Textos da Mostra - Centro Cultural do Ministério da Saúde
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Textos da Mostra - Centro Cultural do Ministério da Saúde
CENTRO CULTURAL DA SAÚDE (CCS) TEXTOS MOSTRA INAUGURAL “MEMÓRIA DA LOUCURA” Foram solicitados aos profissionais e especialistas da área de saúde mental contribuições para a concepção da mostra inaugural do CCS - Memória da Loucura. Os textos, em parte adaptados para a exposição, estão disponíveis na íntegra, em formato PDF, com informações complementares dos autores. Rio de Janeiro, 2001 CARTA AOS DIRETORES DE ASILOS DE LOUCOS Antonin Artaud1 Senhores: As leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo seus próprios padrões de entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram? Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados em uma tarefa para a qual só existe muito poucos predestinados. Porém não nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens – capazes ou não – de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredicto de encarceramento perpétuo. E que encerramento! Sabe-se – nunca se saberá o suficiente – que os asilos, longe de ser “asilos”, são cárceres horríveis onde os reclusos fornecem mão-de-obra gratuita e cômoda, e onde a brutalidade é norma. E vocês toleram tudo isso. O hospício de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça, é comparável aos quartéis, aos cárceres, às penitenciárias. Não nos referimos aqui às internações arbitrárias, para lhes evitar o incômodo de um fácil desmentido. Afirmamos que grande parte de seus internados – completamente loucos segundo a definição oficial – estão também reclusos arbitrariamente. E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico como qualquer outra série de idéias e atos humanos. A repressão das reações anti-sociais, em princípio, é tão quimérica como aceitável. Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social. E em nome dessa individualidade, que é patrimônio do homem, reclamamos a liberdade desses forçados das galés da sensibilidade, já que não se está dentro das faculdades da lei condenar à prisão a todos que pensam e trabalham. Sem insistir no caráter verdadeiramente genial das manifestações de certos loucos, na medida de nossa capacidade para avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta de sua concepção da realidade e de todos os atos que dela derivam. Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais – reconheçam – só tem a superioridade da força. 1 ARTAUD, Antonin. Cartas aos Poderes. Porto Alegre: Villa Martha, 1979. (Coleção Surrealistas, 1). EUGENIA Laurinda Maciel2 Etimologicamente, o termo eugenia deriva do grego eugeneia e significa ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana. O termo foi criado em 1869 pelo inglês Francis Galton, que mais tarde, baseado em “A Origem das Espécies” de Charles Darwin, elaborou a doutrina do aperfeiçoamento da raça humana. No Brasil, a partir dos anos 10 até a década de 40, surgiram várias agremiações ou ligas onde se debatiam questões derivadas da eugenia e sua inserção na sociedade. Vários intelectuais e cientistas do período revelavam a precariedade sanitária na qual vivia o povo brasileiro e insistiam no saneamento do povo e do solo, baseados na crença de que numerosas moléstias contribuíam para a degenerescência da raça. Entre as ligas mais expressivas estão: a Liga de Defesa Nacional (1916), a Liga Nacionalista de São Paulo (1917), a Liga Pró-Saneamento (1918), a Sociedade Eugênica de São Paulo (1918), fundada por Renato Kehl e pioneira na realização de trabalhos mais sistematizados acerca da eugenia na América Latina, e a Liga Brasileira de Higiene Mental. Juliano Moreira (diretor da Assistência aos Alienados), Afrânio Peixoto (um dos pioneiros da medicina legal), Maurício de Lacerda (médico e político), Renato Kehl (médico e farmacêutico), Heitor Carrilho (Diretor do manicômio Judiciário do Rio de Janeiro) e Antônio Austregésilo (psiquiatra) faziam parte integrante, tanto na Liga Pró-Saneamento quanto da Liga Brasileira de Higiene Mental. A Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em janeiro de 1923, no Rio de Janeiro, por iniciativa do Dr. Gustavo Riedel. Desde a fundação até o fechamento desta liga no início dos anos 50, o trinômio eugenia-higiene-prevenção