movimentos em defesa da cidadania, direitos

Transcrição

movimentos em defesa da cidadania, direitos
ANAIS
CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E
SOCIEDADE DO UNILASALLE
GT – MOVIMENTOS EM DEFESA DA CIDADANIA,
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA
CANOAS, 2015
980
O DESAFIO DOS HAITIANOS PARA A SUA
INSERÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA E AS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS
HUMANOS
Cristiane Feldmann Dutra1,
Suely Marisco Gayer2,
Anderson Von Heimburg3,
RESUMO: O objetivo é apresentar os obstáculos, que a população do Haiti,
encontram após a migração para o Brasil, frente à dificuldade de aprender a
língua portuguesa. Os migrantes encontram situações de violações dos direitos
humanos. Propõe-se à uma reflexão crítica acerca da sociedade que estamos
criando, tendente ao aumento destas migrações por todo o globo terrestre.
Utilizou-se o método histórico-dedutivo, e o procedimento da pesquisa foi
baseado em material bibliográfico.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Haitianos; Desafios; Democracia.
1 INTRODUÇÃO
O artigo justifica-se na demonstração da problemática que surge da
ausência de proteção jurídica internacional do refugiado ambiental.
1
Mestre em Direito com ênfase em direitos humanos, do Centro Universitário Ritter dos Reis
(UniRitter). Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho na Faculdade do
Instituto de Desenvolvimento (IDC), Especialista em Direito Civil e Processual Civil na Faculdade
do Instituto de Desenvolvimento (IDC).Graduada em Direito na Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA), Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis
(UniRitter). Pesquisadora do grupo de Ciência Penal Contemporânea (UFRGS).Contato:
[email protected]
2
Graduada em Direito pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí em
2001. Pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura, em 2002. Mestre pelo curso de
Direitos Humanos da UniRitter - Laureate International Universities. Bolsista da Capes.
Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da UniRitter. Contato: [email protected]
3
Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul . Mestre em Direito pela UniRitter Laureate International Universities . Possui experiência
na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito Internacional
e Direito Penal Militar. Graduado pela Academia Militar das Agulhas Negra com Especialização
pela EsAO . Professor de Teoria Geral do Estado e da Constituição, Direito Internacional e
Oratória da Universidade de Santa Cruz do Sul . Professor de Direitos Humanos, Legislação
Penal Militar e Legislação Militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Porto
Alegre. Assessor Jurídico do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Porto Alegre.
Contato: [email protected]
981
O primeiro conceito relativo às migrações ambientais foi inicialmente o de
refugiados ecológicos cunhado por Lester Brown (1976) do World Watch Institute,
mas a primeira definição ficou por conta de El-Hinnawi (1985), contida em um
relatório produzido para a NEP.4 Naquele relatório cita-se que os refugiados
ambientais são:
aquelas pessoas que foram forçadas a deixar suas casas, temporária ou
permanentemente, por causa de uma evidente alteração ambiental
(natural e/ou desencadeada por atividade humana) que comprometeu
5
suas existências e/ou afetou seriamente a qualidade de suas vidas .
Neste primeiro momento a definição não estabelece se a migração
acontece internamente (dentro do país de origem) ou entre fronteiras
internacionais, assim como omite outras variáveis capazes de dar força à
ocorrência da migração. Neste meio tempo, Myers, estudioso do tema, produziu
textos que servem de norte para as pesquisas e relatórios acadêmicos, políticos e
órgãos que buscam amparar os indivíduos sujeitos às consequências deste
problema mundial.6
A migração é uma estratégia de enfrentamento empregada por muitas
comunidades rurais. Migração associada com o declínio ambiental é geralmente
caracterizada por movimentos de curta distância e de longo prazo. O UNRIC
informa que existem pesquisas com previsões em torno de 250 mil refugiados
ambientais no ano de 20507. No entanto, grupos de migrantes são mais
vulneráveis a uma série de fatores de estresse, incluindo os impactos da
mudança climática e falta de acesso a cuidados de saúde.8
As definições até aqui citadas fazem referência aos desastres ambientais
repentinos e aos que paulatinamente são capazes de modificar o meio ambiente.
Todos são riscos ou ameaças ambientais advindas dos desastres, que levam de
4
5
6
7
8
GEMENNE, Francois et al. Development, Environment and Migration: Analysis of Linkages
and. Disponível em:<http://www.stojanov.org/>. Acesso em: 26 set. 2014.
BIERMANN, Frank; BOAS, Ingrid. Preparing for a Warmer World: Towards a Global Governance
System to Protect Climate Refugees. Global Environmental Politics, v. 10, n. 1. The MIT Press,
February 2010, p. 60-88 (Article). Disponível em: <http://www.bupedu.com/>. Acesso em: 26 set.
2014.
IOM. Migration, Environment and Climate Change. 2009, p. 264. Disponível
em:<http://www.cefeb.org/>. Acesso em: 26 set. 2014.
UNRIC. Centro Regional de Informações das Nações Unidas. Disponível em :<
http://www.unric.org/pt/desenvolvimento-sustentavel/21341>. Acesso em: 26 set. 2014.
MATTAR, Marina Rocchi Martins. Migrações Ambientais, Direitos Humanos e o Caso dos
Pequenos Países Insulares. Disponível em:<http://www.iri.usp.br/documentos/>. Acesso em: 26
set. 2014.
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forma obrigatória as pessoas a deslocarem-se. Sabe-se que os eventos
ambientais podem ter sua origem em causas naturais ou pela ação humana e sua
influência na degradação dos meios de sobrevivência.
A questão dos refugiados ambientais é tema de preocupação desde o
início do século XXI. Tal preocupação reside, dentre outros, nos aspectos
jurídicos, com foco nas questões humanitárias, buscando uma forma de
disciplinar juridicamente este tema, bem como atribuir responsabilidades voltadas
à proteção e assistência ao refugiado.
As definições jurídicas para refugiados ambientais importam em muito, pois
estas ajudam a determinar em que plano de proteção eles se encontram. Em
mais de 60 anos as Nações Unidas têm usado o conceito de refugiado que a
Convenção de 1951 contemplava.9 Em seu artigo 1º A, está presente uma
definição de refugiado, reconhecida como clássica, que abarcava qualquer
pessoa:
[...] que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1º de
janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua
raça, religião, nacionalidade, filiação a certo grupo social ou das suas
opiniões políticas, se encontre fora do seu país de que tem a
nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira
pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e
estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles
acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não
10
queira voltar[...]
De
início
destaca-se
que
os
Refugiados
Ambientais
não
estão
enquadrados na definição positivada na Convenção Relativa ao Estatuto do
Refugiado de 1951. Nesse sentido, o conceito de refugiado precisa ser ampliado,
para que essa nova categoria tenha a proteção merecida. O atual conceito de
refugiado não abrange a nova classe de refugiados, pois os motivos que os
levaram a buscar refúgio não são perseguições relacionadas à raça, religião ou
nacionalidade. Divergem as opiniões quanto à classificação dos refugiados
ambientais e mesmo a uma discussão sobre sua existência no cenário jurídico.
9
Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados –ACNUR . Disponível em:
<http://http://www.cidadevirtual.pt/>. Acesso em: 10 out. 2014. p. 61.
10
Ibidem.
983
Bates e Adamo são a favor da categoria de refugiados ambientais, afirmando que
neste conceito incluem-se todos que se deslocam por motivos ambientais.11
Pois bem, os cidadãos haitianos começaram a aportar em grande
quantidade no Brasil a partir de 2010, forçando uma pauta do Estado, sobre o
tema imigração. É evidente que tal não se sucedeu instantaneamente, nem por
iniciativa do Estado, e sim por uma iniciativa da sociedade civil, cuja ênfase foi
das pastorais sociais e ONGs. Estas constituem uma rede humanitária para
migrantes e refugiados.
Passados cinco anos, não foram poucos os acontecimentos relativos à
entrada e o trânsito de haitianos, todos capazes de provocar a adoção de
diferentes medidas, patrocinadas por entidades estatais, assim como não
estatais, além do surgimento de uma infinidade de posicionamentos com o intuito
de ajudar o Haiti. Portanto, neste capítulo, busca-se lançar um olhar reflexivo e
crítico sobre a imigração haitiana para o Brasil, que há muito tempo deixou de ser
incipiente. Segundo informações do MTE, cerca de 30 mil haitianos vivem hoje no
Brasil. Destes, 19 mil entraram via cidade de Basiléia, no Acre. Os demais
entraram regulamente, com visto humanitário, pelos aeroportos brasileiros, com
base na Resolução nº 97/12 do Conselho Nacional de Imigração12.
Antes do terremoto, os haitianos já migraram para outros países;
entretanto, após o desastre natural que é causa relevante, basta analisar nos
dados numéricos que em 2010 existiam em torno de 200 Haitianos no Brasil e em
Setembro de 2014 o número aumentou para 30.000 dados do Ministério do
Trabalho e Educação (MTE), com um percentual de 15.000% em apenas 04 anos
e oito meses.
Mas existem outros autores que trazem dados que até o final do ano de
2014 o número de imigrantes haitianos deverá ultrapassar a 50 mil Haitianos,
requerendo atitudes firmes por parte da sociedade civil e o Estado. Assim,
percebe-se que a migração aumentou de forma exponencial após o terremoto.
11
BATES, D.C. Environmental Refugees? Classifying Human Migrations by Environment Change.
Population and Environment, v.23, 2003, p.465-477.
12
BRASIL.
Ministério
do
Trabalho
e
Educação.
CNIg.
Disponível
em
:<
http://portal.mte.gov.br/imprensa/ estudo- analisa-migracao- haitiana-no-brasil.htm>.Acesso em
:02 jan. 2015.
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Verifica-se que, ao ingressar para o Brasil, os Haitianos perpassam por
inúmeros desafios. O que faz um ser humano sair de sua casa, do seu país, ir a
outro lugar distante, fazendo uma viagem com duração média de 15 dias e passar
por tantos impedimentos se não for em razão da sua sobrevivência e para ajudar
seus familiares?
Na atualidade, presencia-se uma nova era da mobilidade humana. Os
novos modelos de produção implicam o deslocamento de imensos contingentes
humanos, nem sempre com o ânimo de radicação definitiva em um território. A
crescente evolução tecnológica multiplica imensamente os deslocamentos
humanos de curta e média duração, com objetivos dos mais diversos, seja por
motivos ambientais, econômicos até a busca por novas oportunidades de
trabalho, como também de reunião familiar. 13
Multiplicam-se os deslocamentos forçados (não desejados) e as situações
de refúgio em razão de conflitos armados, regimes ditatoriais e mudanças
climáticas. Nas questões relativas ao direito internacional dos refugiados ainda na
década de 1990, o Brasil adaptou-se a partir da Lei n° 9.474 de 22 de julho de
1997. Todavia, a confusão entre situações de refúgio e de migração converte a
ajuda humanitária em política migratória, com graves consequências para os
migrantes, mas também para o Estado brasileiro, reduzindo a cidadania à mera
assistência. Também ainda persistem, apesar dos esforços internacionais e
nacionais, os casos de apátridas.14
O Brasil na atualidade do século XXI vem recebendo fluxos pontuais de
migração internacional, e na inexistência de legislação adequada e de políticas
públicas dela decorrentes provocam violações de direitos humanos desgastando
o país, além de uma imagem negativa da mobilidade humana junto à opinião
pública, que revela um posicionamento contrário às migrações internacionais sob
a perspectiva dos Direitos Humanos.15
13
NUNES, B. F.; CAVALCANTI, L. O imigrante e o direito à indiferença: algumas questões
teóricas. In: Santin, Terezinha; Botega, Tuíla. (Org.). Vidas em trânsito: conhecer e refletir na
perspectiva da mobilidade humana. Porto Alegre: EdiPUCRS, v.1 , 2014. p. 135.
14
CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.). A Inserção dos
Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasília: Cadernos do Observatório das
Migrações Internacionais, 2014. p. 18.
15
NUNES, B. F.; CAVALCANTI, L. Op.cit.2014. p. 144.
985
No caso dos haitianos, agrava-se porque, no Brasil convive-se com
regimes de acolhida e de autorização para trabalho acentuadamente diversos,
que depende das características dos migrantes em questão, pondo em xeque
princípios fundamentais como o da igualdade. Assim, todo avanço da legislação
sobre migrações internacionais se vê comprometido, no plano da efetividade, pela
inadaptação dos serviços públicos à nova realidade da mobilidade humana.16
Esta constatação pode ser aferida pelo fato de ser o Brasil um dos poucos
países desprovido de um serviço de migrações, cabendo à Polícia Federal grande
parte do processamento dos pedidos de residência e de refúgio, de caráter
eminentemente administrativo. Neste sentido, cabe destacar que falta ao Estado
brasileiro uma política migratória. Não basta acolher bem. É fundamental a
criação de medidas concretas voltadas aos imigrantes. É preciso propiciar aos
imigrantes o ingresso de forma legal. 17
Porém, se analisada esta imigração considerando a situação dos
imigrantes na origem, as dificuldades da viagem “uma verdadeira epopeia” e o
início de inserção nas cidades brasileiras, as chegadas dos haitianos tornaram-se
um fato que pede reflexão pelo conjunto da sociedade brasileira. Mostrou em
primeiro lugar como é grande a distância entre a comoção e os discursos das
ações concretas. Mostrou o anacronismo da própria política brasileira de
imigração. Mostrou as desavenças entre os poderes constituídos, Municipal,
Estadual e Federal, vivendo um jogo de empurra-empurra, um acusando o outro e
todos lavando as mãos. Mostrou que primeiro se deixa o prédio cair para depois
ver o que fazer.18
A centralização decisória das questões migratórias na esfera federal faz
com que os estados e municípios sintam-se descomprometidos com a acolhida e
a inclusão dos imigrantes. Assim, a responsabilidade fica com as organizações
humanitárias, serviços que deveriam ser encargos dos governos.19
16
CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) Op.cit. 2014. p.
19.
17
NUNES, B. F.; CAVALCANTI, L. Op.cit.2014. p. 136.
18
COSTA, Pe. Gelmino A. Haitianos em Manaus: dois anos de imigração – e agora!Travessia –
Revista do Migrante, nº 70, São Paulo, Jan./Jun. 2012.p.96.
19
ZAMBERLAM, Jurandir et al. Op.cit. 2014.p 73.
986
Mas a chegada dos haitianos levanta questões para toda a sociedade
brasileira: até que ponto somos capazes de nos abrir ao diferente, ao estrangeiro,
ao outro? Qual o nível de xenofobia ou de racismo oculto ainda existente frente ao
diferente, ao pobre e ao negro? E como isso se expressam nas demandas por
moradia, trabalho, no transporte e no quotidiano da vida?20
Ao sentimento de preconceito demonstrado pelos brasileiros em relação
aos haitianos, eles se sentem discriminados por causa da cor e reclamam de
racismo por parte de alguns brasileiros, o que obstaculiza a adaptação ao Brasil.21
Esta nova imigração para o Brasil é marcada pela cor negra e morena, e sofre
questionamentos, discriminações de segmentos da sociedade, de poderes
públicos e parcela da mídia com os costumeiros argumentos: “grupos de
invasores”, imigrantes ilegais”, “pessoas desocupadas”, “usurpadores de postos
de trabalho de nacionais, “portadores de doenças” e “entram porque há um
descontrole governamental”.22
O que se percebe é que o outro não é necessariamente pensado para ser
revelado. O que se revela aqui é a identidade de um nós; a faceta cruel do
etnocentrismo de pensar-se a si mesmo como o centro das atenções. E o padrão
referencial, enquanto o outro é relegado à condição de não humano, alienígena,
invasor e que coloca em risco a segurança e a estabilidade do nós e, portanto,
pode ser tratado de maneira diferenciada23.
Um dos maiores desafios para os imigrantes é o aprendizado da língua
portuguesa24, a falta de sensibilização dos poderes públicos municipais e estadual
que não oferecem espaços físicos e docentes, a inexistência de um método
eficiente25 a ser utilizado pelos monitores em todos os estados, e o desnível
20
COSTA, Pe. Gelmino A. Op.cit. 2012.p.96.
FERNANDES, Duval; CASTRO, Maria da Consolação G. de . Op.cit.2014.p.93.
22
ZAMBERLAM, Jurandir et al. Op.cit. 2014.p 6 .
23
COTINGUIBA, Geraldo Castro.Imigração Haitiana para o Brasil:a relação entre trabalho e
processos migratórios. Dissertação. Porto Velho. 2014.p.140
24
A dificuldade de comunicação por não poder estudar a língua portuguesa ou a sua dificuldade
de comunicação os isola, tem efeitos no desempenho do trabalho, na busca de serviços , assim
como para sua alimentação e ir nos postos de saúde.
25
Existe o método de ensino de português para Haitianos, implantado pela Marília Pimentel e o
Geraldo Cotinguiba, de Rondônia no qual oportunizaram um curso em Santa Catarina e outro em
Porto Alegre no ano de 2014. COTINGUIBA, Geraldo Castro; PIMENTEL, Marília Lima;
21
987
cultural entre os migrantes. O desafio de ficar longe de seus familiares, pois os
custos da vinda de todos são muito altos, a saudade e a distância causam relativa
indecisão quanto ao futuro.
Outro problema enfrentado pelos haitianos é a moradia. Geralmente
moram em uma residência alugada compartilhada com outros imigrantes,
podendo esta ser uma casa ou um apartamento, quartos em pensão, hotel ou
casa de família; são as formas de moradia. Poucas são as moradias individuais,
isto, porque o aluguel é alto, visto aos salários que recebem, e ainda muitas vezes
necessitam de caução ou fiador, o que dificulta o acesso a uma moradia
individual. Ainda soma-se a dificuldade de compreender o contrato de aluguel.
O impacto que a ruptura das raízes familiares e a inserção numa nova
cultura tem provocado nos haitianos, expressa-se em isolamento, desânimo e
saudade e em alguns casos a depressão26. É por isso que muitos querem
regressar ao país de origem. A reunião familiar traria maior benefício pessoal,
comunitário e laboral.
A adaptação ao clima rigoroso do inverno (nas regiões do sul), criação de
uma convivência com as pessoas na comunidade local e no trabalho, superação
dos preconceitos que sofrem por parte de algumas categorias sociais, e, como
não possuem a compreensão das leis trabalhistas, houve a Insatisfação dos
Haitianos em relação aos descontos na folha de pagamento no Brasil27.
Não possuem direito ao voto, e assim não têm como representar as suas
necessidades e desejos para a construção de uma legislação a esta minoria. Sob
este ponto de vista, é necessário que o haitiano tenha mais informações quanto
aos requisitos de ingresso no Brasil, pois na questão do trabalho escravo os
exploradores aproveitam-se da desinformação e da falta de conhecimento dos
migrantes no país.
2 O APRENDIZADO LINGUÍSTICO E A QUESTÃO CULTURAL
NOVAES, Maria de Lourdes (Org.). Língua portuguesa para haitianos. Florianópolis: SESI.
Departamento Regional de Santa Catarina, 2014. 219 p.
26
ZAMBERLAM, Jurandir et al. Op.cit. 2014.p. 59.
27
Idem, p 71.
988
Antes de adentrar ao tema proposto, cabe destacar que a composição da
imigração no Brasil é parte fundamental para o crescimento e desenvolvimento
econômico do País, e o desconhecimento da língua portuguesa impede a
intercomunicação e aporta dificuldades na qualidade de vida, de muitos
imigrantes (seja para se alimentar, pedir emprego, compreender as normas do
ambiente de trabalho, se estiver doente explicar no sistema de saúde o que esta
ocorrendo) no momento de se relacionar com os brasileiros.
Observa-se que o estrangeiro e imigrante recebem um reconhecimento
sócio-jurídico diferenciado impresso pelas sociedades na qual são acolhidos.
Ambas as expressões, para o imigrante, não implicam, necessariamente, um
mesmo estatuto social. Para os estrangeiros determina-se uma figura jurídica
calcada numa realidade social objetiva modelado na forma de lei; para o imigrante
está presente um imaginário que o constrói socialmente. Com relação à questão
jurídica, tem-se uma normatização que regula os direitos e deveres dos
estrangeiros. Tal normatização regula a sua presença e permanência dentro do
território. 28
No que tange ao imigrante, ele não é uma figura objetiva. Na verdade sua
condição é social, na qual recai um atributo repleto de princípios negativos, e de
uma alteridade29 relativa aos nacionais. Ainda que somente haja uma lei para os
28
CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) A Inserção dos
Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasília: Cadernos do Observatório das
Migrações Internacionais, 2014. p. 19.
29
Alteridade é um substantivo feminino que expressa a qualidade ou estado do que é outro ou do
que é diferente. É um termo abordado pela filosofia e pela antropologia. Um dos princípios
fundamentais da alteridade é que o homem na sua vertente social tem uma relação de interação
e dependência com o outro. Por esse motivo, o "eu" na sua forma individual só pode existir
através de um contato com o "outro". Quando é possível verificar a alteridade, uma cultura não
tem como objetivo a extinção de uma outra. Isto porque a alteridade implica que um indivíduo
seja capaz de se colocar no lugar do outro, em uma relação baseada no diálogo e valorização
das diferenças existentes. No âmbito da Filosofia, alteridade é o contrário de identidade.
Apresentada por Platão (no Sofista) como um dos cinco "gêneros supremos", ele recusa a
identificação do ser como identidade e vê um atributo do ser na multiplicidade das ideias, entre
as quais existe a relação de alteridade recíproca. A alteridade tem também papel de relevo na
lógica de Hegel: o "qualquer coisa", o ser determinado qualitativamente, está em uma relação de
negatividade com o "outro" (nisso reside a sua limitação), mas está destinado a se tornar em
outro, a se "alterar", incessantemente, mudando as próprias qualidades (assim as coisas
materiais nos processos químicos). O uso do termo também surge na filosofia do século XX
(existencialismo), mas com significados não equivalentes. A Antropologia é conhecida como a
ciência da alteridade, porque tem como objetivo o estudo do Homem na sua plenitude e dos
fenômenos que o envolvem. Com um objeto de estudo tão vasto e complexo, é imperativo poder
989
estrangeiros, socialmente impõem-se uma hierarquização das alteridades e
nacionalidades ligadas ao contexto geopolítico e econômico. Isto é, mesmo que
um imigrante seja juridicamente um estrangeiro, a denominação imigrante o
vincula a um país economicamente menos abastado, com um alto índice de
pobreza, com indicadores sociais limitados e sociedades atrasadas, sob o ponto
de vista civilizatório. Tais condições o tornam um exportador de imigrantes. Em
contraponto a esta condição, observa-se que a designação de estrangeiro, não
raro,
é
vinculada
socialmente
a
um
indivíduo
advindo
de
um
país
economicamente mais desenvolvido que, ao contrário de exportar imigrantes,
atrai turistas.30
Os haitianos presentes na atualidade no Brasil caracterizam-se em termos
linguajar por serem diglóssicos, por se comunicarem no interior do grupo apenas
no crioulo haitiano, o idioma de 95% da população no Haiti, já o francês é a língua
dos demais 5%, uma língua de elite, um status, um signo do poder econômico e
social31( mas compreendido pela maioria).
Para os haitianos, e mesmo para as equipes de acolhimento, uma das
grandes barreiras é referente à língua. Um bom número fala espanhol (ou
portunhol), mas a maioria fala o crioulo haitiano e francês. Um número pequeno
fala somente o crioulo. Um número bastante reduzido fala inglês. Isto leva a eles
estarem sempre juntos, formando guetos. Existe um verdadeiro choque cultural,
pois o Haiti é um pequeno país e eles ficam assustados com as dimensões do
nosso. A maioria não tem noção das distâncias que existem no Brasil. A
adaptação é um processo lento e demorado.32
Assim, no que tange a acolhida e o aprendizado linguístico e cultural, como
reflexo do que já foi dito, presenciam-se muitos discursos, mas, de acordo com
Costa, toda a:
estudar as diferenças entre várias culturas e etnias. Como a alteridade é o estudo das diferenças
e o estudo do outro, ela assume um papel essencial na antropologia. Disponível em:<
http://www.significados.com.br/alteridade/>. Acesso em: 24 jan. 2015.
30
CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) Op.cit. 2014. p.
18.
31
COTINGUIBA, Geraldo Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 99.
32
IMIGRANTES HAITIANOS NO BRASIL. Disponível em: < http://geoconceicao.blogspot.com.br/.
Acesso em: 24.jan.2015.
990
[...] tarefa de acolhida continua por conta da Igreja Católica, do grupo
Ama Haiti, de pastores evangélicos e, ao final, também da Associação
dos Haitianos. Pessoas e entidades muito ajudaram e não se pode
deixar de nomear a Associação Allan Kardec. Porém, os principais
protagonistas de acolhida foram os próprios haitianos. Eles souberam
acolher a muitos em seus quartinhos paupérrimos e limitados de tudo.
Sempre cabe mais um nesses momentos. Com competência e eficiência
atuaram e atuam as equipes de alimentação, de saúde, de ensino da
33
língua portuguesa, de cursos profissionalizantes e de emprego..
O aprendizado linguístico tem sido a maior dificuldade dos imigrantes. A
Igreja Católica por meio de sua pastoral local teve a iniciativa de começar um
curso de português básico (Porto Velho/RO), ministrado por um haitiano que já
aprendeu a língua portuguesa(Brasil). A partir deste aprendizado inicial, criou-se
um projeto de extensão na Universidade Federal de Rondônia, denominado
Migração haitiana na Amazônia brasileira: linguagem e inserção social de
haitianos em Porto Velho, objetivando de imediato o ensino da língua portuguesa,
noções de história e geografia do Brasil e da Amazônia, noções de direitos
humanos e trabalhistas, visando sua inserção social.34
Essas iniciativas ainda não impedem a dificuldade com a língua
portuguesa. É concretamente um entrave para a população haitiana que está na
atualidade dispersa pelo Brasil. Este projeto ministra aulas de português para os
imigrantes. Atualmente, registra-se uma alta rotatividade, já que muitos iniciam o
curso e desistem por motivos como: viajam para outros estados, começam a
trabalhar à noite, ou mesmo os que acham que já aprenderam o suficiente. 35
Em razão dos haitianos comporem um grupo muito heterogêneo, o ensino
da língua portuguesa tornou-se um desafio para os instrutores. São turmas
compostas majoritariamente por homens, apenas 5% são mulheres, com faixa
etária de 20 a 38 anos. A escolaridade é caracterizada pelos extremos, ou seja,
existem vários que nem completaram o ensino fundamental, outros com ensino
médio
incompleto,
alguns
poucos
com
ensino
superior
e,
outros,
semialfabetizados.36
Registra-se ainda que muitos que frequentam regularmente as aulas
aprendem rapidamente o português, isto se deve ao conhecimento do espanhol,
33
Pe. COSTA, Gelmino A. Op.cit. 2012. p. 91.
COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 101.
35
Pe. COSTA, Gelmino A. Op.cit. 2012. p. 95.
36
COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 103.
34
991
em razão destes terem morado algum tempo na República Dominicana. Todavia,
observa-se que parte significativa dos haitianos tem dificuldades em decorrência
de fatores, como: pouca escolaridade; isolamento no gueto (resistência em
interagir com os brasileiros); trabalho o dia inteiro em atividades extenuantes,
dentre outros.37
É possível perceber que a escola, para os imigrantes haitianos, termina por
ser referência de um novo status, já que em sua grande maioria vestem as
melhores roupas para ir às aulas, sendo a figura do professor muito respeitada.
Acrescente-se ainda que o espaço disponibilizado pela Igreja Católica para as
aulas termina por ser um ponto de encontros. Concretamente vem a ser estes
encontros uma rede de sociabilidade que se fortalece, um local em que as
informações são compartilhadas, reuniões para emprego são realizadas e
também se assiste à construção de laços de amizade e à manifestação das
relações de parentesco.38
De acordo com Fernandes, os Haitianos ressentem-se pelo fato do
relacionamento com os brasileiros ser dificultado por não entenderem o
português, especialmente no trabalho. Frisam que a comunicação fica muito difícil
sem o domínio do português. Alguns recorrem à linguagem gestual para
conseguir se comunicar razoavelmente ou pelo menos para se fazer entender.39
Não raro aqueles que possuem o domínio da língua portuguesa conseguem
empregos mais facilmente nas empresas.40
Já com relação à inserção social captou-se a existência de uma rede de
sociabilidade haitiana, a partir da cidade de Porto Velho/Acre, a qual tem seu fluxo
implementado pelas visitas aos amigos, assiduidade aos cultos religiosos
evangélicos, contatos com brasileiros. E entre membros do próprio grupo,
frequentam bares onde assistem a jogos de futebol televisionados, e também
fazem visitas a shopping centers.41
37
Ibidem.
Ibidem.
39
FERNANDES, Duval;CASTRO,Maria da Consolação G. de . Op.cit.2014.p.94.
40
COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 103.
41
Ibidem.
38
992
Note-se que o preenchimento ocupacional do espaço público e de seus
recursos revela a apropriação de um pedaço daquele país que os acolheu. Temse um pedaço, isto é, um lugar em que membros de um determinado grupo obtêm
e repassam informações. Ali, os imigrantes compartilham suas experiências com
amigos, tecem alianças, fortalecem a rede de sociabilidade do grupo, participam
do lazer, vivenciam os conflitos. É neste espaço territorial, longe de casa, que os
haitianos residentes em tantas partes do Brasil andam a pé, de bicicleta ou
reunidos em grupos de três a cinco, homens e mulheres, às vezes crianças, em
frente as suas residências, nos orelhões em telefonemas para os familiares no
Haiti, ou falando ao celular com amigos na cidade ou em outros estados
brasileiros, conversando e gesticulando à sua maneira. É onde parecem se sentir
à vontade.42
Importante considerar que, no caso do idioma, o não conhecimento do
idioma nativo do país de destino é uma importante barreira à integração ou
mesmo à sobrevivência43. Quanto à questão cultural, a bandeira é um símbolo
reverenciado. Para eles é um grande sentimento de orgulho, e o que os identifica
e os une diversas vezes, expresso e externado pela inscrição nesse objeto
simbólico na forma escrita l‟union fait la force, ou seja, a união faz a força44.
A cultura é um espaço privilegiado que faz a força do Haiti e é um dos
setores que atrai o olhar positivo da comunidade estrangeira, seja na música, na
pintura, no artesanato.
Como afirma o mais lido escritor haitiano Gary Victor:
É o único ambiente que o Haiti é competitivo no plano internacional, em
janeiro de 2012, o romance “Le sang et lamer” (o sangue e o mar), do
próprio autor, ganhou o prêmio casa das Américas, um dos mais
prestigiados prêmios literários do continente americano.
Outro romancista haitiano-quebequense, obteve o premio Médicis, pelo
seu romance “l’enigme Du retour” (O enigma do retorno), que conta seu
retorno ao país natal, após a catástrofe natural de 12 de Janeiro de
45
2010.
O movimento de artes plásticas Sant-soleil é objeto de um dos mais
conceituados livro de arte moderna que prega a autonomia do artista, intitulado
42
COTINGUIBA, Geral Castro; PIMENTEL, Marília Lima. Op.cit. 2012. p. 104.
FERNANDES,Duval;CASTRO,Maria da Consolação G. de . Op.cit.2014.p.65.
44
COTINGUIBA, Geraldo Castro. Op.cit. 2014.p.140.
45
SANTIAGO, Adriana. Op.cit. 2013.p137-138.
43
993
“l’Intemporal”, do escritor Jean-Claude Garoute (Tiga), e o artesanato haitiano
decora grandes boutiques internacionais de objetos decorativos. A tradicional
música folclórica e de raiz, expressão de reivindicação popular e de afirmação
cultural.46
Sob o ponto vista religioso, na atualidade, observa-se um quadro em que a
diversidade de crenças é a principal característica, já que estão presentes
católicos47 e evangélicos, sendo que os primeiros são em menor número,
frequentam as igrejas e mantêm um discurso de boa convivência com os
evangélicos na cidade. Duas são as vertentes de evangélicos, uma que frequenta
os templos juntamente com brasileiros (Batista, Assembléia de Deus, Adventista
do Sétimo Dia, etc.) e os que congregam apenas entre haitianos, num misto do
que se poderia citar de sincretismo evangélico, isto é, são pessoas que se
professam
convertidos
em
diferentes
denominações
protestantes,
mas
congregam juntos no mesmo templo. 48
A vantagem da diversidade cultural prende-se com a possibilidade de
aprendermos mais sobre outras culturas e sobre outras formas de trabalhar e de
ver as coisas, o que enriquece a própria organização da sociedade. Da
diversidade cultural também nascem as novas ideias, diferentes formas de
entender os problemas, a questão da tolerância, o perceber como o outro
funciona para o compreender e não gerar atritos. A compreensão do outro
pacífica o ambiente social, importante para o progresso e para a prosperidade.
Dispomos de uma oportunidade ímpar de integração, de somar com o
aprendizado da cultura e do idioma do Haiti, a aquisição de conhecimento,
46
Idem.p141-142.
Muitos comportamentos são vistos como pecaminosa dentro dos limites da maioria das religiões
monoteístas, particularmente o cristianismo. Muitos cristãos vêem a homossexualidade como
pecado.
