O jornaleiro/ Cristiano Sousa

Transcrição

O jornaleiro/ Cristiano Sousa
Cristiano Sousa
O Jornaleiro
Rio de Janeiro
Cristiano Ferreira de Sousa
2011
Cristiano Sousa
S696j
Sousa, Cristiano
O jornaleiro/ Cristiano Sousa. – Rio de Janeiro:
Clube de Autores, 2011.
ISBN: 978-85-913041-1-0
1. Romance. 2. Literatura brasileira.
3. Vendedor de jornal – trabalho.
CDD: 869.93
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Fernanda X. Guimarães CRB5/1675
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À minha mãe querida, que sempre conservou o
desejo de ver esta obra publicada, e a Deus, que me
deu ânimo para escrevê-la.
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O MOTIVO...
...De Termos escrito este livro não foi outro senão o de querer mostrar
um pouco mais da vida de pessoas humildes de nosso país. Pra falar a
verdade essa ideia foi minha. Logo que anunciei à minha velha que eu estava
a fim de escrever algo contando a nossa sofrida trajetória ela deu sinal verde,
e como poderão ver futuramente, até participou com seu melhor relatório.
Para este nosso primeiro livro pedi que me deixasse fazer o “papel
principal”, falando sobre um assunto muito importante, mas que a sociedade
prefere se excluir. O problema do menor trabalhador. E o tema não poderia
ser melhor, a vendagem de jornais, pois, quando adolescente tive a
oportunidade de fazer parte de um grupo de jornaleiros super batalhadores.
Felizmente terminei o livro e pretendo editá-lo. Os vendedores de jornais
merecem uma biografia de suas sofridas trajetórias. Não pretendemos ficar só
neste, queremos escrever mais e mais sobre a vida da população humilde,
gostamos do que fizemos, nos sentimos importantes, assuntos pra falar não
vão faltar.
Nicolau Albuquerque Andrade
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Sumario
BENDITAS ARRUMAÇÕES
1 – A NOVA CASA
2 – A NECESSIDADE FEZ UM HOMEM
3 – SEM COMPROMISSO
4 – A PALAVRA, O PAPEL E A CANETA
5 – IMPREVISTOS ACONTECEM
6 – MISTÉRIOS
7 – A FUGA
8 – DEPOIS DA EXPLICAÇÃO, A TRANQUILIDA
9 – SEXTA FEIRA SANTA. OS MENINOS ESTÃO MUDADOS
10 – O MAU PAGADOR
11 – COISAS DO SÁBADO A NOITE
12 – O DESRESPEITO
13 – TAÇOS DA INOCENCIA
14 – REVELAÇÕES
15 – CAMILE ESTÁ PRENHA
16 – A CHUVA ME ATRAPALHOU
17 – O VACILÃO
18 – O FEITIÇO VIROU CONTRA O FEITIÇEIRO
19 – A VENDAGEM NA PRAIA
20 – SEM VENDAGEM
21 – EMERGENCIA PARA A EMERGENCIA
22 – TRAGÉDIAS DE DOR
23 – A PERSEGUIÇÃO
24 – UM PRESENTE PARA JANDIRA
25 – EM ALGUM LUGAR NO FUTURO
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262
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BENDITAS ARRUMAÇÕES
Mês de Fevereiro, verão na Bahia. “Batia” um tremendo calor na cidade
do Salvador. Foi por estes tempos, se não me engano num dia de carnaval,
que mainha achou de fazer uma arrumação na casa, mas não uma arrumação
qualquer, como se diz “dar uma geral”.
Estavam presentes neste dia, além dela e de mim, as duas netinhas da
vovó Lourdes, Beatriz e Nathália, os outros “vagabundavam” por aí. Sobrou
pra quem?
- Cristiano, você vai me ajudar a arrumar isso aqui!
- Ahh! Não mainha! Poxa!
- Não tem poxa nem “poca”. Vamos! Vá tirando aquelas suas bagunças de
dentro do quarto das meninas que vou varrer tudo.
“As bagunças” que minha mãe se referia era um caixote cheio de livros que
eu guardava com muito carinho, dos meus bons tempos de estudante, que
havia deixado há exatamente um ano atrás.
Peguei o caixote com todo o cuidado, levantei e o levei até a sala, onde se
encontrava a dona Lourdes.
- Onde eu “boto” isso aqui, mainha?
- Não sei! Você que sabe onde é que coloca as suas coisas.
Bom!... Coloquei na sala mesmo, até que o quarto das meninas fosse
arrumado.
Eu não estava muito a fim de arrumar nada, sabem... admito que sou um
pouco preguiçoso... Tá bom!... Um pouco não, muito preguiçoso... Isso não
vem ao caso, coloquei este detalhe pra dizer apenas que enrolei a velha o dia
inteiro só pra não fazer nada, e uma das enganações que davam mais
resultado era:
- Tô arrumando os meus livros mainha! A senhora não disse que é bagunça?
O mais espantoso foi que: eu estava arrumando mesmo! Quer dizer, pelo
menos mexia e remexia.
Foi numa destas mexidas e remexidas que tirei de dentro da caixa um saco
plástico que não me recordava ter colocado ali.
- O quê será isto? Ah!...
Havia me lembrado. Pela cor do saco, acinzentado, lembrei que aquilo era
um grosso maço de páginas de caderno que me foram entregues por uma
triste senhora, já falecida há alguns meses, que morou aqui no Arenoso;
quando me entregou disse que era pra eu tomar muito cuidado com aqueles
papéis, que ali estava o sonho da vida do também falecido filho dela, morto
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por marginais dentro da Décima Primeira DP, aqui mesmo em Tancredo
Neves, e que, por este fato aquelas folhas se tornaram o sonho da vida dela
também.
Ainda me lembro de alguns detalhes de nossa curta conversa. Fui chamado
à parte, quando um dia passava num local aqui no bairro, que prefiro não
citar o nome porque foi o que a idosa senhora me pediu, alegando estar o seu
filho mais moço, me parece que o nome dele era Crist... não sei, era parecido
com o meu, não me lembro agora; sim...este filho estava sendo perseguido,
não disse por quem e nem porque, vamos respeitar a vontade da falecida, não
quero espíritos me assombrando de madrugada...
Como disse, ainda me lembro de alguns detalhes da nossa conversa:
- O sonho do meu filho era ver estes papeis editados (me dizia, com brandura
na voz e no olhar) ele chamava isso de o seu primeiro livro, queria escrever
mais, porém foi preso e pediu que entregasse isso a uma pessoa que andasse
pela cidade e conhecesse alguma editora, ou se não, desse um jeito do sonho
dele se realizar.
- E porque a senhora escolheu logo a mim?
- Não fui eu, meu próprio filho pediu que te entregasse isso, cansamos de te
ver passando pela nossa porta, vindo de seu colégio, então ele pensou que
você pudesse fazer isso, mesmo não o conhecendo, pediu quando lhe fiz uma
visita na delegacia. Vá, meu querido, pegue! Faça isso por mim e por meu
filho, tente editar este livro. Olhe, você pode até colocar o seu nome nele, já
estou com um pé na cova mesmo! Muito doente! E não espero mais méritos
nesta vida!
E foi assim que estas escrituras vieram parar em minhas mãos. Assim que as
redescobri naquele caixote tratei de guarda-las, para nos dias seguintes ir ao
centro da cidade procurar alguma boa editora. Benditas foram as minhas
arrumações; benditos foram os autores deste livro. Que estejam os dois com
Deus, porque eles merecem.
Cristiano Sousa
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I - A NOVA CASA
O
lha o jornal! Jornal!... Olha o jornal!...
- Ei garoto, vem cá, me dá um aí.
Era o meu primeiro dia, em minha primeira profissão: Jornaleiro.
Tinha acabado de vender o ultimo jornal, foi um dia duro, dia de estreante.
Pedi apenas dez jornais que é a quantidade que geralmente os marinheiros de
primeira viagem como eu pegam, sei disso porque o Basú me contou. Antes
de chegarmos à distribuidora ele me fez um alerta:
- Olhe, você só vai pegar dez, viu?
- Por quê?
- Porque senão você bóia, você ainda não tem as “manha”, não sabe os
“ponto” bom, e também, tem muito “matracão” aqui.
Trabalho terminado. Fomos para a distribuidora prestar as contas, e daí,
voltamos para casa.
Saltamos do “busú”, e cada um foi para o seu lado, ele seguiu direto pela
pista, enquanto eu desci a ladeira que dava para a minha rua.
- Abram aqui!... - Gritei ao interlocutor que estava no interior da casa - .
- Ei, meu filho chegou!
Minha mãe falou aquilo como se não me visse à muitos dias, na verdade
estava alegre por eu estar ali, em sua frente, são e salvo, ainda não estava
acostumada com a ideia deste trabalho, mas era necessário.
Moramos no Beirú, um bairro afastado do centro da cidade. A casa era
muito humilde, nela haviam quatro vãos: dois quartos (o dos meus pais, que
era o da frente e o das meninas, minhas duas irmãs, Camile de dezessete anos
e Sula de oito, eu e meu irmão mais novo, o Tovinho, é como todos o
chamam, o verdadeiro nome dele é Cristóvão, dormimos na sala mesmo, pois
o meu pai, quando mudamos, não tinha dinheiro para construir um lar maior
e mais aconchegante), uma sala, uma cozinha; o banheiro ficava destacado
(no quintal).
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Minha Mãe é uma pessoa maravilhosa. Desde que eu lhe falei que iria
começar a trabalhar, ela, com o seu coração protetor, vem sempre me
pedindo para tomar cuidado, que o bairro em que eu vou vender é muito
perigoso, que eu não precisava de tal coisa, e tal, e tal... Mas o problema é
que, com a idade em que estava, não me sentia bem dependendo de meus
pais para ter alguma coisa, nossa família era muito pobre, se eu queria
comprar uma roupa tinha que ser às custas de minha mãe, ter um par de
sapatos pedia a minha mãe. Meu pai, eu não podia contar com ele, nunca
pude, vive bêbado.
Naquele primeiro dia, quando voltei do jornal, a velha já tinha preparado o
almoço, esperando que eu estivesse com fome; não cheguei com tanta, pois,
lá na distribuidora eles oferecem um lanchinho bem esperto, o equivalente a
quantidade de jornais. Mesmo assim comi tudo.
- Nico!...
- O que foi?
- Eu estou impressionada!
- Oxe! Tá doida é? Impressionada com o quê?
- Você ainda não acabou!
A minha irmã, Camile, tinha um senso de humor incrível, só vivia gozando
com a minha cara.
- Deixe o menino comer em paz, Camile! - Dizia a minha mãe, tomando
partido do seu filho mais responsável -.
- Deixa ela mãe! Só porque é avançada nos estudos acha que pode ficar
tirando sarro com a nossa cara.
Como já deu pra perceber, éramos uma família de seis pessoas muito
humildes que, como todos os pobres de nosso país, vive sempre em
dificuldades financeiras. Antes desta casa, morávamos com os nossos avós
paternos, lá no Cabula, estes, quando nasci, tinham o maior „chamego‟, o
segundo neto, “um menino homem como meu avô sempre quis”, era o que
nos dizia a minha mãe. Antes de mim só tinha a Camile, os outros dois
vieram depois, a Sula seis anos e o Tovinho oito anos após meu nascimento.
Éramos uma família feliz até certo tempo, quando meu pai, que trabalhava
lá“prás banda” de Aratu perdeu o emprego em uma fábrica de materiais
plásticos que de repente fechou, pois já não estava mais dando lucros, e os
empregados foram demitidos com vários meses de salários atrasados.
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Quando o meu pai chegou em casa estava “puto da vida”, ainda me lembro
de alguma coisa daquela ocasião:
- “Ques fila-da-puta”, foram embora e nos deixaram na merda. Não nos
pagaram, não deram nenhuma satisfação e saíram fora, vão instalar a fábrica
deles lá na Espanha, de onde vieram, só para garantir o emprego por lá e aqui
o povo passa fome.
- Mas querido! Eles não estavam tendo prejuízos?
- Que prejuízo que nada! Esta estava era muito forte.
- Muitos de seus colegas que deram entrevista na televisão disseram isso.
- Não são todos que trabalham no mesmo lugar, alguns são de outras fábricas
que também estão fechando. Eu admito que nesses últimos tempos nós
estávamos passando por uma certa dificuldade, mas não precisava chegar a
esse ponto.
A situação começou a ficar difícil; meus avós não podiam nos sustentar,
pois viviam de suas aposentadorias, minha mãe estava grávida de Cristóvão e
enquanto meu pai saía para tentar arranjar emprego, ela tomava conta da
gente como sempre fizera, porém, agora com muito mais desgaste, já que a
barriga atrapalhava um pouco; eram enjoos diariamente, médicos (ela saía às
terças-feiras de madrugada para marcar o cartão) às vezes sentia algumas
dores, e o pior de tudo é que começava a marcação cerrada dos meus avós.
- Jandira, a Sula derrubou o meu melhor vaso de plantas, você tem que dá um
freio nessa menina (falava a minha avó zangadíssima, amava mais às plantas
que a seu próprio esposo)
- Tá bom dona Mira! O nome dela era Zulmira, mas todos a chamavam
assim.
- A sua filha, mexendo na televisão, danificou, ó! (mostrava à Jandira as
artimanhas de sua filha) eu vou ter que chamar alguém pra consertar isso
aqui, que eu não sei
mexer, não!(desta vez era o meu avô quem dava a bronca)
- Deixa que eu acho pro senhor, seu Oscar (falava com dor no coração a
pobre mulher)
Minha mãe tinha uma paciência incrível com estes dois velhos, até que
começaram os desentendimentos.
- Menino!... Mas uma vez você derruba comida no meu tapete! Que falta de
educação é essa?
- A senhora está dizendo que eu não educo o meu filho é, Dona Zulmira?
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- Eu estou apenas querendo que você limpe o meu tapete.
- Eu sempre limpei, por que não limparia agora?
- Porque você não dá a atenção que deveria aos seus filhos.
- O que a senhora está querendo insinuar com isso, que eu sou uma mãe
desnaturada, que não sei cuidar de minhas crianças, é?
- Entenda como quiser.
Meu pai ficava sabendo de algumas destas discussões, bambeando em cima
da balança (não queria irritar a minha avó, mas também não queria que
minha mãe se zangasse, por causa da barriga), por isso não repreendia a
nenhuma das duas, e nem ao meu avô, o velho sofria com o seu coração já
cansado (às vezes tinha uns tremeliques). Em uma destas teve que ser
internado; o caso era tão grave que não esperaram nem o carro da UTI móvel,
onde tinha convênio, foi logo levado para o Hospital Roberto Santos, o mais
próximo ao prédio.
Saíram daquele apartamentozinho cafona como uns loucos minha avó,
minha mãe e mais dois caras da portaria. Desceram o elevador com o meu
avô passando „super mal‟, o velho não aguentava ficar em pé, mas tinha que
ser por ali que era o lugar mais rápido (afinal de contas, ninguém naquele
momento iria descer pela escada).
Chegaram ao hospital, e para não ter que “mofar” à espera de um leito, a
minha avó “molhou” discretamente a mão de um enfermeiro chefe, e
rapidamente foi achada uma boa cama, já que nesse tempo a crise nos
hospitais estava “braba”, morria gente pelos corredores, enquanto os médicos
faziam greve, sem essa as coisas já não são paraísos, imaginem com.
Já sabido do caso, o hospital com o qual o meu avô tinha convênio mandou
uma ambulância, chegou um pouco atrasada, e a desculpa: transito
engarrafado. Foi
transferido rapidamente, desta vez sem engarrafamento, que incrível! Mas
não teve jeito pro velhinho, faleceu assim que chegou.
Minha avó procurou logo culpar minha querida mãezinha pelo acontecido,
era uma velha que acabou se tornando muito chata, nem sob aquele chororô
que tomava conta do AP, onde já estavam todos, ela perdia a sua
“nojentisse”, tanto que, quando se passou aquele processo, que ao final
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sempre acaba em enterro, no momento em que estávamos tristes e
desconsolados, ela resolveu dar uma noticia desagradável:
- Vocês vão ter que procurar outro lugar pra morar, aqui não dá mais.
Daí, além de trabalho, meu pai teve que partir também em busca de uma
nova moradia para a família Albuquerque Andrade. Foi então que mudamos
para um lugar chamado „Arenoso‟, que faz parte do bairro do Beirú, e a rua
tinha o nome mais esquisito que já ouvi – Rua do Sapo – esquisitão, mas foi
lá mesmo que tivemos que recomeçar a nossa vida.
Meu velho pai “ralou pacas” pra achar essa nova casa, com o dinheiro que
ele dispunha no momento não dava pra comprar outra num lugar
melhorzinho, o jeito foi apelar para o aluguel de uma neste lugar „pacato‟.
Quando chegamos a rua estava assim: dois bares, poucas casas, principal via
de acesso sem asfaltar (o chão era de barro), algumas árvores, tinha até um
sítio, que incrível!
E lá mesmo passamos, com todas as dificuldades, tristezas, alegrias; a
família foi aumentando (veio o Cristóvão depois da Sula, que já tinha nascido
um ano e dois meses antes de termos ido para a nova casa). A rua começou a
crescer, a nossa morada foi melhorando aos poucos, o que era apenas um vão
quando alugada agora eram quatro já em nosso total domínio. Com o
dinheiro que tinha recebido da empresa, os “atrasados”, meu pai, meses
depois de alugar, comprou a casa.
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II - A NECESSIDADE FEZ UM HOMEM
N
ico! Nico! Vamos rapaz, acorda! E batia em minha porta, ou melhor,
na porta de minha casa, o Basú, gritando, como era de costume.
- Calma rapaz, eu já estou acordado! Ainda não está na hora.
- Mas é bom ir logo, a gente demora mais ou menos cinco minutos pra chegar
no ponto, você sabe disso.
Eu sabia, tanto que acordara bem cedo pra não ter que me arrumar às
pressas. Levantava às três e meia, fazia o café e tomava, escovava os dentes,
lavava o rosto e me vestia, era sempre assim, não bem nesta ordem, mas,
sempre assim.
Neste dia era a vez do Basú me acordar, combinamos isso pra não deixar de
irmos juntos, um dia ele vinha me buscar o outro eu iria na casa dele. Abri a
porta e...
- Vamos lá apressado! - Disse ao companheiro -.
Minha velha, que sempre me acompanhava naqueles momentos de
responsabilidade, fechava a porta depois de me cobrir de caricias, nunca se
esquecendo de alertar:
- Cuidado aí no caminho meu filho, e boa sorte.
O alerta eu dispensava, já estava acostumado com aquela estrada solitária
(como nós), gostava apenas do “boa sorte”.
E íamos novamente, eu e meu amigo, dois caras que não tiveram sorte na
vida. Se fizera mais de um mês que eu estava naquela vida de vendedor de
jornais, todos os dias era sempre a mesma coisa: acordar, dentes, café, roupa
apropriada, trabalho.
Tudo escuro. Antes de botar a cara na rua, sempre me benzia, pedia
muitíssimo a Deus que me iluminasse no caminho.
Íamos passando pelos lugares, e a cada casa, a cada poste, carros, muros,
sentia em mim uma sensação de invalidez, é como se cada um deles virasse
para mim e dissessem: você é um merda, não serve pra nada, vai morrer
vendendo jornal.
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Eu dava passos largos, porém, leves (eu não gostava de fazer barulhos
naquelas horas do dia), não que me preocupasse em incomodar a vizinhança,
e sim, porque não queria que me notassem ali, com aquela vestimenta, daria
um tom de humilhação diante de pessoas financeiramente iguais a mim, só
que era inútil a minha tentativa de silêncio, pois os cães, quando passávamos,
faziam a maior bagunça (latiam que nem loucos), nós nem dávamos bola pra
eles, apenas quando um se atrevia a tentar nos morder, aí era diferente, ao
invés de tratarmos com indiferença, acertávamos um chute e o infeliz saía
gritando, do contrario eles arrancavam a carne do coitado que tivesse a
“sorte” de ter sido mordido.
Depois de uma boa andada chegamos ao ponto de ônibus, ficava situado no
largo do Beirú. Esperamos o “busú” uns dois minutos e ele, como de
costume, passava em direção ao final de linha e depois voltava, quase vazio
por causa do horário.
Entravamos sempre pela frente, a nossa condição de jornaleiros nos
permitia, mostrávamos o colete azul do “Gazeta” e:
- Bom dia “motô”! - Dizíamos ainda na porta -.
- Bom dia!... Cadê o jornal?
- Ah!... deixa de brincadeira; você sabe que ainda vamos pegar. Não nos
sacaneia, não, heim!
- Eu não sei de nada...
Depois dessas abobrinhas úteis com o nosso motorista predileto, o Nino,
seguimos em direção à cozinha do „carangão‟ e lá também encontrávamos
sempre o nosso cobrador predileto, o Hugo.
- E aí “cobra”, falava Basú com toda a intimidade do mundo anunciando a
nossa chegada.
- Rapaz, vocês precisam pagar transporte!
- Que nada!... nosso dinheiro não é pra isso não - me intrometi -.
- E é pra quê então?
- Pra dar comida às nossas raparigas. Elas satisfazem a nossa vontade e nós
pagamos pra elas ficarem bonitas.
- E aonde foi que você arranjou isso?
- “Qualé cobra”! Você tá duvidando da minha capacidade é?
- Eu nunca vi você com ninguém, rapaz! E vem agora tirar onda?
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Todos riram, e seguimos com a nossa conversa fiada até chegar o ponto em
que saltávamos na Pituba. E finalmente chegamos. Demos “até já” aos
nossos companheiros de madrugada e ficamos ali, no ponto, enquanto eles
retornavam para mais uma rodada.
A missão agora era mais fácil, mas nem por isso menos cansativa, tínhamos
que andar alguns metros, não sei bem quantos, até chegarmos à Amaralina,
local onde pegávamos os jornais. Andávamos desde o ponto do outro lado da
igrejinha da Pituba até a subida da ladeira de Amaralina, onde há uma
entrada que dá para a distribuidora.
- Finalmente chegamos! -Disse-me o colega -.
- Porra! Todos os dias tem que dar essas andadas, é foda!
- Tem que se acostumar cara, quem quer vencer na vida tem que correr atrás.
- Mas “se nós pudesse” fazer alguma coisa pra melhorar até que eu aceitaria.
- Amanhã a gente vai usar um novo artificio pra não ter que dar essa andada.
- Qual?
- Amanhã te „mostro‟, hoje é outra coisa.
Meu amigo me deixou „naquele‟ suspense, apesar disso não insisti; mesmo
ansioso, esperei até o próximo dia.
Nem bem chegamos a distribuidora fomos logo recebendo os cumprimentos:
- Já vêm a dupla dinâmica, gente!
- É... “me bata e me robe”.
„Voaram‟ risos para todas as partes nesta ultima colocação de um de nossos
colegas. Outros, mais íntimos do meio sujo, diziam:
- Chegou “os mafioso”... “Os perigoso”... “Os bicho”.
Não da pra negar que a turma era bastante descontraída, mas nós também.
Digamos que sabemos nos comunicar:
- “Qualé, pau no...”! Gritei pro Ivo, também chamado de Negão.
- E aí “Zé do buraco fundo”, e assim Basú apelidava mais um.
Tinha sempre muita gente pra pegar jornal, esperamos a nossa vez e
pedimos a
quantidade habitual.
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- Bira, eu quero cem jornais! - Pediu o companheiro -.
- E você Nico, Quanto quer?
- Eu vou pegar cinquenta hoje, Bira.
- É!... tô gostando de „vê‟, cada dia que passa você aumenta sua quantidade.
É isso ai, “ Pai véi”.
- Eu estou descobrindo novos lugares e fazendo novos fregueses, espero que
daqui à algum tempo esteja vendendo cem .
- É isso aí!
O Bira era um cara legal, nosso distribuidor, nos dando sempre a maior
força.
Pegamos, cada um, o seu jornal, e partimos distribuidora a fora, com aquela
gritaria original que todos já conhecem:
- Olha o jornal!... Gazeta do dia!...
Eram mais de seis horas da manhã, e a cada grito nosso mais e mais pessoas
colocavam as suas caras brancas pra fora das janelas dos apartamentos. O
Gazeta era único, isso não quer dizer que não houvessem outros jornais, mas,
esse era muito poderoso.
- Ô garoto! Me traz um aí.
- Ô jornal! Vem cá!
- Gazeta, Gazeta! E faziam gestos com as mãos me chamando.
A concorrência ficava completamente para traz, e eu cada vez mais
vendendo e vendendo... uma paradinha aqui pra entregar a um freguês, outra
paradinha ali, outro freguês, e iam acabando os jornais; uns três neste prédio,
uns dois naquele outro...
Deu nove horas da manhã no meu reloginho de terceira. A uma altura
dessas eu estava apenas com quatro jornais, sabia que não precisaria mais de
grandes esforços
para vendê-los porque em qualquer lugar que estivesse o faria facilmente
pela popularidade da marca. Fui então de encontro a Basú, ele não ficava
comigo, tinha o seu ponto, onde vendia com facilidade seus cem jornais.
- E então maluco, Acabou?
- Não, ainda estou com sete. Mas, aqui é um tapa. E batia forte sobre os
jornais que se encontravam postos no chão.
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Cristiano Sousa
- Então eu vou dar mais um “rolé” e quando voltar já estou sem nada.
- Vá lá que, quando você voltar eu também já estou sem nada.
E fui saindo.
O ponto de Basú era ótimo, só ele vendia ali, sem concorrência, também,
quem era doido de chegar perto? Apenas eu. Um lugar bem movimentado,
onde havia gente passando de todas para todas as direções; arrodeado de
prédios, onde, em seus belos jardins, ficam enfincados no chão grandes e
lindos coqueirais; em outros: jambeiros. Mas a grande sacada do lugar é que
ali funciona uma sinaleira, e era aí que Basú se fazia. Fechou o sinal...
- Vermelho! É agora! E saía oferecendo jornais a todos os carros que ali
paravam.
Isso tudo sem falar num grande banco que funcionava no lugar, onde se
observava filas longuíssimas, gente fazendo depósitos, tirando dinheiro no
caixa eletrônico (assim é covardia). Eu andando pra lá e pra cá, enquanto ele
só fazia pegar os jornais na distribuidora, ir (de Kombi) para o ponto, jogalos no chão e vender. Era um cara de sorte.
Voltei, já sem nenhum jornal. Ele também tinha acabado de vender.
- Vamos pra distribuidora agora, ou ainda vai cobrar mais algum? - Indaguei
-.
- Não! Já fiz isso.
- Então, vamos andando?
- O quê?
- O quê o quê?
- Você falou „andando‟?
- Sim, o que você quer?
- Pensei que já sabia que além de “vim” eu também não volto mais andando.
- Não! Não sabia.
- Pois é, agora “me dero” mordomia total; você viu hoje que, assim que “nóis
ia” descendo a ladeira me pegaram, botaram na Kombi e trouxeram, mas o
que você não sabia é que falaram que de hoje em diante será assim.
- Ah!... É?
- É sim, “nestante” Bira tá aqui com a Kombi.
- Então, vamos esperar.
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O Jornaleiro
Esperamos até às onze, e finalmente chegou Bira com a Kombi, tinha mais
alguns vendedores dentro, três para ser mais especifico.
- Até que enfim né? Eu já estava até desanimado.
- Calma Basú! Você sabe que temos que pegar “menino” em vários lugares (
dizia Bira), passamos em Itapuã, Boca do Rio, em outras partes aqui da
Pituba, fomos na distribuidora levar...essa já é a terceira viagem “Pai véi”.
É verdade, eu e Basú já sabíamos disso, por essa razão a nossa bronca ficou
apenas na chegada. Bira tinha vindo do Iguatemi, onde costumava pegar
muitos meninos, mas claro que ele só levava e trazia de Kombi quem
vendesse muitos jornais, quem vendesse pouco seria sempre descriminado, ia
e vinha de pé mesmo. Como já tinha dado duas viagens, trazia no carro
apenas três jornaleiros.
Ao avistar a velha máquina longe, bateu um grande alivio, pensávamos que
íamos ter que voltar como nos velhos tempos, a pé, ou pegar uma carona nos
ônibus. O distribuidor teve que fazer uma rota nova pra chegar até o ponto,
em vez de vir pela Manoel Dias da Silva, como era de costume, o fazia por
dentro, e já saía na Ceará.
Abrimos a porta do automóvel, entramos, não estava apertado mas a turma
ia se arrumando de uma ou outra forma pra caber todos “confortáveis”.
Quando observamos com mais atenção, vimos entre nós duas caras
conhecidas:
- Paulinho! Cezar! E ai garotos? - Perguntou Basú (mais íntimo a eles que eu)
como é que vai essa força?
Os três se cumprimentaram e depois eu e os dois. Mas logo percebemos
também uma face estranha entre a nossa, estava um pouco afastado.
- Quem é, Cezar? - Perguntou Basú, virando o rosto de súbito para a figura
desconhecida -.
- Não sei Basú, quando pegamos o carro lá no Iguatemi ele já “tava”.
Pra não ficar de „lengalenga‟, resolvi me comunicar:
- E aí primo?
- Diga?
Houve uma “cumprimentação” mútua, então continuei:
- Você vende pra Bira ou é só carona?...
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Cristiano Sousa
A resposta veio pela boca do próprio distribuidor:
- Se segura aí galera que eu vou arrancar, fui ali conversar com outro menino
meu, mas já voltei. Me desculpem por não ter apresentado a vocês, tá? Esse
ai é meu novo vendedor, o Juracy, entrou anteontem no jornal, o ponto dele é
aqui pertinho, e como já tinha acabado, me pediu carona, é um bom menino.
(E arrancou o carango velho da Ceará, passando pela Goiás para tomar a
Manoel Dias).
Antes de entrar totalmente na grande avenida, a sinaleira de uma agencia
bancaria nos parou, falamos rapidamente com outro conhecido nosso e...
agora sim, mudou, verde... lá fomos nós.
Entramos na gigante Manoel, toda cheia de casas, toda cheia de casos. Uma
rua longa; é uma avenida; na Pituba nasce pra morrer em Amaralina, e vice
versa. Não sei se posso dizer que é uma longa minhoca onde se encontra de
tudo, afinal, nunca parei pra pesquisar, não era a minha função, mas com
certeza, tem muita coisa por lá; uma boa olhada e se percebe locadoras,
bares, lanchonetes, padarias, clinicas médicas, igrejas, módulos policiais,
concessionárias, livrarias, oficinas mecânicas, postes, pés de almendas
(muitos mesmo), açougues, bancos, lixo, gente pra todo lado, cãezinhos de
burgueses, etc e tal. Se eu for falar de tudo não tem paciência que aguente. O
que eu não posso deixar de citar, além de ser muito óbvio, prédios... vários
prédios... uns bem acabados, outros caindo aos pedaços; de apartamentos
com placas de venda à luxuosos com vista para o mar, onde cada vez mais eu
conquistava a minha freguesia.
Logo que comecei a vender, fui conquistando o coração da classe alta da
sociedade. Me chamavam dos arranhas céus:
- Oitocentos e dois! - Gritaram -.
E eu imediatamente dava um toque à portaria:
- Tem um moço me chamando lá de cima.
- Que andar?
- Eu não gravei, só contando daqui. Peraí!... Um, dois, três, quatro...oito. É
naquele apartamento ali, ói!
- Ele já interfonou pra cá, oitocentos e dois, pode subir, o elevador é ali - e
apontava na direção em que eu devia ir -.
No melhor da venda, a mesma cerimônia: dinheiro pra cá jornal pra lá, e:
24
O Jornaleiro
- Brigado!
- De nada!
- O senhor já tem freguês?
- Não.
- Então, quer que eu venha lhe trazer o jornal todos os dias?
- Não, obrigado! Sabe o que é?... É que eu tenho assinatura, e até agora ela
não chegou, aí eu resolvi comprar, gosto de ler os jornais cedo.
- Ah!
As assinaturas realmente tem essas deficiências. Certa vez, quando fui
vender em um prédio que a portaria não era muito responsável, o freguês se
queixou desse mesmo problema, e, quando desci, a assinatura tinha acabado
de chegar, jogaram-na no pequeno salão do prédio e se mandaram, nem se
preocupando se iria chegar ao destino ou não, o que fiz? Olhei se estava o
porteiro - não estava -, dei outra olhada ao redor e, venha!
Gostei de um dia que fiz uma freguesa muito legal, tava cheio de jornais
ainda, quando ela me chamou do seu único apartamento no terceiro andar de
um prediozinho que fica entre a Maranhão e outra rua que dá para a lagoa,
era até simpático, desses em que o porteiro não era muito responsável; uns
dois pés de almenda na frente, um espaço emuralhado, onde se colocavam os
carros, salão, com direito a mesas e cadeiras, mas apenas com três andares.
Do lado a Maranhão, porta de saída e entrada dos automóveis, em frente a
outra rua que, ao andar um pouquinho só, dá no lago, e do outro lado, uma
sequência de prédios enormes.
Desceu, abriu o portão pra mim, comprou o jornal, e eu nem precisei
oferecer-me para ser seu vendedor, ela mesma sugeriu:
- Venha todos os dias me trazer o jornal, tá?
- Certo, eu venho.
Era uma mulher muito bonita, elegante, daquelas que a gente vê nos
concursos de miss. Olhos verdes, pele morena clarinha, bem parecida com a
minha; usava uma sainha curta, e eu vibrava disfarçadamente em suas pernas
grossas, lindíssimas; os peitinhos... no momento não soube definir se eram
grandes ou médios, mais os dois são ótimos, eu adoro; corpo esbelto... Em
fim. Comprou o jornal em minha mão e foi andando sutilmente, esperei para
ver até o ultimo rebolado de sua bunda avantajada. Que delicia!
25
Cristiano Sousa
Chegamos ao destino, conosco a nossa conversa vadia; demoramos mais ou
menos uns quatro minutos do ponto da Ceará pra lá. Meteu a mão na
alavanca, o Paulinho, e abriu a porta da carroça, desceu primeiro, e na
seqüência Juraci, eu, Cezar, e por ultimo Basú. Entramos em nossa caixinha
de surpresas. Quando falo isto me refiro à distribuidora, sim, porque
realmente era, ninguém pode imaginar o que sofri ali nos primeiros dias.
Passaram-se quatro anos depois da nossa mudança para a nova casa, minha
mãe desconfiara que o meu pai, homem sempre muito fiel à sua família,
andava traindo-a com a sua melhor amiga. Havia à algum tempo mudado
bruscamente os seus hábitos começou a chegar em casa atrasado (fora do
horário costumeiro, digamos assim), inventando desculpas das mais
esfarrapadas, do tipo, o ônibus atrasou não sei quantas
horas, engarrafamento monstro, quebrou não sei onde e tive que vir de pé ...
É claro
que estas coisas acontecem muito nas grandes cidades, mas, com a mesma
pessoa várias vezes no mês, na semana?... Inventa outra né, mané!
O pior desses dias foi o que ele chegou em casa bêbado, quem não sabe
deve pelo menos imaginar como é viver com um alcoólatra. Não
desconfiávamos disso, e não era realmente capaz de qualquer um de nós
adivinharmos, sempre nos poupou de suas crises, mas, naquele dia
extrapolou, mostrou o seu lado frágil, covarde que virou corajoso. Nos
confessou que há algum tempo vinha se drogando com líquidos de diversas
cores. Chegava tarde e se deitava na cama com a maior indiferença com a sua
senhora, para que esta não percebesse nada. Na sua mente beber passou a ser
besteira:
- O que há de mal em tomar uns golinhos!
Mas eram estes golinhos que estavam arruinando, não só a sua vida como a
de toda a família: Brigava sempre com a minha mãe, saía atrasado pro
trabalho, batia em mim e meus irmãos, continuou a chegar em casa nas
madrugadas, tudo isso depois de se abrir conosco. Passou também a diminuir
significativamente o dinheiro da despesa; a casa, que ainda não estava
totalmente completa, agora é que não iria ser terminada mesmo, porque até a
força de vontade do homem a cachaça tirou; o que viesse ele bebia, como o
próprio dizia: "bebo todas".
26
O Jornaleiro
Essa foi a gota d'água. Com pouco tempo a coisa começou a ficar cada vez
mais insuportável. Quando completei treze anos minha mãe me chamou num
canto para que tivéssemos uma conversa séria.
- Nico, meu filho, hoje é o teu aniversário, é o primeiro em que não posso te
dar nenhum agrado, os outros eu sempre te dei um presentinho, mesmo que
para isso tivesse que cortar das despesas, mas agora nem isso posso, o que o
teu pai tá dando é pouco até pra gente comer direito, meu filho! Você vê aqui
em casa como as coisas estão, né? Vamos pedir a Deus que a nossa situação
melhore.
- Não esquenta a cabeça com isso não, mãe! Eu não vou morrer.
- Outra coisa que tenho que lhe dizer: Se a nossa situação não melhorar, você
vai ter que arranjar um trabalho, porque não vou poder ficar te dando as
coisas.
Minha velha dizia aquilo, e eu podia sentir em suas palavras um tom de
desgosto, parecia querer me pedir desculpas; mas como pedir, se não achava
palavras; fazia-o com todas as forças de suas expressões e gestos: pegava em
minha mão e apertava fortemente, alisava a minha face como se fosse a mais
pura escultura do mais glorioso escultor, passava os seus dedos longos pelos
finos e curtos fios de meus negros cabelos; me olhou um instante, fiz o
mesmo. Nos abraçamos, e choramos. Sim, queridos amigos que acompanham
esta trajetória, nós choramos, eu e a pessoa em que mais venero neste
mundão de Deus, a minha mãe; choramos de desgosto, choramos por
piedade, de ódio, este sentimento mau que nos toma em determinados
instantes de nossa vida, e choramos principalmente pela tristeza que a nossa
situação causava, e de saudades dos tempos, não digamos bons, mas
tranquilos pelo menos, que pareciam
que não iriam voltar mais. Dizia também que não podia mais viver
dependendo do salário de meu pai, e iria arranjar algo para fazer; então, dias
depois, juntou um dinheirinho com uma boa dose de dificuldades, comprou
uma caixa de isopor, três bandejas, um banquinho novo, improvisou outro,
um bonezinho, aliás, dois; comprou farinha de trigo, óleo, alguns
ingredientes já tinham, junto com a boa vontade. Juntou tudo isso, e todos os
finais de semana fritava umas coxinhas, uns quibes, pastéis, e ia à praia
vender; sucos e águas eram comprados sacos ali pertinho e enchidos (suco
artificial, e a água do filtro mesmo).
27
Cristiano Sousa
Quanto a mim, fiz o que ela pediu, quer dizer, não como os adultos. Sair de
loja em loja, biscatinhos aqui, biscatinhos ali, colher informações com os
amigos sobre os lugares que estivessem empregando, essas coisas... afinal de
contas, eu não tinha nenhuma experiência. Então vocês me perguntam: como
você descobriu esse "ganha pão" que é vender jornais? Aí eu repondo: por
acaso. Isso mesmo, por acaso. Vadiando pela rua conheci um garoto, filho de
um amigo do meu pai, amizade esta feita em casa, quer dizer, no próprio
bairro; semelhantemente nos conhecemos, chamava-se Adalberto Bonifácio
Pereira, mais conhecido como Basú; disse que tinha esse apelido porque se
parecia com um ator de novela que há em uma emissora famosa, e que esta
maneira "carinhosa" de o chamarem provinha do sobrenome desse ator, ele
achava até melhor as pessoas o chamarem pelo apelido do que pelo nome,
considerava-o muito feio.
E foi através de Basú que eu „descobri‟ (esta é a palavra certa) este
“emprego”. Outro dia conversávamos, ao mesmo tempo em que jogávamos
uma partida de totó, um jogo maneiro que nós mesmos manipulamos os
nossos craques. Era um Ba-Vi emocionante, oito a quatro pra mim. Venci
essa partida, que foi a ultima, por uma vantagem de dois gols, e olha que não
estava nos meus melhores dias. Fomos para dentro do barzinho, peguei o
prêmio, um refrigerante. Deixarei pra contar depois as vezes que fui goleado.
Saímos juntos; começamos a conversar mais ainda, eu falava das
dificuldades para "ter algum", pois lá em casa a coisa estava mau, sem
aprofundar muito em detalhes; ele também falava de problemas dos parentes
do interior, e de repente tocou no assunto. Que tipo de energia nos iluminou
naquele momento para que tivéssemos mentes tão maduras e intrigantes, que
fizesse, ele principalmente, falar que trabalhava, tudo isto para a minha sorte.
Logo lhe perguntei:
- E do que você trabalha?
- Eu trabalho de jornaleiro! – Exclamou -.
Jornaleiro?... Confesso que não esperava essa, não por fazer mau juízo da
"profissão", mas, eu nunca ouvi em minha vida alguém dizer que trabalhava
de jornaleiro, e vou mais além, nem sabia que existia essa “profissa”.
Fiquei curioso, e fui pedindo mais detalhes sobre o assunto; Basú, com uma
calma singular, e uma paciência generosa, explicava-me mais coisas, ia me
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O Jornaleiro
dizendo detalhes com tanta naturalidade, com tanta altivez na voz que resolvi
dar urna parada no meio do caminho, entre a minha casa e o bar, na verdade
já estávamos mais para a minha casa naquele momento, que para o bar.
Sugeri a ele que sentássemos; pensou que eu estivesse brincando com ele,
pois, nós estávamos exatamente no meio do asfalto seco, é bem verdade que
não era uma rua que circulava carros a todo o momento, mas... foi o que
achou ele da minha sugestão; então eu tive que esclarecer o caso, e foi o que
fiz, disse que não era exatamente no meio do asfalto que iríamos sentar, e sim
- apontando pro local - no meio fio onde, por costume, os vadios sentam para
bater papo ou falar de coisas banais; o que não era o nosso caso. Sentamos no
meio fio para que a nossa conversa desenrolasse melhor, e foi pra isso
mesmo que pedi que sentássemos e ficássemos mais confortáveis naquelas
pedras de... (afinal de contas de que são mesmo, que tipo de rocha?). Não sei,
só sei que sentamos, ficamos com nossas bundas doendo naquele conforto
todo, mas nem ligamos, o assunto estava muito interessante, principalmente
pra mim. Pedi explicações, mais e mais detalhes: como era tal coisa, como se
fazia isso, o que se faz mesmo com aquilo... Acabei lhe revelando o porquê
de tanta curiosidade, disse a ele que estava precisando de um trampo, como o
dele, algo que me desse condições de, pelo menos, suprir com as minhas
necessidades, porque meus pais não tinham mais condições, a coisa estava
ficando cada vez pior... Claro que eu dizia essas coisas discretamente, pois
estávamos na rua, eu não queria que o mundo inteiro soubesse o que estava
se passando dentro de minha casa, nem que minha família fosse alvo de
fofocas. Êpa!... Eu estou surpreendendo a mim mesmo, e se surpreendo a
mim, também devo está aos meus queridos e pacientes companheiros;
reparemos que falei há instantes atrás como gente grande, que coisa colegas!
Pela primeira vez, que eu lembre, fico receoso da língua do povo; coisa que
também não é pra menos, as pessoas estão sempre querendo saber das
desgraças dos outros, e por isso, acho que até tive meus motivos; não quis
falar alto, tive medo da língua, esse mecanismo tão importante para nossa
comunicação, nunca pensei que fosse acontecer uma coisa dessas comigo,
mas, tive motivos. Na verdade, quando estamos com problemas, tentamos ao
máximo ser discretos, ao contrário, quando as outras pessoas têm os seus, e
ficamos por dentro, de alguma forma, do assunto, e não somos pessoas
conscientes, queremos mais é que os outros se explodam, e, como para nos
vingarmos, ou para nos livrarmos de nossos espíritos de pobreza, pomos mais
lenha na fogueira.
29
Cristiano Sousa
Então veio, até que enfim, a pergunta que eu queria ouvir:
- Você quer que eu te leve pra “vender jornal”?
Acho que não é preciso dizer pra vocês, queridos companheiros, que aceitei
na hora, também não é preciso explicar como fiquei contente naquele
momento, apesar de não ter demonstrado tanto na ocasião do pedido.
Ficamos papeando mais um bom tempo sobre o assunto, até que bateu um
certo horário, já estava um pouquinho tarde, mais ou menos umas sete horas
da noite, tínhamos começado o jogo de totó às três horas da tarde e terminado
às quatro horas; imaginem que tempinho nós papeamos, hein!
Ouvi uma voz fina, mas poderosa e decidida, me gritar a poucos metros de
distância:
- Oh, Nico!... Vem cá menino! Você não acha que já está na hora de „entrar
pra dentro‟ de casa, não? (era minha velha).
Ficamos até um pouco espantados... não!... não ficamos espantados, afinal,
não havia nada para se espantar. Ficamos só um pouco surpresos com o
horário. Daí decidimos sair, cada um pro seu lado, até o dia, o primeiro dia, o
dia D, de dia; até que o dia em que marcamos para que eu começasse, chegar.
Poderia ser no dia seguinte, mas preferi que fosse no domingo, pela manhã (é
claro! iria ser em que horário?).
Cheguei em casa expressando toda a minha alegria, conversei com a minha
mãe sobre o assunto, ela consentiu, parte com risos por ver que eu também
estava feliz, parte com agradecimentos à sua santinha por saber que alguém,
além de meu pai, ia colocar alguma merreca no nosso porquinho de barro,
que, diga-se de passagem, estava magrinho - magrinho. E por citar o meu pai
nesse papo, o velho também consentiu que eu fosse vender, os dois ficaram
um pouco com medo, o que é normal, mas não impuseram maiores
dificuldades. Os meus manos?... Nem estavam aí, nem estavam ligando;
ainda não tinham cabeça para opinar sobre esses assuntos tão complexos.
Minha irmã Camile, nesse tempo, mantinha a sua fama de gozadora e
brincalhona, dizia que era bom que eu trabalhasse mesmo, para não ficar por
ai, no meio dos pivetes, fazendo o que não devia. Foi esse o único incentivo
que recebi dela, isso, depois de levar uns puxões de orelha da mama ao
ordenar que eu sentasse à mesa para tomar o café (da noite), pois já estava
30
O Jornaleiro
atrasado, então me veio com um copo plástico azul, que eu era acostumado a
usar, e um pedacinho... quer dizer, não era um pedacinho, não vamos
exagerar, eu vou falar a verdade, era meia banda, e de um pão cacetinho,
aquele que esfarela toda a casca e fica apenas o miolo. Quando me veio com
este de comer, reclamei:
- Oxe! Só tem isso?
- É sim! É só isso que tem pra você tomar café! Boi roceiro bebe lama, sabia?
- Falou em um tom bem alto -.
Sei que não dizia esta bela poesia: „boi roceiro bebe lama‟, por mal, era um
modo de se mostrar contrária à minha „pivetagem‟, já que todos estavam
alimentados no momento, se é que podemos chamar de alimentados umas
crianças que mal viam a cara de jantas à noite; os únicos que estavam tendo
este privilégio (de uma forma precária) eram os chefes da casa. Achei melhor
não contrariar mais a minha coroa. Tomei o café, e fui dormir, pensando no
domingo, como deveria ser a minha estreia, e tal e tal... Criei uma expectativa
em torno disso, boa até, mas decidi não ficar muito ansioso. Olhei pro
despertador; a cama estava totalmente desforrada, consertei-a, sentei, pensei
um pouco, deitei. Já eram nove da noite, ou vinte e uma horas, como
quiserem, de uma sexta-feira. Acordei no sábado para passar mais um dia em
branco, foi o que aconteceu, e neste mesmo sábado vivi mais outra noite de
expectativa. Dormi mais cedo, oito horas, indicação de Basu; minha velha
decidiu me dar uma força e aprontou, à noite, tudo que eu iria precisar: café,
guardou o pão, uma camisa de manga, um shortinho decente, um par de
chinelos tirado do fundo do baú, um bonezinho, e muito carinho para o dia
seguinte.
Finalmente o dia da estreia chegou. Parece que as horas estavam apressadas
durante o sono pois passaram tão rápido, pra não dizer que foi voando, pois,
quando Basu bateu na porta (O que era outra combinação nossa) e eu
levantei, com aquela preguiça, olhei pro "desperta", tomei um susto!... É, foi
isso, foi um susto.
- Já ?... Quatro horas da manhã! Eu cabei de deitar? - Indaguei, indignado
com esse tempo apressado dos homens, que é representado por uma caixinha
circular; há as vezes de outros formatos, e que nos é útil em muitas ocasiões,
de várias maneiras, para vários destinos; este tempo é representado por um
tal de relógio, no meu caso, muito pior que ainda faz barulho -.
31
Cristiano Sousa
Mas ele, o despertador, não foi o culpado desta noite; o grande vilão, que
acabou, exterminou, assassinou o meu querido sono, foi o Basu; o cara, antes
de me chamar já vinha falando alto, de uma boa distância não sabia eu com
quem ou com o quê, mas esbravejava de dar enjoo:
- Que droga! Sai daqui, anda! Vai embora!
Passei a ficar sabendo do que se tratava depois que ouvi alguém o
chamando carinhosamente:
- Au !Au !
Latia assim para ele o seu cão, mas, não pensem que era por causa do
gracioso canino que gritava, foi por causa dos não graciosos, que latiam
também, mas, de um jeito muito diferente, o faziam raivosos, nervosos, como
querendo espantar um intruso de seus domínios, coisa que nós, humanos,
nunca vamos entender, por isso, dava pra se ouvir os gritos não só do infeliz
do meu camarada, mas os de dor, também, dos caninos da rua quando pedras
explodiam em seus corpos peludos, atiradas pelas mãos do animal do meu
coleguinha Basu, que por causa dessa irracionalidade se salvou e ao seu
cãozinho que ele denominava „Cacho‟, esse, ao contrário dos outros que os
perseguiam, e que já tinham se mandado cada um pros seus cantos, era um
bichinho simpaticíssimo: esperto, obediente ao seu dono, educado, limpo, e
outras coisas mais que podia se observar neste cãozinho, canino muito
querido pelo seu dono, que lhe ensinara todas essas mazelas e delicadezas,
chegando ao ponto de podermos, pela sua esperteza, compará-lo ao melhor
cão adestrado de Hollywood.
Livres dos latidos coletivos da cachorrada de minha rua, que não é de cães,
é dos sapos, Basu acalmou-se e se aproximou da porta junto com Cacho,
chamando-me baixinho; do mesmo modo deu duas batidinhas na dita cuja.
- Calma Basu! Eu Já estou acordado! - Exclamei, abrindo-a pra ele entrar; era
madrugada e eu ainda não estava totalmente pronto -.
Pedi um tempinho.
- Rápido! Nós já estamos quase em cima da hora, cara.
- É que eu acordei praticamente agora; você quem me acordou. Já deixei tudo
pronto
pra não ter problemas; só falta vestir a roupa...
32
O Jornaleiro
- Mas aí, poxa! Você coloca qualquer uma; é o primeiro dia; lá a gente pede
um fardamento pra você.
Meus pais acordaram com o tom elevado da conversa, mas apenas a minha
mãe vem à sala, onde, aliás, dormia o meu maninho, Tovinho.
- Bom dia meus queridos! Já vão sair? - Usou do melhor que há em sua
simpatia para nos cumprimentar, e de uma boa dose de insatisfação que há
em sua preocupação para nos perguntar.
- „Bença‟ mãe! - Pedi, pegando em sua mão, e depois, abraçando-a.
- Bom dia Dona Jandira! - Falou baixo o Basu.
- Bom dia Basu! Cadê sua mãe, tá boa ? E seu pai ?
- Tão bem! Todo mundo lá em casa.
O único que às vezes "falava" mais alto era Cacho com uns latidos como
quem quer ser notado, mas logo era reprimido por seu dono. Acontece que
ele foi reconhecido por minha velha.
- Ah! Estou vendo que vocês vão estar bem acompanhados nestes caminhos.
- É, eu sempre ando com o Cacho, ele me acompanha pra onde quer que eu
vá; a não ser que o lugar seja o jornal, aí eu não levo, porque são vários os
obstáculos, senão ia. Fora isto é raro não estar comigo. Daqui leva a gente até
o ponto e depois volta “pá” casa, né Cachinho?
Saímos finalmente. Basu, que estava sentado em uma cadeira ao lado da
porta, se levanta, puxa o trinco e abre. Dei mais uma beijoca em minha velha,
todos se deram um tchauzinho, boa sorte, até mais, de trabalhadores para
quem se preocupa, e de quem se preocupa para trabalhadores. Minha Jandira
querida, que estava vestida no seu tradicional traje de dormir, mais conhecido
como camisola, fechou a porta naquela preocupação de mãe, mas, só depois
de nos acompanhar com os olhos até onde as curvaturas deixassem. Apagou
a luz e se dirigiu novamente para o quarto, onde podia refletir um pouco
sobre a vida, de uma forma "confortável", deitada, olhando para o teto, até
que viesse de novo o sono, coisa que já tinha acontecido com o velho. Parece
que ela não se importava em estar com certas roupas na frente das pessoas,
pois, quando estávamos na sala, usava, como eu já destaquei, uma velha
camisola que tinha ganho há muito tempo do corôa; acho que era a mania de
querer igual, pois, a camisola dela era verde, e o pijama dele também; quando
um mudava, o outro idem. O quarto não “conhecia” porta; uma cortina cobria
a visão dos curiosos; costuramos o pano, fazendo uma entrada pra um ferro,
33
Cristiano Sousa
batemos dois pregos, um em cada lado da parede, e pronto, estava feita a
nossa porta improvisada. De vez em quando invadíamos o quarto do casal
quando eles não se encontravam em casa e víamos os seus pertences, que já
foram muitos, mas que a cachaça misturada à falta de amor próprio do meu
pai conseguiu desfazer.
O bairro é todo cheio de deformações. Ao passo que saímos da "minha" rua,
pegamos uma ladeira enorme que dá para outra, mais popular, esta que nos
liga a rua principal, onde está localizado o ponto da famosa Rua Bahia. Na
subida da grande e suja “rampa”, nós dois... ou melhor... três, percebemos o
que é viver em cidade grande; qual a diferença; estávamos acostumados, só
que naquele horário vimos mais nitidamente porque os estrangeiros nos
chamam de subdesenvolvidos; os branquelos europeus, os gabolas
americanos que se acham os maiorais e querem mandar em tudo. Íamos
subindo e, forçadamente, sentindo outra subida, que era a do mau cheiro que
aquele trajeto exalava; o lugar vivia num descaso só. Quando já tínhamos
saído do pé e chegamos na cintura da “menina”, havia um terreno arenoso
que parecia não ter dono, daí o nome do local: Arenoso do Beirú. Era grande
o terreno; existiam coqueiros vazios, porque se algum babaca visse um coco,
mesmo não estando no tamanho ideal, subiam no pé e arrancava; muitos
pássaros, e outros tipos de animais não muito importantes para a degustação
humana. Abaixo desse terreno baldio, descobrimos a causa do fedor, era um
lixão que existia no local, e o pior, ficava ao lado de pequenas casas
comerciais: armarinhos, casas de material de construção, bares, pequenas
casas de verduras, que vendiam também frutas e legumes, junto com outros
tipos de comércios. Esse lixão era alvo de todo o tipo de inseto que
frequentava o local e animais que não tem o que comer e se humilham a
ponto de recorrer ao mais baixo nível da sobrevivência urbana. Todo o tipo
de merda que existe e são jogados nesses aglomerados, são revirados, sem
nojo, sem medo de doenças, por animais irracionais e racionais, dos mais
numerosos; os cães, gatos e ratos se encarregam de espalhar o lixo por toda a
rua e levar doenças para dentro das casas e o homem (oh!, esse é o pior) se
encarrega de fabricar e deixar por aí, a toa, toda esta lixarada, ajudando os
irracionais a espalhar as micoses. Assim estava aquela rua, toda suja,
esburacada, sem nenhuma sinaleira, as faixas?... não existiam; calçadas para
os pedestres?... quebradas, pedrinha por pedrinha retiradas do chão; parecia
que não estávamos dentro de uma metrópole, que injustiça é essa? Apenas o
centro da cidade é Salvador.
34
O Jornaleiro
Cacho, quando viu aquela meleca toda, agiu como um cão comum, o que
realmente era, e tentou se atirar para a bagunça, só que Basu, com a
autoridade de rei dos miseráveis, deu-lhe um grito de repreensão e em
seguida umas boas palmadas:
- Seu nojento! Você quer comer lixo é? Pode voltar daqui mesmo pra casa,
vai! - E mirava o dedo no horizonte com uma expressão grosseira -.
O "bichinho" parecia entender perfeitamente o que seu dono lhe falava,
pois, acabado o sermão, baixou a fuça e voltou; se fosse uma pessoa, eu diria
que aquela alma ia magoada, pelo modo que se mostrava cabisbaixo,
andando devagar, olhando para trás como se quisesse continuar conosco, mas
logo recebia um "vai!".
Os transeuntes que passavam pelo local naquela hora, em sua maioria, eram
indiferentes àquilo tudo, uns subiam para pegar o trampo (motoristas,
cobradores, vendedores de todos os tipos) e outros desciam, mas, ao contrário
dos que subiam, não havia variação, eram farristas, que costumam descer
aquela avenida todos os sábados,
em horários diversos, e eles andavam em grupos, duplas, sozinhos, mas,
sempre vinham em sua grande maioria embriagados, cambaleando sem
saber pra que lado ir (os solitários) ou carregados pelos colegas (os mais
sociais); poucos se apresentavam sóbrios (ou quase); os drogados nem se
fala, qualquer lado que houvesse festa eles estavam lá, vendendo ou
comprando, drogas leves ou pesadas, cocaína, crack, LSD e muitas outras,
sendo a maconha ainda a mais vendida. É uma coisa que não dá pra se
entender, como é que o pobre, uma classe que rala a semana toda pra
ganhar um salário de fome, uma merreca miserável, são explorados pelos
patrões e tudo mais, tem dinheiro pra esbanjar nos finais de semana em
coisas banais e vulgares. Quando digo isto me refiro aos trabalhadores, não
aos vagabundos, pois estes não precisam pegar no pesado para sobreviver.
A cada passo nos aproximávamos da nossa primeira missão: chegar ao largo
da Rua Bahia, no ponto. Nunca pensei que em uma curta andada na
madrugada de final de semana em Salvador veria tantas situações
interessantes e curiosas, o bom é que foi apenas o começo. Basu mostrava
mais do lugar: bares que só andavam cheios de gente farreando, a delegacia
atuando, os pivetes também. Coisas de um bairro esquecido. Claro que eu
35
Cristiano Sousa
sempre via tudo aquilo, mas com a escuridão ficava tudo diferente, mais
“emocionante”. No ponto, quando chegamos, estavam muitas pessoas. Olha
outra curiosidade! Não sabia que tantas pessoas trabalhavam ao domingo.
Esperamos o ônibus, ele não tardou a chegar, Basu que já tinha as manhas,
foi direto pela frente; eu quase que me dou mal, fazendo exatamente o
contrário, iria pela porta de trás, se não fosse o amigo colocar a cara pela
janela e mandar que eu fosse pela dianteira...
- Você tá maluco cara? Vai pela frente, anda !
- Mas eu ainda não tenho colete !
- O que é que tem. Eu conheço o motorista, peço pra que deixe você entrar.
Vai logo !
Foi o que fiz. Seguimos adiante para nosso segundo destino, a Pituba, e
desta a um terceiro que foi Amaralina. Ficamos num ponto da Rua do
Balneário, bem próximo ao mar; o parceiro logo me passou o seu primeiro
alerta:
- Olha camarada, esse é o lugar onde temos que saltar; você não pode passar
daqui se não vai parar lá embaixo; vamos! - Ia me mostrando a direção do
nosso quarto destino: a distribuidora -.
Depois desta observação, mandou outra especial:
- Sabe parceiro, temos que tratar bem os motoristas, porque eles deixam a
gente entrar pela frente; uns exigem jornais, outros não gostam mas nos
liberam. Este mesmo que nós acabamos de “vim” é meu conhecido velho,
não me cobra nada, não faz cara feia, também! É um camarada. Mas tem
uns...
Passava aquelas informações com tanto entusiasmo que comecei a me
animar.
Andamos três a quatro passos, viramos à direita onde subimos uma ladeira;
não precisamos nos preocupar com os carros ao atravessar a pista porque
naquelas horas o movimento era baixíssimo; e aí sim, ficamos de frente a
uma rua com aspecto de beco; um pequeno prédio, moderno, mas, acabado,
com a pintura toda desfeita, as grades
enferrujadas, muros frontais e laterais esburacados, placas de vendas
penduradas em algumas janelas e uma mini academia de capoeira eram o que
nos davam boas vindas, junto com um outro, na mesma entrada, mas do lado
36
O Jornaleiro
oposto, que deixava transparecer muito mais cuidados: paredes com
pastilhas, um belo salão escondido pelo alto muro, e uma cobertura de
primeira, com telhas usadas em casas de veraneio. Seguimos em frente, e
nada mais de especial havia naquela rua. Não precisamos dar mais de cinco
passos para avistar a distribuidora, e eu particularmente não precisei, desde
que desci do ônibus, que Basu me mostrasse onde era a nossa parada, porque
conosco vinham mais três jornaleiros e outros vários na mesma direção.
Apareciam por todos os lados, em grupos, em duplas, sozinhos... Bastava
apenas olhar ao nosso redor que víamos um “homenzinho azul” surgindo do
nada.
E lá estava ele, o nosso destino final e principal – DISTRIBUIDORA DE
JORNAIS AMARALINA – isto estava escrito na placa reluzente que se
postara acima de um toldo. Me iludi pensando que iria encontrar algo de
diferente , mas não, era uma casa comum, com três andares. Começo a
descrição pela distribuidora, que ficava no segundo, com as suas paredes
pintadas de verde cana e um pequeno portão na entrada, esta, coberta por um
toldo, vista de dentro três pequenos vãos a dividiam: uma salinha onde se
colocavam os jornais ainda virgens (os encartes amarrados por um cordão
bastante firme, enquanto as capas ficavam separadas, uns e outros sempre em
número de cinquenta); uma mini cozinha onde eram feitos os lanches do
pessoal, os que vendiam mais tinham privilégios, comiam mistos, sonhos,
pastéis, enrolados, e por aí vai, enquanto os que vendiam menos era pão com
ovo mesmo, ou até puro, garantido apenas o suco; e o último vão era um
quartinho que foi transformado em balcão, não para vender alguma coisa e
sim para prestar as contas dos jornaleiros. Outra andar ficava em cima da
distribuidora, o terceiro, nesta morava Bira, o dono. Na ultima parte, ao nível
do chão, embaixo da distribuidora, morava os pais dele.
Toda a obra coberta por grades, coisa que é normal em Salvador, até nos
próprios prédios de apartamentos as pessoas vivem enjauladas.
A única coisa que realmente diferenciava aquela cabana moderna das outras
era o amontoado de índios, ou melhor, de jornaleiros que ela tinha do lado de
fora. havia muita gente mesmo! Vinham de todos os cantos e se
aglomeravam ali, pessoas humildes que escolheram este trabalho por ser o
mais acessível; alguns não falam mais em família porque já não as tem,
outros falam mal; raros no meio se fazem sorrir por ter o afago domiciliar.
Encontram-se ali físicos e almas muito diferentes, por isso, cada solitário ou
37
Cristiano Sousa
grupo que vai chegando forma uma nova turma; o pessoal vai se dividindo,
cada alma se aproxima daquela que se combina melhor, senão se combinar
com nenhuma, fica de parte olhando a sacanagem. Em todos os lugares que
se amontoam pessoas pobres, de bolso e de espírito, é normal vermos os
verbos soltos pelo ar, não só o verbo como também algum cheiro de erva
geralmente há; uns sentam nas calçadas, outros encostam num muro que dá
de frente com a distribuidora, também tinham os que ficavam impacientes,
debruçados sobre o portão com a intenção de serem os primeiros. Mas eles
estavam ali, como eu também, a esperar que o "cacique mor" desse as caras,
o que não demorou muito pra acontecer. Era Bira que
vinha descendo de sua boa e velha (não sei se era) casa. Quase seis da
manhã, o pessoal começou a reclamar do, atrasadinho:
- Pô Bira! Olha a hora né cara! - Gritava um -.
- Desceu cedo, hein! - Que bela observação teve um outro. Eram só seis da
manhã !
E aos pedidos de “Quero tanto; me dá não sei quantos; o meu é trinta;
quarenta; cinquenta e lascou; cento e lá vai...” é que se defendia o patrão:
-Vocês sabem a que horas eu fui deitar?... Já eram quatro da manhã, “pais
véis!”, e tô levantando agora. Isso “qué dizê o quê”?... Que eu não dormi
praticamente nada, não é?! Ontem à noite o jornal demorou de chegar e os
“minino”, a maioria, nem vieram prestar conta.
O “jornal que demorou de chegar” que Bira se referia foi o do sábado à
noite, horário que vende jornais também. Basu tinha me falado sobre isso,
mas eu não acreditei, agora veio a confirmação. Vender jornais à noite, que
loucura!... Mas é verdade! Meu companheiro logo tratou de passar em minha
cara o que tinha dito:
- Tá vendo! Eu disse o quê a você? Agora acredita? Disse todo gabola,
fixando o seu olhar em mim.
- É, agora eu acredito. E digo mais. Vou “vim” também aos „sábados de
noite‟ vender jornal.
Todos se aglomeraram, houve um organizado tumulto em frente ao portão
com xingamentos, empurrões, simulações de briga, gesticulações ousadas,
mãos que solavam no pescoço, na intenção de dar uma “peba”, na cabeça pra
uma "lixa ou cascudos", ou mesmo na bunda pra tentar tirar quem estava na
frente.