sempre ocupou lugar de destaque nos seus programas de ação. Os principais objetivos dessa entidade eram a prevenção de doenças mentais mediante higiene em geral e do sistema nervoso em particular, a proteção e amparo no meio social aos egressos de manicômios e aos doentes mentais passíveis de internação, o aperfeiçoamento dos meios de tratamento desses doentes e o programa de higiene mental e eugenia, no domínio das atividades escolar, individual, profissional e social, segundo seus estatutos. Os profissionais, movidos por um ideal de aperfeiçoamento da raça, reivindicaram para si a tarefa de regenerar a nação e evitar a degeneração mental da população, segundo as medidas preventivas de caráter eugênico e higiênico. 2 Laurinda Maciel é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). REFORMA PSIQUIÁTRICA Dr. Paulo Amarante3 Anteriormente, a noção de Reforma Psiquiátrica estava restrita a transformações técnico-assistenciais do campo institucional psiquiátrico. Assim, era comum tomá-la como sinônimo de modernização ou humanização do hospital psiquiátrico ou, quando muito, como a introdução de novas técnicas de intervenção terapêutica ou preventiva na comunidade. A partir das experiências e reflexões de Franco Basaglia em Gorizia e Trieste, ambas no norte da Itália, o que se entendia por Reforma Psiquiátrica sofreu uma radical transformação. Em primeiro lugar porque não se pretenderia mais a reforma do hospital psiquiátrico. Percebido como um espaço de reclusão e não de cuidado e terapêutica, o hospital deveria ser negado e superado. Em outras palavras, enquanto espaço de mortificação, lugar zero das trocas sociais, o hospital psiquiátrico passava a ser denunciado como manicômio, por pautar-se na tutela, na custódia, na gestão de seus internos, no que Erwin Goffman denominou de instituição total. A psiquiatria, que havia construído objetos tais como alienação, degeneração ou ainda doença mental, que advogavam uma incapacidade de Juízo, de Razão, de participação social do louco, construiu como projeto “terapêutico” nada mais que um espaço de exclusão: o manicômio. Desta forma, o ideal de uma Reforma Psiquiátrica após Basaglia, seria a de uma sociedade sem manicômios, isto é, de uma sociedade onde fosse possível construir um lugar social para os loucos, os portadores de sofrimento mental, os diferentes, os divergentes. Uma sociedade de inclusão e solidariedade. Atualmente, entendemos por Reforma Psiquiátrica um processo complexo no qual quatro dimensões simultâneas se articulam e se retroalimentam. Por um lado, pela dimensão epistemológica que opera uma revisão e reconstrução no campo teórico da ciência, da psiquiatria e da saúde mental. Por outro, na construção e invenção de novas estratégias e dispositivos de assistência e cuidado, tais como os centros de convivência, os núcleos e centros de atenção psicossocial, as cooperativas de trabalho, dentre outras. Na dimensão jurídico-política temos a revisão de conceitos fundamental na legislação civil, penal e sanitária (irresponsabilidade civil, periculosidade, etc.), e a transformação, na prática social e política, de conceitos tais como cidadania, direitos civis, sociais e humanos. Finalmente, na dimensão cultural, um conjunto muito amplo de iniciativas vão estimulando as pessoas a repensarem seus princípios, pré-conceitos, opiniões formadas (com a ajuda da psiquiatria) sobre a loucura. É a transformação do imaginário social sobre a loucura, não como lugar de morte, de ausência e de falta, mas como também de desejo e de vida. 3 Dr. Paulo Amarante é pesquisador titular do Depto. de Administração e Planejamento em Saúde, graduou-se em Medicina (1976) pela Escola de Medicina Sta. Casa de Vitória (ES). Possui Mestrado (1979) em Medicina Social pela UERJ e Doutorado em Saúde Pública (1994) pela ENSP...saiba mais: http://www.ensp.fiocruz.br/pesquisa/7paunte.html POLÍTICA E HOSPITAL PSIQUIÁTRICO Roberto Machado4 O início do século XIX assinala o momento em que o hospital é percebido como fator patogênico, causa de doença e de morte e, portanto, incompatível com a medicina moderna. Até então o hospital não é uma instituição médica; é uma entidade religiosa destinada à assistência a doentes pobres, forasteiros, soldados, marinheiros. Não tem por objetivo a saúde, mas a salvação: o plantão, por