Em consequência, muitos homossexuais não podem revelar sua orientação sexual por medo de
ser condenado ao ostracismo. No Haiti, os homossexuais conhecidos podem ser fisicamente
prejudicados, os parentes não vão admitir ter um parente homossexual. BACKGROUND ON
HAITI. Op.cit. 2010.p.11.
48
PAULA, Elder Andrade de. Entre desastres e transgressões, a chegada dos imigrantes
haitianos no “reino deste mundo amazônico” In MR: Desdobramentos de uma tragédia: da
crise humanitária no Haiti à crise dos haitianos e demais desterritorializados no Brasil; 36º
Encontro Anual da Anpocs. Disponível em: http://www.anpocs.org/>. Acesso em: 24 jan. 2015.
47
994
experiências e vivências trazidas por esses tão altivos e combatentes seres
humanos.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foram observadas as dificuldades de aprendizado e a comunicação com a
língua portuguesa, os migrantes não sabem falar e compreender a língua
portuguesa corretamente, prejudicando a sua autonomia, para tanto não
compreendem as legislações trabalhistas, tem dificuldades em assinar contratos,
pedir alimentação e assim sucessivamente, ocorrem conflitos e proporcionam a
falta de oportunidade para a sua total inserção na sociedade local. Existe uma
dicotomia entre o acesso ao mercado de trabalho para os migrantes e a real
dificuldade de inclusão e participação na sociedade Brasileira.
Para tanto, o Brasil e os migrantes precisam de um novo marco legal capaz
de antever as formas aplicáveis fixas de solução humanitária. Uma nova
legislação precisa disponibilizar formas que acolham e reconheçam migrantes
vulneráveis, que na verdade são vítimas de tráfico de pessoas e de trabalho
escravo em razão da migração forçada que foram submetidos.
Por conseguinte, demanda a reflexão crítica dos refugiados ambientas, no
estudo do fenômeno com base no caso da migração Haitiana para o Brasil, a
partir do século XXI, para garantir a todos em constante deslocamento, lhe
assegurando a reunião familiar, a assistência social, jurídica e psicológica,
evitando-se terminologias estimuladoras da discriminação e a xenofobia, devendo
ainda suprimir provisões relativas à criminalização, infração, expulsão, vigilância,
exclusão política, econômica e social da população. Contudo, a prática reserva
muitas dificuldades para este povo num país cuja maior barreira é língua a ser
aprendida, numa capacitação relâmpago. A tríade migração-trabalho-inserção
social revela um caminho de contradições merecedoras de uma forte revisão,
tanto por haitianos, do Estado brasileiro, como do empregador, e das
organizações sociais que amparam e orientam tais grupos.
Este trabalho conclui a reflexão crítica sobre a inserção dos migrantes na
sociedade Brasileira diante dos obstáculos, tais como, o aprendizado da língua
995
Portuguesa para compreender ou falar o idioma nacional, que é necessário para a
sua comunicação. Caso não ocorra a inclusão destes seres humanos na
sociedade civil, a imigração ilegal acaba por ser favorecida, por isso a efetiva
pesquisa auxilia a compreender esta lacuna para a efetivação jurídica dos direitos
humanos na atualidade.
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996
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Solidus, 2014.
997
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DOS HAITIANOS NO BRASIL, PÓS
TERREMOTO: DIFICULDADES SOCIOAMBIENTAIS. 49 50
Marcia Andrea Bühring51 52
RESUMO: O trabalho de pesquisa mais amplo, tem como objetivo relatar como
vivem, onde trabalham, (se trabalham) quais as dificuldades enfrentadas nesse
“novo lugar” que passaram a “chamar de seu”, se estão sozinhos e/ou
conseguiram trazer seus familiares, se conseguiram se adaptar, pois trata-se de
uma nova cultura a ser assimilada, uma nova língua, novos desafios, inclusive de
aceitação, e se houveram conquistas, depois do terremoto que atingiu em 2010 o
Haiti, deixando mais de 250 mil pessoas feridas, sendo que 1,5 milhão de
habitantes ficaram desabrigados e o número de mortos ultrapassou a 200 mil.
Visto também, que incluem-se na categoria de imigrantes, que buscam um novo
país-lugar, para recomeçar as suas vidas, muito embora, não tenham todo o
amparo legal, da legislação brasileira (que é ultrapassada) no que tange a essas
novas situações: a dos “refugiados ambientais”. Como resultado parcial, percebese que o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) concluiu pela não concessão
do refúgio, pois não há status de refúgio para os haitianos no Brasil, (que exige
que a pessoa seja vítima de perseguição em seu país, entre outros). Para tanto, o
Conselho Nacional de Imigração, baixou uma Resolução Normativa de nº 97/12,
(agora estendido até 2015) criando o “visto por razões humanitárias” para esses
imigrantes, e os números vem aumentando, mesmo impondo-se limitações como:
liberação de 1.200 vistos/ano e com validade de cinco anos. Tudo isso mostra
que o caminho para uma cidadania efetiva é longo, assim como os direitos
humanos que são desrespeitados. Por fim, como conclusão parcial, a verificação
de que os imigrantes haitianos, não podem votar por exemplo, e que também não
veem respeitados os direitos acima elencados, ou seja, direitos humanos,
fundamentais, por não existir amparo jurídico efetivo para tanto. O que se sugere,
49
CONGRESSO INTERNACIONAL: “A Sociologia do Direito em Movimento: Perspectivas da
América Latina”. Unilassale. Canoas (RS), de 5 a 8 de Maio de 2015.
50
3) SESSÕES DO MESTRADO EM DIREITO DO UNILASALLE: [...] k) MOVIMENTO EM
DEFESA DA CIDADANIA, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA (português e espanhol) –
Daniela Cademartori e Selma Petterle.
51
Doutora pela PUCRS-Brasil. Mestre pela UFPR. Professora da FADIR da PUCRS e Programa
de Pós Graduação, Mestrado da UCS – Universidade de Caxias do Sul - RS. Pesquisadora do
Programa de Pós Graduação, Mestrado da UCS. Parte integrante do Projeto de Pesquisa com
Tíulo: Deslocados/migrantes/refugiados ambientais: a questão dos haitianos no Brasil e os
direitos sociais.
52
Ver também: BÜHRING, Marcia Andrea. Direitos humanos e fundamentais, migração nas fronteiras
Brasil e Uruguai: uma análise dos déficits do direito social à saúde da mulher nas cidades gêmeas:
Santana do Livramento-BR/Rivera-UR e Chuí-BR/Chuy-UR. Tese de Doutorado. PUCRS, Porto
Alegre, 2013.
998
é que seja traçada uma política de amparo em âmbito nacional para os novos
refugiados, ou seja os “refugiados ambientais ou do clima”, salvaguardando a
estes os direitos, por uma questão de humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Cidadania;
Haitianos; Dificuldades Sociambientais.
1 INTRODUÇÃO
As consequências das mudanças climáticas são muitas, dentre elas as
pessoas que precisam migrar, (dentro do seu próprio país, em busca de melhores
condições de vida), se deslocar (para dentro ou para fora do seu Estado de
origem) emigrar (sair do seu país) ou imigrar (ingressar em outro país).
O Mundo sempre lembrará do 12 de janeiro de 2010, o terremoto que
atingiu o Haiti, deixou mais de 250 mil pessoas feridas, com cerca de 1,5 milhão
de habitantes desabrigados e o número de mortos tendo ultrapassado os 200 mil.
O que resultou em inúmeros imigrantes que vieram do Haiti para o Brasil,
autênticos “refugiados do clima”, também chamados de “refugiados ambientais”
(embora sem a mesma proteção de um refugiado), que justamente fogem do seu
país para outro em razão de eventos climáticos de grande proporção.
Essa nova “categoria de imigrantes”, buscam um novo país-um lugar, para
recomeçar as suas vidas, muito embora, não tenham todo o amparo legal, no que
tange a essas novas situações.
O método adotado é o dedutivo e dialético, com revisão bibliográfica.
Desenvolver-se-à, esse estudo em dois momentos, num primeiro a
abordagem dos direitos humanos, a partir da Declaração Universal de Direitos
Humanos de 1948 e de como esses direitos passaram a integrar os sistemas
jurídicos, além da concepção de lugar e não-lugar.
E num segundo momento, a situação dos haitianos e as principais
dificuldades socioambientais, tais como, o visto, trabalho, moradia, entre outros.
Para ao final apresentar, ainda que de forma parcial, (vez que o projeto
ainda não está finalizado), algumas contribuições-indagações.
999
2 DIREITOS HUMANOS E O “NOVO LUGAR”
Os direitos humanos são “situações jurídicas sem as quais a pessoa
humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”.(SILVA,
1998, p. 182). E é essa vivência e (sobre) vivência - digna - que merece destaque,
no que diz respeito aos haitianos que estão morando no Brasil. Vez, que os
direitos humanos estão previstos em todas as Constituições, que utilizaram a
Declaração Universal de 1948, como fundamento. (MORAIS, 2005, p. 2). Todavia,
o simples fato de estarem elencados, não assegura seu cumprimento e seu
respeito, sendo inclusive vilipendiados. (HERKENHOFF, 1994. p.52).
O vilipendio, no sentido de afronta, aviltação ou aviltamento, no sentido de
desprezo, de mácula, de menosprezo, de ultraje escancarado, entre outros
sinônimos, num total desrespeito.
O direito - dos direitos humanos “não rege as relações entre iguais, mas
sim entre desiguais”, (PIOVESAN, 2006) frase famosa de Antônio Augusto
Cançado Trindade, que em favor dos que precisam de amparo e proteção,
(PIOVESAN, 2006) - os grupos vulneráveis, que historicamente são dominados,
excluídos e repreendidos.
Dessa forma, os direitos humanos, são faculdades e instituições que em
diferentes momentos históricos, concretizam as exigências da dignidade,
liberdade e igualdade(LUÑO, 1999, p. 48).53
Comumente, tais expressões como os direitos do homem, direitos humanos
e direitos fundamentais são inclusive usadas como sinônimas, todavia, adverte-se
com José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 259) que há diferenças entre eles,
e de fato há, pois “os direitos do homem são direitos válidos para todos os povos
e em todos os tempos”. Já os “direitos fundamentais são os direitos do homem,
jurídico-institucionalmente
garantidos
e
limitados
espacio-temporalmente”.
(CANOTILHO, 1998, p. 259). Nesse sentido também a contribuição de Guido
Fernando Silva Soares, (2002, p. 338) de que é possível conferir dois significados
53
Tradução livre de: “Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e
instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la
igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a
nivel nacional e internacional”. (LUÑO, 1999. p.48).
1000
à expressão “direitos humanos”, um strito, outro lato.54 Para tempos de paz e para
refugiados, deslocados e migrantes respectivamente.
Por outro lado, destaque-se que a ONU - Organização das Nações Unidas
(Acesso 20 jul. 2011) criada por meio de um Estatuto chamado Carta da ONU, ou
também Carta de São Francisco, traz em suas disposições, o compromisso (sob a
forma das expressões “direitos fundamentais”, “direitos humanos” e “liberdades
fundamentais”),55 com os direitos humanos e as liberdades fundamentais
(PIOVESAN, 2006, p. 127-129).
Norberto Bobbio (1992, p. 5) já advertia que “os direitos do homem, por
mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas
circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de
uma vez por todas”.
No mesmo sentido, Antonio Enrique Pérez Luño (1999, p. 48) refere que os
direitos humanos são um conjunto de poderes e instituições, que em cada
momento histórico, tem o condão de materializar as demandas de liberdade,
dignidade e igualdade humana, as quais devem ser reconhecidas e positivadas
em nível nacional e internacional.56 Ao que, aponta, por outro lado, Valério de
Oliveira Mazzuoli, que os direitos humanos possuem um duplo pilar da
universalidade e da indivisibilidade (MAZZUOLI, Acesso 27. Jul. 2011). E
atualmente, acrescenta, também a interdependência e a inter-relacionariedade
(MAZZUOLI, 214, p. 29).
54
Afirma por importante: “Em primeiro lugar, Direitos Humanos, “stricto sensu”, são aqueles direitos
garantidos em tempos de paz e que dão a configuração democrática aos Estados que os consagram,
nos respectivos ordenamentos jurídicos nacionais; são alguns de seus sinônimos: Direitos do
Homem, Direitos Fundamentais, Liberdades Públicas, Direitos da Pessoa Humana[...]. Numa
segunda concepção, Direitos Humanos “lato sensu”, constituem os Direitos Humanos conforme a
concepção anterior, e mais as normas de proteção aos asilados e aos refugiados, pessoas cujas
definições pressupõem uma norma internacional e cuja proteção nos ordenamentos jurídicos
nacionais, historicamente, não fazia parte das condições para definir-se a configuração democrática
de um Estado e que, nos últimos tempos, passou a fazer. (SOARES, 2002. p.338.)
55
Encontra-se no Preâmbulo, e nos artigos 1.3, 13.1.b, 55, 56, 62.2 e 62.3 e 76.c da Carta da ONU de
1945)
56
Tradução livre de: “Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e
instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la
igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a
nivel nacional e internacional”. (LUÑO, 1999. p.48).
1001
Destaque-se por relevante, que os direitos humanos segundo Amartya Sem
(2010, 292-298) sofrem três críticas em relação ao edifício intelectual dos direitos
humanos, bem como crítica da legitimidade, crítica da coerência e crítica cultural.
Isto é, na crítica da legitimidade, não existiriam direitos humanos prévios, eles
seriam adquiridos. Já na crítica da coerência, os direitos seriam pretensões que
requerem deveres. E por fim, na crítica cultural, ligados a ética universal, embora
exista a diversidade.
Cumpre lembrar também que os haitianos ao “escolherem” o Brasil, se
confrontam com aspectos sociais, culturais, ambientais, de identidade, de
assimiliação e de aceitação desse novo lugar.
Nesse sentido, Homi Bhabha (1998, p. 33) defende a identidade como
interação,
o
desejo
de
reconhecimento,
e
sugere
ver
a
historia
de
migrantes/refugiados, do ponto de vista dos deslocamentos sociais e culturais
anômalos, que quer dizer, uma última vez, “há um retorno à encenação da
identidade como interação, a re-criação do eu no mundo da viagem, o reestabelecimento
da
comunidade
fronteiriça
da
migração.
O
desejo
de
reconhecimento da presença cultural como “atividade negadora”. (1998, p. 28).
A identidade como necessidade, algo que deve se construir para poder
negociar e obter um lugar no espaço nacional, muito mais do que algo que se
tem, mas algo que se deve manter, (VASQUEZ, 2006, p. 172-173),57 mas as
identidades são flexíveis e mudam de acordo com o tempo e o lugar. Quando
Boaventura de Souza Santos descreve a modernidade, Identidade e a Cultura de
Fronteira adverte que hoje se têm processos de identificação, pois a preocupação
com a identidade nasce com a modernidade (SANTOS, 1997, p. 135).
É de Homi Bhahba (1998, p. 209-210) ainda, um importante conceito de
fronteira como um entrelugar, que também é adotado aqui, pela aproximação da
57
Tradução livre de: “La identidad y la marginalidad: ¿esencia o estrategia de representación? A lo
largo de este texto se han mostrado las diferentes etapas por las que ha pasado la relación entre el
Estado y los habitantes de la antigua zona de distensión. Este evento hizo visible el marco de esa
interacción, ya que hizo circular estereotipos sobre la región y sus habitantes, reveló las diferencias y
oposiciones entre los niveles del Estado y generó una coyuntura importante para la pregunta por la
identidad y el desarrollo de estrategias de representación por parte de los habitantes locales. Para los
municipios de la zona, la identidad es una necesidad, es algo que debe construirse para poder
negociar y obtener un lugar en el espacio nacional, más que algo que se tiene y/o hay que mantener.
(VÁSQUEZ, 2006. p.172-173).
1002
identificação de fronteira com um não lugar. O autor, indaga ainda, de que forma
pode-se refletir sobre - a identidade num espaço-tempo contemporâneo - vez que
hoje a “marca é a não-fixidez, o constante movimento, certa fluidez do que antes
era considerado estático, tomado como porto seguro”, assim como complexo, pois
o intercâmbio de “valores, significados e prioridades pode nem sempre ser
colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e até
incomensurável”.(BHAHBA, 1998, p. 20).
Aqui, utiliza-se o conceito de não lugar de Marc Auge (2000, p. 49) também
chamado de lugar incomum ou de espaços de anonimato, analisou o contexto
mundial, no qual todos os fenômenos locais ganham significado, hoje em dia.
Ademais, o lugar-comum (AUGE, 2000, p. 49)58 é o lugar, onde os nativos
vivem, trabalham, cuidam das fronteiras, lugar de culto dedicado aos ancestrais.
Esse lugar comum é uma invenção sendo que um bom exemplo disso são as
migrações do campo para a cidade e a formação de novos povoados, ou seja, a
natureza dos grupos são sempre diversa, mas a identidade do lugar se une,
funde-se, converge-se em um lugar próprio daqueles que passam a ocupar o
lugar. (AUGE, 2000, p. 51).59 E aqui é perfeitamente possível trazer a fronteira
enquanto não lugar.
Portanto, lugar é, segundo o autor, o espaço antropológico, a
identidade, a relação e a história, e o não lugar é o contrário: o não
relacional, não identitário e não histórico. Como exemplo de não lugar, os
povoados de “viajantes” ou “passeantes”, ou ainda “transeuntes”. Esses viajam
sozinhos, nos espaços de ninguém. Tem revelado uma nova forma de “viver” o
mundo. Muito embora o retorno ao lugar pode ser o sonho dos que frequentam os
58
Tradução livre de: “El lugar común al etnólogo y a aquellos de los que habla es un lugar,
precisamente: el que ocupan los nativos que en él viven, trabajan, lo defienden, marcan sus puntos
fuertes, cuidan las fronteras pero señalan también la huella de las potencias infernales o celestes, la
de los antepasados o de los espíritus que pueblan y animan la geografía íntima, como si el pequeño
trozo de humanidad que les dirige en ese lugar ofrendas y sacrificios fuera también la quintaesencia
de la humanidad, como si no hubiera humanidad digna de ese nombre más que en el lugar mismo
del culto que se les consagra”. (AUGE, 2000. p.49).
59
Tradução livre de: “Que los términos de este discurso sean voluntariamente espaciales no podría
sorprender, a partir del momento en que el dispositivo espacial es a la vez lo que expresa la identidad
del grupo (los orígenes del grupo son a menudo diversos, pero es la identidad del lugar la que lo
funda, lo reúne y lo une) y es lo que el grupo debe defender contra las amenazas externas e internas
para que el lenguaje de la identidad conserve su sentido”. (AUGE, 2000. p.51).
1003
não lugares. São, por conseguinte os não lugares livres de identidades (AUGE,
2000, p. 56). É estar sozinho, sem saber que está sozinho, é sentir-se parte
integrante do contexto produzido pela sociedade, ou esperado pela sociedade, se
está em contato com outras pessoas, sem efetivamente ou de fato estar com
alguém.
O não lugar, ou o espaço vazio, (BAUMANN, 2001, p. 115-116)60
caracteriza-se pela ausência dos símbolos (identidade, relação e história),
(AUGE, 1994, p. 156), pois é a negação do lugar, nessa linha de raciocínio,
adverte ainda, Marc Augé, (1994, p. 156). o estrangeiro não se reconhece no
outro, quando todo o espaço “se assemelha somos de certo modo todos
estrangeiros porque já nada nos identifica” (AUGE, 1994, p. 156), essa falta de
nexo entre a pessoa e o lugar, é muito comum na região de fronteira. A noção de
lugar e não lugar são noções que possuem um limite, “que correspondem a
espaços muito concretos, mas também a atitudes, a posturas, à relação que os
indivíduos mantêm com os espaços onde vivem ou que eles percorrem”. (AUGE,
1994, p. 167). Traz ainda, o lugar objetivo, o lugar da identidade e o lugar
simbólico o espaço onde se estabelecem as relações, assim como os não lugares
60
Enfatiza: “Por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo coletivo não têm nada de
"coletivo': Para utilizar a memorável expressão de Althusser, quem quer que entre em tais espaços é
"interpelado" enquanto indivíduo, chamado a suspender ou romper os laços e descartar as lealdades.
Os encontros, inevitáveis num espaço lotado, interferem com o propósito. Precisam ser breves e
superficiais: não mais longos nem mais profundos do que o ator os deseja. O lugar é protegido contra
aqueles que costumam quebrar essa regra – todo tipo de intrometidos, chatos e outros que poderiam
interferir com o maravilhoso isolamento do consumidor ou comprador. O templo do consumo bem
supervisionado, apropriadamente vigiado e guardado é uma ilha de ordem, livre de mendigos,
desocupados, assaltantes e traficantes - pelo menos é o que se espera e supõe. As pessoas não vão
para esses templos para conversar ou socializar. Levam com elas qualquer companhia de que
queiram gozar (ou tolerem), como os caracóis levam suas casas. Lugares êmicos, lugares fágicos,
não-lugares, espaços vazios. O que quer que possa acontecer dentro do templo do consumo tem
pouca ou nenhuma relação com o ritmo e teor da vida diária que flui "fora dos portões': Estar num
shopping center se parece com "estar noutro lugar'. O templo do consumo, como o "barco" de Michel
Foucault, "é um pedaço flutuante do espaço, um lugar sem lugar, que existe por si mesmo, que está
fechado em si mesmo e ao mesmo tempo se dá ao infinito do mar", pode realizar esse "dar-se ao
infinito" porque se afasta do porto doméstico e se mantém a distância. Esse "lugar sem lugar" autocercado, diferentemente de todos os lugares ocupados ou cruzados diariamente, é também um
espaço purificado. [...] Os lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma "realidade real"
externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança. Dentro de seus templos, os
compradores/consumidores podem encontrar, além disso, o que zelosamente e em vão procuram
fora deles: o sentimento reconfortante de pertencer - a impressão de fazer parte de uma
comunidade.[...]. "Estar dentro" produz uma verdadeira comunidade de crentes, unificados tanto
pelos fins quanto pelos meios, tanto pelos valores que estimam quanto pela lógica de conduta que
seguem. [...]”. (BAUMANN, 2001. p.115-116).
1004
objetivos os espaços de circulação-comunicação-consumo. E os não lugares
subjetivos os espaços pelos modos de relação com o exterior, (AUGE, 1994, p.
141) um constante ir e vir do espaço construído ao vivido.
O que Marc Augé (1994, p. 141) faz é relacionar os não lugares com
diferentes fenômenos seja “do espaço construído e a relação dos indivíduos com
ele”. Contemporaneamente, vive-se em tempos líquidos, (expressão cunhada por
Zigmunt Baumann, (PRADO, Acesso 12 out. 2012)61 nada é feito para durar, a
mudança é instantânea, e refere à comunidade definida por suas fronteiras
vigiadas pelos estranhos que se encontram ou (desencontram).(BAUMANN,
2001. p. 111-112).62 Além dos espaços públicos, que servem de ponto de
encontro (entre estranhos) que não se encontram, pois o espaço é um lugar de
não interação, (BAUMANN, 2001. p. 114) mas o fato de se estar nesse (não
lugar) chamado de lugar de consumo coletivo a exemplo dos shopping centers, é
sentir-se integrado, como parte do todo, como pertencente ao lugar, de fazer
parte, de integrar-se a ele. Aponta Zygmunt Baumann (2001, p. 119) que os não
lugares “não requerem domínio da sofisticada e difícil arte da civilidade, uma vez
que reduzem o comportamento em público a preceitos simples e fáceis de
aprender” (BAUMANN, 2001. p. 111-112).
E nesse sentido os haitianos, que chegam, todos os dias, desde o
terremoto de 2010, em busca de um lugar, que possam chamar de seu, a fim de
se integrar, participar, cultuar, trabalhar, aceitar - viver.
61
Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de
manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são
deliberadamente impedidos de se solidificarem.” (PRADO, Acesso 12 out. 2012).
62
Comenta: “No encontro de estranhos não há uma retomada a partir do ponto em que o último
encontro acabou, nem troca de informações sobre as tentativas, atribulações ou alegrias desse
intervalo, nem lembranças compartilhadas: nada em que se apoiar ou que sirva de guia para o
presente encontro. O encontro de estranhos é um evento sem passado. Freqüentemente é também
um evento sem futuro (o esperado é não tenha futuro), uma história para "não ser continuada' uma
oportunidade única a ser consumada enquanto dure e no ato, sem adiamento e sem deixar questões
inacabadas para outra ocasião”. (BAUMANN, 2001. p.111-112).
1005
3 HAITIANOS NO BRASIL - PÓS TERREMOTO, E AS DIFICULDADES
SOCIOAMBIENTAIS
Cumpre lembrar que o Haiti, é um país latino-americano, que se encontra
localizado na Ilha, chamada “La Espaniola”, e que foi assolado por um terremoto
de grande magnitude (7,3 na escala Richter), inimaginável, mas que por um
“desvio” do destino atingiu, quem não poderia ter sido atingido (os mais
vulneráveis).
Lembra Anne Paiva de Alencar (ACESSO 10 abr. 2015) que o terremoto
em Porto Príncipe, (local onde vive a maior parte da população), causou a “morte
de aproximadamente 222.570 pessoas, e deixando um pouco mais de 1,5 milhão
das pessoas sobreviventes sem suas casas, ou seja, cerca de 80% da população,
ocasionando um caos no país mais pobre do Hemisfério Ocidental”. Afirma ainda
que segundo dados da própria ONU, “há, ainda, em torno de 800.000 deslocados
vivendo em condições miseráveis”, e que embora o terremoto tenha sido
“momentâneo, seus efeitos foram duradouros para a população haitiana”
(ALENCAR, Acesso 10 abr. 2015).
Por outro lado, destaca Alejandro Fonseca Duarte (Acesso 30 mar. 2015)
que um evento local – regional pode ocasionar problemas globais:
As catástrofes naturais são uma complexa associação entre os
habitantes de uma região e eventos tais como, terremotos, maremotos,
ondas gigantes no mar, erupções vulcânicas, furacões, tornados e, por
outro lado, intensas chuvas, alagações, avalanches, queimadas,
epidemias, poluição e contaminações. Em uns casos a sociedade está
exposta à fúria da natureza sem que a sua ação prévia tenha desenhado
o desencadeamento da catástrofe em longo prazo; em outros, como é o
caso dos eventos extremos de chuvas, queimadas e acidentes
nucleares, existe uma grande parcela de contribuição social devido ao
descontrole das atividades tecnológicas, exploração dos recursos
naturais, e desatenção governamental ao equilíbrio entre comunidades e
seu entorno. Quase sempre, os problemas vindos de uma catástrofe de
grande magnitude ou do seu presságio (como as mudanças climáticas),
adquirem particularidades globais, embora possam ser locais ou
regionais na sua ocorrência. Na atualidade isso se exemplifica, com o
terremoto do Haiti e, o terremoto e tsunami do Japão.
Sabe-se que, historicamente esse país sofre com conflitos, são mais de
200 anos de “massacre”, e que antes do terremoto, já era considerado o país da
pobreza mais miserável.
1006
Sugerem Andrea Pacheco Pacífico e Thaís Kerly Ferreira Pinheiro, (Acesso
30 mar. 2015), “recursos financeiros e apoio técnico para reconstruir o país”;
também sugerem normas internacionais “que coadunem com os interesses dos
Estados e as obrigações de proteção da pessoa humana”; ou “um sistema de
proteção específico para deslocados ambientais, por não serem refugiados”; ou
“ampliação da definição de refugiados”: veja-se:
deve-se, antes de tudo, haver uma maior participação da comunidade
internacional na ajuda ao Haiti com recursos financeiros e apoio técnico
para reconstruir o país, permitindo, assim, que seus cidadãos não
precisem emigrar para sobreviver. Como a migração, contudo, é um fato
e um fenômeno notório e crescente no cenário internacional e o direito
internacional deve garantir normas que coadunem com os interesses dos
Estados e as obrigações de proteção da pessoa humana, sugestões
podem ser dadas a respeito da problemática aqui exposta. Um delas
seria ampliar o atual regime internacional dos refugiados, alargando a
definição do termo para incluir, também, vítimas de catástrofes
ambientais, como os imigrantes haitianos que vieram ao Brasil após o
terremoto de 2010. Assim, poderia, em esfera internacional e nacional,
ser conferida proteção, por meio do refúgio, a pessoas fugindo de
eventos (antropogênicos ou naturais) que perturbassem seriamente a
ordem pública. Outra sugestão seria desenvolver um sistema de
proteção específico para deslocados ambientais, por não serem
refugiados e caso a ampliação do regime seja difícil, posto que os
instrumentos de direito internacional são restritivos em relação a eles.
Finalmente, a questão central abordada é que se torna imperativo que as
autoridades competentes avaliem o caso, pois, dada a situação
calamitosa do Haiti, seus cidadãos poderiam ser considerados
refugiados, se apreciado pela perspectiva da ampliação da definição,
principalmente pelo fato de que o Haiti, já antes do terremoto, vivia em
calamidade social, produto da recente trajetória política, traçada por
alterações drásticas e violentas de governos que arrastaram o país a um
extremo empobrecimento. (PACIFICO; PINHEIRO, Acesso 30 mar.
2015).
Nessa linha de raciocínio, no que tange as dificuldades socioambientais,
para os haitianos no Brasil, elas são de inúmeras ordens, desde problemas com a
documentação, (respaldo para o exercício da cidadania) assistência, trabalho,
saúde, entre outros. Veja-se abaixo alguns aspectos:
Quanto a documentação, o Ministério da Justiça (Acesso, 30 mar. 2015)
estima que dos “cerca de 10 mil haitianos que entraram no Brasil em situação
irregular, mais de 6 mil já foram regularizados desde 2010. O restante dos
pedidos está em trâmite”. Cumpre lembrar que a Embaixada brasileira na cidade
de Porto Príncipe, “emitiu 1525 vistos permanentes especiais, por razões
humanitárias” entre 2012 e 2013.
1007
Também cumpre destacar que o Conselho Nacional de Imigração (CNIg)
em janeiro de 2012 aprovou inicialmente Resolução de número 97/12 um visto
especial humanitário. Ou seja, regula a concessão de um visto humanitário aos
haitianos, porém com o fechamento das fronteiras para os migrantes ilegais. A
resolução traz:
Art. 1º Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente
previsto no art. 16 da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões
humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termo do art.
18 da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade
do Estrangeiro.
Parágrafo único. Considera-se razões humanitárias, para efeito desta
Resolução Normativa, aquelas resultantes de agravamento de condições
de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido
naquele país em 12 de janeiro de 2010.
Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter
especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por
intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe.
Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos)
vistos por ano, correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões
por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas
63
disposições legais do País.
Noutra seara, lembra ainda Anne Paiva de Alencar (Acesso 10 abr. 2015):
Em relação à concessão do refúgio, o Coordenador afirmou que a
obrigação pátria com relação ao refúgio provém, majoritariamente, da
Convenção de 1951, bem como do Protocolo de 1967, somados à Lei n.
9.474/97. Conforme o Ofício: Em que pese a precariedade da situação
objetiva do Haiti, que se arrasta até os dias atuais, milhares de haitianos
continuam a viver em abrigos, contando com a comunidade internacional
para a reconstrução do país. Entretanto, à luz do direito internacional dos
refugiados, o atual drama humanitário do Haiti, fincado em pilares
naturais e econômicos, não é capaz de levar aos haitianos a serem
reconhecidos como refugiados. Eis que nem a Convenção das Nações
Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e tampouco o seu
Protocolo de 1967 estabelecem os desastres naturais e/ou dificuldades
econômicas como fatores capazes de ensejar o refúgio. [...] No caso dos
cidadãos haitianos o Estado brasileiro arquitetou uma proteção jurídica
complementar de viés humanitário. Posição essa, alias, muito elogiada
pelo ACNUR.
Conclui Anne Paiva de Alencar (Acesso 10 abr. 2015)::
No caso específico dos deslocados haitianos, o Governo Brasileiro, por
meio do CONARE, decidiu que estes não se enquadram do termo
‘refugiado ambiental’, tendo em vista que não há nenhuma convenção ou
acordo internacional sobre o tema ratificado pelo Brasil.
Porém, pode-se ver que existem esforços, tanto no ordenamento
nacional quanto no internacional, com o intuito de regulamentar este
termo, para que saia do mundo puramente doutrinário e tenha uma
aplicação prática na sociedade, tendo em vista que há a necessidade de
63
CNIg. Resolução Normativa n. 97 de 12 de janeiro de 2012. Dispõe sobre a concessão do visto
permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti.
1008
um instituto, com força internacional, que busque proteger os atingidos
por desastres ambientais.
É possível que não se possa determinar com certeza se os movimentos
de atravessar fronteiras sejam forçados ou voluntários, porém este não é
o elemento mais importante dentro do Direito Internacional. O aspecto
mais importante é avaliar a necessidade ou não destas pessoas
deslocadas receberem proteção internacional e o motivo desta
necessidade se converter em direito.
Já em janeiro de 2013 publicou nova Resolução Normativa de nº 106/13,
prorrogando por mais 12 meses o chamado “Visto especial humanitário a
haitianos”. Sendo agora estendida até janeiro de 2015. Adverte:
Com a intenção de abrir um canal formal e legal para a imigração
haitiana, em janeiro de 2012 a Resolução 97 do CNIg aprovou a
concessão de até 1.200 vistos permanentes, por ano, em caráter
especial, aos cidadãos haitianos em função dos problemas econômicos
e humanitários decorrentes do terremoto de 2010, sem prejuízo das
demais modalidades de vistos existentes. A validade da medida, de dois
anos, expiraria em janeiro de 2014 (MINISTERIO DO TRABALHO E
EMPREGO, Acesso 2 abr. 2015).
