movimentos em defesa da cidadania, direitos
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ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – MOVIMENTOS EM DEFESA DA CIDADANIA, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA CANOAS, 2015 980 O DESAFIO DOS HAITIANOS PARA A SUA INSERÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA E AS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS Cristiane Feldmann Dutra1, Suely Marisco Gayer2, Anderson Von Heimburg3, RESUMO: O objetivo é apresentar os obstáculos, que a população do Haiti, encontram após a migração para o Brasil, frente à dificuldade de aprender a língua portuguesa. Os migrantes encontram situações de violações dos direitos humanos. Propõe-se à uma reflexão crítica acerca da sociedade que estamos criando, tendente ao aumento destas migrações por todo o globo terrestre. Utilizou-se o método histórico-dedutivo, e o procedimento da pesquisa foi baseado em material bibliográfico. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Haitianos; Desafios; Democracia. 1 INTRODUÇÃO O artigo justifica-se na demonstração da problemática que surge da ausência de proteção jurídica internacional do refugiado ambiental. 1 Mestre em Direito com ênfase em direitos humanos, do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho na Faculdade do Instituto de Desenvolvimento (IDC), Especialista em Direito Civil e Processual Civil na Faculdade do Instituto de Desenvolvimento (IDC).Graduada em Direito na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Pesquisadora do grupo de Ciência Penal Contemporânea (UFRGS).Contato: [email protected] 2 Graduada em Direito pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí em 2001. Pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura, em 2002. Mestre pelo curso de Direitos Humanos da UniRitter - Laureate International Universities. Bolsista da Capes. Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da UniRitter. Contato: [email protected] 3 Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul . Mestre em Direito pela UniRitter Laureate International Universities . Possui experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito Internacional e Direito Penal Militar. Graduado pela Academia Militar das Agulhas Negra com Especialização pela EsAO . Professor de Teoria Geral do Estado e da Constituição, Direito Internacional e Oratória da Universidade de Santa Cruz do Sul . Professor de Direitos Humanos, Legislação Penal Militar e Legislação Militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Porto Alegre. Assessor Jurídico do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Porto Alegre. Contato: [email protected] 981 O primeiro conceito relativo às migrações ambientais foi inicialmente o de refugiados ecológicos cunhado por Lester Brown (1976) do World Watch Institute, mas a primeira definição ficou por conta de El-Hinnawi (1985), contida em um relatório produzido para a NEP.4 Naquele relatório cita-se que os refugiados ambientais são: aquelas pessoas que foram forçadas a deixar suas casas, temporária ou permanentemente, por causa de uma evidente alteração ambiental (natural e/ou desencadeada por atividade humana) que comprometeu 5 suas existências e/ou afetou seriamente a qualidade de suas vidas . Neste primeiro momento a definição não estabelece se a migração acontece internamente (dentro do país de origem) ou entre fronteiras internacionais, assim como omite outras variáveis capazes de dar força à ocorrência da migração. Neste meio tempo, Myers, estudioso do tema, produziu textos que servem de norte para as pesquisas e relatórios acadêmicos, políticos e órgãos que buscam amparar os indivíduos sujeitos às consequências deste problema mundial.6 A migração é uma estratégia de enfrentamento empregada por muitas comunidades rurais. Migração associada com o declínio ambiental é geralmente caracterizada por movimentos de curta distância e de longo prazo. O UNRIC informa que existem pesquisas com previsões em torno de 250 mil refugiados ambientais no ano de 20507. No entanto, grupos de migrantes são mais vulneráveis a uma série de fatores de estresse, incluindo os impactos da mudança climática e falta de acesso a cuidados de saúde.8 As definições até aqui citadas fazem referência aos desastres ambientais repentinos e aos que paulatinamente são capazes de modificar o meio ambiente. Todos são riscos ou ameaças ambientais advindas dos desastres, que levam de 4 5 6 7 8 GEMENNE, Francois et al. Development, Environment and Migration: Analysis of Linkages and. Disponível em:<http://www.stojanov.org/>. Acesso em: 26 set. 2014. BIERMANN, Frank; BOAS, Ingrid. Preparing for a Warmer World: Towards a Global Governance System to Protect Climate Refugees. Global Environmental Politics, v. 10, n. 1. The MIT Press, February 2010, p. 60-88 (Article). Disponível em: <http://www.bupedu.com/>. Acesso em: 26 set. 2014. IOM. Migration, Environment and Climate Change. 2009, p. 264. Disponível em:<http://www.cefeb.org/>. Acesso em: 26 set. 2014. UNRIC. Centro Regional de Informações das Nações Unidas. Disponível em :< http://www.unric.org/pt/desenvolvimento-sustentavel/21341>. Acesso em: 26 set. 2014. MATTAR, Marina Rocchi Martins. Migrações Ambientais, Direitos Humanos e o Caso dos Pequenos Países Insulares. Disponível em:<http://www.iri.usp.br/documentos/>. Acesso em: 26 set. 2014. 982 forma obrigatória as pessoas a deslocarem-se. Sabe-se que os eventos ambientais podem ter sua origem em causas naturais ou pela ação humana e sua influência na degradação dos meios de sobrevivência. A questão dos refugiados ambientais é tema de preocupação desde o início do século XXI. Tal preocupação reside, dentre outros, nos aspectos jurídicos, com foco nas questões humanitárias, buscando uma forma de disciplinar juridicamente este tema, bem como atribuir responsabilidades voltadas à proteção e assistência ao refugiado. As definições jurídicas para refugiados ambientais importam em muito, pois estas ajudam a determinar em que plano de proteção eles se encontram. Em mais de 60 anos as Nações Unidas têm usado o conceito de refugiado que a Convenção de 1951 contemplava.9 Em seu artigo 1º A, está presente uma definição de refugiado, reconhecida como clássica, que abarcava qualquer pessoa: [...] que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação a certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do seu país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não 10 queira voltar[...] De início destaca-se que os Refugiados Ambientais não estão enquadrados na definição positivada na Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado de 1951. Nesse sentido, o conceito de refugiado precisa ser ampliado, para que essa nova categoria tenha a proteção merecida. O atual conceito de refugiado não abrange a nova classe de refugiados, pois os motivos que os levaram a buscar refúgio não são perseguições relacionadas à raça, religião ou nacionalidade. Divergem as opiniões quanto à classificação dos refugiados ambientais e mesmo a uma discussão sobre sua existência no cenário jurídico. 9 Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados –ACNUR . Disponível em: <http://http://www.cidadevirtual.pt/>. Acesso em: 10 out. 2014. p. 61. 10 Ibidem. 983 Bates e Adamo são a favor da categoria de refugiados ambientais, afirmando que neste conceito incluem-se todos que se deslocam por motivos ambientais.11 Pois bem, os cidadãos haitianos começaram a aportar em grande quantidade no Brasil a partir de 2010, forçando uma pauta do Estado, sobre o tema imigração. É evidente que tal não se sucedeu instantaneamente, nem por iniciativa do Estado, e sim por uma iniciativa da sociedade civil, cuja ênfase foi das pastorais sociais e ONGs. Estas constituem uma rede humanitária para migrantes e refugiados. Passados cinco anos, não foram poucos os acontecimentos relativos à entrada e o trânsito de haitianos, todos capazes de provocar a adoção de diferentes medidas, patrocinadas por entidades estatais, assim como não estatais, além do surgimento de uma infinidade de posicionamentos com o intuito de ajudar o Haiti. Portanto, neste capítulo, busca-se lançar um olhar reflexivo e crítico sobre a imigração haitiana para o Brasil, que há muito tempo deixou de ser incipiente. Segundo informações do MTE, cerca de 30 mil haitianos vivem hoje no Brasil. Destes, 19 mil entraram via cidade de Basiléia, no Acre. Os demais entraram regulamente, com visto humanitário, pelos aeroportos brasileiros, com base na Resolução nº 97/12 do Conselho Nacional de Imigração12. Antes do terremoto, os haitianos já migraram para outros países; entretanto, após o desastre natural que é causa relevante, basta analisar nos dados numéricos que em 2010 existiam em torno de 200 Haitianos no Brasil e em Setembro de 2014 o número aumentou para 30.000 dados do Ministério do Trabalho e Educação (MTE), com um percentual de 15.000% em apenas 04 anos e oito meses. Mas existem outros autores que trazem dados que até o final do ano de 2014 o número de imigrantes haitianos deverá ultrapassar a 50 mil Haitianos, requerendo atitudes firmes por parte da sociedade civil e o Estado. Assim, percebe-se que a migração aumentou de forma exponencial após o terremoto. 11 BATES, D.C. Environmental Refugees? Classifying Human Migrations by Environment Change. Population and Environment, v.23, 2003, p.465-477. 12 BRASIL. Ministério do Trabalho e Educação. CNIg. Disponível em :< http://portal.mte.gov.br/imprensa/ estudo- analisa-migracao- haitiana-no-brasil.htm>.Acesso em :02 jan. 2015. 984 Verifica-se que, ao ingressar para o Brasil, os Haitianos perpassam por inúmeros desafios. O que faz um ser humano sair de sua casa, do seu país, ir a outro lugar distante, fazendo uma viagem com duração média de 15 dias e passar por tantos impedimentos se não for em razão da sua sobrevivência e para ajudar seus familiares? Na atualidade, presencia-se uma nova era da mobilidade humana. Os novos modelos de produção implicam o deslocamento de imensos contingentes humanos, nem sempre com o ânimo de radicação definitiva em um território. A crescente evolução tecnológica multiplica imensamente os deslocamentos humanos de curta e média duração, com objetivos dos mais diversos, seja por motivos ambientais, econômicos até a busca por novas oportunidades de trabalho, como também de reunião familiar. 13 Multiplicam-se os deslocamentos forçados (não desejados) e as situações de refúgio em razão de conflitos armados, regimes ditatoriais e mudanças climáticas. Nas questões relativas ao direito internacional dos refugiados ainda na década de 1990, o Brasil adaptou-se a partir da Lei n° 9.474 de 22 de julho de 1997. Todavia, a confusão entre situações de refúgio e de migração converte a ajuda humanitária em política migratória, com graves consequências para os migrantes, mas também para o Estado brasileiro, reduzindo a cidadania à mera assistência. Também ainda persistem, apesar dos esforços internacionais e nacionais, os casos de apátridas.14 O Brasil na atualidade do século XXI vem recebendo fluxos pontuais de migração internacional, e na inexistência de legislação adequada e de políticas públicas dela decorrentes provocam violações de direitos humanos desgastando o país, além de uma imagem negativa da mobilidade humana junto à opinião pública, que revela um posicionamento contrário às migrações internacionais sob a perspectiva dos Direitos Humanos.15 13 NUNES, B. F.; CAVALCANTI, L. O imigrante e o direito à indiferença: algumas questões teóricas. In: Santin, Terezinha; Botega, Tuíla. (Org.). Vidas em trânsito: conhecer e refletir na perspectiva da mobilidade humana. Porto Alegre: EdiPUCRS, v.1 , 2014. p. 135. 14 CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasília: Cadernos do Observatório das Migrações Internacionais, 2014. p. 18. 15 NUNES, B. F.; CAVALCANTI, L. Op.cit.2014. p. 144. 985 No caso dos haitianos, agrava-se porque, no Brasil convive-se com regimes de acolhida e de autorização para trabalho acentuadamente diversos, que depende das características dos migrantes em questão, pondo em xeque princípios fundamentais como o da igualdade. Assim, todo avanço da legislação sobre migrações internacionais se vê comprometido, no plano da efetividade, pela inadaptação dos serviços públicos à nova realidade da mobilidade humana.16 Esta constatação pode ser aferida pelo fato de ser o Brasil um dos poucos países desprovido de um serviço de migrações, cabendo à Polícia Federal grande parte do processamento dos pedidos de residência e de refúgio, de caráter eminentemente administrativo. Neste sentido, cabe destacar que falta ao Estado brasileiro uma política migratória. Não basta acolher bem. É fundamental a criação de medidas concretas voltadas aos imigrantes. É preciso propiciar aos imigrantes o ingresso de forma legal. 17 Porém, se analisada esta imigração considerando a situação dos imigrantes na origem, as dificuldades da viagem “uma verdadeira epopeia” e o início de inserção nas cidades brasileiras, as chegadas dos haitianos tornaram-se um fato que pede reflexão pelo conjunto da sociedade brasileira. Mostrou em primeiro lugar como é grande a distância entre a comoção e os discursos das ações concretas. Mostrou o anacronismo da própria política brasileira de imigração. Mostrou as desavenças entre os poderes constituídos, Municipal, Estadual e Federal, vivendo um jogo de empurra-empurra, um acusando o outro e todos lavando as mãos. Mostrou que primeiro se deixa o prédio cair para depois ver o que fazer.18 A centralização decisória das questões migratórias na esfera federal faz com que os estados e municípios sintam-se descomprometidos com a acolhida e a inclusão dos imigrantes. Assim, a responsabilidade fica com as organizações humanitárias, serviços que deveriam ser encargos dos governos.19 16 CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) Op.cit. 2014. p. 19. 17 NUNES, B. F.; CAVALCANTI, L. Op.cit.2014. p. 136. 18 COSTA, Pe. Gelmino A. Haitianos em Manaus: dois anos de imigração – e agora!Travessia – Revista do Migrante, nº 70, São Paulo, Jan./Jun. 2012.p.96. 19 ZAMBERLAM, Jurandir et al. Op.cit. 2014.p 73. 986 Mas a chegada dos haitianos levanta questões para toda a sociedade brasileira: até que ponto somos capazes de nos abrir ao diferente, ao estrangeiro, ao outro? Qual o nível de xenofobia ou de racismo oculto ainda existente frente ao diferente, ao pobre e ao negro? E como isso se expressam nas demandas por moradia, trabalho, no transporte e no quotidiano da vida?20 Ao sentimento de preconceito demonstrado pelos brasileiros em relação aos haitianos, eles se sentem discriminados por causa da cor e reclamam de racismo por parte de alguns brasileiros, o que obstaculiza a adaptação ao Brasil.21 Esta nova imigração para o Brasil é marcada pela cor negra e morena, e sofre questionamentos, discriminações de segmentos da sociedade, de poderes públicos e parcela da mídia com os costumeiros argumentos: “grupos de invasores”, imigrantes ilegais”, “pessoas desocupadas”, “usurpadores de postos de trabalho de nacionais, “portadores de doenças” e “entram porque há um descontrole governamental”.22 O que se percebe é que o outro não é necessariamente pensado para ser revelado. O que se revela aqui é a identidade de um nós; a faceta cruel do etnocentrismo de pensar-se a si mesmo como o centro das atenções. E o padrão referencial, enquanto o outro é relegado à condição de não humano, alienígena, invasor e que coloca em risco a segurança e a estabilidade do nós e, portanto, pode ser tratado de maneira diferenciada23. Um dos maiores desafios para os imigrantes é o aprendizado da língua portuguesa24, a falta de sensibilização dos poderes públicos municipais e estadual que não oferecem espaços físicos e docentes, a inexistência de um método eficiente25 a ser utilizado pelos monitores em todos os estados, e o desnível 20 COSTA, Pe. Gelmino A. Op.cit. 2012.p.96. FERNANDES, Duval; CASTRO, Maria da Consolação G. de . Op.cit.2014.p.93. 22 ZAMBERLAM, Jurandir et al. Op.cit. 2014.p 6 . 23 COTINGUIBA, Geraldo Castro.Imigração Haitiana para o Brasil:a relação entre trabalho e processos migratórios. Dissertação. Porto Velho. 2014.p.140 24 A dificuldade de comunicação por não poder estudar a língua portuguesa ou a sua dificuldade de comunicação os isola, tem efeitos no desempenho do trabalho, na busca de serviços , assim como para sua alimentação e ir nos postos de saúde. 25 Existe o método de ensino de português para Haitianos, implantado pela Marília Pimentel e o Geraldo Cotinguiba, de Rondônia no qual oportunizaram um curso em Santa Catarina e outro em Porto Alegre no ano de 2014. COTINGUIBA, Geraldo Castro; PIMENTEL, Marília Lima; 21 987 cultural entre os migrantes. O desafio de ficar longe de seus familiares, pois os custos da vinda de todos são muito altos, a saudade e a distância causam relativa indecisão quanto ao futuro. Outro problema enfrentado pelos haitianos é a moradia. Geralmente moram em uma residência alugada compartilhada com outros imigrantes, podendo esta ser uma casa ou um apartamento, quartos em pensão, hotel ou casa de família; são as formas de moradia. Poucas são as moradias individuais, isto, porque o aluguel é alto, visto aos salários que recebem, e ainda muitas vezes necessitam de caução ou fiador, o que dificulta o acesso a uma moradia individual. Ainda soma-se a dificuldade de compreender o contrato de aluguel. O impacto que a ruptura das raízes familiares e a inserção numa nova cultura tem provocado nos haitianos, expressa-se em isolamento, desânimo e saudade e em alguns casos a depressão26. É por isso que muitos querem regressar ao país de origem. A reunião familiar traria maior benefício pessoal, comunitário e laboral. A adaptação ao clima rigoroso do inverno (nas regiões do sul), criação de uma convivência com as pessoas na comunidade local e no trabalho, superação dos preconceitos que sofrem por parte de algumas categorias sociais, e, como não possuem a compreensão das leis trabalhistas, houve a Insatisfação dos Haitianos em relação aos descontos na folha de pagamento no Brasil27. Não possuem direito ao voto, e assim não têm como representar as suas necessidades e desejos para a construção de uma legislação a esta minoria. Sob este ponto de vista, é necessário que o haitiano tenha mais informações quanto aos requisitos de ingresso no Brasil, pois na questão do trabalho escravo os exploradores aproveitam-se da desinformação e da falta de conhecimento dos migrantes no país. 2 O APRENDIZADO LINGUÍSTICO E A QUESTÃO CULTURAL NOVAES, Maria de Lourdes (Org.). Língua portuguesa para haitianos. Florianópolis: SESI. Departamento Regional de Santa Catarina, 2014. 219 p. 26 ZAMBERLAM, Jurandir et al. Op.cit. 2014.p. 59. 27 Idem, p 71. 988 Antes de adentrar ao tema proposto, cabe destacar que a composição da imigração no Brasil é parte fundamental para o crescimento e desenvolvimento econômico do País, e o desconhecimento da língua portuguesa impede a intercomunicação e aporta dificuldades na qualidade de vida, de muitos imigrantes (seja para se alimentar, pedir emprego, compreender as normas do ambiente de trabalho, se estiver doente explicar no sistema de saúde o que esta ocorrendo) no momento de se relacionar com os brasileiros. Observa-se que o estrangeiro e imigrante recebem um reconhecimento sócio-jurídico diferenciado impresso pelas sociedades na qual são acolhidos. Ambas as expressões, para o imigrante, não implicam, necessariamente, um mesmo estatuto social. Para os estrangeiros determina-se uma figura jurídica calcada numa realidade social objetiva modelado na forma de lei; para o imigrante está presente um imaginário que o constrói socialmente. Com relação à questão jurídica, tem-se uma normatização que regula os direitos e deveres dos estrangeiros. Tal normatização regula a sua presença e permanência dentro do território. 28 No que tange ao imigrante, ele não é uma figura objetiva. Na verdade sua condição é social, na qual recai um atributo repleto de princípios negativos, e de uma alteridade29 relativa aos nacionais. Ainda que somente haja uma lei para os 28 CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasília: Cadernos do Observatório das Migrações Internacionais, 2014. p. 19. 29 Alteridade é um substantivo feminino que expressa a qualidade ou estado do que é outro ou do que é diferente. É um termo abordado pela filosofia e pela antropologia. Um dos princípios fundamentais da alteridade é que o homem na sua vertente social tem uma relação de interação e dependência com o outro. Por esse motivo, o "eu" na sua forma individual só pode existir através de um contato com o "outro". Quando é possível verificar a alteridade, uma cultura não tem como objetivo a extinção de uma outra. Isto porque a alteridade implica que um indivíduo seja capaz de se colocar no lugar do outro, em uma relação baseada no diálogo e valorização das diferenças existentes. No âmbito da Filosofia, alteridade é o contrário de identidade. Apresentada por Platão (no Sofista) como um dos cinco "gêneros supremos", ele recusa a identificação do ser como identidade e vê um atributo do ser na multiplicidade das ideias, entre as quais existe a relação de alteridade recíproca. A alteridade tem também papel de relevo na lógica de Hegel: o "qualquer coisa", o ser determinado qualitativamente, está em uma relação de negatividade com o "outro" (nisso reside a sua limitação), mas está destinado a se tornar em outro, a se "alterar", incessantemente, mudando as próprias qualidades (assim as coisas materiais nos processos químicos). O uso do termo também surge na filosofia do século XX (existencialismo), mas com significados não equivalentes. A Antropologia é conhecida como a ciência da alteridade, porque tem como objetivo o estudo do Homem na sua plenitude e dos fenômenos que o envolvem. Com um objeto de estudo tão vasto e complexo, é imperativo poder 989 estrangeiros, socialmente impõem-se uma hierarquização das alteridades e nacionalidades ligadas ao contexto geopolítico e econômico. Isto é, mesmo que um imigrante seja juridicamente um estrangeiro, a denominação imigrante o vincula a um país economicamente menos abastado, com um alto índice de pobreza, com indicadores sociais limitados e sociedades atrasadas, sob o ponto de vista civilizatório. Tais condições o tornam um exportador de imigrantes. Em contraponto a esta condição, observa-se que a designação de estrangeiro, não raro, é vinculada socialmente a um indivíduo advindo de um país economicamente mais desenvolvido que, ao contrário de exportar imigrantes, atrai turistas.30 Os haitianos presentes na atualidade no Brasil caracterizam-se em termos linguajar por serem diglóssicos, por se comunicarem no interior do grupo apenas no crioulo haitiano, o idioma de 95% da população no Haiti, já o francês é a língua dos demais 5%, uma língua de elite, um status, um signo do poder econômico e social31( mas compreendido pela maioria). Para os haitianos, e mesmo para as equipes de acolhimento, uma das grandes barreiras é referente à língua. Um bom número fala espanhol (ou portunhol), mas a maioria fala o crioulo haitiano e francês. Um número pequeno fala somente o crioulo. Um número bastante reduzido fala inglês. Isto leva a eles estarem sempre juntos, formando guetos. Existe um verdadeiro choque cultural, pois o Haiti é um pequeno país e eles ficam assustados com as dimensões do nosso. A maioria não tem noção das distâncias que existem no Brasil. A adaptação é um processo lento e demorado.32 Assim, no que tange a acolhida e o aprendizado linguístico e cultural, como reflexo do que já foi dito, presenciam-se muitos discursos, mas, de acordo com Costa, toda a: estudar as diferenças entre várias culturas e etnias. Como a alteridade é o estudo das diferenças e o estudo do outro, ela assume um papel essencial na antropologia. Disponível em:< http://www.significados.com.br/alteridade/>. Acesso em: 24 jan. 2015. 30 CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) Op.cit. 2014. p. 18. 31 COTINGUIBA, Geraldo Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 99. 32 IMIGRANTES HAITIANOS NO BRASIL. Disponível em: < http://geoconceicao.blogspot.com.br/. Acesso em: 24.jan.2015. 990 [...] tarefa de acolhida continua por conta da Igreja Católica, do grupo Ama Haiti, de pastores evangélicos e, ao final, também da Associação dos Haitianos. Pessoas e entidades muito ajudaram e não se pode deixar de nomear a Associação Allan Kardec. Porém, os principais protagonistas de acolhida foram os próprios haitianos. Eles souberam acolher a muitos em seus quartinhos paupérrimos e limitados de tudo. Sempre cabe mais um nesses momentos. Com competência e eficiência atuaram e atuam as equipes de alimentação, de saúde, de ensino da 33 língua portuguesa, de cursos profissionalizantes e de emprego.. O aprendizado linguístico tem sido a maior dificuldade dos imigrantes. A Igreja Católica por meio de sua pastoral local teve a iniciativa de começar um curso de português básico (Porto Velho/RO), ministrado por um haitiano que já aprendeu a língua portuguesa(Brasil). A partir deste aprendizado inicial, criou-se um projeto de extensão na Universidade Federal de Rondônia, denominado Migração haitiana na Amazônia brasileira: linguagem e inserção social de haitianos em Porto Velho, objetivando de imediato o ensino da língua portuguesa, noções de história e geografia do Brasil e da Amazônia, noções de direitos humanos e trabalhistas, visando sua inserção social.34 Essas iniciativas ainda não impedem a dificuldade com a língua portuguesa. É concretamente um entrave para a população haitiana que está na atualidade dispersa pelo Brasil. Este projeto ministra aulas de português para os imigrantes. Atualmente, registra-se uma alta rotatividade, já que muitos iniciam o curso e desistem por motivos como: viajam para outros estados, começam a trabalhar à noite, ou mesmo os que acham que já aprenderam o suficiente. 35 Em razão dos haitianos comporem um grupo muito heterogêneo, o ensino da língua portuguesa tornou-se um desafio para os instrutores. São turmas compostas majoritariamente por homens, apenas 5% são mulheres, com faixa etária de 20 a 38 anos. A escolaridade é caracterizada pelos extremos, ou seja, existem vários que nem completaram o ensino fundamental, outros com ensino médio incompleto, alguns poucos com ensino superior e, outros, semialfabetizados.36 Registra-se ainda que muitos que frequentam regularmente as aulas aprendem rapidamente o português, isto se deve ao conhecimento do espanhol, 33 Pe. COSTA, Gelmino A. Op.cit. 2012. p. 91. COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 101. 35 Pe. COSTA, Gelmino A. Op.cit. 2012. p. 95. 36 COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 103. 34 991 em razão destes terem morado algum tempo na República Dominicana. Todavia, observa-se que parte significativa dos haitianos tem dificuldades em decorrência de fatores, como: pouca escolaridade; isolamento no gueto (resistência em interagir com os brasileiros); trabalho o dia inteiro em atividades extenuantes, dentre outros.37 É possível perceber que a escola, para os imigrantes haitianos, termina por ser referência de um novo status, já que em sua grande maioria vestem as melhores roupas para ir às aulas, sendo a figura do professor muito respeitada. Acrescente-se ainda que o espaço disponibilizado pela Igreja Católica para as aulas termina por ser um ponto de encontros. Concretamente vem a ser estes encontros uma rede de sociabilidade que se fortalece, um local em que as informações são compartilhadas, reuniões para emprego são realizadas e também se assiste à construção de laços de amizade e à manifestação das relações de parentesco.38 De acordo com Fernandes, os Haitianos ressentem-se pelo fato do relacionamento com os brasileiros ser dificultado por não entenderem o português, especialmente no trabalho. Frisam que a comunicação fica muito difícil sem o domínio do português. Alguns recorrem à linguagem gestual para conseguir se comunicar razoavelmente ou pelo menos para se fazer entender.39 Não raro aqueles que possuem o domínio da língua portuguesa conseguem empregos mais facilmente nas empresas.40 Já com relação à inserção social captou-se a existência de uma rede de sociabilidade haitiana, a partir da cidade de Porto Velho/Acre, a qual tem seu fluxo implementado pelas visitas aos amigos, assiduidade aos cultos religiosos evangélicos, contatos com brasileiros. E entre membros do próprio grupo, frequentam bares onde assistem a jogos de futebol televisionados, e também fazem visitas a shopping centers.41 37 Ibidem. Ibidem. 39 FERNANDES, Duval;CASTRO,Maria da Consolação G. de . Op.cit.2014.p.94. 40 COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 103. 41 Ibidem. 38 992 Note-se que o preenchimento ocupacional do espaço público e de seus recursos revela a apropriação de um pedaço daquele país que os acolheu. Temse um pedaço, isto é, um lugar em que membros de um determinado grupo obtêm e repassam informações. Ali, os imigrantes compartilham suas experiências com amigos, tecem alianças, fortalecem a rede de sociabilidade do grupo, participam do lazer, vivenciam os conflitos. É neste espaço territorial, longe de casa, que os haitianos residentes em tantas partes do Brasil andam a pé, de bicicleta ou reunidos em grupos de três a cinco, homens e mulheres, às vezes crianças, em frente as suas residências, nos orelhões em telefonemas para os familiares no Haiti, ou falando ao celular com amigos na cidade ou em outros estados brasileiros, conversando e gesticulando à sua maneira. É onde parecem se sentir à vontade.42 Importante considerar que, no caso do idioma, o não conhecimento do idioma nativo do país de destino é uma importante barreira à integração ou mesmo à sobrevivência43. Quanto à questão cultural, a bandeira é um símbolo reverenciado. Para eles é um grande sentimento de orgulho, e o que os identifica e os une diversas vezes, expresso e externado pela inscrição nesse objeto simbólico na forma escrita l‟union fait la force, ou seja, a união faz a força44. A cultura é um espaço privilegiado que faz a força do Haiti e é um dos setores que atrai o olhar positivo da comunidade estrangeira, seja na música, na pintura, no artesanato. Como afirma o mais lido escritor haitiano Gary Victor: É o único ambiente que o Haiti é competitivo no plano internacional, em janeiro de 2012, o romance “Le sang et lamer” (o sangue e o mar), do próprio autor, ganhou o prêmio casa das Américas, um dos mais prestigiados prêmios literários do continente americano. Outro romancista haitiano-quebequense, obteve o premio Médicis, pelo seu romance “l’enigme Du retour” (O enigma do retorno), que conta seu retorno ao país natal, após a catástrofe natural de 12 de Janeiro de 45 2010. O movimento de artes plásticas Sant-soleil é objeto de um dos mais conceituados livro de arte moderna que prega a autonomia do artista, intitulado 42 COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 104. FERNANDES,Duval;CASTRO,Maria da Consolação G. de . Op.cit.2014.p.65. 44 COTINGUIBA, Geraldo Castro. Op.cit. 2014.p.140. 45 SANTIAGO, Adriana. Op.cit. 2013.p137-138. 43 993 “l’Intemporal”, do escritor Jean-Claude Garoute (Tiga), e o artesanato haitiano decora grandes boutiques internacionais de objetos decorativos. A tradicional música folclórica e de raiz, expressão de reivindicação popular e de afirmação cultural.46 Sob o ponto vista religioso, na atualidade, observa-se um quadro em que a diversidade de crenças é a principal característica, já que estão presentes católicos47 e evangélicos, sendo que os primeiros são em menor número, frequentam as igrejas e mantêm um discurso de boa convivência com os evangélicos na cidade. Duas são as vertentes de evangélicos, uma que frequenta os templos juntamente com brasileiros (Batista, Assembléia de Deus, Adventista do Sétimo Dia, etc.) e os que congregam apenas entre haitianos, num misto do que se poderia citar de sincretismo evangélico, isto é, são pessoas que se professam convertidos em diferentes denominações protestantes, mas congregam juntos no mesmo templo. 48 A vantagem da diversidade cultural prende-se com a possibilidade de aprendermos mais sobre outras culturas e sobre outras formas de trabalhar e de ver as coisas, o que enriquece a própria organização da sociedade. Da diversidade cultural também nascem as novas ideias, diferentes formas de entender os problemas, a questão da tolerância, o perceber como o outro funciona para o compreender e não gerar atritos. A compreensão do outro pacífica o ambiente social, importante para o progresso e para a prosperidade. Dispomos de uma oportunidade ímpar de integração, de somar com o aprendizado da cultura e do idioma do Haiti, a aquisição de conhecimento, 46 Idem.p141-142. Muitos comportamentos são vistos como pecaminosa dentro dos limites da maioria das religiões monoteístas, particularmente o cristianismo. Muitos cristãos vêem a homossexualidade como pecado. Em consequência, muitos homossexuais não podem revelar sua orientação sexual por medo de ser condenado ao ostracismo. No Haiti, os homossexuais conhecidos podem ser fisicamente prejudicados, os parentes não vão admitir ter um parente homossexual. BACKGROUND ON HAITI. Op.cit. 2010.p.11. 48 PAULA, Elder Andrade de. Entre desastres e transgressões, a chegada dos imigrantes haitianos no “reino deste mundo amazônico” In MR: Desdobramentos de uma tragédia: da crise humanitária no Haiti à crise dos haitianos e demais desterritorializados no Brasil; 36º Encontro Anual da Anpocs. Disponível em: http://www.anpocs.org/>. Acesso em: 24 jan. 2015. 47 994 experiências e vivências trazidas por esses tão altivos e combatentes seres humanos. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram observadas as dificuldades de aprendizado e a comunicação com a língua portuguesa, os migrantes não sabem falar e compreender a língua portuguesa corretamente, prejudicando a sua autonomia, para tanto não compreendem as legislações trabalhistas, tem dificuldades em assinar contratos, pedir alimentação e assim sucessivamente, ocorrem conflitos e proporcionam a falta de oportunidade para a sua total inserção na sociedade local. Existe uma dicotomia entre o acesso ao mercado de trabalho para os migrantes e a real dificuldade de inclusão e participação na sociedade Brasileira. Para tanto, o Brasil e os migrantes precisam de um novo marco legal capaz de antever as formas aplicáveis fixas de solução humanitária. Uma nova legislação precisa disponibilizar formas que acolham e reconheçam migrantes vulneráveis, que na verdade são vítimas de tráfico de pessoas e de trabalho escravo em razão da migração forçada que foram submetidos. Por conseguinte, demanda a reflexão crítica dos refugiados ambientas, no estudo do fenômeno com base no caso da migração Haitiana para o Brasil, a partir do século XXI, para garantir a todos em constante deslocamento, lhe assegurando a reunião familiar, a assistência social, jurídica e psicológica, evitando-se terminologias estimuladoras da discriminação e a xenofobia, devendo ainda suprimir provisões relativas à criminalização, infração, expulsão, vigilância, exclusão política, econômica e social da população. Contudo, a prática reserva muitas dificuldades para este povo num país cuja maior barreira é língua a ser aprendida, numa capacitação relâmpago. A tríade migração-trabalho-inserção social revela um caminho de contradições merecedoras de uma forte revisão, tanto por haitianos, do Estado brasileiro, como do empregador, e das organizações sociais que amparam e orientam tais grupos. Este trabalho conclui a reflexão crítica sobre a inserção dos migrantes na sociedade Brasileira diante dos obstáculos, tais como, o aprendizado da língua 995 Portuguesa para compreender ou falar o idioma nacional, que é necessário para a sua comunicação. Caso não ocorra a inclusão destes seres humanos na sociedade civil, a imigração ilegal acaba por ser favorecida, por isso a efetiva pesquisa auxilia a compreender esta lacuna para a efetivação jurídica dos direitos humanos na atualidade. REFERÊNCIAS BACKGROUND ON HAITI. Haitian Health Culture. A Cultural Competence Primer from Cook Ross Inc. 2010. BATES, D.C. Environmental Refugees? Classifying Human Migrations by Environment Change. 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Solidus, 2014. 997 DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DOS HAITIANOS NO BRASIL, PÓS TERREMOTO: DIFICULDADES SOCIOAMBIENTAIS. 49 50 Marcia Andrea Bühring51 52 RESUMO: O trabalho de pesquisa mais amplo, tem como objetivo relatar como vivem, onde trabalham, (se trabalham) quais as dificuldades enfrentadas nesse “novo lugar” que passaram a “chamar de seu”, se estão sozinhos e/ou conseguiram trazer seus familiares, se conseguiram se adaptar, pois trata-se de uma nova cultura a ser assimilada, uma nova língua, novos desafios, inclusive de aceitação, e se houveram conquistas, depois do terremoto que atingiu em 2010 o Haiti, deixando mais de 250 mil pessoas feridas, sendo que 1,5 milhão de habitantes ficaram desabrigados e o número de mortos ultrapassou a 200 mil. Visto também, que incluem-se na categoria de imigrantes, que buscam um novo país-lugar, para recomeçar as suas vidas, muito embora, não tenham todo o amparo legal, da legislação brasileira (que é ultrapassada) no que tange a essas novas situações: a dos “refugiados ambientais”. Como resultado parcial, percebese que o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) concluiu pela não concessão do refúgio, pois não há status de refúgio para os haitianos no Brasil, (que exige que a pessoa seja vítima de perseguição em seu país, entre outros). Para tanto, o Conselho Nacional de Imigração, baixou uma Resolução Normativa de nº 97/12, (agora estendido até 2015) criando o “visto por razões humanitárias” para esses imigrantes, e os números vem aumentando, mesmo impondo-se limitações como: liberação de 1.200 vistos/ano e com validade de cinco anos. Tudo isso mostra que o caminho para uma cidadania efetiva é longo, assim como os direitos humanos que são desrespeitados. Por fim, como conclusão parcial, a verificação de que os imigrantes haitianos, não podem votar por exemplo, e que também não veem respeitados os direitos acima elencados, ou seja, direitos humanos, fundamentais, por não existir amparo jurídico efetivo para tanto. O que se sugere, 49 CONGRESSO INTERNACIONAL: “A Sociologia do Direito em Movimento: Perspectivas da América Latina”. Unilassale. Canoas (RS), de 5 a 8 de Maio de 2015. 50 3) SESSÕES DO MESTRADO EM DIREITO DO UNILASALLE: [...] k) MOVIMENTO EM DEFESA DA CIDADANIA, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA (português e espanhol) – Daniela Cademartori e Selma Petterle. 51 Doutora pela PUCRS-Brasil. Mestre pela UFPR. Professora da FADIR da PUCRS e Programa de Pós Graduação, Mestrado da UCS – Universidade de Caxias do Sul - RS. Pesquisadora do Programa de Pós Graduação, Mestrado da UCS. Parte integrante do Projeto de Pesquisa com Tíulo: Deslocados/migrantes/refugiados ambientais: a questão dos haitianos no Brasil e os direitos sociais. 52 Ver também: BÜHRING, Marcia Andrea. Direitos humanos e fundamentais, migração nas fronteiras Brasil e Uruguai: uma análise dos déficits do direito social à saúde da mulher nas cidades gêmeas: Santana do Livramento-BR/Rivera-UR e Chuí-BR/Chuy-UR. Tese de Doutorado. PUCRS, Porto Alegre, 2013. 998 é que seja traçada uma política de amparo em âmbito nacional para os novos refugiados, ou seja os “refugiados ambientais ou do clima”, salvaguardando a estes os direitos, por uma questão de humanidade. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Cidadania; Haitianos; Dificuldades Sociambientais. 1 INTRODUÇÃO As consequências das mudanças climáticas são muitas, dentre elas as pessoas que precisam migrar, (dentro do seu próprio país, em busca de melhores condições de vida), se deslocar (para dentro ou para fora do seu Estado de origem) emigrar (sair do seu país) ou imigrar (ingressar em outro país). O Mundo sempre lembrará do 12 de janeiro de 2010, o terremoto que atingiu o Haiti, deixou mais de 250 mil pessoas feridas, com cerca de 1,5 milhão de habitantes desabrigados e o número de mortos tendo ultrapassado os 200 mil. O que resultou em inúmeros imigrantes que vieram do Haiti para o Brasil, autênticos “refugiados do clima”, também chamados de “refugiados ambientais” (embora sem a mesma proteção de um refugiado), que justamente fogem do seu país para outro em razão de eventos climáticos de grande proporção. Essa nova “categoria de imigrantes”, buscam um novo país-um lugar, para recomeçar as suas vidas, muito embora, não tenham todo o amparo legal, no que tange a essas novas situações. O método adotado é o dedutivo e dialético, com revisão bibliográfica. Desenvolver-se-à, esse estudo em dois momentos, num primeiro a abordagem dos direitos humanos, a partir da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e de como esses direitos passaram a integrar os sistemas jurídicos, além da concepção de lugar e não-lugar. E num segundo momento, a situação dos haitianos e as principais dificuldades socioambientais, tais como, o visto, trabalho, moradia, entre outros. Para ao final apresentar, ainda que de forma parcial, (vez que o projeto ainda não está finalizado), algumas contribuições-indagações. 999 2 DIREITOS HUMANOS E O “NOVO LUGAR” Os direitos humanos são “situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”.(SILVA, 1998, p. 182). E é essa vivência e (sobre) vivência - digna - que merece destaque, no que diz respeito aos haitianos que estão morando no Brasil. Vez, que os direitos humanos estão previstos em todas as Constituições, que utilizaram a Declaração Universal de 1948, como fundamento. (MORAIS, 2005, p. 2). Todavia, o simples fato de estarem elencados, não assegura seu cumprimento e seu respeito, sendo inclusive vilipendiados. (HERKENHOFF, 1994. p.52). O vilipendio, no sentido de afronta, aviltação ou aviltamento, no sentido de desprezo, de mácula, de menosprezo, de ultraje escancarado, entre outros sinônimos, num total desrespeito. O direito - dos direitos humanos “não rege as relações entre iguais, mas sim entre desiguais”, (PIOVESAN, 2006) frase famosa de Antônio Augusto Cançado Trindade, que em favor dos que precisam de amparo e proteção, (PIOVESAN, 2006) - os grupos vulneráveis, que historicamente são dominados, excluídos e repreendidos. Dessa forma, os direitos humanos, são faculdades e instituições que em diferentes momentos históricos, concretizam as exigências da dignidade, liberdade e igualdade(LUÑO, 1999, p. 48).53 Comumente, tais expressões como os direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais são inclusive usadas como sinônimas, todavia, adverte-se com José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 259) que há diferenças entre eles, e de fato há, pois “os direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos”. Já os “direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente”. (CANOTILHO, 1998, p. 259). Nesse sentido também a contribuição de Guido Fernando Silva Soares, (2002, p. 338) de que é possível conferir dois significados 53 Tradução livre de: “Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional”. (LUÑO, 1999. p.48). 1000 à expressão “direitos humanos”, um strito, outro lato.54 Para tempos de paz e para refugiados, deslocados e migrantes respectivamente. Por outro lado, destaque-se que a ONU - Organização das Nações Unidas (Acesso 20 jul. 2011) criada por meio de um Estatuto chamado Carta da ONU, ou também Carta de São Francisco, traz em suas disposições, o compromisso (sob a forma das expressões “direitos fundamentais”, “direitos humanos” e “liberdades fundamentais”),55 com os direitos humanos e as liberdades fundamentais (PIOVESAN, 2006, p. 127-129). Norberto Bobbio (1992, p. 5) já advertia que “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. No mesmo sentido, Antonio Enrique Pérez Luño (1999, p. 48) refere que os direitos humanos são um conjunto de poderes e instituições, que em cada momento histórico, tem o condão de materializar as demandas de liberdade, dignidade e igualdade humana, as quais devem ser reconhecidas e positivadas em nível nacional e internacional.56 Ao que, aponta, por outro lado, Valério de Oliveira Mazzuoli, que os direitos humanos possuem um duplo pilar da universalidade e da indivisibilidade (MAZZUOLI, Acesso 27. Jul. 2011). E atualmente, acrescenta, também a interdependência e a inter-relacionariedade (MAZZUOLI, 214, p. 29). 54 Afirma por importante: “Em primeiro lugar, Direitos Humanos, “stricto sensu”, são aqueles direitos garantidos em tempos de paz e que dão a configuração democrática aos Estados que os consagram, nos respectivos ordenamentos jurídicos nacionais; são alguns de seus sinônimos: Direitos do Homem, Direitos Fundamentais, Liberdades Públicas, Direitos da Pessoa Humana[...]. Numa segunda concepção, Direitos Humanos “lato sensu”, constituem os Direitos Humanos conforme a concepção anterior, e mais as normas de proteção aos asilados e aos refugiados, pessoas cujas definições pressupõem uma norma internacional e cuja proteção nos ordenamentos jurídicos nacionais, historicamente, não fazia parte das condições para definir-se a configuração democrática de um Estado e que, nos últimos tempos, passou a fazer. (SOARES, 2002. p.338.) 55 Encontra-se no Preâmbulo, e nos artigos 1.3, 13.1.b, 55, 56, 62.2 e 62.3 e 76.c da Carta da ONU de 1945) 56 Tradução livre de: “Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional”. (LUÑO, 1999. p.48). 1001 Destaque-se por relevante, que os direitos humanos segundo Amartya Sem (2010, 292-298) sofrem três críticas em relação ao edifício intelectual dos direitos humanos, bem como crítica da legitimidade, crítica da coerência e crítica cultural. Isto é, na crítica da legitimidade, não existiriam direitos humanos prévios, eles seriam adquiridos. Já na crítica da coerência, os direitos seriam pretensões que requerem deveres. E por fim, na crítica cultural, ligados a ética universal, embora exista a diversidade. Cumpre lembrar também que os haitianos ao “escolherem” o Brasil, se confrontam com aspectos sociais, culturais, ambientais, de identidade, de assimiliação e de aceitação desse novo lugar. Nesse sentido, Homi Bhabha (1998, p. 33) defende a identidade como interação, o desejo de reconhecimento, e sugere ver a historia de migrantes/refugiados, do ponto de vista dos deslocamentos sociais e culturais anômalos, que quer dizer, uma última vez, “há um retorno à encenação da identidade como interação, a re-criação do eu no mundo da viagem, o reestabelecimento da comunidade fronteiriça da migração. O desejo de reconhecimento da presença cultural como “atividade negadora”. (1998, p. 28). A identidade como necessidade, algo que deve se construir para poder negociar e obter um lugar no espaço nacional, muito mais do que algo que se tem, mas algo que se deve manter, (VASQUEZ, 2006, p. 172-173),57 mas as identidades são flexíveis e mudam de acordo com o tempo e o lugar. Quando Boaventura de Souza Santos descreve a modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira adverte que hoje se têm processos de identificação, pois a preocupação com a identidade nasce com a modernidade (SANTOS, 1997, p. 135). É de Homi Bhahba (1998, p. 209-210) ainda, um importante conceito de fronteira como um entrelugar, que também é adotado aqui, pela aproximação da 57 Tradução livre de: “La identidad y la marginalidad: ¿esencia o estrategia de representación? A lo largo de este texto se han mostrado las diferentes etapas por las que ha pasado la relación entre el Estado y los habitantes de la antigua zona de distensión. Este evento hizo visible el marco de esa interacción, ya que hizo circular estereotipos sobre la región y sus habitantes, reveló las diferencias y oposiciones entre los niveles del Estado y generó una coyuntura importante para la pregunta por la identidad y el desarrollo de estrategias de representación por parte de los habitantes locales. Para los municipios de la zona, la identidad es una necesidad, es algo que debe construirse para poder negociar y obtener un lugar en el espacio nacional, más que algo que se tiene y/o hay que mantener. (VÁSQUEZ, 2006. p.172-173). 1002 identificação de fronteira com um não lugar. O autor, indaga ainda, de que forma pode-se refletir sobre - a identidade num espaço-tempo contemporâneo - vez que hoje a “marca é a não-fixidez, o constante movimento, certa fluidez do que antes era considerado estático, tomado como porto seguro”, assim como complexo, pois o intercâmbio de “valores, significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e até incomensurável”.(BHAHBA, 1998, p. 20). Aqui, utiliza-se o conceito de não lugar de Marc Auge (2000, p. 49) também chamado de lugar incomum ou de espaços de anonimato, analisou o contexto mundial, no qual todos os fenômenos locais ganham significado, hoje em dia. Ademais, o lugar-comum (AUGE, 2000, p. 49)58 é o lugar, onde os nativos vivem, trabalham, cuidam das fronteiras, lugar de culto dedicado aos ancestrais. Esse lugar comum é uma invenção sendo que um bom exemplo disso são as migrações do campo para a cidade e a formação de novos povoados, ou seja, a natureza dos grupos são sempre diversa, mas a identidade do lugar se une, funde-se, converge-se em um lugar próprio daqueles que passam a ocupar o lugar. (AUGE, 2000, p. 51).59 E aqui é perfeitamente possível trazer a fronteira enquanto não lugar. Portanto, lugar é, segundo o autor, o espaço antropológico, a identidade, a relação e a história, e o não lugar é o contrário: o não relacional, não identitário e não histórico. Como exemplo de não lugar, os povoados de “viajantes” ou “passeantes”, ou ainda “transeuntes”. Esses viajam sozinhos, nos espaços de ninguém. Tem revelado uma nova forma de “viver” o mundo. Muito embora o retorno ao lugar pode ser o sonho dos que frequentam os 58 Tradução livre de: “El lugar común al etnólogo y a aquellos de los que habla es un lugar, precisamente: el que ocupan los nativos que en él viven, trabajan, lo defienden, marcan sus puntos fuertes, cuidan las fronteras pero señalan también la huella de las potencias infernales o celestes, la de los antepasados o de los espíritus que pueblan y animan la geografía íntima, como si el pequeño trozo de humanidad que les dirige en ese lugar ofrendas y sacrificios fuera también la quintaesencia de la humanidad, como si no hubiera humanidad digna de ese nombre más que en el lugar mismo del culto que se les consagra”. (AUGE, 2000. p.49). 59 Tradução livre de: “Que los términos de este discurso sean voluntariamente espaciales no podría sorprender, a partir del momento en que el dispositivo espacial es a la vez lo que expresa la identidad del grupo (los orígenes del grupo son a menudo diversos, pero es la identidad del lugar la que lo funda, lo reúne y lo une) y es lo que el grupo debe defender contra las amenazas externas e internas para que el lenguaje de la identidad conserve su sentido”. (AUGE, 2000. p.51). 1003 não lugares. São, por conseguinte os não lugares livres de identidades (AUGE, 2000, p. 56). É estar sozinho, sem saber que está sozinho, é sentir-se parte integrante do contexto produzido pela sociedade, ou esperado pela sociedade, se está em contato com outras pessoas, sem efetivamente ou de fato estar com alguém. O não lugar, ou o espaço vazio, (BAUMANN, 2001, p. 115-116)60 caracteriza-se pela ausência dos símbolos (identidade, relação e história), (AUGE, 1994, p. 156), pois é a negação do lugar, nessa linha de raciocínio, adverte ainda, Marc Augé, (1994, p. 156). o estrangeiro não se reconhece no outro, quando todo o espaço “se assemelha somos de certo modo todos estrangeiros porque já nada nos identifica” (AUGE, 1994, p. 156), essa falta de nexo entre a pessoa e o lugar, é muito comum na região de fronteira. A noção de lugar e não lugar são noções que possuem um limite, “que correspondem a espaços muito concretos, mas também a atitudes, a posturas, à relação que os indivíduos mantêm com os espaços onde vivem ou que eles percorrem”. (AUGE, 1994, p. 167). Traz ainda, o lugar objetivo, o lugar da identidade e o lugar simbólico o espaço onde se estabelecem as relações, assim como os não lugares 60 Enfatiza: “Por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo coletivo não têm nada de "coletivo': Para utilizar a memorável expressão de Althusser, quem quer que entre em tais espaços é "interpelado" enquanto indivíduo, chamado a suspender ou romper os laços e descartar as lealdades. Os encontros, inevitáveis num espaço lotado, interferem com o propósito. Precisam ser breves e superficiais: não mais longos nem mais profundos do que o ator os deseja. O lugar é protegido contra aqueles que costumam quebrar essa regra – todo tipo de intrometidos, chatos e outros que poderiam interferir com o maravilhoso isolamento do consumidor ou comprador. O templo do consumo bem supervisionado, apropriadamente vigiado e guardado é uma ilha de ordem, livre de mendigos, desocupados, assaltantes e traficantes - pelo menos é o que se espera e supõe. As pessoas não vão para esses templos para conversar ou socializar. Levam com elas qualquer companhia de que queiram gozar (ou tolerem), como os caracóis levam suas casas. Lugares êmicos, lugares fágicos, não-lugares, espaços vazios. O que quer que possa acontecer dentro do templo do consumo tem pouca ou nenhuma relação com o ritmo e teor da vida diária que flui "fora dos portões': Estar num shopping center se parece com "estar noutro lugar'. O templo do consumo, como o "barco" de Michel Foucault, "é um pedaço flutuante do espaço, um lugar sem lugar, que existe por si mesmo, que está fechado em si mesmo e ao mesmo tempo se dá ao infinito do mar", pode realizar esse "dar-se ao infinito" porque se afasta do porto doméstico e se mantém a distância. Esse "lugar sem lugar" autocercado, diferentemente de todos os lugares ocupados ou cruzados diariamente, é também um espaço purificado. [...] Os lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma "realidade real" externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança. Dentro de seus templos, os compradores/consumidores podem encontrar, além disso, o que zelosamente e em vão procuram fora deles: o sentimento reconfortante de pertencer - a impressão de fazer parte de uma comunidade.[...]. "Estar dentro" produz uma verdadeira comunidade de crentes, unificados tanto pelos fins quanto pelos meios, tanto pelos valores que estimam quanto pela lógica de conduta que seguem. [...]”. (BAUMANN, 2001. p.115-116). 1004 objetivos os espaços de circulação-comunicação-consumo. E os não lugares subjetivos os espaços pelos modos de relação com o exterior, (AUGE, 1994, p. 141) um constante ir e vir do espaço construído ao vivido. O que Marc Augé (1994, p. 141) faz é relacionar os não lugares com diferentes fenômenos seja “do espaço construído e a relação dos indivíduos com ele”. Contemporaneamente, vive-se em tempos líquidos, (expressão cunhada por Zigmunt Baumann, (PRADO, Acesso 12 out. 2012)61 nada é feito para durar, a mudança é instantânea, e refere à comunidade definida por suas fronteiras vigiadas pelos estranhos que se encontram ou (desencontram).(BAUMANN, 2001. p. 111-112).62 Além dos espaços públicos, que servem de ponto de encontro (entre estranhos) que não se encontram, pois o espaço é um lugar de não interação, (BAUMANN, 2001. p. 114) mas o fato de se estar nesse (não lugar) chamado de lugar de consumo coletivo a exemplo dos shopping centers, é sentir-se integrado, como parte do todo, como pertencente ao lugar, de fazer parte, de integrar-se a ele. Aponta Zygmunt Baumann (2001, p. 119) que os não lugares “não requerem domínio da sofisticada e difícil arte da civilidade, uma vez que reduzem o comportamento em público a preceitos simples e fáceis de aprender” (BAUMANN, 2001. p. 111-112). E nesse sentido os haitianos, que chegam, todos os dias, desde o terremoto de 2010, em busca de um lugar, que possam chamar de seu, a fim de se integrar, participar, cultuar, trabalhar, aceitar - viver. 61 Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem.” (PRADO, Acesso 12 out. 2012). 62 Comenta: “No encontro de estranhos não há uma retomada a partir do ponto em que o último encontro acabou, nem troca de informações sobre as tentativas, atribulações ou alegrias desse intervalo, nem lembranças compartilhadas: nada em que se apoiar ou que sirva de guia para o presente encontro. O encontro de estranhos é um evento sem passado. Freqüentemente é também um evento sem futuro (o esperado é não tenha futuro), uma história para "não ser continuada' uma oportunidade única a ser consumada enquanto dure e no ato, sem adiamento e sem deixar questões inacabadas para outra ocasião”. (BAUMANN, 2001. p.111-112). 1005 3 HAITIANOS NO BRASIL - PÓS TERREMOTO, E AS DIFICULDADES SOCIOAMBIENTAIS Cumpre lembrar que o Haiti, é um país latino-americano, que se encontra localizado na Ilha, chamada “La Espaniola”, e que foi assolado por um terremoto de grande magnitude (7,3 na escala Richter), inimaginável, mas que por um “desvio” do destino atingiu, quem não poderia ter sido atingido (os mais vulneráveis). Lembra Anne Paiva de Alencar (ACESSO 10 abr. 2015) que o terremoto em Porto Príncipe, (local onde vive a maior parte da população), causou a “morte de aproximadamente 222.570 pessoas, e deixando um pouco mais de 1,5 milhão das pessoas sobreviventes sem suas casas, ou seja, cerca de 80% da população, ocasionando um caos no país mais pobre do Hemisfério Ocidental”. Afirma ainda que segundo dados da própria ONU, “há, ainda, em torno de 800.000 deslocados vivendo em condições miseráveis”, e que embora o terremoto tenha sido “momentâneo, seus efeitos foram duradouros para a população haitiana” (ALENCAR, Acesso 10 abr. 2015). Por outro lado, destaca Alejandro Fonseca Duarte (Acesso 30 mar. 2015) que um evento local – regional pode ocasionar problemas globais: As catástrofes naturais são uma complexa associação entre os habitantes de uma região e eventos tais como, terremotos, maremotos, ondas gigantes no mar, erupções vulcânicas, furacões, tornados e, por outro lado, intensas chuvas, alagações, avalanches, queimadas, epidemias, poluição e contaminações. Em uns casos a sociedade está exposta à fúria da natureza sem que a sua ação prévia tenha desenhado o desencadeamento da catástrofe em longo prazo; em outros, como é o caso dos eventos extremos de chuvas, queimadas e acidentes nucleares, existe uma grande parcela de contribuição social devido ao descontrole das atividades tecnológicas, exploração dos recursos naturais, e desatenção governamental ao equilíbrio entre comunidades e seu entorno. Quase sempre, os problemas vindos de uma catástrofe de grande magnitude ou do seu presságio (como as mudanças climáticas), adquirem particularidades globais, embora possam ser locais ou regionais na sua ocorrência. Na atualidade isso se exemplifica, com o terremoto do Haiti e, o terremoto e tsunami do Japão. Sabe-se que, historicamente esse país sofre com conflitos, são mais de 200 anos de “massacre”, e que antes do terremoto, já era considerado o país da pobreza mais miserável. 1006 Sugerem Andrea Pacheco Pacífico e Thaís Kerly Ferreira Pinheiro, (Acesso 30 mar. 2015), “recursos financeiros e apoio técnico para reconstruir o país”; também sugerem normas internacionais “que coadunem com os interesses dos Estados e as obrigações de proteção da pessoa humana”; ou “um sistema de proteção específico para deslocados ambientais, por não serem refugiados”; ou “ampliação da definição de refugiados”: veja-se: deve-se, antes de tudo, haver uma maior participação da comunidade internacional na ajuda ao Haiti com recursos financeiros e apoio técnico para reconstruir o país, permitindo, assim, que seus cidadãos não precisem emigrar para sobreviver. Como a migração, contudo, é um fato e um fenômeno notório e crescente no cenário internacional e o direito internacional deve garantir normas que coadunem com os interesses dos Estados e as obrigações de proteção da pessoa humana, sugestões podem ser dadas a respeito da problemática aqui exposta. Um delas seria ampliar o atual regime internacional dos refugiados, alargando a definição do termo para incluir, também, vítimas de catástrofes ambientais, como os imigrantes haitianos que vieram ao Brasil após o terremoto de 2010. Assim, poderia, em esfera internacional e nacional, ser conferida proteção, por meio do refúgio, a pessoas fugindo de eventos (antropogênicos ou naturais) que perturbassem seriamente a ordem pública. Outra sugestão seria desenvolver um sistema de proteção específico para deslocados ambientais, por não serem refugiados e caso a ampliação do regime seja difícil, posto que os instrumentos de direito internacional são restritivos em relação a eles. Finalmente, a questão central abordada é que se torna imperativo que as autoridades competentes avaliem o caso, pois, dada a situação calamitosa do Haiti, seus cidadãos poderiam ser considerados refugiados, se apreciado pela perspectiva da ampliação da definição, principalmente pelo fato de que o Haiti, já antes do terremoto, vivia em calamidade social, produto da recente trajetória política, traçada por alterações drásticas e violentas de governos que arrastaram o país a um extremo empobrecimento. (PACIFICO; PINHEIRO, Acesso 30 mar. 2015). Nessa linha de raciocínio, no que tange as dificuldades socioambientais, para os haitianos no Brasil, elas são de inúmeras ordens, desde problemas com a documentação, (respaldo para o exercício da cidadania) assistência, trabalho, saúde, entre outros. Veja-se abaixo alguns aspectos: Quanto a documentação, o Ministério da Justiça (Acesso, 30 mar. 2015) estima que dos “cerca de 10 mil haitianos que entraram no Brasil em situação irregular, mais de 6 mil já foram regularizados desde 2010. O restante dos pedidos está em trâmite”. Cumpre lembrar que a Embaixada brasileira na cidade de Porto Príncipe, “emitiu 1525 vistos permanentes especiais, por razões humanitárias” entre 2012 e 2013. 1007 Também cumpre destacar que o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) em janeiro de 2012 aprovou inicialmente Resolução de número 97/12 um visto especial humanitário. Ou seja, regula a concessão de um visto humanitário aos haitianos, porém com o fechamento das fronteiras para os migrantes ilegais. A resolução traz: Art. 1º Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente previsto no art. 16 da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termo do art. 18 da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro. Parágrafo único. Considera-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes de agravamento de condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010. Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe. Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos por ano, correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas 63 disposições legais do País. Noutra seara, lembra ainda Anne Paiva de Alencar (Acesso 10 abr. 2015): Em relação à concessão do refúgio, o Coordenador afirmou que a obrigação pátria com relação ao refúgio provém, majoritariamente, da Convenção de 1951, bem como do Protocolo de 1967, somados à Lei n. 9.474/97. Conforme o Ofício: Em que pese a precariedade da situação objetiva do Haiti, que se arrasta até os dias atuais, milhares de haitianos continuam a viver em abrigos, contando com a comunidade internacional para a reconstrução do país. Entretanto, à luz do direito internacional dos refugiados, o atual drama humanitário do Haiti, fincado em pilares naturais e econômicos, não é capaz de levar aos haitianos a serem reconhecidos como refugiados. Eis que nem a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e tampouco o seu Protocolo de 1967 estabelecem os desastres naturais e/ou dificuldades econômicas como fatores capazes de ensejar o refúgio. [...] No caso dos cidadãos haitianos o Estado brasileiro arquitetou uma proteção jurídica complementar de viés humanitário. Posição essa, alias, muito elogiada pelo ACNUR. Conclui Anne Paiva de Alencar (Acesso 10 abr. 2015):: No caso específico dos deslocados haitianos, o Governo Brasileiro, por meio do CONARE, decidiu que estes não se enquadram do termo ‘refugiado ambiental’, tendo em vista que não há nenhuma convenção ou acordo internacional sobre o tema ratificado pelo Brasil. Porém, pode-se ver que existem esforços, tanto no ordenamento nacional quanto no internacional, com o intuito de regulamentar este termo, para que saia do mundo puramente doutrinário e tenha uma aplicação prática na sociedade, tendo em vista que há a necessidade de 63 CNIg. Resolução Normativa n. 97 de 12 de janeiro de 2012. Dispõe sobre a concessão do visto permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti. 1008 um instituto, com força internacional, que busque proteger os atingidos por desastres ambientais. É possível que não se possa determinar com certeza se os movimentos de atravessar fronteiras sejam forçados ou voluntários, porém este não é o elemento mais importante dentro do Direito Internacional. O aspecto mais importante é avaliar a necessidade ou não destas pessoas deslocadas receberem proteção internacional e o motivo desta necessidade se converter em direito. Já em janeiro de 2013 publicou nova Resolução Normativa de nº 106/13, prorrogando por mais 12 meses o chamado “Visto especial humanitário a haitianos”. Sendo agora estendida até janeiro de 2015. Adverte: Com a intenção de abrir um canal formal e legal para a imigração haitiana, em janeiro de 2012 a Resolução 97 do CNIg aprovou a concessão de até 1.200 vistos permanentes, por ano, em caráter especial, aos cidadãos haitianos em função dos problemas econômicos e humanitários decorrentes do terremoto de 2010, sem prejuízo das demais modalidades de vistos existentes. A validade da medida, de dois anos, expiraria em janeiro de 2014 (MINISTERIO DO TRABALHO E EMPREGO, Acesso 2 abr. 2015). Essa modalidade de visto, destaca o Portal Brasil, é inédita e muito elogiada, vez que, “sem consulta prévia ao governo brasileiro, é uma facilidade inédita no mundo, elogiada oficialmente pela Organização Internacional para as Migrações (OIM)”. Essa ação segue especificamente a Resolução Normativa 97/2012, “que exige apenas o passaporte válido e a ausência de antecedentes criminais. A opção legal e simplificada desencoraja a atividade de "coiotes" na travessia, por terra, para o Brasil” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015). Quanto a Assistência Humanitária, é digno de nota, é que a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), por meio do Departamento de Estrangeiros, tem autorizado a permanência de estrangeiros, com base na Resolução Normativa 27.64 Já quanto ao Trabalho e do Emprego, o Ministério do Trabalho e Emprego está emitindo Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Ou seja, “uma estrutura móvel itinerante do Sistema Nacional de Emprego (Sine) cadastra os trabalhadores, diretamente de Basiléia (Acre), principal porta de entrado dos haitianos no Brasil, por meio do “sistema MTE Mais Emprego, que vão concorrer 64 “Além de haitianos, a política foi aplicada para angolanos, entre 1991 e 1992; iranianos da comunidade bahai, em 1986; e aos colombianos, entre 2008 e 2009. Os haitianos estão vindo para o Brasil por razões econômicas”. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015). 1009 às vagas captadas pelos 1,6 mil postos do Sine em todo o país”. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015). Ironia não? concorrer com os brasileiros, quando sequer há forças, quando sequer há condições iguais. Quando sequer se pode estabelecer parâmetros. Ainda quanto ao Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que é outro fator que demanda atenção, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, embora tenha reforçado um sistema para um melhor abrigamento dos haitianos, ou seja muitas vezes as condições oferecidas são insuficientes, veja-se a ressalva feita pelo Ministério de que “em 2012, o MDS repassou R$ 630 mil ao governo do Acre para a realização destas ações, sendo R$ 360 mil em janeiro e R$ 270 mil em novembro” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015). Quanto à saúde, a situação apesar de grave, está sob controle, pois o Ministério da Saúde, colocou à disposição um médico, e uma enfermeira da (Força Nacional do Sistema Único de Saúde - SUS) e ainda um técnico da área de Vigilância em Saúde, afim de avaliar a saúde dos haitianos, no que se refere a situação epidemiológica, como doenças alimentares e relacionadas ao uso da água e moradia (precárias). 