinado grupo social. E é assim que a questão da identidade toma forma de intersecção entre o jornalista, membro desse grupo de especialistas em difundir símbolos, e o cidadão, como símbolo que se pretende difundir e, antes disso, criar. Se a busca por um conceito mais preciso e promissor de cidadania é uma preocupação em determinados círculos da sociedade, a maior parte dela segue empregando o termo de maneira ampla, quase sistemática, para nomear a panaceia dos males sociais contemporâneos. Trata-se, de fato, de um conceito que caiu muito bem ao gosto do chamado “grande público” e que,na boca da mídia, dos grupos políticos, do governo, etc., gera variados tipos de abordagem – de conceito científico a dogma político, de bandeira de campanha a componente de valoração ética, de baluarte ideológico a estratégia publicitária, de elemento de mitologia popular a moeda de troca. E é a mídia que, encastelada em seu nicho de especialista na construção de valores simbólicos, parece propagar com maior ênfase a questão da cidadania, infundindo nela suas próprias variáveis e valores. Por isso convém analisar com mais cuidado as possíveis relações entre o jornalista, representante individualizado da mídia, e o cidadão. Pelo caminho teórico traçado até aqui, pode-se inferir que a relação almejada se dá entre duas naturezas distintas de objeto: se, de um lado, observa-se o jornalista como indivíduo membro de um grupo profissional e pertencente a uma provável cultura 8 profissional específica; do outro, procura-se não o cidadão como indivíduo empírico e delimitável, senão como conceito construído e difundido. Em outras palavras, a relação que se procura analisar é entre produtor de significado e significado, entre produtor de símbolo e símbolo. Não se trata, é evidente, da única relação possível e nem tampouco de uma relação alijada das demais, que sobreviva por conta própria e sem nenhuma mescla. É indubitável, por exemplo, o fato de que o “jornalista” também é um conceito construído, muito antes de ser um indivíduo empírico, e que tal conceito influi sobre os símbolos de maneira decisiva. Mas, para esse artigo em específico, opta-se por entender a relação entre jornalista-indivíduo e cidadão-conceito de uma maneira abstrata, teórica e ideal. Enfim, considera-se relevante pensar em qual o conceito de cidadão que o jornalista e a mídia defendem e propagam. Uma vez que cidadania envolve uma identidade específica, a partir de que arcabouço cultural tal identidade se constrói? Será que a cultura jornalística – o campo jornalístico – imprime seus valores no conceito de cidadania que a mídia divulga e que, da forma como só ela sabe fazer, defende como sendo o conceito real? Em síntese, posso dizer que a mídia tem propagado um conceito de cidadania que tenta abranger e superar as diferentes delimitações culturais que compõem uma nação ou país. Esse conceito de cidadania, porém, pode também ser visto como uma delimitação cultural cujas características refletem um intrincado jogo simbólico entre os ideais de diversos grupos sociais, inclusive da própria mídia. Desse modo, seria possível que aquilo que é importante e relevante para os jornalistas – não apenas como indivíduos mas como grupo social formado - reflita no conceito que eles transmitem de cidadania e a partir do qual englobam seus receptores, consumidores, grande público e a eles próprios. Essa e outras questões que pretendo perseguir em minha dissertação de mestrado. O que aqui se tentou fazer foi situá-las teoricamente, a partir dos conceitos trabalhados na disciplina Mídia, Cultura e Cidadania. 9 REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico; tradução Fernando Tomaz 12ª ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2009. CANCLINI, Néstor García. Notícias recientes sobre lahibridación. Retirado de: http://www.cholonautas.edu.pe CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Arte de fazer/ Michel de Certeau; tradução de Ephraim Ferreira Alvez – Petrópoli, RJ: Vozes, 1994. CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo, para uma teoria da cidadania. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2005 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A,1999. SODRÉ, Muniz. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, Denis de (org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006 10 Comunicação Pública enquanto Política para Cidadania: Premissas e Obstáculos1 Fran RODRIGUES2 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO RESUMO Este artigo, a partir de uma breve revisão bibliográfica, aponta algumas premissas básicas necessárias à atuação das emissoras públicas como cenários possíveis de construção de cidadania. Apresenta, ainda, algumas limitações tanto teóricas quanto práticas às quais estão sujeitos esses veículos midiáticos e os consequentes entraves de ordem editorial e política que são capazes de fragilizar a atuação da Comunicação Pública no país. O trabalho realiza um breve estudo de caso a partir da análise de conteúdo de manchetes do Jornal Brasil Central 2ª edição, exibido diariamente na TBC, emissora cuja concessão pertence ao Governo do Estado de Goiás. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação Pública; Cidadania; Política Pública. INTRODUÇÃO No Brasil, como aponta Lima (2001), os serviços de comunicação se estabelecem a partir de fatores como a propriedade cruzada de diferentes meios, formação de grandes conglomerados e manutenção de vínculos estreitos entre redes midiáticas e interesses políticos e econômicos. Nessa estrutura, a qualidade da programação e sua colaboração para a construção da cidadania não se configuram como prioridade. A audiência, que se reverte em lucro, é que ocupa tal posição. Nesse sentido, justificam-se as pesquisas que discutem que tipos de apropriação se estabelecem no campo midiático. O presente trabalho toma como foco central um dos sujeitos que compõem esse cenário: o Estado enquanto fomentador e gestor de emissoras de comunicação. Diante da histórica centralização das concessões de Rádios e TVs e sua exploração comercial, a chamada Comunicação Pública (CP) tem se tornado recorrente nos estudos que problematizam a democratização da comunicação, uma vez que, mediante a ausência do 1 Trabalho apresentado no GT 2 – Comunicação, Opinião e Imagem Pública, do VI Seminário de Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Francislanda Rodrigues é graduada em Jornalismo (2008), especialista em Políticas Públicas (2010) e mestranda do Curso de Mídia e Cidadania da Facomb – UFG, e-mail: [email protected] 1 lucro como objetivo primeiro, os teóricos do campo enxergam nas emissoras públicas ferramentas alternativas com grandes potencialidades democratizantes, a saber, desde uma programação com maior qualidade e interesse público, até, numa perspectiva participativa de comunicação, o acesso popular aos processos produtivos. Este artigo, a partir de uma breve revisão bibliográfica, aponta algumas premissas básicas necessárias à atuação das emissoras públicas como cenários possíveis de construção de cidadania. No sentido de compreender de forma prática o modo como se dá a transmissão de conteúdo jornalístico nas emissoras públicas, para além do levantamento bibliográfico, esse trabalho também realiza uma análise de conteúdo das manchetes do Jornal Brasil Central 2ª edição. O programa é apresentado de segunda a sábado, das 18h30 às 19h, na TV Brasil Central, emissora de TV cuja concessão é comercial, mas pertence ao Governo de Goiás. São analisadas as manchetes e notas veiculadas pelo jornal nos dias 4 a 9 de julho de 2011, período escolhido aleatoriamente. Comunicação Pública como Alternativa Se para Habermas (2003), os meios de comunicação realizaram uma mudança estrutural da esfera pública em função, principalmente, do caráter comercial em detrimento do social, é coerente pensar que uma comunicação não empresarial, que não esteja a serviço do lucro e das relações econômicas, inaugure, ao menos no campo ideológico, um outro processo comunicativo, que pode ser pautado pelo interesse público com vistas ao desenvolvimento de um espaço de emancipação e cidadania. Baseada em uma ampla formulação teórica, a comunicação pública (CP) é um dos campos que abordam as ações de comunicação promovidas nesse sentido, para além do comercial, gestadas por entidades políticas, instituições públicas ou sociedade civil organizada a fim de atingir a opinião pública. Uma variedade de saberes e atividades compõem essa área, cujos significados e delimitação conceitual ainda estão em processo de construção. A multiplicidade desse campo teórico acaba por implicar em conceitos frequentemente conflitantes. Brandão (2007) sintetiza os múltiplos significados da expressão, apresentando a CP sob o prisma de cinco diferentes áreas de conhecimento e atividade profissional, a saber: Comunicação Organizacional, Científica, Governamental, Política e Comunicação da Sociedade Civil Organizada. A definição teórica mais usada no país entende CP como aquela efetuada entre o Estado e seus cidadãos ou, ainda, como um ambiente político por natureza. 2 O panorama traçado até aqui demonstra que, dentre os múltiplos significados da expressão comunicação pública, é possível encontrar um ponto comum de entendimento que é aquele que diz respeito a um processo comunicativo que se instaura entre o Estado, o governo e a sociedade com o objetivo de informar para a construção da cidadania. É com este significado que no Brasil o conceito vem sendo construído, sobretudo por força da área acadêmica que tem direcionado seu pensamento para esta acepção (BRANDÃO, apud DUARTE, 2007, p. 09). Ao tratar de Comunicação Pública, portanto, estamos nos referindo a um tipo de emissora, cujo conteúdo está desvinculado de interesses comerciais imediatos ou garantias de audiência. Tais fatores, ao menos em tese, ampliam as possibilidades de um fluxo de informações mais comprometidas com a cidadania, a cultura, os saberes, ou seja, profícuas no sentido de informar e conscientizar. Duarte (2007) acrescenta que para conquistar uma audiência em número mais expressivo e, assim, obter maior lucro, a emissora convencional opta de forma invariável por aquilo que atrai visibilidade, sem necessariamente se importar com os conceitos e valores disseminados pela programação. Nesses casos, “a lógica do quantitativo se sobrepõe à do qualitativo, a esfera privada do econômico ganha espaço da esfera pública do político” (p. 64). Outra abordagem que nos importa nesse trabalho compreendem Comunicação Pública como um novo espaço comunicativo, evidenciando suas potencialidades democratizantes. Os autores mais otimistas preveem, nesse novo paradigma, um fazer comunicativo que incentiva a reflexão conjunta entre Estado, governo e sociedade, sobre o papel dos meios de comunicação, bem como a ativa participação popular no desenvolvimento de experimentações, em termos de linguagem e conteúdo, a fim de contribuir para a construção da cidadania. GOVERNO, ESTADO E SOCIEDADE CIVIL Outro debate bastante difundido e necessário trata da distinção entre a comunicação pública e a comunicação estatal ou de governo, o que, na prática, é um dos pontos mais sensíveis da implementação e viabilidade desse projeto de democratização da comunicação. Da mesma forma como empresas de comunicação não atuam diretamente em benefício da sociedade, mas de interesses privados, a CP não deve ser usada apenas como um instrumento de publicidade governamental, sob o risco de tornar-se tão ou mais prejudicial ao público, uma vez que seria apenas mais um relato parcial e pouco coerente com a realidade, não em função dos interesses empresariais, mas, nesse caso, em favor do governo vigente. 3 A comunicação governamental diz respeito aos fluxos de informação e padrões de relacionamento envolvendo os gestores e a ação do Estado e a sociedade. Estado, nesse caso, é compreendido como o conjunto das instituições ligadas ao Executivo, Legislativo e Judiciário, incluindo empresas públicas, institutos, agências reguladoras, área militar e não deve ser confundido com governo. A gestão administrativa e política do aparato do Estado é responsabilidade do governo. Este é apenas o gestor transitório daquele. Os agentes são a elite política e todos os integrantes das instituições públicas, representantes eleitos, agentes públicos nomeados e funcionários de carreira (DUARTE, s/d, p. 2). Para compreender a participação do Estado no fomento de sistemas de comunicação como emissoras públicas de radiodifusão, é importante embasar conceitualmente as relações entre Estado, governo e Sociedade Civil. Por meio de uma digressão histórica que contempla, principalmente, Hobbes, Ferguson, Hegel e Rousseau, Bobbio (1995) demonstra a variação de significados a que se atribui a expressão ‘Sociedade civil’ ao longo da bibliografia produzida. Nesse contexto, enfatiza o processo por meio do qual Sociedade Civil e Estado, antes teorizados numa relação dicotômica e amplamente contrapostos, na atualidade passam a fundir-se no campo teórico através das observações sobre a “estatização da sociedade” e a “socialização do Estado”, considerando-se que a emancipação da sociedade em relação ao Estado teria sido sucedida pela reapropriação da sociedade, transformando-se o Estado de direito no Estado social. Reconhecendo se tratar de uma relação complexa que demanda reflexão, o autor define que “sociedade e Estado atuam como dois momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos, mas interdependentes” (BOBBIO, 1995, p. 52). COMUNICAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E CIDADANIA Uma das formas por meio das quais o Estado tem procurado adequar sua atuação mediante a insatisfação e mobilização popular é a gestão participativa. Conforme Nogueira (2004), atualmente a participação redimensiona a relação com o Estado, ampliando a noção de espaço público, associada à ideia de democracia deliberativa, que parece superar o suposto antagonismo entre representação e participação. Pouco a pouco, a opinião prevalecente foi se deslocando para o lado oposto, com o correspondente reconhecimento de que a participação não somente conteria um valor em si, como também seria particularmente relevante no fornecimento de sustentabilidade às políticas públicas e ao próprio desenvolvimento. Os processos participativos converteram-se, assim, em recurso estratégico do desenvolvimento sustentável e da formulação de 4 políticas públicas, particularmente na área social (p.118). O autor também discorre mais teoricamente sobre o participante e as concepções de participação, classificadas em assistencialista, corporativa, eleitoral e política. Tais categorias, contudo, passaram a atuar conjuntamente, formado um complexo quadro político, bastante incômodo à democracia representativa liberal, que entra em crise operacional. Com base no pensamento gramsciano, Nogueira (2004) afirma que a participação configura-se como “um meio de se fazer presente no conjunto da vida coletiva, de disputar seu governo e de postular a hegemonia, a direção intelectual e moral da sociedade” (p. 140). O autor abrange o comunitarismo republicano frente ao individualismo liberal, demonstrando suas vantagens, mas também ingenuidades e desafios dessa participação. São características desse cenário o crescimento dos interesses particulares, as exigências da sociedade civil por cada vez mais espaço para participação, o reforço tecnocrata do aparato estatal e as influências da informacionalização na governabilidade. Ele expõe a participação como recurso gerencial, apontando que, embora potencialmente emancipatória e democratizante, quando institucionalizada, a participação tende a se tornar mais suscetível ao controle, tanto do Estado quanto da esfera da sociedade que lidera o processo. Nogueira acrescenta que a participação cidadã “traduz elementos distintos e às vezes contraditórios da dinâmica política”, referindo-se aos múltiplos focos de ação, que vão do Estado ao mercado e à sociedade civil, “do particular ao geral, da ética ao interesse” (p.142). Numa exposição sistemática acerca dos impactos participativos sobre a gestão, o texto enumera oito formas como a participação se insere no universo gerencial. Depois de debater sobre suas contribuições no desenvolvimento político, evoca a participação para além do cenário político, mas na dimensão dos resultados efetivos, incorporada ao que Nogueira (2004) chama de “patrimônio ético-político da sociedade”. A abertura de espaços de participação pode, efetivamente, facilitar a obtenção de respostas para as demandas comunitárias, ampliar a comunicação entre governantes e governados, fornecer melhores parâmetros para a tomada de decisões e, nessa medida, fortalecer a gestão pública e promover a expansão da cidadania ativa (p.143). Para além das institucionalizações promovidas pelo poder do Estado, da Economia e da Comunidade, a liberdade se dá por meio da linguagem, imbuída de uma capacidade coordenadora, na gestão e resolução dos conflitos existentes na negociação 5 entre interesse público e comum. Por exemplo, vemos que, em Meksenas (2002), a respeito da ação política popular: Os valores/representações tradicionais e modernos formam uma unidade contraditória; as ações de regulação e os projetos de emancipação integram um mesmo processo social; e as relações capitalistas e pré-capitalistas se combinam na manutenção das desigualdades. A cidadania aparece, então, mais como potência presente na luta de classes e menos como fenômeno constituído. Assim, ao longo da experiência histórica brasileira, os aspectos da ação política popular assumiram a forma de movimentos sociais “velhos” e “novos” simultaneamente (p. 169). Em Santos (1996), “a sociedade liberal é caracterizada por uma tensão entre subjetividade individual dos agentes na sociedade civil e a subjetividade monumental do Estado. O mecanismo regulador dessa tensão é o princípio da cidadania” (p.240). Entende-se cidadania como a forma de participação de um indivíduo na sociedade, conceito que para Carvalho (2002) só seria pleno se o indivíduo tivesse real e pleno acesso aos direitos civis, políticos e sociais. Entre as garantias, encontramos nos direitos civis, o direito à propriedade privada; nos direitos políticos, o poder de escolher representantes; e entre os direitos sociais fatores como acesso à educação, saúde e empregos formais. Se, como sugere Dallari (2004), “do ponto de vista legal, o conteúdo dos direitos do cidadão e a própria ideia de cidadania não são universais” (p.51), tem-se que a efetiva construção da cidadania depende de decisões políticas. Dallari complementa que “outro dado a ser enfatizado diz respeito à exigência da participação na vida pública para caracterizar a cidadania ativa, em oposição à cidadania passiva” (p.52). Consoante a isso, em Mattelart (1999), vemos uma pertinente crítica ao termo “Sociedade da Informação”, comumente utilizado para designar a emergência dos fluxos contemporâneos de informações: A sociedade da informação só pode existir sob a condição de troca sem barreiras. Ela é por definição incompatível com o embargo ou com a prática do segredo, com as desigualdades de acesso à informação e sua transformação em mercadoria (p. 66). Como argumenta Thompson (2001), com o advento da globalização e a transnacionalização das economias com trocas de informações e mercadorias em nível global, a comunicação passa a interferir de maneira mais forte na cognição, ou seja, na maneira como os seres humanos percebem o mundo. A mídia torna-se num quarto lugar de vida, o bios midiático diante da tecnocultura, como expõe Sodré. O que tanto Sodré (2006) como Thompson (2001) apontam é que a mídia, interface entre uma realidade 6 específica e a sociedade, atua produzindo a percepção da realidade que o receptor forma do mundo. Lima (2001) e Peruzzo (1998) sintetizam algumas experiências de fazer comunicativo em conceitos como Comunicação Comunitária, Alternativa e Popular, práticas que se difundem entre os atores sociais organizados e se revelam como importante espaço do pensar/agir nos movimentos reformistas na atualidade, bem como instrumento de construção da participação cidadã. A comunicação popular assume os meios técnicos e as formas de produção antes mantidos, mais monopolicamente, nas mãos de uns poucos, devido à estrutura de funcionamento dos veículos massivos neste País. É o caso, por exemplo, do rádio ou do jornal, com relação aos quais ela se apropria tanto da tecnologia(aparelhagem, processos de impressão) quanto da linguagem, técnicas de programação radiofônica, de redação de notícias, de diagramação (PERUZZO, 1998, p. 155). As expectativas em torno dessa atuação voltada para a cidadania também são baseadas em suas condições de oferecer maior autonomia aos sujeitos sociais e assegurar o direito à comunicação, que, como se sabe, vai além do direito à informação. Considerando o contexto em que, desde a década de 1980, os avanços tecnológicos no campo da Comunicação tornam-se crescentes, os processos envolvidos gradativamente mais simples e, por consequência, mais acessíveis a produção e difusão de conteúdos por sujeitos sociais, outrora à margem desse processo, temos na Comunicação Pública também um espaço para fomento e visibilidade de produções independentes oriundas, por exemplo, de Ongs, Comunidades e Movimentos Sociais. No momento em que as potencialidades interativas acenam para a quebra da unidirecionalidade da centralização das comunicações, o conceito de comunicação dialógica, relacional e transformadora de Freire oferece uma referência normativa revitalizada, criativa e desafiadora para todos aqueles que acreditam na prevalência de um modelo social comunicador humano e libertador (LIMA, 2001, p. 69). PREMISSAS DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA PARA CIDADANIA Para Ramos (2005), “o direto à comunicação constitui um prolongamento lógico do progresso constante em direção à liberdade e à democracia” (p.248). A primeira e fundamental consequência de se reconhecer o direito à comunicação é entender de que ela precisa ser vista como passível de discussão e ação enquanto política pública essencial, tal como políticas públicas para os segmentos de saúde, alimentação, saneamento, trabalho, segurança, entre outros (p. 250). Contudo, Lins (2002) destaca a expressiva exploração dos serviços de comunicação social pelo setor privado, bem como seu crescimento nas últimas décadas. “Mesmo os países ocidentais que mantinham um modelo de monopólio estatal de alguns 7 veículos, em especial a televisão, vêm abrindo seus mercados e admitindo a entrada, cada vez mais acentuada, do capital privado” (p.3). Nesse contexto, a alternativa encontrada por muitas administrações para aproximar a mídia de um papel social mais adequado às necessidades do sistema democrático tem sido a de promover políticas públicas de comunicação social. Como também retrata Lins (2002), esse exercício do Estado não é necessariamente garantidor de uma comunicação que conduza à cidadania. “Se, em alguns países, um sistema público de televisão ocupa papel relevante, em outros casos as estratégias perseguidas resultam apenas na exploração de nichos de mercado, sendo combatidas pelo setor privado ou mantidas dentro de limites institucionais bastante claros” (p.3). Em um sistema político democrático que vise à participação política e implementação universal de direitos humanos, os governos devem atuar como indutores da Comunicação Pública. Comprometidos com o interesse público e dotado de um poder de ação, devem assumir o compromisso de promover Políticas Públicas de Comunicação, no sentido de uma gestão aberta, que fomente e permita o desenvolvimento independente de canais de diálogo, meios e recursos que permitam a viabilização da comunicação de interesse público e o envolvimento popular. As Políticas Públicas de Comunicação englobam setores tão amplos como os da televisão e do radio, os quais podem, adicionalmente, ser comunitários, estatais ou privados. Há clara determinação da Constituição de 1988 para que fossem estruturados três sistemas de comunicação– o público, o estatal e o privado –, bem como as diferenças não desprezíveis entre tv comercial e tv educativa, por exemplo, indicam a pertinência de se oferecer espaços específicos para reflexões sobre esses distintos formatos de mídia (ANDI, 2007, p.15). Um governo democrático não pode se ausentar das crises nem obstruir ou silenciar canais de comunicação da sociedade, mas deve saber conviver com discordância, fazendo das exigências, das cobranças populares e das visões conflitantes, oportunidades de superação dos problemas e melhoria das condições de vida para as classes mais atingidas pelos problemas sociais, bem como para a convivência mais harmônica dos diferentes grupos que compõem a heterogênea sociedade civil. Conforme Duarte (s/d): Governos podem ajudar no estabelecimento de padrões adequados de comunicação na sociedade por meio da formalização e adoção de múltiplas políticas públicas que orientem os processos de interação e troca de informações de interesse coletivo. As políticas devem ser integrativas, elaboradas participativamente, exercitar uma visão global e ter perspectiva relativamente duradoura. Elas devem ser baseadas nas aspirações coletivas, 8 buscar estimular a participação, o desenvolvimento da democracia, aumentar a governabilidade, estimular a competitividade e a integração social. É possível, por exemplo, formalizar políticas públicas em áreas como internet, acesso a dados, publicidade, radiodifusão, acesso à informação, gestão da comunicação, atendimento ao cidadão, comunicação interna, relacionamento com a imprensa (p.6). O autor propõe o estabelecimento de alguns eixos centrais da CP. São prérequisitos para a ação dos agentes e instituições que promovem a comunicação enquanto interesse público: transparência, acesso, interação e ouvidoria social. A transparência refere-se ao compromisso com a atuação responsável no que relacionamento com questões públicas, no que está inclusa a oferta de informações, facilitação da fiscalização e a prestação de contas, bem como incorporação de valores éticos nas práticas dos agentes públicos envolvidos. O acesso trata da premissa de que a sociedade deve ter facilidade de obter informações, ter essa busca estimulada e orientada, deve envolver sua opinião, fiscalizar e influir na gestão da coisa pública. Já a interação diz respeito à criação, manutenção e fortalecimento de mecanismos de comunicação que possibilitem fluxos multilaterais, que respeitem os pressupostos da ação comunicativa, ou seja, de um diálogo baseado na argumentação e racionalidade da linguagem, um espaço de comunicação em que todos os envolvidos tenham igual direito e oportunidade de falar e ser ouvidos. Significa, portanto, que deve se estabelecer uma pedagogia da interação, com a criação de produtos, serviços, ambientes e situações que conduzam ao acesso, compreensão, cooperação, participação e crítica. Por fim, temos também como prérequisito para efetiva CP, a ouvidoria social, ou seja, o interesse por compreender a opinião pública nos diversos aspectos e segmentos que a constitui. Ela dota as diferentes formas de pesquisa como referência e exige habilidade de compreender motivações, interesses, propostas e critérios de satisfação e assumir o compromisso de considerá-los como referência na ação. Para além da instrumentalidade das Políticas Públicas de Comunicação, é importante observar também o fundo ideológico que perpassa a discussão, ampliando-a, o que demonstra a necessidade de continuidade e aprofundamento dos estudos nesse campo. NA PRÁTICA, OS OBSTÁCULOS Para compreender empiricamente como essas premissas são ou não observadas pelas empresas públicas de comunicação, este artigo apresenta o estudo de caso acerca do jornalismo de uma televisão estatal, a TV Brasil Central, concessão comercial do 9 Governo do Estado de Goiás. A emissora existe desde 1975, quando o governo do estado conquistou também a concessão televisiva, que se somou às rádios Brasil Central AM e RBC FM, já pertencentes a este governo. A princípio, a TV era repetidora do conteúdo da Rede Bandeirantes, mas em 1995 o contrato foi interrompido e a emissora afiliou-se à TV Cultura, que é retransmitida até os dias atuais – embora exista um projeto de implantação da chamada TBC News, que pode interromper a transmissão da programação nacional da TV Cultura. A TBC também veicula programação local. A maior parte desse conteúdo é proveniente de produções independentes que locam horários3. Mas há também programas realizados pelo quadro de profissionais da Televisão. São funcionários do Estado, comissionados e recentemente também concursados4, que produzem 2 telejornais diários e 1 programa do gênero diversional chamado Sobre todas as coisas, exibido semanalmente. O presente artigo analisa as manchetes e notas veiculadas entre 18 e 25 de junho pelo Jornal Brasil Central 2ª edição, que integra a programação local da emissora de segunda à sexta das 18h30 às 19h e no sábado das 18h30 às 18h45. A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo, por meio da qual foram classificados os principais assuntos do jornal e a frequência com que estes aparecem no programa. A tabela 1 demonstra a classificação temática do jornal nas 2 semanas consecutivas analisadas. Durante as duas semanas que fazem parte do escopo analítico deste artigo, o jornal exibiu 154 matérias. A tabela abaixo se refere às menções contidas no texto dos apresentadores, a saber, a escalada (abertura do jornal), chamadas de blocos, chamadas de matérias e notas complementares. Tabela 1 – Análise de conteúdo do Jornal Brasil Central 2ª edição – 1ª e 2ª semana Palavra-chave Qtd de matérias Polícia Goiás Agência/Autarquia/Conselhos Estaduais/UEG Expressão cultura/esporte regional Igreja Comportamento Convênio/Projeto/Programa/Campanha 13 16 4 14 13 4 15 16 5 16 17 3 17 15 8 18 10 0 20 17 6 21 15 9 22 18 4 23 14 3 24 14 5 25 9 2 3 4 3 8 2 3 4 3 0 0 0 0 1 4 3 2 4 2 2 4 3 0 2 1 1 3 3 6 6 3 0 0 0 4 1 0 1 0 0 1 0 1 0 5 4 4 3 5 0 0 1 1 2 1 2 3 1 4 4 3 3 3 2 2 4 2 2 0 1 0 0 1 3 Embora considerada TV Pública, o formato da concessão da TBC é comercial, o que possibilita a veiculação de propagandas e venda de horários na grade. Contudo, vários grupos políticos e comerciais mantêm programas sem efetivamente pagar por eles na Agência Goiana de Comunicação. Os regimes desses contratos também são passíveis de investigações acadêmicas e até mesmo jurídicas. 4 Só em 2010 a Agecom cedeu às pressões do Ministério Público e realizou seu primeiro concurso para provimento de quadro efetivo de profissionais. 10 Total 154 53 30 28 27 24 22 20 Utilidade pública ONGs e entidades privadas Governador Marconi Perillo Secretaria de Estado Secretaria Municipal/Prefeitura Sociedade civil Ação governo federal Governo Assembleia Legislativa Ministério Público Câmara Municipal 2 1 1 0 0 0 2 2 5 4 1 1 1 1 2 0 1 1 3 4 1 0 1 1 1 1 1 4 2 3 2 0 0 0 0 0 2 2 1 5 1 3 0 0 0 0 0 0 1 3 2 1 1 1 4 0 0 0 1 0 2 0 3 0 0 3 3 0 0 0 1 0 0 0 0 0 3 0 2 1 1 1 0 0 0 0 0 2 0 0 2 2 0 0 1 0 2 0 2 0 0 1 1 1 1 0 0 0 1 0 2 0 0 0 1 2 0 0 1 0 1 0 1 3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 Os dados revelam aspectos interessantes sobre os processos de produção e difusão de notícias na referida emissora. O artigo detalha algumas dessas inferências. Questões policiais como violência, incidência de crimes, prisões e investigações são o tema mais recorrente no jornal. Isso não é novidade no jornalismo, pois também ocorre nos demais veículos de comunicação, dado o interesse do público por esse tipo de notícia. Contudo, o conteúdo do JBC 2ª edição apresenta uma particularidade na cobertura policial. Nota-se que nesta emissora, as notícias não são os crimes em si, mas, sobretudo, a visão da polícia acerca desses fatos, o que pode ser percebido pela quantidade de vezes em que a instituição é mencionada e entrevistada. Um caso emblemático pode ser retirado do programa do dia 14 de junho, quando, em caixa alta, no teleprompter dos apresentadores, lia-se: “Policiais goianos acusados de participar de grupo de extermínio estão desde ontem no Centro de Custódia da Polícia Militar, em Goiânia.// Comando da PM garante que os policiais não terão qualquer tipo de regalia na detenção.//”. A palavra Polícia, repetida 53 vezes, em momento algum era mencionada em um contexto negativo, nem mesmo nesse caso em que policiais eram o alvo da investigação. Sempre que a instituição foi citada, o contexto era de demonstração positiva da sua atividade, por exemplo, apresentando suspeitos detidos, resultados de investigações ou mesmo a opinião de oficiais acerca de crimes cometidos no estado. Já a palavra Goiás, que também aparece muitas vezes, 30, prova a ênfase do telejornal em noticiar assuntos regionais, o que pode ser considerado um aspecto padrão no jornalismo. Porém, o JBC também apresenta particularidades em relação aos telejornais de outras emissoras. Na TV Brasil Central, a maior parte das vezes em que diz-se Goiás, a notícia refere-se a alguma ação do governo do estado, o que pode ser melhor percebido quando contabilizada a quantidade de vezes em que o texto dos 11 19 16 14 14 13 13 8 8 8 7 5 2 apresentadores repete palavras como Secretaria, Agência, Projeto, Programa e Campanha, no que tange à divulgação de atividades do governo estadual. No dia 15 de junho, por exemplo, o jornal anunciou a retomada de um programa de transferência de renda que a administração atual havia suspendido. Na chamada, assim como no texto da matéria, a justificativa para a interrupção do benefício recai sobre problemas da administração anterior. “Depois de 5 meses de suspensão para ajustes, o governo de Goiás retoma o pagamento do programa Renda Cidadã. / A medida beneficia famílias com renda mensal de até 1 salário mínimo e meio.//” Governos municipais e o federal também são mencionados, mas em uma proporção muito menor e com uma visão mais distanciada e às vezes crítica, o que não ocorre em relação à administração do estado. É importante contextualizar que assim como no governo federal, a prefeitura de Goiânia também faz oposição ao governo do estado, o que pode justificar a possibilidade de que, apenas nesses âmbitos da administração pública, as matérias tenham um teor contestatório, a exemplo desta notícia anunciada em 17 de junho: “Moradores da região noroeste de Goiânia reclamam da construção de um Centro de Triagem de Lixo da Prefeitura. / O temor é de que a obra desvalorize a região e traga problemas de saúde pública//”. Apenas nessas situações é que a sociedade civil e suas reivindicações ganham espaço enquanto sujeitos das matérias. Questões de interesse público como a atuação da Assembleia Legislativa, da Câmara Municipal e do Ministério Público também figuram poucas vezes entre as notícias do jornal. Até mesmo o trabalho de entidades privadas como empresas e seus produtos aparecem mais que os espaços de deliberação dos representantes da sociedade. A Igreja – e nesse caso apenas a Católica – também recebe destaque na programação do jornal. Nesta análise, em proporções ainda maiores, uma vez que o período observado comportou as vésperas e o início da Festa do Divino Pai Eterno, realizada em Trindade, cidade na região metropolitana de Goiânia, que nessa época recebe cerca de 2 milhões e meio de romeiros. Em nenhuma das vezes em que o jornal referiu-se à festa, falou-se em problemas de infra-estrutura ou qualquer outro aspecto negativo que comumente são questionados em outras emissoras e pelo público que participa da festa. Na 2ª semana de análise, a festa católica e a incidência de um feriado prolongado provocaram nos dados uma sazonalidade que em um primeiro momento parece empobrecer a pesquisa. Porém, com um olhar mais atento, percebe-se que tais elementos conferem ao estudo outros pontos de observação e um viés diferenciado. Durante o feriado, 23 a 26 de junho, pouco funcionou da estrutura administrativa do governo estadual, condição que possibilitou a produção de mais matérias sobre comportamento e utilidade pública, assuntos 12 considerados secundários pela linha editorial do jornal, uma vez que são questões discutidas apenas quando não existe uma agenda governamental a ser noticiada. Na soma total, o feriado atenuou os números em relação a uma das hipóteses prementes deste trabalho, a prevalência dos assuntos de governo e, sobretudo, da figura do governador no jornal. Considerando apenas a 1ª semana do conteúdo, percebe-se claramente a preponderância desse tema. Outro fato curioso é que o título e o nome do governador aparecem muito mais vezes que a palavra Governo, o que denota a ênfase sobre a figura do líder sobreposta ao trabalho que realiza. A notícia a seguir demonstra esse fenômeno: “Mãe do vereador Negro Jobs recebe em casa a visita de Marconi Perillo./ O governador foi conhecer a casa nova doada na semana passada pela Agência Goiana de Habitação.//” (JBC 2ª edição, 14/06/2011). De tantos exemplos, infere-se que os critérios de noticiabilidade da emissora não seguem padrões exatamente jornalísticos, mas políticos e até mesmo partidários, o que destoa em relação aos princípios necessários para a efetivação da Comunicação Pública em prol da construção de cidadania. CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim como a intensidade de aceitação da participação popular pode ser usada para aferir o grau de democracia de uma gestão política e suas ações, a participação também serve como critério e referência na comunicação pública. Uma comunicação popular, possibilitada pelo desenvolvimento tecnológico que barateou os processos produtivos e, ainda, pela apropriação política desses meios comunicacionais, mesmo que alheia aos interesses das emissoras comerciais, deve encontrar na CP um espaço para visibilidade, poder político e simbólico, de modo a, em certa medida, interferir na realidade. Assim, vemos que, em contraposição aos convencionais canais de comunicação, aos quais Gramsci listou entre os aparelhos privados de hegemonia5, as ferramentas comunicacionais a serviço da sociedade civil ocupam um papel preponderante na construção de uma contra-hegemonia em prol da cidadania. O Estado, enquanto promotor do serviço de comunicação pública deve pautar-se por uma concepção dialógica, fazendo com que seus veículos de mídia sejam ao mesmo tempo um espaço para prestação de contas junto à população, mas também um canal por meio do qual a comunidade manifesta seus interesses, desejos e insatisfações. 