Essa modalidade de visto, destaca o Portal Brasil, é inédita e muito
elogiada, vez que, “sem consulta prévia ao governo brasileiro, é uma facilidade
inédita no mundo, elogiada oficialmente pela Organização Internacional para as
Migrações (OIM)”. Essa ação segue especificamente a Resolução Normativa
97/2012, “que exige apenas o passaporte válido e a ausência de antecedentes
criminais. A opção legal e simplificada desencoraja a atividade de "coiotes" na
travessia, por terra, para o Brasil” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr.
2015).
Quanto a Assistência Humanitária, é digno de nota, é que a Secretaria
Nacional de Justiça (SNJ), por meio do Departamento de Estrangeiros, tem
autorizado a permanência de estrangeiros, com base na Resolução Normativa
27.64
Já quanto ao Trabalho e do Emprego, o Ministério do Trabalho e Emprego
está emitindo Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Ou seja, “uma
estrutura móvel itinerante do Sistema Nacional de Emprego (Sine) cadastra os
trabalhadores, diretamente de Basiléia (Acre), principal porta de entrado dos
haitianos no Brasil, por meio do “sistema MTE Mais Emprego, que vão concorrer
64
“Além de haitianos, a política foi aplicada para angolanos, entre 1991 e 1992; iranianos da
comunidade bahai, em 1986; e aos colombianos, entre 2008 e 2009. Os haitianos estão vindo
para o Brasil por razões econômicas”. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015).
1009
às vagas captadas pelos 1,6 mil postos do Sine em todo o país”. (MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015).
Ironia não? concorrer com os brasileiros, quando sequer há forças, quando
sequer há condições iguais. Quando sequer se pode estabelecer parâmetros.
Ainda quanto ao Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que é outro
fator que demanda atenção, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, embora tenha reforçado um sistema para um melhor abrigamento dos
haitianos, ou seja muitas vezes as condições oferecidas são insuficientes, veja-se
a ressalva feita pelo Ministério de que “em 2012, o MDS repassou R$ 630 mil ao
governo do Acre para a realização destas ações, sendo R$ 360 mil em janeiro e
R$ 270 mil em novembro” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr. 2015).
Quanto à saúde, a situação apesar de grave, está sob controle, pois o
Ministério da Saúde, colocou à disposição um médico, e uma enfermeira da
(Força Nacional do Sistema Único de Saúde - SUS) e ainda um técnico da área
de Vigilância em Saúde, afim de avaliar a saúde dos haitianos, no que se refere a
situação epidemiológica, como doenças alimentares e relacionadas ao uso da
água e moradia (precárias). 65
Nesse sentido adverte o Papa Francisco, (Acesso 12 abr. 2015) após cinco anos:
O Papa Francisco afirmou que muito já foi feito para reconstruir o país,
mas ressaltou que “não podemos ignorar o fato de que ainda falta muito
o que fazer” [...] O terremoto de 12 de janeiro de 2010, cujo epicentro
ocorreu perto da capital, Porto Príncipe, e provocou mais de 200 mil
mortes e afetou pele menos três milhões e pessoas, destruiu grande
parte da infraestrutura do país e todos os hospitais da ilha. — Não há
verdadeira reconstrução sem a reconstrução da própria pessoa. Isto
pressupõe que cada pessoa no Haiti tenha o necessário do ponto de
vista material, mas também que ao mesmo tempo possa viver sua
liberdade, suas responsabilidades e sua vida religiosa e espiritual —
afirmou o Papa. O pontífice expressou gratidão “a todos os que, de
numerosas formas, acudiram o povo haitiano” após o terremoto. A
conferência, que teve como tema “A comunhão da igreja: memória e
esperança para o Haiti a cinco anos do terremoto”, foi realizada no
65
Nessa seara, quanto a Cooperação, as ações na área de saúde com o Haiti são o maior
programa de cooperação mantido pelo Brasil em todo o mundo. Cooperação nos âmbitos
bilateral e em parceria com Cuba. Foram reformados e reconstruídos dois laboratórios
especializados em vigilância epidemiológica. No âmbito trilateral (Brasil, Cuba e Haiti), três
hospitais Comunitários de Referência e um Instituto Haitiano de Reabilitação estão previstos
para serem entregues em 2013. O projeto inclui também a formação de profissionais de saúde.
O Brasil participou da Campanha Nacional de Vacinação no Haiti de 2012, com a doação
de vacinas e o fornecimento de consultoria técnica”. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Acesso 02 abr.
2015).
1010
Vaticano “pelo desejo do pontífice de manter viva a atenção sobre um
país que ainda sofre as consequências da catástrofe e para reiterar a
aproximação da Igreja com o povo haitiano nesta fase de reconstrução”.
Realidade cruel, passados cinco anos do terremoto, segundo a Agência
Brasileira de Comunicação, (Acesso 12 abr. 2015) a Anistia Internacional (AI), em
relatório, afirma que são mais de 170 mil haitianos, que ainda vivem em
acampamentos, observa-se:
Quatro (agora cinco) anos depois da tragédia que deixou 220 mil mortos
e 2,3 milhões de desabrigados, 171.974 pessoas ainda vivem em
campos de desabrigados no Haiti, segundo a Anistia Internacional (AI).
Em relatório, a entidade informa que a grande maioria dos acampados
continua em péssimas condições sanitárias. O terremoto arrasou o país,
que teve prédios públicos, hospitais, escolas e casas destruídos. [...]
Além de ajudar na reconstrução do país, o Brasil é o maior fornecedor de
tropas para a Missão de Paz das Nações Unidas (Minustah), que está no
66
Haiti desde 2004.
Vinculo este que se estabelece também com o direito ambiental, vez que,
principalmente nos alojamentos; acampamentos (provisórios) não é apenas o uso
da água, esgoto, lixo, do meio onde se encontram, é muito mais.
66
“As tropas têm o objetivo de garantir a estabilidade e segurança do país. Os militares brasileiros
trabalham também no desenvolvimento urbano com projetos de engenharia, como pavimentação
de ruas e iluminação pública, além de projetos sociais. O governo brasileiro investe ainda em
projetos de cooperação técnica, especialmente na área de saúde, com a construção de três
hospitais, dois laboratórios regionais, um centro de reabilitação, além da formação profissional
de 2 mil agentes de saúde, no valor de US$ 70 milhões. O Brasil assinou ainda um acordo para
a construção de uma usina hidroelétrica projetada pelo Exército Brasileiro, que fornecerá
eletricidade para mais de 1 milhão de famílias. A usina fica a 60 quilômetros da capital, Porto
Príncipe. De acordo com a Anistia Internacional, existem 306 acampamentos que alojam
desabrigados no país. Desse total, apenas 8% têm fornecimento de água; e 4%, gestão de
resíduos. Apenas 54% (166) acampamentos têm banheiros, o que representa um vaso sanitário
para cada 114 pessoas. Essas condições, informa a AI, expõem os desabrigados a numerosas
doenças. Desde o surto de cólera de outubro de 2010, houve 8.531 mortes provocadas pela
doença. Para 2014, o Ministério da Saúde haitiano prevê 45 mil novos casos. Além de lidarem
com a precariedade sanitária, os acampados convivem com a ameaça de remoção dos
acampamentos. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), 11% dos
campos de desabrigados haviam sido fechados à força até setembro de 2013, enquanto 45% da
população nessas áreas estavam sob risco de despejo. Segundo a OIM, 113.595 famílias de
desabrigados foram realocadas em abrigos temporários, enquanto mais de 54.758 conseguiram
se cadastrar em programas de subsídios de aluguéis, recebendo cerca de US$ 500 para alugar
uma moradia durante um ano e US$ 125 para iniciar atividades geradoras de renda. A Anistia
Internacional, no entanto, questiona a capacidade de os beneficiários desses programas
conseguirem se manter no longo prazo. De acordo com a entidade, uma avaliação de doadores
internacionais constatou que 60% das famílias que recebem complementação para o aluguel
acreditavam que não teriam recursos para manter a qualidade de acomodação após o fim dos
subsídios. Além disso, 75% das pessoas que se mudaram após o fim dos contratos estavam
morando em condições piores”. Agencia Brasil de comunicação. Disponível em:
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2014-01-12/quatro-anos-apos-terremoto-170-milhaitianos-ainda-vivem-em-acampamentos Acesso 12 abr. 2015.
1011
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como resultado parcial, percebe-se que o Comitê Nacional para
Refugiados (Conare) concluiu pela não concessão do refúgio, pois não há status
de refúgio para os haitianos no Brasil, (que exige que a pessoa seja vítima de
perseguição em seu país, entre outros). Para tanto, o Conselho Nacional de
Imigração, baixou uma Resolução Normativa de nº 97/12, criando o “visto por
razões humanitárias” (estendido até 2015) para esses imigrantes, e os números
vem aumentando, mesmo impondo-se limitações como: liberação de 1.200
vistos/ano e com validade de cinco anos. Tudo isso mostra que o caminho para
uma cidadania efetiva é longo, pois assim como os direitos humanos são
desrespeitados, basta ver alguns artigos da Declaração Universal, a exemplo do
Artigo XXI - [...] Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país,
diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos; [...] Toda
pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país; [...] A vontade
do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em
eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou
processo equivalente que assegure a liberdade de voto; Artigo XXV - [...] Toda
pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos
e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle. (ONU, Declaração Universal de
Direitos Humanos de 1948).
Também a Constituição Federal de 1988: Art. 1º A República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I
- a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único.
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
É a conjugação de princípios,
1012
direitos, garantias individuais e coletivas, é a cidadania formal, trazido nos artigos
1º, 5º, 6º e 14, muito embora falte a materialização/efetivação.
Veja-se: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade [...].
E também os direitos sociais do Art. 6º - São direitos sociais a educação, a
saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição. E por fim, o art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos
da lei.
Por fim, ainda como conclusão parcial, a verificação de que os imigrantes
haitianos, não podem votar por exemplo, e que também não veem respeitados os
direitos acima elencados, ou seja, direitos humanos, fundamentais e cidadania,
por não existir amparo jurídico efetivo para tanto. O que se sugere, é que seja
traçada uma política de amparo em âmbito nacional para os novos refugiados, ou
seja os “refugiados ambientais”, salvaguardando a estes os direitos, por uma
questão de humanidade.
REFERÊNCIAS
Agencia Brasil de comunicação. Disponível em:
<http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2014-01-12/quatro-anos-aposterremoto-170-mil-haitianos-ainda-vivem-em-acampamentos> Acesso 12 abr.
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1013
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2006.
1016
"DE LAS GARANTÍAS A LA RETRIBUCIÓN". ANÁLISIS SOBRE EL IMPACTO
DE LA LEY 19.055 EN EL SISTEMA PENAL JUVENIL URUGUAYO"
Daniel Díaz
RESUMEN: La ratificación de la Convención de los Derechos del Niño (CDN) por
el Estado Uruguayo implicó la obligación de actualizar la normativa interna,
abandonando un concepto de niño, niña y adolescente (NNA) como objeto de
tutela, para considerarlo un sujeto de derecho pleno. En el ámbito nacional
uruguayo la aprobación de la CDN trajo aparejado un importante proceso de
cambios normativos, cambios que iniciaron con la Acordada N° 7.236 de la
Suprema Corte de Justicia en 1994 y las ampliaciones realizadas en 1995 por la
Ley N° 16.707 de Seguridad Ciudadana. Posteriormente, el 7 de setiembre de
2004 es promulgado por el Poder Ejecutivo el Código de la Niñez y la
Adolescencia (Ley 17.823) que entró en vigencia a fines de setiembre de 2004.
(Morás, L. 2000). Todo este largo proceso de cambios que ha sido transitado en
el ámbito nacional e internacional ha contribuido a la consolidación de un derecho
penal juvenil de corte garantista, un derecho especifico aplicable a sujetos en
desarrollo, reconociendo diversos derechos y garantías a los adolescentes
sometidos a proceso. Es en este marco que las actuales reformas legislativas
introducidas por las leyes números 18.77167, 18.77768, 18.77869 y 19.05570; así
como la continua demanda de cambios sustanciales en el sistema nos presentan
un panorama complejo, que tuvo como punto más alto el plebiscito sobre la baja
de la imputabilidad penal71. De esta forma, el sistema penal juvenil basado en
la CDN parece haber comenzado un camino de cambios en donde se han
modificado derechos y principios claves de la CDN. Es por esta razón que se
hace necesario reflexionar y discutir sobre nuestras prácticas judiciales para
comprender como se desarrollan los procesos penales adolescentes. Si nos
centramos en el análisis de las últimas reformas legislativas realizadas al sistema
penal juvenil podemos observar que todas ellas de alguna manera han buscado
dar respuesta a una creciente demanda de seguridad ciudadana, dejando poco
67 Ley 18771 Creación del Sistema de Responsabilidad Penal Adolescente SIRPA
68 Ley 18777 Modificativa del artículo 69 del CNA, tipificando la tentativa en el delito de hurto.
69 Ley 18779 Creación del registro de antecedentes judiciales para Adolescentes en conflicto
con la ley penal
70 Ley 19055 Modificativa de los artículos 72 y 76 del CNA, estableciendo una pena mínima de un
año.
71 Luego de una prolongada campaña política que obtuvo las firmas requeridas el 26 de octubre de
2014 junto con las elecciones nacionales se plebiscitó una reforma constitucional a los efectos de
reducir la edad de imputabilidad penal a 16 años, la cual si bien no salió aprobada alcanzó el 47%
de los votos.
1017
espacio para el intercambio con otras disciplinas. Por otra parte, las actuales
políticas de seguridad ciudadana abordan solo una parte del problema haciendo
recaer el peso de la ley en los sectores más vulnerables de la sociedad,
dejando fuera de la discusión todo dato relacionado a las trayectorias de vida de
los adolescentes, elementos fundamentales para comprender los procesos de
exclusión social característicos de nuestras sociedades (Rosanvallon. P. 1995).
En este contexto es posible observar como la sanción de esta ley repercute en las
diferentes argumentaciones generando un endurecimiento de la respuesta penal.
PALABRAS CLAVES: Responsabilidad penal juvenil, política pública
derechos de infância
y
1 INTRODUCCIÓN
El presente artículo tiene por finalidad presentar parte de los resultados del
Proyecto de Investigación "La culpabilidad en el derecho penal juvenil y su
vinculación con la determinación judicial de la pena", desarrollado en el marco del
Programa de Iniciación a la Investigación Científica financiado por la Comisión
Sectorial de Investigación Científica (CSIC). Para la realización del mismo se
procedió a la recolección de información cuantitativa y cualitativa de fuentes
secundarias para el análisis de los expedientes judiciales de los cuatro Juzgados
Letrados de Adolescentes que funcionan en la Cuidad de Montevideo.
El objetivo de este trabajo consiste en determinar el impacto de la Ley Nº
19.05572 en la determinación judicial de la pena realizada por los Juzgados
Letrados de Adolescentes, tomando como período de estudio febrero – marzo de
2012 y febrero – marzo de 2013. Dado que la Ley 19.055 entró en vigencia en
febrero de 2013 se aseguró que a todos los casos del periodo 2013 les sería
aplicable dicha normativa. En una primera instancia, se procedió al análisis de los
datos socioeconómicos de los adolescentes que ingresaron al sistema penal
juvenil, en base a la información que surge de los informes técnicos agregados a
los expedientes judiciales. Para luego adentrarnos específicamente en el análisis
de las sentencias judiciales, estableciendo comparaciones entre los dos periodos,
previa y posterior a la entrada en vigencia de la Ley 19.055, en lo relacionado a la
72
Sancionada el 04 de enero de 2013.
1018
aplicación de medidas privativas y no privativas de libertad y el quantum de la
pena para los delitos de hurto y de rapiña73.
De la recolección de datos realizada se pudo acceder a un total de 131
Expedientes Judiciales correspondientes al año 2012 y 139 Expedientes
Judiciales correspondientes al año 2013. Lo que representó un total de 153
procesos infraccionales concluidos en el período 2012 y 166 en el período 2013,
dado que en algunos casos en un mismo expediente judicial se tramitaron más de
un proceso infraccional.
En lo que respecta a la Ley Nº 19.055 corresponde mencionar que la
misma modificó sustancialmente el régimen jurídico aplicable a los adolescentes
en conflicto con la ley, incorporando el artículo 116 bis al CNA. De esta forma, se
introdujeron diversas modificaciones para los delitos gravísimos74 (entre ellos el
de rapiña), cometidos por adolescentes de entre 15 y 17 años de edad, siendo las
siguientes las más relevantes: 1) El establecimiento de una pena mínima de un
año; 2) La obligatoriedad de la medida cautelar de internación provisoria; y 3) La
comunicación al Juzgado Penal competente a efectos de evaluar la presunta
responsabilidad de los representantes legales del adolescente. Por otra parte, en
su artículo 2 se establece la posibilidad de un procedimiento abreviado el cual
previa conformidad de las partes permite el dictado de sentencia definitiva en la
audiencia preliminar, disponiendo en la misma línea que la Ley 18.777, que no
será impedimento para el dictado de sentencia definitiva la falta de informes
técnicos.
73
Artículo 344 (Rapiña) El que, con violencias o amenazas, se apoderare de cosa mueble,
sustrayéndosela a su tenedor, para aprovecharse o hacer que otro se aproveche de ella, será
castigado con cuatro a dieciséis años de penitenciaría. La misma pena se aplicará al que,
después de consumada la sustracción, empleara violencias o amenazas para asegurarse o
asegurar a un tercero, la posesión de la cosa sustraída, o para procurarse o procurarle a un
tercero la impunidad. La pena será elevada a un tercio cuando concurra alguna de las
circunstancias previstas en el artículo 341 en cuanto fueren aplicables.
74
Delitos de: Homicidio, Lesiones gravísimas, Violación, Rapiña, Privación de libertad agravada,
Secuestro y cualquier otro que el Código Penal o las Leyes Especiales castiguen con una pena
cuyo límite mínimo sea igual o superior a seis anos de penitenciaria o cuyo límite máximo sea
igual o superior a doce años de penitenciaria.
1019
2 ANÁLISIS DE DATOS
2.1 Informes Técnicos
En lo relacionado a los informes técnicos podemos observar que en el
período 2012 fueron agregados 103 informes técnicos,
mientras que en el
período 2013 fueron agregados 105, con lo cual prácticamente no se encuentran
variaciones respecto a este punto. Igualmente es preciso mencionar que la Ley
18.77775 ya había dispuesto la posibilidad de dictar sentencia definitiva sin el
informe técnico, aunque el mismo debía agregarse con posterioridad.
2.1.1Edades
En relación a las edades podemos observar que de los adolescentes
sometidos a proceso en cada uno de los períodos un 72 % tenía entre 16 y 17
años en el período 2012 y un 69 % en el período 2013, siendo casi inexistentes
los procesos iniciados a jóvenes de 13 años de edad.
Edades
2012
2013
13
2 (2%)
3 (3%)
14
5 (5%)
7 (7%)
15
21 (20%)
22 (21%)
16
30 (29%)
37 (35%)
17
44 (43%)
36 (34%)
18
1 (1%)
-
Total
103 (100%)
105 (100%)
75
Sancionada el 15 de julio de 2011
1020
2.1.2 Sexo
En lo relacionado al sexo, podemos observar, en consonancia con los
antecedentes sobre el tema, un amplio predominio de adolescentes de sexo
masculino, representando un 93 % del total para el año 2012 y un 89 % del total
para el año 2013.
Sexo
2012
2013
Masculino
96 (93%)
93 (89%)
Femenino
7 (7%)
12 (11%)
Total
103 (100%)
105 (100%)
2.1.3 Antecedentes
Un dato significativo refiere a los antecedentes infraccionales de los
adolescentes sometidos a proceso. En ese caso se observa una concordancia
entre los dos períodos de estudio registrándose un 58% de adolescentes sin
antecedentes para el 2012 y un 59 % para el 2013.
Antecedentes
2012
2013
Sin Antecedentes
60 (58%)
62 (59%)
Con Antecedentes
43 (42%)
43 (41%)
Total
103 (100%)
105 (100%)
2.1.4 Nivel educativo
En este caso podemos observar que un 51% de los adolescentes a los
cuales se les inició proceso en el período 2012 no ingresaron a ciclo básico,
descendiendo levemente para el periodo 2013, en donde se ubico en el 48%.
Asimismo, surge un alto porcentaje de jóvenes con primaria incompleta,
representando un 26% para el 2012 y 28% para el 2013. A esto se le debe sumar
1021
que si bien un 35 % de los jóvenes accedieron a ciclo básico en el 2012 y un
39% en el 2013, de la información obtenida surge que mayoritariamente son
adolescentes con un importante rezago educativo, quienes en muchos casos
terminan por abandonar los estudios.
“Se inscribió en el liceo Nº 19 donde cursó 1º año de ciclo básico,
repitió, vuelve a cursar en dos oportunidades y finalmente abandona”
(Expediente 21/2013
Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –
Informe Técnico)
“En el plano educativo tiene aprobado el ciclo primario, repitiendo luego
dos veces 1º de liceo” (Expediente 42/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes
de Cuarto Turno – Informe Técnico)
“…curso hasta segundo año liceal el que abandonó sin terminar….”
(Expediente 19/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –
Informe Técnico)
“…….finalizada la escuela concurrió a tres centros de capacitación, no
pudiendo aportar identificación de los mismos y de los cuales habría sido
expulsado, a causa de su mal comportamiento……” (Expediente 48/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno – Informe Técnico)
En otros casos, podemos encontrar jóvenes que directamente no
han culminado sus estudios primarios, en donde en algunos casos ni siquiera se
ha adquirido lecto–escritura.
”XX ha cursado hasta 4º año de estudios primarios, alega tener dificultad
de aprendizaje. No sabe leer ni escribir” (Expediente 28/2013 - Juzgado
Letrado de Adolescentes de Tercer Turno –Informe Técnico)
“ “Según lo manifestado por la madre no habría terminado ciclo escolar y
no accedió a la lecto-escritura” (Expediente 22/2012 - Juzgado Letrado de
Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico)
“Cursó hasta 5 año de escuela y lo pasaron de grado por extra edad.
Expresa haber recursado primero en tres ocasiones”
(Expediente 28/2012 -
Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno – Informe Técnico)
Nivel educativo
2012
2013
1022
Primaria Incompleta
27 (26%)
29 (28%)
Primaria Completa
26 (25%)
21 (20%)
Ciclo básico Incompleto
36 (35%)
41 (39%)
Ciclo básico completo
5 (5%)
-
Bachillerato Incompleto
1 (1%)
-
UTU incompleto
8 (8%)
12 (11 %)
Otros
-
2 (2%)
Total
103 (100%)
105 (100%)
2.1.5 Consumo de sustancias psicoactivas
Sin lugar a dudas otro dato relevante que surge del análisis de los informes
técnicos,
refiere
presentaron
al
importante
porcentaje
de
adolescentes
que
no
un consumo problemático de sustancias psicoactivas. De esta
forma, un 70 % de los adolescentes no presentó un consumo problemático para
el período 2012, mientras que en el 2013 se ubicó en el 76%. En los casos en
donde se detectó un consumo problemático en su gran mayoría el mismo estuvo
vinculado al consumo de pasta base. Este consumo problemático da
cuenta
de un deterioro personal importante a nivel de salud, educación, vínculos
familiares etc., derivando en muchos casos en el abandono del hogar.
”De manera que se está frente a una adolescente cuyo acceso al sistema
educativo, de salud, de protección son mínimos e inexistentes. A esto hay que
agregar los daños que ha sumado el consumo problemático de drogas”
(Expediente 32/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno Informe Técnico)
”Al momento de ser arrestado el joven presentaba consumo problemático
de sustancias psicoactivas (PCB) permaneciendo en situación de calle”
(Expediente 20/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –
Informe Técnico)
“X presenta un consumo abusivo de PBC, por lo cual estuvo internado en
Api por el termino de un año, posteriormente se fuga y vuelve a
consumir”(…..)”Se trata de un joven que presenta situaciones de vida riesgosa,
1023
por permanecer un importante tiempo de su vida en situación de calle…..”
(Expediente 39/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –
Informe Técnico)
Consumo de sustancia
2012
2013
No consume
48 (47%)
50 (47%)
Consumo no problemático
24 (23%)
30 (29%)
Consumo problemático
31 (30%)
25 (24%)
Total
103 (100%)
105 (100%)
2.1.6 Núcleo familiar
Del análisis de los datos surge como relevante un aumento en el porcentaje
de familias integradas por más de tres niños, niñas y adolescentes, ubicándose en
un 52% para el período 2012 aumentando sensiblemente para el periodo 2013,
ascendiendo a un 74 % del total. Otro dato relevante refiere a la presencia de
hogares nucleares mono-parentales el cual asciende a un 30% para el período
2012 y 32% para el período 2013. En estas situaciones el adulto responsable en
la mayoría de los casos es la madre del joven, quien oficia como jefa de hogar.
“Según versión materna fue ella quien se ocupó de la crianza de sus
hijos. En relación al padre biológico no puede aportar datos….” (Expediente
46/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Informe
Técnico)
“Proviene de un núcleo familiar con muy bajos recursos económicos,
madre jefa de hogar, con trabajo precario, recibe ayuda del MIDES (tarjeta y
asignación
familiar)
siendo
por
periodo
este
su
único
sustento”
(Expediente 19/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –
Informe Técnico)
“Adolescente que integra un grupo familiar compuesto por su
madre”(….)”el padre de X no mantiene de acuerdo a lo referido vinculo con
su hijo…” (Expediente 37/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de
Cuarto Turno –Informe Técnico).
1024
Núcleo familiar
2012
2013
Sin núcleo familiar
2 (2%)
1(1%)
Hogar nuclear completo con 1 o 2 hijos
6 (6%)
3 (3%)
Hogar nuclear completo con 3 o 4 hijos
5 (5%)
11 (10%)
Hogar nuclear completo con más de 4 hijos
9 (9%)
9 (9%)
Hogar nuclear monoparental con 1 o 2 hijos
13 (12%)
7 (7%)
Hogar nuclear monoparental con3 o 4 hijos
9 (9%)
14 (13%)
Hogar nuclear monoparental con más de 4 hijos
9 (9%)
13 (12%)
20 (19%)
11 (10%)
6 (6%)
12 (11%)
1 (1%)
4 (4%)
3 (3%)
2 (2%)
9 (9%)
8 (8%)
edad a cargo
4 (4%)
7 (7%)
Situación de calle
7 (6%)
3 (3%)
Hogar extendido con 1 o 2 menores de edad a
cargo
Hogar extendido con 3 o 4 menores de edad a
cargo
Hogar extendido con más de 4 menores de edad
a cargo
Hogar compuesto con 1 o 2 menores de edad a
cargo
Hogar compuesto con 3 o 4 menores de edad a
cargo
Hogar compuesto con más de 4 menores de
Total
103(100%) 105 (100%)
2.1.7 Relación con el trabajo del núcleo familiar
En relación a este punto podemos observar un alto porcentaje de
antecedentes de trabajo por parte de los integrantes de los grupos familiares,
tanto en el período 2012 como 2013. Sin embargo, nos encontramos frente a un
trabajo de tipo informal, predominando la desprotección de normas laborales y de
seguridad social.
1025
“Los ingresos económicos del núcleo familiar provienen del trabajo de estos
adultos como feriantes en el rubro de vestimenta……” (Expediente 48/2013 Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe Técnico)
“XX de 16 años de edad, fecha de nacimiento 26/01/1997, reside con sus
abuelos paternos XX clasificador y XX empleada de limpieza en un almacén……”
(Expediente 51/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –
Informe Técnico)
“Ha trabajado de manera esporádica en changas de albañilería con su
padre” (Expediente 37/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Primer Turno
– Informe Técnico)
“todas las mujeres del núcleo familiar se desempeñan como empleadas
domesticas con retiro y feriantes siendo este el sustento económico familiar”
(Expediente 23/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno –
Informe Técnico)
Como dato relevante podemos encontrar la presencia de diferentes
prestaciones sociales provenientes del Estado (MIDES76 - BPS77) que en algunos
casos forma parte sustancial del ingreso de estos núcleos familiares.
“La familia reside en la zona del asentamiento Los Reyes con sustentos
desde el punto de vista económicos provenientes de asignaciones y tarjetas del
MIDES” (Expediente 30/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo
Turno – Informe Técnico)
“…..los recursos económicos del grupo familiar están compuestos por
transferencias otorgadas por organismos estatales en el marco de políticas
sociales dirigidas a grupos vulnerables, asignaciones familiares e ingresos
ciudadanos, tarjeta de compras”(Expediente 42/2013 - Juzgado Letrado de
Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico)
“Los ingresos económicos de la familia provienen de tareas de reciclaje que
realiza el Sr. XX y de asignaciones de las hijas menores de edad” (Expediente
24/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno – Informe
Técnico)
76
77
Ministerio de Desarrollo Social
Banco de Previsión Social
1026
Relación con el trabajo NF
2012
2013
Sin antecedentes
14 (14%)
17 (16%)
Con Antecedentes
89 (86%)
88 (84%)
Total
103(100%)
105 (100%)
2.1.8 Antecedentes infraccionales del núcleo familiar
En lo relacionados a los antecedentes penales o infraccionales de los
integrantes del núcleo familiar podemos observar un alto porcentaje de casos sin
antecedentes de ningún tipo. Habiendo sin embargo un 27 % de casos con algún
antecedente penal o infraccional para el período 2012 y un 29 % para el período
2013.
En relación a este punto es posible encontrar diferentes datos en donde el
vínculo con el sistema penal forma parte de las vivencias del núcleo familiar,
teniendo consecuencias desde el punto de vista afectivo y económico.
“En el 2004 la Sra. XX estuvo recluida durante nueve meses por omisión de
los deberes inherentes a la patria potestad, según sus expresiones fue en el
momento que todos los chicos se le fueron a la calle y luego todos (excepto los
dos menores actualmente a su cargo) han estado en diversos centros tanto de
amparo como de privación de libertad. En relación a su padre dice que no lo
conoce” (Expediente 28/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto
Turno –Informe Técnico)
“Joven que se encuentra en extrema vulnerabilidad en lo que respecta a la
situación familiar su madre falleció hace 10 años y su padre ha estado recluido en
el COMCAR” (…..)” XX cuanta con cuatro hermanos de 5, 9,10 y 15 años de
edad” (Expediente 41/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –
Informe Técnico)
“Convivía con su tía ya que su madre se encuentra presa en el CNR. Hay
otros integrantes de la familia también privados de libertad” (Expediente 18/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno – Informe Técnico)
1027
“XX cursa embarazo sin control en el segundo trimestre. El padre de la
criatura, pareja de la joven, ejerció sobre la misma violencia domestica, razón por
la cual la madre tuvo que intervenir en defensa de su hija” (Expediente 23/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno – Informe Técnico)
Antecedentes infraccionales del NF
2012
2013
Sin antecedentes
75 (73%)
75 (71%)
Con un integrante con antecedentes
25 (24%)
19 (18%)
Con hasta tres integrantes con antecedentes
3 (3%)
11 (11%)
Totales
103 (100%)
105 (100%)
2.1.9 Zonas de residência
En relación a las zonas de las cuales provienen los adolescentes sometidos
a procesos se optó por agruparlos tomando como criterio principal la distribución
en Comunales Zonales78,
realizando modificaciones a efectos de no repetir
barrios y unir algunas zonas con características socioeconómicas similares. La
información relativa a las zonas se obtuvo del domicilio que figura en los informes
técnicos, complementando este dato con las actas labradas en sede policial. Es
así que se procedió a dividir la cuidad de Montevideo en 17 zonas, sumándole a
ello la zona 18 correspondiente al Departamento de Canelones y la Zona 19 que
refiere a adolescentes en situación de calle. De la distribución surgen varios datos
relevantes, el primero de ellos refiere a una marcada concentración de
adolescentes provenientes de las zonas 10, 16, 13, 9,
8 y 7 las cuales
representaron un 69 % del total para ambos períodos. Estas zonas comprenden
barrios a los cuales podemos caracterizar como de bajo nivel socioeconómico,
tales como, Casavalle, La Teja, Cerro, Cerro Norte, Maroñas, Piedras Blancas,
Punta de Rieles, Manga, Carrasco Norte, Cruz de Carrasco, Malvín Norte, entre
otros.
78
Lista
de
Centros
Comunales
www.montevideo.gub.uy/institucional/centros-comunales
Zonales
Montevideo:
1028
Por otra parte, muchas veces si bien se menciona el domicilio del
adolescente, este dato se presenta matizado por la alternancia entre el hogar y la
calle, surgiendo un cotidiano marcado por el relacionamiento con el grupo de
pares.
“XX se encuentra en calle todo el día con un grupo de pares con
quienes realiza actividades recreativas y otras que lo vulneran y exponen”
(Expediente 34/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer Turno –
Informe Técnico)
“a los 12 años abandona su hogar, argumentando según sus palabras (no
me gusta que me manden) Al mes de convivir en casa de amigos, vuelve con sus
padres” (Expediente 24/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo
Turno –Informe Técnico)
Otras veces, el domicilio se presenta como un lugar en donde los referentes
adultos no asumen un rol preponderante, en estos casos nos encontramos frente
a jóvenes que alternan su niñez y adolescencia entre Hogares de Amparo de
INAU y la calle.