exemplo, é do “capelão da agonia”. Sua arquitetura não obedece a um plano médico. Não há médico em sua administração. A assistência hospitalar é, portanto, menos uma assistência à doença do que à miséria na hora da morte, parte de uma ação criativa da Santa Casa da Misericórdia que inclui crianças abandonadas, indigentes e prisioneiros. É nesse espaço que se encontram os loucos, quando não vagam pelas ruas ou – no caso dos ricos – são contidos pelas famílias. E no hospital ele está como em uma prisão: trancado e até mesmo preso a um tronco de escravos. Não é considerado doente; não recebe tratamento; não tem médico ou enfermeiro específico; vive sem condições higiênicas. Pode ser louco, mas ainda não é doente mental. No século XIX, a medicina coloniza o hospital. Ruptura com o passado que pode ser compreendida não só a partir de transformações médicas mas também econômicas – advindas da abertura dos portos, intensificação do comércio, implantação de manufaturas – e políticas que modificarão o Rio de Janeiro depois de 1808 e integrarão ainda mais o Brasil na nova ordem capitalista internacional. Nesse contexto, o papel que desempenham os médicos tem um objetivo claro: combater a desordem social, o perigo dos homens e das coisas decorrente da nãoplanificação da distribuição e do funcionamento da cidade. A medicina começa a se interessar por tudo o que diz respeito ao social. Passa a não ter fronteiras. Peça integrante da nova estratégia política de controle dos indivíduos e da população, vai pouco a pouco – não sem lutas e obstáculos – impregnar o aparelho de Estado e se interessar por instituições como a escola, o quartel, a prisão, o cemitério, o bordel, a fábrica, o hospital, o hospício... Sua política em relação ao hospital é clara: dominar o perigo que grassa no seu interior. E para isso não basta expulsar o hospital do centro da cidade; é necessário transformar o seu espaço, para capacitá-lo a realizar a cura. O hospital é um operador terapêutico, uma “máquina de curar”. Essa política preside, em 1841, à criação, no Rio de Janeiro, do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro. Resultado de uma crítica higiênica e disciplinar às instituições de reclusão, o Hospício de Pedro II significou a possibilidade de inserir, como doente mental, uma população que se começa a perceber como desviante nos dispositivos da medicina social nascente. Como? Realizando os seguintes objetivos: isolar o louco da sociedade; organizar o espaço interno da instituição, possibilitando uma distribuição regular e ordenada dos doentes; vigiá-los em todos os momentos e em todos os lugares, através de uma “pirâmide de olhares” composta por médicos, enfermeiros, serventes...; distribuir seu tempo, submetendo-os ao trabalho como principal norma terapêutica. Terrível máquina de curar, que levou Esquirol a afirmar que no hospício o 4 Roberto Machado é psicanalista. que cura é o próprio hospício. Por sua estrutura e funcionamento, ele deve ser um operador de transformação dos indivíduos. Em suma, é uma nova máquina de poder, resultado de uma luta médica e política que impõe, cada vez com mais peso, a presença normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade capitalista. Mas o hospital psiquiátrico não está isento de críticas. Elas o acompanham desde sua origem. E não só críticas externas. Principalmente críticas internas: de seus médicos ou seus diretores. Como os ilustres Nuno de Andrade, Teixeira Bradão, Juliano Moreira, que atacam sua organização arquitetônica, a subordinação do médico ao pessoal religioso, a ignorância ou maldade dos enfermeiros, o processo não-médico de internação, a falta de uma lei nacional de alienados e de um serviço de assistência organizado pelo Estado. Essas críticas, hoje ainda mais virulentas, são importantíssimas para fazer pensar não só no fracasso real da psiquiatria como instância terapêutica, mas principalmente na exigência de medicalização cada vez maior do espaço social que ela representa. Por um lado, se a medicina mental apresenta a cura como sua aquisição científica, até hoje nunca deixou de reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar. Por outro lado, essa reconhecida incapacidade terapêutica, longe de pôr em questão a própria psiquiatria, serve fundamentalmente de apoio a uma exigência