Black Rocket 02 - Revista Black Rocket
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Black Rocket 02 - Revista Black Rocket
Para esta edição foram escolhidas imagens aleatórias para serem usadas como temas nos contos da revista, que então foram sorteadas entre os autores. Simples assim, porém muito instigante... E não se esqueça: você pode participar da quarta edição da revista Black Rocket. Veja mais informações no nosso site black-rocket.blogspot.com e no anúncio no final desta edição. Boa leitura! 2O MERCENÁRIO E O ABISMO Editorial Artigos: Revista de Ficção Científica Número 02 - Novembro 2008 Coordenador e Editor CHARLES DIAS [email protected] Dois exemplos de FC Hard Brasileira e O Homem que viu o Disco Voador Edgar Indalecio Smaniotto 4 6 Um Drinque para o Inferno Aguinaldo Peres 12 Revisão BIA NUNES DE SOUSA [email protected] cascodatartaruga.blogspot.com Editoração CARLOS RELVA [email protected] www.carlosrelva.com Para contatar os autores Aguinaldo Peres Ouro de Tolos Carlos Relva 20 As Sementes da Destruição Charles Dias 32 Rastreabilidade Joshua Falken 48 [email protected] Carlos Relva [email protected] Um Sério Estudo Sobre o Riso Leonardo Carrion 58 Charles Dias [email protected] Joshua Falken [email protected] O Legado Ubiratan Peleteiro 78 Leonardo Carrion [email protected] Marcelo Jacinto Ribeiro [email protected] Marcos Vilela [email protected] Pablo Casado [email protected] Ubiratan Peleteiro [email protected] A Herança Marcelo Jacinto Ribeiro 86 Traidores diante de um espelho Marcos Vilela 92 Posto 7 Pablo Casado 983 EDITORIAL De novo, novamente, mais uma vez. Após o lançamento da primeira Black Rocket, já tinha imaginado o próximo número e somente um detalhe muito importante me incomodava. “Será que os autores do primeiro número quererão escrever para o segundo?”, pensava. Confesso que tive uma agradável surpresa quando todos responderam positivamente ao meu convite. Isso fez que, de um simples grupo de escritores, passássemos a ser uma equipe! Hoje, a equipe de autores da Black Rocket já está comprometida com o terceiro e o quarto números da revista, tudo definido e todos escrevendo. Além disso, neste número contamos com a participação de três autores leitores da revista que atenderam a nossa chamada para submissão de contos e enviaram histórias muito boas. Isso tudo é muito bom porque deixa clara a solidez da Black Rocket e o comprometimento da equipe que a criou. Esses são ingredientes fundamentais para que um projeto de longo prazo tenha sucesso, infelizmente raro no meio literário amador brasileiro. Termino com uma dica, um convite e um pedido. A dica é para que vocês não percam a Black Rocket 3 – Especial de Natal, que estará muito boa. Será lançada em meados de dezembro. O convite é para que vocês não deixem de considerar seriamente a possibilidade de participar de nossa nova chamada de autores para a Black Rocket 4. Veja os detalhes na última página da revista. O pedido é para que vocês dediquem cinco minutinhos do seu tempo para nos enviar suas impressões da nova Black Rocket. Sentimos muita falta de receber comentários dos leitores no número anterior, pois é através dos comentários que sabemos o que está dando certo e o que precisa ser melhorado na revista. Portanto, seja um leitor legal e nos envie seu comentário! Charles Dias Coordenador e Editor [email protected] 4 O MERCENÁRIO E O ABISMO 5 ARTIGO Dois exemplos de FC Hard brasileira Por Edgar Indalecio Smaniotto* Entre várias das subdivisões possíveis que podemos fazer dentro da literatura de ficção científica, uma das clássicas de que podemos nos utilizar é aquela que divide esse gênero literário entre ficção científica HARD e SOFT. Nessa proposta de divisão, levamos em consideração o arcabouço cultural ao qual o autor recorre para sustentar sua narrativa. Se o autor recorre principalmente ao campo da cultura humana que busca estudar e compreender a natureza, ele escreve ficção científica HARD (pesada), pois recorre a ciências naturais e matemáticas (química, astronomia, biologia, física, etc.). Mas, se o autor recorre ao campo da cultura humana que busca entender a complexidade do próprio ser humano e as relações deste com sua própria espécie ou consigo mesmo, ele faz ficção científica SOFT (leve), recorrendo assim ao campo das ciências humanas (filosofia, antropologia, psicologia, política, etc.). 6 Neste artigo, estudaremos duas obras brasileiras (um conto e uma noveleta) de ficção científica hard por considerarmos que são textos cientificamente alicerçados ao mesmo tempo em que mantêm uma narrativa de qualidade ímpar. Bons exemplos para novos escritores que pretendam escrever dentro deste subgênero. De Roberto Schima, o conto Os Fantasmas de Vênus, é uma narrativa que se enquadra no subgênero da ficção científica hard, já que o romance apresenta as complicações da colonização espacial como problemas a serem solucionados pela ciência. Na história, Afrodite, uma cidade espacial com cerca de 4 mil habitantes é instalada na órbita de Vênus com a missão de “terraformizar” o planeta. Para tal, dirigíveis lançados a partir de Afrodite fariam a semeadura de fitoplâncton na superfície do planeta, esperando que num período de trezentos anos dotassem a atmosfera de Vênus com nível de EDGAR INDALECIO SMANIOTTO oxigênio suficiente para permitir a colonização. Estranhos acidentes começam a inutilizar os dirigíveis. Para investigar o fato, são enviados o engenheiro de computação Miguel, o engenheiro mecânico Tomás e a bióloga Beatriz. No decorrer da narrativa, o suporte de oxigênio falha, o que leva os três cientistas a utilizarem as algas para conseguir oxigênio. Uma série de pequenos acidentes com o dirigível acaba por levar Beatriz à morte. Por fim, Tomás descobre que o planeta seja habitado, não em sua superfície, como acreditavam antigamente; um mundo dotado de florestas úmidas e luxuriantes, libélulas gigantes e dinossauros famintos. Não. Os venusianos vivem na estratosfera. Flutuam por entre a neblina do planeta. Ou será a própria atmosfera uma criatura viva? É... Quem sabe se aquelas nuvens escuras, os relâmpagos e o clarão do lado noturno não farão parte de um único ser! Atuariam como neurônios de um cérebro inconcebível, de volume planetário, em permanente agitação... Aquelas manchas, sim, talvez elas sejam uma forma de vida que se camufla no meio ambiente. Quando despejei oxigênio numa delas, parte se dissolveu e outra fugiu; era um ser gasoso – parecia gás – e o oxigênio é mortal para todos eles... todas elas. Por isso destruíram os sistemas de semeadura; lutavam pela sobrevivência. (SCHIMA, 1993, p. 61-62) Descobrimos então que não se tratava de fantasmas, como pensava Beatriz, mas sim de alienígenas venusianos. Schima busca criar alienígenas perfeitamente plausíveis para o meio ambiente venusiano. A critica de Schima se refere à colonização propriamente dita de Vênus. Ginway (2005) não deixa de observar que na ficção científica norte-americana “terraformizar” um planeta não DOIS EXEMPLOS DE FC HARD BRASILEIRA tem conotações imperialistas. Em geral, prossegue a estudiosa, estes escritores não vêem nada de errado em impor a paisagem terrestre a planetas alienígenas, mas não é o caso do escritor brasileiro. Já na noveleta Quando os humanos foram embora, de Gerson Lodi-Ribeiro, num futuro distante, os seres humanos alcançam tecnologias surpreendentes de viagem espacial, regeneração biológica e teletransporte, aventurando-se pelo nosso braço da Via Láctea. Entretanto, o universo se mostra um tanto hostil para os seres humanos. Apenas três mundos parecidos com a Terra são descobertos sem habitantes, passíveis de colonização, enquanto quatro outras raças alienígenas são contatadas. Três delas de humanóides semelhantes aos terrestres. Mas Lodi-Ribeiro não entra em maiores detalhes sobre essas raças. Seu objetivo é nos apresentar o primeiro contato entre os humanos e a raça dos Ilianos. Lodi-Ribeiro faz uma descrição minuciosa dessa raça: são ilianos heterótrofos, pseudovertebrados, moluscóides dotados de exoesqueleto e simetria penta-axial, possuindo tentáculos como órgãos manipuladores. São também dotados de sonares orgânicos, respirando gás sulfídrico e liberando ácido sulfuroso. Seu ciclo vital é composto de três estágios: larva, adulto e ancião. É uma interessante descrição de uma biologia extraterrestre. No decorrer da história essas informações são passadas e esclarecidas de forma extremamente competente, e é possível, ao concluir a leitura, formar uma imagem bem precisa desses seres extraterrestres. Outro aspecto interessante do livro são as interações realizadas entre essa espécie, dotada de características tão distintas das humanas, com os 7 ARTIGO próprios humanos e também com inteligências artificiais. A tríade de diferentes espécies é bem trabalhada pelo autor, que explora com muita competência os problemas de comunicação e objetivos gerados pelas diferentes percepções de mundo de cada espécie. Lodi-Ribeiro descreve cada mundo apresentado aos leitores: Ílion (habitado pelos ilianos, coberto por um manto de gelo, semelhante à Europa), Tinuvel (habitado por humanos) e o sistema de Oricterope. Dados sobre atmosfera, clima, distância em UA (unidade astronômica), excentricidade orbital e outros são apresentados ao leitor, sempre com a competência de quem sabe do que está falando. Os ilianos são tecnologicamente inferiores aos humanos, mas são tratados com muito respeito no decorrer do contato; não há por parte dos humanos intenção imperialista. Existem, sim, trocas culturais, mas não são forçadas pela raça tecnologicamente mais avançada. Os humanos não deixam de oferecer aos ilianos todo o seu conhecimento sem maiores problemas. Ao final da história, são os ilianos, supostamente menos desenvolvidos, que oferecem uma solução teórica (a hiperfísica de campo residual) para a construção de espaçonaves com velocidade superior à da luz. Nestas duas narrativas verificamos a construção de histórias em que nós, brasileiros, somos os agentes ativos e tecnologicamente 8 superiores. Schima se preocupa sobretudo em criticar formas imperialistas de conquista que possam alterar o meio ambiente natural e levar civilizações inteiras ao desaparecimento. LodiRibeiro prefere apostar que uma civilização altamente desenvolvida não cometeria crimes contra raças menos desenvolvidas, estudandoas numa perspectiva antropológica. Referências GINWAY, M. Elizabeth. Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro. Trad. Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Devir, 2005. LODI-RIBEIRO, Gerson. Quando os Humanos Foram Embora. Coleção Fantástica nº 1.São Bernardo do Campo, SP: Hiperespaço, 1999. SCHIMA, Roberto. Os Fantasmas de Vênus. In: SCHIMA, Roberto; FERNANDEZ, Cid; CAUSO, Roberto de Sousa. Tríplice Universo. São Paulo: GRD, 1993. * Edgar Indalecio Smaniotto é filósofo, mestre em Ciências Sociais e doutorando do programa de pósgraduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília (UNESP). É autor do livro A Fantástica Viagem Imaginária de Augusto Emílio Zaluar: ensaio sobre a representação do outro na antropologia e na ficção científica brasileira, publicado pela editora Corifeu em 2007. Contato: [email protected] EDGAR INDALECIO SMANIOTTO RESENHA O Homem que viu o Disco Voador Uma crítica por Edgar Indalecio Smaniotto* O romance de ficção científica O Homem que viu o Disco Voador, de Rubens Teixeira Scavone, publicado em 1959, narra o contato do comandante Eduardo Germano de Resende com um suposto disco voador. Eduardo tem o primeiro contato quando verifica que os instrumentos da aeronave que pilotava estavam inexplicavelmente anormais. O piloto não descobre a causa, mas fica curioso com o acontecido. Num segundo vôo, então sobre o oceano Atlântico, o comandante e os quase 80 passageiros do quadrimotor que ele pilotava vêem um estranho fenômeno luminoso em volta do avião. Mas apenas Eduardo, a comissária Leila e um professor universitário, Augusto-Michel O HOMEM QUE VIU O DISCO VOADOR Vaugiard, conseguem enxergar no meio da luminosidade uma estranha nave. Abalado pela estranha visão, Eduardo entra em contato com Vaugiard, que se mostra um especialista no assunto, relatando-lhe famosos casos da ufologia, tais como o contato dos habitantes de Vênus com George Adamaski, os foo fighters, o projeto blue book e os casos Kenneth Arnold e Thomaz Mantell. Mais à frente, declara-se conhecedor da Instrução nº 2002, de 12 de agosto de 1954, da Força Aérea Norte-Americana, que dispõe sobre os procedimentos a serem tomados em caso de identificação de OVNIs. Vaugiard se mostra ainda um especialista 9 RESENHA em análises fotográficas de OVNIs, sabendo identificar desde falsificações tecnicamente perfeitas até fotografias verdadeiras. No decorrer da história, um humano com certa similaridade física com um homem do quadro La goulue et Valentin le désossé, de Henri ToulouseLautrec (1864-1901) consegue fazer chegar às mãos do comandante Eduardo um aparelho denominado visor-transmissor, espécie de câmera filmadora e aparelho receptor de rádio em um único aparelho, feito de metal desconhecido pelos cientistas humanos. Através de uma recepção recebida do aparelho, Eduardo, Vaugiard e Leila decidem se encontrar com as misteriosas entidades alienígenas na ilha marítima de Trindade. Para isso, pedem ajuda ao radiotelegrafísta Sandro, dono de um barco. Quando chegam à ilha, avistam bem próximo à costa um fantástico disco voador, o que deixa todos bastante aturdidos. O disco voador pousa e dele desce um ser alienígena humanóide. Com o nome de Alik, o ser revelase na verdade proveniente de uma civilização subterrânea (intraterrestre), e não extraterrestre. Alik leva então os quatro amigos para um passeio no disco voador, que termina de modo abrupto por causa da chegada de misteriosos navios de guerra (subentende-se que fossem norte-americanos) que dispararam um míssil contra o OVNI. O disco voador não tem dificuldade em escapar do ataque. Na verdade, Alik revela aos quatro humanos que seu povo é portador de tecnologia tão superior que facilmente poderia subjugar a humanidade. Entretanto, seu objetivo não é a conquista da humanidade, nem mesmo o intercâmbio tecnológico, mas sim escolher 10 um grupo de iniciados a fim de transmitir mensagens de cunho moral a respeito da necessidade do desarmamento atômico e da busca da paz mundial, aliadas logicamente ao desenvolvimento espiritual. Segue então a história em torno da dificuldade de se guardar segredo dos acontecimentos. Quando tudo é revelado por Sandro, os mesmos pacíficos alienígenas intraterrenos eliminam um avião com outros 80 passageiros e tripulação para matar Sandro. O professor Vaugiard cai no ostracismo, e Eduardo e Leila, que nada revelaram de sua participação na história, seguem seu romance sem maiores problemas. O Homem que viu o Disco-Voador é, segundo César Silva, o mais bem sucedido livro de ficção científica brasileiro, tendo vendido 40 mil exemplares em diversas edições. Fabiana Câmara nos informa que Rubens Teixeira Scavone, promotor do Ministério Público do Estado de São Paulo, publicou primeiramente o livro com o pseudônimo anagramático de Senbur T. Enovacs. O livro ganhou resenha favorável da crítica e membro da Academia Paulista de Letras, Maria de Lourdes Teixeira (mãe do escritor), importante para a boa recepção da obra, apesar das críticas do austríaco Otto Maria Carpeaux. Notamos aqui que o papel do alienígena Alik é o de trazer uma mensagem de cunho moral a um grupo de pessoas escolhidas. A suposta inferioridade moral e espiritual dos brasileiros é aceita sem muitos questionamentos, muito semelhante ao que acontece em uma mensagem religiosa. Mesmo quando os moralmente superiores alienígenas atacam um avião de passagei- EDGAR INDALECIO SMANIOTTO ros, matando uma centena de pessoas a fim de eliminar um único indivíduo, não há qualquer contestação moral de seus atos por parte dos personagens sobreviventes. Eduardo e Leila deixam o professor ser ridicularizado por querer divulgar o acontecido, mesmo tendo provas materiais para confirmar seus relatos. O medo dos alienígenas era superior tanto à amizade quanto ao nacionalismo. O complexo de inferioridade dos personagens principais era acentuado, frente ao que vinha de fora, ao superior. Devemos esperar apenas o reconhecimento e a submissão; o enfrentamento estava descartado. Os personagens humanos preferem seguir suas vidas, pensando em si mesmos como escolhidos para participarem de um evento sensacional. Os protagonistas acabam por ver o alienígena como ele desejava ser visto, um ser O HOMEM QUE VIU O DISCO VOADOR bom, cujas atitudes arbitrárias os humanos não podiam compreender, apenas se resignar a aceitar. Esta atitude passiva frente ao desconhecido e a falta de combatividade dos personagens principais nos diz muito da forma com que muitas vezes nós, brasileiros, encaramos supostos relatos ufológicos e místicos, passivamente, sem reflexão ou contestação. * Edgar Indalecio Smaniotto é filósofo, mestre em Ciências Sociais e doutorando do programa de pósgraduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília (UNESP). É autor do livro A Fantástica Viagem Imaginária de Augusto Emílio Zaluar: ensaio sobre a representação do outro na antropologia e na ficção científica brasileira, publicado pela editora Corifeu em 2007. Contato: [email protected] 11 Um Drinque para o Inferno AGUINALDO PERES Em um mundo devastado por uma peste impiedosa, um homem arrisca tudo em nome de uma missão muito pessoal. 12 — Vamos, beba! A velha estendeu o cálice em direção a Ivan Goranovich, que engoliu em seco, a bebida rubra tal qual sangue fresco parecia viva. — Está com medo, garoto. — Dentes pequenos e pontudos, sorriso de gato. — Pobre princesinha, ter como campeão um cavaleiro tão frouxo. O homem tomou o cálice e bebeu num gole só, o gosto de ferro desceu rascante pela garganta. Logo caiu de joelhos sob o peso da armadura, a dor no abdômen era terrível, como se demônios estivessem dilacerando suas entranhas com presas e garras. A velha se acocorou e o agarrou pelos cabelos: — Seis horas! É todo o tempo que você tem. Quando o prazo terminar, você não será mais humano. Com muito esforço, Ivan se pôs em pé e, apoiando-se nas paredes, subiu a escadaria em direção a superfície. Aos poucos as cólicas iam diminuindo ao mesmo tempo em que recebia no rosto o ar fresco da madrugada. A paisagem era um grande vazio, um deserto de areia fria cortado pela estrada reta que levava à cidade visível no horizonte, cidade negra recortada num fundo azul que começava a clarear. Alguns fiapos de nuvens brancas completavam o panorama desolado e silencioso de um mundo que não pertencia mais aos homens. Seu coração batia rápido, os lábios secos, sentia um misto de medo e ansiedade. Ivan respirou fundo o ar fresco e começou a verificar o equipamento; a armadura de cerâmica e malha metálica, a adaga presa à coxa direita, a espingarda de cano curto armada no braço esquerdo, no direito a submetralhadora, um cinturão de granadas cruzando o peito, o quadriciclo elétrico que havia trazido do subterrâneo no dia anterior. Não era a primeira vez que se vestia para o combate, porém desta vez estaria sozinho. Seus companheiros, sobreviventes como ele, há muito haviam desistido de lutar. Ele não os culpava, afinal esta missão era um assunto pessoal. Colocou o capacete e se dirigiu à cidade. A cidade parecia ter sido abandonada após um tumulto, vidros espatifados, veículos danificados, não se ouvia pessoas, máquinas ou animais e havia ossos limpos pelo tempo, pequenos ossos de cães e gatos e ossos maiores de seres humanos. O único sinal de vida eram as marcas recentes de pegadas humanas no pó acumulado nas ruas e calçadas. O coração batia rápido, a boca seca. “Como uma cidade fantasma”, tentou sorrir. Ivan dirigia o quadriciclo lentamente, seguindo as instruções que recebia através do sistema de localização por satélite GLONASS, o motor elétrico zumbia no silêncio. Há quatro anos ele morara naquela cidade, pequena e cheia de vida. Fazia entregas na base de mísseis de Kuznétsk e por causa disso fora convidado para assistir à chuva de meteoros na base. Quem imaginaria que aquela noite de céu estrelado marcaria o início do fim da civilização humana? Os pequenos meteoros incandescentes cortaram a atmosfera, mas não se desintegraram, eles caíram pelo mundo, abrindo pequenas crateras, furando telhados. Pessoas assustadas saíram para as ruas buscando segurança somente para se depararem com algo muito mais terrível. UM DRINQUE PARA O INFERNO 13 Ivan desligou o quadriciclo. Os antigos habitantes da cidade começavam a deixar os prédios, homens, mulheres e crianças caminhavam nus e se posicionavam de frente para o Sol. Uma mulher particularmente bonita lhe chamou a atenção; alta, os cabelos loiros escorrendo pelas costas, os seios empinados, a curvatura voluptuosa das ancas. Ela abriu os braços e ergueu o rosto, de sua boca saiu uma substância esbranquiçada, meio translúcida, que se estendeu para cima e se abriu como um cogumelo. Enojado, Ivan chegou a apontar a metralhadora para o parasita alienígena, mas abaixou o braço, seria inútil, como os sobreviventes logo descobriram. Agora era perigoso continuar com o quadriciclo. Enquanto o Sol brilhasse forte, os humanos infectados permaneceriam em estado de torpor se não fossem perturbados. Continuou seu caminho a pé, evitando tocar naqueles corpos nus e catatônicos. Algumas quadras depois chegou a um prédio residencial de quatro andares, grande, feio e funcional, da época do grande estado soviético. Subiu pela escadaria interna até o telhado que era usado para secar roupas. Ivan retirou o capacete e chamou: — Anastásia! Entre as pessoas infectadas que tomavam banho de sol no telhado uma jovem de cabelos castanhos claros se virou, assustada, tentou cobrir a nudez com as mãos. Então ela o reconheceu e correu para ele. — Ivan! — A jovem se lançou nos braços do irmão, que a enlaçou calorosamente de volta. As lágrimas escorreram e se misturaram. — O pai e a mãe? — Anastásia não respondeu, mordeu o lábio inferior e desviou o olhar, o irmão a abraçou mais forte. — Está tudo bem, eu estou aqui agora. Você vem comigo, no abrigo nuclear da base existem outros sobreviventes. E também há outros abrigos que escaparam, e algumas cidades no extremo norte. Parece que os parasitas não conseguem sobreviver por muito tempo sem a luz do Sol. Era um milagre. Como explicar que ela tenha sobrevivido tanto tempo sozinha entre os infectados, e pensar que encontrá-la só fora possível por causa de seus movimentos erráticos captados pelas câmeras dos satélites militares, que contrastavam com o movimento coordenado das pessoas contaminadas. Ivan a afastou um pouco de si, e olhou para o seu corpo nu e desviou o rosto encabulado. — Você não está com frio? Anastásia balançou a cabeça. — Olhe! — Ela estendeu o braço e pequenos pêlos loiros se arrepiaram. — Quando estou no sol é como se meu corpo pudesse absorver e armazenar a luz, não sinto frio ou fome — ela respondeu orgulhosamente. — Mas ainda preciso tomar água e dormir quando a noite chega. Goranovich afastou o cabelo da testa da irmã e a beijou. Ele sabia que ela estava infectada, contudo Anastásia não havia perdido sua individualidade, ainda era a sua irmã caçula que ele levava para o colégio e o seguia quando ia praticar basquete. Ainda havia esperança para ela e para a humanidade se eles conseguissem descobrir por que ela, entre milhares de seres vivos, conseguira sobrepor sua vontade à do parasita, deixando-o em estado de dormência. Subitamente, alguém agarrou Ivan pelo ombro, ele afastou a irmã e se livrou com um safanão. Estava diante de um homem franzino, um palmo mais baixo, porém as mãos dele prendiam os braços de Ivan como tenazes de ferro. Havia sido descuidado. O homem abriu a boca e o parasita saiu. O rosto de Ivan foi coberto pelo parasita, que entrou pela boca e nariz. Sufocado, ele se 14 AGUINALDO PERES debatia, perdia as forças enquanto a criatura invadia seu corpo pelos poros, pelos olhos, narinas e ouvidos. Invadia seu sangue. Então o ataque parou e o parasita saltou de seu rosto, contorcendo-se. Ivan vomitou e tossiu expelindo filamentos brancos. Os nanorrobôs que a velha cientista o fizera tomar haviam repelido o ataque. Livre, o russo percebeu-se o centro das atenções, dezenas de olhos tristes o observavam, puxou a irmã de encontro ao peito e abriu fogo com a metralhadora. Os corpos infectados foram lançados para trás e Ivan levou a irmã para a escada. O sangue vermelho se espalhou pela laje, filamentos brancos cobriram as feridas estacando o sangramento, alguns se ergueram, muitos permaneceram no chão enquanto o parasita recuperava os tecidos danificados e os poucos que estavam além da cura foram abandonados, carcaças sem vida. A porta da frente do prédio estava bloqueada, os infectados reagiam e se movimentavam lentamente, porém contavam com a vantagem da quantidade e da capacidade de agirem como um único organismo. Ivan não perdeu tempo e se dirigiu para a saída dos fundos lançando em direção dos humanos infectados uma granada. Por experiência em outros confrontos, aprendera que a explosão deixaria os parasitas confusos por alguns minutos. Nos fundos havia um parquinho para crianças, agora tomado pelo mato, e o portão de ferro no murro foi arrombado com um chute. Goranovich havia memorizado uma rota de fuga para aquela situação, seguiram pelas ruas comerciais que estavam desertas desde a madrugada em que ocorrera a queda dos meteoritos, sem encontrar hospedeiros, os parasitas se dirigiram para as áreas residenciais. Com um tiro, estourou a fechadura de uma loja e entraram. — Vânia, por que paramos aqui? — Preciso recuperar o fôlego e você precisa de roupas — respondeu sem olhar para a irmã. — Pegue o que você quiser, mas não exagere, ainda temos que andar muito. — Posso mesmo? — Pode. Acho que ninguém vai reclamar — ele sorriu. Enquanto a jovem desaparecia no interior da loja, Ivan se pôs a vigiar a rua. Estranhava o fato de não serem seguidos, os alienígenas haviam desistido muito rápido. Ainda se lembrava do primeiro confronto. Era madrugada, estivera bebendo com os soldados após assistirem a chuva de meteoros na base de Kuznétsk, quando as primeiras notícias chegaram, truncadas e ininteligíveis, falando de monstros e zumbis. O comandante, seguindo o manual, fechou a base e enviou um grupo de soldados para a cidade. Seguira o comboio militar em sua moto, até chegarem à cidade, pensavam em terroristas ou mesmo numa invasão chinesa, e se depararam com o inferno. Pequenos focos de incêndio, barulho de buzinas e alarmes, gritos humanos e latidos, pessoas correndo desvairadas, outras estáticas. Os soldados desceram do caminhão e avançaram cautelosos, foi inútil, os parasitas se arrastavam pelo chão rápidos como serpentes, agressivamente atacando todo e qualquer ser vivo. Os primeiros soldados infectados foram abatidos pelos próprios colegas, porém isso não detinha os parasitas, mesmo quando eram atingidos e partidos em pedaços, eles não morriam. UM DRINQUE PARA O INFERNO 15 Os soldados foram perseguidos até o Sol nascer, quando os parasitas tornaram-se menos ativos. Naquele dia, Ivan conseguiu retornar à base com três dos quatorze soldados. Ivan olhou para o relógio, passava pouco das dez e meia, já gastara mais da metade do tempo que a velha lhe dera. O pior era não poder comer ou beber enquanto os nanorrobôs estivessem ativos. Umedeceu os lábios com a língua e só então percebeu que perdera o capacete durante o confronto no telhado. Anastásia retornou; calçava tênis e meia, uma bermuda ciclista sob a saia rodada, camiseta e colete pescador, pendurada no ombro uma bolsa com logotipo dourado. Uma combinação estranha que fez o irmão sorrir. — Agora sim você está parecendo a irmãzinha que eu adoro. — Goranovich a abraçou forte e notou que havia um pouco de batom em seus lábios. De uma esquina afastada, os irmãos observavam a rua tomada pelos infectados. — Os desgraçados estão ficando mais espertos — reclamou Ivan. Em vez de persegui-los, eles o aguardavam junto ao quadriciclo. — Fique aqui, eu vou buscar o quadriciclo. — Não vá, podemos usar um carro, tem vários abandonados na cidade — implorou Anastásia, demonstrando toda a sua preocupação. — É inútil, depois de quatro anos sem funcionar a gasolina já deve ter evaporado e a bateria, arriado. Não se preocupe, vai dar tudo certo. — Gentilmente afagou a cabeça da irmã. Ivan caminhou em direção à multidão, homens, mulheres e crianças nus que o fitavam com olhos tristes. “Maldição! Por que eles têm que ter essa expressão no rosto? Eles se parecem com animaizinhos indefesos”. Sabia o que precisava fazer e em silêncio repetia para si mesmo, “não são humanos, estão mortos, apenas vermes alienígenas, não são humanos...” Jogou a primeira granada no grupo logo à sua frente, e outra foi lançada para a esquerda. Corpos e membros foram arremessados para os lados e com a fumaça cinzenta veio o cheiro de fuligem e carne queimada, que lhe embrulhou o estômago. Começou a correr, aproveitando que os alienígenas estavam desnorteados pelas explosões, com a metralhadora derrubava os que insistiam em se levantar, quando encontrava um grupo maior usava a espingarda aumentando ainda mais a carnificina. Isso não mais o preocupava, deixava-se levar pelo momento sem pensar nas conseqüências, agia por pura inércia. Estava quase chegando quando seu pé foi seguro, tentou se soltar, mas um golpe nas costas o fez cambalear, nisso seus braços foram presos e torcidos para trás, somente a malha de aço impediu que os ossos se quebrassem. Um novo golpe nas costas o fez ficar de joelhos, estava imobilizado. Naquela posição não podia liberar os braços ou usar as pernas, lentamente os humanos infectados o rodearam, muitos com o rosto desfigurado ou sem um membro. Quando um deles se aproximava o parasita saía, pulava de encontro ao rosto de Ivan sufocando-o, dolorosamente invadindo seu corpo até ser rechaçado pelos nanorrobôs, mal tinha tempo de recuperar o fôlego antes que outro alienígena o atacasse. E assim continuou. 