”………..a la edad de 9 años XX se va de su casa, junto a su hermano,
pasando a vivir en situación de calle. Es a partir de este momento que el joven
comienza a alternar su permanencia entre centros de protección de INAU y la
casa de los abuelos, para luego retornar a su situación de calle inicial”
(Expediente 20/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –
Informe Técnico)
“con una larga trayectoria institucional, ha estado en prácticamente todos los
centros, iniciando su institucionalización en la infancia” (Expediente 15/2012 Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico)
“XX no cuenta con un grupo familiar de referencia y ante lo dispuesto en
relación a su situación de amparo” (Expediente 31/2012 - Juzgado Letrado de
Adolescentes de Segundo Turno –Informe Técnico)
Por último, es posible encontrar algunos casos en donde directamente se
ubica al adolescente e incluso a su familia en situación de calle. En estos casos
nos encontramos frente a jóvenes que han estando en esta situación hace varios
años.
1029
“La madre y sus hijos vivían desde hacía ya varios meses en situación de
calle con todo lo que ello implica” (Expediente 32/2013 - Juzgado Letrado de
Adolescentes de Primer Turno - Informe Técnico)
“XX
de
16
años
de
edad”(……)”se
encuentra
en
situación
de
calle”(…..)”Expresa que desde hace algunos años no reside con su madre en
virtud que la pareja de esta ejercía maltrato sobre él” (Expediente 30/2013 Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno –Informe Técnico)
“….la joven ingresa a INAU en calidad de amparo”(…….)”A esto se agrega
su prolongada situación de calle que le dificulta la modificación de sus conductas
infractoras” (Expediente 20/2012 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Tercer
Turno –Informe Técnico)
Zona
2012
2013
1
2 (2%)
6 (6%)
2
2 (2%)
6 (6%)
3
3 (3%)
2 (2%)
4
7 (7%)
-
5
-
1 (1%)
6
-
-
7
9 (9%)
8 (7%)
8
18 (17%)
6 (6%)
9
12 (12 %)
10 (9%)
10
15 (14%)
20 (19%)
11
2 (2%)
1 (1%)
12
3 (3%)
4 (4%)
13
7 (7%)
12 (11%)
14
2 (2%)
2 (2%)
15
1 (1%)
-
16
11 (10%)
18 (17%)
17
2 (2%)
3 (3%)
18
1 (1%)
3 (3%)
19
6 (6%)
3 (3%)
1030
Total
103 (100%)
105 (100%)
2.2 Análisis de las Sentencia
En relación a este punto se pudo obtener información acerca de un total de
153 sentencias para el período 2012 y 166 sentencias para el período 2013.
2.2.1Bien jurídico protegido
Si analizamos los datos obtenidos en relación al bien jurídico protegido por
la norma podemos observar una coincidencia entre ambos periodos de estudio,
siendo el bien jurídico propiedad el que ocupó el mayor porcentaje de casos.
Bien jurídico
2012
2013
Propiedad79
140 (91%)
144 (86%)
Persona Física
5 (3%)
9 (5%)
Vida
3 (2%)
6 (4%)
Sexuales
1 (1%)
2 (1%)
Ley de estupefacientes
4 (3%)
1 (1%)
Otros
0
4 (3%)
Totales
153 (100%)
166 (100%)
2.2.2 Tipificación de los delitos
De los datos obtenidos se puede observar un amplio predominio de los
delitos de hurto y rapiña, siendo como ya se mencionó la propiedad el bien
jurídico tutelado con mayor intensidad.
Si tomamos para cada período las
diferentes modalidades de hurto y rapiña (incluyendo la tentativa) podemos
observar que en el período 2012 los hurtos se ubicaron en un 31%, alcanzando
un 37% para el 2013. En el caso de la rapiña las mismas se ubicaron en un 53%
para el período 2012, descendiendo a un 44% para el 2013.
79
En este caso refiere a los delitos regulados por el Titulo XIII del Código Penal Uruguayo,
mayoritariamente a los delitos de hurto, rapiña (en sus diversas modalidades) y receptación.
1031
De esta forma el 84 % (2012)
y el 81 % (2013) de las tipificaciones
realizadas por los Juzgados Letrados de Adolescentes de Montevideo refirió
al delito de hurto y rapiña.
Tipificación
2012
2013
Hurto simple
26 (17%)
42 (25%)
Rapiña simple
41 (27%)
45 (27%)
Hurto complejo80
2 (1%)
2 (1%)
Rapiña compleja81
21 (14%)
13 (8%)
Hurto tentado
20 (13%)
19 (11%)
Rapiña tentada
18 (12%)
15 (9%)
Receptación
12 (8%)
7 (4%)
Daño
-
1 (1%)
Lesiones simple
2
3
Lesiones complejas82
-
4
Homicidio
1
4
Homicidio tentado
3
2
Tenencia no para consumo
2
-
Estupefacientes
2
1
Violencia privada
1
2
Amenazas
1
-
Atentado violento al pudor
1
-
Violación
-
2
Desacato
-
1
Encubrimiento
-
2
Falsificación de C.I
Total
1
153
166
80
Para esta agrupación se tuvo en cuenta lo dispuesto en el Título IV del Código Penal Uruguayo
referente al concurso de delitos y delincuentes.
81
Idem
82
Idem
1032
2.2.3 Tipo de medida cautelar
Dentro del período de estudio y en consonancia con los antecedentes
sobre el tema, la medida cautelar más utilizada por los Juzgados Letrados
de Adolescentes de Montevideo fue la internación provisoria, alcanzando
un 42 % para el período 2012, y un 49% para el 2013. Este aumento del
7% puede tener relación con los cambios introducidos por la Ley 19.055, la
cual dispuso para el delito de rapiña (entre otros) cometido por jóvenes de
entre 15 y 17 años la obligatoriedad de la internación provisoria como
medida cautelar.
Tipo de medida cautelar
2012
2013
Internación provisoria
65 (42%)
81 (49%)
Obligación de concurrir al tribunal
32 (21%)
40 (24%)
Arresto domiciliario
36 (23%)
14 (8%)
Sin medida
18 (12%)
28 (17%)
Prohibición de salir del país
1 (1%)
-
Prohibición de acercarse
1 (1%)
3 (2%)
Totales
153
166
2.2.4 Tipo de medida definitiva
En relación al tipo de medida aplicada por los Juzgados Letrados de
Adolescentes
de
Montevideo
surge
un
alto
porcentaje
de
medidas
privativas de libertad, las cuales alcanzaron un 46 % para el período 2012 y un
55 % para el período 2013. Al igual que en el caso de las medidas cautelares
podemos observar un aumento en la aplicación de medidas de privación de
libertad de un 9%,
aquí también es factible que dicho aumento refiera al
establecimiento de una pena mínima de un año para el delito de rapiña cometido
por adolescentes de entre 15 y 17,
dado que para estos casos no está
1033
permitido al Juez de la causa la utilización de medidas alternativas a la privación
de libertad.
Tipo de medida rapiña simple
2012
2013
Privativa de libertad
23 (56%)
42 (93%)
No privativa de libertad
18 (44%)
383 (7%)
Total
41 (100%)
45 (100%)
Tipo de medida aplicada
2012
2013
Privativa de libertad
70 (46%)
91(55%)
No privativa de libertad
82 (53%)
71(43%)
Sin medida
1 (1%)
4 (2%)
Total
153 (100%)
166(100%)
Si analizamos el tipo de medida definitiva para el delito de rapiña podemos
observar que efectivamente para los casos de rapiña simple la aplicación de
medidas privativas paso de un 56% en el período 2012 a un 93% en el 2013,
habiéndose registrado solo tres casos de medidas no privativas las cuales fueron
cometidas por jóvenes menores de 15 años a los cuales no le es aplicable la Ley
19.055.
En el caso de rapiña compleja podemos observar que en el 100% de los
casos fue aplicada una medida privativa de libertad para el periodo 2013,
claramente como consecuencia de la aplicación de la Ley 19.055.
Tipo de medida rapiña compleja
2012
2013
Privativa de libertad
15 (71%)
13 (100%)
No privativa de libertad
6 (29%)
-
Total
21 (100%)
13 (100%)
83
Delito de rapiñas realizado por jóvenes de 13 y 14 años a los cuales no le fue aplicable la Ley
19.055.
1034
Si analizamos el tipo de medida para el delito de hurto simple, delito al
cual no le es aplicable la Ley 19.055, podemos observar que en el período 2012
la medida privativa de libertad se ubico en un 42% descendiendo para el período
2013 a un 33 %. En estos delitos es donde se observa un mayor uso de medidas
no privativas de libertad, aunque sin lugar a dudas la utilización de medidas
privativas de libertad no deja de ser alta, mas si tenemos en cuenta que este tipo
de delitos no implica el uso de violencia física.
Tipo de medida hurto simple
2012
2013
Privativa de libertad
11 (42%)
14 (33%)
No privativa de libertad
15 (58%)
28 (67%)
42
Total
26 (100%)
(100%)
2.2.5 Duración de las medidas en meses
2.2.5.1Rapiña
En el caso del delito de rapiña se puede observar como claramente la Ley
19.055 ha repercutido no solo en la no aplicación de medidas alternativas, sino
también en un aumento del tiempo de internación. Aunque es necesario señalar
que el tiempo de internación para la rapiña simple se ubicó en los 13 meses, con
lo cual estamos casi en el mínimo de pena establecida por la Ley 19.055. Sin
perjuicio de ello,
si analizamos los casos de rapiña compleja vemos que la
duración de la pena promedio aumenta hasta los 16 meses. De esta forma, en el
caso de rapiña simple podemos observar respecto del 2012 un aumento de 6
meses promedio en la duración de la medida privativa de libertad. Para el caso
de rapiña compleja la duración de la pena paso de 11 meses promedio a 16
meses, aumentando en 5 meses promedio la duración de la medida.
Promedio de pena PL84
2012
2013
Rapiña Simple
7±1
13±1
84
Privativa de libertad
1035
Rapiña Compleja
11±4
16±3
Si analizamos el mínimo y el máximo de pena establecida en cada período
para el delito de rapiña podemos observar que para la rapiña simple el mínimo
para el 2012 fue 4 meses, notoriamente menor que en el período 2013 en donde
se ubicó en 12 meses. Si tomamos el valor máximo podemos observar que el
mismo pasó de 9 meses para el período 2012 a 16 meses para el período 2013.
Rapiña simple PL
2012
2013
Mínimo
4
12
Máximo
9
16
Si analizamos los casos de rapiña compleja podemos observar como dato
relevante que en el período 2012 el máximo para este delito se colocó en 19
meses pasando a 24 meses en el 2013. Registrando un aumento significativo en
el mínimo para cada período pasando de 3 meses en el 2012 a 12 meses en el
2013.
Rapiña compleja PL
2012
2013
Mínimo
3
12
Máximo
19
24
Por otra parte y como consecuencia directa de la aplicación de la Ley
19.055 casi no se encontraron casos de aplicación de medidas no privativas para
el período 2013 a diferencia del período 2012 en donde la misma se ubico en 6
meses para la rapiña simple y 7 meses para la rapiña compleja.
Promedio de pena NPL85
2012
2013
Rapiña Simple
6±1
6±186
Rapiña Compleja
7±1
85
No Privativa de libertad
Refiere a delitos de rapiñas realizado por jóvenes de 13 y 14 años a los cuales no le fue
aplicable la Ley 19.055.
86
1036
En los casos de aplicación de medida no privativa de libertad para el delito
de rapiña simple y compleja para el año 2012, podemos observar los siguientes
mínimos y máximos:
Rapiña simple NPL
2012
Rapiña compleja
2012
NPL
Mínimo
4
Mínimo
6
Máximo
8
Máximo
7
2.2.5.2 Hurto
En el caso del delito de hurto simple podemos observar que la duración de
la medida privativa de libertad se mantuvo constante
ubicándose en ambos
período en los 4 meses de duración.
Promedio de pena PL
2012
2013
Hurto simple
4±1
4±1
Al igual que en el caso anterior la duración de las medidas no privativas de
libertad tampoco tuvo cambios en ambos período ubicándose en 5 meses de
duración.
Promedio de pena NPL
2012
2013
Hurto simple
5±1
5±1
En los casos de los mínimos y máximos de duración de la medida privativa
de libertad para el delito de hurto simple no se observar variaciones significativas.
Hurto simple PL
2012
2013
Mínimo
3
3
Máximo
5
6
1037
En el caso de la duración de la medida no privativa de libertad el mayor
aumento lo encontramos en el máximo de la duración el cual se colocó en 6
meses para el período 2012 alcanzando los 10 meses para el período 2013.
Hurto simple NPL
2012
2013
Mínimo
4
2
Máximo
6
10
2.2.6 Tipo de procedimiento
Como ya fuera mencionado, otra de las modificaciones de la Ley 19.055
fue la posibilidad del juicio abreviado, en donde previo consentimiento de las
partes es posible dictar sentencia en la audiencia preliminar. En estos casos
expresamente se prescinde de los informes técnicos con los cual la decisión
sobre la responsabilidad del adolescente deja fuera cualquier posibilidad de
ingresar a los datos sociales del adolescente sometido a proceso. Igualmente de
los datos recabados surge que este tipo de procedimientos tuvo una baja
aplicación habiéndose llevado adelante en el 22 % de los casos.
2.2.7 Valoración de datos sociales
De los datos recabados se pudo observar que en un 20 % de los casos para
el período 2012 y un 56 % para el período 2013 los datos sociales no formaron
parte de la argumentación realizada por los Juzgados Letrados de Adolescentes.
Alcanzando un 78 % para el período 2012 y un 43% para el período 2013 los
casos en los que si bien se los menciona no se los vincula directamente con la
determinación de la responsabilidad penal, sino que se los incorpora de manera
descriptiva sin realizar ningún tipo de valoración. De esta forma, resulta muy
significativa la poca relevancia dada a los datos sociales en las argumentaciones
realizadas por los Juzgados, aunque esto no quiere decir que los mismos no
influyan indirectamente en las opciones del Juez de la causa, aunque ello no se
refleje en la argumentación realizada.
1038
Valoración de datos sociales
2012
2013
No los valora
31 (20%)
93 (56%)
119 (78%)
72 (43%)
1 (1%)
1 (1%)
pena
2 (1%)
-
Total
153 (100%)
166 (100%)
Los menciona pero no los
valora
Los valora para aumentar la
pena
Los valora para rebajar la
Si tomamos en cuenta las diferentes argumentaciones realizas por los
Juzgados se puede observar que la argumentación de las sentencias se
encuentran fuertemente vinculadas a las circunstancias del delito, por ejemplo la
utilización de arma de fuego, pluriparticipacion, nocturnidad, confesión,
primariedad etc. En definitiva, las agravantes y atenuantes reguladas por el
Código Penal de Adultos resultan argumentos recurrentes en la fundamentación
de las sentencias para ambos periodos de estudio, con la salvedad de que en el
período 2013 la referencia a la Ley 19.055 es un argumento significativo en torno
al cual se determina el quantum de la pena.
“… se vio circunstanciado por la pluriparticipacion y la nocturnidad y se ve
mitigada por la primariedad absoluta de las tres y la confesión de XX y XX
valoradas en vía análogas artículos 69 nal. 1 art. 72, lit. 4 del CNA y art. 34, 46
inc. 13, 60, 316 y 322, 341 inc. 4 y 344 del C Penal” (Expediente 48/2013 Juzgado Letrado de Adolescentes de Segundo Turno –Sentencia)
“………una infracción
gravísima calificada como rapiña en carácter de
autores que se ve atenuada por la confesión, primariedad absoluta, y
circunstanciada por la nocturnidad, la tenencia de arma de fuego y la
pluriparticipacion…..” (Expediente 18/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de
Segundo Turno – Sentencia)
”…..el obrar encarta, en una infracción grave, calificada como rapiña en
grado de tentativa, en carácter de autor, que se ve circunstanciada por la
1039
pluriparticipacion, al haber obrado con otros compañeros, además se ve atenuada
por la confesión en vía análoga….” (Expediente 23/2012 - Juzgado Letrado de
Adolescentes de Segundo Turno – Sentencia)
“…. los hechos cometidos, la problemática del adolescente quien ya cuenta
con antecedentes que requieren para su verificación el uso de violencia y la
finalidad perseguida por la medida socioeducativa….”(….)hacen conveniente
disponer una medida privativa de libertad”
(Expediente 47/2012 - Juzgado
Letrado de Adolescentes de Primer Turno – Sentencia)
“…… la medida sancionatoria actualmente impuesta por el artículo 116 bis
del CNA en la redacción dada por la Ley 19.055 vigente al 01.02.2013 aconsejan
imponer la medida privativa de libertad solicitada por las partes….” (Expediente
43/2013 - Juzgado Letrado de Adolescentes de Cuarto Turno – Sentencia)
3 REFLEXIONES FINALES
Del análisis de los datos recabados se concluye que los adolescentes
sometidos a proceso (en ambos períodos de estudio) provienen de zonas las
cuales se caracterizan como de bajo nivel socioeconómico, observándose un
fuerte predominio de barrios como Casavalle, La Teja, Cerro, Cerro Norte,
Maroñas, Piedras Blancas, Punta de Rieles, Manga, Malvín Norte, etc. Por otra
parte, se observa que mayoritariamente son adolescentes de entre 16 y 17 años,
siendo casi inexistente los procedimientos iniciados a adolescentes de 13 y 14
años de edad. En lo relativo al nivel educativo, los datos analizados sugieren, que
estos adolescentes están caracterizados por un nivel de formación muy bajo, en
donde la mayoría de ellos apenas finalizó primaria, constatándose casos de
adolescentes que no adquirieron conocimientos de lecto-escritura. En relación al
núcleo familiar se observa un amplio porcentaje de familias integradas por tres o
más niños, niñas y adolescentes a cargo. Otro dato relevante refiere a la
presencia de hogares nucleares mono-parentales el cual asciende a un 31% para
el período 2012 y un 32 % para el período 2013.
Estos datos sugieren, en consonancia con los antecedentes sobre el tema,
que nos encontramos frente a jóvenes caracterizados por la vulneración de sus
1040
derechos, ya sea desde un punto de vista económico como educativo. De esta
forma y si bien se debería profundizar en este análisis, podemos observar como la
vulneración de los derechos de los jóvenes es un dato constatable en el marco del
procedimiento penal juvenil.
En lo relacionado a la tipificación de las conductas se aprecia que en ambos
períodos de estudio, el hurto y la rapiña, fueron los delitos más frecuentes, siendo
la propiedad el bien jurídico mayormente tutelado por los Juzgados Letrados de
Adolescentes. En relación a la aplicación de la Ley 19.055 se observa que la
misma trajo aparejado, como era de esperar, un aumento en la aplicación de las
medidas privativas de libertad. Si analizamos el caso del delito de rapiña, esto
significó la no aplicación de medidas alternativas para los adolescentes de entre
15 y 17 años. Por otra parte, existió un aumento significativo en lo que respecta a
la duración promedio de la medida privativa de libertad la cual paso de 7 (2012) a
13 meses (2013) para la rapiña simple y de 11 (2012) a 16 meses (2013) para la
compleja. Asimismo, surge como dato significativo, que al ubicarse el promedio de
pena para la rapiña simple en 13 meses el mismo estuvo apenas por arriba de los
12 meses mínimos que dispuso la Ley 19.055. Por último, es importante señalar
que este aumento del promedio de pena para el delito de rapiña no parece haber
tenido un efecto reflejo sobre el delito de hurto,
ya que para este delito el
promedio de duración de la pena se mantuvo estable.
Como ya se mencionó, uno de los aspectos centrales que surgen de los
datos recabados tiene relación con la escasa importancia que tuvieron los datos
sociales aportados por los informes técnicos. Si analizamos las diferentes
argumentaciones realizadas por los Juzgados Letrados de Adolescentes de
Montevideo se puede observar claramente que las argumentaciones que figuran
en las diferentes sentencias (en ambos períodos de estudio) no se detienen en
estos aspectos. Las mismas se centran fundamentalmente en la discusión de
aspectos estrictamente jurídicos, como la descripción típica de la conducta, la
consumación del delitos y fundamentalmente en las atenuantes y agravantes de
las diferentes conductas delictivas. Sin perjuicio de ello, esto no quiere decir
necesariamente que los datos sociales no influyan indirectamente en las opciones
del Juez de la causa, aunque no se refleje en la argumentación realizada.
1041
En lo relacionado a las agravantes se observa que en algunos casos, las
mismas son aplicadas directamente a efectos de determinar la sanción,
recurriendo a la analogía con el derecho penal de adultos. Sin embargo en otros
casos, si bien se prescinde de la consideración de agravantes en aplicación del
artículo 7387 del CNA se recurre a aspectos relacionados con las circunstancias
del delito, como por ejemplo el uso de armas de fuego o la violencia empleada,
las cuales junto con los antecedentes tienden a ser los argumentos centrales en
torno a los cuales gira la determinación de la pena. Dentro de este esquema, la
primariedad y la confesión adquieren una relevancia fundamental a la hora de
rebajar la sanción en concreto.
De esta forma, la operativa de nuestros juzgados, aparece fuertemente
influenciada por una concepción positivista del derecho, que tiende a centrar el
eje de la discusión jurídica en la tipicidad de la conducta; así como en elementos
vinculados al delito. Si tomamos en cuenta los datos empíricos recabados en el
presente trabajo es factible observar como el principio de estricta legalidad,
vinculado a aspectos delimitados por las normas jurídicas,
tipicidad de las conductas delictivas,
como lo son la
así como los atenuantes y agravantes,
forman una parte sustancial del trabajo de los jueces. Esta problemática en el
abordaje de lo social está relacionado con una fuerte matriz positivista
predominante en nuestro derecho, la cual no solo debe analizarse en lo
relacionado al trabajo de los operadores jurídicos, sino que antes de ello, en la
formación profesional de abogados y jueces.
Dentro del positivismo jurídico es sin duda Hans Kelsen la referencia teórica
fundamental, para quien el jurista de la teoría pura del derecho debe ser un
conocedor de las normas jurídicas, no siendo trabajo de la ciencia jurídica, ni del
jurista en particular la construcción del derecho, no correspondiendo su crítica, ni
la investigación de sus orígenes, causas o finalidades. (Chamón, L. 2005) Dentro
de este contexto la teoría pura del derecho está enfocada en la construcción de
87
Artículo 73. El Juez deberá examinar cada uno de los elementos constitutivos de la
responsabilidad, de las circunstancias que eximen de la aplicación de medidas o que aminoren el
grado de las infracciones y el concurso de infracciones e infractores, tomando en cuenta los
preceptos de la parte general del Código Penal, de la Ley Nº 16.707, de 12 de julio de 1995, la
condición de adolescentes y los presupuestos de perseguibilidad de la acción.
1042
procedimientos de interpretación de las normas jurídicas, utilizando como técnica
la interpretación gramática de las normas (Bobbio, N., Bovero, M. 1986),
convirtiendo a los códigos en dogmas que regulan y mantienen un determinado
orden; tomando en cuenta la realidad social solo de forma subsidiaria y en la
medida que una norma jurídica nos remite a ella. (Campagna, E. 2008)
Esta forma de comprender el derecho, diferenciado de cualquier elemento
extrajurídico y asumido de una forma avalorativa, ha sido cuestionado desde
diferentes corrientes teóricas planteando la insuficiencia del positivismo jurídico
para explicar correctamente el funcionamiento del sistema jurídico; así como para
dar respuesta a los problemas sociales en el estado actual de desarrollo del
modelo capitalista.
Dentro de este esquema, la relación entre lo jurídico y lo social ocupa un
lugar central ya que tal como lo expresa Bourdieu “El derecho es la forma por
excelencia del discurso actuante capaz por virtud propia de producir efectos”.
(Bourdieu, P. 2000).
Esta vinculación entre lo jurídico y los social ha sido abordado por diferentes
autores, quienes han indagado acerca de los cambios en el derecho en un mundo
caracterizado por la complejidad, analizando la vinculación entre lo jurídico, lo
social y lo político, realizando críticas a los planteos de Hans Kelsen (Kelsen, H.
1979) o H.L.A Hart (Hart, H. 1981) quienes proponían una clara distinción entre
estas esferas de análisis. Dentro de estos aportes debemos mencionar a Niklas
Luhmann, Günther Teubner, Jurgen Habermas (Richard, N., David, S. 2006),
Boaventura De Sousa Santos (De Sousa Santos, B., 2009), entre otros. En el
campo del derecho también podemos observar diferentes planteo críticos de una
concepción del derecho asumida bajo una premisa positivista, siendo fundamental
los planteos de Luigi Ferrajoli (Ferrajoli, L. 2009), Joaquín Herrera Flores (Herrera,
J. 2008) y dentro de la Escuela Critica del Derecho Norteamericana los aportes de
Duncan Kennedy (Kennedy, D. 1996).
En este contexto, la valoración de los datos sociales del joven puede tener
repercusiones no solo en la labor del juez, sino que puede servir como guía al
legislador a la hora de la formulación de normas generales inspiradas en un
criterio de justicia (Recasens - 1974, pág. 223), propiciando medidas que tiendan
1043
a la restitución de derechos vulnerados del adolescentes, pero para ello la
superación de premisas positivistas se vuelve fundamental. En los hechos no se
trata de desconocer la enorme tarea que ha cumplido la consagración normativa
de los derechos, sino de asumir que es insuficiente para dar cuenta de los
procesos sociales que se ocultan detrás de ella.
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1045
EUTANÁSIA: DILEMA MORAL EM PERSPECTIVA FILOSÓFICA
Maria Carolina Santini Pereira da Cunha,
RESUMO: O ensaio traz um enfoque racional da eutanásia, seguindo um rumo
imparcial desta conduta, sob aspectos penal e médico, contrapondo teorias
filosóficas favoráveis e desfavoráveis. Opta-se pelo raciocínio dedutivo, trazendo
casos internacionais, conduzindo o estudo filosófico, aderindo, por fim, a uma
visão humanista. A discussão, original e inovadora, aborda correntes defensoras
dessa prática, como o Libertarismo e o Utilitarismo, em contraposição a filósofos
como Immanuel Kant, Michael Sandel e Aristóteles, no intuito de ponderar os dois
lados da questão, sob visões peculiares e incomuns.
PALAVRAS-CHAVE: eutanásia; correntes filosóficas; bioética.
1 INTRODUÇÃO
Os avanços da medicina proporcionam situações nas quais urgem
aprofundar discussões sobre as opções: sejam individuais, sejam coletivas.
Dentre elas, uma muito discutida, ao menos no âmbito da Bioética, é a eutanásia.
Tema intrigante, atual e desafiante pelo próprio objeto de pesquisa, a eutanásia
continua em reflexão no meio acadêmico. Este artigo divide-se em quatro seções:
a primeira refere a origem etimológica e histórica dessa prática; a segunda
contempla fragmentos do código supramencionado; a terceira compõe-se de
teorias de filósofos clássicos e modernos. Surgem questões: o Estado pode
interferir contra autonomia da vontade do indivíduo? Aborda-se o conceito de
autonomia kantiana, que é a capacidade de escolher com discernimento, agir
livremente, com prudência. Na última seção são expostos casos mundialmente
conhecidos: o de Terri Schiavo, que representou divergência entre genitores e
cônjuge acerca da eutanásia; o de Terry Wallys, que se recuperou do coma, e o
do famoso médico Jack Kevorkian, o Dr. Morte.
1046
2 EUTANÁSIA: DEFINIÇÃO E REFERÊNCIAS HISTÓRICAS
Ao deparar-se com questões diretamente ligadas à vida humana, surge a
interdisciplinaridade, revelada na Bioética. Sob este prisma, Ruth Maria Chittó
Gauer (2013, p.536-537) leciona que nas tecnologias contemporâneas existe uma
complexidade, a qual “demanda interpretações que perpassem explicações dadas
por um único campo de conhecimento”. A pesquisa interdisciplinar se insere em
um movimento de ideias vinculadas não apenas “à proporcionalidade e à
perspectiva, próprias de campos especializados do conhecimento”, mas que uma
“concepção interdisciplinar deve estar em sintonia com a ideia de uma academia
preocupada com questões que ultrapassam a visão da pesquisa especializada”
(GAUER, 2013, p.536-537). Por isso, não é a intenção deste artigo defender um
posicionamento específico, e sim ponderar diferentes exposições doutrinárias.
Preliminarmente, este trabalho não se propõe a discutir a eutanásia sob um
enfoque predominantemente penalista ou processualista, visto que não seria
original, nem condiz com a intenção da multiplicidade de visões a que se pretende
desenvolver. Entretanto, é pertinente conceituar e definir os termos para um
melhor entendimento do tema. O termo Eutanásia origina-se do grego euthanatos,
eu, significa bom; e thanatos, morte. Portanto, etimologicamente essa palavra
designa uma boa morte; morte calma (BARSA, 2002, vol.6). O contrário deste
poderia ser a distanásia que é a morte lenta, com sofrimento – convergindo com a
eutanásia apenas em seu conteúdo moral, ambas são eticamente inadequadas.
Frente à morte, a atuação correta seria a ortotanásia, que adota cuidados
prestados aos pacientes nos momentos finais de suas vidas (GOLDIM, 2003). Há
ainda outro tipo: Mistanásia ou eutanásia social. Sugestão de Leonard Martin,
morte miserável, fora e antes da hora, que focaliza na mistanásia três
situações: “primeiro, a massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos,
sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes” por não conseguirem
“ingressar no sistema de atendimento médico”; segundo, os doentes pacientes
que se tornam vítimas de erro médico e, “terceiro, os pacientes que acabam
sendo
vítimas
de
má-prática
por
motivos
econômicos,
científicos
ou
sociopolíticos” (GOLDIM, 2004, grifo do autor). Segundo o professor Goldim
1047
(2003), a eutanásia, dependendo do critério considerado, pode ser classificada
em várias formas. Quanto ao tipo de ação – eutanásia ativa é o ato provocar a
morte sem sofrimento do paciente, por fins misericordiosos; eutanásia passiva,
também chamada de indireta, é a morte do paciente terminal, ou porque não se
inicia uma ação médica ou porque há interrupção de medida extraordinária, a fim
de minorar o sofrimento; eutanásia de duplo efeito: a morte é acelerada como
uma consequência indireta das ações médicas que são executadas visando ao
alívio do sofrimento de um paciente terminal. E quanto ao consentimento do
paciente – eutanásia voluntária: quando a morte é provocada atendendo a uma
vontade do paciente; eutanásia involuntária: quando a morte é provocada contra a
vontade do paciente. Eutanásia não-voluntária: quando a morte é provocada sem
que o paciente tivesse manifestado sua posição em relação a ela (GOLDIM,
2003). Atualmente, em alguns países a eutanásia é aceita e em outros se
equipara ao homicidio. O direito à vida, universalmente reconhecido, subjaz ao
problema ético da vida humana. Preconizaram esse direito a Sociedade da
Eutanásia, do Reino Unido, fundada em 1935, “e sua homóloga americana” de
1938 (BARSA, 2002). No século XVII o termo “eutanásia” é proposto pela primeira
vez por Francis Bacon na sua obra “Tratado da vida e da morte. Autores que se
posicionaram a favor da eutanásia e do suicidio assistido: David Hume (On
suicide), Karl Marx (Medical Euthanasia) e Schopenhauer. Em 1931, na Inglaterra,
Dr. Millard propôs uma lei para Legalização da Eutanásia Voluntária, que foi
discutida até 1936 pela Câmara dos Lordes que a rejeitou. Durante os debates,
em 1936, o médico real, Lord Dawson, revelou que tinha "facilitado" a morte do
Rei George V, utilizando morfina e cocaína. (GOLDIM, 2000). O Uruguai, em
1934, possibilitou a eutanásia no seu Código Penal, "homicídio piedoso",
possivelmente a primeira regulamentação nacional sobre o tema, mantida em
vigor até o presente. Em 1935 Inglaterra Exit, associação pioneira pró eutanásia,
distribuía folhetos instruindo uma morte “com dignidade”. Em 1968, a Associação
Mundial de Medicina adotou uma resolução contrária à eutanásia. Em 1990, a
Real Sociedade Médica da Holanda e o Ministério da Justiça estabeleceram rotina
de notificação para a eutanásia, não a legalizando, mas tornando o profissional
que a realiza isento de procedimento criminal. Em 1991, tentativa frustrada para
1048
introduzir a eutanásia no Código Civil da Califórnia (EUA). Em 1996, na Austrália,
aprovaram lei possibilitando a eutanásia, revogada meses depois. No mesmo ano
o Brasil apresenta proposta semelhante, sem resultados. Em 1997, a Corte
Constitucional da Colômbia em sua legislação o profissional que praticasse
eutanásia não poderia ser punido criminalmente. Em 1997, no Oregon (EUA),
legalizou o suicídio assistido. Em 2001 a Holanda torna-se o primeiro país do
mundo a legalizar a eutanásia, inclusivamente podendo ser aplicada a menores
desde que com o consentimento dos pais. Em 2002, a Bélgica tornou-se o
segundo país a legalizar a eutanásia. A eutanásia tem sido aplicada
mundialmente e continua sem obter consenso, divergindo sobre o direito à morte
versus o direito à vida. Médicos, pacientes, familiares têm opiniões opostas
acerca dessa prática. A seguir será exposto sobre aspectos medicinais, bioéticos
e o Código de Ética Médica.