5 Para Gramsci (1995), hegemonia é a direção moral e intelectual de uma sociedade em que se constitui o predomínio de uma visão social de mundo sobre as demais. Dominação essa que se estabelece tanto pela coerção (física e corpórea), como pelo consenso. 13 Por outro lado, a depender do governo em que se insere, pela relação intrínseca com a Comunicação Governamental, a CP corre sérios riscos de ser utilizada apenas com fins eleitoreiros ou tão ideológicos quanto nos veículos convencionais. Esse território dividido entre interesses tão distintos, pode realmente tornar-se política pública voltada para a cidadania, influenciando positivamente a vida social, econômica e política do país. Contudo, para que isso aconteça devem prevalecer como princípios prioritários o interesse público e a participação popular. REFERÊNCIAS ANDI. Mídia e Políticas Públicas de Comunicação. Brasília, 2007. BOBBIO, Norberto. A Sociedade Civil. In: Estado, Governo, Sociedade – por uma teoria geral da política. RJ: Paz e Terra, 1995. BRANDÃO, Elizabeth Pazito. Conceito de Comunicação Pública in: DUARTE, Jorge. (Org.). Comunicação Pública: Estado, Mercado, Sociedade e Interesse Público. São Paulo: Atlas, 2007, p. 1-33. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. CASTELLS, Manuel. Um Estado destituído de poder? In: O Poder da Identidade. SP: Paz e Terra, 1999. DALLARI, Dalmo de Abreu. Um breve histórico dos direitos humanos. 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A revisão de literatura visa fundamentar o estudo de caso sobre o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), que perpassou por mudanças em sua identidade ao longo de mais de 100 anos. Foram realizadas pesquisa documental e análise de dados secundários, para se verificar as percepções de grupos específicos em relação à mudança de identidade e à imagem do IFG. Palavras-chave: Identidade corporativa; Imagem corporativa; Comunicação Corporativa. As empresas, corporações, instituições públicas e privadas e associações da sociedade civil organizada, por si só, já comunicam suas identidades e imagens apenas pelo fato de existirem e oferecerem algum produto ou serviço. Porém, isso não basta para uma organização se destacar dentre as demais. Atribuições e qualidades antes tidas como diferenciais não mais se sustentam, a exemplo: preço atraente, qualidade de produtos/serviços, bom atendimento, etc. Atualmente, novos valores intangíveis se inserem no portfólio das organizações agregando personalidade e competitividade à gestão corporativa. Neste estudo, os atributos referentes à identidade e à imagem das instituições serão tratados como importantes ativos intangíveis, ou seja, conjunto de bens, valores e créditos que se constituem em patrimônio de uma empresa e são capazes de incorporar valor à organização, diferenciá-la e proporcionar associações positivas na mente dos públicos-alvo de cada organização. No artigo, os pressupostos teóricos sobre identidade, imagem, marca e reputação serão apresentados, com propósito de se compreender a formação desses conceitos. 1 Trabalho apresentado no GT 2 – Comunicação, Opinião e Imagem Pública, do VI Seminário Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Cursando Especialização em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás – UFG (2012), e-mail: [email protected] 1 Além disso, os ativos intangíveis de uma organização são analisados neste trabalho a partir do estudo de caso sobre o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). O objetivo é realizar um estudo inicial sobre a identidade da instituição e constatar a imagem e a reputação dessa, que perpassou por mudanças em sua identidade em mais de 100 anos desde sua criação. O interesse pelo objeto de estudo foi motivado, a partir da observação nos trabalhos de comunicação institucional no Instituto Federal de Goiás, pela frequência em se associar à nova identidade do IFG as denominações do passado. Fato esse que é perceptível nos discursos e nas referências de seus públicos-alvo. Para isso, no artigo, foi utilizada a pesquisa documental, por meio de consultas em documentos externos e internos ao IFG, visando relatar esse histórico de mudanças de identidade institucional até a formação do IFG. A revisão sistemática da bibliografia contribuiu para o embasamento teórico sobre identidade, identidade visual, marca, imagem e reputação corporativas. A fundamentação desses conceitos serviu para a análise do caso específico estudado. Para o estudo de caso, foram analisados também dados secundários obtidos por meio de entrevistas da pesquisa share of mind Pop List Goiânia e as respostas do questionário socioeconômico dos vestibulares do IFG, buscando-se constatar se há discrepâncias entre a identidade atual, a imagem do IFG na sociedade goianiense e a importância da reputação na continuidade dos trabalhos do Instituto. Nesse sentido, a partir de um caso específico, este artigo busca discorrer sobre os processos que levam às mudanças na identidade das empresas e, por consequência, a necessidade da gestão da imagem corporativa. Compreendendo essas atribuições enquanto tarefas dos profissionais de Comunicação, para que esses se atenham à importância dos ativos intangíveis na competição dos mercados e na conquista de públicos. O novo paradigma da competitividade, a inovação e os valores se materializam em outros parâmetros até agora insólitos, que são a Identidade, a Cultura, a Comunicação e a Imagem. Quatro bases cuja condução essencial é fazer as empresas distintas no novo contexto que está determinado pela cultura do serviço. E que não só devem produzir bens e resultados, como também e sobretudo, valores. (COSTA, 2005, p.39) As associações que as organizações e marcas produzem nas mentes dos consumidores podem ser categorizadas em tangíveis (hard) ou intangíveis (soft), como aborda PINHO (1996, p.50). As primeiras referem-se às funcionalidades dos produtos e serviços, tais como: preço, performance, tecnologia, etc... Já os atributos intangíveis ou 2 emocionais categorizam-se na área da subjetividade, como: masculinidade, feminilidade, beleza, etc. Os referidos ativos intangíveis trazem consigo o caráter impalpável e a difícil mensuração de seus retornos, por isso, longo foi o percurso de reconhecimento por parte das corporações desses importantes indicadores. As transformações no plano interno ou externo das organizações - como as que conduziram às mudanças até a formação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), que serão abordadas posteriormente neste texto conduziram primeiramente a necessidade de se definir o papel da identidade corporativa junto às organizações. Identidade corporativa Ao se revisitar os conceitos de identidade, imagem e reputação nota-se que são de difícil delineamento e é tênue a linha que os diferenciam, por serem muito próximos e se inter-relacionarem. O conceito de identidade, presente no senso comum, nos remete à representação de personalidade, de identificação e da qualidade de ser. Trazendo esse conceito para a realidade das empresas, instituições públicas e organizações do terceiro setor, a identidade corporativa é entendida como o “eu” organizacional, a essência da instituição, seus valores, seus atributos tangíveis e intangíveis, que se concretizam, principalmente, por meio das marcas. Ao longo do texto, foi adotado o termo identidade corporativa para se referir à identidade de empresas, instituições públicas e organizações do terceiro setor, como explica VILLAFAÑE apud COLNAGO (2011, p.9): “aquele relativo a uma corporação e, por extensão, é aplicável à empresa, ou incluso a uma instituição.” De acordo com Albert e Whetten apud Colnago, identidade corporativa é a essência da organização, segundo a visão dos próprios colaboradores e demais formadores de opinião. É o elemento que diferencia uma instituição da outra, que se sustenta e interliga a história da organização e se mantém estável ao longo do tempo, é “uma questão de auto-reflexão: quem somos enquanto organização” (COLNAGO, 2011, p. 1). Nos estudos sobre identidade e imagem, as organizações são tomadas como entidades que possuem diversas identidades. [identidade percebida, que representa a essência da organização e a distingue de outras; identidade projetada, a forma como a organização se mostra e vende suas qualidades aos diversos públicos; identidade desejada, o que a alta cúpula espera que a organização seja; e identidade aplicada, que, segundo Almeida (2005, p.3), 'consiste nos sinais que são transmitidos 3 conscientemente ou inconscientemente a todos os níveis da organização através do comportamento de seus membros'.] ( COLNAGO, 2011, p. 2) Em Benavides (2001, p. 175) defende-se que só há uma única identidade – a global - , a qual consiste na expressão de todas as realidades de uma organização. Os teóricos, em Benavides (2001, p.174), defendem a ênfase em uma identidade global, que seja capaz de incorporar as três dimensões que podem existir em uma corporação: comercial, corporativa e institucional. Ao se potencializar uma identidade global específica, permiti-se identificar com maior facilidade entre essas três dimensões a mais conhecida ou a menos forte junto aos públicos. Segundo OLINS apud PINHO (1996, p.32), a identidade corporativa relacionase com quatro áreas principais de atividades das corporações: os produtos e serviços; o ambiente; a comunicação da empresa e dos seus produtos e serviços; e o comportamento das pessoas em sua interação no interior da organização e delas com os agentes externos. Uma dessas áreas potencializadas pode melhor comunicar a identidade de uma organização que as demais. A identidade corporativa, por vezes, é confundida com a identidade visual ou marca, isto é, os signos capazes de representar e concretizar a personalidade das empresas e instituições. Essa associação ocorre pelo fato de que é a identidade visual o primeiro elemento diferenciador que permite identificar a empresa, segundo Benavides (2001, p.179). A marca deve ser compreendida além de um nome, símbolo, slogan e logotipo capaz de identificar bens e serviços ou diferenciar as empresas da concorrência. Associando o termo para o significado referente à identidade corporativa, a marca é, especialmente, “uma conexão simbólica e afetiva estabelecida entre uma organização, sua oferta material, intangível e aspiracional e as pessoas para as quais se destina.” (PEREZ, 2004, p.10). Em relação às instituições educacionais, autores afirmam que levantar a história desse tipo de organização, como é proposto no estudo sobre o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), é discutir sobre identidade. Como afirma RIBEIRO (2011, p.321), a identidade global desse tipo de instituição perpassa pelas identidades cultural, educacional e profissional por ela representada. BUENO (2012, p. 12) define que é o elemento identidade que incorpora a si próprio o portfólio de produtos e serviços, a forma de relacionamento com os seus 4 públicos de interesse, a história da organização, sua trajetória e o seu sistema de comunicação. A somatória de todos estes atributos ou virtudes é que confere a uma organização a sua singularidade, diferenciando-a de qualquer outra. Evidentemente, como reflexo desta “ personalidade” emergem a sua imagem ( ou imagens) e sua reputação. ( BUENO, 2012, p. 21) Imagem Corporativa A imagem corporativa pode ser entendida como reflexo da organização, as percepções e associações (mentais e afetivas) que os diferentes públicos projetam em relação a uma organização, o que garante visibilidade. Ela é obtida por meio da identidade da organização, da cultura corporativa e da própria comunicação corporativa. Trata-se de um importante ativo intangível que potencializa a competitividade das organizações em relação aos seus concorrentes. A imagem vai além de um reflexo que transmite o que é a corporação, ela também possui elementos capazes de influenciar os públicos e orientar comportamentos, atitudes e opiniões desses em relação às corporações. Cada indivíduo integrante dos públicos-alvo de uma empresa tem uma imagem mental da mesma, baseada em dados acumulados, em recordações do que a organização publiciza e, principalmente, sobre suas ações. A imagem, algumas vezes, pode estar longe de ser um retrato nítido da realidade da corporação ou uma transmissão da mensagem ideal daquilo que a empresa ou instituição intenta ser, pois essa imagem está sujeita às associações que os agentes externos fazem em relação à marca, numa atuação ativa dos públicos, e passiva da organização. Devido à imagem ser concebida por vários públicos, BUENO (2012, p.22) defende que uma organização, quase sempre, possui várias imagens, porque dependem das “experiências, vivências e informações”, que uma pessoa ou grupos associam à uma organização. Maior análise, planejamento e gerenciamento da identidade e da imagem são necessários, quando o objetivo é compatibilizar a identidade da organização à sua visibilidade com seus públicos, o que diminui os riscos de se ter uma confusão e distorção na imagem externa em relação à sua identidade. Instituto Federal de Goiás (IFG): um estudo de caso 5 A partir do delineamento do referencial teórico exposto anteriormente, o estudo foi conduzido de forma a convalidar os conceitos de referência, aplicando-os em uma análise de caso do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). Neste artigo, os conceitos corroboraram com o objetivo de verificar se realmente as mudanças de identidade ocorridas em mais de 100 anos de existência da instituição estudada e a formação da imagem corporativa foram percebidas e acolhidas por grupos estratégicos do IFG, tal como se espera por parte da Instituição. Procedimentos Metodológicos O estudo de caso caracterizou-se, primeiramente, pelo uso de pesquisa aplicada exploratória documental. Por meio da investigação em documentos internos e externos à instituição. O objetivo com a pesquisa documental foi o de aferir a história, a cultura e a situação da organização em estudo. A pesquisa foi conduzida também a partir da análise de dados secundários obtidos junto aos resultados dos relatórios finais da pesquisa share of mind Pop List Goiânia – Itens de Consumo Genérico 3, realizadas nos anos de 2009, 2010 e 2011, com os consumidores de Goiânia. O uso dessa pesquisa teve por intuito aferir o grau de fixação na mente dos consumidores do nome IFG no público de Goiânia, onde está situada a unidade mais antiga da Instituição, o atual Câmpus Goiânia. Para este artigo, foi realizado também o levantamento de dados extraídos do questionário socioeconômico4 preenchido pelos candidatos que se inscreveram nos vestibulares oferecidos pelo IFG desde o segundo semestre de 2008, quando foram disponibilizadas vagas para os primeiros cursos superiores dos primeiros recém-criados campi de Itumbiara e Uruaçu do IFG. Dentre as questões presentes no questionário foram aproveitados os resultados referentes às questões 17, 21 e 23, que são respectivamente: “ Qual o motivo que o 3 A pesquisa Pop List Goiânia é um produto executado pelo Instituto Verus, com exclusividade para o jornal O Popular. As pesquisas analisadas foram realizadas em Goiânia nos anos de 2009, 2010 e 2011, com grupos estratificados, compostos pela população adulta (18 anos ou mais) e residente na área urbana de Goiânia. O Pop List Goiânia utiliza-se da técnica de entrevistas pessoais e domiciliares com a aplicação de questionários estruturados com perguntas abertas que admitem uma única resposta. O resultado do trabalho, em dados percentuais, fornece o share of mind das cinco marcas mais lembradas pelo público goianiense. 4 As respostas do questionário socioeconômico, cujo o preenchimento eletrônico é obrigatório para todos os inscritos no vestibular, foram colhidas de 2008/2 até o vestibular do segundo semestre de 2012, com a participação de candidatos inscritos nos cursos superiores ofertados em todos os campi do IFG ( Aparecida de Goiânia, Anápolis, Cidade de Goiás, Goiânia, Formosa, Inhumas, Itumbiara, Luziânia, Jataí e Uruaçu). As respostas foram tabuladas quantitativamente, a partir do fornecimento dos dados pelo Centro de Seleção do IFG e pela Gerência de Tecnologia de Informação (GTI) do IFG. 6 levou a escolher um curso no IFG”?, “ Qual o meio de comunicação que você mais utiliza para se manter informado?” e “ Como você tomou conhecimento do processo seletivo do IFG?”. Ao todo, foram tabuladas respostas de 38.864 candidatos que responderam ao questionário socioeconômico do vestibular do IFG, com a opção de escolher apenas uma alternativa. A escolha pelas seguintes questões especificadas acima teve o propósito de identificar o interesse do público ingressante que concorre a vagas nos cursos superiores da Instituição - modalidade de ensino essa, cuja oferta é recente na história da Instituição. História de Transformações A história do Instituto Federal de Goiás (IFG) teve origem em 23 de setembro de 1909, quando, por meio do Decreto n.º 7.566, o então presidente Nilo Peçanha criou 19 Escolas de Aprendizes Artífices, uma em cada Estado do País. Em Goiás, a Escola situou-se na antiga capital do Estado, Vila Boa, atualmente cidade de Goiás. Na época, o objetivo era capacitar os alunos em cursos e oficinas de forjas e serralheria, sapataria, alfaiataria, marcenaria e empalhação, selaria e correaria. Em 1942, com a construção da capital Goiânia, a escola foi transferida para a nova cidade, situando-se na: Rua 75, nº 46, setor Central, Goiânia/GO, espaço esse onde ainda funciona o Câmpus Goiânia do IFG. Neste mesmo ano, a Instituição recebeu então o nome de Escola Técnica de Goiânia, com a criação de cursos técnicos na área industrial integrados ao ensino médio. Com a Lei n.º 3.552, em 1959, a instituição alcançou a condição de autarquia federal, recebendo a denominação de Escola Técnica Federal de Goiás, em agosto de 1965. Por meio do decreto sem número, de 22 de março de 1999, a Escola Técnica Federal de Goiás foi transformada em Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (Cefet-GO), uma instituição federal de ensino pública e gratuita, especializada na oferta de educação técnica e tecnológica nos diferentes níveis e modalidades de ensino. Em 2007, o governo federal lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) que, dentre as ações, propôs a reorganização das instituições da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. O modelo proposto foi o dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET)5. 5 Informações obtidas no artigo: ORTIGARA, Claudino. Mecanismos de Regulação e as Políticas Para a Educação Profissional nos Governos FHC e Lula. In: CARVALHO, Maria Lucia Mendes de (org.) Cultura, Saberes e 7 O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) foi instituído a partir da promulgação da Lei Federal nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que transformou os Centros Federais de Educação Tecnológica – Cefets - em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. O IFG está hoje presente em 10 municípios goianos com os campi de Aparecida de Goiânia, Anápolis, Cidade de Goiás, Formosa, Goiânia, Inhumas, Itumbiara, Jataí, Luziânia e Uruaçu, e mais a Reitoria, situada em Goiânia. Com o histórico pode-se notar que, ao longo dos anos, a Instituição passou por importantes mudanças não somente de denominação, mas de localização e de atuação na oferta do ensino. Acompanhando essas transformações houve também modificações na identidade visual da Instituição, com a adoção de novas logomarcas. Para isso, um programa de identidade visual foi concebido para a nova marca dos Institutos Federais, pelo Ministério da Educação, cujo manual de aplicação da marca foi recentemente atualizado em fevereiro de 20126. Na criação dos Institutos Federais de Educação no Brasil7, apesar de ter sido aproveitado o aparato estrutural das instituições originárias, foram transformadas as representações pioneiras referentes à institucionalidade, para que se pudesse construir uma nova cultura educacional. Compreende-se aqui a institucionalidade, como uma dimensão simbólica que proporciona o relacionamento de uma empresa ou instituição com os diversos públicos internos e, principalmente, externos, incorporando no papel dessa organizações um sentido social, como define Benavides ( 2001, p. 185). A construção da história de uma instituição educativa tem como um de seus objetivos conferir uma identidade cultural e educacional, específica daquele grupo. Por isso ganham importância a interpretação do itinerário histórico, e os da produção de seu próprio modelo educacional. A partir dessas considerações, pode-se perceber que a história das instituições educativas busca recuperar a identidade ímpar para cada instituição, considerando seu modelo educacional, sua estrutura, seus sujeitos e sua forma de organização. (RIBEIRO, 2011, p.333) A identidade institucional pioneira - que tinha declaradamente o caráter assistencialista a partir da criação das Escolas de Aprendizes e Artífices - foi Práticas: Memórias e História da Educação Profissional. São Paulo: Centro Paula Souza, 2011. 6 A marca atual foi construída sobre a ideia do homem, integrado e funcional, utilizando-se de quadrados, que se encaixam como numa rede e inclui o homem e seu pensamento como ideia central e objeto de educação, formação e capacitação. A leitura icônica “IF” é expressa e percebida na logomarca, bem como acompanhada pelo caráter linguístico, com o nome completo da instituição e o caráter cromático - as cores corporativas - que são caracterizadas pelo uso do verde, vermelho e preto, presentes na logomarca. Informações do Manual de Aplicação da Marca dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia ( MEC/SETEC, 2012). 7 Para mais informações sobre os Instituto Federais: MEC/SETEC. Concepções e Diretrizes dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia – Um Novo Modelo em Educação Profissional e Tecnológica. Livreto, 2010. Disponível em:http://portal.mec.gov.br/index.phpoption=com_content&view=article&id=12503&Itemid=841 >. 8 transformada, para que se concebesse uma nova dimensão simbólica institucional. Dimensão essa resultado de um processo que o Ministério da Educação ( MEC/SETEC, 2010, p.19-20) qualifica como um “ movimento endógeno e nem tanto traçado por política de governo”. No caso do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), essa nova dimensão simbólica institucional também está presente em suas diretrizes, por meio da reafirmação de seu papel social e por uma enfâse na construção social dialógica entre a Instituição e a sociedade (IFG, PDI, 2011, p.10). Percepções sobre o IFG Na análise inicial sobre o IFG, notou-se a necessidade de se delimitar o público de interesse na pesquisa, pois devido à sua dimensão institucional são vastos os grupos que compõem o público-alvo ( interno e externo), sendo: alunos, pais ou responsáveis pelos alunos, estudantes, servidores docentes e técnico-administrativos, fornecedores, imprensa, órgãos públicos municipais, estadual e federal. Ao se propor verificar a imagem do IFG, o ideal é que se realize o que BUENO (2012, p.15) discorre como sendo tarefa da auditoria de imagem. Para que a auditoria de imagem se constitua efetivamente em um instrumento ou processo estratégico é indispensável que ela tenha as seguintes características: a) envolver todos os stakeholders; b) ser realizada sistemática e permanentemente e incluir a avaliação também dos concorrentes da organização; c) valer-se de metodologias adequadas e d) estar efetivamente incorporada ao processo de gestão da comunicação que, por sua vez, deve estar vinculada umbilicalmente ao processo de gestão da organização como um todo. ( BUENO, 2012, p.15) Consideradas as limitações deste presente estudo em se realizar uma auditoria de imagem como propõe BUENO (2012), a pesquisa apresentada teve por objetivo realizar um levantamento inicial junto ao público goianiense a respeito da imagem da instituição e constatar a memorização da nova identidade na mente do público de Goiânia. O aproveitamento das pesquisas share of mind Pop List Goiânia tem suas limitações, visto que se trata de um produto editorial que oferece informações de mercado aos leitores do jornal O Popular e não teve por objetivo ser exclusiva ao IFG, objeto deste estudo. Ao analisar os dados do Pop List Goiânia 2009 – Itens de Consumo Genérico, o antigo Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (Cefet) - atual IFG- aparece 9 na categoria “Curso Profissionalizante”. Na pesquisa da edição de 2009, o Cefet aparece com 3% no ranking entre as cinco instituições de ensino mais lembradas na categoria curso profissionalizante em Goiânia. O nome aparece atrás do Senai, Microlins, Senac e empata com o Cebrac. Para a pesquisa, foram realizadas 600 entrevistas, em Goiânia, no período de 8 a 15 de julho de 2009, com margem de erro de +-4,1%, pelo Instituto Verus. O mesmo Cefet, que então na época já era IFG e oferecia cursos superiores tecnológicos, não foi encontrado em outras categorias da pesquisa ligadas à área de educação (Universidade e Instituição de Curso de Pós-Graduação), em 2009, nos resultados finais das cinco primeiras marcas lembradas na outra etapa pesquisa, que consiste no Pop List Goiânia 2009 – Itens de Consumo AB8. Na edição de 2010, o Cefet aparece no quinto lugar entre as cinco instituições mais lembradas na categoria “Curso Profissionalizante” no Pop List Goiânia 2010 Itens de Consumo Genérico, com 3,7% porcentuais, atrás do Senai, Senac, Microlins e Sebrae. Nessa pesquisa, foram entrevistados 600 consumidores adultos de Goiânia. Já nas categorias “Universidade e Instituição de Curso Pós-Graduação” do Pop List Goiânia – Itens de Consumo AB 2010, há a menção do nome IFG/Cefet e Cefet/ IFG, com coexistência das marcas, porém, a instituição não consta entre as cinco primeiras organizações de ensino superior, ocupando o 10º lugar (0,8% ) e o 14º lugar (1%), nas respectivas categorias. As pesquisas foram realizadas por meio de 400 entrevistas com consumidores das classes A e B, de 8 a 18 de julho de 2010, em Goiânia, com margem de erro de +- 5%. Por fim, na edição mais recente de 2011 do Pop List Goiânia 2011 – Itens de Consumo Genérico, o Cefet mais uma vez é lembrado entre as cinco instituições na categoria “ Curso Profissionalizante” em Goiânia, com 3%, ocupando o 5º lugar atrás de Senai, Senac, Microlins e Sebrae. Foram realizadas 602 entrevistas de 28 de julho a 1º de agosto de 2011, com margem de erro de +-4,1%. Nas categorias “Universidade e Instituição de Curso de Pós-Graduação” do Pop List Goiânia 2011 – Itens de Consumo AB, a instituição não aparece entre as cinco mais 8 O Pop List – Itens de Consumo AB é uma das três etapas ( Pop List AB, Pop List Genérico e Pop List Rural) da pesquisa, cujo universo delimita-se aos consumidores de Goiânia enquadrados nas classes econômicas A e B. Já o Pop List – Itens de Consumo Genérico tem como universo de pesquisa os consumidores adultos de todas as classes sociais de Goiânia. Neste artigo, foram aproveitados os resultados finais tanto do Pop List AB quanto do Pop List Genérico dos anos de 2009, 2010 e 2011, anos esses em que já havia sido criado o IFG. 10 lembradas em ambas categorias. E ainda é mencionada como IFG/Cefet no 10º lugar (0,5%). A instituição não é lembrada na categoria “Instituição de Curso de PósGraduação” na edição de 2011 do Pop List 2011 – Itens de Consumo AB. Nesta etapa do Pop List foram entrevistadas 400 pessoas das classes econômicas A e B de Goiânia, entre os dias 16 a 21 de julho de 2011, com margem de erro de +-5%. Outra pesquisa que também foi considerada na busca de se conhecer a imagem do IFG perante o seu público foi o questionário socioeconômico preenchido pelos candidatos que se inscreveram nos vestibulares oferecidos pelo IFG. Os dados foram selecionados desde o segundo semestre de 2008 até o vestibular de meio de ano de 2012. A seleção a partir do segundo semestre de 2008 foi escolhida, pois trata-se do ano em que foram disponibilizadas vagas para os primeiros cursos superiores dos recémcriados campi de Itumbiara e Uruaçu do IFG, até os dados mais recentes de 2012/2, que integram os vestibulandos aos cursos superiores dos dez campi do IFG. Foram sistematizadas respostas de 38.864 candidatos que preencheram eletronicamente ao questionário socioeconômico durante a inscrição no vestibular do IFG, no período de 2008/2 até 2012/2. Foram considerados os resultados das questões que pudessem indicar a motivação desse público em se inscrever em um curso superior no IFG – que não são tão tradicionais quanto a oferta de cursos técnicos na instituição-, bem como os meios que os vestibulandos utilizam para se informarem da seleção. O objetivo foi o de obter dados quantitativos que agregassem à pesquisa uma análise sobre a percepção desse público ao escolher um curso superior no IFG. E também indicasse quais os meios de informação preferenciais utilizados por esses candidatos. A respeito do que motivou os candidatos a fazerem um curso superior no IFG pergunta referente à questão 17 do questionário-, a maioria, um total de 80,9% (31.446), afirmou que foi buscando qualificação profissional, seguidos por 13,8% motivados por ser escola pública, 2,9% visam à melhoria salarial, 1,4% tem em vista o vestibular e 0,8% devido à exigência do serviço. Outro dado extraído foi sobre como os candidatos tomaram conhecimento sobre o vestibular do IFG. A maioria, ao todo 39,1% ( 15.202), respondeu que se informou por meio de amigos, vizinhos e parentes. Em segundo lugar, com 36,2% , os candidatos responderam que foi por meio de jornais/internet; 10,7% desses afirmaram que foi 11 pelas escolas de ensino médio/cursinho; 6,7% responderam que foi por meio de materiais gráficos (cartazes/panfletos) e 5,75% souberam do processo seletivo por meio da televisão/rádio. Foram analisadas também as respostas referentes à qual meio de comunicação os candidatos mais utilizam para se informarem. Em primeiro lugar, com 47,3% (18.387), aparece a Internet. Na sequência, os candidatos responderam que: 38,4% pela televisão, 10,4% pelos jornal escrito/revista, 2,1% por meio do rádio e 1,6% responderam que se informam por meio de outros veículos. A partir dos dados apresentados, pode-se notar que mesmo após a transformação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (Cefet – GO) em Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), em dezembro de 2008, nos anos seguintes - 2009, 2010 e 2011 - o nome Cefet continuou aparecendo na pesquisa entre as cinco instituições mais lembradas que ofertam cursos profissionalizantes em Goiânia, de acordo com a pesquisa Pop List Goiânia – Itens de Consumo Genérico. Nas categorias ligadas à área de educação superior ( Universidade e Instituição de Curso de Pós-Graduação), a instituição aparece nas edições dos anos de 2010 e 2011 com suas duas marcas coexistindo, ora IFG/Cefet ora Cefet/IFG, porém, não ocupando os cinco primeiros lugares do ranking de marcas mais lembradas junto ao público goianiense na pesquisa Pop List Goiânia – Itens de Consumo AB. Destaca-se que na pesquisa Pop List as respostas são espontâneas, visto que as perguntas fundamentam-se: “Qual o primeiro nome lhe vêm a cabeça quando se fala...?”. Além disso, não são dadas alternativas de respostas aos entrevistados. Os resultados demonstram o desconhecimento da população goianiense sobre a mudança de identidade e de atuação no ensino do Cefet-GO para IFG. E até demonstra uma leitura equivocada da identidade do IFG na mente do público, que ora se refere ao Cefet/IFG e ao IFG/Cefet, revelando a necessidade de se mencionar a identidade antiga para se fazer compreender e comunicar a nova denominação. A instituição aparece entre as cinco mais lembradas no quesito curso profissionalizante. Mas, nas categorias cursos superiores e pós-graduação, não aparece entre os cinco primeiros lugares do ranking de marcas mais lembradas na pesquisa. Os dados refletem também valores ligados à imagem e à reputação do antigo Cefet – GO, pois mesmo não existindo mais, a instituição continua sendo lembrada pela população 12 de Goiânia como ofertante de curso profissional. Além disso, a partir de 2009 enquanto IFG, a instituição passou a oferecer cursos técnicos, superiores tecnológicos, bacharelados e licenciaturas e, mais recente, as pós-graduações. Os resultados do questionário socioeconômico do vestibular do IFG apontam que os candidatos inscritos buscam, em primeiro lugar, a qualificação profissional ao concorrem a uma vaga nos cursos superiores. Mais uma vez esse público associa seus anseios e expectativas a ideia de uma educação com foco no mundo do trabalho. Resposta essa que se alinha à contínua visibilidade que possui o antigo Cefet-GO na categoria curso profissionalizante, o que foi demonstrado pela pesquisa Pop List. Dado esse importante e que deve ser considerado nos trabalhos de comunicação corporativa, pois indica um importante ativo intangível relacionado à imagem institucional. Nos estudos, foi identificado que a maioria, 39,1% dos candidatos, obteve conhecimento sobre o processo seletivo do IFG por meio de amigos, vizinhos ou parentes, e a segunda colocação, foi por meio da Internet. Resultado que consolida a importância da reputação das antigas identidades da instituição - Escola Técnica Federal de Goiás (IFG) e Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (Cefet-GO) - e valoriza o bom relacionamento com os públicos, como forma de difundir a identidade do IFG. Ao contrário do fracasso registrado no ensino profissionalizante de segundo grau, as Escolas Técnicas Federais gozavam de grande prestígio junto ao empresariado. De escolas antes destinadas aos desvalidos e aos desprovidos de fortuna no tempo em que eram Escolas de Aprendizes e Artífices, essas instituições se converteram em Escolas Técnicas, nas quais a grande parcela dos técnicos por elas formados, no contexto dos anos 60 e 70, eram recrutados, quase que sem restrições, pelas grandes empresas privadas ou estatais. ( SANTOS; Jailson Alves do apud SALES; OLIVEIRA, 2011, p.176) A reputação, implícita na pesquisa, deve ser compreendida como uma representação mais consolidada, como define BUENO (2012), resultado do relacionamento ao longo de um tempo entre a organização e seus públicos, o que gera a estabilidade imprescindível para a imagem institucional e a continuidade das ações da organização. Principalmente, para o Câmpus Goiânia do IFG, que se mantém até hoje no mesmo edifício desde 1942, a associação com o passado é forte. A reputação e o prestígio, frutos das identidades anteriores, precisam ser entendidos, neste caso, como relevantes ativos intangíveis. 13 Considerações finais O desenvolvimento de pesquisas e uma maior análise sobre os patrimônios intangíveis do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) são necessários, e os estudos não se encerram neste artigo. Reforça-se ainda que é preciso realizar uma auditoria de imagem na instituição com todos os seus públicos, obtendo, desse modo, resultados mais aprofundados sobre as percepções desses em relação ao Instituto. Como proposto no estudo, este primeiro levantamento sobre a identidade e a imagem do IFG referenda que muito ainda há que ser feito em relação ao trabalho de comunicação corporativa, para que seja consolidada a nova identidade institucional junto ao seus públicos estratégicos. Porque, como foi constatado, há um “gap” entre a imagem pretendida e a imagem real do IFG. As pesquisas com dados secundários serviram como importantes indicadores para se conhecer parte de um dos públicos-alvo do IFG, especialmente, sobre os veículos que esses candidatos utilizam para se informarem, bem como revela o meio pelo qual a maioria toma conhecimento sobre os vestibulares do Instituto. Resultados esses que colaboram para a elaboração de um planejamento estratégico de comunicação institucional, investindo-se em publicidade em determinados veículos de comunicação e na divulgação pela Internet, bem como mantendo o bom relacionamento com os públicos e enfatizando nas mensagens divulgadas a reputação da instituição. A existência da instituição ao longo de 100 anos e as diversas transformações no espaço interno e externo resultaram em concepções de identidades conduzidas ao acaso e na ausência de reflexão sobre a maneira como essas marcas foram apreendidas pelos públicos. Compete, então, à pioneira equipe de comunicadores - servidores efetivados no IFG desde 2008 - o desafio de propor e implantar soluções para a gestão da identidade e imagem no Instituto. Para a continuidade do papel social do IFG e o bom desempenho das atividades de comunicação institucional é fundamental que a instituição saiba para que veio e para onde deve seguir. Por fim, ressalta-se com este estudo que “imagem é realidade, e enquanto não conhecermos nossa própria imagem seremos incapazes de comunicar e administrar”9 ( DAVI BERNSTEIN apud BENAVIDES 2001, p.203). 9 tradução própria 14 Referências bibliográficas BENAVIDES, Juan. et. al. Dirección de Comunicación Empresarial e Institucional. Barcelona. Ediciones Gestión 2000, 2001. BUENO,Wilson da Costa. Auditoria de imagem das organizações: teoria e prática. São Paulo: All Print Editora: Mojoara, 2012. COLNAGO, Camila Krohling. Da Identidade Corporativa à Imagem Institucional: um Desafio Organizacional. 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Este artigo, portanto, analisa como a Prefeitura Municipal de Catalão, em Goiás, usufrui desse importante benefício em favor da mídia e da própria população. Objetiva, ainda, identificar as principais características das ferramentas adotadas pelo poder executivo e as atuais demandas do órgão. A (in) competência da Comunicação Integrada e o processo de estratégia e planejamento da assessoria de imprensa. Além disso, destaca os meios de comunicação de massa do município e como, de fato, a internet contribui para que a Prefeitura mantenha diálogo íntegro com os públicos interno e externo. PALAVRAS-CHAVE: Internet; Assessoria de Comunicação; Prefeitura; Públicos. Introdução A economia, gestão e administração são peças importantes para o mundo dos negócios. Embora isso seja comum, há alguns anos o conceito e o fluxograma de uma organização tem sofrido mudanças. E para melhor. Na pós-modernidade, praticamente é inaceitável que empresas, sejam públicas ou privadas, ignorem a Assessoria de Comunicação. Apesar disso, é fato que algumas instituições não adotam essa metodologia de trabalho e, paralelamente, não respeitam o consumidor ou se esquivam de manter um diálogo imparcial com a mídia. Contudo, é imprescindível ressaltar a importância dessa área para o mercado e às relações de trabalho, especialmente quando se tratam de questões públicas. Conforme Tuzzo (2011), “[...] os Assessores de Comunicação buscam criar e assegurar reações confiantes ou formas de credibilidade entre uma organização social e os públicos com 1 Trabalho apresentado no GT 2 – Comunicação, Opinião e Imagem Pública, do VI Seminário de Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Jornalista e pós-graduando em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Universidade Federal de Goiás (UFG), email: [email protected]. 