38
O Jornaleiro
Bira abre a porta em meio àquela “zuadeira” toda para iniciar mais um de
seus dias de trabalho, e, o primeiro meu. Percebi que ele gostava de andar à
vontade, pois o seu traje de trabalho, pelo menos a uma primeira vista, era
apenas um short, e que por sinal, eu gostei, porque havia nele o símbolo do
meu time de coração.
Percebi também que já haviam pessoas dentro da distribuidora, isso de um
olhar rápido e curioso que passei antes da aglomeração do pessoal em minha
frente, e depois que Bira abriu a porta. Era o pessoal que trabalhava aos
sábados à noite, e não voltava para casa, uns porque não queriam ou não
podiam e outros porque não tinham lugar para morar, uma minoria.
Bira, sem mais demora, começou a distribuir os jornais, fazendo valer o
ditado que diz que tempo é dinheiro, ditado este que cai muito bem naquele
tipo de tarefa.
- Ricardo!
- Aqui Bira!
- Qué quantos?
- Duzentos.
- Galego!
- Aqui, quero cento e cinqüenta!
- Júlio
- Cento e oitenta!
- Gordo!...
Fiquei um pouquinho nervoso por ver muitos companheiros entrando e
pegando os seus jornais e eu ali, mofando, esperando chegar a minha tão
sonhada vez. Perguntei pro Basu por que ele não nos chamava logo, já que
estávamos bem à vista, enquanto outros que nem se preocupavam em dar as
caras eram logo lembrados; Basu esclareceu a questão me ensinando mais
uma regra básica, e que observando bem, serve não só para estes casos, como
para outros também; me falou com franqueza de coração que eu não
esperasse ser especial diante daquelas circunstâncias, que o distribuidor iria
chamar quem ele já conhecesse e sabe que vende muito, os seus melhores
empregados; aqueles que vendem mais vão primeiro, quem vende menos
depois. E novatos? Depende de quantos vender, é claro!
- E quantos você acha que eu posso vender, Basu? - Levantei os ombros
expressando a minha grande insegurança -.
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Cristiano Sousa
- Não sei! - Respondeu o parceiro - Mas pegue dez, que é a quantia que
geralmente pegam quem está começando.
Dica super necessária colega! Foi exatamente o que fiz quando, finalmente,
chegou a minha vez. Assim que a grande maioria saiu, foi que o idiota do
Bira veio lembrar que havia um novato naquela “alcatéia”, e só lembrou
graças ao Basu a quem ele chamou.
- Ah! Vocês estão juntos, né? Como é mesmo o seu nome?
- Nicolau. Mas me chamam de Nico.
- Seja bem vindo “pai véi”.
- Vou precisar deixar alguma coisa em sua mão?
- O que você quer dizer, documentos! Ah! não, não. Tá com Basu eu confio.
Quantos vocês vão querer?
- Eu vou querer o de sempre, setenta - Indagou logo Basu -.
E num segundo suspiro acrescentou
- E pra ele vai ser só dez... sabe né, é o primeiro dia dele.
Bira pediu a um dos vendedores que estavam dentro da distribuidora que
abrisse o portão, para que nós pudéssemos entrar. Existia para isso um
ajudante, só que não se encontrava no momento; e como ele não podia sair
do balcão...
- Pega ali, vocês dois, aquelas duas malas ali, ói. Cada qual tem cinquenta
jornais, vocês vão me devolver vinte. Depois venham pegar as capas. - Com
sua canetinha de anotações metida entre os dedos, apontava para o canto
onde estavam metidas as “malas” de encartes dos jornais -.
As "malas" eram pesadas. Pegamos duas e saímos para o exterior do
recinto, como foi ordenado. Levamo-las a um canto do mural em frente a
distribuidora, colocamos sobre a calçada, procuramos um pedaço de vidro
para que pudéssemos romper a corda que as prendia e dividirmos os encartes.
Eu, que esperava tudo na mão, perguntei a Basu por que não entregavam
pronto, e a resposta dele foi esta:
- Ah! Deixa de ser preguiçoso!
O tom da voz dele foi grave mas a sua fisionomia irônica quando me falou
daquela maneira. Enquanto fazíamos o trabalho ele explicava o porquê dos
jornais não virem encapados, dissera que antes era assim, só que hoje em dia
os distribuidores e muito menos os fabricantes não se importam em melhorar
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O Jornaleiro
a qualidade do serviço dos vendedores, o que querem mesmo é embolsar o
dinheiro.
- E porque os jornaleiros não reclamam?
- Como? A quem? Nós vendedores não temos vez e...
- Mas como não?... E se cair alguém aqui doente, não dão socorro pelo
menos?
- Hum! Que socorro rapaz, tá sonhando é? Tá pensando que isso aqui é o
quê? Não espere por ajuda de ninguém, não viu? Quem, algum dia precisar
de ajuda de Bira, vai morrer esperando; de Bira e do Gazeta principalmente!
Pega lá as capas.
Dirigi-me novamente para Bira e lhe pedi as capas dos jornais. Me deu a
quantidade certa: oitenta.
Fiquei com dez; dei os outros setenta ao camarada a partimos. Perguntei se
não deveríamos encapar os jornais; o companheiro me disse que não, que era
perda de tempo, e tempo é dinheiro.
Foi próximo as seis horas e meio que, pela primeira vez, saí vendendo
jornais. Não sabia naquele instante se deveria me orgulhar, chorar, reclamar
da sorte ou sei lá o quê; sabia apenas que me via, eu mesmo, muito feliz por
estar consciente que iria contribuir com o meu suor dentro de casa. No que
diz respeito a propaganda, Basu tratou logo de ensinar-me umas das coisas
mais importantes, um bom grito para anunciar a chegada do jornaleiro, no
caso, eu, com os meus respectivos jornais:
- É o seguinte “meu irmão”, vê se grita bem alto e forte, que é pra “esses
prédios tudo ouvir”.
E fazia a sua parte, já com aquele entusiasmo de vendedor experiente:
- Olha o jornal!... Olha o Gazeta!...
Eu, ainda meio acanhado, querendo entrar logo no ritmo, ensaiava, fazendo
o melhor que conseguia no momento:
- Olha o jornal! Jornal! olha o jornal!
- Pra começar tá bom, mas você precisa melhorar um pouquinho. Olhe,
quando você passar perto de algum adulto, ou de um carro que tenha gente,
espere pra ver se querem comprar, viu?
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Cristiano Sousa
Basu decidiu, pra minha sorte, que naquele meu primeiro dia iria me ajudar.
Andei junto com ele a manhã toda; no ponto em que o indivíduo vendia,
permitiu que eu ficasse também, matracando a sua vendagem. Ficava atento a
cada gesto que ele fazia, pra tentar pegar as manhas; prestava atenção aos
prédios, os números dos apartamentos; as vezes, quando ele saía pra ir a um
desses “gigantes”, me deixava em seu ponto, que por sinal era muito bom.
Quando algum carro parado na sinaleira chamava, dando a entender que já o
conhecia, ele permitia que eu fosse vender apenas com a sua ordem, porque
os clientes tinham que saber, e ver principalmente, que foi ele quem mandou,
senão muitos não compravam. Haviam momentos que eu me arriscava a
andar ao redor do ponto pra não atrapalha-lo muito, e vendia, de vez em
quando um ou dois, já me acostumando com o gritinho:
- Leia o Gazeta! Leiaaaa!...
Depois que acabei de vender os meus, graças a nós dois, eu o ajudei (coisa
que não era necessária) a vender os dele. E fomos levando assim o trabalho
até que terminamos, mais ou menos umas dez horas. Deixamos a sinaleira (o
ponto), voltamos à distribuidora. O tal do Bira me dava os parabéns por eu
ter vendido tudo, pois era coisa rara marinheiro de primeira viagem conseguir
tal façanha. De merrequinha na mão, fomos para o ponto (de ônibus) e de lá
para os nossos, mais queridos que nunca, lares.
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O Jornaleiro
III - SEM COMPROMISSO
O
uvindo aquelas amolações de Camile ao meu ouvido, nem consegui
almoçar direito; já tinha tomado banho, dei umas beijocas em minha
velha e dirigi-me para o quarto desta, onde, sem preocupações
futuras, me prostrei totalmente sobre a cama de casal, deixando-me cair,
como uma jaca madura de seu galho.
Despertei do sono apenas de tardinha com o barulho do capeta Tovinho
aprontando mais uma das suas. Eram aproximadamente cinco da tarde; a
janela do quarto estava com a metade aberta, deixando entrar as faíscas que
ainda restavam deste nosso sol escaldante que queima o solo e tudo que há
acima dele, todas as tardes, fazendo com que nós, peixes da terra, fiquemos
tostadinhos todos os dias de verão.
Depois que dei uns cascudos no moleque:
- Seu nojento! Foi do que ele me gritou.
Coloquei os pés para fora da cama, levantei o corpo, cheio de preguiça ao
ponto de ficar sentado na cabeceira; por curiosidade, estiquei o braço e pus a
mão na janela abrindo-a mais, depois levantei-me totalmente e debrucei
sobre a parte aberta com a cabeça apoiada nos braços. Tudo que comecei a
ver não me trouxe novidades. Havia um “corre-corre” de gente pra todos os
lados, parecia que estávamos nos preparando para uma guerra; o cordial povo
da Rua do Sapo toda vez que me flagrava mandava um alô:
- Nico, tá com sono? Vai dormir meu filho!
- Ah!... Não, não! Eu acordei agora minha vó; é porque a minha cara é feia
assim mesmo. - Era a minha vizinha da frente que, por respeito à sua idade
avançada eu a chamava como praticamente todos da rua, de minha avó -.
- E aí Nicão! Vai pro baba hoje? Os caras tão no campo. Este era um colega
de rua, o Jorge.
- Hoje não! Hoje eu tô na maresia.
- Ô... seu descarado, vai pro totó? O Dido disse que não perde pra ninguém
hoje...
Ói, ele disse também que você é fraco; que um magricelo como você “num”
ganha dele nem aqui nem na China, e tá te esperando lá.
Este era o “Cara de boi” que, em sua casa ao lado da minha, dava este aviso,
amassando a face na grade do recinto. A figura de quem ele se babava pra
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Cristiano Sousa
falar era a de um de nossos coleguinhas, outro gabola, que se achava melhor
em tudo, e por causa do seu porte físico melhor que o meu vivia me
ridicularizando, não entendia bem o por que, eu não sou tão feio como ele
dizia... Opinem vocês mesmo: me pareço um pouco com um índio em alguns
aspectos como cor de pele (aquela pele bem amorenada do bronzeado do
"astro - rei"); tenho o nariz um pouquinho achatado; braços magros como o
resto do corpo; minha boca não é grande; meus olhos são como os de quase
todo mundo (castanhos claros) e até que bem formadinhos, mistura de
japonês com africano, mas suficientemente abertos; o quê os outros tinham
de motivos pra zombar de mim?... Falemos agora do meu charme, expresso
quase todo em meus cabelos, que é a loucura das mulheres: longos (abaixo
dos ombros); sem uma volta; de um brilho natural, que, quando pequeno
minha mãe fazia franjinha, esta eu não tiro até hoje; isso sim me deixa
parecido com os meus ancestrais indígenas. Não sei se gozavam de mim por
causa do físico; talvez fosse o meu jeito, assim, todo calmo, sem grandes
preocupações, sem grandes vaidades, como se vestir bem por exemplo;
amigo de todo mundo, não ser de confusão, e outras coisas mais que não
agradam a muitas pessoas. Apenas uma pessoa eu tinha certeza que gostava
de mim como era, e foi a face que mais gostei de ver naquele final de tarde.
- Ei, psiu... Vem cá!
- Vem cá você! Parece que nunca entrou aqui em casa.
- Ah!... Vem cá, que sua casa é muito abafada.
- Vou considerar isso como uma desculpa. Espere aí.
Atravessei a "porta" do quarto tão rápido quanto a da sala, numa maneira de
andar que não desse muita bobeira, e fui de encontro à minha gata, a Gorethe.
- Chegou que horas? - perguntou-me -.
- Faz tempo!... Já dormi! já tudo! E você tava aonde?
- Em casa. Onde mais teria de ser?
- Tô brincando. Esquece!
- Vamos dar um passeio hoje?
- Não sei, meu velho vai trabalhar amanhã.
E ficamos nesse “lero-lero” por alguns tantos minutos, até que resolvemos
nos recolher, cada um ao seu canto, pois ela acabou concordando que farra
naquela noite iria perturbar a cabeça de nossos pais. Ficamos mesmo nas
bitoquinhas.
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O Jornaleiro
Gorethe! Ah!... Gorethe!... A bela menina dos olhos meus, e que me
enlouquecia com os seus cor de mel. Com sua pele morena e que mantinha o
equilíbrio entre o sol e a raça; boquinha perfeita, pequenina, que encaixava
perfeitamente com a minha; o narizinho então! nem se fala; os cabelos não
eram tão longos que chegassem ao meio das costas, e nem tão lisos quanto os
meus. A mim só parecia a magreza de corpo; mais nova um ano incompleto.
Era de família humilde também. Tinha chegado do interior faz poucos anos;
nos conhecemos na rua mesmo. Certo dia, voltava do baba com a galera,
quando senti a turma meio que agitada e logo desconfiei que se tratava de
“sangue novo” no pedaço, na curiosidade de saber quem era o filé, colei com
a rapaziada que me chamaram logo de “entrão”.
- Se saia, Nico!
- Depois se finge de tímido.
- Nós vimos o broto primeiro, cara.
“Essa menina deve ser bonita, hein!...” pensei isso no momento de desprezo
dos colegas, mas, quando a vi não me empolguei tanto.
Começamos a nos conhecer melhor e aí sim, eu ia percebendo aos
pouquinhos as suas qualidades; claro que quando a vi pela primeira vez a
achei bonita, porém, o que valeu mais pra mim foram qualidades morais e
sentimentais; coisas como meiguice, sinceridade, responsabilidade e
vergonha na cara não se encontram jogadas por aí, em qualquer babaca da
vida. O mais hipócrita dos seres humanos é aquele que gosta de impor
normas absurdas aos mais fracos, e o mais idiota é aquele que aceita estas
imposições.
Minha velha, logo que entrei, apontava de longe, com uma caixa de isopor
grande na cabeça, em camiseta e short jeans e com algumas bandejas na mão;
ao lado dela a pequena Sula, também com trajes leves, vinham pra casa.
Tinham acabado de chegar da praia, de mais um fim de semana de trabalho
duro. logo que as avistei, corri para ajudá-las a carregar os trambolhos. A
pequena estava com uma outra caixa de isopor, menor, de alça ao ombro, e
em chinelos de borracha.
- Mãe! - Peguei a caixa de sua cabeça -.
- Ô, meu filho, me ajuda aqui com isso também!
- Como foi hoje de vendagem?
- Não tive novidades; apenas um pouco melhor do que ontem. E você?
- E eu, o quê?
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Cristiano Sousa
- Como andou hoje no jornal?
- Ah!... Fui normal também; vendi dentro da média... Sulinha! ...
Entramos em casa e começamos a falar dos altos e baixos do dia:
- Menino, você não imagina o que me aconteceu hoje.
- O que foi?
- Quase que eu perco todo o dinheiro do dia.
- Como?
- O ônibus cheio, quando nós viemos; o cara passou e meteu a mão no meu
bolso.
- Vixe! e aí?
- E aí que eu gritei, fiz o maior escândalo antes que ele chegasse na porta da
frente e saltasse. A minha sorte foi que uma alma iluminada que tava na
frente segurou o descarado, senão... Ninguém se moveu pra “mim” ajudar;
vendo que eu tava desesperada, não dava pra correr atrás, todo mundo
dizendo que pensou que eu “tava brincando”, já viu?
- Ainda bem que não aconteceu nada, né?
- Se é?
- Mas, comigo também aconteceu uma coisa parecida.
- O que foi?
- Hoje, quando estava terminando, quase que roubo a mim mesmo.
- Como menino?...
- Eu estava voltando pra distribuidora quando um senhor de idade veio
comprar jornal. Ele me deu uma nota de cinquenta, eu dei o jornal e o troco
logo depois; mas quando fui prestar atenção ao dinheiro que estava em minha
mão, não tinha quase nada; aí percebi que tinha passado o troco errado.
Minha sorte é que sei onde o freguês mora e fui lá, pedi pra esposa chamar
ele; depois de muita insistência o danado veio, e não queria me entregar o
dinheiro.
- E aí? O que foi que você fez?
- Eu insisti até que ele arranjou uma desculpa e me deu o meu dinheiro.
- Fez bem.
- Sabe mãe, nunca pensei que pessoas que morassem em casas tão bonitas,
tão "chiques" como aquela, quisessem passar um pobre sofredor, como eu,
pra trás.
- É meu filho! Pra você ver como as coisas são.
“A batalhadora” é assim que eu particularmente chamo a minha velha mãe.
Esse codinome dizia praticamente tudo de sua pessoa, que, segundo ela
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O Jornaleiro
mesma nos contava, nunca teve moleza na vida. Filha de família pobre do sul
da Bahia, veio para Salvador ainda pequena pra trabalhar na casa dos
"brancos", deixando a sua terra, sua família, que, segundo ela, era imensa;
deixando sua infância e principalmente muitas saudades para trás; trazendo
na bagagem coragem, esperança, sonhos, ingenuidade e poucas roupas.
Trazida por uma família rica, que precisava de alguém que tomasse conta de
seu apartamento na Barra. Uma empregada. Tinha lá os seus doze à treze
anos, mas fazia de tudo. Sofria muito na mão desta família, nos contava; se
esquecia de limpar alguma coisa, por mais banal que fosse, levava uma
bronca; se não fazia comida direito, não comia dela nem da próxima que
saísse, mesmo que certa; se brincasse com as outras crianças sem pedir,
apanhava; se quebrasse algo, também.
Só saiu deste regime de sofrimento quando, um dia foi levada por amigos,
os poucos, à uma festa no bairro do Campo Grande, ali na praça, que foi onde
conheceu o meu pai. Tinha já os seus vinte anos; a família dos "barões" não
quis deixá-la ir embora, mas não teve jeito, meu velho a levou assim mesmo.
É descendente de uma família tradicional indígena, aliás, se tornou uma
belíssima índia, de cabelos longos (franjas); pernas bonitas, que ainda as tem;
olhos bem formados como os meus; corpo magro, mas bonito; boca e narizes
não tão finos, mas bonitos também.
Todos diziam que eu era a sua cara e se fosse mulher seria igualzinha. O
melhor de tudo é o seu coração bondoso e forte.
Continuamos a nossa conversa até que percebi a falta de alguém, o meu pai
não era porque já sabia exatamente onde ele se encontrava.
- Mãe, cadê a Camile? Eu não vi ela desde que cheguei.
- Ah!...Você não sabe!...Agora deu pra andar com urna turminha aí de cima,
da invasão nova que fizeram; disse que arranjou um namorado naquelas
bandas.
- Quem? A Camile?
- Ela, sim senhor?
- Depois fica aí, tirando onda de certinha. Não que, namorar seja uma coisa
errada, mas, com o pessoal dali, humm!... Não sei não, hein! A Camile está
ficando muito desleixada, não para mais em casa, não vejo mais estudando...
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Cristiano Sousa
- Não é que ela disse que já estava passada, mesmo o ano não tendo
terminado?... E que faltava poucos pontos, parece que... em matemática ...
Foi um negócio desses.
- E pai? Saiu que horas?
- E eu sei lá menino! Chegou ontem com a cara cheia e quando passei já vi
pior.
Cessamos um pouco a conversa porque mainha estava entrando no
banheiro, que ficava do lado de fora da casa, no quintal mais precisamente,
isso depois que Sula terminou de tomar o seu banho. Antes de entrar
totalmente, me pediu que fosse ver em que bar o velho estava. Andei um
pouquinho, passei por uns três ou quatro botecos, até que o avistei em um
lugarzinho pequeno; uma casa onde se fazia da melhor janela o bar. Também
só vendia o principal: a pinga . Havia ali umas poucas pessoas,
acompanhando painho em sua mal aventurada necessidade, o seu esporte, o
seu vício: a bebida. Aproximei-me devagar, reconheci dois companheiros do
velho que costumavam andar lá na rua, o primeiro era o sujeito mais idiota
que já vi em minha vida, um tal de Dadau, que tirava onda de gostosão,
mexendo com as meninas da rua, só andava arrumadinho, parecia querer
esconder a feiura de corpo e alma; ele, que na maioria das vezes, ia chamar o
seu "companheiro" para os bares. Não era casado, a única mulher que
conseguiu viver por alguns anos já o largara há muito tempo, pois o
descarado tentou estuprar a única filha, de nove anos, que tiveram. O outro
que estava com painho era o senhor Benedito (O Bené), pai de meu
companheiro de vendagem. Os dois me notaram, pois estavam de frente para
a rua, menos embriagados que painho, que não me notou porque acabava de
descer mais um gole de sua caninha. Então eu o chamei:
- Pai! - Usei a mais serena das vozes.
O homem desceu o seu copo de pinga vazio ao balcão, um dos presentes
parou de conversar por curiosidade, e depois os outros, mas logo voltaram.
Ele, por sua vez, veio ao meu chamado, totalmente tomado, quase caindo,
sem consciência segura. Falei algo sobre os meninos, ele desconversou;
chamei para casa, negou. Então insisti:
- Vamos pai! Mainha quer falar com o senhor uma coisa importante.
- Meu... Filho... Ói... Vá pra casa que eu já vou!... - Falava com dificuldades
o homem, todo embriagado -.
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O Jornaleiro
Eu segurava em seu braço, mas ele puxava tentando fugir.
- Vamos pai! Depois o senhor volta, Vamos!
-E... - Deu um arroto e em seguida soluçou -. Eu tô... do. Deixa eu pagar a
co... nta.
- Vai Carlão, o seu filho tá te chamando rapaz! Você vem pagar depois. Acudiu o senhor Bené -.
É constrangedor para um filho que se preza ter que carregar o seu pai
naquelas condições. Não que eu tivesse vergonha do homem, mas tinha de
seus atos. Deste eram os meus falecidos avós que me contavam a história.
Diziam que ele tinha nascido com o cú pra lua, pra ser vencedor, que foi para
isto que o criaram. Colocaram-no nas melhores escolas particulares,
compraram-lhe as melhores roupas, comia do bom e do melhor...mas quando
cresceu os decepcionou. Era inseguro, desobediente, faltava às aulas da
UFBA para farrear, lamentavam; por isso não terminou o curso de medicina.
Foi em uma dessas farras que conheceu a minha mãe, e
daí por diante não se separaram mais. Tinha apenas uma irmã, que não vê
desde que foi morar no Beirú, chamava-se Carmelita.
Estava desgastado, mais pela bebida que pela idade. Tinha mais de quarenta
anos; cabelos ficando brancos, não era de pele clara mas chegava perto. O
seu corpo era bem formado, não tendo a gordura da velhice, mas sim a da
cerveja; de estatura média, superando um pouco a de minha mãe; olhos
castanhos, mortos da genética; boca a que eu puxei; orelhas pequenas e
cabelos encaracolados de tanto cortar; pernas tortas para dentro, mas, fortes
do bába do fim de semana.
Por mais que eu tentasse não conseguia levar o meu pai para casa porque o
velho insistia em não ir. Eu o puxava e ele me empurrava, até que um anjo de
Deus decidiu ajudar. Mesmo contra a sua vontade, eu e um senhor que não
conhecia bem trouxemos painho, à força, um em cada braço. Já eram vinte e
uma horas. Deu trabalho pra levar o homem ao destino desejado.
Conseguimos finalmente. Só faltava colocar o „cabra danado‟ pra dentro.
- Vamos Carlão! Entra pra dentro de casa rapaz! - Dizia o meu ajudante -.
- Entra pai, vamos! - Eu lhe suplicava -.
- Painho, “entla”! - Até o Tovinho ajudava -.
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Cristiano Sousa
E era preciso muita ajuda mesmo, pois, não é que o danado se segurou para
não entrar! Colocou uma das mãos na porta e com a outra segurou na parede,
impedindo assim que nós o colocássemos para dentro de casa. Mas, com
muita insistência de todos e a esperteza da velha que fez uma coisa muito
simples, mas, eficaz, abrir o lado da porta que estava sendo seguro, aí que
conseguimos.
O cara estava tão "caído" que nós o jogamos ali mesmo, no sofá, onde ele
dormiu. Antes disto acontecer, pedimos desculpas ao desconhecido e muito
obrigado.
- De nada, senhora! - respondeu, se dirigindo especialmente à minha mãe Amigo é pra estas coisas. Se precisar eu tô ai. Aplicou sobre minha mãe
aquele olhar de pidão desavergonhado e se foi. Não disse nome nem
endereço, só se foi.
E passamos mais este dia. O café da noite foi com uns pastéis que sobraram
da vendagem na praia; a janta da velha, já que o velho dormia, foi com o
feijão do dia anterior porque Camile não fez o deste dia.
Passaram-se vários outros dias quando vim ter novamente notícias desse
cara, foi quando a velha disse que o tinha encontrado no sábado de feira. Dou
a ela a palavra, o papel e a caneta:
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O Jornaleiro
IV - A PALAVRA, O PAPEL E A CANETA
A
cordei cedo, como todos os dias, para fazer o café do meu filho,
então não dormi mais, esperei dar sete horas, quando abre os
supermercados e a feira já está organizada. Subi.
Desde que Nico começou a vender jornais levo Sula à praia pra me ajudar e
o Tovinho ao mercado. Quando saio, quase sempre não encontro um pé de
gente na rua, muitos ainda estão acordando. Vou cedo pra voltar cedo.
Chegando no largo, a mesma coisa, poucas pessoas por causa do horário, mas
logo-logo vão aumentando os passos e repassos; muitos ambulantes ainda
estão armando as suas barracas; as bancas de jornais e revistas já estavam à
postos; as janelas dos poucos e pequenos prédios do bairro vão se abrindo; as
crianças e pessoas da rua vão se levantando das calçadas; as lojinhas vão se
abrindo, armarinhos; o pequeno posto médico com a faixa de - posto de
vacinação - dependurada em sua frente; os vagabundos sentados pelo meio
das calçadas. E assim, de pouquinho em pouquinho, ia acordando pra vida o
Bairro do Beirú.
Neste dia, se atrasou um pouco o gerente da “Casa do Povo”, o maior
supermercado do bairro, coisa que originou um grande tumulto na porta da
espelunca. Foi o maior auê, porque além do gerente, não chegava nenhum
funcionário para acalmar os ânimos do pessoal. Foi um empurra-empurra pra
lá, um xinga-xinga pra cá... ninguém se entendia; e quem estava de fora
botava mais lenha na fogueira:
- É isso aí fulano de tal, não coma pilha de ninguém!...
- Mete logo a mão na cara!
- Se fosse eu, não deixava que me xingasse assim !
Principiava-se um início de briga, sem quê nem por quê, quando finalmente
abriram o recinto. E eram todos velhos desconhecidos novamente. Com
certeza já havia chegado o tal gerente. A massa, agora mais calma, entrava
na "Casa do Povo" e junto com ela ia eu, mais levada pelos empurrões que
por minhas próprias pernas, sem largar das mãos do Tovinho. Foi uma zona
só. As pessoas colocavam suas sacolas (quem as tinha) no guarda volumes e
seguiam, o que provocava mais demora pois a entrada era curta e ficava
completamente congestionada
51
Cristiano Sousa
Finalmente entramos legal. Todo mundo tratando de procurar os seus
produtos; neste dia o lugar estava tão cheio que os carrinhos foram
rapidamente pegos e esgotados, quem ia chegando tinha que esperar outra
pessoa passar no caixa para conseguir um pra colocar as compras, até a
cestas estavam todas na mão do povo, estas, dispensáveis para quem faz
compras de mês ou até mesmo de semana. Olhamos as prateleiras que, em
sua maioria, haviam produtos que nos interessavam; levamos quase uma hora
dentro do supermercado, coisa de impressionar, primeiramente porque não
era normal acabarmos tão rápido, e outra porque estava lotado, o que eu acho
uma falta de respeito conosco, consumidores, que temos que ficar nos
debatendo dentro de um lugar pequeno como aquele, e acabar comprando
produtos que podemos achar à venda nos camelôs, barraqueiros e feirantes,
mais baratos; outra falta de respeito maior é colocarem produtos de terceira
para o povo comprar, e neste caso eu incluo todo o Brasil, por quê não?
Produtos como feijão, arroz, farinha, açúcar, por exemplo, que são
ensacados, não há dias em que chego no mercado e não encontro vários
furados, derramando e sujando as “prateleiras”; outros como batatas, tomates,
cebolas, pimentões, maçãs e outras frutas, geralmente vejo mais estragados
do que bons para o consumo. Esse é o Brasil do nosso milênio? Entregando
todo seu ouro para os bandidos ?
Eu fazia compras de quinze em quinze dias, maneira que achava melhor e o
dinheiro me permitia. Estavam comigo duas sacolas grandes cheias e mais
alguns pequenos sacos; não achei justo que eu e o meu pequenino
carregássemos aquele peso todo sozinhos, na cabeça, e chamei um daqueles
garotos que fazem carreto na porta dos mercados para ganhar a vida; nos
bairros de ricos até que eles são um pouco organizados porque muitos são
contratados pelas próprias lojas, mas em bairros de pobres não; aqui são os
próprios garotos que se encarregam de arranjar os seus carrinhos de mão,
velhos ou seminovos, e se oferecerem para levar as compras, sem
compromisso nenhum com os mercadinhos ou supermercados. Chamei um
garoto, mas veio um senhor de idade, lá pros seus cinquenta e poucos anos.
- Ô...Por que o moleque não veio? Aquele que eu chamei? - Perguntei ao
senhor -.
- É porque ele tava esperando uma freguesa sair, ai mandou eu “vim”.
- Então vamos!
Pegamos as sacolas com as compras e colocamos no carrinho de mão.
52
O Jornaleiro
- Quanto o senhor cobra pelo carreto? Perguntei metendo a mão nos trocados
que sobraram das compras.
- Dois contos!
- Dois contos?... Pôxa!... Tá caro!
- É o que todo mundo cobra senhora. - Mostrou-me uma expressão temerosa,
de medo, talvez estivesse pensando que eu fosse dispensar os seus serviços, e
baixou o preço -.
- Um e cinqüenta tá bom?
- Não... Deixe! Eu te dou dois mesmo; não tem problema.
Tirei o dinheiro da bolsinha que carrego sempre e dei uma moedinha ao
companheiro e mais uma ao pequenino, que deveria ser entregue quando os
dois chegassem em casa, porque eu ainda precisava comprar mais algumas
coisas e fui procurar.
Tovinho guiou o senhor até a nossa casa e eu continuei a fazer o resto das
compras, pequenas coisas que não gostava de comprar dentro da "Casa do
Povo Supermercados". Passei nas barraquinhas de cebola e tomate, na de
abóboras e por fim entrei na casa das farinhas onde os preços são variados.
Logo na entrada joguei um punhado de farinha na boca, a mais "ralé" e que
mostrava na tabela o preço menor, não gostei; experimentei os outros tipos e
preços, comprei a de cinqüenta e cinco centavos, que era a segunda mais
barata. Paguei a farinha, e, quando virava para sair do recinto, aparece em
minha frente, ele:
- Dona Jandira. Oi!
- Oi! ... É o senhor daquele dia?... Mas...
- Sim, sou eu sim. Mas o que?
- Como sabe o meu nome?
- Seu esposo! Eu já o vi falar seu nome várias vezes. E por falar nele!...
Como é que está?
- O senhor deveria saber; não bebe com ele?
- Aí é que a senhora se engana... Deixa que eu ajudo a senhora. Pegou
gentilmente algumas das sacolinhas que estavam em minhas mãos e fez
questão de me acompanhar.
Estava sozinho; disse que tinha chegado da rua naquela mesma hora. Fomos
conversando da casa das farinhas, que fica na Rua Bahia, até a minha casa,
que todos já sabem onde fica.
53
Cristiano Sousa
Era um senhor muito bem apresentável; as duas vezes que o vi (esta foi a
primeira) sempre se destacou dos outros homens. Se esforçava pra manter
sua conversa a nível da roupa, mas faltava alguma coisa; foi gentil e educado
comigo, não sei se era de costume ou só para agradar. Aparentava ter
sessenta anos; cabelos brancos; alto como uma jamanta mas gordo como um
porco; de cara larga, onde se afundavam os seus olhos azuis; bigodudo e sem
barba; de cabelos curtos e enroladinhos que contrastavam com os seus braços
e pernas longas; Jeitão meio sério, com a sua cor branca que se avermelhava
em sua face fechada quando passava defronte as demais pessoas.
Me acompanhou até em casa e finalmente disse o seu nome e onde residia:
- Marcelo Fernando.
- Ah, sim! Obrigado, viu, senhor Marcelo Fernando.
- De nada! Vou repetir a frase que eu disse antes: amigo é pra estas coisas.
- Então quer dizer que é o senhor que mora na vinte e nove; ali na subida da
primeira ladeira.
- É! E eu já vi a senhora passando por lá várias vezes.
- É?... Eu costumo de vez em quando passar por lá.
- Até mais! - Gesticulou com a mão direita um tchau -.
- Até!
Quando o senhor Fernando foi pra casa, comecei a conferir as compras pra
ver se estava tudo certo. Estava. Perguntei a Tovinho se ele já tinha pego as
merendas que comprei pra ele (pergunta desnecessária). Estavam faltando
dois iogurtes da embalagem de meia dúzia e se eu desse mole ele papava
tudo e não deixava para os outros. Perguntei também se ele pagou ao
carregador; me disse que sim.
Era assim o meu caçula, pintão, mas honesto. Fazia a alegria da casa com as
suas brincadeiras. Quando aprontava, eu o repreendia, mas depois lhe fazia
carinhos; o seu maior alvo de desavenças era a própria irmã, a Sula, que ele,
se não tivesse motivos arranjava, para uma boa "briga"'. O mais importante é
que não desrespeitava ninguém, e as suas traquinagens não eram de mau
gosto e que prejudicassem.
Dos dois filhos homens foi o que puxou ao pai, a cara e a coragem (a deste
último já
54
O Jornaleiro
esquecida). A sua pele também se igualava a de Carlão, e o resto do corpo,
como se fosse o meu esposo em pequeno; o próprio dizia isto e nos mostrava
fotos de sua infância, a única exceção foram os cabelos que saíram mais para
os meus.
55
Cristiano Sousa
V - IMPREVISTOS ACONTECEM
M
ais um dia de trampo. Aumentei a minha quantidade de jornais
consideravelmente, pegando duzentos. Basu seguiu a minha
ascensão e estava pegando quinhentos só em um dia. A quantidade
de fregueses também aumentou; eu já era conhecido do pedaço, coisa boa
para evitar encrencas com os colegas de profissão. Bira, a cada dia que
passava, ia gostando mais de mim; logicamente, estava vendendo mais! A
única coisa que ainda não tinha conseguido foi um ponto, mas, isso era
questão de tempo.
Nesse dia, peguei os jornais com Basu, como de costume, mas não desci
com ele e sim com Paulinho e Cézar, dois andarilhos como eu. Basu foi de
Kombi para o ponto, porque a sua quantidade de jornais era esmagadora
comparada a nossa.
Andamos, os três colegas de profissão, sem rumo certo a seguir, e com um
único objetivo que era vencer mais um dia de batalha. Os dois companheiros
tinham o destino mais distante que o meu, por isso na volta pegavam carona
com Bira. Fomos falando sobre coisas fúteis do dia anterior.
- Foi assim que consegui conhecer o freguês. Terminara um discurso o Cézar.
- Rapaz, e eu! - Exclamou Paulinho - Ontem dois pivetes me pediram
cinqüenta centavos, não tinha ninguém na hora; foi ali, na frente da igrejinha,
rapaz!... Ainda me disseram na cara dura que é “pra gente pegar um
baseado”.
- E você deu? - Perguntei afinal -.
- Não dei, não! Quiseram até me bater, eu não comi nada, caí pra dentro.
- E aí? - Dessa vez a duvida era de Cézar -.
- E aí que um eu derrubei logo, porque era fracote, o outro, um pouquinho
mais forte, ainda rasgou um jornal meu.
- E você brigou com os jornais na mão? - Perguntei novamente -.
- Não rapaz! Eu joguei eles no chão; eu só tava com uns três, assim... - E
remexia a mão, solta dos jornais por um instante, na intenção de nos dar uma
ideia de quantidade-.
Ficamos ansiosos para saber o final da narrativa, e ele finalmente chegou lá:
- Eu sei que acabou um policial chegando e espantando os pivetes.
56
O Jornaleiro
- Outro dia (observou Cézar) um pivete pediu dinheiro a um jornaleiro, ele
deu, aí o pivete queria todos os dias, quando negou uma vez, o pivete correu
atrás e só não pegou porque foi pra junto do módulo e falou com um policial.
- Eu tam...
Fui interrompido pelo grito de um porteiro, que às ordens de seu patrão,
queria comprar um jornal.
Paulinho, com a sua malícia de veterano, apesar de ser jovem, percebeu a
intenção do rapaz antes que ele à manifestasse e correu na frente.
- Você é „matraca‟ né ? - Gritamos eu e Cézar, sem mágoas -.
Deixamos ele e continuamos. Chegou a hora que Cézar e eu decidimos nos
separar, ele adiantou à trotes largos enquanto virei a esquina na entrada da
Piauí, lá eu tinha alguns fregueses. Parei em uma agência bancária, onde
havia feito um freguês dias atrás. Perguntei por ele ao vigilante que duvidara
da minha honestidade e só me deixou entrar porque descrevi a pessoa. Fiz
uma observação a respeito dessa cena.
- Você não pode barrar ninguém que entra aqui não. Sabia?
Me disse que era ordem, pra evitar assaltos, que ultimamente estavam
acontecendo muitos assaltos à bancos. Que coisa! Só por causa do uniforme
de jornaleiro, que segundo me lembro, nunca vi nas páginas dos jornais por
ter assaltado bancos.
Apontou-me a escada e "ordenou" que eu subisse até o primeiro andar onde
trabalhava o meu freguês:
- Obrigado! Falei.
Entrei no banco. Movimento pra cá, movimento pra lá; tira dinheiro,
deposita; abre conta, fecha; faz negócios, desfaz. Em meio a tudo isso, segui
em direção a indicação do vigia; subi a passos largos e rápidos, depressa,
pois, como todos naquele recinto, eu estava querendo lucrar, e quanto mais
rápido executasse o serviço melhor, mais chances de se ganhar dinheiro.
No primeiro andar avistei logo o cara, o bancário. Estava sentado em sua
respectiva cadeira, parecia estar muito ocupado com a fila de pessoas que
aguardavam a vez, e era realmente muita gente; dava pra se ouvir queixas de
todos os lados:
57
Cristiano Sousa
- Essa merda desse banco! Toda vez que eu venho tá assim. - Dizia um, com
um ar de cólera -.
- Ô, mais não botaram o homem no poder? Agora que se danem!-Replicou
um outro-.
- Privatizaram o Brasil, agora tudo está nas mãos dos estrangeiros. Fomos
vendidos!
Observações como estas faziam os clientes.
Conferia um cheque pelo computador o ocupado bancário; jovem, com uma
cara de capacho, mas astucioso e vivaz. Trajando o uniforme do banco.
Quando fazia esta operação passou um rápido olhar pela sala e me avistou.
Fez sinal para que me aproximasse, foi o que fiz; me pediu o jornal e eu o
entreguei em sua mão, ele agarrou com vivacidade e jogou sobre a mesa onde
estava assentado, no intuito de continuar o seu trabalho. Disse-me que
voltasse depois pra pegar o dinheiro, que ele "estaria ali o dia todo". Desci a
escadinha e fui em direção a saída da agência bancária, sem tirar o peso dos
jornais de cima da cabeça. O fato curioso que fiquei matutando por algum
tempo foi que, dos quase sete dias que vendo a este freguês, é a primeira vez
que faço-o deste jeito, de todas as outras vezes ele sempre me pagou na hora,
mesmo com a filona.
Continuei a minha procissão. Logo na saída, em frente à agência, um senhor
em pé no ponto de ônibus, com a roupa tipo esporte, fez um gesto me
chamando para comprar um jornal. Dessa vez tive que largar os jornais ao
chão, porque ele me deu uma nota muito alta e tive que trocar. Tirei as
moedas do bolso, ví que não havia condições para trocar aquela nota; fiz uma
cara de desconsolado pra tentar comover o coração do "bom homem", que
me olhava com suspeita. Com pouco tempo e muito passa-passa de notas,
revelei:
- Olha senhor; eu não tenho troco pra isso tudo, não!
- O homem me passou um olhar de quem comeu e não gostou, como que
tivesse me chamando de enrolado, ou como me xingasse de um nome bem
feio que vem lá do fundo da alma. Disse que estava ali procurando um
jornaleiro e não para pegar ônibus.
- Então o senhor me espera trocar o dinheiro? - Perguntei com euforia por
dentro e com a mesma cara de bobão por fora -.
- Vá rápido!
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O Jornaleiro
Deixei os jornais ao pé do vovô e corri para própria agência bancária no
intuito de trocar a
grana. Troquei. Voltei mais rápido do que fui, com euforia.
- Me desculpe senhor, sabe, é que a essas horas é difícil a gente arranjar
troco, sabe! Aqui está! - E dei todo o dinheiro que o freguês tinha me
confiado trocar, para que depois ele me desse a quantia do jornal -.
- Vocês ( indagou o comprador) deveriam vir com o troco de casa.
A esta observação não respondi, ele não estava errado, mas como íamos sair
de casa com a quantia de dinheiro que costumávamos levar pra esta.
Não dei muita bola ao cara, e continuei. A minha maneira de vender jornais
era andar um pouquinho (muito), parar um pouquinho; e em todos os dois
tipos vendia sempre, pois o Gazeta era o mais popular jornal da área, e tinha
quem o quisesse em toda a Salvador. Em menos de uma hora já havia
entregue os jornais de todos os fregueses, só restavam os das minhas mãos,
ou melhor, minha cabeça, onde costumava leva-los, pondo-os debaixo dos
braço quando tivessem bem poucos. Meu relógio estava próximo as sete
horas, tempo que geralmente eu liquidava a fatura.
- Leia o Gazeta! Leiaaaaaa!...
Olhava vivamente para todos os lados porque sempre tinha a impressão que
poderia haver um freguês em algum lugar; para um jornaleiro esperto,
qualquer pessoa que não esteja com trajes de vendedor pode ser um, a
exceção dos pivetes, que farejamos de longe.
O dia estava movimentado, como todos os úteis do ano, no meio de tanta
gente não era difícil que vendesse os meus jornais; de vez em quando
apareciam alguns contratempos como um matracão, que se jogava em minha
frente para vender a alguém que tinha me chamado; um pivete ou um
bandidão me pedindo dinheiro pra comprar comida, que a gente já sabia que
não o era, e sim pra comprar o que cheirar ou fumar, que uns até admitiam:
- Me arranje cinquenta centavos pra pegar um baseado ali, primo!
Ou alguns conhecidos que encontrava e ficava batendo papo.
- O tempo ia passando como sempre (este que me deixa cada dia mais
enrrugado) e eu só vendendo.
59
Cristiano Sousa
Em certa altura estava com sete.
- Jornal!... - Gritou bem alto uma senhora de um “ap” na Rua Alagoas -.
Cheguei próximo ao portão do prédio, e respondi a mesma altura:
- Que número é?
Não me ouviu direito mas respondeu:
- Sexto!
Chamei o porteiro, que me espreitava pelas brechas que existiam na grade do
portão, este, por sua vez, abriu automaticamente quando acionado.
- Seiscentos e três. - Falou de uma maneira seca, como se estivesse
robotizado -. O elevador é o de lá. - E me apontava o elevador de serviço -.
Fui em direção a este. Apertei o botão e esperei chegar. Desceu e abriu-se
diante de mim a máquina transportadora. Entrei. Uma dose de nervosismo
me abateu porque, quanto mais demoro de vender mais jornais eu bóio, e
neste dia não queria boiar nenhum. Olhei para os numerais e vi o três, depois
quatro, cinco e...nada de seis? Ôxi!... Houve uma pausa em minha própria
pressa. Seis!... Cadê o sexto? “Será que eu já cheguei?” Não, pois a porta
interior não abriu. De repente tive a ideia de fazê-lo à força, pois percebi que
o elevador havia parado e não foi no sexto andar.
Coloquei os sete jornais no chão e usei um pouco de minha força bruta para
separar as duas partes. Até que elas não foram teimosas, consegui encostar
uma em cada canto, ficaram quietinhas. Realmente, o elevador pifou!
Que coisa! Primeira vez que aconteceu uma babaquice destas comigo. A
minha reação, por incrível que pareça, não foi de espanto. Sempre que ouvi
falar de pessoas que já passaram por esta mesma situação, elas se mostravam
horrorizadas, ou coisas do tipo sufocadas, asfixiadas; comigo, ainda bem, não
houve nada além de uma pequeníssima curiosidade. Agora sim, me
encontrava em uma situação difícil. Como ia sair dessa, sozinho, dentro de
um elevador quebrado, sem ninguém perambulando pelo corredor para que
eu pudesse grita-lo?... Havia uma brecha por baixo da porta exterior do sexto
andar (ainda bem que o traste parou perto). Olhei um pouco, na expectativa
que o porteiro ou alguém sentisse minha falta ou a da máquina; não percebi
60
O Jornaleiro
movimentação alguma; sempre dava uma olhadinha pela brecha; parava de
olhar novamente; olhei também o teto da maquina, imaginei ser um daqueles
heróis de cinema internacional que fazem misérias em elevadores; olhei para
o chão, e vi os meus jornais em cima de um elevador todo descuidado, sujo;
o tapete coberto de poeira misturada com barro; o primeiro elevador de
serviço que vi tão imundo; este tapete era feito de borracha, tinha locais
rasgados, pedindo outro; as paredes até que se encontravam limpas com
relação a alguns elevadores “domésticos” que vemos por aí, os quais nem
parecem que em seus respectivos prédios moram pessoas educadas,
inteligentes e finas. Outro dia, entrei em um que as paredes só faltavam me
xingar de tanta porqueira que tinham escrito, se tivesse que escolher jogar
alguma coisa no lixo naquele momento, seria a inteligência dos autores.
Estava começando a ficar irritado; ninguém aparecia; comecei a bater os pés
sem medo de gastar as minhas sandálias de borracha. Se passaram dezoito
minutos no meu reloginho de plástico que comprei num camelô do Beiru e
que carregava no bolso. Decidi então apelar:
- Ô! Tem alguém aí? Socorro!
Comecei a gritar como um doido, sem parar, no mesmo ritmo em que dava
fortes pancadas na porta exterior do elevador, e pensei comigo “Será que
ninguém sentiu a minha falta, nem a senhora que pediu o jornal!”. Fiquei
cismado com isso. Passou-se mais cinco minutos, e nada; o pior é que estava
chegando a hora de eu ir fazer as cobranças dos fregueses; nem estava mais
pensando em vender o restante dos jornais. Maldito dinheiro o desta mulher!
Bati, gritei, esperneei, até que enfim apareceu um anjo dos céus para me
ajudar.
- Oi! Tem alguém aí? - Gritei pela brecha, que só dava pra enxergar os pés do
dito cujo -.
A pessoa também olhou e me fitou olhos nos olhos. Não me pareceu alguém
que trabalhasse no prédio, nem tão pouco morador. Ficamos olhando um ao
outro. Babaquice que me deixou angustiado.
- Você vai me ajudar a sair daqui ou não? - Gritei para ela, com raiva por
dentro mas com brandura por fora -.
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Cristiano Sousa
Não respondeu nada; levantou-se e se afastou do elevador. Fiquei sem
entender; parecia não estar preocupada com a minha situação.
- Ei, perai! - O indivíduo estava se movimentando exatamente para o lado do
seiscentos e...
Então eu continuei:
- Ei, que barulho é esse? - Parecia algum jornal sendo arrastado -.
A pessoa que tinha acabado de me espiar volta novamente, para em frente
ao elevador mais uma vez e ...
- Ei, volta aqui! - Gritei de novo -.
...Anda em direção às escadas e vai embora. Quando desceu pude ver por
um rápido instante a cabeça que ele havia virado para me espreitar mais uma
vez; também olhei para ele.
- Epa ! Eu conheço aquela pessoa! - Falei pra mim mesmo quando o vi de
frente -.
E realmente conhecia, não intimamente, mas via o várias vezes pegando
jornais na mesma distribuidora que eu. Que safado, não fez nada por um
companheiro de trabalho!
Agora sim fiquei desesperado. "Quase uma hora e eu aqui nesta joça!".
Tudo que tinha feito antes em termos de escândalo fazia agora em dobro. O
tempo ia passando e eu só faltava chorar. Pensei novamente comigo: "E se
aparecer outro desgraçado e sair rindo da minha cara também?".
Tentei me acalmar, já que os meus gritos não deram jeito; estava sem
esperanças nenhuma de vender mais jornais. Nem sabia se iria sair dali!...
Cansado, resolvi sentar, não no chão imundo, mas em cima das minhas sete
bóias. Que jeito! O que me restava era esperar.
Fatigado pelo cansaço, tudo que dizia respeito à besteiras passava pela
minha cabeça: “E se eu não sair daqui hoje?... E se eu morrer asfixiado?... E
se eu ficar louco?...” Pode?
De repente, ouvi passos no corredor. Pelo jeito de andar, pela leveza, me
pareceram passos de mulher. Renovou-se novamente as minhas esperanças.
62
O Jornaleiro
A primeira coisa que fiz, ainda sentado sobre os jornais, foi lançar um olhar
bem esperançoso pela brecha.
A misteriosa brecha. Parou em frente à porta do "eleva" um par de pernas,
meus amigos!... Hum!...
- Ei, tem alguém aí ? - gritei quase sem voz -.
- Iiii... Tem gente aí dentro é? - Interrogou com surpresa as per...Quero dizer,
a moça-.
Disse que sim, que estava preso no elevador há mais de uma hora. Pediu
que eu esperasse um pouco que ela ia chamar alguém pra me tirar dali.
Sabem! Eu senti firmeza nas pernas... quer dizer... na pessoa que estava do
lado de fora; tinha umas per... Meu Deus! Já estou ficando doido
mesmo!...Tinha uma voz bem esquisitinha a tal moça; talvez eu devesse
chamar de senhora, não sei... Bom! O certo é que senti uma voz um pouco
estranha nesta mulher, parecia que estava rouca ou coisa assim.
Finalmente! Chegou as mesmas pernas acompanhadas de mais duas; estas
aparentavam ser masculinas.
- Meu Deus ! Tá preso ai é cumpadi?
Não gostei da piadinha. Palhaço! Estava vendo que sim.
- Espera que eu vou te tirar daí, tá ?
"Tá palhaço!" Mexeu lá nuns bagulhos que estavam dentro de uma caixa de
ferramentas e abriu a porta exterior.
- Dá pra sair “puraí”?.
- Por este espaçozinho aqui?
- Sim, tenta aí!
Falávamos do espaço que ficou quando abriu a porta exterior. Eu não tinha
dúvidas que dava pra passar. Não sou tão grande assim.
Peguei os jornais que se encontravam no chão e os joguei para fora do
elevador, depois foi a vez de me jogar.
- Pronto! Tá livre rapaz.
- Brigado "moço".
- De nada!
63
Cristiano Sousa
- Ah sim, tinha esquecido. A senhora que foi chamar ele, né? - Apontei os
meus olhos para os da mulher -.
- É! Fui eu quem mandei ligar pra empresa responsável! Eles
demoraram
muito? - Brincou -.
- Quase duas horas – repliquei -.
-Quase duas horas aí dentro?
- É isso aí!
Fiquei fissurado nessa mulher. Que corpão lindo! Maravilhoso! Esbelto!
Estava usando um shortinho bem curtinho que desenhava todo o seu ser;
igualmente fazia um bustiê, que expunha os seus braços e o seu umbiguinho
de fora. Naquele momento me passaram vários tipos de bobagens pela
cabeça. Nunca me vi em uma situação destas. Um morenão me comendo com
os olhos. Isso depois que o especialista em elevadores saiu.
- Você deve estar muito cansado! - Disse ela, ainda com a voz estranha - .
- Sim! um pouquinho.
- Não quer entrar pra tomar um suco? O meu apartamento é aqui! - E apontou
com o braço esquerdo estendido o seiscentos e dois -.
Homens e mulheres, que coisa! O meu desejo era realmente o de ceder à
tentação, mas o dever gritava em minha mente. Ela insistiu:
- Vamos menino! É rapidinho.
- Sabe o que é moça; é que eu tenho “muitos freguês” me esperando...
- Sim rapaz, mas é rápido. Vamos!
Percebi que quanto mais insistia mais o meu tempo ia embora, então fiz o
que ambos queriam, fui até o seu apartamento, ela se atirou em minha frente
rebolando muito e eu hipnotizado, fissurado, embasbacado em seu grande
glúteo. Entramos sem muitas cerimônias.
- Senta ai um pouco, ordenou-me afavelmente a “deusa”
Sentei numa mesa encostada a uma parede pintada de branco, com uns
quadros meio esquisitões, coisa de estrangeiros; parecia ser muito rica a
“dona”. Muito mesmo! Fiquei tímido ao ver tanta naturalidade, tratava-me
com o maior dengo, parecia até que eu é quem iria dar alguma coisa a ela.
Me queixei, dizendo que não dava mais pra ficar, cinco minutos eram o
bastante.
64
O Jornaleiro
- Muito obrigado pelo suco, estava ótimo, mas eu tenho que ir - falei em tom
ríspido -.
- Espere um pouco, os fregueses não vão fugir. Olhe, tenho uma coisa pra
você.
Assim que disse esta ultima frase, agarrou levemente em minha mão
esquerda com a sua direita; me olhando fixamente, o que eu também fiz,
colocou com uma ternura feminil o seu leve braço sobre o meu ombro
direito, e com este mesmo braço, esquerdo, começou a fazer-me um excitante
cafuné, cravando e tirando levemente suas unhas de meus cabelos negros. Os
jornais estavam em uma cadeira ao lado da que eu estava sentado. Ia
encostando sua face a minha e o corpo ao meu; fiquei sem saber o que fazer,
sabia apenas que já estava todo excitado, incrível! Fiquei esperando que ela
decretasse logo o seu delicioso beijo em minha boca. Quando pensei que
finalmente ia acontecer isto, ela pausou; falou algumas banalidades no meu
ouvido e me puxou para o seu quarto.
Isso são coisas que só acontecem com pessoas assim como eu, um
adolescente casto e tímido, que normalmente é criado mais debaixo da saia
da mãe que debaixo do rigoroso machismo do pai. Fiquei naquele momento
como que assombrado; nunca tinha sentido algo parecido antes; estremecia
muito, surgiu uma vontade de possuir àquela mulher, que se mostrava muito
segura. Não queria daquele jeito; também não quis fugir. Pensei em muitas
coisas importantes como doenças sexualmente transmissíveis, principalmente
a AIDS; a probabilidade de semear naquele óvulo uma vida. Pensei no
prazer... oh!, o que seria o prazer? o gozo?... Coisas que dominaram minha
imaginação quando lembrei dos colegas que me "alugavam" só pelo fato de
eu nunca ter relações sexuais, nunca ter "pegado" uma mulher, como diziam:
isso é tão fácil.
Tomei coragem e não impus objeções, acompanhei-a, empurrou a porta do
quarto, que não estava trancada. Fechou por dentro. A "deusa" começou
então a liberar a sua "leoa", que queria me engolir de uma bocada. Em
poucos minutos ela faltava tirar apenas a calcinha, e eu a cueca, o que preferi
fazer bem devagarinho, como se estivesse chamando o prazer. Não sei bem o
que se passou comigo que fiquei totalmente entregue à “fera”, pronto para ser
engolido; perdi o domínio de mim mesmo, totalmente, enquanto ela roçava o
seu corpo no meu, apalpando-o com as suas mãos leves. Era linda. Alta;
olhos claros como já frisei; cabelos castanhos escuros; o corpo não precisa
65
Cristiano Sousa
nem repetir, não é ?... Pois! Me entreguei totalmente àquele “fruto sedutor”,
porque realmente fui seduzido.
Eu já estava completamente nu, enquanto ela, estranhamente, insistia em
ficar de calcinha. Girou o meu corpo para o lado onde estava a cama, e, de
súbito, me deu um belo empurrão, fazendo com que eu caísse em cima; ela
sempre me hipnotizando com o seu olhar, que ficava mais brilhante quando o
"astro-rei" parecia querer me defender atirando os seus raios ultravioletas por
entre a janela, que naquele momento se encontrava aberta em uma de suas
partes; estes raios me deram a chance de poder, antes mesmo de chegarmos
ao ápice, penetrar todo corpo da "ninfa" apenas com o olhar (engoli toda a
sua vagina raspada, imaginei-a assim porque ainda se encontrava encoberta;
seus seios perfeitos, enfim). O seu corpo seria naquele momento só meu, só
me...Epa!...Droga!..Olhamos assustados para a porta, porque naquele
momento tínhamos acabado de ouvir o “Ding – Dong” da campainha.
Levantei repentinamente da cama com um único pulo, como que acordando
de um pesadelo horrível, que na verdade era um sonho bom.
- Espere um pouco! - Disse-me, se vestindo depressa, o que eu também fiz -.
Foi atender à porta enquanto fiquei sentado na cama. Desta vez muito
lúcido. Olhei no meu reloginho e me espantei, agora com o horário. Tive
vontade de sair correndo dali imediatamente, mas fiquei receoso que do lado
de fora do quarto um homem estivesse com ela; podia ser um cara bem forte,
bem musculoso, e que, ao me ver ali, daquele jeito, me matasse de porrada.
"E agora meu Deus ?" Pensei com muito medo, pondo uma mão no bolso do
short e outra segurando os jornais. Coloquei o ouvido esquerdo próximo à
porta pra ver se dava para ouvir alguma coisa, qualquer besteirinha que fosse.
Não consegui. O tempo ia passando, já eram quase doze da tarde. Eu tinha
que fazer alguma coisa. Abri a porta, mais pela responsabilidade do que
coragem; saí de mansinho. Minhas suspeitas foram verdadeiras. Era um
homem! Ela o levou para a cozinha, atitude que facilitou a minha fuga
daquele apartamento. Eu fiquei intrigado apenas com uma coisa. Antes de
sair os dois me viram e deram risadas. Ele era musculoso sim, mas ria como
moça. Deu pra ouvir algumas de suas palavras:
- Menina !... Você agora anda trazendo os bezerrinhos?
-Não fique com ciúmes! Você sabe que só tenho olhos pra ti, né fofa!
66
O Jornaleiro
“Meu Deus! A minha "Dona, tão linda! tão maravilhosa!...” Ainda tentaram
me agarrar; não pensei duas vezes, dei no pé naquele momento mesmo;
também não chamei o elevador, fui direto para a escadaria onde desci em
pouco tempo, nem pareciam que eram seis andares.
Que mancada, rapaz!... Fiquei atordoado.
Tentei esquecer logo aquelas cenas que antes me levaram até ao céu, e
trazido novamente ao inferno. Todo esforço foi em vão, não consegui
esquecer nenhum detalhe: o convite, o suco, as pernas (principalmente), a
cama, o quarto e o corpo inteiro, enfim.
Quando terminei de descer a escadaria fui direito a guarita.
- Rapaz (fez como se estivesse surpreso) você ainda está aí?
Pacientes amigos, não sei se posso descrever aqui, nestas curtas páginas, o
que tive vontade de fazer com esse cara. Olha, me segurei como pude, mas
não nego que tudo se resumia em matá-lo.
- Cara ! (Disse eu) você não percebeu que o elevador quebrou?
-Mas isso já faz mais de uma hora! - Murmurou o idiota - E você tava lá até
agora?
Houve uma pequena pausa. Procurei as palavras na intenção de inventar um
motivo pra demora mas ele foi mais rápido.
-Acontece que não foi só o elevador...
-Não?
-Não!
-E foi o quê então ?
-Uma “queda de energia” que teve aqui no bairro.
-Anh!... Costuma acontecer isso de vez em quando - reparei -.
-É... Dizem que foi um caminhão que bateu num poste lá pra frente Apontava com o queixo a direção que queria mostrar -.
-Fique sabendo (continuei) que foi esse o tempo que passei preso lá dentro.
-Dentro de onde? Do...
-Do elevador (interrompi). Eu fiz a maior zoada dentro daquela joça e
ninguém ouviu nada; já pensou se acontece algo de ruim comigo?...
-Meu Deus!... - Fez o cara com olhos vermelhos vidrados em mim -.
-E se eu dou uma dor e morro? - Falei com angústia -.
67
Cristiano Sousa
Esta observação tirou da face preocupada do porteiro um leve e disfarçado
sorriso. Ele achou logo uma desculpa:
- Um dos moradores me disse por interfone que alguém ficou preso no
elevador, mas isso foi quando já tava tudo resolvido, entendeu?
- E a mulher que me chamou? - Lembrei -.
- Ôche! você não vendeu, não?
- Não!
- Ah! , Então quem vendeu foi um menino que subiu aí. Pensei que você
tinha vendido.
- Ah ! Então...
Houve outra pausa e a conversa cessou com a chegada de um freguês.
- Tem jornal ai? - Perguntou por hábito, pois os viu em minhas mãos -.
- Aqui senhor!
Levantei com a mão direita um dos jornais e entreguei ao rapaz, que por sua
vez me pagou.
Decidi não perder mais tempo jogando conversa fora; me desviei rápido, saí
do prédio e corri às moradias dos meus fregueses fixos, aqueles que sempre
compram em minha mão, no intuito de pegar todos em casa, porque se
saíssem, iam ficar me devendo, e, se ficassem me devendo eu iria com menos
dinheiro para casa. Tive apenas uma leve impressão que o porteiro se fez de
esquecido pra facilitar as coisas pro outro vendedor.
Em uma corrida de meia hora, mais ou menos, fui em todas as casas,
apartamentos e
outros pontos em que deixara jornais, alguns eu consegui cobrar, outros, por
motivos diversos, não: a "patroa" foi à praia ou passear; não sei quem foi ali
e vai demorar; eu não tenho dinheiro hoje, te dou amanhã e etc. e tal...
Faltava apenas um lugar onde eu não tinha passado. Corri até lá na esperança
de não ir duro pra casa. Fíz as contas do dinheiro e percebi que por pouco
não iria ficar devendo a Bira. O único dinheiro que carregava no momento
foram alguns centavos. Parei um senhor que vendia picolé num prédio, a um
vigia.
- Quanto é o picolé?
-Vinte centavos...
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O Jornaleiro
Nem deixei que ele terminasse o que iria fazer, a tradicional propaganda dos
“picolezeiros”. Achei muito caro o preço, era o mesmo que minha comissão!
-Peraí! Tá muito caro este picolé, qual é?!
Não me disse nada o velho, esperou que o outro comprador se fosse para me
dar explicações sobre o que não tem, como se tivesse sido forçado.
-Sabe? É que eu pego estes picolés muito caro, a cinco centavos cada, e se
for vender mais barato, de onde é que vou tirar o lucro? E estes "não são
água" como muitos que tem por aí! São da capelinha! De qualidade! Levantou um sorriso gabola, triunfante por vender "bons" picolés -.
Não quis perder tempo e peguei logo o picolé.
Corri à passos nervosos pela Rua Maranhão onde estava localizada a
residência da freguesa que eu não queria perder; se os amigos puxarem um
pouco da memória irão perceber que esta é exatamente a rua que mora aquela
boasuda que me pediu que fosse o seu vendedor. Cheguei em frente ao
pequeno edifício, o portão estava fechado mas não trancado, empurrei-o com
força e entrei; os pés de amêndoas tinham deixado suas marcas, percebi ao
me dirigir à escada que sobe para o terraço quando fui pisando em vários de
seus frutos podres. Naquele dia havia um vigilante ali, coisa rara, como
sabem. Estava sentado numa mesa simples com duas gavetas, esta que
suportava sobre si apenas um radio de pilha e um prato com duas bandas dum
pão cacetinho, que a pouco tempo teriam a companhia de um copo de suco
quase esgotado. Aproximei-me e os olhos de jambo me fitaram curiosos; o
que se passou rápido pois me reconheceu de um lance. Não esperei que o
coitado limpasse a sua boca e fui logo abrindo a minha:
-Terceiro andar está?
-Rapaz, eu acho que está. Se ela não foi pra praia... - Torceu a boca e
levantou os ombros, gestos que indicavam toda a dúvida do negão -.
Mandou que eu fosse observar. Não hesitei em obedecê-lo. Fui
rapidamente. Joguei em um baldinho de lixo que se encontrava ao pé da
escada o palito do picolé de amendoim que tinha acabado de chupar e que me
deixou o seu sabor na boca.
Não havia elevador no prédio porque não era necessário. Subi igual a um
sapo. Quando alcancei o segundo andar, houve um assobio; foi um vulto rico
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Cristiano Sousa
que fazia sinal para que eu lhe vendesse um jornal. Fi-lo, rápido como
sempre, e me precipitei para o terceiro. Quando cheguei aos três últimos
degraus, me deparei com a esperança, a única que tinha de não ir com as
mãos vazias pra casa. Dei de frente com uma porta azul celeste, com outra à
sua esquerda. Não sabia qual das duas era a da cozinha mas a segunda
exalava um cheirinho de frango cozido, que serviu apenas para entrar nessa
história uma outra personagem (a minha barriga) que reclamava neste
momento; esbravejava mesmo. Unido ao cheirinho do cozido, me passou
pelas narinas um outro cheiro bom, que desta vez não me pareceu de comida.
Preparei-me para bater na porta no intuito que alguém viesse atender, mas, só
o pensamento valeu por mil pancadas; percebi, não mais com o nariz, mas
sim com os ouvidos e olhos, que a tranca da porta mexia. Abriu-se.
- Oi, tudo bem?