3 O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA
Segundo Clotet (2006, p.24), “Constitui uma tarefa da Bioética fornecer os
meios para fazer uma opção racional de caráter moral referente à vida, saúde ou
morte, em situações especiais, reconhecendo que esta determinação terá que ser
dialogada, compartilhada e decidida entre pessoas com valores morais
diferentes.” Terra et al. (1994, p.102) dizem que a humanidade se depara desde a
Antiguidade com dificuldade em determinar com exatidão a ocorrência da morte
do indivíduo, e diz que o conceito de morte encefálica “modificou-se nos últimos
anos em decorrência do desenvolvimento de novas técnicas de ressuscitação e
suporte avançado para o atendimento de doentes criticamente enfermos”. Os
autores (1994, p.103) dizem que atualmente se define pela “cessação irreversível
de todas as funções de todo o encéfalo, incluindo o tronco cerebral”, sendo
sinônimos morte encefálica e morte do indivíduo. É importante ressaltar que há
diferença entre morte encefálica e morte cerebral:
a nomenclatura de morte encefálica tem sido preferida ao termo morte
cerebral, uma vez que para o diagnóstico clínico, existe necessidade de
cessação das atividades do córtex e necessariamente, do tronco
cerebral. Havendo qualquer sinal de persistência de atividade do tronco
1049
encefálico, não existe morte encefálica, portanto, o indivíduo não pode
ser considerado morto. Como exemplos desta situação, podemos citar
[...] o estado vegetativo persistente [...].
Entretanto, os autores discordam da aplicação do conceito de eutanásia
nesse caso: há respaldo legal no Brasil para “o diagnóstico de morte encefálica”.
Os pesquisadores (TERRA; BOUSSO; MARTINS; SILVA; FERNANDES;
BALDACCI; OKAY, 1994, p.110) informam que a eutanásia implicaria “em utilizar
meios para abreviar a vida do paciente, mas no presente caso, não existe mais
vida”. Para ilustrar, trazem argumentos do padre Leocir Pessini, em seu livro
Eutanásia e América Latina: “para uma maior clareza conceitual, deveríamos
desfazer o equívoco em falar de eutanásia quando se tratar de desligar os
aparelhos sustentadores da vida, estando a pessoa já em morte cerebral
comprovada por todos os exames necessários”. O ato de cuidar é dever ético e
legal que incumbe a todos os médicos em relação a seus pacientes. No entanto,
nem sempre esses deveres são cumpridos (SOUZA, 2006). Aristóteles refletia
que não se delibera sobre os funs, mas sobre os meios: “um médico, por
exemplo, não delibera sobre se deve ou não curar, [...] nem um estadista se deve
assegurar a ordem pública, nem qualquer outro homem delibera a respeito da
própria finalidade de sua atividade (ARISTÓTELES, 2007, p.62-63)”. “A estrutura
do juízo, assim, garante ao direito ou deveria garantir-lhe a função da justiça”
(CARNELUTTI, 2003. p.8). De acordo com o Código de Ética Médica brasileiro
(CRM-RJ, 2012, p.11), no Cap. I, art.6º, o médico deve respeito pela vida
humana, em benefício do paciente. “Jamais utilizará seus conhecimentos para
causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para
permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.” Kipper et
al.(apud PITHAN, 2004) relata que “os próprios médicos têm entendido que fazem
uso abusivo dos recursos terapêuticos de que dispõe, sem que haja benefício
para os pacientes.” Punível de acordo com o projeto de Parte Especial do novo
Código Penal, não deve ser admitida.
Jussara de Azambuja Loch explica a análise da vontade do paciente, três
critérios principais a serem considerados: a) Critérios objetivos para avaliar, com
aspectos técnicos: se aceitar o desejo do paciente, quais os riscos e os benefícios
que a determinada conduta trará para a saúde e a vida? A conduta é beneficente?
1050
O paciente é autônomo, não está sendo coagido a tomar esta decisão? b)
Critérios subjetivos: considerar os valores do paciente: o valor da vida, a
qualidade de vida que o paciente considera adequada para si próprio, suas
crenças religiosas, os argumentos morais com os quais o paciente justifica sua
vontade; c) Os melhores interesses: é um balanceamento entre os critérios
objetivos e subjetivos, é analisar, diante dos fatores já citados, qual a melhor
alternativa, do ponto de vista do próprio paciente, visando seu melhor benefício
(LOCH; GAUER; CASADO, 2008, p.156). Roque Junges relata que a “bioética
surgiu como preocupação pelas incidências da intervenção tecnológica do ser
humano no ambiente natural e como resposta aos dilemas éticos provocados
pelas novas descobertas biológicas e pelos avanços da medicina sobre a saúde
do ser humano” (JUNGES, 2005, p.29). O sistema penal estabelece o
constrangimento ilegal, que não se pune a fim de evitar suicídio e preservar a
vida. A Bioética precisa [...] “de um paradigma de referência antropológico-moral
que, implicitamente, já foi colocado: o valor supremo da pessoa, da sua vida,
liberdade e autonomia”. Esse princípio, parece conflitar com o relativo à qualidade
de vida digna que os seres humanos são dignos, princípios que nem sempre se
amoldam sem conflitos. Em determinadas circunstâncias, não é fácil tomar uma
decisão (CLOTET, 2006, p.24). A filosofia é a ciência que melhor pode pensar e
elaborar argumentos sobre a eutanásia. Michael Sandel, professor de Harward,
elucida teorias de filósofos como Kant, Rawls, e traz correntes filosóficas que
refletem os anseios da sociedade moderna do século XXI em seu livro “Justiça: o
que é fazer a coisa certa”. Passa-se a analisar as teorias propostas para este
trabalho.
4 TEORIAS FILOSÓFICAS: LIBERTARISMO, KANT, UTILITARISMO
Michael Sandel (1997, p.27, tradução livre) expõe que, enquanto quase
todo o estado proíbe suicídio o Supremo Tribunal de Justiça o declarou como um
direito constitucional. John Rawls, considera errado o princípio de neutralidade do
Estado em questões morais e religiosas. Filósofos dizem que a autonomia e
liberdade de escolha implica da posse sobre a vida. A ética da autonomia, longe
1051
de ser neutra, parte “de muitas tradições religiosas e também do ponto de vista
dos fundadores da filosofia política liberal, John Locke e Immanuel Kant”. Locke e
Kant opõem-se ao direito de suicídio, e “rejeitaram a ideia de que nossas vidas
são bens para dispor como nos agradar”. Para Kant, o respeito pela autonomia
implica em deveres para si mesmo, em tratar a humanidade como um fim em si
mesma. Em seu raciocínio, “o homicídio é errado, porque usa a vítima como um
meio e não a respeita como um fim, mas o mesmo pode ser verdade do suicídio”.
O fato de que uma pessoa queira morrer não torna moralmente admissível matála, ainda que seu desejo seja sem coerção e bem informado. Sandel (1997, v.216,
p.27, tradução livre) diz que não necessariamente deva se opor à eutanásia em
todos os casos. Até quem encara a vida como sagrada pode admitir que
“alegações de compaixão às vezes podem substituir o dever de preservar a vida”.
O desafio é o de encontrar uma maneira de honrar estas alegações que preserva
o peso moral de apressar a morte, e que retém a reverência pela vida, como algo
que prezamos não é algo que possamos escolher. A primeira visão filosófica
abordada será o Libertarismo. Michael Sandel (2012, p.79) define a visão
libertária: “os libertários são contra as leis que protegem as pessoas contra si
mesmas”, por violar o “direito do indivíduo de decidir os riscos que quer assumir.”
Entre outras características, não legislar sobre moral. Por exemplo a
automutilação seria permitida assim como o suicído, etc. “Os libertários são contra
o uso da força coerciva da lei para promover noções de virtude ou para expressar
as convicções morais da maioria.” A teoria libertária defende que a pessoa pode
dispor de seu próprio corpo como bem entender. Seguindo essa lógica, a
eutanásia seria permitida, bastando que se obtenha o consentimento do paciente.
Essa filosofia sugere que, por ser dono de si mesmo, a vida do ser humano
pertence a ele mesmo, portanto, não é possível se apoderar da vida alheia e usála, ainda que haja boas intenções. Com esse raciocínio de o indivíduo dispor de
seu corpo, pode-se ser favorável ao comércio de rins para transplante, já que se é
livre para vender seus órgãos. Partindo desse princípio, defende-se o suicídio
assistido, pois se é dono da própria vida, e livre para pôr fim a ela. E o Estado não
tem o direito de impedir o cidadão de usar seu corpo como bem entender. Para os
libertários, leis proibitivas de suicídio assistido são injustas pelo fato de que a vida
1052
pertence a própria pessoa, que deve ser livre para desistir dela e, sendo feito
acordo voluntário, o Estado não tem direito de interferir. Argumenta-se que
pacientes terminais passam por grande sofrimento e devem ter permissão para
apressar sua morte em vez de prolongar a dor. A compaixão deve prevalecer
sobre o dever de manter uma pessoa viva (SANDEL, 2012, p.29). Ingo Sarlet
(20606, p.29) leciona que a ideia de dignidade da pessoa humana é intrínseca ao
pensamento e ideário clássico cristão.
Immanuel Kant, filósofo iluminista, acreditava na razão, que emanava os
homens, busca seu fundamento na ciência. A ideia de ser dono de si mesmo traz
implicações que apenas um libertário poderia aceitar: mercado sem proteção
alguma, Estado mínimo, sem medidas para diminuir a desigualdade e promover o
bem comum; e uma celebração do consentimento que permita infligir afrontas à
própria dignidade, como canibalismo ou venda de si mesmo feito escravo. Das
mais influentes questões de direitos e deveres feita por um filósofo, parte de que
somos seres racionais merecedores de dignidade e respeito. Kant argumenta que
a moral fundamenta-se no respeito às pessoas como fim em si mesmas. Essa
importância da dignidade humana define conceitos universais. E repudia a noção
anteriormente debatida sobre justiça: a valorização aristotélica da virtude, pois
não respeitam a liberdade humana. O filósofo associa justiça e moralidade à
liberdade (SANDEL, 2012). Ao afirmar que a moralidade não deva ser baseada
em considerações empíricas, interesses, vontades, desejos, Kant diz que
alicerçar a moralidade em interesses aniquila sua dignidade. Merecemos respeito
por sermos racionais, capazes de pensar; autônomos, capazes de agir e escolher
livremente. A capacidade de raciocinar está ligada à capacidade de ser livre.
Costuma-se definir liberdade como poder fazer o que se quer sem obstáculos.
Kant define de maneira mais rigorosa, com o raciocínio de que quando buscamos
o prazer ou evitamos a dor, não agimos livremente mas de acordo com
determinação exterior. Não é livre o desejo condicionado ou biologicamente
determinado (SANDEL, 2012). Quando se pensa a vontade, ainda que esta possa
estar ligada a leis por meio de um interesse, é impossível que seja legisladora
suprema. Dependendo de um interesse qualquer, “precisaria ainda de uma outra
lei que limitasse o interesse do seu amor próprio à condição de uma validade
1053
como lei universal” (KANT, 2005, p.74). Nomeia este princípio de autonomia da
vontade, que é fundamento da “dignidade da natureza humana e de toda natureza
racional” (2005, p.79). Entretanto, Kant (2005, p.80) prefere “no juízo moral,
proceder sempre segundo o método rigoroso e basear-se sempre na fórmula
universal do imperativo categórico.” A obrigação é a “dependência em que uma
vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio da autonomia (a
necessidade moral)”. O agir autônomo é conforme a lei imposta pelo indivíduo, e
não pela natureza ou por convenções sociais, ao contrário da heteronomia que se
impõe por determinações exteriores. A autonomia distingue pessoas de coisas, o
respeito à dignidade humana exige tratar as pessoas como fins em si mesmas.
Para Kant, o valor moral não consiste nas consequências, mas na intenção da
ação. Deve-se fazer o que é certo, e não por motivo exterior à coisa. Se agir por
outro motivo que não por dever, a ação não terá valor moral. Kant diferencia
dever de inclinação, mas estes com frequência coexistem (SANDEL, 2012). Kant
(2005, p.50, sic) esclarece que os imperativos são hipotéticos – “representam a
necessidade prática de uma acção possível com meio de alcançar qualquer outra
coisa que se quer (ou que é possível que se queira)” – ou categóricos representam uma ação “necessária por si mesma, sem relação com qualquer
outra finalidade.” Se a ação é “representada como boa em si, por conseguinte
como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa
vontade”, o imperativo é categórico. E “[...] a destreza na escolha dos meios para
atingir o maior bem-estar próprio pode se chamar prudência. O imperativo
categórico é portanto só um único, que é este: “Age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei
universal” (KANT, 2005, p.52). Sandel (2012) explica que a moral é conferida pela
motivação do dever, e não por ser útil ou conveniente. Kant (2005, p.30-31) diz
que o valor do caráter consiste em fazer o bem não por inclinação, mas por dever,
uma vez que “o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado” mas o bemfazer por dever é “amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na
tendência da sensibilidade, em princípios de ação e não em compaixão lânguida.
E só esse amor é que pode ser ordenado [...].” Representação de um princípio
objetivo, obrigado pela vontade, mandamento da razão, cuja fórmula denomina-se
1054
Imperativo. “Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever”, relação de uma
lei objetiva da razão “para uma vontade que segundo a sua constituição não é por
ela necessariamente determinada (uma obrigação)” (KANT, 2005, p.48, sic). Para
Kant (2005, p.23), “a boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza,
pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo
querer, isto é, em si mesma [...]”. Segundo ele (2005, p.28), ser caritativo podendo
sê-lo é dever, ademais há “muitas almas de disposição tão compassiva que,
mesmo sem nenhum motivo de vaidade ou interesse”, sentem prazer em
“espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros,
enquanto este é obra sua.” Essa ação, conforme ao dever e amável que seja, não
tem valor moral para o filósofo, já que falta o conteúdo moral, “que tais ações se
pratiquem, não por inclinação, mas por dever”. Kant (2005, p.60) diz: “uma
pessoa, por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente tédio da vida,
mas ainda está bastante em posse da razão para poder perguntar a si mesma se
não será talvez contrária ao dever para consigo mesma atentar contra a própria
vida.” O princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim [motivo], que se dado
pela razão tem validade. Fins relativos que são a base de imperativos hipotéticos.
Se vive por gostar da vida, e não por dever moral de fazê-lo. Kant coloca em
questão a motivação do dever: cita um caso imaginário de que um indivíduo infeliz
e sem esperança não deseje viver mais. Se reunir forças para continuar sua vida,
sua ação terá valor moral se o fizer por dever e não por inclinação. Não há valor
moral em boas ações advindas de compaixão, pois importa que a boa ação seja
feita, prazerosa ou não, por ser a coisa certa. Há contrastes em Kant: dever
versus inclinação; autonomia versus heteronomia; imperativos categóricos versus
imperativos hipotéticos. Kant diz que se deve ter a capacidade de agir não com
uma lei posta ou imposta, mas com uma lei outorgada pelo indivíduo. Compara os
imperativos hipotéticos, condicionais, e um tipo de imperativo incondicional
chamado imperativo categórico, e somente ele pode ser imperativo da
moralidade. Então, um dever ou direito categórico é o que prevalece em
quaisquer circunstâncias (SANDEL, 2012). Incompatíveis com o imperativo
categórico são o homicídio e o suicídio. Se para escapar de condição dolorosa
põe-se fim à vida, usa-se a si mesmo como meio para aliviar o sofrimento. Kant
1055
afirma que o ser humano não é coisa para ser meio. Não há mais direito de dispor
sobre si do que sobre outra pessoa. O respeito pelo ser humano, diferentemente
do amor, empatia, solidariedade, e companheirismo, sentimentos morais é pela
humanidade em si e sua capacidade racional. Aplica-se aos direitos humanos
universais. Estão interligadas liberdade e moralidade: agir por dever obedecendo
a lei moral, um imperativo categórico, que obriga "a respeitar as pessoas como
seres racionais independentemente do que possam desejar em uma determinada
situação" (SANDEL, 2012, p.157). A dignidade humana consiste na sua
capacidade de criar leis universais, sujeita a essas leis. A concepção kantiana de
autonomia impõe limites paradoxais ao tratamento que podemos nos dar. É
preciso ser governado por uma lei outorgada a si mesmo, o imperativo categórico.
O respeito é uma finalidade exigida pelo imperativo categórico que se trate a si
mesmo e as pessoas com respeito e não transforme o corpo em objeto, não o
utilizando como bem entender. Os seres humanos não têm o direito de fazer a si
mesmos uma coisa como a um bife por meio do qual os outros saciam sua fome,
cujo princípio moral básico é não ter propriedade de si. Atos entre adultos
inconformes com o autorrespeito e dignidade são condenados por Kant, que
defende uma teoria de justiça fundamentada em um contrato social. Para ele,
uma Constituição justa objetiva harmonizar a liberdade individual e coletiva. No
seu entender, que cada um busque sua felicidade, não infringindo a dos outros.
Assim como a lei moral não pode ter interesses ou desejos particulares ou de um
determinado grupo de pessoas (SANDEL, 2012). Kant não poderia aceitar ou
concordar com a degradação do ser humano. Para ele, manter-se vivo trata-se de
um dever, sendo imoral atentar contra a própria vida. A Eutanásia é um direito
individual? De acordo com a visão utilitarista, é possível quantificar ou qualificar a
vida. Stuart Mill diz que percepção, julgamento, atividade mental, preferência
moral só são exercitadas ao se fazer escolhas, e quem faz escolhas por costume,
não escolhe, é incapaz de discernir o melhor: “as capacidades mentais e morais,
assim como as musculares, só se aperfeiçoam se forem estimuladas (apud
SANDEL, 2012, p.66)”. Desse modo, quem abdica da capacidade de escolha não
necessita de outra que não a de imitar, pois só quem exercita todas suas
faculdades decide por si. Seguem alguns exemplos de casos concretos, para se
1056
questionar sobre a realidade, como tem sido tratada a eutanásia na prática
mundialmente.
5 CASOS CONCRETOS
O norte-americano Terry Wallis é um exemplo de recuperação de coma.
Após 19 anos em estado vegetativo, acordou com lesões neurológicas graves
irrecuperáveis aos olhos médicos: “o coma é uma condição mais grave, mas
passageira: os pacientes se recuperam, evoluem para o estado vegetativo ou
morrem” (CALLEGARI, maio. 2010). Diferente da morte cerebral, que é a perda
irreversível de qualquer atividade do cérebro. De carro, com amigos, wallis
despencou de um penhasco, aos 20 anos. Nesse primeiro momento ele entrou
em coma, do qual saiu cerca de 3 meses depois, ficou quadriplégico evoluindo
para o estado semivegetativo. Aparentava sinais de percepção ao seu redor:
“acompanhava uma pessoa com os olhos, por exemplo”. Os médicos, no entanto,
eram categóricos: não adiantava acreditar em sua recuperação. "Quanto mais
tempo o paciente fica nesse estado, menores são as chances de sair dele", afirma
Bernat. Entretanto, os exames demonstram que os axônios (terminações
nervosas de cada neurônio, responsáveis pela transmissão dos impulsos de uma
célula para outra) se reconectaram. Apesar de parte dos movimentos, houve
perda da habilidade de processar novas memórias. Um caso mais famoso foi o de
Terri Schiavo. Goldim (2005) relata que em 1990 Theresa Marie SchindlerSchiavo, de 41 anos, teve parada cardíaca talvez devido a perda significativa de
potássio associada a Bulimia, permanecendo por cinco minutos sem fluxo
sanguíneo cerebral. Devido a grande lesão cerebral, ficou em estado vegetativo.
Segundo o autor, os “pais de Terri alegaram possível agressão do marido,
Michael Schiavo, por estrangulamento, que poderia ter sido a causadora da lesão
cerebral, supostamente em processo de separação conjugal”. A paciente teve
retirada a sonda que a alimentava e hidratava, e faleceu em 31 de março de
2005, após longa disputa familiar, judicial e política. O esposo desejava a retirada
da sonda, enquanto Mary e Bob Schindler, pais da paciente, e seus irmãos,
lutaram para que fosse mantida. “Por três vezes o marido ganhou na justiça o
1057
direito de retirar a sonda. Nas duas primeiras vezes a autorização foi
revertida. Em 19 de março de 2005, na terceira vez, permaneceu assim até a sua
morte”. Em 1993 iniciaram as “posições antagônicas da família, com questões
que incluem diferentes versões sobre os interesses em manter ou terminar o uso
da alimentação e hidratação por sonda”. O marido alegava que a “sua esposa
havia manifestado verbalmente, quando ainda estava consciente, que não
desejaria permanecer em um estado como o que se encontra agora”. “O suicídio,
entendido como uma agressão deliberada que o indivíduo pratica contra si
mesmo, com a intenção de pôr fim à sua vida, constitui-se num fenômeno a ser
analisado [...] A abordagem, [...] a fim de possibilitar uma compreensão mais
ampla, deve ser interdisciplinar” (GAUER; LAZZARIN, 2003, p.69). Jack
Kevorkian, o médico mais famoso dos EUA, ficou conhecido como Dr. Morte por
levantar a polêmica discussão do suicídio assistido. Ele tinha uma máquina de
matar, em que aplicava suicídio assistido em pacientes terminais. Acerca desse
tema foi produzido um filme, “Você não conhece Jack”, estrelado por Al Pacino. A
película revela sua obsessão por desafiar as regras da vida – e sua cordial e
teimosa insistência em violar a lei para fazê-lo. Encontrou poucas pessoas que o
ajudaram a executar suas questionadas práticas. Lutou por uma causa, passou
dezenove dias na prisão, em greve de fome. Pacientes o procuravam, imploravam
por seu auxílio. Lutava por uma causa: divulgar o suicídio assistido e eutanásia,
debater essas questões bastante importantes para o médico, preocupava-se com
o sofrimento dos pacientes. Foi processado cinco vezes, sendo condenado na
última por homicídio em segundo grau. Os últimos momentos de seus pacientes
foram filmados por orientação de seu advogado (a emoção provocada nos vídeos
convencia os jurados a inocentá-lo), que o defendeu até se candidatar a
governador do Michigan. Após a derrota, tornou a apoiar Jack, mas este o
demitiu. O primordial no filme são os casos: 130 mortes provocadas. Na última, o
médico aplicou eutanásia ativa, e filmou no intuito de levar o caso à Suprema
Corte. Sem seu ilustre advogado, representando a si mesmo, e desconhecendo
as leis do Michigan, Jack perdeu no tribunal e passou oito anos e meio preso. A
Suprema Corte não aceitou ouvi-lo.
1058
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tratou-se no presente trabalho de expor diversos pontos de vista sobre a
eutanásia e suas implicações legais, fatores médicos, enfatizando aspectos
filosóficos. A partir do exposto conclui-se que a eutanásia é uma prática antiga. O
código de medicina prevê que médico deve resguardar a vida humana. Depende
da corrente filosófica for adotada, determinar se o Estado pode ou não agir contra
a autonomia da vontade do indivíduo. Segundo Kant, é dever manter a vida. O
contrário viola a dignidade, que é fundamento da autonomia – obedecer à lei
universal, e não à vontade do indivíduo. Cada indivíduo, para ele, tem um fim em
si mesmo. Em contrapartida, o Libertarismo defende que a pessoa pode dispor de
seu próprio corpo como bem entender e o Estado não deve interferir, lógica que
admite a eutanásia, obtido o consentimento do paciente. A ausência de
paternalismo é característica dessa corrente: não proteger pessoas contra si
mesmas. Do mesmo modo que leis proibitivas de suicídio assistido são injustas
para os libertários, pelo fato de que a vida pertence a própria pessoa, que deve
ser livre para desistir dela e, sendo feito acordo voluntário, o Estado não tem
direito de interferir. Argumenta-se que pacientes terminais passam por grande
sofrimento e devem ter permissão para apressar sua morte em vez de prolongar a
dor. Compaixão deve prevalecer sobre o dever de manter pessoa viva. Por outro
lado, é visão utilitarista quantificar ou qualificar a vida, o que ofende a ética e a
moral. Afinal, há casos em que pacientes voltaram do coma após décadas de
internação. É possível que o ser humano, ainda que capaz, tenha sua percepção
reduzida – devido à fragilidade e depressão. Logo, necessita de assistência
afetiva, psicológica, médica e jurídica. Eis o papel do Estado: intervir e garantir
direitos do cidadão, principalmente o direito à vida. Mais relevante do que
aparência são as emoções: o cérebro, além do corpo. A mente é a “alma” da
pessoa, e negar isso é negar o que há de mais profundo no ser humano e
transformar alguém em mero objeto. Uma pessoa não pode se tratar sozinha;
alguém deve ter essa incumbência. Deixar morrer pode ser conveniente e
perverso, disfarçar a morte num eufemismo de que se fez a vontade do outro. Há
demasiados direitos, mas há escassez do que é essencial: humanidade.
1059
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1061
DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA NO AMBIENTE DAS
TELECOMUNICAÇÕES: A INADIÁVEL REGULAMENTAÇÃO ECONÔMICA DA
MÍDIA NO BRASIL
Francisco André Alves Moura
RESUMO: A presente pesquisa pretende investigar o contexto das
telecomunicações no Brasil, com a finalidade de auferir a necessidade de uma
regulamentação econômica da mídia face à existência de circunstâncias
antijurídicas, como, por exemplo, os oligopólios midiáticos. Objetiva compreender
a existência e a exigibilidade de um Direito Humano à comunicação, enquanto, ao
mesmo tempo, base e fruto dos direitos à liberdade de expressão, informação,
manifestação e pensamento. Analisa, do mesmo modo, o tratamento que a ordem
jurídico-constitucional brasileira reserva à comunicação social e se esta encontrase em conformidade com os dispositivos normativos.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à comunicação; Regulamentação da mídia; Ordem
Constitucional;
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo objetivará debater acerca da necessidade de
regulamentação dos meios de comunicação no Brasil, calcado na premissa
constitucional de intervenção do Estado sob domínio econômico como forma de
efetivar
os
princípios
democráticos,
a
livre
concorrência
no
setor
de
telecomunicações e, principalmente, a efetivação do direito à comunicação plena.
Inicialmente, será necessário distinguir as formas pelas quais o Estado
deve atuar na esfera do domínio econômico e, mais especificamente, conquanto à
regulamentação econômica da mídia, delimitando qual o método de intervenção
econômica na seara da comunicação, que se adéqua aos ditames constitucionais.
Isto porque, como está previsto no texto constitucional, há as formas direta
e indireta de intervenção na ordem econômica, métodos os quais serão
devidamente delimitados ao longo deste trabalho, em alinhamento à doutrina do
professor Eros Grau.
1062
Deste modo, será debatido o significado da comunicação e o que ela
representa para a convivência em sociedade, assim como para sustentação das
relações de poder.
Com esse substrato teórico, avaliará a existência e respectiva magnitude
jurídica do direito à comunicação, enquanto bem jurídico extraído dos direitos à
liberdade
de
expressão,
manifestação
e
imprensa,
estes
positivamente
consagrados nos documentos normativos ao redor do mundo, principalmente, nas
constituições ocidentais.
Utiliza-se como referenciais teóricos, na abordagem da teoria da
comunicação, o diálogo libertador de Paulo Freire e a abordagem original da
ciência da comunicação social realizada por Raimunda Aline Lucena Gomes.
Será feito um escorço histórico para memorar os principais documentos
jurídicos ocidentais, a partir do século XVII, que abordaram a comunicação nos
seus textos.
Deste modo, observará de que forma a sociedade internacional vem
tratando o Direito Humano à Comunicação, principalmente no período do Pós
Guerra, quando se acentuaram os debates acerca da natureza deste direito.
Consecutivamente, o trabalho abordará os objetivos da norma inserta no
capítulo V (Da Comunicação Social), do Título VIII e as disposições do artigo 5º,
IV, V, VI, IX e X da Constituição Federal para aferir de que forma está disposto o
direito pátrio no tratamento das telecomunicações.
Saliente-se, que a análise constitucional dos referidos incisos do Art. 5º e
dos dispositivos do Capítulo V, Título VIII da Magna Carta não excluem a análise
sistêmica da Constituição num todo para abalizar os posicionamentos nesta
pesquisa.
Além disso, analisará a realidade concreta da concentração midiática no
Brasil para conferir se os fatos sociais estão em acordo com a legislação
constitucional e as alternativas para o combate aos monopólios midiáticos, caso
assim se apresente a telecomunicação no Brasil.
Ademais, buscará, de acordo com as conclusões obtidas nas análises
acerca do direito à comunicação no Brasil, expor ideias propositivas para a
intervenção do Estado sob o domínio econômico na seara das telecomunicações,
1063
com o fito de contribuir para o cumprimento das normas constitucionais referentes
à concretização dos Direitos Humanos, da pluralidade de ideias e do combate aos
monopólios/oligopólios econômicos midiáticos.
2 INTERVENÇÃO DO ESTADO “SOB” OU “NO” DOMÍNIO ECONÔMICO?
Se faz necessário abordar, em caráter perfunctório, o método de
intervenção econômica do Estado que se adequa à finalidade de garantir uma
efetivação do direito à comunicação, tendo em vista que este encontra-se
obstruído de concretização plena, em face, principalmente, de estruturas
imperfeitas do mercado concorrencial que são os monopólios/oligopólios.
Em termos metodológicos, faz-se prudente explicitar, que não há
pretensão, neste recorte científico, de verticalizar o debate acerca do direito
econômico, nos seus termos de combate às estruturas defeituosas do mercado,
mas, sim, de propor um diálogo fundamental na busca pela garantia à sociedade
de um direito que perpassa e influi nas questões econômicas.
Deste modo, há de ser analisado de que forma o texto constitucional
brasileiro aborda os métodos de intervenção econômica do Estado, os quais são
classificados, conforme disposição normativa, em: métodos de intervenção direta
e indireta.
Concernente à intervenção estatal direta no domínio econômico, observase que sua previsão constitucional tem fulcro no art. 173, que destaca o caráter
excepcional do exercício direto de atividade econômica pelo Estado, devendo
este assim atuar somente nos casos previstos na Constituição ou quando
necessário aos imperativos de segurança nacional e/ou relevante interesse
coletivo.
Por outro lado, no que tange à atuação econômica indireta do Estado, a
previsão normativa fundamental encontra-se no art. 174, que expõe com
clarividência a função reguladora proposta constitucionalmente, de intervenção
essencialmente indireta.
Este método de intervenção indireta se caracteriza, de acordo com as
lições do professor Ângelo Menezes (2012, p. 25), pela cobrança de tributos,
1064
concessão de benefícios/subsídios fiscais e, principalmente, na regulamentação
normativa de atividades econômicas, a serem desenvolvidas primordialmente
pelos particulares.
A classificação da atividade econômica exercida é dividida por Eros Grau
(GRAU, 1997) em quatro categorias: 1. Por absorção, quando o Estado atua
monopolisticamente em determinado ramo econômico; 2. Por participação,
quando o ente estatal pratica diretamente a atividade, mas em regime de
concorrência com o particular; 3. Por direção, que se caracteriza pela atuação do
Estado de forma cogente através do sistema normativo jurídico; 4. E por indução,
método que o Estado atua por via normativa, mas por disposições incentivadoras
de ordem tributária ou administrativa.
Notoriamente, como se vislumbra, os métodos 1 e 2 referem-se à atuação
direta e o 3 e 4 à intervenção econômica do Estado de forma indireta.
Deste modo, em nome da clareza na linguagem jurídica, verifica-se ser
mais prudente que se a terminologia referida for acerca de intervenção no
domínio econômico, tratar-se-á de atuação direta do Estado, ou seja, que envolva
os mecanismos descritos nos itens 1 e 2 da classificação de Eros Grau
mencionada.
Quando referir-se, por sua vez, à intervenção do Estado sob o domínio
econômico, estará, o presente trabalho, remetendo a métodos indiretos de
intervenção econômica, descritos nos itens 3 e 4.
Neste passo, o presente debate acerca da efetivação do direito à
comunicação, através da regulamentação da mídia, se pauta fundamentalmente
numa proposta de intervenção indireta sob o domínio econômico, com a finalidade
de impedir que as congruências do mercado impossibilitem a concretização de
um direito fundamental.
Por outro lado, não se pretende excluir a importância da atuação direta do
ente estatal nos meios de comunicação, através, por exemplo, dos canais
públicos de TV e rádio, no entanto um dos objetivos aqui proposto é de promover
mais inclusão direta da sociedade civil nos ambientes de profusão e recepção de
informação, sem haver, como obrigatório, o intermédio do Estado ou dos grupos
corporativos da mídia.
1065
Sendo assim, é necessário que se compreenda qual o significado histórico
e ideológico da comunicação e a forma como o sistema jurídico nacional e
internacional o trata, para que o debate acerca da regulamentação da mídia,
assim como o método de intervenção econômica adequado, seja tratado como
meio para a concretização de um fim, que é garantir o pleno acesso à
comunicação.
