voltada ao - Companhia do Latão
Transcrição
voltada ao - Companhia do Latão
Ettore Petrolini Um gênio da comédia que não foi levado a sério 2003 junho Um jornal pau-pra-toda-obra 4 teatro em debate Encenação voltada ao ggrruupp oo 2 O SARRAFO Número 4 ◆ Junho 2003 Nossos endereços O SARRAFO CHEGA ao seu quarto número comemorando o sucesso e a recepção que tem tido dos leitores. A sua distribuição tem chegado a Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Grande São Paulo. Isto tudo graças à colaboração de grupos e amigos dessas cidades, que vêem no jornal um importante veículo para as discussões sobre o ofício teatral. Como afirmávamos em nosso primeiro número (...) há uma carência de publicações que discutam, com pertinência e competência, o ofício teatral levando-se em conta a diversidade de propostas estéticas e o conjunto de problemas colocados, hoje, para os grupos e companhias. Até aqui, como diz Tersites de Souza, seguimos firme no lema um jornal pau-pra-toda-obra. A S INSCRIÇÕES para a Lei de Fomento ao Teatro estão abertas. É o momento oportuno para a classe teatral tomar consciência de suas responsabilidades com relação ao aprimoramento e desenvolvimento da Lei. Responsabilidade essa que tem início com a redação do projeto a ser apresentado à Lei. Vale lembrar um velho ditado chinês quem não participa, quem se omite, não tem direito de chorar o leite derramado! No último edital essa responsabilidade deixou a desejar, somente metade dos responsáveis pelos projetos inscritos votaram para escolher a comissão julgadora. O preço da cidadania é a eterna militância! O S ENCENADORES das companhias e grupos que editam O Sarrafo falam sobre o processo de trabalho e de criação que orientam seus coletivos criativos. Uma oportunidade para se conhecer os diferentes caminhos que são percorridos para se criar o espetáculo teatral. Nestes tempos em que o fazer teatral encontra-se tão adulterado é uma ótima oportunidade para se refletir sobre a sua singularidade e abrangência em relação às outras linguagens artísticas. Queridos amigos do Sarrafo Quero esclarecer o seguinte: Na edição do texto escrito por mim sobre o tema da crítica foi omitida a citação ao estudo de Fredric Jameson, do livro Pós-modernismo, a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. (Ática, 2000). O trecho citado é o seguinte: ...como medir a temperatura de uma época em uma situação em que nem mesmo estejamos certos de que ainda exista algo com a coerência de uma época, ou sistema, ou situação corrente? Ademais, gostaria de esclarecer que meu texto não foi enviado ao jornal como réplica ao comentário da Atividades dirigidas ao aperfeiçoamento do trabalho do ator e à reflexão sobre o fazer teatral. Telefone: 3284-0290 [email protected] www.agoranarede.com.br COMPANHIA FOLIAS D’ARTE Single singer bar, sextas e sábados à meia-noite no bar do Procópio Ferreira. Estréia de Otelo, no dia 20 de junho. Telefone: 3361-2223 [email protected] TEATRO DA VERTIGEM Com residência artística na Casa nº 1, centro velho de São Paulo, oferece programação cultural aberta ao público: oficinas, grupos de estudo, shows musicais e espetáculos. Tel: 3241-3132 e 9114-3410 [email protected] www.teatrodavertigem.com.br COMPANHIA DO LATÃO Sediada no Teatro Cacilda Becker, da Prefeitura de São Paulo, desenvolve pesquisa em teatro dialético. Prepara espetáculo sobre a manipulação do imaginário com estréia prevista para início de agosto. Telefone: 3672-8939 [email protected] www.companhiadolatao.com.br PARLAPATÕES Car tas A PEDIDO ÁGORA – CDT CENTRO PARA DESENVOLVIMENTO TEATRAL professora Iná Camargo Costa, inclusive porque não há essencialmente discordância entre pontos de vista. O texto foi solicitado pela editoria e escrito com a intenção de colaborar na discussão do tema, não mais. Crie-se uma seção Erramos e publique-se. Vida longa ao Sarrafo! Abraço, Kil Abreu NOTA DA REDAÇAO: O texto de Kil Abreu foi de fato solicitado pelos editores. Apesar do erro em qualificá-lo de réplica, acreditamos que ele manifesta, sim, discordância em relação ao de Iná Camargo Costa. O SARRAFO um jornal pau-pra-toda-obra Publicação independente produzida pelos grupos Ágora, Companhia do Latão, Companhia Folias dArte, Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, Parlapatões e Teatro da Vertigem. Editores: Aline Meyer, Ali Saleh (coordenador administrativo), Hugo Possolo (coordenador de arte), Márcio Marciano, Míriam Rinaldi, Dagoberto Feliz, Roberto Lage, Sérgio de Carvalho (coordenador editorial). Colaboraram nesta edição: Aderbal Freire-Filho, Ademir Garcia, Ricardo Tavares, Roberto Cattani e Tersites de Souza. Versão para Internet e editor colaborador: Márcio Boaro, da Companhia Ocamorana. Assistente editorial: Vanessa Bruno. Jornalista responsável: Eucléa Bruno (Mtb 8.283). Diagramação: Pedro Penafiel. Impressão e fotolito: Gazeta de São Paulo. Tiragem: 10 mil exemplares. Em cartaz no Teatro Ruth Escobar, As nuvens e/ou um deus chamado dinheiro, adaptação da obra de Aristófanes. Tel./fax: (11) 3061-9799 [email protected] www.parlapatoes.com.br FRATERNAL COMPANHIA DE ARTE E MALAS-ARTES Desenvolve o Projeto Comédia Popular Brasileira. Prepara a montagem do novo espetáculo Auto do Migrante, com estréia em agosto de 2003. Teatro Paulo Eiró Tel/Fax: 5546-0449 [email protected] www.fraternal-cia.com DISPONÍVEL PARA A LEITURA Rio de Janeiro CIA. ENSAIO ABERTO Tel.: (21) 2274-2511 www.ensaioaberto.com Belo Horizonte GRUPO TEATRO ANDANTE Tel.: (31) 3466-7827 O SARRAFO é distribuído ou encontra-se à disposição para leitura nos seguintes locais: Universidade de São Paulo, na Faculdades de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (biblioteca) e na de Comunicação e Artes; Escola de Teatro INDAC; PUC-SP; FAAP (Depto. de Artes Plásticas) e nas unidades do SESC-SP. Os grupos que editam O Sarrafo recebem o apoio do PROGRAMA MUNICIPAL DE FOMENTO AO TEATRO para a Cidade de São Paulo Correspondência para O SARRAFO poderá ser enviada pelo e-mail [email protected]. Versão on-line do jornal pelo site www.jornalsarrafo.com.br Junho 2003 ◆ Número 4 O SARRAFO A arte (quase) invisível invisível Aderbal Freire-Filho O alfaiate do rei nu, eis o homem! Todos, está bem, quase todos vêem os trajes que ele não fez. Seu ofício está no extremo de uma fieira que tem o diretor de teatro no extremo oposto. Nem um, nem outro entraram na lista de ofícios que a reportagem especial da revista Veja dedicou aos bem-sucedidos em suas carreiras. Quanto ganha e o que faz um alfaiate de rei nu, quanto ganha e o que faz um diretor de teatro? Resposta da Revista Veja: sei lá, não quero saber, não me interessa. Bem, é melhor ficar com biólogos, publicitários e administradores de empresas, até porque o mercado de trabalho para alfaiates de reis nus e diretores de teatro não é dos melhores. E, dos dois, pior ainda para diretores de teatro, se considerarmos, claro, os bacharéis que se dedicam a vestir reis nus (ou vestir reis nus; os vestir reis nus). Mas porque eles são os extremos opostos de uma fieira de ofícios e profissões? Em poucas palavras: os alfaiates de reis nus não fazem o que quase todos vêem, as roupas dos reis nus, e os diretores de teatro fazem o que quase ninguém vê, a mise-en-scène de uma peça de teatro. Vou abandonar agora os alfaiates de reis nus, eles que criem seu sindicato. Vou falar duas ou três coisas dos que conheço, os diretores de teatro, até porque sou um deles. Como é isso de que quase ninguém vê o que eles fazem, se alguns são tão famosos? Se quase ninguém vê, quem são os poucos que vêem e o que eles vêm? E o que fazem, afinal, os diretores de teatro? Não vou responder na ordem, nem sei se vou responder. A julgar pelo que dizem deles, o que eles fazem não é difícil de saber: eles gritam (dizem que os diretores de televisão gritam mais). E, às vezes, eles escrevem sobre o que fazem. Bom. Como eles não estão presentes no espetáculo, como os atores; nem estão representados no espetáculo por coisas concretas, palpáveis, como os cenógrafos estão pelos cenários, os compositores pelas músicas, os autores pelos personagens, situações, diálogos, é natural que a identificação da sua obra seja difícil. E outra conseqüência disso é também natural: os diretores efeitistas são mais reconhecidos, eles são os autores dos efeitos, eles jogam para a platéia (a patuléia, na corruptela). Daí costumam sair os famosos, o que está muito bem. O mal é quando isso vira padrão de qualidade e a qualidade verdadeira não conta. Dou um exemplo. Peter Brook, que era famoso também aqui, enquanto quase ninguém tinha visto seus espetáculos, acaba de chegar ao Brasil. Como sua qualidade não é feita de efeitismos, ver a qualidade verdadeira dos seus espetáculos foi, para muitos, decepcionante (se ele voltar outras vezes vai acabar perdendo a fama). Ouvi muita gente saindo pela tangente: ah, ele agora está optando pela simplicidade. Ora, Brook é simples há muitos anos, seu Timão de Atenas, de 1974 (um senhor de 30 anos), era de uma simplicidade roxa. Mas tanto lá, como agora, suas qualidades estavam ali, escandalosas, no jogo dos atores e com os atores, na vida luminosa de um teatro vivo (valha a redundância), na transformação da palavra em ação e aí está o segredaço. Chamo aqui essa transformação de revolução do princípio e a defino como a grande revolução que o poeta da cena deve fazer para a construção, no palco, da sociedade da poesia viva: o que no princípio era verbo, no princípio passa a ser ação. Mas isso é difícil de ser visto. A autoria do espetáculo, no final, se confunde tanto com a do autor e a dos atores que mesmo os colaboradores próximos muitas vezes não percebem. Mas é natural que seja assim. Os primeiros