3 Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Especialização em Assessoria de Comunicação e Marketing da UFG, email: [email protected]. 1 os quais se relaciona”. Ainda segundo a autora, é fundamental que a assessoria maximize os resultados positivos alcançados por uma determinada organização. Antes de prosseguirmos, cabe destacar que a Assessoria de Comunicação é subdividida em três áreas: Assessoria de Imprensa – cujo trabalho é estritamente jornalístico; Relações Públicas – a relação da instituição com os públicos de interesse; e Publicidade e Propaganda (P&P) – responsável pelo trabalho de divulgação em campanhas comerciais. Deste modo, a comunicação é uma ferramenta ímpar no ambiente corporativo e detém a capacidade de relacionar-se com toda a sociedade. É eficaz sua utilização em organizações de pequeno, médio e grande porte, ligadas ao primeiro, segundo ou terceiro setor. Uma assessoria de comunicação tem como tarefa orientar a empresa sobre o que convém e o que não convém informar, tendo por princípio dizer sempre a verdade. Trata-se de uma especialização profissional que conjuga uma visão global da organização e um conhecimento adequado dos veículos (BAHIA, 1995, p. 35). Considerando que a obra de Juarez Bahia foi publicada há 17 anos e que a assessoria de imprensa, especificamente, surgiu nos Estados Unidos há mais de um século - graças ao pioneirismo do jornalista Ivy Lee, percebe-se que não é de hoje que se discute a comunicação nas organizações. A preocupação com a imagem é um trabalho que - apesar de pouco valorizado/conhecido pelas pequenas empresas do segundo setor - requer disciplina e interação com a organização e os públicos-alvo. A comunicação, nesse caso a imprensa, é um dos fatores determinantes para erguer uma organização; outrora, seu poder de destruição é bastante superior ao de consolidação da boa imagem, como defende Mafei (2007). Concomitantemente, o bom trabalho da assessoria é resultado de práticas mercadológicas ousadas, de forma lúcida e com os devidos princípios éticos. Para Elisa Kopplin e Luiz Ferraretto (2009), a função de assessoria de imprensa, nos últimos anos, passou por algumas mudanças relevantes. O simples fato de enviar release se tornou irrisório; a atualidade exige um assessor capaz de mediar as informações e satisfazer tanto o assessorado como também a mídia, seja a tevê, o impresso, rádio ou os portais de notícias. 2 1. A contribuição da internet Num processo acelerado, a internet é a mais nova ferramenta de comunicação, capaz de dinamizar a informação e levá-la com rapidez aos domicílios, onde quer que seja. Os portais de notícias, bem como as mídias tradicionais, lucram com a notoriedade propiciada pela convergência. A Assessoria de Comunicação e o Marketing não devem ficar de fora, já que a internet tem contribuído muito com o desempenho do setor e proporcionado melhores resultados para as empresas e seus consumidores, que se transformam de meros espectadores em formadores de opinião, incumbidos de fiscalizar as organizações. Com quase 194 milhões de habitantes4 e pouco mais de 83 milhões de usuários conectados à internet (em casa, no trabalho, lan houses, escolas e outros locais)5, é evidente que nem 45% da população consegue acompanhar o que se passa pela rede. No entanto, as assessorias de comunicação utilizam importantes ferramentas e desenvolvem seu trabalho na Web, mesmo que para um público restrito e privilegiado. As empresas públicas e privadas devem instruir e acima de tudo utilizar bons instrumentos para que a comunicação seja eficiente. Como destaca Gelson Souza em ‘A evolução da assessoria de imprensa na internet’, é essencial que as organizações não fiquem de fora do mundo virtual, principalmente aquelas que precisam manter um contato intenso com o público, como é o caso de uma prefeitura, por exemplo. Para ele, a interatividade é uma das maiores características desta mídia. A internet estabeleceu então um novo paradigma comunicacional, rompendo a barreira do tempo e do espaço (instantaneidade), alterando o ritmo dos relacionamentos (interatividade), criando novos espaços de convivência (fóruns, chats, comunidades virtuais), modificando hábitos de consumo (ecommerce) e, principalmente, otimizando a circulação de informações (SOUZA FILHO, 2006). O universo digital amplia horizontes e permite que as assessorias trabalhem ainda melhor seus assessorados, principalmente nas redes sociais, como o Facebook e Twitter. Em suma, a conexão diminui relativamente os custos e aumenta a produtividade. As informações do cliente e/ou eventos de uma determinada empresa, 4 Dados do IBGE (2012). Disponível em: <ftp.ibge.gov.br/Estimativas_Projecoes_Populacao/Estimativas_2012/estimativa_2012_municipios.pdf>. Acesso em: 22/10/2012. 5 Informações do IBOPE Nielsen Online divulgadas pelo Portal IDG Now! Disponível em: <http://idgnow.uol.com.br/internet/2012/08/29/brasil-tem-83-4-milhoes-de-pessoas-com-acesso-internet-afirmaibope/>. Acesso em: 22/10/2012. 3 agora, não necessariamente precisam ser comunicados por releases. O mundo digital permite que os dados sejam enviados para várias redações em poucos minutos. Temos que admitir que a instantaneidade trouxe muitos benefícios, mas também é notório que alguns veículos de comunicação – pela facilidade da Web – divulgam notícias sem fundamento ou praticamente sem apuração dos fatos, tudo em favor da audiência imediata. 1.1 Estudo de caso Que uma assessoria de comunicação precisa ser eficiente não restam dúvidas. E quando tratamos de serviço público, então, é dever da Comunicação gerenciar de forma proativa as atividades, com respaldo sempre ao cidadão, pagador de impostos e financiador direto dos benefícios. Para este artigo, foi feita uma pesquisa no intuito de avaliar o trabalho de comunicação na internet desenvolvido pela Prefeitura Municipal de Catalão (GO). Os dados e informações foram recolhidos no período de 26 a 30 de março deste ano, através de análise das ferramentas utilizadas pela Secretaria de Comunicação e entrevistas qualitativas com os gestores responsáveis pela área. Atualmente administrada pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), a Prefeitura conta com os departamentos de Assessoria de Imprensa (Secretaria de Comunicação), Relações Públicas (Cerimonial) e Publicidade e Propaganda - cuja responsabilidade é de uma agência de Goiânia, vencedora de certame licitatório. Portanto, a apreciação crítica tem como base o processo comunicacional digital da organização pública municipal e a relação com a mídia e os munícipes de Catalão. O trabalho de informar o cidadão e de disponibilizar serviços através da rede. 2. A mídia em Catalão Catalão está localizada no sudeste de Goiás, a 250 km de Goiânia. Segundo estimativas do IBGE, sua população é superior a 90 mil habitantes e o PIB (Produto Interno Bruto) gira em torno de R$ 4,3 bilhões6, sendo a quinta economia do Estado. É considerada sede do município, pois os distritos de Pires Belo e Santo Antônio do Rio Verde (regiões com menos de cinco mil habitantes) também integram sua circunscrição. 6 PIB recenseado em 2008. 4 O desenvolvimento célere proporciona uma economia pujante, e a cidade é referência principalmente no ramo agropecuário/industrial. Cresce vertiginosamente e é fonte para a instalação de grandes empresas, como Mitsubishi, Vale Fertilizantes, John Deere e Anglo American. Automaticamente, há um reflexo na economia, especialmente na geração de emprego e renda, e a alta arrecadação municipal favorece melhorias no serviço público. Na comunicação não é diferente. O município goza de muitos veículos, principalmente impressos. Ao todo, são praticamente 20 jornais, sendo quatro diários e três semanais, além de duas revistas distribuídas mensalmente. O restante dos impressos circula uma vez por mês, no máximo. Sem contar, é claro, os veículos ‘fantasmas’ que rezam por interesses estritamente políticos. A cidade também conta com a TV Pirapitinga, emissora da Organização Jaime Câmara - afiliada à Rede Globo. Em duas edições diárias, o noticiário local divulga os principais acontecimentos do município e de regiões vizinhas, como Ipameri, Cumari, Goiandira, Nova Aurora, Davinópolis, Urutaí e outras. As cinco emissoras de rádio (somente uma AM) e os dois portais de notícias também são fontes de informação. A maioria dos autores aqui estudados defende que a internet - ao contrário de outros meios de comunicação - dá mais espaço ao cidadão, oferecendo a oportunidade para que se manifeste a respeito de um determinado tema. O tempo e/ou espaço nos jornais, rádios e nas tevês é bastante disputado. Logo, a internet é aliada desses veículos na convergência de mídia e democratiza o conhecimento em ciência e tecnologia aos indivíduos que têm acesso à rede. A população, a partir desse momento, ganha voz ativa e argumenta em blogs, sites, fóruns e redes sociais. Contudo, Catalão ainda carece de portais de conteúdo e ainda mais quando se fala em assessoria de comunicação. Não existe na cidade uma empresa especializada que trate o assunto. Obviamente, há organizações de marketing que prestam serviços exclusivos de publicidade e propaganda. Mas assessoria de imprensa e relações públicas, convenhamos, só existem nas grandes empresas e geralmente são administradas por agências de cidades vizinhas, como Uberlândia-MG, ou por profissionais de outras áreas que se arriscam no meio comunicacional. Na Prefeitura de Catalão, o trabalho de informação pela internet alimenta os variados veículos de comunicação, desde o impresso aos sites de notícias. Através de 5 ferramentas primordiais, como veremos a seguir, a Comunicação consegue atingir a mídia catalana e destacar as ações do poder executivo. O trabalho rotineiro permite um diálogo aberto com a imprensa e, na maioria das vezes, o executivo municipal aparece no noticiário devido às boas iniciativas governamentais. Ainda que o empenho seja intenso, é provável analisar falhas que comprometem diretamente a imagem do atual prefeito, como estudaremos no capítulo 4. 3. Estratégias da Comunicação Online Há alguns anos se discute o papel da internet como fonte confiável de informação e, sobretudo, seu papel junto à comunidade. O certo é que ela continua colaborando com parte da sociedade, conectada via cabo, rádio ou pela tecnologia 3G. As Assessorias de Comunicação dinâmicas já se adequaram à realidade e conseguem desempenhar um papel excepcional do cliente na mídia. A facilidade de circulação de notícias online torna imensurável a quantidade de usuários que têm acesso a um canal da empresa. A transição da Web 1.0 para a 2.0 trouxe recursos criativos, como pondera Briggs (2007). A interatividade adquire espaço considerável e para o mercado jornalístico a contribuição é nítida. Assim, é preciso utilizar boas ferramentas para a divulgação da imagem, principalmente se tratando de uma figura política, cuja personalidade está sujeita à avaliação pública. Nesse âmbito, é constante a participação da Prefeitura de Catalão na internet, com iniciativas louváveis para o fortalecimento da imagem administrativa do prefeito. 3.1 Intranet Para Chinem (2003, p. 59), a intranet tem como objetivo promover a comunicação interna dentro de uma empresa: “Redes privadas de empresas, acessadas por seus funcionários onde quer que se encontrem dentro da organização, as intranets conectam entre si filiais, departamentos e até mesmo unidades industriais isoladas”. Embora alguns autores considerem esse serviço exclusivo das Relações Públicas, na Prefeitura a responsabilidade é da Secretaria de Comunicação - responsável, inclusive, por praticamente todas as iniciativas na internet. Nem sempre atualizada - devido a questões de pessoal, como ainda vamos tratar neste artigo, a intranet disponibiliza notícias, acesso ao webmail para 6 funcionários/colaboradores, aniversariantes do dia, busca por ramais, sites úteis e contato direto com o departamento de Comunicação - caso haja problemas com navegação ou até sugestões. Embora simples e mesmo sem muita atenção, cumpre um papel relevante ao manter o funcionalismo público a par dos eventos. 3.2 Website O Website é um dos principais instrumentos da Assessoria de Comunicação: disponibiliza conteúdo gratuito aos internautas e é um dos canais mais recíprocos. Em 2009, o IBGE divulgou uma pesquisa apontando que 40% das prefeituras ainda não tinham um site oficial, apesar de que 87% das cidades mantinham ações de inclusão digital7. Mesmo sem estudos mais recentes, é possível afirmar que esse número não mudou tanto. Em muitas cidades, o Executivo Municipal não se familiarizou com a tecnologia e continua a esconder da população informações que, por lei, deveriam ser amplamente divulgadas. “Através da internet, por exemplo, o público exerce importante papel na fiscalização e controle dos produtos e serviços que consome” (SOUZA, 2006). Nos últimos quatro anos, a Prefeitura de Catalão elegeu a internet como ferramenta estratégica de comunicação. O site, anteriormente muito pouco visitado, passou por adaptações e recebeu um layout moderno, com notícias e contatos de todos os departamentos. O portal (www.catalao.go.gov.br) disponibiliza acesso aos serviços online, como editais e licitações, leis municipais e prestação de contas, além de outros itens essenciais para o cidadão. A Assessoria de Imprensa utiliza o canal para divulgar as atividades do governo municipal, como entrega de benefícios à comunidade, e ainda agiliza para que a mídia catalana tenha acesso às informações financeiras, como recebimento de verbas federais e o controle de aplicação de recursos municipais e estaduais, através do Portal da Transparência8. Na página online da Prefeitura, a imprensa acessa a galeria de fotos, vídeos institucionais ou de campanhas publicitárias e consegue o contato de todos os secretários municipais. Segundo Elisa Kopplin e Luiz Ferraretto (2009), a assessoria precisa acompanhar os avanços da tecnologia, adaptando-se às demandas e ao mesmo 7 Para mais detalhes, acessar < http://www.softwarepublico.gov.br/4cmbr/xowiki/news-item132>. Acesso em: 22/10/2012. 8 Portal disponível em: <http://187.44.64.187:8080/servicosonline/portaldatransparencia.html>. Acesso em: 06/04/2012. 7 tempo mantendo um elo proativo com as atividades e o assessorado. É preciso clareza nas ações e manter sempre atualizados os dados e respectivos relatórios da empresa. A comunicação online eficiente alimenta os veículos de comunicação e mantém ou amplia a boa imagem da organização. A tarefa não é tão simples, mas ignorar a internet nesse processo midiático já é um começo negativo, pois, a tendência é que a tecnologia continue contribuindo e seja mão dupla no processo empresa-usuário/cliente. 3.3 Mídia Indoor Recentemente o governo municipal adotou outra ferramenta essencial para a divulgação dos trabalhos. Trata-se de Mídia Indoor (interior), tecnologia que tem conquistado espaço em Catalão. Em filas de lotéricas, cartórios ou nos próprios prédios públicos, as principais ações da Prefeitura são destaques. Através de um monitor de plasma, usuários desses estabelecimentos se informam de cinco diferentes assuntos, atualizados pela assessoria de comunicação uma vez por semana. Em alternância com outras empresas, os slides com as notícias – em forma de títulos com até 95 caracteres – são acompanhados por uma foto em resolução média. O tempo de cada anúncio é de 15 segundos e os resultados com esse investimento, garante a assessoria, são satisfatórios. As atualizações são exclusivas via internet. 3.4 E-mail Marketing Há dois anos a Prefeitura envia informações sobre a atual gestão para os e-mails cadastrados na Home Page ou através de mailings. O sistema de newsletter, possível graças ao E-mail Marketing, permite que usuários cadastrados no site do Executivo Municipal tenham acesso às notícias produzidas para a imprensa. Embora por todo esse tempo o programa tenha sido muito conveniente, atualmente deixou de ser utilizado pela assessoria de comunicação - pelo menos por tempo determinado. A razão pelo cancelamento temporário é justificada pela falta de pagamento ao prestador de serviço e problemas técnicos, visto que uma parte dos endereços eletrônicos não estava recebendo os boletins. Ao todo, são quase 1.800 usuários cadastrados, que têm como objetivo conhecer melhor o trabalho da atual administração. No plano de dados, a capacidade é para 150 mil mensagens/mês, o que permite o envio de, no mínimo, três e-mails diariamente. A ferramenta demonstra o relatório completo de cada campanha, detalhando quem, de 8 fato, abriu a mensagem ou não recebeu. Também é possível descobrir quantas pessoas reenviaram as notícias e/ou cancelaram a inscrição da newsletter ou quantas vezes um link disponível no conteúdo foi clicado. 3.5 Redes Sociais Não é mais novidade para a imprensa em Catalão receber releases da Prefeitura. São muitos eventos agendados, como entrega de obras e eventos sociais. Quando é necessário, a Secretaria de Comunicação improvisa e dispara o press-kit através do Protocolo de Transferência de Arquivos (FTP, na sigla em inglês). Assim, é possível transferir - via internet - imagens em boa resolução principalmente para as revistas, que exigem alto padrão de qualidade em suas páginas. Embora os próprios gestores considerem a Comunicação parcialmente eficiente, por questões burocráticas e políticas, podemos destacar outras ações pertinentes na internet. É cabível concordamos que a presença de uma assessoria de comunicação na internet é primordial para fortalecer laços com diferentes tipos de públicos. E quando trabalhamos com os jovens, por exemplo, a forma mais prática de atingi-los é por meio das redes sociais, especialmente as mais influentes como o Facebook e o Twitter. Estrategicamente, a Comunicação da Prefeitura mantém perfis do prefeito nesses dois canais. Quase todas as postagens são produzidas pela assessoria, enquanto que o prefeito, devido à falta de tempo e até mesmo o pouco domínio da ferramenta, utiliza o espaço raramente aos finais de semana, respondendo a sugestões, críticas e comentários. De acordo com a e-Press, empresa de assessoria especializada em mídias online, a assessoria de imprensa, ao divulgar uma notícia, pode integrar as redes sociais no processo de comunicação. Estabelecer relação direta com seus públicos, através desse mecanismo, é importante principalmente para integrar os adolescentes. Ao engajar essa proposta, a Comunicação tem retorno satisfatório para elaborar outros planos estratégicos e corroborar com a qualidade do serviço público. A aproximação com o cidadão pode revelar problemas e/ou soluções para a administração, outrora nem desconfiados pelo poder executivo. Logo, a presença nas redes sociais deve ser permanente e o diálogo com os públicos não foge à regra. Todavia, a Secom não consegue atualizar diariamente essas redes, devido à falta de pessoal responsável e compatível com as tarefas. 9 4. Comunicação Integrada O trabalho contínuo de uma assessoria de comunicação é mais eficaz quando todas as áreas se entendem. Isso acorre quando há uma estratégia elaborada e os planos e metas são bem estabelecidos. De maneira geral, a assessoria de imprensa, as relações públicas e a publicidade e propaganda, simultaneamente, devem cumprir os objetivos da organização (missão e visão), inclusive destacando ações substanciais na mídia. Como já abordamos, a Prefeitura de Catalão dispõe de uma comunicação integrada, embora existam paredes entre as áreas do conhecimento. O governo municipal foi um dos primeiros do Brasil a se adequar à nova legislação de contratação de serviços de publicidade. Como consta no próprio site da Prefeitura, “a lei 12.232, de 29/04/2010, institucionaliza o Conselho Executivo das Normas-padrão (CENP) como órgão certificador de qualidade do setor e põe fim aos pregões e às contratações de outras atividades que não estejam diretamente ligadas à publicidade e necessitam, a partir de agora, de licitações específicas”9. Integrando o novo sistema de contratação, a empresa de publicidade e propaganda vencedora da licitação, de Goiânia, já produz para a Secretaria de Comunicação há quase dois anos. Porém, os problemas começam aqui. As campanhas publicitárias, até então, não satisfazem sequer os gestores da área de comunicação, Alaor Rodovalho e Kalil Abrão. O primeiro, secretário municipal de comunicação, pondera o importante trabalho da Prefeitura na internet, mas contesta a qualidade de produção da agência e não esconde a falta de criatividade nas campanhas. De fato, não é preciso muito esforço e nem ser especialista para avaliar as peças publicitárias, seja na mídia impressa, auditiva ou televisiva. A confecção de anúncios fora do contexto de Catalão é apenas um exemplo, sem contar o privilégio por atores de outras cidades quando algum VT é produzido. Atualmente, a empresa mantém uma filial no município, mas somente para assuntos financeiros e burocráticos. Isto é, praticamente 100% da produção de arte vem de Goiânia. O trabalho da agência é avaliado pela Secretaria de Comunicação juntamente com o prefeito. Sem muitas opções, o que foi produzido vai para a mídia, independentemente da qualidade. Aqui, o erro é de planejamento. As ideias para as campanhas são repassadas pelo secretário de comunicação e cabe a agência providenciar o material. Na maioria das vezes, essas ideias são pouco exploradas, 9 Notícia veiculada no portal da Prefeitura de Catalão. Disponível em: < http://www.catalao.go.gov.br/home/?Secao=NoticiasVer&id=NzY0>. Acesso em: 05/04/2012. 10 permitindo, consequentemente, a produção de VT’s ou anúncios insignificantes. A criatividade também é taxada por Kalil Abrão, diretor de cerimonial e responsável pelas relações públicas. Segundo ele, a falta de diálogo entre sua pasta e a secretaria de comunicação é prejudicial para a Prefeitura e, dessa forma, o serviço de publicidade e propaganda continuará pela metade. O diretor questiona o trabalho produzido pela agência e não esquece que o atual prefeito é o principal desfavorecido nessa história de ruptura. A comunicação integrada, como averiguamos, não é exercida na plenitude. As três áreas ora trabalham isoladas e praticamente sem nenhuma estratégia global. Para a equipe de cerimonial, a Comunicação deve repensar o sistema de trabalho, adotando metas mais amplas e menos ‘vaidosas’. Pelas entrevistas, está clara a falta de relacionamento produtivo e harmonioso que deve prevalecer numa comunicação integrada, como defende João Alberto Ianhez, ex-presidente do Conselho Federal de Profissionais de Relações Públicas (CONFERP). A bola de neve na Comunicação da Prefeitura de Catalão é reflexo da má gestão. A ineficiência é justificada pelo empecilho político e a falta de profissionais capacitados. Atualmente, a Secom emprega somente quatro funcionários comissionados (dois jornalistas, um repórter e o secretário). Pelo menos dois não produzem o suficiente e pejorativamente não cooperam para que a pasta desenvolva um trabalho mais benéfico em favor da comunidade e da imprensa. Agindo dessa forma, muitas atividades/ações importantes não são amplamente divulgadas. A questão política também é destaque no Cerimonial. Ao todo, quatro profissionais comissionados cuidam dessa importante subárea da Prefeitura. Não podemos deixar de mencionar, no entanto, que apenas um funcionário tem curso superior, e ainda em outra área completamente distante das ciências sociais. Assim, portanto, o caos é parcialmente justificado. As repartições públicas municipais, estaduais e/ou federais, lamentavelmente, ainda mantêm profissionais desqualificados, tudo em favor de picuinhas políticas e descrédito com a comunidade. Em comunicação, principalmente, isso não deveria ocorrer, até porque pode ser considerada como o espelho da administração. A comunicação integrada não tem como base a improvisação. Em assessoria de imprensa, como demonstra Elisa Kopplin e Luiz Ferraretto (2009), as palavras de ordens são organização e planejamento. De nada adianta manter relação direta e recíproca com a mídia através da internet se a população, 11 ao certo, não avalia bem o trabalho do governo municipal. A estratégia é manter a imprensa informada e colaborar efetivamente para a formação da opinião pública positiva. O líder estrategista deve evitar o desgaste do assessorado, jamais colocando em risco sua reputação. É preciso argumentação com a mídia, mas também contato direto com o cidadão, afinal, é ele quem escolhe os representantes do poder e, no mínimo, tem o direito de conhecer o trabalho desenvolvido pela gestão. 5. Planejamento e gestão estratégica O gerenciamento da comunicação não é mais uma tarefa para qualquer um. Exige-se um profissional capaz de produzir, mas, acima de tudo, que saiba pensar estrategicamente. Para Mafei (2007), o gestor estratégico deve conhecer a produção jornalística, construir uma rede de relacionamentos e ter planos de controle de crises, a fim de consolidar a imagem da organização. A internet facilitou esse processo e não deve ser descartada por uma assessoria de comunicação competente. Como recorda Briggs (2007, p. 39), “[...] prever o que vai acontecer com as novas tecnologias é como tentar antecipar o futuro”. Porém, não utilizar os instrumentos disponíveis é atirar contra o próprio pé. Praticamente já não se faz comunicação sem internet e os benefícios que ela proporciona. Entendendo assim, os gestores estrategistas têm papel fundamental no planejamento das ações. Os tipos de públicos e a metodologia são importantes para que o profissional mantenha foco nas atividades e construa definitivamente uma boa imagem de seu cliente. A gestão estratégica faz levantamento das demandas e põe em prática soluções de comunicação eficientes. O profissional responsável pelo setor, como a maioria dos autores destaca, é um jornalista capacitado, apesar de que na Prefeitura de Catalão nenhum dos gestores têm formação em Jornalismo. Particularmente, acredito, e muito, que a formação na área seja essencial, mas não insubstituível, já que temos bons exemplos de profissionais que nunca frequentaram uma faculdade de comunicação social. Administrar a Comunicação de uma Prefeitura não é algo simples, mas desafiador. Além de compreender os mecanismos jornalísticos, é obrigação conhecer o atual cenário político, já que esse especialista, muitas vezes, também é o responsável pelo marketing publicitário, político e visual. 12 Para Kunsch (1997), o profissional precisa adotar posicionamento ativo na empresa e ser um estrategista da comunicação integrada, tornando, é claro, a comunicação bem mais acessível aos públicos interno e externo. A agilidade e a manobra em situações de crise são requisitos fundamentais para o encarregado da assessoria de comunicação. A mensuração de resultados também é indiscutível, uma vez que auxilia na avaliação e na projeção de outras propostas. Cabe ressaltar que um dos maiores desafios do líder da organização é a sua capacidade de mobilização de todos que atuam na mesma, através do trabalho de relações e comunicação. Essa capacidade é importante para fazer atuar com eficácia toda a sua estrutura e obter a interação adequada e produtiva com todos os seus públicos (IANHEZ, 2010). A reação do público é o alicerce para o diagnóstico da comunicação. A empresa responsável pela publicidade e propaganda da Prefeitura de Catalão, por exemplo, realiza pesquisas de opinião de seis em seis meses. Não bastasse a indignação dos próprios contratantes, a pesquisa, que muito agrega valor, não é realizada constantemente. O grau de satisfação com as campanhas publicitárias é baixíssimo, resultado de um trabalho leviano. O dinheiro aplicado, diga-se de passagem, altíssimo, poderia cumprir os objetivos e melhorar a imagem do prefeito. Mas a realidade é outra. A terceirizada não ouve o cidadão e não disponibiliza sequer uma página na internet para sugestão ou críticas. Mesmo com tantos problemas, a Prefeitura mantém a P&P nas mãos da empresa, afinal, como exemplifica o executivo, realizar novamente todo o processo licitatório gastaria muito tempo. Não é por esse caminho que a comunicação integrada atingirá os objetivos. Cabem aos gestores aprimorarem a estratégia e reforçarem o compromisso com a imagem do prefeito. O conhecimento e a dedicação são peças-chaves para um bom começo. Porém, requer discernimento, discussão de ideias e o cumprimento de planos arrojados. A internet, sem dúvidas, é a principal contribuinte da Comunicação da Prefeitura, com total respaldo à mídia e aos públicos interno/externo. Entretanto, o problema ainda persiste na inobservância administrativa, na falta de um discurso definido e de atitudes contundentes, que diretamente beneficiem tanto o prefeito como a comunidade. 13 Conclusões Em tempos de internet, uma Assessoria de Comunicação ágil e vanguardista é capaz de dominar as ferramentas online e manter uma imagem relevante do cliente. O primeiro passo, como dissera Bahia (1995, p. 49), é ajudar o assessorado a compreender a diferença entre “informação, publicidade, relações públicas, lobby”. A objetividade nas ações deve prevalecer, bem como estratégias de comunicação pertinentes aos públicos-alvo. Como analisamos neste artigo, a Prefeitura de Catalão (GO) propõe divulgar o trabalho na internet de forma massiva, alcançando diferentes públicos justamente por se tratar de uma instituição pública. As atividades na internet abrem espaços para a comunidade e principalmente para a mídia, com acervo de informações e notícias atualizadas da administração. Todas as ferramentas descritas são importantes para o trabalho de comunicação e a presença contínua na rede é ponto positivo para a Prefeitura, sustentando relação com os públicos e com a imprensa goiana. Como são muitos veículos de comunicação, os atuais gestores rezam pela massificação de conteúdo, embora haja conflitos na própria Comunicação. Conflitos esses, vale lembrar, que em nada contribuem com a imagem do prefeito. Empecilhos resolvíveis, mas que pelo atual diagnóstico não são fáceis de solucionar, principalmente quando o assunto é poder. O ‘pensar online’, como destaca Briggs (2007), é uma das tarefas mais íntegras de bons gestores. Sincronizar-se com o mundo digital é manter contato com as demandas do dia a dia e melhorar a qualidade da organização. O gestor empreendedor é aliado na formação de uma empresa responsável e que não impõe restrições aos meios de comunicação. Portanto, além de conhecer o processo jornalístico básico e técnico-científico, o gestor precisa dominar as ferramentas digitais e manter atualizado o plano estratégico de comunicação. Atualmente, o trabalho positivo exercido pela Prefeitura de Catalão não é suficientemente bem avaliado pela opinião pública. As críticas são constantes e a raiz do problema é a falta de grandes líderes, que têm como missão gerenciar e aprimorar as atividades comunicacionais da organização. Outro detalhe é a falta de consideração com profissionais capacitados. Ao oferecer oportunidade para pessoas despreparadas, o prefeito perde a chance de destacar amplamente suas ações para a população. E pior: não adquire crédito para uma futura reeleição. 14 Referências bibliográficas BAHIA, Juarez. Introdução à Comunicação Empresarial. Rio de Janeiro: Mauad, 1995. BRIGGS, Mark. Jornalismo 2.0: como sobreviver e prosperar. College Park: Universidade de Maryland, 2007. CHINEM, Rivaldo. Assessoria de Imprensa: Como Fazer. 2. ed. São Paulo: Summus, 2003. FERRARETTO, Elisa Kopplin; FERRARETTO, Luiz Artur. Assessoria de imprensa: Teoria e Prática. 5. ed. São Paulo: Summus, 2009. IANHEZ, João Alberto. Comunicação integrada e a construção da imagem institucional. Disponível em: <http://www.conferp.org.br/?p=2082>. Acesso em: 28 mar. 2012. KUNSCH, Margarida M. K. Relações públicas e modernidade: novos paradigmas na comunicação organizacional. São Paulo: Summus, 1997. MAFEI, Maristela. Assessoria de imprensa: como se relacionar com a mídia. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2007. (Col. Comunicação). SOUZA FILHO, Gelson Amaro de. A evolução da assessoria de imprensa na internet. Disponível em: <http://webinsider.uol.com.br/2006/10/27/a-evolucao-daassessoria-de-imprensa-na-internet/>. Acesso em: 27 mar. 2012. TUZZO, Simone Antoniaci. Sociedade das Organizações. Jornal Diário da Manhã. Goiânia, 2011. Disponível em: <www.dm.com.br>. Acesso em: 29 mar. 2012. 15 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E COMUNICAÇÃO: A IDENTIDADE DO INDÍGENA NA MÍDIA IMPRESSA SOCIAL REPRESENTATIONS AND COMMUNICATION: INDIGENOUS IDENTITY OF THE PRINTED MEDIA Claudomilson Fernandes Braga1 Simone Antoniaci Tuzzo 2 RESUMO Este estudo objetiva identificar e analisar como os sujeitos não indígenas vêem os indígenas no contexto das relações intergrupais e, particularmente, no contexto do processo de demarcação e desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Em razão dos conteúdos publicados nos veículos de mídia, os resultados da pesquisa possibilitam verificar como esse contexto relacional pode ser observado em uma perspectiva mais ampla, ou seja, como os não indígenas vêem os indígenas em geral e como os primeiros percebem os processos de demarcação de reservas indígenas que ocorrem no Brasil. Os resultados indicam que as representações dos indígenas que circulam (ou não), nos veículos de mídia, transcendem o espaço midiático fazendo eco no espaço social, ou seja, são as vozes dos atores sociais não indígenas que ecoam nos espaços midiatizados, que, quando amplificados e legitimados pela mídia, se tornam naturalizados, e, mesmo em se tratando de situações potencialmente comunicativas, são validadas como contratos de comunicação. Palavras chave: Comunicação, representações sociais; conflito; identidade INTRODUÇÃO Partindo da noção de que as relações intergrupais (TAJFEL, 1981), são imagens resultantes daquilo que cada grupo desenvolve a respeito de si mesmo e do outro e cujo processo de interação entre os grupos indicam representações com funções cognitivas (DOISE, 2002) e que essa centralidade (força) dos conteúdos relevantes, aqui compreendidas em termos e imagens que orientam a relação entre os grupos, com base em uma realidade objetiva e a sua representação subjetiva, dão aos elementos 1 Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor Adjunto da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG.. 2 Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG. Professora Efetiva do Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Comunicação da UFG. representacionais, um sentido de enunciação (CAMPOS, 2003), e que, quanto mais ativado, mais importante ele é para essa situação específica, nesse trabalho e, em especial nessa abordagem, a mídia parece ser esse elemento ativador que mantém essas representações. Assim, aquilo que Moliner (1995), denomina de modelo bidimensional de representações sociais, são os elementos representacionais que indicam centralidade, e, em certa medida, muito provavelmente, compõe o núcleo central da representação dos indígenas, ou seja: a imagem que os não indígenas têm dos indígenas são resultantes de uma identidade construída, na sua quase totalidade, pelos conteúdos midiáticos. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E COMUNICAÇÃO As representações sociais descritas por Moscovici (1978) em seu livro La psychanalyse, son imagem et son public, cujo objetivo foi estudar os processos psicossociológicos existentes e subjacentes ao modo como a Psicanálise foi transformada em conhecimento do senso comum, descreve as representações sociais como “sistemas de valores, noções e práticas que proporcionam aos indivíduos os meios para orientar-se no contexto social e material [...] tornando inteligíveis a realidade física e social e integramdo-se em um grupo ou em uma relação cotidiana de intercâmbios” (MOSCOVICI, 1978, p. 79). Outro aspecto importante na compreensão do conceito de representação social é o seu papel na formação de condutas (GOMES, 2006), o que dito de outro modo significa que ela modela o comportamento e justifica sua expressão, (POESCHL, 1995; AMARAL, 1997), situando os sujeitos de forma simbólica nas relações sociais e nas categorias decorrentes das características da sociedade Nesse aspecto, a idéia de modelagem do comportamento e da ação, coloca a Comunicação Social próxima da Teoria das Representações Sociais subsidiando em partes ou no todo o que Rouquette (1996) define como a compreensão dos processos de formação de conduta e a circulação das Representações Sociais nas sociedades contemporâneas, onde o fluxo comunicativo é o resultado global derivado da rede de interações que une as pessoas umas às outras (WOLF, 1999). A partir da ideia de que os mass media descrevem e precisam a realidade exterior, apresentando à audiência uma lista daquilo sobre o que é necessário ter uma opinião (SHAW, 1979), e, portanto, prescreve a ação, logo representando um guia de leitura da realidade, dá as Representações Sociais o que Campos (2005), denomina de dimensão normativa, ou seja, as Representações Sociais definem o que é para um grupo e não para o outro assim como a Comunicação. Nesse sentido, a noção de que o discurso da mídia é o discurso do senso comum, - elaborado e veiculado como verdade, em razão do princípio da autoridade - marca definitivamente a relação entre coisa e signo (objeto e representação)(CAMPOS, 2005), pois ambos, representação e comunicação, são essencialmente enunciados muito mais do que representações, definidos cada vez mais pelo contexto comunicacional. Rouquette (1999), ao discutir o papel da comunicação na construção das Representações Sociais, afirma que as Representações Sociais são elaboradas e transmitidas a partir da comunicação, indicando um caminho de análise e oferecendo a Comunicação Social um lugar privilegiado na compreensão das Representações Sociais. IMAGEM E IDENTIDADE Como ponto de partida, e se apropriando dos conceitos de marketing sobre marca ou branding, devemos traçar duas visões distintas: uma interna e outra externa. Segundo Bender (2009, p.171), na visão interna teremos a identidade, na visão externa, a imagem. A primeira, a identidade, é o conceito que traçamos para uma marca, um DNA de marca planejado. São os valores e atributos que queremos passar para o mercado. A segunda, a imagem da marca, é a percepção, a maneira como a marca é percebida pela audiência. O que se faz num planejamento estratégico é, por meio do marketing e da comunicação, aproximar essas duas visões, diminuindo a dissonância cognitiva entre elas. É levar os consumidores a perceberem a marca com o valor que queremos que ela tenha. (Bender, 2009. p.171) Entretanto são as pesquisas empreendidas por Tajfel (1981), cujos estudos originalmente desenvolvidos por Sherif (1961), que a questão da identidade do grupo é colocada em debate. Para Tajfel (1981), a identidade social é “a parcela do autoconceito dum indivíduo que deriva do seu conhecimento da sua pertença a um grupo (ou grupos) social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença” (p. 291). Quanto maior o sentimento de pertença, maior a tendência a diferenciar-se de maneira favorável ao seu próprio grupo (endogrupo) em detrimento do outro grupo (exogrupo). Assim, a identidade social, esse sentimento de pertença, ocorre segundo Tajfel (1981), com base em três pressupostos: a) como um continuum indo do comportamento interpessoal ao comportamento intergrupal; b) a identidade social não é um ato, mas, sobretudo um processo social que se operacionaliza no interior do indivíduo, no espaço das relações individuais e no espaço das relações institucionais; É, portanto, um processo intraindividual, interindividual e intergrupal, em um processo dialético pois o sujeito muda o comportamento com base na sua participação no grupo, mas também muda o grupo à medida que se alteram as concepções do indivíduo; e ainda: c) esse processo não ocorre no vazio, mas em um certo contexto histórico em que podem ocorrer fusões ou conflitos e, portanto, pressupõe certa organização social, estrutural e de legitimidade e estabilidade. Os pressupostos apresentados por Tajfel (1981) possibilitam compreender que a identidade social pode ser compreendida como um sentimento de pertença, portanto, de crença na pertença (DEL PRETTE & DEL PRETTE, 2003). Permitem também inferir que a crença social, assim como o sentimento de pertença, se situa em um continuum, no qual um extremo se situa a crença na mobilidade social e no outro a crença na mudança social (TAJFEL, 1981). Por mudança social, pode-se entender “um movimento social que representa um esforço de um grande número de pessoas para resolver coletivamente um problema sentido como comum” (TAJFEL, 1981. p. 277). Por outro lado a mobilidade social é, segundo Tajfel (1981), “o movimento dos indivíduos, famílias e grupos de uma posição social para outra” (p. 277). Assim, as crenças na mobilidade social, abrindo perspectivas de ascensão social individual, estimulam estratégias individualistas de ação (comportamentos interindividuais), ao passo que as crenças na mudança social favoreceriam estratégias coletivas (comportamentos intergrupais). Dessa forma, em ambos os casos, a relação entre crenças e ação é mediada pelos processos de identidade social e diferenciação grupal. MÉTODO, AMOSTRA E PROCEDIMENTOS. A pesquisa caracterizada como quantitativa do tipo descritiva foi realizada na cidade de Normandia, estado de Roraima, entre os dias 21 e 25 de abril de 2011. Localizada na denominada Microrregião Nordeste do Estado de Roraima, a 185 km da capital, Boa Vista, Normandia possui uma densidade populacional que não ultrapassa 0.97 habitantes por km², segundo dados do censo 2010 (IBGE). Considerada a menor cidade do estado e ocupando a 15ª posição, Normandia, tem, segundo dados do censo de 2010 uma população de 8.926 habitantes (IBGE, 2010), dos quais aproximadamente 92% eram indígenas ou descendentes diretos no máximo de segunda geração. Do total de habitantes, 4.670 eram do sexo masculino e 4.256 do sexo feminino, e apenas 2311 residiam na área urbana do município. Os demais 6.616 viviam na zona rural que possui 7.008 km² de área. Classificada como probabilística por conveniência, a amostra foi composta por 50 sujeitos não indígenas residentes na área urbana do município de Normandia (RR), sendo 22% do sexo masculino, 78% feminino. A faixa etária média dos entrevistados era de 28 anos. O instrumento elaborado com perguntas fechadas de múltipla escolha, do tipo Likert, possibilitou aos entrevistados indicarem seu grau de concordância ou discordância, as declarações relativas à atitude investigada, uma vez que a escala de Likert atribui valores numéricos e/ou sinais as respostas que refletem a força e a direção da reação do entrevistado à declaração. A escala de Likert permite que, declarações de concordância recebam valores positivos ou altos, ao passo que as declarações das quais discordam recebam valores negativos ou baixos (BAKER, 2005). Giglio (1996) comenta que pesquisas posteriores à elaboração da escala de Likert verificaram que há correlação entre julgamento e atitude. As principais vantagens da escala Likert em relação às demais, segundo Mattar (2001), são a simplicidade de construção; o uso de afirmações que não estão explicitamente ligadas à atitude estudada permitindo a inclusão de qualquer item que se verifique empiricamente; ser coerente com o resultado final; e, ainda, a amplitude de respostas possíveis que apresentam informações mais precisas sobre a opinião do respondente em relação a cada afirmação. As respostas situam-se nos seguintes extremos: 1 = discordo totalmente e 7 = concordo totalmente, cujos valores intermediários foram assim descritos: 2 = discordo parcialmente; 3 = discordo; 4 = nem concordo nem concordo; 5 = concordo parcialmente e 6 = concordo. O instrumento de coleta foi composto de seis blocos de questões assim delineados: Primeiro bloco- identificação do modo comunicativo operante na região do conflito e qual o veículo de mídia que mais proporcionou informações sobre o processo de demarcação e desocupação da RIRSS; Segundo bloco - com base na expressão indutora “em relação aos indígenas, você os considera?”, foi apresentado aos sujeitos da pesquisa possibilidades de respostas segundo as expressões: uma pessoa que vive na natureza; uma pessoa que vive em aldeia; uma pessoa que não trabalha; uma pessoa que tem muita habilidade para o artesanato; uma pessoa que tem uma cultura diferente; uma pessoa que vive na floresta; uma pessoa que vive como um selvagem; uma pessoa que sofre preconceito; uma pessoa que é um guerreiro, o objetivo consistiu em verificar a centralidade das respostas, cujo grau de concordância ou discordância com as expressões, possibilitasse identificar a estrutura que, muito provavelmente, compõe o núcleo central das representações sociais do indígena; Terceiro bloco - foi solicitado aos sujeitos (não indígenas) da pesquisa a atribuição de um grau de concordância às expressões atribuídas aos indígenas: intuitivos, vingativos, criativos, livres, impulsivos, leais, perversos, manipuladores, solidários, inteligentes, agressivos, fisicamente hábeis, instintivos, extrovertidos e preguiçosos, com os resultados buscava-se demonstra a opinião (atitude), em relação a esse grupo étnico, possibilitando dessa forma, identificar os traços de personalidade que os não indígenas atribuem aos indígenas, que, em última instância, indicam os traços identitários atribuído ao indígenas; Quarto bloco - buscou identificar a opinião dos não indígenas em relação aos processos de demarcação de terras indígenas de uma forma geral, ou seja, como os sujeitos da pesquisa vêem os processos dessa natureza, tanto no estado de Roraima como no restante do país; para tanto, foram apresentadas expressões, todas afirmativas a demarcação de reservas indígenas é justa; os jornais e a televisão falam a verdade sobre os fatos que ocorrem; os indígenas são ouvidos nos processos de demarcação; a maioria dos políticos apóia os indígenas, e, após a demarcação o governo federal dá autonomia para os indígenas. Solicita-se aos pesquisados a atribuição de um valor sobre cada item. Quinto bloco - tendo como referencial a demarcação e a desocupação da RIRSS, nesse bloco de questões foi solicitado aos sujeitos que expressassem suas opiniões sobre a atuação dos indígenas, atribuindo um valor para cada expressão apresentada - os indígenas conseguiram mais do que mereciam; receberam muito respeito e consideração; foram muito exigentes em relação aos seus direitos; a discriminação foi não um problema para eles; eles tiveram influência política no processo; eles não precisaram de ajuda; eles foram prejudicados após a demarcação; as autoridades não os ouviram; ficaram calados esperando o governo tomar as decisões; e, eles não falaram muito sobre o assunto, as respostas obtidas indicam como os não indígenas vêem o comportamento do indígena durante o processo; A última parte do instrumento, as expressões apresentadas buscaram identificar o grau de concordância e discordância acerca das determinações legais relatadas pelo Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de identificar as questões relativas à autonomia indígena. As determinações do STF foram as seguintes: a) os indígenas da reserva não podem vender ou alugar, ou ainda transferir suas terras para outras pessoas; b) não será cobrado nenhum tipo de imposto aos indígenas que moram na reserva; c) os indígenas não podem alugar parte das terras da reserva; d) os indígenas não podem cobrar tarifas de visitantes (turistas) na reserva; e) alguns não indígenas podem permanecer em parte da reserva desde que a Funai autorize; f) tudo que os indígenas desejarem fazer na reserva deve ser sempre autorizado; g) governo federal pode instalar prédios públicos, construir estradas sem autorização dos indígenas; h) a Polícia Federal pode atuar na reserva sem autorização dos indígenas; i) O Governo Federal pode instalar bases militares na reserva sem consulta as comunidades indígenas da região; j) o garimpo na reserva deve sempre autorizado pelo Congresso Nacional; k) o uso dos rios para gerar energia deve ser sempre autorizado pelos deputados; l) os rios e as riquezas do solo são controlados pelo governo federal; Também fez parte do instrumento de coleta dados de identificação demográfica (gênero e faixa etária) dos sujeitos da amostra. Os elementos que constituíram o segundo bloco de questões do instrumento de coleta foram utilizados e validados em estudos realizados pelo Núcleo de Pesquisa Psicossociológicas (NEP) e convalidados em estudos realizados por Costa e Campos (2003), Borges e Campos (2003) e Oliveira e Campos (2008). Os elementos usados no terceiro bloco foram desenvolvidos por Moscovici, tendo como base em uma escala de infra-humanização em estudos realizados pelo autor sobre as representações sociais do preconceito em relação aos indígenas, no Brasil, ainda não publicados. Os elementos do quarto e quinto blocos foram originados de um corpus de notícias sobre demarcação de terras indígenas, e, em especial, a da Raposa Serra do Sol. Os elementos do sexto bloco são as determinações do STF após o parecer final sobre o processo de demarcação e desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. As análises dos dados foram feitas com o auxílio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), que propicia análises estatísticas descritivas e inferenciais. Com duas entradas de dados (Data View), o aplicativo permitiu desenvolver análises que demonstraram com o uso da escala Likert, quais as principais tendências de respostas dos sujeitos pesquisados, indicando a sua opinião sobre o tema perguntado. As análises foram executadas em separado, observando-se o objetivo de cada bloco de questões, de tal forma que, para o primeiro bloco, foi processada uma análise gráfica simples com a geração de um histograma de barras, cujos valores são resultantes da indagação acerca do meio comunicativo que mais opera na região (Normandia) e, também, como os sujeitos da pesquisa tomaram conhecimento do evento de demarcação e desocupação da RIRSS. Os resultados foram gerados observando-se um intervalo de confiança (IC) igual a 95%, com um desvio padrão igual a 2,0 (dp=2,0%). Para o segundo bloco, foi aplicada uma análise estatística descritiva (frequência) com a obtenção da medida de tendência central (média e mediana) e percentuais válidos e acumulados para cada variável do construto, possibilitando, desse modo, identificar a tendência das respostas. Levando-se em consideração a escala de Likert utilizada (sete pontos), os resultados foram analisados com base no valor intermediário 4, considerado, nesta análise, ponto de corte. Com os resultados da frequência de cada variável foi possível estruturar a representação gráfica dos resultados, indicando a curva de tendência, o que, muito provavelmente indica a centralidade das respostas. Partindo da noção de variáveis latentes, do terceiro ao sexto bloco de questões, foram aplicadas análises fatoriais (AF), cujo construto objetiva entender áreas de interesse e seus significados (classe social, opinião pública ou personalidade), e os efeitos que só aparecem nas chamadas variáveis manifestas, isto é, aquelas que podem ser verificadas e que medem diretamente o conceito, como, por exemplo, o preconceito, A análise fatorial, nesse sentido, investiga e verifica a dependência de um conjunto de variáveis manifestas em relação a um número menor de variáveis latentes, possibilitando dessa forma, identificar a variância explicada das respostas dos sujeitos da pesquisa. Também conhecida como análise multivariada, a AF é útil para identificar regularidades no comportamento de duas ou mais variáveis, e para testar modelos alternativos de associação entre tais variáveis, incluindo a determinação de quando e como dois ou mais grupos diferem em seu perfil multivariado. RESULTADOS E DISCUSSÕES Os resultados do primeiro bloco indicam uma realidade típica das cidades do interior do país. O meio comunicativo preponderante na região do conflito é o radiofônico. Com um percentual superior à metade das respostas, o rádio representa o veículo de mídia mais atuante na cidade e na região. Significa, portanto, que a Folha de S. Paulo, como outro jornal diário, não teve penetração (direta) de audiência na região. Apesar da existência de jornais impressos no estado de Roraima, parece ocorrer como primeira perspectiva de análise, uma situação de copy desk, ou seja, os veículos de mídia das cidades do interior e do estado de Roraima, como também das demais cidades do interior do país, reproduzem em larga escala as notícias originadas nos veículos do eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Duas noções podem ser apontadas: a capacidade de cobertura e abrangência dessas organizações e o caráter legitimador desses veículos. Entretanto, essa análise não é completamente satisfatória e não dá conta de explicar por que o rádio é o meio comunicacional mais efetivo na região do conflito. O fato do evento de demarcação e desocupação da RIRSS ter sido em grande parte, controlado pelo STF, emergem a figura da voz do Brasil. Criada em 1935, pelo presidente Getúlio Vargas para levar informação do poder executivo à população, a voz do Brasil à época, era o principal meio de comunicação de massa. Esse programa radiofônico, por decisão legal, conforme Lei nº 4.717/62 (Brasil, 1962) deve ser reproduzido de forma obrigatória por todas as rádios existentes no Brasil entre as 19 h e 20 h. Apesar de algumas rádios, nomeadamente em São Paulo, reproduzirem o programa em horários alternativos, trata-se da forma mais usual de massificação das mensagens do poder executivo, visto que outros veículos não possuem a mesma cobertura. Pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de emissoras de rádio e televisão (Abert) indica a estrutura de mídia existente no país, no ano de 2008: 3.600 emissoras de rádio, 5 redes de televisão de cobertura nacional (não incluída as afiliadas), 523 jornais diários e 1.200 títulos de revista e mais de uma centena de rádios comunitárias não oficiais. A mesma pesquisa revela que a audiência radiofônica entre os horários das 19h e 20h, atinge o percentual de 11% da população nacional. Conforme dados atualizados do censo 2010 (IBGE, 2010), 20,9 milhões de pessoas ouvem rádio nesse horário. A pesquisa da Abert (2008) também indicou que a audiência da voz do Brasil, no horário da sua retransmissão (19 h às 20 h) é de 5% da população (9,5 milhões). A essa informação acrescente-se que até o ano de 2010, cidades como São Paulo e municípios vizinhos não eram obrigados a retransmitir a programação no horário estipulado em razão de limitar que foi suspensa pelo STF no ano de 2010, como resultado do mandado impetrado pela Advocacia Geral da União (ABERT, 2011). A audiência pode ser maior do que a pesquisa indicou, explicando, portanto, a preponderância do rádio como meio comunicativo operante na região do conflito. Veículos como a televisão também tiveram (com menor percentual) uma participação na propagação das notícias. Ao contrário da cobertura jornalística dos grandes centros, o jornal não ultrapassou 10% das respostas dadas pelos sujeitos. Em relação à forma como as pessoas tomaram conhecimento sobre o processo de demarcação e desocupação da RIRSS, os resultados indicam que, apesar de o rádio ser o veículo midiático com maior penetração, foi mediante a informação boca a boca que o evento (ou pelo menos suas informações) se alastrou. Tomando-se de empréstimo o entendimento de que comunicação boca a boca, caracteriza-se como uma comunicação interpessoal, em que sujeitos usuários e não usuários de um produto ou serviço compartilham experiências e opiniões a respeito dele (Nickels & Wood, 1999; 2004), revelando ser confiável e não tendenciosa, e que provêm de fontes não ligadas as empresas, tais como amigos, familiares e líderes de opinião, são, normalmente , julgadas e consideradas válidas. A comunicação boca a boca é tida como de grande relevância para modelar atitudes e comportamentos (BROW & REINGER, 1987), em especial para a difusão de produtos, serviços ou ideias. Murray (1991) acrescenta que a comunicação boca a boca tem maior credibilidade e é mais confiável do que outros tipos, por ser acessível pelas relações sociais. Ainda, segundo a autora, essas relações tornam a comunicação boca a boca contagiosa e persistente, além de reduzir o nível de risco percebido e a incerteza, bem como apresenta relevância, pois as pessoas confiam mais nas informações pessoais do que nas não pessoais. Diferentemente das informações midiáticas que se caracterizam como situações potencialmente comunicativas, e que, apesar de validadas a priori, são essencialmente monolocutivas (GHIGLIONE, 1984), a comunicação boca a boca pode ser considerada uma situação de contrato de comunicação, pois os interlocutores convergem para o mesmo sentido, e a informação tende a ser validada de imediato pela concordância (ou não). Dito de outro modo: a preponderância da comunicação boca a boca como o principal meio comunicacional e forma de conhecimento sobre o evento da RIRSS (48%), em associação com o meio midiático preponderante (rádio), indicam que aquilo que circulou nos discursos entre e intragrupos foi, (ou pelo menos parece ter sido) a versão oficial, entendida como governamental, do processo. Trata-se do mesmo discurso reproduzido pela Folha de S. Paulo, e que tornou o indígena invisível e, portanto, silenciado. Assim, o discurso reproduzido pela comunicação boca a boca, que em última instância representa a reprodução do discurso da mídia local (voz do Brasil), converge e representa uma reprodução do discurso também nacional (Folha de S. Paulo), já que a prática do copy desk é uma realidade no meio midiático. Em outras palavras, mesmo que a Folha de S. Paulo não tenha chegado aos leitores da região do conflito na sua forma física (impressa), atingiu-os por meio dos discursos veiculados. Portanto, a ideia de uma situação potencialmente comunicativa, geralmente tratada como contrato de comunicação pelos veículos de massa concretiza-se, não apenas pelo sentido da legitimação, mas, sobretudo, com base na ideia de subalternidade (SPIVAK, 1994), ou seja, a voz que transita entre o locutor e o interlocutor não pertence às minorias. O segundo bloco de questões, com base na expressão indutora - em relação aos indígenas, você os considera? - indicou os elementos que provavelmente compõem o núcleo central das representações do indígena. Tendo o número 4 como ponto médio de corte, em uma escala de sete pontos, os percentuais apresentados resultam da somatória dos valores válidos para cada fator investigado. Todas as respostas foram somadas em termos percentuais (válidos) com base no agrupamento em duas categorias: concordo em partes ou no todo (valores 5, 6 e 7) e discordo em partes ou no todo (valores 1, 2 e 3), sendo o valor 4 considerado nulo. Essa possibilidade interpretativa permite identificar as principais respostas e o seu nível de consensualidade, o que indica provavelmente o núcleo central da representação. Elementos mais abstratos compreendem as cognições que determinam à identidade da representação. Segundo a figura 3 parece existirem sistemas centrais diferentes, indicando representações diferentes (Abric, 1998). A figura também indica os elementos mais estáveis (ou mais presentes) dessa representação: vive na aldeia; vive junto na natureza; habilidade para o artesanato; vive na floresta e possuem uma cultura diferente, todos com índices de respostas acima de 70%. Essas indicações, segundo os dados, também demonstram certa estabilidade, em razão do percentual de validade (muito próximo) identificado. A variável guerreiro, com 66% das respostas, apesar do percentual inferior poderia indicar certa instabilidade na representação, porém, não parece ser o caso. Os resultados não mostram que há contestação dos elementos do sistema central em razão dos percentuais das respostas. A ideia de cultura diferente parece representar o núcleo mais central das representações sociais dos indígenas. Dentre os aspectos possíveis dessa diferença cultural, a língua representa um dos mais importantes pontos (se não o mais) dessa diferenciação. Rogers e Steinfatt (1999), ao falar em diferenças interculturais com base em diferença linguística, propõem um continuum de algumas possíveis combinações da comunicação humana, cujos pólos vão desde uma diferença cultural mínima, quando se compartilha a mesma língua, por exemplo, até a possibilidade de não haver comunicação, caso as diferenças culturais não sejam explicitadas/negociadas/traduzidas. Apesar da possibilidade de diferentes modos de interpretação em razão do contexto comunicativo ou do modo de ativação, os indicadores - guerreiro, aldeia, natureza, artesanato e floresta - reforçam a ideia de uma cultura não apenas diferente, mas, sobretudo distante, oposta. Ao reafirmar que as representações sociais têm uma estrutura particular, composta de crenças-nucleares que geram e gerenciam outras em uma sequência, Moscovici (2003), afirma, e de certo modo explica, como os sujeitos podem armazenar e partilhar crenças básicas (estruturantes), e, ao mesmo tempo, integrar experiências individuais (CAMPOS, 2003). Dito de outro modo: os resultados indicam um conjunto de crenças-nucleares que permeam o imaginário social e se reproduzem (com certas modificações), mas, essencialmente, mantem-se de forma estruturante. A noção do indígena que vive na selva, na floresta, que é um guerreiro e que faz artesanato (colares e cocares), permanece. Quando apenas 34% concordam com a afirmação de que os indígenas sofrem preconceito, aparecem subjacentes às respostas à força da norma antirracista, cujos discursos tendem a aderir ao politicamente correto. Pelos discursos identificados, parece haver preconceito se diz tê-lo e não quando se atribuem determinadas características (sobretudo negativas) a determinado grupo. Quando 34% também concordam com a afirmação de que o indígena não trabalha, e 20% os consideram selvagens (aspectos considerados como pertencentes ao sistema periférico dessa representação), parece criar-se uma barreira protetora às representações do núcleo central, dando a ideia de que não existem imagens e conceitos preconceituosos em relação aos indígenas. De fato, os resultados da centralidade das respostas indicam uma representação do indígena que o coloca em uma posição oposta aos indivíduos não indígenas e o caracteriza como um ser natural (no sentido de pertencente à natureza), muito próximo ou mesmo inserido (completamente) na floresta. A ideia subjacente de que o lugar do indígena é na mata se mantém, sugerindo e até confirmando que a identidade indígena se aproxima em forma e conteúdo aos animais, como se fossem menos humanos. Podese observar, com base nos resultados que há uma indicação de infra-humanização do indígena. Assim, o sentido de infra-humanização que ocorre em relação aos indígenas brasileiros pode ser compreendido como o que Souza (2003) denominou de subcidadania. O autor aponta que, no Brasil, ocorreu um processo de naturalização da desigualdade: “naturalização que não chega à consciência de suas vítimas, precisamente porque são construídas segundo as formas impessoais e peculiarmente opacas e intransparentes devido à ação, [...] que traveste de universal e neutro o que é contingente e particular” (SOUZA, 2003, p. 179), formando cidadãos de segunda e terceira classes. Redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos constituem um fenômeno de massa, construído também pelos veículos massivos, que constroem cenários cristalizados e tendencialmente permanentes de desigualdade. Nessa perspectiva, a categoria brasileiro (SOUZA, 2003) é (re)construída, sendo possível afirmar que o processo de desigualdade no Brasil é naturalizado, mas, sobretudo, sedimentado. Desse modo, os indígenas brasileiros que são vítimas de um preconceito cordial, e muitas vezes considerados menos humanos, são na verdade resultantes de uma sociedade que, historicamente construiu contradições e revelou um processo naturalizado de gente, subgente e não gente. No terceiro bloco a variância explicada com base na atribuição de um grau de concordância às expressões atribuídas aos indígenas possibilitou identificar as características de personalidade atribuídas a essa etnia. Com a análise fatorial, foi possível gerar dois componentes, denominados de traços positivos e traços negativos (tabela 1). Os componentes negativos (manipuladores, vingativos, agressivos, perversos, preguiçosos e instintivos), quando ordenados de modo crescente, indicam, sobretudo, características de personalidade existentes nas relações intergrupais. Os componentes positivos (extrovertidos, intuitivos, criativos, solidários, inteligentes, impulsivos e hábeis fisicamente) parecem indicar características presentes apenas nas relações interindividuais e também intraindividuais. Tabela 1: Características indígenas Características MANIPULADORES VINGATIVOS AGRESSIVOS PERVESOS LIVRES PREGUIÇOSOS INSTINTIVOS LEAIS A SUA IDENTIDADE EXTROVERTIDOS INTUITIVOS CRIATIVOS SOLIDÁRIOS INTELIGENTES IMPULSIVOS HABILIDADES_FÍSICAS Componentes (1) Negativos (2) Positivos 0,866 0,855 0,831 0,750 0,646 0,634 0,589 0,729 0,694 0,664 0,615 0,602 0,540 0,389 Fonte: Dados da pesquisa A variável leais a sua identidade não aparece com variância explicada, o que significa que, entre os sujeitos entrevistados, não há uma concordância em relação a esse item. Explica-se em grande medida a ausência de uniformidade de respostas o fato de os sujeitos do exogrupo não terem clareza da identidade indígena, o que, de certo modo, explica também que os sujeitos pesquisados não (re)conhecem a identidade indígena. Retomando a ideia de que o preconceito expressa especialmente um posicionamento negativo em relação a um grupo social, e que a influência de traços de personalidade, emoções e cognições são consideradas no surgimento de fenômenos dessa natureza (ALLPORT, 1979), explica, em grande parte a atribuição hostil de traços de personalidade nas relações intergrupais, alegando que os sujeitos (indígenas) pertencem a outro grupo (exogrupo). Os traços positivos existem apenas quando se trata, sobretudo, das relações intragrupais; em se tratando das relações intergrupais, prevalece a ideia de um indígena carregado de características de personalidade, pode-se dizer, nada nobres. Os coeficientes obtidos, tanto nos componentes negativos quanto nos positivos, indicam uma carga fatorial elevada, demonstrando que esses componentes (1 e 2) estão carregados, ou seja, possuem uma carga fatorial que reflete no conjunto aquilo que os sujeitos da pesquisa pensam em relação aos indígenas. A variância explicada (tabela 2) do quarto bloco de questões, resultante da análise fatorial, identifica como as demarcações de terras indígenas são percebidas pelos não indígenas.. Tabela 2: Demarcações de Terras Indígenas Componentes (1) DEMARCAÇÕES DE TERRAS INDÍGENAS (2) Situações Potencialmente Comunicativas MIDIA FALA VERDADE 0,822 OUVIDOS NA DEMARCAÇÃO 0,763 DEMARCAÇÕES SÃO JUSTAS 0,642 POLÍTICOS APOIAM INDIGENAS 0,559 AUTONOMIA INDÍGENA 0,512 0,958 Fonte: Dados da pesquisa. Considerando que o objetivo era identificar essa percepção, deve-se em conta a proximidade de uma situação semelhante e que podem influenciar as possíveis respostas. Entretanto, os resultados parecem não influenciados por uma situação de contato. Prevaleceu resultados decorrentes de situações potencialmente comunicativas, e as respostas dadas indicam o conteúdo que circulou na mídia Permanece uma ambivalência explícita das respostas (componentes 1 e 2). O fato de atribuir aos veículos de mídia uma clara legitimação (0,822), de certo modo explica os demais itens pesquisados, ou seja, as respostas dos sujeitos pesquisados indicam repetições dos conteúdos midiáticos. Essa ambivalência explicita-se no item ouvidos na demarcação (0,763–0,512). Assim, a variância (elevada) da variável autonomia é na verdade decorrente de um conjunto de percepções resultantes de uma situação comunicativa tratada e validada como contrato de comunicação. A ambivalência das respostas representa, em última análise, uma ambivalência de sentimentos, crenças, atitude, típicos das sociedades modernas (KATZ, WACKENHUT & HASS, 1988). Nesse sentido, o preconceito ambivalente situa a noção de conflito em um nível intrapsíquico, indicando a ambivalência entre sentimentos negativos e a força da crença na igualdade e na liberdade, apoiados por um discurso não preconceituoso. A demarcação e desocupação da RIRSS, objeto das questões apresentadas no quinto bloco, indicam uma situação de privação relativa (do endogrupo em relação ao exogrupo) em ambos os componentes. Tomando-se de empréstimo o conceito clássico de privação relativa, desenvolvido originalmente por Merton (1957), cujo conceito, segundo o autor, o sentimento de injustiça, associado à percepção da ausência de recursos, comparando a posse desse recurso por um grupo de referência, parece existir nos não indígenas, quando afirmam que os indígenas conseguiram muito mais do que mereciam. O sentimento de privação relativa parece se confirmar em razão da categoria de análise - conseguiram muito - apresentar o maior coeficiente de correlação. Em outras palavras, em um cenário de conflito, assumir que o exogrupo perdeu ou deixou de ganhar indica aquilo que estrutura a privação relativa: eles ganharam mais do que mereciam (tabela 3). Tabela 3: Demarcação Reserva Indígena Raposa Serra do Sol DEMARCAÇÃO RIRSS CONSEGUIRAM MUITO Componentes (1) (2) Ganhos do Perdas do exogrupo exogrupo 0,880 POSSUEM INFLUÊNCIA POLÍTICA 0,714 FORAM RESPEITADOS 0,669 NÃO FALARAM DO ASSUNTO 0,597 FORAM EXIGENTES 0,593 DISCRIMINAÇÃO NÃO É PROBLEMA 0,527 0,417 FICARAM CALADOS ESPERANDO GOVERNO 0,740 AUTORIDADES NÃO OUVIRAM OS INDIGENAS 0,681 FORAM PREJUDICADOS NA DEMARCAÇÃO 0,679 FORAM RESPEITADOS NÃO PRECISARAM DE AJUDA Fonte: Dados da pesquisa. 0,407 0,675 0,497 As pesquisas posteriores sobre privação relativa empreendidas por Runciman (1966), dão conta da existência de dois tipos de privação: fraterna, quando o grupo de referência normativo é exterior ao próprio grupo; egoísta, quando o grupo de referência normativa é o próprio grupo de pertença. Segundo o autor, essa distinção é importante para atribuir relevância social à primeira. A privação relativa do tipo fraterna explica a dinâmica dos conflitos entre grupos em busca de um cenário de justiça social. Nesse sentido, a hipótese da privação relativa consegue explicar por que os não indígenas, em um primeiro momento questionam as vantagens e conquistas dos indígenas no processo de demarcação e desocupação da RIRSS e em um segundo momento, quase que de modo dicotômico, tentam desestabilizar o exogrupo, cujo discurso é resultante de um sentimento de perda. Brown (1988) reconhece a importância dessa perspectiva e afirma que a hipótese explica o fato – insólito – de grupos dominantes exprimirem descontentamento social na tentativa de reforçar ou recuperar sua estrutura/posição de dominância. Na última parte do instrumento, com base na homologação da reserva pelo STF, as expressões apresentadas identificaram a dicotomia existente entre a autonomia indígena e a prevalecência da tutela. Tabela 4: Decisões Superior Tribunal Federal DECISÕES SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL (STF) RIOS E SOLO CONTROLADOS PELO GOVERNO FEDERAL RIOS (ENERGIA) AUTORIZAÇÃO GOVERNO FEDERAL GOVERNO (FEDERAL) PODE INSTALAR BASES MILITARES POLICIA FEDERAL PODE ATUAR GOVERNO (FEDERAL) PODE CONSTRUIR NA RIRSS (1) Componentes Autonomia (2) Tutela 0,857 0,845 0,828 0,811 0,811 GARIMPO SÓ COM AUTORIZAÇÃO DO CONGRESSO NÃO PODEM COBRAR TARIFAS 0,858 NÃO PODEM ALUGAR 0,838 NÃO PODEM VENDER TERRAS 0,829 PRECISAM SEMPRE DE AUTORIZAÇÃO 0,682 NÃO PAGAM IMPOSTOS Fonte: Dados da pesquisa. 0,656 Os itens do primeiro componente (autonomia), com uma variância explicada elevada, em termos percentuais, indicam que inexiste a ideia de autonomia, mesmo em terras indígenas demarcadas. A prévia autorização do governo federal a todas as possibilidades de usos e frutos do solo, dos rios e das riquezas traduz que as etnias indígenas e, em especial as etnias da RIRSS, não possuem autonomia. Um contra senso em relação à Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), que reconhece e estabelece aos povos indígenas o direito coletivo a terra e ao uso dos recursos naturais e à autodeterminação política. Deve-se lembrar que a declaração foi aprovada com o voto de 143 nações, entre elas, o Brasil. O segundo componente (tutela), cuja variância explicada dos itens também apresenta valores elevados, só reforça a ideia uma tutela extinta apenas no papel, apesar de o Congresso Nacional ter ratificado a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que revoga a tutela indígena. O item garimpo só com autorização do Congresso não apresentou uma variância expressiva, claramente explicável: garimpagem não é atividade indígena, como ficou demonstrado no teste de centralidade. As representações do indígena estão associadas à selva, à floresta, ao artesanato, à caça, à pesca e à luta (guerra). CONSIDERAÇÕES FINAIS De fato, identificam-se nos estudos capítulos de uma mesma história que se mantém (quase) inalterada. Fora da aldeia (na mídia), o indígena não se reconhece, mas, sobretudo, não é reconhecido: é invisível. Na aldeia, mantém a identidade original: caça, pesca e disputa por territórios. Também não é mais tutelado (pelo menos juridicamente), entretanto, ainda é um sujeito heterônomo. Comentando o trabalho dissertativo (não publicado) de Carmo (1991), Entre a cruz e espada: o índio no discurso do livro didático de história, Van Dijk (2004), argumenta que, de fato, as representações do indígena no Brasil (e, por extensão, na América Latina), estão todas elas vinculadas à origem dos descobrimentos, ou seja, permanecem as mesmas representações existentes por ocasião da chegada dos europeus ao continente, há mais de 500 anos. “Muitas de suas características não são descritas, são na verdade comparações explícitas e implícitas com os europeus”, afirma Van Dijk (2004, p. 171). Os resultados do estudo empírico corroboram aquilo que esse autor chama de associações de características do passado, e, com algumas exceções, com o presente. Tomando de empréstimo o resultado das pesquisas empreendidas por Van Dijk (2008), em relação aos negros no Brasil. O duplo papel exercido pelo silenciamento (negação da desigualdade e homogeneização da cultura) parece fazer eco com os resultados dos estudos empreendidos pelo autor, pois assim como outras minorias, também os indígenas não aparecem nos conteúdos midiáticos. Essas constatações de fato condicionam a relação entre comunicação e representações sociais. Não se podem comunicar sem partilhar determinadas representações. Desse modo, parece pertinente afirmar que fenômenos complexos como o preconceito são na verdade estruturas institucionais que, aparecem, sobretudo nos veículos de mídia, como situações potencialmente comunicativas, validadas como contratos de comunicação, com o objetivo de manter os discursos das elites dominantes. Assim, os resultados desse estudo indicam que as representações sociais dos indígenas veiculadas pela mídia são, na verdade, parte de um processo de manutenção do statu quo de determinados atores sociais. Essa construção, que também é social, intenciona manter um discurso hegemônico de uma democracia racial à brasileira, toda ela construída à custa da marginalização de grupos (negros, indígenas etc.) minoritários em favor dos grupos majoritários. De fato, aquilo que se veicula na mídia indica apenas o lugar específico do grupo hegemônico: a fala, a língua, as vestes, a alimentação, a dança, dentre outros aspectos. A identidade indígena que circula nos veículos de mídia é associada ao lugar do subalterno, silenciado (BRAGA & CAMPOS, 2011), cuja característica aproxima-o de um sujeito menos humano, quase infra-humano. Aquilo que Souza (2003) denomina de subcidadania, em relação aos indígenas, é na verdade um processo de naturalização da desigualdade. A identidade social do indígena que circula nos veículos de mídia é construída segundo formas impessoais e opacas, formando cidadãos de segunda e terceira classes. Esse fenômeno de massa que (des)qualifica determinados grupos sociais como hegemônicos, ao mesmo tempo precariza outros grupos, tornado-os invisíveis, subprodutos resultantes da massificação de um protótipo em detrimento da construção de um estereótipo. Nessa perspectiva, a categoria ‘brasileiro’ definida por Souza (2003) é toda ela naturalizada, sedimentada. O indígena brasileiro que é muitas vezes considerados menos humanos, é na verdade resultante de uma sociedade que, historicamente construiu contradições e revelou um processo naturalizado de gente, subgente e não gente. REFERÊNCIAS ABRIC, J. C. A abordagem estrutural das representações sociais. (P.H. F. Campos, Trad.) In A. S. P. Moreira & D. C. Oliveira (eds.) Estudos interdisciplinares de representação social (pp.27-38). Goiânia: AB. 1998. ALLPORT, G. W. The nature of prejudice. New York, USA: Addison-Wesley Publishing Company Katz, Wackenhut & Hass, 1988. AMARAL, Virgílio. 