3 A COMUNICAÇÃO
Neste capítulo, observaremos o ato de comunicar como uma essência
própria do indivíduo, intimamente relacionado à evolução da humanidade. Sendo
o meio pelo qual se concretiza as relações interpessoais e sociais, ou seja, o
instrumento base da vida em sociedade.
Tratar da comunicação, desde a conquista do ato de se comunicar via oral
até a instrumentalização técnica, reflete a luta da humanidade pela sobrevivência,
pelo domínio da natureza, pela construção do conhecimento e pela sua expansão
(GOMES, 2007).
Analisar o processo comunicativo, portanto, significa observar o modo de
viver em sociedade, que é, acima de tudo, regido pela comunicação entre as
pessoas e as instituições, sendo reflexo, também, das relações de poder e da
ideologia dominante.
Neste pensar, não se torna pretensioso ratificar que a comunicação é o
sustentáculo fundamental do modelo de sociedade na qual estamos inseridos,
como afirma em sentido semelhante Bakhtin (2004, p. 41), senão vejamos:
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É
portanto claro, que a palavra será sempre o indicador mais sensível de
todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas
despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram
caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados.
Podemos afirmar, desse modo, que a pesquisa sobre a comunicação tem
de ser mais do que analisar como o sistema normativo impõe que seja tratado
esse direito, pois isto nos limitaria ao reducionismo de reproduzir um conceito de
comunicação já posto na teleologia da norma, o que inutilizaria a pesquisa sócio
1066
jurídica, que exige um diálogo entre o Direito e as demais ciências, assim como
com a realidade social.
Afinal, o objetivo de uma norma é também um ato de comunicação. Sua
obediência estrita torna o jurista mero reprodutor comunicativo de uma ideologia
dominante, que se concentra no momento de confecção da lei. Defender um
modelo social não é, per si, um problema. A problemática reside no instante em
que a defesa é nada mais que reprodução acrítica do modelo, o que transforma o
jurista, pela linguagem de André Arnaud (1991), num conformista submisso ao
Direito.
Justificada à insubmissão ao Direito positivo, vê-se que para existir
comunicação efetiva é necessário que este ato seja fruto de uma relação
dialógica, em que sujeitos sociais se articulam, concordam ou discordam da
informação que lhes é destinada.
Não há comunicação quando o sujeito destinatário da mensagem é
coisificado pelo veículo midiático e tratado como máquina acrítica para depósito
de informações, estas quais, invariavelmente, possuem finalidade ideológica de
imposição cultural e opressão social. Aliás, impõe ressaltar que, se por um lado
nos comunicar é o método que permite a vida em sociedade, por outro, é o
método de sustentação das relações (im) postas de poder.
Recorrer a Paulo Freire (2002, p. 69) se torna inevitável, já que cristalina é
sua reflexão: “educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a
transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a
significação dos significados”.
Há, neste enunciado, assim como no pensamento Freireano, um diálogo de
conceitos, isto porque o enunciado expõe o sentido da educação e da
comunicação, que nos permite concluir que ambos inexistem caso inexista o
diálogo – a capacidade discursiva de todas as partes que compõem o ato
comunicativo.
Desse modo, Paulo Freire (1987, p. 78-79) é novamente fundamental para
explicitar a sacralidade do diálogo na comunicação, como forma, inclusive, de
permitir a humanização do sujeito que participa do ato comunicativo, senão
vejamos:
1067
Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a
pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos
demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no
direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo
que este assalto desumanizante continue. Se é dizendo a palavra com
que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se
impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação
enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se
ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos
endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode
reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem
tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos
permutantes. (grifo nosso).
No mundo pós moderno, portanto, numa realidade em que a informação é
transmitida em larga escala de forma midiatizada, não há como existir
comunicação na veiculação unilateral de conteúdo, pois como afirmou Brecht
(BRECHT, 2005) ainda em tempos de rádio: “O rádio seria o mais fabuloso meio
de comunicação imaginável na vida pública, um fantástico sistema de
canalização. Isto é, seria se não somente fosse capaz de emitir, como também de
receber.”
A ausência da “via de mão dupla” no veículo de informação retira, por
assim dizer, o caráter comunicativo do respectivo meio, já que desrespeita o
caráter dialógico próprio da comunicação; e desumaniza o destinatário do
conteúdo midiático, o retirando da condição de sujeito cultural e transformando-o
em mero consumidor de informação.
Os indivíduos, por sua vez, despido da capacidade real de contrapor e
dialogar com a informação que lhe é depositada, se torna reprodutor manso e
pacífico do discurso que lhe foi incutido. Aqui, como já foi dito, é onde reside a
problemática da inadiável democratização do acesso à comunicação, inclusive
mediatizada, para que esse indivíduo comum, especialmente os componentes
das minorias étnicas, religiosas, sexuais e sociais, possa ser proclamado do
direito de dizer a palavra, ou seja, de essencialmente se comunicar na mesma
magnitude que o faz àqueles que objetivam lhe suprimir o direito de pronunciar o
mundo, como afirmou Freire.
Desse modo, vislumbra-se que a comunicação, desde os métodos
primitivos até os meios digitais de hoje em dia, é uma característica fundamental
que possibilita a vida em sociedade e foi, ao longo da história, instrumento,
1068
paradoxalmente, de manutenção do poder e de organização de lutas
progressistas.
Por esse motivo, a comunicação foi conclamada pelas Declarações de
Direitos, especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, através de dispositivos
que asseguravam a importância do ato comunicativo, instrumentalizado pelos
direitos à liberdade de expressão, de opinião, de pensamento, de discurso, de
imprensa e de informação.
Neste contexto, cumpre-nos analisar resumidamente como esta temática
evoluiu nos documentos jurídicos, percorrendo um curso histórico, que demonstra
a evolução do tratamento normativo desta matéria até chegar à conotação que
hoje recebe o direito à comunicação
3.1 Histórico Internacional do Direito à Comunicação
Ao longo da história moderna, documentos jurídicos de origem burguesa
passaram a tutelar os direitos à liberdade de pensamento e de manifestação da
opinião como formas de viabilizar as garantias negativas de caráter liberal,
segundo a qual os indivíduos não devem ser constrangidos pela expressão do
pensamento, seja a expressão falada, escrita com conotação política ou em forma
de culto religioso.
O primeiro documento que remete às liberdades da comunicação é a
Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689, que defende diretamente a
liberdade da palavra e do debate dentro ou fora do parlamento, embora, de certo
modo, a Declaração possua caráter ambíguo (GOMES, 2007), já que em sentido
estrito e literal não direciona a titularidade do direito de se comunicar livremente,
mas, na sociedade de então, havia uma seleção natural para eleger os titulares
do direito à palavra, pois a maioria do povo era analfabeto e vivia na extrema
pobreza, estando, consequentemente, distante dos espaços públicos próprios à
manifestação da opinião.
No século seguinte, em 1776, os Estados Unidos da América tornaram-se
independentes da Inglaterra e promulgou a Declaração de Direitos da Virgínia, na
qual afirmou que não deve haver restrição à liberdade de palavra ou de imprensa.
1069
Anos depois, no marco histórico da Era Contemporânea, através da
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), os franceses romperam o
curso histórico e fizeram constar, no referido documento, direitos universais que
não se limitavam à ordem jurídica interna.
O referido Documento francês declarou os seguintes direitos no que tange
à comunicação88: “[...] Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões,
incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem
pública estabelecida pela lei.”
Na mesma linha, dispõe: “Art. 11º. A livre comunicação das ideias e das
opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode,
portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos
desta liberdade nos termos previstos na lei.” (grifos nosso)
Após a Declaração da Revolução Francesa e subsequentes Constituições
da França, não houve documentos jurídicos versando acerca dos direitos e
deveres dos indivíduos até o século XX.
Assim, surge no contexto do Pós Guerra, a Organização das Nações
Unidas, fundada sob a égide da Declaração Internacional dos Direitos Humanos,
fruto de um intenso debate pela proteção internacional e universalização dos
direitos, como forma de proteção à sociedade vindoura dos flagelos da guerra
A comunicação, nesse contexto, também foi objeto de abordagem, através,
principalmente, da expressão do artigo XIX da Declaração da ONU, como se
observa: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito
inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e
transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independente de fronteiras.”
Há também, seguindo os mesmos nortes da Declaração Universal, o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que expressa: “[...] a liberdade de
procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza,
independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito,
em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”.
88
Documento online. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentosanteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5esat%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>
1070
Ocorre que, apesar dos avanços normativos no tratamento do direito à
comunicação nas duas últimas legislações internacionais mencionadas, o avanço
da realidade das comunicações sociais estava anos luz à frente do que dispunha
os dispositivos legais mencionados.
Isto
porque,
os
documentos
estavam
focados
em
garantir
uma
comunicação interpessoal, em possibilitar os indivíduos de se comunicarem
livremente, sem ameaça de censura pelo Estado, segundo a lógica, na
anacrônica visão geracional dos direitos, de proteger os direitos fundamentais de
primeira geração. Isto, de fato, possui absoluta importância, mas não tem o
condão de garantir a plenitude da liberdade de expressão, informação,
manifestação e pensamento numa sociedade de comunicação de massas
(cinema, tv., rádio), como já o era no período de confecção dos referidos
documentos.
As leis existentes de Direitos Humanos, asseguradas pelo artigo 19 da
DUDH15 e artigo 19 da Convenção (sic) Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos, cobrem o direito fundamental à liberdade de opinião e
de expressão. Isto é, indubitavelmente, uma base essencial para o
processo de diálogo entre as pessoas, mas não se constitui como
tráfego de mão dupla. É a liberdade de expressão do mendigo que fala
em uma esquina, e a quem ninguém tem que ouvir, e que pode não estar
se comunicando com ninguém. O artigo também se refere à liberdade de
ter opiniões: isto se refere às opiniões dentro da cabeça das pessoas,
que podem servir para a comunicação consigo mesmo, mas não
necessariamente traz uma obrigatoriedade de comunicação com outros.
Menciona o direito de buscar informações e ideias: dispõe para o
processo de consultar e reunir notícias, por exemplo, o que é diferente
de comunicar. Também há o direito a receber informação e ideias, o que
é também, em princípio, um processo de mão única: o fato de que eu
possa receber quaisquer informações ou ideias que eu queira não
implica que eu esteja envolvido em um processo comunicacional.
Finalmente, há o direito a disseminar informações ou ideias: isso se
refere à disseminação/alocução que vai além da liberdade de expressão,
mas os dispositivos dos artigos tratam apenas de um processo de mãoúnica de transporte, recepção, consulta e alocução, mas não do
processo de mão dupla, que é a conversação. (GOMES apud
HAMELINK, 2005, p. 143) (grifo nosso).
Por conseguinte, vê-se os documentos até aqui abordados possuem um
tratamento jurídico, de certo modo, rudimentar para os desafios reais que se
avizinham no que tange à efetivação plena de um direito à comunicação, que
passou a exigir, sob pena de inexistência do ato comunicativo, um diálogo entre
os sujeitos comunicantes, inclusive se a troca de informação ocorrer de maneira
mediatizada.
1071
3.2 O Atual Tratamento Jurídico da Comunicação na Ordem Internacional
A ordem jurídica internacional começa a evoluir no que tange ao tratamento
do direito humano à comunicação a partir do avanço quantitativo nas Nações
Unidas de países fora do eixo de hegemonia econômica, em especial, através das
resoluções editadas pelos membros da UNESCO, órgão de poder horizontalizado.
Os debates na UNESCO acerca do direito à comunicação foram
capitaneados por Jean D’arcy, por meio, inicialmente, de sua obra intitulada, em
português, de “Os Direitos do Homem à Comunicar”. O Francês invocou a
importância de um tratamento adequado para as novas maneiras de se transmitir
a informação, que passara a ser transmitida como comunicação em massa.
Inaugurava-se um novo tratamento jurídico da comunicação, superando
àquele conceito do free flow, que defendia a fantasia da liberdade em virtude da
ausência normativa, mas que, em verdade, permitia e permite um controle da
comunicação pelos grupos empresariais, por meio dos já referidos oligopólios.
O que D’arcy propôs efetivamente foi trazer para os instrumentos
normativos a importância histórica, social e ideológica que possui a comunicação,
no sentido de que os documentos jurídicos pudessem imprimir força comunicativa
aos indivíduos que estão à margem da construção da informação e,
consequentemente, fora da condição de disputar socialmente os espaços.
Em síntese, afirmou Jean D’arcy (1983, p. 291):
A chegada sucessiva de outros meios de comunicação de massas –
cinema, rádio, televisão – da mesma forma que o abuso de todas as
propagandas em véspera de guerra, demonstraram rapidamente a
necessidade e a possibilidade de um direito mais preciso, porém mais
extenso, a saber, o de procurar, receber e difundir as informações e
ideias sem consideração de fronteiras. [...] Hoje em dia parece possível
um novo passo adiante: o direito do homem à comunicação, derivado de
nossas últimas vitórias sobre o tempo e o espaço, da mesma forma que
da nossa mais clara percepção do fenômeno da comunicação.
Em âmbito global passou a ser notório, que o fluxo das informações era
essencialmente do norte para o sul, seguindo a lógica colonizadora de produção e
difusão
da
informação
nos
países
desenvolvidos
e
o
consumo
nos
subdesenvolvidos, o que gerava não só uma dominação econômica, mas também
cultural.
1072
Em contraposição a esse modus operandi, surgiu na ONU vozes como a
de D’arcy, o que, subsequentemente, possibilitou a criação da Comissão
Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação ligado à UNESCO,
tendo sido o órgão responsável pela elaboração do documento que ficou
conhecido como Relatório McBride ou Um mundo e muitas vozes.
O Relatório dispôs acerca de onze pontos fulcrais para a democratização
do acesso à informação, os quais transcrevo parcialmente a seguir pelo caráter
ainda atual dos seus objetivos no debate acerca do direito à comunicação (1980):
[...]
(2) eliminação dos efeitos negativos de determinados monopólios,
públicos ou privados, e a excessiva concentração de poder;
(3) remoção dos obstáculos internos e externos para um livre fluxo e
mais ampla e equilibrada disseminação das informações e ideias
[...]
(10) respeito à identidade cultural de cada povo e ao direito de cada
nação para informar o público internacional sobre seus interesses,
aspirações e respectivos valores sociais e culturais;
(11) respeito aos direitos de todos os povos para participar de
intercâmbios de informação, baseando-se na igualdade, justiça e
benefícios mútuos e, respeito aos direitos da coletividade, assim como
de grupos étnicos e sociais, para que possam ter acesso às fontes de
informação e participar ativamente dos fluxos de comunicação.
Em face das conclusões democratizantes da comissão da UNESCO, os
Estados Unidos, de Reagan, e o Reino Unido de Thatcher, abandonaram o órgão
em 1985, sob argumentos de desqualificação da UNESCO enquanto fórum para
debater os problemas mundiais da comunicação, o que levou a uma certa
inoperância do órgão neste âmbito, já que a saída das referidas nações do quadro
de membros representou uma diminuição na contribuição financeira das
pesquisas acerca do direito à comunicação (MOYSES, 2010).
Visualiza-se perfeitamente adequada a lição já referenciada, mas sempre
salutar, de Paulo Freire: “Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os
que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam
aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito”.
Neste contexto, a produção normativa acerca do direito à comunicação
restou, em termos gerais, inalterado ao longo das décadas de 80 e 90, num
contexto de expansão do neoliberalismo e ausência de interesses hegemônico na
expansão deste debate.
1073
Foi retomado, porém, no início dos anos 2000, na ONU, através da Cúpula
Mundial Sobre a Sociedade da Informação, onde os debates pela concretização
da comunicação se desenvolveram no sentido de não somente abordá-lo como
um direito de status negativo, mas também positivo, que impõe atuação do
Estado para concretizá-lo, assim como os demais direitos econômicos e sociais
que foram sendo conquistados no início do século XX.
Neste desiderato, expressa Moyses (2010, p. 108):
Este direito pode ser compreendido como parte do mesmo movimento
iniciado no final do século XIX, quando setores populares reivindicaram o
reconhecimento de direitos econômicos e sociais, acrescentando às
liberdades negativas conquistadas o passado a necessidade de
condições mínimas de igualdade material (e não meramente formal).
Enquanto alguns direitos que possuem essa perspectiva (os chamados
direitos de segunda geração, ou direitos econômicos e sociais) foram
sendo progressivamente reconhecidos – como os direitos ao trabalho, à
educação e à saúde – a comunicação social, neste mesmo período, foi
apropriado pelo capital e, em países como Brasil, também pelas
oligarquias locais/regionais, percorrendo caminho inverso aos outros
campos objeto de direitos humanos [...].
Deste modo, apesar do avanço legislativo na esfera internacional, deve-se
registrar que há uma imposição informacional e cultural ainda em grande medida
na escala global, com os fluxos de informação sendo predominantemente do
norte para o sul, apesar dos esforços empenhados internacionalmente, através,
por exemplo, do Global Governance Project, projeto da campanha CRIS, sigla em
inglês para o que significa: Direitos da Comunicação na Sociedade da Informação
(tradução livre do autor).
Por conseguinte, estando abalizado o contexto internacional no que tange
ao tratamento jurídico do Direito Humano à Comunicação, configura-se relevante
que adentremos ao recorte principal que se destina essa pesquisa, qual seja,
analisar como está disposta a comunicação social no Brasil, tanto nos diplomas
normativos, quanto na realidade fática, para que seja possível auferir a
necessidade da regulamentação da mídia, assim como o método adequado para
perquirir tal finalidade.
1074
4 O DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL
A comunicação social no Brasil está vinculada, num geral, às disposições
constitucionais dos incisos IV, V, VI, IX e X do artigo 5º, que compõe os Direitos e
as Garantias Fundamentais, assim como às normas do Capítulo V – Da
Comunicação Social – do Título VIII da Constituição Federal.
Os dispositivos do Art. 5º da CF correspondem, essencialmente, às
liberdades individuais conclamadas pelos documentos jurídicos ao redor do
mundo a partir dos séculos XVII e XVIII. São disposições normativas pautadas na
concepção do fato jurídico relacionado à comunicação interpessoal, ou seja, tem
o condão principal de garantir que os indivíduos possam se comunicar livremente
num ato comunicativo direto não mediatizado.
Há uma ressalva a essa liberdade no teor do inciso V já referido, que
assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por
dano material, moral e à imagem.
Muito embora represente certa limitação à liberdade plena de expressão e
informação, não há novidade nesta manifestação legislativa, já que desde a
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão consta semelhantes
reservas, como por exemplo, no art. 11: [...] Todo cidadão pode, portanto, falar,
escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade
nos termos previstos na lei”. (grifos nossos).
Por outro lado, os artigos 220 a 224 representam uma vontade
programática
da
Constituição
Federal
em
estabelecer
uma
ordem
da
Comunicação Social no Brasil que atenda aos princípios constitucionais,
fundamentalmente conquanto uma comunicação efetivamente democrática.
O professor Leonardo Martins (2012, p. 266) expõe de forma clarividente o
paradoxo constitucional referente ao campo da comunicação no sistema
brasileiro, como podemos observar a seguir:
No campo da comunicação social, o legislador brasileiro se encontra
vinculado a duas diretivas constitucionais: de um lado, às liberdades de
comunicação social e de manifestação do pensamento consoante já aqui
sucintamente discutido, e, de outro, às determinações positivas de
configuração legislativa de uma ordem da comunicação social
compatível com a Constituição
1075
Tomemos, desse modo, o tratamento jurídico constitucional pátrio da
comunicação como uma garantia de caráter negativo, que impede a intervenção
do Estado na esfera da expressão e manifestação comunicativa do indivíduo,
assim como de uma necessária atuação programática no sentido de garantir a
democratização do acesso, produção e profusão de informação através dos
meios de comunicação.
Inolvidável estabelecermos como substrato para as análises jurídicas, a
assunção da comunicação como um Direito Humano também no plano nacional,
como restou estabelecido pelo Relatório do Encontro Nacional de Direito
Humanos da Câmara dos Deputados (2005, p. 22): “[...] a valorização do direito à
comunicação como direito humano, cuja incidência transversal confere-lhe
importância crescente para a realização de todos os demais direitos”.
Exemplificado
o
modelo
teórico
jurídico,
cumpre-nos
analisar
as
circunstâncias sociais e os desafios reais para concretização de um método de
intervenção econômica para democratização do acesso à comunicação.
4.1 A Situação da Comunicação Social no Brasil e as Possibilidades de
Enfrentamento
Mesmo que em uma análise rápida e superficial, é perceptível que a
circunstância do fluxo de informação desenhado em capítulo anterior, que expôs o
hemisfério norte como emissor da informação e o sul como consumidor, se repete
na realidade brasileira, com uma mudança geográfica espacial, já que aqui o fluxo
é do sul para o norte.
Apesar da mudança na direção espacial do fluxo informacional, as
características brasileiras são semelhantes ao contexto mundial, já que a
informação flui do centro econômico financeiro para as demais regiões, repetindo,
de certo modo, a lógica colonizadora.
Fato cotidiano relevante para a presente pesquisa, que envolve a política e
o direito da comunicação, foi a manifestação política nos idos de março e abril,
que ficou conhecido como “panelaço”, que foi uma manifestação legítima
1076
concentrado essencialmente nas regiões sul e sudeste durante pronunciamento
da presidenta Dilma nas redes comerciais de televisão89.
Acontece que, do norte de Minas Gerais até os estados das regiões Norte
e Nordeste não houve manifestação do “panelaço”. Apesar disso, o referido ato se
transformou em fato político debatido nos quatro cantos do país, veiculado,
diuturnamente, pelos jornais locais, até mesmo das regiões onde não houve tal
manifestação política.
Esse fato pontual ora narrado nos serve de exemplo para explicitar a lógica
do fluxo de informação, do mesmo modo que se faz útil para adentrar na análise
das redes corporativas de controle da comunicação.
Em trabalho ímpar acerca da concentração econômica na produção da
informação, Görgen (2010, p. 79) explicita a análise feita pelo projeto do qual faz
parte, denominado Os Donos da Mídia:
Distorções regionais. Os veículos ligados às redes privadas nacionais
distribuem-se por todos os Estados do país. A comparação do número
de veículos encontrado em cada região do país e do percentual destes
com os percentuais da população, do número de domicílios, do Produto
Interno Bruto (PIB) e do Índice Potencial de Consumo (IPC), mostram
diversas incongruências. Na região Sudeste, uma pequena parcela dos
veículos (21,9%) ligados às redes atua no maior mercado do país (58,7%
do PIB e 51,4% do potencial de consumo), onde vive o maior contingente
de população (42,4%). Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste
estabelece se uma relação inversamente proporcional. Um grande
número de veículos atua sobre uma menor parcela da população e em
mercados menores. No somatório destas três regiões, a pesquisa
constatou que 60% de todos os veículos ligados às redes privadas
nacionais encontram-se em uma área que corresponde a 42,6% da
população, 24,9% do PIB e 31,3% do potencial de consumo. A exceção
a este quadro distorcido se dá na região Sul, onde há uma certa
proporcionalidade entre os índices.
Esta análise da concentração regional na produção da informação é
sintomática, já que isto significa a existência de uma problemática ainda mais
ameaçadora à concretização do direito humano à comunicação, pois demonstra
que o mercado midiático é controlado, através dos grupos afiliados, por uma
pequena quantidade de grandes empresas situadas no centro financeiro do país.
Ora, redes como Globo, SBT, Record, Bandeirantes e Rede TV possuem
cerca de 80% dos grupos de comunicação regional filiados aos seus quadros, o
89
Em virtude do alcance insuficiente dos canais de TV vinculadas ao Estado, que deveriam estar
aptas a desenvolver um papel político informativo, foi necessário utilizar-se de horário nobre das
redes comerciais de TV.
1077
que gera, por consequência, um controle dos veículos locais de forma direta ou
indireta. Assim, aproximadamente metade dos 2.422 veículos ligados às redes
possui ligação com alguma das cinco maiores redes de televisão ou das três
maiores redes de rádio (GÖRGEN, 2010).
Há um quadro inequívoco de oligopólio econômico, que por si só é uma
ofensa à ordem jurídica e substancialmente prejudicial à sociedade, porém, o que
torna a circunstância ainda mais gravosa é o fato de ser relacionado ao setor
midiático televisivo e radiofônico, responsável, hodiernamente, por muito da
formação cultural, da consciência política e da opção ideológica da população.
O combate à concentração econômica midiática é medida que se impõe
pelo próprio texto constitucional, que veda o monopólio e o oligopólio direto ou
indireto no campo da comunicação social, como se depreende da taxatividade do
art. 220, §5 da Constituição Federal.
A defesa da ordem econômica livre não é nenhuma novidade para a ordem
constitucional, no sentido de promover a defesa do livre mercado e dos direitos
dos indivíduos que consomem informação das TVs e rádios.
Veja que aqui se propõe um primeiro passo para regulamentação da mídia,
qual seja, a democratização do acesso aos meios de produção e veiculação do
conteúdo através das concessões públicas, que devem ser feitas de forma plural
e respeitando as condições sócio culturais da localidade de transmissão da
informação.
Deve-se criar métodos para combater a concentração midiática a partir de
todo indício de monopolização de meios comunicativos, como, por exemplo, os
chamados cross media ownership, que é a propriedade cruzada dos meios de
comunicação.
Ressalte-se, por oportuno, que esta atuação repressiva não requer
obrigatoriamente uma regulamentação normativa das telecomunicações, tendo
em vista que a Constituição já proíbe a concentração de meios de comunicação,
carecendo tão somente de uma atuação de órgãos de investigação e repressão,
como o Ministério Público Federal, para concretizar as disposições normativas
constitucionais.
1078
Obviamente, um exame de proporcionalidade é sempre salutar – e no
presente debate que envolve uma liberdade é ainda mais – para o intérprete do
Direito ponderar o caso concreto no que tange às colisões de direitos. Essa
ponderação, porém, não deve obstaculizar a atuação em combate a essa
anomalia do mercado (oligopólios), o qual é repudiado pelo Direito Constitucional,
Econômico e Concorrencial.
Apesar de já haver previsão constitucional para o combate aos oligopólios,
em face da disposição da Constituição possuir caráter aberto, o aplicador do
Direito vê-se diante de uma impossibilidade fática de aplicação das normas
dirigentes à uma comunicação social justa e democrática.
Vislumbra-se aqui, portanto, a necessidade de regulação econômiconormativa da mídia, através da regulamentação, em lei infraconstitucional de
caráter fechado e de subsunção normativa imediata, do §5º do art. 220 da
Constituição Federal, no sentido de corrigir o defeito do mercado e possibilitar que
mais sujeitos tenham a capacidade de produzir e veicular conteúdo nos meios de
comunicação de massa, transformando-os em canais plurais de identidade e
diálogo com os indivíduos receptores e, possivelmente, transformadores da
informação.
Além disso, um segundo ponto essencial para ser abordado numa
formulação legal da regulamentação normativa da mídia é a criação e
manutenção de um órgão central suprapartidário e composto por membros da
sociedade civil com competência para debater os rumos da telecomunicação no
país, como há na Alemanha e nos Estados Unidos
Obviamente, um Órgão Central havia de ser criado num contexto de
telecomunicação renovado, desde que ultrapassado esse modelo concentrado
que ora se percebe. Caso contrário, o órgão restaria controlado pelos mesmos
agentes que controlam a ordem econômica da comunicação social.
Um terceiro ponto a ser inserido numa possível regulamentação da mídia,
seria a própria proibição de parlamentares possuírem o domínio direto ou indireto
de órgãos de radiodifusão, pois, como salienta Leonardo Martins (2012, p. 268),
representa um desserviço ao propósito ora discutido e deve ser vedado.
1079
Os prejuízos advindos do domínio de canais de comunicação por agentes
políticos são inequívocos, já que as concessões são frutos, usualmente, de
conchaves políticos e trocas de favor (GÖRGEN, 2010), e provoca, em nível
regional, um claro desequilíbrio nas disputas político-eleitoral, por vezes,
distorcendo, criando ou omitindo informações em benefício de seu proprietário,
fulminando a própria essência do direito à comunicação.
As três medidas mencionadas postas em debate fazem parte de um rol de
outras medidas necessárias à regulamentação econômica da mídia no Brasil,
objetivando a concretização em plenitude das liberdades de expressão,
informação, manifestação, pensamento, palavra e crença. Em miúdos, são
algumas das alternativas viáveis para concretizar a comunicação como um Direito
Humano, tornando possível seu exercido de forma democrática, plural, em defesa
de minorias e da promoção de igualdade econômica.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Longe de ter exaurido a temática e as possibilidades de resolução da
problemática, passo a tecer as considerações finais, ciente de que os objetivos do
presente recorte científico foram devidamente atingidos, mesmo que as nossas
proposições sejam taxadas de utópicas e seus meios de impossíveis, está
registrado nesse trabalho acadêmico os delírios de um sonhador, como queria
que o fizéssemos Eduardo Galeano, agora in memorian.
Afora sonhos, observa-se que o tratamento jurídico da comunicação
evoluiu ao longo do tempo. Surgiu como forma de tutelar a capacidade e
possibilidade dos homens90 de se manifestar abertamente sem a preocupação de
haver censura pelo Estado na figura do rei, numa perspectiva de comunicação
interpessoal, limitada ao convívio das pessoas.
Subsequentemente, os documentos jurídicos passaram a garantir um
direito à comunicação social, que aprofunda o conceito e agrega as liberdades,
90
Registre-se que aqui fazemos menção somente aos homens, já que à época dos primeiros
documentos que registravam a liberdade de expressão, pensamento e imprensa, realmente, se
pretendia resguardar esses direitos aos homens, em específico, aos homens burgueses, classe
social ascendente nos séculos XVI, XVII e XVIII;
1080
buscando propiciar aos indivíduos a possibilidade de se manifestar perante a
sociedade utilizando-se dos meios e recursos tecnológicos que permitem a
comunicação em massa.
Desse modo, se vislumbra que a comunicação enquanto Direito Humano
deve ser tutelada e garantida na sua plenitude, através, inclusive, da
democratização dos veículos midiáticos, que devem – assim como a liberdade de
falar que outrora era privilégio – passar por um processo de descentralização
econômico e geográfico.
No contexto brasileiro, é possível perceber que há mecanismos
constitucionais que garantem o acesso democrático à comunicação, porém resta
impossibilitado de concretização face à omissão parlamentar de regulamentar os
dispositivos constitucionais, no sentido de torná-los exequíveis por meio de lei que
regulamente economicamente a telecomunicação no país.
Neste desiderato, faz-se necessário, aqui reside a materialidade sugestiva
de ação do presente artigo, que a sociedade civil se organize politicamente para
realizar pressão popular e democrática, pois, por se tratar de uma autolimitação
de privilégios dos parlamentares, a regulamentação econômica da mídia
necessita e exige apelo popular para transformar os debates acadêmicos e
sociais em processo legislativo oficial.
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1082
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Comunicação. Um Mundo e Muitas Vozes: comunicação e informação na nossa
época. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983.
1083
OS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE A PARTIR DO DIÁLOGO ENTRE
O PENSAMENTO DE KARL MARX E NORBERTO BOBBIO
Rômulo Magalhães Fernandes,
RESUMO: O presente artigo constitui uma análise do pensamento de Karl Marx e
de Norberto Bobbio quanto ao tema dos Direitos Humanos, tendo em vista as
contradições do Estado Constitucional na consolidação plena de tais direitos na
atualidade. A partir de uma pesquisa bibliográfica, busca-se traçar um paralelo
entre Karl Marx e Norberto Bobbio, resgatando a crítica da emancipação política,
para, assim, questionar o aparente consenso do discurso atual dos Direitos
Humanos e revelar seus contraditórios pressupostos que reforçam a necessidade
de se problematizar, ou mesmo de romper, com a ordem econômica e social
estabelecida.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Karl Marx; Norberto Bobbio.
1 INTRODUÇÃO
Na atualidade, percebe-se que a compreensão dos Direitos Humanos
ocupa uma espécie de “lugar-comum”, em que a defesa de tais direitos é vista,
necessariamente, como sinônimo de conquista de homens e mulheres mais livres
e humanos (TONET, 2009a, p. 1).
Contudo, será que a análise que se faz dos Direitos Humanos como
efetividade da liberdade humana estaria sendo usada da forma mais crítica? Os
Direitos Humanos, mesmo se considerados seus aspectos positivos, teriam
alcance limitado?
Responder a tais indagações é o principal desafio deste artigo, assim como
aprofundar a análise teórica e política de Karl Marx e Norberto Bobbio sobre
perspectiva atual dos Direitos Humanos.
Por vezes, a luta pelos Direitos Humanos como único e incontornável
caminho para a o “progresso da humanidade”, acaba por deixar em segundo
plano as análises que buscam desvendar as diferentes matrizes filosóficas e
1084
ideológicas que fundamentam esses direitos. E, dessa forma, privilegiam o debate
reduzido aos instrumentos técnico-jurídicos que garantam a sua proteção.
Percebe-se uma multiplicação de tratados e pactos sobre os direitos
humanos, mas estes não possuem a capacidade de constranger organizações
governamentais e não-governamentais quanto à criação de condições para que
esses direitos sejam efetivados.