diretores de teatro foram os próprios autores; os diretores de teatro de hoje, portanto, são Sófocles vivo, Shakespeare vivo, Molière vivo, quando não ele mesmo o diretor inaugurando outra dinastia do Fantasma. É assim a imortalidade dessa arte efêmera. Enfim, esse papo é só um começo de conversa, não dá tempo de Aderbal Freire-Filho esmiuçar. Arrisco uma generalização, dizendo que tudo o que o é diretor e está em cardiretor de teatro faz, ou pode fazer, é fruto da sua constaz no Teatro FAAP ciência da natureza da ilusão particular do com a peça A Prova. teatro. Não gritar também é bom. 3 4 Número 4 ◆ Junho 2003 Fotos de Lígia Jardim O Sarrafo reuniu cinco dos diretores teatrais que compõem o grupo editorial do jornal. Ednaldo Freire, Roberto Lage, Hugo Possolo, Marco Antônio Rodrigues, Antônio Araújo. No dia do encontro, antes que o debate tivesse curso, cada um deles fez um depoimento relatando sua experiência com o ofício. Optamos em manter a mesma estrutura. O SARRAFO Encenação repensada EDNALDO FREIRE – Não tem função mais efêmera que a do diretor. Fim do espetáculo, os atores continuam e o diretor fica naquela penumbra... HUGO POSSOLO – Ah... mas você não vai lá perturbar? FREIRE – Eu não perturbo... eu não! POSSOLO – Não? Pra mim, o espetáculo é mutante. FREIRE – Não quer dizer que não seja, mas é efêmero, porque ele é um agente da contemporaneidade. Hamlet, por exemplo. Você o torna um contemporâneo porque o texto é eterno. A função do diretor é a função do presente, de refletir a relevância do trabalho. Isso é o que norteia a escolha do que fazer do nosso grupo, dentro desta proposta celebrativa do teatro popular, a vertente que abraçamos. Agora, se a função existe, para alguma coisa há de servir. POSSOLO – Abujamra diz que é a arte de se fazer desnecessário... MARCO ANTÔNIO RODRIGUES – Da mesma forma que o ator está preocupado com o que vem antes, o diretor também quer instigar o que tem antes do texto, antes do ator estar em cena, digamos, o que está no mundo. Este papel é a especificidade do diretor. Em geral, os atores lêem muito menos do que deveriam, criam muito menos do que deveriam e se não houver essa figura por trás potencializando, sendo provocado e provocan- do, não dá em nada. POSSOLO – Não estou querendo esvaziar a função, mas dar a ela outra atualidade. O que interessa é a disponibilidade ao fazer artístico. A maneira como você se põe para realizar devido a diversas razões, conteúdo, capacidade efêmera que o teatro tem e, em contrapartida, de ser eterno nas emoções e no pensamento de quem o assistiu. RODRIGUES – Eu invejo, confesso, os caras que você têm. Primeiro, porque eu tenho preguiça de estar entrando em cena. Também já tentei escrever, mas achei muito solitário, gosto mesmo da coisa coletiva. Entrar em cena todo dia é heróico, bonito, mas não tenho mais saco. Sempre me neguei a ser um mestre-de-obra do texto, do dramaturgo, deste textocentrismo que alguns pregam, que o diretor seja apenas um intérprete do autor. Esta postura sempre foi uma preocupação para mim, que sempre trabalhei em grupo porque este processo nos obriga a questionar formas autoritárias de impor o trabalho criativo. Já vimos na história várias tendências, inclusive recentes, do diretor-autor e, agora, no trabalho que realizamos, realmente participativo – não do ponto de vista babaca do teatro coletivo, que na década de 70 se pensava ser ideal. Temos a felicidade de estarmos com o autor próximo e até costumamos brincar ao dizer que autor bom, para nós, é autor vivo. Autor morto nada tem a dizer. Em nosso grupo, cada um tem seu ponto criador, compartilhado em algum momento. Não tem aquela do autor ser um engenheiro, o diretor um mestre-de-obra e os atores, pedreiros. Todos querem participar do projeto. Assim não há conflito: o autor escreve o texto, a gente trabalha a direção. Evidentemente, há um momento onde o conflito se estabelece. Agora mesmo vivenciamos isso. Como utilizar o material das entrevistas sobre o migrante, nascido de uma investigação sobre as sagas familiares da região sul. O autor iniciou a concepção só depois de todas as idéias serem colocadas e debatidas. Foi um parto difícil. Minha visão como diretor, uma palavra até um tanto autoritária, é a de ser um regulador de idéias que, além de organizar o espetáculo cênico, ajuda a organizar as idéias como um todo. Teatro é arte coletiva e, como tal, só pode ser feito de forma coletiva. Não dá para impor. E se alguém estiver impondo alguma coisa, algo está errado. ednaldo freire POSSOLO – E vaidosa. ROBERTO LAGE – A questão do teatro participativo/colaborativo não está clara porque, para mim, sempre foi assim. Mesmo num espetáculo tradicional que eu tenha participado, onde as figuras estão absolutamente colocadas como cenógrafo, figurinista, iluminador, diretor, ator, a queda-de-braço sempre existiu. É isso que eu quero entender melhor. Por exemplo, vou fazer um trabalho com o cenógrafo, na acepção da palavra, ele sempre tem três ou quatro opções para apresentar. Brigase, discute-se muito para chegar à cenografia final. Em outros, a discussão se estende à equipe. Eu nunca participei de um trabalho onde um não desse um pitaco no trabalho do outro. POSSOLO – As pessoas que estão querendo se formar ou se voltar ao teatro, às vezes enxergam modelos que chegam a elas muito mais fortes. Modelos de publicidade, por exemplo, de televisão, onde na produção este modelo não está inserido. Nem estou falando apenas de um teatro comercial. Me refiro a uma produção industrial, que é o da televisão, do cinema, da publicidade, por decorrência, um gênero bem inferior, colocado como modelo para a garotada que está chegando. Muitas vezes, em oficina de figurino, tem o artista de visão romântica, com desenho intocável, que não se discute, que não é coletivizada. Porém, o teatro tem uma abrangência coletiva de pensamento. RODRIGUES – O fato de você trabalhar com uma equipe por muito tempo, como é o caso do Galpão, dá um tipo de intimidade, onde a interferência se dá sim. O que não signifi- Junho 2003 ◆ ca que cada um não domine suas coisas. Mas não é uma criação coletiva, não passa perto e nem quer ser. Tem uma assinatura. POSSOLO – A gente usa muito o termo processo colaborativo para repensar o jeito do trabalho, em contraponto à criação coletiva. Por que? Na criação coletiva, você tem o desejo de apagar as funções. Já no processo colaborativo, há as funções. Tem alguém que responde pela luz, pela dramaturgia, pela direção que, em casos de conflitos insolúveis, dá a palavra final. No teatro convencional, me parece que estas funções têm limites mais rígidos. Você virar para um dramaturgo e dizer que não gostou de determinado trecho, poderia ser visto como um super desrespeito. No nosso trabalho, meter a mão na cumbuca do outro, é super bem vindo. LAGE – Está muito claro. Por exemplo, no Ágora, que a médio ou curto prazo vamos nos tornar um grupo, estamos trabalhando um texto de Camus. Por isso, estamos mergulhados nele. Conseqüentemente, vamos todos juntos discutir uma concepção para esta peça. Fora do Ágora, como diretor contratado, dirigindo Mário Prata ou Maria Adelaide Amaral, este bate-bola também existe. E é grande. Já cheguei a mudar toda a ordem de uma cena por causa da interferência de um sonoplasta. RODRIGUES – Tem uma diferença de grau, Lage. Você não pode, dentro de um grupo, por princípio ético, tirar alguém. Mas sim achar um caminho, uma solução. Há questões que batem de frente. No caso, estou dirigindo, você é o produtor e tem o cenógrafo. A gente ensaia e nada funciona. Não 5 O SARRAFO Número 4 O que me move a fazer teatro é, antes de mais nada, a possibilidade de interferir e levar um conjunto social à reflexão. Para mim, o que interessa é a questão do conteúdo, mais do que o fenômeno estético. Com esse interesse, a função que melhor desempenho é a direção. E como não trabalho com um único grupo, mas sou, muitas vezes contratado por grupos, organizo um conjunto de pessoas. Não tenho preconceito com nenhuma linguagem, nenhum gênero ou forma de fazer teatro, desde que o conteúdo bata com a minha maneira de pensar e acredite ser pertinente ao momento e à sociedade. A partir daí, o tratamento a ser dado é o que eu considere mais adequado. Não vou obsessivamente atrás de uma única estética nem trabalho em cima de um único gênero. Ao contrário. Quanto mais diversifico minha experiência e vivência com as diversas linguagens, processos e procedimentos, mais me agrada. Quando vou trabalhar, por exemplo, em uma escola de teatro, como na EAD ou no Soeur Helena, estabeleço um processo de trabalho muito mais didático. Procuro fazer com que o ator tenha absoluta consciência do que está acontecendo, do porquê está acontecendo. Tento oferecer a este indivíduo em processo de formação ou conclusão de curso, um procedimento que sirva para ele como uma instrumentação de trabalho, o leve a perceber, e isso é fundamental, sobre sua responsabilidade pelo ofício que escolheu. Num esquema mais convencional, meu trabalho é muito mais ditatorial, pelo fato de não existir uma estética a ser discutida, na maioria das vezes, com esse conjunto. Eu fecho uma idéia do espetáculo, determino a estética mais adequada e ponho as pessoas a cumprir este trabalho. Entendo que estou lá mais significativamente pelo conteúdo do trabalho, estou lá também pela grana que estou ganhando e não é um segmento de realização de espetáculo onde se possa correr grandes riscos. É um comportamento totalmente distinto do que tenho dentro de uma escola de teatro. Igualmente quando trabalho no Ágora, que é um centro de estudos antes de mais nada, e não um grupo de teatro, e abriga ali alguns atores interessados em estudar desde