de maior medicalização. A crítica faz a psiquiatria, cada vez mais, refinar seus conceitos para atingir novas faixas da população – numa evolução que vai do doente mental ao anormal e do anormal ao próprio normal –, tornando a sociedade uma espécie de asilo sem fronteiras. A questão política da psiquiatria me parece assim mais profunda do que em geral se pensa. Será que as transformações contemporâneas propostas à prática e à teoria psiquiátricas – mesmo as que vestem de psicanálise seus conceitos básicos e se intitulam, psiquiatria como instância político-científica de controle normalizador da vida social, característica que a acompanha desde sua constituição? AS CLASSES SOCIAIS DA CORTE E O HOSPÍCIO DE PEDRO II Edmar de Oliveira5 Alguns prontuários encontrados nos arquivos do Centro Psiquiátrico Pedro II nos levam aos anos de 1854 a 1861 e com eles à classificação social do paciente, subdivididos em primeira, segunda e terceira classe, o que parece ser dado importante para as anamneses da época. Entre os de primeira classe chama atenção serem moradores da côrte, brancos, cidadãos, fazendeiros ou funcionários públicos, em número muito pequeno em relação às outras classes. Na segunda classe encontramos lavradores e o ofício de prendas domésticas, ainda brancos e livres. Na terceira são todos escravos, pretos pertencentes a um senhor importante, já que na sua identificação possuíam apenas o primeiro nome seguido da nomeação senhorial: escravo de tal senhor, com nome e sobrenome para o seu imediato reconhecimento na côrte. Acrescente-se ainda a nação africana de origem: Nagô, Congo, Iorubá, Mirra, entre outras. Neste período não havia sido abolida oficialmente a escravidão no país, no entanto, outra classificação aparece em maior número do que as das três classes anteriores. São os “indigentes”. Às vezes possuíam apenas o primeiro nome, outras vezes já traziam sobrenome. Nesta classificação estão, sobremaneira, os pretos ou pardos libertos. Eram funileiros, carvoeiros, quitandeiros ou cozinheiros mas, em sua maioria, não tinham profissão. Esta parece ser uma classe inferior à terceira, pois, libertos não possuíam o “status” de pertencerem a um senhor. Foi encontrado ainda um único prontuário que não pertence às classificações anteriores. Está classificado como “pobre”. Possuía nome e sobrenome, era branco, livre, brasileiro, paulista, morador da côrte, tinha 26 anos, e era solteiro e estudante. Quais seriam os tratamentos ou o destinação arquitetônica que o Hospício de Pedro II disporia para essas novas classificações? Os pacientes de primeira e segunda classes habitavam quartos individuais ou duplos, ficavam entretidos com pequenos trabalhos manuais ou jogos. Os de terceira e muito provavelmente, os pobres e indigentes trabalhavam na manutenção, na jardinagem, na limpeza e na cozinha. Paradoxalmente se recuperavam em maior número que os primeiros que, paralisados pelo ócio, perpetuavam-se na internação. 5 Edmar de Oliveira é diretor do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira (IMASNS). HOSPITAL PHILIPPE PINEL Erickson Furtado6 Em janeiro de 1965 é criado o Hospital Philippe Pinel em substituição ao antigo hospital de Neurossífilis. Um ano mais tarde, realiza-se em seu anfiteatro a fundação da Associação Brasileira de Psiquiatria. Entre 1968 e 1971, através do convênio estabelecido entre a Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM) e o Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB), o prof. Eustáchio Portella Nunes implanta o modelo Comunidade Terapêutica, revolucionando o tratamento dispensado até então aos pacientes. A excelência de seu corpo técnico e sua constante preocupação com o ensino e pesquisa, sem descuidar da assistência, fazem do Pinel um importante centro de formação em saúde mental na cidade do Rio de Janeiro. 