Era ela, finalmente. A única freguesa que não me deixava na mão. Foi o
“tudo bem” mais agradável e gostoso que ouvi neste dia, ainda mais, dito por
uma boca maravilhosa e atraente como aquela. Passei um olhar acanhado por
aquela graça toda. Era uma morena bonita, como já expliquei anteriormente,
boa estatura (continuo afirmado que o corpo era de miss); os cabelos
castanhos, encaracolados e cheios. Agora sim, pude observar bem e delato a
todos que os seus seios eram médios, quando, ao erguer os braços na duela da
porta, desenharam-se perfeitamente em sua camiseta. Sobre o apartamento, o
que pude observar disfarçadamente, como a ela própria, foi o fogão e alguns
outros eletrodomésticos.
- O dinheiro do jornal, né? (Continuou, deduzindo pelo meu uniforme, do
que se tratava) Um Momentinho!
Foi buscar a bolsa e voltou, tirando de dentro algumas moedas. Como em
minha mão direita conservava a bolsinha de moedas, estendi a esquerda,
tendo debaixo do braço cinco bóias. Minha vontade era pegar não as moedas
mas sim a mão dela e puxá-la para mim, só que a razão, as vezes, domina a
emoção. Colocou sobre a minha mão aberta, desdenhosamente, aqueles
pesados contos. Puxei-os para mim sem prestar muita atenção em seus
valores.
- Não vai contar? - Observou atentamente -.
- Vou!... Vou sim.
70
O Jornaleiro
Parece que a minha timidez se libertava de sua prisão astral quando estava
em frente a belas mulheres. Não tinha o costume de contar o dinheiro na
frente de alguns fregueses que eram dignos de confiança, como no caso;
apenas pela observação desta olhei de relance as moedas e fiquei um pouco
surpreso, o que não demorou para se transformar em uma alegria sufocada.
- Isso tudo?... Espere que vou lhe dar o troco (Não por vontade, apenas por
obrigação eu disse isto)
- Não! Não precisa! É seu.
Não deu pra segurar um sorriso, apesar de muito tímido. Fiquei mais à
vontade com o meu quando percebi o dela, que parecia ter brotado das águas
cristalinas da Lagoa do Abaeté. E ao invés dela dizer, eu disse:
- Obrigado!
-De nada! Vem amanhã?
-Claro! Todos os dias. Não foi esse o combinado?
-Então... Com licença.
Fechou lentamente a porta, coisa rara de se ver porque normalmente batem
em nossas caras. Com isso, tirou os olhos de cima de mim e os colocou no
chão para observar disfarçadamente o nada. Quando eu já ia descendo, me
perguntou:
- Você está com fome?
Olhei a moça de súbito, ela novamente colocara seus globos verdes sobre
mim. Respondi secamente sem dó nem piedade:
-Sim.
-Espere um pouco, então.
Correu, como os ponteiros no relógio, de passo à passo. Voltou com uma
outra vestimenta, mais comum, mais sociável, e pediu que eu entrasse:
- Vamos, senta aqui nesta cadeira.
Puxou uma das duas cadeiras que haviam ali, perto do armário, a outra ela
colocou junto a que eu sentei, abriu umas das portas deste, de onde tirou um
prato de porcelana, depois outra, só que desta vez na parte de baixo, de onde
tirou uma frigideira; pegou mortadela, queijo, um ovo e fez um belo
sanduíche; apenas o pão e o suco foram pegos na geladeira porque os outros
já estavam em disponibilidade sobre uma mesa postada rente a parede, do
71
Cristiano Sousa
lado do armário. Me serviu a merenda com um requinte de restaurante, e,
logo depois, sentou-se junto a mim. Não tinha o olhar de superioridade
comum a muitos riquinhos que vemos por aí, muito pelo contrário, tinha um
olhar afetuoso e acolhedor, que me fitava de cima á baixo enquanto eu
comia. Terminei em “uma bocada” o aperitivo, pois o almoço me esperava
em casa.
- Terminou?
-Já! (Disse eu, colocando um sorriso de satisfação na face). Muito obrigado
senhora.
-Que senhora! Eu ainda sou jovem meu rapaz. Pode deixar aí mesmo o prato,
na mesa.
- É a maneira que eu trato os fregueses (falei em tom de desculpas e coloquei
o prato sobre a mesa)
-Pois, a mim pode chamar de você ou de Cristina.
Que moral! Nunca imaginei de nenhum freguês, homem ou mulher, jovem
ou idoso, me dar essa intimidade toda. Não é uma coisa comum. É certo que
já havia um bom tempo que eu vendia para ela, mas...
Levantei-me lentamente da cadeira; parecia que a visita durou muito, pela
maneira que se tornou agradável; só que foram poucos minutos. Parei uns
três segundos em frente à porta, e ela do lado de dentro, onde nos despedimos
normalmente como fregueses um do outro que somos; ela repetiu o gesto de
antes fechando devagarinho o “céu” de sua cozinha, enquanto eu, todo
agradecido, desci sem perda de tempo as escadas, pulando de duas em duas.
O último jornal que faltava ir buscar era garantido o pagamento. O do
banco. E foi para onde me dirigi quando saí do prédio, no intenção de pegar
logo essa grana e me mandar.
Andei a passos „lesmosos‟ desta vez, pois, o cansaço e o sol escaldante
daquele dia de verão não me deixaram outra alternativa, os dois ainda tinham
como aliados a minha vestimenta: um grosso colete e um bermudão azuis,
que pesavam muito em meu corpo; sem falar na bóia que tinha debaixo dos
braços.
Subi outra escadaria, desta vez a da agência, que não era plana; o vigilante
não ligou pra mim desta vez; fui direto ao primeiro andar e vi o caixa que me
72
O Jornaleiro
interessava, cheio como sempre; mesmo assim eu dei o ar da graça pra que
ele me percebesse (percebeu). Mandou que me aproximasse (aproximei).
Abriu a gaveta, de onde tirou uma nota de papel que era exatamente o valor
do jornal e iria me entregar, se não fosse por uma ironia do destino:
-Todo mundo quieto! É um assalto!
73
Cristiano Sousa
VI - MISTÉRIOS
C
oitado do meu filho, ele sempre foi uma pessoa muito boa, sabem!
Mas, pela sua ingenuidade, se meteu em uma boa confusão; claro que
também foi muito descuidado; mas da próxima ele não cai mais.
Neste dia eu estava trabalhando na “casa do branco”, sem saber o que se
passava e o que não se passava com Nico, era uma casa de família que a
poucas semanas uma vizinha me arranjou, o pessoal até que não era mau
(gente fina) isso até chegar o final da semana, quando me pagavam. Não raro
eu ouvia:
- Ah, Minha filha! Hoje nós só temos isso! (diziam na cara de pau)
Claro que com disfarces, mas era isso ai mesmo, e acrescentavam após:
- Depois a gente paga o resto.
„Ques‟ sacanas!
O trabalho estava pesado! O que tinha de coisa pra fazer não estava no gibi.
A “Patroa” viajara pra ilha e os filhos ficaram, dois ao todo, uma menina e
um rapaz, ambos não passavam dos seus vinte e quatro anos; o rapaz parecia
ter um pouco mais idade que a moça. Ficou também o marido que trabalhava
aqui mesmo na cidade e não costumava viajar a passeio tanto quanto a
mulher. “Seu” Marcelo era o dono de uma empresa de transportes urbanos.
Os filhos se chamavam Estela e Flávio e a mulher, Mariana.
Não era uma família feliz, apesar de serem muito ricos. As brigas entre
Marcelo e Mariana eram constantes e, acho eu, que vinha de muito tempo
pois pareciam que influenciaram os filhos quando em pequenos, pois tinham
os mesmos defeitos dos pais, talvez fosse coisa da genética porque não se
entendiam de jeito nenhum, e raramente eu os via sair com amigos.
A minha especialidade naquela casa era de lavadeira, mas fazia de tudo um
pouco, principalmente quando os especialistas nos cargos não compareciam
ao trabalho. E se pensam que deixei os meus trabalhos do fim de semana,
estão muito enganados, viu! Todos os sábados e domingos estava ali,
pegando no pesado com os meus dois filhinhos menores.
74
O Jornaleiro
Além de mim, trabalhavam também na casa mais duas pessoas: o senhor
Roberto, que era o motorista e uma cozinheira que não conhecia muito bem
mas que via ser chamada de Maria Carmem.
Do apartamento não posso dizer muita coisa por fora porque não costumava
olhar pra cima quando deixava ele pra trás, apenas que fica na Barra. Agora
por dentro, posso lhes assegurar que era lindo: três quartos, um com suíte;
varanda; sala de jantar e de estar; um banheiro e cozinha; além de outros por
menores. O que eu trabalhava ficava longe! No décimo oitavo andar. É mole?
Sempre chego ao trabalho no meu horário certo, pra não haver problemas,
porém, neste dia peguei engarrafamento no Bonocô, e cheguei meia hora
atrasada no trampo. Se a patroa estivesse em casa não iria deixar de fazer a
sua chiadeira, mas como ela não estava, os meninos não deram a mínima, e o
patrão, menos. (ele mesmo poderia ser o meu exemplo, ou pior)
Cheguei quase oito horas. Quando foram oito e meia o patrão me fez um
pequeno alerta:
- Jandira, eu deixei um terno sujo dentro do meu quarto, em cima da cadeira.
Você pega lá, tá?
- Tá certo, “Seu” Marcelo.
E saiu cheio de pose, de celular ao ouvido, óculos escuros, roupas
importadas (e da mentalidade importada também) com a sua mala cheia de
besteiras por dentro.
O trabalho correu solto. Eram aproximadamente dez horas quando eu
lavava como uma doida; Tinha tanta roupa! ... E olhe que havia na casa uma
lavadeira automática, quebrava um galhão, só que quem ralava mais no
tanquinho era eu. Depois que terminamos chegou o momento de estender,
pois a secadora estava com defeito. Eu já estava acostumada com aquilo:
levar pra casa, lavar, enxugar em cordas e devolver novamente ao trabalho no
dia seguinte (era o pior)
Os garotos não ficavam em casa. A Estela todos os dias saía para fazer
faculdade de direito. Pelos sucessos que se gabava sempre, contra o irmão
principalmente, mas também sobre os pais e alguns conhecidos, era boa
aluna, e suas notas, as que vi em poucas oportunidades eram realmente as
máximas. Não era uma menina feia. De boa estatura, as pernas maiores que o
75
Cristiano Sousa
tronco; tinha uma cara gorda, o que o resto do corpo não entendia, pois era
magricela; seus olhos circulares pareciam com sua boquinha redonda, olhos
estes que roubavam um pedacinho do céu, onde consequentemente se pingou
uma vida negra em cada um. Realmente, não era feia. Já o irmão, era só
alegria. Não queria nada com o mundo; a sua vida era uma verdadeira farra;
praticamente não morava em casa, dormia quase sempre na casa da
namorada. Tinha uma pequena banda de pagode onde era o vocalista e ao
mesmo tempo patrocinador; não se dava bem com o resto da vizinhança (uma
de suas desculpas para não ficar em casa), e quando chegava o carnaval, aí
ele sumia de vez, bastava pegar o dinheiro de papai, porque o da mamãe
estava “amarrado”. A mana não gostava dessas festas então a odiava pelo
fato dela dizer que ele era um explorador. Se achava o máximo por ser
bonitinho; não parecia com a irmã em quase nada (apenas um pouco mais
alto e mais formoso), além dos olhos azuis e os cabelos ruivos como o do
restante da família, encaracolado, curto e partido ao meio. Ambos gostavam
de vestir roupas caras (com a mesada que tinham não podia ser ao contrario)
adoravam dar ordens, como os pais; chamar a atenção; serem os maiorais,
cada um na sua. É!... Realmente eram muito diferentes.
Tinha acabado de chegar da escola, a menina, quando o relógio mostrou
doze horas.
- Jandira, ponha a minha comida que estou morrendo de fome!
- Ah, tá!... Eu agora virei cozinheira, foi?
- Não custa nada, né?
- Você não está vendo que estou cheia de trabalho?
- Cadê Maria?
- Onde ela deveria estar! Na cozinha, não é?
Era este o costume. Chegar da universidade, entrar no quarto, jogar os
livros, voltar e se jogar no sofá pra pedir comida. Estes dias até que ela
estava chegando mais cedo; normalmente passa o dia todo na rua, ou melhor,
no colégio. Esta cena aconteceu quando fui à sala pegar o telefone, era uma
chamada de fora da região metropolitana. Quem ligou foi exatamente seu
Marcelo.
- Meu pai?
Sim, seu pai. Porque o espanto?
- Diga a ele (fez a menina com um gesto de desdém) que ainda não cheguei.
- O quê? (Esta mentira me fez empalidecer)
76
O Jornaleiro
Mas, por objeção a essa ideia, continuei:
- Ele me disse que é importante.
- Mas eu não estou afim de falar com ele! (Falou em tom grave a menina)
Fiquei ainda mais „assombrada‟ com esta revelação bruta. Como pode uma
coisa destas? Meu Deus!... Agora, fosse importante ou não, eu é que fazia
questão que a filha falasse com o pai.
- Não vou fazer uma coisa destas, não Estela; venha falar com seu pai ou eu
digo que você não quis atender. Só tem você da família aqui, menina!
- Iiiii Tá bom! Me dá aqui! - Levantou do luxuoso e aconchegante sofá, onde
estava quase deitada, e arrebatou o telefone de minha mão, como se não
existisse ninguém o segurando -.
Não era costume e nem dever meu atender telefones, mas vez em quando o
fazia, pois se não fosse eu seria a Carmem, que também é muito ocupada. Os
senhores do apartamento diziam sempre que não era necessário tantos
empregados porque as “crianças” já estavam grandes e praticamente ninguém
ficava em casa. O trabalho de Maria Carmem quase não existia, por isso era
ela também a encarregada de fazer a limpeza, e quem na maioria das vezes
atendia o telefone, só que hoje estava sem tempo e mais distante. Não sei se
foi impressão, mas confesso que senti algo de diferente na voz do patrão.
Parecia estar sendo forçado a falar. Nada comparado ao que a filha
aparentemente sentiu, porquê, quando entreguei a ela o telefone era uma
pessoa, e quando passou-se uns dois minutos de conversa, era totalmente
outra. Antes havia uma expressão grosseira, de mau gosto, se sentia a
verdadeira “Rainha da cocada preta”, depois a sua fisionomia denunciava-me
terror, desespero, sufoco. Quando percebeu a minha atenção em sua pessoa
agitada, se acalmou; desligou o telefone e correu para o seu quarto; nem
tomou banho. Assim que entrou, com o uniforme de faculdade, trancou a
porta, o que deixou parecer que não queria ser incomodada por ninguém.
Isso me deixou intrigada, principalmente porque trabalhava naquele lugar á
pouco tempo e não conhecia as manias daquele povo. Decidi deixar de lado
aquela banalidade e voltar ao meu trabalho, que estava atrasado.
Eu estava com muita fome; era quase uma da tarde e a minha barriga me
pedia comida. Parei um pouco os afazeres e fui até a cozinha. A casa estava
tão calma como
77
Cristiano Sousa
uma criança dormindo. As vezes quando fico folgada, paro um pouco só para
olhar ela
toda. É maravilhosa. Nunca imaginei que em toda minha vida veria coisas
como aquelas; cada móvel que deixava a gente imaginando se algum dia
podia ter também; tudo parecia ser super moderno e importado. Os sofás
eram daqueles que tomam quase toda a sala; uma mesinha de vidro no meio,
usada apenas para as mordomias; uma estante com alguns livros, televisão, e
objetos de porcelana; também se via um belo aparelho de som, de uma marca
famosa e posto ao lado da estante, sem falar no luxo de um pequeno bar; as
paredes nem se fala: todas pintadas de branco com quadros muito valiosos
dependurados nela, e assim em quase toda a casa. Os quartos eu não os via
muito; mas nesse dia reparei um pouco no do casal, quando o seu Marcelo
pediu pra que eu fosse buscar o seu terno. Tudo era magnífico: o guardaroupas, a suíte que estava com a sua porta entreaberta; a cama era linda; parte
de algumas roupas do casal que se encontravam jogadas ali em cima, mais da
mulher que do homem, eram todas lindas; era tudo bonito.
De poucos passos parei na cozinha, onde se encontrava a Carmem. Parecia
não ter ouvido as minhas pisadelas porque não deu nenhum sinal de que iria
olhar pra trás. Estava lavando os pratos nesse momento, então principiei um
diálogo:
- A senhora hoje tá como eu, hein, Dona Maria?
Virou sobre si uma mulher jovem. Era a Maria Carmem. Mas nova do que
eu! tinha lá os seus trinta e tantos anos, o que me pareceu naquele momento.
Era magra, pequena; de cabelos curtos e duros a mulata do bundão, apesar do
corpo não corresponder. Na contra mão do seu modelo, sabia fazer os seus
membros serem tão hábeis quanto os da lince: os seus olhos eram tão vivos
quanto os do gato; as suas mãos mais rápidas que as patas do tigre; e o seu
tempo naquele trabalho era mais do que o meu.
- Oi, Dona Jandira! Senta ai um pouco!
Não deixou o que estava fazendo mas também não deixou de me dar a
devida atenção. Olhava, ora para os talheres na pia, ora para a minha pessoa.
- Como vai a senhora? Tudo bem? - Indagou estas duas frases, tão rápidas
quanto as suas mãos, que naquele tempo já eliminara um conjunto de garfos e
facas -.
- É!... Vou levando! - Respondi com uma certa graça no olhar - E a senhora!
78
O Jornaleiro
- É, minha filha, na mesma luta.
- A nossa comida já está pronta? - Perguntei discretamente, brincando com
uma laranja de plástico que se encontrava na fruteira da mesa, onde me sentei
-.
Carmem parou uma de suas mãos, a esquerda, e levantou o braço,
apontando o indicador para a geladeira (uma das) que havia ali, ao lado da
luxuosa pia de mármore, indicando que meu almoço estava justamente lá
dentro. Então levantei os quadris do aconchego, abri a geladeira e fui direto
no local onde se costumava colocar as quentinhas. Peguei a minha e
perguntei à Carmem se ela e Roberto já havia almoçado, pois só havia ali
uma quando o costume eram três. Respondeu-me que sim, com um simples
gesto de cabeça. Sentei-me novamente na mesma mesa, a qual éramos
acostumados a comer, isso depois de ter colocado o rango para esquentar um
pouco no forno, e cai de boca na gororoba.
Comi calada por algum tempo. A Maria Carmem não era dessas de puxar
muita conversa, só que, aquela sena da sala me deixou muito intrigada. Não
era de minha natureza ficar fofocando sobre a vida alheia, principalmente de
patrão, mas, a angústia me comia a paciência como o dinheiro come a vida
dos mais fracos. Decidi saber mais sobre aquela família rica. Perguntei
pequenas bobagens a lavadeira de pratos para não perder o fio da conversa,
que (até então) só tinha visto a ponta. Já que a Carmem não falava nada,
arrisquei perguntar algo sobre ela:
- A senhora está muito tempo por aqui, Dona Maria?
- Anh!... Fez, como se estivesse distraída. Ah!... Tô! Muito tempo! (Estalou
os dedos querendo indicar que sim) Eu trabalho p‟ressa família há muitos
anos, menina!
Conheço várias pessoas que também trabalham bastante tempo em apenas
um lugar. Emendei a interrogação:
- Já trabalhou em outras casas?
- Já sim! - Disse Dona Maria - mas foi esta a única que me firmei e não
pretendo sair dela. Só se os donos me botarem pra fora. (Afirmou Dona
Maria suspendendo os beiços em afinação com os ombros para mostrar a
importância deste lugar em sua vida).
79
Cristiano Sousa
O sorrisinho descarado da morena estancou em sua face, me deixando
perceber que Carmem era uma mulher que não dependia daquele emprego
pra sobreviver, uma coisa que é rara nessa sociedade. Terminou de lavar os
pratos; enxugou as mãos na flanela pendurada em sua cintura e aproximou-se
da mesa para que conversássemos melhor. Aí perguntei:
- E se eles te mandarem embora?
- Eu vou!
- Mas...
- Eu reclamo os meus direitos e me mando, tá! - Levantou o rosto pros ares
com desdém -.
Fiquei com um pouco de constrangimento em ser tão intrometida; apesar
dela não ter me dito nada demais; então resolvi mudar de assunto, o qual eu
tinha verdadeiro interesse.
- E o pessoal aqui, como é?
- Quem? Os da casa?
- Sim. A família em geral.
A mulher, neste instante senta ao meu lado, atitude que acompanhou uma
virada de rosto, com uma careta sendo usada como recheio. Reclamou:
- “Isso aí são tudo uns ranzinzas!”
- É mesmo?
- Se é! Hum!... Você não sabe de nada... Casa boa era a da Graça, aqui perto,
onde eu já trabalhei.
- O pessoal pagava direitinho?...
- Minha filha! (interrompeu-me) ali fazia questão de pagar em dia; eram
gente
finíssima! Eu andava na linha com eles e eles comigo; ali sim, eu trabalhava
com
prazer. Mas aqui...
Houve uma pausa em nosso diálogo porque ouvimos passos em nossa
direção. Quando aproximou-se mais vimos uma figura em nossa frente.
- Cadê minha irmã?
Era o pagodeiro Flávio. Estava com tanta pressa que parecia que iria morrer
no dia seguinte.
- O que foi que ouve? - Indaguei -.
80
O Jornaleiro
- Não sei!... Vamos! Onde ela está?
- No quarto - respondi -.
Correu até o quarto da irmã. Quando demos de cara com ele, parecia que
queria nos engolir. A sua expressão era de assombro, igual a da irmã a alguns
instantes; parecia querer tanto ela como nunca quis em sua vida. Estava junto
a mim Maria, que não me deixa mentir.
A única contradição foi aquele “não sei” com aparência de saber tudo. A
única dúvida era: ele sabe de que? Se é que há alguma coisa pra se saber.
O rapaz voltou do quarto da irmã, nos fitou com uma cara de desolação e
nos alertou:
- Olhem, se chegar alguém... Alguma pessoa de fora; diga que nós não
estamos, viu?
- Tá bom! - Respondemos simultaneamente -.
Desta vez parecia estar mais calmo.
- Vocês vão sair? Desculpe perguntar. (Perguntei-lo)
- Não, não. Nós vamos está aqui mesmo, em casa.
- Ah! Sim...
- Estamos no quarto de Estela e não queremos ser incomodados, tá certo?
- Tá! Falamos.
Ô gente que gosta de mandar!
O dia se passou vagaroso. As nuvens pareciam estar ansiosas para deixar o
céu: corriam como loucas a procura do infinito; o céu que sempre foi
apaixonado por todas elas, não queria permitir que “doutor infinito” se
apossa-se de nenhuma. Mas, as nuvens fugiram, todas elas, e o céu, com a
sua dor de cotovelo, ficou cuidando das crias que as nuvens deixaram pra
trás, as estrelas.
Deixei a Avenida Centenário para ir ao ponto que fica em frente ao
shopping porque tive que comprar um par de chinelos novos, em um camelô
amigo meu; ele fez mais barato. Os da praia já estavam esgotados. Eram seis
horas da tarde. Estava cheio, como sempre. Os ônibus passavam aos montes
e com os montes, alguns, quando lhe apontavam o dedo paravam, outros nem
81
Cristiano Sousa
davam bola e seguiam direto; sabia que o meu não era tão rápido. Olhava ao
redor de vez em quando. O que mais me impressionava, e ainda me
impressiona neste poço em que estamos mergulhados, não era a riqueza, esta
que estava embutida, exibida, propagada ali na minha cara e na de todas as
pessoas, baianas e turistas, que rondam esta grande metrópole, e sim a
pobreza. Quando vejo pessoas, crianças e adultos, dormindo aos pés dos
transeuntes, ou então lá, do outro lado, aos pés do monstro consumidor, que
por falta de imaginação nacional denominaram Shopping Center. Uma das
provas que nós, brasileiros, temos que deixar a mania de imitação e construir
um novo mundo. Quando via muitos companheiros tendo que se “matar” no
trabalho para dar comida aos filhos, vendendo o que tem, fazendo biquinhos,
ou sendo vendedores de rua, dava graças a Deus por estar trabalhando
naquela casa, não que fosse uma maravilha, mas era um emprego. E desejo
boa sorte a todos, de coração.
Finalmente! chegara a carroça. As vezes penso em coisas como aquelas que
vi e me pego falando sozinha. Perguntei as horas a uma pessoa, aproximava
as sete. O ônibus (não era de se estranhar) estava amarrotado. O que também
não era de se estranhar é que não houvesse ordem para entrar. Neste horário
pagar ônibus em Salvador é uma aventura; sempre há um tumulto inicial para
entrar e se acomodar; em grande parte não existe lugar pra todos sentados e
às vezes nem em pé, muitos tem que improvisar, coisas do tipo sentar no colo
de um parente ou conhecido, se encaixar entre as pernas de um outro,
entregar o peso a alguma pessoa que esteja disposta a segura-lo; ir na traseira,
às vezes saltando dali mesmo; ir de surfista (que perigo). A maioria das
pessoas viajam mesmo é se ralando um no outro. Os ônibus são assim; uns só
viajam pessoas bem comportadinhas, geralmente os que rodam mais pelo
centro e bairros nobres, e outros são os da bagunça, aqueles que viajam
muitas pessoas extrovertidas, é nessa ala em que estou, mais por falta de
sorte que por vontade própria. Todos os dias quando eu pegava o carro de
manhã cedo era forçada a aguentar uma bagunça tremenda; ia uma turma que
sempre pagava o mesmo ônibus, chegavam cedo e por isso eram os primeiros
na “fila”, que só existia pelo fato de ser formada no final de linha, pois se
fosse em qualquer outro ponto a bagunça era geral. Esta turminha fazia a
festa no ônibus; algumas pessoas não gostavam mas se encontravam na
mesma situação que eu: sem poder correr.
82
O Jornaleiro
O ônibus demorou quase uma hora pra chegar no Arenoso. Eu não tinha
relógio, quando perguntei a uma senhora que havia descido comigo disse que
faltava quinze para as oito. Saltei num ponto perto da invasão das casinhas;
cortei caminho, coisa habitual pois o bairro é cheio de “buracos”; desci por
uma ladeira que não era a do “Pelô”. Passei em frente das casas de varias
conhecidas, as mais “intimas” me cortejaram, as menos “intimas”, bem
timidamente. Passei também em frente a alguns bares, inclusive um que meu
marido costumava beber, não o vi, o bar do conhecido Senhor Batista; se não
estava neste dificilmente estaria em outro, então pensei: “ou ele chegou e foi
direto pra casa, o que achei difícil, ou ainda não chegou, o mais provável”. Vi
minhas crianças brincando em frente a porta da vizinha. Quando me
avistaram não puderam conter uma gargalhada de alegria. Estranhei apenas
estarem do lado de fora, pois Camile e Nico tinham ordens para não os deixar
sair e nem ficarem perambulando por ai. Andei um pouco mais devagar só
pensando neste detalhe, enquanto os dois, Sula e Tovinho, correram em
minha direção, pulando de alegria, principalmente o menino.
- Mainha! Mainha! - Gritavam transloucados -.
Tovinho foi o primeiro a me alcançar, dando um verdadeiro salto em meus
braços cansados, Sula se agarrou na minha cintura. Reparei uma coisa que
não gostei e que não era normal: as crianças estavam sujas e descalças, coisas
que eu odiava ver em meus filhos; estavam totalmente jogados. Ah! Eu pirei.
- Meninos! (Falei parando em frente a casa) porque vocês estão sem tomar
banho? Eu já não disse que quando chegar em casa quero os dois limpos? E
os chinelos? Cadê os chinelos? Seus irmãos não estão aí pra vê isso, não?
- Não! - Respondeu Sula -.
- O quê? E onde estão?
Aquele “não” que fez a Sula me feriu profundamente. Fiquei sem saber o
que dizer e entrei com os dois. Realmente, os irmãos mais velhos não
estavam
- Cadê seus irmãos, meninos?
- Não sei! (Disse o inocente Tovinho) Parecia que pra ele aquele era um
enigma tão difícil de resolver quanto pra mim.
Já a minha pequena foi mais objetiva:
- Eles ainda não chegaram.
- O quê, Sula?
83
Cristiano Sousa
O meu coração, que já estava ferido, acabou de morrer de tensão.
- O quê? Eles ainda não chegaram?
Esta notícia fez eu cair de costas, me acolhendo o velho sofá; só não afundei
mais neste porque os seus buracos ainda não estavam muito grandes.
A preocupação abateu toda a minha pessoa, e para tentar aliviar este parasita
que, por ocasião do destino, sempre se instala em nosso pensador, tirei
satisfação com as crianças.
- Eles ainda não chegaram? Camile da escola e Nico do jornal? Meu Deus!
A preocupação, realmente, tem a mania de se instalar em nossas mentes,
seja por uma coisa imperiosa, ou seja por um motivo fútil. Eu não sabia, mas
achava que naquele momento estava entre as duas cabeças da cobra cega;
conhecia meus filhos muito bem, e sei que o Nicolau não era de fazer farras
por ai, principalmente com o pouco tostão que ganhava naquela miséria de
trabalho. Camile sim, talvez não tivesse em casa por este motivo.
É minha filha mais velha, gosto tanto dela como dos outros, mesmo dizendo
que pego muito em seu pé; não queria estar corrigindo-a sempre, é que a
mimada não gosta de me obedecer; tinha sempre que ficar chamando a sua
atenção para as coisas que sei que não eram corretas. Gostava muito de uma
farra como já citei antes. (aventuras e festas eram com ela mesmo) Não que
eu seja contra o divertimento, mas admito que se dependesse de mim ela não
participaria de muitas. Quando a menina teimava demais eu tinha que
repreendê-la mais calorosamente porque senão tomaria as rédeas. A única
coisa em que eu não me preocupava muito eram os estudos. Sempre foi uma
boa aluna, tirando em quase todas as séries em que passou ótimas notas;
nunca perdeu um ano sequer e cursava já o segundo grau. Enquanto muitos
se perdiam pelo meio do caminho. O ano letivo tinha acabado de começar e
ela já estava detonando, enquanto os meus outros meninos estavam com
dificuldades. Pus o Tovinho no turno da manhã com ela, Nico e Sula no da
tarde, para que a casa não ficasse descuidada.
Era uma moça muito bonita. Puxou a família do pai, como o Tovo. Não fez
nenhum concurso pra modelo, mas se fizesse ganharia de goleada. Tinha uns
cabelões que paravam no bumbum; seus olhos, como os cabelos,
contrastavam com a cor de sua pele clara; enquanto os fios eram negros, as
84
O Jornaleiro
“sementes”, castanhas. Costumava usar calças jeans, bem apertadinha e que
chegava até metade das canelas, e uma blusa em que saía para o colégio até
que chegasse no portão, pois daí em diante vestia a da escola, esta que era
azulzinha e deixava o pescoço e as costas nuas enquanto o ventre parecia
querer pular para fora; eu não gostava muito, e tinha o apoio do Nico, só que
entendíamos que são coisas da juventude moderna e que não podíamos
evitar.
Fiquei indignada com a atitude daqueles dois; “eles vão ter que arranjar uma
boa explicação para me dar”. Cheguei em casa super cansada e ainda tive que
fazer todos os trabalhos, como por exemplo dar banho nas crianças, porque
sozinhos não tomavam direito; fazer comida pra Carlos, que ainda não havia
chegado, e outras coisas mais. Depois que acabei, sentei um pouco no sofá
pra ver a hora que iriam chegar, principalmente o Nicolau, pois era a situação
dele que me incomodava mais. O relógio tinha os ponteiros mais adiantados
da vida, eram quase vinte e duas horas. Coloquei os meninos pra dormir e
esperei. Passou-se poucos instantes, foi quando apareceram em minha porta
dois vultos; estava meio aberta, o que me permitiu observá-los malmente,
pois não se aproximaram muito. Não os reconheci, percebi apenas que
olharam pra mim de onde estavam, a localização do sofá permitia isso.
Aproximaram-se mais, cochicharam entre si; então me preparei para revidar a
um possível assalto; coloquei a mão esquerda sobre o braço do sofá e
levantei esperando o pior; virei-me em direção ao quarto onde estava uma
arma de fogo do meu marido, apenas para amedrontar porque não sabia usála; lembrei da porta, estava aberta e eu tinha que fecha-la rapidamente. Foi o
que tentei fazer, mas não o fiz porque um deles gritou:
- Dona Jandira, Sou eu, o Basu!
85
Cristiano Sousa
VII - A FUGA
A
quele foi um dos dias mais terríveis de minha vida. Tudo aconteceu
muito rápido; muito sem sentido. Os caras pareciam animais, não
deixavam que eu me defendesse; me davam tapas e pontapés, murros
por todos os lados do corpo; me xingaram dos nomes mais baixos, me
difamaram; pareciam querer mudar a minha opinião a respeito de mim
mesmo; fazer com que acreditasse no que eles “diziam” ao meu respeito. Era
desta forma que agia a polícia.
Cheguei de tardinha a um departamento de policia nas proximidades do
local onde aconteceu o fato. Na hora de sair do camburão não tiveram pena,
meteram mais porrada, e olhe que já estávamos algemados. Entramos na
delegacia pela porta dianteira, eu e mais três dos assaltantes presos, os quais
julgo sortudos, ou, no mínimo pouco azarados. Nos levaram escoltados por
uns sete policiais bem armados, “até os dentes”, como se diz na gíria.
Passamos por uma sala, que com o meu nervosismo e pouco conhecimento
de prisões, pensei ser a do delegado (foi bem pensado) e ele estava lá,
sentado ante sua mesinha prestando atenção aos atos dos seus comandados.
Bigodudo, de cabeça calva, os olhos querendo morrer de cansados e de tanto
nos olhar, com o seu traje super especial, propositadamente enfeitado de
armas para aparecer na televisão. Levantou-se do seu aconchegante trono e
ordenou que encostássemos na parede, de frente, pois tínhamos que ficar
famosos também. A TV ZONAL e vários outros jornais estavam no
departamento, inclusive ele, o nosso querido e conhecido GAZETA DO DIA.
Houve um cuidado especial comigo logo na entrada da delegacia; mandaram
eu tirar o traje de jornaleiro na hora das fotos, coisa que não entendi bem
naquele momento tão tenso. Deram-me apenas uma bermuda jeans. A
impressa baiana não perdeu tempo. Tiraram fotos á vontade de nós,
“marginais”, nos submeteram á outras humilhações do tipo ter que dar
entrevistas forçadamente. Depois de toda esta zona, nos mandaram direto
para o xadrez.
Houve uma série de violências que nem pretendo citar aqui, mas os caras
nos levaram, debaixo de socos e pontapés, coisas sem precisão, pois já
estávamos a muito tempo de algemas; se a televisão continuasse nos
cobrindo eles seriam mais razoáveis.
86
O Jornaleiro
- Vamos desgraçados! Filas da puta! Entrem logo aí dentro, vamos!
Depressa! - Gritavam assim os malditos PM‟s, nos indicando com cassetetes
as respectivas celas -.
Gemíamos de dor como gemiam de prazer aqueles cassetetes; prazer que se
refletia nitidamente na face daqueles animais. Oferecíamos resistência, mas
uma resistência sem fundo nem garantia. Se pudesse ver nossas caras de
temor naquele momento, companheiros, iam saber o que sentimos. Não
esperavam que andássemos, empurravam-nos, como nos empurraram diante
de outros detentos quando paramos na boca da jaula. Um de nós foi colocado
em uma cela anterior.
Eu estava amedrontado com aquela situação em que tinha me metido, e
fiquei muito mais amedrontado quando, ao levantar da queda, reparei em
meu redor. Eram as caras mais estranhas que eu já tinha visto. Dois
mostraram logo intimidade com aquele ambiente sujo e mal cheiroso, se
jogaram num pequeno espaço que não era reservado, mas os “aconchegou”,
enquanto eu achava tudo estranho e medonho. Disfarcei o olhar para não
encarar os outros presos, foi nesse instante que um PM gritou:
- É melhor se acostumar porque é onde você vai morar daqui em diante.
Não posso negar que tive medo. Um dos prisioneiros começou a nos
intimidar.
- E aí manos, como é que vão vocês?
Houve um instante de silêncio após a nossa resposta. A minha foi:
- Legal! - Bem serena e que tentava decifrar a mente do detento curioso -.
Todos olharam pra gente, pareciam enxergar o terror em nossas faces,
principalmente na minha.
A prisão não era pequena, tinha um tamanho razoável, mas a quantidade de
presos que estavam embutidos nela não era nada normal, cada cela parecia ter
o triplo de pessoas que suportava; era uma coisa assustadora. Não sei como
conseguimos entrar na que nos encontrávamos, pois, não havia espaço nem
para andar, era uma gritaria só. Todos os “animais” passavam a maior parte
de seus dias ali, trancafiados, sendo pressionados pelos próprios
companheiros contra as grades; braços e pernas para fora, apenas o corpo e
87
Cristiano Sousa
cabeça para dentro, partes que sofriam mais. Isso para os mais fracos, porque
os mais fortes ainda conseguiam um espaçozinho no meio daquela multidão.
Anoiteceu na Bahia. Pude sentir este momento quando percebi que a luz do
sol não entrava mais em nossa cela; o nosso belo „sol quadrado‟ foi apagado
pela sombra da noite, da mesma forma que a ficha quadrada foi manchada
pelo meu dedão pintado de preto.
Tinham-se passados poucos minutos de escuridão no estado e em minha
alma, foi quando prestei atenção naquele peixe que antes tinha puxado papo
com os novatos; o cara, desde que cheguei, parecia estar vidrado em minha
pessoa, não parou de me olhar o tempo todo; parecia querer me dominar com
o seu olhar de galo chefe; também comecei a encará-lo mais constantemente.
De repente me bateu um medo obscuro, que dominou toda minha alma clara.
O cara levantou com incrível habilidade do canto em que estava encostado e
dirigiu-se com lisura em minha direção. Eu estava totalmente sem ação na
posição que me encontrava, todo amassado por grades e pela carne fresca dos
detentos, que em sua maioria ajudaram a escurecer ainda mais a minha
situação e de toda a “delega”, pois estavam ali, em sua maioria, pessoas de
pele escura. Pensando neste fato, reparei que aquele ambiente contradizia
muito com os arranha-céus de Salvador.
O cara encostou em mim. A minha vontade era de gritar por socorro, mas
consegui vencer este demoniozinho que palpitava em minha orelha esquerda;
segurei na face uma expressão solida.
- Oi amigo! Tô afim de levar um papinho com você. Vem mais pra cá! - E
me puxou com firmeza para o canto que antes ele estava sentado. Só não caí
por cima dos outros porque não havia espaço pra isso -.
Me colocou a força no canto, enquanto os outros olhavam e encobriam as
suas atitudes. Fez um gesto com a mão esquerda para um de seus camaradas,
pedindo que levanta-se algo; eu não vi o que era. Sem esperar, apertando os
outros presos da cela para se afastarem, apareceu repentinamente no chão um
buraco.
- Ih! Fecha!... Fecha que “évem” o guarda! - Cochichou um dos cúmplices,
gesticulando com uma das mãos rente a cintura, para que baixassem a tampa
disfarçada -.
88
O Jornaleiro
O policial passou direto diante desta cela, mais uma e parou na próxima, do
lado oposto. Depois dele vieram mais alguns, de certo para auxiliá-lo em algo
alheio a mim. Um dos PM´s que chegaram depois tirou do bolso um anel de
chaves e entregou ao primeiro, este, por sua vez, inclinou uma daquelas ao
trinco da cela em questão; apontou o seu indicador para dois presos que
estavam ali, chamando-os; a dupla foi algemada e levada. O PM mostrou
uma feição segura aos outros detentos para que não tentassem nenhuma
gracinha, apesar de estar bem escoltado. Antes de saírem, olharam de relance
todas as celas; a nossa, como todas as outras, parecia estar na maior
normalidade; nada de brigas, agressões, discussões, e etc. Muitas não tinham
espaço nem pra esse tipo de coisa! Neguinho dormia até pelos “céus”! Seus
únicos espaços eram redes colocadas nas extremidades.
Quando se foram os policiais, aquele que parecia ser chefe da cela
aproximou-se novamente de mim.
- Viu aquilo?-Gritou em tom seco o anônimo, dando uma de mestre dos
condenados -.
Gesticulei com a cabeça que sim; tinha presenciado a cena; apesar do filme
ser inédito e não compreendido. Logo esclareceu pra mim o que havia se
passado ali. Anfitrião!
- Aqueles são homens mortos. Estão condenados a serem infelizes para
sempre. - Cuspia em minha cara quando falava com a sua ignorância -.
Arrisquei usar minha voz pela primeira vez ali, na escuridão do medo, com
uma simples palavra:
- Porquê?
O chefão pareceu não ter gostado da minha resposta; considerou uma ironia
de minha parte ousar abrir a boca pra lhe falar. Não consegui imaginar a sua
intenção ao meu respeito naquele momento, sei que disfarçou a sua face
maldosa e continuou a sua fala mal educada.
- Aquele são peixes (continuava a falar cuspindo) que não vão viver nunca
mais, porque vão morrer na mais bela casa que existe na Bahia: a casa de
detenção. Como muitos de nós também vamos. Se não sairmos daqui antes.
O tom usado pelo homem foi grave e seguro, como o seu olhar nervoso e
sincero; foi o suficiente para me tirar do sério e colocar no confuso. A última
89
Cristiano Sousa
frase expressa por este tinha acabado de me dizer tudo. Me encontrava em
total êxtase quando acrescentou:
- Hoje ainda! zero hora! E me apontou o local por onde iríamos fugir (o
buraco no chão).
Eu estava perdido. Não tinha como me livrar daquela situação terrível; e a
duvida corroía a minha consciência. “Afinal, devo ficar ou devo fugir?” Sei
que as duas opções eram como tomar um tiro ou beber veneno. Se ficasse,
seria condenado a, quem sabe, até morrer na prisão; se fosse, nunca mais
ficaria de consciência tranqüila em minha vida, seria destinado a estar sempre
fugindo da policia ou dos mesmos “companheiros” que me ajudaram a fugir.
Tinha que tomar uma decisão naquele momento.
As coisas acalmaram-se bastante na prisão e em minha alma. Aquela
situação me afligia até os nervos; enquanto o do outros pareciam estar na
maior paz, cada um na sua, eu estava em meu inferno astral, onde o demônio
se chamava justiça.
O tempo estava sendo meu maior inimigo, passava tão rápido quanto a
comissão em meu bolso. Eram mais de vinte e três horas, vi o chefão olhar
num pequenino relógio tirado de... “não sei de onde”, talvez algum amigo ou
parente que tivesse traz... Ixi!... Se entrou um relógio na cela, poderia ter
entrado outra coisa, como por exemplo, armas. Pensei comigo esta
verdadeira realidade, pois eu via muito disso nos jornais e televisões, pessoas
que na hora da visita levam armas escondidas nos mais diversos lugares. E se
eles me forçassem a usar alguma?
O tempo não deixava de correr, parecia também estar fugindo da policia,
enquanto o meu coração havia levado vários tiros e cogitava ferido.
Repentinamente o chefão aproxima-se de mim.
- Vamos! Você é o terceiro a sair, falava baixinho, siga os passos dos da
frente e nada te acontecerá; vai dar tudo certo!
Estava bastante agoniado com tudo aquilo, e ainda tinha dúvidas se deveria
ir, mas decidi em cima da hora.
- Eu não vou!
- O que? Não vou?
90
O Jornaleiro
Escancarou em mim todo o ardor dos seus olhos. Bateu em mim uma onda
de medo, que não deixei me banhar. Só não contei com o bom censo do
covarde que, sem perder tempo, tirou de dentro das calças um belo de um
“três oitão”; apontou em minha nuca e ameaçou:
- Você vai sim! Porque eu quero que você vá!
Sonhei demais. Eu não tinha escolha.
Fez sinal para que outros descessem porque nós seriamos os últimos. Fitoume serenamente com seu olhar de bacalhau quando é fisgado e falou:
- Você pensou bem no que eu te disse há horas atrás?
- Sim pensei muito...
Neste instante se aproximaram passos pelo corredor; pareciam, pelo barulho
das falas, serem três pessoas. Todos já tinham praticamente saído, faltavam
apenas mais um e nós dois, então nos preparamos, eu particularmente, para a
fuga de minha vida.
*
*
*
- “Seu” Bira... Será que o meu filho tá bem? Oh! Meu Deus!
- Se acalme Dona Jandira. A gente vai tirar ele de lá. Ele é inocente! Afirmou o bondoso Basu -.
Não havia consolo que me acalmasse naquele instante. O coração de mãe é
maior escravo que um filho pode ter, porque nunca lhe é infiel.
Desde que apareceram lá em casa aquele homem junto com o melhor amigo
de meu filho, eu não esperei coisa boa. Me deram um susto de primeira, mas
não houve demora que entrassem e me explicassem a razão de suas presenças
em minha casa. O meu Nico estava preso.
Custei a acreditar na estória que me contaram, dizendo que o meu filho
estava vendendo jornais e de repente foi preso por ser cúmplice de
assaltantes.
91
Cristiano Sousa
- Mas como pode uma coisa destas? A minha criança é incapaz de roubar
uma velhinha cega! E como preso? Não podem prendê-lo! Ele é de menor!
Estávamos no carro de “Seu” Bira, a caminho da delegacia que levaram
Nico; o meu coração parecia querer pular para fora da boca. Tive que deixar
as crianças com uma vizinha porque Carlos e Camile ainda não haviam
chegado em casa.
O tempo se tornou meu adversário cruel, eram meia noite e meia e ainda
estávamos no itaigara.
- Ô Basu, me explique direito o que realmente aconteceu. Pedi novamente,
pois tudo que me falou antes foi muito rápido.
- O que aconteceu foi o seguinte Dona Jandira (E preparou-se para me
explicar). “Eu tinha acabado de vender os meus jornais e peguei o “buzú” pra
ir prestar a minha conta; quando o ônibus passou pela frente da Rua Piauí,
onde tem uma agência bancaria, tava um tumulto tremendo; logo de primeira,
não vi nada que me interessasse; só que depois, quando o carro arrancou,
avistei seu filho metido naquela zorra. Não pensei duas vezes, gritei pro
motorista: “motô”, pare que eu vou descer! E saltei ali mesmo. Vi Nico
metido na maior enrascada; vários “policial” em redor dele; de algemas.
Batiam nele e em mais três. Eu ainda não sabia o que tava acontecendo, foi
quando ele me viu e gritou, eu corri pra perto dele.
- Porra bicho, o que foi que aconteceu?-Perguntei aflito e com medo de levar
porrada-.
- Eu não fiz nada cara! e tão me prendendo! - Vomitou pra mim estas
palavras -.
A rua era uma zona só; todos que passavam paravam pra olhar a festa.
Depois disto os PM‟s botaram eles no camburão e levaram; pouco depois
passou Bira com a Kômbi e me perguntou o que tinha acontecido, e eu falei o
que vi.
Resolvemos então, passar rapidinho na distribuidora pra deixar os meninos,
Bira arranjaria alguém de confiança pra prestar as contas, e ir comigo na casa
da senhora. Antes disso, teve que gastar um tempão conversando com o pai
de um jornaleiro que reclamava que o filho não aparecia há uma semana e
culpava ele pelo sumiço do menino.
92
O Jornaleiro
- Só que eu disse pra ele (interrompeu Bira) que o filho dele ainda não está de
maior, mas já é um dos maiores maconheiros daquela Amaralina, e que ele
desse um jeito, senão qualquer dia o menino pode aparecer por ai, com a
boca cheia de formiga.
- E depois disso, já tarde, é que fomos pra casa da senhora.
Quando Basu acabou a narrativa chegamos a delegacia, de onde, disse o
menino, eram os policiais que tinham levado o meu filho. Bira parou o carro
zero em um estacionamento próximo. Saímos. Eu que estava bastante aflita,
fiquei mais ainda. Havia um tumulto enorme na frente do departamento e que
corria todo o quarteirão; ficamos sem saber o que estava acontecendo. Vários
policiais apareciam de súbito com um vagabundo em seu domínio; ficamos
agora, os três assustados com aquela situação, tanto que o distribuidor
alertou:
- Olhe, vamos entrar logo que a coisa aqui fora tá feia, vamos!
Bira e eu adiantamos os passos, mas um soldado da polícia nos barrou.
- Vão pra onde?
- Vamos falar com o delegado - adiantou-se Bira -.
- Quer falar com o delegado o quê! Vocês não tão vendo o que está
acontecendo?
Olhamos em nosso redor, como que cientes de tudo.
- Vocês querem o quê? - Continuou o PM -.
- O meu filho foi preso aqui nesta delegacia...
- Volte nos dias de visita - interrompeu-me -.
- Não, meu senhor! - Bateu de repente dentro de mim, uma coragem
inexplicável; a coragem do gavião que protege o seu ninho. - O meu filho
não era pra estar preso, não! Ele é de menor! (Exclamei com raiva)
Me pareceu ficar tonto o cara, sem palavras pra latir, o grosseiro. Estava
disposta a passar por cima dele pra entrar naquele poço de merda, mas não
precisou.
- Vamos, entrem logo! O delegado está na sala! - E abriu a joça do portão -.
Entramos depressa, debaixo de toda aquela agonia do momento, no
ambiente e dentro de mim.
93
Cristiano Sousa
Cruzamos a porta do recinto com indignação, eu particularmente. Estava
ansiosa pra saber onde estava o meu filho. Demos de frente com o doutor,
que nos cumprimentou muito elegantemente:
- Quem deixou vocês entrarem aqui? Não estão vendo que estamos
ocupados? O que foi?
O cara de piaba ergueu as frontes, o que pareceu ter intimidado Bira, mas a
mim não!
- Sabe o que é “Seu” Doutor? O meu filho, Nicolau Albuquerque Andrade,
foi preso aqui hoje pela tarde, e eu só fui avisada agora. Eu quero ver o meu
filho!
O delegado sentou-se em sua cadeira, onde se encontrava até então
recostado; antes de nos ver estava ao telefone, e só depois nos deu maior
atenção.
- Me desculpem? - pediu o bigodudo - É que houve uma fuga aqui há poucos
instantes.
Esta nova revelação fez com que eu, fingindo sentar, caísse de bunda na
cadeira que estava em frente a dele. Continuou o homem:
- Eu estou com a mente fervendo, vocês nem imaginam. - Faz um gesto de
temor colocando o cotovelo sobre a mesa, onde a mão direita auxilia a
cabeça. - Fugiram, uma cela inteira!
Agora já sabíamos o motivo da correria do lado de fora do distrito. Mas eu
não dava a mínima pra isso, queria era ver o meu menino.
- Mas senhor, o meu filho...
- Quem é? Qual o nome dele mesmo?
- Nicolau Albuquerque Andrade.
- Ah sim! - Me olhou com severa atenção - Foi um que chegou aqui hoje a
tarde?
- Sim, foi esse! - Concluiu Bira -.
- Foi exatamente os elementos da cela em que ele estava.
- O quê?
Subiu naquele instante todo o mundo pra minha cabeça. Fiquei sem saber o
que
dizer,
até
que
Apaguei..............................................................................................................
94
O Jornaleiro
............................................................................................................................
.............................
- Dona Jandira. Tá acordada?
Ouvia de longe uma voz dizer isto pra mim. Era o senhor Bira, que, quando
despertei, me encontrava deitada nos braços. Lembrei rapidinho o que havia
se passado na sala do delegado, onde ainda estávamos; eu, sentada na mesma
cadeira, esta agora recostada em um dos vãos da sala, onde se encontrava a
única janela. Bira, com um dos braços apoiando meu pescoço e o outro com
um papel, achando que me abanava. Basu continuava no carro. A uma altura
dessas muito aflito. Não perdi tempo em perguntar:
- Cadê meu filho?
Ouvindo-me proferir estas palavras, o delegado aproximou-se, saindo do
seu aconchego, e apontou o dedão indicador para a porta de entrada daquele
inferno. Olhamos curiosos, e, depois de segundos, nervosos e tensos.
Apareceram de súbito três vultos de fácil identificação: dois eram PM‟s, os
quais acompanhavam...
- Nico! Meu filho!
Foi um dos maiores berros que já soltei, o qual tirou toneladas de minha
consciência. Pulei da cadeira onde estava sentada e, em questão de milésimos
(eu acho) dei um belo abraço em Nicolau, o meu menino.
- Graças ao meu bom Senhor Jesus!
95
Cristiano Sousa
VIII-DEPOIS DA EXPLICAÇÃO, A TRANQUILIDADE
“
...Os caras chegaram quando ninguém estava esperando, já haviam
alguns deles infiltrados lá dentro, outros chegaram depois, uns dois,
que anunciaram o assalto; a partir daí, os que estavam disfarçados de
clientes mostraram suas verdadeiras identidades; eu nem tinha pego o
pagamento do jornal, foi este meu azar porque os malandros olharam pra
mim e me liberaram. Fui o único que não foi roubado, por causa da minha
condição de vendedor de rua.
Pessoal, eles levaram o dinheiro todo que havia na agência e dos clientes
também; não deixaram um centavo de ninguém. Antes de fugirem brincaram
com os seguranças. O último a sair foi o que me arranjou toda complicação;
me agarrou pelo pescoço, forçando a ir com ele como reféns eu e mais duas
outras pessoas, de canos nas cabeças.
Saímos, três reféns e cinco descarados, da agência, os primeiros sendo
levados pelos segundos. O carro da fuga estava estacionado em uma livraria
do outro lado da rua. A parte que mais colocou em risco as nossas vidas foi
quando chegou a polícia; vieram várias viaturas de ambos os lados da
avenida, interditando o trânsito. Os policiais saíram das viaturas mandando
os bandidos largarem as armas, eles não largaram, e ambos começaram
atirar; quem passasse na hora poderia levar um balaço. Nos arrastaram até o
carro da fuga, fomos usados como escudo. Os policiais hesitaram em atirar e
apenas se protegeram. Até que um tiro surpresa atingiu a perna de um
bandido, não sei se perfurou profundamente ou se foi apenas de raspão
porque não dava pra ver direito e nem pude perceber pela fisionomia do
pobre miserável, pois foi um dos que estavam com capuz. Acabou ficando ali
mesmo, no chão. Houve desequilíbrio total nos ladrões. Nem todos tiveram a
sorte de fugir, apenas dois entraram no carro e não esperaram pelos outros.
Quase que me levam também...”
- Sim Nico! E daí? Explique direito, com calma! (Ordenava a minha velha)
“...Me empurraram pra fora do carro e “botaram mola” enquanto os outros
ficaram com reféns, mas sem ter pra onde correr. Os merdas dos policiais não
tiveram habilidade para alcançar os que fugiram, pois fizeram uma bela
pirueta com o carro e se mandaram pela orla, onde o transito estava livre,
ficou difícil pros PM‟s...”
96
O Jornaleiro
- E porque “os home” te levaram preso? - Perguntou Basu -.
“...Quando os PM‟s algemaram os que ficaram, eles disseram que eu
também fazia parte da quadrilha, então os policiais vieram, me revistaram e
acharam uma cédula roubada no bolso do meu calção, que eu nem sabia de
onde tinha saído, e uma carteira de identidade que não era minha, mas eles
acharam que era. Como apareceu eu não sei! A carteira que não era minha
tinha a fotografia de um rapaz que não conheço, aparentando ser de maior, e
por isso fui para a delegacia. Quando descobriram que não era minha a
identidade queriam me levar para a menor infrator. Estávamos no meio do
caminho quando o delegado ligou pro celular de um policial e mandou voltar,
que a senhora tinha ido me buscar.” (Virei pra minha velha os olhos nestas
últimas frases, e apontei-lhe o indicador).”
Estávamos todos lá em casa, mainha, meus irmãos, meu pai, Bira e Basu e
eu. Passavam das duas da madrugada, ninguém dormiu com aquele “trololó”
todo; realmente foi um sufoco toda aquela confusão; o mais incrível de tudo
isto é que acabei sendo elogiado pelos próprios policiais, que acharam muito
inteligente da minha parte não ter fugido da cadeia.
Bira achou suficiente a história e disse que tinha que voltar pra casa, foi o
que fez; pegou o seu carango que estava estacionado na porta e se foi,
levando de carona até a rua de cima, o Basu. Camile parece ter achado
estranho eu não ter fugido da prisão, então tirou a sua dúvida.
- Nico, e porque você não fugiu? E se os “cara” te apagassem? - Fez em tom
de gozação, como sempre, apontando pra minha cabeça o seu indicador
imitando uma pistola -.
- Eu insisti em não ir. O chefão viu que eu estava decidido e me deixou ficar,
principalmente por se aproximar os policiais que iriam me levar para o
juizado, esses que descobriram a fuga e alertaram logo a todo o comando.
(Expliquei à menina, deixando que os outros presentes também ouvissem)
Minha mãe mudou o rumo da conversa.
- E vocês dois, dona Camile e senhor Carlos; onde estavam quando cheguei?
E que horas chegaram?
Houve uma pausa. Meu pai que até então só ouvia a conversa se
pronunciou:
97
Cristiano Sousa
- Eu tinha que fazer hora extra, foi coisa lá da empreiteira nova onde me
botaram. Cheguei aqui cedo. Não eram nem doze! - Exprimiu um gesto de
tranquilidade soltando uma risadinha falsa -.
- Anh... E a senhora Dona Cam...
Quando a velha voltou a face para o outro lado, Camile já estava no quarto,
deitada.
Todos seguiram o seu exemplo e foram dormir.
No dia seguinte não fui ao jornal, levantei com uma indisposição “braba”.
Dormi no sofá, era pequeno mas cabia os meus balaios; deixei o Tovinho
sozinho em nossa cama improvisada ali no chão. Acordei tarde, mas nem
parecia ser porque só a batalhadora estava de pé, eram dez da manhã.
- Mãe!
Chamei quando passou por mim; parecia estar com bastante pressa pois
andava à passos largos por toda a casa, principalmente cozinha e quarto, mas
não o dela e de meu pai e sim o das meninas. Vi um copo plástico em sua
mão que não dava pra perceber o que tinha dentro, carregava com tanto
cuidado que fiquei curioso.
- Pra quem é isso? - Perguntei, esfregando as mãos nos olhos -.
- É a Sula, coitadinha. Está doente!
Esta última frase infiltrou em mim uma flecha de vivacidade. Minha velha
mostrou uma expressão de colegial, preocupadíssima com a nota final;
contraíra as sobrancelhas, fazendo com que sua testa ficasse toda enrugada.
Levantei do sofá num
impulso e me aproximei do quarto das meninas. Antes de mais nada
perguntei:
- O que é que ela tem?
- Está com febre.
Uma febre pode ser originada de várias doenças, por isso não levei em conta
esta resposta, queria mais, então acompanhei-la. Abrimos a cortina do quarto,
porque, como o outro, não tinha porta.
- O que é isso que a senhora tá na mão? (Me referi ao conteúdo do copo)
- É um chá que eu fiz pra ela. Eta menino! Tudo quer saber! É um chá de
erva doce. (fez a menina levantar para beber o chá)
98
O Jornaleiro
Senti que a velha estava bem nervosa, então poupei as minhas besteiras
orais; que elas ficassem presas em minha garganta. Sula teimou para não
tomar o chá, mas a batalhadora teimou com ela que bebesse até a última gota.
O quarto era pequeno, muito diferente dos quartos de crianças ricas da TV. O
barulho que Sula fez pra não tomar o chá acabou acordando a sua
companheira de quarto. Camile, a fujona, acordou esbravejando com os
presentes, coisa que durou apenas uma bela reclamação da mamãe.
- Que merda! (Gritou a fujona para o ar depois da bronca levada)
Ar que não circulava direito naquele ovo de aposento. O quarto, além de ser
pequeno, não tinha uma boa ventilação; não haviam janelas, apenas um
pequeno „comungó‟ empoleirado; duas camas de solteiro; um guarda-roupas
acabado, que ficava na cabeceira da cama de Sula; e nada mais de
interessante, a não ser que julguem como uns quadros de homens bonitos que
Camile pendurava nas paredes e um espelho com formato de coruja que os
vendedores ambulantes tem, também pendurado na parede do lado da
vaidosa fujona.
- Mãe! - Abusei mais uma vez -.
- O que foi? - Desta vez me respondeu brandamente -.
- O pai também não foi trabalhar?
- O seu pai? - Interrogou-me agora -.
- Sim, painho! - Reforcei -.
- O seu pai! Eu mesma tive que acordar ele, senão...
- E a senhora? Foi por causa da Sula que não foi, é?
- Acertou.
Mainha deixou as meninas deitadas e foi para a cozinha fazer nosso café da
manhã, segui os seus passos. Esta parte da casa não se distinguia das outras
em termos de tamanho, de beleza e nem da riqueza, apenas era o lugar que se
fazia a comida. (Diferença essencial). Como, na maioria das casas comuns,
se encontrava ali uma mesinha quadrada arrodeada de quatro cadeiras, ambas
de madeira, forradas por um bordado de crochê feitos pelas mãos da própria
dona da casa; geladeira pequena, dessas de marca moderna, que, como quase
tudo o que se fabrica hoje em dia, não foi feita pra durar muito, pois a
ferrugem já lhe tomava; uma pia de mármore, presente de uma família rica, e
o principal, o fogão, de onde saíam as melhores gororobas da minha vida. Por
falar nisso, tinha que fazer também o almoço, então recorreu ao meu apoio.
99
Cristiano Sousa
- Nico, mande Camile levantar, ela não foi pra escola então vai ter que me
ajudar aqui em casa. Que graça! Quer mordomia! Aqui eu só deixo deitados
hoje a Sula que está doente e o Tovinho que não fiz questão que fosse estudar
hoje porque não tem nada pra comer.
Prontifiquei-me a cumprir o ordenado. Antes reparei na sala, não lembro da
porta ter ficado aberta. Fui e tranquei.
Não tive ânimo de entrar no quarto, então gritei:
- Camile, mainha disse que é pra levantar!
Assim que terminei o grito escutei batidas na porta.
- Quem será a esta hora? - Falei baixinho -.
A velha ainda acrescentou:
- Nico, vê aí a porta.
- Já vou mãe!
Quando abri novamente, a surpresa.
- Camile! - Disse pasmado, pois pensava que a menina estivesse deitada -.
- Sai da frente!... Parece que não vê que eu quero entrar.
Fiz menção de abrir caminho mas ela não esperou, foi logo me empurrando
e entrando. Como sempre, grosseira!
Havia algo de insano naqueles olhos. Foi o que deixou-me perceber aquela
face pálida fora do normal. A menina parecia ter visto um bicho em sua
frente. Que coisa!... Depois reparei na rua e vi uma outra pessoa, um homem,
indo em direção às casinhas; não deu pra ver direito o seu rosto, apenas as
costas. Ele sumiu no labirinto de casas.
A velha, ainda não sabendo que foi Camile...
- Quem foi, Nico? - Gritou mais uma vez da cozinha -.
-Cam...
- Fui eu mãe, que entrei! - Respondeu subitamente a Camile -.
- Ô... E você tava aonde? - Acrescentou a velha -.
- Fui tomar um ar. (Já estava na cozinha)
Quem viu as feições da fujona naquele instante, não diria que foi aquela
pessoa que tinha acabado de passar pela minha frente. A maneira como
100
O Jornaleiro
explicou que “foi tomar um ar” pareceu produzir um verdadeiro efeito em
sua face.
Não tranquei de novo a porta. Decidi seguir o exemplo de Camile e tomar
um ar também. Coloquei as pernas pra fora e sentei-me no degrau da porta. A
rua não tinha muito movimento pois era dia útil; a primeira pessoa que
avistei não me agradou muito, foi estranha, mas a segunda!...
- Oi Niquinho!
Acho que Deus teve dó de mim e me abençoou com a melhor imagem que
podia aparecer naquela hora: a de minha Gorethe.
Chegou de supetão! Nem tinha visto. Eu estava com a cabeça infincada
entre as pernas quando ouvi aquela voz maravilhosa. Ela, com uma roupinha
simples e eu com um short que me devolveram ao sair da “delega”. Sua
graça fazia parecer que estava
pronta pra se casar. Encostou perto de mim e, iniciando um dialogo, começou
a fazer carícias.
- Por que não foi trabalhar hoje? - Soltou um beijinho tímido em minha face .
- Estou sem disposição!
- Só por isso?
Parece que percebeu a minha fisionomia exausta, pois não dava pra mostrar
outra. Tinha a mania de querer saber sempre mais, mesmo que este “mais”
não existisse.
Vendo que fiquei calado, continuou:
- Não te vi ontem, Nico! Onde você estava hein? - Cerrou as bochechas
soltando um risinho sarcástico, meio que desinteressado -.
-Você nem imagina!
Ao descarregar esta frase enigmática, virei pra Gorethe os meus lábios, cuja
intenção ela logo percebeu. Cruzamos as faces, fazendo com que nossas
bocas se abrasassem como duas almas gêmeas; o local não era nada
aconchegante, como as nossas posições corporais e o horário, apesar da rua
não estar muito movimentada e ser aquilo uma coisa normal nos dias de hoje;
101
Cristiano Sousa
eu ainda sentia um pouco de vergonha, totalmente contrastando com a minha
parceira, que se mostrava tranquila.
Quando terminamos aquela linda cena de amor, fui levantando o rosto
lentamente; as poucas pessoas passavam, mas apenas olhavam e nada mais;
com a exceção de uma, que não passava correndo como as outras, estava
logo em frente.
- Minha Avó! - Gritei para o outro lado da rua a vizinha. Vocês lembram
dela?
- Que pouca vergonha é essa menino? - Escrachou a velha, ainda com sua
cara de sono - (Era aposentada a coitada! E viúva).