16 AGUINALDO PERES Um a um, os parasitas alienígenas tentavam tomar aquele corpo humano que resistia, mas por quanto tempo? A cada novo ataque reduzia-se um pouco a capacidade de defesa dos nanorrobôs, seria apenas uma questão de tempo até obterem a vitória. Então por entre as lágrimas de raiva e dor, Ivan notou a irmã se aproximando por entre os infectados. Ele parou de resistir, toda a sua força o abandonou. Seus colegas sobreviventes tinham razão, ele pensou ao ver a irmã entre seus algozes, não havia esperanças para ela, uma vez infectada seria para sempre uma migalha da entidade alienígena, não mais uma pessoa, não um indivíduo, e como parte do todo fora usada como uma isca para atrair qualquer idiota que ainda possuísse um pouco de fé, como ele. “Pelo menos agora ficaremos juntos”, pensou e cuspiu os resíduos brancos. O rosto de Anastásia se aproximou e Ivan pôde finalmente ver as lágrimas que escorriam pela sua face, seus lábios brilhando com batom se abriram. — Izvinite... — Ela puxou duas granadas do cinturão do irmão e as jogou para os lados, as explosões próximas os lançaram alguns metros pelo asfalto, de alguma forma Ivan conseguira proteger a irmã com o corpo, recebendo a maior parte do impacto na parte dorsal da armadura. Ele se levantou ainda zonzo, sangue escorrendo do nariz e dos ouvidos que zuniam, ergueu no colo o corpo inerte da irmã, um filete de sangue escorria dos lábios dela e um grande corte na testa ainda sangrava, estava preocupado, porém não tinham mais tempo, mancando dirigiu-se ao quadriciclo, que endireitou com um chute. Os humanos infectados que ainda permaneciam em pé se afastaram cautelosos, perderam a vontade de atacá-lo, perceberam que o custo havia sido alto demais. Provavelmente teria pesadelos à noite, quando o corpo cobraria pelo esforço e pelos pecados do dia, mas no momento sentia-se exultante, poderoso, havia vencido. Os irmãos deixaram a cidade sem novos confrontos, entraram pelo deserto gelado e passaram pelo portão da Base de Kuznétsk com seus silos e mísseis balísticos inúteis: o inimigo não estava mais isolado do outro lado do mundo. O ar frio secara o sangue de suas roupas, Ivan sentia a suave respiração da irmã de encontro ao peito, ela dormia, suas feridas curadas, pele nova sob o sangue coagulado, as dele ainda iriam doer por um bom tempo. O quadriciclo parou defronte à entrada do abrigo nuclear, o sol mergulhava lentamente no horizonte, a luz externa se acendeu e ele sorriu para a câmera. — Nastia, acorde, nós chegamos. A garota resmungou algo e abriu os olhos, desceu do quadriciclo e amparou o irmão, a perna doía e os músculos estavam rígidos. Com a ajuda da irmã desceu as escadas para o subsolo. A sala estava diferente, a pequena mesa fora retirada, em seu lugar haviam colocado um casulo de isolamento sobre um carro-maca e a passagem oposta estava bloqueada por uma parede de vidro, por trás da qual a cientista e dois soldados os esperavam. — Está atrasado, mas me parece que conseguiu voltar ainda humano. — A velha sorriu seu sorriso de gato. Algo estava errado, pensou Ivan, e olhou interrogativamente para o casulo. — É apenas temporário, afinal precisamos tomar cuidado, não sabemos o quanto o agente alienígena pode ser contagioso. Ela terá que ficar de quarentena até estarmos seguros, não concorda? UM DRINQUE PARA O INFERNO 17 Sim, ele concordava, mas mesmo assim se perguntava, por que apenas um casulo? Não seria possível ele também estar infectado apesar dos nanorrobôs em seu sangue? Não seria mais seguro manter ambos em isolamento? Só havia uma resposta, agradar ao seu ego, eles estavam lhe dizendo que era um deles, que ele era confiável, não oferecia perigo. Porém se era verdade, por que os dois soldados? Dois enfermeiros bastariam, a não ser que esperassem por problemas, que ele reagisse. Basta uma mentira para que as demais apareçam, ele não fora autorizado a salvar a irmã, na verdade fora enviado para buscar um precioso espécime de estudo, e ele era dispensável. E eles estavam certos, a velha estava certa, era a melhor chance de encontrar um meio para destruir os parasitas, o soldado Goranovich teria feito a mesma coisa. Ivan ergueu a espingarda e atirou, a parede de vidro se estilhaçou sobre os soldados e a cientista, ele não seria descartado. Os irmãos subiram de volta pela escada, deixando para trás a última granada, o sopro da explosão aqueceu suas costas quando saíam para a superfície. — Ivan! O que aconteceu? Pergunta errada, pensou o russo, a pergunta certa seria: para onde vamos agora? Para o norte ainda existiam algumas cidades, porém Anastásia nunca seria aceita entre as pessoas, isso era óbvio. Por outro lado, ao sul havia as cidades infectadas pelos parasitas alienígenas. Com certeza aquilo era o inferno, mas quem sabe o Éden ficasse a oeste. Subiu no quadriciclo, logo precisaria recarregar as baterias. — Vamos para o oeste, sempre quis conhecer a Europa. Anastásia subiu na garupa e abraçou forte o peito do irmão. — Por que não? 18 AGUINALDO PERES Ouro de Tolos CARLOS RELVA 20 Quando um repórter incrédulo encontra um pirata beberrão em um bar de estação espacial, tudo pode acontecer, inclusive a descoberta de um grande e assustador segredo... A programação da emissora Aureal foi abruptamente interrompida para um anúncio importante: “De acordo com o pronunciamento do presidente da Gestão dos Planetas-Membros, Zamir Khovan, sua visita à nova estação espacial, instalada nos limites do sistema Solar, foi adiada. Alegando problemas de ordem pessoal, agendou nova visita à estação para o próximo mês.” — Merda! — exclamou Gregório Stefano, ou Greg da agência La Cruz, como era mais conhecido, enquanto se dirigia ao bar da estação, após ver a notícia em um dos holovisores. Ser repórter de terceira categoria não era fácil, ele pensava. Se trabalhasse na Aureal News, saberia de antemão que o presidente não viria mais. E como Zamir fazia questão de estar presente à cerimônia de inauguração do complexo espacial, pois recebia seu nome, era melhor não esperar a chegada do vice ou de outro representante. Greg lamentava trabalhar em uma inexpressiva concorrente da Aureal, pois, além do péssimo salário, não tinha à sua disposição o sistema de repórteres-robôs auxiliares e nem o sofisticado envio de informações via Dobra que a grande empresa de notícias rival oferecia ao seu pessoal. A La Cruz precisava enviar fisicamente seus repórteres aos quatro cantos do sistema Solar, além de, algumas vezes, mandá-los também para os planetas-colônias dos três sistemas estelares explorados. Essas viagens de Dobra pesavam no bolso da La Cruz, mas eram mais baratas do que a aquisição de um sistema particular de informações como o da Aureal. E Greg ainda estava enjoado da última viagem que fez... Como só havia viagem de volta para a Terra programada para o dia-padrão seguinte, Greg resolveu tomar alguma coisa no bar. Era um dos poucos entretenimentos da estação, planejada especialmente para a detecção de Buracos de Minhoca do tipo C, fundamentais para as viagens de Dobra. Mas também servia de parada e abastecimento básico para naves da Gestão que vinham dos outros sistemas estelares. Batizada de Estação Espacial de Ciências Khovan, ainda não tinha sido oficialmente inaugurada, mas já funcionava efetivamente há alguns meses-padrão. O complexo era dividido em duas grandes partes. A primeira, com formato esférico, era relativamente independente do restante da estação e estava escondida no meio da grande e vistosa estrutura secundária em forma de guarda-chuva. Era onde ficavam os cientistas do Projeto Dobra, profissionais especialmente contratados de Plutão, o mundo mais próximo, para o importante e contínuo trabalho de expansão da civilização humana. Na outra parte, com suas majestosas placas solares, localizavam-se os demais alojamentos, restaurantes, módulos de acoplagem de naves, embarcadouro e o bar onde Greg agora bebia um destilado venusiano, famoso por seus poderes afrodisíacos. Como diziam que as mulheres de Plutão eram muito atraentes, o repórter acalentava a esperança de encontrar alguma cientista no bar, usufruindo um descanso merecido após um cansativo turno nos laboratórios. “Provavelmente os cientistas conseguirão criar um novo Buraco de Dobra antes mesmo de o presidente visitar esta maldita estação”, pensava ironicamente Greg, enquanto tomava mais um gole da bebida. — Ele não virá... Greg, no balcão do bar, ainda se acostumando com a baixa e aconchegante luminosidade do local, virou-se surpreso para a direita e observou o estranho homem sentado ao seu lado. OURO DE TOLOS 21 Era sem dúvida uma figura incomum. E pela aparência só poderia ser um pirata, um bucaneiro dos mundos extra-solares. Greg conhecia bem esse tipo de pessoa, que não se pareciam muito com os bandidos que viveram, séculos atrás, nos mares do planeta Terra. Mas, apesar disso, possuíam também uma aura de romantismo rebelde e espírito de aventuras que faziam questão e orgulho de preservar. O pirata vestia-se e cheirava como um mendigo de Io. Suas roupas surradas, que Greg podia arriscar serem sobras de velhos trajes de astronautas-operários das antigas ferrovias marcianas, estavam cobertas de emblemas cafonas, insultuosas alusões às condecorações de bravura dos meta-soldados de Belus. Sua vasta cabeleira e a barba crespa e grisalha pareciam não ver banho há décadas. A face dura, ossuda, e as rugas em volta dos olhos denunciavam uma vida difícil que já ultrapassava meio século. De grande porte físico, o pirata contrastava com o clima arrojado e anti-séptico da Khovan. — O que disse? — perguntou o repórter ao pirata, sentindo que fazia um grande favor em dar atenção à tão deplorável criatura. Poderia até considerá-lo digno de pena, mas já havia visto pessoas em condições piores nos conflitos Amaltea/Calisto, quando fora correspondente de guerra. — Ele, o presidente. Não virá mês que vem. Nem ano-padrão que vem. Nem nunca mais... — respondeu o pirata. — E como pode ter tanta certeza? — Simples, meu jovem. O presidente não se preocuparia com trivialidades quando a humanidade está prestes a enfrentar sua maior ameaça. — Qual ameaça? — perguntou o repórter com certo ar de desdém, mas com a veia jornalística pulsando. — O fim de tudo o que existe — respondeu friamente o velho pirata. Greg sempre se gabava de conseguir identificar, na maioria das vezes, a veracidade nas palavras de um entrevistado. Também percebia facilmente quanto ele estava imerso em devaneios e fantasias. Mas o pirata não apresentava os sinais comumente encontrados, não havia mudanças em suas expressões faciais. Nem mesmo o olhar sem foco e as pupilas contraídas das pessoas acometidas por visões proféticas ou outras alucinações estavam presentes. O homem havia feito a sua revelação sem aumentar o tom da voz, sem hesitação ou respiração mais profunda. Isso deixou Gregório incomodado. — Aceita outra bebida, senhor? – perguntou o barman a Greg. O repórter estava tão absorto em pensamentos sobre o pirata e o que ele havia dito que se assustou com o barman. O atendente percebeu, mas manteve a postura e um leve e simpático sorriso. Ao lado de Greg, o pirata deu uma inconveniente e assustadora gargalhada rouca. Aparentemente, gostou de saber que suas palavras causaram apreensão e nervosismo ao repórter. Então, levou o copo a boca e tomou o último gole de sua bebida. 22 CARLOS RELVA Apesar da companhia desagradável, Greg ficou mais tempo no bar do que poderia imaginar. Provavelmente isso se devia à sua grande curiosidade em saber mais sobre esse fim do mundo que o pirata profetizava. Nessa altura, o repórter já sabia até seu nome, Dakota McGuire. Um nome um tanto incomum, principalmente para uma pessoa vinda de Europa, satélite de Júpiter. Dakota tentou explicar que a origem de seu nome estava ligada ao gosto de seus pais pela religião hindu, mas Greg não viu sentido algum nisso. — A vida em meu mundo não é fácil, sabia? — comentou Dakota, enquanto sorvia mais um gole de autêntico uísque escocês. Uma fortuna para o bolso de Greg, mas o pirata afirmava que valeria a pena bancar cada gota para ter acesso à sua aterradora história, que comprovaria as afirmações apocalípticas. — Nós, europianos, temos um ditado — continuou Dakota —, a vida aqui é uma desgraça, por isso saia enquanto pode e tenha uma vida desgraçada em outro lugar. Sempre achei isso um exagero, mas depois do que aconteceu no sistema estelar Arnurion, tenho certeza que somos realmente amaldiçoados! Greg resolveu cortar o papo furado do velho marujo do espaço antes que sua conta ficasse no vermelho, pois desconfiava de que o pirata tentaria beber o máximo de uísque que pudesse às suas custas. — Dakota, vamos logo aos fatos relevantes, tudo bem? — sugeriu Greg. — Você falou sobre Arnurion, certo? Então, sua terrível história começa em Furina, o planeta industrial? — Mais ou menos... — e mais um gole de caríssimo uísque desceu pela goela abaixo. — Conhece aquele planetinha asqueroso? Só há três coisas para se fazer num lugar daqueles: drogarse, trabalhar como um escravo e drogar-se mais um pouco... Greg conhecia o planeta e sabia que Dakota não estava exagerando. Furina era um dos poucos mundos habitados por humanos fora do sistema Solar. Com seu eterno entardecer dourado, foi descoberto em uma das primeiras viagens espaciais de Dobra nos Buracos de Minhoca de tipo C. Na realidade, os primeiros colonizadores e atuais habitantes de Furina não eram exatamente humanos, mas uma variação criada através de engenharia genética. Os furinianos são adaptados às condições do planeta, uma atmosfera quente e rarefeita que não passou por processo de terraformação. Eles apresentam uma fisiologia peculiar, com ausência completa de pêlos no corpo, película negra que protege os olhos dos raios estelares e grande força e resistência física. Troncudos e compactos, foram projetados para o trabalho pesado nas futuras indústrias que cobririam quase todo o planeta. Greg também sabia que Furina era um pesadelo, se comparado com os mundos paradisíacos do sistema Solar. Poluído e inescrupulosamente explorado, possuía uma economia baseada na exportação de produtos tecnológicos de segunda linha. A produção feita em ritmo acelerado, em indústrias que tentavam primar pela qualidade nos produtos na mesma proporção em que ignoram a segurança e saúde de seus funcionários, supria cada vez mais os solares. E para agravar a situação, o processo desumano das indústrias do planeta e a quase total ausência de lazer e entretenimento obrigam os furinianos a recorrer a pesadas drogas sintéticas como uma forma de entretenimento e fuga. Poucos são os humanos normais que resistem a essas condições extremas. Os que se obrigam a isso, e permanecem em Furina, ou possuem altos cargos ou são miseráveis e foragidos, considerados pelos próprios furinianos um pouco menos que “coisas”. A Gestão dos Planetas-Membros sempre fez vista grossa sobre tudo isso. Afinal, é bem conveniente para ela. OURO DE TOLOS 23 Enquanto Greg refletia sobre Furina e as reportagens que fizera no planeta, algumas recusadas e outras previamente cortadas pela La Cruz antes da exibição nos planetas-membros, Dakota discorria distraidamente sobre as inúmeras profissões que exercera no planeta. E só quando começou a falar de seu ingresso no mundo da pirataria é que despertou novamente a atenção do repórter. — Me tornei pirata quando fiquei realmente encrencado! — lamentou. — Arrumei uma dívida com a máfia furiniana. Uma soma considerável em créditos! — Máfia? — admirou-se Greg. — Não foi desbaratada há alguns anos-padrão? — Sim, foi — disse Dakota. — Mas o que estou te contando aconteceu antes da investigação policial terrestre. — E por que não pagou a dívida? — Quem me dera! — respondeu Dakota. — Não tinha condições. E como minha vida corria perigo iminente, decidi escapar de Furina de qualquer jeito. Como não tinha créditos, percebi que minha única chance era a pirataria. — Puxa, que fácil! — ironizou Greg, enquanto observava preocupado o copo de uísque do pirata esvaziar rapidamente. — De uma hora para a outra você se tornou um pirata! — Ora, claro que não foi assim! Piratas não aceitam qualquer um entre eles... Mas tive uma excelente idéia, me escondi no entulho industrial do espaçoporto de Gerat e fiquei no aguardo de uma nave pirata retirar o material. — Entulho? — perguntou o repórter, incrédulo. — Que tipo de pirata é você? — Pelo jeito você não entende nada de pirataria moderna, hein? — divertia-se Dakota, enquanto tomava um dos últimos goles de sua bebida. — Principalmente os que trabalham para os empresários furinianos. — Como sabe — continuou —, da incessante produção do planeta resulta muito lixo. Algum até radioativo! Manter esse material no planeta é impensável e contratar um serviço profissional para eliminar tudo isso também, financeiramente falando. Outra solução, lançar todo o entulho no espaço, nem pensar, pois não seria uma solução politicamente correta. Então, os furinianos tiveram a excelente idéia de jogar todo esse lixo em Onedos, a estrela central daquele sistema. E isso pagando os módicos serviços de quinta categoria dos piratas espaciais. E foi assim, na viagem entre Furina e Onedos que a tripulação da Intrépida Escarlate me encontrou a bordo, tornando-me o mais novo pirata da tripulação do capitão Lafitte. — Lafitte? — surpreendeu-se Greg, engolindo uma risada. — Está brincando, não é? — Ora, claro que esse não era o seu verdadeiro nome. Muitos piratas usam nomes falsos. O imediato, por exemplo, se chamava Floco de Neve. E olha que, apesar do nome singelo, o homem era de um gênio terrível e de grande responsabilidade na nave. Além de braço direito do capitão, era o chefe de ciências. Eu nunca me preocupei em escolher outro nome, mas muitos levavam isso a sério. Às vezes é importante esconder o passado... — E por que não te jogaram de novo em Furina quando retornaram ao planeta? — Ora, meu rapaz, os piratas têm um rígido código de ética. Uma vez com eles, sempre entre eles! E eu estava com sorte, pois o capitão Lafitte foi com minha cara. Logo me tornei seu braço esquerdo, principalmente graças ao meu excelente faro para encontrar bebida escondida 24 CARLOS RELVA na nave e por causa de os meus conhecimentos em medicina irem um pouco além dos básicos primeiros socorros. Minha mãezinha era enfermeira e aprendi muito com ela. Que os deuses a tenham em grande estima. O velho pirata levantou o copo em lembrança a sua falecida mãe e Greg se viu, admirado, fazendo o mesmo gesto. O álcool certamente já estava afetando suas ações. — Então, Dakota, continue — pediu. — Você tornou-se um pirata a bordo da Intrépida Vermelha e...? — Escarlate. Intrépida Escarlate. Na verdade esse era apenas um dos nomes da nave. Os outros eram Baleia Vermelha, O Crepúsculo de Kadhush e A Mãe de Todas as Banheiras. Dependendo da ocasião usávamos um desses nomes. Mas Intrépida Escarlate era o mais comum. Depois de uma pausa para um soluço ou arroto disfarçado, Greg não conseguiu discernir, o pirata continuou: — Aqueles foram tempos tranqüilos... Trabalhosos, mas tranqüilos! E, enquanto me acostumava com a vida de pirata, a máfia furiniana assistia a seu próprio fim. Agora, poderia voltar ao planeta se quisesse e até arrumar um emprego decente. Mas, sabe como é, a pirataria tem o sabor de liberdade que vicia um homem! Mas não pense que a vida de pirata é só flores. Logo te contarei como tratamos nossos companheiros de profissão por causa das metas de trabalho! — Provavelmente irá dizer que não há entulho suficiente para todos, provocando brigas. Certo? — É bem por aí — respondeu o pirata. — Mas o capitão Lafitte era um homem muito esperto, ardiloso, e sabia contornar os obstáculos. E por anos-padrão vivemos aquela rotina de viagens entre Furina e Onedos. Isso até encontramos algo muito estranho guardado no espaço profundo... Ao dizer isso, seu rosto ficou sério. A conversa descontraída estava acabando. — O que vocês encontraram? — perguntou Greg, sentindo um inesperado frio na espinha. Nada como uma bebida forte para aflorar a sensibilidade. — Se me pagar mais uma bebida eu conto tudo para você. O repórter ainda suspeitava de que o lobo do espaço era apenas um alcoólatra inveterado e aproveitador. Mas, enquanto seu copo enchia novamente, percebeu pela primeira vez o esforço que o pirata fazia para disfarçar o tremor em sua mão direita, segurando-a firmemente com a esquerda. Foi então que Greg se deu conta que Dakota estava, todo o tempo, dissimulando o nervosismo. A bebida não era apenas uma diversão para o pirata. Era uma maneira de suportar as lembranças de algo terrível. Pelo menos assim suspeitava Greg. “Cinco horas-padrão desde o último contato com Furina. Estamos tentando conexão com nossos correspondentes-robôs no planeta e em Fai, sua lua, sem êxito. Fredik Kress, secretário das comunicações da Gestão, garantiu que a situação é tranqüila, uma simples falha no envio de informações via Dobra. O secretário também prometeu que tudo se normalizará em breve.” OURO DE TOLOS 25 — Começou de novo... — Como assim? — perguntou Greg ao pirata, ouvindo o comentário enquanto retornava do banheiro. Ainda sentia um gosto amargo na boca, após quase vomitar as entranhas na privada. Seu fígado, definitivamente, não acompanhava o ritmo do de Dakota. — A coisa está se repetindo — disse o pirata, mantendo os olhos fixos no holovisor, apesar de a edição extra do Aureal News já ter acabado. — Primeiro a Intrépida, agora Furina... — Por que não fala do... — Tínhamos feito centenas de viagens até Onedos — interrompeu Dakota, imerso em lembranças. — Jogamos muito lixo naquela fornalha termonuclear! A produção furiniana não parava e havia muito trabalho para todos. Carregávamos toneladas de entulho por mês-padrão e recebíamos bem por isso! E o lucro era sabiamente distribuído entre os tripulantes. Lafitte até dava gordas recompensas aos melhores piratas. Greg permaneceu calado. Não queria interromper o pirata, agora que a história estava deslanchando. — Mas um dos problemas dos piratas é a maldita inveja! E a Intrépida Escarlate estava muito visada. Sua tripulação era muito competente. Isso incomodou Avran Russo, capitão da Eldorado. Ele odiava Lafitte há anos e sabendo que outros capitães começavam a alimentar um sentimento parecido, resolveu tirá-lo da jogada. Tudo planejado secretamente, mas sem grandes cuidados. — Bem, isso pelo menos justifica a denominação de piratas. — Um belo dia, quando rumávamos para Onedos, demos de cara com a Eldorado armada até os dentes! — Uma nave? — admirou-se Greg. — Então Avran era um péssimo estrategista... — Que nada. A vantagem era dele, pois sua nave já tinha descarregado e contava com combustível extra, como viemos a saber depois. — E o que vocês fizeram? — Fugimos, ora! E sem saber para onde ir. E o maldito Avran em nosso