6 Extraído do texto de Dr. Erickson Furtado. Psic. Patrícia Saya COLÔNIA JULIANO MOREIRA Da Fazenda de Engenho à Instituição de Assistência à Saúde Denise Rebouças Barbosa7 A Freguesia de Jacarepaguá, no município da corte, era região de grandes fazendas, tendo a do Engenho Novo como uma das mais prósperas. Data do século XVIII, quando foi desmembrada das terras da fazenda da Taquara. Era constituída de pequena capela erguida pelos escravos no século XVII em devoção à Nossa Senhora dos Remédios, um engenho de cana de açúcar e um moinho de fubá ligado à unidade de produção da fazenda. Posteriormente, a propriedade passou a chamar-se Fazenda do Engenho Novo da “Curicica” ou da “Pavuna”. Desde então, a fazenda teve vários proprietários, tendo sido objeto de longa disputa judicial, conhecida como a “Guerra dos Concunhados”. A Fazenda do Engenho Novo, como outras de Jacarepaguá passou, no século XIX, por grandes transformações socioeconômicas, quando o café e o anil substituíram gradativamente o açúcar como produto principal. Na primeira década do século XX foi vendida por 150 contos de Réis. A fazenda permaneceu isolada e reduzida a meras atividades agro-pastoris até deixar de funcionar como unidade de produção. João Augusto Rodrigues Caldas, diretor, empossado em 1909, das antigas colônias Conde de Mesquita e São Bento, situadas no Galeão, Ilha do Governador, pressionado pelas condições inadequadas dos estabelecimentos, encontrou nas terras do Engenho Novo o local que procurava para a transferência das colônias. Graças a sua persistência, em 31 de agosto de 1912 a fazenda foi desapropriada pela União, tendo o supremo Tribunal Federal encerrado a pendência em torno do imóvel em dezembro de 1918. Em 1919 iniciaram-se as obras do primeiro pavilhão. Em 1923 as colônias de alienados da Ilha do Governador foram transferidas para as novas instalações, nascendo, assim, a Colônia de Alienados de Jacarepaguá, inaugurada em 29 de março de 1924. Em meados de 1930 passou a chamar-se “Juliano Moreira”. Hoje a municipalização acarretou o desmembramento da colônia em três unidades: O Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, que compreende as unidades de residentes, atualmente com 950 pacientes; O Hospital Municipal Jurandyr Manfredini, responsável pelo atendimento aos pacientes agudos da área programática 4 (da qual faz parte o Centro de Apoio Psicossocial Arthur Bispo do Rosário); e, por fim, o Hospital Municipal Álvaro Ramos, que realiza o atendimento em clínica médica dos pacientes. 7 Denise Rebouças Barbosa é Presidente do Centro de Estudos do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM). (Pesquisa de Marcelo Soares dos Santos) PSICANÁLISE E LOUCURA Dra. Neusa Santos Souza8 A marca da própria psicanálise, da clínica psicanalítica, é sua determinação de ouvir o sujeito que se queixa e, com ele, apostar no sentido dos sintomas como condições de tratamento – condição necessária mas não suficiente posto que, além de encontrar e inventar novos sentidos, e com isto deslocar e reduzir seus sintomas, o paciente terá ainda que se confrontar e achar uma saída para o que, no seu sintoma, insiste, persiste e não se deixa demover. A psicanálise é sobretudo uma clínica da escuta – uma experiência entre aquele que fala e aquele que fundamentalmente ouve, acolhe, se inclui no que é dito, e aceita arcar com as conseqüências do que advém daí. Nesse laço feito de palavras, silêncios e afetos, o motor do trabalho é o sofrimento do sujeito, o enigma de seus sintomas e sua vontade de saber. Outra marca da psicanálise – traço de origem e percurso – é incluir em seu campo de operação, sujeitos excluídos, sempre postos à margem, sujeitos recusados na escuta e na consideração de seu sofrimento, como se sua dor fosse sem razão. Estes sujeitos foram e são acolhidos pela clínica psicanalítica onde, cada um em sua diferença, encontra lugar, de fato e de direito. É assim que a loucura e os loucos têm um lugar central na clínica analítica, um lugar que põe à prova, interroga e convoca o psicanalista a reinventar a psicanálise. Reinventar a psicanálise diante da novidade de cada paciente, eis aí outra marca desse saber teórico-prático, marca impressa por Freud, seu fundador e reatualizada por cada psicanalista que responde por este nome. Com sua diferença e seu paradoxo, a cada um de nós que se dispõe a aprender, o louco ensina a lição essencial: somos todos atravessados por contradições, nossa matéria é frágil, trágica é a nossa condição. A psicanálise entende o louco como um sujeito que se define no exercício simultâneo de duas operações: rejeição e invenção. Por um lado, rejeita a realidade consensual, despreza o bom senso e o senso comum, denuncia-lhes a impostura, pagando por isso o preço da exclusão e da errância no caos de um mundo desmoronando; e por outro lado, com os destroços desse mundo, tenta inventar uma saída, um caminho, um mundo diferente. A clínica psicanalítica se presta a fazer, junto com o louco, essa singular caminhada e ajudá-lo a construir um mundo onde, sem demasiadas penas, sem excessivas dores, e com algum afeto ele possa, em sua diferença, viver. 