técnicas de interpretação até processos mais investigativos do fazer teatral. É quando tenho comportamento bastante didático/pedagógico, e nossa relação é coletiva, de troca, um trabalho realmente coletivo. Nesse caso, minha função é muito mais colaborar e oferecer minha experiência profissional e também de ordenar e coordenar a criação. O outro lado – já que minha paixão é conteúdo – é quando sirvo ao autor e ao ator, elementos básicos com os quais inicio o trabalho. Se eu não concordo com o texto eu não faço; se não concordo com o tratamento dado ao texto, também não trabalho, por não querer subverter o autor. Na maioria das vezes não tenho um projeto pré-estabelecido de encenação. Ele flui a partir de pressupostos que melhor se adaptem à apresentação deste conteúdo e também na minha relação com os atores nos ensaios. roberto lage dá outra, ou eu ou ele. O produtor vai ter que resolver isso. Essa é a questão da responsabilidade. POSSOLO – Mas, em grupo, também se pode ter esse choque, Marcão. RODRIGUES – Mas em grupo a relação foi construída ao longo do tempo. Existe um alfabeto particu- lar onde você se comunica e encontra o caminho. Em outras situações, não há tempo, a formação é muito diversa e aí tem que definir. Acho que existe uma diferença de gradação. No grupo, você tem uma relação. Na produção convencional, a história é outra. FREIRE – Mesmo dentro do grupo, você não pode dispensar as habilidades e as competências. É por isso que a gente se junta. Cada um na sua, mas juntos para criar o projeto. Acho que é complicado isso tudo porque a gente fala muito em grupo e dá a impressão que é uma coisa ideal. Mas A questão de trabalhar com arte é de primeiro compreender, de tentar entender; segundo, de tentar expor. O que me interessa muito é tentar, mesmo que egoisticamente, entender onde estou, o que está ao redor. Para exemplificar, se trabalha Otelo agora, no Folias. Se está fazendo Otelo porque, institucionalmente, no Brasil, se estabeleceu uma diferença de um pacto político, até então aristocrático no comando dos 500 anos do país. Mais recente se passou a ter um pacto da aristocracia com a classe trabalhadora. A relação político-econômica mudou e vai bater na gente, de alguma forma. Esta situação passa a me interessar para tentar entender o que pode vir daí e o que pensar sobre ela. Talvez esse entendimento possa ser socializado e trazer, de alguma forma, um tipo de pensamento. Essa é a questão da arte, de entender e expor. Um amigo nosso, o Pedro Paulo Bogossian, define bem o que é diretor. Para ele, diretor é aproveitador de talento alheio. Concordo, mas exige uma cer ta habilidade de saber explorar as potências, trazer para fora, o que não é simples, numa época onde está plantado o agradar a qualquer preço, a massificação dos compor tamentos humanos. Essa riqueza que fica escondida tem que ser escavoucada de alguma forma para poder ser compreendida. Stanislavsky e Brecht revelam estruturas de compor tamento individual, como elas se inserem dentro de uma estrutura macro e interferem entre si. Como dar instrumental ao ator para sair dali, no Folias, pensando, ser um criador e não um macaco com quinhentas técnicas, e de acordo com a solicitação, ele puxa uma. O que interessa é que em algum momento, por conta da própria evolução burguesa, o teatro passou a privilegiar o verbo em detrimento das outras técnicas. É nesse momento que se dá o rompimento daquilo que a cultura indica como a cultura elevada e a cultura popular, como sendo menor, a da comédia e outros estilos. Passou a interessar muito para nós reunir as coisas da dança, do circo, da música como raízes da nossa formação e recusar esse artista aristocrático, que ainda hoje vinga institucionalmente no teatro. O protagonista é o próprio teatro. marco antônio rodrigues 6 O SARRAFO Número 4 Fazer dramaturgia e atuar vem não só de um processo de grupo, mas também de uma trajetória individual, onde fui tomando consciência de uma questão que seria pertinente voltarmos a falar. Existe uma tendência predominante na sociedade em que vivemos, de cidade pós-industrial, das profissões acabarem se segmentando em atividades específicas. Curiosamente, o fato de eu trabalhar em comédia, teatro de rua, com um caldo de elementos populares, acaba trazendo um envolvimento que não tem essa especificidade. Isso tudo para dizer assim: nunca me pensei exatamente ator, nunca me pensei exatamente autor e muito menos diretor. Reflete um pouco essa maneira de realizar o espetáculo, que acabou gerando o Parlapatões. Ele traduz, de certa forma, cada um de nós ali inseridos, tanto os que circulam no núcleo principal, os do segundo núcleo e os convidados. O que se coloca para os que chegam é exatamente o da apropriação do que se está fazendo, ou seja, não existe piada autoral. Ela pertence a um coletivo. Quando dirijo para a Unicamp, para a ECA, onde a postura didática vem também da exigência de uma ética profissional, não pego os alunos achando que eles têm que aprender, até porque, no caso, são trabalhos de formatura. Digo: “ou vocês aprenderam o melhor desta profissão ou isso não serve para você. Vai fazer outra coisa porque eu não quero gente que não tenha entendimento ético da profissão”. Exerço um papel radical, mais autoritário. Não sou, no caso, nada didático. Vou fazê-los entender que o mundo é cruel, que não se está mais na fazendinha da Unicamp, da ECA, fazendo teatrinho com seus amiguinhos. Um outro aspecto é que, dentro dos Parlapatões, eu não me penso como diretor do espetáculo, mas penso o direcionamento que o grupo vem a ter. Não no sentido de apontar o rumo onde ele deve chegar, porque a gente nunca sabe, mas o sentido de refletir e pensar o teatro que se está fazendo. A gente não faz só o espetáculo. A gente produz um pensamento em torno de um espetáculo, que é direcionado, de certa forma, independente de eu estar dirigindo ou não. Por isso, é que eu provoco e pesquiso. E acredito que isso acende outras possibilidades. No exemplo recente de As Nuvens, foi o que aconteceu. Na avaliação do elenco, o processo do grupo foi o dono do espetáculo. E onde o grupo, por incrível que pareça, deu a maior parte da concepção, da estética, de mecânica, que é como chamo a marcação, porque em comédia, primeiro a gente trabalha arquitetando, depois deixa fluir a emoção. Eu me pego nisso. E quando percebo que tenho resposta – com os atores que estão no grupo ou convidados –, elas entendem que precisam se apropriar, precisam tomar conta porque, do contrário, não vai significar nada ao público. Claro, há uma série de conflitos, na verdade, e eles são colocados com um ímpeto mais vigoroso, que acaba se traduzindo em cena e acho que esse vigor existe porque todo mundo se sente dono, embora tenha uma direção. O que quero é romper com o específico, com a profissão setorizada, que me incomoda muito. hugo possolo ela é só utópica. Na verdade, eu não conheci nenhum grupo, desde a época de 70 até hoje, que não tivesse a cabeça de um líder. LAGE – Alguém precisa dar unidade. FREIRE – Ou alguns líderes que, de certa maneira, contaminem com seu pensamento. POSSOLO – Não queremos repetir o modelo que a gente recebeu como herança, como a figura do predestinado. Mas acho que se acaba criando uma discussão até para se defender e não ser confundido com esse tipo de modelo da década de 80, que me incomoda e eu acho um pouco utópico. LAGE – Incomodava a todos nós, tanto é que estamos aqui hoje. POSSOLO – Há quem defenda que o processo colaborativo foi uma ótima expressão para se dizer que não se fazia mais a criação coletiva da década de 60 e 70. Mas, fazemos uma coisa que todos interferem, desde que haja responsabilidade do dramaturgo. O mesmo ocorre na direção. Na verdade, a função da direção não perdeu a importância. ANTÔNIO ARAÚJO – Sinto que esse tipo de trabalho é fruto da criação coletiva para não demonizar a década de 80, como também não correr o risco de não demonizar a criação coletiva. Talvez a maneira como esteja ocorrendo seja diferente, por isso a tentativa de achar outros nomes para definir este processo. Mas, essa via partir de um tema e desenvolver parte desse tema em um espetáculo vai acontecer de novo, no trabalho do Vertigem, porém, um pouco diferente. Este trabalho coloca o ator em confronto com o pensar o todo e não só a parte. No caso, a concepção da obra não é só do diretor, ela passa por todos. RODRIGUES – Mas com responsabilidades. Estamos conversando aqui hoje porque o trabalho destes grupos e de outros tantos conseguiram uma exceção, a ponto de fazer com que as políticas reconhecessem que a arte é um segmento importante da cultura na formação do país. Estaríamos num grupo amador, mimeografando este veículo, mas não tendo uma tiragem gráfica de 10 mil exemplares. Por que? Porque a sociedade brasileira avançou. A luta não está ganha e isso não é uma babaquice proselitista, mas existem responsabilidades. Pertenço a um grupo com mais de 50 pessoas, sete formam a gerência que, se não segurar a peteca, daqui a um mês o grupo acaba. Não que os demais não sejam estimulados a fazê-lo. Ninguém quer ficar de diretor, de gerente, de administrador. O fato objetivo é que sem algumas competências, as coisas não andam e as pessoas lavam as mãos. POSSOLO – Eu gosto disso que você fala porque desindividualiza isso de precisar de um líder. Não é de um líder que se precisa, mas sim de lideranças, que às vezes lideram coisas diferentes dentro de um grupo. Porque se não, podemos cair de novo naquela idéia de associá-lo àquele diretor. Quando provocadas, todas as pessoas têm a capacidade de liderança, de ação e de responsabilidade. LAGE – Se o projeto não é coletivo, não se tem o espetáculo... POSSOLO – O público sente isso. No fundo, a gente faz para quem vai. Ele lê facilmente e sente que a coisa está setorizada, sem sentido coletivo. FREIRE – O Fellini falava que os velhos são gagos e os novos são gagás. Eu acho que é a eterna discussão a respeito da concepção de se fazer porque, na realidade, ninguém tem a solução. A nossa geração nasceu do Arena, do Oficina. Tivemos essa referência levada à prática, que leva a outra criação . É assim que as coisas caminham. A diversidade viva. Viva a diversidade! Mas não dá para dizer que no Arena não se trabalhou coletivamente, mesmo tendo a cabeça do Boal como o grande autor intelectual. O mesmo no Oficina. Pode ser que sejamos diretores de uma arte nova, que está querendo também ser autônoma, que quer ter vez e não ser apenas o artesão do espetáculo ou do autor. ◆ Junho 2003 RODRIGUES – Quando eu insisto na questão da responsabilidade, assim como responsabilidade cível e criminal. Por exemplo: quem é o responsável pelo Volksfarra? Não pode ser uma criação coletiva. As coisas têm responsabilidades. Não é que o diretor seja responsável pelo espetáculo. Eu não acho isso. Mas existem responsabilidades éticas com relação a este ofício. POSSOLO – Mas os processos que eu tomei foram todos em cima de mim mesmo. Eu fui lá e os respondi. RODRIGUES – O democratismo não se mistura com a democracia, por isso não é fácil definir isso. Quando o espetáculo está lá é um projeto de todo mundo, se não, ninguém iria atrás porque é duro trabalhar quatro, cinco meses, um ano. Não existe essa energia individual que possa mobilizar isso, porque grana não é. Sexo não é porque não dá tempo. Existe um motor que é de todo mundo. Aí é que entram as responsabilidades éticas específicas. Do contrário, parece que no caso do Volksfarra, o Ministério da Cultura não tem nada com ele; o Abujamra não tem nada com ele; e a própria empresa também não tem nada com ele. Foi uma coisa que nasceu de geração espontânea, que nasceu do seio da sociedade. ARAÚJO – No caso do Vertigem, a responsabilidade é de todos. Se você perguntar de quem é a autoria, diremos que é de todos. Mas dentro da autoria, existem as funções. Só desconfio um pouco sobre o entendimento do que falou o Lage, de servir o autor. Na Mancha Roxa, uma peça vigorosa, teatralmente falando, com muito palavrão você traz um outro componente, que é um componente de delicadeza, de suavidade, de sussurro. Não acho que você serviu ao autor. Ou temos que repensar o que você chama de servir. LAGE – Então a gente tem de repensar o que chamo de servir. Por um lado é assim, quando eu li ou leio a dramaturgia do Plínio Marcos, eu sinto ela, ela me permeia. Eu entendo os personagens. Entendo aquelas questões de uma determinada maneira que, em 99% das montagens que eu assisti, não faziam jus ao texto. Quando tratei a Mancha Roxa daquela maneira, objetivamente, foi o que eu pretendi mesmo. A intimidade, a delicadeza, é porque eu acho que o teatro do Plínio é assim. Não essa coisa gritada, exacerbada. Esses tipos de personagens têm aspectos que normalmente não são cuidados nem valorizados. Quando falo em servir, não é no sentido de submissão, nem subserviência. O servir está no sentido de como eu entendo este autor. E já que concordo com sua escrita, penso qual seria a melhor maneira de tratar o texto e seus personagens. Junho 2003 ◆ ARAÚJO – Mas é uma leitura sua... LAGE – É uma leitura minha, evidentemente. Não dá para não ser. Talvez eu nunca faça uma peça do Plínio como ele a imaginava. Mas, trazendo este texto para o meu mundo presente, para o público de hoje. Da mesma maneira quando me refiro ao ator. Como posso me relacionar para que ele seja o melhor possível, dono do seu trabalho. POSSOLO – Tem uma coisa bem antiga, que é aquela concepção do diretor que se volta mais ao espetáculo e o que se volta mais ao ator. Como vocês pensam isso? FREIRE – Posso acrescentar uma terceira? Como cada um enxerga o público em tudo isso? POSSOLO – De certa forma, já passamos perto disso. Como cada um de nós concebe o espetáculo? RODRIGUES – A gente funciona muito mais como o cara que ajuda, de algum jeito, a fazer surgir um caldeirão de coisas para todos entendermos. E tem um segundo momento, onde as funções se separam, que é quando o ator vai lidar com aquele trabalho, eu vou lidar com o trabalho dele e como essa cena vai se organizar. Essa coisa da compreensão, esse tempo, que é longo, consome o tempo do grupo todo. Acho que é uma tendência, também, na escolha de temas, que é fugir do que é auto-referencial. O teatro é, em si, muito isso. Hoje em dia isso é um mote político importante do ponto de vista daquilo que institucionalmente a grande massa lê como teatro. Ele fala do público, do atraso do público, do celular tocando. É um pouco a extensão da revista Caras. Então o auto-referencial, por mais nobre que seja, mesmo que ele seja o sonho de uma noite de verão, acaba carregan- 7 O SARRAFO Número 4 do água para este moinho. Ele é alienante. Então, temos uma preocupação com o público, de socializar uma coisa que seja você enquanto gente e não você enquanto coisa especifica. A preocupação da gente enquanto gente ficou muito divorciada, ficou cifrada, porque a gente se desconectou. POSSOLO – Há uma diferença em uma produção de espetáculo eventual, quando ele tem um ponto de partida qualquer de concepção, de texto, e quando ele pode estar revelando as inquietações de um determinado coletivo. Um grupo não realiza um espetáculo que se encerra em si mesmo, ele parte de uma busca, de anseios de várias pessoas que não se resolvem no espetáculo. Desse, você apronta outro e mais outro. Nas seqüências dos espetáculos, vai se formando um caldo, onde todos os que estão envolvidos vão beber. ARAÚJO – Essa história de diretor de espetáculo e diretor de ator, que se teve por algum tempo, é um desvio, uma excrescência. Para mim, o diretor cuida da cena, como cuida do diretor. POSSOLO – E tem muito por aí. Para mim, essa é uma das razões para o público ter se afastado do teatro. O espetáculo não chega no público. Isso não significa fazer o que o público quer, chegar no público tem uma intenção que nem sempre é revelada por esses dois caminhos espetáculo e ator , que deveriam se juntar. ARAÚJO – No momento da criação, não estou preocupado com o público. Eu me volto para os problemas, as angústias daquele coletivo que está construindo a obra e nisso a gente vai fundo. O tempo necessário, um ano até, dentro de uma sala de ensaio. Depois é que vem a preocupação com ele. Tivemos recentemente com o Apocalipse, uma experiência muito positiva, o ensaio aberto. Houve uma interação muito grande com as pessoas convidadas e, a medida em que eles comentavam, nós retrabalhávamos as cenas. Considero isso uma vantagem do teatro em comparação com as outras artes, como a pintura, o cinema. FREIRE – Eu já tenho uma grande preocupação com o público, até por conta do alicerce do nosso projeto, que é a comédia popular brasileira, porque ela envolve a linguagem usada para falar com o público. Essa preocupação da linguagem pode ser traduzida por uma estética que o grupo vai construindo e que alguns chamam de teatro popular. Eu não concordo. Porque teatro popular é uma instância muito superior, onde o povo não é só protagonista, mas também faz junto, como, por exemplo, se joga futebol. Mas que tem essa referência e emana desta cultura. Para nós, é uma postura política, não é um teatro político, embora tenha uma política estética, uma vez que a gente trabalha dentro de uma vertente da cultura brasileira. Tem que se tentar buscar uma linguagem brasileira, o que pode ser uma utopia, mas se não acreditarmos, não daria para fazer nada. RODRIGUES – Se você pega uma coisa muito arraigada no imaginário coletivo, como por exemplo Cristo, você mexe comportamentalmente com ele, de maneira subversiva e transgressora. Estou fazendo este registro, porque isso pode dar uma outra leitura sobre o que se estava dizendo: a preocupação com o público é a grande questão de Brecht, não o discurso em si, mas a transgressão comportamental e como ele mexe na estrutura da família, na relação de posse, na religiosidade. Está tudo lá e acho que é uma preocupação intrínseca de quem está fazendo. POSSOLO – O Antônio falou didaticamente que, em um segundo momento, ele se preocupa com o público. Mas, o Ednaldo fala que está só se preocupando com ele. E isso é pôr em choque valores que o público poderia dizer que não aceita. FREIRE – A questão é levar justamente o público em conta nas discussões. Não é o bastante o meu coletivo achar que é legal porque isso pode levar a uma arte fechada. Na época de 70, comecei a fazer teatro pelas portas do Nacional Popular, que era fazer teatro político no ABC, um grande caldeirão a explodir, até que explodiu mesmo. Em determinado momento, a gente se agarrou ao teatro como ferramenta de luta, mera ingenuidade, mas, naquela ocasião, importante. Muito mais importante pelo fato que iniciamos um questionamento de como chegar a um público tão preconceituoso, provinciano, oprimido pela ditadura. Como fazer nosso teatro, que cara ele vai ter, era a pergunta. A gente tinha essa coisa quixotesca de querer ser herói e achar que o teatro poderia transformar as pessoas, quando na verdade, as pessoas não queriam ser transformadas. A arte só transforma quando as pessoas querem. A gente queria fazer teatro sem saber. Punha o político à frente, saía tudo muito mal feito. Para mim, aí vem a história da linguagem, da gente querer buscar uma linguagem para aquele público nosso, na época do amadorismo. A resposta, hoje, é se apossando da raiz da cultura. Edição: Eucléa Bruno O fato de ter passado pela dramaturgia e trabalhado como ator