encalço, lançando mísseis da Eldorado. Achávamos que era o fim. — E o que aconteceu? — A nave desapareceu. — Como assim? Nesse momento Greg percebeu que a movimentação no bar estava aumentando. Repórteres corriam de um lado para outro. Alguns se juntavam em rodas de conversa. Até o número de cientistas percorrendo os corredores da estação era maior. E não havia uma única plutoniana interessante entre eles. Por causa da agitação, o repórter desconfiou que estivesse perdendo algo. — Como disse, a Eldorado sumiu. Fizemos uma varredura e nada! Resolvemos então, cautelosamente, retornar pelo mesmo caminho e chegamos à conclusão que a nave e sua tripulação haviam caído numa fenda espacial. — Não seria um mini Buraco Negro ou um Buraco de Minhoca? — arriscou Greg. — Sou um ignorante em ciências astronômicas, mas Floco disse que a coisa, apesar de ter 26 CARLOS RELVA uma estranha luminosidade, não emitia radiação, não afetava a gravidade, tinha uns cinco quilômetros de raio e, com certeza, salvou nossas vidas! Além disso, depois de realizarmos todas as análises possíveis e enviarmos uma pequena sonda na fenda, concluímos que era diferente de qualquer singularidade que já havia sido descoberta. — E a Eldorado? — Não faço idéia. A sonda também não voltou. E nós ficamos um bom tempo por lá. — E depois? Foram embora? Retomaram viagem para Onedos? — De forma alguma! Não tínhamos combustível, pois gastamos quase tudo na fuga. Nós jogamos o lixo dentro da fenda e voltamos para Furina. O repórter não acreditou no que ouviu. Esses párias haviam ignorado todos os procedimentos básicos na detecção de anomalias espaciais definidos pela Gestão. Mas eram piratas, afinal... Enquanto Dakota tomava seu enésimo gole de uísque, fazendo o estômago de Greg embrulhar novamente, dois homens da agência de notícias Utley passavam conversando. — Então você acredita que a coisa foi mais séria em Furina do que estão falando? — disse um deles. — Parece que sim — respondeu o outro. — Está correndo o boato que não foi apenas problema nas comunicações. Alguém conseguiu interceptar um pedido de socorro da lua do planeta! Parece que foi feio mesmo. Greg virou-se com olhos arregalados em direção a Dakota. — Agora acredita em mim, rapaz? — Estou tentando... — Pois então faça um esforço maior. Ainda não falei do baú de moedas de ouro que esperava por nós quando voltamos à fenda. Greg avisou que a orgia alcoólica estava suspensa e Dakota pareceu não se importar com isso. Estava mais interessado em terminar finalmente sua história. Parecia ter urgência nisso agora. — Quando regressamos para Furina e consertamos os estragos na nave causados pelos mísseis da Eldorado, começamos a imaginar como aquela fenda poderia nos dar lucro. Informar o achado à Gestão e exigir a recompensa estava fora de questão, pelo menos para um bando de piratas. Mas se lançássemos o lixo dentro da fenda ganharíamos tempo e pouparíamos combustível. E foi na segunda viagem à anomalia que encontramos o maravilho baú com moedas de ouro! — Mas qual a origem das moedas? Eram antigas? Eram provenientes da Terra? — Vinham da fenda, disso tínhamos certeza. E eram toscamente cunhadas. Quem as confeccionou não tinha muito conhecimento do que estava fazendo. Mas não nos importávamos, claro. Atualmente, o ouro não tem tanto valor, mas vendê-lo para as indústrias furinianas dava um bom dinheiro. A capacidade magnética do ouro era fundamental para o funcionamento das nanomáquinas do planeta. OURO DE TOLOS 27 — Mas vocês não acharam estranho um baú vagando pelo espaço? — Claro que sim! A princípio pensamos que era da Eldorado. A única reminiscência da nave. Mas logo concluímos que era uma recompensa da fenda. Afinal, todas as vezes que jogávamos entulho lá, um novo baú nos esperava. Quanto mais toneladas de lixo, maior o baú do tesouro. Isso se repetiu por muitas e muitas vezes. — E os outros piratas não se importavam em ver a Intrépida Escarlate voltando para o espaço-porto de Gerat lotada de ouro? — Não era tanto ouro assim! Claro, quanto mais lixo nós jogássemos na fenda, maior o nosso pagamento na viagem seguinte. Mas a troca não era justa em termos de peso, e sim de valor. Por toneladas de lixo a fenda nos dava um baú. Por toneladas maiores, um baú maior. Quanto aos outros piratas, não nos incomodavam. Havia o medo a nosso favor. Eles nos temiam por causa do desaparecimento da Eldorado. Por isso nos deixavam em paz. E fazíamos de tudo para aumentar ainda mais esse clima de temor, pode ter certeza disso. Até uma caveira o comandante mandou pintar na proa da nave. Além disso, comercializávamos o material diretamente com os furinianos. Poucos de fora tinham conhecimento desses trâmites. E, graças aos deuses, nenhuma nave pirata encontrou a fenda. — E por que, assim que conseguiram muitos créditos, não abandonaram tudo e foram viver uma aposentadoria tranqüila? — Piratas são péssimos em finanças, meu rapaz. Gastamos tudo com mulheres e jogos! Já viu as dançarinas venusianas dos bordéis de Gerat? Aquilo que é mulher! Muito melhores que as plutonianas! E é difícil abandonar os velhos hábitos... — As venusianas, é? — Tudo corria às mil maravilhas... até um fraco carregamento e o surgimento do ovo. — Do quê? — Bom, parecia um ovo — informou Dakota. — Mas na verdade era o objeto mais estranho que já tinha visto na minha vida! Seu formato era ovular, todo azul e tracejado de amarelo. Era uma coisa muito esquisita. E olha que já vi desde orquídeas bronóides a ratazanas gigantes das luas de Hallus dando cria! Não era maior que a média dos baús e estava no mesmo lugar que costumávamos encontrá-los. — E vocês fizeram o quê? Levaram a bordo? — Sim, por insistência de Floco de Neve. Deixamos guardado em um dos compartimentos secundários. Infelizmente, o cientista nunca chegou a uma conclusão sobre o que seria aquilo. “Novas informações sobre o incidente em Furina”, disse o âncora da Aureal News. “Contrariando as informações anteriores, o presidente Zamir Khovan declarou estado de emergência. Uma esquadra militar fortemente armada segue para o planeta. Fortes evidências sugerem que o planeta foi atacado por invasores de uma civilização não-catalogada...” — Mas as viagens seguintes ocorreram sem maiores problemas — continuou o pirata, sem se importar com o informe. — Sempre estava lá um novo baú de moedas de ouro. — Você prestou atenção no noticiário? Mas a pergunta de Greg também foi ignorada. 28 CARLOS RELVA — O que não sabíamos é que os malditos amigos do capitão Avran resolveriam fazer uma nova emboscada, mesmo nos temendo. E, assim, a mesma cena se repetiu: nossa nave em fuga, sendo implacavelmente atingida por mísseis inimigos, seguindo em direção a fenda. Só que desta vez por sete naves piratas! Eu tinha certeza de que era o nosso fim... Com voz trêmula e acelerada, Dakota descreveu todo o cenário de terror, pois quando a já desmantelada Intrépida e as outras naves piratas chegaram próximas à fenda, se depararam com milhares de objetos semelhantes ao ovo. Alguns eram igualmente pequenos, outros, entretanto, tinham quilômetros de extensão. Os estranhos objetos, todos azulados e tracejados de amarelo, começaram a se mover pelo espaço em direção às naves. Eram tão rápidas e manobravam com tal facilidade que pareciam ignorar todas as leis da física. Os ovos menores se chocavam com as naves sem a menor hesitação. Ainda que em desespero, Dakota teve tempo de imaginar a reação dos piratas inimigos ao verem tais objetos alienígenas. Provavelmente acreditaram se tratar de armas do capitão Lafitte e da causa do desaparecimento da Eldorado. Mas a Intrépida Escarlate também estava sendo atacada. Foi triste para Dakota ver seus companheiros mortos ou em agonia. Essa visão nunca saiu de sua mente, nem mesmo embriagado. E enquanto os ovos gigantes adquiriam uma aparência mais aerodinâmica, semelhante a naves espaciais rusticamente desenhadas, os ovos menores atravessavam a estrutura da Intrépida e transformavam-se em formas quase humanóides, dizimando friamente a tripulação. Em um instinto de sobrevivência digno dos europianos, Dakota se dirigiu apressadamente aos módulos salva-vidas localizados na popa da nave. No caminho, não contendo a curiosidade, deu uma espiada no compartimento onde estava o primeiro ovo encontrado. Como os demais, este também tomara a forma de um perigoso humanóide. O pirata sabia que aquilo era vivo, mas não conseguia encontrar palavras para descrevê-lo, tamanho seu aspecto alienígena. Mas Dakota não se manteve lá por muito tempo. Cheio de horror, retomou sua corrida desesperada para os módulos. Todos estavam destruídos, a exceção de um. E foi neste que o pirata entrou e acionou os procedimentos de fuga. Antes de zarpar, e para sua aflição maior, o pirata ouviu o capitão Lafitte gritar e bater freneticamente os punhos na escotilha de seu módulo salva-vidas. Mas era tarde demais para o capitão, pois Dakota não poderia cancelar o lançamento automático. E sua última visão de Lafitte, através do visor da escotilha, nunca poderia ser esquecida: o corpo do capitão sendo violentamente dilacerado por um dos invasores. — Então o ouro, o ovo... eram partes de um plano de invasão? — Exatamente. Enquanto eu tentava fugir da nave, podia ouvir um ensandecido Floco de Neve no intercomunicador amaldiçoando a todos nós. Ele nos chamava de tolos gananciosos e acreditava que os invasores eram de outra dimensão ou coisa parecida e precisavam de material do nosso Universo para balancear as duas realidades e transpor a fenda. Antes de dar um grito assustador, suas últimas palavras nos culpavam por tudo o que estava acontecendo. — Pobre homem. Estava tão desesperado que não percebia sua própria parcela de culpa em tudo aquilo. — Pois é... OURO DE TOLOS 29 Então Dakota se levantou, ajeitando os trajes impossíveis de serem ajeitados. — Adeus, Greg. Foi um prazer conversar com você. Acredito que esta estação seja o próximo alvo dos invasores, pois é a instalação humana mais próxima de Furina. Mas se eu estiver enganado e você milagrosamente escapar, terá uma boa história para o La Cruz News. — Para onde vai? — Fugir. — Mas você não disse que é o fim de tudo? Para onde iria? — Não faço idéia. Mas tentar sobreviver é a minha natureza. Talvez vá para Anchor, onde ouvi falar que descobriram novos Buracos de Minhoca ainda não explorados. Talvez alguma viagem de Dobra me leve para um ponto bem distante da galáxia. Talvez até do Universo. Vou tentar adiar ao máximo o meu inevitável fim. “Conseguimos as primeiras imagens da tragédia que abateu Furina”, interrompia novamente a programação o plantão da Aureal. “Pelo que foi captado por um transmissor de Dobra secundário, proveniente de Fia, nada se encontra de pé no planeta. E de todas as imagens assustadoras, esta é a mais impressionante...” A imagem congelou no que parecia a cabeça de um dos invasores. A criatura era azul, tracejada de amarelo. E, como Dakota disse, era um ser difícil de descrever. Não parecia com nada que Greg já tinha visto e, mesmo assim, transmitia medo, terror profundo. O repórter sabia que havia outras civilizações espalhadas pela Via Láctea, umas mais estranhas que outras, umas mais amistosas, outras menos e, apesar do eterno desejo humano de conhecer outras culturas, contatá-las esbarrava em protocolos demasiadamente burocráticos e que as distâncias astronômicas tornavam tão lentos que a humanidade ainda se sentia relativamente solitária no Universo, com ou sem Buracos de Minhoca do tipo C. E mesmo sabendo que provavelmente havia muitas outras civilizações espalhadas pelas outras inúmeras galáxias, tinha certeza que esses invasores não representavam nenhuma delas. Sentia que essas coisas selvagens e insanas não faziam parte da realidade, tinham que vir de algum outro lugar, outra dimensão. Eram como seres absurdos do mais delirante pesadelo. E, mesmo que suas ações fossem bem reais e violentas, infligindo horrores aos indefesos habitantes de Furina, olhar suas formas azuladas, agora banhadas em sangue humano, enchia a alma de uma profunda e indescritível desesperança. O repórter ficou por alguns momentos hipnotizado pela imagem no holovisor e, quando finalmente procurou por Dakota, ainda pode vê-lo no elevador que levava ao embarcadouro. O pirata estava com a mão levantada, em um gesto de despedida. E seu frio e brilhante sorriso, mostrando um dente de ouro, não transmitia nem um pouco de esperança. 30 CARLOS RELVA As Sementes da Destruição CHARLES DIAS 32 Em algum lugar perdido no extremo norte da Europa, um segredo do passado, enterrado em uma tumba misteriosa, pode ser a chave para a conquista do mundo pela Alemanha nazista de Hitler. 1 – Sumerset (Inglaterra) – Julho 1937 Era uma manhã ensolarada de verão e pela estradinha de pedregulhos um imponente sedã Jaguar levava uma jovem deslumbrada com a paisagem. Era a primeira vez que Martha Ross vinha àquela região do país e não podia negar que estava apreciando a viagem totalmente inesperada que fazia a convite do Departamento de Estado. Não demorou muito para chegar a uma suntuosa casa de campo com ar aristocrático, onde um mordomo de feições sérias a recebeu com formalidade. A casa, muito luxuosa e sóbria, deixou Martha algo intimidada. Acostumada à classe média londrina e ao ambiente descontraído das universidades, estranhou toda aquela imponência austera. Foi levada até a biblioteca, onde dois homens a aguardavam. Um deles era mais velho e vestia um terno preto de corte conservador, o outro, aproximadamente da sua idade, usava um terno moderno como os dos filmes americanos. — Bem vinda, senhorita Ross. Sou Lord Wentworth e este é o Major Williams, do Gabinete de Operações Especiais do Exército de Sua Majestade — apresentou-se o velho aristocrata com um sorriso enquanto o militar observava a recém-chegada com interesse. — É um prazer estar aqui — disse a garota, sentando-se na poltrona que lhe havia sido apontada. — A senhorita é professora auxiliar de Lingüística em Oxford, especialista em linguagem rúnica. Estou correto? — perguntou Lord Wentworth. — Exatamente, senhor. — E a senhorita também desenvolve pesquisas em mitologia nórdica? — perguntou o militar, sério. — Exatamente, senhor, tenho interesse acadêmico pelo assunto — respondeu Martha, intrigada com aquela entrevista um tanto quanto inesperada. — O que a senhorita sabe sobre a lenda do Rei Rondheim? — perguntou Lord Wentworth, recostando na poltrona confortável. — É uma velha lenda do folclore nórdico, de um rei norueguês que derrotou um senhor da guerra viking na Groenlândia e entre os despojos de guerra recebeu artefatos místicos originários do continente perdido de Atlântida, as Sementes da Destruição. Essa lenda vem passando de geração em geração há séculos através de uma música folclórica muito popular nos países escandinavos. No entanto, cientificamente não há nenhuma prova de que algo assim tenha acontecido ou mesmo de que esse rei tenha existido — respondeu com o profissionalismo que Oxford havia-lhe ensinado. — Mas não é todo mundo que compartilha sua crença de que a lenda não passa de um conto de fadas contado nas noites frias de inverno — disse o lord. — A senhorinha sabia que Adolf Hitler, o líder alemão que vem preocupando a Europa, tem grande interesse em lendas como essa? — Não sabia disso, senhor. — Pois ele tem, assim como seu braço direito, Heinrich Himmler, o comandante da temida SS, a tropa de elite do regime nazista. Seu interesse é tanto que ordenou a Himmler que criasse uma divisão secreta na SS especificamente para rastrear e coletar informações e artefatos relacionados com ocultismo, em qualquer parte do mundo em que estejam, a Divisão Paranormal — disse o major. AS SEMENTES DA DESTRUIÇÃO 33 — Recentemente recebemos o informe de um agente que temos nessa divisão, informando que um tal Professor Von Kelssen encontrou alguma coisa relacionada com essa lenda que abriulhe as portas para todo e quaisquer recursos que necessite para uma expedição dita arqueológica à Noruega — contou Rei Rondheim, observando as reações de Martha. — E exatamente por que estão me contando tudo isso? — perguntou Martha, temendo já saber a resposta. — Veja bem, senhorita, nossos generais e diplomatas sentem cheiro de guerra no ar e por isso estamos atentos a tudo o que está acontecendo dentro e fora da Alemanha. Estamos atentos a todas as possibilidades, inclusive às mais exóticas — respondeu Rei Rondheim com seriedade. — Precisamos de alguém nessa expedição, mas precisa ser alguém com conhecimentos suficiente do assunto e que saiba falar alemão fluentemente para tomar o lugar da especialista em runas que Von Kelssen requisitou a Berlim, e a senhorita é a candidata perfeita para essa missão. Martha sentiu as palavras lhe faltarem. Em sua mente relampejou um turbilhão de lembranças de histórias de agentes secretos. — Senhor, sou somente uma professora universitária ... — disse, sentindo a voz sair como um sussurro hesitante. — Sua ficha diz que a senhorita sabe falar alemão fluentemente e sem nenhum sotaque, acredito que resultado de seus três anos na Universidade de Berlim. Além disso, a senhorita tem apenas uma aparência frágil, mas tem prática em atividades ao ar livre e aprendeu a pilotar muito bem com seu pai, piloto da guerra de 1914, antes de se mudar para Londres para continuar os estudos — disse Lord Wentworth, sem tirar os olhos de Martha. — Mas isso não faz de mim um soldado preparado para alguma missão de espionagem. — A senhorita já ouviu falar de uma lingüista alemã chamada Gertha Straffe? — Diante do balançar de cabeça negativo de Martha, o major abriu a pasta que tinha sobre o colo e tirou dela uma foto que entregou para a professora. Martha deslizou para a beira da confortável poltrona para se aproximar da foto que lhe era mostrada. Era uma foto de estúdio que mostrava uma mulher por volta dos trinta anos, de cabelos castanhos claros cortado na altura do queixo, olhos escuros sérios, boca fina e maxilar levemente proeminente. A professora não conteve um murmúrio de espanto, pois aquela foto parecia ser de uma irmã gêmea que nunca teve. — Exatamente, senhorita, nenhum de nossos soldados se parece tanto com essa alemã quanto você. É exatamente por isso que a estamos convocando para essa missão. Naquele mesmo dia Martha foi levada de avião para Londres, onde informou aos familiares, amigos e colegas de trabalho estar de partida para os Estados Unidos a convite de uma famosa universidade da Califórnia para uma série de palestras, como fora instruída a dizer. Dois dias depois foi levada para uma base da Inteligência do Exército para receber o treinamento básico antes de partir para a Noruega. 2 – Gundvagen (Noruega central) – Agosto de 1937 O hidroavião da Luftwaffe fez uma curva graciosa no céu azul sem nuvens antes de pousar em um lago de águas calmas não muito longe de um castelo que dominava a região do alto de uma montanha. Entre os passageiros estava Gertha Straffe, a especialista em runas enviada por 34 CHARLES DIAS Berlin a pedido do Professor Von Kelssen, que não era ninguém senão Martha Ross. No cais onde o hidroavião ancorou, auxiliares de Von Kelssen a aguardavam e a vários engradados de madeira com equipamento para uso na expedição. Dali seguiram em direção ao castelo que Martha havia visto do ar, uma viagem que demorou pouco mais de uma hora de solavancos e desconforto. Assim que o caminhão parou ruidosamente no pátio interior do castelo, Martha desceu e olhou para tudo com pouco interesse. Não era um castelo bonito ou importante visto a decoração simples e tímida, apesar de estar localizado em uma região muito bonita. Um muro baixo rodeava o castelo pequeno com apenas uma torre de três andares e o pátio de formato irregular. Martha nunca tinha ouvido falar daquele lugar, mas teve certeza de que tinha sido a morada dos nobres que dominavam aquela região distante e pobre por conta da pequena população. Finalmente Martha encontrou o homem que reconheceu das fotos que lhe foram mostradas pelo Serviço Secreto, ele estava sentado em uma cadeira no centro de um grande cômodo vazio. Von Kelssen era baixo, de cabelo preto cortado muito curto, nariz de falcão e olhos azuis aguados. Assim que a viu levantou-se para cumprimentá-la de forma mais amistosa do que esperava. — Bem-vinda ao Castelo Storkak, fräulein Straffe. — É um prazer estar aqui e poder trabalhar com o senhor, professor — respondeu Martha, notando o leve sorriso de satisfação do homem com o cumprimento. Dois fortes refletores elétricos montados sobre tripés iluminavam uma das paredes, onde um dia havia sido pintada uma bela paisagem com muito verde, pássaros e animais, mas que o tempo se encarregara de tornar apagada e sem vida. — Perdoe-me se não a deixei se acomodar primeiro, mas esse lugar está acabando comigo. O que procuro está nesse aposento, escondido nessa pintura. Se observar com atenção no canto inferior direito notará duas runas bastante incomuns, que tenho certeza estarem intimamente relacionadas com o segredo escondido nesse castelo, que me levará ao que realmente busco. É exatamente por isso que está aqui, para me ajudar com essas runas. Aquele trabalho foi mais complicado do que Martha imaginou quando o iniciou. Durante uma semana trabalhou por até quinze horas diárias com uma equipe de restauradores para encontrar e tornar legíveis uma centena de runas escondidas na pintura com muito cuidado, algo pensado para que somente quem soubesse o que procurar conseguisse encontrá-las. — Como assim é uma mensagem cifrada? — perguntou Von Kelssen, em um tom que misturava irritação e frustração e que não procurou esconder. Martha olhou por cima do ombro do alemão e respirou fundo enquanto pensava na melhor forma de responder sem deixá-lo ainda mais irritado. — Uma mensagem escrita com as runas foi disposta na pintura com uma organização muito peculiar. Na ordem aparente a tradução não tem sentido algum, mas há claras indicações de que se trata de uma mensagem cifrada. — Como pode ser? Essa pintura deve ter pelo menos mil anos. — Dois séculos mais que isso, professor. De qualquer forma tenho certeza de que estamos diante de uma mensagem cifrada que somente poderei traduzir se for decodificada. — Pensando bem, Stefanus não deixaria algo tão importante sem nenhuma proteção — disse Von Kelssen em tom de reflexão. AS SEMENTES DA DESTRUIÇÃO 35 — Quem? — perguntou Martha, atenta a qualquer informação adicional que pudesse colher. — Esse castelo pertenceu ao Barão Stefanus Alexander Kielland, um dos protetores do segredo da localização da tumba do Rei Rondheim, algo que precisei de mais de uma década de pesquisas para descobrir — respondeu o arqueólogo alemão. — Precisarei me ausentar por alguns dias antes de podermos lidar com esse problema. Quando Von Kelssen voltou, trouxe um homem que não era estranho para Martha e que logo a inglesa reconheceu. Ele havia sido o pivô de um escândalo envolvendo a Sociedade Européia de Matemática que abalou o meio acadêmico. Ele era um promissor matemático austríaco que escreveu um artigo propondo a construção de um improvável dispositivo mecânico de encriptação que foi recebido com ceticismo pela comunidade acadêmica e classificado como ridículo. Revoltado com a recepção ao seu artigo, desapareceu do meio acadêmico. Estava claro que agora trabalhava para os nazistas. — Professora Straffe, esse é o professor Marcus Ruben, chefe de pesquisa da Inteligência do Reich — apresentou Von Kelssen na tarde seguinte, quando Martha chegou ao quarto da pintura para atender a um chamado do arqueólogo. – Se existe uma mensagem cifrada nessa pintura, esse é o homem certo para decifrá-la. Martha notou que no canto do quarto havia sido montada uma grande máquina que parecia a mistura mal resolvida de uma prensa de jornal com uma máquina de escrever com teclas demais. Foi trabalhando nessa máquina como um pianista louco que Marcus Ruben decifrou a mensagem que havia na pintura naquela mesma noite. — Devo confessar que quem criou esse código sabia muito bem o que estava fazendo. Apesar de relativamente simples, é uma solução muito engenhosa, elegante. Sem a ajuda da minha criação — disse o matemático e inventor dando um tapinha orgulhoso na grande máquina —, eu levaria um bom ano de tentativas frustradas até conseguir quebrá-lo — terminou de dizer estendendo a Von Kelssen várias folhas impressas com as runas ordenadas em blocos distintos e perfeitamente simétricos. — Agora é com a senhorita, professora Straffe — disse, entregando os papéis para Martha depois de observá-los com curiosidade. Os dois dias seguintes foram extenuantes para Martha Ross. Cercada por pilhas de livros antigos e anotações, teve de usar todo o seu conhecimento e adquirir alguns outros que não tinha para poder fazer a tradução, que seguia lenta e difícil. O autor da mensagem havia criado também um código ideogramático para proteger ainda mais a mensagem que queria transmitir, usando para isso toda a complexidade da linguagem rúnica, que era vasta. Quando finalmente terminou, ergueu a folha em branco com meia dúzia de versos de um poema épico inédito que claramente indicava direções e marcos a serem observados, um verdadeiro mapa em palavras. Se a tumba do Grande Rei você pretende encontrar, Por muitos dias terá de viajar, Por terra e por mar, Por onde verdejam os campos e lambe as pedras nuas o gelado mar. 36 CHARLES DIAS Um grande mal o Grande Rei guarda, Por toda eternidade em seu descanso sagrado, Um segredo pior que um demônio alado, Algo que nunca mais deverá ser revelado. Siga sem tardar para a cidade dos nobres, Não tenha receio de andar pela estrada dos antigos invasores, Que da velha Roma lançavam temores, Que por ela tropas espalhavam terrores. Vá então para a velha catedral, De pedras antigas como o mundo, Construída por mãos sagradas e cercada por um grande muro, Da qual hoje restam apenas velhos sentinelas mudos. Navegue pelo mar de sal, Siga a estrela que ilumina o trigal, Ore para que seus deuses soprem para barral, Levando-o assim por entre as ilhotas de Silal. Por fim procure pela velha fortaleza, Inexpugnável em sua grandeza, Que não guarda nenhuma beleza, Mas da terra sagrada tira sua pureza. — Muito bom trabalho, Professora Straffe. Tinha certeza de que não desapontaria a mim e ao Führer. A senhorita não imagina o trabalho que eu mesmo tive para descobrir que era nesse castelo que encontraria o que me levará diretamente ao túmulo do Rei Rondheim e seu maior tesouro, as Sementes da Destruição. — Meus parabéns — congratulou Martha, mesmo sabendo que o arqueólogo alemão ainda teria muito trabalho para descobrir com exatidão o local apontado por aquele mapa em palavras. Mais tarde naquele mesmo dia Martha recebeu um comunicado solicitando seu retorno imediato a Berlim por alguns dias a fim de verificar a autenticidade de manuscritos confiscados pela Gestapo. Von Kelssen autorizou sua ida, já que até desvendar a pista que tanto procurava não precisaria do auxílio da lingüista. AS SEMENTES DA DESTRUIÇÃO 37 Enquanto voava de volta para a capital alemã, Martha pensava em como o Serviço Secreto de seu país conseguira não somente passá-la pela lingüista alemã, como também forjar uma história para afastá-la de Von Kelssen a fim de que pudesse relatar o que estava acontecendo, bastando que enviasse um telegrama para uma suposta tia em Leipzig para que logo em seguida chegasse o falso comunicado de Berlin. 