65 Nesse sentido adverte o Papa Francisco, (Acesso 12 abr. 2015) após cinco anos: O Papa Francisco afirmou que muito já foi feito para reconstruir o país, mas ressaltou que “não podemos ignorar o fato de que ainda falta muito o que fazer” [...] O terremoto de 12 de janeiro de 2010, cujo epicentro ocorreu perto da capital, Porto Príncipe, e provocou mais de 200 mil mortes e afetou pele menos três milhões e pessoas, destruiu grande parte da infraestrutura do país e todos os hospitais da ilha. — Não há verdadeira reconstrução sem a reconstrução da própria pessoa. Isto pressupõe que cada pessoa no Haiti tenha o necessário do ponto de vista material, mas também que ao mesmo tempo possa viver sua liberdade, suas responsabilidades e sua vida religiosa e espiritual — afirmou o Papa. O pontífice expressou gratidão “a todos os que, de numerosas formas, acudiram o povo haitiano” após o terremoto. A conferência, que teve como tema “A comunhão da igreja: memória e esperança para o Haiti a cinco anos do terremoto”, foi realizada no 65 Nessa seara, quanto a Cooperação, as ações na área de saúde com o Haiti são o maior programa de cooperação mantido pelo Brasil em todo o mundo. Cooperação nos âmbitos bilateral e em parceria com Cuba. Foram reformados e reconstruídos dois laboratórios especializados em vigilância epidemiológica. No âmbito trilateral (Brasil, Cuba e Haiti), três hospitais Comunitários de Referência e um Instituto Haitiano de Reabilitação estão previstos para serem entregues em 2013. O projeto inclui também a formação de profissionais de saúde. O Brasil participou da Campanha Nacional de Vacinação no Haiti de 2012, com a doação de vacinas e o fornecimento de consultoria técnica”. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015). 1010 Vaticano “pelo desejo do pontífice de manter viva a atenção sobre um país que ainda sofre as consequências da catástrofe e para reiterar a aproximação da Igreja com o povo haitiano nesta fase de reconstrução”. Realidade cruel, passados cinco anos do terremoto, segundo a Agência Brasileira de Comunicação, (Acesso 12 abr. 2015) a Anistia Internacional (AI), em relatório, afirma que são mais de 170 mil haitianos, que ainda vivem em acampamentos, observa-se: Quatro (agora cinco) anos depois da tragédia que deixou 220 mil mortos e 2,3 milhões de desabrigados, 171.974 pessoas ainda vivem em campos de desabrigados no Haiti, segundo a Anistia Internacional (AI). Em relatório, a entidade informa que a grande maioria dos acampados continua em péssimas condições sanitárias. O terremoto arrasou o país, que teve prédios públicos, hospitais, escolas e casas destruídos. [...] Além de ajudar na reconstrução do país, o Brasil é o maior fornecedor de tropas para a Missão de Paz das Nações Unidas (Minustah), que está no 66 Haiti desde 2004. Vinculo este que se estabelece também com o direito ambiental, vez que, principalmente nos alojamentos; acampamentos (provisórios) não é apenas o uso da água, esgoto, lixo, do meio onde se encontram, é muito mais. 66 “As tropas têm o objetivo de garantir a estabilidade e segurança do país. Os militares brasileiros trabalham também no desenvolvimento urbano com projetos de engenharia, como pavimentação de ruas e iluminação pública, além de projetos sociais. O governo brasileiro investe ainda em projetos de cooperação técnica, especialmente na área de saúde, com a construção de três hospitais, dois laboratórios regionais, um centro de reabilitação, além da formação profissional de 2 mil agentes de saúde, no valor de US$ 70 milhões. O Brasil assinou ainda um acordo para a construção de uma usina hidroelétrica projetada pelo Exército Brasileiro, que fornecerá eletricidade para mais de 1 milhão de famílias. A usina fica a 60 quilômetros da capital, Porto Príncipe. De acordo com a Anistia Internacional, existem 306 acampamentos que alojam desabrigados no país. Desse total, apenas 8% têm fornecimento de água; e 4%, gestão de resíduos. Apenas 54% (166) acampamentos têm banheiros, o que representa um vaso sanitário para cada 114 pessoas. Essas condições, informa a AI, expõem os desabrigados a numerosas doenças. Desde o surto de cólera de outubro de 2010, houve 8.531 mortes provocadas pela doença. Para 2014, o Ministério da Saúde haitiano prevê 45 mil novos casos. Além de lidarem com a precariedade sanitária, os acampados convivem com a ameaça de remoção dos acampamentos. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), 11% dos campos de desabrigados haviam sido fechados à força até setembro de 2013, enquanto 45% da população nessas áreas estavam sob risco de despejo. Segundo a OIM, 113.595 famílias de desabrigados foram realocadas em abrigos temporários, enquanto mais de 54.758 conseguiram se cadastrar em programas de subsídios de aluguéis, recebendo cerca de US$ 500 para alugar uma moradia durante um ano e US$ 125 para iniciar atividades geradoras de renda. A Anistia Internacional, no entanto, questiona a capacidade de os beneficiários desses programas conseguirem se manter no longo prazo. De acordo com a entidade, uma avaliação de doadores internacionais constatou que 60% das famílias que recebem complementação para o aluguel acreditavam que não teriam recursos para manter a qualidade de acomodação após o fim dos subsídios. Além disso, 75% das pessoas que se mudaram após o fim dos contratos estavam morando em condições piores”. Agencia Brasil de comunicação. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2014-01-12/quatro-anos-apos-terremoto-170-milhaitianos-ainda-vivem-em-acampamentos Acesso 12 abr. 2015. 1011 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como resultado parcial, percebe-se que o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) concluiu pela não concessão do refúgio, pois não há status de refúgio para os haitianos no Brasil, (que exige que a pessoa seja vítima de perseguição em seu país, entre outros). Para tanto, o Conselho Nacional de Imigração, baixou uma Resolução Normativa de nº 97/12, criando o “visto por razões humanitárias” (estendido até 2015) para esses imigrantes, e os números vem aumentando, mesmo impondo-se limitações como: liberação de 1.200 vistos/ano e com validade de cinco anos. Tudo isso mostra que o caminho para uma cidadania efetiva é longo, pois assim como os direitos humanos são desrespeitados, basta ver alguns artigos da Declaração Universal, a exemplo do Artigo XXI - [...] Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos; [...] Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país; [...] A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto; Artigo XXV - [...] Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (ONU, Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948). Também a Constituição Federal de 1988: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. É a conjugação de princípios, 1012 direitos, garantias individuais e coletivas, é a cidadania formal, trazido nos artigos 1º, 5º, 6º e 14, muito embora falte a materialização/efetivação. Veja-se: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]. E também os direitos sociais do Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. E por fim, o art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei. Por fim, ainda como conclusão parcial, a verificação de que os imigrantes haitianos, não podem votar por exemplo, e que também não veem respeitados os direitos acima elencados, ou seja, direitos humanos, fundamentais e cidadania, por não existir amparo jurídico efetivo para tanto. O que se sugere, é que seja traçada uma política de amparo em âmbito nacional para os novos refugiados, ou seja os “refugiados ambientais”, salvaguardando a estes os direitos, por uma questão de humanidade. REFERÊNCIAS Agencia Brasil de comunicação. Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2014-01-12/quatro-anos-aposterremoto-170-mil-haitianos-ainda-vivem-em-acampamentos> Acesso 12 abr. 2015. ALENCAR, A. P. Análise da condição jurídica dos caracterizados refugiados ambientais do Haiti no Brasil. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3694, 12 ago. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24288>. Acesso em: 10 abr. 2015. AUGE, M. Los «no lugares» espacios del anonimato: Una antropología de la Sobremodernidad (Título del original en francés: Non-lieux. Introduction á une anthropologie de la surmodenité. Edition de Seuil, 1992. Colection La Librairie du XX 1013 é siecle, sous la direction de Maurice Olender). 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En el ámbito nacional uruguayo la aprobación de la CDN trajo aparejado un importante proceso de cambios normativos, cambios que iniciaron con la Acordada N° 7.236 de la Suprema Corte de Justicia en 1994 y las ampliaciones realizadas en 1995 por la Ley N° 16.707 de Seguridad Ciudadana. Posteriormente, el 7 de setiembre de 2004 es promulgado por el Poder Ejecutivo el Código de la Niñez y la Adolescencia (Ley 17.823) que entró en vigencia a fines de setiembre de 2004. (Morás, L. 2000). Todo este largo proceso de cambios que ha sido transitado en el ámbito nacional e internacional ha contribuido a la consolidación de un derecho penal juvenil de corte garantista, un derecho especifico aplicable a sujetos en desarrollo, reconociendo diversos derechos y garantías a los adolescentes sometidos a proceso. Es en este marco que las actuales reformas legislativas introducidas por las leyes números 18.77167, 18.77768, 18.77869 y 19.05570; así como la continua demanda de cambios sustanciales en el sistema nos presentan un panorama complejo, que tuvo como punto más alto el plebiscito sobre la baja de la imputabilidad penal71. De esta forma, el sistema penal juvenil basado en la CDN parece haber comenzado un camino de cambios en donde se han modificado derechos y principios claves de la CDN. Es por esta razón que se hace necesario reflexionar y discutir sobre nuestras prácticas judiciales para comprender como se desarrollan los procesos penales adolescentes. Si nos centramos en el análisis de las últimas reformas legislativas realizadas al sistema penal juvenil podemos observar que todas ellas de alguna manera han buscado dar respuesta a una creciente demanda de seguridad ciudadana, dejando poco 67 Ley 18771 Creación del Sistema de Responsabilidad Penal Adolescente SIRPA 68 Ley 18777 Modificativa del artículo 69 del CNA, tipificando la tentativa en el delito de hurto. 69 Ley 18779 Creación del registro de antecedentes judiciales para Adolescentes en conflicto con la ley penal 70 Ley 19055 Modificativa de los artículos 72 y 76 del CNA, estableciendo una pena mínima de un año. 71 Luego de una prolongada campaña política que obtuvo las firmas requeridas el 26 de octubre de 2014 junto con las elecciones nacionales se plebiscitó una reforma constitucional a los efectos de reducir la edad de imputabilidad penal a 16 años, la cual si bien no salió aprobada alcanzó el 47% de los votos. 1017 espacio para el intercambio con otras disciplinas. Por otra parte, las actuales políticas de seguridad ciudadana abordan solo una parte del problema haciendo recaer el peso de la ley en los sectores más vulnerables de la sociedad, dejando fuera de la discusión todo dato relacionado a las trayectorias de vida de los adolescentes, elementos fundamentales para comprender los procesos de exclusión social característicos de nuestras sociedades (Rosanvallon. P. 1995). En este contexto es posible observar como la sanción de esta ley repercute en las diferentes argumentaciones generando un endurecimiento de la respuesta penal. PALABRAS CLAVES: Responsabilidad penal juvenil, política pública derechos de infância y 1 INTRODUCCIÓN El presente artículo tiene por finalidad presentar parte de los resultados del Proyecto de Investigación "La culpabilidad en el derecho penal juvenil y su vinculación con la determinación judicial de la pena", desarrollado en el marco del Programa de Iniciación a la Investigación Científica financiado por la Comisión Sectorial de Investigación Científica (CSIC). Para la realización del mismo se procedió a la recolección de información cuantitativa y cualitativa de fuentes secundarias para el análisis de los expedientes judiciales de los cuatro Juzgados Letrados de Adolescentes que funcionan en la Cuidad de Montevideo. El objetivo de este trabajo consiste en determinar el impacto de la Ley Nº 19.05572 en la determinación judicial de la pena realizada por los Juzgados Letrados de Adolescentes, tomando como período de estudio febrero – marzo de 2012 y febrero – marzo de 2013. Dado que la Ley 19.055 entró en vigencia en febrero de 2013 se aseguró que a todos los casos del periodo 2013 les sería aplicable dicha normativa. En una primera instancia, se procedió al análisis de los datos socioeconómicos de los adolescentes que ingresaron al sistema penal juvenil, en base a la información que surge de los informes técnicos agregados a los expedientes judiciales. Para luego adentrarnos específicamente en el análisis de las sentencias judiciales, estableciendo comparaciones entre los dos periodos, previa y posterior a la entrada en vigencia de la Ley 19.055, en lo relacionado a la 72 Sancionada el 04 de enero de 2013. 1018 aplicación de medidas privativas y no privativas de libertad y el quantum de la pena para los delitos de hurto y de rapiña73. De la recolección de datos realizada se pudo acceder a un total de 131 Expedientes Judiciales correspondientes al año 2012 y 139 Expedientes Judiciales correspondientes al año 2013. Lo que representó un total de 153 procesos infraccionales concluidos en el período 2012 y 166 en el período 2013, dado que en algunos casos en un mismo expediente judicial se tramitaron más de un proceso infraccional. En lo que respecta a la Ley Nº 19.055 corresponde mencionar que la misma modificó sustancialmente el régimen jurídico aplicable a los adolescentes en conflicto con la ley, incorporando el artículo 116 bis al CNA. De esta forma, se introdujeron diversas modificaciones para los delitos gravísimos74 (entre ellos el de rapiña), cometidos por adolescentes de entre 15 y 17 años de edad, siendo las siguientes las más relevantes: 1) El establecimiento de una pena mínima de un año; 2) La obligatoriedad de la medida cautelar de internación provisoria; y 3) La comunicación al Juzgado Penal competente a efectos de evaluar la presunta responsabilidad de los representantes legales del adolescente. Por otra parte, en su artículo 2 se establece la posibilidad de un procedimiento abreviado el cual previa conformidad de las partes permite el dictado de sentencia definitiva en la audiencia preliminar, disponiendo en la misma línea que la Ley 18.777, que no será impedimento para el dictado de sentencia definitiva la falta de informes técnicos. 73 Artículo 344 (Rapiña) El que, con violencias o amenazas, se apoderare de cosa mueble, sustrayéndosela a su tenedor, para aprovecharse o hacer que otro se aproveche de ella, será castigado con cuatro a dieciséis años de penitenciaría. La misma pena se aplicará al que, después de consumada la sustracción, empleara violencias o amenazas para asegurarse o asegurar a un tercero, la posesión de la cosa sustraída, o para procurarse o procurarle a un tercero la impunidad. La pena será elevada a un tercio cuando concurra alguna de las circunstancias previstas en el artículo 341 en cuanto fueren aplicables. 74 Delitos de: Homicidio, Lesiones gravísimas, Violación, Rapiña, Privación de libertad agravada, Secuestro y cualquier otro que el Código Penal o las Leyes Especiales castiguen con una pena cuyo límite mínimo sea igual o superior a seis anos de penitenciaria o cuyo límite máximo sea igual o superior a doce años de penitenciaria. 1019 2 ANÁLISIS DE DATOS 2.1 Informes Técnicos En lo relacionado a los informes técnicos podemos observar que en el período 2012 fueron agregados 103 informes técnicos, mientras que en el período 2013 fueron agregados 105, con lo cual prácticamente no se encuentran variaciones respecto a este punto. Igualmente es preciso mencionar que la Ley 18.77775 ya había dispuesto la posibilidad de dictar sentencia definitiva sin el informe técnico, aunque el mismo debía agregarse con posterioridad. 2.1.1Edades En relación a las edades podemos observar que de los adolescentes sometidos a proceso en cada uno de los períodos un 72 % tenía entre 16 y 17 años en el período 2012 y un 69 % en el período 2013, siendo casi inexistentes los procesos iniciados a jóvenes de 13 años de edad. Edades 2012 2013 13 2 (2%) 3 (3%) 14 5 (5%) 7 (7%) 15 21 (20%) 22 (21%) 16 30 (29%) 37 (35%) 17 44 (43%) 36 (34%) 18 1 (1%) - Total 103 (100%) 105 (100%) 75 Sancionada el 15 de julio de 2011 1020 2.1.2 Sexo En lo relacionado al sexo, podemos observar, en consonancia con los antecedentes sobre el tema, un amplio predominio de adolescentes de sexo masculino, representando un 93 % del total para el año 2012 y un 89 % del total para el año 2013. Sexo 2012 2013 Masculino 96 (93%) 93 (89%) Femenino 7 (7%) 12 (11%) Total 103 (100%) 105 (100%) 2.1.3 Antecedentes Un dato significativo refiere a los antecedentes infraccionales de los adolescentes sometidos a proceso. En ese caso se observa una concordancia entre los dos períodos de estudio registrándose un 58% de adolescentes sin antecedentes para el 2012 y un 59 % para el 2013. Antecedentes 2012 2013 Sin Antecedentes 60 (58%) 62 (59%) Con Antecedentes 43 (42%) 43 (41%) Total 103 (100%) 105 (100%) 2.1.4 Nivel educativo En este caso podemos observar que un 51% de los adolescentes a los cuales se les inició proceso en el período 2012 no ingresaron a ciclo básico, descendiendo levemente para el periodo 2013, en donde se ubico en el 48%. Asimismo, surge un alto porcentaje de jóvenes con primaria incompleta, representando un 26% para el 2012 y 28% para el 2013. A esto se le debe sumar 1021 que si bien un 35 % de los jóvenes accedieron a ciclo básico en el 2012 y un 39% en el 2013, de la información obtenida surge que mayoritariamente son adolescentes con un importante rezago educativo, quienes en muchos casos terminan por abandonar los estudios. “Se inscribió en el liceo Nº 19 donde cursó 1º año de ciclo básico, repitió, vuelve a cursar en dos oportunidades y finalmente abandona” (Expediente 21/2013 Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Informe Técnico) “En el plano educativo tiene aprobado el ciclo primario, repitiendo luego dos veces 1º de liceo” (Expediente 42/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Informe Técnico) “…curso hasta segundo año liceal el que abandonó sin terminar….” (Expediente 19/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico) “…….finalizada la escuela concurrió a tres centros de capacitación, no pudiendo aportar identificación de los mismos y de los cuales habría sido expulsado, a causa de su mal comportamiento……” (Expediente 48/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno – Informe Técnico) En otros casos, podemos encontrar jóvenes que directamente no han culminado sus estudios primarios, en donde en algunos casos ni siquiera se ha adquirido lecto–escritura. ”XX ha cursado hasta 4º año de estudios primarios, alega tener dificultad de aprendizaje. No sabe leer ni escribir” (Expediente 28/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno –Informe Técnico) “ “Según lo manifestado por la madre no habría terminado ciclo escolar y no accedió a la lecto-escritura” (Expediente 22/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico) “Cursó hasta 5 año de escuela y lo pasaron de grado por extra edad. Expresa haber recursado primero en tres ocasiones” (Expediente 28/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno – Informe Técnico) Nivel educativo 2012 2013 1022 Primaria Incompleta 27 (26%) 29 (28%) Primaria Completa 26 (25%) 21 (20%) Ciclo básico Incompleto 36 (35%) 41 (39%) Ciclo básico completo 5 (5%) - Bachillerato Incompleto 1 (1%) - UTU incompleto 8 (8%) 12 (11 %) Otros - 2 (2%) Total 103 (100%) 105 (100%) 2.1.5 Consumo de sustancias psicoactivas Sin lugar a dudas otro dato relevante que surge del análisis de los informes técnicos, refiere presentaron al importante porcentaje de adolescentes que no un consumo problemático de sustancias psicoactivas. De esta forma, un 70 % de los adolescentes no presentó un consumo problemático para el período 2012, mientras que en el 2013 se ubicó en el 76%. En los casos en donde se detectó un consumo problemático en su gran mayoría el mismo estuvo vinculado al consumo de pasta base. Este consumo problemático da cuenta de un deterioro personal importante a nivel de salud, educación, vínculos familiares etc., derivando en muchos casos en el abandono del hogar. ”De manera que se está frente a una adolescente cuyo acceso al sistema educativo, de salud, de protección son mínimos e inexistentes. A esto hay que agregar los daños que ha sumado el consumo problemático de drogas” (Expediente 32/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno Informe Técnico) ”Al momento de ser arrestado el joven presentaba consumo problemático de sustancias psicoactivas (PCB) permaneciendo en situación de calle” (Expediente 20/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Informe Técnico) “X presenta un consumo abusivo de PBC, por lo cual estuvo internado en Api por el termino de un año, posteriormente se fuga y vuelve a consumir”(…..)”Se trata de un joven que presenta situaciones de vida riesgosa, 1023 por permanecer un importante tiempo de su vida en situación de calle…..” (Expediente 39/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico) Consumo de sustancia 2012 2013 No consume 48 (47%) 50 (47%) Consumo no problemático 24 (23%) 30 (29%) Consumo problemático 31 (30%) 25 (24%) Total 103 (100%) 105 (100%) 2.1.6 Núcleo familiar Del análisis de los datos surge como relevante un aumento en el porcentaje de familias integradas por más de tres niños, niñas y adolescentes, ubicándose en un 52% para el período 2012 aumentando sensiblemente para el periodo 2013, ascendiendo a un 74 % del total. Otro dato relevante refiere a la presencia de hogares nucleares mono-parentales el cual asciende a un 30% para el período 2012 y 32% para el período 2013. En estas situaciones el adulto responsable en la mayoría de los casos es la madre del joven, quien oficia como jefa de hogar. “Según versión materna fue ella quien se ocupó de la crianza de sus hijos. En relación al padre biológico no puede aportar datos….” (Expediente 46/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico) “Proviene de un núcleo familiar con muy bajos recursos económicos, madre jefa de hogar, con trabajo precario, recibe ayuda del MIDES (tarjeta y asignación familiar) siendo por periodo este su único sustento” (Expediente 19/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Informe Técnico) “Adolescente que integra un grupo familiar compuesto por su madre”(….)”el padre de X no mantiene de acuerdo a lo referido vinculo con su hijo…” (Expediente 37/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –Informe Técnico). 1024 Núcleo familiar 2012 2013 Sin núcleo familiar 2 (2%) 1(1%) Hogar nuclear completo con 1 o 2 hijos 6 (6%) 3 (3%) Hogar nuclear completo con 3 o 4 hijos 5 (5%) 11 (10%) Hogar nuclear completo con más de 4 hijos 9 (9%) 9 (9%) Hogar nuclear monoparental con 1 o 2 hijos 13 (12%) 7 (7%) Hogar nuclear monoparental con3 o 4 hijos 9 (9%) 14 (13%) Hogar nuclear monoparental con más de 4 hijos 9 (9%) 13 (12%) 20 (19%) 11 (10%) 6 (6%) 12 (11%) 1 (1%) 4 (4%) 3 (3%) 2 (2%) 9 (9%) 8 (8%) edad a cargo 4 (4%) 7 (7%) Situación de calle 7 (6%) 3 (3%) Hogar extendido con 1 o 2 menores de edad a cargo Hogar extendido con 3 o 4 menores de edad a cargo Hogar extendido con más de 4 menores de edad a cargo Hogar compuesto con 1 o 2 menores de edad a cargo Hogar compuesto con 3 o 4 menores de edad a cargo Hogar compuesto con más de 4 menores de Total 103(100%) 105 (100%) 2.1.7 Relación con el trabajo del núcleo familiar En relación a este punto podemos observar un alto porcentaje de antecedentes de trabajo por parte de los integrantes de los grupos familiares, tanto en el período 2012 como 2013. Sin embargo, nos encontramos frente a un trabajo de tipo informal, predominando la desprotección de normas laborales y de seguridad social. 1025 “Los ingresos económicos del núcleo familiar provienen del trabajo de estos adultos como feriantes en el rubro de vestimenta……” (Expediente 48/2013 Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico) “XX de 16 años de edad, fecha de nacimiento 26/01/1997, reside con sus abuelos paternos XX clasificador y XX empleada de limpieza en un almacén……” (Expediente 51/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Informe Técnico) “Ha trabajado de manera esporádica en changas de albañilería con su padre” (Expediente 37/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno – Informe Técnico) “todas las mujeres del núcleo familiar se desempeñan como empleadas domesticas con retiro y feriantes siendo este el sustento económico familiar” (Expediente 23/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno – Informe Técnico) Como dato relevante podemos encontrar la presencia de diferentes prestaciones sociales provenientes del Estado (MIDES76 - BPS77) que en algunos casos forma parte sustancial del ingreso de estos núcleos familiares. “La familia reside en la zona del asentamiento Los Reyes con sustentos desde el punto de vista económicos provenientes de asignaciones y tarjetas del MIDES” (Expediente 30/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico) “…..los recursos económicos del grupo familiar están compuestos por transferencias otorgadas por organismos estatales en el marco de políticas sociales dirigidas a grupos vulnerables, asignaciones familiares e ingresos ciudadanos, tarjeta de compras”(Expediente 42/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico) “Los ingresos económicos de la familia provienen de tareas de reciclaje que realiza el Sr. XX y de asignaciones de las hijas menores de edad” (Expediente 24/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico) 76 77 Ministerio de Desarrollo Social Banco de Previsión Social 1026 Relación con el trabajo NF 2012 2013 Sin antecedentes 14 (14%) 17 (16%) Con Antecedentes 89 (86%) 88 (84%) Total 103(100%) 105 (100%) 2.1.8 Antecedentes infraccionales del núcleo familiar En lo relacionados a los antecedentes penales o infraccionales de los integrantes del núcleo familiar podemos observar un alto porcentaje de casos sin antecedentes de ningún tipo. Habiendo sin embargo un 27 % de casos con algún antecedente penal o infraccional para el período 2012 y un 29 % para el período 2013. En relación a este punto es posible encontrar diferentes datos en donde el vínculo con el sistema penal forma parte de las vivencias del núcleo familiar, teniendo consecuencias desde el punto de vista afectivo y económico. “En el 2004 la Sra. XX estuvo recluida durante nueve meses por omisión de los deberes inherentes a la patria potestad, según sus expresiones fue en el momento que todos los chicos se le fueron a la calle y luego todos (excepto los dos menores actualmente a su cargo) han estado en diversos centros tanto de amparo como de privación de libertad. En relación a su padre dice que no lo conoce” (Expediente 28/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –Informe Técnico) “Joven que se encuentra en extrema vulnerabilidad en lo que respecta a la situación familiar su madre falleció hace 10 años y su padre ha estado recluido en el COMCAR” (…..)” XX cuanta con cuatro hermanos de 5, 9,10 y 15 años de edad” (Expediente 41/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Informe Técnico) “Convivía con su tía ya que su madre se encuentra presa en el CNR. Hay otros integrantes de la familia también privados de libertad” (Expediente 18/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno – Informe Técnico) 1027 “XX cursa embarazo sin control en el segundo trimestre. El padre de la criatura, pareja de la joven, ejerció sobre la misma violencia domestica, razón por la cual la madre tuvo que intervenir en defensa de su hija” (Expediente 23/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno – Informe Técnico) Antecedentes infraccionales del NF 2012 2013 Sin antecedentes 75 (73%) 75 (71%) Con un integrante con antecedentes 25 (24%) 19 (18%) Con hasta tres integrantes con antecedentes 3 (3%) 11 (11%) Totales 103 (100%) 105 (100%) 2.1.9 Zonas de residência En relación a las zonas de las cuales provienen los adolescentes sometidos a procesos se optó por agruparlos tomando como criterio principal la distribución en Comunales Zonales78, realizando modificaciones a efectos de no repetir barrios y unir algunas zonas con características socioeconómicas similares. La información relativa a las zonas se obtuvo del domicilio que figura en los informes técnicos, complementando este dato con las actas labradas en sede policial. Es así que se procedió a dividir la cuidad de Montevideo en 17 zonas, sumándole a ello la zona 18 correspondiente al Departamento de Canelones y la Zona 19 que refiere a adolescentes en situación de calle. De la distribución surgen varios datos relevantes, el primero de ellos refiere a una marcada concentración de adolescentes provenientes de las zonas 10, 16, 13, 9, 8 y 7 las cuales representaron un 69 % del total para ambos períodos. Estas zonas comprenden barrios a los cuales podemos caracterizar como de bajo nivel socioeconómico, tales como, Casavalle, La Teja, Cerro, Cerro Norte, Maroñas, Piedras Blancas, Punta de Rieles, Manga, Carrasco Norte, Cruz de Carrasco, Malvín Norte, entre otros. 78 Lista de Centros Comunales www.montevideo.gub.uy/institucional/centros-comunales Zonales Montevideo: 1028 Por otra parte, muchas veces si bien se menciona el domicilio del adolescente, este dato se presenta matizado por la alternancia entre el hogar y la calle, surgiendo un cotidiano marcado por el relacionamiento con el grupo de pares. “XX se encuentra en calle todo el día con un grupo de pares con quienes realiza actividades recreativas y otras que lo vulneran y exponen” (Expediente 34/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno – Informe Técnico) “a los 12 años abandona su hogar, argumentando según sus palabras (no me gusta que me manden) Al mes de convivir en casa de amigos, vuelve con sus padres” (Expediente 24/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico) Otras veces, el domicilio se presenta como un lugar en donde los referentes adultos no asumen un rol preponderante, en estos casos nos encontramos frente a jóvenes que alternan su niñez y adolescencia entre Hogares de Amparo de INAU y la calle. ”………..a la edad de 9 años XX se va de su casa, junto a su hermano, pasando a vivir en situación de calle. Es a partir de este momento que el joven comienza a alternar su permanencia entre centros de protección de INAU y la casa de los abuelos, para luego retornar a su situación de calle inicial” (Expediente 20/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Informe Técnico) “con una larga trayectoria institucional, ha estado en prácticamente todos los centros, iniciando su institucionalización en la infancia” (Expediente 15/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico) “XX no cuenta con un grupo familiar de referencia y ante lo dispuesto en relación a su situación de amparo” (Expediente 31/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico) Por último, es posible encontrar algunos casos en donde directamente se ubica al adolescente e incluso a su familia en situación de calle. En estos casos nos encontramos frente a jóvenes que han estando en esta situación hace varios años. 1029 “La madre y sus hijos vivían desde hacía ya varios meses en situación de calle con todo lo que ello implica” (Expediente 32/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno - Informe Técnico) “XX de 16 años de edad”(……)”se encuentra en situación de calle”(…..)”Expresa que desde hace algunos años no reside con su madre en virtud que la pareja de esta ejercía maltrato sobre él” (Expediente 30/2013 Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –Informe Técnico) “….la joven ingresa a INAU en calidad de amparo”(…….)”A esto se agrega su prolongada situación de calle que le dificulta la modificación de sus conductas infractoras” (Expediente 20/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno –Informe Técnico) Zona 2012 2013 1 2 (2%) 6 (6%) 2 2 (2%) 6 (6%) 3 3 (3%) 2 (2%) 4 7 (7%) - 5 - 1 (1%) 6 - - 7 9 (9%) 8 (7%) 8 18 (17%) 6 (6%) 9 12 (12 %) 10 (9%) 10 15 (14%) 20 (19%) 11 2 (2%) 1 (1%) 12 3 (3%) 4 (4%) 13 7 (7%) 12 (11%) 14 2 (2%) 2 (2%) 15 1 (1%) - 16 11 (10%) 18 (17%) 17 2 (2%) 3 (3%) 18 1 (1%) 3 (3%) 19 6 (6%) 3 (3%) 1030 Total 103 (100%) 105 (100%) 2.2 Análisis de las Sentencia En relación a este punto se pudo obtener información acerca de un total de 153 sentencias para el período 2012 y 166 sentencias para el período 2013. 2.2.1Bien jurídico protegido Si analizamos los datos obtenidos en relación al bien jurídico protegido por la norma podemos observar una coincidencia entre ambos periodos de estudio, siendo el bien jurídico propiedad el que ocupó el mayor porcentaje de casos. Bien jurídico 2012 2013 Propiedad79 140 (91%) 144 (86%) Persona Física 5 (3%) 9 (5%) Vida 3 (2%) 6 (4%) Sexuales 1 (1%) 2 (1%) Ley de estupefacientes 4 (3%) 1 (1%) Otros 0 4 (3%) Totales 153 (100%) 166 (100%) 2.2.2 Tipificación de los delitos De los datos obtenidos se puede observar un amplio predominio de los delitos de hurto y rapiña, siendo como ya se mencionó la propiedad el bien jurídico tutelado con mayor intensidad. Si tomamos para cada período las diferentes modalidades de hurto y rapiña (incluyendo la tentativa) podemos observar que en el período 2012 los hurtos se ubicaron en un 31%, alcanzando un 37% para el 2013. En el caso de la rapiña las mismas se ubicaron en un 53% para el período 2012, descendiendo a un 44% para el 2013. 