8 Dra. Neusa Santos Souza é psiquiatra e psicanalista. A EXPOSIÇÃO DE 1922 E O PAVILHÃO DA ESTATÍSTICA Milton de Mendonça Teixeira9 Quando, em 1919, assumiu a presidência da República o paraibano Epitácio da Silva Pessoa, uma de suas primeiras providências no cargo foi a de nomear para Prefeito do Distrito Federal o engenheiro Carlos Sampaio e incumbi-lo de organizar a “Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil,” a ser realizada em 1922. Objetivava tal mostra não só afirmar ao mundo as potencialidades brasileiras nos diversos setores da vida nacional, como, obviamente, atrair novos mercados. Após algumas hesitações, decidiu o prefeito pela realização da exposição no sítio do morro do Castelo, local onde Mem de Sá refundou a cidade do Rio de Janeiro em 1567, trazendo-a do morro Cara-de-Cão, onde Estácio de Sá a fundara dois anos antes. Não se deu ouvidos à tradição ou à história, nem se levou em conta que existiam diversos sítios ainda desocupados na cidade, mormente nas zonas sul e norte, onde a mostra poderia ter sido realizada sem maiores gastos. Mas, tomada a decisão, arrasouse o morro em menos de dois anos e fez-se a exposição. Alguns dos pavilhões ali edificados em 1921-22 foram projetados pelos maiores arquitetos da época e, se de forma alguma compensavam os bens culturais perdidos na destruição do morro do Castelo, ao menos foram obras marcantes para a cultura de então. O escritório Técnico Heitor de Melo, comandado pelos arquitetos Archimedes Memória e Francisque Couchet, que pouco antes haviam construído o prédio da Câmara Municipal e no ano de 1921 projetaram o Jóquei Clube na Lagoa e o Palácio Tiradentes, seriam os autores do “Palácio das Festas”, em estilo Luís XVI (demolido em 1982); do “Palácio das Grandes indústrias”, em estilo neocolonial (que era a antiga “Casa do Trem” e hoje sedia o Museu Histórico Nacional) e o restaurante do Passeio Público, no antigo terraço do Mestre Valentim (demolido em 1938). O arquiteto espanhol Adolfo Morales de Los Rios, autor do projeto do prédio da Escola Nacional de Belas Artes, ergueria ali o “Parque de Diversões da Exposição”; o “Palácio da Viação e Agricultura” e o “Pavilhão da França” (ainda existente, doado em 1923 à Academia Brasileira de Letras, que o converteu em sua sede). Nestor de Figueiredo e C. S. San Juan projetaram o “Palácio da Caça e Pesca” (idem); e Rafael Galvão desenhou o “Portão Monumental”. Dentre outros pavilhões, ergueu o governo um palacete destinado a expor a riqueza do Brasil expressa em números: o “Pavilhão da Estatística”, projetado pelo professor da Escola Nacional de Belas Artes Dr. Gastão da Cunha Bahiana (18791959). Filho e irmão de arquitetos, Gastão Bahiana era um purista, avesso ao estilo neocolonial ou aos modernismos que começavam a debicar por aqui. Por este motivo escolheu para o pavilhão um sóbrio estilo Luís XVI, cuja pureza foi prejudicada por estranha cúpula, desenhada por seu sócio Nereu Sampaio. Ambos haviam projetado o prédio do Fórum, algums metros adiante e ainda de pé. Após a exposição, Gastão Bahiana fez gestões para a retirada da cúpula, finalmente obtida em 1930. Este edifício, que depois foi repartição pública e mais recentemente Vigilância Sanitária Portuária, é, portanto, dos raros remanescentes da Exposição Nacional de 1922, constituindo-se em importante bem cultural a ser preservado. 