3 – Nordkapp (Extremo norte da Noruega) – Outubro de 1937 Após alguns dias em Berlin dedicados a reuniões secretas com agentes ingleses para comunicar tudo o que descobriu sobre a expedição de Von Kelssen, Martha estava voando de volta para a Noruega, mas dessa vez tinha companhia. Pilotando o bimotor estava o mesmo major que a havia entrevistado juntamente com Lord Wentworth, que tinha os cabelos pintados de loiro e encarnava o tenente-aviador Ludvic Strasser. Após o vôo longo e na maior parte entediante, a antropóloga agradeceu quando pousaram na pequena ilha rochosa alguns quilômetros distante do continente. Apesar do major não ter lhe dito como justificaria sua estada na ilha ao invés de retornar imediatamente, ela sabia que ele não faria nada que pusesse em perigo seus disfarces. O avião taxiou até o conjunto de barracões de madeira que haviam sido construídos não muito longe de uma área de ruínas na borda do penhasco que mergulhava no mar gelado. Assim que saiu do avião, sentiu o frio cortante que não deixava ninguém se esquecer que o Pólo Norte não estava muito distante. Um dos auxiliares de Von Kelssen veio ao seu encontro e, enquanto levava suas malas para uma dos barracões, disse que era para ela se trocar que o professor a aguardava nas ruínas ao sul da ilhota. Apesar de estar bastante cansada da viagem, Martha recusou a carona até onde estava o arqueólogo alemão e preferiu caminhar sozinha pelo terreno pedregoso coberto por uma fina camada de neve. O frio no extremo norte da Noruega era mais intenso e desconfortável do que imaginava a antropóloga inglesa, que andava encolhida dentro do pesado casado de inverno. Meia hora depois encontrou Von Kelssen observando o trabalho de duas dezenas de soldados que terminavam de retirar a camada de entulho que encobria um amplo pátio recoberto de grandes placas irregulares de pedra onde havia sido esculpida uma série intrincada de desenhos em baixo relevo. — Boa tarde, professora. Como foi de viagem? — perguntou o arqueólogo alemão bem humorado. — Tediosa — respondeu Martha laconicamente para desviar de uma vez por todas o rumo da conversa. — Sei como são essas viagens, principalmente quando estamos trabalhando em algo tão mais excitante e importante — concordou Von Kelssen, sem tirar os olhos do trabalho dos soldados. — O que espera encontrar nessas ruínas, professor? — perguntou Martha, curiosa com o lugar. — O que você acha que um dia foi esse lugar, professora? — perguntou Von Kelssen, divertindo-se com a curiosidade da lingüista. Martha não respondeu imediatamente. Antes olhou ao seu redor, observou com cuidado a disposição das ruínas e procurou em sua memória por qualquer referência que pudesse ajudá-la 38 CHARLES DIAS a dar uma boa resposta. A paisagem gelada e remota não ajudava muito. As ruínas não passavam de uma série de muros e paredes de pedra desmoronadas em torno de pátios concêntricos, deixando claro que o lugar havia sido abandonado havia séculos. — Pela disposição das ruínas diria que é uma fortificação militar da Baixa Idade Média, por volta do século treze, mas há elementos discrepantes que não deveriam estar aqui e que sugerem um monastério — respondeu Martha, intrigada com o que via. — Eu também fiquei bastante confuso quando vi esse lugar pela primeira vez, devo confessar — disse Von Kelssen, em tom de concessão. — A senhorita está no único monastério fortificado de toda a Escandinávia, o monastério de São Apolônio Vasili. O antropólogo alemão se divertiu com a expressão intrigada que tomou o rosto de Martha, enquanto ela tentava juntar aquelas informações e finalmente concluir que não sabia nada a respeito daquele lugar. — Passei vinte anos pesquisando sobre a lenda do Rei Rondheim, fräulein, e depois de muito tempo, muito esforço e muitas buscas infrutíferas por toda a Europa, consegui remontar a verdadeira história por trás da lenda. Esse rei legendário realmente existiu, apesar de seu reino ter durado muito pouco. Ele assumiu o trono no ano de 585, quando seu irmão mais velho, o legítimo rei, foi morto após uma batalha brutal para defender o reino de uma invasão viking. Para vingar a morte do irmão, durante três anos o Rei Rondheim juntou recursos e congregou esforços para construir um exército de bom tamanho. Finalmente, em 589, ele partiu para Vlakvik, a cidade-capital do senhor da guerra viking responsável pela morte do seu irmão em combate. A expedição foi um sucesso. O exército de Rondheim não só venceu os vikings, como destruiu sua frota de navios e queimou Vlakvik até não sobrar mais que ruínas fumegantes e corpos carbonizados. Rondheim matou, ele mesmo, o senhor da guerra viking e tomou seu maior tesouro, um legendário artefato que os antepassados do bárbaro haviam, por sua vez, tomado de algum poderoso rei europeu e que era proclamado como vindos do próprio continente perdido de Atlântida, as temidas Sementes da Destruição. “Na viagem de volta o Rei caiu enfermo. Dias depois de seu regresso à Noruega, morreu após muita dor sem que nenhum dos médicos da corte tenha conseguido descobrir o que havia de errado com ele. Tanto os astrólogos reais quanto o sumo sacerdote proclamaram que o rei havia sido amaldiçoado pelas Sementes da Destruição e que o rei deveria ser enterrado em um lugar especial e esquecido, riscado da história juntamente com os artefatos malditos, que protegeria por toda a eternidade em sua morada final. Em 1132, um monge foi enviado por Roma à Noruega para debelar um culto obscuro ao Rei Rondheim. Esse monge era Santo Apolônio Vasili, que não somente debelou o culto, como também construiu um monastério fortificado exatamente sobre o túmulo real, tanto para impedir seu culto como para ter certeza de que se a maldição fosse real a santificação do lugar seria uma proteção a mais. Com a morte do santo, Roma ordenou que o lugar fosse destruído e enviou todos que puseram os pés nessa ilha para a América, de onde nunca mais voltaram ou se ouviu falar deles. Tudo isso para que esse lugar fosse esquecido de uma vez por todas.” — E como conseguiu reunir todas essa informações, professor? — perguntou Martha, ao mesmo tempo curiosa e grata pelo bom humor do alemão fazê-lo lhe contar o que tanto queria saber. — Por muitos anos não consegui mais que referências espalhadas que mal formavam um quadro geral do que realmente aconteceu. O Führer tem muito interesse nesse tipo de assunto e AS SEMENTES DA DESTRUIÇÃO 39 por seu intermédio passei um dia inteiro na Biblioteca Proibida do Vaticano, onde finalmente consegui preencher as lacunas dessa história maravilhosa. — E o que são essas Sementes da Destruição? — A garantia de que todo o mundo aceitará sem resistência o domínio do Terceiro Reich pelos próximos mil anos, fräulein — respondeu Van Kelssen misteriosamente, antes de dar uma longa e prazerosa risada. Por vários dias Martha trabalhou no pátio gelado, que na verdade havia sido o átrio da igreja que havia sido o coração do monastério fortificado. Em meio aos intrincados desenhos penosamente entalhados na rocha, descobriu algumas dezenas de runas em uma combinação especifica, um tipo de feitiço protetor usado pelos antigos sacerdotes escandinavos para ocultar e proteger segredos muito importantes. — Essa é uma ótima notícia, doutora. Era exatamente isso que eu esperava encontrar, um poderoso feitiço de proteção — disse Von Kelssen, eufórico com a revelação. Naquele mesmo dia Von Kelssen partiu de avião do acampamento sem dizer a ninguém para onde ia e por vários dias não houve notícias dele. Enquanto isso Martha pesquisou o que pode sobre o estranho feitiço e pela primeira vez naquela missão sentiu medo do que poderiam encontrar. Dias depois Martha fotografava alguns detalhes das runas inscritas no pátio, quando ouviu Von Kelssen chamar seu nome. Quando se voltou o viu ao lado de uma mulher alta, loira, vestida com o uniforme negro da SS, seus olhos verdes que a observavam friamente. — Professora Straffe, deixe-me apresentar Eva Krueger, a melhor cientista paranormal a serviço do Führer. Martha nunca tinha visto aquela mulher, mas o modo como ela lhe voltou o olhar com desinteresse deixava claro que se tratava de alguém arrogante, que se achava superior à maioria das pessoas, as quais não mereciam pouco mais do que algumas migalhas da sua atenção. Aquele tipo era muito comum no meio acadêmico e a inglesa sabia reconhecê-lo. A manhã seguinte foi bastante movimentado para os soldados, apesar de o dia ter amanhecido escuro e frio, tendo que levar para as ruínas diversas estruturas metálicas e um grande gerador elétrico movido a diesel, que chegaram à ilha durante a noite trazidos por um navio mercante que partira assim que foi descarregado. Pouco antes do meio-dia um soldado avisou a Martha que Von Kelssen a queria nas ruínas o quanto antes. Quando chegou às ruínas, Martha pensou que aquele lugar poderia passar tranquilamente por um set de filmagens de Hollywood. Refletores alimentados pelo gerador iluminavam o pátio descoberto e várias câmeras de cinema estavam preparadas para filmar tudo o que acontecesse. Sobre uma pequena plataforma de madeira estavam Von Kelssen e Eva Krueger, que conversavam enquanto dois soldados montavam na mão direita da mulher o que parecia ser uma enorme luva de borracha e cobre de aspecto estranho, ligada por um grosso cabo a uma mochila presa em suas costas. Pelo canto dos olhos viu o Major Williams ajudando outro soldado alemão a enrolar cabos elétricos que não estavam sendo usados. — Chegou bem na hora, professora — saudou o arqueólogo assim que a viu se aproximar. — E o que vai acontecer aqui? — perguntou Martha, desistindo de entender por conta própria o que era tudo aquilo. 40 CHARLES DIAS — Prepare-se para testemunhar o poder que fará o mundo se ajoelhar para o Führer — rosnou Eva Krueger, sorrindo maliciosamente para a lingüista. Não demorou muito para que os técnicos deram um sinal positivo de que Eva poderia fazer o que quer que estivesse planejando. Von Kelssen lhe falou algo em voz baixa e caminhou para fora da plataforma, deixando-a sozinha. Durante vários minutos Eva ficou imóvel de olhos fechados enquanto não se ouvia outra coisa senão o ruído baixo do gerador e do mar. Subitamente a mulher abriu os olhos e ergueu a estranha luva em direção ao pátio enquanto sussurrava palavras ininteligíveis. Por alguns segundos nada aconteceu, então o som elétrico emitido pela mochila que a mulher usava começou a ficar cada vez mais alto, e pequenas fagulhas azuladas começaram a saltar entre as placas de cobre da luva. Estranhamente o vento começou a soprar cada vez mais forte e as centelhas elétricas saltaram para o piso de pedra e para os refletores, fazendo um deles explodir em faíscas. A expressão no rosto da nazista era da mais completa insanidade. Então com um estrondo ensurdecedor as placas de pedra do pátio começaram a rachar até que finalmente revelaram um grande portão de ferro que vinham escondendo por séculos. As centelhas elétricas foram diminuindo até desaparecerem por completo, assim como o ruído elétrico e o vento, até que as únicas coisas que se ouvia eram novamente o gerador e o mar. — Ao trabalho, capitão — ordenou Von Kelssen, quebrando o silêncio. O oficial gritou ordens e fez com que os soldados saltassem de seus lugares e começassem a trabalhar freneticamente para abrir o portão negro encravado na rocha do pátio. — Imagino que a senhorita esteja muito curiosa quanto ao que acabou de testemunhar — disse Von Kelssen para Martha, que continuava aturdida com o que assistira — É natural, afinal de contas não se vê isso todos os dias nem mesmo na Inglaterra, não é mesmo? — Como? — perguntou Martha, sem poder acreditar no que acabara de ouvir. — Essa maravilha máquina foi criada pelo próprio Leonardo da Vinci, com a ajuda de outros brilhantes alquimistas de sua época. Para nossa sorte ele não tinha a tecnologia para tirála do papel e os projetos ficaram perdidos por séculos, até que os encontrei por acaso durante minhas pesquisas em busca da tumba do Rei Rondheim. Devo dizer que se não fosse o gênio da doutora Krueger, não teria sido possível transformar tal projeto em realidade de forma tão rápida e perfeita. E a senhorita tem o privilégio de tê-la visto em funcionamento antes mesmo do Führer, que somente terá esse prazer na próxima semana. Naquele momento Martha sentiu uma mão segurar com força seu braço. Virou-se e deu de cara com o capitão nazista apontando-lhe sua arma. — O que significa isso? — perguntou, tentando esconder o medo que sentia. — Ele somente está cumprindo ordens, professora Straffe, perdão, professora Martha Ross — respondeu Von Kelssen, com um sorriso nos lábios. — O Reich tem colaboradores fiéis em todo o mundo, inclusive na Inglaterra. Sabemos que está aqui por causa disso — disse Eva, em tom de triunfo, aproximando a luva elétrica do rosto de Martha. — E como sabe, professora, na Alemanha traidores são condenados à execução sumária. — Não, ainda precisamos de nossa amiga inglesa viva. Não sabemos se encontraremos mais runas em nosso caminho e ela é a única que pode decifrá-las. E se continuar fazendo seu AS SEMENTES DA DESTRUIÇÃO 41 trabalho, professora Ross, talvez até possa interceder junto ao Führer em seu favor — disse o arqueólogo alemão, dando o assunto por terminado. Finalmente os soldados terminaram de montar um guindaste motorizado e o usaram para erguer o colossal portão, revelando um lance de escadas de pedra que desapareciam na escuridão do subsolo. — O momento pelo qual eu esperei por mais de duas décadas — anunciou Von Kelssen solenemente. Alguns soldados começaram então a descer os degraus levando refletores de luz ligados por grossos cabos elétricos ao gerador, enquanto Von Kelssen caminhava prudentemente alguns metros atrás, seguido por Martha e Eva, que mantinha a luva elétrica ameaçadoramente próxima de Martha. Enquanto descia os degraus de pedra, Martha tentava em vão manter a calma enquanto seu cérebro imaginava mil possibilidades de fuga e descartava cada uma delas por se mostrarem impossíveis. De repente um ruído metálico surgiu do nada ao mesmo tempo em que os holofotes apagaram, enquanto um dos soldados que seguiam a frente deu um grito curto e agonizante. Imediatamente as paredes de pedra do túnel foram iluminadas pelo clarão de suas metralhadoras disparando ferozmente, enquanto o ruído ensurdecedor fez os que não estavam atirando taparem os ouvidos com as mãos. — Cessar fogo, cessar fogo — gritou Von Kelssen um minuto depois. Assim que outros refletores foram trazidos, uma cena horrível foi revelada. Os dois soldados que iam à frente haviam sido decepados na altura da cintura por algo tão afiado que separou seus corpos em dois além de romper os grossos cabos de força que alimentavam os refletores de luz que levavam. Após uma longa hora de espera ansiosa, Von Kelssen anunciou que havia desativado um engenhoso mecanismo mecânico acionado por gatilhos de pressão escondidos no piso do corredor. Uma armadilha mortal para os incautos que ousassem invadir a tumba real. O restante do longo corredor foi explorado com cuidado e sem pressa, porém, nenhuma outra armadilha foi encontrada. Duas longas horas depois finalmente chegaram a uma parede de pedra coberta de runas esculpidas com muito cuidado, de uma forma artística e quase ornamental. — Acredito que nossa convidada não se recusará a traduzir o que temos diante de nós — disse Eva, em tom sarcástico, enquanto fazia um movimento ameaçador com a luva elétrica na direção de Martha. Depois de trabalhar rapidamente na tradução, Martha pronunciou em voz alta a mensagem, um alerta para que a tumba do rei não fosse violada porque guardava algo tão terrível que nunca mais deveria sair dali. — Capitão, os explosivos — ordenou então Von Kelssen sem hesitar. A explosão então encheu o túnel de poeira e fragmentos de rocha, abrindo caminho para o arqueólogo alemão e sua ambição. Martha foi deixada para trás sob a guarda de dois soldados enquanto Von Kelssen e Eva 42 CHARLES DIAS Krueger desceram o novo lance de escadas que existia atrás da parede de pedras destruída pela explosão. Alguns minutos depois outro soldado voltou e mandou que a levassem adiante. Quando entrou na tumba a inglesa mal pôde acreditar no que estava vendo. Diante dos seus olhos havia uma magnífica sala do trono repleta de tesouros iluminados pela forte luz dos refletores trazidos pelos soldados. Sentado em um trono sobre uma plataforma elevada estava o corpo naturalmente mumificado de um homem vestido com uma fabulosa armadura decorada com ouro, prata e pedras preciosas. Dependuradas ao lado do trono, duas grandes tapeçarias de seda bordadas com runas maravilhosamente trabalhadas. — Aqui repousa Jarat Rondheim, rei, sábio e guerreiro, querido por seus súditos, honrado por seus aliados e temido por seus inimigos. Consigo sua maior conquista e também sua danação, as Sementes da Destruição, herança maldita da ilha tragada pela fúria do mar, que por tantas gerações causaram a morte, a discórdia e a guerra. Que esse tesouro maldito para sempre seja guardado pelo Grande Rei e que nunca mais ameace os homens — recitou Martha, traduzindo o que diziam as runas bordadas nas tapeçarias. Então Von Kelssen dirigiu-se ao trono, ignorando os avisos de Eva Krueger quanto à possível existência de outras armadilhas. O arqueólogo caminhava com passos confiantes, como um homem que finalmente tem ao alcance de suas mãos aquilo pelo que trabalhou toda a vida. Subiu os degraus da plataforma, ignorando os magníficos tesouros aos seus pés e ficou frente a frente com o mitológico rei, cujo rosto de pele ressecada pelos séculos sorria tristemente. — Acho que vossa majestade tem algo que venho buscando há muito tempo. Permita-me — disse o arqueólogo em tom solene, antes de levar a mão ao estranho colar de grandes esferas marrons do tamanho de bolas de tênis presas por uma corrente de ouro que a múmia tinha em torno do pescoço e retirá-lo com muito cuidado. Sorrindo vitorioso, o arqueólogo alemão foi então até um dos refletores e se pôs a observar melhor sua grande descoberta. Estendeu o colar diante do facho de luz e observou as contas escuras que se mostraram translúcidas e de uma cor avermelhada muito bonita, revelando em seu interior algo mais escuro e muito pequeno. Eva se aproximou e estendeu a estranha luva elétrica, onde o professor depositou o colar. Os dedos metálicos se fecharam e a mulher cerrou os olhos murmurando mais palavras ininteligíveis enquanto o crepitar de eletricidade ficava mais forte. Um longo minuto depois anunciou a última coisa que Von Kelssen gostaria de ouvir. — São apenas sementes velhas presas no âmbar. Esse colar não tem nenhum poder místico. — Eu não acredito! — Von Kelssen gritou como um louco, arrancando o colar da mão enluvada de Eva com violência, o que arrebentou a corrente de ouro e fez as grandes esferas rolarem pelo chão. Enfurecido, o arqueólogo chutou com violência vários artefatos preciosos enquanto gritava como um louco enfurecido. O oficial que comandava os soldados fez menção de ordenar que o imobilizassem, mas Eva fez um sinal para que todos ficassem onde estavam. — Durante toda minha vida procurei por esse lugar. Só eu sei das dificuldades que tive de superar para me apoderar das informações que me trouxeram aqui. Tudo isso para quê? Para descobrir que as temidas Sementes da Destruição não passam de sementes velhas que tolos reis antigos se matavam para possuir?! Ninguém ousava dizer uma palavra, temendo tornar-se alvo da fúria do alemão. Foi quando AS SEMENTES DA DESTRUIÇÃO 43 Martha viu que duas das esferas do colar haviam rolado para perto de seus pés. Com cuidado aproveitou que todos tinham a atenção voltada para o arqueólogo e se agachou para pega-las. Com cuidado colocou uma delas no bolso do casaco, então pegou a segunda e se levantou lentamente para que ninguém notasse o que estava fazendo. — A espiã pegou algo no chão — gritou o oficial, apontando para Martha. Naquele instante o Major Williams sacou a metralhadora que levava e gritou para que todos ficassem onde estavam, mas o capitão alemão simplesmente ordenou para que seus homens atirassem. Martha sabia que se não fizesse algo, tanto ela quanto o capitão estariam condenados. Num impulso impensado arremessou a esfera que tinha na mão na direção de Eva, mas a mulher notou seu movimento e erguendo a luva elétrica disparou com ela um relâmpago que despedaçou a esfera no ar. — Assim você me decepciona, inglesa idiota — rosnou a alemã, antes de dar uma risada. — Solte essa arma ou morram. Vendo que Eva tinha a luva elétrica apontada para Martha, o major jogou a arma no chão e colocou as mãos atrás da cabeça, rendendo-se. Rapidamente vários soldados avançaram sobre os dois para segurar seus braços. Tudo aconteceu muito rápido. De repente do chão surgiram centenas de cipós que cresciam numa velocidade assustadora e enrolavam em tudo o que tocavam. Os soldados começaram a atirar, mas foram rapidamente dominados e desapareceram na massa vegetal. Martha ouviu Von Kelssen gritar em algum lugar enquanto o ruído dos raios emitidos pela luva elétrica de Eva confundia-se com o som assustador dos cipós vivos. Em meio à confusão, Martha e o Major Williams foram soltos e conseguiram fugir para o túnel antes que os cipós os alcançassem. Correram feito loucos e, quando finalmente passaram pela parede de pedra que fora explodida, olharam para trás, mas estranhamente ninguém mais parecia ter conseguido escapar da tumba. — Acredito que os disparos não foram ouvidos na superfície. Vamos sair como se nada tivesse acontecido. Para todos os efeitos, estou levando-a para o acampamento para pegar alguma coisa. Não diga nada e faça de tudo para parecer calma — ordenou o major, antes de caminharem em direção da escadaria que os levaria de volta para a superfície. Quando saíram encontraram os soldados conversando despreocupadamente enquanto fumavam. Martha caminhava atrás do major fingindo tédio. Ao verem quem acreditavam ser um tenente de seu próprio exército, ficaram em posição de sentido. Apenas um sargento perguntou se precisavam de algo. — Levarei a professora de volta ao acampamento para pegar alguns livros. Na volta, não quero encontrá-los como se estivessem de folga. Esse é o exército do Führer, não uma companhia inglesa qualquer — disse secamente. Mesmo com o caminhão ganhando distância das ruínas, Martha não conseguiu deixar de sentir medo. Ao seu lado o Major Williams alternava seu olhar do pára-brisa para o espelho retrovisor. — Quando chegarmos ao acampamento direi que Von Kelssen ordenou que a levasse para sobrevoar a ilha em busca de alguma ruína nos penhascos. Assim que eu parar, vá direto para o avião que usamos para chegar aqui — ordenou o major em tom grave. 44 CHARLES DIAS Assim que chegaram ao acampamento e o caminhão parou ruidosamente, Martha desceu e foi para o avião enquanto o major falava com os soldados que guardavam o lugar. Não demorou muito para que ele também entrasse no avião e sem dizer nada tentasse ligar o motor. A hélice começou a girar devagar, então o motor deu um estouro acompanhado de uma nuvem de fuligem e parou. Antes que pudesse acionar novamente o motor, Martha viu um raio azulado passar próximo do avião para explodir vários tambores de gasolina não muito longe. Eva Kruegger e os soldados que guardavam as ruínas haviam chegado em outro caminhão e disparavam suas armas antes mesmo de o motorista parar o veículo. — Faça esse motor ligar e vá embora daqui. Vou ganhar algum tempo — disse o major, pegando uma arma no banco do traseiro do avião e sair do avião. — Mas... — Apenas faça o que estou ordenando. O que descobrimos aqui é muito mais importante que eu ou você — disse gravemente, antes de sair do avião e correr para o outro lado da pista de pouso improvisada. Enquanto assumia o lugar do piloto, Martha ouvia o pipocar das metralhadoras. Sussurrando uma oração tentou ligar novamente o motor do avião e mais uma vez o motor deu um estouro e não ligou. Sem perder tempo tentou mais uma vez, com alguma resistência o motor ganhou força e a hélice passou a girar cada vez mais rápido. Olhou então para o lado procurando o Major Williams para que viesse para o avião e deu um grito quando o viu ser atingido por uma rajada de balas que destroçou seu peito. Sem pensar duas vezes soltou o freio e sentiu o avião dar um soco ao começar a se mover. — Você não vai sair dessa ilha com vida — ouviu Eva gritar perto o suficiente para se fazer ouvir apesar do barulho do motor. Martha se virou e viu a alemã muito perto, apontando a luva mortal para o avião. A mulher sorriu e quando tudo parecia perdido, uma massa de cipós surgiu sob os pés da nazista, arremessando-a para o alto e fazendo com que a descarga elétrica mortal com que pretendia destruir o avião desaparecesse em direção às nuvens. Ainda no ar a alemã foi agarrada pelos cipós e desapareceu em meio a uma massa verde ondulante. Enquanto o avião corria pela pista ganhando velocidade, Martha rezava para que os cipós não fizessem com ela o mesmo que fizeram com todos os outros. Mas para seu alívio o avião decolou e ganhou altura rapidamente. Ainda muito nervosa Martha fez o avião dar várias voltas para testemunhar melhor o terrível espetáculo da pequena ilha rochosa ser tomada por um emaranhado de cipós vivos cada vez mais grossos que a destroçaram e, finalmente, tragou os escombros para o fundo do mar. Mais tarde, enquanto voava em direção à Suíça, para onde foi orientada para ir se algo saísse errado, pensava sobre o que aprendera sobre as Sementes da Destruição e o acontecimento extraordinário que havia riscado a ilhota da face da Terra. Com a mente mais calma lembrou-se que os cipós apareceram pouco depois de Eva ter destruído com a luva elétrica uma das esferas que tinham sementes em seu interior, cujos fragmentos foram lançados ao chão. Juntando essa constatação com o que havia lido nas cortinas que ornamentavam a tumba, chegou a uma conclusão terrível. AS SEMENTES DA DESTRUIÇÃO 45 — Foi aquela semente presa no interior daquela esfera que originou àquele pesadelo de cipós vivos que destruiu a ilha — disse Martha, em voz alta, para si mesma. — A lenda diz que o continente perdido de Atlântida foi tragado pelo mar, mas talvez a causa tenha sido exatamente uma ou mais daquelas sementes, afinal de contas, a lenda do Rei Rondheim diz que as sementes vieram de lá. Por isso são chamadas de Sementes da Destruição. Durante o restante da viagem Martha imaginou diversas hipóteses para o que seriam as sementes, de onde vieram e para o quê serviriam. Pensou que talvez fosse algum tipo de arma ou até exemplares muito antigos de plantas pré-históricas extintas. Mas concluiu que fosse o que fossem, o mundo estava mais seguro sem elas. Por um segundo pensou que na possibilidade de várias delas terem se partido durante a destruição da tumba, mas concluiu que se o invólucro que as protegia resistira por milênios, também seriam suficientemente resistentes para suportar a destruição da ilha. Finalmente Martha viu um pequeno aeroporto próximo de uma charmosa vila suíça em um verdejante vale, onde tinha certeza de que estaria a salvo e poderia entrar em contato com a Inteligência Britânica para que a levassem de volta para casa. Ao fazer uma curva mais fechada com o avião de forma a poder pousar, sentiu algo estranho em sua roupa. Com cuidado levou a mão trêmula ao bolso do casaco e apalpou algo esférico. Imediatamente se lembrou de que tinha pego na tumba não apenas a Semente da Destruição que havia lançado contra Eva que destruiu a ilha, mas outra esfera tinha colocado no bolso e trazia consigo todo o tempo sem se lembrar que a possuía. — Meu Deus, o que devo fazer com isso? — perguntou-se, preocupada. 