Não demos bola, continuamos a conversar sobre coisas banais. A minha
Avó exercia em suas cordas vocais uma voz agudíssima, parece que não
percebeu quando eu a ouvi falar:
- Ah! Se fosse no meu tempo!
E entrou virando-nos as costas, como que desaprovando a nossa atitude.
Pelo menos fiquei sabendo que há uma fina diferença entre a visão de mundo
daquela senhora e a da sociedade moderna: aquela é sincera e fala na hora, e
esta, olha pra falar depois, por debaixo do pano.
Minha namorada e eu continuamos as caricias, ela mais do que eu sabia
fazer bem isso. Com receio de me contrariar, a garota retomou o fio da
conversa com uma brincadeira de adivinhe.
- Já sei! Você foi pra casa de sua Avó, a mãe de seu pai!
- Não!
- Então foi passear com alguma pessoa?
Também não. (Fazia de tudo para não me mostrar contrariado com aquela
conversa) Olha Gorethe...
Depois eu te falo o que aconteceu, tá bom? Agora eu tô numa “maresia
braba”.
Não percebeu que havia algo de suspeito no ar. Mas de onde viria isto? Da
minha mente, eu acho.
Passou-se um intervalo de vinte minutos até que a minha velha gritou mais
uma vez lá da cozinha.
- Nico, vem tomar café!
- Já vou, mãe!
102
O Jornaleiro
Levantei do batente em que estava acomodado, colocando um dos pés pra
dentro no intuito de entrar; antes de fazer isto chamei Gorethe, convidando-a
para me acompanhar naquela primeira refeição do dia. A resposta da garota
foi simples e firme:
- Não! Eu já tomei!
- Mas toma de novo! “Rumbora”
Nós temos esta mania. Somos pessoas de poucas condições financeiras, mas
nunca deixamos de ter um grande coração, fazermos questão de repartir o que
temos com os outros. Somos verdadeiros.
A minha menina insistiu pra não entrar, alegando estar sem fome; eu não
permiti que ela fosse embora tão rápido e insisti também, chegando até a
puxá-la para dentro, mas de um gesto que não houve violência e sim
graciosidade. Passei-lhe as minhas mãos por sua cintura, só faltei carregá-la
de tanta vontade que entrasse. Nesta ocasião já estavam todos ao pé da mesa.
Nos juntamos a eles.
A presença de Gorethe era comum em nossa casa. A comida, a de quase
todas as manhãs: pão ou cuscuz; de vez em quando uma coisinha diferente.
Nesse dia foi cuscuz de milho, desses milhos pré cozidos que tem na feira e
que é mais barato comprar dois ou três do que gastar a grana com pão,
acompanhado por um copo de café preto.
Mainha mandava cada um pegar os seus mantimentos (copos, pratos,
colheres e outros por menores) e colocá-los à mesa para que ela pudesse
servir.
- E você Gorethe, não vai tomar café com a gente? - Replicou a batalhadora
ao ver a menina parada num canto -.
- É!... Bota só um pouquinho. (Disse Gorethe mostrando a quantidade,
juntando o indicador ao “cata-piolho”)
- Então vai buscar o seu prato.
A mesa não cabia todo mundo, era pequenininha, então a velha disse pra
Sula e Tovinho sentarem no chão. Sula parecia estar melhor da febre, o chá
foi milagroso! Mainha fez questão de passar a margarina no cuscuz, um
pouquinho de cada pra economizar. Daí, todos comeram com vontade, não
103
Cristiano Sousa
que estivesse gostosa a refeição e sim porque estava desgostoso o estômago
da filharada; apenas o de Gorethe já estava forrado.
Um pensamento passou pela minha mente e me fez voltar a instantes atrás,
no lance de Camile. Então aproveitei a ocasião para matar esse bicho de sete
cabeças que se chama curiosidade:
- Camile. Você estava fazendo o que do lado de fora, heim? E aquele cara?
você conhece?
- Oxe!
Camile parou a colher por uns segundos entre o prato e a boca, murmurando
esta como que mastigando com sabor aquela refeição, logo após, bebeu café
pra descer o que engoliu; acho que o alimento ficou entalado na garganta.
Quando lhe fiz esta pergunta, rapidamente me tascou um olhar de repreensão
que nunca tinha visto em sua face desde que me conheço por gente; como ela
sabia que não me intimidava, então, sem que ninguém se apercebesse de sua
desaprovação à minha interrogação, a jovem mudou brejeiramente a sua
fisionomia, ficou mais parecida com uma mutante do que com gente. Até que
á fujona voltou a sua aparência normal, ou, mais que normal, soltando um
sorriso largo cuja a doçura de sua pessoa expandia por aquela sala; e sem
mostrar grandes constrangimentos, explicou a causa de sua saída com um
enigma:
_ Esta casa é muito bem falada por toda a rua! Como eu já lhe disse, só fui
tomar um ar!
O que será que ela quis dizer? Ninguém entendeu. Pedimos melhores
explicações mas não adiantou. Camile fez jogo duro e nos enrolou o tempo
todo. O que tinha a ver a casa com o ar? E o cara, que ela não disse se
conhecia ou se não conhecia? Que mulher mais complicada! Ao invés de
esclarecer as coisas, o que fez foi chamar Gorethe de lado para ficar
inventando coisas sobre mim; daí por diante não pararam de ficar rindo de
minha cara, com certeza era mais uma de suas mentiras sem graça pra me
irritar, e além de tudo com uma nova aliada.
104
O Jornaleiro
IX - SEXTA FEIRA SANTA.OS MENINOS ESTÃO MUDADOS!
S
exta-feira.
- Graças ao nosso Senhor que hoje é o último dia de trabalho na
semana.
Sempre levanto da cama às quatro pra deixar tudo prontinho em casa, o
mesmo horário de Nico. Faço café, ele toma, arrumo a casa, e vou deixando
as coisas no lugar até bater o banho e sair.
Quando chega seis horas estou arrumada. Fecho a casa por fora e levo uma
das chaves. Vou pra o final de linha do Arenoso, onde pego o ônibus.
O ponto do final de linha das casinhas não fica longe porque sempre corto
caminho em umas „quebradas‟ ,coisa normal para o pessoal da área. Não
existe muito perigo pra quem mora ali, mesmo sendo assustador passar por
dentro de um lugar em que mais se vê é esgoto ao céu aberto, muito lixo, e o
restante de um grande matagal, onde foram edificadas casas medíocres que
alojam pessoas desprovidas de fortuna.
Neste ponto tomava o primeiro susto do dia, as filas desgraçadas que matam
o trabalhador brasileiro aos poucos, eu as chamo de minhocão. Depois vem o
horário. Não há um dia divino em que os ônibus não atrasem, só se houver
um milagre, senão... Os motoristas e cobradores parecem que não sabem que
existem outros tipos de trabalhos além do deles e que aquelas „filonas‟ que
eles veem quando estão parados nos barzinhos, tomando cafezinhos, ou suas
cervejinhas, são de pessoas comprometidas com o mundo, como eles. Não
pude deixar de notar que a turma da bagunça estava ali presente. Como são
sempre os primeiros da fila, começavam cedo a armar das suas. A festa no
ponto estava formada mais uma vez. Iam pra lá, vinham pra cá; gritavam,
pulavam, corriam e o mais que tinham direito. Tudo dentro da maior
descontração possível. Um dos que desempenhavam bem seu papel dentro
dessa turma era o tal Dadau, sujeitinho nojento, um dos que mais abria a boca
naquele lugar, com certeza pra fazer feder toda a rua. Devia tomar vergonha
na cara. Ficava perambulando por ali: ia nos barzinhos, bebia; voltava e
brincava com os companheiros e com as companheiras principalmente;
entrava nos ônibus que se encontravam parados, voltava; até as mulheres que
não lhe davam lugar ouviam piadinhas. Um dia tentou puxar conversa
105
Cristiano Sousa
comigo, cortei logo; não insistiu porque me conhecia da Rua do Sapo e sabia
que com gente de seu tipo eu sou jogo duro. Até pessoas legais como o
Senhor Benedito entrava na brincadeira, não fazia o mesmo que o outro mas
aprontava das suas também, gostava, por exemplo, de falar do seu passado
para as pessoas, fossem mentiras ou verdades, e piscava os olhos para as
menininhas, disfarçadamente, pois me via sempre no ponto (apesar de eu não
ter nenhuma intimidade com a sua mulher). A diferença de idade entre os
dois era bastante acentuada, enquanto Dadau era rapaz alto, de muitos
músculos quebrados, moreno, manha no olhar, cabelos negros, tingidos do
sol; o Senhor Bené, como o chamavam, era pequeno, mas robusto, pele clara,
coberta por plumas de pelos, olhar de animal abatido.
Finalmente, depois de ter saído três ônibus pra Calçada, chegou um pra
Lapa. O motorista trouxe o carro e o colocou no lugar de sempre; tudo foi
indo bem até que o patético do “motô” deu uma de doido e arrastou mais um
pouco, então aconteceu o que a galera da bagunça queria. Tumulto.
Mais uma vez tive que presenciar aquela animalesca sena que já virou rotina
em nossa grande Salvador. As pessoas não tem realmente o menor censo de
educação, era um empurra de lá, empurra de cá; os mais fortes conseguiam
entrar primeiro, os mais fracos, ou quem não consentia com aquilo, entravam
depois. Outros mais espertos, geralmente gente da bagunça, pegavam
intimidade com os motoristas e cobradores e entravam pela frente sem pagar
passagem. Eu, como não aceitava toda aquela falta de organização, olhava
para os policiais que tomavam conta de um módulo no local no intuito de que
organizassem aquilo. Que nada! Os parasitas só faziam olhar, pensando eles
que só olhando estavam trabalhando.
Esperei todos entrarem e logo após o fiz também. Acho que nem preciso
explicar como foi que me achei acomodada porque é desnecessário.
O motorista arrastou o ônibus, esta é a palavra certa: “arrastou” o ônibus do
final de linha. Ô bicho que solta fumaça! Coitada das pessoas que respiram
esta fumaça preta dos ônibus velhos como aquele.
A turma ia amarrotada sem perder a descontração, mais ainda por ter na
cozinha a galera do barulho, que juntando com a turma da bagunça faziam o
maior pagode:
“Balance pro lado, balance pro outro
106
O Jornaleiro
Segure o pirulito e dê uma chupadinha
Empine a bundinha e...”
Este era o refrão de uma das músicas que costumavam cantar, passageiros
de todos os ônibus de Salvador já estavam de saco cheio de ouvi-la. Era uma
das mais famosas nas rádios da Bahia. O mais divertido pra quem fazia a
festa é que, enquanto cantavam, gesticulavam as coreografias da musica,
dentro de um ônibus cheio, imaginem! se desse pra empinar a bundinha,
hum!... Que falta de decência! Ainda bem que o pirulito era imaginário.
O carro demorou quase uma hora pra chegar na Barra, contando com a
andada que eu dei do ponto até o prédio inteiram este horário. Se eu viajasse
pra uma cidade como Feira chegaria mais ou menos no mesmo tempo.
Deixando as comparações de lado, parei em frente ao portão e pedi pra
abrir. Cumprimentei o porteiro sem querer intimidades; fui ao elevador
social, apertei o botão que o chamava. Em vão.
- O elevador está quebrado! - Alertou-me um dos faxineiros do prédio - A
senhora tem que pegar o de serviço.
- Obrigado!
Andei rapidinho pro outro lado, onde se encontrava o elevador de serviço.
Quem trabalha em prédios grandes como este sabe que a diferença se resume
a um espelho e
o forro do chão.
Durante o rápido percurso me deixou intrigada a observação do lavador de
carros, que também faz faxina:
- Dona Jandira!... - Fez timidamente -.
- Oi, meu filho! - Virei de lado para lhe dar a devida atenção -.
Ele já estava no elevador quando eu entrei, de vassoura e balde nas mãos.
Me fez esta pergunta:
- “Seu” Marcelo não está deixando mais o carro ai não, é?
Respondi a pergunta com outra:
- Não?
107
Cristiano Sousa
Não soube responder porque já se faziam três dias que não via o dono da
casa, desde o acontecimento com o Nico no inicio da semana.
O rapaz achou que eu caçoava, então me passou em tom sarcástico:
- É o que eu estou querendo saber! - Levantou o olhar para mostrar esperteza
-.
- Não sei, não!... O senhor pergunta aos filhos dele quando estiverem aí, ta
bom?
O elevador parou no andar. Quando percebi a mudança de comportamento
do rapaz, eu o fiz também, respondendo com autoridade à sua grosseria
parcial, e nem por isso deixando de cumprimentá-lo com o devido respeito
que todas as pessoas merecem, ao sair da máquina. Parei em frente à porta do
mil oitocentos e um, e, mais um botão pra apertar, apertei-o; era o da
campainha, daquelas que fazem um barulho ordinário, o qual chamam de
cigarra. Não atenderam de pronto, então toquei de novo. Desta vez ouvi
passos vagos em direção à porta, parecia não ter pressa alguma. Realmente
era alguém, pois a trinca da fechadura mexeu, girando em torno de si própria
com o seu barulho esquisito. Fiquei surpresa porque não estava acostumada a
ver a “patroinha” Estela abrindo porta pra ninguém.
- Ô milagre! (Indaguei, supondo estar feliz)
- Não vai entrar? - Falou a moça, quase ordenando -.
- Calma que já estou entrando.
Às vezes os patrões não gostam de empregados assim, “descontraídos”
como eu, mais é que achei aquilo um pouco “diferente”. A Estela abrir a
porta? Nem alegando que Maria não estava, como fez!... Porque ela não foi
estudar hoje?
Comecei meu serviço logo que troquei de roupa. Fui à lavanderia onde
esperava encontrar trabalho. Não pensei errado, realmente estavam lá muitas
roupas, então mandei ver. Comecei por separar as grossas que dão mais
trabalho, lavei-as no tanque para esfregá-las; parecia que ultimamente a sorte
tinha sido generosa comigo, pois, apesar de sempre haver muitas, eu estava
notando uma quantidade menor durante estes últimos três dias, e eram as
roupas dos pais que não estavam ali. Juntei a este fato o da ausência do dono
da casa, então deduzi que havia tirado umas boas férias; talvez tivesse ido ver
a mulher, o mais provável. Coitado dos homens, quando gostam de verdade
108
O Jornaleiro
não medem esforços pra ter o objeto de seu amor, mesmo que este lhe seja
cruel, como é o caso; apenas disfarçam um pouco o seu desejo, com certeza
pra que ninguém perceba que amam, o que para muitos homens é uma
fraqueza que eles não gostam de mostrar. Veja este casal: o Senhor Marcelo
deu de durão pra cima de Dona Marina e no entanto foi vê-la na ilha, e ela
com a maior certeza já estava esperando para o receber de braços abertos.
Que coisa! Apesar das brigas, se amam, mesmo que demonstrem que não.
Pensam que enganam a quem!
Tive esta reflexão durante a lavagem, que deixou claro à minha pessoa que
o ser humano ainda é capaz de amar loucamente, ou mesmo que não, o
importante é que ainda existe amor verdadeiro. “Ah!... Como sinto inveja
dessa mulher!”
A única dúvida minha era se realmente eles estavam na ilha ou se em outro
lugar porque o último telefonema do Senhor Marcelo não me pareceu ser de
tão perto.
Estava eu tão entendida no trabalho que só percebi que havia alguém me
chamando quando aumentou o volume da voz. Estava se aproximando de
minha pessoa, quando virei e dei de cara com Flávio.
- Oh! É você? - Falei surpresa -.
- Tá assustada é Jandira? - Pronunciou o debochado -.
- Jandira não, meu filho!
- Não?
- Não!
- Mudou de nome agora?
- Mudei. Mudei pra Dona Jandira, e quero que me chame assim, com o
devido respeito que mereço.
- Ah, Sim! Desculpe! É porque estou com as idéias emboladas hoje... A
senhora sabe que sempre a trato com respeito, né?
- Ah, sei! Diga o que você quer.
O menino Flávio era muito gaiato, por isso sempre evitava dar conversar ou
a cortava quando surgia uma ponta. Mais naquele dia parecia estar com
algum problema realmente sério, pois me apareceu com uma cara de defunto
que tinha acabado de levantar da cova, ou era problema ou fome porque,
após a pergunta me pediu:
109
Cristiano Sousa
- Dá pra senhora, Dona Jandira (aumentou o volume da voz neste “Dona”)
fazer algo pra eu comer, porque Maria faltou hoje!
A minha resposta foi breve e ríspida pra mostrar tranquilidade e respeito, já
que o rapaz parecia estar muito exaltado:
- Depois!... Deixa eu acabar aqui. É rapidinho.
Saiu irado com a minha cara, o que eu pouco dava importância, não tinha
medo de ninguém.
Parei um pouco os meus afazeres pra ir até a cozinha ver o que podia fazer
pelos dois
adolescentes. Eram já umas onze horas. Sabia que os ricos sem ocupação
acordam sempre destes horários em diante, por isso não era surpresa ele estar
com aquela cara de fome. Estela, neste dia, me surpreendeu ao abrir a porta,
com certeza porque não tinha jeito, e mais por estar em casa; eu pensava que
ela gostasse muito de estudar, mas o menino, a única surpresa que me causou
foi estar em casa durante três dias seguidos.
Abri a geladeira, a maior, pra saber o que tinha de comer. Fácil! Havia
bastante coisa ali, variedades e variedades de comida, de cima a baixo;
tinham também sucos, refrigerantes e até sorvetes no congelador!... Um dia
também vou ser rica, se Deus quiser!
Como eu não era desocupada e tive que cuidar de toda a casa, peguei o que
não tomasse muito o meu tempo. Uma galinha congelada que cocoricou em
minha frente, um vaso com bife que havia embaixo, um com feijão e outro
com macarrão, o que achei ser mais conveniente. O feijão e o macarrão
Maria deixou prontos pra esquentar no micro-ondas; o bife também já estava
preparado, faltava apenas passar na frigideira. Feito isto, coloquei o almoço
do rapaz na mesa.
- Flávio, já botei o seu almoço! Pode vir!
Ele não disse sim, nem não, nem espere um pouco, nem nada! E para não
perder mais tempo voltei à lavanderia na intenção de terminar logo o meu
serviço. Antes de tocar de novo nas roupas dei um outro gritão com as
mesmas frases. Novamente o irritante “filho de papai” não falou nada,
parecia querer me ver nervosa. Então esqueci a roupagem lá e fui até à sala
110
O Jornaleiro
ver se ele estava com os ouvidos sujos. Realmente não havia ninguém lá,
então veio palavras em minha mente que falei assim:
- Está casa está muito curiosa estes dias, pra não dizer misteriosa.
Disse isso quase que sem intenção.
O garoto pediu que eu botasse algo pra ele comer e saiu! Fui ver no quarto
dele. Cheguei em frente à porta e dei umas duas pancadinhas. Não atendeu!
Bati com um pouquinho mais de força e com um número maior de pancadas,
acompanhados de uns:
- Flávio!... Flávio!... - Gritava em médio volume, para não dar a impressão de
escândalo -.
Depois de algumas tentativas percebi que o moço não estava em seu quarto,
então não me demorei em correr para o de sua irmã onde era provável que se
encontrasse. Parando em frente, fiz a mesma cerimônia, primeiro
devagarzinho, depois com pancadas bem audíveis. Não atenderam de pronto.
Quando me preparei para mais uma investida é que botam a mão no trinco e
abrem a porta.
- Estela é... O seu irmão tá ai?
- O que foi?
- É que ele me pediu pra botar a comida dele... Tá lá na mesa.
- Ele já vai. Está ocupado.
- Tá bom então!
Que gentinha mais esquisita!
Voltei então para os meus afazeres. Coloquei na mente a ideia de fazer tudo
rápido pra ver se ia logo embora, porque, cada dia que passava, estranhava
mais aquela gente, e ficar ali, naquele meio, não estava me fazendo bem.
As horas foram passando devagar, sempre é assim quando nós estamos
querendo que elas passem rápido; se eu estivesse atrasada para um
compromisso, elas voavam como um foguete.
Estava quase em tempo de ir pra casa. Foi um dia de trabalho cansativo,
como todos os outros, quando olhei para o basculante que havia na parede ao
lado que percebi a noite nascer e decidi dar uma espiadinha no relógio de
111
Cristiano Sousa
parede da cozinha. Terminei o serviço das roupas e da comida, só na faxina
ficou uma besteirinha por fazer, coisa rápida, no quarto dos pais. Apesar de
ser pouca coisa demorei muito neste serviço e nem vi o tempo passar.
Terminei. Corri rapidinho para a lavanderia onde eu trocava as minha
roupas. Cheguei lá, tranquei a porta por dentro e deixei a chave na fechadura
pra nenhum gaiato olhar. Tirei a roupa de trabalho, a que eu mais gostava de
usar em serviço. Estava muito molhada, então decidi deixar lá mesmo que no
dia seguinte eu daria uma lavada. Era uma bermuda Jeans e uma blusa, esta
que tinha as mangas quase que inexistentes e que ia apenas abaixo dos meus
seios, eu a troquei por uma calça que ganhei há muito tempo de Carlos, nem
me recordo mais quando foi; amava estes presentes, era bem folgada, ao
contrario do jeans azul apertado que desenhava meu corpo. Acompanhando a
calça usei uma camisa de manga curta, uma das mais novas que eu tinha, de
cor marrom e com uns desenhos de personagens de animação americanos.
Lembro que havia uma frase nela que dizia assim: Brazil is our. We love the
Brazil.
Não sabia o que significava isto e nem me interessei em saber, sei que caiu
bem naquela camisa, já que foi pintada à tinta branca com umas florezinhas
ao lado.
Com os trajes de saída, abri novamente a porta da lavanderia e tranquei-a
por fora, com a bolsinha de alça ao ombro. Lembrei ter esquecido o
espanador do lado de dentro, “Será que a Carmem iria precisar dele no dia
seguinte?”, foi o que me passou pela cuca nervosa. Lembrei que haviam
outras na casa. Pensar em Maria me fez ir até a cozinha olhar o relógio.
- Meu Deus! Já tudo isso?
Não percebi o horário passar daquela maneira, tão depressa; acho que foi na
troca de roupas que perdi aquele tempão todo. Minha intenção foi correr logo
pra casa; sorte minha que a campainha ficava na porta de saída, porque, após
olhar o horário a cigarra cantou alto, parecia querer acompanhar o bando que
estava numa arvore do lado de fora do prédio.
Nem cheguei a ultrapassar o lugar onde lavava as roupas, que fica entre a
sala e a cozinha. Parei quando avistei Estela passando pela primeira e indo
em direção à porta. Não deixei que ela me percebesse. Olhei atentamente a
112
O Jornaleiro
cena pra não incomodar com a minha presença, podia ser alguém importante
e pegava mal eu estar ali. E certamente o era. Quando a moça abriu a porta,
entrou por ela duas pessoas, dois homens; um era jovem, aparentando ter os
seus trinta e poucos anos de idade, foi o primeiro a entrar e cumprimentar a
moça; o outro era um pouco mais idoso. Ambos eram bem elegantes,
trajavam terno e gravata com sapatos de couro, provavelmente de algum
bicho do pantanal. Estela fez-lhe um sinal com o braço, apontando na direção
do corredor, não do que eu estava e sim um que dava acesso aos quartos. Os
homens olhavam curiosos em todos os lados, o coroa deu uma olhada
rapidinha onde eu estava; antes que coloca-se a cara eu corri a passos de
freira para a cozinha. Não o vendo mais bisbilhotando voltei nos mesmos
passos, consegui pegar estas últimas palavras, cujo a voz era a de Estela:
- Fiquem tranquilos!... Não tem mais ninguém na casa além do meu irmão.
Ao ouvir isto meu anjinho bom me soprou na orelhinha direita que eu já
deveria ter ido embora. Fui à porta, abri, e me mandei no ato, depois de tê-la
puxado devagar por fora.
113
Cristiano Sousa
X - O MAU PAGADOR
B
asu!... Ô Basu!
Era a minha vez de ir na casa dele. Não ficava tão distante da minha,
pra chegar lá bastava andar meia Rua do Sapo e virar na primeira
ladeira.
Bastou apenas dois gritos pra acender a luz da sala, cujo a claridade
transpassava pela janela e porta. A cara que puseram quando atenderam não
foi a da pessoa que chamei e sim a do buldogue Senhor Bené. Feio, mas
simpático. Esta é a minha opinião.
- Oi Nico! Espera um pouco aí que ele já vai! - Estava de cueca quando falou
comigo-.
Eu estava do lado de fora do portão da casa, que era até bem feitinha; pude
vê-la por fora, pois, por incrível que pareça, nunca entrei lá.
Agora sim. Botou a cara de fora, o danado.
- Bom dia Nico!
- Bom dia! - Respondi no mesmo tom -.
- Vamos.
Estávamos ambos como manda o figurino, bem vestidinhos com a farda do
jornal.
Abriu o portão e passou pra fora com o Cacho. Seguimos adiante debaixo de
latidos dos cães, quando nós, e principalmente o Cacho, passavam por suas
áreas. Subimos em direção ao ponto da Rua Bahia e o lixão ainda estava lá,
pensei no problemão que o cãozinho de Basu tinha com esse tipo de coisa,
olhem o que o dono me disse:
- Não esquenta, não!
- Não?
- Não!... Ele já deixou de ser porco!
- E antes ele era porco?
- Ah! Nico (fez o colega com a cara de bundão) você entendeu o que eu
disse.
114
O Jornaleiro
E realmente, quando passamos na frente do lixo, o cãozinho parece não ter
sido atraído por nada ali, nem um fedorzinho sequer chamou a sua atenção.
Que curioso!
- O que foi que você fez com ele, Basu?
- Nada demais. Só o ensinei a não comer porqueiras. Foi um trabalho árduo,
mas valeu a pena.
- E como você fez isso?
- Um tio meu (disse alisando o bichinho) me mostrou como fazer. É uma
coisa muito complexa e eu não vou perder tempo dizendo.
- Ah!...
Chegamos ao largo. O povo mais eufórico não dormia, continuava
dançando em algumas barracas. Eram cinco horas de um sábado e muitos
estavam indo trabalhar. Para esperar o “busú” chegar, sentamos na
costumeira escadinha da porta de uma casa, que funcionava como locadora.
Basu e eu ficamos conversando sobre as coisas da vida; tudo o que víamos e
sabíamos servia de tema para matar o tempo.
Avistamos um ônibus no ponto anterior, não o era nosso; outro parou no
mesmo ponto, avançou. Agora sim! Pituba. Parou para alguns passageiros.
Os mais conscientes entraram pela porta de trás e os menos conscientes, ou
seja, os sem dinheiro, foram pedir carona ao motorista. Não era permitido
mas ele dava, principalmente aos seus camaradas, os quais não olhava feio,
ao contrário dos não camaradas que entravam mesmo sendo mau vistos. Os
únicos que podiam entrar, com vistas grossas ou não, eram outros motoristas
e cobradores.
- E ai “moto?” - Entrei no meio do pessoal dizendo esta frase, Basu veio logo
após usando o mesmo artifício -.
Conhecíamos os motoristas e cobradores que nos interessavam, ou melhor,
interessavam à nossa causa. Eu ainda estava me acostumando com este
porque o titular era o Nino. Fomos a “cozinha” e cumprimentamos o nosso
“cobra” predileto.
- “Seu” Hugo.
- Rapaz!... Quero saber quando vocês vão pagar transporte.
- Quando a gente tiver dinheiro, né?
- Basu falou esta frase ao virar o rosto pra mim.
115
Cristiano Sousa
Pegamos, ambos, na mão do cara e perguntamos pelo titular. E o “cobra”
nos alertou:
- Ainda não ficou bom. A gripe ta “braba”.
- Mas vai melhorar! - Indaguei -.
Ao final de alguns segundos, Basu perguntou ao coletor da grana:
- E o coração?
- Ah!... Este já tá melhor. O médico disse que é problema de stress e que
tenho que tirar umas férias, senão...
- Parada, né? – Perguntei -.
- É bem possível! - Disse o cobrador, fazendo um bico com os seus
grosseiros lábios pra mostrar a sua preocupação, e, passando e repassando as
notas dos pagantes, sem muita intenção de contá-las.
Sentamos no fundo do ônibus, como de costume, parte ainda não cheia
quando entramos, foi ficando com o passar dos pontos. Era de costume
vermos algumas pessoas, a maioria em perfeitas condições físicas, outras
não, como por exemplo um senhor deficiente visual que sempre pegava o
ônibus naquele horário; era ele a pessoa mais conhecida do “busú”, quando o
motorista parava em “seu” ponto todos olhavam a porta da frente, e quando
ele entrava não faltava quem lhe cumprimentasse.
- Bom dia senhor Nenê! - Era o que exclamavam os conhecidos -.
E o velhinho, respondendo a todos, se dirigia para a primeira cadeira da
entrada, esta que ninguém se atrevia a sentar, pois já sabiam quem era o
“dono”. Os carros destes horários não demoravam, pois, na maioria das
vezes, em consequência do próprio horário, a pista era livre. Dificilmente
havia engarrafamentos.
Beirú, Cabula, Rótula do Abacaxi, Iguatemi, Pituba, Pronto! Chegamos!
Descemos em frente, ou melhor, do lado aposto ao da igrejinha, como era de
costume, e esperamos o próximo “busu”. Haviam poucas pessoas neste
ponto, primeiro porque a maioria dos riquinhos não utilizam muito este tipo
de transporte (pouco ou quase nada) e depois, as pessoas que moram em
bairros como este não costumam trabalhar nos fins de semana; já não
trabalhavam direito nos dias úteis, não é?... Tanto é verdade que todos os que
estavam naquele momento no ponto, uns quatro a seis, pegaram ônibus pra
bairros pobres; duas dessas foram conosco pra Amaralina (Basu não quis
116
O Jornaleiro
esperar a Kombi de Bira com os jornais). Descemos todos na Rua do
Balneário, os dois seguiram por outra parte, eu e o companheiro fomos pelo
nosso caminho, acompanhados por outros jornaleiros que chegavam também
e sendo saudados por uns que já estavam com o seus jornais, na cabeça ou no
ombro.
As coisas estavam melhorando para Bira e para o Gazeta. Novas caras
estavam chegando; até o lugar estava mais aceitável, a rua tinha asfaltado
novo, o prédio da entrada estava reformado... De longe avistamos o
amontoado de vendedores em frente ao portão e espalhados por toda a
vizinhança. Há tempos que eu estava familiarizado com aquela situação e
com muitos daqueles jornaleiros, por isso alguns se achavam na liberdade de
me chamar a parte e perguntar:
- E ai camarada! Vai dar um pau aqui? - Babava na coisa com a maior
tranquilidade, exalando o cheiro da erva por toda o lugar -.
Deste “camarada” e de seu grupo eu procurava distância, apesar de não me
agredirem.
Bira ia chamando os seus melhores vendedores pra pegar primeiro, eu e
Basu já nos incluímos neste meio; não tardou que ele gritasse:
- Basu e Nico!
Não tínhamos ouvido. Então o ajudante do distribuidor gritou mais alto:
- Bira tá chamando vocês!
Fomos abrindo caminho entre o povão azul. Não havia diferença quase
nenhuma entre todos eles e os extraterrestres. A grande maioria pequenos de
cabeça chata. Brincadeirinha!... Nós somos muito mais inteligentes!
Encostamos no portão e outra pessoa apareceu.
- Oi Rose! - Cumprimentamo-la -.
- E aí meninos? - Fez com a sua voz branda e agradável -.
Era uma mulatinha bonitinha, aparentava ter os seus vinte a vinte e cinco
aninhos, de cabelos crespos e curtíssimos, corte da moda; de estatura natural
às nossas mulheres, pequeníssimas; olhos da cor da uva e bem arregalados.
Muito simpática.
117
Cristiano Sousa
Sua função era ajudar a prestar contas e servir o lanche. Não usava farda
alguma, pois não tinha a sua carteira assinada.
Lá dentro Bira dava as ordens para organizar os meninos:
- Pega ali naquela mala (fulano), tire ali cinquenta capas (sicrano).
Bastou nossa presença no portão, ainda pelo lado de fora, para o cara dizer:
- Querem quanto, vocês, “pais véis”?
- Queremos quinhentos - falou Basu -.
- Os dois juntos?
- É.
Entramos batendo os pés nos jornais que enchiam a pequena sala da
distribuidora. Bira ficava por detrás do balcão observando se todos cumpriam
direito as suas indicações, enquanto os jornaleiros chamados iam cuidando de
se adiantar, com seus jornais sendo postos pra fora. Não contamos os jornais
porque o tempo sempre é cruel com quem não deve. Paramos um pouco do
lado de fora apenas pra eu tirar os meus duzentos, e Basu ficou esperando
Bira dar a ordem para um outro cara, contratado seu, dirigir a Kombi com os
meninos que coubessem nela. Mordomia exclusiva dessa distribuidora, pois
mais nenhuma daquelas que existiam por ali tinha este negócio de transporte
para os vendedores, o pessoal que não vendia perto tinha que pegar no final
de linha de Amaralina no calçadão da praia ou onde houvesse distribuidora
em qualquer canto de Salvador.
Desci a ladeira com os duzentos jornais no ombro, acompanhado do já
famosíssimo grito de:
- Olha o jornal Gazeta!... Venha comprar!...
O peso era tanto que pedi ao porteiro de um prédio pra deixar boa parte
guardados na guarita; podia aproveitar e entregar aos fregueses deste mesmo
prédio os seus respectivos Gazetas do Dia. Ele concordou, o que foi um
alivio pra mim.
Fui andando com poucos jornais na mão, e a medida que iam acabando,
voltava pra buscar mais no prédio. Não era raro ver grupos de jornaleiros
perambulando. Alguns gostavam de andar sozinhos e outros de vender
acompanhados. Se via também alguns pontos cheios de vendedores, de vários
118
O Jornaleiro
tipos de jornais, um esperando o outro acabar, mas só quando o ponto era
muito bom.
Estava com a mente distraída quando:
- Nico! (Gritaram duas vezes).
Olhei pra trás, era a dupla dinâmica que vinha em minha direção. Paulinho e
César.
- Ô... Chegaram quando, que eu não vi vocês?
- Claro que não viu! - Disse César -.
- Por quê?
- Porque nós não vendemos mais pra Bira!
Encostaram ao meu lado direito com os seus pesos, César na cabeça e
Paulinho no ombro (este tinha uma maior quantidade de jornais).
- Por quê não tão vendendo mais pra Bira?
- Porque ele nos sacaneou - Indagou Paulinho -.
- E o que foi que ele fez, rapaz
O que aconteceu foi o seguinte: ontem pedimos cinquenta jornais, trinta e
cinco pra mim e quinze pra esse aqui (e fazia um gesto faceiro apontando pra
César). Chegamos atrasados um pouquinho de nada e ele não deu os
cinquenta pra gente.
- Por quê?
- Porque ele quis nos sacanear, ôxe! - Intrometeu-se César, com raiva no
olhar e no falar -.
- Disse (continuou Paulinho) que nós chegamos atrasados e que só tinha
trinta... já viu que fila da puta!
- Aí vocês não pegaram?...
- Foi! E fomos pegar na distribuidora do Galeguinho.
- Bira que se foda!
Esta última expressão da indignação dupla foi feita por César. Colocou a
frase com uma voz tão ativa que parecia ser sua toda a rua; nem respeitou
uma senhora de idade que passava naquele instante e que olhou a nós três
com indiferença.
Costuma acontecer muito disso nas distribuidoras, e a razão é muito
simples: o distribuidor, como a fábrica e a grande maioria dos vendedores
119
Cristiano Sousa
não querem outra coisa senão lucrar, afinal, é para isso que cada um
desempenha o seu papel. No caso deles, com certeza algum outro menino que
vende muito pegou os jornais, e Bira entregou porque a dupla as vezes
voltava com boias, e isso é ruim pra todo mundo.
Chegou o momento em que tínhamos que ir cada um pra o seu lado. Me
despedi temporariamente deles e perguntei:
- Vão “vim” hoje de noite?
- Vamos! E você?
- Também!... Vou lá!
- Vá lá, que a gente também vai se sair.
Continuei vendendo meus jornais. Os momentos de maior constrangimento
pra mim era quando passava em frente à agência bancária que aconteceu toda
aquela confusão miserável a qual eu nem gosto de lembrar. O meu freguês
não queria mais ver a minha fuça. Até o segurança era outro.
O dinheiro que deixei fiado naquele dia cobrei todos, com exceção de um
dos fregueses mais difíceis que eu tinha, “pé no saco” mesmo!... Era um dos
últimos que eu cobrava, mas nunca esquecia de lhe entregar o jornal no
horário certo, pois exigia que chegasse cedo senão comprava na mão de outra
pessoa. Não podia passar das seis e meia. Iria ser o primeiro na minha lista de
cobranças porque me devia outros jornais.
Parei um pouco na sinaleira que Basu vendia pra descansar. Jornaleiros
como eu não são pagadores de promessas mas andam uma cidade por turno.
Cada vez que eu passava por aquele ponto ficava muito feliz em ver como o
meu amigo vendia. Eram muitas pessoas que compraram em sua mão, ele
terminava os seus jornais com uma velocidade incrível. Só com os fregueses,
me disse um dia, vendia mais de cento e cinquenta sem precisar fugir do
local porque os prédios onde estes moravam ficavam por ali, muitos
passavam de carro pra pegar.
- E ai irmão?
- Qualé Nico! - Fez com um sorriso tímido nas ventas -.
Estava sentado sobre os jornais contando um maço de dinheiro que tinha
nas mãos, e pareciam ser todas notas altas. Quando encostei no intuito de
puxar conversa, o sinal fechou e o cara levantou num piscar de olhos; puxou
120
O Jornaleiro
alguns jornais pra mão, dos quais estava antes com a bunda em cima e
avançou pra frente dos carros, levantou com uma das mãos um jornal e
segurando os outros restantes com a outra. Só nesta investida vendeu nos
carros parados no ponto uns oito a nove jornais com uma rapidez incrível. O
sinal abriu e ele, sem perda de tempo, pegou mais cinco e os colocou por
debaixo dos sovaco pra ir na sinaleira próxima. Não dava para o “super
vendedor” parar, porque quando fechava uma sinaleira, abria a outra;
também tinham os fregueses dos prédios e a passeios, que sujavam as ruas
com os seus totós. Quase todos os barões que passavam por ali compravam
jornais na mão do cara.
Finalmente ele desligou alguns minutos o seu motor.
- Já ta com quantos?
- Aí! (apontava com os olhos para os jornais) Deve ter uns quarenta.
- Só isso?
- É... vendo rápido!... Ói, quando eu terminar quero que você venha pra cá,
viu?
- Tá bom! Mas como é que vou saber quando você vai terminar?
- Passe daqui a meia hora.
- Tá!
Basu, todas as vezes que acabava cedo, me chamava pra vender em seu
ponto (se me visse). Eu era o único com quem ele fazia isto porque não
gostava que mais ninguém vendesse ali.
Era um cara muito fechado, não tanto quanto eu, mas era, ou pelo menos
aparentava ser. Me confessou uma coisa terrível pra ele, mas que era normal
no mundo dos desgraçados vendedores de jornais: havia uma pessoa
querendo tomar o ponto dele. Não seria tão terrível se fossem matracões
qualquer, como de costume em todos os lugares bons de vender jornais. O
caso mostrava ser grave. Me disse que havia um cara muito forte que
trabalhava em outra distribuidora, vendendo também o Gazeta, que ele não
conseguia intimidar com seu “severo pedido” nem com ameaças; cascudos,
como fazia com os menorzinhos, nem se fala!... O cara estava decidido a
tomar aquele ponto dele. Disse também que já não sabia o que fazer, o
bandidão todos os dias aparecia no ponto pra tentar amedronta-lo; as vezes,
quando a coisa ficava muito feia entre os dois é que vinham os porteiros dos
121
Cristiano Sousa
prédios ao redor, chegando até a sair de suas guaritas pra acalmar os ânimos.
Então me passou pela memória a lembrança de Bira.
- Por quê você não fala como Bira?
- Que! Aquela merda! Já falei com ele. Disse que vinha ver ontem quem era e
até hoje espero.
- Eu posso te ajudar em alguma coisa, Basu?
- É!...
Houve uma pausa rápida naquele instante entre nós, ambos de pé, um
defronte do outro. Basu olhava para o chão, parecia estar procurando as
letras da palavra que queria me dizer; para facilitar a formação de sua frase,
olhou entre os jornais que estavam em suas mãos e achou-as. Ia falar se...
- Ô jornaleiro!
...Um transeunte que estava do outro lado da rua deixasse.
- Peraí que eu volto!
Aproveitei enquanto ele foi e fiquei vendendo na sinaleira. Terminei os da
mão e fui pegar mais.
Basu, a cada dia mostrava ser digno da minha confiança, e eu me sentia na
obrigação de ser da sua. Já o tinha como um irmão. O dia que o vi pela
primeira vez, aquele cara sisudo, de estatura média, braços e pernas de atleta
(com um pouco de exagero da minha parte); com os seus cabelos, ou melhor,
sem cabelos, pois o cortava bem baixo e não percebia-se a cor dos seus fios,
mas tenho certeza que combinavam com a sua pele escura e os seus grandes
olhos castanhos, exemplo da assimetria humana. Não obstante de tudo isso, o
que me admirava nele não era o físico, como não o era em minha namorada,
nem em minha mãe. Era o caráter.
Chegou a hora de ir cobrar os jornais. Passei nos fregueses mais distantes da
distribuidora primeiro para depois passar nos mais próximos. Adotei esta
nova tática, assim ficava melhor, não perdia muito tempo andando debaixo
daquele calor insuportável. As vezes me dava vontade de tirar aqueles
pedaços de panos grossos que estavam por cima de mim e ir dar uma
mergulhada ali do lado, tomar um refrigerante, comer um acarajé e olhar as
mulheres de biquínis.
122
O Jornaleiro
Já havia passado inclusive pelo “ap” da boasuda Cristina. Estava cada dia
mais intimo dela. Novamente me chamou pra tomar um cafezinho e disse que
eu fosse levar o jornal pela noite, que queria ler as noticias antes. Eu,
particularmente, achava uma besteira isso de jornal nos sábados á noite, pois
só fazia tirar os fregueses do domingo. Muitos vendedores achavam bom,
diziam que vendia mais. Como tudo é valido pra acrescentar uns trocadinhos,
sempre me fazia presente.
O Cafezinho dos fregueses quebravam um bom galho pra meu estômago,
principalmente quando vinham acompanhados de bolinhos, pãezinhos com
manteiga, queijo, mortadela, biscoitinhos... Pena que não eram todos que
faziam estas caridades com os vendedores, também, se fosse, não iríamos
aguentar de tanto comer.
Um dos que não dava mole pra mim era o meu próximo freguês, o que eu
deixei pra cobrar por último pela sua proximidade com a distribuidora.
Aquele!...
Estava com pouquíssimos jornais quando cheguei em frente a sua casa na
rua Rubens Pinheiro. Na minha modesta opinião, uma das mais pobres de
Amaralina, apesar de estar bem próxima da Rua do Balneário. Os ricos
ficavam de costas pra ela e de frente pra Manoel Dias. A casa era belíssima e
próxima a um grande mercado que faliu há anos e cujo as muralhas serviam
apenas para bêbados e drogados usarem como ponto de encontro. Arrodeada
de um pequeno muro com portão de ferro e espremida por três grandes
edifícios, dois ao lado e um por trás.
Apertei a campainha, que ficava por dentro do muro mais dava pra colocar a
mão. Alguns segundos e não saiu ninguém, então apertei duas vezes
consecutivas. Esperei mais alguns segundos, quando um moço escuro, de
mais ou menos seus trinta anos. Se aproximou do portão e disse pra mim:
- Olha! o meu pai... Ele saiu agora! Não dá pra deixar pra outro dia, não? Ou
você prefere esperar ele voltar do mercado? Talvez demore!...
Só não fiz uma cara de irritado porque não é muito da minha pessoa, mas
confesso que tive vontade de mandar aquele cara pra casa da porra... Que
droga! Será que ele não tinha o dinheiro pra pagar? O pai dava a ele quando
voltasse!
123
Cristiano Sousa
Era de costume o velhote aprontar daquelas comigo, sair e não deixar o
dinheiro do jornal, ou melhor dizendo, dos jornais, porque agora eram de
quatro. Tive que tomar cuidado pra não perder a conta. E eu que ficasse
esperando pra me arriscar a voltar pra casa só no dia seguinte.
- Não amigo. Eu pego amanhã então, tá? O dinheiro de todos os jornais. Fale
para ele, viu?
Pode uma coisa destas? O velho sai para fazer compras ou sei lá o quê, e
não tem... Não deixa o dinheiro dos jornais. É uma falta de vergonha na cara!
Fui pra a distribuidora com as poucas boias, porque já estava morto de
cansaço e não me aguentava mais em pé.
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O Jornaleiro
XI - COISAS DO SÁBADO Á NOITE
P
restei as contas, fui pra casa, tomei um bom banho, almocei e dormi
um pouco, das catorze às dezessete, horário que pedi à velha que me
acordasse senão, com o sono que estava não iria conseguir levantar
antes das dezenove.
Desta vez não precisei subir até o largo da Rua Bahia pra pegar o ônibus
porque o horário me permitia que o fizesse no próprio Arenoso. O carro não
demorou mais que vinte minutos até a Pituba. Usamos o mesmo esquema das
manhãs, mas com vantagens porque nos sábados á noite, quando Bira voltava
da fábrica dentro da Kombi, ele sempre trazia os nossos jornais, bastava que
ficássemos esperando no ponto de Basu. Outro privilégio de quem vende
muito, receber os jornais no ponto, se os tivesse, ou em qualquer outro lugar
que escolhesse. A distância permitia que fossemos andando a pé para o ponto
do meu companheiro. Então fomos.
O pincel de Deus ia escurecendo cada vez mais o pano de algodão celeste.
A noite ainda não se formara por completo e a Pituba já sofria suas
mudanças: A movimentação do povo de um lado a outro, o zum-zum-zum
das bocas nativas, carros andando na contra mão, ônibus e caminhões
descarregando toneladas de material, gente e a boa fumacinha; o povão na
fila pra tirar dinheiro nos caixas eletrônicos pois é dia de gastar, os
esportistas voltando de suas corridas na beira da praia, turistas comendo
acarajé; o assaltante fugindo da policia, os pacientes morrendo nas filas dos
hospitais. “Alegria! É dia de festa! É sábado á noite!... Amanhã é domingo!”
Foi este o pensamento que carreguei comigo pra tentar afastar o péssimo
ânimo que me tomava naquele lindo dia.
- Vai pegar quantos, Nico? - Perguntou- me Basu ao chegarmos ao seu ponto
-.
- Rapaz!... Eu não sei se pego cem ou cento e cinquenta!... Hoje eu não tô
muito bom!...Não gosto de vender de noite, não.
- Ah! Eu gosto!... Os fregueses me dão um bocado de coisa; eu nem como
quando saio de casa.
Levamos esse lero de pé, depois sentamos pra esperar a vinda de Bira. Só
pra evitar que ele demorasse muito, Basu foi a um telefone público ali perto e
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Cristiano Sousa
telefonou pro celular. Eu iria ficar, mas assim que Basu levantou decidi ir
atrás. O vendedor tirou do bolso da bunda a carteira e de dentro desta um
cartão telefônico com um desenho mostrando as belezas da Bahia. Colocou
no telefone e pronto!....Ele esqueceu que aquele cartão não tinha mais
ligações. Ligou a cobrar. Lembrei a ele que Bira iria pirar. Ele nem ligou (pra
mim). Bira nos disse que estava na fábrica pegando os jornais (o que não era
a função dele) mas, para adiantar-se aos concorrentes, o cara ia lá, pegar o
“pão” bem quentinho pra distribuir aos seus vendedores. Coisa que só dava
pra fazer nos sábados á noite.
Largamos o telefone e voltamos ao ponto, depois de observar a ação de um
garoto de rua, desses que vivem pedindo dinheiro, mas com certeza deve ter
alguém por ele. Foi uma coisa curiosa, uma novidade para nós dois. O
menino colocou um cartão no mesmo telefone que tínhamos acabado de usar,
pensamos no primeiro momento que ele ia telefonar, mas não!... Discou um
monte de números e depois retirou o cartão. Basu e eu ficamos com a pulga
atrás da orelha, e por isso o meu parceiro perguntou:
- Ô Pivete (gritou para o pequeno, que já ia longe) o que foi que você fez aí?
Hein?
O guri nos olhou com aquela cara de devedor e se aproximando mais nos
disse assim:
- Eu enchi o meu cartão!
Encheu o cartão? (Essa era nova pra nós) Como é que um cartão já
completamente usado poderia ser renovado?... Ah! Queríamos saber!
- Nos explica ai como é que faz isso! - Pedi ao garoto, tomando o cartão que
havia na mão de Basu e entregando a ele -.
O garoto pegou o cartão de minha mão e pediu que o acompanhássemos até
o orelhão, este que nos dava a impressão de ser engolidos por um coco
gigante. Chegou lá e usou o mesmo artifício. Não fucionou. Tirou o cartão e
deu uma rápida olhada.
- Ah!... O de vocês ainda não está raspado!...
O moleque afiou as unhas imundas (Basu e eu ficamos de parte, só olhando)
meteu no cartão, arranhando em três partes, depois disto enfiou novamente o
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O Jornaleiro
cartão no telefone e discou tão rápido que só deu pra notar alguns dos
números.
- Pronto! Aqui o cartão de vocês, novinho em folha! - Falou o guri depois da
operação, com um ar de superioridade -.
Após ficarmos cientes dos detalhes da operação é que deixamos ele ir.
No final de uns quinze minutos, Bira pintou no pedaço, com a sua Kombi
cheia de jornais e com alguns jornaleiros na carona.
- E ai ”pais véis”! Vão querer quantos jornais?
Hummm!... Se não estava alegre, pelo menos notava-se uma pré-disposição
na pessoa do distribuidor; já percebemos que todas as vezes que ele falava
aquele “pai véi” era porque estava de bom humor.
- Eu vou pegar a mesma quantidade da manhã! - Adiantou-se Basu -.
- E você Nico?
Meditei um pouco sobre a quantidade de jornais que iria pegar naquela
noite, enquanto Bira tirava as maletas de jornais de Basu de dentro da
Kombi. Levantei o rosto a meia altura como se olhasse a um lindo pássaro
em sua árvore imaginária; para dar maior ênfase a esta meditação, eu apoiei
em meu punho fechado o queixo, no intuito de mostrar em uma simples
decisão um grande feito da história universal. Depois desta curta reflexão
decidi.
- Vou querer só cem!
Bira pegou duas malas de capas de dentro do carro e mandou que eu
pegasse as outras duas.
- Pegue ali os encartes! - Levantou o queixo rapado na direção dos encartes,
já que os dedos estavam ocupados -.
Fui e peguei duas maletas super pesadas de jornais, enquanto ele as mais
leves, que não era besta.
- Vão prestar conta hoje?
Basu disse que prestaria de tudo no dia seguinte. Eu não dei certeza de nada.
Então o distribuidor se foi, seguindo pela Manoel Dias.
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Cristiano Sousa
É bom frisar apenas uma coisinha: este “hoje” em que Bira se referiu é
ilusório porque a maioria dos vendedores que trabalham nos sábados á noite
não terminam antes de zero hora. Muitos quando conseguem, ao invés de
irem embora pegam mais jornais, portanto, “não prestam conta hoje”.
A cidade já se encontrava numa escuridão total. Saí andando com cinquenta
jornais em mãos e deixei mais cinquenta com Basu pra que ele tomasse
conta. Não passou dez minutos e eu já havia vendido seis jornais, o que é
uma média ótima pra um vendedor que se preze. O meu costume pelas
manhãs era priorizar os fregueses, mas á noite eu não os tinha, então fui pela
Pituba toda, andando para lá e para cá. Lembrei que minha freguesa favorita,
a Cristina, havia me pedido que entregasse um jornal a ela.
Nas noites de sábado, os melhores lugares pra se vender jornais são os
barzinhos, estes estão sempre cheios de gente comendo e bebendo, porque a
cervejinha do final de semana é sagrada. Passei por eles, tanto pequenos
quanto grandes. Um dos que eu mais gostava de parar era o FRUTOS DO
OCIDENTE, que se localizava em frente ao Clube Português. Era um dos
mais frequentados dos finais de semana; vendia os mais variados frutos do
mar, que os barões gostavam de degustar, tomando uma boa golada da
GOLDSOL bem geladinha. O grande concorrente do FRUTOS DO
OCIDENTE era uma churrascaria que ficava logo ao lado e que também
enchia muito nestas noites. A churrascaria BOM PEDAÇO, que, como o
FRUTOS DO OCIDENTE, mantinham os seus garçons nos mais chiques
trajes.
Fiquei por ali alguns instantes, oferecendo os meus jornais aos bons de boca
da sociedade. Não devo negar que a concorrência era grande naquele local.
As vezes os jornaleiros, e eu me incluo, esqueciam as vendagens quando se
enfeitiçavam pelos belos pratos que aguçavam as suas barrigas ocas; muitas
vezes quando eu vendia um jornal no FRUTOS ou no BOM PEDAÇO,
encostava bem de pertinho nas mesas quando era chamado pelos fregueses,
ficava de olho duro nos pratões de comida que eram pedidos pelos
branquelos. Eu havia até criado uma tática para não dar muito na telha dos
riquinhos, pois, poderia envergonhar a eles e a mim mesmo. Costumava
acontecer muito dos próprios fregueses chamar os vendedores e lhe
oferecerem comida ou os vendedores pedir a quem estivesse comendo. Eu
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O Jornaleiro
nunca fiz isso, graças a Deus, sempre saí de casa com meu pirãozinho na
barriga.
Passei uns cinco minutos ali, vendi três jornais, o que deixou alguns dos
matracas da área pirados. Já estavam quase me mandando ir embora, e, antes
que eles o fizessem
“formalmente” eu tratei de concretizar. Andei direto pela orla, onde sabia que
iria achar muitos bares e restaurantes funcionando. Não demorou pra avistar
outro, este sim, só tinha gente das altas classes sociais. Cheguei um
pouquinho mais perto, nenhum jornaleiro porque o movimento era languido,
vez em quando entrava ou saía alguém. Havia espaço interno e externo. Quis
passar direto mais alguém me chamou. Não pensei duas vezes, invadi o
recinto na cara dura. Passei rente a outros comilões sem lhes dar atenção
alguma e eles também não fizeram nenhuma objeção, ficaram apenas
curiosos, estavam acostumados com a situação. Fiquei constrangido de estar
ali, no meio daquela elegância toda, o único representante da verdadeira cara
brasileira (a fraca e corada) cercado das mais belas grifes do mundo; as
mulheres de rostos pintados, os homens de terno em braços de cadeira,
pedindo os mais gostosos pratos da comida baiana e internacional. Foi um
pai de família de uma mesa com aproximadamente oito pessoas, comendo e
bebendo do bom e do melhor. Fiquei ao lado dele e separei um dos meus
jornais, enquanto ele tirava da carteira o dinheiro.
- Ai meu Deus!... Eu acho que não tenho troco pra isso tudo, senhor!
Olhou pra sua janta, como se procurasse no meio daqueles grossos fios do
espaguete o preço certo do jornal. Então, olhando pro lado, perguntou a um
dos seus:
- Você tem ai o dinheiro que dá pra um jornal?
Alguém lhe respondeu:
- Eu não, papai! Minha carteira tá no carro!
Alguns olharam em suas bolsas e carteiras, e nada; outros só tinham
cheques...
- Será que se o senhor pedir aos garçons eles não trocam? (Tive esta ideia)
Foi o que fez, chamou um dos garçons que passavam junto a mesa.
- Você troca aí pra mim?
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Cristiano Sousa
O rapazola, que havia se agachado um pouquinho pra ouvir o que o freguês
queria lhe dizer, trocou o dinheiro no caixa do restaurante.
- Aqui senhor!
Entregou cinco notas de dez ao cliente, que contou o seu dinheiro com todo
amor e carinho. Mas ainda era muito. E agora?...
Me deu uma das notas mas eu não entreguei o jornal.
- Me desculpe senhor, mas...
- Você ainda não troca?
- Não!... - Engoli esta palavra com a maior tristeza da noite. Se tivesse um
espelho, acho que me assustaria com a cara feia que eu mesmo fiz -.
Ficamos ambos sem jeito. Uma garota que prestava atenção a tudo desde
que cheguei ficou impaciente, levantou e puxou o jornal de minha mão.
- Pode ir!
Era tudo o que eu queria ouvir.
Olhei para o homem querendo saber sua opinião, ele não disse nada.
Aceitando como certa a frase poética da menina, fui saindo de mansinho. Ela
não deixou eu dar dois passos antes de me dizer esta frase:
- Você é um infeliz. Sabia!
Juro a todos vocês que não estava preparado pra ouvir isto. Esta Ofensa caiu
sobre mim a ponto de sentir-me o verdadeiro Atlas. Morri de vergonha.
A minha vontade foi a de soltar a raiva que se apoderou dos meus sentidos,
responder a altura àquela pessoa que havia me insultado na frente de todo o
público elitizado, mas, por inexperiência de vida e uma fraqueza de coração,
não consegui encontrar uma frase, nem uma palavra sequer, que se colocasse
a altura de tão inflamável ofensa. Saí do local com os olhos postos ao chão,
onde conseguia enxergar a cova dos desgraçados de sorte.
Continuei a minha penitência noturna em direção ao prédio de Cristina. A
minha intenção era vender o máximo de jornais que pudesse. Tudo se fosse
possível. Mas, depois daquela cena, a minha mente ficou despeça. Eu não
estava mais conseguindo encontrar o verdadeiro sentido de tudo aquilo, a
vendagem da noite se tornou uma questão de sorte, pura consequência, se
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O Jornaleiro
quisessem comprar eu venderia, porque, de minha parte não haveria mais
esforço. Fui andando de mansinho sem intenção nenhuma de acabar, só de
voltar pra casa.
Depois do restaurante o lugar que fui estava morto. Tudo escuro, não se via
movimento de nenhuma casa comercial nem de bares, restaurantes; algumas
lojinhas e supermercados dali estavam fechados; o único barulho que ouvia
eram os dos carros voando na pista da orla, de alguns poucos pedestres e do
mar, único que parecia se comover com minha dor.
Ao terminar esta estrada mórbida fui parar em uma das maiores
panificadoras da cidade, quem a olhasse da posição em que eu estava iria ver
em seu banner o nome PANIBA, enfeitado de doces, sorvetes, pães, tudo de
plástico. Igualmente ao anuncio, dentro estava enfeitado de todos os tipos de
guloseimas que se possa imaginar, estes de verdade. Era um dos lugares da
Pituba onde se via mais matracas vendendo jornais, e à noite mais que pela
manhã. Tinha um espaço cercado onde os fregueses podiam comer a vontade
(se não houvesse incômodos de jornaleiros) que chegavam até a se estapear
pra vender um jornal.
Passei direto pra não procurar confusão com o pessoal que estava vendendo
ali. Alguns estacionamentos ao redor da panificadora era um prato cheio para
os “guardadores de carros”. Podem ser de dois tipos: os profissionais que
trabalham para instituições como hospitais, bancos, lojas e etc. E os não
profissionais, que trabalham por conta própria, „desuniformizados‟,
desavergonhados. Um que era funcionário da PANIBA, portanto, mais
confiável segundo os fregueses, quando avistava qualquer automóvel
descendo pela Rua Minas Gerais logo fazia o tradicional sinal que todos os
motoristas já conhecem, mostrando uma vaga ao suposto interessado. Os
outros, intrusos, usavam os mesmos gestos e não tinham tantas garantias de
receber as gorjetas quando o dono do automóvel voltasse. Se a pessoa fosse
boazinha lhe dava alguma besteirinha.
Se nos bares e restaurantes os vendedores já se lambiam com vontade de
comer alguns daqueles pratos deliciosos, imaginem ali, no paraíso dos doces
e salgados. Passei distante mas percebi como os meninos olhavam para as
mesas, na posição em que se colocavam estavam privilegiados, pois o
cercado era ótimo para se debruçar. Podiam ver bem de pertinho os filhinhos
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Cristiano Sousa
de papai se lambuzando em um sorvete de creme com passas, ou em
docinhos que lhe eram oferecidos em um prato descartável, tomando os seus
deliciosos sucos de frutas, enquanto os seus pais discutiam com os amigos
sobre o jogo da seleção brasileira que aconteceu em tal dia, ou sobre o Ba –
Vi que vai rolar no dia tal...
Quis ser breve naquele lugar mas fui parado por um guardador de carros
intruso. Ele me alertou:
- tem um freguês chamando jornal naquele carro ali, ói!
Ao aproximar-se um pouco mais percebi que aquele guardador me era
conhecido...
- Príncipe!... Falei com surpresa.
- Ô, Nico. Qual é meu mano!
- Tá fazendo o que aqui?
- É rapaz!... Eu tô aqui, nessa vida de sempre... Tá sumido você, né?
- Eu não! Você é que tá sumido!... Peraí que eu vou vender o jornal depois a
gente se fala.
Eu e o meu velho conhecido trocamos os cumprimentos comuns da nossa
velha Bahia.
Cheguei no freguês e lhe entreguei um jornal, ele, em um gesto rápido o
pegou e colocou dentro do seu carrão de luxo, em seguida abriu a carteira
para tirar o dinheiro. Mesmo com o meu jornal vendido vários outros
jornaleiros se aproximaram oferecendo os seus ao mesmo rapaz, ele se
recusava dizendo: já tenho! Obrigado. Coisas que pareciam não intimidar os
matrações da PANIBA.
Quando consumei o fato da venda e me afastei não pude deixar de notar o
ambiente desagradável que deixei pra trás. Os outros meninos não deixaram
de me fazer as suas criticas:
- Matracão!
- Fila da puta!... Não venha vender mais aqui não, viu?
- Você vai ver quando eu te pegar!... Vacile por aí!
Nada disso chegou a me assustar, estava acostumado com tais ameaças. O
único que parecia ter ficado preocupado foi o freguês que comprou o jornal,
não comigo, mas de acontecer alguma desavença junto ao seu carro zerado.
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O Jornaleiro
Príncipe estava super ocupado conversando com o dono de um automóvel
que ele queria guardar e a figura não aceitou. Estacionou a sua máquina e
pediu que o da PANIBA olhasse. O guardador da PANIBA, por sua vez, se
aproximou de Príncipe e zombou de sua cara, dizendo que aquele era há
muito tempo freguês dele. O meu amigo soltou lá um verbo que não deu pra
entender direito e partiu pra outra.
Começamos a conversar como pessoas que não se falam há um bom tempo.
O que era de fato verdade.
Príncipe era o seu apelido, ninguém sabe a verdadeira razão deste, dizem
que ele lhe foi colocado nas ruas, quando pedia esmolas com os seus pais,
estava bem pequenininho, o nome verdadeiro era desconhecido do público
em geral. O exemplo do descaso no Brasil. O pai foi morto por companheiros
de vagabundagem quando Príncipe ainda estava em sua tenra idade.
Moravam em Pernambúes neste acontecido e o menino presenciou toda a
cena, que aconteceu dentro de casa, á tiros de três oitão; a mãe, por pouco
escapou desta porque não estava presente neste dia. Correram boatos que foi
ela quem entregou o marido a um dos assassinos, que, diga-se de passagem,
era seu amante. Descobriu-se que o esposo havia escondido dinheiro da
cocaína, e por isso aconteceu este fato. Depois de uns tempos, quando mãe e
filhos - eram três (Príncipe o caçula) - Já estavam morando em outro bairro
no subúrbio de salvador, os próprios assassinos que mataram o pai das
crianças invadiram o barraco em que estes moravam e estuprou a mãe, a filha
que já estava moça e as mataram em seguida, deixando apenas pra contar a
historia os dois filhos homens, um de sete, este que acabei de encontrar, e
outro de doze, que também caiu na bandidagem e já foi. Daí em diante a
pequena criança teve que se virar sozinha, continuando a pedir esmolas na
rua, e foi crescendo assim.
Com dezenove anos foi morar no Beirú. O conheci logo quando chegou no
Bairro. Diz ele que fui um dos primeiros. Exibia uma musculatura
exuberante, diferente de quando o vi pela primeira vez; negro e valente, já se
figurava na cara uma barba que dava-lhe o severo cunho dos sábios; a roupa
era que mostrava melhor a sua pessoa: nunca vestia uma cueca sequer que
pudesse dizer-se nova (ele quem me falou ), suas vestimentas só viviam
rasgadas e saturadas; o cabelo parecia que há muito tempo não via um pente;
quanto a dentes o estoque estava esgotando. Vestia uma camisa que “um dia”
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Cristiano Sousa
foi branca e uma bermuda jeans. Me disse que estava sempre guardando
carros pela cidade, principalmente ali na Pituba, e que era estranho nunca
termos nos batido antes, eu lhe respondi que deveria ser a pressa de ambos
em ganhar o sustento.
Ficamos nessa mais um pouco, depois decidimos partir cada um para o seu
lado, pois já estávamos sentindo os nossos prejuízos. Antes de nos
separarmos totalmente ele me avisou:
- Olhe Nico. Se você precisar de qualquer coisa pode me falar, eu estou
morando agora ali em Narandiba, perto da Rotula do Juliano. É uma casinha
bem simples...
- Valeu irmão! - O interrompi -.
- Depois eu te dou mais detalhes.
Andei novamente pela escuridão da cidade Soteropolitana, agora sim, direto
para o apartamento de Cristina, já que não havia nos próximos passos
nenhum lugar que eu pudesse me interessar em vender, só prédio
residenciais, alguns desses tiveram pessoas que quiseram comprar jornais,
mas nada que demorasse muito. Entrei pela Maranhão, era mais uma rua que
estava em completo repouso, raríssimos pedestres passavam por ela e alguns
carros também. Fui a passos largos, com aquela escuridão toda me deu até
medo; não percebi ninguém
me olhando, felizmente, só a lua era quem me vigiava.