As reivindicações sociais apresentam uma luta cada vez mais restrita ao
aperfeiçoamento da democracia capitalista, em que o horizonte máximo da
humanidade deixa de ser visto como resultado de uma ruptura econômica, social
e cultural para predominar a luta por um Estado social que garanta o mínimo de
igualdade para as pessoas.
Nesse sentido, destaca-se o contexto da crítica marxista e a importância da
radicalidade do pensamento de Marx para a compreensão de seu posicionamento
sobre o tema. Ademais, aborda-se textos mais recentes sobre o tema dos Direitos
Humanos, como é o caso da obra “A Era dos Direitos” de Norberto Bobbio, no
intuito de demonstrar diferenças e proximidades entre esse autor e a teoria social
de Karl Marx.
2 O PROJETO SOCIALISTA E O MARXISMO
Depois da tomada do poder pela revolução soviética – realizada em nome
do marxismo e com o intuito de instaurar o socialismo, acontece na URSS um
processo de supressão de direitos e liberdades democráticas dos indivíduos e
uma excessiva concentração de poderes nas mãos do Estado. Como resultado de
um processo histórico complexo, o que se nota é a degeneração dos preceitos
defendidos pela revolução e o surgimento de uma brutal ditadura (TONET, 2009b,
p. 7).
A problemática dos direitos humanos, por sua vez, ganha destaque a partir
das denúncias de Krutschev no XX Congresso do Partido Comunista da União
Soviética (PCUS), em 1976, onde se revela a existência de campos de
concentração, crimes de tortura e demais delitos cometidos na URSS comandada
por Stálin. Na medida em que a URSS era vista como a realização do
1085
pensamento de Marx, inevitavelmente, essas revelações obrigavam os marxistas
a reverem a relação entre Marx e os Direitos Humanos, a democracia e a política
em geral (SOUZA, 2008, p. 9).
Nesse sentido, o filosofo Ivo Tonet destaca algumas críticas sobre o
período:
Foram, então, retomadas as idéias de Marx e os seus desdobramentos
na revolução soviética, sendo aquelas criticadas por sua suposta
estreiteza. Segundo estes críticos, as conseqüências derivadas daquela
concepção manifestavam claramente a sua falsidade. O raciocínio, em
resumo, era o seguinte: a concepção de que os direitos humanos têm
como sujeito o indivíduo burguês se constitui em um poderoso
argumento para a sua supressão pelos regimes “socialistas”. O resultado
era que todos estes regimes sempre acabavam em ditadura. No entanto,
assim como indivíduo não é sinônimo de indivíduo burguês, também os
direitos humanos não são sinônimos de direitos de caráter meramente
burguês. Estes direitos tem um caráter universal, ou seja, são
objetivações que estendem sua validade para além da sociedade
capitalista. Por isso mesmo, em vez de serem suprimidos ou impedidos
de se desenvolver, deveriam ser defendidos e ampliados numa
sociedade socialista. Somente assim se evitaria a supressão não só das
limitações burguesas dos direitos humanos, mas, juntamente com os
direitos, também do indivíduo (TONET, 2009b, p. 7).
E continua:
Esta luta pelos direitos humanos deveria estar articulada na luta pela
defesa, ampliação e melhoria do conjunto dos direitos e instituições que
constituem a cidadania e a democracia bem como a democratização do
Estado e do capital. Para alguns autores atuais, nem mesmo a
propriedade privada deve ser inteiramente eliminada. O que se deveria
fazer seria conferir-lhe um forte conteúdo social. Este seria o caminho,
certamente tortuoso e complexo, mas indefinidamente aberto para a
construção de uma sociedade mais justa e humana (TONET, 2009b, p.
8).
Essas reflexões, influenciadas diretamente pelo seu momento histórico,
favorecem a idéia de fracasso da proposta socialista e da sua incompatibilidade
com os Direitos Humanos, restando àqueles que ousam reivindicar outra
sociedade apenas a luta pelo aperfeiçoamento social da democracia capitalista.
As teorias do “fim da história” de Francis Fukuyama, por exemplo, recebem
destaque nesse contexto, uma vez que, devido ao colapso do “campo socialista”,
a história teria chegado ao seu fim com a vitória da democracia liberal.
A conseqüência destes fatos para o estudo das obras de Karl Marx sob a
perspectiva do direito acaba por reforçar a recusa pelo conteúdo global de seus
textos, deixando em segundo plano (ou abandonada) a radicalidade do seu
1086
pensamento. Isto é, nega-se a necessidade de ruptura e ultrapassagem do
sistema capitalista pela revolução social.
Nesse contexto de polêmica, nada melhor que o resgate crítico de Karl
Marx. O que seria o projeto socialista para Marx? Quais as suas principais
características?
De forma breve o professor Ivo Tonet destaca:
Para Marx, socialismo implica uma forma de sociabilidade cujo
fundamento é o trabalho associado. Forma esta de trabalho que tem
como condições indispensáveis um alto grau de desenvolvimento das
forças produtivas e uma grande redução do tempo de trabalho
necessário. Além disso, tem por núcleo decisivo o fato que os indivíduos
põem em comum as suas forças e de que estas permanecem sempre
comuns, tanto na produção, como na distribuição do consumo. É esta
base material que permite os homens serem plenamente livres, ou seja,
terem o controle consciente e coletivo do processo de trabalho e,
consequentemente, de todo processo social. É esta base material que
permite aos homens realizar plenamente suas potencialidades e dar
sentido autêntico à sua vida (TONET, 2009b, p. 12).
Socialismo não é o contrário de capitalismo. Quer dizer, para ele [Marx] o
eixo do socialismo não é a coletividade em oposição ao indivíduo como
eixo da sociabilidade capitalista. Segundo ele, a predominância da
coletividade sobre o indivíduo teve lugar em formas de sociabilidade
anteriores do capitalismo. O socialismo, contudo, só pode ser uma
articulação harmônica – não isenta de conflitos e tensões – entre
indivíduos e coletividade. Isto porque socialismo é – não por uma
simples aspiração do sujeito, mas por determinação do processo
histórico-social – a apropriação, pelos indivíduos, da riqueza humana
universal – material e espiritual – e consequentemente configuração
como um indivíduo rico, multifacetado, omnilateralmente desenvolvido
(TONET, 2009b, p. 12).
Tendo isso em vista e a realidade da URSS, nota-se que, não por uma
simples questão de vontade, o regime soviético contradiz elementos centrais do
pensamento de Marx. As condições de atraso econômico, cultural e político da
Rússia pré-revolucionária acarretaram consequências que impediam a conversão
URSS em uma forma mais avançada e completa de democracia (FERNANDES,
1996, p. 12).
Também no debate em torno de qual a natureza do direito na URSS pósrevolucionária, percebe-se o desvio da teoria social de Marx. É emblemática, por
exemplo, a polêmica entre o Comissário do Povo para a Justiça, Pitor Stutchka, e
o Vice-Comissário Evgeni Pachukanis, em que o primeiro defende a existência e
aplicação de um “Direito Proletário”, ou seja, onde a base e o conteúdo do direito
1087
são determinados de acordo com o interesse da classe (“tantas classes, tantos
conceitos de direito”) (STUTCHKA Apud ALAPANIAN, 2005, p. 18).
Por outro lado, Pachukanis nega a possibilidade do direito proletário e
reafirma as análises de Marx e Engels a respeito da necessidade da extinção da
forma jurídica e da extinção do Estado. A realidade da URSS, por sua vez,
demonstrou a negação e a perseguição das idéias de Pachukanis, além da
disseminação do pensamento de Stutchka, defendendo maior presença do
ordenamento jurídico na sociedade e concentração de poder nas mãos do
Estado. Isso é reforçado por Márcio Bilharinho Naves na sua obra “Marxismo e o
Direito”:
Podemos, então, começar a entender as razões que levaram à
reconstituição do tecido jurídico e à elevação do direito à plena cidadania
teórica. A concepção mesmo do “socialismo” stalinista – na verdade, um
capitalismo de Estado – exigia a elaboração de uma doutrina do direito
que lhe servisse de fundamento ideológico. Começamos a perceber
também as razões que levaram à completa renúncia dos postulados
originais de Pachukanis, a necessidade imperiosa de apagar da memória
comunista os vestígios da irredutibilidade burguesa e de todo o direito,
apagar suas palavras que denunciavam a contradição inerente a um
projeto de socialismo fundado na ilusão jurídica (NAVES, 2008, p. 167,
grifos no original).
Apesar da existência de tais fatos (e muitos outros) que contestam a
reciprocidade irrestrita entre a realidade soviética e o projeto socialista, ainda se
percebe na intelectualidade marxista das universidades, dos movimentos sociais
e dos partidos de esquerda a necessidade de uma autocrítica do processo
histórico da Rússia, assim como da China, de Cuba, dentre outros, para
superarem o discurso generalizado que se funda na aparência e no imediatismo
dos acontecimentos.
3 CRISE DO CAPITALISMO E O RESGATE DAS IDEIAS MARXISTAS
A desmoralização do “socialismo real”, mesmo que de forma acrítica,
acarreta descrédito ao projeto socialista. Todavia, a recente história de desmonte
do Estado de bem-estar social, a expansão do neoliberalismo e a atual crise
estrutural capitalista acabam por reascender o debate das idéias de Marx sobre
1088
as contradições do sistema capitalista e a necessidade de outro projeto de
sociedade.
Na década de 60, a política de Estado de bem-estar social, praticada
predominantemente nos países centrais e por um curto período de tempo,
começa a demonstrar as suas limitações. Se, em um primeiro momento, a política
de intervenção do Estado na economia, incentivando o consumo, conseguiu
assegurar algumas garantias sociais para os trabalhadores e controlar a crise de
superprodução, a partir das décadas de 70 e 80 este quadro modifica-se
drasticamente com o esgotamento do ciclo momentâneo de crescimento
capitalista.
Políticas baseadas em premissas liberais são retomadas e aprofundadas,
desenvolvendo a expansão da ordem capitalista pelo que se denominou
Neoliberalismo. Com medidas de não intervenção na economia, consolidaram-se
ações de privatização do aparato estatal e retração dos investimentos sociais do
período anterior. O que se percebe é uma ofensiva do capital sobre os
trabalhadores, tendo em vista a exigência de novos padrões de acumulação,
obtidos pela reestruturação da organização do trabalho e pelo desenvolvimento
das forças produtivas. Tal ofensiva é comandada, principalmente, pelos governos
de Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Inglaterra) e alastra-se em poucos
anos para todo o globo, consolidando, assim, um verdadeiro movimento de
hegemonia neoliberal no campo econômico, militar, político e ideológico, com
claro destaque para os Estados Unidos favorecido pelo “pós-guerra”91.
Os efeitos dessa política são devastadores para países periféricos como o
Brasil, especialmente, no atual período de crise internacional. O Estado brasileiro,
na medida em que seguiu a “cartilha” neoliberal de abertura econômica e
desregulamentação financeira, demonstra sua fragilidade diante às imposições do
mercado internacional quanto à flexibilização de direitos sociais e à destinação de
recursos.
91
“No fim da guerra os EUA detinham metade da riqueza do planeta e uma posição de poder sem
precedentes na história” (CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas. São Paulo: Bertrand
Brasil, 2002, p. 10).
1089
Nesse contexto, prevalece a radicalização das desigualdades sociais e da
necessidade de uma fundamentação teórica que explique as contradições do
capitalismo. Com isso, a teoria marxista ganha destaque, tanto na denúncia da
crise sócio-econômica, como no necessário debate sobre outra sociedade
baseada em novos alicerces.
O debate sobre os Direitos Humanos, necessariamente, é influenciado por
este contexto. Nunca foram firmados tantos tratados e declarações internacionais
sobre os Direitos Humanos como nas últimas décadas. Entretanto, é neste
mesmo período que se percebe a ampliação da pobreza mundial e a expansão de
conflitos sociais.
A riqueza mundial cresceu sete vezes entre 1948 e 1996, mas o número
de pobres no mundo triplicou nesse período. Os 20% mais pobres do
planeta detinham ao término do século XX, apenas 1,15% das riquezas
geradas, ao passo que os 20% mais ricos já monopolizavam 82% dos
ingressos mundiais (OLIVEIRA, 2007, p. 82).
Esse panorama apenas reforça a atualidade da substituição da retórica
simplista em defesa de tais direitos pela busca das principais questões (políticas e
teóricas) que impedem a sua efetivação plena. Isso, a partir da denúncia dos
limites da emancipação política e da incompatibilidade entre a sociedade
capitalista e a emancipação humana. Para tanto, deve-se aprofundar os estudos
sobre a teoria social de Karl Marx em sua perspectiva global e original.
4 MARX E A OBRA “A ERA DOS DIREITOS” DE NORBERTO BOBBIO
A abordagem sobre os direitos humanos realizada por Karl Marx na obra “A
Questão Judaica” (1844) evidencia uma crítica filosófica e política ao
individualismo burguês e à decadência capitalista, onde os direitos do homem –
tal como foram elaborados historicamente – são antes de tudo os direitos do
homem separados da comunidade (MICHEA, 1992, p. 2).
Decorridos mais 200 anos da publicação da obra, a compreensão sobre o
tema dos Direitos Humanos modificou-se bastante, mas não ao ponto de superar
a crítica de Karl Marx sobre o assunto. Na sociedade capitalista atual, tais direitos,
necessariamente, continuam a esbarrar nos limites próprios da emancipação
política.
1090
Nos tópicos seguintes pretende-se destacar alguns pontos que diferem e
aproximam o pensamento de Karl Marx do posicionamento do autor
contemporâneo Norberto Bobbio, na sua obra “A Era dos Direitos” (1992). Isso, no
intuito de explicitar os principais fundamentos da teoria social de Karl Marx e sua
relação com o debate atual dos Direitos Humanos.
A escolha do autor Norberto Bobbio não aconteceu por acaso. Nos últimos
anos, esse pensador participou de simpósios e conferências em universidade,
produzindo um conjunto de textos sobre o tema dos Direitos Humanos numa
perspectiva da história social e civil.
Nesse sentido, Bobbio levanta três teses centrais referentes aos Direitos
Humanos: os direitos naturais são históricos; nascem no início da idade moderna,
juntamente com a concepção individualista da sociedade burguesa; tornam-se um
dos principais indicadores do progresso histórico (BOBBIO, 1992, p. 2). Para
defender
seus
posicionamentos
e
argumentações,
Norberto
Bobbio,
constantemente, tende a resgatar pensadores modernos, como Karl Marx.
5 O CONTEÚDO SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS
Bobbio, assim como Marx, acredita que os Direitos Humanos são direitos
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias e não isentos a influência
de conflitos e contradições sociais. Por isso, falar de Direitos Humanos como
direitos naturais ou fundamentais, inalienáveis ou invioláveis, acaba por reforçar
fórmulas de uma linguagem persuasiva, mas de pouco valor teórico (BOBBIO,
1992, p. 7). Norberto Bobbio quer, dessa maneira, ressaltar que “o problema dos
direitos do homem não pode ser dissociado do estudo dos problemas históricos,
sociais, econômicos, psicológicos, inerentes a sua realização” (BOBBIO, 1992, p.
24).
No contexto atual de grave desrespeito aos direitos mais básicos, tal
análise dá contornos progressistas à defesa dos Direitos Humanos, valorizando
seu conteúdo social.
Bobbio vincula a contribuição de Marx ao debate dos Direitos Humanos
associado, quase que exclusivamente, aos Direitos Humanos de segunda
1091
dimensão, de caráter social e econômico. Isso, na medida em que as lutas sociais
do século XIX, influenciadas pelas idéias socialistas, ajudaram a denunciar o
contraditório discurso formal e individualista dos direitos de primeira dimensão.
Os Direitos Humanos como estavam enunciados nas declarações de
direitos e nas constituições dos séculos XVIII e XIX, não passavam de
expressão formal de um processo político-social e ideológico realizado
nas lutas sociais no momento de ascensão da burguesia ao poder
político (DORNELLES, 1989, p. 17).
Desde aquele período, o movimento operário demonstrava que não basta o
reconhecimento puro e simples de um direito “inerente” ao ser humano para
garantir seu exercício. Diferentemente dos Direitos Humanos de primeira
dimensão, que estabelecem limites ao Estado em proteção às liberdades
individuais, os direitos econômicos e sociais de segunda dimensão pressupõem
maior participação do Estado (BOBBIO, 1992, p. 72), acarretando uma ampliação
do poder estatal. Além disso, exige-se do Estado uma ação social positiva, no
qual possibilite o exercício de direitos pelos indivíduos de posição subalterna na
estrutura produtiva da sociedade.
Ora, se somos todos iguais perante a lei, que essa igualdade seja
garantida materialmente, pois do contrário não existe igualdade, e sim
exploração de uma classe mais poderosa sobre um enorme contingente
humano que nada possui, a não ser a própria pele para vender ao preço
de mercado, submetendo-se às necessidades da produção
(DORNELLES, 1989, p. 28).
A partir do frágil discurso formal do direito – comum na concepção
individualista da sociedade burguesa do século XIX – Bobbio expõe o que
acredita ser o ponto central sobre os direitos humanos na atualidade: o problema
não reside no seu reconhecimento jurídico, o problema real consiste em garantilos social e praticamente. Para o autor, a sociedade contemporânea num longo e
inacabado processo demonstra-se sensibilizada pela necessidade de tais direitos,
devendo, agora, lutar por mecanismos reais da sua efetivação.
Gradativamente, o que se percebe é a apropriação de apenas parte do
pensamento de Marx e não da totalidade de sua teoria. Isso, muitas vezes, leva
Bobbio a negar e até a combater as idéias de Karl Marx com relação aos Direitos
Humanos e aos limites próprios da emancipação política.
Ao contrário de Marx, Norberto Bobbio afirma que os Direitos Humanos são
um sinal de inequívoco progresso da sociedade, reforçando, com isso, o que
1092
acredita ser o principal desafio da sociedade atual: caminhar rumo ao
fortalecimento do Estado social e do aperfeiçoamento da democracia moderna.
6 A CRÍTICA DE MARX E O PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO
Na segunda parte da obra “A Era dos Direitos”, Norberto Bobbio aborda de
forma mais específica a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)
e a crítica de Karl Marx sobre os direitos humanos.
A Declaração, desde então até hoje,
recorrentes e opostas: foi acusada de
reacionários e conservadores em geral;
interesses de uma classe particular, por
(BOBBIO, 1992, pp. 97-98).
foi submetida a duas críticas
excessiva abstratividade pelos
e de excessiva ligação com os
Marx e pela esquerda em geral
E continua, aprofundando-se sobre a perspectiva de Marx:
A crítica oposta – segundo a qual a Declaração, em vez de ser
demasiadamente abstrata, era tão concreta e historicamente
determinada que, na verdade, não era a defesa do homem em geral, [...]
mas do burguês, que existia em carne e osso e lutava pela própria
emancipação de classe contra a aristocracia, sem se preocupar muito
com os direitos do que seria chamado de Quarto Estado – foi feita pelo
Jovem Marx [...]. De nenhum modo se tratava do homem abstrato,
universal! O homem de que fala a Declaração era, na verdade, o
burguês; os direitos tutelados na Declaração eram os direitos do
burguês, do homem (explicava Marx) egoísta, do homem separado dos
outros homens e da comunidade, do homem enquanto “mônada isolada
e fechada em si mesma” (BOBBIO, 1992, p. 99).
Mesmo sem uma análise cuidadosa do texto de Marx, Bobbio diz que tais
interpretações
dos
direitos
do
homem
e
do
Estado
moderno
geram
consequências “funestas” (BOBBIO, 1992, p. 99). Em sua argumentação, o autor
italiano dá exagerado destaque às “consequências” da interpretação marxista nos
dias atuais, deixando para segundo plano a fundamentação de Marx sobre o
assunto. A defesa da liberdade pessoal e as experiências “totalitárias” do pósguerra influenciam, diretamente, a análise de Bobbio quanto a critica de Marx.
Parece-me, difícil negar que a afirmação dos direitos do homem, in
primus os de liberdade (ou melhor, de liberdades individuais), é um dos
pontos firmes do pensamento político universal, do qual não mais se
pode voltar atrás (BOBBIO, 1992, p. 99).
Para Bobbio, a crítica de Marx sobre a concepção individualista da
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão é “justíssima”, todavia,
inaceitável.
Nesse sentido, ele explicita por que considera “justíssima”:
1093
Decerto, o ponto de vista no qual se situa a Declaração para dar uma
solução ao eterno problema das relações entre governantes e
governados é o do indivíduo, do indivíduo singular, considerado como o
titular do poder soberano, na medida em que [...] não existe nenhum
poder acima dele. O poder político, ou o poder dos indivíduos
associados, vem depois. É um poder que nasce de uma concepção; é o
produto de uma invenção humana [...]. Esse ponto de vista representa a
inversão radical do ponto de vista tradicional do pensamento político,
seja do pensamento clássico, [...] seja do pensamento medieval [...].
Dessa inversão nasce o Estado moderno: primeiro liberal, no qual os
indivíduos que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da
sociedade; depois democrático, no qual são potencialmente todos a
fazer tal reivindicação; e, finalmente, social, no qual os indivíduos, todos
transformados em soberanos sem distinção de classe, reivindicam –
além dos direitos de liberdade – também os direitos sociais, que são
igualmente direitos do indivíduo: o Estado dos cidadãos, que não são
mais somente os burgueses [...] (BOBBIO, 1992, p. 100).
Mas, não aceitável:
Hoje, o próprio conceito de democracia é inseparável do conceito de
direitos do homem. Se se elimina uma concepção individualista da
sociedade, não se pode mais justificar a democracia do que aquela
segundo a qual, na democracia, os indivíduos, todos os indivíduos,
detêm uma parte da soberania. E como foi possível firmar de modo
irresistível esse conceito senão através da inversão da relação entre
poder e liberdade, fazendo-se com que a liberdade precedesse o poder?
Tenho dito frequentemente que, quando nos referimos a uma
democracia, seria mais correto falar de soberania dos cidadãos e não
soberania popular. [...] as decisões coletivas não são tomadas pelo povo,
mas pelos indivíduos, muitos ou poucos, que o compõem. Numa
democracia, quem toma as decisões coletivas, direta e indiretamente,
são sempre e apenas indivíduos singulares, no momento em que
depositam o seu voto na urna. [...] a sociedade não é um corpo orgânico,
mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, não teria nenhuma
justificação o princípio da maioria, o qual, não obstante, é a regra
fundamental de decisão democrática. E a maioria é o resultado de uma
simples soma aritmética, onde o que se soma são os votos dos
indivíduos, um por um. Concepção individualista e concepção orgânica
da sociedade estão em irremediável contradição (BOBBIO, 1992, p.
102).
Assim, Bobbio defende a concepção “individualista da sociedade” e repudia
concepções anti-individualistas, ressaltando que “através do anti-individualismo
passaram mais ou menos todas as doutrinas reacionárias” (BOBBIO, 1992, p.
102). A partir dessa argumentação indireta, Bobbio constrói seu posicionamento
contrário às idéias de Marx sobre os Direitos Humanos.
Na obra a “Era dos Direitos”, Norberto Bobbio aborda a relação de Marx
com os Direitos Humanos sem uma pesquisa minuciosa das suas obras,
considerando, por exemplo, “A Questão Judaica” um texto “suficientemente
conhecido para que não seja preciso ocuparmos de novo dele” (BOBBIO, 1992, p.
1094
99). Além disso, Bobbio analisa tal relação, influenciado pela crítica ao
“totalitarismo stalinista”, em que a negação dos Direitos Humanos implica,
necessariamente, a negação da liberdade individual, como se a única maneira de
afirmar a liberdade individual fosse através dos Direitos Humanos.
Entre a perspectiva bobbiana e a de Karl Marx nota-se um paralelo que,
muitas vezes, caminha por lados opostos. Enquanto Bobbio afirma que não é
mais tempo de fundamentar os Direitos Humanos (problema que já teria sido
superado com a aprovação, pela ONU, da Declaração Universal), e sim, tempo de
concretizá-los na prática; Marx afirma que “os filósofos se limitaram a interpretar o
mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo” (MARX, 2004,
p. 120), o que evidencia uma diferença essencial:
Marx não estava falando de abandonar a filosofia em nome da ação
transformadora, e sim de elaborar uma filosofia voltada para a ação
transformadora, que fosse reflexiva e crítica o bastante para tornar
possível uma ação verdadeiramente transformadora (COELHO, 2009, p.
1, grifos no original).
A reflexão de Bobbio sobre os Direitos Humanos é de grande relevância na
atualidade, mas possui limitações consideráveis. Ao mesmo tempo em que traz à
tona o debate dos Direitos Humanos como uma questão a ser enfrentada pelos
Estados e indivíduos, ele não é capaz de questionar os fundamentos de uma
sociedade baseada na exploração do homem pelo homem, na qual a organização
social é incompatível com a efetivação dos Direitos Humanos mais fundamentais.
Marx, por sua vez, preocupa-se em escancarar tais contradições e esclarecer
qual emancipação está em jogo para a humanidade.
7 A CRÍTICA À EMANCIPAÇÃO POLÍTICA
Quando se fala em crítica sobre a emancipação política em Karl Marx, fazse necessário esclarecer dois pontos básicos, evitando, dessa forma, falsas
polêmicas. O primeiro é sobre a idéia de crítica em Marx. Para o autor, crítica não
é uma desqualificação ou uma questão de simples lógica, mas sim, um exame da
lógica do processo social – levando sempre em conta que é um produto da
atividade humana – de modo a apreender a sua natureza própria, suas
1095
contradições, suas tendências, seus aspectos positivos e negativos, suas
possibilidades e limites (TONET, 2005, p. 54).
O segundo ponto é sobre a crítica radical do autor quanto às dimensões
político-jurídicas da emancipação política, das quais os direitos humanos fazem
parte. Ao destacar os limites próprios de tal emancipação, Marx não pretende, no
plano essencial, desprezar a sua importância, nem a das ações do Estado, da
burguesia e das lutas da classe trabalhadora na sua consolidação. Isso, na
medida em que, de forma geral, é inegável o progresso que a emancipação
política representa em comparação com a sociedade feudal (TONET, 2005, p.
73). Nesse sentido, Marx diz:
Não há dúvida que a emancipação política representa um grande
progresso. Embora não seja última etapa da emancipação humana em
geral, ela se caracteriza como derradeira etapa da emancipação humana
dentro do contexto do mundo atual (MARX, 2009, p. 52, grifos no
original).
Tendo clareza dessas questões, a crítica de Marx pode ser melhor
compreendida, inclusive, numa relação com a atualidade do tema dos Direitos
Humanos.
Para Karl Marx o ponto de partida da análise são os indivíduos concretos e
as relações que eles travam entre si na produção econômica, sendo que, a partir
do surgimento da propriedade privada e das classes sociais em conflito (geradas
com a apropriação particular da força de trabalho coletiva), as relações deixam de
ser comunitárias para se tornarem antagônicas. Todavia, a reprodução social
dessa forma de sociedade manifesta-se, necessariamente, por um poder político
e jurídico capaz de envolver o aparato político, jurídico, ideológico e administrativo
como algo destacado da sociedade, apenas, aparentemente, acima dos
interesses particulares (TONET, 2009b, p. 4).
Marx revela, com isso, que o Estado, a política e o direito possuem raízes
na desigualdade social, ou seja, tem uma base real desigual, produto da divisão
social do trabalho e da propriedade privada. Além disso, ele questiona a ilusão
(defendida por muitos autores liberais e contemporâneos) que a forma de
organização social é resultado das transformações da esfera política e não,
necessariamente, da esfera econômica.
1096
Tais reflexões alcançam o Estado democrático atual, cujo aperfeiçoamento
é incapaz de superar algo que lhe é intrínseco. Em outras palavras, o Estado
Democrático de Direito – mesmo sendo a emancipação política na forma mais
desenvolvida – não é a forma final da liberdade humana, pois continua
estruturado sobre o domínio da propriedade privada e da divisão social do
trabalho (SOUSA, 2008, pp. 185-186).
A defesa dos Direitos Humanos, por sua vez, possibilita uma limitada
ampliação da realização do indivíduo (e, inclusive, do gênero humano) (TONET,
2009b, p. 14), mas, assim como o direito em geral, continua erguido em alicerces
de desigualdade social. Dessa forma, quando a humanidade estabelece como
horizonte sua emancipação real, ou seja, quando a autoconstrução humana
atinge patamares de uma sociedade livre, igual e fraterna, a desigualdade social
essencial
da
emancipação
política
é
radicalmente
suprimida
e,
consequentemente, a existência do direito de forma geral perde o sentido de ser.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, Karl Marx, a partir de 1983-1844, mostra-se um
pensador em transição que, por intermédio de descobertas, abandonos e
negações, questiona o idealismo hegeliano e sua capacidade de compreender os
limites próprios da sociedade capitalista. Com isso, Marx assume uma postura
histórico-sistemática que demonstra a originalidade do seu pensamento,
sobretudo, na necessidade de uma transformação radical da sociedade capitalista
em direção ao comunismo.
Com a dicotomia entre emancipação política e humana, Marx aprofunda
sua crítica sobre o papel do Estado, da sociedade civil e do direito. Para Marx,
uma emancipação política plena não significa, fundamentalmente, uma sociedade
de homens e mulheres livres. Mesmo o Estado representativo – forma mais
desenvolvida da emancipação política – reproduz a ilusão de que o ser humano
só pode alcançar sua generalidade por “intermédio” do Estado, mascarando,
dessa forma, a dualidade entre o membro da sociedade civil (real) e o cidadão
(abstrato).
1097
Marx ao analisar o direito, em particular os Direitos Humanos, evidencia
suas raízes, as quais são marcadas pela desigualdade social, produto da divisão
social do trabalho e da propriedade privada. Nesse sentido, pretende-se ressaltar
que a crítica aos limites da emancipação política também está presente no tema
dos direitos humanos.
No contexto de pós-guerras do século XX, marcado pelo conflito entre
projetos socialistas e capitalistas, a profundidade e a radicalidade dos
posicionamentos de Marx quanto aos Direitos Humanos acabam sendo reduzidas
(ou até negadas). Isso, na medida em que a atitude de problematizar tais direitos
passa, inclusive entre os “marxistas”, a representar uma afronta à liberdade
pessoal e um resgate a práticas “totalitaristas”.
Nesse contexto, ganha notoriedade autores contemporâneos como
Norberto Bobbio, que, diferentemente de Marx, defendem que a proteção e a
efetivação dos direitos humanos significam um inequívoco progresso à
humanidade. Reconhecendo entre os objetivos centrais da sociedade o
fortalecimento do Estado social e a existência de um mínimo de igualdade
necessário ao exercício da liberdade política. Para Marx, todavia, a crítica vai
muito além do discurso formal referente aos direitos humanos, pois pretende
alcançar os pressupostos que são intrínsecos a tais direitos.
REFERÊNCIAS
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Evgeni Pachukanis. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 26, p. 1526, 2005. Disponível em:
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1099
A VULNERABILIDADE SOCIOAMBIENTAL E O DIREITO: ANÁLISE
COMPARATIVA ENTRE O SISTEMA PROTETIVO DO BRASIL E DA COSTA
RICA
Marcio Henrique Pereira Ponzilacqua
Susana Segura Muñoz 92
RESUMO: O objetivo do artigo é a reflexão da vulnerabilidade socioambiental e
as políticas públicas consequentes perante as estatísticas de desmatamento
havida após a aprovação do Código Florestal Brasileiro em comparação com a
experiência histórica exitosa da Costa Rica. Metodologia: O método adotado é a
abordagem comparativa dos mecanismos sociojurídicos dos países envolvidos e
as suas experiências de sucesso e/ou fracasso ante a proteção da cobertura
vegetal, à luz de teorias sociológicas que abordem o direito como campo de
disputas simbólicas e como lugar de emergência, regulação e/ou emancipação.
Resultados: Os resultados, ainda em fase de compilação, demonstram que
práticas exitosas em matéria socioambiental vêm sofrendo processos de
desestabilização decorrentes dos modos de apropriação simbólica do patrimônio
ambiental e dos mecanismos refratários da nova ordem econômica mundial.
Conclusões: A posição geográfica e política privilegiada da Costa Rica, propiciou
políticas de sustentabilidade pioneiras e efetivas. O Brasil, ao contrário, registrou
processo histórico contínuo de devastação. Todavia, houve, nas décadas de 80 e
90 um incremento favorável da compreensão socioambiental no campo jurídico.
Os êxitos, entretanto, estão ameaçados ante concepções globalizantes de
exploração.
PALAVRAS-CHAVE: Desigualdades - Vulnerabilidade Socioambiental - Conflitos
Ambientais - Legislação Protetiva
1 INTRODUÇÃO
A questão socioambiental é, por conta de sua complexidade e pelas
implicações existenciais envolvidas, extremamente relevante e contundente em
92
Marcio Henrique Pereira Ponzilacqua é Professor Associado de Sociologia Geral e do
Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP), com pós-doutorado em Sociologia do
Direito pela Universidade de Amiens (Picardia- França) e Doutorado em Política Social pela
Universidade de Brasília (UnB). Email: [email protected]
1100
nossos dias. Nas últimas décadas, as políticas ambientais no Brasil e da América
Latina, a exemplo do que ocorre em outras partes do globo, têm avançado no
sentido de proteger a cobertura vegetal e os ecossistemas a que estão ligadas.