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PALAVRAS-CHAVE: Cidadania; Política; Redes Sociais; Introdução É inegável o processo de midiatização que a sociedade atravessa. Homens, mulheres e até mesmo crianças de diferentes níveis socioeconômicos, substituíram grupos tradicionais de convivência e debate de ideias como a família e a escola pela informação superficial e renovada a cada instante dos meios de comunicação de massa. Logo a construção da opinião, a curto, médio ou longo prazo destes indivíduos acontece a partir do que é mostrado por emissoras de rádio e televisão e jornais. Se também não é possível fechar os olhos às rotinas produtivas, aos recortes e aos comprometimentos 1 Trabalho apresentado no GT 2, Comunicação, Opinião e Imagem Pública, do VI Seminário de Mídia e Cidadania realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Mestranda em comunicação pela Universidade Federal de Goiás. Pós-graduada em Assessoria em Comunicação e Graduada em Rádio e TV também pela Universidade Federal de Goiás. Graduada em Jornalismo Pela Universidade Sul-Americana. E-mail: [email protected] editoriais que interferem no conteúdo exibido, logo emerge o questionamento sobre a qualidade dessa opinião que está sendo formada. Especificamente neste estudo será abordada a influência da mídia sobre a percepção que os brasileiros têm sobre a política e sobre os políticos. Afinal se a política é uma das principais ferramentas para viabilização da cidadania, e se é através da cidadania que a sociedade cresce de forma sadia, é preciso que esta discussão seja profunda e contínua, baseada em fatos reais e não em fatos mediados. Mas foi dito anteriormente que os veículos de comunicação de massa não oferecem conteúdo consistente para embasar esta discussão, então qual seria o espaço onde este debate poderia acontecer. Inicia-se aqui uma discussão se a internet, mais especificamente as redes sociais poderiam ser este espaço. O exercício da cidadania no Brasil A cidadania para T. A. Marshall (Carvalho, 2011) é o exercício dos direitos civis, políticos e sociais3. Ainda para o autor a ordem correta para sua implantação seria: primeiro os direitos civis, depois os políticos que por fim garantiriam os sociais como aconteceu, por exemplo, na Inglaterra. Mas em vários outros países, essa ordem não foi respeitada. No Brasil, por exemplo, o social precedeu os outros, inversão derivada por vários motivos, como a colonização latifundiária e escravagista que desde cedo imprimiu ao povo uma sociedade desigual além de não ter contribuído em nada para o desenvolvimento de um sentimento de pertença que para Marshall também faz parte da construção da cidadania. “Isto quer dizer que a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. As pessoas se tornam cidadãs a medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado”. (CARVALHO, 2011, p.12) Há também que ser destacado as décadas de regime ditatorial militar onde os direitos políticos e civis foram suprimidos. E considerando que a cidadania é uma prática 3 contínua, anos afastados do seu exercício comprometeram o seu Os direitos civis seriam aqueles essenciais à vida, como a liberdade, a propriedade, a igualdade perante a lei, o direito de manifestação do pensamento e a inviolabilidade do lar. Os direitos políticos garantem a participação do indivíduo no governo da comunidade em que está inserido. Por fim os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva, ou seja, saúde, educação, moradia e trabalho. desenvolvimento no Brasil. Mas Carvalho levanta ainda um problema atual enfrentado por todas as nações. “A internacionalização dos sistemas capitalista, iniciada há séculos mas muito acelerada pelos avanços tecnológicos recentes, e a criação de blocos econômicos e políticos tem causado uma redução do poder dos Estados e uma mudança das identidades nacionais existentes”. (CARVALHO, 2011, p. 13) Canclini reforça este pensamento ao afirmar que hoje a cidadania de um indivíduo é medida pelo seu poder de compra. “Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses – recebem resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos”. (CANCLINI, 1999, p.32) As pessoas medem sua existência perante a sociedade por aquilo que podem ostentar o novo modelo de celular, o carro zero quilômetro a roupa de grife. Itens que o mercado substitui cada vez mais rápido causando uma sensação de eterno vazio no indivíduo. O boom do crescimento econômico que o Brasil teve a partir do final dos anos noventa que elevou muito o poder de compra da população e o consumismo passou a ser uma característica inclusive das classes C e D. “...a cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do Estado” (VIANA, 2003). Com esta colocação de Viana discute-se então o papel do poder público no exercício da cidadania de um povo. Para o autor cabe aos municípios, estados e União, a implantação de políticas que acabem com a exclusão social, garantindo aos mais pobres direitos básicos como saúde, educação e moradia. Politicas que são elaboradas por vereadores, deputados federais, deputados estaduais e senadores e administradas por prefeitos, governadores e pelo presidente, eleitos pelo povo. O pensamento de Viana é respaldado por Arendt (1998) para quem, a política baseia-se na pluralidade dos homens e, portanto, deve regular o convívio dos diferentes e não dos iguais. Também para Bobbio (2000) política e a atividade que diz respeito aos interesses coletivos e individuais. Na democracia representativa (regime governamental brasileiro) o indivíduo escolhe quem ele quer que fale por ele no parlamento, e qualquer um que esteja de acordo com as exigências da justiça pode se candidatar a ser este porta-voz. Logo a cada eleição temos uma infinidade de candidatos com as mais diferentes ideias do que é bom ou ruim para a comunidade em que está inserido e para o país. Nesta democracia representativa o voto tem o mesmo valor independente da classe social ou nível de escolaridade do eleitor, mas um grande agricultor tem necessidades diferentes de um professor, logo seus representantes dificilmente serão os mesmos. Mas como escolher bem o representante? Sem dúvidas é preciso saber sobre leis, direitos, conhecer a atuação daqueles que se oferecem para trabalhar em nome do povo, ou seja, é preciso ter informação, e na sociedade atual este é um papel jornalismo, presente principalmente, nos meios de comunicação de massa. A política através dos olhos da imprensa no Brasil Hoje, de acordo com o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 97% dos domicílios no Brasil possuem pelo menos um aparelho televisor e 88% pelo menos um aparelho de rádio. Isso sem contar os pontos disponíveis em locais públicos e privados de grande circulação de pessoas. Logo o acesso a estes veículos não é mais uma barreira para se obter informação. Mas é preciso pensar em quem está disponibilizando esse conteúdo. “A imprensa não apenas chegou tarde ao Brasil como também se instalou com um perfil , predominantemente privado e comercial. Esse modelo se repetiu nas mídias eletrônicas (rádio, televisão) e, em função disso, tem características diferenciadas de outros países, entre os quais se destaca a propriedade dos meios por alguns poucos grupos familiares de diferente amplitude regional, nacional ou até mesmo com possibilidades de internacionalização, mas que atuam em bloco ou a partir de aliança de interesses”. (TEMER, 2011, p. 15, 16) Lima, crítico contumaz do sistema de concessão de radiodifusão no Brasil reforça a colocação de Temer. “De qualquer forma, é preciso lembrar sempre: o que está realmente em jogo quando se trata das relações entre Comunicação e Política é o processo democrático. As distorções de poder provocadas pelo desequilíbrio histórico entre os sistemas privado, público e estatal (de radiodifusão), pela concentração da propriedade – em boa parte provocada pela ausência de normas que impeçam a propriedade cruzada – e a vinculação dos grandes grupos de comunicação com lideranças políticas regionais e locais são alguns dos problemas que impedem a democratização da nossa comunicação. E sem ela não haverá diversidade e pluralidade de informações, vale dizer, opinião pública autônoma e, portanto, democracia plena. (LIMA, in DUARTE, 2009, p. 93) O fato mais conhecido no Brasil que exemplifica as colocações de Temer e Lima é a cobertura das eleições presidenciais de 1989. A Rede Globo, maior emissora de televisão do país, admitiu anos depois, que manipulou a cobertura do último debate entre os dois candidatos que chegaram ao segundo turno, Fernando Collor de Melo 4 e Luiz Inácio Lula da Silva. A matéria exibida no Jornal Nacional5 no dia seguinte foi editada para beneficiar Collor. José Bonifácio Sobrinho, o Boni, que durante anos foi o responsável pela programação, inclusive jornalística, da Rede Globo, disse ainda que momentos antes do debate tirou a gravata de Collor, passou glicerina no rosto do candidato para que ele ficasse suado e parecesse mais povo e assim “ficasse em pé de igualdade com a popularidade de Lula6”. Gomes (2004) ao fazer uma análise da forma de fazer política depois do surgimento dos veículos de comunicação de massa mostra como a midiatização da atividade política não mexeu no ato de governar, mas nas ações que interferem na formação da imagem pessoal do político. Antes da televisão e do rádio os políticos precisavam do contato com o povo, tanto durante a campanha para divulgar suas ideias, quanto depois para tornar públicas suas ações. Havia também um maior envolvimento partidário, principalmente para as ações em nível nacional, uma vez que o candidato não conseguia ir à todas as cidades brasileiras. Logo, exceto por parco material impresso produzido o contato entre políticos/partidos e eleitores era real. Hoje tudo que o candidato faz é para que a mídia mostre, ou seja, um intermediário entre o político e o eleitor. Ressaltando aqui o papel cada vez menor do partido. Por isso o autor reforça que nos dias atuais existem a política da mídia e a política que ninguém vê. A política na mídia deixa a afetividade, demonstra ideias com a construção de uma narrativa polida na construção do lado político. Os interesses do partido são preteridos pela aprovação do público. Há uma diminuição do debate político porque a massa quer entretenimento e quando há o debate, é espetacularizado. A política que ninguém vê são os conchavos, o faz de conta entre integrantes do próprio partido e entre partidos para a manipulação da opinião do eleitor. E ainda a discussão de 4 Mesmo antes das eleições a Rede Globo ajudou a construir a imagem de um Fernando Collor atuante e justo, ao exibir várias matérias que mostravam o então governador de Alagoas afastando pessoas que ocupavam cargos públicos de grande salário sem trabalhar, os marajás. Collor ficou conhecido como o caçador de marajás. 5 De maior audiência e de maior credibilidade no país à época. 6 Entrevista disponível em http://www.uoytube.com/watch?v=VrpurEkmJku interesses pessoais e não públicos, os favores individuais em detrimento de políticas públicas. A programação jornalística tem destaque dentro mídia pela credibilidade que carrega, e é um dos espaços mais disputados por quem quer ou precisa se fazer visto. Mas o jornalismo tem um papel bem mais nobre que ser vitrine, o jornalismo tem função social de promoção do bem comum. “Exercendo-se pela difusão de informações e comentários em torno da atualidade, o jornalismo tem por objetivo precípuo informar e orientar as populações de uma região determinada e de todo um mundo” (BELTRÃO, 1980, p.14). Ainda de acordo com o autor “A opinião nasce do conhecimento de fatos e situações, que o receptor confronta com uma ideologia” (Ibid). Logo, o telejornalismo poderia ser considerado uma ferramenta para o desenvolvimento da cidadania caso sua preocupação maior fosse à divulgação de informações de interesse público, ou seja, assuntos que de alguma forma levassem o indivíduo e a coletividade ao bem estar físico ou emocional. Mas Traquina (2008) afirma que processos como o capitalismo, industrialização, urbanização, educação em massa e o avanço tecnológico dos mass media transformaram o ato de noticiar em um negócio. Opinião compartilhada por Ramonet (2005). Para o jornalista francês, o mundo do jornalismo transformou-se no mundo do imediatismo, onde não há tempo para estudar a informação que cada vez mais é feita de impressões e sensações. A partir destas colocações seria possível concluir que a mídia, preocupada com o lucro, reconta fatos numa velocidade cada vez maior, porém sem conteúdo profundo suficiente para informar. Os brasileiros na internet Se a política e os políticos mostrados pela mídia são apenas parte da realidade e não podem ser a única fonte de informação para que o indivíduo se abasteça e promova o debate onde discutir política sem a mediação de ideias? Vários autores, entre eles, Sodré sugerem a internet como um novo espaço de debate público democrático. “O desenvolvimento da internet e de novas tecnologias da informação traz, em princípio, novas perspectivas para a liberdade de expressão, na medida que, se mostram fortemente receptivas à diversidade das formas discursivas e à precariedade financeira dos sujeitos da fala, o que dá margem a hipótese de redistribuição do poder comunicativo pelas tecnologias digitais”. (SODRÉ, 2009, p.122) A internet nasceu nos Estados Unidos no final da década de 60 em plena guerra fria. A Advanced Research Project Agency Network, que ficou conhecida como ARPANET, era uma grande quantidade de computadores ligados por um sistema central que garantia a comunicação militar americana caso os meios comuns sofressem um ataque da então União Soviética. Com o passar dos anos a rede foi aberta também a cientistas para que se comunicassem entre uma universidade e outra, daí ao uso doméstico foram poucos anos. A internet chegou ao Brasil na primeira metade da década de 90. Hoje segundo o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o país tem hoje 190 milhões de brasileiros, e segundo pesquisa divulgada pelo IBOPE7 em 26 de junho, hoje, 82,4 milhões de brasileiros se conectam á internet, seja em casa, no trabalho em escolas ou lan-houses. E desse total, 95% acessa pelo menos uma rede social8. Os programas de relacionamento se popularizaram com a mesma velocidade na internet. As primeiras surgiram já na década de 70, a IRC e a Usenet funcionavam como uma espécie de chat e permitiam também a troca de arquivos. A Six Deegreees foi criada na segunda metade da década de noventa e foi a primeira a permitir a criação de perfil e a formação de grupos de amigos. Hoje são milhares de redes, as mais acessadas no Brasil, são o facebook, o orkut e o google+. Gabriel (2010) traz uma classificação que a O´Reilly Media9 fez sobre os estágios da internet desde a década de 90. A web 1.0 era estática e as pessoas apenas navegavam e consumiam as informações. A web 2.0 já é a web da participação, onde as pessoas além do conteúdo veem e postam blogs, vídeos, fotos e redes sociais. Na web 3.0, ou web semântica, para as inovações e os usuários estão caminhando, além da informação e da interação, o contexto e as ligações referentes a essa informação permitirão encontrar um significado que auxilie o uso da web. Ainda segundo a autora esse caminho vem sendo trilhado há décadas com uma inovação tecnológica atrás da outra. O fax, os computadores pessoais, as impressoras o 7 Multinacional Brasileira de capital privado, há 69 anos faz pesquisa de mercado, hoje é considerada uma das maiores empresas de pesquisa de opinião da América Latina. O grupo Ibope é constituído por Ibope Media, Ibope Inteligência, Ibope Educação e Ibope Ambiental. 8 Pesquisa divulgada em abril de 2012 pelas empresas especializadas em internet Hi-Mídia e M.Sense. disponível em: http://www.agenciabamboo.com.br/blog/redes-sociais/72-dos-brasileiros-acessam-facebook-diariamente/ 9 Empresa americana que publica livros e sites na web. telefone celular e principalmente a banda larga que permitiu a mudança do estar conectado para o ser conectado. “ “Estar” conectado significa que você eventualmente entra e sai da internet, como era na época das conexões discadas à rede da década de 1990 e ainda hoje em muitos lugares no Brasil e no mundo e também nos telefones celulares que acessam momentaneamente a internet para navegação). “Ser” conectado significa que parte de você está na rede”. (GABRIEL, 2010, p.74) A política na internet Barizon (2011) mostra como os políticos foram entendendo a importância da comunicação e se adaptando as mudanças da mídia. Napoleão fazia poemas com seu nome, moedas comemorativas, artigos em jornais, usava a censura. Lenin colocava espiões dentro das redações, Stalin e Mussolini usavam o cinema e as paradas militares. Hitler distribuia aparelhos de rádio para que a população acompanhasse seus discursos ideológicos. Ainda de acordo com a autora, os primeiros políticos a investirem na internet foram americanos Bill Clinton e Bob Dole que concorreram às eleições presidenciais em 1996. O desempenho não teve destaque porque na época, apenas 6% da população tinha acesso ao novo meio e porque os próprios encarregados da campanha ainda não dominavam a nova ferramenta. Desde então o investimento na web cresceu a cada eleição até chegar ao ápice com a eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos em 2008. A interação com o eleitorado através de site, email, torpedos, blogs e participação em mais de dez redes sociais renderam uma arrecadação de quinhentos milhões de dólares e o título de presidente americano mais votado da história com 69,4 milhões de votos10. No Brasil o uso da internet em campanhas políticas começou de forma discreta em 1998. O então candidato a reeleição Fernando Henrique Cardoso e alguns outros candidatos criaram sites na tentativa de divulgar suas propostas. Assim como nos Estados Unidos, os candidatos brasileiros e seus idealizadores de campanha foram ano a ano dedicando mais esforços à rede mundial de computadores ampliando a quantidade de ferramentas utilizadas. Mas apenas na campanha presidencial de 2010 foi possível afirmar que as mensagens via internet atingiram a população, tanto que a resposta foi imediata. Assim como Dilma, Serra e Marina faziam posts e divulgavam notícias os 10 É válido ressaltar que o país tem 153,1 milhões de eleitores mas, ao contrário do Brasil o voto não é obrigatório. brasileiros se manifestavam a favor ou contra. Prova disso foram às centenas de vídeos postados no You Tube, e as hashtags11 apelidadas de twitaços como, por exemplo: #DilmaFactsByFolha, #serrarojas, #serranaomamae, #dilmentira, #MarinaAmarelou, #calabocalula e #falalula. Prova de que a população está usando as redes sociais para discutir política e até mesmo para organizar protestos, foi o recente movimento que aconteceu em Goiás: #ForaMarconi. Desde que o governador de Goiás, Marconi Perillo, teve seu nome envolvido em escândalos de corrupção, alguns segmentos da população como estudantes e profissionais liberais, começaram a combinar através das redes sociais, protestos presenciais para pedir o afastamento de Marconi Perillo. Um movimento ainda tímido, na internet chegava a reunir mais de cinco mil pessoas, na Praça Cívica pouco mais de mil, mas que não pode deixar de ser visto como um importante início de mobilização popular. Considerações finais A popularização da web é espantosa, enquanto o rádio e a televisão levaram respectivamente 38 e 13 anos para alcançar os 50 milhões de usuários, a internet levou quatro anos. Muito graças á tecnologia que hoje permite o acesso em casa, na escola, no trabalho e em pontos públicos com os computadores desktops, ou de qualquer lugar do mundo graças aos netbooks, tablets e celulares. Mas é fato que a internet ainda é um meio de comunicação em desenvolvimento, num primeiro momento, comparada a junção entre a televisão e do rádio, mas com características que se renovam tão rápido, mais uma vez baseadas nos avanços tecnológicos, que nem mesmo os profissionais de comunicação sabem como utilizar a totalidade de suas potencialidades, seja para informação, educação, arquivo, comércio, publicidade etc. Assim como os profissionais da comunicação os próprios usuários ainda estão descobrindo a funcionalidade da web, primeiro era apenas fonte de informação e 11 São palavras-chave antecedidas pelo símbolo "#", que designam o assunto o qual está se discutindo em tempo real no Twitter. As hashtags viram hiperlinks dentro da rede e indexáveis pelos mecanismos de busca. Sendo assim, usuários podem clicar nas hashtags ou buscá-las em mecanismos como o Google para ter acesso a todos que participaram da discussão. As hashtags mais usadas no twitter ficam agrupadas no menu Trending Topics, encontrado na barra lateral do microblog. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Hashtags entretenimento, depois como veículo de comunicação de baixo custo (e-mails, chat´s), depois para publicidade e comércio e agora para relacionamento e mobilização. Na net as pessoas tendem a falar, aquilo que muitas vezes não falam pessoalmente, ou por medo de repreensão ou porque diante da rotina diária estressante e cheia de compromissos não sobra mesmo tempo. Também são justas as críticas de que no mundo virtual as pessoas são menos verdadeiras, mais fantasiosas que no mundo real e que por isso as ações iniciadas na internet, em sites, blogs ou redes sociais, jamais de materializarão. Mas como negar que mesmo tímido o movimento #ForaMarconi é sim mobilização popular? E o que dizer então dos constantes protestos contra políticos, contra situações de violência que tomam conta da net. Ainda que restritos ao mundo virtual, só o fato das pessoas estarem lendo, perguntando, trocando opiniões já é algo que em muito contribui com a formação da opinião pública e consequentemente da conscientização para o exercício da cidadania. Cabe aos profissionais da comunicação e principalmente à academia o papel de se debruçar sobre este novo veículo e estimular o seu uso enquanto ferramenta de comunicação pública, além é claro de vigiar para que seu domínio continue livre. Assim evitaremos que essa grande possibilidade de voz democrática que é a internet, se transforme em concessões privadas, assim como aconteceu com o rádio e a televisão. Sim, porque todos os problemas colocados neste artigo sobre os meios de comunicação de massa, não estão na ferramenta em si, mas no uso lesivo á coletividade que se faz das mesmas. E com uma observação um pouco mais atenta, é possível notar que assim como aconteceu com o rádio e televisão que cresceram impulsionados pela publicidade, com a internet o caminho se repete. Por isso atentai-vos pesquisadores, direcionem sua atenção para a internet e talvez possamos de uma vez por todas abrir um canal de comunicação democrático, direcionado à comunicação pública, funcionando como uma ferramenta para o exercício da cidadania. Bibliografia: ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998. BARIZON, Daniele. Eleições em Rede – a evolução do uso da internet em campanhas presidenciais. São Paulo: Textonovo, 2011. BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Interpretativo: Filosofia e técnica. Porto Alegre: Sulina, 1980. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2000. CANCLINI, Néstor Gárcia. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 4ª Ed. 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Dilma, Mulher A Representação da Condição Feminina da Presidente do Brasil na TV 1 Gabriella Nunes de GOUVÊA2 Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF Resumo O presente estudo realiza uma breve análise dos elementos utilizados na construção midiática sobre a presidente Dilma Rousseff feita por dois programas televisivos de entretenimento tendo em vista sua condição de mulher ocupante de um cargo político. À luz de conceitos como representação e esterotipização e com base em estudos sobre as relações entre mídia-mulheres-política, o trabalho objetiva verificar como o campo midiático constrói imagens e narrativas sobre as mulheres na política. Palavras-chave Representação social; estereótipos; gênero; mídia; política. Introdução Este estudo apresenta uma análise inicial realizada a partir de uma pesquisa mais ampla, ainda em desenvolvimento, que tem como foco a construção de narrativas midiáticas sob a ótica da crescente aproximação entre agentes políticos e mídia. Aqui, o foco reside na observância da relação, no campo político, entre representação midiática e a reprodução de estereótipos de gênero. A partir da análise de dois programas de entretenimento - programa Mais Você apresentado por Ana Maria Braga, na Rede Globo, e programa da Hebe Camargo, da Rede TV – será possível verificar como cada um deles constrói a imagem da presidente Dilma Rousseff enquanto mulher ocupante de um cargo político. 1 Trabalho apresentado no GT 2 – Comunicação, Opinião e Imagem Pública do VI Seminário de Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012 na Universidade Federal de Goiás (UFG) 2 Mestranda em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Orientador: prof. Luiz Gonzaga Motta. O presente trabalho faz parte do projeto "Narrativas Jornalísticas e História do Presente", registrado no CNPq, liderado pelo prof. http://midiaecidadania6.blogspot.com.br/ Luiz Gonzaga Motta. 1 E um dos aspectos fundamentais a serem analisados quando se discute as interfaces entre estes temas – gênero, política e mídia - é justamente a crescente adequação vivida pela esfera política com relação à cultura e à lógica midiáticas. Exemplo disso é a participação inédita de um presidente eleito do Brasil preparando uma omelete ao vivo em um programa de variedades e culinária – como é o caso do programa Mais Você, objeto de análise no presente estudo. Não há como questionar que a centralidade adquirida pelos meios de comunicação de massa e as mudanças promovidas por eles na sociabilidade dos indivíduos se estendem, hoje, para a esfera política 3, uma vez que a legitimidade do poder também depende da mídia. Para Estrela Serrano (1998), os meios de comunicação de massa promoveram o surgimento de uma publicidade mediatizada que alterou não só as formas de visibilidade pública, como o próprio exercício do poder. A transformação da visibilidade é, assim, marcada pela separação entre a produção e a recepção no que se refere à capacidade de ver e ser visto. Ora, esta mudança das condições da visibilidade mudou as condições do exercício do poder. Os media, sobretudo a televisão, levaram os políticos a encontrar regras para orientar e praticar essa visibilidade, na medida em que necessitam dela, não apenas para assegurar o voto dos eleitores, mas também no exercício do poder no dia a dia, em que os processos de decisão são, cada vez mais, públicos (SERRANO, 1998) De fato, as imbricações entre política e mídia não são novidade dos tempos atuais. Segundo Thompson (2008), Luís XIV da França e Filipe IV da Espanha, “monarcas do início da Europa moderna”, já utilizavam a mídia impressa – além de outros meios tradicionais, como a pintura – para construírem sua imagem pública. De acordo com o autor, “no reino de Luís XIV, por exemplo, periódicos como Gazette de France, publicado duas vezes por semana, e Mercure Gallant, publicado mensalmente, reservavam um espaço fixo para as ações do Rei”. O advento das mídias eletrônicas como o rádio e a TV - trouxeram, no entanto, possibilidades de construção de um tipo de visibilidade simultânea e desespacializada que fez surgir o que o autor denomina de sociedade da auto-promoção. Assim, foi possível que os líderes políticos passassem a se mostrar como indivíduos comuns, amigos do público, sem a aura de grandeza “que encobria líderes políticos e instituições no passado” (THOMPSON, 2008). 3 A esfera pública política constitui a esfera da deliberação. Segundo Silva (2006), decisão e poder são algumas das palavras-chave que delimitam o espaço político, uma vez que é ele o espaço social da legalidade e no qual tudo se pauta pela observância das leis. 2 Como destaca Luis Felipe Miguel (2002), ao mesmo tempo em que os meios de comunicação de massa ampliaram o acesso aos agentes políticos e aos seus discursos, estes mesmos agentes também se tornaram expostos, de forma mais permanente, aos olhos do público. Por isso, os agentes políticos orientam suas ações conforme o impacto que elas irão lhe render na mídia. É o que Luis Felipe Miguel (2004) chama de "gestão da visibilidade". De acordo com Wilson Gomes (2008), “a visibilidade pública, enquanto norma democrática, há de se materializar em espaços concretos onde o público possa ver, ouvir, tomar conhecimento, eventualmente discutir, os negócios de interesse comum”. Desta forma, o centro da visibilidade é aquele onde as pessoas estão diante de uma atenção pública concentrada. Em se tratando de meios de comunicação de massa, a televisão se destaca, tendo em vista que ela reúne a audiência de relevante parcela da sociedade no Brasil se tornando assim uma “grande vitrine da visibilidade pública nacional” (GOMES, 2008). Luis Felipe Miguel (2002) observa que a visibilidade na mídia é, cada vez mais, componente essencial da produção do capital político. Segundo ele, “a presença em noticiários e talk-shows parece determinante do sucesso ou fracasso de um mandato parlamentar ou do exercício de um cargo executivo”, na medida em que deve acrescentar algo ao capital político próprio do ocupante. Assim, além de recorrer à retórica, segundo Oliveira (2004), os atores políticos se veem obrigados a recorrer à poética, ou seja, “a arte de produzir boas representações, visando provocar um efeito emocional no público”. É preciso encenar, emocionar o expectador e, ainda, reunir acontecimentos em algumas figuras políticas específicas, em uma crescente personalização da política. Como afirma Bernard Manin (1995), “hoje, a estratégia eleitoral dos candidatos e dos partidos repousa na construção de imagens vagas que projetam a personalidade dos líderes”. De acordo com Alessandra Aldé (2001), a construção eficiente da imagem pessoal é um dos elementos que sempre caracterizaram a política. A gestão da visibilidade pessoal na mídia, segundo Biroli e Miguel (2010), “é uma preocupação central e permanente dos atores políticos e não se limita aos períodos de competição eleitoral”, justamente devido ao que ela representa para a compreensão dos cidadãos acerca da política e daqueles que a compõem. No entanto, nos último tempos alguns acontecimentos evidenciam que a busca dos atores políticos em se fazer presentes na mídia conquista novos (e inesperados) 3 espaços a cada dia. Nos Estados Unidos, em 2009, Barack Obama foi o primeiro presidente em exercício a participar de um talk-show exibido nas noites norteamericanas. No Brasil, Dilma Rousseff – já eleita - não fez diferente. No dia 1º de março de 2011, a presidente foi a convidada do programa Mais Você, exibido nas manhãs da TV Globo, e que naquela ocasião comemorava o Dia da Mulher. Dias depois, em 15 de março, foi a vez de Hebe Camargo: Dilma a recebeu para uma visita no Palácio da Alvorada. A entrevista – exibida pela Rede TV – durou cerca de quarenta minutos e incluiu um passeio pelas dependências da residência oficial da presidente. Segundo Norbert Lechner (1996), a cultura política substituiu a palavra pela imagem. Os atores políticos competem a todo momento pela atenção do público, promovendo assim mudanças na capacidade decisória dos cidadãos. Vivimos inmersos em una cultura de la imagen que altera la idea que nos hacemos de la política. Para bien y para mal, ya no podemos pensarla al margen de la televisión. Cuando el don de la palabra es restringido por el manejo de la imagen, cambian las estructuras comunicativas sobre las que se apoyan tanto las relaciones de representación como las estrategias de negociación y decisión. Los dispositivos del marketing no reemplazan, pero modifican la deliberación ciudadana. Mientras que los políticos compiten denodadamente por la atención, siempre limitada, del televidente, este ha de enfrentar mudo una invasión de estímulos. Fragmentada en miles de instantáneas inconexas, la política ha de ser reconstruida como un caleidoscopio de flashes. Existe una sobreoferta de información que no hace sino resaltar la erosión de los códigos de interpretación. Ello nos remite a los desafíos que enfrentan lãs culturas políticas. (LECHNER, 1996) A partir da mesma ideia de Thompson sobre a desespacialização, apresentada anteriormente, Osvald Ianni (1997) afirma que com as tecnologias eletrônicas “a política se desterritorializa” e a imagem, a multimídia e o espetáculo audiovisual é que predominam. Assim, o debate político já não se configura mais como tal: adquire status de show e faz com que a busca por espaço no campo político hoje não mais prescinda da busca por espaço no campo midiático. Entender as imbricações entre mídia e política é fundamental para que possamos avançar na discussão sobre os processos de estereotipização realizados pelos meios de comunicação de massa acerca da condição feminina de mulheres ocupantes de cargos políticos – em nosso caso, a presidente Dilma. Estudiosos e pesquisadores levantam a todo momento explicações acerca dos motivos pelos quais os agentes políticos querem se fazer presentes e vistos pela mídia, aproximando-se cada vez mais do campo midiático. Construção do capital político, ausência de debates ideológicos ou ainda busca por glamour, capaz de transformar a forma burocrática como as atividades 4 do Estado são muitas vezes caracterizadas, estão entre os motivos apontados por autores da área. Para Oliveira (2004), o próprio surgimento da democracia de massas implica na criação de novas formas de relação dos atores políticos com os eleitores. Exemplo disso é a atenção pública concentrada – mencionada anteriormente –, tida como uma das demandas cognitivas essenciais à política e da qual hoje a mídia é uma das detentoras. Representação social, mídia e mulheres: estereotipização O conceito de representação neste trabalho é entendido com base nos estudos desenvolvidos pelo francês Serge Moscovici (2003), que partiu do conceito de representação coletiva de Émile Durkheim. Assim, a representação social é tida enquanto processo de constituição e construção de percepções, ideias, imagens e paradigmas por parte dos indivíduos, maneiras específicas de compreender e comunicar o mundo. Segundo Moscovici, “no que se refere à realidade, essas representações são tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos, como cognitivos, estão ajustados” (2003, p.32), sendo, portanto, formas de conhecimento. É válido ressaltar o caráter coletivo e consensual das representações sociais: elas não são criadas por um, mas sim por vários indivíduos e compartilhadas por eles, além de se darem por meio de um processo dialógico, conversacional. E é justamente por isso que podemos dizer que toda interação humana pressupõe representação social. No caso específico deste trabalho, que analisa a representação a partir da ação midiática, podemos entender o conceito enquanto a maneira como a mídia compreende e comunica algo. A mídia, portanto, é esfera de representação (BIROLI; MIGUEL, 2008). Retomando Stuart Hall (1997), os meios de comunicação de massa exercem papel fundamental na construção de significados que, por sua vez, atuam na construção da nossa própria identidade, regulam e organizam nossas práticas, determinando regras e normas que ordenam a vida social dos indivíduos. No caso do presente estudo, nossa análise se dá a partir da representação midiática sobre mulheres ocupantes de cargos políticos. Para Biroli e Miguel (2011, p. 11), a representação do mundo social feita pela mídia contribui para perpetuar a desigualdade vivida pelas mulheres nos espaços de tomada de decisão. A isso, somam-se a posição das mulheres na família, sua situação no mercado e a parcela dos recursos econômicos que controlam. A manutenção da oposição entre o político e o doméstico, que confirma a relação ‘natural’ entre a mulher e a vida familiar, é um dos aspectos que fazem partes desses constrangimentos (à 5 participação política das mulheres), dentro e fora do discurso da mídia. (BIROLI; MIGUEL, 2011, p. 15) O termo estereótipo é formado a partir de duas palavras gregas: stereos, que significa rígido, e túpos, que significa traço (PEREIRA, 2002, p. 43). O conceito diz respeito às crenças compartilhadas sobre os atributos pessoais e comportamentos de um grupo de pessoas4. É interessante destacar o caráter cultural e histórico que muitos dos estereótipos possuem, tendo em vista sua transmissão ao longo de diferentes gerações de indivíduos. O autor ressalta ainda o papel exercido pelos meios de comunicação de massa na difusão de crenças estereotipadas. Assim, na medida em que nas sociedades modernas os estereótipos juntos com os demais conteúdos informacionais, avaliativos e valorativos são transmitidos através dos meios de comunicação de massas, podemos imaginar que eles atingem milhões ou mesmo bilhões de pessoas, levando a constituição lenta e inexorável do que poderia ser denominado de repertório coletivo dos estereótipos (PEREIRA, 2002, p. 53, grifo meu). E o cinema é exemplo disto. Segundo Pereira (2002, p.9) a indústria cultural “tende a reforçar imagens estereotipadas dos diversos grupos, como se observa nas personagens encontradas em obras cinematográficas norte-americanas”. Assim, os colombianos “invariavelmente são caracterizados como traficantes” (2002, p. 9), os italianos como mafiosos e os japoneses, mestres em artes marciais, para citar apenas alguns exemplos. O que a mídia faz é aplicar um julgamento estereotipado a determinado indivíduo, ou grupo social, num processo que o autor intitula estereotipização. No caso dos estereótipos sobre a condição feminina, é por meio da oposição entre o público e o privado que os meios de comunicação contribuem para reforçá-los. A vida familiar e doméstica é vista como o lugar próprio das mulheres, ao mesmo tempo em que a conquista do espaço público, político é vista como exceção. Durante o programa Mais Você, inclusive, a presidente Dilma destaca que “quando a mulher assume alguma posição de mando, ela é vista como estando um pouco fora do seu papel”. 