Cheguei. Parei em frente ao portão e gritei pra dentro, veio de lá um
porteiro que eu não conhecia. Curiosidade atiçada, fiz uma pergunta pro cara:
- Você é quem trabalha aqui agora?
- Eu sempre trabalhei aqui!
- Ah!... È porque eu nunca te vi.
- Eu só trabalho de noite.
-Ah!... É por isso. Eu vou subir pra entregar o jornal á minha freguesa.
-Tá! Vá lá!
O tempo não me permitia muitas conversas. Subi a pulos para o ultimo
andar. Apertei a campainha. A dona dos meus sonhos chegou.
- Oi!... Você demorou hein! - Exclamou a rainha, com uma frase que me
reprovou, mas com um sorriso que aprovava a minha presença e demonstrava
a sua simpatia. Se estava irritada com a minha demorada não fui capaz de
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O Jornaleiro
perceber, pois a sua atitude foi educada. Estava ali. O ouro mais bem
lapidado que o homem já produziu -.
Tentei arranjar alguma desculpa, e a primeira que veio a minha cuca foi a
que eu soltei:
-Você não disse que eu podia vir a qualquer hora?
- É... Foi. Não tem problema, não.
A deusa levantou a sua poderosa mão para mim sem mexer a boca, mas
falando com os olhos: “me entrega o jornal paixão!” Só faltou me hipnotizar
com seu olhar de cigana. Se ela conseguiu ler algo em minha face foi o
seguinte: “deixa eu passar só esta noite com você, por favor!”
Se ela leu ou não leu, eu não sei! O que fiz foi entregar-lhe um jornal e ela
em seguida... Ai meu Deus, até nisto! Virou -me as costas com tamanha
feminilidade que, se eu fosse um caçador de talentos, esta já era minha
candidata a ser a melhor descoberta do ano. Parece ter deixado a porta
entreaberta para que eu acompanhasse os seus passos de finura e elegância.
Mas o que me causou um grande tesão foi na verdade os trajes de dormir que
a bela estava usando. Que camisola vermelha! Pessoal!... Mulheres, este é um
assunto que não lhes diz respeito, tá!... Então, pulem esta frase: “Que mulher
boasuda!”
Voltou novamente, desta vez com o dinheiro do jornal em mãos.
- Quer tomar um pouco de café? - Perguntou-me depois de ter entregado o
dinheiro, sempre com uma boa gorjeta -.
- Aceito.
Colocou um cafezinho com biscoito. Cada vez mais eu gostava disto porque
os meus passos não se limitavam mais, apenas á cozinha. Eu já era convidado
de honra, e tomava agora os meus cafezinhos na sala, sentado no sofá e
papeando com o meu ídolo. Ela era quem fazia questão disso; tomava os
meus jornais, colocava-os em um canto qualquer e me puxava ao seu
manhoso sofá- cama. A minha curiosidade a respeito daquela mulher ia
sendo cada vez mais atiçada. Olhando assim, a sua casa era um negócio
diferente, ficava entre o luxuoso e o exótico. Jarros, peças, quadros, pequenas
estatuetas, luminárias incandescentes. Tudo com um toque de beleza e arte
que só se via em poucos lugares de Salvador.
135
Cristiano Sousa
Ficamos conversando por uns dez minutos sobre coisas banais. O tema
preferido dela foi sobre a minha família, minha profissão...
- Quanto é que você ganha neste jornal? Deve ser uma boa grana, né?...
Como é? Por mês? Por semana?...
- Nada disso! É por comissão.
- Comissão?!
Fiz um gesto com a cabeça, afirmando que sim á pergunta. Ela continuou:
- E quanto? Meio a meio, quarenta por cento?...
- Dez por cento.
- Dez por cento, só?
- É!... E de cada jornal! Não do total!
- Meu Deus!...
Não era de se admirar o espanto da moça. Todos tem a mesma reação
quando ficam sabendo quanto ganhamos na vendagem dos jornais, a
indignação dela foi tão brusca que acabou reconhecendo o que todos os
jornaleiros já sabem:
- Tá muito pouco!
- É! Eu sei.
Queria eu também saber de coisas sobre a sua vida, mas não tinha coragem
de perguntar, ainda estava um pouco inseguro sobre aquele papo, e ela não
desistiu.
- Você tem namorada?
Hum!... Esta só coçando a cabeça.
Nunca pensei que ela fosse me perguntar coisas deste tipo. Não sei o que
houve dentro de mim que hesitei um instante para responder a pergunta;
quando ia falando a verdade ela própria respondeu por mim:
- Ah, deve ter!... Um rapaz bonito destes!.. Que pergunta boba, não?
Fiz uma expressão para tentar colocar uma duvida naquela sua a firmação,
principalmente depois da gata ter aberto o seu coração, me chamando de
lindo, maravilhoso. Não foi isto?
136
O Jornaleiro
Me aliviei mesmo foi quando o telefone tocou. A garota me pediu desculpas
e foi atender, não estava fora do seu alcance, apenas uns dois passos.
- Alô!.. Oi!...
Fiquei ali até acabar com o café e os biscoitinhos; já considerei por demais a
minha presença naquele recinto. A conversa da moça parecia estar tão
descontraída, acho que era algum namorado, ou amiga bem íntima, quem
sabe algum familiar...
Por falar nisso, nem perguntei se ela tinha família. Acho que... não sei!.. Pelo
que vi ali me parecia que morava sozinha.
Levantei do aconchegante sofá e fiz um sinal pra avisar que estava saindo,
ela fez-me um gesto com a mão para que eu esperasse, parou um pouco o
conversê e veio até mim.
- Tchau! - Sem que eu esperasse, a moça me tascou um beijo bem na... isso
mesmo! Na boca -.
Não foi um beijo daqueles de rasgar as calças, mas foi uma bitoquinha bem
agradável.
- Pronto! Pode ir.
- Linda!
Esta foi a única palavra que achei de acordo com a visão mágica que tive no
momento. A mulher cada vez mais me fazia delirar, Aquele beijo foi o
prenúncio de algo que estava por vir.
Voltou ao telefone do mesmo modo que virou-se para ir pegar o dinheiro do
jornal. Com um rebolado de tirar o fôlego. Sentou-se novamente em uma
cadeira que havia aos pés da mesa que abrigava o telefone, e recomeçou o
seu papo. Virei as costas para ir embora, então me pediu que encostasse a
porta pra ela. Quando me viu saindo a princesa começou a se soltar, já falava
até mais alto ao telefone!
- O quê?... Eles sentiram a minha falta!
Deu pra ouvir essa frase antes de sair.
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Cristiano Sousa
XII - O DESRESPEITO
N
o sábado seguinte levantei as três horas da madrugada pra aprontar o
café de Nico e esperei ele sair, então comecei a arrumar a casa,
algumas poucas besteiras que tinha pra fazer, me preparando pra
quando desse a hora sair pra feira. Seis e meia acordei o Tovinho que me
acompanhava sempre, fiz o café das que ficaram deitadas, as duas
preguiçosas. O pequeno, em obediência às minhas ordens foi tomar banho.
- Manhê me dá o papel! - Gritou-me do banheiro. Eu estava na cozinha -.
- Mas você ainda não tomou banho, menino?
- É que eu tô com dô de barriga.
- Ixe!... Acordou com dor de barriga, foi? Só pode ser verme!... Você não
acostuma acordar assim!
Fui na estante e apanhei de lá um “enrolado rolo” de papel higiênico quase
na casca, atravessei a cozinha e cheguei no quintal, onde estava localizado o
banheiro, pedi pra que o Tovo destrancasse a porta.
- Aqui o papel! Se limpe logo e vá tomar banho que já vão dar sete horas.
Apressei o Tovinho também no café. Saímos pra feira no horário de todos
os sábados. A pequena criança, que eu „reapelidei‟ de “baguncinha”, me
acompanhou neste dia com um mau humor dos bons, o que não era comum
nele. A impressão que me deu foi que não deixei ele pôr tudo pra fora,
portanto, ainda estava com um pouquinho de dor de barriga, o que me
confirmou.
- Por que você não me falou logo seu moleque?
Reclamei o pequeno, que me respondeu com um simples:
- Ah!
Já estávamos no meio da ladeira do Arenoso, eu mandei que o menino
voltasse pra casa, ele disse que “agora mais não!”. Então seguimos adiante.
Chegamos ao largo do Beirú e cada vez mais o bairro dava sinais de vida. O
povo baiano parecia estar renascendo das batalhas do dia a dia, alguns para
novas batalhas e outros para meras curtições .
Via-se por toda a rua o quanto a população sofria com a imensa quentura do
astro-rei: nos pontos de ônibus sem cobertura, abrindo suas lojas, trabalhando
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O Jornaleiro
na construção civil... Quem estava adorando todo este ardor era o pessoal da
farra do fim de semana, os homens de sunguinha e as mulheres que passavam
com os seus biquínis novos para o ponto da Rua Bahia e outros, no intuito de
curtirem uma praiazinha, diversão principal do pobre baiano, pobre; quando
não ficavam em casa e iam tomar uma no barzinho mais próximo ou bater o
baba depois de fazerem a feira.
Chegamos a “Casa do Povo”, este como sempre cheio de gente, e escasso
de produtos de qualidade. Entramos, pegamos um carrinho, depois de esperar
que um outro freguês terminasse de passar as compras dele e deixar a saída
vazia no guarda volumes. O lugar mal dava pra se movimentar, então disse
pro Tovinho se aquietar em um canto que eu ia pegando as compras. Fui
primeiro no lugar onde ficam as carnes. Estava em dúvidas se compraria de
boi ou frango pra gente comer na semana, a “preferencia” era frango porque
os preços dos bois sempre estão nas alturas. Dei uma olhadinha, tinham tipos
variados como peito de boi, coxão mole e duro, bofes, bifes, chupa molho,
peito de frango, coxas e diversos tipos de peixes como a sardinha, tainha,
vermelho e etc., e tal. Só que os preços não estavam de acordo com meu
bolso. Estava tudo pela hora da morte. Fui ver os cocoricós, outra decepção.
Às vezes eu tinha a mania de olhar pra mim mesma e perguntar: será que
você não é muito mão de vaca, hein mulher?
Talvez não porque todos estavam fazendo a mesma coisa: pesquisando.
Fui para a parte das verduras e legumes. Nos tomates, meti a mão e comecei
a revirar tudo, estava difícil encontrar os bons; dava pra sentir que estavam
cheios de hormônios. Fui nos pimentões, a mesma coisa, uns esverdeados e
outros quase podres. As cebolas nem se fala, pareciam ter sido das safras
passadas.
Era uma aventura rondar dentro daquele supermercado, acontecia cada uma!
Por exemplo, quando passei na prateleira dos biscoitos, entre vários clientes
percebi um que parecia não estar disposto a comprar e sim rasgar as
embalagens e comer as guloseimas ali mesmo, sem que ninguém desse a
menor importância para o fato; os funcionários, quando viram aplicaram um
cascudo no ladrãozinho e o mandaram sartar fora. Este ainda era uma
criança. E quando não eram?...Outros, mais responsáveis, quando pegavam
algo pra comer dentro do mercado, levavam a embalagem para o caixa e
pagavam.
139
Cristiano Sousa
A desorganização nas prateleiras dificultava as compras. Cheguei na do
feijão, depois de ter sido esmagada por várias pessoas, o preço estava lá em
cima, caríssimo o produto da mesa de todos os baianos. Parecia até que não
estavam vendendo a quilo e sim a caroço porque haviam vários grãos
misturados sobre os sacos furados, o que impossibilitava a identificação das
marcas. Pra pegar uma embalagem intacta o povo tinha que meter a mão por
entre a „caroçada‟ e procurar. Eu fiz o milagre de conseguir seis quilos,
queria mais um, então enfiei os dedos e achei um bom. Quando levantei o
saco do feijão fradinho (que estava mais pra furadinho pelos seus vários
grãos brocados pelas traças) o fundo dele se abriu e acabou se esparramando
pelo chão. Quando sentiram a „zuadeira‟ da feijoada o povo virou-se para me
olhar. Me fiz de indiferente a todos e tentei mais uma vez, eu não desistiria
até pegar um saco em perfeitas condições. Meti outra vez a mãozona nos
feijões, fiquei passando e repassando os dedos por entre os grãos até que se
iluminasse algum saquinho. Estava difícil.
- Meu santíssimo, até que enfim! Dessa vez tive certeza! Peguei em alguma
coisa.
Levantei o objeto desejado e tive outra decepção. Não era feijão. Por sinal,
muito diferente. Como pude me enganar!... Era uma mão, e... de homem.
Quando segurei esta mão puxei-a com força pra que ninguém pudesse tomar
o meu suposto feijão. Aconteceu que quase derrubei por cima de mim o:
- Senhor Marcelo Fernando!
Exclamei com grande surpresa este nome porque, nunca iria passar pela
minha cabeça que ele estivesse à venda.
- Dona Jandira!... A senhora aqui? - Indagou o „finésimo‟ coroa do Arenoso .
-Eu é que pergunto (falei pra disfarçar a minha vergonha), O senhor por
aqui? Com certeza fazendo compras? - Notei que havia um saco na mão dele
-.
- Me desculpe! Foi sem querer.
- Que nada, isso acontece!...Quer pra senhora? - Levantou em minha frente a
embalagem -.
140
O Jornaleiro
Estava querendo mesmo mais um daqueles, mas vi que o gentil senhor
Marcelo Fernando também queria o bendito, então fiz um gesto de recusa,
balançando a cabeça para os lados e acrescentando:
- Oh, Não!... Não precisa. Eu já estou com a quantidade certa.
Ainda insistiu pra que eu aceitasse e eu neguei, ele acabou levando a pior,
quer dizer, a melhor: Ficou com o produto.
Assunto do feijão dado por encerrado, fizemos companhia um ao outro na
feira, tendo o Tovinho como coadjuvante. Só ia até ele quando a minha
cestinha estava cheia.
Passamos um bom tempo pesquisando e comprando até esgotar as nossas
pequenas listas, foi então que dei o sinal verde para que o Tovo fosse pegar a
fila do caixa, que tomava quase metade do mercado, enquanto pesquisei os
últimos produtos.
Finalmente meu vizinho e eu fomos para a fila que, sem querer chamar de
lesma, tartaruga ou coisas do gênero, estava muito devagar. Mesmo assim
mantivemos o bom humor. Tovinho estava empurrando o carrinho e eu
segurando em seu ombro, enquanto o senhor Fernando vinha logo atrás.
Próximos ao caixa, apareceu uma jovem com a cestinha cheia de compras e
encostou em outra pessoa. Conversa vai conversa vem, a mulher se encaixou
na fileira. Não pude me manter omissa àquilo, todos que estavam logo atrás
também, e começamos a falar:
- Minha amiga, o final da fila e lá atrás! - Disse um indignado -.
- Que é isso aí? É pra furar fila agora, é ?... É esculhambação, é? - Falou um
outro -.
- Isso não pode, não, viu? - Expus a minha cólera -.
A mulher não deu a mínima para quem a repreendia e continuou andando,
parecia que a coisa não era com ela, ao contrário da cúmplice, que tentava
pelos meios mais sem razões defender a sua inocência cega. Dizia coisas do
tipo "ela é minha irmã" ou quando desconversava admitia que "a moça só
tinha um pouquinho de compras e passaria rápido", essas babaquices que
ninguém aguenta, principalmente quem espera até horas em uma fila pra
depois ver uma pessoa que acaba de chegar, passar em sua frente.
141
Cristiano Sousa
Não consegui ficar quietinha no meu canto. Aquilo acabou me irritando
demais. Saí do lugar que ocupava e fui à frente, encostei junto da mulher na
intenção de pedir-lhe que fosse pro final, como todo mundo ali havia feito.
Eu até que consegui segurar os meus ânimos pra ser educada.
- Ei moça!
A mulher fingiu não ter escutado direito, apenas deu uma “viradinha” de
cara como se procurasse o autor da frase. Sabendo que ela tinha escutado
muito bem, continuei:
- A senhora sabe onde é o final da fila, não é ?
Agora a mal educada olhou nos meus olhos. Deixou a perceber que não
gostou nada da minha observação, eu nem liguei. Quem tem medo de olho
não come peixe, e eu estava com um saco cheio no carrinho.
Esta minha decisão de ir até a infratora chamou a atenção do povo em geral:
caixas, fiscais, freguesia, e de todos que se encontravam por ali. Só o meu
filho não se surpreendeu comigo, ele já conhecia a figurara aqui.
Finalmente a mulher decidiu se defender. Virou de vez o corpo para o meu
lado e soltou as palavras.
- Minha senhora. Esta moça aqui tava guardando o meu lugar, enquanto eu
não vinha. Tá certo?!
Este, „tá certo?‟ Ao invés de aliviar, esquentou mais os meus ânimos.
Qualquer bom entendedor poderia adivinhar que esta frase soou como uma
ofensa, e eu, como não sou de levar desaforo pra casa, não deixei por menos.
- E agora já pode isso, guardar lugar? Eu não estou vendo o nome da senhora
aqui, e ninguém tem cara de trouxa de ficar esperando na fila pra outra
pessoa "vim" e entrar na frente, não!
- Ói, minha senhora, eu não tô afim de discussão, não! É melhor a senhora
sair daqui, viu!
- É?... E quem é você pra mandar em mim.
Estávamos muito nervosas, eu mais ainda, pois achei uma cara de pau a dela
ter o disparate de me achar errada.
As coisas estavam ficando cada vez mais quentes. A curiosidade se tornou
142
O Jornaleiro
unânime, todos queriam saber o que estava acontecendo naquela fila. Senhor
Fernando decidiu tomar as dores por mim mas eu não consenti, então ele
tentou me afastar dali, ato que também foi em vão. O povo em volta apenas
observava tudo, podia-se notar em muitos rostos o risinho sacana de quem
quer mais é ver a cobra fumar, o que fizeram foi iniciar uma barulheira
insuportável que incentivava ainda mais uma briga.
A “perua” era uma ave bem forte, por sinal, muito mais alta do que eu, nada
que pudesse me intimidar, como tentou fazer.
- É melhor a senhora me deixar em paz, viu? Senão eu te dou um sopapo bem
na cara!
Com esta eu não aguentei, ela ameaçou, mas quem tomou a iniciativa fui eu,
estava cansada de trololó. Apliquei uma bela bofetada bem no meio da fuça
da cachorra e me afastei pra não receber a resposta de imediato, ela também
não pensou em mais nada e avançou pra cima de mim, como o povo queria
ver. A galinha partiu com tapas na minha direção e eu os revidava com todo
vigor que possuía; em uma dessas, a concentração da força em minha mão foi
tão grande que consegui derruba-la por cima das latas de azeitona, e antes
que levantasse me joguei sobre a figura e recomecei a estapeá-la, enquanto
ela colocava os braços por cima da cara pra se defender. Só que havia uma
desvantagem contra mim, como disse, era mais robusta do que eu, e, em um
empurrão bem dado me fez cair no chão. Dessa vez foi ela que levou a
melhor: me agarrou pelos cabelos e arrastou por cima dos produtos. O
público se dividiu na torcida. Uns diziam: arrebenta negona, vai bate mais; e
outros alertavam-me: ói, ela tá ganhando!...Vai índia! levanta índia!
Não consegui fazer com que a vagabunda largasse os meus cabelos mas
consegui pegar nos dela também, o que colocou as coisas quase iguais, se
não fosse pela sua vantagem de ter mais carne e mais altura.
Aquela briga parecia que não iria acabar; se alguém fosse tentar tirar era
impedido por outros. A mulher estava novamente por cima, me batendo,
enquanto eu, agarrada em seus cabelos, os puxava com toda a força e
arranhando tudo o que as minhas mãos achava pela frente, acho até que
arranquei meia orelha dela. Também não faltaram mordidas de ambos os
lados.
143
Cristiano Sousa
Quando as duas já se encontravam exaustas, a sorte parece querer que eu
"levasse a melhor". ela repentinamente, sentiu o peso de algo sobre a sua
descabelada cabeça, foi Tovinho que, do alto de uma prateleira, largou no
momento certo um filtro de porcelana sobre a sem vergonha, que caiu
prostrada ao meu lado.
Não sei o que seria de mim se não fosse essa ação do meu filho. Pelo visto
aquela luta só terminaria quando uma de nós, mais provável que eu, estivesse
morta ou fosse para o hospital; quem sabe até as duas.
Tovinho correu pra socorrer a sua mãe, que já estava toda quebrada e
sangrando pelas ventas, senhor Fernando ajudou a me levantar, enquanto os
funcionários do supermercado tentavam acordar a outra.
O povão aos poucos ia se dispersando do local. Eu ainda não havia
recobrado as minhas energias quando chegou a conta do prejuízo.
- O quê?...
- Isso mesmo dona. Esse aí é o valor de tudo o que a senhora nos deve. A
parte daquela outra senhora nós vamos cobrar quando ela estiver bem - Me
comunicou o gerente -.
- E eu estou bem? - Fiz com zanga - Como é que vocês já sabem assim tão
rápido tudo o que quebrou, hein?
O gerente que até então havia se mantido omisso a toda aquela confusão,
parece que deixou pra fazer o seu papel no final da cena, onde tudo acaba
bem na maioria dos filmes. Não neste! Pelo menos pra mim. Ganhei uma
conta bem alta pra pagar e não pude reclamar porque não tinha nenhuma
ideia do prejuízo. Levaram todo o meu dinheiro e parte do de senhor
Marcelo Fernando, que me ajudou a pagar o “preju”.
No final das contas sei que acabei ficando sem dinheiro, sem comida, sem
nada o que levar pra casa. Só prejuízos.
Saímos do supermercado, eu e o meu filho de mãos vazias, senhor Fernando
com duas sacolas, uma em cada mão. Fomos conversando sobre o incidente;
senhor Marcelo Fernando ia lamentando o ocorrido, principalmente o
vexame que dei e a humilhação de ter que ficar sem as compras; eu,
limpando o nariz e a boca (que teimavam em sangrar de repente). Me
lamentava de não ter pelo menos quebrado um braço da desgraçada; e o
144
O Jornaleiro
Tovinho apenas ouvia as minhas lamentações. Paramos então em uma
barraquinha junto ao ponto de ônibus, senhor Marcelo Fernando para
comprar legumes e eu apenas por consideração.
- Dona Jandira. A senhora agora ficou em uma situação difícil. (Disse senhor
Fernando no momento em que escolhia os legumes). Você não devia ter ido
procurar conversa com aquela mal educada (falou em tom brando). O povo
gosta é de ver a miséria dos outros.
- É seu Marcelo, mas... Eu também não podia deixar aquela mulher fazer o
que quisesse; queria nos fazer de besta!
Eu continuava limpando o rosto com um pedaço de papel que tinha em
mãos, seu Marcelo já estava acabando de efetuar a compra que havia parado
pra fazer, e Tovinho...
- Tovinho! Cadê ele? (Perguntei ao Marcelo Fernando)
Só fui saber quando virei o rosto para o lado do ponto de ônibus, ele estava
lá, agachado pra pegar alguma coisa, com certeza "lixo" que viu por aí; as
crianças tem essa mania, quando vêem pelo chão algo que lhes
impressionam, por mais besta que seja, pegam e querem logo levar pra casa,
fazendo do objeto uma relíquia valiosa. Sabendo que não era nada de
importante, ordenei:
- Tovinho! Larga isso aí moleque!...(O repreendi com firmeza) que menino
„sugismundo‟, só anda catando lixo pelo chão.
Ele não se demorou muito a dizer:
- Não é lixo, não mãe! é tampinha de garrafa, que eu tô catando pra minha
coleção!
- Não quero saber, venha logo pra cá que nós já vamos embora!
- Peraí mãe, que eu já tô indo!
- Peraí não, venha logo!
- Pôxa!
Ele se zangava as vezes, mas sempre foi obediente. Levantou-se da região
em que se encontrava de “cóca” e veio às minhas ordens. Estava cheio de
tampinhas de garrafa nas mãos. Teve o menino uma boa ideia: embrulhou as
tampas na camisa que estava vestido pra que não caíssem. A única objeção
foi a minha porque a vestimenta fazia parte do conjuntinho branco que dei
pra ele no ano novo, e quem tinha que lavar?
145
Cristiano Sousa
Uma das tampinhas caiu e foi parar na pista. O menino, que era louco por
elas, foi atrás da que lhe fugiu. Neste momento um ônibus vinha, em sua
placa estava escrito: BARROQUINHA (VIA QUINTAS).
- Tovinho!
O carro estava muito perto, a minha primeira reação foi soltar este berro que
vocês acabaram de ler, pra fazer com que se alertasse porque vi que o ônibus
ganharia a corrida pra mim.
O dito popular diz que o feitiço vira contra o feiticeiro, pois bem, eu havia
acabado de me tornar uma bruxa na frente de todos pois, o que foi
pronunciado para ser um alerta não funcionou. Ele, ao invés de ver o perigo,
olhou pra mim.
Meu grito não tocou na consciência do meu menino, mas na de um
ambulante que cuidava de sua banquinha ali próximo e o puxou, evitando o
pior.
- Obrigado Senhor!... Obrigado! muito obrigado!
Não cansei de suplicar a Deus que aceitasse os meus sinceros
agradecimentos pelo o que tinha acabado de fazer. Foi com estas frases na
língua que corri para meu filho e o agarrei fortemente, cheguei a levantá-lo
nos braços pra sentir que tudo aquilo não era ilusão. Eu continuava a
agradecer aos céus quando uma voz grave, como que viesse de lá, me
respondeu:
- De nada, moça. Eu teria feito isso por qualquer pessoa.
- Ah! Tá!... Obrigado por pegar o meu filho, moço!
- Eu já disse que teria feito por qualquer um. A senhora não me deve nada.
Só assim deixei aquele êxtase total em que estava afogada. O ônibus passou
e tudo ficou bem. Apenas a tampinha foi esmagada pela roda gigante do
carro. Por sinal, é o que os grandes fazem constantemente com os pequenos
neste nosso capitalismo.
Não tínhamos mais nada pra fazer no Beirú, seu Fernando já havia
comprado tudo o que tinha pra comprar, Tovinho parece que já tinha catado
todas as tampinhas do bairro e eu já havia lamentado tudo o que dava pra
146
O Jornaleiro
lamentar.
A Rua do Sapo estava cada vez mais cheia de gente. Não parava de crescer.
Onde se olhava, via-se uma nova construção em acabamento ou em
"comecimento". Era assim em todo o bairro e em toda a cidade. Isso seria
motivo de alegria e honra para nós se, em sua maioria, não fossem erguidas
debaixo de muita dor. Muitas daquelas pessoas vinham do interior para a
cidade grande, aproveitando as vagas deixadas pelos que foram para o sul,
outro método era construir as casas nos lugares mais absurdos que pudessem
encontrar, não importa se nas encostas ou em cima dos amontoados de lixo.
Também tinham os que se mudavam de outros bairros para cá em busca de
aluguéis mais baratos ou de sua casinha própria, mesmo que fosse nas
condições que acabei de apresentar. Não era raro os moradores mais antigos
cruzar de repente com uma cara nova.
Cheguei em casa. Senhor Marcelo Fernando ficou na dele.
- Onde está a sua irmã, Sula ? Perguntei em vão porque era mister que estava
"pelos pastos"
- A Camile saiu aí, com um homem.
- Ficar batendo perna pela rua ela quer, fazer as coisas em casa ela não quer.
Assim que entrei em casa fui para a cozinha, nem em tomar banho pensei,
estava muito contrariada. O que tive foi uma grande vontade de beber água,
talvez me fizesse acalmar. O Tovo não entrou, ficou pela porta e deu meia
volta quando viu os meninos brincando de bola.
Quando dei com os olhos na geladeira. Desligada.
- Sula! Quem foi que desligou a geladeira?
Antes que ela viesse me responder eu fui ao fio do eletrodoméstico. Ele não
foi
Tirado do plugue...
- Oxe !... O que foi que ...
Antes que eu terminasse de completar esta frase a menina apareceu em
minha frente e revelou:
- Apareceu a Coelba aqui e cortou a luz, mãe.
- O quê?... Cortaram a minha energia?
Não esperava mais essa.
147
Cristiano Sousa
- Que falta de respeito! Como é que cortam a minha luz assim, sem eu estar
em casa? Sem mandar aviso pra mim? Só porque encontraram apenas uma
criança indefesa ! Isso não vai ficar assim, não!... Hoje mais não, e nem
amanhã que é domingo, mas Segunda-feira eu perco um dia de trabalho mas
vou na Coelba reclamar. Ah, se vou!
148
O Jornaleiro
XIII - TRAÇOS DA INOCÊNCIA
M
ãe. Não tem energia, não é?
- Não meu filho! Cortaram a minha luz hoje!
- O quê?
- Isso mesmo que você ouviu.
- Porra!... E agora? Como é que eu vou ouvir o jogo? - Gritei estas frases
para o rádio, que era inocente também -.
Se eu não o ligo para ouvir o jogo pelo brasileirão não saberia do fato.
Quando isso aconteceu eu estava no jornal, suando a fedorenta roupa pra
ganhar um bocadinho. Estava difícil de vender um neste dia! Se eu não
tivesse fregueses que me salvassem, não sei o que seria de mim. Acho que a
coisa ruim resolveu pegar no meu pé.
As minhas “andadas” já estavam ficando saturadas, então decidi moderar
um pouco. Tinha muitos lugares pela Pituba que eu ainda não tinha
explorado, então resolvi arranjar outros points. Acontece que, nestas
explorações por lugares desconhecidos, nenhum me deu uma melhor sorte, a
vendagem continuou a mesma. Fui em ruas que jamais havia pisado os pés,
como a bastante conhecida Rua Parnaíba, a Evangelista e a Caruaru, estas
duas últimas que fazem cruzamentos com a Paulo VI e a primeira fica em um
"beco" que nunca tinha desconfiado que existisse antes. O meu forte era a
Manoel Dias e não a Paulo VI e redondezas. Eu já estava exausto da minha
penitência de todos os dias, naquele foi dobrada, ia gritando o nome do jornal
pelos ares como quem implora ao desconhecido por socorro, da Paulo VI à
Manoel Dias da Silva, as pernas não obedeciam mais às minhas ordens,
queriam parar de qualquer maneira, reclamavam o bastante em me sustentar
na situação que estavam.
Entre as duas grandes avenidas da Pituba tem uma famosa delicatessem, a
PRELÚDIO, umas das mais requisitadas do bairro e, quem diria, em frente a
uma rua chamada de Bahia (era a Rua Bahia dos “pitubanos”)
Estava tão cansado que, quando a vi com sombra não pensei duas vezes e
fui até lá. Quando me aproximei, vi muitos jornaleiros, em sua maioria
matracas. Avistando esta galera, notei que aquele ponto pertencia a alguém
149
Cristiano Sousa
que eu não conhecia, portanto, não ia parar, se não fosse por um deles ter me
chamado.
- Ô jornal! Chegue mais! - Gritou um vendedor -.
Me fiz de desentendido para não ter que ir, ele percebeu e insistiu:
- Jornaleiro!
Dessa vez olhei, ele estava ocupando uma das mesas da parte exterior da
delicatessem, como pose de freguês. Resolvi ir até lá.
Como de costume eles estavam lá, em grupos, com certeza havia um que
era realmente o dono do ponto.
- Você é de Bira, é?
- Sou!
Alguns jornaleiros tem essa mania, quando encontram algum que é
desconhecido pelas ruas perguntam logo para quem trabalha.
Também quis saber de onde eles eram.
- Vendemos pra dona Ruth ! - Exclamou um que se postava em pé ao meu
lado -.
- Vem cá! (chamou-me o primeiro, na força de expressão) Você troca este
jornal aqui pra mim? - Ao proferir estas palavras destacou o jornal que
pretendia trocar.
O jornal que ele pretendia trocar por um dos meus (bons) estava rasgado
logo na capa, parte principal. Eu recusei a troca na hora.
- Ah não, amigo! Eu vou ficar com o jornal rasgado na mão, é?
- Mas você tá cheio! Vai vender isso tudo?
Realmente, eu estava abarrotado de jornais, talvez por isso eles me
chamaram ao invés de um outro jornaleiro. Mas a minha esperança era
vender tudo, não podia ficar com aquele jornal inválido na mão, a não ser que
eu fosse inescrupuloso e vendesse aquele jornal como estava. Muitos faziam
isto, eu não gostava.
- Olha companheiro (disse afinal), não importa se eu tô com muito ou com
pouco, eu não vou trocar.
- Porra! Deixa de sacanagem “umbora”! Troca aí esse jornal.
150
O Jornaleiro
O cara era insistente mesmo! Eu falava que não, mas ele fazia de um tudo
me segurando ali pra que trocasse a merda do jornal dele pelo meu. Se
mostrava zangado pra tentar me intimidar, eu não comia nada, e resistia a
todas as ameaças.
- Troca aí! (punha o jornal rasgado em minha mão) Vai! Toma!...
O valentão tentava por todos os meios me amedrontar, ameaçou até mandar
me bater.
- Tá vendo aquele cara ali (apontou o dedo a um vendedor que estava no
local), ele não gosta de matraqueiro, e se eu disser que você tá matracando
aqui ele te pega, sacana!
- Mas foi você quem me chamou.
- Só que ele não vai querer saber disso.
Me vi em uma situação super complicada, e tudo por causa de um jornal
rasgado. "Porque logo comigo?" Me perguntei no momento. Não posso negar
que fiquei com medo do cara chamar o outro, que, por sinal, era bem forte
mesmo. Mas não me deixei intimidar, nem com todas as ameaças que foram
feitas à minha pessoa. Resisti bastante, até que ele desistiu de vez.
- Tá bom, matracão! Não vai trocar o jornal não, né? Tá bom! Você também
vai precisar de mim um dia.
- Espero que não.
- É?... Tá bom! Então troca aqui esse dinheiro pra “mim ir” cobrar o jornal de
um freguês ali dentro.
O cara tirou do bolso uma nota bastante alta, que certamente levaria todos
os meus trocados. Cheguei a duvidar das intenções dele. Hesitei em tirar a
minha grana também. Passei um olhar atravessado no rapaz e em alguns
outros, eles me fitavam como se eu já fosse um dos seus colegas. Até riam!
Diziam eles que por causa de uma piada que lhes foi contada por um
companheiro. Acho que estavam era rindo da minha cara, isso sim.
Tirei todo o dinheiro que tinha no bolso pra ver se dava pra alcançar àquele
que o infeliz me mostrou. O jornaleiro de dona Ruth continuava com a
altíssima nota em minha cara; se ele pretendeu tirar a minha concentração,
não conseguiu, contei certinho, o dinheiro deu. Foi tudo que havia em minhas
mãos, iria ficar sem troco certamente, melhor que ficar aguentando eles.
151
Cristiano Sousa
- Toma aqui! - Estiquei o braço e dei o dinheiro trocado ao matraca,
esperando receber o dele -.
Pegou o dinheiro de minha mão e começou a contar pra ver se não faltava
nada.
- E aí, tá certo? - Perguntei-lhe logo, impaciente com a demora. Ele parecia
ter terminado -.
- É!... Tá certo!... Agora toma o seu.
"Até que enfim!". Apenas esta frase se atreveu a brotar em minha mente
neste instante. Estava me sentindo aliviado de saber que ia sair dali e poder
vender os meus jornais em paz.
Levantei a mão com um imenso gosto pra pegar a nota, que acabei indo
com muita sede ao pote. Ele recuou.
- Peraí!
- O que foi? - Falei, assustado com a reação dele -.
- Vai embora!
- O quê?
- Isso que você ouviu! Vai embora!
- Oxente! E o meu dinheiro?
- „Rumbora‟ pivete, eu não já mandei você sartar fora? Se saia!
- Você não viu o cara dizer que é pra ir embora, não? Vai embora! Vá!... Falou um outro jornaleiro -.
O cara continuava a me mandar embora e o seus parceiros olhavam pra ver
se não chegava ninguém que pudesse ser por mim. Por incrível que pareça
ninguém viu a minha cara de preocupação que tanto se deixava notar, apenas
eles mesmos, e olha que o lugar estava super movimentado! Então insisti:
- Vamos! ... Me dá o meu dinheiro “camarada"!
- Eu já não mandei você se sair! Se saia!
Fazia gestos, como se estivesse me empurrando para longe dali. Os clientes
e funcionários da delicatessem viam mas não ligavam.
- Ah!.. Deixa lá! Ali são colegas de trabalho. Se entendem.
- Esses jornaleiros, disse outro, só andam fazendo badernas pelas ruas.
152
O Jornaleiro
Foi terrível! Olhava para os lados e me via sozinho nesta parada. Não
enxergava outra maneira de recuperar o dinheiro se não apelando pra força,
uma das coisas que não me favoreciam, mas era necessário que fizesse algo.
Fui pra cima dele, concentrei-me mais em suas mãos que prendiam o meu
rico dinheiro. Aí, como se diz na gíria, rolou o pau. Aconteceu uma violenta
troca de socos entre nós dois. Os murros, em sua maioria, acertavam o ar. Foi
uma luta, em seu inicio, de conhecimento. Até que ele foi preciso uma vez e
me acertou uma porrada bem abaixo do queixo que me fez cair por cima das
mesas e cadeiras, onde estavam, inclusive, os jornais dele. Seus amigos
aproveitaram e foram me dando chutes e pontapés. Seria o meu fim se não
fosse pela compaixão de um funcionário da delicatessem que interferiu na
briga. Um pouco tarde pra um lugar de respeito.
- Que zorra é essa aqui? (Gritou bravamente o homem) Que falta de respeito
é essa? Hein? Quem disse que eu quero brigas aqui?... Hein?...
Estes gritos serviram para atiçar a curiosidade da clientela e só. No mais!
Nos expulsou do local. Quem acabou saindo perdendo fui eu. Andei ligeiro,
quase chorando, pois eles ainda ameaçaram me pegar. Virando a esquina,
pude ver o funcionário que acabara de nos expulsar chamando o jornaleiro
que me roubou e mandando ele atender a um freguês, o mesmo que insinuou:
"os jornaleiros só andam fazendo badernas pelas ruas".
- Que tristeza, meu Deus! que humilhação! Eu sou o jovem mais azarado de
toda a história mundial! Ai, céus!... E agora? O que eu vou fazer pra pagar o
dinheiro dos outros? ... Bira não vai querer saber que fui roubado! Vai pensar
que quero passar a perna nele. E agora! O que eu vou levar pra ajudar em
casa? Não me deixaram nem um puto!
Como não podia deixar de ser, caí em prantos depois do acontecido. Estava
me sentindo um verdadeiro perdedor, um adolescente que apenas começou as
lutas da vida e já era um combatente derrotado.
Me encontrava neste momento numa rua bastante movimentada que eu não
sabia o nome, sei que dava acesso ao Itaigara e Iguatemi. Estava tão doido
que ultrapassei a pista e nem prestei atenção em um carro que virou a esquina
parando em cima de mim.
- Sai da frente seu doido! - Gritou o piloto -.
153
Cristiano Sousa
Só assim eu acordei do transe que aquele desastre econômico me causou. Se
não fosse a minha certeza de plena sanidade mental que tenho, poderia
acreditar no cara e achar que estava realmente louco. De vontade de morrer.
Fui para a distribuidora na intenção de contar a Bira o que tinha acontecido,
estava muito distante ainda, só pegando um ônibus poderia ser mais rápido,
na verdade, não queria nem chegar lá. Pouco me importava com o tempo, se
era tarde demais ou não, eu estava completamente sem saber o que fazer e
nem o que dizer, ou a quem dizer. Não sabia onde estava, se era aquele o
meu lugar, se toda aquela humilhação valia a pena. Pra quê tudo aquilo?
Haviam ainda muitos jornais em meus braços e outros guardados. Eu não
conseguia pensar em mais nada, tudo o que me vinha à mente foi a
humilhação e como ia fazer pra pagar a Bira a sua quantia da vendagem.
Aproximei de um prédio, sentei e encostei em seu muro. Passavam varias
pessoas, inclusive jornaleiros, uns que não entendiam nada, melhor pra mim,
outros que riam de minha cara, teve até um que pareceu ter tido compaixão e
se dirigiu em minha direção, com certeza pra me dar uma moedinha de um
centavo, que não compra nada.
- Nico!
- Ã!... Basu!
- O que é que tu tá fazendo aí cara? ... Você tá “cheio de jornal” pra vender!...
- Rapaz, você não sabe o que me aconteceu.
- O que foi? Levanta daí, anda!
Basu fez logo uma cara de preocupado que só ele sabe mostrar quando quer.
- Anda Nico! Me conta o que foi que teve com você.
- Fui roubado!
- Roubado? Mas por quem? E por quê?
- Pelos vendedores de dona Ruth. Eles fingiram que precisavam de dinheiro
trocado, e, quando fui ver se fazia uma “boa ação”, trocando a bufunfa deles,
os malandros me passaram pra trás.
- Mas Nico, que vacilo você deu véi! Como é que cai numa destas! Quando a
gente vai trocar algum dinheiro tem que olhar primeiramente a cara de quem
tá pedindo.
- É, né! ... Você tá certo mesmo! Mas agora já é tarde.
-Tarde nada! Nós vamos lá tomar tudo de volta! E se não quiserem devolver
vai rolar pau! Eu quero ver se eles não vão me dar o dinheiro.
- Eu não sei se eles estão mais lá.
154
O Jornaleiro
- Não importa. Levanta daí e vamos buscar o seu dinheiro.
Basu me injetou uma doze de ânimo. Fomos lá encarar de novo os caras.
Atravessamos a mesma pista que quase fui atropelado, se algum carro fosse
passar e alguém chiasse, mandaríamos o infeliz ir pro espaço.
Mais algumas andadas e lá estava ela, a PRELÚDIO. Se me perguntarem
por aí o que significa esta palavra, eu não sei dizer. Mas, se me perguntassem
qual o meu desejo naquele instante eu diria: massacrar os vendedores de dona
Ruth.
Nos aproximamos mais do local. Agora sim, estavam lá vendedores, tudo
indicava que eram eles.
Chegamos mais perto e vimos um grupinho em frente a delicatessen.
Corremos até lá, os caras assim que nos viram ficaram assustados. Agora
sim, nós ...
- Oxente! Não são eles!
- O quê?
- Não são eles, Basu! Que droga! Porra!
Haviam ali alguns jornaleiro sim, mas com as caras mudadas, o que deixava
entender que os outros já tinham ido embora. O sangue me subiu à cabeça.
- Que raiva!
Fomos aos meninos, pequeninos ainda, deviam ter de sete a dez anos.
Perguntamos se eles viram os cafajestes.
- Já foram embora. Nos disse um dos vendedores mirins.
- Pra onde? - perguntou Basu -.
- Saíram aí - concordaram todos -.
- Que merda ! E agora Basu ?
- E agora! ...
É ... Agora não havia mais nada que eu pudesse fazer pra encontra-los, só se
eu fosse um cão farejador, o que não me caía nada bem. Estava tão cego de
ódio por aqueles caras que não pude perceber, mesmo que um pouco de
longe, que estavam ali guris e não os marmanjos que tomaram o meu
dinheiro. Que visão ordinária a minha. Se eu não falo pro Basu ele iria dar
uns cascudos nos pivetes e depois ia rir da minha cara, com certeza iria dizer:
155
Cristiano Sousa
"Mas Nico! Como é que você deixa uns pivetes desses tomar o seu
dinheiro?".
Eu não me conformava, mas tive que aceitar, pelo menos por este dia, pois
ainda iríamos nos encontrar. E no próximo encontro...
Segui desconsolado com Basu pra prestar contas. Já eram doze e meia. E
agora? O que eu iria dizer a Bira?
Basu mais uma vez foi camarada comigo e me emprestou um tanto de
dinheiro pra pagar, tentei resistir mas peguei senão ficaria devendo uma
grana que só iria tirar em uma semana de vendagem, quem sabe.
- Tá bem Basu. Mas eu vou te pagar, tá ouvindo?
- Tá Nico! Não esquenta ?
- Eu só vou aceitar porque acho melhor ficar devendo a você do que àquele
cara de bosta.
Basu teve a idéia de pegar um ônibus, no ponto que fica próximo da
igrejinha. Fomos pela frente, como sempre, mas neste dia houve uma
surpresa. O motorista nos barrou.
- Qual é moto? É só até ali ...Falei logo.
- Não! Vá por trás.
Ainda tentamos desconversar como costumamos fazer nestes casos, mais
nada. Este era um daqueles motoristas ranzinzas, que só dão carona aos
jornaleiros que simpatizam.
Não o alugamos muito, fomos por trás se não ele puxaria o carro. Basu e eu,
para não gastar a merreca pagando transporte, pedimos ao cobrador para nos
deixar pular a catraca.
- Deixe o carro sair!... Vocês não estão vendo os fiscais aí, não? - Balbuciou
bem baixinho estas frases, o rapaz -.
Se fosse como antes que as catracas não tinham a proteção da parte inferior,
nós passaríamos logo por baixo, mas a prefeitura e as empresas resolveram
cortar a onda do pessoal que não pode pagar, ou daqueles que não gostam, e
acabaram com a festa.
O ônibus finalmente andou, e nós fomos liberados pra passar.
- Ei! Psiu!
156
O Jornaleiro
- O cobrador nos chamou quando íamos sentar, não consegui adivinhar pra
quê, foi quando ele fez um gesto colocando a mão a meia altura e dizendo:
- Cadê?
- Cadê o quê? Pergunto Basu.
- Metade do transporte.
Ah, bom ! Ainda mais essa! Um cobrador vigarista.
Basu e eu lamentamos o que pudemos e o que não pudemos. Não demos
nada pra ele. Estava faltando em nosso bolso!
O cara até que não nos esquentou com aquele assunto. O ônibus cruzou
praticamente toda a Manoel Dias, e só quando chegou em Amaralina é que
fui me dar conta que ainda tinha fregueses pra cobrar jornais. Eles poderiam
aliviar o meu sofrimento.
Já estava muito tarde, uma hora por bem dizer, sabia que não iria encontrar
muitos deles em casa, também não sabia qual era a praia, clube ou qualquer
outro inferno que eles frequentavam, na casa de Cristina já estava sem pernas
pra ir, a minha salvação era ela, mas ...deixei pra ir à noite, "hoje é o dia!",
pensei na minha mente "ósada"
Ah!... Este tinha que estar em casa, se não eu fazia um escândalo dos bons: o
senhor que me devia mais de uma semana de jornais. E ele morava perto!
- Basu você vai prestar conta que eu vou cobrar um jornal, aqui.
- É muito longe?
- Não! É aqui perto.
- Então eu vou com você.
- Não precisa.
- Oxente! Não tem problema! Vamos!
- Então!... Vamos!
Seguimos pela Rua do Balneário e entramos na Rubens Pinheiro, à casa do
meu freguês. Apertei logo a campainha e esperei, ao lado de Basu. Desta vez
não se demoraram a virem me atender.
Ele chegou perto de nós (foi um velho) e logo soltou uma risada diferente,
que tendia mais para lástimas que para agrado.
- Oi ! Tudo bem com vocês?
- Tudo! - Dissemos -.
157
Cristiano Sousa
O Vovô nos cumprimentou com a cara mais limpa do mundo, e eu, para não
deixar transparecer o meu desagrado com aquela demora no pagamento,
expressei uma risadinha boba. Abriu o portão e pegou no bolso a carteira, de
onde tirou uma nota de...
- Um cheque?
- É!... Eu só tenho isso agora. Tô sem dinheiro! Esta semana não entrou nada
aqui, sabe!...
- Tá bom! Brigado, viu senhor!
- De nada.
Se os queridos companheiros assistissem a esta cena no momento em que
ela foi realizada, veriam com que cara fiquei quando o babacão tirou da
carteira, ao invés de dinheiro vivo, um cheque. Só me arranjou mais trabalho,
teria que ir a um banco trocar. O importante ele fez: me pagar.
Como minha memória é fraca, Basu me alertou:
- Você não precisa ir no banco. Troca em Bira!
- É mesmo!
- Com esse dinheiro aí, dá até pra você me devolver metade do que eu te dei,
né?
- É! Deixa eu prestar conta primeiro, tá bom?
- Não esquenta.
158
O Jornaleiro
XIV - REVELAÇÕES
D
ona Maria Carmem, o que foi que aconteceu com o senhor Roberto,
que nunca mais vi? Parou de dirigir pra esta família, foi?
- Menina! Se eu te disser que não sei, você não acredita.
- E o Dr.Marcelo, continuei, eu também nunca mais vi? Será que viajou pra
algum lugar...
- Dizem que está lá pelas bandas do Sul, resolvendo coisas importantes. Estes
empresários só vivem fazendo negócios... Já percebeu?
- Já! Ele que te disse isso?
- Não. Foram os meninos. Não vejo ele faz tempo. Flávio me disse que talvez
fique por lá mais tempo do que o previsto. Eles sabem como são estas coisas.
- Eles quem?
- Os meninos, mulher!
- É verdade.
Naquela terça muitos pensamentos desagradáveis passaram por minha
cabeça por causa de sonhos que tive à noite, algumas maluquices; sonhei, por
exemplo, que a Gorethe estava grávida. Pode?
A sensação mudou quando cheguei ao “ap”, os meninos não estavam em
casa, facilitando o trabalho dos empregados, no caso, eu e a dona Maria. Na
hora do almoço foi que sentamos pra falar da vida alheia. Fofocar. E o tema
principal da nossa conversa era exatamente a paz que reinava a uns quatro
dias naquele recinto.
- Será que é porque Dr. Marcelo esta fora? - Replicou a cozinheira -.
- Não sei! Talvez seja isso, talvez não. Afinal, o Dr. Marcelo não implica
com a gente!. A mulher dele é que é uma chata!
- E os filhos também! - Completou dona Maria, desta vez desligando mais
uma panela que estava no fogo, enquanto eu estava sentada a mesa,
degustando um belo copo de café, uma das minhas manias - A dona da casa
chega hoje, sabia?
- Quem! A dona Mariana?
- Quem mais?
- Não! Eu não sabia disto, não! É mesmo menina?
- Pois é!
- Ela não ia “vim” só lá pro final do mês?
- É! Disseram isto. Mas agora já estão dizendo outra coisa.
159
Cristiano Sousa
- O que será que aconteceu pra ela voltar antes do previsto, hein?
- Não sei. Se eu soubesse te dizia.
- Será que aconteceu alguma coisa com ela?
- Não sei!... Não sei!
Aquela notícia com certeza foi uma novidade. Uma das mulheres que mais
valorizam
uma farra nesta Bahia, que estava na ilha se divertindo, em plena época de
trabalho, voltar pra casa assim, sem mais nem menos, sendo que já havia dito
que não pisava os pés em casa (na casa de Salvador) sem que completasse
todos os dias previstos para ficar na sua casa (de veraneio). E eu com isso?
Acabado o meu rango, cessei a conversa com a dona Carmem e peguei
novamente na vassoura, pois havia muito por fazer. Quem pode, pode! Quem
não pode se sacode.
Houve um fato curioso lá em casa também, antes que eu saísse. Quando
acordo, levanto rapidamente da cama e me dirijo ao banheiro, e neste dia não
foi diferente, porém, quando levantei a cortina do meu quarto, vi a porta
encostada. Achei estranho aquilo, pensei que tinha sido roubada. Olhei em
toda casa e não percebi nada diferente. Antes de seguir para o banho fui
trancar. „Quem sabe foi um dos meninos que esqueceu aberta‟. Olhei por
uma brecha existente, não havia ninguém, mas ouvi algumas vozes, dava pra
perceber que eram dos trabalhadores que passavam todos os dias por ali para
o final de linha do Arenoso. Eu já ia trancando a porta quando percebi um
desses trabalhadores cumprimentando alguém de nome conhecido.
- Bom dia, Camilinha!.
Não pensei duas vezes. Pus-me pra fora e dei de cara com ela. Estava
acompanhada de um rapaz moreno alto, de cabelos crespos e olhos
castanhos, forte e bem arrumadinho. Esta foi a parte mais curiosa do
suspense: Camile acordada aquela hora do dia, fazendo o que? E quem era
aquele rapaz? Deu pra perceber pela maneira da conversa que falavam sobre
alguma coisa seria, e eu queria saber o que era.
- Camile! O que você tá fazendo do lado de fora uma hora dessas, menina?
A garota, quando me viu, ficou mais pálida que de costume. O rapaz
também me olhou com susto.
- Mãe!
160
O Jornaleiro
- Sim, sou eu! Quem poderia ser, mais?
- É que eu pensei que a senhora ainda tivesse dormindo.
- E você não sabe que saio cedo todos os dias?
- Sei!... É que...
- Você ainda não me respondeu (interrompi). O que tá fazendo aqui fora uma
hora dessas? E quem é este rapaz que está do seu lado? Posso saber?
Pronunciei estas frases voltando o rosto para a pessoa em questão, como se
estivesse falando com o próprio.
- Este aqui é o meu namorado!
- Namorado?
- Mãe! O que é isso? - Indagou a garota, fingindo estar envergonhada -.
- Bom dia moço? Como você se chama?
- Bruno, senhora!
- Bruno, hein! Sim, senhor Bruno. Vamos conversar um pouco. Aceita?
- Por mim, tudo bem.
- Certo! Mas agora não, que eu tenho que sair pro trabalho, mas de noite eu
quero que o senhor venha aqui, conversar comigo melhor sobre este namoro.
Tá bom?
O rapaz balançou a cabeça aceitando a minha intimação, deu uns beijinhos
descarados em Camile, a mim um bom dia, e se foi pelo caminho que os
trabalhadores fazem pra chegar ao final de linha do Arenoso, o que eu
também iria fazer.
O tempo na casa dos patrões foi se passando lânguido. A limpeza,
praticamente feita, faltavam apenas alguns pontos que eu ainda não havia
tocado. Neste dia eu estava de folga da minha verdadeira função, lavadeira.
As roupas não apareciam sujas a dois dias, melhor pra mim que não
precisava lavar.
Quis dar uma olhada no quarto do casal. Maria me disse que a chave estava
com os meninos:
- Olha no quarto deles! Quem sabe você acha.
- Eu? Olhar no quarto? Eu não entro lá nem!... Você viu que eles disseram
que podia limpar o próprio quarto.
Este episódio aconteceu há semanas atrás, quando foi dada a notícia que o
Dr. Marcelo ficaria mais tempo fora. Carmem insistiu no pedido:
161
Cristiano Sousa
- Que é isso mulher! Aqueles dois sabem lá o que querem? Entra lá e pega a
chave.
Pensei umas três vezes antes de agir, mas me entreguei. Afinal, uma
doméstica que se preze tem que fazer o trabalho bem feito.
- Ô Maria, como eu faço pra abrir o quarto dos meninos?
- Vê aí neste vaso branco que está na estante, com flores amarelas e
vermelhas, se tem alguma chave.
Fui ao tal e achei uma, perguntei a Maria de que quarto era aquela, me disse
que do de Estela. Flávio costumava levar sempre a dele consigo.
Enfinquei a chave em sua respectiva fechadura, girei duas vezes apenas para
a direita, e pronto! Estava aberta a porta. Empurrei- a bem devagarinho,
temendo não sei o quê, não tinha ninguém no quarto! Apenas me bateu uma
má impressão, que não sei se foi tensão ou nervosismo. Acendi a lâmpada.
Desta vez tudo se clareou pra mim. Botei a cuca pra funcionar rápido. Onde
será que Estela poderia ter guardado a chave, se é que estava no quarto dela?
O primeiro lugar que procurei foram os vasos próximos a cama, não estavam,
então fui às gavetas da cômoda, eram três, abri a de cima, revirei as roupas
que se encontravam nela, não encontrei; fui à segunda, revirei as calçolas da
menina, os biquínis, sutiãs e... a há! Estava lá a danada.
Saí dali, fiz a limpeza no quarto do casal e voltei ao de Estela pra recolocar
a chave, bem no cantinho da gaveta, onde eu tinha pego. Aconteceu um
imprevisto: o celular da menina tocou.
- Ai meu bom Deus! E agora?
A dona do quarto havia proibido a entrada de qualquer pessoa que não fosse
ela ou o seu irmão. Mas fiquei na duvida. Poderia ser algo importante.
Passei quase um minuto nestas reflexões até que, de tanta insistência da
pessoa que estava ligando, decidi pegar e ver quem era.
- Alô!
- Alô! É a Estelinha?
- Não!
Parou a conversa, mas deixou o telefone ligado, a voz era de homem,
percebi que falava com alguém. Continuei com o aparelho na mão até que
perguntou:
162
O Jornaleiro
- Quem tá falando comigo?
- Sou a empregada da casa.
- Ah!...Agora ela tem uma cumplice!... Então faz o seguinte (continuou o
homem) diz pra sua patroa que o pai dela não está aguentando mais esperar...
- O que o senhor quer dizer com isto?
- O que eu quero dizer com isto é que, ou ela manda o que nós queremos até
a data marcada ou...
- Ou o quê?
- Você sabe!... A nossa paciência já esgotou.
Não tinha como deixar de perceber que estava falando com sequestradores.
A primeira providência que tomei foi disfarçar a voz, como uma boa detetive,
para que o cara não percebesse o meu nervosismo, que o faria cogitar que eu
estava por fora do assunto. Disfarcei também na conversa.
- Tá bem!... Tá bem seu moço! Eu falo pra ela isso que o senhor disse, tá
bom?
- Ok! Dentro de algumas horas nós falamos com você novamente.
- Tá bom!
- Ói, e diga à minha Estelinha que, quando a mamãezinha dela já estiver em
casa eu quero falar com ela, viu princesa? Tchau! (Desligou).
Que ousado! Então era por isso que a dona Mariana estava chegando! Já
soube que o marido foi sequestrado!... Eu só queria ver com que cara a
sirigaita iria aparecer.
Agora entendia porque esta família estava tão misteriosa. Entendia também
o porquê das desculpas de não podermos entrar no quarto e de Dr. Marcelo
estar trabalhando no sul do país.
Saí rapidinho do recinto. Puxei a porta por fora com certa violência por
causa do nervosismo. Voltei ao jarro de onde havia tirado a chave do quarto
de Estela e a recoloquei.
Aquela conversa ao telefone me deixou muito tensa; eu tinha que fazer
alguma coisa pra que Maria não percebesse que eu estava com os nervos a
flor da pele.
163
Cristiano Sousa
“Meu Deus, que situação que eu me encontro!” E a família? Será que eu
devo dar o recado a Estela ou ficar pra mim este telefonema? Era uma das
minhas grandes dúvidas.
Como a cara mais transformada da Bahia (acho que nem em carnaval se
encontrava máscara melhor) fui à lavanderia guardar o material de limpeza.
Acho que não sou muito boa pra estas coisas de disfarces, porque Maria
Carmem, quando me viu, arregalou um olhar que deixava a impressão que
estava em sua frente um fantasma ou coisa do tipo. Preocupada com a minha
fisionomia pálida, a pequena mulher perguntou agilmente:
- Você tá sentindo alguma coisa, Jandira?
- Não!... É impressão sua. Está me achando estranha?
- Eu não disse nada!
Que mancada! Pra não dar mais uma como esta eu cessei logo a prosa. Não
iria adiantar tentar enganar a Carmem, por isso me arrumei pra ir embora,
ainda estava um pouco cedo, eram dezesseis horas, eu poderia dar a desculpa
de que acabei o serviço cedo e me mandar. A única que me dava ordens pra
ficar era a minha própria vontade, esta feiticeira que nos domina e comanda
as nossas emoções, podendo nos levar para o caminho do bem ou mal; ela
queria que eu contasse tudo sobre a conversa do telefone a Estela. E agora?
Eu fico e conto ou vou e me omito?
Não me demorei pra vestir a roupa. Quando a Maria me viu trocada fingiu
ter um susto. Abriu a boca e arregalou novamente os esbugalhados olhos pra
me perguntar:
- Já vai?
- Eu já terminei tudo o que tinha que fazer por hoje.
- E vai me deixar aqui sozinha?...
- Oxe! Tá com medo de quê? Nunca vi bicho papão andar aqui por dentro!
- É que, eu vou ter que esperar alguém chegar pra poder sair.
- Tranca a porta e deixa a chave na mão do porteiro.
- Tá doida, é? E se acontece alguma coisa?
- Que acontecer, que nada menina! Deixa de besteira. Oi!... Tchau, viu!
Segundos depois de pronunciar estas palavras a campainha começou a
tocar. Quem seria, afinal? Fui à porta com a aparência tranquila e curiosa, as
164
O Jornaleiro
únicas pessoas que vinham em minha mente e que poderiam estar ali, do
outro lado da casa eram um dos dois irmãos ou a dona Mariana.
- Oi gente!
Juro não esperar ver em minha frente ser mais alegre e sorridente que
aquele, dei de cara com o bom humor em pessoa. Estava ali, debaixo do meu
nariz, uma mulher alta, inchada, alegre e que fazia questão de se mostrar
esbelta; toda de branco, do blazer até as calças e sapatos, com um chapelão
tipo século XIX e usando óculos escuros. Era uma figura, com certeza!
A mulher foi invadindo com a maior espontaneidade a sua casa, passou por
mim fazendo com que nem eu mesma me notasse, e não veio sozinha, trouxe
consigo três carregadores, os dois últimos traziam em cada mão uma mala e o
primeiro a entrar veio com uma pequena Poodle branca, toda cheirosinha e
com um lacinho vermelho na altura da testa. A cachorrinha latia que era uma
beleza, mas a primeira a abrir a boca pra se expressar foi a dona. Perguntou
uma coisa simples e obvia ao se dirigir à minha pessoa:
- Você é a empregada nova?
- Não tão nova que a senhora já não tivesse me visto nesta casa.
- Ah, sim! Claro! Você é a Jandira! Oh! Como pude me esquecer! Que
cabeça esta a minha... Bem, Jandira! Venha comigo, eu vou precisar de você
pra me ajudar a arrumar as minhas coisas.
“Que bela sorte a minha... Droga!”
Eu não podia voltar atrás na decisão de ir embora, mas também não podia
negar o pedido da dona Mariana, afinal, estava em pleno horário de trabalho.
Tinha que arranjar alguma desculpa rápida e conveniente para dar a mulher.
Mas qual?
Acompanhei a patroa até o seu quarto. Chegando lá ela despachou os
carregadores fazendo com que ficássemos a sós. Daí, começou a sua
seqüência de ordens: “Jandira ponha isso ali!...; Abra aquela mala pra mim e
tire tal coisa, por favor”. Que saco! Teria que ir pra casa com a única camisa
disponível suada.
O que mais me surpreendia era o estado em que se encontrava a patroa. Ela
não parecia estar triste por causa da situação do marido, muito pelo contrario,
demonstrava estar bastante contente. Que tipo de mulher seria aquela? Vejam
165
Cristiano Sousa
que, enquanto eu arrumava o seu guarda roupas, ela estava preocupada com a
sandália que iria usar na festa de aniversário de uma amiga. Não parava de
me perguntar de momento em momento:
- Esta aqui tá boa?
Descarregada as quatro maletas, falou-me com sutileza e secura na voz:
- Jandira, você pode sair! Se eu precisar novamente, te chamo.
- Tá certo, dona Mariana.
Quis deixar aquele quarto o mais rápido possível pra repensar a minha
situação, que era crítica e estava me deixando com a cabeça doente, não pude
porque fui impedida de passar pela porta. Um vulto, saindo meio que do
nada, pulou em minha frente e gritou assim:
- Você não vai pra lugar nenhum! Pode ficar onde está!
Este vulto que gostava de ordenar e fazer aparições repentinas era nada mais
nada menos que a dona Estela. Mandou que eu ficasse no quarto e entrou,
acompanhada do irmão e do motorista da casa, o senhor Roberto. Quando
todos se encontravam dentro do quarto de dona Mariana, a porta foi trancada
por Flávio e o ambiente tornou-se num clima de tensão e suspense. A garota
tomou o fio da meada para si, foi ela que primeiro quebrou o gelo que
circulava o quarto de extremo a extremo.
- Eu não disse que não queria ninguém no meu quarto, dona Jandira?
Este foi um golpe fatal em meu coração. Que facada! Como foi que Estela
descobriu que eu estava em seu quarto, assim, tão de repente? Será que foi a
Carmem? Mas assim, tão rápido? Me pegou de surpresa a garota. Eu não
gostei deste “dona” que foi pronunciado pela menina, tanto que a primeira
coisa que veio em minha boca foi:
- Que tons são estes, dona Estela? Acentuei bastante o “dona” pra ela saber
que quem estava ali, apesar de ser uma doméstica, também era gente.
- É que eu fiquei sabendo, Jandira... - continuou a garota, se aproximou mais
de mim com passos vagarosos -.
- Sabendo o quê?
- Que a senhora andou atendendo telefonemas que não lhe diziam nenhum
respeito (mostrou-me o aparelho com o numero do bandido no registro de
chamadas atendidas).
166
O Jornaleiro
Agora sim, tive certeza de que foi a Maria que me entregou. Até que foi
bom.
- É verdade dona Estela (falei novamente com força o “dona”). Eu atendi um
telefonema em seu quarto sim, mas fique sabendo que foi por acaso, viu?
A única que parecia estar por fora acabou por se pronunciar:
- Mas que papo é esse, hein? Que história é essa de telefonema? De
proibição?... Alguém pode me explicar o que está acontecendo?
Quem tratou disso foi o filho:
- O pai.
- O que tem seu pai?
- O pai foi sequestrado!
- O quê?...