46 CHARLES DIAS Rastreabilidade JOSHUA FALKEN 48 Quando o presente e o futuro se tocam de maneira imponderável, coisas muito estranhas podem ocorrer, até uma improvável troca de presentes. Se é que podem ser chamados assim... No final do século 20, a exigência por garantia de qualidade forçou todas as áreas da indústria a desenvolver métodos e programas para assegurar a excelência de seus produtos e, em caso de acidente ou defeito, descobrir sua origem para corrigir o erro. Mas décadas antes, indústrias altamente sensíveis como a automobilística e a aeronáutica mantinham um controle dos componentes utilizados e do destino do produto final. Tal controle é chamado de rastreabilidade e é uma das bases para se descobrir a causa de problemas que podem surgir quando o produto estiver com o usuário final. Num sitio paleontológico em uma das províncias do norte da China, 15 de novembro de 1997 Uma estagiária de paleontologia da Universidade de Pequim meticulosamente retirava a terra ao redor do fragmento de osso. Mais um pouco e aquele espécime poderia ser estudado e catalogado, definindo seu lugar na árvore evolutiva dos dinossauros. Foi quando, ao descobrir um pouco mais de terra, viu um relampejar metálico. "O que será isso? Talvez algum minério raro?", o lado de mineralogista amadora sugeriu, um tanto excitadamente. Ela começou a retirar a terra, revelando, para seu assombro, uma superfície lisa e metálica, que lhe deu um pequeno choque elétrico ao toque. Aquilo não era minério, com certeza. A superfície estava completamente polida. Mas ela se recusava a pensar na próxima hipótese lógica: que era um objeto artificial. Afinal, como algo feito pelo homem poderia estar numa camada de solo da época do Jurássico, e ainda naquele estado surpreendente de conservação? Chamou seus colegas para ajudá-la, lentamente desenterrando o objeto misterioso. Um mês mais tarde, o objeto foi identificado de forma conclusiva pelos técnicos do Serviço Chinês de Inteligência: Parte da asa direita de um Boeing 747-400. São Bernardo do Campo, 12 de agosto de 2007 O som crescente dos trovões mostrava que logo, logo, durante a tarde, uma tempestade cairia sobre a Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus José de Alencar. Mas um dos alunos do terceiro ano do ensino médio, Jonas, nem se importava com isso. Ele só tinha olhos para a garota morena na fila da cantina. Para os olhos azuis que nem safiras. Para os cabelos longos e pretos, que nem azeviche. Jonas era claramente um caso de apaixonite ultra-romântica aguda. Hoje finalmente falaria com ela, com timidez crônica ou sem. Ele se aproximou, respirando fundo. Foi quando Mateus, um valentão metido a malandro, chegou encostando na garota, que obviamente não gostou disso. — Olá, Andréia! Que tal irmos à balada hoje? Jonas viu que sua musa respirava fundo para se controlar. RASTREABILIDADE 49 — Desculpe, Mateus. Mas eu não posso. — Qualé gatinha? Prefere ficar perdendo tempo estudando? Relâmpagos iluminavam o céu, com uma sutil e estranha luz violeta emanando dos clarões. — Se a opção é ficar com você, sim. — O temperamento forte da morena suplantando a prudência, como ficou claro com a careta de raiva no rosto feio de Mateus. — Escuta aqui, sua... Aquele era o limite para Jonas. Num ato que poderia ser chamado de romântico ou puramente imbecil, devido à diferença gritante de físicos - Mateus era quase um armário 3 por 4 devido a anos de repetência e Jonas, um fiapo de gente -, agarrou o braço do valentão. — M-Mateus, — ela disse — não! — Cai fora, mané! Isso não é da sua conta! — gritou o adversário, empurrando Jonas ao chão. Imediatamente a atenção de todos no pátio coberto se virou para a briga. Várias pessoas gritaram quando Mateus tirou um revólver do bolso do blusão. A reação dos mais próximos foi se afastar do maníaco, formando um grande espaço com Jonas e Mateus no centro, Andréia empurrada para o lado. Esse efeito foi o que salvou a vida de várias pessoas. A cobertura do pátio tremeu com o trovão daquele momento, antes que se partisse quando um objeto atravessou a estrutura em alta velocidade. Seu ponto de impacto foi bem onde estava Mateus. O tremor resultante fez com que todos caíssem no chão, quase ao mesmo tempo em que a cobertura do pátio caiu sobre os alunos. Aturdido, Jonas levantou a cabeça. A apenas 50 centímetros de seu corpo, coberto com poeira dos escombros, terra e sangue de seu adversário, estava o objeto, engastado no chão. O rapaz piscou os olhos várias vezes, sem perceber os gemidos dos colegas ao redor. O objeto que tinha lhe salvado a vida era nada mais, nada menos que uma turbina de avião. "É isso que chamam de deus ex machina?", ele se perguntou. Base da Força Aérea Brasileira nos arredores de Sorocaba, 18 de agosto de 2007 — O que você quer dizer com não sabe de onde veio isto?!? Isto é uma turbina de Boeing 747!! — exclamou o major William Ferreira, responsável pela investigação sobre a origem da Turbina Fatal - como foi apelidada pela mídia, que exigia saber sua origem -, apontando com o braço para o monte de metal retorcido que era a origem de seu desconcerto. — Sim, major — respondeu o tenente Souza, no tom mais respeitoso possível. — Mas nenhum Boeing da classe 747 sobrevoou a área naquele dia, e não recebemos nenhum comunicado de emergência sobre possível perda de motores ou sobre aviões desse ou de qualquer outro porte desaparecendo que pudesse sugerir uma origem para essa turbina. O major olhava estupefato para seu subordinado. — Mas isso não é possível! Motores de jato não aparecem do nada — ele murmurou. Ferreira sabia que Souza não mentia, mas mesmo... O major apertou o nariz com as duas mãos. — E quanto aos números de série? 50 JOSHUA FALKEN — Já enviamos os números para a Boeing e Pratt & Whitney. Até a tarde, eles devem nos dar uma resposta. — Souza, mande seus técnicos checarem novamente o número de série de cada peça daquele motor. Contate novamente os fabricantes e deixe claro a urgência disso, nem que você tenha de ir até Seattle para isso. Essa turbina tem que ter vindo de algum lugar! — Sim, major. Assim que seu subordinado saiu, Ferreira passou as mãos pelos cabelos que começavam a rarear, num gesto de frustração. Base Loring da Força Aérea Norte-Americana, 3 de janeiro de 1977 O Coronel Andrews, chefe da base aérea de Loring, observava a estranha peça sobre a mesa. A peça que quase tinha derrubado um de seus pilotos, ao colidir em alta velocidade com o cockpit do caça durante um vôo com mau tempo. Era um altímetro, totalmente amassado com o impacto. Com muito esforço era possível ver o nome do fabricante. Exceto que a verificação do instrumento deu um resultado absurdo: não apenas eles não produziam aquela peça, como o material com que era feita... não existia. Base da Força Aérea Brasileira nos arredores de Sorocaba, 15 de setembro de 2007 — Por favor, repita o que acabou de dizer — Ferreira disse lentamente. O técnico olhou para seu superior, reunindo novamente sua coragem. Considerando que ele mesmo não acreditava no que tinha acabado de relatar... — Senhor, segundo todos os registros de rastreabilidade da fabricante do motor, ele deveria estar na fuselagem de um avião da Rosen Airlines, número de registro N5677, que hoje mesmo está na Inglaterra, recebendo uma pintura nova. — Você entrou em contato com a Força Aérea Britânica? — Sim, eles checaram os números de série. Batem com os do motor. — O motor que neste momento está aqui no hangar é idêntico a um que está instalado agora mesmo num Boeing 747 que está na Inglaterra? — Sim, senhor; com exceção de apenas três peças, são idênticos, até mesmo a pintura da nacele. — Você quer dizer que alguém se deu o trabalho de criar uma cópia de motor de um avião em operação e jogou em cima do pátio de uma escola? — Ferreira sabia o quanto a situação proposta era absurda, mas era a única que conseguia imaginar para explicar os fatos. O técnico ficou olhando para o lado, sem saber o que dizer. — Não exatamente, senhor... — Mas como não?! Alguém fez uma cópia do motor com peças falsas e... — As peças não são falsas, senhor. RASTREABILIDADE 51 — O-o q-quê?? — As peças são completamente idênticas entre si e têm todas as marcas de segurança contra falsificação; a única diferença entre as peças desta turbina e a que está naquele avião é que as desta turbina estão mais gastas, como se tivessem sido envelhecidas pelo uso mais prolongado. — Esse desgaste não poderia fazer parecer com que peças falsas fossem parecidas as originais? — Não, pois as peças são idênticas em composição química, resistência mecânica e outras propriedades que dificilmente se aproximariam se não fossem realmente originais. Ferreira fechou os olhos. — Você está tentando dizer que esta turbina e a que está no avião são a mesma? — É o que os dados querem dizer, senhor, por mais estranho que possa parecer... Base da Força Aérea Brasileira nos arredores de Sorocaba, 25 de novembro de 2007 Ferreira massageava os olhos, tentando aclarar as idéias. Aquela turbina infernal tinha sido enviada para os Estados Unidos, a pedido da FAA, a agência de aviação civil norte-americana, e da Boeing. Só que, ao contatar a empresa para pedir o relatório de suas descobertas, foi informado de que a turbina fora extraviada e nunca tinha chegado lá. Perguntando a amigos na comunidade de engenharia aeronáutica e tecnologia bélica, soube do boato de uma peça de desastre aéreo fora requisitada pelo Departamento de Defesa norte-americano. Ferreira imaginava muito bem qual seria essa peça... Ele se sentou em sua mesa. Não conseguiria sossegar enquanto não resolvesse esse mistério miserável! Só que ele não tinha muito para tentar resolver. Além dos fatos absurdos informados na reunião há mais de um mês, seus técnicos tinha descoberto apenas duas coisas mais: Uma, que no momento da queda da turbina, o INPE detectou uma tempestade anômala sobre a região, com muitas falhas de telemetria. Duas, que a turbina parecia ter uma fraca carga de eletricidade estática, que não descarregava com uma ligação terra, mas se dissipava muito lentamente. O major se recostou na cadeira. Aqueles eram os fatos, não podia discuti-los. Mas eles afirmavam que algo poderia existir em dois lugares ao mesmo tempo, o que era impossível! Só que aquela altura do campeonato, Ferreira era obrigado a excluir o possível... "Certo, vamos, para efeito de discussão, assumir que as duas turbinas são a mesma", Ferreira pensou. "Mas a que caiu era mais gasta, mais velha..." Ele arregalou os olhos. Havia uma explicação... mas era uma em que ele não tinha coragem de acreditar. 52 JOSHUA FALKEN Instituto de Pesquisas Tecnológicas, USP, 12 de dezembro de 2007 — William, você está ótimo! — exclamou o físico ao apertar a mão do antigo colega de classe. — Parece que o serviço militar está sendo bom para você. — Você também não está mal, Antônio — disse Ferreira. — Parece que você está mais organizado agora — comentou, ao ver o laboratório do amigo. — Haha, engraçadinho. Os dois amigos conversaram sobre os tempos de faculdade por um longo tempo, antes que Ferreira finalmente trouxesse à tona o que realmente queria discutir. Tinha passado uma semana inteira imaginando uma maneira de dizê-lo ao amigo sem mencionar sua investigação. — Antônio, talvez você possa me ajudar com uma coisa em que estou trabalhando. — É mesmo? — o cientista perguntou, curioso. — O quê? — Estou brincando com a idéia de escrever uma história e... Carlos riu. — Você?! Escritor? Isso sim é novidade! — Estou apenas brincando com a idéia — Ferreira defendeu-se. — Certo... mas o que é? — Bom, o enredo é o seguinte, o protagonista encontra uma mala idêntica a que possui, porém mais desgastada, com alguns documentos em que ele está trabalhando, já completados. Só que esses documentos estão bem na mesa dele, sem terminar. E ele tenta descobrir a origem da mala misteriosa. — Hum... uma história de viagem no tempo, não é? — É isso que o enredo faz pensar? — Sim, William. Veja, na sua história, o protagonista encontra completados os documentos em que está trabalhando. A solução mais simples, e - desculpe dizê-lo - clichê, seria que ele usasse os documentos finalizados para terminar o trabalho, os colocasse dentro da mala e a enviasse de volta no tempo para que seu eu mais antigo pudesse completar o trabalho. — Entendo... mas seria possível? — perguntou Ferreira, tentando esconder a excitação. — Ué, é ficção! Você pode fazer o que quiser nela, desde que a história seja interessante! — Certo — disse o major, impaciente. — Mas as leis da física permitiram isso? Antônio ficou em silêncio por um instante. — A resposta mais simples seria: não. A mais completa seria: talvez. — Como assim? — Bom, por tudo o que sabemos, a viagem pelo tempo é possível pela relatividade de Einstein, mas apenas para o futuro. — Apenas para o futuro? — Sim, porque a dilatação do tempo, o fenômeno pelo qual o tempo fica mais devagar para alguém que esteja se movendo em uma velocidade próxima a da luz em relação a alguém em estado estacionário, faria que enquanto para você, em alta velocidade, se passassem apenas um RASTREABILIDADE 53 ano, para quem ficou para trás, teriam se passado dez anos! Então, quando você descesse, estaria dez anos no futuro! — Entendo... — Outra opção seria um buraco de minhoca... — Aqueles atalhos no espaço-tempo que volta e meia vemos em Jornada nas Estrelas, não é? — Isso mesmo! Só que novamente você poderia ir apenas para o futuro. — Antônio respirou fundo. — Já a volta para o passado aparentemente não é possível, tanto em termos de energia -que teria de ser altíssima! - quanto em matéria de quebras de causalidade; afinal, se você voltasse ao passado, poderia matar seu próprio avô, e então como você nasceria? E se você nasceu, como você poderia ter voltado e o matado? Esse é o argumento básico contra viagens no tempo, se vistas em uma dimensão linear. — Mas suponha que fosse possível fazer alterações no passado... — Mesmo que isso fosse possível, se a interpretação Everettiana de múltiplas realidades da mecânica quântica for correta, algo que ainda não termos certeza, pois as evidências que temos apontam para um universo de Minkovsky, rígido, você criaria uma realidade alternativa, mas a sua realidade de origem não seria alterada. — Universo de Minkovsky? — o militar perguntou, um tanto perdido. — Hermann Minkovsky foi quem que criou as bases para o tratamento matemático do espaço-tempo como um conjunto, chamado tecnicamente de "continuum espaço-tempo". Nele, todos os eventos estão marcados em relação uns aos outros no tempo, por exemplo, seu nascimento, quando nos conhecemos aqui na USP, suas promoções, então se você visse sua linha de tempo veria todos os eventos de sua vida pelo espaço-tempo. "Mas, se isso for verdade, então nosso futuro já estaria predeterminado?", Ferreira pensou, incomodado com essa conseqüência. — Você está bem, William? — o cientista perguntou, preocupado. — Você ficou branco de repente. — Não, não é nada... Então, pela física atual, viagens ao passado são impossíveis, mesmo que consigamos a energia para isso. — Bom, há o Princípio de Novikov... Ferreira olhou fixamente para o amigo. — Princípio de Novikov? — O nome completo é Principio de Autoconsistência de Novikov, chamado assim devido a físico russo que o propôs, Igor Novikov. Essencialmente, diz que, mesmo num universo que permite a viagem no tempo, paradoxos como o que mencionei, o do avô, não ocorreriam porque não seriam permitidos. Na sua história, o protagonista não poderia deixar de enviar os documentos terminados de volta ao passado, para que seu eu mais velho os encontrasse. Isso é chamado nas teorias que permitem a viagem no tempo de "curvas fechadas de tempo", que são permitidas pelo Principio de Novikov, já que são autoconsistentes. — Você quer dizer que o avi... digo, o protagonista, não teria escolha a não ser enviar a mala de volta ao passado? — Havia um tom de descrença que Ferreira não conseguiu evitar. 54 JOSHUA FALKEN — Num universo de Minkovsky não, não teria — o físico respondeu calmamente. — Contra as Leis da Natureza, não há apelação. Casa do major William Ferreira, 12 de dezembro de 2007. "Faz sentido", pensou Ferreira. Na verdade, era a única explicação. Num futuro próximo, as peças diferentes na turbina do N5677 seriam substituídas pelas que estavam na turbina que caíra. Então os motores seriam completamente idênticos. E mais cedo ou mais tarde, o avião durante um vôo de rotina encontraria algum fenômeno estranho, talvez parecido com uma tempestade elétrica, na verdade uma falha, uma aberração no espaçotempo. Durante esse momento, a turbina seria arrancada e enviada de volta ao passado, para cair sobre a escola em 12 de agosto. Ele se perguntava se alguém do avião sobreviveria a esse encontro. Duvidava. Imaginava o que aconteceria se contasse a alguém sobre sua teoria: ou ririam dele ou o trancariam num hospício, ou os dois. Ele mesmo não sabia se acreditava ou não. Ferreira tomou outro gole de cerveja, cada vez mais incomodado com a situação. Não conseguia engolir que o futuro já estava escrito, sem chance de alteração. Todas as suas convicções eram contra isso! Definitivamente, a pior coisa é saber o futuro e saber que não poderia impedi-lo... se ele pelo menos tivesse uma idéia de quando... Foi quando se lembrou da misteriosa carga elétrica da turbina. Base da Força Aérea Brasileira nos arredores de Sorocaba, 13 de dezembro de 2007 O major Ferreira imediatamente foi até seu arquivo. Era exatamente como ele pensava: a turbina apresentava uma carga de eletricidade estática, que se descarregava de maneira muito lenta, a um ritmo constante. Assumindo que ela seria zero no momento em que a turbina estaria para voltar no tempo, ele poderia calcular a data em que o acidente com o N5677 ocorreria! No mesmo instante, começou a calcular. Hospital Psiquiátrico Jade Oliveira, 4 de agosto de 2008 O enfermeiro Anderson fechava a porta do quarto quando seu colega o cumprimentou. — Olá, Anderson. — Oh, olá, Flávio. — E então, conseguiu acalmar nosso amigo? Anderson respirou fundo. — Finalmente consegui injetar-lhe o calmante. — Ainda com a mesma história? RASTREABILIDADE 55 O enfermeiro não pôde deixar de suspirar com pena. — É, o sujeito ainda diz que um avião vai cair e parte das peças vai voltar no tempo. Ele até tentou avisar as autoridades, que logo o internaram aqui. — Ele era da Força Aérea, não é? — Sim. Enquanto os dois enfermeiros conversavam pelo corredor do hospital, o ex-major William Ferreira olhava para o teto, com olhos vidrados, murmurando: — Tem que haver apelação... N5677... Leis da natureza... Turbina... acidente... 25 de agosto... Retirado de um release da Associated Press, 25 de agosto de 2008 Melbourne, Austrália - Um Boeing 747-400 da Rosen Airlines, com 120 passageiros, prefixo N5677, caiu hoje próximo a Melbourne (...) Culpa-se o mau tempo (...) tempestade elétrica pouco característica (...) partes da aeronave ainda precisam ser localizadas. Base Não-identificada da Força Aérea Norte-Americana, 30 de novembro de 2010 O general Andrews observava enquanto os técnicos realizavam várias medições nas partes recuperadas do N5677 ao longo dos anos. Pesquisavam os destroços para descobrir o segredo da aberração espaço-temporal que tinha enviado o altímetro e, como descobriram mais tarde, outras partes do avião para o passado. Honestamente, Andrews duvidava que descobrissem qualquer coisa, exceto que o universo não aceitava paradoxos... — Contra as Leis da Natureza, não há apelação... — pensou. 56 JOSHUA FALKEN Um Sério Estudo sobre o Riso LEONARDO CARRION 58 Num Brasil Imperial fatos estranhos acontecem, mortes inexplicáveis, lutas em becos escuros, tudo em nome de um segredo que não pode ser revelado, jamais... Memorando Policial – Documento oficial Redator: Acólito Policial João Boucinha Prova 1 – Reprodução da carta encontrada com a vítima. Papel amarelado e com dobras marcadas. Sem data. Idade estimada em dezenas de anos. Meu amor, Eis que tudo era cinza, preto e marrom no teatro lotado de pensamentos tristes da minha vida, quando uma palavra surgiu disparada acima das cabeças como uma estrela explodindo sobre o mar noturno. Meus olhos de mariposa entortaram-me o pescoço buscando sua origem, mas logo tomei uma larga e amarga dose de “bom senso” pensando que uma voz tão doce e sensual, por justiça divina, deveria ter uma dona em tudo o mais desinteressante. Até que te vi surgindo, bela e saborosa, caminhando felinamente pelo saguão dos meus sentidos. Não apenas me faltou a respiração como, tenho certeza, cheguei a salivar de desejo. Por instantes minha visão e audição discutiram a facadas se era possível conciliar aquela imagem e a voz. Naquele momento teria cometido algum desatino (como saltar em você ou fugir correndo), pois estava quase convencido que sim, que tal criatura era real, se minha mente não surgisse na conversa novamente afirmando que, com uma voz tão doce, roucamente sussurrante e com uma figura tão provocante certamente, CERTAMENTE, por justiça, você deveria ser a pessoa mais vazia, enfadonha e repulsiva do mundo em todos outros aspectos. Não sei se chamei sua atenção pelos olhos desorbitados, ou se o coração pulsava sacudindo o tecido da camisa (felizmente o coração está sempre em desacordo com a mente), mas o fato é que nossos olhares colidiram espalhafatosamente, espalhando faíscas que serviram para afastar o mundo ao redor. E você veio e falou a primeira palavra certa, e derreteu toneladas de gelo de desconfiança que eu nem sabia que guardava. A segunda palavra certa espantou todos os fantasmas do passado que assombravam meu castelo de esperanças abandonadas. E a terceira fez brilhar o sol do verão, desabrochou as flores da primavera, amaciou os caminhos com folhas de outono e juntou a nós dois como só o frio do inverno faz aos casais apaixonados. E rimos juntos. E rimos como é possível rir quando se ama, de nada e de tudo. Que desconfiança? a primavera é maravilhosa desde criança Seu amado. UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 59 Uma Cidade, um Tempo e um Crime “As burlas e o riso não provêm de Deus, mas são uma emanação do diabo. É dever do cristão conservar uma seriedade constante, o arrependimento e a dor em expiação dos seus pecados.” São João Crisóstomo (séc. IV d.C.) A cidade luso-açoriana é bastante pacata, com seus quarenta mil habitantes esparramados em uma área de terra que penetra por várias léguas, em forma de espinho de rosa, o grande lago escuro. Na parte alta e central da cidade se erguem dezoito importantes prédios públicos, os palácios e a Igreja Matriz com sua praça. Neste local, de vista privilegiada, também está a parcela mais nobre e abastada da população, em suas casas conhecidas como “sobrados”. Entre a parte alta da cidade e o lago existe uma região mais densamente habitada chamada simplesmente de cidade-baixa. O nome não se deve apenas à posição geográfica, mas também à posição social de seus moradores. Nesta área constantemente atingida pelas cheias, além das casas das pessoas mais pobres e dos escravos, estão o porto, o distrito fabril e cinco igrejas de menor imponência. Na cidade a expressão “subir na vida” é usada indiscriminadamente, em sentido figurado e literal. A cidade-baixa se inicia a noroeste da subida para a cidade-alta, seguindo no entorno desta em direção à Praia do Riacho. Ao longe se assemelha a uma moldura em baixo-relevo ao redor da parte alta. Suas casas e casebres são tão próximos uns dos outros que muitas vezes utilizam a mesma parede divisória. Este amontoado de habitações é entremeado por centenas de ruas apertadas e becos, terminando no local onde um magro riacho se encontra com o lago, nas cercanias do porto. Considerando-se que quarenta anos antes, por volta de 1820, a população da cidade era de apenas dez mil almas, entre livres, escravos e libertos, houve um rápido incremento populacional que não se explica somente por fatores internos. Na verdade a cidade foi destino de grande número de imigrantes “Germanos”, alcunha que designava pessoas vindas da Alemanha, mas também do Império Austro-Húngaro e de outros países do centro-leste da Europa. Estes germanos fixaram-se predominantemente na cidade-baixa. Só por este fato eram vistos com desconfiança pelas famílias mais tradicionais. Mas