foi fundamental na minha experiência como diretor porque gerou uma sensibilidade para estas áreas. O Teatro da Vertigem é resultado de um grupo de estudos. Essa forma marca meu trabalho como diretor, marca o grupo, onde não existe hierarquia, ninguém é mais importante que ninguém dentro do processo de criação. Naquele momento, acredito que éramos oito atores, mais o dramaturgo e o diretor, se completando, se atiçando, mas sem que nenhum desses pólos tivesse mais voz ou mais peso. Essa não hierarquia equivale a uma travessia do grupo, denotando o desejo talvez de trabalhar de maneira diferente. Opondo-se ao que tínhamos na década de 80, onde se tem a figura do diretor como o mais genial, o grande senhor da cena e, para nós, esta figura central passa a não existir. Eu tenho birra da expressão “servir ao texto” porque não gosto da palavra servidão. Acredito que ninguém serve a ninguém. Gosto de provocar o dramaturgo, que ele me provoque, provocar os atores, que me provoquem, o mesmo com os outros criadores ar tísticos. Tanto quanto não gosto de uma cenografia que sirva à encenação, de uma iluminação que sirva à encenação. A imagem que eu gosto de pensar é a de uma queda-de-braço, uma provocação mútua. Nesse tipo de trabalho, esse processo coletivo que se está falando, que chamamos de processo colaborativo, recoloca essa função do diretor. Qual o papel do diretor dentro de um teatro de grupo a medida que ele não é mais este encenador todo poderoso? Eu acho que ele entra em crise sim. Por outro lado, também não me interessa teatro de texto, teatro de ator, teatro de autor. Mas sinto que, no caso da direção, seu papel tem de ser redimensionado, a partir do trabalho em grupo ou coletivo. Também me pergunto: como fica o diretor dentro disso? Assim só como um guarda de trânsito, coordenador, só organizador. Assim não me interessa, pois tem a questão da voz autoral, artística, que, na verdade, o diretor tem. Tem que ter. antônio araújo 8 O SARRAFO EXPERIÊNCIAS DA CONTRAMÃO O SARRAFO tem recebido alguns relatos sobre movimentos artísticos regionais, que refletem o esforço geral de se fazer teatro no país hoje. Este texto, decorrente de um trabalho na cidade de Diadema, foi enviado por Ademir Garcia ao grupo Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes. O teatro periférico como base para a formação humana A CIDADE DE DIADEMA está localizada na região do grande ABC e tem um dos maiores índices de violência de São Paulo (o maior problema em saúde pública são mortes por homicídios). Esse dado é importante para refletirmos sobre o processo de criação de grupos teatrais em um local onde as autoridades públicas não conseguem reverter esse quadro que se mantém, praticamente, inalterado desde a sua emancipação política de São Bernardo do Campo. Diadema tem 43 anos, é ainda jovem, assim como os movimentos culturais da cidade. Ela tem cerca de 15 centros culturais e a idéia em outras administrações municipais seria levar algum tipo de lazer a crianças e adolescentes que permaneciam o dia inteiro em contato com a violência local. Acho que essa idéia não deu certo, e creio que isso é muito bom, pois as pessoas começaram a freqüentar os centros culturais; e eu sou uma dessas que não havia tido ainda contato com a arte. Depois de freqüentar as oficinas dos centros culturais nos bairros de periferia, um grupo de novos artistas começou a se engajar mais nas decisões em relação às diretrizes culturais da cidade. Esse grupo começou a participar de plenárias do orçamento participativo, reuniões no departamento de cultura e a colocar suas idéias. Infelizmente, os políticos não entendem que a arte é uma brincadeira de pessoas sérias e, nós jovens artistas, percebemos naquele momento o quanto ela transformou nossa visão de mundo. Apesar da falta de compreensão do poder municipal, quatro grupos teatrais independentes organizaram a 1ª Mostra de Teatro do Centro Cultural Serraria. Alguém conhece Serraria? Com certeza apenas os moradores de Diadema. E esse foi um dos grandes desafios enfrentados por nós. Ninguém sabe onde fica esse bairro e com certeza é muito arriscado andar por essas ruas à noite. A mostra provou que as pessoas se interessam por arte. Em 99, os espetáculos teatrais obtiveram grande aceitação popular. É lógico que nem todos entenderam muito bem o que estava acontecendo no palco e nem sempre o público respeitou os artistas. Mas foi só o início de uma verdadeira inquietação no meio teatral na cidade. Assumi uma oficina abandonada no Centro Cultural Serraria e montamos nosso primeiro espetáculo Pluft, o Fantasminha, com jovens atores periféricos como eu. Sem incentivo, sem um olhar diferente sobre as dificuldades, mas cheios de sede da tal arte. Agora, em 2003, realizaremos mais uma mostra e contaremos com a apresentação de 11 espetáculos, sendo que o grupo de maior participação é o Catulos, com espetáculos e pesquisa sobre teatro Elisabetano. Gostaria de colocar um ponto de reflexão a vocês leitores. Como realizar teatro com adolescentes, moradores de bairros violentos, estudantes de escolas públicas com problemas graves relacionados ao ensino, com famílias pobres e sérios problemas sociais? Apesar dos esforços de todos que realizam teatro em Diadema, o governo ainda não consegue respeitar os artistas independentes, não destinando verbas para a realização de espetáculos, por vezes colocando-se contra nosso direito de expressão, boicotando todos que resolvem desafiar a política cultural quadrada da nossa cidade. Ademir Garcia é ator e diretor do grupo teatral Catulos, em Diadema. HUMOR Número 4 ◆ Junho 2003 Coluna Anti-Social Tersites de Souza é colunista, mas também costura para fora. Está animado a leiloar seus pertences em qualquer festa solidária da cidade. Bonum habe animum, ne formida. Homo quidamst qui scit quod quaeris ubi sit. (Tem ânimo, não temas. Há um homem que sabe onde está o que buscas). IDENTIDADE Uma encantadora funcionária de um Serviço Social tido como Ministério da Cultura local telefonou a dois dos editores deste mensário desconfiada de minha identidade. Desgostou-se, segundo depoimento dos rapazotes, com minha defesa da censura aos teatros de sua instituição. A encantadora funcionária impôs como critério de seleção de projetos a norma saneadora de que ensaios das peças sejam vistos por sua equipe, antes de que o encenese! seja pronunciado. Acreditou que eu ironizava. Enganou-se, a doce criatura, ao supor que a desaprovo: somente a censura sólida e preventiva pode limpar nossos palcos de tantas invenções esdrúxulas. Aproveito para franquear à moça minha identidade verdadeira: Tersites de Souza, vosso servo, pronto a tudo que meu corpo permita e minha alma tolere. CRÔNICA DAS PALESTRAS A cidade assistiu dias atrás a uma série de debates internacionais sobre teatro. Levado por minha nova condição de redator na área, decidi freqüentar alguns deles, para me integrar um pouco mais a esse estranho meio. Aprendi muito: na fila de espera, aperfeiçoei meu vocabulário difamatório, ao ver um grupinho de rapazes maldizendo os falantes nacionais: Sempre os mesmos, figurinhas carimbadas, cartas marcadas e outras sentenças literárias. Lá dentro, sentei-me ao lado de um gordo bonachão de barbas cosmopolistas, que espremia os maxilares a cada vez que se dizia a expressão teatro político e resmungava: malditos marxistas. Do palco, admito que não aprendi nada, talvez porque preferi deixar meu fone de ouvido no canal de alemão. Gosto de línguas guturais. FRASES MAIS LINDAS QUE OUVI De minhas andanças em platéias, recolhi lindas frases sobre o ofício teatral, que constituem uma súmula do que até agora sei: Teatro é encontro. Eu aprendi a ouvir o Outro. Meu teatro discute a solidão na cidade grande. Precisamos humanizar o teatro. Teatro é jogo. Teatro é relação. Político não precisa ser panfletário. Todo teatro não é político? Se me comoveu, é gênio. Teatro não é assistencialismo. Bréchiti defendia a diversão. Istanislávisqui e Grotovisqui concordam nas estrutu- ras profundas do trabalho sobre si mesmo. O teatro atual é limítrofe. Para o Piter Bruk o teatro é a arte de preencher o vazio. Como não assimilei muito bem essas idéias de limítrofe, muito menos de preencher o vazio, parei por uns tempos de anotar, mesmo achando belíssimas. Espero ter grafado os nomes corretamente. TEATRO DA ELITE Um grupo de Caras freqüentadoras do colunismo social resolveu ensaiar uma peça. É uma gente bem-posta que deixou os relógios e os brincos dourados na mesinha de canto, trabalhou duro no salão de festas de uma dama-galã, não se estapeou muito na disputa pelos papéis centrais, nem por uma marcação no proscênio, e agora, com as justas flores da estréia, sobe aos palcos com propósitos realmente beneficentes e ampla cobertura de mídia. Pelo que li, eles já se aprimoram nos fundamentos: falar alto e não dar as costas ao público. Uma figurette até já aprendeu a chorar sem cristal japonês e conseguiu decorar o texto todinho sem ajuda do mordomo. Outra reclamou com seu esteticista da aplicação de Botox, que por imobilizar a testa dificulta-lhe as expressões faciais necessárias ao comovente papel tão bem treinado no espelho. Consolou-se ao ser elogiada no camarim pela plástica nos seios, empinados como o topete de Sammy Davis Jr. (Desculpem, sou um sujeito antigo!) Depois do industrial do cimento que se fez dramaturgo anti-corrupção, nossa elite engrandece de novo uma arte depauperada. CALMARIA DA CRÍTICA Meu crítico teatral paulista favorito não produziu nenhuma novidade sapiencial neste último mês. Não usou a frase a dor e a delícia de ser o que é, não descreveu a si mesmo indignado na platéia, não condenou a repugnante idéia de publicar livros, não elogiou a beleza da primeira atriz à espera de um convite para jantar. Deixou-me, assim, desolado, como o marujo parado um mês no porto, todos os dias a perscrutar o horizonte. Mesmo o Oceano em sua inquieta grandeza tem inexplicáveis calmarias. SABEDORIA RODRIGUIANA Se soubéssemos o que cada um faz dentro de quatro paredes, não nos daríamos as mãos. Junho 2003 ◆ 9 O SARRAFO Número 4 Companhia Folias d’Ar te Ainda sobre a Farra Teatral e da Verba Pública Nossa experiência levou-nos a crer firmemente que só o nosso tipo de arte, embebido que é nas experiências vivas dos seres humanos, pode produzir artisticamente as impalpáveis nuances e profundezas da vida.