A dona, neste momento se encontrava em trajes de descanso; a sua primeira
reação foi de assombro. Realmente estava por fora de tudo. A fisionomia da
dama mudou completamente de rosada e feliz para pálida e sem graça. As
palavras pareciam não vir em sua boca, acho eu que não se formulavam com
firmeza em sua mente porque a tremedeira tornou-se bem visível. A única
coisa que conseguiu foi repetir:
- Sequestrado!
Nome simples e cruel a essa altura.
- Como foi isso?
- Nós vamos te explicar, mãe. Falou a filha com a mais frágil das docilidades.
Estela não deixou que saíssemos do quarto, porque todos eram importantes
naquela estória e que ninguém mais podia saber do fato. Então começou a
contar a sua parte da trama:
“ Eu fiquei sabendo do sequestro quando os bandidos ligaram pela primeira
vez.
Naquela ocasião foi a própria Jandira quem atendeu o telefone; eu não quis
fazê-lo porque ela disse que era o pai, e estava em algum lugar aqui no
recôncavo. Ela não soube explicar direito. Lembra Jandira?
- Então foi por isso que a senhora correu pro quarto depois que falou ao
telefone?...
167
Cristiano Sousa
- É, foi por isso mesmo! Eu fiquei muito nervosa quando soube que o meu
pai estava nas mãos de canalhas naquele momento, e fiquei sem saber o que
fazer. Me tranquei no quarto e a solução mais adequada que achei foi chorar.
Passadas algumas horas resolvi ligar pro Flávio, pra ver se ele me ajudaria a
tomar uma decisão.”
Estela deixou a perceber que não estava em condições de falar mais nada,
tudo o que a moça tinha dito até então era gaguejando. Quem continuou a
narração dos fatos foi Flávio:
“Assim que cheguei aqui perguntei logo pela Estela, Maria e Jandira tinham
me dito
que ela estava em seu quarto. O que vi em minha frente quando se abriu
timidamente a porta foi uma estela bem diferente da que estou acostumado a
ver. Aquela mulher forte e inteligente, que era mister que encontrasse
caçoando de mim por me achar um fracassado; agora tinha uma alma fraca e
penosa. Pegou-me pelo braço e fez com que entrasse rápido, fazendo-me
saber do acontecido.”
No fervor da conversa acabei aderindo a maioria. O rumo que tomava a
prosa deixava bem claro que a família não queria que ninguém soubesse do
sequestro de Dr. Marcelo. Mas por quê? De por mim o caso ia logo pra
polícia.
“Os contatos com os bandidos (continuou Flávio) estão sendo feitos por dois
especialistas que nós contratamos. Só que os caras insistem em nos ligar pra
atazanar a nossa vida.”
- Meu Deus! Fez a mãe.
De frente para todos e com o destemido e famoso olhar de lince, senhor
Roberto, que até então só ouvia, começou a contar sua participação no caso:
“Fui eu quem estava dirigindo neste dia. Houve uma trama, coisa bem feita,
sabem? O Dr. Marcelo me pediu para leva-lo até Camaçari, pois tinha
negócios pra resolver lá. Eu ainda tentei puxar conversa, como sempre faço,
mas nada. Ele estava muito sério.
168
O Jornaleiro
Paramos numa localidade próxima ao complexo industrial, que parecia um
pasto. Além do nosso carro havia o de mais três empresários, conhecidos do
Dr. Marcelo, e todos eles cheios de capangas.”
O senhor Roberto, neste momento, tomou fôlego para continuar. Todos
estavam com os nervos a flor da pele. A tensão era tanta que este curtíssimo
tempo de respiração fez com que mãe e filha entrassem em pranto. Pedimos
que o senhor Roberto continuasse logo com a sua narração, que mal tinha
parado.
“Os homens conversaram muito mas não conseguiam chegar a um acordo
sobre o assunto. Demoraram coisa de duas a três horas ali, cansados, em pé
dentro do mato, praticamente. Ao final do diálogo com os três empresários,
pelo menos, era o que parecia, o Dr. Marcelo voltou. Durante todo o tempo
eu fiquei em pé junto a porta do carro do doutor, entrei depois dele.
- Pra onde vamos patrão?
- Agora vamos pra Salvador. De lá, vamos direto pra ilha.”
Ao ouvir o Roberto pronunciar a palavra “ilha” a dona Mariana teve um
impulso diferenciado. A senhora tentou disfarçar a sua cara, que estava mais
pálida que antes.
- Mas... O que Marcelo queria na ilha?
- Não sei! Só fiz o que ele me ordenou.
O senhor Roberto falou muito mas não chegou na parte principal. Afinal,
em que parte acontece o sequestro? Ele explicou:
“Na rodagem de volta a Salvador, dois carros nos fecharam em uma
passagem deserta na saída da cidade de Camaçari. Mandaram diminuir a
velocidade e encostar. Eram da polícia rodoviária federal, então nós paramos.
Eles também. Rapidamente saíram de
cada um dois policiais e vieram em nossa direção. O doutor baixou o vidro
da parte de trás, à esquerda.
- Saiam do carro!
- Mas, o que foi que fizemos? - Gritou o Dr. -.
- Não reclamem! Saiam logo do carro, vamos!
Abrimos as portas respectivamente e saímos.
169
Cristiano Sousa
Não estávamos entendendo a situação, os policiais estavam tão violentos
que chegamos a ficar com medo. As próximas ordens deles foram para que
entrássemos em seus carros. Tomaram providências para que nós não
víssemos nada a partir daí. Colocaram vendas em nossos olhos. Não precisa
dizer mais nada. Eram sequestradores e nós estávamos em suas mãos.
Eles me jogaram a algumas léguas dali, no meio da estrada, foi quando tirei
a venda dos olhos e pedi carona.”
- Meu Deus! Que história terrível! - Dizia indignada a dona Mariana -.
Era noite quando o quinteto começou a se dissipar. Dona Mariana pediu a
todos que guardassem o maior sigilo possível. Ninguém mais poderia saber
dessa história, se bem que, contando todas as pessoas da casa, incluindo os
empregados, só quem estava por fora era Carmem, que, me disseram os
meninos, foi dispensada mais cedo por eles assim que chegaram.
Fui embora com a cabeça muito confusa e preocupada com o Dr. Marcelo.
“Ele é um patrão mão de vaca, mas é um ser humano”. Quando aproximei da
porta de minha casa pude ouvir uma larga e feroz discussão entre duas
pessoas no interior dela. Eu não perdi tempo pra entrar.
Antes de botar os pés dentro fui logo gritando:
- O que tá acontecendo aqui?
Eram Carlos e Nicolau que debatiam ferozmente, eu vi a hora de saírem no
braço. Não podia admitir uma coisa daquelas. Tomei uma posição rápida, que
foi apartar os dois. Meu Deus! Em que mundo nós estamos!
- Eu quero saber o que está acontecendo! Por que esta desavença? Eu exijo
uma explicação.
- Que explicação que nada! - Gritou o meu esposo, com um gesto violento e
sem sentido. Parecia estar bêbado, o que foi comprovado por Nico -.
- É esse “cara” aí, mãe!...
- Epa! “Cara” não! Ele é o seu pai!
- Ele não gosta dos filhos?
- Porque você está dizendo isto?
- Esse “homem” aí mandou a Camile sair de casa.
- Sair de casa!
170
O Jornaleiro
Então era esse o motivo da briga. A minha reação a esta revelação de Nico
foi ficar boquiaberta; não encontrei palavras naquele instante pra expressar o
que senti. Passados os primeiros segundos da notícia, eu, tentando me
equilibrar no chão, joguei totalmente a atenção pra Carlos.
- Por que você mandou a minha filha ir embora? - Falei com raiva -.
Desta vez, por qualquer que fosse o motivo, não o apoiaria de jeito nenhum.
- A sua filha é igual a você. Uma prostituta!
- O quê!... Fiquei embasbacada com esta ofensa.
- Como você tem coragem de dizer isso pra minha mãe!
- Nico, fique quieto!
Da maneira que ele estava nervoso, me deixou com muito medo.
O motivo de toda aquela desgraça veio num “tiro à queima roupa” de
Carlos.
- Sua filha, dona Jandira, está grávida!
171
Cristiano Sousa
XV - CAMILE ESTÁ PRENHA
C
heguei naquele dia do jornal num horário fora do normal, azar meu
pois saí pra escola sem almoçar. Por outro lado, tinha a sorte de ter
sempre alguém que acudisse minha barriga na penitencia das
vendagens, nesse assunto entram duas pessoas especiais, uma todos já
conhecem, que é a minha querida e doce Cristina, a outra, até agora anônima,
também era especial, se chamava Andréa, e trabalhava como caixa de uma
padaria da Pituba. Todos os dias, se não tivesse muito atrasado ou
esquecesse, eu ia lá, porque sabia que estava me esperando um pão com
manteiga, queijo, mortadela, e uma latinha de refrigerante que ela pegava
escondido porque, se a patroa soubesse...
Quando voltei do colégio a casa estava como sempre: Camile pelos pastos e
as crianças trancadas, com a chave nas mãos da dona Ana do Sossego, nossa
vizinha. A Sula, neste dia, não tinha ido a escola porque estava com um
pouco de dor de cabeça.
Fui na dona Ana, peguei a chave, abri a porta e entrei. Os meninos me
olharam com uma careta bem chocha. Estavam, na ocasião, brincando de
chutar uma bola plástica. Perguntei aos dois se queriam alguma coisa, e eles
me responderam que estavam com fome.
- Vocês não comeram nada até agora?
- Não - falou a Sula -.
- E a Camile? Ela não deixou nada pronto?
- Ela não chegou do colégio. Tovinho veio só. Você viu!
- Eu sei. Saí pro colégio e deixei vocês dois porque pensei que ela fosse
chegar...
Camile não havia chegado em casa (ela fazia muito disso) mas sempre
aparecia pra deixar alguma besteirinha para as crianças comerem... Fui até a
cozinha preparar alguma coisa pra nós três colocarmos na barriga e não dei
muita importância ao caso. Achei que a falha foi minha por confiar em minha
irmã mais velha.
Passamos o tempo a esperar até que a garota chegou. Pôs as suas belas
pernas por entre a porta da mesma maneira que bateu: parecia estar com a
mente zonza ou coisa assim, o que lhe dava um jeito de lerda. Como de
costume passou direto parecendo não ter visto ninguém na sua frente. O que
172
O Jornaleiro
eu estranhei mesmo foi ela ter me chamado de parte, no quarto.
- Nico, vem cá - olhou pra mim e fez um gesto com a mão -.
- Eu?...
- Sim, você! Quem poderia ser?
A mulher era meia grossa, mas eu estava acostumado. Segui os seus passos
até o quarto de mainha e painho; Tovinho agora traquinava ali, procurando
algum brinquedo debaixo da cama, Camile mandou que ele saísse do quarto.
- Oxe! Espere minha amiga! - falou o garoto com um ar sapeca -.
Camile então fez o seguinte: foi até o garoto e o pegou em uma das orelhas,
colocando o pivete para fora.
.
- Eu não estou pronta de esperar você, viu meu amigo? - Exclamou a garota,
assentando bem o "meu amigo", pra impor respeito -.
Feita a dispensa, virou-se e fitou seriamente os seus olhos nos meus. Passou
quase um minuto neste transe, que me levou junto, com agonia e ansiedade,
eu não consegui falar nada, apenas pelo fato de ver, pela primeira vez,
Camile realmente séria. Esperei que ela se pronunciasse.
- Nico.
- O que foi? Diga!
Parecia estar entupida, queria soltar algo preso dentro do coração, mas não
tinha coragem. Tratou logo de arranjar.
- Eu estou grávida!
- Grávida?... Menina!
Apesar do espanto inicial não fiz muito caso da revelação, apenas quis saber
de alguns detalhes bobos, como por exemplo:
- E quem é o pai?
- O meu namorado.
- Onde ele mora? É aqui na rua?
- Não! Você não conhece. Só mainha já viu ele, e hoje de manhã, antes de
sair pro trabalho.
- Ah!...
- E agora, Nico?
Ela estava bastante tensa, precisando de alguém que lhe desse alguns
173
Cristiano Sousa
conselhos, que a orientasse, e eu não era a pessoa certa pra esse tipo de coisa.
Tentei acalmá-la e passar uma palavra de coragem:
- Oxe, Camile! Qual é o problema, hein? Você vai ter um filho, e daí? Muitas
meninas em sua idade tem mais de dois!... Claro que, engravidar cedo não é
bom, mas...
- Nico!... Você não está entendendo. O problema não é com o bebê e sim
com nossos pais. Eles não vão aceitar nunca a minha gravidez.
- E por quê?
- Você não vê como as coisas tão difíceis por aqui!
- Isso é pra todo mundo, Camile! E além do mais, o pai da criança é um cara
sério e vai cumprir com as responsabilidades, não é'?... Ou não?
- Esse é o problema! Ele ainda não sabe e talvez não queira esse filho.
Sem querer percebemos que uma figura, que até então se mantinha a parte,
abriu a cortina e acendeu a luz, perguntando:
- Não sabe o quê, dona Camile? E que conversa é essa de filho?
Era ele, O senhor Carlos Silveira Andrade. Chegou de supetão, sem que
percebêssemos.
De cara notamos que ele estava embriagado. Fiz sinal pra que minha irmã
não dissesse mais nada, só que ela foi teimosa.
- Pai. Eu estou grávida!
- Camile?... quem mandou você falar.
Eu não queria que painho soubesse da gravidez daquela forma. No estado
em que se
encontrava fiquei receoso de acontecer alguma agressão à futura mamãe.
A reação do meu pai ao receber a notícia foi estranha. O homem parou em
frente da filha e a olhou da cabeça aos pés, como se a estudasse, No final da
avaliação, painho gritou na cara da menina em voz seca e volume altamente
arrogante:
- Eu não quero mais você nesta casa! Rua!
- Pai? O quê é isso?
Fiquei mais que indignado, e por isso desabafei desta maneira, um pouco
sem lógica, com as únicas palavras que vieram em minha boca. Eu não podia
admitir jamais uma besteira daquelas. Sabendo que o coroa não estava em
174
O Jornaleiro
condições de decidir nada, eu o fiz:
- Camile, você não vai para lugar nenhum. Amanhã nós vamos sentar e
discutir melhor este assunto.
Para a minha surpresa, painho reforçou o que havia dito, e com mais
firmeza nas palavras que antes:
- Ela vai sim! - Gritou o homem, bafejando o seu álcool fedorento em minha
cara - Ela vai sair daqui, e agora!
- Não ligue pra o que ele está dizendo, amanhã nós...
- Não Nico! (Falou a garota, com um "quê" de indignação em seu olhar) Eu
vou fazer o que ele quer.
Camile não esperou tempo bom, saiu "picada" do quarto dos meus pais e se
atirou porta a fora. Se tinha em mente o lugar onde ir, não sei. Me senti um
verdadeiro inútil naquele momento. Quis ir atrás dela mas achei melhor
esperar mainha.
- Tovinho! Vem cá moleque!
- O que é Nico?
- Camile saiu, eu não sei pra onde ela foi. Vai atrás dela, antes que não dê pra
encontra mais! Vai logo!
O garoto, obedecendo fielmente às minhas ordens, saiu porta a fora à caça
da irmã, mesmo sem saber o porque. Meu pai e eu começamos a discutir feio.
Daí então, minha velha chegou e... Foi aquilo que vocês leram no final do
capítulo passado, o qual emendo a partir de agora:
Mainha, depois de um belo bate boca com meu pai, resolveu sair atrás de
Camile.
- Mas, como mãe? – Indaguei - Nós nem sabemos pra onde ela foi!
- Mesmo assim! Temos que fazer alguma coisa, Nicolau.
- Calma mãe! Vamos pensar um pouco.
- Em que lugar ela pode ter ido?... Se não for assim, o jeito é esperar Tovo.
É comum as mães ficarem dessa maneira, nervosas, agoniadas,
desesperadas, tristes e outras coisas mais quando veem os seus filhos com
algum tipo de problema. E pra piorar o babado, eu também estava nervoso.
Pai, a essa altura, estava novamente por algum boteco barato desses que
encontramos por aí, gastando o dinheiro que tinha no bolso, até não encontrar
175
Cristiano Sousa
mais e pedir que colocassem “na conta”. Com certeza já estava até esquecido
do que disse a Camile.
Além da minha mãe e eu, estava conosco a Sula, tomando como sua a dor
da velha. Enquanto eu me mantinha teso na borda da janela, olhando a
movimentação dos muitos transeuntes que passeavam em nossa rua, na
esperança de ver em uma daquelas caras a de Camile, ou mesmo a de
Tovinho; mainha, no sofá, só faltava se atirar porta a fora, Sula permanecia
ao seu lado.
- Nico, eu vou sair!
- Pra onde, mãe?
- Não sei! Por ai! Vou na casa de todos os nossos conhecidos, dos amigos de
Camile, pra ver se a gente tem notícias. Eu não aguento mais ficar parada.
Tenho que saber onde minha filha foi, e o Tovinho também.
A verdade é que a velha senhora tinha todos os motivos para estar aflita, já
se passavam mais de uma hora que ela chegou e não viu Tovinho e Camile, e
mais de duas que esta sumiu.
Colocou os pés pra fora com o destino ao mundo, mas não foi preciso ir
longe pra avistar o Tovinho vindo das casinhas. Antes que o garoto subisse
aos seus braços, foi logo perguntando:
- Cadê a sua irmã, Tovinho?
- Ela foi pra uma casa aí nas casinhas.
- Que casa?
- Eu não conheço o povo de lá, não!
- É longe essa casa? - Intrometi-me -.
- Não! Querem ir lá agora?
- Queremos sim! - Exclamou mainha -.
- Então, vamos logo! - Fez o garoto, saltando dos braços da velha e tomando
a frente da marcha -.
Antes de irmos, mandamos Sula fechar a porta, e minha mãe pediu que a
dona Ana do Sossego desse uma olhada em nossa residencia.
Passamos por toda a extensão da invasão em que nos foi necessário, era de
surpreender a maneira em que as casinhas cresciam, a população local cada
176
O Jornaleiro
vez mais aumentando e se amarrotando nos poucos espaços disponíveis; em
toda a Salvador o lugar é tido como um dos mais perigosos da cidade.
Realmente, foi verdade o que o Tovo nos disse, não demoramos nada pra
chegarmos onde queríamos. A casa em que Camile estava ficava num dos
piores lugares que tem para se morar naquela localidade, se é que existe o
melhor. Em frente a casa via-se nitidamente um volumoso esgoto, que já foi
rio, e vinha desde minha rua, esgoto o qual nos acompanhou em praticamente
todo o percurso sem reclamar. Não foi possível aproximar-nos o quanto
queríamos porque o imóvel estava cercado de arames farpados por todos os
lados, prática comum em muitas casas daquele lugar. Chegamos no portão de
madeira.
- Ô de casa!
Não precisamos de mais nada, este grito rouco de mainha fez com que
aparecesse gente na porta do recinto. E uma das caretas feias que vimos ali
dentro, ninguém
poderia me convencer que não fosse a de Camile.
Com certeza era ela. Foi a primeira a sair, logo que reconheceu os seus
parentes. E o primeiro nome que saltou de sua garganta não poderia ser
direcionado a outra pessoa que não fosse:
- Mainha!
Camile correu rapidinho e abriu o portão pra gente. Entramos, um pouco
tímidos, pois não fomos autorizados pelos donos da casa; demos de cara com
um deles na porta, um cara que eu nunca tinha visto, a impressão é que era o
tal namorado. E era.
- Oi, dona Jandira! Fez as graças da casa, o cara.
- Boa noite, Bruno! (Respondeu a velha) Tudo bom?
- Tudo bem! Se acheguem mais.
O único cumprimento que eu e o Tovinho recebemos foi um "e aí" bem
tímido.
Como era de se esperar, não vimos nada de diferente ali. Pela sala haviam
coisas que podemos encontrar nos tempos de hoje em qualquer barraco da
cidade, independentemente do dono ser gari, camelô ou atendente: um par de
177
Cristiano Sousa
sofás bem forrados, uma estante com objetos de gesso e barro, um micro
system, o aparelho de TV se destacava no canto da sala, e só. Antes de
começar por definitivo a prosa, chamou seus parentes que eram... era...
- Mãe, vem cá!
...Apenas uma senhora de idade que, quando a minha mãe bateu os olhos,
deixou a perceber que já conhecia, tanto que a chamou pelo nome:
- Dona Verônica!
Era esse o nome da senhora, e o nome do filho, como já vimos, Bruno.
- Jandira, que surpresa é essa menina, você encontrar minha casa?
- É, dona Verônica. Prometemos um dia visitar a casa da outra, só que eu não
pensei que fosse assim. Nunca imaginei que a senhora pudesse ser a mãe de
um genro meu. Que surpresa!
Essas promessas foram feitas quando se encontraram na Coelba. Naquela
ocasião, o dialogo, segundo minha mãe, foi assim:
“- Sabe menina! Anteontem tivemos que dormir no escuro. Coisas que só
acontecem em nossos bairros.
- Onde você mora?
- No Arenoso.
- Eu também moro lá!
- É mesmo ?
- É sim. Eu moro lá pra dentro, nas casinhas.
- Anh! Então deve ser por isso que nós nunca nos vimos. A senhora me
explica direito onde fica sua casa, quem sabe eu vou lá te visitar. Tem
família?
- Tenho apenas um filho comigo. Tive sete, mas já foram todos embora;
casaram,
saíram de casa....
- E o marido?
- Morreu quando os meninos tavam pequenos.
- Anh!... A senhora deve ter sofrido pra dar comida a todo mundo, hein?!...
- Ah, minha filha. E como!”
As duas ainda ficaram com ti-ti-tis, daqueles que os conhecidos costumam
ter quando se encontram em situações inesperadas, até chegarem no
verdadeiro motivo de nossa visita.
178
O Jornaleiro
- Dona Verônica. A senhora já deve saber que a minha filha esta esperando
um filho, né? E, de seu filho.
- Foi surpresa pra nós também, minha filha! Ela nos contou assim que chegou
aqui.
- É mesmo?
Os dois pombinhos, que até então se mantinham extra campo, foram
forçados a falar algo, afinal, a conversa girava em torno deles. Camile foi a
primeira a ser exigida.
- Há tempos, que eu estou com os sintomas de gravidez, mãe. Hoje, ao invés
de ir a escola fui no médico, e ele confirmou.
Ficamos conversando por um bom tempo. O casal teve que ouvir um belo e
demorado sermão das mães, pareciam que estavam ali duas criancinhas
sendo repreendidas por fazerem traquinagem. O assunto principal dizia
respeito a morada de Camile, agora que painho não a queria mais em casa.
Mainha quis leva-la de volta, segundo ela, a decisão do meu pai foi com a
cabeça quente. A única que se opôs a isso foi a própria Camile.
- Eu vou ficar com Bruno, Mãe.
- Mas Camile! Por quê?
- Ele disse que posso ficar aqui. Dona Verônica gostou da ideia. Eles moram
aqui sozinhos e a minha presença não vai incomodar em nada, me disseram.
- É verdade dona Jandira (falou o namorado). Camile é muito bem vinda, e a
senhora pode vê-la todos os dias, se é que ela vai parar os pés por aqui.
- Mas Camile! E o seu pai?
- Não tem nada com o pai, mãe. Eu já estou até esquecida daquela besteira.
Já que foi uma decisão da personagem central da trama, mamãe consentiu
com a sua palavra. De cara feia, mas consentiu.
- Bom, Camile! Se você quer assim! Mas faço questão que vá todos os dias lá
em casa me dizer como está.
- Tá bom, mãe. Eu vou.
Saímos da casa, e como o lugar não tinha iluminação durante a noite,
apenas a da lua, o que não era o suficiente, fomos seguindo o mesmo esgoto
fedorento e sujando os pés na lama até chegar em nossa rua, e em seguida em
casa. Era meia noite. Tovo estava nos meus braços, dormindo, seguimos o
exemplo dele. Cada um para suas camas.
179
Cristiano Sousa
O dia seguinte foi o de passar toda a confusão à limpo, e os meus pais
começaram a
fazer isto logo cedo. Era possível ouvir a briga dos dois de manhãzinha.
Estavam se esquentando para trabalhar. O velho já estava com a cuca mais
leve, só que não queria dar o braço a torcer e pisava firme no que decidiu, e a
velha, garantindo que se Camile voltasse pra casa, ele não iria colocá-la pra
fora nunca.
Meu pai saiu pro trabalho primeiro que minha mãe, como de costume. A
partir daí as coisas voltaram ao normal: chamou o Tovinho, fez com que o
menino se levantasse para ir ao colégio, e, para não perder o costume, deu
uma olhada no quarto das meninas. Camile não estava mesmo lá.
180
O Jornaleiro
XVI - A CHUVA ME ATRAPALHOU
N
ão é de agora que a raça humana vem fazendo os maiores esforços a
fim de tentar entender, e até controlar o tempo. Não se pode negar
que houve bastante evolução, mas nada que chegue perto da
verdadeira essência dos seus fenômenos.
Acordei surpreso pra ir ao jornal em um dia de quinta feira. Estava
chovendo muito, o que eu não esperava porque no dia anterior não se via
uma nuvem negra no céu. Já tinha tomado o café, vestido o uniforme e tudo
mais. A minha velha não queria que eu saísse com aquela chuva, e eu disse
pra ela que, se desse pra sair, sairia.
O horário já tinha ido para o beleléu.. Lá pras cinco e vinte foi que a danada
deu uma trégua e eu pude sair correndo. Ainda dava tempo, bastava pegar o
busu das cinco e meia. Passei pela casa de Basu, ele me acompanhou, desta
vez levamos o cacho por causa da chuva. Chegamos até o ponto da igrejinha
na Pituba, ele estava cheio, coisa que acontece muitas vezes por causa de
festas que rolam pelo bairro. Ficamos esperando Bira vir nos buscar com a
Kombi até as seis e meia, depois resolvemos pegar um ônibus só faltando
implorar ao motorista pra nos dar uma carona até Amaralina, já que a
prefeitura estava mandando bala nas fiscalizações.
Basu e eu falamos bastante sobre a quantidade que íamos pegar neste dia,
pois estava chovendo muito e não parecia que iria dar uma boa vendagem.
Na verdade o problema era comigo que não tinha um ponto fixo e dependia
de uma estiagem pra vender alguma coisa.
Decidimos pegar a quantidade de sempre, se não vendêssemos, levaríamos
de volta como bóias.
Chegamos na distribuidora e Bira não estava lá, apenas a sua ajudante, que
dizia a quem chegava pra esperar um pouco que ele foi levar uns meninos
nos pontos e já voltava.
- E você, porque não distribui “os jornal”? - Interrompeu um dos vendedores
-.
- Porque eu não tenho permissão pra isso! - Defendeu-se a garota -.
181
Cristiano Sousa
Ficamos como tantos outros que estavam ali e se encontravam em nossa
mesma situação, sentamos e esperamos. O problema era que São Pedro
estava com a urina solta, porque, os chuviscos que até pouco tempo estavam
caindo, iam aumentando de volume e densidade.
Não sei se era impressão minha ou se era por causa da chuva, estava
achando que tinha pouca gente ali pra pegar jornal, quando o costumeiro
dizia que deveria haver um grande tumulto. Além de mim e do Basu estavam
ali, se não me engano, uns vinte gatos pingados, muito pouco para o que
estávamos acostumados a ver. Basu ainda tentou arranjar uma explicação
aceitável, mas...
- Deve ser porque Bira já distribuiu “os jornal” de quase todo mundo, Nico.
- Isso não importa, Basu! Uma hora dessas não é normal ter só esse
pouquinho de gente. Muitas vezes eu me atrasei e cheguei aqui vendo gente
brigando “pelos jornal”.
- Deve ser por causa da chuva.
- Deve ser. Afinal, o que temos a ver com isso? É até bom que a concorrência
diminui. Você tá com pena deste jornal explorador, Basu?
- Eu não!
- Eu também não.
A dupla infernal (eu e meu amigo) sentimos um ar embalsamado rondando
por nossos narizes, chegamos até a rir de gozo por ver que ia ter menos
pessoas nas ruas vendendo, a distribuidora de Bira tinha a maioria
esmagadora dos vendedores da região, que rondam entre Pituba, Amaralina,
Rio Vermelho, Iguatemi, entre outros bairros.
A chuva começou a ficar forte, todos correram para baixo do toldo da
distribuidora ou para abrigos improvisados por ali mesmo. A porta estava
fechada e por isso ninguém entrou.
Finalmente apareceu „a margarida‟. Bira chegou na Kombi com alguns
vendedores dentro e com jornais também.
- Porra Bira, que demora! - Falou um gaiato -.
- Que porra é essa, Bira? Dos tempo que eu tô aqui esperando, já devo ter
perdido “sete fregueses” - gritava um outro -.
182
O Jornaleiro
E todos reclamavam da demora do cara, afinal, todo mundo queria ganhar o
seu dinheirinho e, tempo é dinheiro. Eu mesmo já devia ter perdido uns vinte
e tantos fregueses, por causa da chuva e de Bira.
Sabíamos que o homem era matreiro, então esperamos que se defendesse de
alguma forma:
- Eu estava levando “os meninos” no ponto, vocês querem o quê? Eu tenho
que valorizar quem vende mais pra mim. Todo mundo que tá aqui vende
pouco, com exceção de Basu e Nico, que quando eu saí nem “tavam” aqui.
Dizendo isso, virou-se com pressa:
- Peraí que eu vou dar “os jornal” de vocês dois, viu?
Respondemos com um “tá”.
A verdade é que ele era como nós, tinha que vender se quisesse ganhar. As
vezes nos contava, em momentos de prestação de contas, que começou a
trabalhar desde pequeno, com os seus pais vendendo doces e salgados na
porta das escolas ou nas praias para ajudar no sustento da família. Dizia que
sempre foi de família pobre, preto, e que era discriminado por este motivo,
mas não desistiu, e o motivo de todo o seu orgulho: nunca roubou nada de
ninguém. Cresceu assim.
O Bira que nos dizia tudo isso não era mais um menino, muito pelo
contrario, era homem feito e sabia muito bem o que queria, crescer na vida,
como todos os que lutam em cima deste chão, dia a dia. Não tinha muita
altura, alguns de minha idade tinham mais tamanho e corpo do que ele; era
bem moreno, olhos castanhos, pernas curtas e cabelos sempre aparados.
Jovem e feito, gostava de agradar em suas conversas, se não dissesse respeito
a dinheiro. Tinha um gênio forte o homem que nasceu realmente pra vender,
coisa que a sua habilidade de administrador não desmentia; muitos não tem
peito pra lidar com tanto dinheiro como o cara fazia por dia, milhares que
entravam de cada jornaleiro, e isso fazia com que desfrutasse de uma moral
imensa dentro da fabrica do Gazeta ou qualquer outro jornal que o fizesse de
filial.
183
Cristiano Sousa
Fui andando, ou melhor, correndo, pra ver se dava tempo de entregar o
jornal da maioria dos fregueses. Não sei Basu, mas eu ia ter muita
dificuldade, porque a chuva não dava uma trégua.
Em certo momento de minha trajetória, me abriguei em uma banca de
revistas, e que também vendia jornais, mas nem por isso o barraqueiro me
olhou com cara feia, ele viu que eu precisava parar debaixo de sua banca.
Uma mão se levantou do alto de um prédio em frente à banca, parecia ser
uma mulher, e pediu que eu subisse. Corri, mesmo debaixo da chuva, falei
com o porteiro, ele me disse que era no nono andar. Fui pelo elevador social.
- Tá completo? Perguntou uma morena, que foi quem acenou.
- Tá!
- É que meu patrão disse que era pra “mim olhar” bem os jornais que ele
manda comprar, porque as vezes vem faltando parte.
É verdade. Muitos jornaleiros gostam de bancar os espertinhos e entregam
os jornais faltando parte, para vende-las separadas, prejudicando a si e aos
colegas. Acontece também de alguns jornais virem faltando da própria
distribuidora e serem vendidos sem maldade nenhuma. O ruim de ambos os
casos é que, quem sai no prejuízo são os próprios jornaleiros que podem
perder a freguesia.
- O meu patrão (continuou a moça) disse que se continuar assim ele vai
comprar jornal nas bancas. “Vocês”, quando vem vender só trás o jornal
faltando!
- Ei moça, peraí! É a primeira vez que eu vendo jornal aqui neste prédio.
- É, mas “vocês tudo” faz isso, num é?
- Nem todo mundo.
Tive o cuidado de tirar um jornal limpo, e verificar na frente da mulher que
ela estava pagando por um não adulterado.
Desci com pressa. No térreo eu tive que parar um pouco, por causa dela, a
brincalhona da chuva. Encostei o meu corpo magro e cansado na parte do
edifício só pra olhar na cara dela, que sorria muito pra mim, gozando da
minha. Olhando num espelho d‟agua que se formou no chão, pude ver o meu
rosto refletido. Desta vez foi generosa comigo, mostrando minha face mais
bela, ao mesmo tempo querendo esnobar, como não pode usar uma boca,
pois não a tem, dizia com seu espelho pra mim: “Veja o seu rosto, eu estou
duelando água a água com o seu suor fedorento e salgado, aposto que ele não
184
O Jornaleiro
ganha de mim. Veja que estou dominando todo o seu corpo, a sua roupa e
tudo ao redor.
Realmente, tudo estava molhado!
Tive que sair daquele lugar senão nunca iria alcançar a minha meta que era
vender pelo menos a maioria dos jornais. Não dava pra ir longe, a chuva
estava forte. As vezes está chovendo tanto que chegamos a pensar que não
iremos vender nada, aconteceu exatamente ao contrário, vendemos até o
inesperado. Naquela dia parecia que não ia ser assim.
Logo que saí do prédio, vi o dono da banca que eu estava antes de vender o
jornal
expulsando todos os jornaleiros que se abrigavam ali, a minha intensão era ir
pra lá, desisti depois que vi tais cenas e quando me olhou de cara feia. Por
isso fui forçado a fugir para outro local.
Nessa altura da vendagem estava todo molhado, e o pior, os jornais
também; mas eu tinha que vende-los, fazer o quê?
A concorrência estava tomando espaço. Passavam por mim vários outros
jornaleiros, todos encapados, cobrindo os seus jornais com... plástico! Isso!
Como não pensei nisto antes? Eu devia ter pedido um plástico de lixo a Bira
pra cobrir os meus jornais. Na verdade eu devia era ter saído com um de
casa, como muitos fazem. Será que só eu sou cabeça dura? E agora? Como
arranjar um plástico para cobrir os jornais?
Essa pergunta foi facilmente respondida. Estava perto de mim um rapaz
trabalhando num prédio em construção, e eu perguntei a ele se não poderia
me arranjar um saco de lixo, a sua resposta não foi nada agradável:
- Que porra é essa, rapaz? Você vem pedir saco de lixo aqui, com tanto por
aí?
É verdade! Acho que o burro era eu mesmo!
Só consegui entregar os jornais a todos os fregueses que me esperavam
porque, descendo a ladeira que dava para a mansão de um deles, estava um
prédio com vários sacos cheios de lixo. Tive que despistar o vigilante da
185
Cristiano Sousa
guarita, que estava muito atento e também não quis me dar um saco vazio,
daqueles azuis. A trama que usei pra pegar o tão cobiçado saco de lixo foi a
seguinte: pedi (com algumas moedas na mão) que um pivete fizesse baderna
na frente do prédio, principalmente se algum riquinho saísse de carro, ele
obedeceu direitinho as minhas ordens, assim o vigilante tinha que passar a
maioria do tempo olhando para o lado oposto ao que eu estava e dando
broncas no guri. Eu agi rápido, meti a mão por entre as grades do portão e
puxei um dos baldes que se encontravam ali, arrancando o saco que o
forrava, derramando o lixo por todo o jardim gramado do prediozão. Quando
o vigia foi ver era tarde. Paguei ao pivete o merecido e fui embora.
Após todos os fregueses satisfeitos, corri o mais rápido que pude pra um
ponto vazio que encontrei pelo caminho. Era uma movimentada padaria,
localizada na Rua Alagoas; fiquei vendendo os meus jornais até que
chegassem uns matracões dizendo que eram os donos do ponto. O bom foi
que consegui vender uns sete por ali. Andei metade da Pituba para tentar
vender pelo menos uma boa parte dos jornais, porque, a danada da chuva
teimava em me atrapalhar. O sol, que até então estava dormindo (com certeza
o seu despertador não funcionou neste dia, porque o preguiçoso só me veio
levantar às dez horas da manhã) finalmente acordou. Com isso, tratei de
acelerar os passos pra lá e pra cá. Não perdia tempo e também não deixava de
oferecer jornal a nenhum barão que passasse por mim. Qualquer um que
fizesse vento nos meus olhos, a pé ou parando os seus carrões nas calçadas,
ouviria da minha boca:
- Quer jornal, freguês? - Perguntava, retirando uma amostra de debaixo dos
braços e pondo na cara dos branquelos -.
Acho que perdi muito tempo porque a maioria me dizia:
- Já comprei!
Mesmo assim eu agradecia pela atenção.
O tempo (agora era este que parecia estar contra). A chuva passou e ele,
acompanhando-a, foram embora dando-me tchauzinho. Onze horas e meia, e
eu ainda cheio de jornais, uns quarenta, se pouco. Se quisesse diminuir
aquela quantidade teria que ficar vendendo intensamente os jornais até
catorze horas, no mínimo. A praia seria a minha salvação se estivesse
fazendo sol. Como eu não ia ter forças pra ficar vendendo até tantas horas, o
jeito foi partir pras cobranças.
186
O Jornaleiro
Antes de recomeçar a penitência das andadas, para refazer novamente o
roteiro (desta vez para cobrar os jornais e não mais para entregar) lembrei de
uma pessoa importante naquele momento de reclamação estomacal. A
Andréa.
Não sei porque nenhum freguês me ofereceu cafezinho naquele dia, talvez
por causa da pressa. A minha amiga com certeza devia estar me esperando
com um trunfo guardado na manga. A padaria que ela trabalhava ficava na
Manoel Dias e era uma das mais frequentadas do bairro. Não foi preciso que
eu chegasse muito perto, para que o seu sorriso se radiasse, isso aconteceu
por um simples fato: Toda vez que me via, sorria. E olha que eu estava do
outro lado da rua.
- Vem cá!
Não era comum que me chamasse assim, antes de me aproximar da padaria,
isso me fez desconfiar de uma coisa: a patroa estava na área.
Foi dito e certo, quando encostei no caixa lá estava a fera, dando ordens aos
seus empregados que ficavam na parte de dentro do balcão. A conversa
parecia ser séria porque todos ouviam atentamente a velhoca; estava de fora
da bronca apenas a própria Andréa, que via tudo de parte, quietinha em seu
lugar. Em outras oportunidades em colocaria os jornais em cima do caixa e
tentaria vender alguns, mas naquela não. Quando a dona se encontrava no
recinto, Andréa evitava conversar com jornaleiros; se me chamava pra que eu
fosse comprar algo, dizia ser pra ela na intenção de me dar um dinheirinho
pra merendar em outro lugar. E quando tinha cliente ou algum colega seu por
perto, o pretexto era.
- Vai comprar um absorvente pra mim.
Assim, me passava a grana e eu ia embora. Só não concordava com o objeto
escolhido para a desculpa. Graças a Deus que neste dia não foi preciso que
executássemos essa trama. Tivemos sorte da ir embora antes do previsto,
depois de ter recebido um telefonema urgente da família. Foi o papo que
rolou lá por dentro.
- E ai? Vendeu algum jornal pra mim?
187
Cristiano Sousa
- Vendi só seis! - Respondeu a sorridente mulher, me devolvendo o que
sobrou e me dando o dinheiro dos vendidos. Se eu deixasse os jornais cedo
ela teria vendido mais de dez ali naquela padaria -.
Sorridente, descontraída, bondosa e gordinha. Era assim que se mostrava
para o
mundo a doce e meiga Andréa. Com sua pele morena e corpão arredondado,
queria ver esse jornaleiro que não fizesse uma boa amizade com a caixa da
padaria FLOR DA PITUBA, apenas se ela não fosse com a cara do sujeito.
As vezes aglomeravam-se vários vendedores na porta do recinto. Há! Se a
patroa visse uma coisa destas!
Eu adorava quando tinha tempo o suficiente pra ficar batendo papo com a
Andréa, neste dia me decepcionei porque não dava. Agradeci a moça, assim
que ela me passou o dinheiro dos jornais que vendeu pra mim, e virei as
costas pra ir cobrar os outros jornais. Vendo-me neste gesto, Andréa me fez
parar um pouco, com estas palavras:
- Ei, Peraí! - Ordenou-me amavelmente a gorduchinha, levantando
rapidamente o seu corpo pesado da cadeira, enquanto não se via clientes -.
- Aqui seu lanche de hoje. - Passou-me um saco discretamente -.
- Tchau Andréa!
- Tchau lindinho! Boa sorte pra você!
Me afastei da padaria e em um lugar seguro abri o saquinho. Estavam lá
dentro um pão com mortadela, uma laranja e um copo plástico tampado, com
suco de acerola dentro. Com a fome que estava não foi difícil aquele lanche
sumir rapidinho de minhas mãos. Assim que isso aconteceu fiz o mesmo,
sumi do local em que estava pra ir cobrar os jornais.
A medida que eu andava vendia alguns jornais, essa foi a minha sorte, pois,
quando me bati com o porteiro dum prediozão e ele disse:
- Olhe, hoje só foi vendido “quatro jornal”!
Faltou pouco pra que eu tivesse um troço. Ainda sem acreditar perguntei ao
homem em tom irônico:
- Só quatro, Rapaz? O que foi que deu “nos freguês” hoje?
- Pô! Você chega tarde! E também tem freguês aí que “tão viajando”
- E ninguém mais quis comprar?
188
O Jornaleiro
- Não, ninguém desceu pra pegar jornal.
- Que azar o meu hoje!
- Ói, vá pegar o dinheiro no oitocentos e três e no duzentos e um.
Peguei a grana do oitocentos e três e mofei um pouco pra receber a do
duzentos e um. O cara tinha problemas de audição. Os vendedores nestes
casos demoram muito tempo chamando o comprador.
Passei na casa de mais dois fregueses e ambos me disseram que pagariam
na próxima semana os jornais que entreguei durante esta. As vezes isso me
irritava, os fregueses ficarem me devendo o dinheiro dos jornais durante
semanas, meses e até anos. Por incrível que pareça, é verdade.
Chegou o momento de cobrar o jornal de minha freguesa preferida. No
prédio, encontrei o portão aberto, sem porteiro, apenas um lavador de carros.
Então subi livremente ao “ap” da barona. Apertei a campainha varias vezes e
ela não atendeu. O que será que aconteceu? Há poucos dia atrás tínhamos
combinado que eu iria deixar o jornal na mão do porteiro, se este não
estivesse presente, colocaria por debaixo da porta, como fiz com o jornal em
questão.
Insisti na campainha, bati na porta, e nada de dona Cristina. Desci e fui
cobrar outros jornais. Perdi muito tempo ali.
Ao chegar no térreo o lavador de carros passou por mim e disse:
- É a dona do trezentos?
- É! Ela não tá ai, não?
- Ela saiu aí com o carro „nestante‟. Acho que não vai voltar tão cedo.
- Ah!... Obrigado!
- De nada.
Não encontrar Cristina era coisa rara, quando isso acontecia na entrega não
acontecia na cobrança e vice e versa. Sempre tem uma primeira vez. Então
fui cobrar os outros jornais.
189
Cristiano Sousa
XVII - O VACILÃO
Q
uinta, sexta e sábado pela manhã passei no apartamento da minha musa
e não a encontrei, tanto na hora de entregar como na de cobrar. O que
será que aconteceu? Será que era coisa grave?
Sábado a noite, e eu ainda não havia recebido a grana de quinta feira que
Cristina me devia. Iria tentar encontrá-la de novo. Outra preocupação minha,
e esta mais grave, é que nestes três últimos dias a minha vendagem diminuiu
consideravelmente. Estava tentando buscar explicações pra isso porque eu
não ficava sem vender pelo menos cem jornais em um dia, por mais difícil
que tivesse. Pois! Foi o que aconteceu comigo. Não vendi sequer cem
jornais. Bira pirava com as boias que eu levava pra ele, mas, fazer o que?
Apenas tentar melhorar.
Comecei a encontrar dificuldades pra vender, estas que proviam de diversos
fatores, como por exemplo, o aumento do número de pessoas buscando as
distribuidoras, e um outro aumento, os dos fregueses fazendo assinaturas.
Havia uma coisa esquisita nisso tudo. Via-se muitos vendedores pelas ruas,
mas em Bira o número de jornaleiros diminuía, ou seja, esse aumento de
vendedores buscando as distribuidoras aconteciam nos concorrentes. Já se
ouviam boatos de que a distribuidora de Bira não era mas a maior de
Amaralina. Verdade ou não ele ainda continuava com mais prestigio dentro
da fábrica do que qualquer outro.
Peguei nesta noite quarenta e cinco jornais e saí pelas ruas escuras da Pituba
fazendo a minha propaganda:
- Leia o gazeta!... Olha o jornal!
Como eu não tinha lugar que pudesse colocar uma parte dos jornais para
diminuir o peso, acabei carregando os quarenta e cinco na cabeça mesmo.
Tivemos novidades nesta noite, algo que acontecia quase todos os anos. A
farda do jornal mudou. Quer dizer: renovaram o estoque. A cor e o estilo
ficou o mesmo, a única diferença é que agora se via nas costas o nome do
nosso distribuidor: APOIO BIRA. Pelo que eu entendi da frase, ela quer dizer
que Bira quem nos deu as novas fardas, que bancava os nossos lanches e que
nos dava assistência médica, porque, quando se coloca um anuncio desses em
190
O Jornaleiro
algum panfleto ambulante (foi do que nos fizeram) é porque nos deixam nas
mil maravilhas, nos patrocinam!... Nada disso! Não fizeram nada disso com
os jornaleiros, apenas usaram as nossas costas como meios de se sagrarem,
como forma de fazer politicagem, sem nos perguntar se queríamos ou não
estas propagandas. Como não mudou a cor do uniforme, continuei usando o
velho, ao contrario de outros vendedores que preferiram se exibir com seus
novos guarda-pós e calções. Muitos, quando passavam por mim pareciam
estar vestidos de ouro, e eu sendo considerado por eles como um mendigo,
vestido com o velho. Me achavam um besta por não querer usar o novo
uniforme, não sabiam, coitados, que os burros eram eles.
Basu também não quis usar este uniforme, disse que se sentia bem com o
velho, o novo era muito “peba”.
Estava acostumado descer a ladeira de Amaralina em direção aos pontos de
vendas da Pituba caminhando pela Manoel Dias da Silva, percebi que aquele
roteiro não dava lucro; a avenida, à noite, fica totalmente abandonada, tudo
escuro, dificilmente se vendia um jornal por ali; dei uma de gênio e mudei a
rota, passei a fazer as caminhadas pela orla, onde se via mais movimento.
Entrava e saía em bares, botequins, churrascarias, pizzarias, tudo isso para
vender os meus jornais.
Como na manhã, a noite também não estava lá estas coisas pra vender.
Estava difícil.
Encontrei com os dois colegas inseparáveis, Cesar e Paulinho, disseram que
estavam se dando muito bem depois que saíram de Bira e foram pra
galeguinho. A esta altura vendiam juntos mais de trezentos jornais, coisa que
jamais conseguiriam se estivessem com Bira. Desci com eles até a Rua
Minas Gerais e ali nos separamos.
Próximo a PANIBA notei um grande tumulto. Um considerável aglomerado
de pessoas e que crescia cada vez mais. Como todo bom curioso (o que não
falta nesta terra) também fui ver do que se tratava. Os boatos também
corriam, e muito velozes, por sinal:
- Eta! Morreu, Morreu!
- O cara que meteu bala correu!...
- Vixe Maria!
191
Cristiano Sousa
Havia muita gente, e naquele tumulto estava difícil de perceber se era um
jornaleiro, um ricaço, um amigo... Fui penetrando na bagunça por pura
curiosidade, empurrava um, xingava outro, pisava no pé daquele, deste...
Quando cheguei numa boa posição, gritaram alarmantemente as sirenes
vindas de varias partes. A rua, que estava quente, evaporou os seus curiosos
como o sol evapora uma gota d'água. Era a polícia, acompanhada do Nina.
Como eu também estava no „caldeirão‟ da curiosidade, me afastei um
pouco. Fui pra frente da PANIBA. De lá deu pra ver todo o movimento. A
primeira coisa que prestei atenção foi em um corpo no asfalto, morto e
encoberto por um pano sujo que, com certeza, lhe foi jogado em cima.
Os comentários rolavam, mas quando a polícia perguntava algo sobre o caso
a alguém, ninguém abria a boca pra falar nada, no máximo "não sei, não vi".
Um policial, antes que o pessoal do Nina Rodrigues levasse embora o
corpo, descobriu o rosto do coitado, com certeza pra saber se era quem ele
queria que fosse e agradecer ao assassino de lhe poupar o trabalho. Mas
quem se assustou fui eu. O policial agradeceria com as suas rezas ao que
ficou vivo e eu, talvez pedisse a algum santo que guardasse bem a alma do
meu amigo Príncipe, porque era o corpo dele que estava ali no chão, sendo
colocado na maca para ser levado ao congelador do Instituto.
Demorei pra acreditar no que estava vendo, o Príncipe, meu amigo de
muitos anos estava ali no chão, sendo motivo de alivio para muitos daqueles
policiais, dos guardadores de carro e daqueles barões, que, àquela altura, já
não se divertiam apenas com a farra da noite, mas também com a farra da
morte.
É incrível como as coisas acontecem, há dias atrás o meu amigo estava
vivo. Isso são coisas que não se cansam de acontecer, amigos que vemos
pequenos, brincamos com eles, quando se transformam em adolescentes,
entram na vida errada e se dão mal. Muitos que eu conheci já se foram desta
maneira. Que pena!
Segui o meu caminho, a única coisa lógica que eu devia fazer naquele
momento. A vendagem até que não estava tão mal àquela altura, já havia
vendido cerca de dezesseis. Passei por todos os bares, padarias e “farrarias”
que lembrei, nenhum escapou à minha mente de computador, nem mesmo o
192
O Jornaleiro
apartamento da Cristina. Demorei um pouco, mas cheguei lá. Desta vez havia
alguém tomando conta do prediozinho, era ele o porteiro que mais trabalhava
naquele edifício, se é que posso chamar assim aquele ovo.
Entrei, conversei um pouco com o cara, e ele me mandou subir. Lá em
cima, a decepção. A minha deusa não estava, novamente. Desci em pulos e
perguntei a ele o que estava acontecendo com a minha freguesa, jurou que
também não sabia.
Ouvi uma voz que não era estranha me chamar pelas costas.
- Ei, jornaleiro!
Virei de súbito. Era o mesmo lavador de carros da quinta feira, e que vi
também na sexta e no sábado. Afinal, o que ele queria comigo? Eu ia saber.
- É aquela dona?...
- Do terceiro!... - Exclamei com curiosidade, antes dele completar -.
- Estes dias ela está saindo direto.
- E você sabe pra onde? Eu tenho que cobrar os meus jornais...
- É por causa disso mesmo que você quer saber?
- É! Qual seria o outro motivo?
- Tá bom!... Olha! Andam dizendo por aqui que ela trabalha aí pra trás, pro
lado da Rua Simões Lemos. E apontava com os olhos na direção de uns
prédios, fazendo com que eu entendesse qual o local.
Sabia muito bem onde ficava a Rua Simões Lemos, ela faz cruzamento com
a Rua do Balneário. Fui lá. O cara disse que Cristina trabalhava em um lugar
em frente a um prédio de nome „Cidade Jardim‟. Rondei algum tempo na rua,
que não é tão grande, mas muito movimentada. Como quem tem boca vai a
Roma...
- Ei, amigo! (Chamei de perto um dos transeuntes) Você pode me informar
onde fica o prédio „Cidade Jardim‟?
O rapaz, provavelmente um morador do próprio bairro, de primeira
estranhou o meu chamado. Com certeza quase que absoluta, tinha pensado
que eu o havia chamado pra pedir alguns centavos pro baseado. Também,
não me serviu de nada.
- Eu não sei, não! - Falou friamente o filhinho de papai -.
193
Cristiano Sousa
Não me desesperei, fui atrás de outro informante mais... bem informado.
- Ei, senhora! Era uma coroa bonita que tomava os seus goles em um
barzinho, estava sem acompanhante. Não se assustou nada com a minha
aproximação, inclusive, lia um Gazeta.
Assim que me deu a devida atenção:
- A senhora pode me dizer, se souber, onde fica o prédio „Cidade Jardim‟,
por aqui?
Imediatamente a mulher virou-se em torno de si e me apontou o prédio, que
não estava distante. Como o local que eu queria ficava do lado oposto, segui
por este.
Chegando ao ponto estratégico, dei de cara com o tal „Cidade Jardim‟.
Apenas virei o corpo pra ver um outro prédio, grande e de certa forma,
luxuoso. Fui até ao porteiro, me disse que não trabalhava ninguém ali com as
descrições que dei, muito menos com o nome, e sugeriu: "Já que se tratava de
uma mulher bonita, como expliquei, porque eu não dava uma olhada no
recinto ao lado". Segui o conselho do amigo.
O local me causou uma impressão estranha. Era pequeno; em sua frente viase propagandas exóticas (desci alguns degraus que me levou a uma porta
larga). A casa estava movimentada.
Fiquei receoso de entrar; nunca tinha visto um lugar daqueles... Tomei
coragem e fui.
A porta, que era dividida em duas partes, estava fechada. Resolvi bater.
Quem abriu uma das bandas foi um homem que se identificou como “o
vigia”, e se achando na autoridade de um, foi logo bufando pra cima de mim:
- O que é que você quer?
- Eu estou procurando uma conhecida...
- Ela trabalha aqui? - Cortou a minha fala, “o vigia‟ -.
- É! trabalha.
- Hum!...
O homem cismou comigo. Olhava-me de cima a baixo, achei que não
acreditou e por isso reforcei o que coloquei:
194
O Jornaleiro
- É verdade! Eu tenho uma conhecida que trabalha aí dentro! Se você quiser
eu até te apresento ela.
- É?
- É!
O cara continuava a me fitar inteiro, não sei o que viu em mim que tanto o
"agradou". Acho que foi o meu uniforme novo, quem sabe!
- E você quer falar o quê com ela?
- Eu sou o freguês dela.
- Ela que pediu pra você vir aqui, vender o jornal?
- Não, mas...
- Então!
Confessei baixinho ao insistente o que realmente eu queria. Que malhado
nojento!
- Sabe o que é? Ela tá me devendo uns jornais, sabe? Eu tenho que cobrar
hoje, senão
fico sem grana! E eu estou precisando muito.
- Ah! Sim...
O “ah! Sim” dele soou como um: vou fingir que acredito.
Depois de muita baboseira com o malhado, ele falou uma coisa que me
deixou com o piolho atrás da orelha, alias, não foi só um, a minha cabeça
coçava infernalmente.
- Você não acha que tem que crescer mais para entrar aqui, pivete?
Crescer mais, por quê? Com certeza ele notou que eu era menor de idade.
Espera aí... Era proibido que menores entrassem ali? Perguntei isso a ele, me
disse que:
- É sim! Você não pode entrar aqui não, cara!... Olhe, vá ali do lado que
deixam entrar, lá pode tudo, aqui não.
Ele não estava entendendo, eu queria entrar ali, o lugar onde estava a minha
musa:
- Não „broder‟! Eu quero entrar aqui. Se a minha conhecida não está lá!
- Rapaz, lá você pode encontrar mulher muito melhor do que a sua
conhecida.
195
Cristiano Sousa
- Eu duvido! Qual é o problema? Ela está ocupada demais que não possa me
atender? É isso?
- Finalmente você entendeu, meu camarada! Ela ta bastante ocupada e não
pode falar com você.
- Eu espero!
- Rapaz...
Acho que o fortão esgotou a paciência comigo, já lhe faltavam argumentos
pra fazer com que eu desistisse de entrar naquele local. Parou um pouco,
olhou novamente pra mim e falou:
- Ta bom! Já que só serve a sua amiga, eu deixo você entrar. Mas tem uma
coisa! Com essa roupa não! E levando só um jornal. Seja rápido! Fez-me
entrar e trocar a farda por uma roupa que ele mesmo arranjou pra mim.
Segui por um corredor estreito que dava a outra porta (esta sim, nos põe
dentro do local) acompanhado do capanga. Perguntei o porquê daquilo, ele
me perguntou outras coisas como resposta:
- Você tem dinheiro?
- Não!
- É de maior?
- Também não!
- Então fique calado.
E assim foi me guiando por uma sala escura, se enxergava o suficiente.
Havia um clima de festa no ar: comidas, bebidas, homens e mulheres rindo
muito, eu juro que não vi nenhum palhaço! Estes mesmos se beijavam (na
verdade era um lambe-lambe da zorra); se esfregavam uns aos outros por
cima das poucas poltronas que se via naquela saleta, os homens só faltavam
tirar as roupas das mulheres quando as agarravam ou quando dançavam com
as tais. Era um brega! Com certa medida de elegância, mas esta parte eu
ainda não tinha encontrado. Talvez nas bebidas finas, ou
nos cigarros da nova marca. Talvez!
O “vigia”, pelas descrições que dei, me levou a um outro corredor ali dentro,
havia neste várias portas que abriam e fechavam intensamente, os mesmos
marmanjos que riam na sala, também riam quando entravam em um destes
quartos. Paramos em frente a um deles e o amigo me orientou:
- Olha! Você fica aqui, porque eu acho que a pessoa que você procura deve
estar neste quarto (e me apontou o numero que estava pendurado no alto da
196
O Jornaleiro
porta). Vou buscar uma cadeira pra você sentar enquanto espera. Não
demoro.
Verdade. Ele não demorou mesmo. Trouxe a cadeira que me prometeu e
voltou, segundo ele, para vigiar a porta. Fiz a minha parte, sentei pra esperar
a pessoa que, porventura, poderia ser a Cristina.
Vendo aquele ambiente, tão desprezível, tão estranho, tão ...novo para
minha pessoa, cheguei a me arrepender de ter entrado. Estava me achando
um otário sentado naquela cadeira, sozinho naquele corredor, esperando uma
pessoa que eu nem sabia se era a que eu queria. Minha imaginação começou
a funcionar pra valer durante aqueles primeiros momentos de espera, o pior
pensamento que rondou a minha mente foi a de Cristina sair do quarto
acompanhada de um homem qualquer, ruim mesmo é que obviamente isso
poderia acontecer.
Demorei horas sentado naquele corredor e ainda estava cheio de jornais pra
vender. Tirei o meu reloginho de camelô do bolso e olhei nos ponteiros,
caminhava para a meia noite.
Quase dormindo naquela cadeira, passos lentos despertaram o meu sono, não
mais os dos farristas que vira antes. Vinha devagar em minha direção a dona
daqueles saltos barulhentos, que fez quebrar a linha que dava sequência ao
meu primitivo sonho. Cruzou todo o corredor e veio pra mim, o que mais
queria pois já tinha na cabeça a visão da minha rainha, a Cristina.
Decepcionei-me, não era ela.
- Oi amigo!
- Ola! Posso te ajudar?
Pra que eu fui perguntar isso? A mulher vomitou em cima de mim a mais
sarcástica das risadas; quis uma explicação mas não tive coragem de pedir,
fiquei quietinho, me achando mais babaca que antes. Finalmente me
respondeu:
- Pode sim! Você pode me ajudar sim, gostosinho!
Gostosinho? Eu? Que piada! Claro que eu não era muito feio, modéstias a
parte, mas gostosinho!.. Um moleque tão magrinho... Coitado de mim. As
minhas pernas começaram a tremer.
- Tem Dinheiro aí?
- Pra que?
197
Cristiano Sousa
- Ora! Pra você “brincar” comigo! Pra que mais seria?
- Eu não tenho, não!
- Não, é?
A rapariga percebeu o meu nervosismo e começou a falar alto. As vezes
pensamos que sabemos de tudo. Não é verdade. Eu não conseguia encontrar
uma palavra que
fizesse com que a “mulher ruim” fosse embora.
- Calma gatinho! Eu não mordo!
- Eu sei disso. Quem te disse que eu tô tenso?
Usando o jornal que eu tinha em mãos como pretexto, a prostituta, que era
muito bonita, fez que ia pega-lo e iniciou um aliciamento, um carinho bom e
falso ao mesmo tempo. Começou por meus braços e não demorou muito pra
que ela o estendesse sobre o peito, que foi invadido por suas mãos, as quais
abriam o meu guarda-pó. Eu queria resistir!... Não! Não queria! Nem eu
mesmo entendi qual o meu medo.
Quanto mais ela invadia terreno, mais vantagem adquiria no combate;
estava prestes a me entregar de vez a inimiga. A parte principal da batalha foi
quando a estrangeira invadiu o meu ponto fraco. Qualquer homem já teria
levantado a bandeira branca, e eu não fui diferente. Também! Dominado por
uma mão acariciadora bem no meu principal soldado! Quem não se
entregaria? Quem resistiria a um par de pernas hipnotizantes, um rostinho
manhoso, uns peitinhos redondinhos, uma bundinha gostosinha? Quem não
se entregaria a aquela morenaça? A coisa estava quente, fervendo,
estourando!
- Posso brincar também?
Ouvimos esta frase e paramos. A piranha, que estava sentada no meu colo, e
eu todo teso, olhamos para o lado de onde veio a voz, foi da porta que eu
esperava abrir. E era ela. A que eu queria que chegasse antes da que chegou.
- Cristina!
Esse nome me saiu da garganta quase sem querer. Que situação
desagradável, meu Deus! Encontrar com a mulher dos meus sonhos, num
brega, agarrando e sendo agarrado por outra. O pior é que não aconteceu
nada antes que a minha musa nos pegasse com a boca na botija.
198
O Jornaleiro
- E aí, o que vocês me respondem? Posso participar da festa?
Juro que fiquei indeciso no que dizia a respeito ao que eu queria naquele
momento, aquela situação me deixou todo sem graça. Quem deu a “voz” foi
a “perna” que se mantinha sentada no meu colo.
- Olha Cristina, eu vi o garoto primeiro tá? Vê se vai embora!
- Não! (Gritei) Eu não quero que ela vá embora, não! Eu “vim” aqui pra
encontrar com ela.
- Ah, é! Dona Cristina? Que dizer que a senhora anda marcando hora aqui no
ambiente com pivetes?
Ao ouvir a piranha falar isso, empurrei-a do meu colo e a pus longe.
- Eu não sou nenhum pivete não, ta ouvindo! (Exclamei indignado) Vá
embora daqui! Vamos! Vá embora!
A mulher bateu em retirada, sem dizer mais nada. Acabou-se a discussão.
Agora era eu e Cristina. Levantei o corpo (já frio) e me coloquei em sua
frente, ambos visando o outro. Nenhum dos dois teve coragem de iniciar um
novo dialogo, eu, pelo flagra, e ela, também por um flagra. Ela começou:
- Oi Jornal! Veio atrás de mim, creio.
- Foi... Nunca mais eu te vi!... Vi a senhora...
- É... Estes dias eu estive muito ocupada. Quer que eu te diga...
- Não, não! A senhora não me deve nenhuma satisfação, que é isso? Aliás, eu
nem devia ter vindo aqui...
Ambas as frases, ainda tímidas, soaram como desculpas; isso porque não
tínhamos nada um com o outro. Se tivéssemos...
- Eu estou te devendo um dinheiro, não é?
- É isso! Eu vim aqui exatamente por causa disso. Sabe o que é, dona
Cristina? É que eu to precisando, sabe? É pra coisas urgentes, eu sou pobre!...
Acho que nem preciso explicar nada a senhora.
- Não precisa, não! Eu entendo!.... Também!... Sumi né?... Acho que você
pensou que eu tinha me mudado, ou coisa assim.
- Foi isso! E se a senhora quiser ler as noticiais de amanhã aqui está o seu
jornal. - Dizendo isto, levantei o gazeta que se encontrava comigo e mostrei
detalhadamente à Cristina - E ainda digo mais, se a senhora quiser, pode me
pagar tudo amanhã, eu não quero atrapalhar o seu trabalho.
- Que é isso! Você não esta me atrapalhando em nada. Isso é besteira sua.
199
Cristiano Sousa
Eu não tive cara pra ficar conversando com a mulher, coloquei o jornal em
suas mãos e saí do recinto picado, sem lhe dar nenhum tchau e sem ter forças
pra olhar para trás. Andei linearmente até a porta da rua, enquanto ela... nem
quis imaginar o que iria fazer dali em diante.
Dei sequência a vendagem dos meus jornais. A tarefa ficou mais difícil pela
perda de tempo no brega. Aquele lugar só me fez sentir mais humilhado, foi
um grande constrangimento a situação em que me meti. Até a roupa
emprestada pelo “vigia” permaneceu comigo, me deu de presente, mesmo eu
já tendo tirado para devolvê-la.
Fiquei vendendo jornais até passar de duas horas da madrugada, ao
contrario seria impossível fazê-lo. Quando vi que não tinha mais jeito, voltei
para a distribuidora com apenas três bóias na mão, e com o presente na outra.
Chegando a encontrei fechada e com as luzes apagadas. Toda escura, como
a rua. Mesmo com o breu deu pra perceber alguns camaradas do jornal,
sentados no lado de fora; chegando mais perto, viam-se os grupos pequenos
de dois, três ou quatro. Aproximei de um e perguntei se Bira estava lá dentro.
Responderam que Bira quando acaba de distribuir os jornais no sábado a
noite sai pra tomar umas cervejinhas.
- Agora, só quando ele voltar camarada! - Me disse um dos caras -.
- Rose não esta aí, não?
- Ela não vem dia de hoje! Nem de manhã e nem de noite.
- Ah! É mesmo. Porra! Esperar Bira chegar...