também pela introdução de costumes diversos, magia tida como exótica e até herética, e principalmente por suas belas e tentadoras mulheres! Tela do famoso artista Astor Gildo Marins retratando a cidade Mas voltemos às ruas da pacata cidade e suas mulheres bonitas. Poucas delas tão belas quanto a jovem loura que caminha tarde da noite, escandalosamente 60 LEONARDO CARRION desacompanhada. Caminha estalando os saltos de madeira dos sapatos sobre as calçadas de paralelepípedos regulares do Beco da Ópera, em pleno coração da cidade-alta. Na noite escura de primavera a mulher não usa seus cabelos presos ou cobertos por um lenço como de costume no local, mas sim arrumado em longas tranças descendo-lhe sinuosamente pelas costas e deixando nu o formoso e branco pescoço. O movimento de seu caminhar revela quadris generosos por baixo da saia, favorecidos pelo efeito do cinto largo de tecido bem ajustado na cintura fina. Com o caminhar provocante e sorrisos insinuantes, logo atrai um incauto “Don Juan”. A loura aparenta oferecer resposta à busca de prazeres que não podem ser concedidos livremente pelas moças de família. As imaginadas horas deliciosas de amor não podem ser dispensadas; portanto, sem trocarem uma palavra, marcam um encontro. No trajeto a moça vai à frente mostrando a direção, seguida discretamente pelo homem. Deixam as iluminadas ruas da cidadealta pelo Beco do Poço até atingirem o limite imaginário com a parte pobre da cidade, na Rua da Igreja. Então descem em direção à A loura Rua do Arvoredo, já na cidade-baixa. O caminho é feito através das pequenas ruas e becos parcamente iluminados por insuficientes lampiões a óleo de peixe, que, além de pouco fazerem contra a escuridão, trazem ao ar um desagradável odor e sujam as roupas de fuligem. A mulher avança até uma casa que, como as demais, tem a fachada retangular quase rente ao leito da rua estreita, colada nas vizinhas. Entra, deixando a porta entreaberta. O homem, olhando para os dois lados e só vislumbrando a penumbra, entrando em seguida. Em momentos escutam-se risadas escandalosas, proibidas e pouco cristãs. O homem? Ele nunca mais sai. Uma semana depois do ocorrido a polícia chega ao local trazida por vizinhos que foram chamados pelo rapazote que, por sua vez, descobrira a carcaça do cão que, antes de desaparecer, passara três dias latindo defronte a casa da mulher, trazido pela saudade do dono sumido. Invadem a casa os policiais e os vizinhos, seguidos timidamente pelo rapazote. Quando todos saem ninguém se recorda do jovem, deixado só em meio a todos aqueles artefatos. O rapazote retornaria diversos anos depois, quando ninguém mais o reconheceria. A loura sequer tentou negar. Na casa foram encontrados diversos altares a deuses desconhecidos, crânios atravessados por espadas e ossadas de vários homens enterrados no porão. O velho mago germano, até então vivendo escondido de todos, foi sentenciado à forca pelo Magistrado. O homem velho ria enquanto era cumprida a ordem, amaldiçoando a cidade. A mulher, a filha-bruxa, deveria apodrecer na cadeia, sofrendo todos os suplícios que seus carcereiros entendessem por bem aplicar. Mesmo Local, Vinte e Oito Anos depois e outro Crime Sete Horas da Manhã, 18 de Janeiro de 1888 — O que te dói, Pelonha? — perguntou o reverendo-dentista, vestido em uma batina branca e se inclinando sobre o homem de azul e dourado. — Um dente, Senhor! — respondeu Pelonha, tenente-inquisidor da Polícia Metropolitana, UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 61 apontando para a boca semi-aberta e para o inchaço lateral que congestionava até a articulação da mandíbula. — Pois, Pelonha, do sul ao norte e do nascente ao poente, ficará esta criatura livre e sã e salva de dor de dente, pontada, nevralgia, estalicido e força de sangue. Pê eNe e A eMe, oferecido às cinco chagas de Jesus Cristo. O dentista fez acompanhar a reza por um jorro de água benta com hortelã e casca de ipêamargo de efeito antibiótico, direto na boca do policial Pelonha, que fez o que pôde para não se afogar e interromper a magia. A cerimônia curativa foi finalizada pelo reverendo-dentista com um sinal-da-cruz feito com um ramo de alecrim, enquanto era invocada a proteção de Santa Apolônia, padroeira da boa-dentadura. — Mantenha a solução mágica e curativa mais um minuto ou dois na boca, Pelonha — disse o reverendo. Pelonha esperou o homem virar as costas e se dirigir a outro paciente para cuspir imediatamente no chão, enquanto levava a mão ao inchaço e reprimia um gemido de dor. Encontrou em si o olhar duro de desaprovação de uma freira-enfermeira que, ocupada, logo se virou e seguiu o dentista em atendimento. — Não existe coisa que eu odeie mais na vida do que casca de ipê-amargo! — disse o homem. Pelonha levantou-se tropeçando na cadeira de dentista e se dirigiu para a porta da enfermaria. Atrás do vidro da porta avistava a forma de seu ajudante, o acólito-inquisidor da polícia metropolitana João Boucinha. — Tudo certo, chefe? — perguntou Boucinha, quando Pelonha saiu para o infernal calor que fazia naquele verão de 1888. — Cala a boca, João — respondeu o superior, mal conseguindo falar. — Preciso arrancar este dente de uma vez. — Faça isso não, chefe! Seria não acreditar na magia do reverendo-dentista, que representa a mágica santa igreja, o santo Papa e, mais importante, o nosso Cardeal Dom Cristóvão que, depois de 15 anos servindo no Vaticano, retornou a nossa cidade, onde nasceu, para nosso orgulho! — O jovem acólito arregalava os olhos puxados enquanto fazia o sinal-da-cruz e, logo a seguir, uma reverência japonesa. — Cala a boca, João! — disse Pelonha. Em seguida deu com o nó do dedo indicador uma batida forte na articulação da mandíbula do rapaz. — Isso é pra você saber 1% da dor que eu estou passando! — disse o oficial e adiantou o passo deixando o espantado ajudante para trás. Tenente-inquisidor Pelonha 62 Pelonha era um homem grande e de cabelos amarelo-escuros, de idade indefinida. Alguns diziam que era mais velho do que o balseiro Seu Augusto, homem já bem entrado na meiaidade. Outros alegavam que não, que Pelonha não possuía fio de cabelo branco na cabeça, portanto deveria ter idade relativamente igual ao fruteiro Domingos, recém-saído da segunda década LEONARDO CARRION de vida. A verdade é que nem mesmo Pelonha sabia ao certo quando nascera, já que tinha sido criado sem pai e mãe, deixado na “roda dos inocentes” já graúdo e educado pelas freiras da Santa Casa de Misericórdia bem longe, no interior. Também não acreditava que era coisa de homem macho ficar contando os anos, já que a idade de cada um não deve ser contada pelo nascimento, mas sim pela morte e como só o Senhor-Meu-Deus sabe quando este evento indesejável vai acontecer, quem se importa? Magoado, João Boucinha, filho de uma japonesa trazida dos confins por pai expedicionário jesuíta, seguia atrás do chefe, carregado com todo o equipamento do oficial. Baixinho ia cantarolando o feitiço calmante para o superior: — Como dois eu te vi, com Deus eu te ato; o sangue eu te bebo, o coração te arrebato; tão brabo, feito a sola do meu sapato; assim como passou estas três palavras, na casa dos Santos Passos; que abrandô águas, cães e cadelas, leões e leoas, abrandai Pelonha tão brabo, tão brando feito a sola do meu sapato. O acólito era pequeno, moreno e com um bigode tão vasto que parecia impossível em um rosto tão jovem. Usava o uniforme completo de inquisidorpolicial, azul e cinza, com todos galardões disponíveis, a espada cerimonial e o quepe claro. Seguia cantarolando, batendo o pé esquerdo contra o chão que levantava a poeira vermelha do local. Apesar de cedo da manhã a temperatura já atingia mais de 25 graus naquele dia. Pelonha caminhava despreocupadamente pelo meio da rua sem Acólito João Boucinha calçada, ainda apalpando o rosto. A enfermaria da polícia era em um edifício de madeira anexo à Santa Casa de Misericórdia, construída um pouco afastada do centro para evitar a contaminação dos sãos especialmente pelos tuberculosos que ocupavam o andar mais alto do hospital. O movimento era fraco porque as pessoas tendiam a evitar a subida, mas mesmo assim João Boucinha estava atento ao movimento dos poucos carroções movidos à tração animal que enxergava. Tendo caminhado bons metros ouviram um chamado e viram chegando correndo o moleque da delegacia, um pretinho magro e com pernas compridas de pernilongo, que alcançou a dupla quando Pelonha colocava o pé na barbearia para o asseio matinal. — Seeeu Pelooonha, óia a óórdem! — gritou o menino, empurrando um papel dobrado na mão do homem, que fazia dois de seu tamanho, antes de seguir correndo rua abaixo para distribuir as demais que levava em uma sacola a tiracolo. Após ler a ordem o Tenente hesitou alguns segundos na porta da barbearia. Acabou por chamar o ajudante e seguiu para o centro da cidade sem mais outra palavra. A ordem mandava que fosse investigar, sem demora, o assassinato de uma mulher. Uma mendiga. A dupla de policiais estava encharcada de suor ao chegar na esquina da Rua da Praia com a Rua Paissandu. Pelonha encontrou todo o populacho reunido em torno de algo no chão, enquanto dois acólitos-inquisidores fumavam preguiçosamente encostados em um poste, como se não fosse com eles. O policial caminhou sem fazer barulho até se colocar atrás dos dois folgados que, sem UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 63 perceberem o superior, trocavam calmamente o fumo entre si. Era uma tragada para cada um enquanto o outro soltava a nuvem de fumo da sua própria aspirada. Em meio a tal troca, quando as mãos de ambos se aproximavam, Pelonha avançou gritando: — Façam um cordão de isolamento! Não é permitido que fumem em serviço! Juntamente com as ordens o Tenente acertou um cotovelaço à direita e um joelhaço à esquerda, fazendo com que os homens saíssem em disparada sem olhar para trás, com medo de experimentarem mais. O cordão de isolamento foi feito com rapidez e brutalidade, tendo os acólitos se utilizado de todos os palavrões conhecidos e mais alguns inventados. Pelonha avançou cerimoniosamente, sob os olhares da população, até o local onde deveria estar o corpo. João Boucinha o seguia com um caderno de anotações e o carvão de escrita em punho. O oficial parou e colocou a mão no queixo, fazendo sinal com a outra para João se aproximasse mais. O auxiliar deu uma demorada olhada na cena e começou a narrar enquanto anotava, sob aprovação do superior: "A velha andrajosa está estendida na calçada, tendo parte do busto esquelético e da cabeça horrenda apoiados na parede do prédio que, nesta conjuntura, serve-lhe de triste travesseiro. Não pode ser mais feia! Nos olhos azuis baços e vidrados, distribuem-se as carnes murchas e ressequidas duma cara chupada, onde se penduram uns cabelos decididamente sem cor e no mais inimaginável desalinho. Em torno da boca asquerosa e semi-aberta, sangrentas manchas escuras e putrefatas deixam aparecer dois ou três dentes cariados e enegrecidos que bem atestam os últimos estágios dum estado canceroso da desgraçada mulher. O corpo é uma repugnante caixa de ossos, escondida nuns trapos imundos e fedorentos, donde sobressaem os braços e as pernas esqueléticas, cobertas de feridas purulentas. Não tem mais do que isso como vestimenta, a não ser uns chinelos de corda puídos, atirados sobre o chão, como atirado está o seu grosso e sujíssimo chapéu de palha." Pelonha examinava a cabeça do cadáver, abaixado com um joelho colocado no chão. — Anote também, João, que o crânio apresenta afundamento no topo, donde escorre um sangue grosso cerebral que avermelha os cabelos. E, o que é isso ao lado do cadáver? Ainda abaixado Pelonha apanhou no chão um vidro pequeno, no tamanho de um copo, toscamente tampado com uma espécie de tucho de pano vermelho, como um feltro. Dentro havia algo que tilintava quando sacudido. Parafusos antigos. O inquisidor levantou-se olhando o vidro turvo e o guardou para observar melhor no escritório. — Boucinha, veja com os acólitos de plantão quem descobriu o corpo e o entreviste, para apurarmos as circunstâncias. Eu vou voltar para o escritório. — Eu sei quem é ela, oficial — adiantou-se um velho apoiado em uma bengala, longa barba branca e roupas distintas. Pelonha interrompeu a partida do local e fez sinal para que os acólitos permitissem que o homem se aproximasse. Chegando perto do oficial segredou: — Ela é a bruxa da Rua do Arvoredo, oficial. Eu recordo perfeitamente. Faz uns trinta anos 64 LEONARDO CARRION que ocorreram os crimes e ela permaneceu quinze na cadeia, até ser solta. Desde então vivia por aqui e por ali, mendigando, sem nunca falar palavra a ninguém, exceto com um outro mendigo que rondava por aqui de vez em quando, sempre vestido em um capote preto que lhe cobria todo o corpo e a cabeça com um capuz. Com este sempre discutia e várias vezes ele tentava roubá-la ou enforcá-la. Ontem à noite, oficial, gritavam debaixo de minha janela discutindo, e ela falava algo sobre os negros. Abri a janela e disse-lhes que chamaria a polícia. Somente vi quando o mendigo de preto saiu correndo e mancando. Não olhei para baixo porque achei que o silêncio dela era como das outras vezes, quando o homem ia embora. Mas provavelmente já estava morta. — Chefe! — gritou João Boucinha. — Encontrei algo! O auxiliar retirara da mão fechada da mulher morta um papel amarelado e o desdobrava mostrando linhas manuscritas. — É uma carta, chefe! — continuou. Pelonha leu a carta e a devolveu ao ajudante, com uma expressão de dor e segurando a lateral do rosto, onde o dente incomodava. — Chefe, pode me deixar com todas as provas, que eu levarei para a delegacia — disse o ajudante. — Não. Deixe assim. Boucinha, reviste o cadáver antes de entregá-lo ao morgue municipal. Reúna todas as provas que ainda encontrar e depoimentos e me traga para a delegacia. Tenho que ir ao barbeiro agora, e depois vou ver se arrumo este dente. Hora e meia mais tarde, o oficial retornava para a delegacia deixando a barbearia. — Até mais, Armando! — disse Pelonha ao se despedir do barbeiro, enquanto passava a mão pelo queixo recém-escanhoado. — Obrigado pelo serviço, apesar do dente e do inchaço. O barbeiro se encontrava agachado por detrás das cadeiras. Como o próprio Armando, eram antigas, estofadas em couro vermelho escurecido pelo tempo e com armação de bronze já gasta e brilhosa por muitos anos de uso. O homem levantou-se com uma frasqueira também de couro vermelho e acenou gentilmente para o oficial: — De nada Tenente. E nem tente me pagar, para o senhor é sempre “da casa”. Agora me desculpe porque tenho que fazer a toalete no nosso Cardeal, uma honra! Pelonha já se colocava a caminho, mas retornou a atenção ao ouvir a citação do célebre personagem. — O cardeal? Onde ele está? — perguntou o oficial, olhando para os dois lados da rua, procurando algum tipo de séquito descendo ou subindo em direção ao estabelecimento. — Não seja estúpido, Pelonha! — disse rindo o barbeiro. — Evidente que o cardeal não vem até aqui. Eu que vou lá. Pela posição, sabe? É complicado sair, uma pessoa importante e sagrada como ele e, além disso... — o barbeiro se aproximou de Pelonha, segredando em seu ouvido —, ele tem um problema de locomoção que o impede de caminhar normalmente. Uma artrite causou um encurtamento na perna. — Ah, certo. Adeus, Armando, bom trabalho então — disse Pelonha, saindo pela porta. Fazer a barba em um rosto inchado e dolorido não tinha sido tarefa fácil para o barbeiro. Mesmo tomando todos aqueles cuidados que a prudência inspirava em se tratando de um cliente como Pelonha, era impossível que o cidadão não sofresse como Cristo na cruz a cada raspada. UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 65 Por isso foi com certo alívio que viu o oficial deixando a barbearia, ainda resmungando, com a mão sobre a face dolorida, mas impecavelmente sem pêlos. — Mas o que diabos é isso aqui? — perguntou-se o barbeiro ao encontrar o vidrinho com parafusos da velha, deixado por esquecimento do oficial sobre a bancada. 10 Horas da Manhã, na delegacia — Veja, chefe! — João Boucinha mostrava um caderno com sua caligrafia caprichada, repleto de anotações pequenas, que pareciam versos. O oficial leu: Deitado sob o ipê passei o dia inteiro a receber flores — Que é isso, homem? — perguntou franzindo a testa. Um pouco embaraçado, Boucinha retomou o caderno e explicou: — Senhor, isto se chama “haikai”, é uma espécie de poema que o povo da minha mãe cultua. Falam geralmente da natureza e possuem vários significados entremeados. Em ideogramas, até mesmo os desenhos associam diferentes idéias que se completam ou até se contrapõem. É uma arte das mais difíceis. Tenho tentado escrever alguns em brasileiro, mas não é a mesma coisa. — Bonito, João. Mas e daí? — Senhor, se olhar bem a carta que a velha que foi assassinada hoje tinha na mão, no final, vai ver que é um haikai. Pelonha pegou a carta que lhe era estendida pelo ajudante e pareceu novamente perdido por alguns momentos. — Pode ser coincidência, João. Pra mim parece um poema comum. E esta carta provavelmente não tem qualquer relação com o fato, é muito antiga. A mendiga deve ter sido morta numa disputa qualquer com outros miseráveis como o tal mendigo de preto ou até mesmo por alguém que a reconheceu como a tal bruxa do arvoredo. É uma coisa simples. O acólito pegou a carta e a colocou novamente com os demais documentos, depoimentos de locais e boletim de ocorrência. O chefe o olhava segurando o queixo, até que disse: — Falando em coisas japonesas, João, será que... bem, venha aqui um pouco na minha sala. — O policial abriu a porta envidraçada e colocou-se atrás de sua mesa, enquanto o jovem Boucinha entrava e se sentava na única cadeira disponível. A sala do oficial não era mais do que um canto da gran- 66 LEONARDO CARRION de sala térrea ocupada pela polícia metropolitana na cidade-alta, fechado por duas grandes peças de madeira aglomerada, com uma porta simples, uma mesa e um armário de metal, além de duas cadeiras. Pelonha reclinou-se na sua cadeira e alcançou uma garrafa debaixo de mesa, servindo-se e oferecendo um trago ao ajudante. Quando ambos se encontravam servidos, fez sinal de “saúde” e bebeu tudo em um gole, contraindo a face quando a bebida alcoólica atingiu o dente doente. Sem mais rodeios, falou para o subordinado: — João, este dente está me matando. Nada que o reverendo-dentista tenha feito adianta. Ele insiste que não é caso de arrancar, que a magia da igreja curará coisa tão singela, mas o fato é que o tratamento está me matando. O jovem bebericava e acenava timidamente em concordância, mantendo-se em silêncio. — Pois bem — continuou o homem maior —, quero lhe perguntar se, tendo origem parcialmente estrangeira, você conhece ou alguém na sua família conhece algum outro reverendodentista, mágico ou feiticeiro com uma magia diferente daquela que aplicam na igreja católica. — Senhor! — disse João escandalizado. — Vamos, Boucinha! Ajude-me, homem! Deixe de ser bobo, estamos sós aqui. Ninguém precisa saber. — Senhor, me desculpe, mas não tenho nenhuma idéia destas coisas! Meu pai trouxe minha mãe do Japão de uma ordem católica. Os pais dela já eram católicos, e talvez os pais dos pais dela. Não tenho o mínimo conhecimento, e asseguro-lhe que minha mãe também não tem, de qualquer tipo de magia negra ou herética que se pratica no Japão. Pelonha serviu-se de uma dose mais, desta vez sem oferecer ao subordinado. Resmungava de forma ininteligível. — Mas senhor, aproveitando, gostaria de dizer que tenho certeza que aquele poema é um haikai e, tendo a idade que parece ter, é anterior ao primeiro japonês por aqui, o que... — João, cala a boca. Saia daqui, e este assunto da magia fica entre nós. — Mas senhor... — João, cala a boca! Fora! — disse Pelonha, fazendo menção de se levantar. Mais rápido que ele o auxiliar deixou a sala apressado. Pelonha coçou novamente o rosto dolorido e se levantou, saindo da cadeira e de seu gabinete. Em poucos segundos era seguido solicitamente pelo ajudante, com a documentação do caso da velha assassinada em uma pasta. Juntos deixaram a delegacia novamente para o dia iluminado e quente. 11 Horas da Manhã, bordes da cidade-baixa O casebre dos negros quase desmoronou quando Pelonha fechou sua porta batendo-a com toda a força. De nada tinha adiantado subornar os escravos, ameaçá-los ou adulá-los para que fizessem sua magia curativa. Todos acreditavam que estava tentando levá-los à forca, punição aplicada ao negro que era pego praticando umbanda ou outros ritos africanos proscritos pela igreja. UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 67 Boucinha esperava do lado de fora e sequer precisava perguntar o que tinha acontecido. Só se ouvia, baixinho, a ladainha... — Como dois eu te vi, com Deus eu te ato; o sangue eu te bebo, o coração te arrebato; tão brabo, feito a sola do meu sapato; assim como passou estas três palavras, na casa dos Santos Passos; que abrandô águas, cães e cadelas, leões e leoas, abrandai Pelonha tão brabo, tão brando feito a sola do meu sapato. — Malditos e amaldiçoados! Não vão nem tentar curar meu dente! — Pelonha levantava poeira nos arredores sujos da maloca, próximo dos confins da cidade e da área das plantações. Era ali que morava o conhecido preto Josué, líder religioso extra-oficial dos escravos. — Também disseram que nada sabem sobre a mendiga, a bruxa da Rua do Arvoredo ou de um mendigo de negro. Pelonha e João Boucinha deixavam o local passando por pequenas hortas dos escravos, com pimenta, cebolas e mandioca, além de galinhas magras presas em cercados feitos de bambu e cipó trançados. Algumas crianças, muito pequenas para o trabalho, e os velhos cuidavam do local enquanto as mulheres e homens estavam trabalhando. O conjunto de casebres era pouco arejado, como se as casas fossem feitas próximas umas das outras em proteção contra o mundo branco ao redor. O local era perfeito para uma emboscada, por isso Pelonha não pôde se defender da primeira panelada. Felizmente a mulher que o atacou na esquina de uma das malocas atingia, com o topo de sua cabeça, aproximadamente a altura do estômago do policial e mal podia se sustentar em pé, de tão velha e frágil. Proximidades das senzalas — Ei, ei, ei! — dizia Pelonha, enquanto afastava com as mãos a velha que gritava em algum idioma africano e tentava atingi-lo com a frigideira bastante desgastada. João Boucinha avançou e tomou a “arma” da mulher, enquanto outras pessoas apareciam no local, atraídas pelo vozerio. Pelonha a mantinha longe com um braço estendido, a mão espalmada na testa da mulher. — Que houve, vovó? — perguntou o inquisidor para a mulher, certamente uma liberta em razão da idade. A negra não tinha muitos dentes na boca e, mesmo que estivesse falando brasileiro, o que não era provável, não seria entendida. Gritava em voz estridente e se cuspia toda tentando afastar o braço do homem. João observava a cena de longe, mais atento às pessoas que chegavam, curiosas, alerta contra alguma reação violenta dos demais, o que não parecia próximo de acontecer. — Baba! Baba! Deixe disso! — a voz surgiu de dentro da maloca. Era a voz cansada de um homem jovem. A velha recuou e ergueu as mãos para o céu e apontou para baixo, depois para os dois policiais, antes de gritar mais algumas palavras incompreensíveis. Atirou um pedaço de feltro 68 LEONARDO CARRION vermelho no peito de Pelonha e entrou na maloca. João Boucinha começou a se benzer olhando para o oficial que recolhia do chão o pano vermelho, depois da óbvia maldição da velha. Pelonha colocou o feltro no bolso e foi atrás da mulher, cuidando para que a velha não estivesse nas sombras esperando para atingi-lo novamente. João, enquanto isso, permaneceu no corredor entre as casas e tentava dispersar as pessoas atraídas pela gritaria. Quando seus olhos se acostumaram com a penumbra, Pelonha viu uma sala miserável de chão batido, com alguns móveis feitos de restos de madeira e um homem deitado em um catre, perto de uma pequena e alta janela que projetava um foco de luz para o interior. Era um mulato jovem, filho de branco e negro, provavelmente escravo ainda. Por estar na maloca neste horário, e na cama, Pelonha imaginou que estivesse doente. Ao se aproximar viu que o homem tinha sido bastante espancado. Tinha hematomas severos pelo rosto e por todas as partes do corpo que ficavam à mostra, já que estava coberto por uma espécie de lençol feito de sacos costurados. O homem virou-se com os olhos congestionados e percebeu que Pelonha examinava seus machucados. — Gostou, oficial? Veio verificar se o trabalho de seus acólitos foi bem feito? A mulher, Baba, fez menção de novamente falar, sendo calada pelo jovem, que continuou: — Não adianta me espancarem, meu pai não vai dizer nada. A minha avó nem sabe falar brasileiro. Não temos nenhuma magia, amuleto e especialmente a tal carapuça do Saci que vocês estão atrás. Nem podem me deixar pior, nem se me matarem. Agora o jovem deitado tossia, amparado pela velha. Pelonha pensava e viu, olhando por cima do ombro, que João Boucinha observava atentamente desde o umbral. Assumiu posição de mando e disse, empertigado: — Então o que você disse para meu soldado é verdade? — perguntou Pelonha ao escravo machucado. — E não me venha mentir que foi surrado pelo meu homem, porque sei que ele é magro, fraco e baixinho e você dá dois dele, mulato! — O que falei para eles é verdade, sim. Mas não era apenas um! Eu sou mestre em capoeira, tenente, acredita que apenas um branco iria me causar este estrago? Foram quatro homens grandes e aquele sargento gordo com o rosto marcado da varíola. “Mário Figueira”, pensou Pelonha, felicitando-se pelo blefe bem aplicado, “o único sargento-inquisidor da força com esta descrição.” 