(...) deixando impressões que não se desvanecerão com o tempo. Stanislavsky A CITAÇÃO do grande encenador russo foi retirada do infor- me publicitário encartado em O Estado de S.Paulo, de 10 de maio de 2003, pasmem, do famigerado Criação Teatral Volkswagen. Pode parecer perseguição, mas é que esse projeto é exemplar para se discutir a falta de ética ou a imoralidade de algumas promoções, mesmo que tenham tido na sua origem a melhor da intenções. Sobre a imoralidade do Projeto não vou mais falar, porque no número 2 de O Sarrafo isto foi amplamente demonstrado. Quero falar sobre a falta de pudor de alguns marketeiros que lançam mão de qualquer argumento para justificar os seus anti-projetos culturais. Stanislavsky está rolando em seu túmulo ao saber que foi utilizado para dar algum significado cultural a uma coisa oportunista e mercadológica. Isto porque, como lemos em seus diferentes escritos, o importante em todos os seus ensinamentos e reflexões sobre o fazer teatral o que mais importa é a ética do ator/estudante do que qualquer técnica que ele possa assimilar para construir os seus personagens. É sobre isso que quero falar, porque depois da Volksfarra com o di- nheiro público, assistimos a Globosfarra indignada com a normatização ética do dinheiro público. E, no nosso ponto de vista, ambas as coisas fazem parte do mesmo saco de farinha, patrocinado pelas injustas Leis de Incentivos culturais existentes. Isto é, o fato de se dar dinheiro público, que é a contribuição de todos os cidadãos, para aqueles privilegiados que não necessitam de incentivo para produzir e criar as suas culturas, já que gozam de uma série de regalias patrocinadas pelo capital. Por outro lado, porque a Globosfarra revela, mesmo que contra a vontade do atual presidente, o poder da elite conservadora neste governo, que teve como slogan principal de campanha a mudança de paradigmas. Ou seja, meia dúzia de iluminados fizeram com que dois ministros de Estado fossem até o Rio de Janeiro, a antiga capital do império (seria hoje a capital do império do mal?), prestar conta de sua política cultural. Um assunto da República tratado por uma minoria escolhida arbitrariamente. Não seria isso uma forma condenável de centralismo democrático? Não seria isso um sinal trocado dos valores da democracia, isto é, a maioria se submeter a minoria privilegiada? Não seria isso uma forma de dirigismo cultural? Ou as exigências que fazem os patrocinadores para os patrocinados, mesmo utilizando-se do dinheiro público, é mais legítimo e moral do que as possíveis exigências que possa vir a fazer o poder público? Tudo isso mostra o quadro de impunidade do país. E fica mais claro ainda quando, no domingo 11 de maio de 2003, a Folha pu- blica Fisco fisga Volkswagen em águas turvas, artigo de Josias de Souza, denunciando a multinacional citada como uma das fraudadoras da Sudam. Somando tudo o que pegou em financiamento e não aplicou chega-se a soma de R$ 2.208.000,00 (mais de dois milhões). Ou seja, se talvez tivesse aplicado e, posteriormente, pago os tributos, o Volksfarra poderia ser bem mais amplo e beneficiar, de fato, o artista criador. Lamentável é ver companheiros de tantas jornadas, mesmo alertados por matérias sérias, ainda continuar apoiando o projeto. Não é a toa que os empresários, banqueiros, investidores internacionais, Colim Powel, estão contentes com a política do atual governo. Que a lucidez do antigo operário nos salve neste momento de aflição e descrédito moral! Companhia do Latão Do diário de um velho ator aposentado Palavras SENHORES, ANTES de começarpronunciadas mos esta nova empreitada, é preque estejamos de acordo sopor um ciso bre um ponto fundamental: o ator é o centro de tudo; nós diretores, meros operários das idéiproeminente somos as. Falo isso de antemão para que restem equívocos. É através diretor de não de vocês atores que se consuma a da representação. Nunca se teatro a seus arte esqueçam: de vocês provém minha benção e minha graça. O teatro lá de fora, teatro de seletos tempos sangrentos, não é de todo desprezível. Uma invenção discípulos aqui, uma boa idéia acolá... intenções honestas e juventude sempre aparecem. Mas isso não nos interessa. Esta casa é o lugar da supremacia estética, da pureza de estilo, da prospecção da alma universal. Considerem a importância de vocês atores nesta missão. Por modéstia, nunca menciono o que já conquistei. Tampouco falo de mim em primeira pessoa. Verão que, a partir de agora, direi apenas O DIRETOR. À entrada, receberam uma lista com os mandamentos de meu método. São lições de simpleza e sabedoria, recolhidas ao longo de uma vida inteira dedicada ao Teatro. Como epígrafe, o velho Tao nos alerta: Portanto aprendam: fiquem sempre calados e obedeçam à intuição do DIRETOR. Ele será o portal que os conduzirá a tudo aquilo que é sutil e maravilhoso. Ao recôndito segredo de todas as essências. O DIRETOR já pressente com que avidez mergulhará nesta aventura. ELE vê nos olhos arregalados de cada um de vocês a volúpia da criação. É natural, também ELE é assim: humanamente sensível e entusiasmado. Por isso, não reparem se acaso algum desavisado receber na fuça um sapato, atirado num ímpeto, quando disser uma fragorosa asnice. Quem fica na ponta dos pés não tem firmeza Aquele que abre as pernas demais não anda facilmente. Da mesma forma, o que se mostra não brilha. Quem defende seus pontos de vista com obstinação não é cortês. O homem que se vangloria não tem seu mérito reconhecido. Não será nada pessoal, apenas uma expressão incontida de amor ao Teatro. Talvez estranhem o último mandamento e se perguntem por que trazer sempre à mão uma latinha de pomada Minâncora? O DIRETOR dirá que o respeito pelo nariz dos outros é o esteio de um trabalho que visa antes de tudo à harmonia dos contrários. Assim como é indispensável deixar do lado de fora os problemas cotidianos lembrem-se, o Teatro não tolera o que é comezinho também é indispensável deixar no banheiro os odores do dia. Agora vão, juntos franquearemos o paraíso! Márcio Marciano 10 O SARRAFO Parlapatões Teatro Futebol Clube Para falar sobre direção, gravamos uma conversa com os atores de As Nuvens e/ou um Deus Chamado Dinheiro sobre o processo de montagem do espetáculo, iniciado em janeiro. Como o elenco é inteiro masculino e vive daqueles papos machistas de mulher e futebol, resolvemos evitar baixarias e protestos feministas. Fizemos uma inevitável comparação do teatro com futebol, onde o técnico orienta os jogadores a um objetivo comum. Editados e reduzidos em seu grau de testosterona, o depoimento de cada um dos atores refletem uma busca constante do grupo em tornar o ator um autor da cena que faz: Henrique Stroeter, o Napão, atua no grupo desde 2000: Acho uma bosta quando o diretor prende o ator corporal ou gestualmente. Deixar um ator preso é uma falta de respeito. Diretor bronquinha também não rola. É o mesmo que amarrar um jogador de futebol a um estilo de jogo. Aqui nos Parlapatões, tem uma coisa que é ideal, que instaura um clima de trabalho que é absolutamente objetivo. Não tem bronha. O nervosismo, que é horroroso no trabalho de qualquer ator, se afasta e abre espaço para a intuição. Permite que você faça coisas que não faria se fosse obrigado. Você se sente no processo como um criador e não como um ator pau-mandado. É uma liberdade perigosa, pois cada ator tem que achar seus limites e buscar seu estofo, corporal e intelectual. Aqui, assim como no grupo Cemitério de Automóveis, eu vejo uma maneira de encarar o palco que não é religiosa e absoluta. É como futebol. Não é sagrado, mas pode se tornar sagrado. Como nas rubricas de Shakespeare: atores entram. Entra aí e joga. O importante é jogar. Para isso, é preciso ter o máximo de domínio da cena e da gente mesmo. William Amaral, primeira participação no grupo: O diretor é aquele que provoca para tirar coisas boas do ator, como uma parceria entre técnico e jogador. Como num time, não importa quem faz, mas que um levante para que o outro faça o gol. É um conjunto. Aqui, você pode fazer o que quer, tendo um objetivo a seguir, por um sentido coletivo. Vejo que as pessoas se identificam com o espetáculo, pois todos são meio Estrepados e Crédulos (personagens da peça). Claudinei Brandão, no grupo desde 1996: Acho que já enfrentamos processos caóticos com muita dignidade. Não é o caso das Nuvens, que foi muito tranqüilo. Neste trabalho, nós trocamos as cartas que tínhamos na manga do colete. Quando o Napão fala de objetividade, penso que é fundamental para quem vai dirigir, além da capacidade de sintetizar o processo, conhecer a obra, o que quer do trabalho... Há surpresas no processo, mas é preciso ter um norte. Tecnicamente funciona bem, tanto que, graças a Deus, ensaiamos poucas horas por dia, pois o tempo é bem aproveitado. A decupagem das cenas em microcenas até chegar à encenação, envolve a participação de todos. Quem entra se contamina pela linguagem, sem que esta seja imposta. Acaba conhecendo melhor os seus limites para poder se arriscar mais. Eduardo Silva, primeira