- Ele também tem direito de se divertir. Fica aqui a semana toda sem sair pra
lugar nenhum.
- Que nada! Ele devia é tá aqui esperando a gente pra prestar conta. E agora?
Como vou voltar pra casa?
- Você mora onde? - Perguntou outro menino -.
- Eu moro no Beiru.
- Beiru... Eu tenho um colega que mora lá.
- Eu tenho uma tia - Acrescentou um outro -.
- Você é do Beiru?... - Retorquiu o primeiro que eu conversava - Os caras do
Beiru são sujos como os caras daqui no final de linha, sabia?
Fiz um gesto que não.
200
O Jornaleiro
- Eles são comédias nossos, tão devendo a gente. Cuidado com sua vida viu
pivete!
Logo eu que nem sabia dessas coisas e não tinha rixa com ninguém. Coitado
de mim!
- Você ainda quer ir pra casa? Dorme ai, meu irmão! - Foi o conselho de um
dos camaradas com quem eu conversava - Uma horas dessas!... Fica aí, pô!...
Muitos meninos dormem dentro da distribuidora quando não querem voltar
pra casa ou quando moram longe. O mais lógico era dormir ali mesmo; não
iria encontrar ônibus nas ruas a uma altura daquelas nem que a vaca tossisse,
e acredito que Bira não ia querer me levar pra casa em uma de suas kombis, a
minha rua era famosa, por mais incrível que pareça, em toda a Salvador, não
por suas belezas, e sim pelas suas desgraças. Apesar dela não ser melhor e
nem a pior da cidade.
Sentei um pouco afastado e esperei, como todos; alguns conversando muito,
outros nas brincadeiras que usam como artifícios, as gozações pesadas; uns
fumando cigarros ou drogas; outros apenas se concentravam em ficar
sentados quietos, como eu por exemplo.
Olhava as horas de tempo em tempo, já eram duas e cinquenta quando
apontou do final de linha de Amaralina (pra ser mais exato do lado da
escadaria que sobe pra lá) uma kombi de Bira, ofuscando os olhos de todos
presentes com os faróis alarmantes, que davam ao batido carro uma cara de
bonzinho, o que faltava, com toda certeza, ao seu dono.
O dono da DISTRIBUIDORA DE JORNAIS AMARALINA desceu sem
perda de tempo do carro e tentou reanimar a turma, muitos que já o
esperavam desde as vinte e uma horas.
- Rumbora pessoal, entra! E batia palmas pra acordar quem dormia ou quem
pensava em pegar no sono.
Bira era ágil para as coisas de dinheiro e logo perguntou aos vendedores:
- Quem vai prestar contas hoje fica logo com o dinheiro na mão, “pais véis!”.
Está aí outra coisa que eu odiava ouvir, esse “pai véi” de Bira; era uma
mania insuportável que o homem tinha, todos os dias aquela frase no pé do
ouvido. Dava raiva.
201
Cristiano Sousa
Entramos todos na distribuidora, já de lâmpadas acesas, porta e janela
abertas. Bira adiantou-se a prestar as contas dos vendedores que moravam ali
perto e queriam ir embora (apenas alguns passos e estavam em casa). Outros
que moravam distante ou que não pretendiam ir para suas casas foram logo
deitando no chão seco; os menos sonolentos improvisavam travesseiros feitos
com suas próprias bóias, deitavam em cima de jornais velhos que achavam
ali por dentro...
Esperei os que prestavam contas sentado sobre as minhas bóias. Quando
não havia mais ninguém, perguntei:
- As kombis vão levar a gente em casa, Bira?
- Uma hora dessas não, “pai véi!” Não quer dormir aqui, não?
- Tem outro jeito?
- É, né? Não tem mais carro na rua...
E nisso, iam aos poucos chegando mais vendedores, alguns até que bem
comportados, mas a maioria barulhentos.
- Vai prestar conta, Nico?
- Não Bira! Hoje não! Amanhã presto conta de tudo.
- Ah, ta! Eu vou aqui dentro pegar um papelão pra você.
Foi no quarto onde se colocavam os jornais e me trouxe de lá um largo
papelão, que dava pra ficar sob o meu corpo inteiro. O sono era tanto que, ao
deitar, não me lembrei de mais nada. Dormi como um anjo.
Acordei no dia seguinte, quero dizer, no mesmo dia, por uma barulheira
infernal que faziam os recém chegados jornaleiros, unidos aos que estavam
na casa desde as duas horas, todos enchendo o carro e as kombis de Bira de
jornais para irem trabalhar. Eram cinco horas da manhã. Outros estavam
encadernando os seus jornais que a fabrica do Gazeta tinha acabado de
entregar na distribuidora. Poucos ainda dormiam, os quais eram acordados
pelos colegas brincalhões. Bira dificilmente acordava algum jornaleiro
àquela hora, só se pedissem, se não, roncavam até seis.
Levantei ainda com sono, afinal, foram praticamente só duas horas de
“cama‟, esta que me deixou todo quebrado. Via o movimento de entra e sai
dos vendedores, estranho porque Bira só começava a distribuir jornais lá pras
202
O Jornaleiro
cinco e meia, e por isso não abria a casa antes desse horário; acho que O
gazeta mandou os jornais muito cedo naquele dia. Mesmo assim.... ainda
cambaleando, verifiquei se estava tudo em ordem comigo. Olhei os meus
jornais pra ver se estavam todos ali... sim. Aquela distribuidora era uma
rouba-rouba de jornal que ninguém aguentava, principalmente nestas
dormidas inocentes. Reparei também na minha boca, bunda, dinheiro...
Dinheiro! Ai meu Deus! Não pode ser!
- Bira vem cá! Chamei o Dono da casa!
- O que foi Nico?
Bira chegou como uma lesma perto de mim.
- Roubaram o dinheiro dos meus jornais! Roubaram o meu dinheiro!
A este primeiro alarme ele ficou sem resposta, depois, vendo o meu
desespero, interrogou a dois vendedores que também dormiram na
distribuidora, outros já haviam saído. Perguntou se eles sabiam quem foi o
autor do delito. Disseram que não. Enquanto eu resmungava, e muito!
- Porra Bira! Eu dormi aqui pensando que não ia acontecer nada! Aí no que
deu!
Não me respondeu nada; estava acostumado com aquele tipo de situação.
Não sei se ele ficou, pelo menos, comovido, coisa que não iria trazer a minha
grana de volta. Retornou para a sua distribuição, afinal, tinha que ganhar o
seu dindim, ao invés de se preocupar com os dos outros.
- Porra! Todo o dinheiro de quarenta jornais.
Esta peça que me pregaram foi demais. Só faltei chorar de ódio de mim
mesmo. Fiquei completamente abatido e envergonhado por dar uma “braga”
daquelas. Os jornaleiros olhavam pra mim e riam. Os dois que dormiram na
distribuidora principalmente. Um deles chegou e falou na minha cara uma
frase que até hoje está presa nesta memória, e que, com certeza serviu de
lição pra todo o resto da vida.
- Isso é pra você deixar de ser vacilão.
O outro, que também dormiu na distribuidora, me veio com uma pergunta
do que já sabia muito bem, mas fez pra gozar de mim.
- Te roubaram foi?... Porra! (risos)
203
Cristiano Sousa
Eu tinha vontade, mas era inútil perguntar. Bira apenas os olhou de lado,
mas não fez nada. Continuou a distribuir os seus jornais.
204
O Jornaleiro
XVIII - O FEITIÇO VIROU CONTRA O FEITICEIRO
D
esde o dia que ficou sabendo do sequestro do marido, a dona
Mariana não parou sossegada em nenhum canto, vez ou outra ligava
para os responsáveis pelas negociações, querendo saber sobre
valores do pagamento daquele resgate. Estava ali o verdadeiro poço de
ansiedade. Eu ficava quietinha no meu canto, fingindo que nada havia
acontecido naquele recanto de amor, no lar sagrado. A Maria Carmem
chegava e saía do serviço totalmente indiferente a todo aquele rolo, que
ninguém sabia como iria terminar. Juro que eu daria de tudo para estar no
lugar dela.
Não foi só a dona Mariana que ficou pirada quando soube da noticia do
sequestro, Flávio e Estela também não estavam se dando bem em suas vidas
pessoais. A Estela vinha caindo de produção na Universidade; Flávio queria
ser um grande cantor de pagode, agora já não se interessava mais pelo
assunto, largou de vez a vida musical para cair numa profunda fossa (andava,
na maioria de seu precioso tempo mofando dentro daquele apartamento, o
que estava lhe causando profundas depressões), trancava-se em seu quarto e
não queria saber de ninguém. Nunca vi mudanças tão bruscas em uma
família, mas também não passei pela situação que eles estavam passando. O
pai parecia ficar mais importante para eles a cada dia.
Dona Mariana foi quem tomou as rédeas para si. Nestes tempos, qualquer
assunto, por menor que fosse a sua importância, tinha que passar pelos seus
ouvidos. Era quem recebia as sugestões e noticias dos especialistas, agradecia
muito a esses pelos serviços prestados, pois reconhecia que a família não
teria condições de ficar negociando com os bandidos. Eram ótimos
profissionais, segundo ela. A dona cuidava dos problemas dos meninos,
assuntos delicados que tentava achar as mais sensatas soluções; dava ordens
aos empregados, o que adorava fazer; pagava os salários, atrasados inclusive.
A mulher botou o pé na estrada finalmente!
O senhor Roberto também cumpria normalmente os seus deveres. Não abria
o bico pra falar nada a quem o interrogasse sobre a sua ausência por alguns
dias no edifício, tinha a sua versão pronta para ser contada, que acabava
convencendo a todos. Outro dia, sem querer (acreditem) eu ouvi uma
205
Cristiano Sousa
conversa do senhor Roberto com a Maria, ela perguntou o porque de tantas
faltas e ele respondeu:
- Foi uma gripe, dona Maria Carmem! Essa que deram o nome de “Gripe do
rebolado”, e que ta pegando todo mundo.
- Ah!... Então é epidemia, porque lá na minha rua tem um bocado de gente
com essa gripe. Eu ainda não tive, graças a Deus, mas dizem que é das
brabas.
- É mesmo!
Discutiam sobre o assunto aprofundando cada vez mais; bom pra o senhor
Roberto que fugia, sem fazer muito esforços.
A dona Maria Carmem continuava na sua vida: lava pratos, põe a comida,
limpa... Eu não sei dizer se ela desconfiava de alguma coisa!... Se o fazia não
deixava a perceber.
Um fato curioso (mais um) aconteceu certo dia que eu lavava
tranquilamente. Estava no lugar de sempre quando a dona Maria Carmem
apareceu.
- Oi Jandira!
- Oi dona Maria! Já terminou o serviço? Pergunto porque a senhora não
costuma vir aqui, apesar de ser tão perto da cozinha.
- É né? tô folgada hoje. Como as vezes acontece com você e ficamos de bate
papo na cozinha.
- É verdade.
Mesmo com este tipo de desculpa, a dona Maria não conseguiu me
convencer de que estava ali apenas para me fazer companhia. Dei sequencia a
conversa.
- Quer dizer que, desde que chegou, a dona Mariana resolveu tomar o
controle da casa, né?
É!... A mulher parece que tomou uma injeção de responsabilidade, eu nunca
tinha visto ela desse jeito, tão prestativa. Nunca ligou pra família, agora se
intromete em tudo.
- É verdade. A senhora está com razão mais uma vez.
Conversávamos mas eu não parava o serviço; ia falando e ao mesmo tempo
esfregando as roupas grossas, que faziam com que o sabão de péssima
qualidade, junto com o alvejante desinfetante, queimassem as minhas unhas.
O unheiro já estava de fazer pena.
206
O Jornaleiro
- Sabe Jandira (continuou a moça) eu acho que as coisas devem mudar por
aqui.
- Você acha, é? Porque?
- Porque... com essa decisão da dona Mariana, de agora querer mandar em
tudo, as coisas vão mudar radicalmente.
- É mesmo menina? Porque você acha que dona Mariana pode fazer uma
revolução neste apartamento?
- Sei lá!... É apenas intuição. - A dona Maria Carmem falava e olhava pro
alto, piscando os olhos de fardo; quem a visse pensaria que estava passando
uma bela cantada nos pássaros da gaiola. Eu ficava cada vez mais curiosa -.
- Me diga Maria, o que você acha que a dona Mariana pode aprontar por aqui
na ausência do marido?
- Muitas coisas.
- Como por exemplo?
- Ah!... (E levantava os beiços de encontro ao nariz) Eu não sei...
Acho que este “não sei” deveria ser um “ eu bem sei”. A Carmem parecia
querer ver minha reação. Talvez ela tivesse pensado algo como “ela vai se
assustar”. Era uma brincadeira, sem sombra de duvidas. O que eu tinha a ver
com as decisões de dona Mariana, ela que fizesse o que bem entendesse,
contando que me deixasse trabalhar em paz.
- Jandira, eu vou aqui na cozinha ver uns negócios, você fique ai, viu?
- Ta bem!
Continuei lavando as roupas enquanto a companheira dirigiu-se aos seus
afazeres. Era de se entender que ela não demorasse na conversa comigo
porque a patroa estava jogando duro conosco também.
A casa passava por dias agitados desde o sumiço do Dr. Marcelo. A loucura
era total. Os meninos não estavam aguentando mais aquele sofrimento e
queriam se abrir com alguém. A coisa estava cada vez mais complicada, pois
a imprensa já farejava algo podre. O mundo dos negócios também sentiam a
sua falta. Conversando com a dona Mariana, o senhor Roberto e eu fizemos
um questionamento a esse respeito:
- Ô dona Mariana, a senhora não acha que os jornalistas vão tá aqui quando
desconfiarem?
Dona Mariana ficou pálida com esta pergunta feita por mim. Quem mostrou
bastante desembaraço na ocasião foi o Roberto.
207
Cristiano Sousa
- Dona Jandira, não precisa a senhora ficar preocupada. Os negócios do Dr.
Marcelo com certeza estão sendo muito bem dirigidos.
- Por quem? Indagou dona Mariana.
O senhor Roberto, sabendo que tinha falado espontaneamente, se esforçou
pra reconhecer o erro.
- Calma dona Mariana! O Dr. Marcelo tem muitos homens de confiança que
trabalham ao seu lado, não deixarão que os negócios dele vá todos por água
abaixo.
- Isso é bom!... Muito bom!
A explicação do Senhor Roberto acerca dos negócios do Dr. Marcelo
deixaram os miolos de dona Mariana enrolados.
Os dias iam se passando e nada de acordo com os sequestradores. Os filhos
do senhor Marcelo já pensavam em recorrer a policia para achar o pai. Dona
Mariana não aceitava essa sugestão.
- Qual é o problema, mãe? Dizia a Estela, com a flecha chamada angustia
enfiada em seu peito, sugando todo sangue.
- O problema, minha filha, é que, se esse seqüestro cai no conhecimento da
policia, ira cair também no da imprensa e a nossa vida vai virar um inferno.
- E a senhora não acha que já virou?
- Por mim, a policia já estaria sabendo - acrescentou Flavio -.
- Por mim também - reforçou Estela -.
- Não! (Exclamou dona Mariana) A policia não pode saber de nada por
enquanto.
Procurando artifícios para despistar os curiosos e amigos que pudessem
aparecer em casa, dona Mariana inventou uma viagem a Recife para tratar de
negócios; os filhos, aproveitando a oportunidade, fariam um passeio.
E não perderam tempo. As ordens na casa foi para que todos se
preparassem. Se arrumaram com as melhores roupas, pegaram o mais caro de
seus automóveis e deixaram toda a responsabilidade da casa nas nossas mãos,
quer dizer, nas mãos de dona Maria Carmem, porque, para mim, o que
aconteceu foi uma infelicidade. Dona Mariana havia esquecido algo em seu
quarto e voltou pra pegar, eu e o senhor Roberto
208
O Jornaleiro
estávamos ajudando no transporte das muitas malas da bruaca. Saímos do
quarto com as ultimas quando ela fez o senhor Roberto voltar.
- Dona Jandira, a senhora leva essa maleta pra mim.
- Claro senhor Roberto! Vai ver o que a patroa quer.
Senhor Roberto não se demorou em atende-la. Aconteceu que, depois de
entrar, não trancou a porta, deixou entreaberta, coisa que atiçou a minha
curiosidade fatal. Me aproximei em passos curtos do quarto de dona Mariana,
pondo-me a uma distância em que podia ouvir claramente o que diziam.
- Será que o serviço foi bem feito?... Você sabe que nós não podemos deixar
pistas.
- Calma, dona Mariana! Eu confio plenamente nos meus profissionais.
- Olhe lá!... Eu vou confiar, não nos seus profissionais, estes que você me
arranjou e eu não posso ter a certeza de que são competentes, mas em você.
Os dois cochichavam em pés de orelha, aproveitando que a casa, pensavam,
estava vazia. Não deu pra ouvir o resto porque vieram em direção a porta.
Corri, peguei as malas e sai do local.
Já me encontrava na garagem quando dona Mariana apareceu, sozinha, e
entrou no carrão da família. Os três nos davam os tchau quando aconteceu do
senhor Roberto vir correndo e fazer Flavio, que estava ao volante, parar um
pouco.
- O que foi desta vez, Roberto? - Perguntou fingindo estar enfurecida, a
madame -.
- Desculpe! É que ligaram pra senhora.
Entregou-lhe um celular que não era dela. Que moral tinha ele pra receber
as ligações de dona Mariana?
- Obrigado Roberto! - Disse isso saindo do automóvel e se afastando pra
conversar -.
Demorou tanto que chegou a impacientar os filhos:
- Vamos com isso, mãe! - Resmungava Flavio -.
- Rápido mãe! - Estela não se aguentava mais e dava tapinhas na coxa a cada
vez que se queixava -.
209
Cristiano Sousa
Dona Mariana passou contados treze minutos no celular para, no final da
conversa, dar a noticia.
- Meninos. Eu não vou poder viajar com vocês.
A surpresa foi geral.
- Eu recebi um telefonema urgente da Ilha e vou ter que ir até lá pra resolver
uns problemas. Vocês meninos (virou o corpo pra dar atenção aos filhos) vão
a Recife e me esperem lá. Fiquem tranquilos que eu chego a qualquer
momento. Então pediu que o senhor Roberto os levasse.
Além de nós duas, estava presente também a Maria Carmem. Olhando para
as empregadas, dona Mariana pareceu lembrar de alguma coisa que havia de
fazer.
- Maria, vem cá! - Chamou a Maria Carmem deixando em mim a curiosidade
do segredo -.
Se afastaram um pouco mais e conversaram. A coisa parecia séria mesmo!
Tanto segredo pra depois me chamar também.
- Eu não preciso mais dos seus serviços, dona Jandira. A senhora está
dispensada!
- Mas... Dona Mariana! Porque?
- Ora! Eu não devo explicações a senhora. Provavelmente voltarei amanhã,
então te pago.
Com esta colocação, entrou em seu carro e foi embora. Percebia-se na
companheira ao lado um “quê” de contentamento com o acontecido. Pena
que eu nunca iria saber qual o motivo da minha dispensa.
Voltei pra casa abatida. Aquilo foi desrespeito a minha pessoa. Uma
profissional competente como eu ser despedida de uma maneira
constrangedora. A chegada foi triste, mas tentei mostrar-me normal. Nesta
noite a minha filha Camile estava lá, junto com os outros, era o centro das
atenções dos irmãos. Apenas o pai estava ausente, ainda não havia chegado
do trabalho, e mesmo que já tivesse não entraria, ainda não tinha aceito o
caso da gravidez. E por falar nisso, a barriga da menina estava de três meses,
e ela, sempre linda.
210
O Jornaleiro
Estavam conversando sobre coisas alegres, que faziam distrair e passar o
tempo. Camile explicava para os irmãos qual era a sensação de estar grávida,
e eles tiravam duvidas, faziam perguntas... Enfim. Eu não queria estragar
aquele raro momento de união dos meus filhos, mas foi impossível não o
fazer. Ao botar os pés dentro de casa, o centro das atenções perguntou pra
mim:
- Mãe! Que cara é essa?
Todos “voaram” pra cima ao me ver entrar, a porta estava aberta; abraçaram
e beijaram-me. Se pudesse, passaria despercebida, mas não pude. Nico
reforçou a pergunta da irmã.
- O que foi mãe? Fala pra gente porque está com esta cara de
descontentamento.
Hesitei um pouco em falar a verdade, por outro lado, precisava descarregar
as magoas, as raivas, ou o que estivesse me sufocando.
- Eu fui demitida!
Como o esperado, a lamentação da família foi geral.
O dia seguinte foi de mais lamentações em casa. Sem emprego, o jeito foi
cuidar dos meus filhos, eles precisavam de atenção. Nico estava no jornal e
Tovo no colégio. Quando chegavam dormiam muito depois do almoço. Fui
na casa da dona Verônica saber se minha filha frequentava a escola direito,
eu não podia deixar que ela parasse por causa da gravidez. Não parou! Que
bom!
Chegou a noite e eu já pensando em ir receber os meus direitos na
casa de dona Mariana. Ela mandou ir neste dia mas não tive ânimo.
No meu relógio barato os ponteiros marcavam dezenove e quarenta, horário
em que os principais jornais televisivos estão começando. Eu costumava
assistir o do canal seis porque os assuntos eram melhor explicados.
Estava sentada no meu confortável sofá quando vi a primeira noticia do
JORNAL DE TODOS OS SANTOS da TV UNIBA, aqui da Bahia:
“Mulher de empresário é encontrada morta na ilha de Itaparica”
- Mulher de empresário? Meu Deus!... Será?
211
Cristiano Sousa
Este enunciado me deixou curiosa. Como o jornal ainda não havia
começado por completo. fiquei atenta ao noticiário até que chegasse por
definitivo a esta reportagem. As crianças caçulas faziam muita zoada na sala,
coisa que mereceu uma bela bronca da minha parte:
- Cala boca meninos!
Até que enfim a reportagem:
“A empresaria baiana Mariana alçapar, dona do jornal Gazeta do Dia, foi
encontrada morta hoje a tarde em sua casa de veraneio na Ilha de Itaparica,
com um tiro no peito, que levou durante um assalto. A policia ainda não sabe
explicar o verdadeiro motivo, apenas diz que o crime aconteceu depois que o
bandido entrou na casa, armado, e além de roubar, disparou contra a vítima
. Um amigo de Mariana, que estava na hora, tentou defende-la e também foi
atingido fatalmente. Os dois foram encontrados no quarto dela, que, segundo
a policia, foi o lugar para onde correram antes de serem baleados. Entre os
objetos roubados estava uma aliança de ouro que Mariana usava.”
- Meu Deus. Eu fiquei sem saber o que pensar naquele momento. Não sabia
se ria ou chorava. Ela não era boa mas, a morte não é o castigo pra ninguém .
Fiquei embasbacada, enquanto o noticiário continuava.
“A família só ficou sabendo do acontecido há poucos instantes. O
empresário Marcelo Alçapar, marido da vitima, nos deu uma entrevista de
seu apartamento na Barra. Muito abatido pela morte da esposa, não
conseguiu terminar a coletiva. Os filhos, que estão em recife, souberam
agora a pouco por telefone e embarcam ainda hoje num voo especial para
Salvador.”
“João Carlos, da Barra, para O JORNAL DE TODOS OS SANTOS.”
Tanto tempo se passou e o Dr. Marcelo apareceu no dia da morte da esposa,
dando entrevistas e tudo? Estranho!
Acompanhei o noticiário durante toda a semana. Dona Maria Carmem não
quis ser entrevistada e nem o senhor Roberto, quando chegou com os
meninos de Recife.
Com dona Mariana ou sem ela, o meu dinheiro eu fui cobrar.
212
O Jornaleiro
XIX - A VENDAGEM NA PRAIA
P
assados sete meses que eu havia sido despedida daquele emprego
maldito, nunca mais consegui parar em nenhum outro, sempre pegando
os bicos e sendo dispensada logo. A agitação na casa desta vez girava
em torno do nascimento do meu neto. Estávamos nos preparando para esse
momento. Menos o Carlos.
Eu fazia o possível para ajudar o casal. Tudo que pertenceu a Tovinho e
estava guardado doei para Camile, ou melhor, para o futuro filho. Comprei
roupinhas, mamadeiras, bicos e tudo mais que podia agradar. Mas toda essa
ajuda só foi possível por causa da vendagem na praia, sem ela, acho que eu
nem comeria.
Véspera de domingo. Nico na vendagem de jornais e as festas noturnas
rolando pela cidade. Esperei o relógio marcar o horário costumeiro de
preparar os comestíveis que seriam vendidos no dia seguinte. Gostava de
começar a fazer as coxinhas, pasteis, sonhos e sucos as nove da noite porque
Tovinho e Sula, principalmente esta que vendia comigo, estavam dormindo.
Camile ficava ao meu lado, ajudando a terminar os doces e salgados mais
cedo (meia noite). Mesmo não estando morando lá em casa, sempre ia. Com
isso eu deixava os detalhes pra fazer apenas pela manhã.
O horário de levantar pra ir vender era sagrado: todos os sábados e
domingos as cinco da matina. Não existia sono bom que me fizesse ficar
pregada na cama. Chamava a Sula, fazíamos os preparativos (detalhes dos
salgados, sucos e águas que faltavam, arrumávamos tudo em bandejas e
caixas de isopor).
Hora de partir. Eu e a minha companheira pegávamos os apetrechos que nos
eram necessários: panos, lenços de papel, guarda sol, bonés, banquinhos
feitos por encomenda, que abriam e fechavam, fácil para a locomoção.
A caminhada até o final de linha do Arenoso era cansativa, agora imaginem
ir em pé de lá até Itapuã com as vendagens todas ao lado, isso por causa da
lotação do ônibus.
213
Cristiano Sousa
Chegando na praia, tínhamos o esquema pronto na memória: onde parar,
como arrumar a mercadoria, onde procurar se precisasse de algo que não nos
lembrássemos... Chegávamos sempre muito cedo, em torno das seis, horário
que praticamente a praia está vazia. Pouquíssimos banhistas. Nestas ocasiões,
em que a maré costuma estar baixa, aproveitava as arrumações e permitia que
a insistente Sula fosse tomar alguns minutos do banho de mar. Ao contrario
de algumas crianças, filhos de outros vendedores, ela tinha certa medida de
sua ingênua responsabilidade, tanto que, apesar de chegarmos mais cedo que
a maioria, minha filha não deixava que o prazer das águas do mar baiano
fizessem com que o seu corpo relaxasse e se esquecesse da obrigação. Eram
contados no meu relógio biológico de três a cinco minutos para que a menina
fosse pedir:
- Mãe! Me dá aí uma bandeja ou então uns sacos de sucos pra eu ir já
começando a vender.
As vezes nem me pedia, ia logo pegando o que quisesse e saía andando para
o lado que a testa apontasse. Com relação as minhas duas filhas, nesta parte
se destacava; não era como a irmã que só me trazia dores de cabeça. Se iria
mudar, não sei. Apesar de ser mais velha que Tovinho, eu considerava aquela
„amável diabinha‟ como se também fosse caçula. Era muito brincalhona, e
junto com o irmãozinho, faziam a alegria da casa; bastante prestativa (o que
já destaquei em momentos atrás) amável com a família, e, apesar de ter um
irmão abusadinho, não o maltratava. Tinha um físico parecido com o meu em
infância, os jeitos também, e tudo o mais que pudesse me fazer voltar aos
tempos bons, aqueles em que os meus pais me colocavam no colo e me
chamavam de curuminha.
Sete horas do dia e a praia de Itapuã começava a encher-se de banhistas, a
maioria famílias. A esta altura a minha caçula já havia dado três voltas em
torno da praia e estava na quarta. Já havia vendido onze sacos de sucos, sete
de água e treze peças de salgados em geral, o que provava que era uma ótima
vendedora. Quando se cansava, descansava um pouco. Existia o horário do
almoço, mas as crianças não sabem segurar a fome como nós adultos; quando
eu via a barriga da menina afundando oferecia-lhe qualquer peça que
quisesse comer e um suco, não o de morango, mas o de laranja, por causa da
vitima “C”.
214
O Jornaleiro
Eu também não vendia mal, só que a minha parte era menos cansativa
porque, enquanto Sula andava pra lá e pra cá, eu não precisava usar as pernas
pra andar, apenas pra balançar, porque permanecia o tempo todo sentada. Os
fregueses que vinham a mim. A parte ruim disto é que a concorrência é muito
grande; os vendedores ficam muito perto uns dos outros. Eu mesma era alvo
de inveja de muita gente que vendia em praias. Na Pituba, onde ia com mais
freqüência, existia uma cidadã que todos os finais de semana colocava o seu
material perto do meu, havia uma certa disputa entre nós duas; quando ela me
via com uma penca de vendedores ao redor fazia uma cara feia! Parecia
aqueles monstros da TV. Mas era culpa da pressa porque acabávamos sempre
vendendo tudo.
Meio dia, e, de onde eu estava, tinha uma visão privilegiada de toda a praia,
que a uma altura daquelas já estava lotada.
Uma vez aconteceu de eu, desavisada, colocar os meus apetrechos bem
pertinho de uns banhistas que tomavam as suas cervejinhas geladas,
“confortáveis” em mesas de madeira. Sem que eu percebesse, uma mão
pesada me tocou no ombro direito e o dono dela me chamou:
- Minha senhora!
Olhei de lado, fazendo com que a minha visão alcançasse pelo menos a mão
do individuo. Era um homem gordo, aparentando ter seus trinta anos, escuro,
barbudo, careca. Fui avisado pela tal figura de que não podia ficar no lugar
em que estava porque aquele era um pedaço da praia que já tinha dono.
- Dono? - Exclamei com pasmo e quase rindo do bigode dele -.
- Isso mesmo, minha senhora (continuou sério), esse lugar que a senhora
colocou a sua mercadoria pertence a mim, que sou o dono daquela barraca ali
- Falava apontando o indicador para a barraca de praia em que compravam as
suas bebidas todos aqueles que sentavam nas mesinhas bonitinhas que
estavam perto de mim; tinha o nome de BEIRADA DE ITAPOAN e mais
parecia um velho barraco -.
- Ah! Agora existe isso é?
- Ô dona! Já faz muito tempo que existe isso
- Pois, eu não sabia. Não conhecia esta regra
- Não é regra, é lei!
- E quem decretou esta lei?
- Hum...
215
Cristiano Sousa
O barraqueiro passou a mão grande pela densa barba para achar dentro desta
alguma tipo de piolho da resposta.
- Quem decretou?... Eu não quero saber!
Resolvi não procurar maiores conversas, não tinha tempo e nem garganta
disponível pra isso, então saí de cima da areia de praia que tinha dono e valor
monetário. Bastou poucos passos pra colocar minhas coisas de volta na areia,
esta agora não tinha quem reclamasse por ela. Pelo menos naquele momento.
O mesmo cidadão que me tirou do lugar pôs mais uma mesinha com cadeiras
para um casal que acabava de chegar e pedira uma cerveja no BEIRADA DE
ITAPOAN.
- Quanto é a coxinha?
- Cinco contos!
Este era um freguês que havia chegado, meteu a mão no bolso e tirou uma
moeda equivalente ao preço que eu havia dito e me entregou.
- Pode pegar aí!
Com esta permissão, ele pegou um dos guardanapos que estavam na
bandeja e puxou uma coxinha. Passadas três bocadas...
- É moça! Essa coxinha da senhora é boa mesmo.
- Brigado!
- Me da outra aí - Desta vez não esperou que permitisse e foi logo pegando
educadamente, o guardanapo e depois a coxinha. O dinheiro veio em seguida
- A coxinha que a senhora faz é muito boa. Se eu soubesse disso antes!... Falava o garoto, com a boca entupida da massa salgada -.
- Porque, se soubesse antes? Teria o que? - O interroguei com disfarçada
curiosidade-.
- É que eu comprei uma coxinha ali numa mulher que só se sentia o gosto da
massa crua, a da senhora tá bem torradinha, e da pra sentir o gosto do
recheio. A dela nem isso tinha.
- É meu filho! As minhas coxinhas eu gosto de fazer bem feitas; coloco
recheios de soja e quando o dinheiro dá o de galinha. Não é porque a gente
vende assim que vai fazer as coisas mal feitas, não é mesmo?
- É!...
Enquanto este rapaz conversava comigo, vieram mais pessoas comprar.
216
O Jornaleiro
Pouco minutos depois que vendi as coxinhas ao ilustre degustador, me
apareceu um
outro que nitidamente não queria comer.
- Oi tia!
- Boa tarde! Posso ajudar você?
- A senhora pode guardar estas coisas aqui pra mim? - Me mostrou uma blusa
que enrolava algo -.
- Vai tomar banho?
- É sim, “nestante” eu volto e pego, tá bom?
- ta bom!
A vendagem estava na maior normalidade, tanto comigo quanto com Sula.
Olhava de vez em quando para os lados e não me parecia que a concorrência
estava insatisfeita, muito pelo contrario. Que bom!
Chegou um grupo de pessoas, seis pra ser mais precisa. Eram quase quinze
horas.
- Ô tia, quanto é o pastel? - Perguntou um dos homens -.
- É cinco contos! Qualquer peça tem o mesmo valor.
- Vão querer galera?
- Eu quero coxinha!
Foi o que disse uma das duas moças que estavam no grupo. Outros
quiseram sonho. E assim foram feitas todas as vontades. Mas na hora de
pagar!
- Êpa! Aqui tá faltando dinheiro.
- Faltando?
- Faltando sim!
- Quanto? - Perguntou uma das meninas -.
- O dinheiro de duas peças.
- Paga aí, véi! - Ordenou a garota ao namorado que estava ao seu lado -.
Imediatamente ele soltou um “eu” bem sonoro para que todos os
companheiros ouvissem e soubessem que dali não sairia nada. Aí começou a
enrolação: um pedia pro outro pagar alegando não ter dinheiro e eu só
olhando. Até que alguém falou o seguinte pra mim:
- Ô minha tia, a gente tá sem dinheiro hoje. Outro dia eu pago, tá certo?
217
Cristiano Sousa
- O quê?
Aquela brincadeira sem graça soou em mim como uma ofensa grave. Na
minha opinião, não havia desculpas para aquele tipo de coisa. Onde já se viu!
Nada disso!
- Eu quero o meu dinheiro! Vamos! Deixem de brincadeira!
- A gente não já disse que não tem, senhora! - Exclamou outro componente -.
- Eu não quero saber! Se eu estou vendendo é porque preciso! Vocês não
acham, não?
- A senhora é muito valente pro meu gosto! - Disse um dos perturbadores -.
- Sou mesmo! Gosto de defender os meus direitos! E o dinheiro que vocês
me devem é um direito meu! Vocês comeram, tem que pagar!
Depois de muita discussão ameacei chamar a policia, só assim os
„zoadentos‟ resolveram tirar dinheiro do bolso.
- Aqui, ói! A senhora tem troco?
Quem me entregou esta nota bastante alta pra que eu tivesse dificuldades de
trocar foi o primeiro bagunceiro que chegou. Fui na reserva particular e
peguei o dinheiro trocado para lhe dar. Foi um alivio ver aquela gentalha
sumir de minha frente.
Dezesseis horas e tantas da tarde, nessa altura eu já havia vendido
praticamente tudo o que tinha trazido. Sula também estava exausta. Restavam
apenas duas peças nas bandejas: uma coxinha e um pastel. Como eu não iria
ficar na praia apenas pra vender esta quantidade de produtos...
- Sula! A menina brincava, fazendo buracos na areia da praia.
- O que foi mãe?
- Venha vestir as suas roupas (estava de biquíni) que nós já vamos embora.
- Não vai vender o restinho?
- Pra quê? Vamos! Pegue a sandália!
- Eu posso dar o ultimo mergulho?
- Agora?
- Ô mãe!
- Tá bom! Vá logo?
218
O Jornaleiro
Esta teimosia acontecia sempre nas hortas de ir embora: “tomar um banho
pra se lavar” ou então “ o ultimo que é a saideira.” Eu acabava consentindo
em todas as vezes.
Na espera de Sula deu tempo pra vender as duas peças que restavam. Olhe
que ela não demorou tanto assim. Regressada a menina, era só se aprontar
pra voltar.
De volta ao ponto, retorna também o sofrimento. Estávamos a espera do
ônibus a quase uma hora. O céu começava a escurecer. Sula sentou na beira
da calçada e pôs a cabeça sobre os braços; eu mandava ela sair, mas insistia
em me desobedecer.
- Sula! (Gritei mais uma vez) Sai daí menina!
Não me respondeu nada. Que teimosia! Eu fui pessoalmente, na intenção de
tira-la daquele lugar. Puxei-a por uma das mãos, ela insistia em ficar de
cabeça baixa.
- Sula, Sula! Tá sentindo alguma coisa, minha filha?
- Não é nada, mãe!
- Como não é nada? Você tá ai, com essa cara de quem comeu e não gostou.
- É só um pouquinho de “dô” de cabeça.
- Dor de cabeça? Deve ter sido a água salgada. Vá! Se sente ali junto às
coisas que nestante passa.
A criança obedeceu as minhas ordens e foi. Já não bastava o carro e agora
mais essa pra eu me preocupar.
Um fato inusitado aconteceu pouco depois e serviu pra desviar a minha
atenção, apareceu em minha frente o misterioso e galante Marcelo Fernando.
Estava de sunga, com uma camiseta no ombro e dizia ter vindo daquela praia
também.
- E eu não ti vi lá embaixo, hein?
- A senhora estava em que parte da praia?
- Eu tava logo aqui! - Apontei na direção de onde tinha subido -.
- Eu estava mais pra lá. - Desta vez era ele que apontava para um outro local
da praia-.
Desde que o conheci os nossos encontros foram desta forma, em situações
inesperadas; poucos, mas em todos se mostrou um homem educado e
219
Cristiano Sousa
atencioso. Disse-me que não estava acompanhado, e não parecia estar
mesmo, pois não vi ninguém ao seu lado.
- E a senhora, estava vendendo?
- Sim. Eu não costumo vir a praia tomar banho. Não gosto.
- E não dá nem uma mergulhadinha quando termina de vender?
- Não, senhor! Eu nem biquíni uso! Venho de short e camisa de manga.
- Eu não sabia que a senhora vendia na praia. Porque não trás os filhos pra
ajudar?
- Olha a minha filha ali. - Mostrei a Sula, que por pouco me saiu da memória.
A menina mantinha a cabeça entre os braços e em cima dos joelhos. Já estava
me deixando nervosa -.
Senhor Marcelo Fernando não deixou de notar a posição de angustia da
menina, o que fez com que abrisse um comentário a respeito:
- O que ela tem?
- Está com uma dor na cabeça. Deve ter sido a água salgada!
- Será? Tem que prestar atenção! Pode ser sério.
- Sério como?
- Sei lá! Pode não ser por causa da água...
Pronto! Agora que eu queimava o cérebro. Esta observação do senhor
Marcelo Fernando me assombrou. O próprio tentou me acalmar. Tentativas
sem êxitos. Eu encostava constantemente na Sula e perguntava se ela estava
melhor, a resposta era sempre a mesma: „um pouquinho‟. E nesse „um
pouquinho‟ fomos levando até a chegada do ônibus e o tumultuado
embarque.
- Melhorou minha filha?
- Já mãe! Eu já tô boa!
Levantei as mãos pro céu pois, uma alma abençoada cedeu o seu lugar para
que a minha filha sentasse.
Quem não deixou de nos acompanhar foi o senhor Marcelo Fernando, ele
parecia estar muito preocupado com a situação de Sula. Vínhamos
conversando.
- Que bom que a filha da senhora está melhor. A coisa me parecia ser mais
grave. Ainda bem que já passou.
- Se o senhor soubesse como estou mais calma agora!
220
O Jornaleiro
- Eu também, dona Jandira.
Descemos do ônibus. A minha casa não ficava distante à do senhor Marcelo
Fernando. Fomos conversando
até a Rua do Sapo.
- Sabe, dona Jandira. A senhora é uma mulher de muita fibra, sabia?
- Porque o senhor tá dizendo isso?
- Não sei!... Pelo jeito que te vejo, sempre assim, batalhando, cuidando com o
maior amor dos filhos... Tem mulheres por aí que não querem nem saber
disso.
- Eu sei. Isso é coisa de mulher que não ta preparada pra ser mãe, é por essa e
outras que tenho um certo receio quanto a gravidez de minha filha.
- Ah! Eu tô sabendo. É a menina mais velha?
- É!... A Camile.
Estávamos na entrada da rua, que é inclinada; Sula deixou que um dos
frascos de molho caísse e rolasse ladeira abaixo. O molho não havia sido
esgotado por inteiro, era feito de pimenta do reino. Apesar do povão gostar
muito ainda tinha metade do frasco. Ao vê-lo rolando pelo chão, minha filha
fez uma observação:
- Logo esse foi cair! Mãe, é aquele que um homem repetiu “duas vezes”.
- Então pega menina! Corre!
Ela foi atrás do frasco de pimentas enquanto eu desci devagar e
conversando. O senhor Marcelo Fernando deixou que a criança saísse de
perto para mudar repentinamente de comportamento. Ficou um pouco mais
alterado em sua emoções.
- Senhor Marcelo Fernando. O que esta acontecendo com o senhor?
Coloquei esta frase pasmada. Ele exagerou nos elogios pois, além de me
chamar de “uma mulher bonita”, o que não era motivo de repreensão, me
chamou de gostosa.
- É a maneira de falar, dona Jandira! - Se defendeu o gaiato -.
- Mas eu não quero isso comigo?
- Desculpa! Mil desculpas dona Jandira! É que... Eu me exaltei um pouco.
- Um pouco não! Muito!
- Tá certo! Tá certo!... Eu juro que não vou falar estas besteiras de novo.
- Ainda bem.
221
Cristiano Sousa
O homem pediu desculpas até cansar, depois, que eu parasse um pouco e o
ouvisse dizer umas três palavrinhas.
- Seja rápido!
- Sabe dona Jandira? É que realmente eu acho a senhora uma mulher bonita,
e digo mais, o marido da senhora...
- O que tem o meu esposo?
O senhor Fernando hesitou em completar a frase, mas raiou um brilho de
coragem que o fez cuspir o que estava engasgado. Pra meu azar.
- Ele não sabe o que tem dentro de casa.
Este complemento me deixou toda sem graça. Fiquei sem palavras.
Estávamos em plena Rua do Sapo e os olhos curiosos começavam a notar a
nossa presença.
- Mãe, a senhora não vai pra casa, não?
Era Sula me apressando. O grito da menina me fez sair do transe
momentâneo em que estava. Senhor Marcelo Fernando continuava a olharme, desta vez calado, como se esperasse algo, talvez uma resposta sobre a
sua ousada observação. Ao invés de falar qualquer coisa, fugi na direção de
minha filha.
- Vamos pra casa Sula!
Peguei a menina pelo braço e a fiz andar apressadamente.
- E o senhor Marcelo Fernando, mainha?
- A casa dele é pro outro lado, filha.
Com tantas emoções, veio mais uma ruim:
- Mãe!
- O que foi filhinha?
Assim que tasquei o olho na menina percebi logo os seus gestos de agonia,
estava sentando, sentando não, caindo!
- Sula! O que foi minha filha? O que você tem menina? Fala!
Desesperei-me totalmente.
222
O Jornaleiro
XX - SEM VENDAGEM
N
o dia que minha irmã Sula passou mal eu estava, como de costume,
na vendagem dos jornais. Fiquei sabendo deste acontecido apenas
quando acordei na segunda porque o domingo também ferveu no
meu trabalho.
Logo ao chegar a distribuidora, eu e o meu inseparável companheiro Basu
nos deparamos com a que seria, em nossa opinião, a principal noticia do dia,
mesmo não sendo publicada nos jornais. Bira não se encontrava presente,
segundo Rose ele estava na fabrica tratando de interesses mútuos.
- Meninos! Hoje vocês não vão ter jornais!
Esse era o motivo pelo qual se viam dezenas de vendedores circulando ao
redor da distribuidora, vagabundando conjuntamente; apesar disso, a
indignação era geral porque todos, ou quase todos, precisavam do dinheiro da
vendagem para alguma coisa.
- E porque não tem jornal hoje, Rose? - Perguntei -.
- Eu não sei explicar, Nico. Bira foi lá pra fabrica saber a causa. Ontem de
noite aconteceu à mesma coisa. Vocês viram.
Foi verdade. No sábado à noite a fabrica também não havia mandado
jornais pra Bira. A maioria do pessoal foi pegar em outras distribuidoras. Eu
não fui porque ficava ruim o retorno pra casa. Dormir ali nunca mais!
Reparando bem entre os companheiros, via-se que eles estavam tomando
suas providencias.
- Olha Nico. A galera toda tá indo pegar jornal em outro lugar. Você não vai?
Basu estava doidinho pra se unir aos outros. Eu preferi ficar e esperar.
- Por quê?
- Eu não estou com tanta pressa hoje. Se esqueceu que é feriado até quarta
feira. Os meus fregueses estão viajando. Poucos que compram direto estão aí.
- Vamos rapaz! - Insistiu -.
- Vá! Se você quiser. Eu não vou, não.
Basu tomou a sua decisão pela minha. Não foi pegar jornais em outra
distribuidora. Eu até preferia que ele fosse, só assim me sentiria com a
223
Cristiano Sousa
consciência tranquila de não ter influenciado em sua decisão; ele não quis
voltar atrás, depois de varias insistências minhas pra ir.
- Eu também não ia pegar “muitos jornais” hoje (justificava-se o amigo). Os
meus “freguês” também estão viajando.
Com essas decisões tão importantes, resolvemos esperar pelo distribuidor.
Sentamos no meio fio da calçada pra ver no que iria dar.
Bira não receber jornais era coisa rara; os que vendiam pra ele não
imaginariam um dia acontecer uma coisa destas; aquela era a maior
distribuidora de jornais da região, quem sabe até, a maior de Salvador, o
numero de vendedores ali era imensurável.
- O que será que aconteceu, Basu?
- Não sei! Mas que foi coisa séria, foi.
- Séria? Como assim?
- Quero dizer que essa distribuidora há muito tempo não é mais a mesma.
Bira todos os dias vem perdendo “um bocado de vendedor”. Dona Ruth e
Galeguinho todo dia “tão entrando seis, sete...”.
- Como você sabe?
- Os meus colegas me contam. Um monte “já foram” pra lá, até “mim”
chamaram.
- E porque você não vai também?
- Rapaz... Eu tô pensando nisso.
Cessamos um instante ao final da revelação de Basu, que mostrava-se
decidido em mudar de patrão, eu só não sabia o que ele ainda esperava pra
isso. Foi o que me revelou ao final da mudez.
- Nico. Voltou o rosto pra mim.
- Que é? Fiz o mesmo.
- Porque você também não muda?
- Pegar jornal em outro lugar?
- Sim! Porque não?
- Porque eu estou bem aqui! Coloquei esta forma de ver a coisa, o que fez ele
refletir um pouco mais.
Existiam naquele emaranhado de jornaleiros desertores, vários fatores que
faziam com que eles saíssem da distribuidora em que estavam. Uns porque
não queriam vender mais, outros porque achavam um emprego melhor (mas
não ficavam muito tempo pois, na pratica, vender jornais era mais lucrativo
224
O Jornaleiro
do que muitos empregos por aí). Haviam jornaleiros que saiam pelo simples
fato de querer trocar de lugar ou então, o mais comum, por não se dar bem
com o distribuidor.
Até a popularidade de Bira mudara de perfil: antes, quando me perguntavam
se vendia pra ele e eu dissesse que sim, me liberavam de qualquer
importunidade; agora, se eu disser que sim, posso me tornar alvo de piadas, e
em casos mais extremos, de violência.
Basu, que andou calado por uns tempos, só se pronunciou novamente
quando lhe perguntei o seguinte:
- Você não gosta daqui, Basu?
Olhou firme pra mim. Com certeza não esperava uma pergunta tão simples
e ao mesmo tempo tão séria. Me veio com uma resposta tão importante
quanto a pergunta:
- Não se trata de gostar, Nico! As pessoas têm que procurar o que melhor lhe
convir, principalmente nos dias de hoje, em que está difícil arranjar um
trabalho que preste. Eu sou como todos os outros vendedores, inclusive você,
no que diz respeito a vender jornal e ganhar dinheiro. Estamos todos no
mesmo barco!... Eu não amo e nem odeio esta distribuidora, não adoro ou
tenho nojo de Bira. As relações têm que ser estritamente profissionais.
- Agora você imitou o seu pai!
- Exatamente. É dele que ouço frases tão “modernas” iguais a estas. É a mais
pura verdade.
- Eu sei.
- Olha Nico, eu vou te dizer uma coisa que meu próprio pai me diz, já que
você lembrou dele, né? Hoje em dia ninguém é amigo de ninguém, as
pessoas que estão ao seu redor são as que vão te passar a perna. É por isso
que muitas vezes, quando você me pede ajuda pra vender os seus jornais eu
não dou, faço isso porque quero que você seja sempre mais independente.
Eu estava sentindo que não iria “dar pé” ficar ali sentado esperando Bira.
Basu estava com uma certa doze de razão. Tomei uma decisão.
- Basu.
- O que foi, Nico?
- Vamos pegar jornal em outro lugar!
225
Cristiano Sousa
Falei isto levantando a bunda seca do lugar que estava sentado, fazendo
com que o companheiro me seguisse em direção a uma nova experiência.
- Mudou de idéia Nico?
- Exatamente! Agora é só escolher o lugar.
- Dona Ruth e Galeguinho são os que ficam mais próximos. Eu conheço
outros, mais a „paletada‟ é maior.
- É o mesmo caminho?
- É! Só muda quando chega na feira.
- Então! Lá a gente pensa qual dos dois escolhe.
A feira que Basu citou é uma tradicional vendagem de rua que acontece
todos os fins de semana perto do final de linha de Amaralina. Nos dirigimos
pra lá. Antes, pedimos a Rose que falasse a Bira que fomos pegar jornais em
outro lugar.
Subimos a escadaria. Entramos no final de linha. Era impar o momento pra
mim porque, apesar de vender jornais ali pertinho, não conhecia o lugar.
Também! Pra quê se eu não tinha freguesia por lá? Era três vezes mais
movimentado que o do Arenoso; bem servido de ônibus. De resto, a mesma
pobreza de sempre, contrastando com a nobreza e a força espiritual do povão,
que é o mais resistente do mundo porque sempre se levanta dos mais terríveis
golpes, não perde uma batalha e nunca foge da guerra. Essa nossa guerra pela
sobrevivência.
Demos de cara com a rua da feira. E, como toda feira que se preze, aquela
não deixava de nos deslumbrar com a sua quantidade imensa de vendedores,
compradores, cachorros em busca de um osso de porco cujas carnes eram
vendidas ali mesmo, ao ar livre; tinha também a rua, cheia de gente e de lixo,
este ultimo, que faltava nas lixeiras postas ali.
Pronto! Estávamos em frente a distribuidora de dona Ruth. Foi a que Basu
achou melhor. As horas se passavam, a esta altura eram quase sete.
Aproximamo-nos mais da distribuidora, era bem diferente da de Bira,
começando pela localização menos privilegiada (Um pouquinho mais
distante da Pituba, Rio Vermelho, e adjacências); a movimentação de
jornaleiros não era tanta quanto em Bira, mas dava pra provocar um certo
congestionamento ao redor da pequena casa; nada mais se comercializava ali,
apenas jornais, outra diferença. Só uma coisa era igual ou até melhor, não se
fazia distinção de vendedores, quem chegasse vendia, podia ser de qualquer
226
O Jornaleiro
distribuidor, acho que por isso que o Basu escolheu aquela. Tinha um banner
garboso e mentiroso, não tanto quanto o de Bira, mais, mentia. Dizia assim:
DISTRIBUIDORA DE JORNAIS DA DONA RUTH. RECRUTAMOS OS
SEUS FILHOS PARA A VENDAGEM DE JORNAIS. OFERECEMOS
LANCHES DIVERSOS, CAFÉ DA MANHÃ, ALMOÇO, SEGURANÇA E
CAFÉ NOS SÁBADOS A NOITE. ESTAMOS A SUA DISPOSIÇÃO.
Que beleza!... Café da manhã! Lanche! Almoço!... Só faltava dormida,
roupa lavada e mulher!
A placa da propaganda era uma das mais enfeitadas que eu já vi em toda a
minha vida; logo na primeira mensagem: “Distribuidora de Jornais da Dona
Ruth” dava a maior ideia de uma coisa interestelar, luzia tanto que parecia
estarmos no primeiro mundo. As letras todas pintadas em azul e vermelho
dava o tom forte pra não deixar duvidas ao leitor. Em Bira o banner não tinha
as oferendas, apenas um pequeno cartaz no interior da distribuidora mostrava
algumas dessas vantagens. Notava-se também um “que” de maior
democracia em sua distribuição. Enquanto em Bira era raro vermos a cara de
uma mulher vendedora, em dona Ruth haviam varias. Talvez pelo fato da
dona do cafofo ser do sexo feminino, isso gera mais confiança nas senhoras e
mocinhas em se integrarem ao grupo.
Antes de nos apresentar à dona da espelunca, uma dessas meninas se
aproximou, achamos normal, afinal, eram dois machos em frente de uma
indefesa donzela...
- Vão vender aqui? - Nos perguntou logo de cara -.
- Vamos! - Respondeu Basu, que fez questão de mostrar que não se
embaraçava com as mulheres -.
Era bonitinha a danada, parecia ter catorze aninhos de idade, uma morena
que era o bicho! A única coisa que não gostei nela foi o jeitão de malandra.
Basu ainda embromou alguma besteirinha pra responder a cantada da
adolescente. Eu ainda fui um besta de perguntar:
- Basu, você vai ficar aí, é?
Pra que eu fiz isso? A garota me tascou um olhar ameaçador acompanhado
de:
227
Cristiano Sousa
- Peraí véi! Ta com pressa é? Vai pegar seu jornal!
Basu sentiu que não podíamos perder mais tempo e tratou de se sair da
menina. Porque tem que ser sempre assim? Basta algumas pessoas saberem
que tem novatos na área pra querer tirar onda. O chato era ter que engolir
provocações de mulher, com
certeza a moça se confiava em alguém.
Até que enfim, entramos na distribuidora e conhecemos a dona Ruth, uma
pessoa gorda e simpática. Explicamos o motivo pelo qual estávamos pegando
“os seus jornais” e pronto!
- Vão querer quantos?
Fiquei na duvida. Perguntei ao companheiro pois tinha mais fregueses que
eu.
- Trezentos pros dois. - Falou o amigo depois de um breve raciocínio -.
- Ta bom! - Exclamei -.
Dona Ruth imediatamente saiu de seu balcão de atendimento, se é que
posso chamar assim (era tipo o de Bira, só que menor). Contou uns jornais
que estavam encadernados e nos entregou. Só tinha um probleminha.
- Primeiro clichê? (Escancarei esta frase logo que tasquei o olho no numero
que vem na borda do jornal). Só tem esses aí!
- Se não quiserem deixa aí! (indagou a dona Ruth) Chegaram muito tarde!
O primeiro clichê se reconhece pelo numero “1” na borda do jornal e o
segundo clichê, como não poderia deixar de ser representado, pelo numero
“2”. Significa que aqueles jornais foram impressos no sábado a noite. O ruim
de tudo isso é que os fregueses mais vivos não compram esses jornais,
também tem jornaleiros que não gostam de vender estes jornais. A maioria
das noticias do primeiro clichê são repetidas no segundo. Acontece que
muitas coisas acontecem no intervalo de tempo entre os dois, e por isso
muitos não compram no domingo o de sábado, a menos que seja viciado em
ler.
Não aceitamos os jornais por este simples fato.
- Então vocês não vão querer?
- Não! (Exclamei) Se tivesse pelo menos a metade de segundo clichê. Que
nada! Isso aí não vende, não.
228
O Jornaleiro
- Então eu não posso fazer nada por vocês. O que tem é isso aí que vocês
estão vendo.
Saímos decepcionados da distribuidora de dona Ruth. Imaginamos que as
coisas iriam ser exatamente ao contrario. Voltamos pelo mesmo caminho.
Basu não parava de resmungar consigo mesmo e comigo. A única culpa que
eu tinha era a de seguir os conselhos dele.
- Será que é assim com todos os vendedores, Basu? Perguntei pro colega, que
não deixava de lamentar.
- Deve ser... Mas eu já vendi uma vez pra ela e não teve nada disso.
- Então?... Vamos esquecer aquela rolha de poço.
Foi o que fizemos, pelo menos no momento.
De volta. A rua estava muito quieta, demos uma bizolhada por dentro da
distribuidora e não achamos quem queríamos; estava lá apenas a Rose
conversando bem intimamente com um homem, até quando não nos notaram;
entraram pra cozinha, saíram, tudo isso sozinhos... Bom! Não era problema
nosso. Sentamos de novo no meio fio em frente à distribuidora e ficamos a
espera de Bira.
Após mais vinte minutos de espera é que nos aparece a margarida numa de
suas
Kombis velhas e falando ao celular. O automóvel parou em frente a
distribuidora, Bira, avistando-nos, não perdeu tempo em nos lisonjear com a
sua aproximação.
- Vem cá, “pais véis”, que eu quero falar com vocês.
O cara não perdia essa mania de chamar de “pai véi”. Que vicio!
- Porque não teve jornal hoje, Bira? Perguntei antes de atende-lo.
O patrão voltou a cara pra mim e não hesitou em dizer:
- A fabrica do gazeta do dia, “pai véi”.
- O que teve?
A resposta de Bira a minha primeira pergunta foi muito vaga. O
acompanhante de Rose já havia se mandado, ficou apenas a moça. Entramos
na distribuidora.
229
Cristiano Sousa
- Rose, você vai ficar aí até umas doze horas, depois feche a distribuidora e
vá embora.
Ele estava com uma cara de quem foi mordido por um vampiro sanguinário.
A ansiedade fazia doer os meus neurônios:
- O que foi Bira? O que você quer nos dizer?
- O jornal de hoje, “pai”. Os caras fizeram sacanagem e mandaram uma
quantidade que não deu nem pra melar.
- Eu pensei que hoje não tivesse vindo jornal.
- Foi o que nos disseram! - Reforçou Basu -.
Bira iniciou uma subida pausada pra sua residência. Ainda parou pra
conversar conosco.
- Quem disse que não teve jornal?
- Ah! Todo mundo! - Falei -.
- Teve sim, mas foi uma quantidade muito pequena. Porra “pais véis”! Eu
fiquei pirado com o Gazeta. Os caras parecem que querem me afundar,
ontem não teve jornal e hoje mandaram poucos.
- Você tava lá na fábrica? - Indagou Basu -.
- Tava! Fui lá ver qual é a deles.
- E aí? - Perguntei -.
- E aí disseram que eu tô boiando muito e que meus jornais vão ser
diminuídos! - Exclamou Bira, abrindo os braços e levando as mãos na altura
dos ombros, mostrando insatisfação -.
- Pô Bira! Você vende jornal pra porra! Só se vê vendedor seu por ai!
- É, mas os caras não querem saber disso! Pra eles o que vale é a contagem lá
dentro. Vou fazer o que?
- E agora, Bira? Vai ficar assim mesmo?
Colocou esta interrogação o meu camarada e a reposta foi Breve.
- Que nada!... Se eles não mandarem a quantidade certa amanhã eu não vou
receber e vai todo mundo pra lá.
De fato, foi o que aconteceu. No dia seguinte os jornais de Bira vieram
pouquíssimos, então, o „arretado‟ distribuidor convocou todos os jornaleiros
a comparecerem na fabrica de jornais Gazeta do dia.
230
O Jornaleiro
XXI- EMERGÊNCIA PARA A EMERGÊNCIA
A
judem aqui, pelo amor de Deus!
Este desespero foi gerado a partir do momento que minha filha
passou mal em minha frente. Isso aconteceu em plena Rua do Sapo,
ou seja, estávamos praticamente em casa, mas não demos as caras por lá por
causa desse fato inusitado. Tentei reanimar a menina de todas as formas
possíveis, meio que no desespero, até respiração boca a boca fiz, mas não
deu; eu não sabia o que estava acontecendo. O único jeito era um médico, e
nesta parte que entra mais uma vez a importantíssima pessoa do Senhor
Marcelo Fernando, foi ele quem arranjou o carro de um amigo seu que nos
transportou ao Hospital.
- Tem horas senhor Fernando?
- Não. Peraí que vou perguntar!
Levantou-se educadamente de uma das cadeiras e foi. Voltou.
- E aí?
- São quase vinte horas!
- Já! Vixe Maria. Pensei que era mais cedo.
Estavam o senhor Fernando, a Sula em meus braços, e eu, sentados em uma
ala da emergência do hospital Roberto Santos; esperávamos ser chamados
pelos médicos que atendiam naquele horário, muitos outros pacientes
estavam na mesma situação.
O carro que nos levou, assim que nos deixou na porta da emergência foi
embora; eu pedi ao motorista que informasse a minha família. Conhecia-nos
de vista. Os que nos recepcionaram mandaram esperar a vez, alegando que o
caso da minha filha não era grave; eu, como mãe, não aceitei aquela
desculpa. O que Sula tinha, segundo eles, era apenas uma forte gripe, coisa
que passaria nas ultimas horas tomando os devidos cuidados. Como se eu
fosse consolável por qualquer conversa.
- E o desmaio doutor? - Perguntei a um dos médicos que foram examinar a
minha filha -.
- Foi apenas uma tontura (respondeu). A senhora tinha dito antes que
estavam na praia, não foi?
- Foi! Fiz um gesto de afirmação com a cabeça.
231
Cristiano Sousa
- Então?... A senhora não devia deixar a sua filha tomar muito sol na cabeça!
Jamais pensaria que a gripe de Sula fosse dar tanto trabalho. Havia notado
que, ultimamente, a menina tossia além da conta, quando isso acontecia,
comprava remédio na farmácia e pronto! A tosse passava. Mas isso não era
frequente. Difícil era ver Sula com essas doenças.
A emergência estava cheia, como de praxe. O numero de pessoas que
chegavam sempre era maior na balança da movimentação; liberavam logo os
doentes, principalmente os que não tivessem “problemas sérios”, assim
sobravam mais vagas. O fato angustiante é que essas vagas nunca
demonstravam estar desocupadas.
A movimentação da “doentada” não parava, era de minuto a minuto
chegando gente e saindo gente; vivos, mortos, feridos, curados. Aquele lugar
tinha o cheiro da morte por todos os lados, a visão e audição mortificadas,
eram gritos de medo, de terror, era nojento e assustador o que se via com os
olhos que a terra há de comer; em plena presença dos mais favorecidos se
viam as angustias dos menos sortudos.
Enquanto me deparava com toda aquela morbidez, sentia-se muito mal
diante de todos os enfermos.
A menina, desde o desmaio não deu um pio, o corpo estava lerdo, as narinas
respiravam forçadamente e os olhos pediam pra os deixar descansar. Sula,
como a mãe e o senhor Fernando, ainda estava com a roupa em que havia
deixado a praia: uma camiseta azul clarinha, um short amarelinho e um par
de sandálias de borracha desgastados. Os materiais que usamos na vendagem
foram no carro do amigo do senhor Marcelo Fernando, apenas um saco ficou
na minha mão, em que estavam a bolsa e alguns utensílios da vendagem que
eu continuava a carregar.
- Senhor Marcelo Fernando, o senhor pode segurar isto aqui pra mim?
Foi exatamente este embrulho que pedi que segurasse. Estava bastante
atrapalhada com a minha filha nos braços e aquele saco, que realmente era
“um saco”.
Volta e meia estacionava um carro em frente à porta da emergência, eram
mais doentes chegando ao local. Num desses veio um senhor de idade
232
O Jornaleiro
aparentando ter os seus setenta anos, passava mal; o coitado entrou pela
emergência adentro e, posto sobre uma maca, foi mantido ali por algumas
“horinhas” acompanhado de uma senhora, também de idade, que parecia ser
a sua esposa. Só depois destas “horinhas” é que vieram atender o velhinho
direito, tinha problemas nos ossos, coitado! Mostrava dificuldades pra andar.
A maca não estava distante de mim, pude até ouvir sua companheira lhe
dando uma luz de esperança:
- Calma João! Não vai demorar pra gente sair daqui. Calma!
A verdade é que ela precisava de consolo naquele momento, tadinha, estava
mais desesperada que João. Enquanto isso Sula continuava dormindo em
meu colo, a respiração parecia ter voltado ao normal. Foi o que comentei
com o senhor Marcelo Fernando.
- Da pra perceber alguma mudança senhor Marcelo? Ela parece tá melhor,
né não?
O senhor Marcelo olhou seriamente a menina, pensou um pouco e respondeu:
- É!... Parece que tá melhorando.
- Ainda bem, meu Deus! Graças a Deus!
- Daqui há pouco tempo ela vai estar cem por cento.
- Deus te ouça senhor Marcelo. Deus te ouça! - Gritei em minutos, e para que
as graças fossem logo alcançadas levei instintivamente as mãos para o céu,
deixando por momentos a menina solta -.
Passando a visão atentamente pela sala que estávamos dava pra se perceber
que qualquer um que pusesse os pés naquele local precisaria de muitas
graças. A tensão começa logo na entrada do hospital, são dezenas de pessoas
entrando e saindo pela abertura central (dois portões) que se encontram em
uma guarita policial e que dão acesso ao céu ou ao inferno para inúmeras
pessoas. Basta olhar nos pontos de ônibus
que ficam em frente ou dentro dos domínios do hospital. Por falar em
domínios do hospital, este era tão moderno que servia até para pivetes e
moleques de rua brincarem o seu futebolzinho em uma quadra de barro e
mato improvisada por eles próprios, enquanto ali perto os pais de alguns
vendiam doces, salgados, amargos (bebidas alcoólicas), azedos (cigarros e
outros fumos), tudo isso para sobreviverem de alguma forma; viam-se
também os famosos „picolezeiros‟ que vendiam „a beça‟, a causa é que na
Bahia sempre é verão. Via-se dezenas de pessoas a procura de noticias dos
233
Cristiano Sousa
parentes enfermos na porta da emergência, a sala de espera
encontrávamos) estava lotada também.