79 En este caso refiere a los delitos regulados por el Titulo XIII del Código Penal Uruguayo, mayoritariamente a los delitos de hurto, rapiña (en sus diversas modalidades) y receptación. 1031 De esta forma el 84 % (2012) y el 81 % (2013) de las tipificaciones realizadas por los Juzgados Letrados de Adolescentes de Montevideo refirió al delito de hurto y rapiña. Tipificación 2012 2013 Hurto simple 26 (17%) 42 (25%) Rapiña simple 41 (27%) 45 (27%) Hurto complejo80 2 (1%) 2 (1%) Rapiña compleja81 21 (14%) 13 (8%) Hurto tentado 20 (13%) 19 (11%) Rapiña tentada 18 (12%) 15 (9%) Receptación 12 (8%) 7 (4%) Daño - 1 (1%) Lesiones simple 2 3 Lesiones complejas82 - 4 Homicidio 1 4 Homicidio tentado 3 2 Tenencia no para consumo 2 - Estupefacientes 2 1 Violencia privada 1 2 Amenazas 1 - Atentado violento al pudor 1 - Violación - 2 Desacato - 1 Encubrimiento - 2 Falsificación de C.I Total 1 153 166 80 Para esta agrupación se tuvo en cuenta lo dispuesto en el Título IV del Código Penal Uruguayo referente al concurso de delitos y delincuentes. 81 Idem 82 Idem 1032 2.2.3 Tipo de medida cautelar Dentro del período de estudio y en consonancia con los antecedentes sobre el tema, la medida cautelar más utilizada por los Juzgados Letrados de Adolescentes de Montevideo fue la internación provisoria, alcanzando un 42 % para el período 2012, y un 49% para el 2013. Este aumento del 7% puede tener relación con los cambios introducidos por la Ley 19.055, la cual dispuso para el delito de rapiña (entre otros) cometido por jóvenes de entre 15 y 17 años la obligatoriedad de la internación provisoria como medida cautelar. Tipo de medida cautelar 2012 2013 Internación provisoria 65 (42%) 81 (49%) Obligación de concurrir al tribunal 32 (21%) 40 (24%) Arresto domiciliario 36 (23%) 14 (8%) Sin medida 18 (12%) 28 (17%) Prohibición de salir del país 1 (1%) - Prohibición de acercarse 1 (1%) 3 (2%) Totales 153 166 2.2.4 Tipo de medida definitiva En relación al tipo de medida aplicada por los Juzgados Letrados de Adolescentes de Montevideo surge un alto porcentaje de medidas privativas de libertad, las cuales alcanzaron un 46 % para el período 2012 y un 55 % para el período 2013. Al igual que en el caso de las medidas cautelares podemos observar un aumento en la aplicación de medidas de privación de libertad de un 9%, aquí también es factible que dicho aumento refiera al establecimiento de una pena mínima de un año para el delito de rapiña cometido por adolescentes de entre 15 y 17, dado que para estos casos no está 1033 permitido al Juez de la causa la utilización de medidas alternativas a la privación de libertad. Tipo de medida rapiña simple 2012 2013 Privativa de libertad 23 (56%) 42 (93%) No privativa de libertad 18 (44%) 383 (7%) Total 41 (100%) 45 (100%) Tipo de medida aplicada 2012 2013 Privativa de libertad 70 (46%) 91(55%) No privativa de libertad 82 (53%) 71(43%) Sin medida 1 (1%) 4 (2%) Total 153 (100%) 166(100%) Si analizamos el tipo de medida definitiva para el delito de rapiña podemos observar que efectivamente para los casos de rapiña simple la aplicación de medidas privativas paso de un 56% en el período 2012 a un 93% en el 2013, habiéndose registrado solo tres casos de medidas no privativas las cuales fueron cometidas por jóvenes menores de 15 años a los cuales no le es aplicable la Ley 19.055. En el caso de rapiña compleja podemos observar que en el 100% de los casos fue aplicada una medida privativa de libertad para el periodo 2013, claramente como consecuencia de la aplicación de la Ley 19.055. Tipo de medida rapiña compleja 2012 2013 Privativa de libertad 15 (71%) 13 (100%) No privativa de libertad 6 (29%) - Total 21 (100%) 13 (100%) 83 Delito de rapiñas realizado por jóvenes de 13 y 14 años a los cuales no le fue aplicable la Ley 19.055. 1034 Si analizamos el tipo de medida para el delito de hurto simple, delito al cual no le es aplicable la Ley 19.055, podemos observar que en el período 2012 la medida privativa de libertad se ubico en un 42% descendiendo para el período 2013 a un 33 %. En estos delitos es donde se observa un mayor uso de medidas no privativas de libertad, aunque sin lugar a dudas la utilización de medidas privativas de libertad no deja de ser alta, mas si tenemos en cuenta que este tipo de delitos no implica el uso de violencia física. Tipo de medida hurto simple 2012 2013 Privativa de libertad 11 (42%) 14 (33%) No privativa de libertad 15 (58%) 28 (67%) 42 Total 26 (100%) (100%) 2.2.5 Duración de las medidas en meses 2.2.5.1Rapiña En el caso del delito de rapiña se puede observar como claramente la Ley 19.055 ha repercutido no solo en la no aplicación de medidas alternativas, sino también en un aumento del tiempo de internación. Aunque es necesario señalar que el tiempo de internación para la rapiña simple se ubicó en los 13 meses, con lo cual estamos casi en el mínimo de pena establecida por la Ley 19.055. Sin perjuicio de ello, si analizamos los casos de rapiña compleja vemos que la duración de la pena promedio aumenta hasta los 16 meses. De esta forma, en el caso de rapiña simple podemos observar respecto del 2012 un aumento de 6 meses promedio en la duración de la medida privativa de libertad. Para el caso de rapiña compleja la duración de la pena paso de 11 meses promedio a 16 meses, aumentando en 5 meses promedio la duración de la medida. Promedio de pena PL84 2012 2013 Rapiña Simple 7±1 13±1 84 Privativa de libertad 1035 Rapiña Compleja 11±4 16±3 Si analizamos el mínimo y el máximo de pena establecida en cada período para el delito de rapiña podemos observar que para la rapiña simple el mínimo para el 2012 fue 4 meses, notoriamente menor que en el período 2013 en donde se ubicó en 12 meses. Si tomamos el valor máximo podemos observar que el mismo pasó de 9 meses para el período 2012 a 16 meses para el período 2013. Rapiña simple PL 2012 2013 Mínimo 4 12 Máximo 9 16 Si analizamos los casos de rapiña compleja podemos observar como dato relevante que en el período 2012 el máximo para este delito se colocó en 19 meses pasando a 24 meses en el 2013. Registrando un aumento significativo en el mínimo para cada período pasando de 3 meses en el 2012 a 12 meses en el 2013. Rapiña compleja PL 2012 2013 Mínimo 3 12 Máximo 19 24 Por otra parte y como consecuencia directa de la aplicación de la Ley 19.055 casi no se encontraron casos de aplicación de medidas no privativas para el período 2013 a diferencia del período 2012 en donde la misma se ubico en 6 meses para la rapiña simple y 7 meses para la rapiña compleja. Promedio de pena NPL85 2012 2013 Rapiña Simple 6±1 6±186 Rapiña Compleja 7±1 85 No Privativa de libertad Refiere a delitos de rapiñas realizado por jóvenes de 13 y 14 años a los cuales no le fue aplicable la Ley 19.055. 86 1036 En los casos de aplicación de medida no privativa de libertad para el delito de rapiña simple y compleja para el año 2012, podemos observar los siguientes mínimos y máximos: Rapiña simple NPL 2012 Rapiña compleja 2012 NPL Mínimo 4 Mínimo 6 Máximo 8 Máximo 7 2.2.5.2 Hurto En el caso del delito de hurto simple podemos observar que la duración de la medida privativa de libertad se mantuvo constante ubicándose en ambos período en los 4 meses de duración. Promedio de pena PL 2012 2013 Hurto simple 4±1 4±1 Al igual que en el caso anterior la duración de las medidas no privativas de libertad tampoco tuvo cambios en ambos período ubicándose en 5 meses de duración. Promedio de pena NPL 2012 2013 Hurto simple 5±1 5±1 En los casos de los mínimos y máximos de duración de la medida privativa de libertad para el delito de hurto simple no se observar variaciones significativas. Hurto simple PL 2012 2013 Mínimo 3 3 Máximo 5 6 1037 En el caso de la duración de la medida no privativa de libertad el mayor aumento lo encontramos en el máximo de la duración el cual se colocó en 6 meses para el período 2012 alcanzando los 10 meses para el período 2013. Hurto simple NPL 2012 2013 Mínimo 4 2 Máximo 6 10 2.2.6 Tipo de procedimiento Como ya fuera mencionado, otra de las modificaciones de la Ley 19.055 fue la posibilidad del juicio abreviado, en donde previo consentimiento de las partes es posible dictar sentencia en la audiencia preliminar. En estos casos expresamente se prescinde de los informes técnicos con los cual la decisión sobre la responsabilidad del adolescente deja fuera cualquier posibilidad de ingresar a los datos sociales del adolescente sometido a proceso. Igualmente de los datos recabados surge que este tipo de procedimientos tuvo una baja aplicación habiéndose llevado adelante en el 22 % de los casos. 2.2.7 Valoración de datos sociales De los datos recabados se pudo observar que en un 20 % de los casos para el período 2012 y un 56 % para el período 2013 los datos sociales no formaron parte de la argumentación realizada por los Juzgados Letrados de Adolescentes. Alcanzando un 78 % para el período 2012 y un 43% para el período 2013 los casos en los que si bien se los menciona no se los vincula directamente con la determinación de la responsabilidad penal, sino que se los incorpora de manera descriptiva sin realizar ningún tipo de valoración. De esta forma, resulta muy significativa la poca relevancia dada a los datos sociales en las argumentaciones realizadas por los Juzgados, aunque esto no quiere decir que los mismos no influyan indirectamente en las opciones del Juez de la causa, aunque ello no se refleje en la argumentación realizada. 1038 Valoración de datos sociales 2012 2013 No los valora 31 (20%) 93 (56%) 119 (78%) 72 (43%) 1 (1%) 1 (1%) pena 2 (1%) - Total 153 (100%) 166 (100%) Los menciona pero no los valora Los valora para aumentar la pena Los valora para rebajar la Si tomamos en cuenta las diferentes argumentaciones realizas por los Juzgados se puede observar que la argumentación de las sentencias se encuentran fuertemente vinculadas a las circunstancias del delito, por ejemplo la utilización de arma de fuego, pluriparticipacion, nocturnidad, confesión, primariedad etc. En definitiva, las agravantes y atenuantes reguladas por el Código Penal de Adultos resultan argumentos recurrentes en la fundamentación de las sentencias para ambos periodos de estudio, con la salvedad de que en el período 2013 la referencia a la Ley 19.055 es un argumento significativo en torno al cual se determina el quantum de la pena. “… se vio circunstanciado por la pluriparticipacion y la nocturnidad y se ve mitigada por la primariedad absoluta de las tres y la confesión de XX y XX valoradas en vía análogas artículos 69 nal. 1 art. 72, lit. 4 del CNA y art. 34, 46 inc. 13, 60, 316 y 322, 341 inc. 4 y 344 del C Penal” (Expediente 48/2013 Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Sentencia) “………una infracción gravísima calificada como rapiña en carácter de autores que se ve atenuada por la confesión, primariedad absoluta, y circunstanciada por la nocturnidad, la tenencia de arma de fuego y la pluriparticipacion…..” (Expediente 18/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Sentencia) ”…..el obrar encarta, en una infracción grave, calificada como rapiña en grado de tentativa, en carácter de autor, que se ve circunstanciada por la 1039 pluriparticipacion, al haber obrado con otros compañeros, además se ve atenuada por la confesión en vía análoga….” (Expediente 23/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Sentencia) “…. los hechos cometidos, la problemática del adolescente quien ya cuenta con antecedentes que requieren para su verificación el uso de violencia y la finalidad perseguida por la medida socioeducativa….”(….)hacen conveniente disponer una medida privativa de libertad” (Expediente 47/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno – Sentencia) “…… la medida sancionatoria actualmente impuesta por el artículo 116 bis del CNA en la redacción dada por la Ley 19.055 vigente al 01.02.2013 aconsejan imponer la medida privativa de libertad solicitada por las partes….” (Expediente 43/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Sentencia) 3 REFLEXIONES FINALES Del análisis de los datos recabados se concluye que los adolescentes sometidos a proceso (en ambos períodos de estudio) provienen de zonas las cuales se caracterizan como de bajo nivel socioeconómico, observándose un fuerte predominio de barrios como Casavalle, La Teja, Cerro, Cerro Norte, Maroñas, Piedras Blancas, Punta de Rieles, Manga, Malvín Norte, etc. Por otra parte, se observa que mayoritariamente son adolescentes de entre 16 y 17 años, siendo casi inexistente los procedimientos iniciados a adolescentes de 13 y 14 años de edad. En lo relativo al nivel educativo, los datos analizados sugieren, que estos adolescentes están caracterizados por un nivel de formación muy bajo, en donde la mayoría de ellos apenas finalizó primaria, constatándose casos de adolescentes que no adquirieron conocimientos de lecto-escritura. En relación al núcleo familiar se observa un amplio porcentaje de familias integradas por tres o más niños, niñas y adolescentes a cargo. Otro dato relevante refiere a la presencia de hogares nucleares mono-parentales el cual asciende a un 31% para el período 2012 y un 32 % para el período 2013. Estos datos sugieren, en consonancia con los antecedentes sobre el tema, que nos encontramos frente a jóvenes caracterizados por la vulneración de sus 1040 derechos, ya sea desde un punto de vista económico como educativo. De esta forma y si bien se debería profundizar en este análisis, podemos observar como la vulneración de los derechos de los jóvenes es un dato constatable en el marco del procedimiento penal juvenil. En lo relacionado a la tipificación de las conductas se aprecia que en ambos períodos de estudio, el hurto y la rapiña, fueron los delitos más frecuentes, siendo la propiedad el bien jurídico mayormente tutelado por los Juzgados Letrados de Adolescentes. En relación a la aplicación de la Ley 19.055 se observa que la misma trajo aparejado, como era de esperar, un aumento en la aplicación de las medidas privativas de libertad. Si analizamos el caso del delito de rapiña, esto significó la no aplicación de medidas alternativas para los adolescentes de entre 15 y 17 años. Por otra parte, existió un aumento significativo en lo que respecta a la duración promedio de la medida privativa de libertad la cual paso de 7 (2012) a 13 meses (2013) para la rapiña simple y de 11 (2012) a 16 meses (2013) para la compleja. Asimismo, surge como dato significativo, que al ubicarse el promedio de pena para la rapiña simple en 13 meses el mismo estuvo apenas por arriba de los 12 meses mínimos que dispuso la Ley 19.055. Por último, es importante señalar que este aumento del promedio de pena para el delito de rapiña no parece haber tenido un efecto reflejo sobre el delito de hurto, ya que para este delito el promedio de duración de la pena se mantuvo estable. Como ya se mencionó, uno de los aspectos centrales que surgen de los datos recabados tiene relación con la escasa importancia que tuvieron los datos sociales aportados por los informes técnicos. Si analizamos las diferentes argumentaciones realizadas por los Juzgados Letrados de Adolescentes de Montevideo se puede observar claramente que las argumentaciones que figuran en las diferentes sentencias (en ambos períodos de estudio) no se detienen en estos aspectos. Las mismas se centran fundamentalmente en la discusión de aspectos estrictamente jurídicos, como la descripción típica de la conducta, la consumación del delitos y fundamentalmente en las atenuantes y agravantes de las diferentes conductas delictivas. Sin perjuicio de ello, esto no quiere decir necesariamente que los datos sociales no influyan indirectamente en las opciones del Juez de la causa, aunque no se refleje en la argumentación realizada. 1041 En lo relacionado a las agravantes se observa que en algunos casos, las mismas son aplicadas directamente a efectos de determinar la sanción, recurriendo a la analogía con el derecho penal de adultos. Sin embargo en otros casos, si bien se prescinde de la consideración de agravantes en aplicación del artículo 7387 del CNA se recurre a aspectos relacionados con las circunstancias del delito, como por ejemplo el uso de armas de fuego o la violencia empleada, las cuales junto con los antecedentes tienden a ser los argumentos centrales en torno a los cuales gira la determinación de la pena. Dentro de este esquema, la primariedad y la confesión adquieren una relevancia fundamental a la hora de rebajar la sanción en concreto. De esta forma, la operativa de nuestros juzgados, aparece fuertemente influenciada por una concepción positivista del derecho, que tiende a centrar el eje de la discusión jurídica en la tipicidad de la conducta; así como en elementos vinculados al delito. Si tomamos en cuenta los datos empíricos recabados en el presente trabajo es factible observar como el principio de estricta legalidad, vinculado a aspectos delimitados por las normas jurídicas, tipicidad de las conductas delictivas, como lo son la así como los atenuantes y agravantes, forman una parte sustancial del trabajo de los jueces. Esta problemática en el abordaje de lo social está relacionado con una fuerte matriz positivista predominante en nuestro derecho, la cual no solo debe analizarse en lo relacionado al trabajo de los operadores jurídicos, sino que antes de ello, en la formación profesional de abogados y jueces. Dentro del positivismo jurídico es sin duda Hans Kelsen la referencia teórica fundamental, para quien el jurista de la teoría pura del derecho debe ser un conocedor de las normas jurídicas, no siendo trabajo de la ciencia jurídica, ni del jurista en particular la construcción del derecho, no correspondiendo su crítica, ni la investigación de sus orígenes, causas o finalidades. (Chamón, L. 2005) Dentro de este contexto la teoría pura del derecho está enfocada en la construcción de 87 Artículo 73. El Juez deberá examinar cada uno de los elementos constitutivos de la responsabilidad, de las circunstancias que eximen de la aplicación de medidas o que aminoren el grado de las infracciones y el concurso de infracciones e infractores, tomando en cuenta los preceptos de la parte general del Código Penal, de la Ley Nº 16.707, de 12 de julio de 1995, la condición de adolescentes y los presupuestos de perseguibilidad de la acción. 1042 procedimientos de interpretación de las normas jurídicas, utilizando como técnica la interpretación gramática de las normas (Bobbio, N., Bovero, M. 1986), convirtiendo a los códigos en dogmas que regulan y mantienen un determinado orden; tomando en cuenta la realidad social solo de forma subsidiaria y en la medida que una norma jurídica nos remite a ella. (Campagna, E. 2008) Esta forma de comprender el derecho, diferenciado de cualquier elemento extrajurídico y asumido de una forma avalorativa, ha sido cuestionado desde diferentes corrientes teóricas planteando la insuficiencia del positivismo jurídico para explicar correctamente el funcionamiento del sistema jurídico; así como para dar respuesta a los problemas sociales en el estado actual de desarrollo del modelo capitalista. Dentro de este esquema, la relación entre lo jurídico y lo social ocupa un lugar central ya que tal como lo expresa Bourdieu “El derecho es la forma por excelencia del discurso actuante capaz por virtud propia de producir efectos”. (Bourdieu, P. 2000). Esta vinculación entre lo jurídico y los social ha sido abordado por diferentes autores, quienes han indagado acerca de los cambios en el derecho en un mundo caracterizado por la complejidad, analizando la vinculación entre lo jurídico, lo social y lo político, realizando críticas a los planteos de Hans Kelsen (Kelsen, H. 1979) o H.L.A Hart (Hart, H. 1981) quienes proponían una clara distinción entre estas esferas de análisis. Dentro de estos aportes debemos mencionar a Niklas Luhmann, Günther Teubner, Jurgen Habermas (Richard, N., David, S. 2006), Boaventura De Sousa Santos (De Sousa Santos, B., 2009), entre otros. En el campo del derecho también podemos observar diferentes planteo críticos de una concepción del derecho asumida bajo una premisa positivista, siendo fundamental los planteos de Luigi Ferrajoli (Ferrajoli, L. 2009), Joaquín Herrera Flores (Herrera, J. 2008) y dentro de la Escuela Critica del Derecho Norteamericana los aportes de Duncan Kennedy (Kennedy, D. 1996). En este contexto, la valoración de los datos sociales del joven puede tener repercusiones no solo en la labor del juez, sino que puede servir como guía al legislador a la hora de la formulación de normas generales inspiradas en un criterio de justicia (Recasens - 1974, pág. 223), propiciando medidas que tiendan 1043 a la restitución de derechos vulnerados del adolescentes, pero para ello la superación de premisas positivistas se vuelve fundamental. En los hechos no se trata de desconocer la enorme tarea que ha cumplido la consagración normativa de los derechos, sino de asumir que es insuficiente para dar cuenta de los procesos sociales que se ocultan detrás de ella. BIBLIOGRAFÍA CONSULTADA BOBBIO, N., BOVERO, M. Sociedad y Estado en la Filosofía Moderna, Fondo de Cultura Económica México, 1986. BOURDIEU, P., TEUBNEr, G. La fuerza del derecho. Ediciones Uniandes. Buenos Aires, 2000. CAMPAGNA, E. Desde la Sociología del Derecho al Derecho en la Sociología Económica y la Sociología Política, primera edición Fundación de Cultura Universitaria, 2008 CHAMÓN, L. Filosofia do direito na alta modernidade. Incursoes Teoricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. Editora lumen juris, 2005. DE SOUSA SANTOS, B. Sociología Jurídica crítica: Para un nuevo sentido común del derecho. Madrid: Trotta, 2009. FERRAJOLI, L. Garantismo Debate sobre el Derecho y la Democracia, Primera Edición Editorial Trota S.A, 2009. HART, H El concepto del derecho. Universidad Nacional Autónoma de México, 2000. KELSEN, H. Teoría Pura del Derecho. Fundación de Cultura Universitaria, Montevideo, 1960. KENNEDY, D. El comportamiento estratégico en la interpretación jurídica. In: Izquierda y derecho, Buenos Aires: Siglo XXI, 2010. MORÁS, E. (2000) Desafíos y Oportunidades en la Administración de Justicia de Menores, Revista Interdisciplinaria sobre temas de Justicia Juvenil. Defensa de los Niños Internacional- Uruguay (DNI), 2000. NOBLES, R.; Schiff, D. Legal Theory Today. A Sociology of Jurisprudence Oxford and Portland Oregon, 2006. 1044 RECASÉNS, L. Introducción al estudio del derecho. Edición, 3. Publisher, Editorial Porruá, 1974. ROSANVALLON, P. La nueva Cuestión Social, repensar el Estado Providencia Edición Manantiales, 1975. 1045 EUTANÁSIA: DILEMA MORAL EM PERSPECTIVA FILOSÓFICA Maria Carolina Santini Pereira da Cunha, RESUMO: O ensaio traz um enfoque racional da eutanásia, seguindo um rumo imparcial desta conduta, sob aspectos penal e médico, contrapondo teorias filosóficas favoráveis e desfavoráveis. Opta-se pelo raciocínio dedutivo, trazendo casos internacionais, conduzindo o estudo filosófico, aderindo, por fim, a uma visão humanista. A discussão, original e inovadora, aborda correntes defensoras dessa prática, como o Libertarismo e o Utilitarismo, em contraposição a filósofos como Immanuel Kant, Michael Sandel e Aristóteles, no intuito de ponderar os dois lados da questão, sob visões peculiares e incomuns. PALAVRAS-CHAVE: eutanásia; correntes filosóficas; bioética. 1 INTRODUÇÃO Os avanços da medicina proporcionam situações nas quais urgem aprofundar discussões sobre as opções: sejam individuais, sejam coletivas. Dentre elas, uma muito discutida, ao menos no âmbito da Bioética, é a eutanásia. Tema intrigante, atual e desafiante pelo próprio objeto de pesquisa, a eutanásia continua em reflexão no meio acadêmico. Este artigo divide-se em quatro seções: a primeira refere a origem etimológica e histórica dessa prática; a segunda contempla fragmentos do código supramencionado; a terceira compõe-se de teorias de filósofos clássicos e modernos. Surgem questões: o Estado pode interferir contra autonomia da vontade do indivíduo? Aborda-se o conceito de autonomia kantiana, que é a capacidade de escolher com discernimento, agir livremente, com prudência. Na última seção são expostos casos mundialmente conhecidos: o de Terri Schiavo, que representou divergência entre genitores e cônjuge acerca da eutanásia; o de Terry Wallys, que se recuperou do coma, e o do famoso médico Jack Kevorkian, o Dr. Morte. 1046 2 EUTANÁSIA: DEFINIÇÃO E REFERÊNCIAS HISTÓRICAS Ao deparar-se com questões diretamente ligadas à vida humana, surge a interdisciplinaridade, revelada na Bioética. Sob este prisma, Ruth Maria Chittó Gauer (2013, p.536-537) leciona que nas tecnologias contemporâneas existe uma complexidade, a qual “demanda interpretações que perpassem explicações dadas por um único campo de conhecimento”. A pesquisa interdisciplinar se insere em um movimento de ideias vinculadas não apenas “à proporcionalidade e à perspectiva, próprias de campos especializados do conhecimento”, mas que uma “concepção interdisciplinar deve estar em sintonia com a ideia de uma academia preocupada com questões que ultrapassam a visão da pesquisa especializada” (GAUER, 2013, p.536-537). Por isso, não é a intenção deste artigo defender um posicionamento específico, e sim ponderar diferentes exposições doutrinárias. Preliminarmente, este trabalho não se propõe a discutir a eutanásia sob um enfoque predominantemente penalista ou processualista, visto que não seria original, nem condiz com a intenção da multiplicidade de visões a que se pretende desenvolver. Entretanto, é pertinente conceituar e definir os termos para um melhor entendimento do tema. O termo Eutanásia origina-se do grego euthanatos, eu, significa bom; e thanatos, morte. Portanto, etimologicamente essa palavra designa uma boa morte; morte calma (BARSA, 2002, vol.6). O contrário deste poderia ser a distanásia que é a morte lenta, com sofrimento – convergindo com a eutanásia apenas em seu conteúdo moral, ambas são eticamente inadequadas. Frente à morte, a atuação correta seria a ortotanásia, que adota cuidados prestados aos pacientes nos momentos finais de suas vidas (GOLDIM, 2003). Há ainda outro tipo: Mistanásia ou eutanásia social. Sugestão de Leonard Martin, morte miserável, fora e antes da hora, que focaliza na mistanásia três situações: “primeiro, a massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes” por não conseguirem “ingressar no sistema de atendimento médico”; segundo, os doentes pacientes que se tornam vítimas de erro médico e, “terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos” (GOLDIM, 2004, grifo do autor). Segundo o professor Goldim 1047 (2003), a eutanásia, dependendo do critério considerado, pode ser classificada em várias formas. Quanto ao tipo de ação – eutanásia ativa é o ato provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins misericordiosos; eutanásia passiva, também chamada de indireta, é a morte do paciente terminal, ou porque não se inicia uma ação médica ou porque há interrupção de medida extraordinária, a fim de minorar o sofrimento; eutanásia de duplo efeito: a morte é acelerada como uma consequência indireta das ações médicas que são executadas visando ao alívio do sofrimento de um paciente terminal. E quanto ao consentimento do paciente – eutanásia voluntária: quando a morte é provocada atendendo a uma vontade do paciente; eutanásia involuntária: quando a morte é provocada contra a vontade do paciente. Eutanásia não-voluntária: quando a morte é provocada sem que o paciente tivesse manifestado sua posição em relação a ela (GOLDIM, 2003). Atualmente, em alguns países a eutanásia é aceita e em outros se equipara ao homicidio. O direito à vida, universalmente reconhecido, subjaz ao problema ético da vida humana. Preconizaram esse direito a Sociedade da Eutanásia, do Reino Unido, fundada em 1935, “e sua homóloga americana” de 1938 (BARSA, 2002). No século XVII o termo “eutanásia” é proposto pela primeira vez por Francis Bacon na sua obra “Tratado da vida e da morte. Autores que se posicionaram a favor da eutanásia e do suicidio assistido: David Hume (On suicide), Karl Marx (Medical Euthanasia) e Schopenhauer. Em 1931, na Inglaterra, Dr. Millard propôs uma lei para Legalização da Eutanásia Voluntária, que foi discutida até 1936 pela Câmara dos Lordes que a rejeitou. Durante os debates, em 1936, o médico real, Lord Dawson, revelou que tinha "facilitado" a morte do Rei George V, utilizando morfina e cocaína. (GOLDIM, 2000). O Uruguai, em 1934, possibilitou a eutanásia no seu Código Penal, "homicídio piedoso", possivelmente a primeira regulamentação nacional sobre o tema, mantida em vigor até o presente. Em 1935 Inglaterra Exit, associação pioneira pró eutanásia, distribuía folhetos instruindo uma morte “com dignidade”. Em 1968, a Associação Mundial de Medicina adotou uma resolução contrária à eutanásia. Em 1990, a Real Sociedade Médica da Holanda e o Ministério da Justiça estabeleceram rotina de notificação para a eutanásia, não a legalizando, mas tornando o profissional que a realiza isento de procedimento criminal. Em 1991, tentativa frustrada para 1048 introduzir a eutanásia no Código Civil da Califórnia (EUA). Em 1996, na Austrália, aprovaram lei possibilitando a eutanásia, revogada meses depois. No mesmo ano o Brasil apresenta proposta semelhante, sem resultados. Em 1997, a Corte Constitucional da Colômbia em sua legislação o profissional que praticasse eutanásia não poderia ser punido criminalmente. Em 1997, no Oregon (EUA), legalizou o suicídio assistido. Em 2001 a Holanda torna-se o primeiro país do mundo a legalizar a eutanásia, inclusivamente podendo ser aplicada a menores desde que com o consentimento dos pais. Em 2002, a Bélgica tornou-se o segundo país a legalizar a eutanásia. A eutanásia tem sido aplicada mundialmente e continua sem obter consenso, divergindo sobre o direito à morte versus o direito à vida. Médicos, pacientes, familiares têm opiniões opostas acerca dessa prática. A seguir será exposto sobre aspectos medicinais, bioéticos e o Código de Ética Médica. 3 O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA Segundo Clotet (2006, p.24), “Constitui uma tarefa da Bioética fornecer os meios para fazer uma opção racional de caráter moral referente à vida, saúde ou morte, em situações especiais, reconhecendo que esta determinação terá que ser dialogada, compartilhada e decidida entre pessoas com valores morais diferentes.” Terra et al. (1994, p.102) dizem que a humanidade se depara desde a Antiguidade com dificuldade em determinar com exatidão a ocorrência da morte do indivíduo, e diz que o conceito de morte encefálica “modificou-se nos últimos anos em decorrência do desenvolvimento de novas técnicas de ressuscitação e suporte avançado para o atendimento de doentes criticamente enfermos”. Os autores (1994, p.103) dizem que atualmente se define pela “cessação irreversível de todas as funções de todo o encéfalo, incluindo o tronco cerebral”, sendo sinônimos morte encefálica e morte do indivíduo. É importante ressaltar que há diferença entre morte encefálica e morte cerebral: a nomenclatura de morte encefálica tem sido preferida ao termo morte cerebral, uma vez que para o diagnóstico clínico, existe necessidade de cessação das atividades do córtex e necessariamente, do tronco cerebral. Havendo qualquer sinal de persistência de atividade do tronco 1049 encefálico, não existe morte encefálica, portanto, o indivíduo não pode ser considerado morto. Como exemplos desta situação, podemos citar [...] o estado vegetativo persistente [...]. Entretanto, os autores discordam da aplicação do conceito de eutanásia nesse caso: há respaldo legal no Brasil para “o diagnóstico de morte encefálica”. Os pesquisadores (TERRA; BOUSSO; MARTINS; SILVA; FERNANDES; BALDACCI; OKAY, 1994, p.110) informam que a eutanásia implicaria “em utilizar meios para abreviar a vida do paciente, mas no presente caso, não existe mais vida”. Para ilustrar, trazem argumentos do padre Leocir Pessini, em seu livro Eutanásia e América Latina: “para uma maior clareza conceitual, deveríamos desfazer o equívoco em falar de eutanásia quando se tratar de desligar os aparelhos sustentadores da vida, estando a pessoa já em morte cerebral comprovada por todos os exames necessários”. O ato de cuidar é dever ético e legal que incumbe a todos os médicos em relação a seus pacientes. No entanto, nem sempre esses deveres são cumpridos (SOUZA, 2006). Aristóteles refletia que não se delibera sobre os funs, mas sobre os meios: “um médico, por exemplo, não delibera sobre se deve ou não curar, [...] nem um estadista se deve assegurar a ordem pública, nem qualquer outro homem delibera a respeito da própria finalidade de sua atividade (ARISTÓTELES, 2007, p.62-63)”. “A estrutura do juízo, assim, garante ao direito ou deveria garantir-lhe a função da justiça” (CARNELUTTI, 2003. p.8). De acordo com o Código de Ética Médica brasileiro (CRM-RJ, 2012, p.11), no Cap. I, art.6º, o médico deve respeito pela vida humana, em benefício do paciente. “Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.” Kipper et al.(apud PITHAN, 2004) relata que “os próprios médicos têm entendido que fazem uso abusivo dos recursos terapêuticos de que dispõe, sem que haja benefício para os pacientes.” Punível de acordo com o projeto de Parte Especial do novo Código Penal, não deve ser admitida. Jussara de Azambuja Loch explica a análise da vontade do paciente, três critérios principais a serem considerados: a) Critérios objetivos para avaliar, com aspectos técnicos: se aceitar o desejo do paciente, quais os riscos e os benefícios que a determinada conduta trará para a saúde e a vida? A conduta é beneficente? 