participação em espetáculos do grupo: Eu achei que eu fosse ser engolido pelo nome Parlapatões, como quem é engolido pela camisa de um time grande. Só que constatei que o grupo não está acomodado nisto. Justamente por trás de uma falsa anarquia que o grupo passa, da bagunça total, existe um trabalho milimétrico. Tem uma linguagem que é inerente ao grupo, mas não é imposta. O respeito às questões individuais evita que se padronize o trabalho. Valoriza o que cada um tem de melhor para dar. Parecido com o futebol, como dizem o William e o Napão, não tem essa sacralização do teatro e ao mesmo tempo se tem um puta respeito. A objetividade, sem ficar pensando em marcar o gol só pra dizer que marcou, é uma conseqüência de um trabalho coletivo. Acho que teve na direção a ousadia de não fazer o que já era esperado por todo mundo. Em geral, falta isso aos diretores, pois têm medo de inovar. Para chegar nesse resultado teve muita discussão sobre os temas, da ligação política da época em que a peça foi escrita com os dias de hoje... Tanta discussão, que, depois da estréia, vendo que o público absorveu as críticas que o espetáculo faz, parece que tudo passou de nós pra eles pelos poros. Raul Barretto, dinossauro do grupo, desde 1993: A verdade é que este foi nosso processo mais colaborativo. Porquês? Talvez a maturidade e confiança do diretor neste vírus Parlapatões que contaminou a todos e que, ao invés de apagar as individualidades, as acende. Por isso, atores de seleção, com domínio do ofício, que distinguem a hora do drible e a do passe. Ao diretor coube também deixar claras regras e táticas, definir posições e movimentações possíveis, e acima de tudo, abrir espaço para que cada um se aproprie da bola, a domine, crie com ela e exerça com a plenitude dos seus talentos a sua melhor expressão. Número 4 ◆ Junho 2003 Fraternal Companhia de Ar te e Malas-Ar tes A restauração da narrativa O IMAGINÁRIO Não existe experiência coletiva. Existem acontecimentos, fatos coletivos, como a guerra, peste e morte que em determinado momento podem atingir indivíduo ou sociedade como um todo. No entanto, a experiência de cada um desses acontecimentos só pode ser absorvida individualmente. O que não quer dizer que uma experiência não possa ser compartilhada, imaginada, comunicada e sensibilizada. Ao contrário, é de fundamental importância que toda experiência humana significativa possa ser comunicada tendo em vista a criação de um repertório comum de experiências, material básico para o desenvolvimento de uma consciência coletiva. E consciência coletiva é o que plasma o surgimento de um destino comum. E destino comum é o que orienta e dá forma ao que chamamos de comunidade, cidadania ou nação. Essa transmissão de experiências individuais para a esfera coletiva dá forma ao que chamamos imaginário. Um imaginário repertório de imagens comuns a uma cultura e, em decorrência, de histórias, tipos, crenças, conceitos e comportamentos é necessariamente uma criação coletiva. Mais, um imaginário é determinado por condições objetivas, sociais, históricas. Ou seja, não há a possibilidade de um indivíduo criar uma imagem fora do imaginário de seu meio. Por exemplo, na Idade Média seria possível haver um herege mas nunca um ateu dentro daquele imaginário totalmente religioso. O que não quer dizer que o imaginário não seja algo profundamente dinâmico. Cabe ao artista, ao homem criador, perceber, nas condições objetivas do processo histórico e social, as possibilidades de surgimento de novas imagens e dar luz a novas histórias, idéias, crenças, que vão integrar o imaginário de sua época. Juntando as coisas todas: o fato de as casas coloniais serem voltadas para as ruas e praças; a gradativa perda, através dos séculos, da noção de corpo social; a necessida- de de compartilhamento de experiências (individuais) para a constituição de um imaginário (coletivo), tudo isso, creio, tem relação direta com o tipo de arte que fazemos e, em especial, com a dramaturgia. Antes, porém, é necessário esclarecer que o processo de perda da noção de corpo social não é, por si só, negativa. Ao contrário, correspondeu à abertura do fantástico caminho de fortalecimento da noção de indivíduo e decorrentes noções de independência, liberdade individual, humanismo. O gradativo afastamento do homem da natureza e do corpo social, o homem que se sabe diferente e isolado, que tem um destino próprio, quase desenraizado de seu meio, fez derivar a história da civilização para outro rumo. O Davi, de Michelângelo, com seu semblante pensativo e algo aflito, como se carregasse o peso de seu próprio destino, é tido como um marco no processo que haveria de colocar o homem no centro da História e da criação. Na dramaturgia, Hamlet, de Shakespeare, é igualmente considerado o protótipo do homem moderno, um homem em conflito, envolvido com a pesada herança de seus pais e que oscila, indeciso, na busca de um novo caminho. Essas duas imagens iluminaram o caminho da afirmação do indivíduo perante a natureza e o corpo social. A questão que se coloca é se não é necessário, hoje, avaliar ambos os caminhos (o público e privado, indivíduo e corpo social, criação individual e imaginário) e talvez equilibrar novamente os elementos. A questão se coloca porque, no âmbito do teatro, foi o progressivo isolamento do indivíduo de seu meio que possibilitou o fortalecimento e subseqüente predominância de um gênero de invejável poder dramático, mas significativamente frágil no que se refere à apreensão do mundo real. A predominância do melodrama, como veremos mais adiante, determinou o afastamento dos conteúdos narrativos antes fortemente presentes no teatro. Luís Alberto de Abreu Junho 2003 ◆ 11 O SARRAFO Número 4 Teatro da Ver tigem O que dizer sobre a relação ator/diretor no Vertigem? Qual a visão dos atores sobre o trabalho dos diretores? Este texto foi produzido a partir desta provocação, que nasceu do encontro entre os diretores. Nós, atores, sempre nos vemos em outra posição, a de observados. Como seria se nós dirigíssemos a atuação dos diretores? N O LIMITE, ator e diretor acaba por se fundir: o trabalho construí- do é um grande jogo de deslocamentos entre as partes criativas. Ambos anseiam por vomitar/cavar suas procuras, seus desejos, suas inquietações e se aproximar de uma possível resposta. O que antes poderia ser uma abstração, torna-se mais claro e possível quando dividimos nossas questões num duelo criativo. Nele nasce a cumplicidade, o medo e a coragem de assumir nada saber; a percepção que estamos num caminho sem volta e que dependemos um do outro para evoluir e chegar a uma revelação. Nossas forças são auxiliadas por impressões adormecidas. Nossas representações mentais, nossos sentimentos, as camadas mais profundas dos nossos sentidos, nossos vivos e nossos mortos, nossas procuras no outro e em nós mesmos. HUMOR É um caminho para o desconhecido, um casamento, uma parceria investigadora, um fundo que se prolonga para dentro, um encontro inevitável, é a mãe de outras tantas perguntas que percorrerão o processo e conseqüentemente toda sua vida. O estímulo de continuar pesquisando e saber que o muito é pouco e o pouco é muito. Roberto Audio V EJO O DIRETOR como um maestro, conduzindo sua orquestra com delicadeza, precisão e um enorme poder de persuasão. É como se no momento da criação, eu com minhas tintas, experimentasse cores, texturas, novas formas de expressão... e o diretor contribuísse com seu olhar no todo, no detalhe, na moldura. Como se ele transformasse minhas cores em nossas cores e então desse o acabamento final. Vejo o diretor como um articulador entre o dramaturgo e os atores, um provocador de idéias, estimulando em nós um reconhecimento de nós mesmos. Vejo o diretor como um parceiro fiel, um cúmplice de meus segredos: em sala de ensaio não existe hierarquia, mas afinidade artística, discussão e vontade comum o teatro. Gostaria de escrever algo que representasse minha paixão! Luciana Schwinden A RELAÇÃO ator/diretor se estabelece através da confiança e da cumplicidade artística e ideológica, onde o pessoal e o espiritual se entrelaçam. Da descoberta conjunta dos caminhos para a realização da obra. O papel do diretor é de lapidar, de canalizar o potencial artístico do ator e inserí-lo no conjunto da cena, disponibilizando-o ao mergulho interno em que ele, ator, transforme sua vivência pessoal em material artístico. Vanderlei Bernardino D IRETORES, GRUPOS, grupos sem diretor, diretor sem grupo, ator sem diretor, ator sem grupo... Minha história com o diretor do Teatro da Vertigem começou pelo fim, meio às avessas: a insegurança faz miséria, a estranheza faz abismos. Até que um dia, ele sumiu: ganhou uma bolsa e partiu. Através da sua ausência percebi a importância do contrário. E então, na sua volta, começamos de novo. Apesar do tema ser dos mais duros, Apocalipse 1,11 foi um dos processos mais prazerosos, de encontro, de união, de confiança, de paixão pelo trabalho do outro; interessantíssimo, obsceno, obsessivo, profundo, sem vergonha, radical. A criação da Noiva do Apocalipse tem pai e mãe, nasceu de um silêncio risonho, numa sala de ensaio com um cavalinho inflável numa mão e mão dele na outra... Conceber o projeto, armar o cronograma, justificar a importância do tema, contaminar a vontade dos atores, administrar relações, conceber estratégias, ser paciente, ser insistente, ser corajoso, ter ética, ética, ética. Miriam Rinaldi Epercebo U ENTRO em pânico quando que ele está me olhando daquele jeito que às vezes tem ao expressar o seu descrédito, como se dissesse não é por aí o caminho. Até o pânico passar penso vou embora agora mesmo, antes que ele me olhe de novo daquele jeito. Então me