Emerge com força concepção socioambiental que busca atentar para o fato de
que a proteção da biodiversidade implica no cuidado da própria existência
humana, intimamente ligada às cadeias ecológicas da terra. Por outro lado, as
expectativas normativas têm sido frustradas no âmbito de sua eficácia e
concretude. É dizer: as estratégias político-jurídicas não têm logrado os efeitos
esperados e progride a devastação ambiental. As normas de direito, pela sua
onipresença, por sua relevância como norma de controle social e pelas suas
características, são elementos cruciais numa abordagem acerca da proteção
florestal e dos biomas envolvidos.
Pretendemos aqui apresentar os primeiros resultados de pesquisa
envolvendo os modelos legislativos e jurisprudenciais de proteção florestal
existentes no Brasil e na Costa Rica no tocante às vulnerabilidades ambientais.
Trata-se de pesquisa em andamento, e os resultados ainda são parciais, mas já
apontam para descobertas significativas de análise.
Enfocam-se países com
dimensões humanas e geográficas diferentes mas com elementos comuns no
tocante à rica biodiversidade de flora e de fauna. O pioneirismo latino-americano
da Costa Rica em matéria de direito ambiental torna-a fecundo campo de análise
sociojurídica. A sua peculiaridade histórica e educativa ante os países
circunvinzinhos propicia material profícuo de análise socioambiental. Por outro
lado, a posição estratégica do Brasil e sua considerável configuração geopolítica
exige uma reflexão sobre os avanços e retrocessos no campo da proteção
florestal. Ambas realidades apontam para preocupação no sentido da
continuidade de um percurso positivo e de vanguarda do direito ambiental mas
nem sempre com correspondência nas práticas governamentais e nas escolhas
dos dirigentes. Como base teórico-metodológica da pesquisa selecionamos a
Sociologia Ambiental do Direito, que tem sua origem e substrato teórico no
chamado “método da complexidade”. A Sociologia Ambiental do Direito congrega,
funde e transforma noções e métodos hauridos da Sociologia, da Ciência
Ambiental e do Direito em vista da compreensão do fenômeno socioambiental.
1101
Ela tem como enfoques preferências os direitos socioambientais e as
vulnerabilidades.
Os
autores
da
apresentação,
Márcio
e
Susana,
são
provenientes dos países e contextos analisados respectivamente: Brasil e Costa
Rica, o que incrementa e aprimora a análise dos resultados obtidos. Igualmente, a
linha atual de suas pesquisas, um com investigações no âmbito da Sociologia
Ambiental do Direito e a outra, com investigações na área da Saúde Ambiental,
propicia rica interação e interdisciplinaridade que fomenta novos pontos de vista e
abertura hermenêutica. Ambos trabalham na Universidade de São Paulo, o que
favorece os contatos, e estão juntos em organizações de discussão e elaboração
de políticas socioambientais. Como resultado, o texto tem proposta subsidiária de
política pública e de avanço legislativo em matéria de proteção florestal, com olhar
atento às distorções – notadamente no campo da eficácia das normas.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 O direito ante o desafio socioambiental
Em verdade, os temas socioambientais precisam ser lidos em perspectiva
dialógica, integral e recursiva, como propõe o Método da Complexidade (MORIn:
1997, pg. 138-145). Por consequência, toda política pública que se propõe a
construir política social destinada à preservação do patrimônio natural deve ser
concebida em ótica transdisciplinar e transversal. Embora essa abordagem
concirna especificamente ao Novo Código Florestal e, por conseguinte, à tutela
dos biomas brasileiros com sua cobertura vegetal e toda a biodiversidade de
fauna e flora que compreendem, não pode descuidar de outros elementos com os
quais se encontra indissociavelmente vinculados, tais como as dimensões de
proteção e conservação das águas superficiais e subterrâneas, de saneamento
básico, de produção, coleta e destinação de resíduos, de consumo e exploração
dos recursos naturais, de transporte e de geração de energia.
É o caso, por exemplo, da necessidade de refletirmos sobre a relação entre
a tutela da cobertura vegetal e a proteção das nascentes e mananciais.
Obviamente, há de se tratar das matas ciliares, de sua abrangência, e também da
1102
vegetação a circunscrever as fontes de água. Mas a discussão vai além, no
sentido do reconhecimento do papel ecológico das espécies vegetais (e destas
em seus vínculos existenciais com a fauna) na captação e destruição das águas
pelo território nacional e dos vínculos entre os biomas.
Assim, é fundamental uma perspectiva holonômica dos problemas
socioambientais. Em cujo bojo está contido, inclusive, a necessidade de
compreensão do elemento antrópico. Para um aprimoramento prospectivo, a
desconsideração dos fatores humanos, de suas necessidades, formação, cultura,
conduta individual e coletiva, valorações é substancial para quaisquer ações
políticas que se pretendam intergeneracionais.
Nesse sentido, é crescente a insatisfação do conjunto social no tocante às
ações dos poderes constituídos e às instituições políticas. Cresce o descrédito na
incisiva capacidade dos governos de conduzir a bom termos as grandes
demandas da população brasileira, nos diversos níveis da federação. Os recentes
movimentos emergentes em todo o território nacional, protagonizados pelos mais
jovens, denotam a insatisfação com os rumos das políticas sociais. O pretexto
inicial da exorbitância das tarifas de transporte pública revelam o caráter
socioambiental que permeia reivindicações, centradas nas agruras presentes do
sistema
de
mobilidade
pública.
E
ao
mesmo
tempo,
demonstram
a
incomunicação entre autoridades constituídas, seu descrédito popular, e as
expectativas crescentes no conjunto social.
Obviamente que a discussão
ultrapassa os limites do Estado e da governança. Aliás, a situação chegou ao
ponto onde se encontra em decorrência justamente das relações espúrias entre
Estado e iniciativa privada, em que lobbies de grandes empresas automobilísticas
e de transporte público pressionam o financiamento público do transporte
individual em detrimento das alternativas de transporte comum, mais sustentáveis
e públicas.
Por outro lado, é justamente no âmbito da esfera pública, aquela em que
se encontram, interagem e reagem as ações da esfera do poder público e as
ações da esfera privada, que se mostra fundamental o reconhecimento da
relevância das redes da sociedade civil organizado (SANTOS, 2003 e 2005;
DAGNINO, 2002) . Há também, no âmbito da esfera privada, importantes
1103
reivindicações socioambientais convivendo e conflitando com uma práxis social
conservadora a primar pela supervalorização do mercado em detrimento da
natureza e dos seres humanos que dela são partícipes.
As
redes
comparecem nesse estágio como elementos aglutinadores das forças sociais,
que tanto podem enveredar por uma compreensão emancipatória como podem
fomentar e favorecer uma conduta de sujeição e de opressão (GOHN, 2005).
As associações e organizações de resistência ante um modelo
depredatório são elementos fulcrais em vista do deslinde de conflitos
socioambientais – cujo conteúdo é imbuído, ao contrário do que se propala, de
alta carga de hostilidade e violência. Muitos desses conflitos são persistentes no
corpo social. Mas as associações e redem também manifestam impotência e
fragilidade ante um sistema tendente à internacionalização. Com efeito, a
chamada “globalização” impele tanto à homogeneização de padrões de consumo
e práticas sociais, pela produção de opiniões dominantes e pseudo-consensos,
como também fragmentam e esfacelam os liamos comunitários mais intensos e
legítimos. Explicitamente o movimento pela instituição de novos marcos
regulatórios para a discussão e homologação das terras indígenas ilustram esse
modelo. As comunidades, tradicionais e/ou locais, buscam modos de resistência
e de afirmação de suas práticas e valores ancestrais. Ainda que concebidas como
a fusão de sentimentos, volição, intenção, formas espontâneas e tradicionais, as
comunidades também são imbuídas de antagonismos e paradoxos. E, mais
ainda, na contemporaneidade, em que se consolidam as formas de consumo e de
liquidez de relacionamentos, emergem as chamadas “comunidades-cabides”,
denunciadas por Zigmunt Baumann, que se propõem substitutivas das formas
comunitárias estabelecidas, mas que, na realidade, são marcadas pela fluidez e
esfacelamento dos vínculos comunitários. Acabam por criar “illusio” de
profundidade e de pertença, e, ao mesmo tempo, reduzem drasticamente a
cooperação, a criatividade e autonomia (BOURDIEU, 1997; BAUMANN, 2003).
Por essa razão, o imbricamento entre conflitos sociais e ambientais tornam
indissociável a chave socioambiental de leitura das tensões sociais. Com efeito,
“pouco a pouco, pôde-se ir verificando que o cruzamento entre os conflitos sociais
e a problemática da apropriação dos recursos ambientais não era meramente
1104
circunstancial” (ACSERALD, 2004, pg. 8). Na América Latina, particularmente,
cresce o esforço para criação e disseminação de tecnologias que diminuam o
impacto ambiental e intentem a solução dos conflitos de natureza socioambiental.
O campo dos conflitos ambientais é amplo. Acserald (ACSERALD, ibid., pg. 23-6)
ao desenvolver as diferentes concepções téoricas sociológicas acerca do
conteúdo dos conflitos ambientais, conclui pela necessidade de reportá-los a
quatro dimensões constitutivas: a apropriação simbólica e a apropriação material,
durabilidade e interatividade espacial das práticas sociais. Nos conflitos
ambientais há mais do que um elemento material em disputa configurado na
apropriação (base material), mas há também elementos de base cultural,
simbólica, de legitimação a concorrem efetivamente para o conflito e sua
perpetuação na sociedade.
Os elementos não aparecem estanques e dissociados, mas se enfeixam e
conjugam de tal maneira que é preciso uma visão holonômica e dialógica a fim de
se reconhecer tanto a sua complexidade quanto as retroações e as vias possíveis
de solução e encaminhamento dos problemas, sem contudo a pretensão de
esgotamento das tensões de base, sempre vivas no seio da sociedade (MORIN,
1991;1999; 2004).
Com efeito, é infecundo se pensar o ambiental deslocando-o de questões
de fundo como o ideológico, o cultural e o econômico, e, sobretudo, dissociando-o
da racionalidade econômica dominante (LEFF, 2002). Um projeto de composição
dos conflitos que os desconsidere como inerentes à dinâmica do tecido social
está fadado ao insucesso, haja vista que a brasa permanece acesa, ainda que a
suponhamos extinta. E é o que parece suceder com o modelo de políticas
públicas brasileiras. Supõe-se que os conflitos se resolvam no âmbito jurídicolegislativo - havemos de convir que nossa atual legislação ambiental é bastante
arrojada- mas esquece-se justamente que o direito estatal é apenas uma
dimensão do problema e sequer representa a complexidade e ebulição
subsistente no seio social (AGUIAR, 1998; CLASTRES, 2003). Nem sempre a
tentativa de conciliação entre os conflitantes expressa a solução mais adequado
e, não raras vezes, chega bastante atrasada. Todavia, a consideração do
desenvolvimento
da
legislação
ambiental,
sua
repercussão
na
órbita
1105
administrativa e no plano da consciência coletiva ambiental é de capital
importância ante o tema que estamos desenvolvendo, a tanger os conflitos na
órbita jurídica, ainda que os reconheçamos apenas como uma parte do problema
– a que elegemos para investigação.
Na perspectiva de Pierre Bourdieu, as normas de direito, como outras
normas institucionais, fomentam habitus cultivado, estão imbuídas de caráter
simbólico não raras vezes violento e exprimem disputas em torno dos capitais
sociais (BOURDIEU, 2007; 1986). Permeiam as ações pedagógicas dos grupos
sociais e são permeadas por elas. Estes elementos e categorias presentes no
conjunto da obra de Bourdieu permitem elucidar os capitais em disputa no campo
específico que é o socioambiental, os mecanismos de poder intervenientes e
ajuda a compreender a dialética social em que se inserem, ao mesmo tempo que
tocam e desafiam as bases sócio-jurídicas em que se apoiam. A elaboração e
promulgação do Novo Código Florestal insere-se nessa pesquisa como elemento
prototípico e ilustrativo dos embates sócio-jurídicos expressos na teoria
bourdieniana.
2.2 A proteção ambiental e as vulnerabilidades no contexto sociojurídico
brasileiro
Alguns artigos constitucionais constituem-se como o núcleo da proteção
ambiental no ordenamento jurídico brasileiro. Sem dúvida, destaca-se o bastante
citado art. 225, ao dispor em seu caput: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Para se
compreender a natureza jurídica do bem ambiental é imprescindível que se
atenha ao fato de que, conforme a inteligência do art. 225, caput, o meio
ambiente é bem comum a todos (res communes omnium), com disciplina e título
jurídico autônomo. Considera-se o meio ambiente como um bem socialmente
protegido, afeto à coletividade (LEITE & AYALA, 2002, pg. 51-2). José Afonso da
Silva reconhece que há bens que têm uma disciplina especial por se destinarem à
1106
consecução de um fim público. Nesse caso, possuem um regime jurídico peculiar
tanto quanto ao seu gozo como também no concernente ao regime de política de
intervenção e tutela pública. São nomeados como “bens de interesse público” –
que podem incluir bens públicos ou privados, sem se restringir a um ou outro. O
ambiente é entendido como um macrobem – composto dos microbens como
florestas, rios, propriedade de valor paisagísticos. O desfrute destes bens de
interesse público é necessariamente comunitário, mas também destinados ao
bem-estar individual ( SILVA, 1994, pg. 54 e ss).
A natureza jurídica do bem ambiental é aquilo que se convencionou
chamar de “bem difuso”. Não é propriamente nem público, nem privado. Não se
classifica nas categorias de bem público ou privado constantes do art. 98 do CC
de 2002. Situa-se numa faixa intermediária que é justamente a dos bens difusos,
porquanto pertença a cada um e a todos simultaneamente. Seu titular não é
identificável e sequer seu objeto é suscetível a divisões (SIRVINKAs, 2008, pg.
49). A Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992, consolidou a noção do
meio ambiente como incisivamente holonômica e intrinsecamente nãofragmentária93.
Para efeito de políticas públicas e administrativas de compreensão
macroregional, tanto a União, no que diz respeito ao âmbito nacional, quanto os
Estados, nas regiões metropolitanas ou supraregionais em seus territórios,
podem instituir programas de desenvolvimento e redução de desigualdades
translocais ( art. 43, caput, §§ 2º e 3º), mantidos obviamente os parâmetros
dominiais em questão.
Certamente que o tema das competências é zona conflitiva. A doutrina tem
assentado o entendimento de que há prevalências das normas hierarquicamente
superiores, ou seja, aquelas promanadas da União, em matéria ambiental, salvo
quando tratarem-se de normas cuja especifidade as desloca para o âmbito dos
outros entes federados. O controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado,
é o mecanismo adequado para dirimir os conflitos, especialmente a declaração de
93
3
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA SOBRE MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO, 1997; VIOLA, 1992 E 1998.
1107
inconstitucionalidade de normas em caso de invasão de incompetência. Em todos
os casos, os legisladores ou aplicadores das normas devem valer-se dos
princípios constitucionais consagrados (BESSA ANTUNES, 2012; SIRVINKAS,
2008).
De maneira semelhante, os municípios podem e devem criar zoneamentos
ambientais
prioritários,
com
o
reconhecimento
de
áreas
especiais
de
conservação, notadamente naquelas respeitantes à biodiversidade endógena,
aos mananciais dos rios, ao reflorestamento com espécies nativas, à proteção
das águas subterrâneas e à políticas de monitoramento da produção agrícola (em
especial no que concerne à produção de resíduos tóxicos).
Em termos de avanços sociais, é insuficiente que tenhamos um quadro
teórico aprofundado em matéria ambiental com uma legislação igualmente
avançada, mesmo em se tratando de matéria constitucional. Isto implica num
benefício, mas é mister, paripassu, educação jurídico-legislativa e efetivas
garantias de cumprimento, mediante políticas socioambientais adequadas, além
de um esforço conjunto de mudança de mentalidade, em que a vida compareça
como elemento axial e não os valores eminentemente ou meramente
econômicos.
As ações dos poderes constituídos é fundamental. Todavia, são
inexpressivas se não houver, da parte da sociedade civil organizada (movimentos
socioambientais,
sindicatos,
ONGs
militantes,
empresários
conscientes,
associações civis e religiosas, entre outras) monitoramento constante das ações
governamentais e, quando necessário, uma pressão para que as políticas
convirjam para o que há de melhor em matéria ambiental – de acordo com a
previsão constitucional e legal.
O poder legislativo, sobretudo no âmbito federal,
tem, ao longo de algumas décadas, lançado mão de expedientes normativos
relevantes em matéria ambiental. O que se deve reputar, principalmente, à ação
organizada dos grupos e movimentos ambientais94, num contexto ambiental de
ampla reflexão e, talvez, de emergência de uma nova postura e condutas
94
4
SANTILLI, 2005; PORTO-GONÇALVES, 2006; VIOLA,1992; VIOLA E LEIS, 1998;
SANTOS, 2003
1108
coletivas. A atual discussão de mudanças no Código Florestal vai na contramão
dos avanços consideráveis havidos no âmbito da legislação infraconstitucional no
Brasil.
Com efeito, essa discussão pervade também a esfera do direito ambiental.
A revogação do Código Florestal instituído pela Lei n. 4771/65, e a elaboração e
promulgação do Novo Código Florestal, pela Lei n. 12651/12, sua atualização
pela Lei 12727/12 e a inteligibilidade das normas e disposições conexas precisam
ser compreendidas em suas implicações macro e microssociais e no âmbito dos
seus efeitos socioambientais (BRASIL, 1965, 2012a e 2012b). Igualmente,
impelem à análise das estratégias políticas que o subsidiam, para sua precisa
hermenêutica e contextualização. Ao mesmo tempo, é mister compreender as
decisões jurisdicionais inseridas nesses embates por dizer o direito no âmbito das
diversas modalidades de apropriação e disputa pelos bens naturais, que implicam
em avanços ou retrocessos no conteúdo do direito ambiental. Com efeito, as
polêmicas havidas durante a elaboração do novo código e que, em certa medida
perduram, compelem a uma análise de maior profundidade e isenção (BESSA
ANTUNES, 2013, pg. 1-2), ao mesmo tempo em que, na medida do possível, é
fundamental a busca de compreensão integral dos acontecimentos que
engendraram as mudanças, suas repercussões e as efetivas alterações, para se
dimensionar a questão e organizar, doravante, políticas públicas de maior
abrangência e eficácia.
Assim os êxitos então obtidos encontram-se ameaçados ante concepções
globalizantes de exploração e a força do agronegócio, cujo último expediente tem
sido preparar “educadores” para se constituírem quais agentes eficazes de
formação e disseminação de apologias às práticas nocivas ao meio ambiente e à
agricultura extensivo agroexportadora. Entre outros, busca legitimar discursos
que apoiem práticas concebidas como contaminantes ou ameaçadoras da bio e
da sociodiversidade, tais como o assustador aumento do uso de defensivos
agrícolas tóxicos, que já coloca o Brasil numa posição superior a todos os outros
da América Latina, quer em números absolutos, quer em números proporcionais,
a intensificação do uso de tecnologias supletivas da mão-de-obra humana ou
1109
mesmo a redução significativa das áreas de preservação permanente ou das
reservas legais, sem contar o grotesco cenário das anistias aos desmatadores.
Os impactos da aplicação da nova legislação florestal brasileira já estão a
indicar a sua impertinência e infeliz revogação do código anterior. Em regiões de
alta densidade árborea e significativa vulnerabilidade socioambiental, como são o
caso da Amazônia e do Cerrado, as estatísticas de desmatamento são
alarmantes. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)
o desmatamento aumentou em 28% no Brasil, quando foram desmatados 5.843
km² no período de agosto de 2012 a julho de 2013. Em relação ao período
anterior (que computava dematamento na ordem de 4.571 km²) - o que já
ultrapassou as medidas do razoável em muito! (INPE, 2013).
Mas, infelizmente, não se estancou o desmantamento no Brasil. Estudos
recentes, publicados já em 2015, alertam para o crescimento do desmatamento,
tanto pela alteração decorrente do corte raso quanto da degradação florestal.
Assim, é que “nos meses de novembro e dezembro de 2014 e janeiro de 2015 as
áreas de alerta para alteração na cobertura florestal por corte raso e por
degradação florestal somaram 291 km²” segundo o registro do DETER, que é o
Sistema de Detecção em Tempo Real de Alteração na Cobertura Florestal, cuja
monitoramento é realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE). (INPE, 2015).
Portanto, para além da norma federal é preciso instituir programas e
políticas urgentes que refreiem essa 'sangria verde'. É mister estabelecer padrões
de controle e monitoramento urgentes, com as consequências penalizações –
inclusive previstas mesmo no atual contexto legislativo.
A responsabilização
pelos danos ambientais deve estar na pauta e na organização administrativa e
judiciária. Aliás, o Ministério Público e o Judiciário devem ser protagonistas, junto
da academia de direito, de hermenêutica socioambiental eficaz, como havemos
de apontar adiante.
Ainda que saibamos que a legislação, por si só, é insuficiente para
contrapor-se à devastação, à poluição, à destruição, é fundamental que haja
mecanismos legais a estruturarem políticas públicas eficientes e eficazes. Por
outro lado, os Estados e Municípios usam muito mal a sua faculdade propositiva
1110
no âmbito legislativo. Embora não lhes caiba a competência legislativa principal,
podem legislar em matéria residual ou complementar – cuja matéria foi ampliada
na atual legislação. Ou seja, naquilo que faltou no complexo legislativo federal
(constituição mais legislação infraconstitucional) pode ser feito pelos Estados e
Municípios. Isso tem ocorrido, mas de maneira ainda modesta e limitada.
Exemplo de grande monta foi dado pelo Estado de São Paulo ao legislar sobre a
proteção dos remanescentes do cerrado. Embora bastante tardia, é uma
importante medida legislativa em vista de preservação deste bioma tão
importante e desprestigiado. Por outro lado, é impensável uma ampla
competência legislativa em matéria ambiental e infundada uma competência
principal e absoluta. E as razão são muitas, sendo a principal delas decorrente da
fragilidade desses entes federados ante às pressões políticas e sócio-econômicas
locais e regionais, além, da repercussão negativa ao conjunto do patrimônio
natural, cujos vínculos existenciais inextrincáveis demanda um olhar conjunto e
respeitante dos vínculos suprarregionais e supraestaduais.
Caso semelhante, quando Estados e Municípios criam unidades de
conservação especiais. Obviamente, longe ainda de se constituírem como política
integral ambiental, as unidades de conservação apresentam-se com uma medida
profilática inicial em vista de uma abertura ainda maior. Após criá-las, União,
Estados e Municípios precisam provê-las dos mecanismos que assegurem o
zoneamento, o manejo sustentável, quando é o caso, além do monitoramento e a
preservação.
Nota-se assim íntima convergência entre a ação da estrutura legislativa e
da estrutura administrativa. Ou seja, ao mesmo tempo em que se normatizam e
as normas tenham respaldo ético-social, é mister que a administração pública
lance mão dos mecanismos de execução das normas conforme suas respectivas
competências, discriminadas no bojo do texto constitucional ou, em alguns casos,
da legislação complementar, ou em casos de impasse, na inteligência das
normas existentes no interior do ordenamento jurídico.
O Judiciário, em sua
condição de intérprete legitimado pela assembleia constituinte, goza de condição
muito particular enquanto não se tem uma legislação complementar adequada. E
1111
mais, compete a ele, como instância julgadora, compelir os infratores e investir
numa conduta pautada pelo cuidado e respeito na natureza.
Em geral se descuida do fato de que o poder judiciário é também ele
instrumento e gestor de políticas públicas. Muitas vezes, ao se realizarem
análises de políticas sociais, e no caso das socioambientais em particular,
restringe-se a investigação às ações dos poderes executivos e, quando muito, ao
legislativo. Todavia, como parte integrante dos poderes constituídos, o Judiciário
responde por importantes estratégias no que concerne a res publica. A atuação
significativa do STF (Supremo Tribunal Federal) no tocante às reservas indígenas
no caso ilustrativo da Raposa Serra do Sol, ainda que sujeita a críticas por parte
dos movimentos sociais mais incisivos, demonstra como o Estado, mediante o
poder judiciário, pode favorecer ou não políticas públicas de caráter
socioambiental. O mesmo há de se dizer do Ministério Público, cujas atribuições
constitucionais felizmente ampliadas pelo texto constitucional de 1988 fomentam
maior discussão e inserção nos campos das políticas públicas, especialmente
aquelas relativas ao meio ambiente. Em muitos lugares e não poucas ocasiões, a
ação do ministério público quer federal, quer estadual, deixa entrever uma
dinâmica favorável aos anseios da sociedade por maior qualidade de vida.
Ambos, Ministério Público e Judiciário, podem e devem ter uma
configuração em favor da emancipação sócio-política nacional e dos membros da
federação, por uma atuação eminentemente pedagógica, quer pela prevenção,
quer pela repressão dos atos lesivos ao meio ambiente e ao patrimônio público,
em geral.
2.3 A proteção ambiental no contexto sociojurídico da costa rica
A existência de condições geopolíticas favoráveis propiciaram à Costa Rica
o pioneirismo na preservação ambiental. Com um democracia secular, com mais
de 125 anos, encontrou-se ali terreno fecundo para um desempenho ambiental
invejável. Com efeito, alguns elementos de sua conjuntura histórica não apenas
favoreceram no passado mas ainda favorecem a proteção ambiental. Um deles é
a inexistência de níveis intermediários de governo. Há um governo central, que
1112
até o presente tem assumido a responsabilidade pela proteção ambiental, e, os
governos municipais.
A população é pequena se comparada ao Brasil: mais de quatro milhões e
quatrocentos mil de habitantes (4.500.000). A população urbana está concentrada
em apenas 6% do território nacional. Dois terços dos cinquenta mil e cem
quilômetros quadrados (2/3 de 51.100 mil km²) que formam seu território
constituem-se de áreas protegidas ou áreas de conservação públicas e privadas.
Portanto, há uma ancestral prática de proteção que colocam a Costa Rica como o
quinto país do mundo no índice de desempenho ambiental de 2008 e o primeiro
país da América Latina em desempenho turístico (BIBLIOTECA VIRTUAL DA
AMÉRICA LATINA, 2015).
Associado a isto, encontra-se um massivo investimento na educação, o
que faz com que tenha elevada taxa de alfabetização (97,5%) e a maior
expectativa de vida da América Latina.
Outro elemento que granjeou reconhecimento mundial fora a abolição do
exército em 1948, o que fora consagrado e perpetuado na Constituição Federal
no ano seguinte, de 1949.
Por essas e outras razões, que comparecerão na exposição, elegemo-la
para efeito de comparação com o Brasil. Trata-se de uma nação irmã, de
pluralidade étnica e formação colonial assemelhada, além de uma série de
proximidades no tocante às condições climáticas e de biodiversidade.
Estudo publicado em 2013, coordenado por Mathew Fagan, do
Departemento de Ecologia da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, que
contou com a participação alguns de especialistas dos Estados Unidos , Canadá
e Costa Rica, baseado em análises de imagens de satélites, indica que a Costa
Rica vem avançando uma média anual bem superior a média latino-americana de
proteção de suas florestas desde que implantou, em 1996, seu código florestal,
com índices de proteção superior a 15 % (FANGE, 2013,pg. 7). O estudo sugere
ainda que a implantação da norma de proteção da cobertura vegetal não impediu
a intensificação agrícolo – ao contrário, isso sucedeu nas áreas não-florestais – o
que vem de encontro com uma necessidade mundial que precisa incrementar a
1113
produção agrícola destinada à alimentação em torno de 70 a 100% até 2050,
relativa à demanda crescente de segurança alimentar (FANGE, 2013, pg. 1).
Na América Latina toda o índice de ampliação da proteção florestal é bem
inferior. De 2001 a 2010, o índice de redução de desmatamento foi de menos de
5% em toda a América Latina. Na América Central, onde se encontra a Costa
Rica, o índice de desmatamento oscilou de – 1,45 % entre 1990 a 2000 para –
1,13%. Na América do Sul o índice também foi pejorativo, respectiva redução
negativa de 0,45 para 0,41, nos mesmo períodos citados . Na Costa Rica,
outrossim, os índices de proteção de floresta madura triplicou no período de 1996
a 2011, com estatísticas que oscilaram de 4,5 para 13,3 % da área total (FANGE,
2013, pg. 7; OROZCO, s/d).
A explicação se deve a uma décadas de política ambiental exitosa, que se
compunha de dois grandes eixos, a saber: 1. a estabilização de parques ou
reservas ambientais, públicas ou privadas, que teve seu auge em 1960; 2. e os
subsídios governamentais à plantação de espécies florestais nativas, com o
programa instaurado em 1979 (FANGE, 2013, pg. 2).
A plantação de bananas também fora favorecida de 1986 a 2010 por uma
série combinada de fatores, que levaram-na a um incremento de 88%, a saber:
pela introdução de variedades de espécies, pelo uso de pesticidas e fertilizantes
em escala maior (FAGAN, 2013, pg. 1-2).
Algumas críticas, no entanto, são dirigidas hoje à incapacidade do governo
central de gerir e dar continuidade ao arrojado projeto socioambiental que o país
tem levado a cabo ao longo de décadas. Estas críticas normalmente entendem
que os desafios globais e às pressões agrícolas internacionais impelem a um
modelo descentralizado de administração, em que os municípios devem
comparecer como polo importante de avaliação e análise das ações ambientais.
Todavia, em que se pese a tradição democrática costa-riquenha, a polêmica é no
mínimo preocupante. Estariam os municípios munidos com condições técnicas e
de resistência para opor-se à hegemonia globalizante de exploração máxima dos
recursos naturais em vista da força e da preponderâncias das grandes
corporações internacionais? O sistema misto, em que governo central e
municípios
pudessem
compartilhar
a
responsabilidade
pela
política
1114
socioambiental estaria suficiente e satisfatoriamente organizado para perpetuar os
ganhos e avanços obtidos em matéria de proteção à natureza e de avanço de um
agricultura condizente nos espaços não-florestais?
Por fim, outro elemento que merece atenção acurada é que também na
Costa-Rica é fator indispensável a análise do impacto socioambiental do uso de
pesticidas e fertilizantes nas zonas agricultáveis – que pode afetar a equação
positiva em favor da manutenção das florestas.
Assim, é preciso fomentar a participação em redes da população, que
venham ao encontro da consolidação e explicitação das forças vitais e
organizadas da sociedade, notadamente os grupos vulneráveis. A necessidade de
reforçar os laços e padrões comuns de sobrevivência e de fazer frente aos
projetos de especulação imobiliária, mesmo em vista do chamado 'ecoturismo', é
elemento dialético a emergir no quadro de análise costa-riquenho. A organização
comunitária associada aos grupos de pressão internacional podem traduzir-se no
exercício de legítimo direito de resistência em matéria ambiental, que já temos
defendido noutras ocasiões (PONZILACQUA, 2011). E isso vale para ambos os
países e para as eventuais conexões entre os grupos envolvidos que se
encontram em situação similar nos dois contextos avaliados.
Por certo, que os elementos diferenciadores da política ambiental
característica da Costa Rica, a distingui-la nitidamente da política brasileira, estão
relacionados à consistência e estabilidade da Ação Nacional. Pode-se afirmar que
é a organização e a resistência desses grupos, mais do que programas especiais
de governo, que acabam por incidir favoravelmente. Outro elemento essencial e
diferenciador diz respeito à educação ambiental, que reforça e amplia a
repercussão adequada de um sistema educativo eficiente. Todavia, essas vitórias
e conquistas alicerçadas também são periclitantes se tomadas num contexto
internacional desfavorável, donde a vigilância e organização constantes em vista
da resistência.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
1115
Embora ainda os resultados encontrem-se em fase de compilação,
demonstram que práticas exitosas em matéria socioambiental vêm sofrendo
processos de desestabilização decorrentes dos modos de apropriação simbólica
do patrimônio ambiental e dos mecanismos refratários da nova ordem econômica
mundial. A situação é bem mais complexa e delicada no Brasil do que na Costa
Rica.
A posição geográfica e política privilegiada da Costa Rica, propiciou
políticas de sustentabilidade pioneiras e efetivas. O Brasil, ao contrário, registrou
processo histórico contínuo de devastação. Todavia, houve, nas décadas de 80 e
90 um incremento favorável da compreensão socioambiental no campo jurídico.
Mas o código florestal e os insucessos gerados pela nova ordem jurídicoambiental por ele engendrada demonstram uma reversão nos avanços legislativos
anteriores.
É seguro, todavia, que nem a situação da Costa Rica e menos ainda a do
Brasil é tranquila e absolutamente estável no contexto sociopolítico e jurídico
internacional que pressiona para a fragilização das normas protetivas do
patrimônio natural e, igualmente, verifica-se significativo retrocesso no campo dos
direitos sociais, em geral, e socioambientais, em particular. Ou seja, é precisa
ampliar a vigilância e participação das redes sociais engajadas, em vista de
elaboração e aprimoramento de políticas públicas nestas áreas.
Os sucessos obtidos pela Costa Rica, todavia, devem impelir à reflexão
dos legisladores, governantes e juristas de toda a América Latina em vista de
consecução eficaz de prática globais de defesa do meio ambiente e das
populações
envolvidas,
especialmente
aquelas
situações
de
maior
vulnerabilidade.
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