9 Milton de Mendonça Teixeira é professor. JEAN ETIENNE DOMINIQUE ESQUIROL (1772-1840) Pierre Morel10 Nono filho de uma família de dez, Esquirol nasceu a 3 de fevereiro de 1772 na cidade de Toulouse, onde seu pai era comerciante e supervisor da bolsa de mercadorias (comércio). Seus estudos com os Doutrinadores do colégio de l´Esquille o orientaram de início para uma carreira religiosa. Ele viveu um tempo em Issy no Seminário de Saint-Sulpice, mas por ocasião da Revolução, sua vocação religiosa enfraqueceu. Em 1792 voltou a Toulouse iniciando a carreira de medicina no Hospital de la Grave, cuja função de administrador era exercida por seu pai e onde havia um grande número de doentes mentais internados. Posteriormente, em Narbonne, servindo no exército dos Pirineus e na campanha de Roussilon como oficial de saúde, diversos fatos ocorrem em sua vida, como a retomada de seus estudos em Montpellier, a perda da fortuna familiar e a execução de seu irmão François Antoine no segundo ano da Revolução. Retornando a Paris em 1799 trabalhou no “Corvisart”, na “La Charité” em “La Salpêtrière” onde ele conhece Philippe Pinel. Em 1805, defende a tese As Paixões Consideradas Causas, Sintomas e Meios Curativos de Alienados Mentais e por ocasião da morte de Pussin, em 1º de maio de 1811 é nomeado médico plantonista da Divisão de Alienados de La Salpêtrière, tornando-se médico titular no ano seguinte. Em 1807, Esquirol, atuando como reformador das instituições psiquiátricas visita os asilos, hospitais e prisões de toda a França. Em 1817 inaugura em La Salpêtrière um curso clínico de medicina mental, onde suas qualidades de orador atraem um grande público. No aspecto doutrinal, torna-se um discípulo ortodoxo de Pinel: como Pinel, ele acha que a loucura tem causas físicas e morais, insiste na tendência hereditária e coloca na raiz do organismo a causa principal do transtorno mental. Todavia, critica os conceitos nosográficos de seu mestre e volta a dividir as moléstias mentais em quatro grupos principais: a demência, cuja forma aguda e curável é chamada de “estupidez”, com seu aluno Georget, a “idiotia” termo que ele prefere a idiotismo; a “mania” delírio geral com exaltação; e, a parte mais original e criticada de sua obra clínica, o vasto grupo de “monomanias”, derivado do desmembramento da melancolia de Pinel, delírio parcial crônico, de natureza alegre ou triste, mas limitado a um número pequeno de objetos. Esquirol subdivide este novo conceito em três categorias: as monomanias intelectuais, onde o delírio está no primeiro plano ( uma das múltiplas formas possíveis é a lipomania ou melancolia, com seu “ delírio crônico parcial, sustentado por uma triste paixão, debilitante e opressiva”, as monomanias afetivas ou ressoantes que levam o doente a condutas “bizarras” e “inconvenientes” e as monomanias instintivas que reagrupam as futuras “perversões” e psicopatias e serão a fonte de violentas contestações, na medida que parecem fornecer as justificativas de comportamentos criminais, num tempo em que a medicina legal estava em vias de formação. Também, por volta de 1817, começa a acolher na sua casa da Rua Buffon, alguns alienados “pagantes”. O número desses pacientes aumenta tanto com o passar 10 Texto traduzido do “Dictionnaire Biographique de la Psyquiatrie”, de autoria de Pierre Morel do tempo, que em 1827 adquire uma vasta propriedade em Ivry para instalar uma casa de saúde que dirige com seu sobrinho Mitivié e onde começa a colocar em prática suas idéias sobre a construção de asilos, que tinha apresentado no seu célebre relatório de 1819 ao Ministro do Interior “Os estabelecimentos destinados aos alienados na França e os meios de melhorá-los.” Em 1820, torna-se membro da Academia de Medicina e seis anos mais tarde é nomeado membro do Conselho de Salubridade Pública do Departamento do Sena, participando ativamente, com seus alunos Ferrus e J.P. Falret, dos trabalhos preparatórios da Lei de 1838 sobre os alienados. Esquirol assume o posto de médico chefe da Maison Royale de Charenton, por ocasião do falecimento de Royer Collard, em 27 de novembro de 1825. Em 1838, Esquirol publica os dois volumes “Considerações das doenças mentais sob as visões da medicina, da higiene e da medicina legal“, que são nada mais do que a coletânea de suas publicações anteriores, acrescidas de 27 gravuras, muitas vezes reproduzidas por Amboise Tardieu, “o pai” do alienista. Convencido do interesse a respeito do estudo da fisionomia dos alienados, Esquirol encomendou a GeorgesFrançois-Marie Gabriel (retratista) mais de 200 retratos de enfermos, a maioria inéditos até os dias atuais. Tinha por hábito aos domingos reunir seus alunos na casa de Ivry, num encontro amigável, fato que foi comentado por Moreau de Tours, como: “se almoçava muito bem na casa do Sr. Esquirol”. Esquirol falece, na Rue Buffon, em 12 de dezembro de 1840.
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