recupero do transe, do medo e ele parece ficar feliz no final do ensaio e diz precisamos melhorar amanhã. É.... penso comigo talvez não tenha sido tão mal assim.... Luís Miranda N UM TRABALHO de criação colaborativa, quanto mais nos en- tregamos, mais vulneráveis emocionalmente ficamos. Não há como negar o quanto é prazeroso tudo isso e também muito difícil e conflituoso. Lançamos mão do que é mais raro e cabe ao nosso diretor sublinhar, rasurar, colar, ou simplesmente riscar nossas criações. Tudo é feito pela obra e tudo tem significado e valor. Nada é material perdido, apenas serve ou não para o trabalho. A promiscuidade é absoluta. A confiança e o desprendimento são virtudes fundamentais na relação entre ator/diretor. Penso que tudo isso só é possível no Teatro da Vertigem por termos a figura tão inspirada do Antônio. Sua predestinação, sua determinação, sua sensibilidade, seu amor e seu respeito ao trabalho e a todos nós são qualidades que me deixam completamente confiante no processo. Todo ator tem que confiar no seu diretor, pois ele é o filtro para o mundo do lado de lá da sala de ensaio. E ter encontrado um parceiro tão generoso é uma grande sorte. Sérgio Siviero Depoimentos dos atores do TEATRO DA VERTIGEM Ettore Petrolini (1884-1936), maior dos cômicos italianos de sua época, ator e dramaturgo, continua uma figura marginal na história do teatro, ocupando o posto menor sempre reservado aos artistas dos gêneros ditos populares. Tendo aprendido a técnica básica do clown muito jovem, no início do século vinte reinventou-a nos cafés-concerto e nos teatrinhos de variedade, onde se tornou modelo para os futuristas. O teatro sintético, proposto por Marinetti no manifesto O Teatro de Variedade (1913), extraiu das peças de Petrolini seu ideal de “estupefação imaginativa”, misto de assombro e surpresa. Esteve no Brasil pelo menos duas vezes, a primeira em 1907, mais tarde entre setembro e novembro de 1921, no Rio, em São Paulo e Campinas. Numa dessas alegres noitadas nos trópicos, de peças curtas, atos bufos, canções, paródias, foi também apresentado o texto Fortunello, escrito como síntese futurista. (S.C.) Fortunello1 CONTO IDIOTA: Sou um tipo: estético, asmático, sintético, linfático, cosmético. Amo a Bíblia, a Líbia, a fivelinha dos sapatinhos das mulherzinhas bonitinhas cretininhas. Sou atrevido. Recolhido Absolvido por inexistência de delito. Tenho uma paixão marcante por: o Pólo Norte. A cera virgem. O Nabucodonosor. A manteiga de Lodi. La fanciulla del West 2 . O papel mata-moscas. A cavalaria pesada. Os cadarços. A aeronádega e cuzinhar. O jogo do loto. O acetileno e o ossobuco. Sou: Homérico Histérico Genérico Quimérico Clistérico. Mas tudo o que sou nem posso contar, em falar eu não sou bom, vou arriscar-me a cantar. Sou um homem gracioso e belo sou Fortunello. Sou um homem ousado e sano sou um aeroplano. Sou um homem mui terrível sou um dirigível. Sou um homem que anda de soslaio sou um pára-raio. Sou homem que não arreda pé sou Maomé. Sou um homem sem papéis sou o 606. Sou um homem felizardo sou filho bastardo. Sou um homem da pátria amada sou filho da criada. Sou um homem sem vanglória nem tomo café, tomo chicória. Sou um homem ginegético sou um ataque apoplético. Sou um homem sem dó sou um esquimó. Sou um homem amoral sou neutral. Sou um homem sem bigode sou um pagode. Sou um homem condescendente sou um acidente. Sou um homem de muito descaso sou da liga do pouco-caso. Sou um homem que pesa um grama sou um telegrama. Sou um homem de Stambul sou um parasul. Sou um homem dos mais cretinos sou Petrolini. Sou homem-de-palha sou um canalha. Mas tudo o que sou nem posso contar, em falar eu não sou bom, vou arriscar-me a cantar. Mas já que não sou nada, sou uma farofada. Se eu tivesse altivez seria um inglês. Se eu fosse um Ministro seria um bem sinistro. Se tivesse nariz obtuso seria como Caruso. Se vivesse esperando morreria cantando. Se eu fosse uma senhora queria toda hora. Se soubesse o libreto seria Rigoletto. Se tivesse luvas gris seria de Paris. Se eu fosse um pícaro zíngaro seria austro-húngaro. Se eu tivesse uma calandra seria como Salandra Se eu não fosse tão bufo seria Titta Ruffo. Se tivesse um palito escarafuncharia os dentes. Se eu fosse padroeiro ganhava um bom dinheiro. Se na cabeça eu tivesse um elmo seria Guilherme o imperador. Se do cabaré fosse dançarina mostraria minha menina. Se eu tivesse um pouco de pão comeria o salsichão. E se eu tivesse um montão Poria em leilão. E quando perder o sabor será como um tambor. E quando estiver seco eu irei para Lecco. E quando virar sacerdote terei garantido o fricote. E como as velhas catraias andarei sempre de saias. E como todas as esposas terei as minhas coisas. Se meu avô tivesse a coisa seria minha avó. Se minha avó tivesse o coiso seria meu avô. Mas tudo o que sou nem posso contar, em falar eu não sou bom, vou arriscar-me a cantar. E cada vez que me purgo viro Petroburgo. Se me purgo de bom grado viro Petrogrado. Se eu fosse uma cocote dançaria o xote. Para não sofrer despacho queimo-lhe o capacho. Quando canto nunca desafino sou o fino do fino. Eu sou muito vivo sou um laxativo. Se eu zombo de todo mundo sou um vagabundo. Se eu arroto sou o terremoto. Se vou para o esgoto eu sou maroto. E se você não me entende sou um duende. Se fosse mais simpático seria menos antipático. Se fosse mais antipático seria menos simpático. E se ainda não foi dito eu sou o sobredito. E se ainda não foi informado eu sou o abaixo assinado. Eu apronto de tudo sou um sortudo. Eu sou quase paralítico sou um político. Gosto do socialismo sou um enteroclisma. Sou um homem melancólico sou um aperitivo alcoólico. Se eu fosse uma caiçara a venderia mais cara. E vira e dá cambalhota de tanto que sou idiota. Mas tudo o que sou nem posso contar, em falar eu não sou bom, vou arriscar-me a cantar. 1 Representado pela primeira vez em fevereiro de 1915. 2 Assim como Nabuco, ópera de Giuseppe Verdi. O SARRAFO Fortunello RACCONTO IDIOTA: Sono un tipo: estetico, asmatico, sintetico, linfatico, cosmetico. Amo la Bibbia, la Libia, la fibia delle scarpine delle donnine carine cretine. Sono disinvolto. Raccolto Assolto per inesistenza di reato. Ho una spiccata passione per: il Polo Nord. La cera vergine. Il Nabuccodonosor. Il burro lodigiano. La fanciulla del West. La carta moschicida. La cavalleria pesante. I lacci delle scarpe. Lareonatica col culinaria. Il giuoco del lotto. Lacetilene e losso buco. Sono: Omerico Isterico Generico Chimerico Clisterico. Ma tuto quel che sono non ve lo posso dire, a dirlo no son buono, mi proverò a cantar. Sono un uom grazioso e bello sono Fortunello. Sono un uomo ardito e sano sono un aeroplano. Sono un uomo assai terribile sono un dirigibile. Sono un uomo che vado in culmine sono um parafulmine. Sono un uom dal fiero aspetto sono Maometto. Sono un uomo senza nei sono il 606. Sono un uomo eccezionale sono un figlio naturale. Sono un uom della riserva sono il figlio della serva. Sono un uomo senza boria soil caffè con la cicoria. Sono un uomo ginegetico sono um colpo apopletico. Sono un uomo assai palese sono un esquimese. Sono un uomo che poco vale sono neutrale. Sono un uomo senza coda sono una pagoda. Número 4 ◆ Junho 2003 Sono un uom condiscendente sono un accidente. Sono un uomo della lega di chi se ne stropiccia. Sono un uomo che pesa un gramma sono un radiotelegramma. Sono un uomo di Stanbul sono un parasul. Sono un uom dei più cretini sono Petrolini. Sono un uom ch fodi tutto sonno un farabutto. Ma tutto que che sono, non ve lo posso dire, a dirlo non son buono, mi proverò a cantar. Ma poiché non sono niente, sono un respingente. Se avessi assai pretese sarei un inglese. Se fossi un Ministro sarei un cattivo acquisto. Se avessi il naso camuso sarei come Caruso. Se vivessi ognor sperando morirei cantando. Se fossi una signora lo vorrei ancora. Se avessi riga in letto sarei Rigoletto. Se avessi i guanti grigi sarei di Parigi. Se andassi retrocarico sarei austroungarico. Se avessi una palandra sarei come Salandra Se fosse menno buffo sarei Titta Ruffo. Se avessi uno stuzzicadenti mi pulirei i denti. Se fossi il Padreterno guadagnerei un terno. Se in testa avessi un elmo mi chiamarei Guglielmo. Se fossi una sciantosa farei veder la cosa. Se avessi un podi pane mi mangerei il salame. E se ne avete a basta Io ve lo metto allasta E quando sarà duro sarà come un tamburo. E quando sarò secco me ne andrò a Lecco. E quando sarò prete avrò entrate segrete. E come le pacchiane avrò le sottane E come tutte le spose avrò le mie cose. Tradução: Roberto Cattani Se mio nonno avesse la cosa sarebbe mia nonna. Se mia nonna avesse il coso sarebbe mio nonno. Mas tutto que che sono non ve lo posso dire a dirlo non son buono mi proverò a cantar Se ogni giorno mi purgo sono Pietroburgo. Se mi purgo di rado sono Pietrogrado. Se fossi una cocotte passeggerei la notte. Per non avere impiccio gli brucio il pagliericcio. Non faccio mai una stecca sono una bistecca Io sono molto astuto sono uno sternuto. Se prendo tutti in giro sono un capogiro. Se mi fa bene il moto sono il terremoto. Se vado nella fogna sono una carogna. E se non mi capite sono una polmonite. Se fossi più simpatico sarei meno antipatico. Se fossi più antipatico sarei meno simpatico. E se non ve lho detto io sono il sopradetto. E se non ve lho scritto io sono il sottoscrito. Ne fodogni colore sono un commendatore. Io sono molto stitico sono un uomo politico. Me piace il socialismo sono un enteroclismo. Sono un uomo melanconico sono un amaro tonico. Se fossi uma ciociara la venderei più cara. E gira e fai la rota di come sono idota. Ma tutto quel che sono non ve lo posso dire a dirlo no son buono mi proverò a cantar.