1050 O paciente é autônomo, não está sendo coagido a tomar esta decisão? b) Critérios subjetivos: considerar os valores do paciente: o valor da vida, a qualidade de vida que o paciente considera adequada para si próprio, suas crenças religiosas, os argumentos morais com os quais o paciente justifica sua vontade; c) Os melhores interesses: é um balanceamento entre os critérios objetivos e subjetivos, é analisar, diante dos fatores já citados, qual a melhor alternativa, do ponto de vista do próprio paciente, visando seu melhor benefício (LOCH; GAUER; CASADO, 2008, p.156). Roque Junges relata que a “bioética surgiu como preocupação pelas incidências da intervenção tecnológica do ser humano no ambiente natural e como resposta aos dilemas éticos provocados pelas novas descobertas biológicas e pelos avanços da medicina sobre a saúde do ser humano” (JUNGES, 2005, p.29). O sistema penal estabelece o constrangimento ilegal, que não se pune a fim de evitar suicídio e preservar a vida. A Bioética precisa [...] “de um paradigma de referência antropológico-moral que, implicitamente, já foi colocado: o valor supremo da pessoa, da sua vida, liberdade e autonomia”. Esse princípio, parece conflitar com o relativo à qualidade de vida digna que os seres humanos são dignos, princípios que nem sempre se amoldam sem conflitos. Em determinadas circunstâncias, não é fácil tomar uma decisão (CLOTET, 2006, p.24). A filosofia é a ciência que melhor pode pensar e elaborar argumentos sobre a eutanásia. Michael Sandel, professor de Harward, elucida teorias de filósofos como Kant, Rawls, e traz correntes filosóficas que refletem os anseios da sociedade moderna do século XXI em seu livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa”. Passa-se a analisar as teorias propostas para este trabalho. 4 TEORIAS FILOSÓFICAS: LIBERTARISMO, KANT, UTILITARISMO Michael Sandel (1997, p.27, tradução livre) expõe que, enquanto quase todo o estado proíbe suicídio o Supremo Tribunal de Justiça o declarou como um direito constitucional. John Rawls, considera errado o princípio de neutralidade do Estado em questões morais e religiosas. Filósofos dizem que a autonomia e liberdade de escolha implica da posse sobre a vida. A ética da autonomia, longe 1051 de ser neutra, parte “de muitas tradições religiosas e também do ponto de vista dos fundadores da filosofia política liberal, John Locke e Immanuel Kant”. Locke e Kant opõem-se ao direito de suicídio, e “rejeitaram a ideia de que nossas vidas são bens para dispor como nos agradar”. Para Kant, o respeito pela autonomia implica em deveres para si mesmo, em tratar a humanidade como um fim em si mesma. Em seu raciocínio, “o homicídio é errado, porque usa a vítima como um meio e não a respeita como um fim, mas o mesmo pode ser verdade do suicídio”. O fato de que uma pessoa queira morrer não torna moralmente admissível matála, ainda que seu desejo seja sem coerção e bem informado. Sandel (1997, v.216, p.27, tradução livre) diz que não necessariamente deva se opor à eutanásia em todos os casos. Até quem encara a vida como sagrada pode admitir que “alegações de compaixão às vezes podem substituir o dever de preservar a vida”. O desafio é o de encontrar uma maneira de honrar estas alegações que preserva o peso moral de apressar a morte, e que retém a reverência pela vida, como algo que prezamos não é algo que possamos escolher. A primeira visão filosófica abordada será o Libertarismo. Michael Sandel (2012, p.79) define a visão libertária: “os libertários são contra as leis que protegem as pessoas contra si mesmas”, por violar o “direito do indivíduo de decidir os riscos que quer assumir.” Entre outras características, não legislar sobre moral. Por exemplo a automutilação seria permitida assim como o suicído, etc. “Os libertários são contra o uso da força coerciva da lei para promover noções de virtude ou para expressar as convicções morais da maioria.” A teoria libertária defende que a pessoa pode dispor de seu próprio corpo como bem entender. Seguindo essa lógica, a eutanásia seria permitida, bastando que se obtenha o consentimento do paciente. Essa filosofia sugere que, por ser dono de si mesmo, a vida do ser humano pertence a ele mesmo, portanto, não é possível se apoderar da vida alheia e usála, ainda que haja boas intenções. Com esse raciocínio de o indivíduo dispor de seu corpo, pode-se ser favorável ao comércio de rins para transplante, já que se é livre para vender seus órgãos. Partindo desse princípio, defende-se o suicídio assistido, pois se é dono da própria vida, e livre para pôr fim a ela. E o Estado não tem o direito de impedir o cidadão de usar seu corpo como bem entender. Para os libertários, leis proibitivas de suicídio assistido são injustas pelo fato de que a vida 1052 pertence a própria pessoa, que deve ser livre para desistir dela e, sendo feito acordo voluntário, o Estado não tem direito de interferir. Argumenta-se que pacientes terminais passam por grande sofrimento e devem ter permissão para apressar sua morte em vez de prolongar a dor. A compaixão deve prevalecer sobre o dever de manter uma pessoa viva (SANDEL, 2012, p.29). Ingo Sarlet (20606, p.29) leciona que a ideia de dignidade da pessoa humana é intrínseca ao pensamento e ideário clássico cristão. Immanuel Kant, filósofo iluminista, acreditava na razão, que emanava os homens, busca seu fundamento na ciência. A ideia de ser dono de si mesmo traz implicações que apenas um libertário poderia aceitar: mercado sem proteção alguma, Estado mínimo, sem medidas para diminuir a desigualdade e promover o bem comum; e uma celebração do consentimento que permita infligir afrontas à própria dignidade, como canibalismo ou venda de si mesmo feito escravo. Das mais influentes questões de direitos e deveres feita por um filósofo, parte de que somos seres racionais merecedores de dignidade e respeito. Kant argumenta que a moral fundamenta-se no respeito às pessoas como fim em si mesmas. Essa importância da dignidade humana define conceitos universais. E repudia a noção anteriormente debatida sobre justiça: a valorização aristotélica da virtude, pois não respeitam a liberdade humana. O filósofo associa justiça e moralidade à liberdade (SANDEL, 2012). Ao afirmar que a moralidade não deva ser baseada em considerações empíricas, interesses, vontades, desejos, Kant diz que alicerçar a moralidade em interesses aniquila sua dignidade. Merecemos respeito por sermos racionais, capazes de pensar; autônomos, capazes de agir e escolher livremente. A capacidade de raciocinar está ligada à capacidade de ser livre. Costuma-se definir liberdade como poder fazer o que se quer sem obstáculos. Kant define de maneira mais rigorosa, com o raciocínio de que quando buscamos o prazer ou evitamos a dor, não agimos livremente mas de acordo com determinação exterior. Não é livre o desejo condicionado ou biologicamente determinado (SANDEL, 2012). Quando se pensa a vontade, ainda que esta possa estar ligada a leis por meio de um interesse, é impossível que seja legisladora suprema. Dependendo de um interesse qualquer, “precisaria ainda de uma outra lei que limitasse o interesse do seu amor próprio à condição de uma validade 1053 como lei universal” (KANT, 2005, p.74). Nomeia este princípio de autonomia da vontade, que é fundamento da “dignidade da natureza humana e de toda natureza racional” (2005, p.79). Entretanto, Kant (2005, p.80) prefere “no juízo moral, proceder sempre segundo o método rigoroso e basear-se sempre na fórmula universal do imperativo categórico.” A obrigação é a “dependência em que uma vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio da autonomia (a necessidade moral)”. O agir autônomo é conforme a lei imposta pelo indivíduo, e não pela natureza ou por convenções sociais, ao contrário da heteronomia que se impõe por determinações exteriores. A autonomia distingue pessoas de coisas, o respeito à dignidade humana exige tratar as pessoas como fins em si mesmas. Para Kant, o valor moral não consiste nas consequências, mas na intenção da ação. Deve-se fazer o que é certo, e não por motivo exterior à coisa. Se agir por outro motivo que não por dever, a ação não terá valor moral. Kant diferencia dever de inclinação, mas estes com frequência coexistem (SANDEL, 2012). Kant (2005, p.50, sic) esclarece que os imperativos são hipotéticos – “representam a necessidade prática de uma acção possível com meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira)” – ou categóricos representam uma ação “necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade.” Se a ação é “representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade”, o imperativo é categórico. E “[...] a destreza na escolha dos meios para atingir o maior bem-estar próprio pode se chamar prudência. O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” (KANT, 2005, p.52). Sandel (2012) explica que a moral é conferida pela motivação do dever, e não por ser útil ou conveniente. Kant (2005, p.30-31) diz que o valor do caráter consiste em fazer o bem não por inclinação, mas por dever, uma vez que “o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado” mas o bemfazer por dever é “amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios de ação e não em compaixão lânguida. E só esse amor é que pode ser ordenado [...].” Representação de um princípio objetivo, obrigado pela vontade, mandamento da razão, cuja fórmula denomina-se 1054 Imperativo. “Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever”, relação de uma lei objetiva da razão “para uma vontade que segundo a sua constituição não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação)” (KANT, 2005, p.48, sic). Para Kant (2005, p.23), “a boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma [...]”. Segundo ele (2005, p.28), ser caritativo podendo sê-lo é dever, ademais há “muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum motivo de vaidade ou interesse”, sentem prazer em “espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua.” Essa ação, conforme ao dever e amável que seja, não tem valor moral para o filósofo, já que falta o conteúdo moral, “que tais ações se pratiquem, não por inclinação, mas por dever”. Kant (2005, p.60) diz: “uma pessoa, por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente tédio da vida, mas ainda está bastante em posse da razão para poder perguntar a si mesma se não será talvez contrária ao dever para consigo mesma atentar contra a própria vida.” O princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim [motivo], que se dado pela razão tem validade. Fins relativos que são a base de imperativos hipotéticos. Se vive por gostar da vida, e não por dever moral de fazê-lo. Kant coloca em questão a motivação do dever: cita um caso imaginário de que um indivíduo infeliz e sem esperança não deseje viver mais. Se reunir forças para continuar sua vida, sua ação terá valor moral se o fizer por dever e não por inclinação. Não há valor moral em boas ações advindas de compaixão, pois importa que a boa ação seja feita, prazerosa ou não, por ser a coisa certa. Há contrastes em Kant: dever versus inclinação; autonomia versus heteronomia; imperativos categóricos versus imperativos hipotéticos. Kant diz que se deve ter a capacidade de agir não com uma lei posta ou imposta, mas com uma lei outorgada pelo indivíduo. Compara os imperativos hipotéticos, condicionais, e um tipo de imperativo incondicional chamado imperativo categórico, e somente ele pode ser imperativo da moralidade. Então, um dever ou direito categórico é o que prevalece em quaisquer circunstâncias (SANDEL, 2012). Incompatíveis com o imperativo categórico são o homicídio e o suicídio. Se para escapar de condição dolorosa põe-se fim à vida, usa-se a si mesmo como meio para aliviar o sofrimento. Kant 1055 afirma que o ser humano não é coisa para ser meio. Não há mais direito de dispor sobre si do que sobre outra pessoa. O respeito pelo ser humano, diferentemente do amor, empatia, solidariedade, e companheirismo, sentimentos morais é pela humanidade em si e sua capacidade racional. Aplica-se aos direitos humanos universais. Estão interligadas liberdade e moralidade: agir por dever obedecendo a lei moral, um imperativo categórico, que obriga "a respeitar as pessoas como seres racionais independentemente do que possam desejar em uma determinada situação" (SANDEL, 2012, p.157). A dignidade humana consiste na sua capacidade de criar leis universais, sujeita a essas leis. A concepção kantiana de autonomia impõe limites paradoxais ao tratamento que podemos nos dar. É preciso ser governado por uma lei outorgada a si mesmo, o imperativo categórico. O respeito é uma finalidade exigida pelo imperativo categórico que se trate a si mesmo e as pessoas com respeito e não transforme o corpo em objeto, não o utilizando como bem entender. Os seres humanos não têm o direito de fazer a si mesmos uma coisa como a um bife por meio do qual os outros saciam sua fome, cujo princípio moral básico é não ter propriedade de si. Atos entre adultos inconformes com o autorrespeito e dignidade são condenados por Kant, que defende uma teoria de justiça fundamentada em um contrato social. Para ele, uma Constituição justa objetiva harmonizar a liberdade individual e coletiva. No seu entender, que cada um busque sua felicidade, não infringindo a dos outros. Assim como a lei moral não pode ter interesses ou desejos particulares ou de um determinado grupo de pessoas (SANDEL, 2012). Kant não poderia aceitar ou concordar com a degradação do ser humano. Para ele, manter-se vivo trata-se de um dever, sendo imoral atentar contra a própria vida. A Eutanásia é um direito individual? De acordo com a visão utilitarista, é possível quantificar ou qualificar a vida. Stuart Mill diz que percepção, julgamento, atividade mental, preferência moral só são exercitadas ao se fazer escolhas, e quem faz escolhas por costume, não escolhe, é incapaz de discernir o melhor: “as capacidades mentais e morais, assim como as musculares, só se aperfeiçoam se forem estimuladas (apud SANDEL, 2012, p.66)”. Desse modo, quem abdica da capacidade de escolha não necessita de outra que não a de imitar, pois só quem exercita todas suas faculdades decide por si. Seguem alguns exemplos de casos concretos, para se 1056 questionar sobre a realidade, como tem sido tratada a eutanásia na prática mundialmente. 5 CASOS CONCRETOS O norte-americano Terry Wallis é um exemplo de recuperação de coma. Após 19 anos em estado vegetativo, acordou com lesões neurológicas graves irrecuperáveis aos olhos médicos: “o coma é uma condição mais grave, mas passageira: os pacientes se recuperam, evoluem para o estado vegetativo ou morrem” (CALLEGARI, maio. 2010). Diferente da morte cerebral, que é a perda irreversível de qualquer atividade do cérebro. De carro, com amigos, wallis despencou de um penhasco, aos 20 anos. Nesse primeiro momento ele entrou em coma, do qual saiu cerca de 3 meses depois, ficou quadriplégico evoluindo para o estado semivegetativo. Aparentava sinais de percepção ao seu redor: “acompanhava uma pessoa com os olhos, por exemplo”. Os médicos, no entanto, eram categóricos: não adiantava acreditar em sua recuperação. "Quanto mais tempo o paciente fica nesse estado, menores são as chances de sair dele", afirma Bernat. Entretanto, os exames demonstram que os axônios (terminações nervosas de cada neurônio, responsáveis pela transmissão dos impulsos de uma célula para outra) se reconectaram. Apesar de parte dos movimentos, houve perda da habilidade de processar novas memórias. Um caso mais famoso foi o de Terri Schiavo. Goldim (2005) relata que em 1990 Theresa Marie SchindlerSchiavo, de 41 anos, teve parada cardíaca talvez devido a perda significativa de potássio associada a Bulimia, permanecendo por cinco minutos sem fluxo sanguíneo cerebral. Devido a grande lesão cerebral, ficou em estado vegetativo. Segundo o autor, os “pais de Terri alegaram possível agressão do marido, Michael Schiavo, por estrangulamento, que poderia ter sido a causadora da lesão cerebral, supostamente em processo de separação conjugal”. A paciente teve retirada a sonda que a alimentava e hidratava, e faleceu em 31 de março de 2005, após longa disputa familiar, judicial e política. O esposo desejava a retirada da sonda, enquanto Mary e Bob Schindler, pais da paciente, e seus irmãos, lutaram para que fosse mantida. “Por três vezes o marido ganhou na justiça o 1057 direito de retirar a sonda. Nas duas primeiras vezes a autorização foi revertida. Em 19 de março de 2005, na terceira vez, permaneceu assim até a sua morte”. Em 1993 iniciaram as “posições antagônicas da família, com questões que incluem diferentes versões sobre os interesses em manter ou terminar o uso da alimentação e hidratação por sonda”. O marido alegava que a “sua esposa havia manifestado verbalmente, quando ainda estava consciente, que não desejaria permanecer em um estado como o que se encontra agora”. “O suicídio, entendido como uma agressão deliberada que o indivíduo pratica contra si mesmo, com a intenção de pôr fim à sua vida, constitui-se num fenômeno a ser analisado [...] A abordagem, [...] a fim de possibilitar uma compreensão mais ampla, deve ser interdisciplinar” (GAUER; LAZZARIN, 2003, p.69). Jack Kevorkian, o médico mais famoso dos EUA, ficou conhecido como Dr. Morte por levantar a polêmica discussão do suicídio assistido. Ele tinha uma máquina de matar, em que aplicava suicídio assistido em pacientes terminais. Acerca desse tema foi produzido um filme, “Você não conhece Jack”, estrelado por Al Pacino. A película revela sua obsessão por desafiar as regras da vida – e sua cordial e teimosa insistência em violar a lei para fazê-lo. Encontrou poucas pessoas que o ajudaram a executar suas questionadas práticas. Lutou por uma causa, passou dezenove dias na prisão, em greve de fome. Pacientes o procuravam, imploravam por seu auxílio. Lutava por uma causa: divulgar o suicídio assistido e eutanásia, debater essas questões bastante importantes para o médico, preocupava-se com o sofrimento dos pacientes. Foi processado cinco vezes, sendo condenado na última por homicídio em segundo grau. Os últimos momentos de seus pacientes foram filmados por orientação de seu advogado (a emoção provocada nos vídeos convencia os jurados a inocentá-lo), que o defendeu até se candidatar a governador do Michigan. Após a derrota, tornou a apoiar Jack, mas este o demitiu. O primordial no filme são os casos: 130 mortes provocadas. Na última, o médico aplicou eutanásia ativa, e filmou no intuito de levar o caso à Suprema Corte. Sem seu ilustre advogado, representando a si mesmo, e desconhecendo as leis do Michigan, Jack perdeu no tribunal e passou oito anos e meio preso. A Suprema Corte não aceitou ouvi-lo. 1058 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratou-se no presente trabalho de expor diversos pontos de vista sobre a eutanásia e suas implicações legais, fatores médicos, enfatizando aspectos filosóficos. A partir do exposto conclui-se que a eutanásia é uma prática antiga. O código de medicina prevê que médico deve resguardar a vida humana. Depende da corrente filosófica for adotada, determinar se o Estado pode ou não agir contra a autonomia da vontade do indivíduo. Segundo Kant, é dever manter a vida. O contrário viola a dignidade, que é fundamento da autonomia – obedecer à lei universal, e não à vontade do indivíduo. Cada indivíduo, para ele, tem um fim em si mesmo. Em contrapartida, o Libertarismo defende que a pessoa pode dispor de seu próprio corpo como bem entender e o Estado não deve interferir, lógica que admite a eutanásia, obtido o consentimento do paciente. A ausência de paternalismo é característica dessa corrente: não proteger pessoas contra si mesmas. Do mesmo modo que leis proibitivas de suicídio assistido são injustas para os libertários, pelo fato de que a vida pertence a própria pessoa, que deve ser livre para desistir dela e, sendo feito acordo voluntário, o Estado não tem direito de interferir. Argumenta-se que pacientes terminais passam por grande sofrimento e devem ter permissão para apressar sua morte em vez de prolongar a dor. Compaixão deve prevalecer sobre o dever de manter pessoa viva. Por outro lado, é visão utilitarista quantificar ou qualificar a vida, o que ofende a ética e a moral. Afinal, há casos em que pacientes voltaram do coma após décadas de internação. É possível que o ser humano, ainda que capaz, tenha sua percepção reduzida – devido à fragilidade e depressão. Logo, necessita de assistência afetiva, psicológica, médica e jurídica. Eis o papel do Estado: intervir e garantir direitos do cidadão, principalmente o direito à vida. Mais relevante do que aparência são as emoções: o cérebro, além do corpo. A mente é a “alma” da pessoa, e negar isso é negar o que há de mais profundo no ser humano e transformar alguém em mero objeto. Uma pessoa não pode se tratar sozinha; alguém deve ter essa incumbência. Deixar morrer pode ser conveniente e perverso, disfarçar a morte num eufemismo de que se fez a vontade do outro. Há demasiados direitos, mas há escassez do que é essencial: humanidade. 1059 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2007. CALLEGARI, J. Revista Superinteressante. Recuperações Espantosas. Maio de 2010. 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Acesso em: 19.01.15, disponível em: <http://pediatriasaopaulo.usp.br/upload/pdf/163.pdf>. 1061 DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA NO AMBIENTE DAS TELECOMUNICAÇÕES: A INADIÁVEL REGULAMENTAÇÃO ECONÔMICA DA MÍDIA NO BRASIL Francisco André Alves Moura RESUMO: A presente pesquisa pretende investigar o contexto das telecomunicações no Brasil, com a finalidade de auferir a necessidade de uma regulamentação econômica da mídia face à existência de circunstâncias antijurídicas, como, por exemplo, os oligopólios midiáticos. Objetiva compreender a existência e a exigibilidade de um Direito Humano à comunicação, enquanto, ao mesmo tempo, base e fruto dos direitos à liberdade de expressão, informação, manifestação e pensamento. Analisa, do mesmo modo, o tratamento que a ordem jurídico-constitucional brasileira reserva à comunicação social e se esta encontrase em conformidade com os dispositivos normativos. PALAVRAS-CHAVE: Direito à comunicação; Regulamentação da mídia; Ordem Constitucional; 1 INTRODUÇÃO O presente artigo objetivará debater acerca da necessidade de regulamentação dos meios de comunicação no Brasil, calcado na premissa constitucional de intervenção do Estado sob domínio econômico como forma de efetivar os princípios democráticos, a livre concorrência no setor de telecomunicações e, principalmente, a efetivação do direito à comunicação plena. Inicialmente, será necessário distinguir as formas pelas quais o Estado deve atuar na esfera do domínio econômico e, mais especificamente, conquanto à regulamentação econômica da mídia, delimitando qual o método de intervenção econômica na seara da comunicação, que se adéqua aos ditames constitucionais. Isto porque, como está previsto no texto constitucional, há as formas direta e indireta de intervenção na ordem econômica, métodos os quais serão devidamente delimitados ao longo deste trabalho, em alinhamento à doutrina do professor Eros Grau. 1062 Deste modo, será debatido o significado da comunicação e o que ela representa para a convivência em sociedade, assim como para sustentação das relações de poder. Com esse substrato teórico, avaliará a existência e respectiva magnitude jurídica do direito à comunicação, enquanto bem jurídico extraído dos direitos à liberdade de expressão, manifestação e imprensa, estes positivamente consagrados nos documentos normativos ao redor do mundo, principalmente, nas constituições ocidentais. Utiliza-se como referenciais teóricos, na abordagem da teoria da comunicação, o diálogo libertador de Paulo Freire e a abordagem original da ciência da comunicação social realizada por Raimunda Aline Lucena Gomes. Será feito um escorço histórico para memorar os principais documentos jurídicos ocidentais, a partir do século XVII, que abordaram a comunicação nos seus textos. Deste modo, observará de que forma a sociedade internacional vem tratando o Direito Humano à Comunicação, principalmente no período do Pós Guerra, quando se acentuaram os debates acerca da natureza deste direito. Consecutivamente, o trabalho abordará os objetivos da norma inserta no capítulo V (Da Comunicação Social), do Título VIII e as disposições do artigo 5º, IV, V, VI, IX e X da Constituição Federal para aferir de que forma está disposto o direito pátrio no tratamento das telecomunicações. Saliente-se, que a análise constitucional dos referidos incisos do Art. 5º e dos dispositivos do Capítulo V, Título VIII da Magna Carta não excluem a análise sistêmica da Constituição num todo para abalizar os posicionamentos nesta pesquisa. Além disso, analisará a realidade concreta da concentração midiática no Brasil para conferir se os fatos sociais estão em acordo com a legislação constitucional e as alternativas para o combate aos monopólios midiáticos, caso assim se apresente a telecomunicação no Brasil. Ademais, buscará, de acordo com as conclusões obtidas nas análises acerca do direito à comunicação no Brasil, expor ideias propositivas para a intervenção do Estado sob o domínio econômico na seara das telecomunicações, 1063 com o fito de contribuir para o cumprimento das normas constitucionais referentes à concretização dos Direitos Humanos, da pluralidade de ideias e do combate aos monopólios/oligopólios econômicos midiáticos. 2 INTERVENÇÃO DO ESTADO “SOB” OU “NO” DOMÍNIO ECONÔMICO? Se faz necessário abordar, em caráter perfunctório, o método de intervenção econômica do Estado que se adequa à finalidade de garantir uma efetivação do direito à comunicação, tendo em vista que este encontra-se obstruído de concretização plena, em face, principalmente, de estruturas imperfeitas do mercado concorrencial que são os monopólios/oligopólios. Em termos metodológicos, faz-se prudente explicitar, que não há pretensão, neste recorte científico, de verticalizar o debate acerca do direito econômico, nos seus termos de combate às estruturas defeituosas do mercado, mas, sim, de propor um diálogo fundamental na busca pela garantia à sociedade de um direito que perpassa e influi nas questões econômicas. Deste modo, há de ser analisado de que forma o texto constitucional brasileiro aborda os métodos de intervenção econômica do Estado, os quais são classificados, conforme disposição normativa, em: métodos de intervenção direta e indireta. Concernente à intervenção estatal direta no domínio econômico, observase que sua previsão constitucional tem fulcro no art. 173, que destaca o caráter excepcional do exercício direto de atividade econômica pelo Estado, devendo este assim atuar somente nos casos previstos na Constituição ou quando necessário aos imperativos de segurança nacional e/ou relevante interesse coletivo. Por outro lado, no que tange à atuação econômica indireta do Estado, a previsão normativa fundamental encontra-se no art. 174, que expõe com clarividência a função reguladora proposta constitucionalmente, de intervenção essencialmente indireta. Este método de intervenção indireta se caracteriza, de acordo com as lições do professor Ângelo Menezes (2012, p. 25), pela cobrança de tributos, 1064 concessão de benefícios/subsídios fiscais e, principalmente, na regulamentação normativa de atividades econômicas, a serem desenvolvidas primordialmente pelos particulares. A classificação da atividade econômica exercida é dividida por Eros Grau (GRAU, 1997) em quatro categorias: 1. Por absorção, quando o Estado atua monopolisticamente em determinado ramo econômico; 2. Por participação, quando o ente estatal pratica diretamente a atividade, mas em regime de concorrência com o particular; 3. Por direção, que se caracteriza pela atuação do Estado de forma cogente através do sistema normativo jurídico; 4. E por indução, método que o Estado atua por via normativa, mas por disposições incentivadoras de ordem tributária ou administrativa. Notoriamente, como se vislumbra, os métodos 1 e 2 referem-se à atuação direta e o 3 e 4 à intervenção econômica do Estado de forma indireta. Deste modo, em nome da clareza na linguagem jurídica, verifica-se ser mais prudente que se a terminologia referida for acerca de intervenção no domínio econômico, tratar-se-á de atuação direta do Estado, ou seja, que envolva os mecanismos descritos nos itens 1 e 2 da classificação de Eros Grau mencionada. Quando referir-se, por sua vez, à intervenção do Estado sob o domínio econômico, estará, o presente trabalho, remetendo a métodos indiretos de intervenção econômica, descritos nos itens 3 e 4. Neste passo, o presente debate acerca da efetivação do direito à comunicação, através da regulamentação da mídia, se pauta fundamentalmente numa proposta de intervenção indireta sob o domínio econômico, com a finalidade de impedir que as congruências do mercado impossibilitem a concretização de um direito fundamental. Por outro lado, não se pretende excluir a importância da atuação direta do ente estatal nos meios de comunicação, através, por exemplo, dos canais públicos de TV e rádio, no entanto um dos objetivos aqui proposto é de promover mais inclusão direta da sociedade civil nos ambientes de profusão e recepção de informação, sem haver, como obrigatório, o intermédio do Estado ou dos grupos corporativos da mídia. 1065 Sendo assim, é necessário que se compreenda qual o significado histórico e ideológico da comunicação e a forma como o sistema jurídico nacional e internacional o trata, para que o debate acerca da regulamentação da mídia, assim como o método de intervenção econômica adequado, seja tratado como meio para a concretização de um fim, que é garantir o pleno acesso à comunicação. 3 A COMUNICAÇÃO Neste capítulo, observaremos o ato de comunicar como uma essência própria do indivíduo, intimamente relacionado à evolução da humanidade. Sendo o meio pelo qual se concretiza as relações interpessoais e sociais, ou seja, o instrumento base da vida em sociedade. Tratar da comunicação, desde a conquista do ato de se comunicar via oral até a instrumentalização técnica, reflete a luta da humanidade pela sobrevivência, pelo domínio da natureza, pela construção do conhecimento e pela sua expansão (GOMES, 2007). Analisar o processo comunicativo, portanto, significa observar o modo de viver em sociedade, que é, acima de tudo, regido pela comunicação entre as pessoas e as instituições, sendo reflexo, também, das relações de poder e da ideologia dominante. Neste pensar, não se torna pretensioso ratificar que a comunicação é o sustentáculo fundamental do modelo de sociedade na qual estamos inseridos, como afirma em sentido semelhante Bakhtin (2004, p. 41), senão vejamos: As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro, que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. Podemos afirmar, desse modo, que a pesquisa sobre a comunicação tem de ser mais do que analisar como o sistema normativo impõe que seja tratado esse direito, pois isto nos limitaria ao reducionismo de reproduzir um conceito de comunicação já posto na teleologia da norma, o que inutilizaria a pesquisa sócio 1066 jurídica, que exige um diálogo entre o Direito e as demais ciências, assim como com a realidade social. Afinal, o objetivo de uma norma é também um ato de comunicação. Sua obediência estrita torna o jurista mero reprodutor comunicativo de uma ideologia dominante, que se concentra no momento de confecção da lei. Defender um modelo social não é, per si, um problema. A problemática reside no instante em que a defesa é nada mais que reprodução acrítica do modelo, o que transforma o jurista, pela linguagem de André Arnaud (1991), num conformista submisso ao Direito. Justificada à insubmissão ao Direito positivo, vê-se que para existir comunicação efetiva é necessário que este ato seja fruto de uma relação dialógica, em que sujeitos sociais se articulam, concordam ou discordam da informação que lhes é destinada. Não há comunicação quando o sujeito destinatário da mensagem é coisificado pelo veículo midiático e tratado como máquina acrítica para depósito de informações, estas quais, invariavelmente, possuem finalidade ideológica de imposição cultural e opressão social. Aliás, impõe ressaltar que, se por um lado nos comunicar é o método que permite a vida em sociedade, por outro, é o método de sustentação das relações (im) postas de poder. Recorrer a Paulo Freire (2002, p. 69) se torna inevitável, já que cristalina é sua reflexão: “educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”. Há, neste enunciado, assim como no pensamento Freireano, um diálogo de conceitos, isto porque o enunciado expõe o sentido da educação e da comunicação, que nos permite concluir que ambos inexistem caso inexista o diálogo – a capacidade discursiva de todas as partes que compõem o ato comunicativo. Desse modo, Paulo Freire (1987, p. 78-79) é novamente fundamental para explicitar a sacralidade do diálogo na comunicação, como forma, inclusive, de permitir a humanização do sujeito que participa do ato comunicativo, senão vejamos: 1067 Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue. Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. (grifo nosso). No mundo pós moderno, portanto, numa realidade em que a informação é transmitida em larga escala de forma midiatizada, não há como existir comunicação na veiculação unilateral de conteúdo, pois como afirmou Brecht (BRECHT, 2005) ainda em tempos de rádio: “O rádio seria o mais fabuloso meio de comunicação imaginável na vida pública, um fantástico sistema de canalização. Isto é, seria se não somente fosse capaz de emitir, como também de receber.” A ausência da “via de mão dupla” no veículo de informação retira, por assim dizer, o caráter comunicativo do respectivo meio, já que desrespeita o caráter dialógico próprio da comunicação; e desumaniza o destinatário do conteúdo midiático, o retirando da condição de sujeito cultural e transformando-o em mero consumidor de informação. Os indivíduos, por sua vez, despido da capacidade real de contrapor e dialogar com a informação que lhe é depositada, se torna reprodutor manso e pacífico do discurso que lhe foi incutido. Aqui, como já foi dito, é onde reside a problemática da inadiável democratização do acesso à comunicação, inclusive mediatizada, para que esse indivíduo comum, especialmente os componentes das minorias étnicas, religiosas, sexuais e sociais, possa ser proclamado do direito de dizer a palavra, ou seja, de essencialmente se comunicar na mesma magnitude que o faz àqueles que objetivam lhe suprimir o direito de pronunciar o mundo, como afirmou Freire. Desse modo, vislumbra-se que a comunicação, desde os métodos primitivos até os meios digitais de hoje em dia, é uma característica fundamental que possibilita a vida em sociedade e foi, ao longo da história, instrumento, 1068 paradoxalmente, de manutenção do poder e de organização de lutas progressistas. Por esse motivo, a comunicação foi conclamada pelas Declarações de Direitos, especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, através de dispositivos que asseguravam a importância do ato comunicativo, instrumentalizado pelos direitos à liberdade de expressão, de opinião, de pensamento, de discurso, de imprensa e de informação. Neste contexto, cumpre-nos analisar resumidamente como esta temática evoluiu nos documentos jurídicos, percorrendo um curso histórico, que demonstra a evolução do tratamento normativo desta matéria até chegar à conotação que hoje recebe o direito à comunicação 3.1 Histórico Internacional do Direito à Comunicação Ao longo da história moderna, documentos jurídicos de origem burguesa passaram a tutelar os direitos à liberdade de pensamento e de manifestação da opinião como formas de viabilizar as garantias negativas de caráter liberal, segundo a qual os indivíduos não devem ser constrangidos pela expressão do pensamento, seja a expressão falada, escrita com conotação política ou em forma de culto religioso. O primeiro documento que remete às liberdades da comunicação é a Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689, que defende diretamente a liberdade da palavra e do debate dentro ou fora do parlamento, embora, de certo modo, a Declaração possua caráter ambíguo (GOMES, 2007), já que em sentido estrito e literal não direciona a titularidade do direito de se comunicar livremente, mas, na sociedade de então, havia uma seleção natural para eleger os titulares do direito à palavra, pois a maioria do povo era analfabeto e vivia na extrema pobreza, estando, consequentemente, distante dos espaços públicos próprios à manifestação da opinião. No século seguinte, em 1776, os Estados Unidos da América tornaram-se independentes da Inglaterra e promulgou a Declaração de Direitos da Virgínia, na qual afirmou que não deve haver restrição à liberdade de palavra ou de imprensa. 1069 Anos depois, no marco histórico da Era Contemporânea, através da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), os franceses romperam o curso histórico e fizeram constar, no referido documento, direitos universais que não se limitavam à ordem jurídica interna. O referido Documento francês declarou os seguintes direitos no que tange à comunicação88: “[...] Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.” Na mesma linha, dispõe: “Art. 11º. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.” (grifos nosso) Após a Declaração da Revolução Francesa e subsequentes Constituições da França, não houve documentos jurídicos versando acerca dos direitos e deveres dos indivíduos até o século XX. Assim, surge no contexto do Pós Guerra, a Organização das Nações Unidas, fundada sob a égide da Declaração Internacional dos Direitos Humanos, fruto de um intenso debate pela proteção internacional e universalização dos direitos, como forma de proteção à sociedade vindoura dos flagelos da guerra A comunicação, nesse contexto, também foi objeto de abordagem, através, principalmente, da expressão do artigo XIX da Declaração da ONU, como se observa: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independente de fronteiras.” Há também, seguindo os mesmos nortes da Declaração Universal, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que expressa: “[...] a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”. 88 Documento online. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentosanteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5esat%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html> 1070 Ocorre que, apesar dos avanços normativos no tratamento do direito à comunicação nas duas últimas legislações internacionais mencionadas, o avanço da realidade das comunicações sociais estava anos luz à frente do que dispunha os dispositivos legais mencionados. Isto porque, os documentos estavam focados em garantir uma comunicação interpessoal, em possibilitar os indivíduos de se comunicarem livremente, sem ameaça de censura pelo Estado, segundo a lógica, na anacrônica visão geracional dos direitos, de proteger os direitos fundamentais de primeira geração. Isto, de fato, possui absoluta importância, mas não tem o condão de garantir a plenitude da liberdade de expressão, informação, manifestação e pensamento numa sociedade de comunicação de massas (cinema, tv., rádio), como já o era no período de confecção dos referidos documentos. As leis existentes de Direitos Humanos, asseguradas pelo artigo 19 da DUDH15 e artigo 19 da Convenção (sic) Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, cobrem o direito fundamental à liberdade de opinião e de expressão. Isto é, indubitavelmente, uma base essencial para o processo de diálogo entre as pessoas, mas não se constitui como tráfego de mão dupla. É a liberdade de expressão do mendigo que fala em uma esquina, e a quem ninguém tem que ouvir, e que pode não estar se comunicando com ninguém. O artigo também se refere à liberdade de ter opiniões: isto se refere às opiniões dentro da cabeça das pessoas, que podem servir para a comunicação consigo mesmo, mas não necessariamente traz uma obrigatoriedade de comunicação com outros. Menciona o direito de buscar informações e ideias: dispõe para o processo de consultar e reunir notícias, por exemplo, o que é diferente de comunicar. Também há o direito a receber informação e ideias, o que é também, em princípio, um processo de mão única: o fato de que eu possa receber quaisquer informações ou ideias que eu queira não implica que eu esteja envolvido em um processo comunicacional. Finalmente, há o direito a disseminar informações ou ideias: isso se refere à disseminação/alocução que vai além da liberdade de expressão, mas os dispositivos dos artigos tratam apenas de um processo de mãoúnica de transporte, recepção, consulta e alocução, mas não do processo de mão dupla, que é a conversação. (GOMES apud HAMELINK, 2005, p. 143) (grifo nosso). Por conseguinte, vê-se os documentos até aqui abordados possuem um tratamento jurídico, de certo modo, rudimentar para os desafios reais que se avizinham no que tange à efetivação plena de um direito à comunicação, que passou a exigir, sob pena de inexistência do ato comunicativo, um diálogo entre os sujeitos comunicantes, inclusive se a troca de informação ocorrer de maneira mediatizada. 1071 3.2 O Atual Tratamento Jurídico da Comunicação na Ordem Internacional A ordem jurídica internacional começa a evoluir no que tange ao tratamento do direito humano à comunicação a partir do avanço quantitativo nas Nações Unidas de países fora do eixo de hegemonia econômica, em especial, através das resoluções editadas pelos membros da UNESCO, órgão de poder horizontalizado. Os debates na UNESCO acerca do direito à comunicação foram capitaneados por Jean D’arcy, por meio, inicialmente, de sua obra intitulada, em português, de “Os Direitos do Homem à Comunicar”. O Francês invocou a importância de um tratamento adequado para as novas maneiras de se transmitir a informação, que passara a ser transmitida como comunicação em massa. Inaugurava-se um novo tratamento jurídico da comunicação, superando àquele conceito do free flow, que defendia a fantasia da liberdade em virtude da ausência normativa, mas que, em verdade, permitia e permite um controle da comunicação pelos grupos empresariais, por meio dos já referidos oligopólios. O que D’arcy propôs efetivamente foi trazer para os instrumentos normativos a importância histórica, social e ideológica que possui a comunicação, no sentido de que os documentos jurídicos pudessem imprimir força comunicativa aos indivíduos que estão à margem da construção da informação e, consequentemente, fora da condição de disputar socialmente os espaços. Em síntese, afirmou Jean D’arcy (1983, p. 291): A chegada sucessiva de outros meios de comunicação de massas – cinema, rádio, televisão – da mesma forma que o abuso de todas as propagandas em véspera de guerra, demonstraram rapidamente a necessidade e a possibilidade de um direito mais preciso, porém mais extenso, a saber, o de procurar, receber e difundir as informações e ideias sem consideração de fronteiras. [...] Hoje em dia parece possível um novo passo adiante: o direito do homem à comunicação, derivado de nossas últimas vitórias sobre o tempo e o espaço, da mesma forma que da nossa mais clara percepção do fenômeno da comunicação. Em âmbito global passou a ser notório, que o fluxo das informações era essencialmente do norte para o sul, seguindo a lógica colonizadora de produção e difusão da informação nos países desenvolvidos e o consumo nos subdesenvolvidos, o que gerava não só uma dominação econômica, mas também cultural. 1072 Em contraposição a esse modus operandi, surgiu na ONU vozes como a de D’arcy, o que, subsequentemente, possibilitou a criação da Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação ligado à UNESCO, tendo sido o órgão responsável pela elaboração do documento que ficou conhecido como Relatório McBride ou Um mundo e muitas vozes. O Relatório dispôs acerca de onze pontos fulcrais para a democratização do acesso à informação, os quais transcrevo parcialmente a seguir pelo caráter ainda atual dos seus objetivos no debate acerca do direito à comunicação (1980): [...] (2) eliminação dos efeitos negativos de determinados monopólios, públicos ou privados, e a excessiva concentração de poder; (3) remoção dos obstáculos internos e externos para um livre fluxo e mais ampla e equilibrada disseminação das informações e ideias [...] (10) respeito à identidade cultural de cada povo e ao direito de cada nação para informar o público internacional sobre seus interesses, aspirações e respectivos valores sociais e culturais; (11) respeito aos direitos de todos os povos para participar de intercâmbios de informação, baseando-se na igualdade, justiça e benefícios mútuos e, respeito aos direitos da coletividade, assim como de grupos étnicos e sociais, para que possam ter acesso às fontes de informação e participar ativamente dos fluxos de comunicação. Em face das conclusões democratizantes da comissão da UNESCO, os Estados Unidos, de Reagan, e o Reino Unido de Thatcher, abandonaram o órgão em 1985, sob argumentos de desqualificação da UNESCO enquanto fórum para debater os problemas mundiais da comunicação, o que levou a uma certa inoperância do órgão neste âmbito, já que a saída das referidas nações do quadro de membros representou uma diminuição na contribuição financeira das pesquisas acerca do direito à comunicação (MOYSES, 2010). Visualiza-se perfeitamente adequada a lição já referenciada, mas sempre salutar, de Paulo Freire: “Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito”. Neste contexto, a produção normativa acerca do direito à comunicação restou, em termos gerais, inalterado ao longo das décadas de 80 e 90, num contexto de expansão do neoliberalismo e ausência de interesses hegemônico na expansão deste debate. 1073 Foi retomado, porém, no início dos anos 2000, na ONU, através da Cúpula Mundial Sobre a Sociedade da Informação, onde os debates pela concretização da comunicação se desenvolveram no sentido de não somente abordá-lo como um direito de status negativo, mas também positivo, que impõe atuação do Estado para concretizá-lo, assim como os demais direitos econômicos e sociais que foram sendo conquistados no início do século XX. Neste desiderato, expressa Moyses (2010, p. 108): Este direito pode ser compreendido como parte do mesmo movimento iniciado no final do século XIX, quando setores populares reivindicaram o reconhecimento de direitos econômicos e sociais, acrescentando às liberdades negativas conquistadas o passado a necessidade de condições mínimas de igualdade material (e não meramente formal). Enquanto alguns direitos que possuem essa perspectiva (os chamados direitos de segunda geração, ou direitos econômicos e sociais) foram sendo progressivamente reconhecidos – como os direitos ao trabalho, à educação e à saúde – a comunicação social, neste mesmo período, foi apropriado pelo capital e, em países como Brasil, também pelas oligarquias locais/regionais, percorrendo caminho inverso aos outros campos objeto de direitos humanos [...]. Deste modo, apesar do avanço legislativo na esfera internacional, deve-se registrar que há uma imposição informacional e cultural ainda em grande medida na escala global, com os fluxos de informação sendo predominantemente do norte para o sul, apesar dos esforços empenhados internacionalmente, através, por exemplo, do Global Governance Project, projeto da campanha CRIS, sigla em inglês para o que significa: Direitos da Comunicação na Sociedade da Informação (tradução livre do autor). Por conseguinte, estando abalizado o contexto internacional no que tange ao tratamento jurídico do Direito Humano à Comunicação, configura-se relevante que adentremos ao recorte principal que se destina essa pesquisa, qual seja, analisar como está disposta a comunicação social no Brasil, tanto nos diplomas normativos, quanto na realidade fática, para que seja possível auferir a necessidade da regulamentação da mídia, assim como o método adequado para perquirir tal finalidade. 1074 4 O DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL A comunicação social no Brasil está vinculada, num geral, às disposições constitucionais dos incisos IV, V, VI, IX e X do artigo 5º, que compõe os Direitos e as Garantias Fundamentais, assim como às normas do Capítulo V – Da Comunicação Social – do Título VIII da Constituição Federal. Os dispositivos do Art. 5º da CF correspondem, essencialmente, às liberdades individuais conclamadas pelos documentos jurídicos ao redor do mundo a partir dos séculos XVII e XVIII. São disposições normativas pautadas na concepção do fato jurídico relacionado à comunicação interpessoal, ou seja, tem o condão principal de garantir que os indivíduos possam se comunicar livremente num ato comunicativo direto não mediatizado. Há uma ressalva a essa liberdade no teor do inciso V já referido, que assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral e à imagem. Muito embora represente certa limitação à liberdade plena de expressão e informação, não há novidade nesta manifestação legislativa, já que desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão consta semelhantes reservas, como por exemplo, no art. 11: [...] Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. (grifos nossos). Por outro lado, os artigos 220 a 224 representam uma vontade programática da Constituição Federal em estabelecer uma ordem da Comunicação Social no Brasil que atenda aos princípios constitucionais, fundamentalmente conquanto uma comunicação efetivamente democrática. O professor Leonardo Martins (2012, p. 266) expõe de forma clarividente o paradoxo constitucional referente ao campo da comunicação no sistema brasileiro, como podemos observar a seguir: No campo da comunicação social, o legislador brasileiro se encontra vinculado a duas diretivas constitucionais: de um lado, às liberdades de comunicação social e de manifestação do pensamento consoante já aqui sucintamente discutido, e, de outro, às determinações positivas de configuração legislativa de uma ordem da comunicação social compatível com a Constituição 1075 Tomemos, desse modo, o tratamento jurídico constitucional pátrio da comunicação como uma garantia de caráter negativo, que impede a intervenção do Estado na esfera da expressão e manifestação comunicativa do indivíduo, assim como de uma necessária atuação programática no sentido de garantir a democratização do acesso, produção e profusão de informação através dos meios de comunicação. Inolvidável estabelecermos como substrato para as análises jurídicas, a assunção da comunicação como um Direito Humano também no plano nacional, como restou estabelecido pelo Relatório do Encontro Nacional de Direito Humanos da Câmara dos Deputados (2005, p. 22): “[...] a valorização do direito à comunicação como direito humano, cuja incidência transversal confere-lhe importância crescente para a realização de todos os demais direitos”. Exemplificado o modelo teórico jurídico, cumpre-nos analisar as circunstâncias sociais e os desafios reais para concretização de um método de intervenção econômica para democratização do acesso à comunicação. 4.1 A Situação da Comunicação Social no Brasil e as Possibilidades de Enfrentamento Mesmo que em uma análise rápida e superficial, é perceptível que a circunstância do fluxo de informação desenhado em capítulo anterior, que expôs o hemisfério norte como emissor da informação e o sul como consumidor, se repete na realidade brasileira, com uma mudança geográfica espacial, já que aqui o fluxo é do sul para o norte. Apesar da mudança na direção espacial do fluxo informacional, as características brasileiras são semelhantes ao contexto mundial, já que a informação flui do centro econômico financeiro para as demais regiões, repetindo, de certo modo, a lógica colonizadora. Fato cotidiano relevante para a presente pesquisa, que envolve a política e o direito da comunicação, foi a manifestação política nos idos de março e abril, que ficou conhecido como “panelaço”, que foi uma manifestação legítima 1076 concentrado essencialmente nas regiões sul e sudeste durante pronunciamento da presidenta Dilma nas redes comerciais de televisão89. Acontece que, do norte de Minas Gerais até os estados das regiões Norte e Nordeste não houve manifestação do “panelaço”. Apesar disso, o referido ato se transformou em fato político debatido nos quatro cantos do país, veiculado, diuturnamente, pelos jornais locais, até mesmo das regiões onde não houve tal manifestação política. Esse fato pontual ora narrado nos serve de exemplo para explicitar a lógica do fluxo de informação, do mesmo modo que se faz útil para adentrar na análise das redes corporativas de controle da comunicação. Em trabalho ímpar acerca da concentração econômica na produção da informação, Görgen (2010, p. 79) explicita a análise feita pelo projeto do qual faz parte, denominado Os Donos da Mídia: Distorções regionais. Os veículos ligados às redes privadas nacionais distribuem-se por todos os Estados do país. A comparação do número de veículos encontrado em cada região do país e do percentual destes com os percentuais da população, do número de domicílios, do Produto Interno Bruto (PIB) e do Índice Potencial de Consumo (IPC), mostram diversas incongruências. Na região Sudeste, uma pequena parcela dos veículos (21,9%) ligados às redes atua no maior mercado do país (58,7% do PIB e 51,4% do potencial de consumo), onde vive o maior contingente de população (42,4%). Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste estabelece se uma relação inversamente proporcional. Um grande número de veículos atua sobre uma menor parcela da população e em mercados menores. No somatório destas três regiões, a pesquisa constatou que 60% de todos os veículos ligados às redes privadas nacionais encontram-se em uma área que corresponde a 42,6% da população, 24,9% do PIB e 31,3% do potencial de consumo. A exceção a este quadro distorcido se dá na região Sul, onde há uma certa proporcionalidade entre os índices. Esta análise da concentração regional na produção da informação é sintomática, já que isto significa a existência de uma problemática ainda mais ameaçadora à concretização do direito humano à comunicação, pois demonstra que o mercado midiático é controlado, através dos grupos afiliados, por uma pequena quantidade de grandes empresas situadas no centro financeiro do país. Ora, redes como Globo, SBT, Record, Bandeirantes e Rede TV possuem cerca de 80% dos grupos de comunicação regional filiados aos seus quadros, o 89 Em virtude do alcance insuficiente dos canais de TV vinculadas ao Estado, que deveriam estar aptas a desenvolver um papel político informativo, foi necessário utilizar-se de horário nobre das redes comerciais de TV. 1077 que gera, por consequência, um controle dos veículos locais de forma direta ou indireta. Assim, aproximadamente metade dos 2.422 veículos ligados às redes possui ligação com alguma das cinco maiores redes de televisão ou das três maiores redes de rádio (GÖRGEN, 2010). Há um quadro inequívoco de oligopólio econômico, que por si só é uma ofensa à ordem jurídica e substancialmente prejudicial à sociedade, porém, o que torna a circunstância ainda mais gravosa é o fato de ser relacionado ao setor midiático televisivo e radiofônico, responsável, hodiernamente, por muito da formação cultural, da consciência política e da opção ideológica da população. O combate à concentração econômica midiática é medida que se impõe pelo próprio texto constitucional, que veda o monopólio e o oligopólio direto ou indireto no campo da comunicação social, como se depreende da taxatividade do art. 220, §5 da Constituição Federal. A defesa da ordem econômica livre não é nenhuma novidade para a ordem constitucional, no sentido de promover a defesa do livre mercado e dos direitos dos indivíduos que consomem informação das TVs e rádios. Veja que aqui se propõe um primeiro passo para regulamentação da mídia, qual seja, a democratização do acesso aos meios de produção e veiculação do conteúdo através das concessões públicas, que devem ser feitas de forma plural e respeitando as condições sócio culturais da localidade de transmissão da informação. Deve-se criar métodos para combater a concentração midiática a partir de todo indício de monopolização de meios comunicativos, como, por exemplo, os chamados cross media ownership, que é a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Ressalte-se, por oportuno, que esta atuação repressiva não requer obrigatoriamente uma regulamentação normativa das telecomunicações, tendo em vista que a Constituição já proíbe a concentração de meios de comunicação, carecendo tão somente de uma atuação de órgãos de investigação e repressão, como o Ministério Público Federal, para concretizar as disposições normativas constitucionais. 1078 Obviamente, um exame de proporcionalidade é sempre salutar – e no presente debate que envolve uma liberdade é ainda mais – para o intérprete do Direito ponderar o caso concreto no que tange às colisões de direitos. Essa ponderação, porém, não deve obstaculizar a atuação em combate a essa anomalia do mercado (oligopólios), o qual é repudiado pelo Direito Constitucional, Econômico e Concorrencial. Apesar de já haver previsão constitucional para o combate aos oligopólios, em face da disposição da Constituição possuir caráter aberto, o aplicador do Direito vê-se diante de uma impossibilidade fática de aplicação das normas dirigentes à uma comunicação social justa e democrática. Vislumbra-se aqui, portanto, a necessidade de regulação econômiconormativa da mídia, através da regulamentação, em lei infraconstitucional de caráter fechado e de subsunção normativa imediata, do §5º do art. 220 da Constituição Federal, no sentido de corrigir o defeito do mercado e possibilitar que mais sujeitos tenham a capacidade de produzir e veicular conteúdo nos meios de comunicação de massa, transformando-os em canais plurais de identidade e diálogo com os indivíduos receptores e, possivelmente, transformadores da informação. Além disso, um segundo ponto essencial para ser abordado numa formulação legal da regulamentação normativa da mídia é a criação e manutenção de um órgão central suprapartidário e composto por membros da sociedade civil com competência para debater os rumos da telecomunicação no país, como há na Alemanha e nos Estados Unidos Obviamente, um Órgão Central havia de ser criado num contexto de telecomunicação renovado, desde que ultrapassado esse modelo concentrado que ora se percebe. Caso contrário, o órgão restaria controlado pelos mesmos agentes que controlam a ordem econômica da comunicação social. Um terceiro ponto a ser inserido numa possível regulamentação da mídia, seria a própria proibição de parlamentares possuírem o domínio direto ou indireto de órgãos de radiodifusão, pois, como salienta Leonardo Martins (2012, p. 268), representa um desserviço ao propósito ora discutido e deve ser vedado. 1079 Os prejuízos advindos do domínio de canais de comunicação por agentes políticos são inequívocos, já que as concessões são frutos, usualmente, de conchaves políticos e trocas de favor (GÖRGEN, 2010), e provoca, em nível regional, um claro desequilíbrio nas disputas político-eleitoral, por vezes, distorcendo, criando ou omitindo informações em benefício de seu proprietário, fulminando a própria essência do direito à comunicação. As três medidas mencionadas postas em debate fazem parte de um rol de outras medidas necessárias à regulamentação econômica da mídia no Brasil, objetivando a concretização em plenitude das liberdades de expressão, informação, manifestação, pensamento, palavra e crença. Em miúdos, são algumas das alternativas viáveis para concretizar a comunicação como um Direito Humano, tornando possível seu exercido de forma democrática, plural, em defesa de minorias e da promoção de igualdade econômica. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Longe de ter exaurido a temática e as possibilidades de resolução da problemática, passo a tecer as considerações finais, ciente de que os objetivos do presente recorte científico foram devidamente atingidos, mesmo que as nossas proposições sejam taxadas de utópicas e seus meios de impossíveis, está registrado nesse trabalho acadêmico os delírios de um sonhador, como queria que o fizéssemos Eduardo Galeano, agora in memorian. Afora sonhos, observa-se que o tratamento jurídico da comunicação evoluiu ao longo do tempo. Surgiu como forma de tutelar a capacidade e possibilidade dos homens90 de se manifestar abertamente sem a preocupação de haver censura pelo Estado na figura do rei, numa perspectiva de comunicação interpessoal, limitada ao convívio das pessoas. Subsequentemente, os documentos jurídicos passaram a garantir um direito à comunicação social, que aprofunda o conceito e agrega as liberdades, 90 Registre-se que aqui fazemos menção somente aos homens, já que à época dos primeiros documentos que registravam a liberdade de expressão, pensamento e imprensa, realmente, se pretendia resguardar esses direitos aos homens, em específico, aos homens burgueses, classe social ascendente nos séculos XVI, XVII e XVIII; 1080 buscando propiciar aos indivíduos a possibilidade de se manifestar perante a sociedade utilizando-se dos meios e recursos tecnológicos que permitem a comunicação em massa. Desse modo, se vislumbra que a comunicação enquanto Direito Humano deve ser tutelada e garantida na sua plenitude, através, inclusive, da democratização dos veículos midiáticos, que devem – assim como a liberdade de falar que outrora era privilégio – passar por um processo de descentralização econômico e geográfico. No contexto brasileiro, é possível perceber que há mecanismos constitucionais que garantem o acesso democrático à comunicação, porém resta impossibilitado de concretização face à omissão parlamentar de regulamentar os dispositivos constitucionais, no sentido de torná-los exequíveis por meio de lei que regulamente economicamente a telecomunicação no país. Neste desiderato, faz-se necessário, aqui reside a materialidade sugestiva de ação do presente artigo, que a sociedade civil se organize politicamente para realizar pressão popular e democrática, pois, por se tratar de uma autolimitação de privilégios dos parlamentares, a regulamentação econômica da mídia necessita e exige apelo popular para transformar os debates acadêmicos e sociais em processo legislativo oficial. REFERÊNCIAS ARNAUD, A.-J. O direito traído pela filosofia. Tradução de Wanda Lemos Capeller, Luciano Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998. BRECHT, B. Teoria do rádio (1927 – 1932). In: MEDITSCH, Eduardo (org). Teorias do Rádio: textos e contextos – Volume I. Florianópolis: Insular, 2005. DONOS DA MÍDIA. O Mapa da Comunicação Social. 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A Intervenção do Estado na Economia e a Dimensão Jurídica do Desenvolvimento Econômico: uma análise histórico-constitucional. 2013. Disponível em: <http://www.revistapesquisasjuridicas.com.br/ojs/index.php/RPJur/article/view/47/ 40>. Acesso em: 10 de janeiro de 2015 1082 UNESCO. Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação. Um Mundo e Muitas Vozes: comunicação e informação na nossa época. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983. 1083 OS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE A PARTIR DO DIÁLOGO ENTRE O PENSAMENTO DE KARL MARX E NORBERTO BOBBIO Rômulo Magalhães Fernandes, RESUMO: O presente artigo constitui uma análise do pensamento de Karl Marx e de Norberto Bobbio quanto ao tema dos Direitos Humanos, tendo em vista as contradições do Estado Constitucional na consolidação plena de tais direitos na atualidade. A partir de uma pesquisa bibliográfica, busca-se traçar um paralelo entre Karl Marx e Norberto Bobbio, resgatando a crítica da emancipação política, para, assim, questionar o aparente consenso do discurso atual dos Direitos Humanos e revelar seus contraditórios pressupostos que reforçam a necessidade de se problematizar, ou mesmo de romper, com a ordem econômica e social estabelecida. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Karl Marx; Norberto Bobbio. 