1 Hora da Tarde, Delegacia — Nem morto! Nem morto eu coloco outra vez a casca de ipê-amargo na boca, João! — dizia Pelonha enquanto o jovem acólito tentava convencê-lo a voltar para a enfermaria do reverendo-dentista. — Tenente, tem que ter fé. Deixa de ficar buscando estas coisas que anda buscando, até mesmo com os negros. É coisa que, se curar o dente, apodrece a alma do cristão — dizia o subordinado, enquanto fazia o sinal-da-cruz. UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 69 A dor de dente tinha estabilizado naquele patamar que, Pelonha sabia, era de um falso alívio. Sentia uma dorzinha constante à qual já tinha se acostumado, desde que não mexesse no local, acompanhada de uma quentura em toda a região atingida que não chegava a ser desagradável. Mas sabia que logo estaria realmente insuportável. Ambos almoçavam na cantina da Polícia Metropolitana, chefiada por Padre José Bento, que neste momento reacendia o fogo com a oração do fogo do profeta Elias, cantando baixinho a ladainha da oração como se fosse um monge gregoriano, acompanhado pelos auxiliares. Naquela hora a cantina se encontrava quase deserta, já que o costume dizia que o almoço deveria ser servido ao meio-dia, abrindo-se exceções apenas para oficiais em serviço, como era o caso de Pelonha. — Falando nisso, João, entendeu o que o negro disse? O que Mário Figueira poderia querer com amuleto de magia dos negros? E o que seria a “carapuça do Saci”? — disse Pelonha para mudar de assunto, enquanto tentava sorver a magra sopa que tinha em frente, enquanto João se entupia com carne e batatas assadas. — O Saci é um dos demônios dos índios e dos negros, senhor — falou o rapaz, limpando o bigode com um guardanapo. — Ele é preto ou pardo, conforme o povo que conte a história. Já ouvi dizer que ele tem apenas uma perna, a outra lhe foi tirada em uma luta contra Jesus Cristo que, por ser magnânimo, lhe permitiu continuar vivo se se convertesse à verdadeira fé. Mas ele fez um pacto com o diabo e com isso adquiriu poderes mágicos, tornando-se então negro como o tição. Veste uma carapuça ou gorro vermelho que, se lhe for arrebatado, termina com sua mágica que está ali guardada. Segundo o grande inquisitor da academia onde fui instruído, alguns negros que foram enforcados há poucos anos invocavam o Saci e faziam todo tipo de sortilégio em nossa própria cidade. — Sinto que esta história de amuleto dos negros, do tal Saci, tem alguma relação com a morte da mendiga — murmurava Pelonha. — Vamos, João, acabe esta glutonice sem fim e vamos. Tive uma idéia. — Idéia sobre o crime ou sobre a ligação entre o amuleto da velha e o dos negros? — perguntou Boucinha. Pelonha voltou-se para o subordinado, após ter-se levantado, fez menção de falar algo e, olhando novamente para João Boucinha, resolveu calar. — Não, João, tive uma idéia sobre como resolver a dor de dente. — Dito isto se virou e tocou, sem que o outro pudesse perceber, o tecido vermelho que guardava no bolso desde que a velha negra lhe jogara. 2 Horas da Tarde, proximidades do porto — Vai, João, força, desgraçado! — dizia Pelonha, agarrado ao poste com dois braços, antes de sua cabeça ser violentamente puxada para o lado. João Boucinha segurava um grosso cordão de algodão, amarrado a três finas linhas de seda que por sua vez tinham sido amarradas ao dente do oficial. O pobre acólito tirava do cordão com todas as suas forças, mas nada de o dente dolorido sair. Enquanto isso, seu superior babava e tentava xingá-lo sem poder. — Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh! Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh! — gemia Pelonha de olhos fechados para agüentar a dor. 70 LEONARDO CARRION Ao abri-los novamente, para incentivar Boucinha com um de seus olhares assustadores, percebeu já próximo um sinistro grupo de homens. O local que tinham escolhido para a extração do dente era um beco atrás da zona portuária, praticamente desabitada aquela hora, já que não havia qualquer navio operando. A chegada de um grupo tão grande de homens não seria coincidência e este fato trouxe os instintos do policial ao máximo. João Boucinha ainda puxava o cordão quando o fio soltou-se e ele aterrissou sobre o solo vermelho com grande dor. Ainda no chão procurou com a visão seu chefe para uma comemoração, afinal, a queda deveria significar o final do dente doente. Mas então percebeu que o chefe se soltara do poste e este fora o motivo da queda, tanto que ainda continuava com o dente amarrado na corda que o acólito segurava. Proximidades do porto Antes mesmo de perguntar o motivo, Boucinha percebeu o olhar do superior e se virou, vendo o grupo avançando para eles. Levantou-se espanando a roupa, ainda com a corda na mão. Os homens eram fortes, e dois deles eram bem conhecidos de Pelonha. O maior do grupo era o Sargento Mário Figueira, o homem identificado pelo negro surrado. Atrás o seu indefectível amigo de patifarias, Cabo Noronha, de nariz aquilino e bigode fino, sempre com um sorriso torto nos lábios. Os outros três eram jesuítas, pelo que se via de seus trajes escuros. — Ei, Tenente! — saudou o sargento, enquanto virava o rosto jocosamente para os demais. — Virou cachorro na coleira deste aí agora? Pelonha e Boucinha se olharam e perceberam que ainda se mantinham com a corda. Lentamente e com o máximo de dignidade que pôde reunir, Pelonha desatou dolorosamente o dente enquanto Boucinha recolhia os barbantes e os colocava no bolso do casaco. — Desde quando inquisidores e padres saem-se com galhofas como esta, Sargento? — respondeu Pelonha sério. Ao contrário do que era esperado, a expressão irônica não desapareceu do rosto dos homens. Ao invés de disso Mário Figueira fez um gesto sutil para que os demais avançassem. Pelonha percebeu que João ao seu lado preparava-se para a violência, retesando os músculos e se colocando em uma estranha posição de pés e mãos. — Queremos saber o que foi retirado da velha, da bruxa do arvoredo — falou o sargento, ainda avançando, mas cautelosamente. — O que quer que você tenha dela, é melhor nos entregar agora. Pelonha avaliou que poderia com os dois padres da esquerda e o Cabo Noronha. Infelizmente não acreditava que João pudesse cuidar do outro sacerdote e de Mário simultaneamente. Cada um deles dava dois do tamanho do acólito, em altura e em largura. Isto criava um problema, já que um dos atacantes ficaria sobrando e poderia atacá-lo por trás. Assim o oficial manejou para ficar postado de costas para o poste onde estivera agarrado, tentando com isso diminuir a área onde poderia sofrer ataques. UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 71 — Mário e Noronha, vocês vão se dar muito mal com isso. — Tenente, estes homens aqui têm autoridade superior à sua — respondeu Cabo Noronha. Neste momento os dois padres jesuítas saltaram em um movimento como que ensaiado, tentando agarrar os braços do oficial, enquanto Noronha atacava-lhe o ventre com um chute. Pelonha não teve tempo para preocupar-se com o que acontecia com Boucinha. Tratou de saltar, evitando o chute de Noronha, que atingiu inutilmente o poste atrás, enquanto chutava por sua vez um dos padres e tentava golpear com os braços o outro. Ambos golpes atingiram seus alvos, mas Pelonha desequilibrou-se e foi ao chão. Noronha estava parcialmente sem ação após o chute no poste e pulava em um só pé. O padre atingido pelo chute de Pelonha segurava a parte baixa do ventre e gemia. O outro, porém, somente fora empurrado para trás com o fraco soco desferido pelo desequilibrado oficial e, enquanto Pelonha tentava levantar-se, jogou-se sobre ele. Ambos rolaram pelo chão. Pelonha podia ouvir os gritos de João Boucinha, terríveis, lancinantes, agoniados. Provavelmente o homem estava sendo morto à pancadas pelo sargento e pelo outro padre. Com um golpe de sorte o oficial acabou rolando para uma posição superior, sobre o peito do padre com quem tinha se embolado no chão. Aproveitou-se para desferir-lhe dois socos fortes no queixo, deixando-o parcialmente desacordado. Feito isso se colocou em pé e procurou os demais. Quase não acreditou na cena que assistia, com seus próprios olhos. João Boucinha gritava! Mas gritava enquanto fazia incríveis saltos, desferia fantásticos pontapés e cutelaços com as mãos em forma de faca. Dava giros e, às vezes, batia nos homens que atacavam com os pés e as mãos simultaneamente. Naquele momento Boucinha estrangulava o sargento Mário, ao que parecia usando os cordões dobrados que momentos antes estavam amarrados no dente de Pelonha, enquanto chutava violentamente outro sacerdote na cabeça, usando os ombros do estrangulado como apoio. Noronha jazia ensangüentado no chão, segurando a cabeça cheia de contusões. O outro padre gritava com a perna dobrada para trás, certamente com o joelho destruído. — Pare! Pare, João! — Pelonha gritava e corria. — Vai matar o homem! O jovem acólito olhou por um tempo mais longo do que deveria para o oficial antes de relaxar as cordas ao redor do pescoço do sargento, talvez pela sanha da batalha, imaginou Pelonha. Mário desabou no chão e permaneceu com o rosto imóvel sobre a poeira vermelha. Os demais também não se mexiam. 3 e Meia da Tarde — O barbeiro, João, só posso ter deixado o vidro dos parafusos no barbeiro! — gritava Pelonha, enquanto corria pelo cais do porto em direção ao centro, seguido pelo ajudante de perto. Os dois tinham revistado todos os atacantes sem encontrar nada. Mário e Noronha mantiveram a versão de que tinham agido sob ordens superiores e que aqueles homens eram verdadeiros padres jesuítas. — Mentirosos! Mentirosos! — gritava Boucinha, ameaçando iniciar uma nova sessão de surra com a sua luta japonesa. 72 LEONARDO CARRION A custo era contido pelo oficial. Agora corriam pelo porto, tendo em seu encalço uma dezena de homens, todos vestidos de jesuítas. Dois deles chegaram a disparar armas de fogo contra a dupla de policiais. Portar armas de fogo era delito tão grave quanto rir ou matar, todas consideradas pelas leis da igreja como atividades inspiradas pelo demônio. — Senhor, temos que levar este caso diretamente ao Cardeal Dom Cristóvão! — respondia João. — Vamos nos separar e tentar chegar no palácio! — Nada disso, acólito! Nada disso... Não temos nada em mãos para levarmos ao Cardeal. Vamos ser rebaixados se descobrirmos que aqueles homens eram jesuítas mesmo e os surramos. O próprio Cardeal é advindo da ordem dos jesuítas. Ouviram outro disparo e, desta vez, também o som do chumbo rebotando e cravando-se nas madeiras das casas na esquina que dobravam. Aparentemente sem ouvir o chefe, ou resolvendo desobedecê-lo deliberadamente, João Boucinha tomou caminho por um beco à esquerda, quando Pelonha corria por outro à direita. — João! João! Por aqui, homem! — ainda gritou-lhe o oficial, parando mas sem ousar voltar para seguir seu auxiliar. — Lá está ele! Fogo! Fogo! — o grupo de perseguidores também parara, provavelmente para melhorarem a mira. Pelonha mal teve tempo de jogar-se pela vidraça de um armazém na ruela, rolando entre cacos de vidro e aspas de madeira, sobre sacos de arroz e outros cereais estocados, antes de ouvir as detonações. Estava encurralado, pensou, quando pôde observar o local onde se metera. O armazém era pequeno e escuro, sem outra saída que não aquela que dava para a rua, onde os assaltantes o estariam esperando. Desesperado, Pelonha subiu pelos sacos de cereal até que conseguiu tocar em uma das vigas que sustentava o telhado. Agarrou-se nesta viga e, jogando as pernas para o alto, prendeuse contra ela. Dando a volta, deitou-se na viga de costas e colocou os pés contra as telhas, empurrando-as com todas suas forças até que cederam. Fez um buraco suficientemente grande e saiu para o lado externo do telhado. De lá tinha uma ampla visão do porto e, além, da cidade-baixa até o início da subida para a zona rica. Conseguiu ver João Boucinha correndo muito adiante, já subindo provavelmente para o palácio do Cardeal. Não havia perseguição. Muito em breve os perseguidores entrariam no armazém e localizariam seu paradeiro pela luz que entrava pelo buraco. Assim Pelonha olhou em volta procurando possíveis escapatórias. Por sorte os prédios eram praticamente grudados uns nos outros e Pelonha pôde, com um pequeno impulso, saltar para o telhado vizinho. Contornou a beirada do telhado com cuidado para não escorregar, até que chegou nos fundos daquela casa. Ali encontrou uma situação pior. Não havia outra forma, exceto jogar-se sobre uma árvore que crescia no pátio uns metros abaixo, torcendo para conseguir agarrar-se aos galhos ou então tentar abaixar-se pela beirada do telhado, talvez encontrando uma janela para entrar na casa ou outro tipo de apoio. Quando Pelonha tinha acabado de se decidir pela segunda hipótese, ouviu outra detonação e, desta vez, viu o chumbo das garruchas fazendo voar pedaços de telha bem próximo de onde estava. Sem pensar, jogou-se gritando. UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 73 Suas mãos atingiram a copa da árvore aferrando-se a tudo. Infelizmente a parte superior tinha ramos muito delicados para oferecerem o sustento de que seu corpo necessitava contra a irrecorrível força da gravidade que o puxava para o chão. Assim chocou-se com o rosto, braços e pernas nos ramos, caindo pela árvore até que dobrou-se de barriga contra um ramo bem mais forte, sentindo um grande impacto e fazendo a planta tremer. Somente deu o tempo necessário para a respiração voltar e pôs-se a descer a árvore o mais longe possível da vista de quem estivesse no telhado. Chegou ao solo e saltou pela cerca do fundo da casa, atingindo a rua e se colocando a correr novamente. Não sentia mais qualquer dor no dente inflamado. 4 Horas da Tarde A barbearia estava deserta. Deserta e revirada, vidros quebrados, cadeira de pernas para o ar, espelho lascado e aparelhos jogados por todos os lados. O corpo do barbeiro se encontrava no meio daquela bagunça, com a lâmina de barbear ainda na mão. Pelonha abaixou-se e tocou o pescoço do homem, buscando algum sinal de vida. O homem, apesar de mortalmente ferido no abdome, ainda estava vivo e abriu seus olhos. — Barbeiro, quem foi? — perguntou o policial. O homem ferido tossiu e deixou escapar um filete de sangue pela boca. Pelonha notava que estava tentando arrumar fôlego para falar. Afinal o barbeiro reuniu suficiente energia e riu. Para espanto do oficial, o homem olhou-o bem nos olhos e pôs-se a gargalhar fracamente, quase sem som. Até que morreu, ainda rindo. Em um canto encontrou o vidro da velha, partido. Na mão do barbeiro ele encontrou o pedaço de feltro vermelho, mas não os parafusos. Pelonha tomou a lâmina afiada que jazia junto ao corpo e também o pano vermelho da mão do homem. Era idêntico ao jogado pela velha. Pensou sobre tudo que tinha acontecido e, subitamente, tudo ficou óbvio. Correu para o palácio do Cardeal. 4 e Meia da Tarde A guarda do palácio era forte. Pelonha avançou por entre os soldados da guarda suíça que protegiam os altos cargos da igreja católica em todos os protetorados e países sob seu comando. Como tenente-inquisidor não teve dificuldade de avançar até o saguão do palácio, de estilo neoclássico e recém-concluído depois de quase 50 anos de obras, com base no projeto do famoso arquiteto francês Maurice Gras. A escadaria se abria para direita e esquerda, após subir três dezenas de degraus, esculpidos em mármore italiano, tudo acarpetado com veludo vermelho e grosso. O frade-secretário sentava-se em uma austera mesa, que contrastava com o luxo do local, próximo das escadas que levavam à parte privada do palácio. Levantou os olhos para Pelonha e examinou-o desaprovadoramente. — Preciso falar com Vossa Eminência, o Cardeal — disse o oficial. — Assunto de polícia, relacionado à morte da bruxa da Rua do Arvoredo. 74 LEONARDO CARRION — Não há qualquer hipótese de outro de vocês ser admitido hoje aqui. Seu colega já está com ele, não há necessidade de outro policial para um mesmo assunto. Pelonha deixou o homem e correu pelas escadas, antes mesmo que o secretário pudesse chamar a guarda. Em passos que deixavam para trás três degraus por vez logo atingiu a parte superior do palácio. O local era igualmente luxuoso, como nada antes visto por Pelonha, com esculturas e quadros a óleo de beleza incomum. O tenente, homem bruto, sequer percebeu a importância cultural dos objetos, enquanto os jogava no chão tentando fazer com que servissem de obstáculos à eventual perseguição. Avançou para uma porta dupla no final do corredor e, quando os gritos do secretário e passos da guarda estavam próximos, Pelonha já derrubara o guarda junto à porta e ingressara nos aposentos do eminente, fechando a pesada porta com uma travessa de madeira muito grossa. E então, virou-se. 5 Horas da Tarde Pelonha tinha contra ele, apontada pelo acólito João Boucinha, uma garrucha de cano largo. Ao lado do acólito se encontrava o Cardeal Dom Cristóvão, sentado em uma cadeira como um trono. A semelhança entre o jovem e o velho religioso era espantosa. Exceto pela idade e pelo bigode, João Boucinha poderia se passar perfeitamente pelo poderoso Cardeal. — Eu avisei que ele poderia chegar aqui, Senhor meu pai — disse João para o Cardeal. Boucinha tinha tranqüilizado os guardas suíços, que voltaram aos seus postos. — Quer dizer então, João, que seu pai não era somente um “expedicionário” jesuíta, mas o próprio padre pecador. O acólito avermelhou-se visivelmente, apertando os lábios com a raiva. — Eu posso detonar sua cabeça desta distância, chefe — disse-lhe João, tornando a expressão raivosa em um sorriso debochado —, e você seria considerado um louco que atacou o santo Cardeal, sendo morto por mim em proteção. — Isso certamente faria com que as pessoas ligassem você ao cardeal. Mas você não vai estourar a minha cabeça, ou já teria feito isso. Então me diga, por quê? Por que esta confusão toda por aquele artefato? O que vocês estão escondendo? — Primeiro me diga você, oficial, como desconfiou de nós? — perguntou o cardeal, falando pela primeira vez. — Somente João Boucinha sabia que eu tinha deixado o artefato com o meu barbeiro. Isso e outras pequenas coisas como os homens não o terem perseguido, mas somente a mim. Ou o fato de ele ter insistido em vir para cá e se separar de mim, logo que soube onde encontrar o objeto. Mas especialmente porque no refeitório, quando eu falei que tinha uma idéia, querendo me referir à dor de dente, João perguntou sobre “o artefato da velha”. Até então ele não poderia ter motivo para desconfiar que a velha possuía um artefato mágico. — Baixe a arma, filho, baixe a arma. Vou explicar as coisas para o Tenente-Inquisidor Pelonha, já que ele se mostrou um homem tão sagaz. Mostrarei para ele o inimigo que enfrenta- UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 75 mos e, tenho certeza, ele estará ao nosso lado — falou o cardeal. — Sente-se, oficial. João Boucinha pousou a arma em seu colo. Pelonha sentou-se em uma cadeira desconfortável que lhe era apontada. — Quando eu era rapaz recém-ingresso no seminário, oficial, eu tive participação involuntária no desvendamento dos crimes da Rua do Arvoredo. Por casualidade, também, fiquei na posse de diversos artefatos de grande poder mágico que eram utilizadas pela bruxa, que o senhor conheceu já velha, e seu pai. Não preciso dizer que estes artefatos eram totalmente ilegais. Não nego que utilizei diversos deles para subir na igreja e para esconder meus pequenos vícios e deslizes, como o senhor pode imaginar. No final, a igreja me perdoou pelo uso deles e, ainda, reconhece minha autoridade, conhecimento e talento nas artes mágicas proscritas, que tenho estudado a vida toda. Atualmente eu respondo somente ao santo Papa nestes assuntos. “Todos objetos mágicos proscritos, eventualmente, foram destruídos quando não mais precisei. Meu retorno para esta cidade, muitos anos depois, foi motivada pela sua posição estratégica. Não em matéria de posição geológica na verdade, mas mágica. Aqui confluem diversas das mais poderosas magias, como a dos negros, dos germanos, indígenas e outras. É território de batalha para a igreja. É um local de sincretismo mágico, onde os elementos se combinam e formam novas e poderosas magias. Assim é com o artefato que buscávamos tão intensamente. Os germanos o chamam de Chave de Loki, o Deus Jocoso. Tendo caído nas mãos dos índios e dos negros da cidade, assumiu a figura do Saci Pererê, ou Yaci Perere em tupi.” “De todos os objetos da bruxa germana, o único que guardei foi um livro. Um livro escrito por um mago chamado de nome impronunciável em que é explicado um certo tipo de magia bárbara e, ainda, que trata de universos paralelos. Universos paralelos, oficial, são outras realidades. São os “poderiam ser”, aquilo que aqui não foi, mas em outro lugar pode ser. E há um portal para uma outra dimensão que é tratada neste livro. Este portal é aberto pelo objeto que se chama Chave de Loki ou Carapuça do Saci. Nunca encontramos este artefato, que como efeito colateral conduz ao riso.” “Eu mesmo tentei, sob disfarce, obter o objeto que suspeitava a mulher estivesse escondendo todos estes anos. Ela somente revelou-me que tinha entregue aos negros.” — E a matou, esqueceu de acrescentar, Eminência — disse Pelonha, observando Boucinha retesar a arma. — Sim, é verdade. Também não acrescentei que estive na cidade por diversas vezes para sessões de tortura da bruxa na prisão, para que confessasse o uso deste ou daquele artefato. Mas a Chave de Loki permanecia desaparecida até que o senhor descobriu, com a mulher, o artefato. Felizmente meu filho trabalha na busca destes artefatos comigo e o reconheceu imediatamente. Ninguém contava que o senhor fosse esquecê-lo com um barbeiro! — riu-se o cardeal. “A carta que escrevi para a bruxa, quando ela ainda estava na cadeia, também foi uma descoberta interessante. Quem diria que ela guardaria, anos depois. Foi um elemento que aprendi no Japão. A tortura psicológica é mais eficiente, às vezes, do que a física. Se o encarcerado acredita que há alguém que espera por si não se deixa matar. O problema é que leva a loucura na maioria dos casos.” Pelonha ouvia o relato do cardeal e apalpava, escondido na manga de seu casaco, a lâmina do barbeiro. — Não preciso dizer para o senhor, oficial Pelonha, que este objeto é poderosíssimo e 76 LEONARDO CARRION pode, se usado por pessoas erradas, mudar totalmente nossa realidade. Que catástrofes pode causar? Não sei. Pode o sol crescer e secar a Terra, pode a igreja desaparecer, sabe-se lá. Por isso temos que destruí-lo. — Vocês já o destruíram, Eminência? — perguntou Pelonha. — Não — disse o cardeal, abrindo as mãos e mostrando um punhado de parafusos. Pelonha então deixou escorregar a lâmina tomada ao barbeiro morto pela manga do casaco até a mão, que mantinha junto à perna. — Acontece, Eminência, que os parafusos são inúteis — falou Pelonha. — São apenas lixo, sucata. O verdadeiro objeto mágico se encontrava com a velha, sim, mas tampando o vidro. É o feltro vermelho que os negros acreditam ser a Carapuça do Saci. A outra metade se encontrava com a velha negra, Baba. — Dizendo isso, tomou ambos os panos e jogou no chão, entre o local onde estava sentado e o cardeal. Aproveitando a distração do cardeal e de Boucinha, Pelonha levou a mão ao alto. Em um movimento rápido lançou a lâmina, acertando João Boucinha exatamente no pescoço. O acólito desabou morto no solo quase instantaneamente. O cardeal durou mais alguns segundos, até que a lâmina foi retirada do pescoço do filho e passada pelo pescoço do pai. Pelonha e o objeto mágico fugiram. 10 minutos para a meia-noite Pelonha arrumou, em sua casa, as estátuas de seus Deuses. Primeiro, xingou-os. Tinha passado o dia com uma dor de dentes infernal, porque os Deuses que adorava desde jovem não permitiam que qualquer outra magia funcionasse com ele. O objeto mágico, a Carapuça do Saci ou Chave de Loki, estava colocado no centro do altar principal para Okslato, o lagarto. Em minutos, em dez minutos, Pelonha liberaria o feitiço do Deus do Riso e mudaria a história do mundo. Torcia para que nesta outra realidade não houvesse igreja católica, não houvesse órfãos, não houvesse dor de dente e, especialmente, não existisse casca de ipê-amargo. Ao menos neste último aspecto, Pelonha teve êxito. Não temos casca de ipê-amargo. UM SÉRIO ESTUDO SOBRE O RISO 77 O Legado UBIRATAN PELETEIRO 78 Em um universo onde a guerra se tornou parte integrante da expansão estelar, conceitos mudam, valores são outros, e o que se leva das lutas é muito mais que simples lembranças e pesadelos. Richard é um soldado, e está cego. As feridas que antes eram seus olhos doem terrivelmente. Ele resiste ao desejo quase incontrolável de cobri-las com as mãos, enquanto entre seus dedos a correia de munições desliza para dentro da metralhadora, que a devora, faminta, com mordidas vorazes. A arma é manejada pelo outro soldado sobrevivente do esquadrão, Fred, alguém que ele mal conhece. É a primeira missão dos dois juntos. Provavelmente, a última de ambos. Eles estão numa casamata transportável, assentada no alto da encosta de uma montanha. Por trás da casamata foi escavado um paredão, tornando possível atacá-los apenas pela frente. Centenas de criaturas investem contra eles subindo a montanha. São maiores que os humanos, dotadas de exoesqueleto e dez membros locomotores. É mais uma das espécies que a raça humana combate pelo universo, além dela própria, é claro. Foram apelidadas de “lagostas”. Elas fazem um ruído peculiar ao se locomover. É um estalar contínuo e alto. Mas Richard quase não consegue ouvi-las, pois vários dos esporões que as criaturas disparam entram na casamata e chocamse contra as paredes, fazendo um barulho quase tão ensurdecedor quanto o da metralhadora. Por enquanto, a mira de Fred estão dando conta. — Estou formando uma pilha desses escrotos lá embaixo, Richard — Fred grita, tentando se fazer ouvir a despeito do barulho infernal da metralhadora. — Eles vão ter que cobrir esta montanha de cadáveres antes de nos pegar! Os dois conheceram-se há poucos dias. Estavam numa das naves-sementeiras da frota. Elas são chamadas assim porque dobram o espaço vezes seguidas, de planeta em planeta, lançando pequenos módulos de desembarque. Para quem vê de fora, parece que a nave está soltando sementes no planeta. Mas os módulos vão cheios de soldados, na verdade, a nave-sementeira semeia a guerra. Em cada planeta por onde ela passa, há uma operação militar programada e, para realizá-la, os módulos são liberados com a quantidade necessária de soldados. Mas não foi bem na nave-sementeira que Richard conheceu Fred. Aliás, ele não conheceu ninguém lá, pois os soldados ficavam enclausurados cada qual num casulo metabólico. Acordavam apenas de vez em quando, como parte do processo que mantinha o condicionamento físico e mental. Certo dia, Richard foi acordado e liberado do casulo. Uma voz metálica informou para qual módulo de desembarque ele devia se dirigir. Vestiu-se, pegou o equipamento e obedeceu à voz. Nos corredores, pela primeira vez cruzou com outros soldados da nave, todos com expressões apreensivas, trocando olhares entre si como estranhos que eram uns para os outros. Só encontrou Fred no módulo de desembarque. Os assentos ficavam nas laterais, uma fileira de frente à outra. Quando Richard desceu a barra de segurança, pressionando seu tórax, olhou pra frente e viu Fred pela primeira vez. O que de início chamou sua atenção foi a Estrela Nova presa no lado esquerdo do peito, a medalha de honra dos fuzileiros, a condecoração que a frota concedia por atos de extrema bravura. Teve curiosidade de saber o que aquele soldado fizera para ganhá-la. Porém, o módulo já começava a tremer com violência, decolando, não era hora própria para iniciar uma conversa. Mas Richard ainda pôde notar que Fred tinha um rosto bem comum, em que apenas os olhos se destacavam. Olhos violeta, muito chamativos. O LEGADO 79 Na casamata, Richard pensa que poderia ter se tornado amigo de Fred, se tivessem tido mais tempo. É um pensamento trivial para se ter em situação tão crítica, sem poder ver, enquanto centenas de lagostas sobem a montanha, querendo destruí-los. Richard atribui esse pensamento justamente à situação lastimável em que se encontra. Cego, serve apenas para um trabalho medíocre como guiar a correia de munições, tarefa de recruta. Mas não podem correr o risco de a metralhadora travar. E não há nada mais que Richard possa fazer na atual situação. Ele volta a si quando percebe, de repente, que a correia está terminando. — A correia tá no fim, Fred — Richard diz. — Prepara outra! Richard larga a correia e leva a mão ao lado, onde havia deixado as caixas de munição. Mas suas mãos nada encontram. — Acabou, Fred! Há uma pausa. Fred talvez esteja vasculhando o chão com os olhos, tentando compulsivamente encontrar mais uma caixa. Ou então pode apenas estar fazendo uma expressão de medo, pela certeza do fim que se aproxima. Provavelmente não, não este último gesto, afinal Fred tem aquela medalha no peito e já provou ser muito corajoso. Richard está vivo graças a ele. A missão era simples: descobrir o que acontecera com os missionários que vieram colonizar o planeta, que haviam misteriosamente parado de se comunicar. O módulo de desembarque escavou a encosta de uma montanha, criando um paredão, em seguida desacoplou e depositou rente a ele a casamata. Depois de desembarcar os soldados, o módulo foi pousar no topo da montanha, onde ficou, como uma ave carniceira, observando, aguardando. Só seria reativado quando a sementeira retornasse. Um grupo de reconhecimento foi organizado, tanto Richard quanto Fred foram designados para ele. A paisagem do planeta era desértica, rochosa e acidentada, de um tom cinza escuro. Andaram aproximadamente um quilômetro em direção ao assentamento dos missionários. Mas não chegaram lá. Antes disso, foram atacados e descobriram que o planeta era a mais nova colônia das lagostas. Foi então que Richard perdeu os olhos. De repente, alguém gritou. Richard virou-se e teve tempo apenas de ver dois olhos grandes, amarelos e brilhantes, composto por múltiplas facetas hexagonais. Algo atravessou sua visão. Era uma das longas antenas da criatura, toda coberta de espinhos, que vibrou como um chicote atingindo-o com precisão nos olhos. É uma arma natural, cada antena chega a ter de comprimento até duas vezes a altura da lagosta. Richard caiu no chão ciente de que não enxergava mais. Ao seu redor, gritos, disparos e o som estalado da movimentação das lagostas. — Deve ter uma outra caixa lá atrás! — grita Fred, sem diminuir o ritmo da metralhadora. — Vê se você consegue achar, Richard! Ainda quero matar muitas dessas malditas antes de morrer! 