4 Importante destacar que, segundo Pereira (2002), os estereótipos hoje são tidos não mais como generalizações indevidas feitas por indivíduos preconceituosos, e sim enquanto resultado de processos adaptativos – ou seja, são maneiras de simplificar a forma como o mundo é interpretado, considerando o grande número de informações a que os indivíduos estão expostos na atualidade. O autor menciona, inclusive, estudos que entendem os estereótipos enquanto ‘gestalts esclarecedoras’ (2002, p. 48): são eles que fornecem informações adicionais sobre uma determinada categoria ou grupo social. 6 Em um estudo que analisou o noticiário de telejornais e revistas semanais a fim de verificar como estes veículos realizavam a representação da mulher na política brasileira, Biroli e Miguel (2008, p. 38) concluíram que “os meios de comunicação de massa reproduzem e mesmo reforçam a especialização da atividade política”. Os autores verificaram que a presença das mulheres é, de fato, minoritária: elas representavam 19,6% das aparições nas revistas e 22,8% nos telejornais. As assimetrias de gênero nas representações da política difundidas pela mídia ficaram, assim, evidentes. E nas ocasiões em que o noticiário traz, como personagens, mulheres ocupantes de cargos políticos, a associação que se realiza entre o gênero feminino e a privacidade, intimidade e assuntos relacionadas ao corpo, beleza e vaidade tornam-se muito claras. Mulheres como Benedita da Silva, Marina Silva e Marta Suplicy, para ficar apenas naquelas que ocuparam o cargo de ministras no governo Lula, têm sua visibilidade na mídia muito marcada pelas roupas que usam, pela maquiagem ou ausência dela e por eventuais cirurgias plásticas. (BIROLI; MIGUEL, 2011, p. 171) Biroli e Miguel (2011) destacam, inclusive, que “há muito mais atenção ao estado civil e às relações afetivas das mulheres na política que dos homens, bem como a sua aparência física e indumentária”. Ao associar qualidades como emotividade à fala feminina também há uma desvalorização do papel exercido pelas mulheres no campo político, tornando natural sua subalternidade frente à atuação masculina. Dilma: mulher dura, homens meigos De acordo com Biroli e Miguel (2011, p. 183), Dilma Rousseff “foi caracterizada negativamente pela ‘dureza’ e pela ‘secura’ masculinas no trato – o que a levou mais de uma vez a dizer, ironicamente, que era ‘uma mulher dura cercada de homens meigos’”. A representação feita pela mídia sobre Dilma Rousseff começou antes mesmo de sua candidatura e eleição como presidente da República. Ela atuou como ministra de Minas e Energia e ministra-chefe da Casa Civil - durante o governo do então presidente Lula - nos anos de 2003 a 2005 e 2005 a 2010, respectivamente. Nessa época, Dilma ficou conhecida no país como uma mulher linha dura, com fama de autoritária. Sua atuação em movimentos de esquerda, durante o governo ditatorial brasileiro, também deu a tônica de grande parte do noticiário. 7 [...] de 1967 a 1972, a militante Dilma Vana Rousseff (ou Estela, ou Wanda, ou Luiza, ou Marina, ou Maria Lúcia) viveu mais experiências do que a maioria das pessoas terá em toda a vida. Ela se casou duas vezes, militou em duas organizações clandestinas que defendiam e praticavam a luta armada, mudou de casa frequentemente para fugir da perseguição da polícia e do Exército, esteve em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, adotou cinco nomes falsos, usou documentos falsos, manteve encontros secretos dignos de filmes de espionagem, transportou armas e dinheiro obtido em assaltos, aprendeu a atirar, deu aulas de marxismo, participou de discussões ideológicas trancadas por dias a fio em “aparelhos”, foi presa, torturada, processada e encarou 28 meses de cadeia (Revista Época, edição 639 de 14 de agosto de 2010). Em 2003, quando Dilma ocupava o posto máximo do Ministério de Minas e Energia, uma matéria da revista Veja intitulada “O cérebro do roubo ao cofre” 5 a apresentou como “mulher de fala pausada, mãos gesticuladoras, olhar austero e passado que poucos conhecem”. O texto dizia que Dilma havia se envolvido “em ações espetaculares de guerrilha”, pegou em armas, foi duramente perseguida, presa e torturada e que havia tido papel fundamental durante o caso do roubo ao cofre do governador paulista Adhemar de Barros, em 1969 – assalto de 2,5 milhões de dólares que é considerado pela revista uma “das ações mais espetaculares da guerrilha urbana no Brasil”6. Já em novembro de 2005, quando liderava a Casa Civil, uma matéria também da revista Veja7 aproveita, logo no título, para fazer um trocadilho com o passado militante da então ministra: “A ex-guerrilheira abre fogo”. Já em 2008, quando começam a se desenhar as disputas para a sucessão presidencial, a revista 8 diz que Dilma Rousseff é “a primeira aposta de Lula” para a presidência da República e, ao elencar os prós e contras de sua personalidade, afirma que ela “tem raciocínio rápido” – o que aparece como um ponto forte -, mas possui “gênio difícil, pavio curto” - como um dos pontos fracos. 5 Edição 1785, de 15 de janeiro de 2003. 6 A título de encadeamento das análises e discussões que serão desenvolvidas adiante, foram selecionadas aleatoriamente algumas matérias publicadas nas revistas Veja, Istoé e Época durante os anos em que Dilma ocupou cargos de ministra, bem como durante sua candidatura à Presidência, para que possamos ter uma ideia da representação até então feita por diferentes veículos de comunicação no país sobre a atual presidente. 7 Edição 1929, de 2 de novembro de 2005. 8 Revista Veja, edição 2050, de 5 de março de 2008. 8 Ainda em 2008, o colunista Leonardo Attuch – na revista Istoé9 - compara Dilma ao ex-presidente Ernesto Geisel em um texto intitulado “Geisel de saias”. Segundo Attuch, Dilma “lembra o general”, tem “mão de ferro”, “fama de durona, inspira medo nos subalternos e fala grosso, como se o tom de voz amplificasse sua autoridade”. Em 2010, a revista Época10 publicou a matéria “A construção da candidata Dilma”, que narrava as “metamorfoses” vividas pela candidata à disputa presidencial. Na reportagem, ela é caracterizada como “uma política treinada por Lula na arte de caçar votos” e que “era conhecida como a campeã do PowerPoint, [...] profissional disciplinada, concentrada no trabalho e capaz de recitar de memória números sobre a infraestrutura do país”. Um episódio narrado durante a reportagem mostra os motivos da fama de autoritária. Em 2004, Dilma gritou com o então presidente da Eletrobrás, Luiz Pinguelli Rosa, durante uma discussão presenciada por várias pessoas. Rosa levantou-se da mesa, pediu demissão e saiu. Subordinados também reclamavam de broncas aos gritos e rompantes de raiva de Dilma (Revista Época, Edição 614, de 22 de fevereiro de 2010) No entanto, a revista afirma que “a Dilma técnica foi substituída pela Dilma política, risonha e candidata à Presidência”, em um processo que contou ainda com uma mudança física – que incluiu cirurgia ocular, “para dispensar o uso dos óculos”, intervenções estéticas e troca do vestuário, com peças de roupas mais modernas. No final, “o resultado foi uma suavização na sua imagem”. Também em 2010, a revista Istoé11 traz – de maneira oposta ao noticiário então aqui apresentado – uma matéria que dizia logo no início: “com fama de durona na política, Dilma é muito diferente na vida privada: mantém laços afetivos com os dois ex-maridos e faz de tudo para que a mãe, o irmão, a filha e o neto fiquem longe dos holofotes”. Como o próprio titulo sugere - “Laços de família” -, a reportagem narra detalhes de sua vida íntima e da convivência de Dilma com parentes. O texto diz que, se para o público em geral Dilma é conhecida pelo estilo linha dura, “até certo ponto emburrada e econômica nos sorrisos”, na vida particular ela tem uma grande habilidade para preservar laços antigos. 9 Disponível em: http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/coluna/2469_GEISEL+DE+SAIAS. 10 Edição 614, de 22 de fevereiro de 2010. 11 Edição 0001, de 3 de novembro de 2010 9 Esta breve recapitulação de exemplares do noticiário impresso brasileiro durante diferentes momentos políticos da presidente contribui para pensarmos como os enfoques sobre Dilma Rousseff foram mudando ou mesmo se repetindo desde que ela se tornou ministra do governo Lula. Análise dos programas televisivos “Entre presidente e presidenta eu acho que a primeira mulher tem a obrigação de ser presidenta”, disse Dilma Rousseff à apresentadora Ana Maria Braga. Naquele 1º de março de 2011, Dilma era a convidada do programa Mais Você, exibido nas manhãs da TV Globo, e que naquela ocasião comemorava o Dia da Mulher. Dias depois, em 15 de março, foi a vez de Hebe Camargo: Dilma a recebeu para uma visita no Palácio da Alvorada. Comandados por mulheres, os dois programas enfatizaram a historicidade daquele momento: Ana Maria e Hebe Camargo estavam diante da primeira mulher a ocupar o mais alto cargo político da democracia brasileira. Ana Maria Braga definiu a conquista de Dilma como “a quebra de um paradigma”. Hebe Camargo, durante a conversa com a presidente, lembrou que em 1955 ela apresentou um programa chamado “O mundo é das mulheres”, considerado o primeiro programa feminino da TV brasileira. “Só que nós mulheres naquela época...”, dizia a apresentadora quando Dilma completou: “O mundo não era nosso”. Hebe - “E hoje eu estou aqui entrevistando a primeira mulher presidente do Brasil. Isso não é uma coisa maravilhosa?” Dilma – “Eu acho que é. Nós somos um pouco mais da metade da população brasileira, mas a outra metade são nossos filhos. Então na verdade nós temos essa capacidade de representar as mulheres e também as crianças, os jovens”. Exibido de segunda a sexta-feira, o programa Mais Você reúne editorias de artesanato, moda, beleza e comportamento. O destaque fica, no entanto, com a parte da culinária: a apresentadora Ana Maria Braga prepara receitas, muitas delas enviadas pelos telespectadores. O bom dia bem-humorado de Ana Maria Braga às 8 da manhã, de segunda a sexta-feira, dá início ao Mais Você, programa de informação e entretenimento. Ana Maria, com a companhia inseparável do Louro José, 10 mostra quadros de culinária, artesanato, beleza, jardinagem, moda, música, saúde e variedades12. De acordo com dados da emissora, 56% dos telespectadores do programa são mulheres; 42% do público total têm entre 25 e 49 anos e 48% dos telespectadores são da classe C13. Já o programa da Hebe Camargo aqui analisado foi exibido pela Rede TV em uma terça-feira, às 22 horas. Entrevistas com celebridades e personalidades da política e do esporte, reportagens nacionais e internacionais, games, musicais, espaço para moda e comportamento davam a tônica da atração14. Considerando que Dilma é a primeira mulher presidente do país e ambos os programas televisivos em análise foram comandados por mulheres, o intuito é verificar quais os elementos discursivos presentes na narrativa midiática constroem a imagem de Dilma Rousseff, confirmando ou não estereótipos sobre a condição feminina na atualidade. Para proceder a presente análise foram definidos blocos temáticos semânticos, que nos permitem agrupar as diferentes narrativas estruturadas durante os programas sobre temas específicos e que, por sua vez, estão diretamente relacionados à representação midiática sobre as mulheres ocupantes de cargos políticos. Assim, a definição dos blocos se deu tanto com base nos estudos, já discutidos anteriormente, acerca da permanência e naturalização dos estereótipos de gênero, bem como a partir das pautas dos próprios programas televisivos. São eles: família, vaidade, personalidade e habilidade na cozinha. Acerca de cada um destes temas, será feita a seguir uma breve descrição de como eles foram abordados nos programas em análise. Cabe destacar que o estudo contemplou todo o tempo de exibição dos dois programas analisados no qual a presidente Dilma esteve presente: o Mais Você, com cerca de uma hora, e o programa da Hebe com aproximadamente quarenta minutos. -------------------------------------------Vaidade Ana Maria – “A senhora faz regime?” 12 13 14 Disponível em: <http://comercial.redeglobo.com.br/programacao_feminino/maisvoce_intro.php> Disponível em: <http://comercial.redeglobo.com.br/programacao_feminino/maisvoce_dados.php> Disponível em: <http://www.redetv.com.br/hebe/oprograma.html> 11 Dilma – “Faço” Ana Maria – “Inclusive a senhora emagreceu” Dilma – “Emagreci bastante. Eu emagreci quase seis quilos” Enquanto coloca um pouco de azeite na frigideira, Ana Maria Braga discute com a presidente Dilma Rousseff sua forma física. A “briga” com a balança é apenas um dos momentos em que a vaidade da presidente vem à tona. Durante o programa Mais Você, a apresentadora exibiu ainda uma entrevista com Luiza Stadtlander, estilista que faz as roupas de Dilma há 17 anos. Segundo a estilista, todas as roupas são exclusivas. “Tudo para a presidente não encontrar por aí alguém com roupa igual a dela”, completa o repórter. Uma amiga de Dilma, Vera Stringuini, diz que no dia da posse da presidente, quando elas se reencontraram, a primeira coisa que conversaram foi sobre maquiagem. “A gente se abraçou, se olhou e disse: ‘Tá bem maquiada hein!’” Hebe Camargo também não deixa o assunto passar em branco. “Você se preocupa com a roupa quando vai sair? O que você acha que é indispensável como presidente?”, pergunta a apresentadora. “Eu gosto do preto”, responde Dilma. O tamanho da bolsa das mulheres é outro assunto do bate-papo entre Hebe e a presidente, quando a apresentadora pergunta “O que você acha indispensável na bolsa?”. “Eu tenho de ter óculos, batom e um pó” responde Dilma. Habilidade na cozinha O preparo de uma omelete na cozinha do programa Mais Você foi o ponto de destaque da participação da presidente Dilma naquele dia, até porque esse é um dos locais mais famosos do programa apresentado por Ana Maria Braga. Por isso, como não poderia deixar de ser, Dilma Rousseff se juntou à apresentadora e, literalmente, colocou a mão na massa. “A senhora chega a fazer alguma ida (sic) na cozinha no Palácio”, pergunta Ana Maria enquanto a presidente quebra os ovos que serão utilizados no preparo da omelete. “Agora num tem tempo mais pra mim ir (sic) lá na cozinha não. Mas antes na minha casa eu fazia”, responde Dilma Rousseff. Em um programa direcionado a donas de casas, aquele momento se tornou emblemático: a presidente se equipara a milhares de mulheres brasileiras e mostra aspectos comuns de sua vida, para além do cargo que ocupa (THOMPSON, 2008). 12 Por outro lado, a presidente não se mostrou tão à vontade na cozinha quanto se esperava: ao invés de sal, ela colocou bicarbonato de sódio na receita. E ao colocar a cebola na omelete, Dilma surpreendeu Ana Maria que não esperava que a presidente fosse despejá-la diretamente na frigideira. “Ah, a senhora mistura lá (na panela) a cebola. Vamos aprender a fazer uma omelete diferente hoje”, diz a apresentadora, surpresa. Possivelmente, a escolha e o preparo da omelete não se deu ao acaso. Mas é interessante observar que naquele momento a presidente se ‘enquadra’ em um modelo de mulher: aquela que cuida da casa, que cozinha para a família, mesmo que as habilidades da presidente na cozinha não tenham ficado tão evidentes quanto se esperava. Família Ana Maria -“Como é a relação dessa mãe presidenta com a filha e com o neto Gabriel?” Dilma - “Eu tenho sorte porque minha filha já está naquela fase de independência. Quando ela era pequenininha me ligavam no trabalho, porque minha filha tinha asma Ana Maria, e se ela tinha começado a crise eu disparava pra cuidar dela. Hoje não. Ela tem a família dela, ela casou tem um filho. Eu não entendia muito quando as pessoas diziam ‘Ah, eu tenho que ir lá pra ficar com o meu neto’. Hoje eu entendo porque eu quero ficar com meu neto.” A família de Dilma é um dos pontos de destaque da entrevista concedida pela presidente à Ana Maria Braga. Ela comenta ainda sobre a relação com os pais. Dilma conta que a mãe sempre foi muito solidária com ela, inclusive no período em que esteve presa. Já sobre o pai, Dilma conta que ele veio para o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, quando o fascismo se instalou na Bulgária, e destaca que dele herdou o gosto pela leitura. Aos 14 anos, recebeu de presente do pai uma coleção de livros de Jorge Amado. A entrevista concedida por Carlos Araújo, ex-marido de Dilma e pai de sua única filha, conferiu destaque às relações afetivas da presidente. "Nós nos conhecemos em 1969 em uma reunião no Rio de Janeiro. Ela era bem jovem, tinha 20 anos. Logo senti uma atração por ela, essas coisas que acontecem na vida de qualquer um. Foi um amor repentino, fulminante”, disse Carlos durante a reportagem. Personalidade A fama de durona de Dilma é questionada durante a sua participação no Mais Você. “É esperado das mulheres que elas sejam frágeis”, diz a presidente, “mas não 13 necessariamente menos forte dentro delas. [...] Quando a mulher exerce alguma posição de mando, ela é vista como estando fora do seu papel. Mas acho que daqui pra frente as meninas todas podem, primeiro querer ser presidentas, e segundo vai se tornar uma coisa natural que as mulheres assumam posições de liderança.” Para Ana Maria, a fama é injustificada. “Eu posso dar meu testemunho e dizer que a Dilma é muito amiga, muito agradável, ela é muito sorridente. Conhecendo ela mais de perto você vê a figura humana que é. Então essa coisa de durona eu nunca consegui enxergar talvez por vê-la de um outro jeito”. Ao anunciar a entrevista com Dilma Rousseff, Hebe Camargo diz: “Quando a gente fala da nossa presidenta Dilma a impressão que muitos têm é que ela é uma pessoa fechada. Mas essa semana fui bater um papo com ela, lá em Brasília. Eu só posso dizer uma coisa: ela é uma pessoa surpreendente. Vocês vão gostar!” O programa Mais Você exibiu ainda imagens da visita de Dilma a uma escola, em Porto Alegre, em 14 de dezembro. O carinho que as crianças demonstraram pela presidente garantiu mais carisma à Dilma. Considerações finais A importância da mídia na difusão de valores, ideias e concepções de mundo é indiscutível. Os acontecimentos são mediados com base em critérios específicos – relativos à própria profissão, aos processos e rotinas produtivas das notícias – e conservam ainda os pré-conceitos dos próprios jornalistas. Como já mencionamos anteriormente, a mídia contribui sobremaneira para a formação de representações e significações de mundo. Interessante observar que, se por um lado ambos os programas em análise trazem logo no começo a questão da importância histórica de uma mulher alcançar o posto de presidente da República, os discursos durante os programas conservam questões tipicamente femininas: o espaço privado, doméstico sempre é discutido junto à presidente. A historicidade daquele momento ganha destaque à luz da importância exercida pelas mulheres na esfera privada: o espaço político, na verdade, seria uma extensão da casa, da família, da sensibilidade feminina. Mais uma vez fica nítido que o discurso naturaliza as posições ocupadas pelas mulheres na sociedade: não se desvinculam delas questões relacionadas ao corpo, aos relacionamentos, à vaidade, à vida doméstica – e aí se enquadra por exemplo a habilidade na cozinha. Muito provavelmente se o eleito fosse um presidente, o programa 14 não traria um depoimento da esposa (ou ex) contando como o romance dos dois havia começado. Por trás disso, há a ideia de que necessariamente as mulheres conservam um romantismo em suas relações amorosas. Quando comparados ao noticiário analisado anteriormente sobre Dilma Rousseff durante o período em que ela ocupou o cargo de ministra, bem como durante sua candidatura, os dois programas revelam uma presidente meiga, sensível, que gosta de cuidar da casa, vaidosa. A militância de Dilma não ganha destaque nas discussões. Embora não seja objeto de análise deste estudo a forma como se deram as negociações para a participação da presidente durante os programas em questão, é inegável que estas negociações existiram e proporcionaram uma construção narrativa diferente daquela verificada um grande parte do noticiário impresso durante o período pré e póscandidatura de Dilma. A dicotomia entre o público e o doméstico tal qual apresentada pela mídia, como destacam Biroli e Miguel, realça o que as mulheres na política teriam em comum: “sua condição de mulher, entendida de maneira específica, isto é, caracterizada de acordo com os estereótipos que a definem por sua posição na esfera doméstica, seu corpo e a autoapresentação” (2011, p. 186). O fato é que o reconhecimento na esfera privada é o que garante o reconhecimento na esfera política: [...] hoje, as mulheres sabem que, para serem notadas, precisam não só de competência intelectual e profissional, mas ainda que sejam mais arrumadas e mais bonitas que o homem. As mulheres precisam estar sempre bem vestidas, têm de ser boas mães e boas esposas, enfim, cumprirem coisas que contam para ser consideradas dignas (GROSSI; MIGUEL, 2001) O acesso das mulheres ao campo político ganha, portanto, mais um obstáculo: para além do comprometimento com o espaço doméstico e com a família, que delas é exigido e torna mais difícil o acesso a carreiras profissionais que exigem flexibilidade e disponibilidade de horário, as mulheres têm na mídia mais uma batalha a ser travada. Referências ALDÉ, Alessandra. A construção da política: cidadão comum, mídia e atitude política. Tese de Doutorado (em Ciências Humanas). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. 15 BEZERRA, Ana Guedes; SILVA, Fábio. O marketing político e a importância da imagem-marca em campanhas eleitorais majoritárias. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Covilhã/Portugal, 2002. BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. 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O artigo busca problematizar os discursos diversos sobre a comercialização sexual, a partir de uma reflexão dos atos comunicativos gerados pela mídia. Palavras-chave: Mídia; Prostituição; Representações Sociais; Preconceito e Cidadania. 1. Prostituição: uma representação do avesso da modernidade Este trabalho tem como perspectiva dialogar com os conflitos nos referenciais modernos de comportamento humano, bem como as contradições produzidas na modernidade, levantando questões relacionadas à prostituição e como a mídia aborda este tema. O ponto de partida desse debate é a questão do comércio sexual na sociedade pós-moralista, expondo as impressões identificadas após um convívio em espaços onde se realizam esta atividade, bem como relatos de pequenas interações com trabalhadoras de diferentes modalidades de prostituição. Também busca suscitar algumas problemáticas acerca da prostituição, bem como os conflitos existentes entre sociedade e prostituta, evidenciando suas perspectivas morais e dialogando, sobretudo, com os discursos modernizantes que são assimilados pela sociedade rio-branquense. Também analisa alguns periódicos da década de 1990 que traduzem o pensamento de tais períodos históricos referentes à 1 Trabalho apresentado GT 1 - Comunicação, opinião e imagem pública do IV Seminário de Mídia e Cidadania do Programa de Pós-Graduação da UFG. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás, email: [email protected]. ³ Orientadora do Trabalho. Professora Dra. Simone A. Tuzzo, Professora Efetiva do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFG, Especialização e Mestrado, e-mail: [email protected]. prostituição e as relações sociais que as comportam, buscando compreender como aqueles que não fazem parte do universo de prostituição vêem as prostitutas, tendo em vista que nas relações intergrupais, ser prostituta é pertencer a uma outra categoria de representação social. Indagar soluções acerca dos abismos sociais, das desigualdades, das intolerâncias, dos preconceitos de diversos âmbitos, enfim, estabelecer supostos caminhos a serem seguidos ou realizados, torna-se complicado e cada vez mais distante de nossa realidade. O “mal-estar” da pós-modernidade que Bauman analisa é resultado das iluminadas afirmativas cartesianas que levariam à emancipação humana e que por fim deu lugar de destaque para um período de totalitarismos insustentáveis no século XX, além de não terem respondido às expectativas estimadas. (BAUMAN, 1998) Os iluministas fizeram um conjunto de promessas sobre emancipação e desenvolvimento humano, que deu lugar a um conceito conhecido como modernidade para contrapor ao que se convencionou chamar de idade das trevas. Essas promessas não alcançaram suas metas, tendo em vista que se vive, hoje, uma crise de identidade. Paul Valéry nos convida a refletir sobre essa questão: O mundo moderno em toda a sua potência, de posse de um capital técnico prodigioso, inteiramente penetrado de métodos positivos, não soube, entretanto, estabelecer uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais que estivessem em harmonia com os modos de vida que criou e mesmo com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvimento de certo espírito científico impõem pouco a pouco a todos os homens. (Valéry, apud Novaes, 2004: 11) Percebemos em Valéry o quão frustrante foram os discursos de desenvolvimento técnico como solução para a civilização, uma vez que a harmonia social tão sonhada por esses pensadores não se efetivou. Contradições sociais de todos os gêneros são intensamente presentes nos diversos âmbitos da sociedade moderna, em destaque o moralismo hipócrita que permeia nossos ares. 2. Olhares sobre o feminino Portadora do pecado, da lascividade, da perversão, esta constitui-se como uma das representações eternizadas no universo feminino, deixando-as como responsáveis pela “queda do homem”, a grande causadora das enfermidades mundanas. Sob esse julgo, a mulher ao longo de sua existência cria mecanismos de autonomia em relação a essas denominações negativas, na busca de superar tais estigmas. A mulher também se constitui como categoria dentro de uma perspectiva classista, definidora de uma ideologia feminista vivencia da essencialmente na década de 60, levada a exigir direitos iguais, no intuito de executar a mesma quantidade de poder exercida pelo indivíduo do sexo masculino. O movimento feminista nasce e se firma como revolucionário, no intuito de tornar igual o diferente, passando pelo trajeto de masculinizar o feminino. No entanto, tal filosofia tentou inibir o debate sobre as particularidades femininas, generalizando a ascensão feminina pelo fato da mesma adentrar ao mercado de trabalho para competir intelectualmente com o seu adversário – O homem. (AZERÊDO, 2007: 53). Entre as discussões feministas, que estão longe de expressar posições unificadas, algumas (abolicionistas) manifestariam, sobretudo, um interesse na extinção da prostituição. Evocando argumentos e reiterando posicionamentos presentes nos debates anglo-saxões sobre pornografia da década de 1980 (Piscitelli, 2003:215), essas últimas abordagens afirmam que a prostituição reduz as mulheres a objetos e é sempre e necessariamente degradante e danificadora para as mulheres. (PISCITELLI, 2004: 294) O movimento feminista não compartilha de um modelo único de filosofia, existem várias facções dentro desta categoria: umas lutando, insistentemente, por direitos iguais, outras assumindo as diferenças e afirmando que elas devem ser respeitadas, enfim, diversos pontos de vistas são encontrados nesse movimento. Porém, existe um enorme esforço em expor à sociedade o quão evoluído é o “ser mulher”, para isso devem trucidar todos os estigmas construídos a partir de Eva e Maria Madalena procurando estabelecer uma relação nova a partir do rompimento com o pecado herdado pelos antepassados. (GREGORI, 2004: 238). Desde o papel sexual, de sujeito responsável diretamente pela procriação, até sua atuação no mercado de trabalho, a sexualidade feminina encontra-se em confronto no universo falocêntrico, em que esta vive em meio AO e para O mundo masculino. Sobre a mulher, a modernidade buscou além de torná-la parte do espaço público voltado ao mercado de trabalho, que ela fosse versátil e eficaz nos afazeres domésticos, bem como no cuidado com os filhos, utilizando suas singularidades maternas como o carinho e atenção insubstituível do enigma feminino. A mulher com seu arquétipo de “Eva: a raiz do pecado” é pauta desde os primórdios nos debates acadêmicos, bem como das exortações bíblicas, medicinais, entre outras. Sobre essa temática, Emanuel Araújo, analisa a sexualidade feminina no Brasil Colônia, fazendo uma leitura sobre como esse “ser feminino” era trabalhado pela medicina nesse período histórico: Eles procuravam entender, explicar e catalogar o que a mulher sabia e fazia com naturalidade, apoiada em uma experiência ancestral. Mapeavam o corpo feminino e, um tanto desnorteados e desastrados, inventavam interpretações para o funcionamento e para os males da vulva, da mestruação, do aleitamento, do útero, com as respectivas prescrições. (ARAÚJO, 2004: 52) Contudo, o autor nos informa e esclarece que por mais que essas arbitrariedades quanto ao controle e curiosidade do feminino estivessem em voga, as mulheres não se permitiam ser adestradas por completo, reagiam de variadas formas à adequação comportamental quanto ao uso, sobretudo, as formas de desuso do corpo. (ARAÚJO, 2004: 53) No âmbito dos Direitos Humanos à mulher tem sido destinado leis com certas peculiaridades, que tentam superar uma história de intensas privações e exclusões. Contudo, é de se pensar em que termos a efetivação dessas leis contribuem para a atuação feminina na esfera política, econômica e familiar. 3. O discurso midiático e a prostituição no Acre Uma cidade que comporta aproximadamente 300.000 habitantes, com características de capital agitada, mas que ainda comporta relações entre vizinhos, amigos e parentes, tornando-os de certa forma próximos, acarretando uma relação de controle e vigilância sobre o outro, eis uma característica da moderna capital acreana. As prostitutas neste local são vistas nas esquinas da Via Chico Mendes comportando-se de forma avessa aos padrões modernos de conduta feminina. As moças que se prostituem estão presentes na história rio-branquense com diversas funções sociais, além de estabelecerem uma organização interna na efetivação do seu trabalho, bem como na relação com as demais prostitutas e os seus “protetores” ou “guarda costas” noturnos. Rio Branco comporta diversas modalidades de prostituição: as trabalhadoras dos prostíbulos oficiais, as autônomas das ruas (Rio de Janeiro, Benjamin Constant, Via Chico Mendes, entre outras). Além daquelas que buscam ocasionalmente fazer programas nas pensões e bares situados em mercados. Jornais locais são portadores de modelos ideais a serem seguidos pela moças de família em Rio Branco, como é o caso de um artigo publicado no Jornal Repiquete na década de 80 que traz dois exemplos de moças que “perderam-se na vida”.4 Podemos perceber no anexo (2) a intensidade de juízos de valor arbitrário emitido pelo jornal Repiquete através da forma como ele se refere aos “namoradinhos insistentes” das moças que como “vítimas” desses verdadeiros “lobos-maus”, tiram a pureza das “pobres donzelas indefesas”. Padrões comportamentais baseados na ética cristã estão intensamente presentes no discurso do Repiquete, ao impor aos seus leitores um modelo de vivência de moças, mostrando o quão “frustrante” é a vida na prostituição, como se tal profissão fosse algo condenativo para a eternidade e o pior dos pecados. Demonstrando aversão a essa profissão, Repiquete acusa os rapazes que insistem em ter relação sexual fora do casamento como culpado pela inserção das moças nessa atividade, como se as mesmas não possuíssem condições psicológicas de rejeitar a proposta, como se o fato de não serem virgem as submetessem à condição de “mulher da vida”, ou como sujeitos despossuídos de valor perante a sociedade, além de considerar algo degenerativo. A sociedade moderna se utiliza dos meios de comunicação para impor seus valores, este exemplo de Rosa e Tereza foi utilizado para “alertar” as moças “puras” de Rio Branco que se por acaso perdessem a virgindade antes do casamento; a prostituição poderia ser uma conseqüência de tal erro, como se elas perdessem o “valor” após ter a primeira relação sexual fora do casamento. De forma alguma está sendo colocada em questão a idade das moças citadas pelo jornal, considerando-se um crime a exploração sexual de menores de idade. Pensemos, então, sobre como os discursos moralizantes desse meio de comunicação, que colocando-se em uma “missão social”, expôs dois exemplos de pessoas que se sentiram vítimas de seus ex-namorados por terem tido 4 Jornal circulado nos anos 1984 e 1985, pela direção de Elson Martins e edição geral de Sílvio Martinello. Arquivo pesquisado no CDIH (Centro de Documentação e Informação Histórica). relações sexuais antes do casamento, em uma forma de mostrar o “mal” que pode causar tal ato. Uma pesquisa realizada por acadêmicos do curso de História da Universidade Federal do Acre sobre a prostituição no bairro Papouco, local histórico do comércio sexual no Acre, detectou três tipos de prostituição: prostituta profissional, prostituta ocasional e prostituta moral. (MORAIS, 1993:38) Tais classificações utilizadas, mesmo que de forma didática, tentam traçar o perfil de sujeitos que possuem seu caráter e personalidade postos à prova devido ao uso que fazem de seus corpos. Entendendo que os sujeitos possuem autonomia sobre seu corpo, ideias e escolhas, o uso do corpo nesse caso constitui-se como um elemento de exclusão, em que tais mulheres são vistas como portadoras do pecado e da lascividade. Por consequência, esses estereótipos acabam sendo assimilados por muitas trabalhadoras do sexo, que se sentem como seres possuidores de dinheiro sujo e amaldiçoado quando perguntei sobre o que ela achava sobre considerarem sua profissão como proporcionadora de “dinheiro fácil”: “Não é mais fácil assim, mas é um dinheiro amaldiçoado, eu acho assim. Porque a gente já ganha esse dinheiro assim, você ganha hoje e amanha você num tem”, disse Pétala. 5 O fato de o salário mínimo ser distribuído uma vez por mês faz com que as pessoas sejam automatizadas a esperá-lo em uma data fixa, o que torna algo estável na vida dos trabalhadores. Na fala de Pétala percebemos que o seu dinheiro torna-se “amaldiçoado” justamente pela falta de estabilidade em relação à quantidade e a freqüência com que ela o consegue. A prostituição constitui-se, nessa situação, como uma atividade autônoma, em que as mulheres que trabalham no respectivo bar não estão submetidas ao proxenetismo e nem submissas a um regime de trabalho com carga horária estabelecida. Os meios de comunicação local contribuem na divulgação dos padrões de comportamento sexuais ditos “normais” e, portanto, aceitos pela sociedade riobranquense. Temos o exemplo de um discurso divulgado em um jornal local, em um artigo que está intitulado como: “Difícil vida fácil ainda anima Rio Branco”, onde é feita uma reflexão e um histórico sobre a vida de mulheres que alugam seu corpo, momentaneamente, para práticas sexuais. Eis um trecho do artigo onde o jornalista faz uma análise da prostituição em Rio Branco: 5 Nome fictício utilizado para privar a identidade da trabalhadora. Os antros de prostituição no estilo tradicional estão em franca decadência. Hoje, estão restritos a alguns pontos localizados em bairros como o 15, Papoco, Estação e 6 de Agosto. Nesses locais ainda são conservadas, sempre acesas, as luzes vermelhas da cor do pecado. Os bordéis do bairro 15 é imagem acabada da decadência imposta pela liberalização dos costumes e padrões morais somados a competição com profissionais mais jovens, bem vestidas e detentoras de “macetes” importados de outros centros mais desenvolvidos na arte de vender o corpo. (Jornal O Rio Branco, 01/04/1990) Notamos qual é a representação da prostituição para o autor deste artigo ou para a editoria do respectivo jornal ao afirmar que esses espaços de trabalhos onde mulheres que comercializam práticas sexuais, constituem a “imagem acabada da decadência”. Esses conceitos que impõe padrões de comportamento considerado digno permeiam até mesmo os espaços considerados moderno, pois percebemos uma intensa carga de pensamentos degenerativos em relação a um espaço que comporta diversas relações sociais, inclusive, constitui-se como um local alternativo de relações comerciais, que rompem com os trabalhos considerados normais e, portanto, aceitos, na sociedade moderna. A história das mulheres é repleta de desigualdades entre os sexos, onde a mulher considerada como ser de caráter duvidoso desde sua criação, recebeu um tratamento jurídico, social e político diferenciado em sua trajetória. Rachel Soihet em Mulheres pobres e violência no Brasil urbano, nos informa alguns dados à cerca de algumas arbitrariedades jurídicas: “No Brasil, de acordo com o Código Penal de 1890, só a mulher era penalizada por adultério, sendo punida com prisão celular de um a três anos. O homem só era considerado adúltero no caso de possuir concubina teúda e manteúda”. (SOIHET, 2004: 365). Parece-me que estamos diante de dois aspectos reveladores do comportamento feminino do século XVIII, tais preceitos contribuíram de forma significativa para a efetivação do seguinte estereótipo: “mulher de família fica em casa cuidando dos filhos”. Enquanto seus respectivos conjugues estavam livres para relacionar-se com outras mulheres, exceto as prostitutas, pois elas ameaçavam a estabilidade financeira da família. Contudo, cabe pensarmos se tais situações foram efetivamente abolidas da sociedade “pós-moralista”, será que passamos a compreender as singularidades femininas? Será que já superamos a dicotomia “mulher de família” x “mulher de puteiro”? Questões como essa se tornam necessárias nesse debate para pensarmos por quê o Brasil, conhecido como o país do carnaval, que denota um sentido liberal em relação aos costumes, não legalizou tal profissão? 