1 INTRODUÇÃO Na atualidade, percebe-se que a compreensão dos Direitos Humanos ocupa uma espécie de “lugar-comum”, em que a defesa de tais direitos é vista, necessariamente, como sinônimo de conquista de homens e mulheres mais livres e humanos (TONET, 2009a, p. 1). Contudo, será que a análise que se faz dos Direitos Humanos como efetividade da liberdade humana estaria sendo usada da forma mais crítica? Os Direitos Humanos, mesmo se considerados seus aspectos positivos, teriam alcance limitado? Responder a tais indagações é o principal desafio deste artigo, assim como aprofundar a análise teórica e política de Karl Marx e Norberto Bobbio sobre perspectiva atual dos Direitos Humanos. Por vezes, a luta pelos Direitos Humanos como único e incontornável caminho para a o “progresso da humanidade”, acaba por deixar em segundo plano as análises que buscam desvendar as diferentes matrizes filosóficas e 1084 ideológicas que fundamentam esses direitos. E, dessa forma, privilegiam o debate reduzido aos instrumentos técnico-jurídicos que garantam a sua proteção. Percebe-se uma multiplicação de tratados e pactos sobre os direitos humanos, mas estes não possuem a capacidade de constranger organizações governamentais e não-governamentais quanto à criação de condições para que esses direitos sejam efetivados. As reivindicações sociais apresentam uma luta cada vez mais restrita ao aperfeiçoamento da democracia capitalista, em que o horizonte máximo da humanidade deixa de ser visto como resultado de uma ruptura econômica, social e cultural para predominar a luta por um Estado social que garanta o mínimo de igualdade para as pessoas. Nesse sentido, destaca-se o contexto da crítica marxista e a importância da radicalidade do pensamento de Marx para a compreensão de seu posicionamento sobre o tema. Ademais, aborda-se textos mais recentes sobre o tema dos Direitos Humanos, como é o caso da obra “A Era dos Direitos” de Norberto Bobbio, no intuito de demonstrar diferenças e proximidades entre esse autor e a teoria social de Karl Marx. 2 O PROJETO SOCIALISTA E O MARXISMO Depois da tomada do poder pela revolução soviética – realizada em nome do marxismo e com o intuito de instaurar o socialismo, acontece na URSS um processo de supressão de direitos e liberdades democráticas dos indivíduos e uma excessiva concentração de poderes nas mãos do Estado. Como resultado de um processo histórico complexo, o que se nota é a degeneração dos preceitos defendidos pela revolução e o surgimento de uma brutal ditadura (TONET, 2009b, p. 7). A problemática dos direitos humanos, por sua vez, ganha destaque a partir das denúncias de Krutschev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1976, onde se revela a existência de campos de concentração, crimes de tortura e demais delitos cometidos na URSS comandada por Stálin. Na medida em que a URSS era vista como a realização do 1085 pensamento de Marx, inevitavelmente, essas revelações obrigavam os marxistas a reverem a relação entre Marx e os Direitos Humanos, a democracia e a política em geral (SOUZA, 2008, p. 9). Nesse sentido, o filosofo Ivo Tonet destaca algumas críticas sobre o período: Foram, então, retomadas as idéias de Marx e os seus desdobramentos na revolução soviética, sendo aquelas criticadas por sua suposta estreiteza. Segundo estes críticos, as conseqüências derivadas daquela concepção manifestavam claramente a sua falsidade. O raciocínio, em resumo, era o seguinte: a concepção de que os direitos humanos têm como sujeito o indivíduo burguês se constitui em um poderoso argumento para a sua supressão pelos regimes “socialistas”. O resultado era que todos estes regimes sempre acabavam em ditadura. No entanto, assim como indivíduo não é sinônimo de indivíduo burguês, também os direitos humanos não são sinônimos de direitos de caráter meramente burguês. Estes direitos tem um caráter universal, ou seja, são objetivações que estendem sua validade para além da sociedade capitalista. Por isso mesmo, em vez de serem suprimidos ou impedidos de se desenvolver, deveriam ser defendidos e ampliados numa sociedade socialista. Somente assim se evitaria a supressão não só das limitações burguesas dos direitos humanos, mas, juntamente com os direitos, também do indivíduo (TONET, 2009b, p. 7). E continua: Esta luta pelos direitos humanos deveria estar articulada na luta pela defesa, ampliação e melhoria do conjunto dos direitos e instituições que constituem a cidadania e a democracia bem como a democratização do Estado e do capital. Para alguns autores atuais, nem mesmo a propriedade privada deve ser inteiramente eliminada. O que se deveria fazer seria conferir-lhe um forte conteúdo social. Este seria o caminho, certamente tortuoso e complexo, mas indefinidamente aberto para a construção de uma sociedade mais justa e humana (TONET, 2009b, p. 8). Essas reflexões, influenciadas diretamente pelo seu momento histórico, favorecem a idéia de fracasso da proposta socialista e da sua incompatibilidade com os Direitos Humanos, restando àqueles que ousam reivindicar outra sociedade apenas a luta pelo aperfeiçoamento social da democracia capitalista. As teorias do “fim da história” de Francis Fukuyama, por exemplo, recebem destaque nesse contexto, uma vez que, devido ao colapso do “campo socialista”, a história teria chegado ao seu fim com a vitória da democracia liberal. A conseqüência destes fatos para o estudo das obras de Karl Marx sob a perspectiva do direito acaba por reforçar a recusa pelo conteúdo global de seus textos, deixando em segundo plano (ou abandonada) a radicalidade do seu 1086 pensamento. Isto é, nega-se a necessidade de ruptura e ultrapassagem do sistema capitalista pela revolução social. Nesse contexto de polêmica, nada melhor que o resgate crítico de Karl Marx. O que seria o projeto socialista para Marx? Quais as suas principais características? De forma breve o professor Ivo Tonet destaca: Para Marx, socialismo implica uma forma de sociabilidade cujo fundamento é o trabalho associado. Forma esta de trabalho que tem como condições indispensáveis um alto grau de desenvolvimento das forças produtivas e uma grande redução do tempo de trabalho necessário. Além disso, tem por núcleo decisivo o fato que os indivíduos põem em comum as suas forças e de que estas permanecem sempre comuns, tanto na produção, como na distribuição do consumo. É esta base material que permite os homens serem plenamente livres, ou seja, terem o controle consciente e coletivo do processo de trabalho e, consequentemente, de todo processo social. É esta base material que permite aos homens realizar plenamente suas potencialidades e dar sentido autêntico à sua vida (TONET, 2009b, p. 12). Socialismo não é o contrário de capitalismo. Quer dizer, para ele [Marx] o eixo do socialismo não é a coletividade em oposição ao indivíduo como eixo da sociabilidade capitalista. Segundo ele, a predominância da coletividade sobre o indivíduo teve lugar em formas de sociabilidade anteriores do capitalismo. O socialismo, contudo, só pode ser uma articulação harmônica – não isenta de conflitos e tensões – entre indivíduos e coletividade. Isto porque socialismo é – não por uma simples aspiração do sujeito, mas por determinação do processo histórico-social – a apropriação, pelos indivíduos, da riqueza humana universal – material e espiritual – e consequentemente configuração como um indivíduo rico, multifacetado, omnilateralmente desenvolvido (TONET, 2009b, p. 12). Tendo isso em vista e a realidade da URSS, nota-se que, não por uma simples questão de vontade, o regime soviético contradiz elementos centrais do pensamento de Marx. As condições de atraso econômico, cultural e político da Rússia pré-revolucionária acarretaram consequências que impediam a conversão URSS em uma forma mais avançada e completa de democracia (FERNANDES, 1996, p. 12). Também no debate em torno de qual a natureza do direito na URSS pósrevolucionária, percebe-se o desvio da teoria social de Marx. É emblemática, por exemplo, a polêmica entre o Comissário do Povo para a Justiça, Pitor Stutchka, e o Vice-Comissário Evgeni Pachukanis, em que o primeiro defende a existência e aplicação de um “Direito Proletário”, ou seja, onde a base e o conteúdo do direito 1087 são determinados de acordo com o interesse da classe (“tantas classes, tantos conceitos de direito”) (STUTCHKA Apud ALAPANIAN, 2005, p. 18). Por outro lado, Pachukanis nega a possibilidade do direito proletário e reafirma as análises de Marx e Engels a respeito da necessidade da extinção da forma jurídica e da extinção do Estado. A realidade da URSS, por sua vez, demonstrou a negação e a perseguição das idéias de Pachukanis, além da disseminação do pensamento de Stutchka, defendendo maior presença do ordenamento jurídico na sociedade e concentração de poder nas mãos do Estado. Isso é reforçado por Márcio Bilharinho Naves na sua obra “Marxismo e o Direito”: Podemos, então, começar a entender as razões que levaram à reconstituição do tecido jurídico e à elevação do direito à plena cidadania teórica. A concepção mesmo do “socialismo” stalinista – na verdade, um capitalismo de Estado – exigia a elaboração de uma doutrina do direito que lhe servisse de fundamento ideológico. Começamos a perceber também as razões que levaram à completa renúncia dos postulados originais de Pachukanis, a necessidade imperiosa de apagar da memória comunista os vestígios da irredutibilidade burguesa e de todo o direito, apagar suas palavras que denunciavam a contradição inerente a um projeto de socialismo fundado na ilusão jurídica (NAVES, 2008, p. 167, grifos no original). Apesar da existência de tais fatos (e muitos outros) que contestam a reciprocidade irrestrita entre a realidade soviética e o projeto socialista, ainda se percebe na intelectualidade marxista das universidades, dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda a necessidade de uma autocrítica do processo histórico da Rússia, assim como da China, de Cuba, dentre outros, para superarem o discurso generalizado que se funda na aparência e no imediatismo dos acontecimentos. 3 CRISE DO CAPITALISMO E O RESGATE DAS IDEIAS MARXISTAS A desmoralização do “socialismo real”, mesmo que de forma acrítica, acarreta descrédito ao projeto socialista. Todavia, a recente história de desmonte do Estado de bem-estar social, a expansão do neoliberalismo e a atual crise estrutural capitalista acabam por reascender o debate das idéias de Marx sobre 1088 as contradições do sistema capitalista e a necessidade de outro projeto de sociedade. Na década de 60, a política de Estado de bem-estar social, praticada predominantemente nos países centrais e por um curto período de tempo, começa a demonstrar as suas limitações. Se, em um primeiro momento, a política de intervenção do Estado na economia, incentivando o consumo, conseguiu assegurar algumas garantias sociais para os trabalhadores e controlar a crise de superprodução, a partir das décadas de 70 e 80 este quadro modifica-se drasticamente com o esgotamento do ciclo momentâneo de crescimento capitalista. Políticas baseadas em premissas liberais são retomadas e aprofundadas, desenvolvendo a expansão da ordem capitalista pelo que se denominou Neoliberalismo. Com medidas de não intervenção na economia, consolidaram-se ações de privatização do aparato estatal e retração dos investimentos sociais do período anterior. O que se percebe é uma ofensiva do capital sobre os trabalhadores, tendo em vista a exigência de novos padrões de acumulação, obtidos pela reestruturação da organização do trabalho e pelo desenvolvimento das forças produtivas. Tal ofensiva é comandada, principalmente, pelos governos de Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Inglaterra) e alastra-se em poucos anos para todo o globo, consolidando, assim, um verdadeiro movimento de hegemonia neoliberal no campo econômico, militar, político e ideológico, com claro destaque para os Estados Unidos favorecido pelo “pós-guerra”91. Os efeitos dessa política são devastadores para países periféricos como o Brasil, especialmente, no atual período de crise internacional. O Estado brasileiro, na medida em que seguiu a “cartilha” neoliberal de abertura econômica e desregulamentação financeira, demonstra sua fragilidade diante às imposições do mercado internacional quanto à flexibilização de direitos sociais e à destinação de recursos. 91 “No fim da guerra os EUA detinham metade da riqueza do planeta e uma posição de poder sem precedentes na história” (CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas. São Paulo: Bertrand Brasil, 2002, p. 10). 1089 Nesse contexto, prevalece a radicalização das desigualdades sociais e da necessidade de uma fundamentação teórica que explique as contradições do capitalismo. Com isso, a teoria marxista ganha destaque, tanto na denúncia da crise sócio-econômica, como no necessário debate sobre outra sociedade baseada em novos alicerces. O debate sobre os Direitos Humanos, necessariamente, é influenciado por este contexto. Nunca foram firmados tantos tratados e declarações internacionais sobre os Direitos Humanos como nas últimas décadas. Entretanto, é neste mesmo período que se percebe a ampliação da pobreza mundial e a expansão de conflitos sociais. A riqueza mundial cresceu sete vezes entre 1948 e 1996, mas o número de pobres no mundo triplicou nesse período. Os 20% mais pobres do planeta detinham ao término do século XX, apenas 1,15% das riquezas geradas, ao passo que os 20% mais ricos já monopolizavam 82% dos ingressos mundiais (OLIVEIRA, 2007, p. 82). Esse panorama apenas reforça a atualidade da substituição da retórica simplista em defesa de tais direitos pela busca das principais questões (políticas e teóricas) que impedem a sua efetivação plena. Isso, a partir da denúncia dos limites da emancipação política e da incompatibilidade entre a sociedade capitalista e a emancipação humana. Para tanto, deve-se aprofundar os estudos sobre a teoria social de Karl Marx em sua perspectiva global e original. 4 MARX E A OBRA “A ERA DOS DIREITOS” DE NORBERTO BOBBIO A abordagem sobre os direitos humanos realizada por Karl Marx na obra “A Questão Judaica” (1844) evidencia uma crítica filosófica e política ao individualismo burguês e à decadência capitalista, onde os direitos do homem – tal como foram elaborados historicamente – são antes de tudo os direitos do homem separados da comunidade (MICHEA, 1992, p. 2). Decorridos mais 200 anos da publicação da obra, a compreensão sobre o tema dos Direitos Humanos modificou-se bastante, mas não ao ponto de superar a crítica de Karl Marx sobre o assunto. Na sociedade capitalista atual, tais direitos, necessariamente, continuam a esbarrar nos limites próprios da emancipação política. 1090 Nos tópicos seguintes pretende-se destacar alguns pontos que diferem e aproximam o pensamento de Karl Marx do posicionamento do autor contemporâneo Norberto Bobbio, na sua obra “A Era dos Direitos” (1992). Isso, no intuito de explicitar os principais fundamentos da teoria social de Karl Marx e sua relação com o debate atual dos Direitos Humanos. A escolha do autor Norberto Bobbio não aconteceu por acaso. Nos últimos anos, esse pensador participou de simpósios e conferências em universidade, produzindo um conjunto de textos sobre o tema dos Direitos Humanos numa perspectiva da história social e civil. Nesse sentido, Bobbio levanta três teses centrais referentes aos Direitos Humanos: os direitos naturais são históricos; nascem no início da idade moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade burguesa; tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico (BOBBIO, 1992, p. 2). Para defender seus posicionamentos e argumentações, Norberto Bobbio, constantemente, tende a resgatar pensadores modernos, como Karl Marx. 5 O CONTEÚDO SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS Bobbio, assim como Marx, acredita que os Direitos Humanos são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias e não isentos a influência de conflitos e contradições sociais. Por isso, falar de Direitos Humanos como direitos naturais ou fundamentais, inalienáveis ou invioláveis, acaba por reforçar fórmulas de uma linguagem persuasiva, mas de pouco valor teórico (BOBBIO, 1992, p. 7). Norberto Bobbio quer, dessa maneira, ressaltar que “o problema dos direitos do homem não pode ser dissociado do estudo dos problemas históricos, sociais, econômicos, psicológicos, inerentes a sua realização” (BOBBIO, 1992, p. 24). No contexto atual de grave desrespeito aos direitos mais básicos, tal análise dá contornos progressistas à defesa dos Direitos Humanos, valorizando seu conteúdo social. Bobbio vincula a contribuição de Marx ao debate dos Direitos Humanos associado, quase que exclusivamente, aos Direitos Humanos de segunda 1091 dimensão, de caráter social e econômico. Isso, na medida em que as lutas sociais do século XIX, influenciadas pelas idéias socialistas, ajudaram a denunciar o contraditório discurso formal e individualista dos direitos de primeira dimensão. Os Direitos Humanos como estavam enunciados nas declarações de direitos e nas constituições dos séculos XVIII e XIX, não passavam de expressão formal de um processo político-social e ideológico realizado nas lutas sociais no momento de ascensão da burguesia ao poder político (DORNELLES, 1989, p. 17). Desde aquele período, o movimento operário demonstrava que não basta o reconhecimento puro e simples de um direito “inerente” ao ser humano para garantir seu exercício. Diferentemente dos Direitos Humanos de primeira dimensão, que estabelecem limites ao Estado em proteção às liberdades individuais, os direitos econômicos e sociais de segunda dimensão pressupõem maior participação do Estado (BOBBIO, 1992, p. 72), acarretando uma ampliação do poder estatal. Além disso, exige-se do Estado uma ação social positiva, no qual possibilite o exercício de direitos pelos indivíduos de posição subalterna na estrutura produtiva da sociedade. Ora, se somos todos iguais perante a lei, que essa igualdade seja garantida materialmente, pois do contrário não existe igualdade, e sim exploração de uma classe mais poderosa sobre um enorme contingente humano que nada possui, a não ser a própria pele para vender ao preço de mercado, submetendo-se às necessidades da produção (DORNELLES, 1989, p. 28). A partir do frágil discurso formal do direito – comum na concepção individualista da sociedade burguesa do século XIX – Bobbio expõe o que acredita ser o ponto central sobre os direitos humanos na atualidade: o problema não reside no seu reconhecimento jurídico, o problema real consiste em garantilos social e praticamente. Para o autor, a sociedade contemporânea num longo e inacabado processo demonstra-se sensibilizada pela necessidade de tais direitos, devendo, agora, lutar por mecanismos reais da sua efetivação. Gradativamente, o que se percebe é a apropriação de apenas parte do pensamento de Marx e não da totalidade de sua teoria. Isso, muitas vezes, leva Bobbio a negar e até a combater as idéias de Karl Marx com relação aos Direitos Humanos e aos limites próprios da emancipação política. Ao contrário de Marx, Norberto Bobbio afirma que os Direitos Humanos são um sinal de inequívoco progresso da sociedade, reforçando, com isso, o que 1092 acredita ser o principal desafio da sociedade atual: caminhar rumo ao fortalecimento do Estado social e do aperfeiçoamento da democracia moderna. 6 A CRÍTICA DE MARX E O PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO Na segunda parte da obra “A Era dos Direitos”, Norberto Bobbio aborda de forma mais específica a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a crítica de Karl Marx sobre os direitos humanos. A Declaração, desde então até hoje, recorrentes e opostas: foi acusada de reacionários e conservadores em geral; interesses de uma classe particular, por (BOBBIO, 1992, pp. 97-98). foi submetida a duas críticas excessiva abstratividade pelos e de excessiva ligação com os Marx e pela esquerda em geral E continua, aprofundando-se sobre a perspectiva de Marx: A crítica oposta – segundo a qual a Declaração, em vez de ser demasiadamente abstrata, era tão concreta e historicamente determinada que, na verdade, não era a defesa do homem em geral, [...] mas do burguês, que existia em carne e osso e lutava pela própria emancipação de classe contra a aristocracia, sem se preocupar muito com os direitos do que seria chamado de Quarto Estado – foi feita pelo Jovem Marx [...]. De nenhum modo se tratava do homem abstrato, universal! O homem de que fala a Declaração era, na verdade, o burguês; os direitos tutelados na Declaração eram os direitos do burguês, do homem (explicava Marx) egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade, do homem enquanto “mônada isolada e fechada em si mesma” (BOBBIO, 1992, p. 99). Mesmo sem uma análise cuidadosa do texto de Marx, Bobbio diz que tais interpretações dos direitos do homem e do Estado moderno geram consequências “funestas” (BOBBIO, 1992, p. 99). Em sua argumentação, o autor italiano dá exagerado destaque às “consequências” da interpretação marxista nos dias atuais, deixando para segundo plano a fundamentação de Marx sobre o assunto. A defesa da liberdade pessoal e as experiências “totalitárias” do pósguerra influenciam, diretamente, a análise de Bobbio quanto a critica de Marx. Parece-me, difícil negar que a afirmação dos direitos do homem, in primus os de liberdade (ou melhor, de liberdades individuais), é um dos pontos firmes do pensamento político universal, do qual não mais se pode voltar atrás (BOBBIO, 1992, p. 99). Para Bobbio, a crítica de Marx sobre a concepção individualista da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão é “justíssima”, todavia, inaceitável. Nesse sentido, ele explicita por que considera “justíssima”: 1093 Decerto, o ponto de vista no qual se situa a Declaração para dar uma solução ao eterno problema das relações entre governantes e governados é o do indivíduo, do indivíduo singular, considerado como o titular do poder soberano, na medida em que [...] não existe nenhum poder acima dele. O poder político, ou o poder dos indivíduos associados, vem depois. É um poder que nasce de uma concepção; é o produto de uma invenção humana [...]. Esse ponto de vista representa a inversão radical do ponto de vista tradicional do pensamento político, seja do pensamento clássico, [...] seja do pensamento medieval [...]. Dessa inversão nasce o Estado moderno: primeiro liberal, no qual os indivíduos que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade; depois democrático, no qual são potencialmente todos a fazer tal reivindicação; e, finalmente, social, no qual os indivíduos, todos transformados em soberanos sem distinção de classe, reivindicam – além dos direitos de liberdade – também os direitos sociais, que são igualmente direitos do indivíduo: o Estado dos cidadãos, que não são mais somente os burgueses [...] (BOBBIO, 1992, p. 100). Mas, não aceitável: Hoje, o próprio conceito de democracia é inseparável do conceito de direitos do homem. Se se elimina uma concepção individualista da sociedade, não se pode mais justificar a democracia do que aquela segundo a qual, na democracia, os indivíduos, todos os indivíduos, detêm uma parte da soberania. E como foi possível firmar de modo irresistível esse conceito senão através da inversão da relação entre poder e liberdade, fazendo-se com que a liberdade precedesse o poder? Tenho dito frequentemente que, quando nos referimos a uma democracia, seria mais correto falar de soberania dos cidadãos e não soberania popular. [...] as decisões coletivas não são tomadas pelo povo, mas pelos indivíduos, muitos ou poucos, que o compõem. Numa democracia, quem toma as decisões coletivas, direta e indiretamente, são sempre e apenas indivíduos singulares, no momento em que depositam o seu voto na urna. [...] a sociedade não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, não teria nenhuma justificação o princípio da maioria, o qual, não obstante, é a regra fundamental de decisão democrática. E a maioria é o resultado de uma simples soma aritmética, onde o que se soma são os votos dos indivíduos, um por um. Concepção individualista e concepção orgânica da sociedade estão em irremediável contradição (BOBBIO, 1992, p. 102). Assim, Bobbio defende a concepção “individualista da sociedade” e repudia concepções anti-individualistas, ressaltando que “através do anti-individualismo passaram mais ou menos todas as doutrinas reacionárias” (BOBBIO, 1992, p. 102). A partir dessa argumentação indireta, Bobbio constrói seu posicionamento contrário às idéias de Marx sobre os Direitos Humanos. Na obra a “Era dos Direitos”, Norberto Bobbio aborda a relação de Marx com os Direitos Humanos sem uma pesquisa minuciosa das suas obras, considerando, por exemplo, “A Questão Judaica” um texto “suficientemente conhecido para que não seja preciso ocuparmos de novo dele” (BOBBIO, 1992, p. 1094 99). Além disso, Bobbio analisa tal relação, influenciado pela crítica ao “totalitarismo stalinista”, em que a negação dos Direitos Humanos implica, necessariamente, a negação da liberdade individual, como se a única maneira de afirmar a liberdade individual fosse através dos Direitos Humanos. Entre a perspectiva bobbiana e a de Karl Marx nota-se um paralelo que, muitas vezes, caminha por lados opostos. Enquanto Bobbio afirma que não é mais tempo de fundamentar os Direitos Humanos (problema que já teria sido superado com a aprovação, pela ONU, da Declaração Universal), e sim, tempo de concretizá-los na prática; Marx afirma que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo” (MARX, 2004, p. 120), o que evidencia uma diferença essencial: Marx não estava falando de abandonar a filosofia em nome da ação transformadora, e sim de elaborar uma filosofia voltada para a ação transformadora, que fosse reflexiva e crítica o bastante para tornar possível uma ação verdadeiramente transformadora (COELHO, 2009, p. 1, grifos no original). A reflexão de Bobbio sobre os Direitos Humanos é de grande relevância na atualidade, mas possui limitações consideráveis. Ao mesmo tempo em que traz à tona o debate dos Direitos Humanos como uma questão a ser enfrentada pelos Estados e indivíduos, ele não é capaz de questionar os fundamentos de uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem, na qual a organização social é incompatível com a efetivação dos Direitos Humanos mais fundamentais. Marx, por sua vez, preocupa-se em escancarar tais contradições e esclarecer qual emancipação está em jogo para a humanidade. 7 A CRÍTICA À EMANCIPAÇÃO POLÍTICA Quando se fala em crítica sobre a emancipação política em Karl Marx, fazse necessário esclarecer dois pontos básicos, evitando, dessa forma, falsas polêmicas. O primeiro é sobre a idéia de crítica em Marx. Para o autor, crítica não é uma desqualificação ou uma questão de simples lógica, mas sim, um exame da lógica do processo social – levando sempre em conta que é um produto da atividade humana – de modo a apreender a sua natureza própria, suas 1095 contradições, suas tendências, seus aspectos positivos e negativos, suas possibilidades e limites (TONET, 2005, p. 54). O segundo ponto é sobre a crítica radical do autor quanto às dimensões político-jurídicas da emancipação política, das quais os direitos humanos fazem parte. Ao destacar os limites próprios de tal emancipação, Marx não pretende, no plano essencial, desprezar a sua importância, nem a das ações do Estado, da burguesia e das lutas da classe trabalhadora na sua consolidação. Isso, na medida em que, de forma geral, é inegável o progresso que a emancipação política representa em comparação com a sociedade feudal (TONET, 2005, p. 73). Nesse sentido, Marx diz: Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual (MARX, 2009, p. 52, grifos no original). Tendo clareza dessas questões, a crítica de Marx pode ser melhor compreendida, inclusive, numa relação com a atualidade do tema dos Direitos Humanos. Para Karl Marx o ponto de partida da análise são os indivíduos concretos e as relações que eles travam entre si na produção econômica, sendo que, a partir do surgimento da propriedade privada e das classes sociais em conflito (geradas com a apropriação particular da força de trabalho coletiva), as relações deixam de ser comunitárias para se tornarem antagônicas. Todavia, a reprodução social dessa forma de sociedade manifesta-se, necessariamente, por um poder político e jurídico capaz de envolver o aparato político, jurídico, ideológico e administrativo como algo destacado da sociedade, apenas, aparentemente, acima dos interesses particulares (TONET, 2009b, p. 4). Marx revela, com isso, que o Estado, a política e o direito possuem raízes na desigualdade social, ou seja, tem uma base real desigual, produto da divisão social do trabalho e da propriedade privada. Além disso, ele questiona a ilusão (defendida por muitos autores liberais e contemporâneos) que a forma de organização social é resultado das transformações da esfera política e não, necessariamente, da esfera econômica. 1096 Tais reflexões alcançam o Estado democrático atual, cujo aperfeiçoamento é incapaz de superar algo que lhe é intrínseco. Em outras palavras, o Estado Democrático de Direito – mesmo sendo a emancipação política na forma mais desenvolvida – não é a forma final da liberdade humana, pois continua estruturado sobre o domínio da propriedade privada e da divisão social do trabalho (SOUSA, 2008, pp. 185-186). A defesa dos Direitos Humanos, por sua vez, possibilita uma limitada ampliação da realização do indivíduo (e, inclusive, do gênero humano) (TONET, 2009b, p. 14), mas, assim como o direito em geral, continua erguido em alicerces de desigualdade social. Dessa forma, quando a humanidade estabelece como horizonte sua emancipação real, ou seja, quando a autoconstrução humana atinge patamares de uma sociedade livre, igual e fraterna, a desigualdade social essencial da emancipação política é radicalmente suprimida e, consequentemente, a existência do direito de forma geral perde o sentido de ser. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto, Karl Marx, a partir de 1983-1844, mostra-se um pensador em transição que, por intermédio de descobertas, abandonos e negações, questiona o idealismo hegeliano e sua capacidade de compreender os limites próprios da sociedade capitalista. Com isso, Marx assume uma postura histórico-sistemática que demonstra a originalidade do seu pensamento, sobretudo, na necessidade de uma transformação radical da sociedade capitalista em direção ao comunismo. Com a dicotomia entre emancipação política e humana, Marx aprofunda sua crítica sobre o papel do Estado, da sociedade civil e do direito. Para Marx, uma emancipação política plena não significa, fundamentalmente, uma sociedade de homens e mulheres livres. Mesmo o Estado representativo – forma mais desenvolvida da emancipação política – reproduz a ilusão de que o ser humano só pode alcançar sua generalidade por “intermédio” do Estado, mascarando, dessa forma, a dualidade entre o membro da sociedade civil (real) e o cidadão (abstrato). 1097 Marx ao analisar o direito, em particular os Direitos Humanos, evidencia suas raízes, as quais são marcadas pela desigualdade social, produto da divisão social do trabalho e da propriedade privada. Nesse sentido, pretende-se ressaltar que a crítica aos limites da emancipação política também está presente no tema dos direitos humanos. No contexto de pós-guerras do século XX, marcado pelo conflito entre projetos socialistas e capitalistas, a profundidade e a radicalidade dos posicionamentos de Marx quanto aos Direitos Humanos acabam sendo reduzidas (ou até negadas). Isso, na medida em que a atitude de problematizar tais direitos passa, inclusive entre os “marxistas”, a representar uma afronta à liberdade pessoal e um resgate a práticas “totalitaristas”. Nesse contexto, ganha notoriedade autores contemporâneos como Norberto Bobbio, que, diferentemente de Marx, defendem que a proteção e a efetivação dos direitos humanos significam um inequívoco progresso à humanidade. Reconhecendo entre os objetivos centrais da sociedade o fortalecimento do Estado social e a existência de um mínimo de igualdade necessário ao exercício da liberdade política. Para Marx, todavia, a crítica vai muito além do discurso formal referente aos direitos humanos, pois pretende alcançar os pressupostos que são intrínsecos a tais direitos. REFERÊNCIAS ALAPANIAN, S. A crítica marxista do direito: um olhar sobre as posições de Evgeni Pachukanis. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 26, p. 1526, 2005. Disponível em: <http://www.uel.br/proppg/portal/pages/arquivos/pesquisa/semina/pdf/semina_26_ 1_21_34.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2015. BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CHOMSKY, N. O lucro ou as pessoas. São Paulo: Bertrand Brasil, 2002. COELHO, A. Contra Bobbio: compreender os direitos humanos. 2009. Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2009/09/contra-bobbiocompreender-os-direitos.html>. Acesso em: 15 mar. 2015. DORNELLES, J. R. O que são direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, 1989. 1098 FERNANDES, F. Democracia e socialismo. Crítica Marxista, n. 3, p. 11-13, 1996. Disponível em: <http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/3_Florestan.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2015. MARX, K. A ideologia alemã São Paulo: Martin Claret, 2004. ______. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009. MICHEA, J. C. A questão dos direitos do homem. 1992. Disponível em: <http://www.ocomuneiro.com/nr8_07_Jean-ClaudeMichea.html>. Acesso em: 15 mar. 2015. NAVES, M. B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008. OLIVEIRA, B. J. C. Direitos Humanos em perspectiva: Locke, Rousseau e Marx. 2007, 88f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. SOUSA, T. B. Política e direitos humanos em Marx: da Questão judaica à Ideologia Alemã. 2008, 190f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo. TONET, I. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: UNIJUÍ, 2005. Disponível em: <http://www.ivotonet.xpg.com.br>. Acesso em: 15 de mar. 2015. ______. Educar para a cidadania ou para liberdade? 2009a. Disponível em: <http://www.ivotonet.xpg.com.br/arquivos/Educar_para_a_cidadania_ou_para_a_li berdade.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2015. ______. Para além dos direitos humanos. 2009b. Disponível em: <http://www.ivotonet.xpg.com.br/arquivos/Para_alem_dos_direitos_humanos.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2015. 1099 A VULNERABILIDADE SOCIOAMBIENTAL E O DIREITO: ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O SISTEMA PROTETIVO DO BRASIL E DA COSTA RICA Marcio Henrique Pereira Ponzilacqua Susana Segura Muñoz 92 RESUMO: O objetivo do artigo é a reflexão da vulnerabilidade socioambiental e as políticas públicas consequentes perante as estatísticas de desmatamento havida após a aprovação do Código Florestal Brasileiro em comparação com a experiência histórica exitosa da Costa Rica. Metodologia: O método adotado é a abordagem comparativa dos mecanismos sociojurídicos dos países envolvidos e as suas experiências de sucesso e/ou fracasso ante a proteção da cobertura vegetal, à luz de teorias sociológicas que abordem o direito como campo de disputas simbólicas e como lugar de emergência, regulação e/ou emancipação. Resultados: Os resultados, ainda em fase de compilação, demonstram que práticas exitosas em matéria socioambiental vêm sofrendo processos de desestabilização decorrentes dos modos de apropriação simbólica do patrimônio ambiental e dos mecanismos refratários da nova ordem econômica mundial. Conclusões: A posição geográfica e política privilegiada da Costa Rica, propiciou políticas de sustentabilidade pioneiras e efetivas. O Brasil, ao contrário, registrou processo histórico contínuo de devastação. Todavia, houve, nas décadas de 80 e 90 um incremento favorável da compreensão socioambiental no campo jurídico. Os êxitos, entretanto, estão ameaçados ante concepções globalizantes de exploração. PALAVRAS-CHAVE: Desigualdades - Vulnerabilidade Socioambiental - Conflitos Ambientais - Legislação Protetiva 1 INTRODUÇÃO A questão socioambiental é, por conta de sua complexidade e pelas implicações existenciais envolvidas, extremamente relevante e contundente em 92 Marcio Henrique Pereira Ponzilacqua é Professor Associado de Sociologia Geral e do Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP), com pós-doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Amiens (Picardia- França) e Doutorado em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB). Email: [email protected] 1100 nossos dias. Nas últimas décadas, as políticas ambientais no Brasil e da América Latina, a exemplo do que ocorre em outras partes do globo, têm avançado no sentido de proteger a cobertura vegetal e os ecossistemas a que estão ligadas. Emerge com força concepção socioambiental que busca atentar para o fato de que a proteção da biodiversidade implica no cuidado da própria existência humana, intimamente ligada às cadeias ecológicas da terra. Por outro lado, as expectativas normativas têm sido frustradas no âmbito de sua eficácia e concretude. É dizer: as estratégias político-jurídicas não têm logrado os efeitos esperados e progride a devastação ambiental. As normas de direito, pela sua onipresença, por sua relevância como norma de controle social e pelas suas características, são elementos cruciais numa abordagem acerca da proteção florestal e dos biomas envolvidos. Pretendemos aqui apresentar os primeiros resultados de pesquisa envolvendo os modelos legislativos e jurisprudenciais de proteção florestal existentes no Brasil e na Costa Rica no tocante às vulnerabilidades ambientais. Trata-se de pesquisa em andamento, e os resultados ainda são parciais, mas já apontam para descobertas significativas de análise. Enfocam-se países com dimensões humanas e geográficas diferentes mas com elementos comuns no tocante à rica biodiversidade de flora e de fauna. O pioneirismo latino-americano da Costa Rica em matéria de direito ambiental torna-a fecundo campo de análise sociojurídica. A sua peculiaridade histórica e educativa ante os países circunvinzinhos propicia material profícuo de análise socioambiental. Por outro lado, a posição estratégica do Brasil e sua considerável configuração geopolítica exige uma reflexão sobre os avanços e retrocessos no campo da proteção florestal. Ambas realidades apontam para preocupação no sentido da continuidade de um percurso positivo e de vanguarda do direito ambiental mas nem sempre com correspondência nas práticas governamentais e nas escolhas dos dirigentes. Como base teórico-metodológica da pesquisa selecionamos a Sociologia Ambiental do Direito, que tem sua origem e substrato teórico no chamado “método da complexidade”. A Sociologia Ambiental do Direito congrega, funde e transforma noções e métodos hauridos da Sociologia, da Ciência Ambiental e do Direito em vista da compreensão do fenômeno socioambiental. 