(onde nos
A movimentação foi intensa na hora de marcar a ficha, afinal, era a minha
filha que estava ali. Tive que esperar numa fila de pessoas com vários tipos
de deficiências: foi uma senhora que sofria de diabetes, um rapaz que estava
todo ferido de briga, uma criança que estava com pneumonia, todos
esperando a sua vez de marcar a ficha, nada de crônicos senão estariam na
maca.
Ruim mesmo era o estado de todas aquelas pessoas que cheguei e encontrei
espalhadas pelos corredores, comecei a imaginar que minha filha seria mais
uma. Graças a Deus não foi tão grave a doença.
Veio alguém examinar a Sula, estava perto das vinte e duas horas; a essa
altura o senhor Marcelo Fernando deveria estar no ponto de ônibus, pois me
disse que iria em casa trocar a roupa e voltaria assim que pudesse.
- E aí doutora? Ela ta melhorando?
A mulher olhou pra minha cara enquanto mexia o braço de Sula, tirava a
pulsação, pressão, coração e tudo mais que tinha direito. A segunda vez que
me encarou foi pra dizer o seguinte:
- Ela ta melhorando! Basta à senhora ter mais um pouquinho de paciência
que nestante vocês saem daqui.
- Eu não estou apressada para sair daqui! Eu tô apressada pra minha filha
melhorar!
Fez tudo o que devia em Sula e saiu com toda a tranquilidade pra atender
outros pacientes que também precisavam dos seus serviços.
Mas um doente entrando no hospital, especificamente na emergência, era
uma jovem que cruzava em minha frente com uma criança nos braços, como
o caso dela era grave, foi direto a pediatria; neste instante veio outro doutor e
mandou que eu fosse pra salinha onde se toma a nebulização, estavam ali
vários doentes e poucas cadeiras, todas ocupadas. E agora? Tive que ficar de
pé. Tinham também macas nesta sala, quatro no total, e que estavam também
ocupadas; numa dessas havia uma criança que aparentava ter os seus dez
234
O Jornaleiro
anos, um menino, nas outras adultos, uma senhora e dois senhores. Em todas
a observação dos enfermeiros era intensa.
Momentos depois da minha entrada na saleta, outros doentes também o
fizeram, estes não faziam parte da turma de nebulização e nem da maca, era
um novo grupo, o do soro. A sala, que era um ovo, estava amarrotada; se
continuasse entrando gente iam ter que subir uns em cima dos outros!
- O doutora, vem cá por favor!
Aproximou-se friamente como boa profissional que era e me deu a
necessária atenção, perguntei também com frieza.
- Vai vir ainda mais gente pra cá?
- Não sei filha! porque?
- Porque não cabe mais ninguém, tá tudo abafado, e quem tiver pra morrer
vai se adiantar.
- Ô minha querida! Não se preocupe? Você vai sair lodo-logo.
Eu estava bastante impaciente, mas a realidade era aquela mesma.
- Ô minha querida! Olhe aqui! - Convidou-me docilmente -.
Me puxou levemente como se fosse uma camarada que conhecesse a
bastante tempo e fez olhar para o corredor daquela emergência.
- Ta vendo?... Ta vendo como tudo está?... - Agora havia mudado o tom de
voz. Falava com angustia nas palavras -.
O que ela me mostrava não era raro e nem veio de longe. Era a realidade
nacional. Eu que, com a cabeça quente não notei aquilo, reclamava da lotação
da salinha.
Uma enfermeira veio a um dos pacientes que estavam tomando a
nebulização.
- Você já pode sair viu? Vai pra sala de...
Não me recordo bem o nome do lugar que ela mandou o paciente. Era a
minha chance de sentar. Sula me fazia respirar mais fundo por causa do
cansaço, eu via a hora de cair doente também, aí sim seria um desastre total.
Só que, quando ia descendo as „cadeiras‟ na cadeira, aconteceu de um olhar
caído e cansado me hipnotizar a consciência. Ele, o olhar, sorridente, dos
dentes amarelos, que faziam falta no céu, e porque não dizer, na terra
235
Cristiano Sousa
também, mais que na boca. Este olhar me pediu algo que não foi de difícil
entendimento:
- A senhora quer se sentar aqui?
Voltei o corpo novamente pra posição certa de penitencia.
- Obrigado senhora!
- De nada. Eu não fiz mais do que minha obrigação.
Cedi o lugar que eu iria sentar a uma senhora de idade. Estava de soro nas
veias antes de se “alojar” naquela sala. Havia um dito cujo que estava
perambulando no hospital com o seu medicamento na mão. Parece que nos
hospitais faltam lugares até pra esse tipo de gente; era mesmo comum se ver
muitos pacientes “paranóicos” andando de lado a lado da emergência com o
soro estendido por uma das mãos enquanto a outra tinha o braço inutilizado,
recebendo nas veias o poderoso remédio.
Passava-se o tempo e nada de Sula acordar, eu já não me aguentava mais
naquelas altas horas da madrugada com a menina nos braços. Minha sorte foi
que, por alguns instantes, a mesma paciente que eu havia dado o lugar
arranjou nas suas camaradagens uma moça que teve a boa vontade de segurar
minha filha.
A movimentação continuava intensa. Os médicos já não eram os mesmos de
antes, os pacientes, idem. Os enfermeiros haviam afrouxado na observação
das macas; quando coloquei os pés no reduto era um pra cada, agora era um
pra todos. Que coisa feia!
O desgaste físico foi um grande predador para o corpo sujo que trouxera da
praia. Se os doentes não estivessem tão preocupados com as suas pragas com
certeza notariam um odor diferenciado naquele lugar abafado. Este cansaço
interminável foi o mesmo que fez-me sentar no lugar que antes estivera de
pé. Se pensam, queridos e pacientes amigos, sofredores como eu, ou mesmo
que não sejam, que dormi naquele lugar sujo e imundo estão muito
enganados; até que o sono chegou a me dominar por instantes, só que houve
um acontecimento inesperado. Uma das médicas que vinham de “hora em
hora” examinar Sula tinha acabado de sair, foi aí que quase tiro uma
sonequinha. Claro que com um olho aberto e outro fechado. Foi exatamente o
primeiro olho que notou um dos pacientes da maca ensaiando rebolados de
236
O Jornaleiro
„pagode e samba‟, ou seja, se rebatia muito em seu canto de paz, achei
estranho mas logo me tranquilizei. Tinha uma enfermeira sentada num
banquinho rente a maca que ele estava, era um velhinho coitado; havia uma
acompanhante também, uma jovem, que calculei no momento ter de vinte a
vinte e três anos de idade. A enfermeira saiu do lugar que estava acomodada
e deu-o a jovem, que até então se mantinha de pé, encostada a uma parede. A
alegação da doutora foi que iria buscar medicação para examinar aquele
paciente. Demorou mais de cinco minutos, pelos meus cálculos, e ela não
voltou. A acompanhante, que estava languida de sono, continuava a fitar o
seu acompanhado. O doente se mantinha quieto, como todos os outros em
sua mesma situação. Acontecia que ele me assombrava. Enquanto a maioria
da „doentada‟ da sala estava com as suas cabeças entre os peitos, fingindo ou
dormindo de verdade, eu olhava constantemente aquela figura humana.
Estava ereto e feio, em uma posição única e inalterável, parecia uma estatua.
A saleta não tinha uma iluminação perfeita, mas o rosto dele, virado para o
teto, deixava perceber que os seus olhos insistiam em ficar abertos. Olhando
tão rápido quanto um raio, falei em tom bem claro:
- Este homem está morto!
A reação a esta frase foi geral, quem dormia acordou e quem estava
acordado se beliscou. A pessoa a quem dirigi a palavra levantou pálida, acho
que ouviu mal e entendeu “esta mulher está morta”. Eu, pra não deixar
duvidas do que falei, acrescentei logo depois:
- Menina o que está esperando? Veja o seu pai!
- O quê a senhora ta dizendo? - Gritou a jovem com a voz de extremo
espanto -.
Correu ao velhinho, passou-lhe a mão pelo pescoço para ter certeza, em
outras partes também, e foi „picada‟ aos médicos de plantão. Os gritos
podiam ser claramente ouvidos, desde a sua saída relâmpago da sala de
nebulização até a sua chegada na dos médicos.
- Socorro! Socorro! Vejam meu pai!
Os médicos vieram em massa, acudiram como puderam o já moribundo
velhinho, pena que tarde...
Fui transferida para a pediatria. Poucas horas da manhã, a minha paciência
estava com 90% de suas energias esgotadas; eu já pensava em fazer como
muitos que haviam abandonado a sala de nebulização sem ordens médicas,
237
Cristiano Sousa
simplesmente tiravam a mascara e iam pra onde desse na telha. Felizmente
um enfermeiro apareceu impedindo que eu fizesse uma coisa daquelas.
Chegando na nova sala, logo me receberam as novas medicas. Desta vez
encontrei uma cadeirinha pra sentar. Que sorte! Ficava bem juntinha a maca
que foi posta para minha menina (por sinal recebeu uma melhor atenção).
Dilatou-se um pouquinho mas os meus pensamentos numa conversação com
uma das jovens. Ela foi quem iniciou o papo:
- Sua filha tem o quê?
- Ô, vocês não sabem? Respondi confusamente.
Pegou em um dos braços de Sula enquanto ela dormia profundamente, e o
preparou para receber soro, amarrou um tipo de borracha antes, depois o
furou com uma agulha que me fez sentir a picada; esta agulha que furou a
menina foi a que ficou em seu braço, direto. O soro estava pendurado. Nisso,
a doutora precoce (na idade pelo menos) me disse:
- Uma coisa como esta, que a pequena está demorando tanto pra acordar, tem
que ser revista direito.
Com certeza absoluta aquela menina queria me deixar piradona, falando
aquelas coisas pra mim, a próxima doente naquele hospital com certeza
atenderia pelo nome de Jandira Albuquerque dos Anjos.
Assim que fez o seu “memoroso”, mais importante, comentário, afastou-se
do leito em que minha filha estava e foi atender a outras crianças.
Algumas horas a mais e minha face era só alegria, Sula havia acordado e
conversava comigo. Que bom! Camile, com sua barrigona, também tinha
aparecido a minha procura, acompanhada da sogra, que estava sorridente
pacas. Não permitiram que as duas ficassem, alegaram que só podia haver
um acompanhante, com certeza pra sobrar espaço no quartinho, então
combinamos as três de nos encontrarmos na saída.
Camile insistiu
pra ficar com a irmã, não permiti, eu mesma queria acompanhar a minha
pequena doente de perto; alegou que eu deveria comer algo, mesmo que
fosse uma merendinha do lado de fora. Não aceitei.
- Você ta melhor querida?
- Tô mãe.
- Tem certeza que não ta sentindo mais nada?
238
O Jornaleiro
- Tenho mãe...
Não me cansava de interrogar a Sula, queria ter certeza que ela estava bem,
já que estávamos prestes a ser liberadas.
- Vocês já podem ir.
- Graças a Deus, meu pai!
Desafoguei finalmente a consciência do fundo do abismo enquanto „a
menina‟ tirava
todos os aparatos que antes havia posto em minha criança.
- Obrigado doutora! Tchau!
Foram só estavas palavras que achei para agradecer, não importava a quem.
Fiquei contente mesmo foi quando vi Sula descendo daquela maca nojenta e
andando comigo. Destino: casa. No caminho mais um fato triste, o velhinho
João não resistiu, na saída se via a acompanhante se afogando em lagrimas,
perdida pelos corredores do Roberto Santos.
Como combinado, Camile, sua sogra, e sua barriga, nos esperavam do lado
de fora. Estavam devidamente acomodadas num banquete duro, de cimento,
que havia naquele local; quando nos avistaram deram pulos de alegria,
vieram ao nosso encontro como um perdigueiro ao chamado do dono.
Camile, exagerada como sempre, deu-nos abraços escandalosos de forte,
tivemos que inclinar as nossas panças pra dar espaço a dela. Pode?
- Até que enfim a senhora saiu deste hospital, né mãe?
- É...
Falava com alegria no olhar a minha moçona, que apesar de ser grande é
cabeçuda.
- O que foi que ela teve, mãe?
- Os médicos disseram que foi um desmaio por causa do sol forte na cabeça.
- Ta vendo? Não toma cuidado!
- A gente usa bonés.
- O que chapéu resolve?
- A senhora precisa tomar mais cuidado dona Jandira - Acrescentou a dona
Verônica -.
- Também acho! - Resmungou mais ainda a Camile -.
239
Cristiano Sousa
Afinal, estava tudo bem com as minhas meninas. Camile com a sua pança
redonda esperava poucos dias tensos para trazer uma nova vida pra este
mundo de meu Deus; Sula foi forte, resistiu valentemente a uma noite
angustiante naquele hospital, que mais parecia o inferno, se é que não era.
Marcelo Fernando, o falso, disse que iria voltar, e nada. Também não me
importei, não me fez falta.
Antes de sairmos das dependências do hospital chegou uma jovem,
segurada nos braços de um senhor, não dava sinais de vida, apenas se
contorcia em convulsões extremas. Fiquei receosa de Camile. Tudo bem! Ela
foi forte como sempre.
O espetáculo comoveu a todos que estavam no momento, chegou até a
hipnotizar, fazendo com que uns esquecessem dos outros e prestassem
atenção apenas na cena de terror real.
Aquela imagem tomou por alguns instantes a minha mente, só acordei
quando alguém anunciou um nome desesperadamente.
- Sula!
Foi Camile que escandalizou este nome por todos os cantos possíveis, logo
após ajoelhou, caiu e apagou como fizera a minha outra filha em meus pés.
As duas caídas.
- O que foi que aconteceu dona Verônica?
Gritei loucamente sem maiores intenções de ouvir a resposta, mas ela veio,
também
loucamente, sem eira nem beira:
- Foi a sua menina Sula que caiu aí no chão se debatendo. Ela caiu de tal
maneira que Camile se assustou e foi também.
- Meu Deus do céu! Prostrei-me entre os corpos das crianças.
240
O Jornaleiro
XXII - TRAGÉDIAS DE DOR
A
estas horas nós estávamos na porta do Gazeta do dia. Bira cumpriu o
prometido a ele mesmo “se o Gazeta continuasse faltando com os
compromissos ele iria lá”, nisso, levou consigo todos os vendedores
que ainda não o haviam abandonado.
Esta fabrica tinha uma localização privilegiada dentro da cidade do
Salvador, ficava no Costa Azul, próximo a lugares como a Rodovia, Hospital
Sara, Shopping Iguatemi e outras localidades, tais como Pernambués,
Saramandaia, Caminhos das Arvores... isso fazia com que, além de ter vários
distribuidores espalhados por toda a cidade, muitos vendedores preferissem
pegar os jornais direto dela.
FABRICA DE JORNAIS GAZETA DO DIA, era este nome que se via em
todas as vans usadas por aquele instrumento de noticia para transportar os
seus funcionários menos valorizados, os mais, corriam em busca de suas
noticias em carros um pouco mais sofisticados. No teto, lá no alto do prédio,
este que comportava três vistosos andares, a mensagem era simples, o que
não condizia com o instrumento, lia-se assim: GAZETA DO DIA.
Além dos andares, o prédio era cercado por uma vastidão de grade, o que
formava em seu contorno um largo espaço onde se colocavam os automóveis
da empresa e a importante impressora, que era destacada em um local
especial, dela saem tudo que é escrito pelos intelectuais da vida alheia,
folheados e encadernados, prontos para serem engolidos por curiosos ao café
da manhã. Como as grades pintadas de tinta óleo vermelha não faziam parte
da estrutura, o que deixava ele luzir eram inúmeras janelas, ficavam tão
próximas umas das outras que parecia que todo o edifício foi feito de vidro
negro. Imagine o infernal calor que não deveria fazer lá por dentro. Com
certeza cada jornalista tinha o seu ar condicionado próprio.
As kombis ( quinze ao total) foram chegando e se aglomerando na frente do
prédio, o carro foi o primeiro a chegar e ser estacionado. Se recebêssemos
salario, diriam que estávamos fazendo uma greve.
Bira desceu, acompanhado de Rose e mais um ajudante; à medida que as
kombis iam parando acontecia o mesmo com os vendedores que nela se
241
Cristiano Sousa
encontravam. A curiosidade do povo alheio era geral, quem passava nas ruas
ou dentro da fabrica. A Kombi em que Basu e eu estávamos foi umas das
primeiras a se recostarem, ouvimos Bira dizer a um grupo de jornaleiros que
já se postavam diante dele:
- Vocês ficam aí que eu vou entrar.
Foi o que fez o poderoso chefão, seguiu até o portão principal do prédio,
conversou com os seguranças e eles o abriram. Em outros tempos entrava de
carro e tudo mais. Outro detalhe foi o traje: estava de roupa social. Antes
adentrava até de bermuda se quisesse. As coisas pareciam estar realmente
quentes entre Bira e o Gazeta.
Entrou sozinho o decidido distribuidor, deixou todos os seus seguidores do
lado de fora; foi tirar satisfações com pessoas de posição muito mais alta que
a dele no mundo
dos negócios. Decidiu reclamar os seus direitos, estes que, nos levara a
pensar que também eram nossos. Afinal, quem iria ganhar com tudo aquilo?
O próprio distribuidor! Os jornaleiros tinham outras opções de venda.
O tempo não parava. Aquelas alturas eram mais de sete horas, o trafego
intenso e nós parados em cima do passeio, atrapalhando a passagem, e pior,
alguns se arriscavam nas brincadeiras mais banais no meio da pista. Bira
demorava a voltar. Muitos vendedores, impacientes, se deslocaram dali para
distribuidoras próximas. Desistiram de seguir a Bira e foram trabalhar, que
era melhor. Vendo estas decisões dos colegas dava vontade de também se
mandar, Basu parece ter percebido isso em minha face:
- Ta querendo se sair Nico?
- Rapaz!... Ta dando vontade.
- E porque não vai se embora logo?
- Não sei!... Quero ver o que vai acontecer.
Bira demorava muito do lado de dentro, mais uma hora se passou. A massa
de vendedores que não foi embora, se encontrava numa bagunça total:
briguinhas entre eles próprios, blasfêmias contra quem passava, tanto a pé
quanto em automóveis. Um dos meninos chegou a atirar um pedregulho
contra um carro, alegando que o passageiro da maquina o havia insultado. Os
seguranças da fabrica reclamaram varias vezes à Rose.
- A senhora fale ali com o menino que pulou o portão, ói! - Era outro
vendedor sendo delatado, este pretendia, em sua consciência cansada, saltar o
242
O Jornaleiro
portão que rodeava o prédio, ninguém sabia o motivo desta ação, o
argumento do segurança era que o garoto praticava o simples e puro
vandalismo -.
- Cadê ele? - Exaltou-se Rose, como se fosse resolver o problema -.
Que nada! Rose se dirigiu ao infeliz e só faltou suplicar para que o idiota
descesse. A minha tristeza é que pessoas como esta são minoria, mas suja o
nome de todos.
Os ânimos dos jornaleiros começaram a ficar exaltados depois que dois
seguranças partiram pra agressão contra uma menina vendedora; pessoa até
certo ponto respeitada, não permitia que nenhum gaiato brincasse com ela,
senão...
- Eu tenho um namorado que malha, viu? Podem fechar as suas caras!
Gritava se algum grupinho mais exaltado ameaçasse lhe assaltar. A garota,
segundo os seguranças, os importunava com ameaças de morte, as
testemunhas diziam que não era nada disso, eles que o faziam com palavras
caídas, colocando-a mais baixa que uma cachorra por causa de uma sacola
que quiseram tomar a força e ela não quis dar. Afinal, quem estava certo?
Os jornaleiros por pouco não entraram em conflito com estes dois
seguranças, o que significaria entrar também com os demais, estes, armados
fortemente, e nós de paus e pedras. O que fez com que os ânimos esfriassem
foi à saída de Bira do interior daquele “gigante consumidor de sangue
infantil”, que era como muitos o denominavam. O motivo da volta ainda
estava oculto nas palavras do distribuidor, que parou em frente aos seus
vendedores bastante cabisbaixo.
- O que resolveu lá dentro, Bira? - Gritou um dos muitos jornaleiros
anônimos presentes naquele local -.
Bira esperou que todos os seus vendedores se ajeitassem e diminuíssem a
„zoadeira‟ que faziam perante ele, Rose encostou no portão.
- E ai Bira? fala logo! - Insistiam os jornaleiros -.
- Pessoal...
243
Cristiano Sousa
Finalmente Bira havia soltado uma palavra, mesmo sendo tão insignificante.
Como a palavra “pessoal” não nos acalmou, insistimos até que falou com
vontade para entendermos.
- Eu não vou distribuir mais jornais.
A noticia não causou o desagrado de ninguém, apenas o dele próprio.
- O cara que manda aqui nesta fábrica disse que a minha distribuidora tava
dando muito prejuízo e que não iria mandar mais nenhum jornal pra lá.
- Mas, você é o distribuidor que vende mais jornais, Bira? - Lembrou um
companheiro do fundo, aos gritos, não sabemos se para amenizar o
sofrimento do pobre distribuidor ou se para humilhá-lo -.
Bira não respondeu. Calou-se. Não se sabe também de que forma ele tomou
pra si aquela frase, como humilhação ou como um gesto de amizade.
Eu também achava que não tinha sentido aquilo tudo. O melhor distribuidor
de Salvador fechar as suas portas, e os outros, que vendem menos Gazeta,
ficarem na ativa!... Pra isso também teve explicação quando fiz essa
pergunta:
- Ô Bira, me diga uma coisa. Você não acha que é muita burrice do Gazeta
deixar de entregar jornais justamente a você, que vende mais e da muito lucro
a eles?
- Mas a coisa esta justamente aí, Nico!
- Que coisa?
- Eu não tô fechando à distribuidora porque o Gazeta quer, tô fechando
porque eu quero.
- Oxe! E porque tá assim, triste?
- Porque a distribuidora era o meu ganha-pão.
Confesso que ainda não me iluminou a explicação de Bira. Tínhamos que
pedir mais.
- Ô Bira (intrometeu-se Basu) a distribuidora não era só seu ganha-pão, era o
da gente aqui também.
- Eu sei! E foi por isso que pensei muito antes de tomar esta decisão.
- Então! Porque vai fechar? - Resmungou a menina que havia apanhado dos
seguranças -.
244
O Jornaleiro
- Porque não vou vender mais o Gazeta, e é ele que dá lucro, os outros não
pagam a gasolina do meu carro; eu não vou ficar com a distribuidora
funcionando por causa de uns jornalecos que vão me dar prejuízo.
O papo estava quente, mas Bira ainda não tinha respondido ao meu mais
importante questionamento:
- E porque só você foi punido com o corte na distribuição?
- Não foi só eu não, “pai véi”. Foi todo mundo!
O cara encheu a boca pra falar esta ultima frase. Parecia ser o consolo que
brotava de
dentro do seu peito.
- Quer dizer então...
- Quer dizer então que ninguém vai ver mais Gazeta do dia sendo vendido
por aí. O jornal faliu!
Esta foi a pior parte da “coletiva” de Bira. O Gazeta? Falir? Não era possível!
O jornal que se dizia “o mais rico do Norte Nordeste?” Cadê a força do
Gazeta do dia?
A noticia pegou de surpresa a todos os vendedores que estavam presentes,
homens, mulheres, meninos e meninas. E agora? Como sobreviver sem
vender jornais? Porque não existe outro que possa sustentar ninguém, como o
próprio Bira falou.
A massa que tinha ido pegar jornais em outras distribuidoras estava
voltando, já sabendo das „boas novas‟; saíram perguntando se era verdade o
que lhes haviam dito por lá, os companheiros confirmavam. Bastava olhar ao
redor pra ver quanta gente estava ali, o numero de vendedores havia
aumentado consideravelmente na área. Muitos custavam a acreditar no que
ouviram.
- O quê Bira? O jornal vai o quê? - Perguntou um que acabara de chegar -.
- Bira vai pra onde?... - Este aí era mais um dos muitos que estavam nas
nuvens -.
Bira, na sua posição de líder, explicou, reexplicou, só faltou dar uma aula
ensinando como é que se fale uma grande empresa. Após esta comitiva, o
distribuidor destruído entrou em seu carro e tomou o mesmo rumo pelo qual
245
Cristiano Sousa
viera. A ordem dele foi para que todos os motoristas fizessem o mesmo com
as Kombis. Não deu tempo. Houve um imprevisto.
A garota que havia apanhado outrora de dois vigilantes resolveu se vingar.
Agrupou um bom numero de colegas e na espinha mole atacou os
seguranças, que não puderam reagir de imediato ao assalto. Os jornaleiros
que conseguiram essa façanha correram, mas não se esconderam, e nem
puderam fugir rapidamente porque as Kombis ainda estavam paradas; alguns
foram espertos, como a própria garota, que fugiu tomando de carona um
ônibus que passava no momento, os comparsas foram perseguidos por um
grupo de seguranças que se formou, aos gritos de “foi aquele ali!”. Acusaram
até os que não tiveram haver com o caso, e os gritos geravam ecos em meio
as perseguições. Chegou ao ponto de todos os vendedores presentes serem
discriminados, o que acarretou um tumulto generalizado na frente do edifício
que no passado foi símbolo de riqueza e poder.
Eu, apavorado com a situação, procurava algum tipo de abrigo naquele mar
de violência humana, sempre seguido de perto por Basu; fazíamos parte do
grupo que tentava se defender. Os seguranças que foram agredidos também
já perseguiam os vendedores, como estava difícil de encontrar os verdadeiros
agressores (primeiro porque eles nem sabiam quais eram na verdade, e
segundo porque o tumulto estava demais) eles iam batendo em quem visse
pela frente. Eram muitos os fardados, tanto dum lado quanto do outro.
As kombis iam saindo e deixando inúmeros vendedores para trás; os mais
fortes, que tiveram a sorte de entrar primeiro, foram embora, os demais,
salve-se quem puder.
O tumulto estava intenso, agora não eram apenas os fardados da
“segurança” que batiam; os fardados das vendagens, armados de pau e pedra,
tiravam sangue de muita gente também. O conflito fervia e aumentava;
chegavam cada vez mais adeptos dos dois lados pois os vendedores também
adquiriam facilmente as suas armas, até mais fácil que os “seguranças”.
Parecia que toda a elite de jornaleiros estava no local, dos diversos jornais,
das diversas distribuidoras. O exército dos seguranças começava a perder
espaço, estavam ficando acuados, os jornaleiros eram violentos em suas
pancadas e fiéis aos seus companheiros.
246
O Jornaleiro
Eu e Basu estávamos perdidos dentro daquela violência toda, não podíamos
fugir pra lugar nenhum, porque onde fôssemos tinha um vigia pra ir de contra
a gente ou um vendedor nos forçando a ficar e lutar. Esta foi a nossa única
solução.
Lutávamos com força e com coragem, eu e meu inseparável companheiro; é
bem verdade que lutamos forçados, senão morreríamos. Protegíamos um ao
outro, costa com costa, assim era difícil nos abaterem. Espancava-nos
violentamente e revidávamos. A policia já havia chegado ao local e
aumentava a população dos seguranças; a situação dos jornaleiros se
complicava, eram carros e mais carros de policia engrossando o caldo da
parte adversária sem querer saber quem estava certo ou errado, quem
começou ou deixou de começar, e partiam com extrema violência pra cima
da gente. O que também teve presença garantida na festa foi a imprensa
estadual: jornais, rádios, revistas... Registravam tudo em seus mínimos
detalhes, não deixavam escapar nem uma cena sequer que lhes interessassem,
como por exemplo a queda de um jornaleiro ou o sangue que brotava da testa
de um policial; a convulsão de uma idosa que passava na hora errada e não
teve como sair da área do confronto...
Em meio a toda aquela tensão estávamos eu e Basu; era impossível fugir
daquela batalha sangrenta; combatíamos sem parar, com a força que brotava
da alma, até que chegou o cansaço. Procuramos fugir desesperados para um
abrigo que pudéssemos passar aquela tempestade.
Porrada se espalhava por todos os cantos, até dentro da fabrica do falido
gazeta; era gente rodando por cima dos carrões, muitos garotos pulavam nos
ônibus e faziam surfe no busu, tomavam de assalto os carros estacionados...
Basu e eu tentávamos embarcar em coisa parecida. Com muito esforço
conseguimos furar o bloqueio dos policiais que rodeava toda área do conflito,
corremos sem saber para onde, o importante era sair dali.
- Vamos Nico! Força! Vamos rápido! - Gritava meu companheiro, que há
essas alturas nem olhava mais pra trás, apenas corria, sem ao menos ter
certeza que eu estava ali para ouvi-lo -.
Este atleta que lhes escreve, como tinha menos pulmão, ia ficando cada vez
mais pra traz. Em alguns momentos o perdia de vista pelas curvas, mas o
247
Cristiano Sousa
pegava logo após. Ele disparado na frente e eu cansado o seguia, devagar,
quase parando, quando deveria fazer como um coelho que foge da raposa.
Corríamos sem parar até que nos deparamos com a realidade. Haviam
homens correndo atrás de nós; não deu pra perceber na primeira olhada, pois
foi apressada como o dono, apenas na segunda deu pra ver três fortes
fardados correndo loucamente na nossa direção, eram policiais que nos
seguiam. Basu estava bem a frente de mim mas percebeu meu grito
desesperado.
- Basu!
Deu uma rápida olhada e pode ver o perigo que rondava as nossas costas.
Os policiais não estavam tão próximos, mas também não estavam tão
distantes. A situação piorou. Quando demos por si estávamos na Tancredo
Neves.
Corríamos desesperados, sem rumo algum. Tomamos o Caminho das
Arvores adentro enlouquecidos, com a policia em nossa “cola``, quem via
aquela cena pensava que éramos ladrões sendo perseguidos. A distancia
encurtava cada vez mais, estavam quase me pegando, enquanto Basu era a
avestruz em pessoa.
Entramos num labirinto de mansões. Não havia como correr por mais
tempo, então o que fez Basu ? Tentou o golpe de mestre. No impulso da
correria o colega saltou por cima de um muro que dava pra um quintal, havia
lá dois enormes cães que começaram a latir pra ele, mas a policia estava
chegando. E aí ?
Não pude ver o qual escolheu porque fui fortemente atingido nas pernas por
um cassetete que me fez bater a cara no chão duro, a queda foi violenta; logo
em seguida um policial malhado me agarrou por trás e algemou. Neste
instante cortou os ares um acústico relâmpago, e bem conhecido dos meus
ouvidos. Foi um tiro.
Á medida que os braços do malhado iam me levantando, uma cena horrível
passou pelos meus olhos. Basu não teve tempo de fazer a sua escolha,
fizeram por ele. Nem policia e nem cães. O seu destino foi o fim, e o meu,
desconheci
248
O Jornaleiro
*
*
*
A rebelião havia acabado. Muitos jornaleiros foram presos. Fui retirado da
delegacia pelas mãos do meu pai, que suou pra provar que eu não era
nenhum vagabundo. Me seguraram durante três dias.
No caminho de volta pra casa, o meu velho se mostrava bastante agoniado,
eram nove horas da manhã, eu tive o bom censo de tentar acalmá-lo.
- Pai. O senhor ta sentindo alguma coisa?
- Não, eu tô bem! - afirmou o coroa, que estava de ressaca -.
Como ele se dizia bem (para a cuca do papai aquele estado era normal) eu
pensava em uma maneira de explicar o que realmente aconteceu aos pais de
Basu. A estas alturas o companheiro já devia estar sete palmos debaixo do
chão e eu nem pude comparecer ao enterro. Com toda a certeza a história que
lhes foi contada foi dissimulada pela policia e eu devia estar sendo visto
como o vilão.
A figura do meu velho também se desvirtuou ao deparar-se na presença de
um bar. Mudou o curso e entrou.
Segui sozinho e Deus pra casa; todos me olhavam diferente pelo caminho,
até mesmo pessoas que gostavam de mim. Foi um dos meus colegas da rua
(tímido coitado) que me chamou a parte; não entendi o que ele queria dizer
com esta frase:
- Nico, eu confio em você. Eu sei que não seria capaz de tal coisa. Tome,
cuide bem de sua mãe, ela ta sofrendo muito pelos filhos. E me entregou
umas folhas pra fazer chá pra mainha. Confesso que foram frases
enigmáticas. Apenas me deixou a certeza de que fui difamado na rua.
Deixei pra trás o magricela e segui adiante até chegar em casa. A porta
estava aberta, via-se movimento de vizinhos dentro. Aproximei-me e entrei.
- Mãe!
Estava sentada no sofá sendo consolada pela dona Verônica e por outros
vizinhos como a mãe do cara de boi e Minha Avó. A primeira coisa que veio
a cabeça foi a minha fama que rolava solta pela rua.
249
Cristiano Sousa
- Mãe! Eu sei que tão falando mal de mim por aí, mas eu juro que não fiz
nada. - Supliquei-lhe, ajoelhando e pedindo que pelos menos ela me desse
ouvidos. Pelo menos ela!
Não me olhou com desgosto e sim com ternura, esta que só se vê em olhares
maternos. Tocou as suas belíssimas mãos em minha assustada face pra me
acalmar, e com um grito de terror disse esta frase.
- Faz três dias que eu morri, e fui enterrada ontem.
- Quê?
Fiquei hipnotizado. Não saiu de minha cabeça idéia alguma que me fizesse
entender o que queria anunciar. Quem clareou minha mente foi a Minha Avó,
com todo o esforço de sua voz:
- Nico, querido; sua irmã, a Sula. Ela... Morreu.
250
O Jornaleiro
XXIII - A PERSEGUIÇÃO
O
calor dos tempos quentes em plena época de frio na Bahia não
amenizava o efeito do coração de gelo que batia acanhado dentro do
meu peito. A noite fazia sua parte, estava como eu, fria e escura,
muito escura, de céu sem estrelas onde as nuvens dançavam uma linda
seresta de bêbados. Mais escuro que a noite só o meu pensar; era inútil forçar
a minha imaginação navegar em outra coisa, pois queria enxergar uma figura
naquele céu nebuloso. A imagem da caçula.
Eu o contemplava do quintal da minha casa, o único lugar que era possível
me encontrar sozinho por alguns instantes preciosos. Era muito lindo poder
ver a minha irmã bailando, não sei se de angustia ou de alegria, quis acreditar
que a segunda opção, por sinal, era como eu queria imaginá-la naquele meu
instante de agonia. Contrastando comigo, queria vê-la bem alegre. Houvesse
o que houver, não importasse o meu estado físico-emocional e nem o de
ninguém, se ela estivesse contente lá nos céus eu também estaria aqui na
terra. Qualquer dia nos veremos novamente Sula, a eterna caçula, a minha
eterna irmã.
Era noite fria no dia em que fiquei sabendo do acontecimento mais triste da
minha vida, minha curtíssima vida. Estava completamente abatido. Os
vizinhos que se encontravam na sala me contaram o acontecido por alto
porque mainha e dona Verônica não tinham ânimo pra dizer uma palavra
sequer, deu pra entender apenas que a Sula tinha desmaiado logo após ter
saído da emergência do Roberto Santos, voltou ao mesmo local carregada por
minha mãe, enquanto Camile, que também tinha desmaiado, foi levada por
desconhecidos a maternidade desse mesmo hospital; segundo as palestrantes
não houve jeito para a minha pequenina irmã, os médicos que antes haviam
acusado apenas uma gripe, agora acusavam Epilepsia; algumas das
contadoras que estavam presentes chegaram a afirmar que houve um ataque
muito forte, uma convulsão fatal, e, se a doença fosse descoberta antes
poderia ser controlada. Com todas essas conversas desencontradas, nada foi
feito para punir os incompetentes médicos.
O estado de Camile era normal; o do bebê (já havia nascido) este era grave.
Dona Verônica, que acompanhou o pessoal que carregou a grávida, disse à
mãe de “cara de boi” que Camile e ela tiveram que esperar praticamente um
251
Cristiano Sousa
dia inteiro para serem atendidas, e mesmo assim no corredor do hospital
porque faltavam leitos na maternidade. Só depois, quando minha irmã gritava
muito e o neném botava a cabeça p‟ra fora é que levaram-na a um leito
improvisado.
Camile e o bebê estavam ainda no hospital, este porém, na incubadora,
precisava de alguns dias mais para ficar completo o guri... Sim!...Foi
menino!...Dona Verônica acrescentou mais, disse que Camile desmaiou por
ver a irmã caída. Está nesta explicação o motivo do bebê sair
prematuramente.
Minha velha realmente precisava de consolo, muito consolo, o que tinha a
vontade; mas não era só ela, eu, meu pai, Tovinho, todos precisávamos de
consolo. Ao contrario de mainha, a nós faltava.
Não queria voltar a sala naqueles momentos de angustia coletiva,
principalmente por não ter coragem de colocar os olhos em cima da mamãe,
coisa que só iria me fazer sofrer mais, foi por isso que pulei o portão dos
fundos da casa, era de madeira, baixinho e estava todo maltratado, quase
quebrado. A minha vontade era de fugir pra um lugar onde não houvesse a
dor e nem o sofrimento, um lugar onde a morte fosse apenas um pulo bem
alto aos céus, uma passagem para outro mundo, um mundo diferente onde
todos vivessem felizes para sempre. O Paraíso.
A maior distancia que consegui alcançar foi a do asfalto da frente de minha
casa; o motivo de eu ter encalhado no meio do caminho foi ter visto um
garotinho antes nunca filmado pelos meus olhos chegar voado em minha
casa, não tive tempo de me recostar comodamente porque o garoto foi saindo
como chegara, levando presa em suas mãos a de dona Verônica; tomaram o
caminho das casinhas adentro. Encostei rente a porta de casa e perguntei aos
circunstantes:
- O que foi? O que foi que aconteceu?
- Parece que ta tendo algum problema com o filho da dona Verônica. Respondeu-me uma vizinha -.
- Problema? ...Que tipo de problema?
- Sei não. Tem policia e o „escambau‟.
- Policia? Olha, não deixa mainha sair de casa. Ela sabe?
- Como não? O menino saiu alarmando por aqui!
252
O Jornaleiro
Corri até a residência da dona Verônica, estava querendo saber que assunto
era aquele de polícia por lá. Antes mesmo que pudesse avistar a casa,
passaram rente a mim, correndo de um lado a outro, policiais que
suspeitavam poder encontrar bandidos por toda a região das casinhas. E
podiam mesmo.
Cheguei próximo, mas não entrei, eles não deixaram.
- O que é que você quer, fazendo bagunça aqui ô pivete?
- Eu não tô bagunçando, não senhor. Eu só quero ver a minha „tia‟ que mora
aí dentro.
- Por acaso é aquela velha ali?
E apontou o nariz para dona Verônica, que acabava de sair chorando de
dentro de casa.
- É ela mesma! (Corri em sua direção). O que foi que aconteceu dona
Verônica?
- O meu filho!... Destruíram a minha casa toda.
- Mas porque isso?
- Eles disseram que tavam procurando o meu filho.
Então foi isso.
- Mas dona Verônica, o que ele fez? - Estava quase abraçado a boa senhora
quando fiz esta pergunta -.
Não me respondeu nada, apenas me olhou nos olhos com uma fisionomia de
plena raiva. A sua única resposta foi um gesto que veio de repente com muita
violência. Me deu um belo empurrão, faltou pouco pra que eu caísse dentro
do mato que fica em frente a sua casa. Vendo isto o tenente, ou sei lá que
diacho era, me fez levantar e voltar pra casa.
Foi o que aconteceu, voltei imediatamente pra Rua do Sapo. Achei
estranho... Estava diferente da que eu havia deixado há alguns minutos.
Estava...Vazia. De repente, um tiro. A rua, já bastante calma, desta vez não
deu um pio. Da frente de minha casa mainha gritava desesperadamente o
meu nome:
- Ô Nico! Ô Nico!...
253
Cristiano Sousa
Não me via, apesar de eu estar ali na rua. A velha olhava assustada para
ambos os lados na intenção de me encontrar, não precisou, encontrei-a.
- Você ta maluco menino? Entre logo pra dentro! Vamos
- O que foi mãe?
- Entre! - Gritou-me fazendo entrar -.
No interior da casa veio a explicação:
- Menino! Você ta maluco de ficar andando por ai, é?
- O que foi mainha? - Interroguei-a com espanto -.
- Os bandidos tão tudo rondando a rua.
Então era isso! Aconteceu mais uma vez na Rua do Sapo um toque de
recolher sem sinal algum. O motivo foi que grupos armados invadiram a rua
a procura de bandidos
da área. Isso acontecia quando qualquer pilantra metido com o que não
prestava trazia a violência para o local, outros vinham para matar ou para
engrossar a sua turma.
Logo após este alerta fiquei atento, portas e janelas fechadas em todas as
casas. Passaram-se minutos, horas até, e o movimento do lado de fora não
mostrava ter vida. Enquanto mainha se entocara na cozinha com medo do
que pudesse acontecer (ainda estava com algumas poucas acompanhantes
que não se arriscaram a correr para suas casas) eu e Tovinho fincávamos as
fuças na brecha da janela para ver o movimento, um em cada dez minutos. A
estas alturas a movimentação na casa da Dona Verônica aumentou ou
diminuiu; a policia não tinha encontrado o que procurava, com certeza, e
destruiu a casa da velha.
O bicho tava pegando mesmo era ali na rua. Ouvi tiros: um, dois, três,
vários de vez. Acontecia uma guerra em plena Rua do Sapo. Pela intensidade
dos tiros que ouvíamos notamos que estavam sendo usadas armas
pesadíssimas. Uma bala atravessou a porta de casa, Tovinho e eu ficamos
assustados e corremos pra engrossar a massa da cozinha.
- Mainha! Mainha! - Gritava o meu maninho. Pulou no colo da nossa mainha
como se estivesse ali o mais seguro dos abrigos -.
- Calma querido! Você ta nos braços de sua mainha! (Disse a coroa,
emocionada com tantas situações desagradáveis que aconteceram tão de
repente em nossas vidas) Fiquem aqui, não vão mais pra sala.
254
O Jornaleiro
O assombro foi generalizado na cozinha quando ouvimos bater na porta da
frente com extrema força. O momento era ainda de tensão, mas os tiros
diminuíram.
- Ninguém atende! - Falou a dona Ana do Sossego, preocupada com o seu
filho que estava no colégio.
- Mas como não? (Reclamei) O meu pai! Pode ser ele.
Mainha concordou, mas teve duvidas de que pudesse ser o meu velho, era
difícil que ele ficasse tão agitado bêbado, como parecia estar quem se
encontrava „pancadeando‟ a nossa porta.
Estávamos assustados, mas alguém tinha que se habilitar a abrir.
- Eu vou lá! - Indaguei com falsa coragem na face, estufando o peito como se
fosse enfrentar um grande e poderoso inimigo -.
Todo mundo me admirou naquele instante, me louvaram como herói,
disseram que queriam ser corajosos como eu, mas... depois que a zoeira
parasse. Minha mãe me acudiu, a única que realmente tinha coragem nos
sentimentos em meio aquela turma toda. Ela se opôs:
- Nada disso! (Puxou o meu braço) Quem vai abrir a porta sou eu, pode ficar
aqui mesmo Nicolau.
A admiração agora passou de filho para mãe. Todos a olhavam com
altíssimo respeito, era muita coragem para uma mulher só, enfrentar o que
vinha enfrentando e ainda por cima ter peito para encarar um suposto mal
feitor!
Foi e abriu, eu a segui até a sala contrariando a sua vontade. O vulto que
espancava a porta não esperou, e logo ao vê-la destrancada empurrou para
que abrisse mais rápido;
na sequência, sem que eu esperasse, pegou-me pelo braço.
- Nico, venha comigo! Rápido, não podemos perder tempo!
Era Bruno, em carne e osso, com um caldinho de pressa, que fazia com que
me puxasse com toda força pra fora de casa, se não fosse por mainha me
levaria. Então entrou.
- O que foi Bruno?
255
Cristiano Sousa
Minha mãe fez essa pergunta com muita ansiedade; o cara parecia
transtornado com alguma coisa séria, e não seria difícil adivinhar o que era.
- Eu não posso explicar nada agora dona Jandira! O seu filho sabe do que se
trata e é por isso que ele tem que fugir daqui comigo.
- Fugir? Que fugir que nada! Meu filho não é ladrão não! Gritou ao rapaz.
Se era o que eu imaginava nós tínhamos que sair dali o mais rápido
possível. A confirmação não tardou a vir:
- Nico, você é meu cúmplice. Você tem que vir comigo senão...
- A policia?
- E os caras também! Tão atrás de mim, e se você ficar eles não vão querer
saber.
- Mais afinal, o que é? - Perguntou minha mãe, angustiada com aquela
situação misteriosa -.
Não perdemos mais tempo. Pulei nos braços da minha velha e taquei-lhe
duas beijocas bem gostosas, em ambos os lados da face.
- Mainha querida, não me pergunte o que ta acontecendo, apenas saiba que te
amo muito.
Foram estas as minhas palavras para a pessoa mais amada por meu coração.
Quem sabe as ultimas!
Corremos na direção da cozinha, antes que puséssemos os pés nesta ele
entrou no
quarto que era das meninas, agora nenhuma das duas habitava mais ali, saiu
de lá com uma calibre 38 nas mãos.
- Onde foi que você achou isso aí, rapaz?
- Camile me disse onde podia achar se precisasse.
- Camile?
- Sim, ela guardava esses brinquedinhos pra mim aqui nesta casa há tempos,
ninguém desconfiaria...
Bom! Aquele era outro assunto. O mais importante agora era fugir.
Entramos cozinha adentro e saímos pela porta dos fundos. Não entendi a
opção, explicou-me Bruno:
256
O Jornaleiro
- A gente ia sair pela frente mas agora ta perigoso. Você deve conhecer
alguma saída por aqui, não?
- Vem!
Mostrei-lhe um lugar que pouca gente conhecia, um grande muro de uma
casa vizinha. Pulando este muro pegaríamos um curto caminho para outras
saídas que levam as casinhas. Foi o que fizemos, seguimos pelo quintal de
minha casa, pulamos este muro vizinho, fugimos pelo tal caminho. Uma das
coisas que sempre favorecem
os bandidos em toda a Salvador são os emaranhados de casas; labirintos
piores que os de Canudos e que dificultam a ação da policia. Eu fazia desta
vez o papel de bandido. Vivia o meu drama.
*
*
*
Não se passaram cinco minutos de fuga do meu filho quando bateram
novamente na minha porta. Destranquei, puxei a maçaneta; agora não
empurraram loucamente.
- Senhora! (cumprimentou-me). É a dona Jandira?
- Quem é o senhor? Sou eu mesma.
- Posso tomar o seu tempo por instantes? - Entrem! Gritou em voz alta e clara
o homem -.
De repente invadiram, sem permissão alguma, homens fortemente armados
a minha humilde casa.
- Desculpe invadir assim (continuou o homem). Eu sou Comandante da
Policia Militar, estamos procurando o seu filho, o Nicolau, não é esse o nome
dele?
- Sim! O que tem o meu filho? O que ele fez pra vocês entrarem na minha
casa assim, bem educadamente.
Veio um jovem soldado e avisou que Nico não havia sido encontrado. Foi
menos de um minuto de procura.
- Mas o que foi que o meu filho fez pelo amor de Deus?
O comandante, que já havia virado as costas pra sair, parou um instante.
257
Cristiano Sousa
- Senhora, o seu filho foi testemunha de um assalto a banco na Pituba a
meses atrás. Quando preso ele alegou não conhecer os bandidos, mas foi
descoberto a pouco tempo que um dos fugitivos é nada mais que o seu genro.
O outro ainda vamos descobrir.
- Meu filho? Não!
*
*
*
Verdade. Eu mesmo ajudei os dois a fugir. Acho difícil apenas que
descubram o segundo fugitivo porque este estava dentro do carro desde o
inicio do assalto, e foi mais por este que os ajudei.
Em meio a troca de balas na Manoel Dias os policiais levavam imensa
vantagem sobre os assaltantes, Bruno poderia ser pego se eu não me
oferecesse pra ser o seu refém, ainda dentro da agencia.
Bruno e eu fugíamos da incerteza e da desconfiança, com isso um roubo se
torna coisa banal. Conhecíamos como ninguém aqueles lugares por onde
passávamos. Entramos e saíamos em imóveis, becos, nos escondíamos em
lares alheios; tudo isso com a maior normalidade. Estávamos em casa! Se
saíssemos do Beirú seria perigoso e mais fácil de sermos pegos. O pior de
tudo aquilo era que não só a policia, mas os bandidos da área nos perseguiam
também, estes últimos, exclusivamente a Bruno.
Continuávamos fugindo, até que cansamos. Ninguém é de ferro. Não
havia mais pra onde correr.
- E agora? Como vamos sair daqui?
- Calma rapaz! Vamos ver um jeito.
Estávamos neste instante olhando por uma brecha da janela de uma casa de
pessoas conhecidas do Bruno, no quarto, de onde olhávamos para fora, vendo
os policiais passarem na rua em frente, a nossa procura. Como todas as casas
da baixada estavam na mesma situação, fechadas, a chance dos policiais
escolherem aquela para uma eventual abordagem eram poucas. Tivemos
sorte, pois, apesar dela ser de malandro, não era “visada” pela policia.
A procura na área dispersou-se.
258
O Jornaleiro
- Vamos sair agora? - Perguntei a Bruno -.
- Você ta com pressa? - Respondeu-me zangado -.
O cara mantinha sentinela na brecha da janela, olhando atentamente para o
lado de fora, eu por outro lado, estava cansado de ficar de cocas com a cara
para fora. Sentei-me um pouco na cama.
- Não! Eu não estou com pressa não! Afinal de contas, pressa pra quê? Eu
não tenho aonde ir!
Passadas mais uma hora e poucos minutos, Bruno quis sair.
- Nico. Vamos sair agora.
- Pra onde? Todos os lugares que conhecemos ta cercado.
- Vamos tentar chegar na paralela descendo aqui por baixo. E apontava para
o lado da grande avenida o seu perigoso braço.
- Então vamos.
E saímos disfarçadamente e rápido na direção desejada. Para chegar na
Paralela teríamos que descer mais um pouquinho uma rua das casinhas perto
de onde estávamos, subir pela rota que sai no Centro Administrativo da
Bahia e
em seguida pegar a avenida.
Ainda estávamos na primeira parte do roteiro, foi quando dei uma olhadinha
pra trás.
- Bruno! São “os home”!
Bruno nem quis comprovar se a noticia era verdadeira ou não, o que fez foi
partir adoidado ladeira abaixo, eu não pude esperar tempo ruim e fui atrás do
cara. Parecia ser uma trama a que a policia fez, deixou-nos sair de onde
estávamos e mostrar as caras para depois virem atrás da gente, se não fosse
assim não nos achariam tão rápido.
Como acontecera ao meu inesquecível amigo Basu, Bruno era outro que
levava extrema vantagem sobre mim no físico e por isso abriu extrema
vantagem na corrida. Os policiais não estavam distantes, vieram em dupla;
corriam com vontade (deduzo) a gritos e tiros pra matar. Era mais provável
que um pegasse em mim, pois estava atrás do Bruno, e, portanto, mais
próximo deles. Mais próximo de morrer.
259
Cristiano Sousa
Íamos driblando as casas pequeninas, estas que em certas ocasiões nos
protegeram das balas. Estávamos próximos da segunda parte do roteiro para a
Paralela (a tal “rota” em que eu havia afamado). Era uma grande ladeira
cercada de mato pelos dois lados, ligava as casinhas ao Centro
Administrativo. Haviam outras passagens, talvez até mais usadas, mas esta
era a mais próxima de nós.
Antes de subir na „ladeirona‟ tínhamos que atravessar um rio, que tinha uma
ponte longa e fina. O riozinho tinha as suas nascentes nos encanamentos das
casas existentes no local. Bruno não quis saber de obstáculos e pulou a tal
ponte de madeira (um pedaço de pau podre para ser mais exato). Neste salto
o malandro ainda pisou o pé no riozinho mas conseguiu sair rapidamente. Eu
já disse, não tinha o mesmo fôlego para pular, mesmo com o impulso da
carreira, se o fizesse com certeza atolaria no rio e ficaria por lá só esperando
a policia, assim sendo, tive que parar e perder tempo tentando me equilibrar.
Eu estava quase na metade da ponte quando avistei o Bruno longe, sendo
rendido por um policial que o tinha pego de surpresa.
- Pronto! E agora meu Deus? - Falei desesperado -.
Quando penso que não, algo mais trágico acontece.
- Ah!...Ai...Ai...
E parou... Estes foram gritos de dor de Bruno quando baleado covardemente
com vários tiros. Caiu rugindo e embolando abaixo até chegar morto a
margem do “rio” das casinhas. A seguir desceu outro corpo também rolando
pelo chão, indo parar junto ao de Bruno, foi o do policial que o havia
rendido. Pude observar relativamente um outro corpo, desta vez vivo, no
escuro, e vestindo apenas um bermudão jeans, entrando no matagal da
ladeira, não sei se foi policia ou ladrão, sei apenas, pelas características, que
foi rixa.
Bom, agora sim, a minha vez. Estava convicto de que era chegado a minha
hora de morrer. Os policiais já estavam em condições de tiro e parecia isso
mesmo que eles iam fazer; eu ainda não havia conseguido sair da ponte, me
postava exatamente na
metade dela; não tive certeza, foi algo que chegou e morou em minha cabeça
de repente, tão de repente quanto um tiro que me tomara o braço esquerdo e
260
O Jornaleiro
germinou a sua dor em toda a extensão do meu corpo. Vi a morte de perto,
chegando devagarzinho, não pensei mais. Caí no rio.
261
Cristiano Sousa
XXIV - UM PRESENTE PARA JANDIRA
N
o dia seguinte eu estava em casa, ainda abatida com todos os últimos
acontecimentos, não conseguia pensar em fazer nada, a minha cabeça
fervia de preocupação. Nico, onde estava, se é que ainda estava em
algum lugar sobre a superfície da terra; Camile, não pude ter noticias,
permanecia no hospital com o seu filhinho; Carlão, será que se perdeu no
caminho de casa?
Desconfortável sobre o sofá, o único que permaneceu imune as dores do
mundo foi meu caçula Tovo, assistindo sem interesses maiores o jornal da
meia-noite. O sono, até este, seguiu o exemplo dos outros e me deixou. Foi
com esta reportagem que despertei completamente:
“Tiroteio entre policia e bandidos no bairro do Beiru ontem a noite deixou
seis mortos, entre estes, dois policiais. A PM estava a procura de um grupo
de bandidos que haviam assaltado a agencia de um banco na Pituba a quase
um ano atrás, e nesta busca se debateu com um confronto entre duas
Gangues rivais do mesmo bairro. O nome dos mortos são Manoel de ... e
João... Que eram os dois policiais; os assaltantes se chamavam Rodrigo,
vulgo “bichão”, Moises, o “lalau”. Os outros dois ainda não se sabe,
suspeita-se que um deles possa ser Nicolau de Albuquerque Andrade, vulgo
“Nico”.
- Não!
Foi a gota d‟agua pro meu coração. Primeiro a Sula e agora o Nico, meu
Deus, quem seria o próximo? Era muito castigo pra uma pobre desgraçada.
- Espera um pouquinho aqui filhinho -Tovinho acabara de pegar no sono,
mesmo assim lhe disse isso -.
A desgraçada noticia fluiu arrepiante dentro do meu peito de mãe, era
impossível aguentar tanta dor. Assim que levantei do sofá fui até a cozinha,
tive sede, andei serenamente até a geladeira, abri e... apenas a olhei, os litros
d‟água estavam lá, mas não me atraíram, apesar de ainda continuar sedenta;
fui num cesto de frutas, murcho como as próprias, estavam ali apenas duas
pequeninas laranjas e algumas poucas cenourinhas, olhei as laranjas, não as
peguei, mas continuava com sede; fui na pia que me atraiu, tinha lá uma
262
O Jornaleiro
torneira pingando vermes, encostei, mais ainda, abri, ela jorrou água
contaminada. Tive sede, mas não bebi vermes. A cozinha estava vazia, como
toda a casa, como todo meu corpo. Uma coisa iluminou a minha mente
naquele momento de escuridão profunda. Havia um faqueiro sobre a pia,
estavam lá todos os mantimentos usados por uma dona de casa que se preza:
colheres, garfos, facas... Facas! Claro!... Faqueiro tem facas! Aproximei e
tive sede; observei minuciosamente as peças, tinha a que eu precisava, uma
marca japonesa muito famosa, a GINSUTO, era grande e formosa. Eu estava
com sede. Foi de repente que percebi meus dedos destros envolvendo o cabo
de madeira da japonesa. Eu estava com sede, muita sede. Levantei a afiada
estrangeira na altura da cabeça, segurando firmemente com as duas mãos em
seu cabo e apontando a lâmina extravagante na direção da barriga, onde havia
gerado todas as minhas crias...
- Mãe!...
Este grito me fez despertar, parecia ter vindo do além, talvez fosse o Nico
me chamando para fazer o seu café porque iria sair para o jornal, ou quem
sabe a Sula me acordando para mais um dia de vendagem na praia. Não foi
nenhum dos dois, apenas Tovinho me gritando do sofá.
- Mainha! Tem gente batendo na porta!
Pus novamente a faca no local em que estivera antes. A sede passou.
Corri ligeirinho à sala, Tovinho levantou do sofá pra ver quem era.
- Não Tovo! - Gritei baixinho ao menino, que permanecia com a cara
sonolenta Vá dormir, vá! Deite em minha cama.
E o menino foi. Nisto, caminhei até a porta da sala ver pra quem batia, se é
que batiam mesmo! Mas primeiro, uma pergunta antes de abrir:
- Quem é?
Não responderam, então gritei mais uma vez. E nada.
“Será que o Tovo não estava sonhando?” Pensei. Não! ele não estava! Assim
que desisti de perguntar bateram de novo. Agora sim eu ouvi.
- Quem tá aí?
E novamente não disseram nada do outro lado.
- Olha! Se não responderam eu não vou abrir, hein!
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Cristiano Sousa
A pessoa insistia em fazer suspense e eu já estava agoniada com a
brincadeirinha de mau gosto.
- Quem é? Fala!
Não falaram nada, para acabar com o suspense só havia uma maneira: eu
abrir a porta, do contrário, continuariam batendo pra me irritar. Pus a mão no
trinco como antes havia posto na faca da cozinha, com vontade, muita
vontade. Destranquei a porta; fui puxando aos pouquinhos. De repente me
aparece um vulto desconhecido saído do nada.
- Quem é você? - Perguntei ao vulto (era uma mulher).
- Dona Jandira?
- Sou eu.
- Me acompanhe, faz favor.
- Porque? Quem é a senhora?
- Venha comigo senhora, tenho uma coisa pra te mostrar. É importante.
Se era importante eu tinha que saber do que se tratava. Saí, tranquei a porta
e aquelas altas horas fui abusar a minha amiga Ana do Sossego, pedindo pra
que olhasse a casa e guardasse a chave pra mim.
- Desculpe Sossego, mas é importante o que vou fazer querida!
- Não esquenta não, menina. Vai! - Exclamou com a boca suja da baba do
sono, a minha vizinha -.
Assim, acompanhei a mulher misteriosa.
Pegamos o caminho das casinhas, andamos bastante, passando pelo final de
linha e rua adjacentes até chegarmos numa discreta casa, como todas do
local. Bom! Não acho que seja sensato descrevê-la, pode ser perigoso.
- Vamos! - Me convidou para entrar -.
Abriu logo o jogo.
- A senhora não me conhece, o meu nome é Almira e fui na sua casa a pedido
de uma pessoa.
- Pessoa?... Quem?... Que pessoa?...
- Venha.
Levou-me a um quartinho embutido.
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O Jornaleiro
- Aqui está a pessoa que quer vê você.
Fitamo-nos um ao outro de súbito. Não pudemos conter a emoção. A pessoa
estava sentada e assim que me viu voou pra cima de mim como uma fera
com fome, fome de amor e saudades, fome de paz e leveza de consciência
por saber que tudo estava bem; foi o que senti também, tanto que não pude
me conter.
- Nico, meu filho!
Abraçamo-nos e beijamo-nos num período de tempo incomensurável.
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Cristiano Sousa
XXV - EM ALGUM LUGAR NO FUTURO
O
lha o jornal! Jornal!... É o melhor jornal do Norte Nordeste!
Era o novo jornal que eu estava vendendo, este que chamei de
“melhor do Norte Nordeste”; não era tão bom e nem tinha o poder de saída
do Gazeta, mas o povo já tava começando a se acostumar com ele, com o
novo „primeiro lugar‟. Mudei também de ponto, coisa que não é fácil, vendia
na Pituba, passei pra Barra; aqui pra nós, consegui uma sinaleira ótima perto
do farol, sai jornal que é uma beleza!
Porém!... Também com este tive decepções. Fui forçado a perdê-lo por
causa de intrigas com colegas de vendagem, o dono da distribuidora me
colocou na rodoviária, lugar que tem muitos matracas. Então decidi procurar
outra coisa pra fazer, só que, por enquanto, fiquei vendendo jornais
Foi a maior sorte de minha vida ter conseguido escapar da policia, contei a
mainha o que aconteceu, como consegui sair vivo daquela caçada:
“O rio por onde escapei não me é estranho, já brinquei varias vezes por ali.
A dona Almira é a mãe de um amigo meu. Quando a policia atirou fingi que
fui atingido e deixei o meu corpo cair nele, eu sabia que era fundo e foi
então que „nadei‟ na direção desta casa, uma das que ficam em sua beira e
que jogam fezes nele. Chamei o meu colega assim que pulei fora e ele me
escondeu até a poeira baixar; sorte minha que a casa tem porta de fundo,
que foi por onde entrei. A movimentação da policia tava forte e podiam
perceber se eu fosse pela frente. Me procuraram a morrer, mas não me
encontraram. Quando a coisa acalmou mais foi que pedi a dona Almira que
fosse chamar a senhora, expliquei direitinho a ela como era a casa, em que
rua, e pronto! Foi assim.”
Passamos o restante da noite conservados na casa da dona Almira até chegar
a manhã. Com o sol á postos a minha velha foi em casa, cuidou do Tovo, o
deixou novamente aos olhos da dona Ana do Sossego e voltou pra me levar a
um lugar desconhecido até as coisas acalmarem, fora do Beiru
Bom pessoal. Hoje, por pura sorte, estou acabando de escrever este livro,
não posso dizer o meu endereço porque ainda nestes tempos bons e maus,
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O Jornaleiro
mocinhos e bandidos me perseguem por estes becos e ruas que conservam as
raças e as crenças baianas, só posso dizer que continuei morando – e talvez
ainda more, quem sabe – na humilde, mas, honesta casinha do Arenoso do
Beiru. Tive tempo ainda de receber noticias boas neste lugar, como por
exemplo, a fundação da nova distribuidora de jornais de Bira, mais moderna
e mais bonita, tendo como jornal principal um novo de um político baiano
chamado Marcelo Alçapar e que ganhava espaço dia a dia no ranking dos
melhores da Bahia. Tive também noticias ruins como a não resistência
daquele que seria o meu primeiro sobrinho, faleceu coitado; Camile voltou
pra casa sozinha e andando, era ela quem estava esperando os assaltantes da
agência bancária na Pituba, Deus não permitiu que descobrissem isso; foi ela
o principal motivo por eu inventar histórias sem nexo pra despistar a policia e
por ela sou agora um marginal fugitivo de tudo e de todos, mas não me
arrependo do que fiz. Tovinho agora virou Tovão, tá grande o moleque e
trabalhando, isso é importante, trabalhar pra no futuro ser alguém. Eu já sou
adulto, mas continuo morando com a velha mãe, esta que sempre me acolheu
nos momentos mais difíceis de minha vida, e que sempre amou os filhos com
o coração na ponta da chuteira.
- Não é verdade isso, mãe?
- Você esta coberto de razão, meu filho. Amei não! Amo os meus filhos com
toda a força que emana de dentro de mim.
- Não disse pessoal? Esta mãe é de ouro!
- Só de ouro?
- Mais valiosa que ouro, eu quis dizer.
- Ah, Bom!... Nico!... Não escreva mais o que eu digo! Ela falou com dengo
isso, viu pessoal!
- Não abrace o meu pescoço assim, forte, não mãe. Eu posso cair da cadeira...
- Que nada. Eu só quero te dar um beijo, porque vou sair. Vou na casa de
Camile, lá em São Caetano, e talvez demore. É o meu segundo netinho, e
macho deste vez!
- E a menina? Tá com três aninhos já, né?
- É!... Diga ao Tovo que deixei janta na geladeira, eu fazia assim com o pai
de vocês quando chegava tarde, só que agora quem deve tá fazendo isso é a
outra, talvez aquela fingida até dê comidinha na boca dele.
- A dona Ana do Sossego é mãe de um ótimo colega meu e sempre quebrou o
nosso galho quando saíamos e precisávamos deixa-la tomando conta dos
menores.
- Eu sei, mas me apunhalou pelas costas.
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- Vamos esquecer isso, tá?
- Tá bom! Então dá um beijão aqui na sua velha mãe, que eu já vou sair.
- Olha, diz A Gorete que é pra me encontrar no lugar de sempre...
- Iiii! Tá bom! Eu ligo pra casa dela. Agora vem nas minhas bochechas que
eu vou na tua.
- Biquinho!
“CHUAC!”
Fim
Salvador, 24 de agosto de 1989
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