4. Democratização sexual ou apelo midiático? Sabemos que a comercialização sexual constitui-se, substancialmente, da exposição corporal de sujeitos que se submetem a tais práticas, logo, esse universo exige um padrão físico visivelmente desejável e em se tratando de locais considerados promíscuos, conhecido popularmente como baixo meretrício, esse ideal de corpo escultural não se torna regra absoluta, pois se permite uma variedade de perfis, que em outro contexto social poderia ser considerado inaceitável, vendo que, nesses espaços passa a receber existência significativa: “Tem homem que gosta de gorda, tem homem que gosta de magra, tem homem que gosta de loira, morena, baixa, alta. Tem gosto pra tudo”.6 A moça que mantive uma pequena conversa foi enfática em afirmar que no espaço de trabalho em que ela se encontra existe a possibilidade de rompimento com padrões modernizantes de beleza e de obtenção de prazer, justificando essa teoria a partir do pluralismo de estilos de consumidores: “Tem um homem que vem que ele é homossexual, ele vem só pra ir pro quarto com ela, vestir a roupa dela e ficar alisando ela e pede pra ela ficar alisando ele. Ele não transa, entendeu! Ele vem só pra se divertir.”7 A diversidade de “estilos” existente no universo do consumo de prazeres sexuais estão presentes como forma democrática de escolhas, porém há que pensar que esse fato não exclui a existência,e em alguns casos, a predominância de um modelo de corpo desejável e portanto, sexy, dentro da logística do comércio sexual. Todo esse regime quanto ao uso do corpo (FOUCAULT: 1984), parece nos levar a reflexão a cerca do sentido de tais práticas. Uma profissional que trabalha comercializando práticas sexuais é reprovada pela sociedade pelo uso que faz do seu corpo, apesar de compreender que tal atividade está diretamente ligada à autonomia que 6 7 Prostituta de uma casa noturna em Rio Branco, Gabriela. Prostituta de um bordel em Rio Branco, Girassol. cada sujeito possui com seu corpo, essa profissão acaba por tornar-se de domínio e preocupação pública. A prostituta constitui-se uma aberração na dita civilização, pois ela quebra algumas barreiras impostas pelo discurso modernizante da ciência sexual, bem como do regime das condutas sexuais aceitas pela res publica. Os pós-modernos apesar de terem afrouxado certos dogmas e até mesmo banido muitos deles, ainda mantém idealizações quanto ao uso do corpo, que os fazem idênticos aos gregos clássicos e aos pertencentes às “trevas”. Contudo, parece-nos que a grande preocupação dos modernos é com a trajetória do processo civilizatório, que tem como parada fundamental o culto ao corpo como um novo arquétipo de felicidade humana. A busca pelo ideal de bem-estar social está relacionada com a saúde perfeita, com o corpo moldado e sujeito a todas as exigências necessárias na construção do hiper-homem ou super-homem. Na sua fase hodierna, na qual a comunicação torna-se o elo mais poderoso do processo de globalização, identifica-se o surgimento de uma nova utopia em substituição àquelas perdidas ou ainda inacessíveis: uma utopia centrada no corpo, na saúde em aliança com a beleza. As informações sobre os problemas de saúde e as formas de se chegar à aparência de beleza circulam pelo mundo, atravessam as diferentes culturas pela força de penetração dos meios de comunicação de massa [..] SILVA(2001:60). Os meios de comunicação possuem papel fundamental na reprodução dos modelos ideais de corpo perfeito, higienizado, belo e saudável. Somos atingidos diariamente por inúmeras propagandas publicitárias dizendo: “faça isso, compre aquilo, seja isso e use aquilo”. Seguindo a lógica capitalista dos séculos XIX e XX, os “hipermodernos” são induzidos ao consumismo na tentativa de alcançar o padrão de beleza exigido nas passarelas da semana de moda da América Latina: São Paulo Fashion Week. (SILVA,2001: 60). Ana Márcia Silva nos presenteia com reflexões que conseguem traduzir grande parte dos dilemas vividos pelos habitantes do mundo globalizado, onde a comunicação instantânea tomou o espaço dos regimes totalitários. Agora é a comunicação quem permeia a vida dos habitantes da nova galáxia, não sem regras e princípio ordeiro, porém, seu percurso é feito por um viés diferente do que foi feito na era dos extremos. Dentro dessa lógica, o comércio sexual acaba tornando-se uma fonte bastante lucrativa. Os produtos culturais utilizam o sexo como o grande segredo do sucesso, não utilizando-o de forma ostensiva e em demasia, mas como pano de fundo de suas mensagens, sobretudo, visuais. O universo do comércio sexual carrega um conjunto de valores estéticos voltados ao culto do corpo, inclinando suas atenções a esse aspecto como sendo a matriz de todos os desejos. O corpo seria a imagem materializada da felicidade, tendo que ser cuidado, higienizado, enfeitado e, sobretudo, modificado, de acordo com as exigências que esse mercado faz. O espaço voltado para a obtenção do prazer dentro dos estigmas modernos é, portanto, caro e seleto, ele faz parte do que chamamos de mercado de luxo, isto em se tratando de obedecer aos padrões da moda da sexualidade. Mas é óbvio que seu avesso é predominante, uma vez que estamos tratando de um país rico em desigualdades, sobretudo, financeiras. Sobre esse aspecto, Silva, A. M (2001, p.4), faz a seguinte reflexão: A expectativa de corpo fundada a partir de seu culto, que é, em grande medida, de natureza narcisista, contrasta com a situação vivenciada por grande parte da humanidade que convive cotidianamente, com os flagelos da fome e da doença; para a grande maioria a expectativa de corpo se pauta por seu definhamento. Constituiu-se, assim, uma situação paradoxal: no momento em que toda a humanidade poderia estar usufruindo das promessas da Modernidade e dos decantados avanços da ciência, a maior parte dela não tem, nem mesmo, as condições básicas para uma vida digna. Silva (2001) expressa minuciosamente um dos maiores contrastes vivenciados em nossa sociedade de consumo, que está submetida aos maiores males já vivenciados historicamente, como doenças até hoje incuráveis como a AIDS, e que ao mesmo tempo sente a necessidade de estabelecer diálogos com objetos de consumo, incansavelmente, sempre criando novos campos de atuação para exercer seus anseios de possuir tudo e todos instantaneamente. É notório que essa sociedade é portadora de artifícios que estimulam tais práticas, como é o caso, da magnífica indústria propagandística, uma das maiores responsáveis por tornar os corpos dos sujeitos sociais em manequins de ilustradas vitrines de moda. Todavia, a modernidade comporta intrinsecamente seus avessos como parte integrante de sua fisionomia, nos quais estes padrões encontram-se presentes em várias relações sociais. Conclusão Entendo que cada ato comunicativo estabelece formas particulares de interação e de construção de diferentes sentidos, é possível compreender, em uma visão mais ampla, que a comunicação de fato é o suporte básico das representações sociais, em especial da representações de Prostitutas do Rio Branco. Partiu-se do pressuposto de que representação e comunicação são pré determinadas, caracterizam-se como atos comunicativos que, ao tentarem restabelecer a identidade de um grupo, (re)constroem a identidade do outro. O discurso da mídia é o do senso comum, marca definitivamente a relação entre coisa e signo, cujo contexto comunicacional é cada vez mais definidor das representações. O cenário acaba caracterizando-se como de conflito, onde se constrói um corpus de notícias sobre a prostituição de uma determinada região do País. Ao analisar também o discurso das prostitutas, apresenta-se a noção de situações potencialmente comunicativas de dois lados, refere-se em que sujeitos A e B (interlocutores) são ligados por interesses distintos. Neste sentido, os meios de comunicação de massa além de formatarem os padrões que devem ser adotados pela coletividade, constroem ainda discursos sobre o politicamente correto, aceitável, moralmente articulado com as normas sociais. Para (TUZZO, 2005:48), os massa media são responsáveis pela formatação de uma opinião pública a partir das lógicas de poder instituídos, ou seja, eles são responsáveis por grande parte do que a sociedade entenderá por opinião pública. Logo, em tempos de mídia, a hipermodernidade ou pós-modernidade discutida por (LIPOVETSKY: 2004), traz como eixo discursivo o espetáculo midiático como condição básica da existência em sociedade. Conduzindo-nos à ideia de que os meios são as representações de uma ideal democracia. 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São Paulo: Annablume, 2005. Entrevistas: Pétala e Rosa – prostitutas da pensão. Gabriela e Girassol – prostitutas de casa noturna. Anexos Anexo 1 - Jornal A Gazeta Data: 12 de janeiro de 1990 Página de notícias: Capa policial Capixaba com fome sexual termina logrado por gata O capixaba Benedito dos Santos, 39 anos, solteiro, residente na Rua Isaura Parente, s/nº, bairro Estação Experimental, decididamente numa de horror, pois há mais de um mês não via mulher na sua frente para fazer sexo, na noite de quarta-feira apelou. Disposto a tirar o atraso foi ao meretrício da 6 de Agosto, onde com muito sacrifício “ganhou” a companhia de Maria de Fátima Gomes Feitosa, de 23 anos mais feia que atraso de pagamento em véspera de carnaval. O certo é que após beber a mulher recusou acompanhá-lo ao quarto de motel, acabou agredida, e quase estuprada pelo trabalhador em brasa, que dormia no xadrez no 5º Distrito Policial. Na versão apresentada por Benedito Santos, ele realmente compareceu ao meretrício à procura de mulher pois não costuma ficar, muito tempo sem transar. Começou a beber então com Maria de Fátima, com quem acertara uma noite de amor num motel. Passava de meia-noite quando os dois saíram e apanharam um táxi, mas nas proximidades da ponte metálica, a meretriz mandou que parasse e fugiu correndo. A atitude revoltou Benedito, pois a mulher havia bebido, recebido seu dinheiro adiantado, e agora lhe deixava na mão. Saiu em perseguição da fuleira, deu-lhe uns cocorotes e deu azar, ao ser flagrado por agentes do 5º Distrito Policial. Anexo 2 – Jornal O Repiquete Data: 14 de Janeiro de 1985. Página de notícia: Matéria especial. A DIFÍCIL VIDA DE ROSA E TEREZA O primeiro passo da Rosa na prostituição foi dado quando tinha 13 anos, enganada por namorado. Ele disse que se eu não desse, iria embora. Cedi para ele não me deixar. Mesmo assim fui abandonada. Agora, Rosa está com 14 anos. Com o rapaz que mexeu com ela, não permaneceu mais do que 4 meses. Depois disso, começou a sair com algumas amigas, que a influenciaram bastante a cair na vida. Daí passou a ganhar “coisinhas” saindo com “coroas”. Ela dá preferência aos mais velhos, porque eles pagam melhor. Como Rosa, a maioria dessas garotas entre 12 e 16 anos é iludida; quando não, é forçada a fazê-lo. Algumas vão pela necessidade financeira, outras são violentadas bruscamente, quando então são rejeitadas pela sociedade, não podendo mais se recompor diante dela. A depravação de mulheres tão jovens dá-se comumente nas periferias de Rio Branco a falta de orientação sobre sexo é suprema. Apesar de tudo isso, muitas trazem consigo a necessidade, a miséria e algumas carregam traumas. Os jornais estampam os estupros, que a cada dia que passa ocorrem com mais freqüência. Na maioria dos casos há sempre um namoradinho insistente que promete “mundos e fundos” para ganhar a “mina”; depois que conseguem, na hora “H”, fogem como um animalzinho assustado. Repiquete presenciou várias cenas. As menores prostituídas, geralmente, são encontradas nas praças, principalmente, na Plácido de Castro, um ponto já conhecido pelos velhos da grana ou com dinheiro suficiente para passar uma boa noitada. Eles oferecem entre 40, 80 e às vezes, até 100 mil cruzeiros, dependendo da “mercadoria”. Em um famoso bairro de Rio Branco, apelidado, por Bostal encontra-se o que se pode chamar de uma “garota jeitosa”. Assim é Tereza, uma ex-prostituta, cheia de arrependimento e desgosto do seu passado. Ela entrou nessa vida com apenas 13 anos, quando namorava um rapaz e este lhe fez um convite para jantar fora. Sem que ela notasse o namorado colocou, na bebida, pílulas para dormir. Quando Tereza acordou já estava suja de sangue e em um motel fora da cidade. Três dias depois ele casou-se com outra. Com olhar tristonho, 18 anos, ela declara seus sofrimentos, depois disso: “Todos passaram a me olhar com outras intenções. Os rapazes não queriam somente a minha amizade, e ainda arranjei uma amiga que me botou a perder, em tudo. Já me considerava uma prostituta. Tereza conta que sua mãe fica na dela, soube desde a 1ª vez, sabe de sua vida toda, e está lhe entendendo, enfrentando “numa boa” com ela. Não tem pai e seus dois irmãos mantêm a casa. Atualmente está vivendo com um garoto, e afirma: “A única pessoa com quem já mantive relações sexuais de verdade com e amor e carinho, foi com esse cara. Para mim não existiu outro homem, a não ser ele. A gente leva uma vida social, legal. Já namorava com ele quando ficava com outros por aí; antes não gostava dele, depois fui me amarrando, agora a gente vive numa boa. Foi ele quem me tirou dessa vida”. “É uma vida incrível – afirma Tereza. São todos os homens, qualquer um que se vê, oferece uma certa quantia e a gente já vai. Se é feio ou bonito ninguém sabe, só na hora que está na cama. Uns querem bater, maltratar, outros não pagam, bebem muito, na maioria só velhos. Se eu fosse sair com algum velho daqueles, tinha que beber. Às vezes tomava porre e ficava por aí; algumas vezes um conhecido de minha mãe me trazia para casa. Sentia vergonha e talvez tomando aquela bebida, ia enfrentar tudo, encarava tudo que eles quisessem. Agora, quando lembro o que aconteceu, me dá vontade de chorar, sinto desgosto. Não penso mais nessa vida. E se por acaso aparecer outra oportunidade dessa, não aceitarei nunca, nunca mais na minha vida”. Comunicação Pública e Cidadania no Legislativo de Goiânia1 Quézia Alcantara2 Tiago Mainieri3 Universidade Federal de Goiás Resumo: Este artigo pretende fazer um estudo de caso da Comunicação Pública do poder Legislativo de Goiânia a fim de verificar se esta instituição promove a cidadania e a comunicação dialógica descrita por Paulo Freire. Palavras-chave: cidadania, comunicação pública, poder Legislativo A cidadania perpassa pelo direito à comunicação e à informação. O acesso às informações pode dotar o indivíduo de mais recursos a fim de garantir o pleno exercício de seus direitos enquanto cidadão. Isso porque vivemos na sociedade onde a informação gera mais conhecimento, mais conhecimento gera mais participação e mais participação significa exercício da cidadania. Mas, conforme Duarte (2009, p.4) “informação é apenas a nascente do processo que vai desaguar na comunicação viabilizada pelo acesso, pela participação, cidadania ativa, diálogo”. Este artigo tem como objetivo refletir sobre a Comunicação Pública no poder Legislativo como promotora da participação dialógica e cidadania. Para tal foi realizada uma pesquisa com estudo de caso sobre a Câmara Municipal de Goiânia (CMG) visando conhecer a instituição e a comunicação que é realizada ali, bem como diagnosticar problemas e incoerências que ocorrem nesse processo. 1 Trabalho apresentado no GT 2 – Comunicação, Opinião e Imagem Pública, do VI Seminário Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Aluna especial da disciplina “Seminários de Mídia e Cidadania” do curso de Mestrado do PPGCom/Facomb e especializanda em Assessoria de Comunicação e Marketing pela Facomb/UFG. 3 Orientador. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, professor pesquisador da Facomb/UFG Fez-se em primeiro lugar uma breve revisão bibliográfica sobre o conceito de Comunicação Pública e de cidadania a partir de definições propostas por estudiosos latinoamericanos. Depois, focou-se o olhar para a CMG tendo como delineamento da pesquisa fontes bibliográficas e documentais que serviram para o levantamento de dados, além de entrevistas em profundidade com jornalistas lotados na Divisão de Comunicação desta casa legislativa. As pesquisas latinoamericanas (Beltán, Bordenave, Freire) apontam tendências para a construção do conceito de comunicação como um processo horizontal de tal forma, que tanto o emissor como o receptor sejam sujeitos do processo comunicativo e, portanto, estabeleçam uma relação dialógica e participativa. Comunicação nesse sentido é mais que obter informações; é ser participante de um processo de troca, de compartilhamento que gera mudanças e que leva o sujeito a reescrever sua história. O educador brasileiro Paulo Freire (1985, p.67) defende esse processo dialógico como inerente à comunicação. Ele diz que “o que caracteriza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo”, o que a difere da simples transmissão de informações: A comunicação verdadeira não nos parece estar na exclusiva transferência ou transmissão do conhecimento de um sujeito a outro, mas em sua co-participação no ato de compreender a significação do significado. Esta é uma comunicação que se faz criticamente. (FREIRE, 1985, p.70) Daí que Freire não concebe comunicação sem ações de reciprocidade e de participação. Ações essas que promovem o indivíduo ao estado de cidadão, consciente de seus direitos, pelos quais reivindica, luta, negocia e ressignifica. Este tipo de comunicação que não é exercida pela grande mídia ou veículos de comunicação de massa, visto que seu funcionamento atende à lógica capitalista de produção de bens simbólicos, encontra espaço para ser exercido nas instituições públicas, cujo interesse primeiro deve ser o coletivo e a prática da cidadania. Defende Silva (2006, p.7) que atualmente “o que está em prática é uma comunicação pública lado a lado a uma comunicação midiática, sendo que cada uma possui suas regras próprias, seus meios e objetivos específicos, além de um código peculiar”. 2 Comunicação governamental, institucional, política ou dialógica? Muitos estudiosos de Comunicação Pública (CP) tomam como base os conceitos do francês Pierre Zémor, para quem a CP é “a comunicação formal que diz respeito à troca e a partilha de informações de utilidade pública”. Com base nesses estudos brasileiros a CP pode ser dividida nas subcategorias: governamental, institucional, política e dialógica, que serão conceituadas a seguir. Duarte define a comunicação pública governamental como: … fluxos de informação e padrões de relacionamento envolvendo os gestores e a ação do Estado e a sociedade. Estado, nesse caso, é compreendido como o conjunto das instituições ligadas ao Executivo, Legislativo e Judiciário, incluindo empresas públicas, institutos, agências reguladoras, área militar e não deve ser confundido com governo. (DUARTE, Jorge. 2009, p.2) Brandão acrescenta que a CP governamental utiliza instrumentos da comunicação de massa para atingir o público: Trata-se de uma forma legítima de um governo prestar contas e levar ao conhecimento da opinião pública projetos, ações, atividades e políticas que realiza e que são de interesse público… Pela característica de seus conteúdos e da grande parcela do público que se pretende alcançar… a maioria dos instrumentos utilizados pela comunicação feita pelo Estado ou por um governo faz parte da chamada ‘grande mídia’ – televisão, rádio, web, impressos – e o método mais utilizado é a campanha publicitária. (BRANDÃO, 2009, p.5) Em referência à comunicação pública institucional, Zémor (1995) afirma que: ... é uma das funções assumidas pela comunicação pública e tem por objetivo mostrar ao público o papel da organização, afirmando sua identidade e sua imagem... A identidade está no coração da comunicação de um emissor institucional... ela se manifesta nas produções simbólicas, ela forja o clima interno e marca o discurso externo. (ZÉMOR, 1995, p.12). Por muito tempo a Comunicação Pública foi confundida com marketing político e publicidade governamental e alguns autores a consideram uma subcategoria da CP, daí a necessidade dos recentes estudos acadêmicos diferenciarem a Comunicação pública da política. Monteiro destaca que a linha que separa essas duas subcategorias é tênue. E explica: Primeiramente, o fato de que o tempo de duração de uma instituição púbica é mais longo do que o do exercício do poder por quem ocupa um cargo político ou um mandato eleitoral. Em segundo lugar, a perspectiva de que o cidadão é também eleitor, Por fim, a constatação de que é no âmbito do Legislativo que acontecem os debates públicos. (MONTEIRO, 2009, p.39) 3 Defende Matos (2006) que “a comunicação política atende a interesses de agentes políticos que a utilizam com o fim de persuasão do cidadão, especialmente em campanhas eleitorais”. A autora ressalta que na mesma esfera pública pode haver a presença dos dois tipos de comunicação. Isso ocorre porque os agentes políticos transitam pelo mesmo palco público e midiático, mas com interesses diversos. “O poder está sempre em jogo, mas só os temas e interesses comuns (públicos) dizem respeito à Comunicação Pública”. (Matos, 2006, p.71) Os agentes políticos costumam utilizar a chamada imprensa oficial para divulgação de seus atos, de sua gestão, esquecendo que a comunicação pública foca o interesse da sociedade, da comunidade da qual essa administração faz parte e presta contas numa demonstração de transparência. Daí que Zémor insiste na separação desses dois tipos de comunicação: O ‘político’ tem legitimidade para gerir o serviço público, mas é preciso que as preocupações pessoais e partidárias, geralmente ligadas à conquista do poder... não interfiram sobre a condução institucional e cotidiana do serviço público, onde as regras fixadas necessitam ter uma certa estabilidade.(ZÉMOR, 1995, p.4) O interesse coletivo, democracia e cidadania, fundamentam a última subcategoria da comunicação pública, chamada de dialógica e fundamentada nos conceitos de Paulo Freire. É o que também defende Duarte: Comunicação pública coloca a centralidade do processo de comunicação no cidadão, não apenas por meio da garantia do direito do direito à informação e à expressão, mas também do diálogo, do respeito a suas características e necessidades, do estímulo à participação ativa, racional e corresponsável. (DUARTE, 2009, p.61) O autor classifica os instrumentos ou canais da Comunicação Pública em dois tipos, segundo sua ênfase: 1º) voltados para a informação e 2º) voltados para o diálogo, conforme o quadro: CP – INFORMAÇÃO CP- DIÁLOGO 1 Relatórios Comunicação informal 2 Banco de dados Fóruns de consulta 4 3 Publicações institucionais Oficinas de mobilização 4 Iconografia Grupos de Trabalho 5 Noticiário da Imprensa Orçamento participativo 6 Internet Ouvidorias 7 Banner /Folder / cartaz Conselhos 8 Murais Listas de Discussão 9 Publicidade Comunidades de informação 10 Boletins Teleconferências 11 Cartas Redes de diferentes tipos 12 Manuais Reuniões 13 Discursos Mesas de negociação 14 Eventos Conselhos setoriais 15 Atendimento ao Cidadão 16 Agentes sociais 17 Consultas públicas Fonte: DUARTE, J. 2009, p.65 Comunicação e cidadania – conceitos que se complementam A cidadania é condição essencial para a existência de uma sociedade democrática e para o cumprimento do direito fundamental à comunicação. Diz Matos (2006, p.2) que “a comunicação pública exige a participação da sociedade e seus segmentos”, e Mendes (2008, p.52) esclarece que “a comunicação enquanto direito fundamental à liberdade, exige assim, uma visão ampla da comunicação da sua importância pela influência na formação da opinião pública”. 5 Quanto ao conceito de cidadania, Murilo Carvalho, citando Marshall, sustenta que ela possui três aspectos, que por razões históricas e culturais, podem ou não existir em uma sociedade: direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. Afirma: O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. (CARVALHO, 2002, p. 9) Dentro dos direitos civis encontra-se o direito fundamental à comunicação. Este pode ser desdobrado em três tipos de direitos – de ser informado, de informar e de acesso à informação, segundo Mendes: O direito fundamental de ser informado, corresponde ao direito de receber informações sobre tudo o que sucede na sociedade... o direito fundamental de informar assegura o poder de divulgar fatos ou notícias que sejam de interesse coletivo que pressupõe o dever do Estado de abster-se de obstaculizar o processo de comunicação...o direito ao acesso à informação, o livre acesso a todas as fontes de notícia possíveis. (MENDES, 2008, p. 51) Daí pode-se deduzir que o direito de ser informado refere-se ao receptor, ao cidadão, sujeito do processo de comunicação. O direito de informar é exercido pelo emissor - veículos de imprensa, empresas de comunicação, assessorias de comunicação de organizações e não pode sofrer censura por parte do Estado. Já o direito ao acesso à informação refere-se à mensagem, à quantidade, qualidade e variedade de notícias às quais o cidadão tem direito. “A comunicação é hoje o ponto de partida e de encontro para o processo de reaprendizado da cidadania”, diz Márcia Duarte (2006, p.105 e 107), ressaltando que “o direito à comunicação passa necessariamente pela participação do cidadão como sujeito ativo em todas as fases do processo de comunicação, tornando-se, também, emissor”. Neste sentido, os tradicionais meios de comunicação não possuem tecnicamente formas para promover a cidadania e democracia, mesmo porque são produtos de uma lógica de produção industrial capitalista cujo objetivo é estimular o consumo e não a prática dialógica da comunicação. Obedecem ao fluxo do processo comunicativo de “um-todos” em que o emissor é representado por uma empresa que detém as condições únicas da fala cuja mensagem é assimilada por um público não diferenciado, anônimo e disperso que não possui meios para ‘responder’ ou interagir (Lemos&Lévy, 2010). 6 Para Duarte, os conceitos de comunicação e cidadania dependem um do outro para existir, e à medida que se expandem, se reforçam. Essa prática também gera um sujeito não só participativo, como reflexivo e crítico: A comunicação deve ser plena a tal ponto que possa oferecer ao cidadão condições de se expressar enquanto personalidade crítica e autônoma, emancipar-se e compreender-se, de modo a fomentar uma capacidade de organização e mobilização dos sujeitos que consistirá em última instância, na concretização de uma cidadania ativa. (DUARTE, M.Y.,2006, p.113) Mainieri e Ribeiro reiteram a condição dialógica da comunicação proposta por Freire para promoção da cidadania: Entendendo a comunicação num sentido dialógico, percebe-se seu papel na promoção da participação e do estímulo à prática da cidadania. Observe-se que, sem a participação popular ou com uma participação restrita e limitada, não há prática cidadã. É nesse contexto que reconhecemos a importância da comunicação pública. (MAINIERI E RIBEIRO, 2011, p.55) A Comunicação pública na Câmara Municipal de Goiânia A Câmara Municipal de Goiânia foi criada em 20 de novembro de 1935. Ela foi fechada pelo golpe de Estado em 1937, sendo reaberta em 6/12/1947. Até 2006 não havia uma área de comunicação institucionalizada, tendo apenas as divisões de Assessoria de Imprensa e de Cerimonial, conforme depoimento de Ribeiro & Martins (2012). Esta instituição foi pesquisada durante os meses de setembro e outubro de 2012, e a metodologia adotada foi o levantamento de dados por meio de fontes bibliográficas (revistas e jornais editados pela CMG, sendo que o de maior periodicidade foi o jornal “Câmara Acontece”, além de leis e decretos publicados no DOM-Diário Oficial do Município, como o Regimento Interno da CMG e a lei que instituiu o Sistema de Comunicação da CMG). Também se utilizou de fontes documentais, sendo a mais importante o relatório do Plano de Comunicação e Marketing de 2009, apresentado em janeiro daquele ano. Entre os procedimentos adotados para a coleta e análise de dados, foram feitas duas entrevistas em profundidade com jornalistas que atualizam as contas das redes sociais Twitter e Facebook , utilizando a técnica descrita por Santaella (2001, p.149) “entrevista 7 não-estruturada, com perguntas abertas”. Também foram colhidos depoimentos de três jornalistas da Assessoria de Imprensa – sendo a pesquisadora um deles na posição de sujeito observador e participativo. Esses depoimentos eram anotados à medida que surgiam na prática diária do exercício profissional. Santaella (2001, p.143) destaca a participação do sujeito “considerado como parte integrante do processo de conhecimento, atribuindo significados àquilo que pesquisa, sendo esta uma das características da pesquisa qualitativa em ciências sociais em contraponto às pesquisas em ciências naturais”. O critério adotado foi o de relacionar os veículos de comunicação existentes e classificá-los quanto à natureza de cada um, segundo as duas categorias criadas por Duarte e detalhadas na revisão bibliográfica deste trabalho: se eles são voltados para a informação (CP institucional ou governamental) ou se são voltados para o diálogo (CP com participação do cidadão, ou seja, voltada para cidadania). De posse desses dados passou-se ao relato histórico de como a comunicação vem ocorrendo nos últimos naquela instituição, especialmente de 2006 até os dias atuais, descrevendo os veículos ou canais de comunicação de que a CMG dispõe para a realização da Comunicação Pública e analisando alguns motivos para a criação, a manutenção ou a eliminação de alguns e ainda as incoerências e inconstâncias dos produtos veiculados nesses canais comunicativos. O que se observou durante a pesquisa é que a comunicação nesta casa legislativa se restringiu durante anos à contratação de assessores de imprensa para a presidência da Casa. Nessa época, de acordo com depoimento de Ribeiro & Martins (2012) - jornalistas que atuam ali há mais de 15 anos, a comunicação se resumia à publicação de impressos e à propaganda institucional e ficava dependente da vontade do gestor, no caso o presidente. Posteriormente foi criada a Assessoria de Imprensa fazendo separação do tipo de comunicação que deveria ser realizado pela CMG: A Assessoria de Imprensa da presidência realizava a comunicação política dos membros da Mesa Diretora. À Assessoria de Imprensa da instituição, estabeleceu-se uma política de comunicação pública cujo valornotícia seria a divulgação das ações da Casa e de todos os parlamentares, dando voz, inclusive à oposição e aos vereadores sem expressividade na grande mídia. 8 Em 2007 foi instituído o Sistema de Comunicação da Câmara de Goiânia, por meio da Lei 8.536 de 04/06/2007, cujo objetivo principal era “coordenar e integrar as diversas áreas de comunicação da Câmara”. Nessa época já existiam a TV Câmara, as duas assessorias de Imprensa (da instituição e da presidência), a Assessoria de Relações Públicas/Cerimonial e o Departamento Fotográfico, mas cada divisão atuava de forma independente. Durante esta gestão também foi criado o site institucional sob o endereço: www.camaragyn.go.gov.br. Em 2009 a Diretoria de Comunicação, sob a direção do publicitário Evandro Macedo, elaborou o plano de Comunicação “A Câmara é a sua Casa” revitalizando os canais de divulgação externa já existente e criado outros, cuja meta era “dar mais transparência e modernidade para a instituição” (Plano Com.2009). Para o público interno foram criadas: 1) Mídias out of home - que funcionou apenas dois anos; 2) Rádio Interna que utiliza o circuito interno de som - no momento desativada; 3) Jornal mural em meio físico e 4) Diário da Câmara - boletim impresso. Para o público externo foram criados o Twitter e o jornal “Acontece na Câmara”. Foram digitalizados os equipamentos do Departamento Fotográfico e da TV Câmara. O site ganhou um novo layout e foram criadas as páginas: Transparência, Prestação de contas e Licitação. O último canal a ser criado foi o Facebook em 2010 e não partiu de uma decisão da diretoria, mas de uma jornalista da Casa, Elaine Freitas. A Câmara nas redes sociais não garante diálogo com o cidadão Utilizando as categorias propostas por Duarte, os instrumentos de comunicação da Câmara Municipal de Goiânia podem ser classificados como CP para a informação (aqui englobando a CP governamental e institucional) e CP para o diálogo e cidadania da seguinte forma: CP – PARA A INFORMAÇÃO CP – PARA O DIÁLOGO Site institucional Twitter 9 TV Câmara Facebook Acontece na Câmara (jornal impresso) SIC –Serviço de Informação ao Cidadão Mural Boletim Diário da Câmara Rádio Interna Fonte: Documentos impressos e arquivados na Assessoria de Imprensa da CMG e site Verifica-se que a CMG dispõe de seis canais de CP relativos à comunicação pública governamental/institucional na primeira coluna denominada CP-Informações e cinco instrumentos da chamada CP-Dialógica. No entanto, ao se fazer uma análise de conteúdo nas postagens do Twitter (www.twitter.com@CamaraGoiania) e do Facebook (www.facebook.com/CamaraGoiania) observa-se que ambos, apesar de canais de redes sociais, cuja interatividade e relação dialógica “todos-todos” são características principais (Lemos&Lévy, 2010), servem tão somente para a CP governamental e institucional. O objetivo dessas duas contas nas redes sociais é informar aos cidadãos goianienses do trabalho legislativo, ou seja, constituem-se em mais um canal de divulgação oficial, mas poderiam ser utilizados na promoção de uma comunicação cidadã, dialógica em que o sujeito participa, sugere e critica. Mantendo esses canais de rede sociais a CMG passa uma imagem de modernidade e de ser democrática e incentivadora da prática dialógica e interatividade com o cidadão, mas o que ocorre é que nos bastidores da instituição observase uma série de práticas em que o jogo do poder político fala mais alto. O Twitter da CMG, criado em agosto de 2009, posta em 140 caracteres o que ocorre nas sessões plenárias em tempo real. Ele não interage com os seus seguidores. Carolina Magalhães (2012), jornalista responsável pela atualização do Twitter, esclarece que: ... Entendeu-se que, como a Câmara abriga uma grande pluralidade de opiniões, posições e partidos, não cabia à Assessoria de Comunicação defender, explicar ou responder por cada um dos parlamentares; até porque os vereadores contam com assessoria própria e, muitos deles, mantém perfis nas redes sociais. Sendo assim, determinou-se que o perfil da instituição assumiria cunho meramente informativo. E, para tanto, os vereadores seriam mencionados por seus nomes de usuários no Twitter. 10 Assim, os seguidores poderiam interagir com eles para esclarecer dúvidas, manifestar apoio e/ou até repúdio. (MAGALHÃES, 2012) Segundo seu depoimento, a orientação foi a de que alguns comentários deveriam ser ignorados porque refletiam o desconhecimento total sobre o trabalho do Legislativo municipal, como o caso de um internauta perguntando aonde conseguiria uma cadeira de rodas da OVG - Organização das Voluntárias de Goiás, entidade de assistência social do Governo Estadual. A jornalista argumenta que não existe uma divisão de ouvidoria para atender ao cidadão que posta alguma crítica, pedido ou questionamento e que por isso, os mesmo são ignorados. Para viabilizar isso, seria necessário, em primeiro lugar, a criação de um departamento de ouvidoria. Também seria indispensável envolver mais assessores de comunicação no processo e viabilizar uma maior integração deles com as diretorias e gabinetes (desburocratização), a fim de garantir respostas rápidas, precisas e consistentes aos seguidores. (MAGALHÃES, 2012) A conta da CMG no Facebook foi criada em 7/6/2010 também com o objetivo de divulgar o trabalho da CMG e dos vereadores. As últimas postagens, que se referem ao perfil dos vereadores eleitos no último dia 7 de outubro de 2012, veem recebendo comentários e curtidas indicando que a ferramenta começa a ter uma relação de interatividade com seus seguidores, mas essa possibilidade não recebeu ainda o apoio da Mesa diretora e da diretoria de comunicação da Casa. A jornalista responsável pela atualização deste canal, Elaine de Freitas, explica que: Procura-se responder comentários que dizem respeito à atividade - fim de Câmara, ou seja, legislar. Comentários pejorativos não são respondidos. No entanto, a maioria dos comentários é de pedidos - geralmente de emprego -coisas que não podem ser atendidas pela equipe de comunicação e não são respondidos. (FREITAS, 2012). Ela enfatizou a existência de muita dificuldade para manter a conta atualizada porque a presidência da CMG proíbe o uso de redes sociais na intranet da Casa e parte do trabalho é feita com notebooks pessoais dos jornalistas por meio da rede wi-fi: “O Facebook é bloqueado na rede da Câmara porque a política interna da Casa não entende a importância das redes sociais na divulgação de seus próprios trabalhos”. (Freitas, 2012). Assim, a imagem de modernidade e promotora da cidadania cai por terra, uma vez que os servidores da CMG não podem internamente ter acesso a essa ferramenta de 11 comunicação dialógica. Como então, a CMG quer falar com o cidadão se impede o diálogo entre seus servidores? Zémor (1995, p.12) sustenta que “a imagem percebida no exterior não pode ser diferente da imagem real que existe no interior de uma instituição pública”, o que afeta a legitimidade dessa organização e por fim sua imagem institucional. Quanto ao SIC-Serviço de Informações ao Cidadão, foi criado em maio deste ano em cumprimento à Lei do Acesso (decreto 12.527 de 18/11/2011) e está centralizado na Diretoria de Comunicação, sob a orientação da presidência da Mesa Diretoria. O cidadão pode solicitar as informações de seu interesse pelo telefone 0800, pessoalmente no 3º andar ou ainda por meio de formulário na internet. O serviço está ainda em fase de estruturação, mas já atendeu algumas demandas segundo dois ofícios da Diretoria de Comunicação, porém não foi criada uma estrutura física e de pessoal para atender ao cidadão, ficando a tarefa sob a responsabilidade da atual diretora de Comunicação, Manuela Queiroz e de estagiários. A máquina legislativa e os entraves à comunicação dialógica Uma inconstância observada com relação à publicação dos informativos impressos, na Rádio Interna e na TV Câmara é a falta de periodicidade em suas edições, o que afeta a credibilidade desses canais. O jornal Acontece na Câmara, por exemplo, começou a circular em 2009 e neste ano publicou três edições (abril, junho e outubro). Em 2010 foram impressas duas edições (outubro e novembro) e no final do ano um Bianuário com a retrospectiva do período. Em 2011 circulou apenas um número em novembro e em 2012 uma única edição em abril. A Rádio interna funcionou durante os anos de 2009 e 2010 somente. Já a TV Câmara que entrou no ar dia 17/02/1998 e faz a cobertura das sessões ao vivo utilizando o canal fechado às terças, quartas e quintas-feiras, não está tendo atualização dos programas criados em 2009 e 2010: “É Lei”, “Conheça Seu Vereador” e “A Semana na Câmara” conforme a grade de programação. A instabilidade e a descontinuidade nos processos administrativos e nos projetos de comunicação, bem como a falta de periodicidade dos produtos veiculados nos canais de comunicação, ocorrem devido à rotatividade dos cargos diretivos tanto da Mesa Diretora como da Diretoria de Comunicação, já que tais cargos são de comissão e de confiança da 12 presidência, e esta também é substituída a cada dois em dois anos segundo determinação regimental. Isso acarreta na falta de um planejamento estratégico da comunicação em longo prazo nesta Casa Legislativa e de diretrizes que orientem a prática profissional independente do gestor que assuma o cargo de chefia da área. Também o processo de veiculação dos impressos é dependente de licitações exigência da Lei 8666/1993 - para a escolha de agência publicitária que faz os layouts e da gráfica para impressão, gerando atrasos de prazos e de periodicidade, mas também ficam à mercê da vontade política dos gestores do Legislativo, que quando querem fazem remanejamento de verbas e conseguem meios para imprimir, geralmente, anuários e revistas, nas quais sob o pretexto de estarem prestando contas dos seus atos como preceitua a Constituição Federal, acabam por fazerem marketing político e pessoal. Por falta do delineamento de uma política de comunicação, os produtos desta área estão, por diversas vezes, a serviço da comunicação política e propagandística da presidência da Casa ou da comunicação pública de caráter institucional. A CMG não faz a comunicação pública dialógica e por várias ocasiões, sequer a comunicação pública informativa ou institucional, mas sim, a comunicação política, dando visibilidade ao agente político que exerce o cargo diretivo de presidente do Legislativo. Considerações finais: A partir deste estudo os principais veículos ou canais de comunicação pública que a Câmara Municipal de Goiânia dispõe ficaram conhecidos, bem como foram identificados os que estão são voltados para a comunicação pública informativa ou para a política conforme decisão do gestor que exerce o cargo de direção da Casa. Também se verificou que apesar de possuir duas contas nas redes sociais Twitter e Facebook, canais com potencialidades dialógicas, os mesmos constituem-se em canais de divulgação e informação somente, não promovendo a interatividade do internauta-cidadão. Os canais de comunicação do Legislativo deveriam ser, além dos veículos da grande imprensa, mais uma voz a propagar notícias de suma importância para a vida do cidadão que precisa estar apto a exercer seu direito fundamental à comunicação. Não basta 13 disponibilizar a informação se o cidadão não tiver meios para também falar, criticar, participar. Não basta uma instituição passar a imagem de moderna e democrática se em seu interior abriga práticas de cerceamento das informações e do diálogo. O Legislativo pode e deve assim, interagir com a sociedade, sendo o emissor de um processo dialógico em que o receptor/cidadão/eleitor pode responder via redes sociais, chats, formulários, enquetes, tornando-se o emissor de nova mensagem. Necessita para isso criar políticas de comunicação para o uso de redes sociais de forma a utilizar o potencial interativo que as mesmas possuem. A CMG contribuirá para a construção da cidadania e da democracia quando tiver veículos de comunicação dialógicos que tornem seus processos cada vez mais públicos e transparentes envolvendo a sociedade em ações de participação. Referências: BRANDÃO, Elizabeth Pazito. Conceito de comunicação pública. In: DUARTE, Jorge. Comunicação pública:Estado, Mercado, Sociedade e Interesse Público.SP: Atlas, 2009 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. DUARTE, Jorge. Instrumentos de Comunicação Pública. In: DUARTE, Jorge. Comunicação pública: Estado, Mercado, Sociedade e Interesse Público.SP: Atlas, 2009. DUARTE, Márcia Yukiko Matsuuchi. Comunicação e Cidadania. In: Comunicação pública: Estado, Mercado, Sociedade e Interesse Público.SP: Atlas, 2009. FREIRE, Paulo. Comunicação e Extensão. RJ: Ed.Paz e Terra, 7ª Edição, 1985. FREITAS, Elaine. Entrevista sobre o Facebook da Câmara Municipal de Goiânia em 29/10/2012. 