1101 Ela tem como enfoques preferências os direitos socioambientais e as vulnerabilidades. Os autores da apresentação, Márcio e Susana, são provenientes dos países e contextos analisados respectivamente: Brasil e Costa Rica, o que incrementa e aprimora a análise dos resultados obtidos. Igualmente, a linha atual de suas pesquisas, um com investigações no âmbito da Sociologia Ambiental do Direito e a outra, com investigações na área da Saúde Ambiental, propicia rica interação e interdisciplinaridade que fomenta novos pontos de vista e abertura hermenêutica. Ambos trabalham na Universidade de São Paulo, o que favorece os contatos, e estão juntos em organizações de discussão e elaboração de políticas socioambientais. Como resultado, o texto tem proposta subsidiária de política pública e de avanço legislativo em matéria de proteção florestal, com olhar atento às distorções – notadamente no campo da eficácia das normas. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 O direito ante o desafio socioambiental Em verdade, os temas socioambientais precisam ser lidos em perspectiva dialógica, integral e recursiva, como propõe o Método da Complexidade (MORIn: 1997, pg. 138-145). Por consequência, toda política pública que se propõe a construir política social destinada à preservação do patrimônio natural deve ser concebida em ótica transdisciplinar e transversal. Embora essa abordagem concirna especificamente ao Novo Código Florestal e, por conseguinte, à tutela dos biomas brasileiros com sua cobertura vegetal e toda a biodiversidade de fauna e flora que compreendem, não pode descuidar de outros elementos com os quais se encontra indissociavelmente vinculados, tais como as dimensões de proteção e conservação das águas superficiais e subterrâneas, de saneamento básico, de produção, coleta e destinação de resíduos, de consumo e exploração dos recursos naturais, de transporte e de geração de energia. É o caso, por exemplo, da necessidade de refletirmos sobre a relação entre a tutela da cobertura vegetal e a proteção das nascentes e mananciais. Obviamente, há de se tratar das matas ciliares, de sua abrangência, e também da 1102 vegetação a circunscrever as fontes de água. Mas a discussão vai além, no sentido do reconhecimento do papel ecológico das espécies vegetais (e destas em seus vínculos existenciais com a fauna) na captação e destruição das águas pelo território nacional e dos vínculos entre os biomas. Assim, é fundamental uma perspectiva holonômica dos problemas socioambientais. Em cujo bojo está contido, inclusive, a necessidade de compreensão do elemento antrópico. Para um aprimoramento prospectivo, a desconsideração dos fatores humanos, de suas necessidades, formação, cultura, conduta individual e coletiva, valorações é substancial para quaisquer ações políticas que se pretendam intergeneracionais. Nesse sentido, é crescente a insatisfação do conjunto social no tocante às ações dos poderes constituídos e às instituições políticas. Cresce o descrédito na incisiva capacidade dos governos de conduzir a bom termos as grandes demandas da população brasileira, nos diversos níveis da federação. Os recentes movimentos emergentes em todo o território nacional, protagonizados pelos mais jovens, denotam a insatisfação com os rumos das políticas sociais. O pretexto inicial da exorbitância das tarifas de transporte pública revelam o caráter socioambiental que permeia reivindicações, centradas nas agruras presentes do sistema de mobilidade pública. E ao mesmo tempo, demonstram a incomunicação entre autoridades constituídas, seu descrédito popular, e as expectativas crescentes no conjunto social. Obviamente que a discussão ultrapassa os limites do Estado e da governança. Aliás, a situação chegou ao ponto onde se encontra em decorrência justamente das relações espúrias entre Estado e iniciativa privada, em que lobbies de grandes empresas automobilísticas e de transporte público pressionam o financiamento público do transporte individual em detrimento das alternativas de transporte comum, mais sustentáveis e públicas. Por outro lado, é justamente no âmbito da esfera pública, aquela em que se encontram, interagem e reagem as ações da esfera do poder público e as ações da esfera privada, que se mostra fundamental o reconhecimento da relevância das redes da sociedade civil organizado (SANTOS, 2003 e 2005; DAGNINO, 2002) . Há também, no âmbito da esfera privada, importantes 1103 reivindicações socioambientais convivendo e conflitando com uma práxis social conservadora a primar pela supervalorização do mercado em detrimento da natureza e dos seres humanos que dela são partícipes. As redes comparecem nesse estágio como elementos aglutinadores das forças sociais, que tanto podem enveredar por uma compreensão emancipatória como podem fomentar e favorecer uma conduta de sujeição e de opressão (GOHN, 2005). As associações e organizações de resistência ante um modelo depredatório são elementos fulcrais em vista do deslinde de conflitos socioambientais – cujo conteúdo é imbuído, ao contrário do que se propala, de alta carga de hostilidade e violência. Muitos desses conflitos são persistentes no corpo social. Mas as associações e redem também manifestam impotência e fragilidade ante um sistema tendente à internacionalização. Com efeito, a chamada “globalização” impele tanto à homogeneização de padrões de consumo e práticas sociais, pela produção de opiniões dominantes e pseudo-consensos, como também fragmentam e esfacelam os liamos comunitários mais intensos e legítimos. Explicitamente o movimento pela instituição de novos marcos regulatórios para a discussão e homologação das terras indígenas ilustram esse modelo. As comunidades, tradicionais e/ou locais, buscam modos de resistência e de afirmação de suas práticas e valores ancestrais. Ainda que concebidas como a fusão de sentimentos, volição, intenção, formas espontâneas e tradicionais, as comunidades também são imbuídas de antagonismos e paradoxos. E, mais ainda, na contemporaneidade, em que se consolidam as formas de consumo e de liquidez de relacionamentos, emergem as chamadas “comunidades-cabides”, denunciadas por Zigmunt Baumann, que se propõem substitutivas das formas comunitárias estabelecidas, mas que, na realidade, são marcadas pela fluidez e esfacelamento dos vínculos comunitários. Acabam por criar “illusio” de profundidade e de pertença, e, ao mesmo tempo, reduzem drasticamente a cooperação, a criatividade e autonomia (BOURDIEU, 1997; BAUMANN, 2003). Por essa razão, o imbricamento entre conflitos sociais e ambientais tornam indissociável a chave socioambiental de leitura das tensões sociais. Com efeito, “pouco a pouco, pôde-se ir verificando que o cruzamento entre os conflitos sociais e a problemática da apropriação dos recursos ambientais não era meramente 1104 circunstancial” (ACSERALD, 2004, pg. 8). Na América Latina, particularmente, cresce o esforço para criação e disseminação de tecnologias que diminuam o impacto ambiental e intentem a solução dos conflitos de natureza socioambiental. O campo dos conflitos ambientais é amplo. Acserald (ACSERALD, ibid., pg. 23-6) ao desenvolver as diferentes concepções téoricas sociológicas acerca do conteúdo dos conflitos ambientais, conclui pela necessidade de reportá-los a quatro dimensões constitutivas: a apropriação simbólica e a apropriação material, durabilidade e interatividade espacial das práticas sociais. Nos conflitos ambientais há mais do que um elemento material em disputa configurado na apropriação (base material), mas há também elementos de base cultural, simbólica, de legitimação a concorrem efetivamente para o conflito e sua perpetuação na sociedade. Os elementos não aparecem estanques e dissociados, mas se enfeixam e conjugam de tal maneira que é preciso uma visão holonômica e dialógica a fim de se reconhecer tanto a sua complexidade quanto as retroações e as vias possíveis de solução e encaminhamento dos problemas, sem contudo a pretensão de esgotamento das tensões de base, sempre vivas no seio da sociedade (MORIN, 1991;1999; 2004). Com efeito, é infecundo se pensar o ambiental deslocando-o de questões de fundo como o ideológico, o cultural e o econômico, e, sobretudo, dissociando-o da racionalidade econômica dominante (LEFF, 2002). Um projeto de composição dos conflitos que os desconsidere como inerentes à dinâmica do tecido social está fadado ao insucesso, haja vista que a brasa permanece acesa, ainda que a suponhamos extinta. E é o que parece suceder com o modelo de políticas públicas brasileiras. Supõe-se que os conflitos se resolvam no âmbito jurídicolegislativo - havemos de convir que nossa atual legislação ambiental é bastante arrojada- mas esquece-se justamente que o direito estatal é apenas uma dimensão do problema e sequer representa a complexidade e ebulição subsistente no seio social (AGUIAR, 1998; CLASTRES, 2003). Nem sempre a tentativa de conciliação entre os conflitantes expressa a solução mais adequado e, não raras vezes, chega bastante atrasada. Todavia, a consideração do desenvolvimento da legislação ambiental, sua repercussão na órbita 1105 administrativa e no plano da consciência coletiva ambiental é de capital importância ante o tema que estamos desenvolvendo, a tanger os conflitos na órbita jurídica, ainda que os reconheçamos apenas como uma parte do problema – a que elegemos para investigação. Na perspectiva de Pierre Bourdieu, as normas de direito, como outras normas institucionais, fomentam habitus cultivado, estão imbuídas de caráter simbólico não raras vezes violento e exprimem disputas em torno dos capitais sociais (BOURDIEU, 2007; 1986). Permeiam as ações pedagógicas dos grupos sociais e são permeadas por elas. Estes elementos e categorias presentes no conjunto da obra de Bourdieu permitem elucidar os capitais em disputa no campo específico que é o socioambiental, os mecanismos de poder intervenientes e ajuda a compreender a dialética social em que se inserem, ao mesmo tempo que tocam e desafiam as bases sócio-jurídicas em que se apoiam. A elaboração e promulgação do Novo Código Florestal insere-se nessa pesquisa como elemento prototípico e ilustrativo dos embates sócio-jurídicos expressos na teoria bourdieniana. 2.2 A proteção ambiental e as vulnerabilidades no contexto sociojurídico brasileiro Alguns artigos constitucionais constituem-se como o núcleo da proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro. Sem dúvida, destaca-se o bastante citado art. 225, ao dispor em seu caput: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Para se compreender a natureza jurídica do bem ambiental é imprescindível que se atenha ao fato de que, conforme a inteligência do art. 225, caput, o meio ambiente é bem comum a todos (res communes omnium), com disciplina e título jurídico autônomo. Considera-se o meio ambiente como um bem socialmente protegido, afeto à coletividade (LEITE & AYALA, 2002, pg. 51-2). José Afonso da Silva reconhece que há bens que têm uma disciplina especial por se destinarem à 1106 consecução de um fim público. Nesse caso, possuem um regime jurídico peculiar tanto quanto ao seu gozo como também no concernente ao regime de política de intervenção e tutela pública. São nomeados como “bens de interesse público” – que podem incluir bens públicos ou privados, sem se restringir a um ou outro. O ambiente é entendido como um macrobem – composto dos microbens como florestas, rios, propriedade de valor paisagísticos. O desfrute destes bens de interesse público é necessariamente comunitário, mas também destinados ao bem-estar individual ( SILVA, 1994, pg. 54 e ss). A natureza jurídica do bem ambiental é aquilo que se convencionou chamar de “bem difuso”. Não é propriamente nem público, nem privado. Não se classifica nas categorias de bem público ou privado constantes do art. 98 do CC de 2002. Situa-se numa faixa intermediária que é justamente a dos bens difusos, porquanto pertença a cada um e a todos simultaneamente. Seu titular não é identificável e sequer seu objeto é suscetível a divisões (SIRVINKAs, 2008, pg. 49). A Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992, consolidou a noção do meio ambiente como incisivamente holonômica e intrinsecamente nãofragmentária93. Para efeito de políticas públicas e administrativas de compreensão macroregional, tanto a União, no que diz respeito ao âmbito nacional, quanto os Estados, nas regiões metropolitanas ou supraregionais em seus territórios, podem instituir programas de desenvolvimento e redução de desigualdades translocais ( art. 43, caput, §§ 2º e 3º), mantidos obviamente os parâmetros dominiais em questão. Certamente que o tema das competências é zona conflitiva. A doutrina tem assentado o entendimento de que há prevalências das normas hierarquicamente superiores, ou seja, aquelas promanadas da União, em matéria ambiental, salvo quando tratarem-se de normas cuja especifidade as desloca para o âmbito dos outros entes federados. O controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, é o mecanismo adequado para dirimir os conflitos, especialmente a declaração de 93 3 CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1997; VIOLA, 1992 E 1998. 1107 inconstitucionalidade de normas em caso de invasão de incompetência. Em todos os casos, os legisladores ou aplicadores das normas devem valer-se dos princípios constitucionais consagrados (BESSA ANTUNES, 2012; SIRVINKAS, 2008). De maneira semelhante, os municípios podem e devem criar zoneamentos ambientais prioritários, com o reconhecimento de áreas especiais de conservação, notadamente naquelas respeitantes à biodiversidade endógena, aos mananciais dos rios, ao reflorestamento com espécies nativas, à proteção das águas subterrâneas e à políticas de monitoramento da produção agrícola (em especial no que concerne à produção de resíduos tóxicos). Em termos de avanços sociais, é insuficiente que tenhamos um quadro teórico aprofundado em matéria ambiental com uma legislação igualmente avançada, mesmo em se tratando de matéria constitucional. Isto implica num benefício, mas é mister, paripassu, educação jurídico-legislativa e efetivas garantias de cumprimento, mediante políticas socioambientais adequadas, além de um esforço conjunto de mudança de mentalidade, em que a vida compareça como elemento axial e não os valores eminentemente ou meramente econômicos. As ações dos poderes constituídos é fundamental. Todavia, são inexpressivas se não houver, da parte da sociedade civil organizada (movimentos socioambientais, sindicatos, ONGs militantes, empresários conscientes, associações civis e religiosas, entre outras) monitoramento constante das ações governamentais e, quando necessário, uma pressão para que as políticas convirjam para o que há de melhor em matéria ambiental – de acordo com a previsão constitucional e legal. O poder legislativo, sobretudo no âmbito federal, tem, ao longo de algumas décadas, lançado mão de expedientes normativos relevantes em matéria ambiental. O que se deve reputar, principalmente, à ação organizada dos grupos e movimentos ambientais94, num contexto ambiental de ampla reflexão e, talvez, de emergência de uma nova postura e condutas 94 4 SANTILLI, 2005; PORTO-GONÇALVES, 2006; VIOLA,1992; VIOLA E LEIS, 1998; SANTOS, 2003 1108 coletivas. A atual discussão de mudanças no Código Florestal vai na contramão dos avanços consideráveis havidos no âmbito da legislação infraconstitucional no Brasil. Com efeito, essa discussão pervade também a esfera do direito ambiental. A revogação do Código Florestal instituído pela Lei n. 4771/65, e a elaboração e promulgação do Novo Código Florestal, pela Lei n. 12651/12, sua atualização pela Lei 12727/12 e a inteligibilidade das normas e disposições conexas precisam ser compreendidas em suas implicações macro e microssociais e no âmbito dos seus efeitos socioambientais (BRASIL, 1965, 2012a e 2012b). Igualmente, impelem à análise das estratégias políticas que o subsidiam, para sua precisa hermenêutica e contextualização. Ao mesmo tempo, é mister compreender as decisões jurisdicionais inseridas nesses embates por dizer o direito no âmbito das diversas modalidades de apropriação e disputa pelos bens naturais, que implicam em avanços ou retrocessos no conteúdo do direito ambiental. Com efeito, as polêmicas havidas durante a elaboração do novo código e que, em certa medida perduram, compelem a uma análise de maior profundidade e isenção (BESSA ANTUNES, 2013, pg. 1-2), ao mesmo tempo em que, na medida do possível, é fundamental a busca de compreensão integral dos acontecimentos que engendraram as mudanças, suas repercussões e as efetivas alterações, para se dimensionar a questão e organizar, doravante, políticas públicas de maior abrangência e eficácia. Assim os êxitos então obtidos encontram-se ameaçados ante concepções globalizantes de exploração e a força do agronegócio, cujo último expediente tem sido preparar “educadores” para se constituírem quais agentes eficazes de formação e disseminação de apologias às práticas nocivas ao meio ambiente e à agricultura extensivo agroexportadora. Entre outros, busca legitimar discursos que apoiem práticas concebidas como contaminantes ou ameaçadoras da bio e da sociodiversidade, tais como o assustador aumento do uso de defensivos agrícolas tóxicos, que já coloca o Brasil numa posição superior a todos os outros da América Latina, quer em números absolutos, quer em números proporcionais, a intensificação do uso de tecnologias supletivas da mão-de-obra humana ou 1109 mesmo a redução significativa das áreas de preservação permanente ou das reservas legais, sem contar o grotesco cenário das anistias aos desmatadores. Os impactos da aplicação da nova legislação florestal brasileira já estão a indicar a sua impertinência e infeliz revogação do código anterior. Em regiões de alta densidade árborea e significativa vulnerabilidade socioambiental, como são o caso da Amazônia e do Cerrado, as estatísticas de desmatamento são alarmantes. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) o desmatamento aumentou em 28% no Brasil, quando foram desmatados 5.843 km² no período de agosto de 2012 a julho de 2013. Em relação ao período anterior (que computava dematamento na ordem de 4.571 km²) - o que já ultrapassou as medidas do razoável em muito! (INPE, 2013). Mas, infelizmente, não se estancou o desmantamento no Brasil. Estudos recentes, publicados já em 2015, alertam para o crescimento do desmatamento, tanto pela alteração decorrente do corte raso quanto da degradação florestal. Assim, é que “nos meses de novembro e dezembro de 2014 e janeiro de 2015 as áreas de alerta para alteração na cobertura florestal por corte raso e por degradação florestal somaram 291 km²” segundo o registro do DETER, que é o Sistema de Detecção em Tempo Real de Alteração na Cobertura Florestal, cuja monitoramento é realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). (INPE, 2015). Portanto, para além da norma federal é preciso instituir programas e políticas urgentes que refreiem essa 'sangria verde'. É mister estabelecer padrões de controle e monitoramento urgentes, com as consequências penalizações – inclusive previstas mesmo no atual contexto legislativo. A responsabilização pelos danos ambientais deve estar na pauta e na organização administrativa e judiciária. Aliás, o Ministério Público e o Judiciário devem ser protagonistas, junto da academia de direito, de hermenêutica socioambiental eficaz, como havemos de apontar adiante. Ainda que saibamos que a legislação, por si só, é insuficiente para contrapor-se à devastação, à poluição, à destruição, é fundamental que haja mecanismos legais a estruturarem políticas públicas eficientes e eficazes. Por outro lado, os Estados e Municípios usam muito mal a sua faculdade propositiva 1110 no âmbito legislativo. Embora não lhes caiba a competência legislativa principal, podem legislar em matéria residual ou complementar – cuja matéria foi ampliada na atual legislação. Ou seja, naquilo que faltou no complexo legislativo federal (constituição mais legislação infraconstitucional) pode ser feito pelos Estados e Municípios. Isso tem ocorrido, mas de maneira ainda modesta e limitada. Exemplo de grande monta foi dado pelo Estado de São Paulo ao legislar sobre a proteção dos remanescentes do cerrado. Embora bastante tardia, é uma importante medida legislativa em vista de preservação deste bioma tão importante e desprestigiado. Por outro lado, é impensável uma ampla competência legislativa em matéria ambiental e infundada uma competência principal e absoluta. E as razão são muitas, sendo a principal delas decorrente da fragilidade desses entes federados ante às pressões políticas e sócio-econômicas locais e regionais, além, da repercussão negativa ao conjunto do patrimônio natural, cujos vínculos existenciais inextrincáveis demanda um olhar conjunto e respeitante dos vínculos suprarregionais e supraestaduais. Caso semelhante, quando Estados e Municípios criam unidades de conservação especiais. Obviamente, longe ainda de se constituírem como política integral ambiental, as unidades de conservação apresentam-se com uma medida profilática inicial em vista de uma abertura ainda maior. Após criá-las, União, Estados e Municípios precisam provê-las dos mecanismos que assegurem o zoneamento, o manejo sustentável, quando é o caso, além do monitoramento e a preservação. Nota-se assim íntima convergência entre a ação da estrutura legislativa e da estrutura administrativa. Ou seja, ao mesmo tempo em que se normatizam e as normas tenham respaldo ético-social, é mister que a administração pública lance mão dos mecanismos de execução das normas conforme suas respectivas competências, discriminadas no bojo do texto constitucional ou, em alguns casos, da legislação complementar, ou em casos de impasse, na inteligência das normas existentes no interior do ordenamento jurídico. O Judiciário, em sua condição de intérprete legitimado pela assembleia constituinte, goza de condição muito particular enquanto não se tem uma legislação complementar adequada. E 1111 mais, compete a ele, como instância julgadora, compelir os infratores e investir numa conduta pautada pelo cuidado e respeito na natureza. Em geral se descuida do fato de que o poder judiciário é também ele instrumento e gestor de políticas públicas. Muitas vezes, ao se realizarem análises de políticas sociais, e no caso das socioambientais em particular, restringe-se a investigação às ações dos poderes executivos e, quando muito, ao legislativo. Todavia, como parte integrante dos poderes constituídos, o Judiciário responde por importantes estratégias no que concerne a res publica. A atuação significativa do STF (Supremo Tribunal Federal) no tocante às reservas indígenas no caso ilustrativo da Raposa Serra do Sol, ainda que sujeita a críticas por parte dos movimentos sociais mais incisivos, demonstra como o Estado, mediante o poder judiciário, pode favorecer ou não políticas públicas de caráter socioambiental. O mesmo há de se dizer do Ministério Público, cujas atribuições constitucionais felizmente ampliadas pelo texto constitucional de 1988 fomentam maior discussão e inserção nos campos das políticas públicas, especialmente aquelas relativas ao meio ambiente. Em muitos lugares e não poucas ocasiões, a ação do ministério público quer federal, quer estadual, deixa entrever uma dinâmica favorável aos anseios da sociedade por maior qualidade de vida. Ambos, Ministério Público e Judiciário, podem e devem ter uma configuração em favor da emancipação sócio-política nacional e dos membros da federação, por uma atuação eminentemente pedagógica, quer pela prevenção, quer pela repressão dos atos lesivos ao meio ambiente e ao patrimônio público, em geral. 2.3 A proteção ambiental no contexto sociojurídico da costa rica A existência de condições geopolíticas favoráveis propiciaram à Costa Rica o pioneirismo na preservação ambiental. Com um democracia secular, com mais de 125 anos, encontrou-se ali terreno fecundo para um desempenho ambiental invejável. Com efeito, alguns elementos de sua conjuntura histórica não apenas favoreceram no passado mas ainda favorecem a proteção ambiental. Um deles é a inexistência de níveis intermediários de governo. Há um governo central, que 1112 até o presente tem assumido a responsabilidade pela proteção ambiental, e, os governos municipais. A população é pequena se comparada ao Brasil: mais de quatro milhões e quatrocentos mil de habitantes (4.500.000). A população urbana está concentrada em apenas 6% do território nacional. Dois terços dos cinquenta mil e cem quilômetros quadrados (2/3 de 51.100 mil km²) que formam seu território constituem-se de áreas protegidas ou áreas de conservação públicas e privadas. Portanto, há uma ancestral prática de proteção que colocam a Costa Rica como o quinto país do mundo no índice de desempenho ambiental de 2008 e o primeiro país da América Latina em desempenho turístico (BIBLIOTECA VIRTUAL DA AMÉRICA LATINA, 2015). Associado a isto, encontra-se um massivo investimento na educação, o que faz com que tenha elevada taxa de alfabetização (97,5%) e a maior expectativa de vida da América Latina. Outro elemento que granjeou reconhecimento mundial fora a abolição do exército em 1948, o que fora consagrado e perpetuado na Constituição Federal no ano seguinte, de 1949. Por essas e outras razões, que comparecerão na exposição, elegemo-la para efeito de comparação com o Brasil. Trata-se de uma nação irmã, de pluralidade étnica e formação colonial assemelhada, além de uma série de proximidades no tocante às condições climáticas e de biodiversidade. Estudo publicado em 2013, coordenado por Mathew Fagan, do Departemento de Ecologia da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, que contou com a participação alguns de especialistas dos Estados Unidos , Canadá e Costa Rica, baseado em análises de imagens de satélites, indica que a Costa Rica vem avançando uma média anual bem superior a média latino-americana de proteção de suas florestas desde que implantou, em 1996, seu código florestal, com índices de proteção superior a 15 % (FANGE, 2013,pg. 7). O estudo sugere ainda que a implantação da norma de proteção da cobertura vegetal não impediu a intensificação agrícolo – ao contrário, isso sucedeu nas áreas não-florestais – o que vem de encontro com uma necessidade mundial que precisa incrementar a 1113 produção agrícola destinada à alimentação em torno de 70 a 100% até 2050, relativa à demanda crescente de segurança alimentar (FANGE, 2013, pg. 1). Na América Latina toda o índice de ampliação da proteção florestal é bem inferior. De 2001 a 2010, o índice de redução de desmatamento foi de menos de 5% em toda a América Latina. Na América Central, onde se encontra a Costa Rica, o índice de desmatamento oscilou de – 1,45 % entre 1990 a 2000 para – 1,13%. Na América do Sul o índice também foi pejorativo, respectiva redução negativa de 0,45 para 0,41, nos mesmo períodos citados . Na Costa Rica, outrossim, os índices de proteção de floresta madura triplicou no período de 1996 a 2011, com estatísticas que oscilaram de 4,5 para 13,3 % da área total (FANGE, 2013, pg. 7; OROZCO, s/d). A explicação se deve a uma décadas de política ambiental exitosa, que se compunha de dois grandes eixos, a saber: 1. a estabilização de parques ou reservas ambientais, públicas ou privadas, que teve seu auge em 1960; 2. e os subsídios governamentais à plantação de espécies florestais nativas, com o programa instaurado em 1979 (FANGE, 2013, pg. 2). A plantação de bananas também fora favorecida de 1986 a 2010 por uma série combinada de fatores, que levaram-na a um incremento de 88%, a saber: pela introdução de variedades de espécies, pelo uso de pesticidas e fertilizantes em escala maior (FAGAN, 2013, pg. 1-2). Algumas críticas, no entanto, são dirigidas hoje à incapacidade do governo central de gerir e dar continuidade ao arrojado projeto socioambiental que o país tem levado a cabo ao longo de décadas. Estas críticas normalmente entendem que os desafios globais e às pressões agrícolas internacionais impelem a um modelo descentralizado de administração, em que os municípios devem comparecer como polo importante de avaliação e análise das ações ambientais. Todavia, em que se pese a tradição democrática costa-riquenha, a polêmica é no mínimo preocupante. Estariam os municípios munidos com condições técnicas e de resistência para opor-se à hegemonia globalizante de exploração máxima dos recursos naturais em vista da força e da preponderâncias das grandes corporações internacionais? O sistema misto, em que governo central e municípios pudessem compartilhar a responsabilidade pela política 1114 socioambiental estaria suficiente e satisfatoriamente organizado para perpetuar os ganhos e avanços obtidos em matéria de proteção à natureza e de avanço de um agricultura condizente nos espaços não-florestais? Por fim, outro elemento que merece atenção acurada é que também na Costa-Rica é fator indispensável a análise do impacto socioambiental do uso de pesticidas e fertilizantes nas zonas agricultáveis – que pode afetar a equação positiva em favor da manutenção das florestas. Assim, é preciso fomentar a participação em redes da população, que venham ao encontro da consolidação e explicitação das forças vitais e organizadas da sociedade, notadamente os grupos vulneráveis. A necessidade de reforçar os laços e padrões comuns de sobrevivência e de fazer frente aos projetos de especulação imobiliária, mesmo em vista do chamado 'ecoturismo', é elemento dialético a emergir no quadro de análise costa-riquenho. A organização comunitária associada aos grupos de pressão internacional podem traduzir-se no exercício de legítimo direito de resistência em matéria ambiental, que já temos defendido noutras ocasiões (PONZILACQUA, 2011). E isso vale para ambos os países e para as eventuais conexões entre os grupos envolvidos que se encontram em situação similar nos dois contextos avaliados. Por certo, que os elementos diferenciadores da política ambiental característica da Costa Rica, a distingui-la nitidamente da política brasileira, estão relacionados à consistência e estabilidade da Ação Nacional. Pode-se afirmar que é a organização e a resistência desses grupos, mais do que programas especiais de governo, que acabam por incidir favoravelmente. Outro elemento essencial e diferenciador diz respeito à educação ambiental, que reforça e amplia a repercussão adequada de um sistema educativo eficiente. Todavia, essas vitórias e conquistas alicerçadas também são periclitantes se tomadas num contexto internacional desfavorável, donde a vigilância e organização constantes em vista da resistência. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 1115 Embora ainda os resultados encontrem-se em fase de compilação, demonstram que práticas exitosas em matéria socioambiental vêm sofrendo processos de desestabilização decorrentes dos modos de apropriação simbólica do patrimônio ambiental e dos mecanismos refratários da nova ordem econômica mundial. A situação é bem mais complexa e delicada no Brasil do que na Costa Rica. A posição geográfica e política privilegiada da Costa Rica, propiciou políticas de sustentabilidade pioneiras e efetivas. O Brasil, ao contrário, registrou processo histórico contínuo de devastação. Todavia, houve, nas décadas de 80 e 90 um incremento favorável da compreensão socioambiental no campo jurídico. Mas o código florestal e os insucessos gerados pela nova ordem jurídicoambiental por ele engendrada demonstram uma reversão nos avanços legislativos anteriores. É seguro, todavia, que nem a situação da Costa Rica e menos ainda a do Brasil é tranquila e absolutamente estável no contexto sociopolítico e jurídico internacional que pressiona para a fragilização das normas protetivas do patrimônio natural e, igualmente, verifica-se significativo retrocesso no campo dos direitos sociais, em geral, e socioambientais, em particular. Ou seja, é precisa ampliar a vigilância e participação das redes sociais engajadas, em vista de elaboração e aprimoramento de políticas públicas nestas áreas. Os sucessos obtidos pela Costa Rica, todavia, devem impelir à reflexão dos legisladores, governantes e juristas de toda a América Latina em vista de consecução eficaz de prática globais de defesa do meio ambiente e das populações envolvidas, especialmente aquelas situações de maior vulnerabilidade. REFERÊNCIAS ACSELRAD, H. (org.) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Böll, 2004. AFONSO DA SILVA, J. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. 1116 AGUIAR, R. A. R. Direito do meio ambiente e partipação popular. Brasília: Ministério do Meio Ambiente/Ibama, 1998. BAUMANN, Z. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003 BESSA ANTUNES, P. Comentários ao Novo Código Florestal. São Paulo: Atlas, 2013. ______. Manual de Direito Ambiental. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. BIBLIOTECA VIRTUAL DA AMÉRICA LATINA. Costa Rica. Disponível em: <http://www.bvmemorial.fapesp.br>, acesso em 10 de abril de 2015. BOURDIEU, P. 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