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O surgimento da internet modificou substancialmente a forma com que os indivíduos lidam com os meios de comunicação como um todo e, como consequência, todos os elementos avaliáveis passaram a ser vistos de uma outra forma. Este artigo avalia, dentro desse contexto, como a introdução da internet trouxe e ainda tem trazido mudanças numa sociedade que é tão intensamente permeada pela comunicação. Palavras-Chave: Modelo de Lasswell; Cidadania; Internet 1. O funcionalismo norte-americano e a internet As escolas de comunicação que se sucederam desde as primeiras décadas do século XX sempre tiveram como ponto de partida os legados das teorias que as precederam. Dessa 1 Trabalho apresentado no GT 2 – Comunicação, Opinião e Imagem Pública, do VI Seminário Mídia e Cidadania, realizado em 23 de novembro de 2012. 2 Publicitário, Especialista em Gestão de Pessoas e Marketing pela PUC-GO. Mestrando do Programa de Pós-Graduação da Facomb-UFG.Linha de Pesquisa em Mídia e Cidadania. E-mail:[email protected] 3 Orientador. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP. Professor Adjunto da UFG 4 Fundação fomentadora do projeto através de concessão de bolsa de mestrado ao autor do trabalho. forma, é difícil afirmar que uma determinada teoria da comunicação foi superada. Muitas vezes ela é apenas complementada, ou readaptada a novos contextos e circunstâncias. Mauro Wolf (1995) afirma que: se tivermos em conta que muitas pesquisas posteriores, que não se inserem na corrente funcionalista, contém aspectos que são úteis para um enriquecimento cognoscitivo acerca do problema das funções despenhadas pelos mass media, podese dizer que uma abordagem funcionalista não morre completamente. Suplantada por outros paradigmas, antes se prolonga até os dias de hoje. (WOLF, 1995. p. 62) Sendo assim, pode-se considerar que o surgimento de novas formas de praticar a comunicação proporciona novas visões sobre os elementos componentes deste processo comunicacional. Isso se torna ainda mais interessante porque, conforme Manuel Castells (2003), a atividade humana está baseada na comunicação e, a partir do momento que a internet modifica a forma de nos comunicarmos, ela afeta profundamente as nossas vidas. Segundo o autor, se aproximando à forma com que os aspectos inerentes à comunicação eram comparados com o organismo humano dentro dos estudos funcionalistas, a internet seria o tecido de nossas vidas. Chega a comparar o surgimento da web com o da energia elétrica, pela sua capacidade de distribuir o poder da informação por todos os âmbitos da atividade humana. A internet trouxe tantos aspectos novos relativos às formas com que as pessoas se relacionam que cabe verificar como os seus elementos constitutivos poderiam ser comparados com estes mesmos elementos dentro de outros meios de comunicação. Cabe também avaliar, dentro deste novo contexto, os papéis dos elementos que compõem esse novo processo de comunicação. Para tanto, este trabalho irá avaliar cada uma das categorias propostas por Harold Lasswell (1948) ao descrever um ato de comunicação, para verificar de que forma tal modelo encontra, ainda hoje, ressonância em determinados aspectos para estabelecimento de uma comunicação. Observará também o que a internet trouxe de novo para incrementar tal sistema. Partindo daí, este estudo tentará responder: Quem? Diz o quê? Em que canal? Para quem? Com que efeito? Tudo a partir do ponto de vista da internet. 2. Quem? Partindo do primeiro aspecto apresentado por Lasswell (1948) como constituinte do ato comunicacional, o “Quem?” seria, segundo o próprio autor, o agente que inicia e guia a ação de comunicar. Dentro dos estudos funcionalistas da época, este agente do processo exercia um papel central e com bastante destaque, tendo em vista que era considerado o comunicador, ou seja, aquele incumbido de comunicar. No decorrer dos anos, com o surgimento e desenvolvimento de diversos meios de comunicação de massa, a figura do “quem” não foi deslocada consideravelmente da forma com que era visto quando do desenvolvimento do Modelo de Lasswell. Os emissores, durante as décadas que se seguiram, lançaram mão de um modelo que ainda hoje é relativamente bastante utilizado, que é a comunicação de um para muitos. A limitação dos meios em relação a possibilitar a participação ativa de outros sujeitos que não o emissor contribuiu sobremaneira para esse processo. Com o surgimento da internet, a comunicação prescindia de uma interação sem a qual o meio não se diferenciaria dos demais. São justamente as novas possibilidades trazidas que colocaram em destaque as demais figuras do processo de comunicação. Mas quem é, de fato, esse “quem”? Pode-se dizer que atualmente esse quem pode ser qualquer pessoa que tenha acesso à internet. Pierre Levy (1999) usa a expressão sistemas de comunicação “todos-todos” e coloca a internet como o principal expoente desse tipo de sistema. Também Castells (2003), ao tratar das possibilidades trazidas pela internet, diz que pela primeira vez passou a ser possível uma comunicação feita de muitos para muitos, na hora escolhida e em escala global. Agora, os próprios cidadãos estariam gerando esta comunicação de acordo com o que consideram relevante. Segundo Negroponte “na internet, cada pessoa pode ser uma estação não autorizada de TV (...) Podemos agora pensar nos meios de comunicação de massa como algo bem maior do que a TV profissional e de altos custos de produção” (2000, p.168). Contudo, a expressão “todos-todos” talvez se afaste um pouco da realidade ao se considerar que o acesso à internet ainda não é universal. Assim, ou os cidadãos sem acesso não foram lembrados ou foram propositalmente colocados em um patamar desconsiderável. Em abril de 2012, segundo pesquisa do IBOPE Nielsen Online5, pouco mais de 70 milhões de brasileiros tinham acesso à internet. Levando em consideração que segundo o Censo Demográfico de 20106 o Brasil possuía 190.732.694 habitantes naquele ano e que o número não se alterou substancialmente, a quantidade de internautas não chega a 38% da população. O governo tem tomado medidas para aumentar o número de usuários da rede, 5 Desde março de 2009, o IBOPE Nielsen Online passou a divulgar mensalmente o número de pessoas brasileiros com acesso à internet em suas residências e/ou trabalho. Os dados estão disponíveis no site: http://www.teleco.com.br/internet.asp 6 Dado disponível no site: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia =1766 como o Programa Brasil Conectado, que visa aumentar a infraestrutura para aumentar a oferta do serviço a preços mais baixos, e o Programa Cidades Digitais, que busca, entre outras coisas, implantar um ponto de internet sem fio em cada cidade participante. Sem entrar nos problemas apresentados pelos programas governamentais, o êxito, em maior ou menor grau, que for obtido com as medidas trará uma quantidade ainda maior de pessoas que poderão incrementar o número de emissores na comunicação via web. O perfil desses usuários, que do momento do surgimento até o início da popularização da internet era formado basicamente por homens jovens e de situação financeira confortável, atualmente, segundo Levy e Lemos (2010), já é bem mais heterogêneo, não apresentando mais diferenças consideráveis entre homens e mulheres e a diferença entre idades também tem diminuído bastante. Isso porque, em breve, a geração que já nasceu com internet em casa chegará à fase adulta. A discrepância maior ainda gira em torno das classes sociais, ainda que se observe uma lenta diminuição dessa diferença com o aumento do acesso nas classes C e D. Voltando às possibilidades trazidas pela internet, a questão da determinação por parte do internauta do que é ou não importante discutir, baseado nos interesses próprios e de seus grupos, colabora no processo de quebra da inércia em relação a assuntos que muitas vezes não eram discutidos por receio de não encontrar pessoas pensando da mesma forma. A partir de então, ao encontrar pares em relação às ideias sobre temas de interesse comum, os a princípio receptores passam a ser também emissores, num fluxo constante de trocas que caracteriza um processo comunicacional ideal. Entretanto, na internet, diferentemente de outros meios, o mecanismo de hierarquização dessa relação entre emissor e receptor, que se confundem constantemente, é bem menor, o que muitas vezes gera uma paridade entre o “quem” e o “para quem”. Essa democracia também pode ser observada no fato de que, ainda que muitos brasileiros não tenham acesso à internet, todos àqueles que o têm possuem as mesmas possibilidades de acesso às ferramentas de emissão de conteúdo por meio da rede. Com os avanços tecnológicos em curso, o acesso a essas ferramentas tende a ficar cada vez mais fácil. Além dos aparelhos portáteis que dão acesso à rede, como notebooks, tablets e smartphones, a própria evolução da internet, com o advento da Web 3.0, ou cloud computing, permite que os emissores gerem conteúdo onde quer que estejam. Isso porque está tecnologia armazena o conteúdo dos usuários dentro da própria rede. Assim, a união da Web 3.0 com aparelhos portáteis de acesso a rede criaria, segundo Levy e Lemos (2010), verdadeiras ferramentas de conversação e não mais somente ferramentas de repasse de informações. Essa conversação possibilita, segundo Levy e Lemos (2010), uma relação permanente pelo ciberespaço e as ferramentas que possibilitam essas conversas se tornaram praticamente obrigatórias em determinados grupos. A necessidade de manter essa relação dialógica, tanto como emissor quanto como receptor, faz com que aqueles que não fazem uso de tais tecnologias sejam excluídos de seus grupos. Isso porque as relações presenciais de interação face a face já não dão conta da agilidade demandada e da multiplicidade de recursos que se tornaram necessários para um processo de comunicação atualmente. Para ajudar a atender a essa demanda foram criadas comunidades virtuais, que se utilizam de novos padrões de interação social e possibilitam uma quantidade exponencialmente maior de interações. É comum flagrar casais juntos fisicamente, mas usando seus dispositivos de internet portátil para se comunicarem com outras pessoas ou mesmo entre si. Mas dentro de todas essas inúmeras possibilidades de emissão de conteúdo por um número substancialmente maior de pessoas, o que de fato é dito? 3. Diz o quê? Conforme Lasswell (1948), quem concentra os estudos em comunicação na pergunta “Diz o que?” estaria voltado para a análise do conteúdo. A comunicação teria objetivos prédefinidos, que seriam avaliáveis por meio da observação do comportamento que a mensagem gera. Partindo daqui, pode-se dizer que, apesar de a análise de conteúdo ser uma metodologia ainda bastante utilizada, existem outras possibilidades de análise menos sistemáticas que também têm a mesma validade científica. Como a vastidão de conteúdos divulgados na internet não permitiria uma análise do todo, este trabalho buscará focar no que pode ser dito pela internet, mediante a infinidade de possibilidades que os avanços tecnológicos trazidos pela rede possibilitou. Antes de mais nada vale dizer que, assim como defende Manuel Castells (2003), a participação na rede não é medida pela quantidade de acessos que se tem e sim pelas consequências do uso ou não uso da rede. Isso corresponde a dizer que muitas vezes o que é dito não é medido por frequência ou quantidade de caracteres, mas sim pela relevância do conteúdo para um ou mais grupos. E essa dedicação a determinado assunto e a atribuição de sua importância já não é feita necessariamente pelos meios de comunicação de massa, embora isso ainda ocorra. Esse “o que é dito” proporciona, muitas vezes, que os cidadãos passem a ter acesso a uma infinidade de conteúdos que colaboram na construção de sua cidadania, o que vem ao encontro do que defende Canclini (1997) ao dizer que os questionamentos capazes de definir os cidadãos, como a busca pela informação, a representatividade dos interesses e os direitos, muitas vezes obtém mais respostas pelos meios de comunicação do que pelas regras de democracia ou participação política. Contudo, é importante observar que essa infinidade de informações disponíveis pode gerar o que Lazersfield e Merton chamam de disfunção narcotizante, que ocorre quando o excesso de informações gera uma apatia na população, que deixa de responder a tantos estímulos. É claro que esse interesse também vai depender, assim como o próprio Lasswell (1948) coloca, do grau de especialização do indivíduo no assunto em questão. Os objetos de interesse da pessoa que está interagindo obterão muito mais respostas do que os temas que não concernem ao seu cotidiano. Mas, independente do assunto que está sendo discutido, é imprescindível levar em consideração algo que muitas vezes é esquecido nas críticas e nos estudos em comunicação: a qualidade do conteúdo comunicado. Muitas vezes, conforme Lasswell (1948), a sociedade como um todo busca identificar e combater todos os fatores que interfiram na comunicação ou a prejudiquem. O problema é que não basta que a comunicação ocorra. Tanto ou mais importante é “o quê” é dito. A falta de informação é, sem dúvida, um problema grave. Mas informações incompletas ou distorcidas podem ser mais perigosas, pois já introduzem a questão de manutenção do poder por meio da comunicação. Conforme Lasswell (1948) cada sociedade atribui determinada importância aos valores como poder, respeito, riqueza... e que a relevância desses valores seriam atribuídas de acordo com as instituições dessa sociedade. A instituição da comunicação seria responsável por apoiar todas as demais redes por meio da disseminação de ideologias e da conseqüente preservação do poder. Isso justifica, em boa parte, o fato de políticos buscarem a todo custo controlar meios de comunicação para tentar disseminar suas ideologias e de acobertar fatos que depõem contra suas imagens. Muitas concessões de canais de rádio e TV, além de jornais impressos, são controlados por grupos políticos. A internet, dentro desse contexto, seria muito mais difícil de ser controlada e de ser usada para disseminação dessas ideologias, pois a pluralidade de canais impede um discurso monológico e dificulta o controle de qualquer tipo de informação que “caia na rede”. Um outro problema relativo ao que é dito na rede diz respeito ao fato de que, com o crescimento da internet, muitos processos inerentes à construção da cidadania dos indivíduos têm sido feitos exclusivamente pela rede. Até mesmo a linguagem pode ser alterada para restringir os grupos que receberão determinados conteúdos. Muitas vezes o conteúdo transmitido demanda aparelhos capazes de ler QR codes 7, vídeos em flash ou outras tecnologias que demandam a aquisição de aparelhos com esse suporte. Christiano German (2000) defende que as camadas sociais que não têm possibilidades financeiras de comprar os equipamentos necessários não tem possibilidade de progredir econômica e socialmente. E quanto mais pessoas entram nesse processo, mais ele ganha respaldo para sua manutenção. Mas em que consiste, de fato, esse meio de comunicação que modificou toda a estrutura de comunicação e, como conseqüência, a própria sociedade? 4. Em que canal? Harold Lasswell (1948), ao apontar as possibilidades de se estudar “Em que canal?”, explicita que os estudos voltados para responder a essa questão são os voltados para a análise dos meios e dos canais de comunicação. Partindo daqui, Levy (2000) coloca que ao se tentar discutir a forma com que determinada tecnologia será utilizada, muitas formas de uso já se impuseram empiricamente. Cada um tem que buscar suas próprias formas de interação com o meio se quiser compartilhar os espaços com os grupos que fazem uso dessas tecnologias. A internet, da mesma forma, criou seus próprios espaços sem que houvesse uma determinação de como a mesma deveria ser utilizada. As necessidades foram surgindo e, à medida do possível, foram sendo atendidas. Mas um dos aspectos mais notáveis trazidos por esse meio foi a facilitação do acesso aos mais diversos tipos de conteúdo. Nicholas Negroponte (2000) teoriza que tudo estaria migrando dos “átomos” para os “bits”, ou seja, do mundo físico para o mundo virtual. Segundo o autor, esse seria um processo acelerado e sem volta, citando como exemplo a indústria fonográfica, que demandava uma grande quantidade de recursos para estocagem, embalagem, distribuição e matéria-prima e agora pode ter todo o processo distribuído pela internet. O mesmo vem acontecendo com os livros, filmes e diversas outras indústrias que puderam, assim como diz Negroponte, transformar seus átomos em bits. Também Vilches (2003) fala de uma emigração da sociedade para uma nova economia criada pelas tecnologias do conhecimento. Seria um movimento contínuo de produtores e consumidores que gerariam novas formas e espaços de interação. O interessante é notar que a internet não traz, essencialmente, muitas coisas novas. O que ela modifica na verdade é a rapidez, a escala e a forma com que as informações são 7 O QR code é a abreviação de Quick Response code, ou código de resposta rápida. Funciona como um código de barras bidimensional e é usado para direcionar os interessados para conteúdos multimídia armazenados na internet. trocadas. Ela é uma facilitadora do acesso aos mais variados tipos de informação e, consequentemente, proporciona economia de diversos tipos de recurso, como tempo, dinheiro e mão de obra. Maria Ercília (2000) traça um paralelo entre a internet e a invenção de Gutemberg, pois em ambos as vantagens trazidas eram relacionadas à velocidade de acesso, à uniformização de textos e à redução dos preços. No caso da internet esses fatores possibilitaram o acesso a uma grande diversidade de conteúdos, como livros, revistas, jornais, canais de rádio, músicas, vídeos, entre outros, tudo feito rapidamente e por um grande número de pessoas. Além disso, a internet possibilita também que a informação sobre determinados temas não fiquem concentrados em canais ou sites específicos, embora por vezes o próprio usuário opte por buscar essas informações nos mesmos locais. A grande vantagem em relação a essa pluralidade de canais é que o internauta, além de poder recorrer a diversas fontes, pode também contribuir para a divulgação dos assuntos de seu conhecimento e interesse, lançando mão de ferramentas como o Twitter, Facebook, Wikipedia, Youtube, entre outros. Essa democracia proporcionada pela internet é inédita na história dos meios de comunicação de massa. A internet já foi concebida, no ano de 1962, quando iniciaram os primeiros estudos, como uma ferramenta voltada para a troca de informações com segurança. Ou seja, este foi seu papel idealizado desde o princípio. Após o lançamento de sua primeira versão, em 1969, com o nome de Arpanet, a internet começou a se popularizar em institutos de pesquisa e no meio acadêmico. Percebe-se, portanto, que a internet também foi utilizada desde o princípio como instrumento de difusão de conhecimento. Em 1991 surgiu a World Wide Web (www), criada pelo cientista Tim Berners-Lee, um sistema que permitiu que, pela simplicidade de sua manipulação, os usuários domésticos comuns pudessem passar a acessar a rede com facilidade. Após o surgimento dessa ferramenta as pesquisas em torno da internet e os investimentos feitos giraram, em boa parte, em torno da introdução do usuário comum na rede, o que ocorreu paulatinamente durante toda a década de 1990 e vem ocorrendo ainda hoje. Segundo pesquisa do IBOPE Nielsen Online8, de março de 2009 a março de 2012, o crescimento do número de pessoas com acesso à internet no Brasil saltou cerca de 73% e correspondeu, em números absolutos, a cerca de 28 milhões de novos usuários. 8 Pesquisa disponível em: http://www.teleco.com.br/internet.asp Concomitantemente, os avanços tecnológicos também vêm permitindo que a velocidade de acesso aumente, o que, por conseqüência, aumenta também a quantidade de trocas de informações nos dois sentidos. Além disso, é notório que a evolução da web ocorreu e vem ocorrendo de forma muito mais rápida do que a dos outros meios de comunicação. Todos esses avanços experimentados pela internet vêm trazendo consequências também para outras mídias. Segundo pesquisa realizada em 2011, no Brasil e no México, pela Latin American Technographics Online Survey9, o tempo gasto na web pelos internautas nestes dois países já seria 3 vezes maior do que o gasto assistindo TV. No Brasil, a comparação ficou em 23,8 horas dedicadas à internet para cada 6,2 horas assistindo TV. Com o crescimento do número de internautas as consequências para a audiência da TV já podem ser sentidas. Segundo dados do Ibope10, do primeiro trimestre de 2011 para o primeiro trimestre de 2012 a audiência da TV caiu, em média 7%. Com o aumento exponencial de utilizadores que a internet arrebanhou nos últimos anos, este meio criou um espaço nunca antes disponível para milhões de pessoas. Sites como o Facebook e o Youtube permitiram a abertura de canais de comunicação para milhares ou até milhões de pessoas. O caso do vídeo “Para Nossa Alegria”, disponível no site Youtube, é um exemplo claro desse poder de voz trazido pela internet. Ao fazerem um vídeo interpretando a música “Galhos Secos”, de Osny e Osvayr Agreste, os irmãos Jefferson e Suellen Barbosa conseguiram mais de 30 milhões de visualizações em cerca de 2 semanas e, como conseqüência, gravaram um CD de música evangélica e fecharam um contrato com a Pepsi. As possibilidades de participação são tantas que chegam a extrapolar o próprio meio. Isso ocorre quando, por exemplo, as revistas impressas e jornais publicam os e-mails dos leitores, os reality shows abrem sua votação pela internet, as rádios acatam pedidos de músicas e a participação de ouvintes em sua programação, entre diversas outras possibilidades. Essa participação quase que irrestrita por parte dos internautas acabou por criar mecanismos de fazer com que eles próprios criassem e organizassem os conteúdos que ficam disponíveis na rede. Essa nova forma de interação, também conhecida como computação social, ou Web 2.0, foi o que propiciou também os sites de mídias sociais, onde o conteúdo é compartilhado de maneira colaborativa pelos próprios usuários. Esse fenômeno fez com que 9 Pesquisa disponível em: http://tecnologia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/03/18/numero-de-internautas-daamerica-latina-cresce-15-brasil-lidera-tempo-de-navegacao.jhtm 10 Pesquisa disponível em: http://noticias.uol.com.br/ooops/ultimas-noticias/2012/04/10/tv-aberta-tem-fuga-inedita-detelespectadores-veja-os-numeros.htm o emissor e o receptor se aproximassem de tal forma que, por vezes, é difícil distingui-los. De qualquer forma, ainda vale tentar entender “para quem” as mensagens na internet são direcionadas. 5. Para quem? Conforme Lasswell (1948) a pergunta “Para quem?” é feita pelos estudos voltados à análise da audiência, buscando determinar as pessoas atingidas. Talvez, entre todos os possíveis objetos de estudo em comunicação suscitados pelo autor, este seja o que mais sofreu modificações em relação à época quando o estudo foi proposto. Isso porque, conforme já foi dito, passou a existir uma relativa indeterminação sobre quem é emissor e quem é receptor. A relação passou a ser dialógica e a determinação só pode ser feita episodicamente, pois a troca de papéis ocorre constantemente. Se já na época era bastante questionável dizer que, assim como defendia Lasswell, a iniciativa da comunicação caberia exclusivamente ao “comunicador”, hoje isso se tornou ainda mais impensável. Castells (2003) coloca que as comunidades virtuais teriam criado novos padrões de interação social. O receptor passou a priorizar, muitas vezes, o contato mediado pela internet, em detrimento das comunicações presenciais, inclusive com a família, além do fato de não mais existir os limitadores espaciais. Além dessa priorização da internet, tanto em relação a outros meios quanto em relação às interações face a face, o número de usuários tem crescido diariamente. Uma audiência tão grande e focada tem sido responsável por um fenômeno de “celebritização” instantânea de pessoas desconhecidas. Já são inúmeros os casos de personalidades que se tornaram conhecidos exclusivamente por meio da internet. Isso porque a rede tem a capacidade de “viralizar” seus conteúdos de forma muito rápida e o número de pessoas atingidas por estes conteúdos está intrinsecamente ligado a este processo. É importante considerar que na web o receptor, até mesmo pela pluralidade de canais disponíveis, só busca ou propaga os assuntos de seu interesse. Logo, as discussões tendem a se fazer mais produtivas, tendo em vista que são promovidas por pessoas que, presume-se, tenham certo conhecimento a respeito do que está sendo discutido, o que difere mais uma vez dos demais meios de comunicação, onde a pauta é determinada pela própria produção e a variedade de opções é bem menos extensa. Contudo, tão importante quanto avaliar quem é o receptor nesta mídia é verificar quem deveria ser, mas não tem sido contemplado com esse acesso, e quais são as consequências que isso acarreta. Antes de mais nada, é necessário considerar que as pessoas podem não ter acesso, ou por não terem recursos, ou por não quererem, o que ocorre na maioria das vezes com pessoas nascidas antes da criação das tecnologias. Esses indivíduos sem acesso, chamados por German (2000) de “pessoas isoladas”, acabam sendo preteridos em diversas relações sociais ou mesmo em processos inerentes à construção de sua cidadania. Isso ocorre, por exemplo, quando órgãos governamentais passam a exigir ou dificultar serviços presenciais em relação aos serviços executados via rede, excluindo a maioria da população brasileira de diversos processos, como inscrições em concursos públicos, vestibulares, agendamento de atendimento em órgãos governamentais, entre outros tantos. Isto ocorre também na iniciativa privada, quando empresas recebem currículos apenas por e-mail ou demanda preenchimento de fichas em sites. Muitas vezes, esse tipo de atitude mantém as pessoas como analfabetas digitais, pois as empresas, que poderiam ser canais de introdução dessas pessoas ao mundo digital, acabam por sequer contratá-las, provocando um ciclo vicioso. German (2000) coloca que a diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos teria aumentado por consequência das novas tecnologias, que estariam dividindo o mundo entre pessoas conectadas e isoladas. De maneira semelhante, Vilches coloca que “o mundo não se divide entre ricos e pobres, mas entre os informados e aqueles que ficaram de fora da era das conexões” (2003. p.32). Já Castells (2003) considera que a exclusão das redes é uma das formas mais graves de exclusão possíveis, tanto cultural quanto economicamente. Ainda assim, como paulatinamente os “isolados” vão sendo introduzidos no mundo digital, é interessante observar iniciativas e eventos promovidos pelos receptores atuais, até mesmo para se ter uma previsão da dimensão da projeção que este meio vai ter no momento em que o acesso à internet se tornar uma realidade no cotidiano da grande maioria dos brasileiros. Para tanto, é necessário estudar quais são os efeitos possíveis no uso da internet. 6. Com que efeito? A última das questões apontadas por Lasswell como um dos possíveis enfoques nos estudos em comunicação é a pergunta “Com que efeito?”, que seriam os estudos sobre o impacto nas audiências ou análise de efeitos. Uma pergunta interessante a se fazer em relação a esse aspecto quando analisado sobre o âmbito da internet seria se dentro desse veículo ainda haveria espaço para discussões sociais, como um local de reunião de indivíduos interessados em discutir temas de interesse comum. Levy e Lemos (2010) colocam que as novas mídias interativas são verdadeiras ferramentas de conversação e não mais somente informativas, o que leva a entender que, independente da forma com que vem sendo utilizado, esse espaço existe. Alguns casos recentes demonstram que esse espaço já começa a ser utilizado, ainda que o desenvolvimento da internet nesse sentido esteja incipiente. A discussão e recolhimento de assinaturas para o Projeto da Lei da Ficha Limpa 11 e alguns outros projetos de lei de iniciativa popular são bons exemplos disso. Um outro exemplo seria a discussão ocorrida no Twitter no decorrer do ano passado sobre a construção da usina de Belo Monte no estado do Pará, discussão essa que a revista Veja chamou de primeiro debate sério da internet brasileira12. Ferramentas como o Twitter, na visão de Levy e Lemos (2010), tornariam quase permanente a relação social pelo ciberespaço. E essa relação se torna ainda mais permanente com o advento da Web 3.0, que permite o acesso aos arquivos pessoais de onde quer que o indivíduo esteja, por meio de aparelhos de internet portátil. Segundo os autores, este processo faria parte de uma nova esfera pública no ciberespaço, agora diretamente mundial por estar livre dos limitadores geográficos. Todas essas mudanças nas práticas sociais e comunicacionais advindas da rede dariam uma capacidade maior aos internautas de intervenções e de organização política aos que antes eram excluídos do sistema tradicional. Essas ações concretas de mobilização voltadas para mudanças efetivadas na prática é um dos principais efeitos que a rede pode trazer. E todas essas ações, ganhando visibilidade, passam a servir de modelo e incentivo para outras ações similares e abrem novas possibilidade de uso prático desse meio de comunicação. Um outro efeito provocado pela internet, apontado por Levy e Lemos (2010), é o apagamento da distinção entre público e privado. Nesse caso, não somente se tratando do nível de exposição de cada internauta dentro da própria rede, mas do controle sistemático de toda a sociedade, sobretudo pessoas famosas, feito pela própria sociedade e disseminação imediata de todos os seus passos. Mas esses são apenas alguns dos efeitos verificáveis com o advento da internet. É interessante notar que a própria existência da internet já traz um efeito considerável em toda a sociedade, pois as mudanças que ela implementou na forma de comunicação da sociedade 11 Lei Complementar 135/2101 - Projeto de Lei de Iniciativa Popular que torna inelegível por oito anos os candidatos que tiverem o mandato cassado, renunciarem para evitar a cassação ou forem condenados por um órgão colegiado. 12 Reportagem de capa da revista Veja, publicada em dezembro de 2011. acabou por afetar a vida de todos. Se antes não era dada atenção às relações interpessoais como fator relevante na determinação dos efeitos que a comunicação atingiria, conforme defendia o próprio Lasswell (1948), hoje essas relações são condições para a própria existência de uma comunicação eficaz. Pelo curto espaço de tempo em que a internet se fez presente na vida de toda a sociedade, de maneira direta ou indireta, ainda não foi possível determinar o alcance de suas potencialidades e os efeitos que isso trará para os indivíduos e para a própria sociedade. Ou seja, antes de um tempo de amadurecimento e de alfabetização digital dos cidadãos, os efeitos serão restritos à parcela da população que já utiliza o recurso com propriedade. Entretanto, observar os primeiros efeitos práticos advindos do uso da internet é importante para vislumbrar o que a internet pode vir a ser. 7. Considerações finais A internet, a partir do momento em que chegou aos lares dos cidadãos comuns, iniciou um processo de instrumentalização de pessoas de forma a dar voz a eles e autonomia de acesso aos conteúdos que acharem pertinentes. Essa mudança, que em um primeiro momento pode ter sido vista como algo que não faria uma diferença substancial, alterou sobremaneira a forma com que as pessoas lidam com os meios de comunicação. Quem chega a ter acesso à rede tem dificuldade de aceitar passivamente meios de comunicação que dão pouca ou nenhuma autonomia de escolha de conteúdo e ou de participação ativa desses receptores e isso tem promovido uma crise de audiência em meios como a TV por exemplo, que tem sofrido um processo gradual de diminuição do percentual de televisores ligados. Todas essas mudanças trazidas pela internet não ficariam restritas apenas ao consumo nos meios de comunicação, principalmente numa sociedade em que esses meios permeiam praticamente todos os aspectos da vida das pessoas. Assim, todos os elementos integrantes do ato comunicacional acabam por, em maior ou menos grau, sofrer os impactos dessas novas formas de interação trazidas por este meio, o que traz como consequência profundas modificações até nos costumes e formas de agir da sociedade moderna. Se quando Harold Lasswell propôs seu modelo de quais elementos fazem parte da comunicação as formas de lidar com os meios se dava de forma relativamente estável, hoje, determinar quem é produtor e quem é receptor é muito mais complexo. O que é dito pode ser replicado quase automaticamente e os canais se misturam, pois um acaba pautando o outro e as demais mídias acabam por lançar mão da internet para tentar se aproximar de seus públicos. Os efeitos de tudo isso, por maiores que venham a ser, ainda não conseguem ser precisados com exatidão, tendo em vista a incipiência do meio. É interessante, portanto, acompanhar de perto quais serão as próximas evoluções trazidas pela internet, pois este meio, até então, traz consigo um novo mundo de possibilidades, mas somente com a observação de todos os elementos que o constituem é que será possível determinar de que forma que essas possibilidades serão, de fato, praticadas. 8. Referências Bibliográficas CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede - a era da informação: economia, sociedade e cultura. 7.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. _______________. A galáxia da internet. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004. DUARTE, Jorge; BARROS, Antônio. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. ELER, André. DINIZ, Laura. Nocauteados pela Lógica. Revista Veja, São Paulo, Dez. p.140-146, 2011. ERCÍLIA, Maria. A internet. São Paulo: Publifolha, 2000. GERMAN, Christiano. O caminho do Brasil rumo à era da informação. São Paulo: Konrad Adenauer Stiftung. 2000. KAPLAN, Abraham; LASSWELL, Harold. 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