80 UBIRATAN PELETEIRO Richard se levanta. Caminha para onde acredita ser o fundo da casamata, é lá que ficam os suprimentos. Leva três passos para tropeçar no primeiro corpo. Cai apoiando as mãos, que encontram uma poça de líquido pegajoso. Inala o odor acre de sangue. Tenta se levantar, escorrega, se debate. Sente o uniforme ficar todo sujo de sangue. Ao se por de pé, percebe algo macio, úmido e comprido preso no uniforme. Solta aquilo com repulsa, devia ser um pedaço das vísceras do colega morto. Perdeu a direção. Não sabe mais pra onde fica o fundo da casamata. —Vá pra sua esquerda, Richard! — grita Fred. Ele obedece, dá mais três passos. — Cuidado! Tem mais um corpo aí na sua frente! Tenta achar o corpo, perscrutando o chão com a ponta dos pés. Toca a massa inerte e salta por cima. — Os suprimentos estão logo em frente, um pouco pra direita! Richard percebe que o ritmo da metralhadora diminui. Fred deve estar economizando os disparos, atirando com mais precisão, além de também estar perdendo algum tempo orientandoo em sua cegueira. Sente-se um inútil. Se tivesse que ficar assim, seria melhor morrer nas garras das lagostas. Chega à parede, à direita encontra a grande caixa de metal com tampa basculante onde ficam os suprimentos. Richard começa a vasculhar o conteúdo, jogando fora o que não interessa, tentando encontrar uma caixa de munições da metralhadora. Uma caixa pesada, com trinta centímetros de largura e duas alças, uma de cada lado. Encontra uma caixa pesada, porém, muito pequena. Deve ser uma bateria. — Vai logo Richard! Senão vou ter que passar pro fuzil! Não há como apressar mais a busca. Richard já está cavando os suprimentos como um louco. Então, encosta em algo rígido e plano, no fundo da caixa. Envolve o objeto com as mãos. Finalmente, é uma caixa de munições, ele tem certeza. A metralhadora silencia. De imediato, começam os estampidos bem mais fracos de um fuzil. — Encontrei, Fred! — Traz pra cá. Enquanto faz o caminho inverso, carregando a pesada caixa, ouve os estalidos surdos que vêm lá de fora, numa seqüência intensa e interminável. São as lagostas se movimentando, se aproximando. Richard percebe que seu senso de direção está mais apurado. Já sabe onde estão os dois cadáveres que o atrapalharam antes, consegue evitá-los. Chega próximo ao local onde acredita estar a metralhadora. Coloca a caixa no chão e estende um braço. Toca em Fred. O colega o agarra pela manga com vigor e o joga no chão. — A metralhadora tá aí! — ele diz. Richard levanta a mão e toca na metralhadora, percorre seu dorso e encontra a culatra. Arrasta a caixa de munições, puxa a correia e encaixa o primeiro cartucho. Prende as guias e puxa o ferrolho. Está pronta pra disparar. — Pronto! — grita por fim. — Beleza, meu chapa! — escuta Fred dizer, enquanto passa ao lado. Do chão, vem o baque O LEGADO 81 do fuzil que ele largou. — Agora é metranca nelas! — Aqueles olhos especiais que Fred tinha deviam estar fulgurando, cheios de ira, loucos pra verem mais lagostas morrerem às dezenas. Mas os disparos não começam. Ao invés disso, Richard ouve um novo baque, desta vez o inconfundível baque de um corpo. Aproxima-se tateando e logo encontra as botas do colega, os pés voltados pra cima. Ele foi alvejado, e Richard não pôde salvá-lo, como Fred o salvou. No grupo de reconhecimento, assim que caiu por terra ferido no rosto e cego, Richard pensou que estava acabado. Não podia atirar a esmo, arriscando atingir os outros soldados. Ficou preparado, com seu fuzil a postos, rezando para conseguir perceber quando uma lagosta se aproximasse. Mas, ao invés disso, os disparos cessaram e Richard ouviu uma voz humana: — É o Fred, Richard. — Era o soldado da medalha, e dos olhos violetas. — Eram poucas, deu pra gente acabar com elas, mas o sargento e um punhado dos nossos camaradas se foram. E vêm mais lagostas aí. Ele agarrou o uniforme de Richard pelo ombro e o ajudou a se erguer. Na verdade, quase o levantou sozinho, demonstrando ter muita força. Disse em seguida: — Você vai ter que me acompanhar. — Começou a puxá-lo. — Se você cair, não vou poder parar pra te ajudar. A advertência soou como se visasse a obediência de uma criança. Tropeçando a todo momento, Richard o acompanhou. Fred praticamente o estava mantendo em pé, enquanto prosseguia a atirar, segurando o fuzil com apenas uma mão. Havia outros disparos ao redor, dos outros soldados que haviam escapado, mas eles foram se calando, até o momento em que só Fred disparava. Richard podia ouvir o silvar dos esporões das lagostas. Lembrava-se bem desta peculiar forma de autodefesa. Na extremidade das antenas havia uma abertura que podia ser encaixada num dos espinhos no dorso da criatura. Eles são afiados como lâminas. Depois de arrancado, a lagosta vibrava a antena, arremessando o espinho em rodopios, como faria um atirador de facas, porém, com uma velocidade muito maior. — Chegamos no sopé da montanha, Richard. Nossos homens lá em cima vão nos dar cobertura. Começaram a subir. Logo Richard ouvia o zunir das balas passando sobre sua cabeça. Com a proteção dos soldados na casamata, Fred parou de atirar e, com muito esforço, os dois conseguiram subir a encosta acidentada. Entraram na casamata e iniciaram a longa batalha contra as lagostas. Havia vários soldados ali, todos morreriam. Apenas Richard e Fred restariam, operando a metralhadora, lutando, mas sem esperanças. Richard sente uma pontada de tristeza pelo colega que o salvou ter tombado. Mas não há tempo para a tristeza se aprofundar, nem de verificar se Fred está mesmo morto ou apenas ferido. Antes de a tristeza se tornar culpa, Richard segura as alças da metralhadora e começa a disparar. 82 UBIRATAN PELETEIRO Agora o ruído das lagostas aumenta cada vez mais. Não há como Richard saber se seus disparos estão passando acima delas ou se estão apenas atingindo o chão à frente do inimigo. Richard varia o ângulo de disparo até que ouve o romper de exoesqueletos. Elas estão muito próximas. Ouve muitos esporões atingirem a borda da casamata e também as paredes internas. O fim está próximo. De repente, a metralhadora lhe escapa das mãos, num movimento brusco. Parece que uma das lagostas alcançou a arma. Richard cai no chão, esperando um golpe. Mas a chicotada da lagosta não vem, talvez tenha morrido com o último disparo da metralhadora. Ele sente embaixo da mão o cabo de um fuzil, o fuzil que Fred largou no chão quando retomou a metralhadora. Richard pega a arma, levanta e começa a disparar, na altura do vão. O som das lagostas prossegue, incessante, logo a munição se esvai. Segue-se um inesperado silêncio. Ele dura alguns segundos, mas então Richard ouve o primeiro estalo. Eles começam vagarosamente, e vão aumentando. As lagostas estão se esgueirando pelo vão. Seus corpos achatados e flexíveis podem passar por ali, pelo menos aquelas que já gastaram quase todos os seus espinhos. Não há nada mais o que fazer. Richard pensa em sacar sua baioneta, para continuar lutando. Porém, resolve apenas aguardar a morte. Seria uma cena muito ridícula um soldado cego, golpeando a esmo, com uma simples baioneta. Por instinto, sente vontade de fechar os olhos. Mas ri de si mesmo. Não há mais olhos, não há mais pálpebras, seu rosto está destruído. Lembra-se dos olhos de Fred, que jaz ali à frente. Eram mesmo olhos invejáveis. Então, sente uma forte onda de calor, que o obriga a cobrir o rosto com as mãos e o faz cair no chão. Lá de fora, vem um ruído crepitante, um tremor abala a casamata. O calor dura alguns segundos e depois diminui. Não ouve mais o som das lagostas, só sente um fortíssimo cheiro de queimado. Escuta um ruído bem conhecido: é o módulo de desembarque se aproximando para acoplarse à casamata. Ele despertou, levantou vôo lá do topo da montanha e agora se aproxima. Isso significa que a sementeira retornou. O calor que ele sentiu antes deve ter sido de calcinadores disparados por naves de ataque. As lagostas estão todas mortas. Percebe então que fora tudo planejado. Eles foram apenas iscas para fazer as lagostas saírem do esconderijo, de forma que pudessem ser facilmente aniquiladas pelas naves de ataque. Agora os fuzileiros vão poder acabar de limpar o planeta com muito menos perdas. A casamata sofre um baque, Richard sente o peso da inércia enquanto ela é erguida. Ao mesmo tempo, ruídos secos e estalidantes indicam que as bordas do vão da casamata, feito prensas, estão esmagando e triturando as lagostas carbonizadas, livrando-se delas. É o mecanismo de selagem. Logo ele estará no espaço. Richard se aproxima do corpo de Fred. Mede seu pulso. Está morto. Apalpa seu peito até encontrar a medalha e a desprende. Sente na palma da mão a estrela de cinco pontas, fria e pesada. É feita de ouro puro. Guarda-a no bolso, mas, é claro, não para si. Iria procurar os entes queridos de Fred para lhes entregar a medalha e contar-lhes seus feitos. Ele deve isso a Fred. Além do mais, pelo dia de hoje, Richard com certeza receberá sua própria condecoração, talvez até uma Nova. Richard apalpa o rosto de Fred. Verifica aliviado que ele está intacto. Mais abaixo, no pescoço, sente onde o esporão se cravou. Richard então saca da baioneta e cuidadosamente extrai os olhos de Fred. Verifica o peso deles na sua mão. São leves. Excelentes. Da melhor liga O LEGADO 83 neotitânica. São bem melhores para atirar, bem melhores que os antigos olhos de duralumínio que a lagosta destruiu. Richard guarda para si os olhos de Fred. Olhos assim são muito difíceis de conseguir. Sente-se um pouco culpado por tomar posse deles sem permissão. Mas as guerras iriam continuar, sempre mais e mais delas. E, na próxima batalha, Richard estaria mais bem equipado, além de ter uma medalha no peito. 84 UBIRATAN PELETEIRO contos dos leitores 86 A Herança MARCELO JACINTO RIBEIRO Muitas vezes o passado assombra o presente, outras vezes pode ser a única esperança para todo um povo, para toda uma espécie, a solução para um grande problema. O caçador olhava para seu povo e sentia um grande desespero crescer dentro de si. As crianças choramingavam baixo por estarem fracas demais até mesmo para tentar sugar um pouco de leite dos seios de suas mães. Mas mesmo esse alimento estava esgotado, tudo o que as mulheres tinham a oferecer era um colo, de seus corpos nada brotava. Alguns dos anciões tentavam atrair a atenção e a graça dos Deuses com danças e cantos mas nenhuma resposta era ouvida. O céu continuava sem nuvens, o calor crescia implacavelmente e a plantação não passava de ramos ressecados em campos poeirentos. Os poucos animais que sobravam na região eram tão magros que não serviam para alimentar ninguém, há várias luas ele não caçava. Nunca na sua vida ele tinha visto tal coisa, sentido tal angústia. Em sua mente embotada uma pergunta sem palavras se formava dia após dia: o que devo fazer? O que é preciso para conseguir a graça dos Deuses? Por que seu povo sofria tanto? Ele sentiu que alguém se aproximava, passos arrastados na terra árida. Virou a cabeça e viu a figura magra e curvada do xamã, carregando seus talismãs e amuletos. A idade avançada e a fome tornavam o rosto do homem praticamente uma caveira viva. O caçador levantou em sinal de respeito e esperou pelo que o velho homem tinha a dizer, mas ele permaneceu em silêncio. Somente então o caçador viu que o xamã não estava ali para haver com ele, mas sim em algum tipo de transe. Seus olhos estavam tão revirados que somente era possível ver manchas brancas. Ele murmurava sons desconexos e estranhos ao mesmo tempo em que apontava para a região das montanhas, o Lar dos Deuses. O caçador assustou-se e ficou sem saber o que fazer. Era proibido apontar ou falar sobre aquele lugar, era terra sagrada! E o xamã mais do que ninguém sabia disso, era preciso fazer alguma coisa. O caçador segurou o corpo do velho com força e o agitou para tirá-lo do transe, o que aconteceu em poucos segundos. Sem as forças sobrenaturais para agir sobre seu corpo, o xamã caiu ao chão esgotado. Preocupado com a saúde do ancião, o caçador tirou a bolsa de couro da cintura e ofereceu o pouco de água que tinha. Mas com uma força que não aparentava ter o xamã afastou sua mão e, com convicção, recolocou a bolsa na cintura do caçador. Havia um brilho estranho em seus olhos, parecia que uma força oculta brotava de seu corpo. Ele segurou a mão do caçador com firmeza e com um amuleto começou a desenhar figuras na terra ressecada, figuras estranhas para o caçador. Aos poucos as figuras se juntaram e começaram a fazer sentido, ficaram familiares. Um homem, uma cadeia de montanhas, uma caverna estranha, um desenho do Sol – o símbolo dos Deuses. O xamã apontou para o conjunto de desenhos, para as montanhas e finalmente para o caçador. Foi com um misto de surpresa e terror que o caçador entendeu o que aquilo significava: o xamã queria que ele fosse até as montanhas, até o Lar dos Deuses! Não era possível. Ninguém ia até as montanhas, era tabu, era proibido. Mas o desenho não deixava dúvida alguma. Mostrava a silhueta tão conhecida pelo caçador, os picos que ele havia admirado com respeito e temor por toda a sua vida, e algo mais. Uma figura diferente, com formas estranhas que pareciam... não naturais. Pareciam com a entrada de uma caverna, mas diferente. O caçador olhava para aquilo e se esforçava para negar seu significado mas não sabia o que fazer. Foi então que o xamã agarrou seu rosto e o obrigou a olhar para as montanhas. A mão que desenhava então apontou para o Lar dos Deuses e lentamente seguiu até o peito do caçador, colocando-se sobre seu coração com firmeza. O caçador teve certeza do que o ancião pedia, ele PRECISAVA ir até o Lar dos Deuses, era essa sua missão. Foi preciso muita coragem para o caçador aceitar esse fato. Entretanto quando abaixou a cabeça para olhar o xamã ele viu que aquilo era mais que o desejo de um homem velho. O brilho nos seus olhos, a força estranha, o transe, tudo apontava para um sinal dos Deuses. Com suavidade ele baixou o corpo do xamã e o colocou à sombra de uma rocha. Pegando suas lanças e cordas, A HERANÇA 87 sentiu-se assustado e pequeno. Juntou toda a coragem que pode e seguiu em direção ao chamado dos Deuses. Ele caminhou por dias sem fim, seguindo em frente da alvorada até o entardecer, sempre esperando um sinal para saber se tinha alcançado seu destino. Mas os Deuses pareciam ter se esquecido dele, nada mudava em sua marcha, a paisagem continuava monótona e repetitiva. Quanto mais ele se aproximava das montanhas mais seu medo de estar cometendo uma heresia aumentava. Sua fé nos Deuses era tão forte quanto seu temor e ele não sabia como agir. Sua água já havia acabado há dois dias e ele sentia as forças sendo sugadas pelo Sol implacável que o perseguia. Ele parou sentindo-se esgotado, sem vontade de seguir em frente. Resolveu encontrar um local protegido e descansar um pouco, aguardar o que seu destino tinha a mostrar. Procurou com os olhos onde se proteger e foi com um choque que ele viu, logo ali, a poucos passos de distância, a estranha caverna que o xamã desenhara! Sim, era isso mesmo! As estranhas formas que tanto destoavam no desenho, bem à sua frente. Como uma lança que sai do corpo de um animal a entrada da caverna brotava da terra, com linhas duras e retas. Seu coração disparou ao mesmo tempo em que suas pernas pareceram ficar pesadas como pedras. Ele tinha alcançado o Lar dos Deuses? Era preciso seguir em frente, ele precisava atender ao chamado. Em silêncio e completamente aterrorizado o caçador seguiu em direção à entrada da caverna com todos os seus sentidos atentos ao que acontecia. Ele parou na boca da caverna e aguardou, entretanto nenhum som ou sinal surgiu, tudo parecia normal. O caçador reuniu toda a coragem que sobrara e partiu em disparada em direção ao interior da caverna. Ao passar pela boca da caverna ele esperou ser fulminado pelos raios dos Deuses mas novamente nada aconteceu. Um misto de coragem e decepção fez com que ele seguisse em frente, ao interior da montanha. Ali dentro da caverna as estranhas formas se repetiam, tudo era reto e sem vida, um local não natural. Onde estavam os insetos e os animais que deveriam viver na caverna? Ele estava tão concentrado na exploração da caverna que nem reparou em algo bizarro; apesar de não levar nenhuma tocha consigo, o local estava iluminado como o dia! Ele olhou assustado para cima e viu que no teto da caverna havia pedras brancas que brilhavam como o Sol mas que não emitiam nenhum calor, como isso era possível? O medo voltou a crescer em seu peito e ele estava prestes a fugir quando viu algo estranho. Apertou os olhos e viu no fundo da caverna uma parede, onde uma pintura finalmente pareceu familiar. Uma mão de homem estava desenhada, aberta como num sinal de paz. O caçador aproximou-se e sentiu uma atração mágica de colocar sua mão sobre o desenho, de tocar aquela imagem. Com assombro ele esticou a mão e a colocou com firmeza sobre a pintura. Nesse momento o mundo pareceu explodir em luzes e sons à volta do caçador. Ele ficou tão aterrorizado que não conseguiu esboçar qualquer reação, ficou paralisado de medo em frente à parede que se movia lenta e ruidosamente para os lados, revelando que havia outra caverna, oculta dos seus olhos. Pedras brancas começaram a brilhar no teto dessa caverna e nuvens de neblina brotavam do chão. O caçador respirou profundamente e sentiu um enorme e assustador frio penetrando pelo seu corpo. Mas como isso era possível? Era a época do calor, o Sol brilhava forte do lado de fora da caverna. Ele nunca sentira tanto frio na vida! Seu corpo tremia fortemente e o medo dominava seu coração, ele apenas queria morrer, não deveria ter desafiado os Deuses. Sua mente estava prestes a desmoronar quando ele a viu, flutuando no ar entre as nuvens de frio. Era uma mulher – não, não uma mulher qualquer! Ela era alta, mais alta que o caçador, sua pele era clara, com certeza nunca tinha sido exposta ao Sol; seus dentes eram brancos como as nuvens do céu, brancos como a estranha roupa que usava, e seu cabelo! Brilhava como os raios do Sol no 88 MARCELO JACINTO RIBEIRO amanhecer! Ele nunca vira uma mulher com cabelos da cor do Sol, uma intensa luz brilhava sobre ela, isso só podia significar uma coisa: ela era uma Deusa! Ela sorria com felicidade, transmitindo uma enorme sensação de paz. O caçador jogou-se ao chão demonstrando respeito e cobriu seu rosto. Mas ele não conseguia evitar olhar para a Deusa à sua frente. Ele aguardou em silêncio esperando algum sinal. E foi com enorme assombro que a Deusa olhou para ele e começou a falar! Uma língua estranha, palavras que o caçador não entendia, mas que transmitiam calma e tranqüilidade, as palavras de uma mãe amorosa para seu filho. — Seja bem-vindo, visitante! Meu nome é Christine Al-Saytis, sou a diretora-responsável pela Caixa-Forte Internacional de Sementes da Ilha de Syalbard. Espero que você esteja aproveitando sua estada na Noruega e que possamos ajudá-lo com suas necessidades. Nosso computador central detectou que no momento não há nenhum atendente humano para auxiliá-lo, assim pedimos desculpas pelo inconveniente uso desse holograma. Entretanto garantimos que toda a atenção será dedicada ao seu pedido. Em que posso ajudá-lo? O caçador estava maravilhado pelo que via e ouvia, a voz da Deusa era inacreditável, soava como o canto dos pássaros! Ela flutuava a uma pequena altura com um sorriso no rosto. Parecia esperar por algo, o que ele deveria fazer? Em pânico procurou um meio de se expressar, de dizer pelo o que seu povo estava passando, que ele estava ali em busca da salvação de sua tribo. Mas como dizer isso para uma Deusa? Desesperado por não saber o que fazer, o caçador olhou suplicante para a Deusa, esperando que assim ela entendesse sua situação. Após algum tempo a Deusa acenou com a cabeça e recomeçou a falar. — Prezado visitante, após um período de dois minutos sem uso o sistema ativa automaticamente o modo de visita à Caixa-Forte, queria por favor seguir o holograma. A qualquer momento é possível sair desse modo, basta vocalizar seu pedido. A Deusa levantou seu braço e apontou para o fundo da caverna, convidando o caçador a seguir em frente. Nesse momento algumas pedras na parede começaram a ficar vermelhar como fogo, o mesmo tipo de luz sem calor das pedras do teto. Maravilhado, o caçador observava enquanto outras pedras se moviam silenciosamente mostrando outras cavernas até então ocultas. O Lar dos Deuses era gigantesco! Ele criou coragem e se levantou, olhando respeitosamente para a Deusa. Para sua surpresa, ela começou a flutuar em direção às novas cavernas, olhando tranquilamente para o caçador e esperando que ele a acompanhasse. Com uma estranha calma, ele seguiu em direção à Deusa mantendo uma distância respeitosa. Sua atenção estava concentrada na Deusa e em sua voz, ele não sentia o frio penetrando pelos seus pés. A Deusa voltou a falar. — Esta iniciativa foi inaugurada no ano de 2008, um projeto conjunto da Noruega e da Organização das Nações Unidas, com vista a criar um repositório de sementes mundial para a Humanidade, um local seguro para armazenar e proteger o legado genético da fauna terrestre. Muitos críticos logo batizaram o projeto de “Cofre do Fim do Mundo” numa óbvia e pessimista alusão ao possível uso desse depositório no caso de uma catástrofe ambiental. Entretanto, eu sempre gosto de pensar que não custa nada estar precavida para o futuro, não acha? O caçador não entendia nada do que a Deusa falava, ele apenas a seguia e observava assombrado a caverna a seu redor. Era possível ver entre as nuvens de frio coisas estranhas. Parecia uma plantação, com os caules das plantas crescendo até o teto da caverna. Finas e retas como sua lança, com pedaços de madeira espetadas entre elas, e nessas madeiras estavam vários pacotes empilhados, como pedaços de carne enrolados em couro. O caçador olhou para a Deusa esperan- A HERANÇA 89 do algum sinal de reprovação mas ela continuava a flutuar no mesmo lugar, calmamente contemplando a caverna. O caçador então se aproximou curioso e tocou os pacotes, mas não era couro, era algo diferente, liso e resistente, numa cor cinza como as nuvens de chuva. A Deusa a seu lado voltou a falar num tom amigável. – Esta é apenas uma parte do nosso acervo de semente. Nosso depósito possui no momento sementes de 90% dos países do mundo, cobrindo aproximadamente 86% das espécies utilizadas para alimentação humana e animal. Esperamos um dia alcançar a totalidade de espécies de modo a garantir a biodiversidade. O caçador sentiu uma grande atração pelo pacote a sua frente. Por impulso ele agarrou o pacote e cravou suas unhas, forçando a pele cinzenta. Para sua surpresa a pele se rasgou facilmente, revelando outra pele por baixo, tão fina que era possível ver através dela. E por baixo dessa outra pele estavam... sementes! A surpresa foi tão grande que o caçador ficou sem ar, não conseguia acreditar no que via. Eram sementes tão grandes e bem formadas como ele nunca tinha visto antes, não as pequenas lascas que alimentavam seu povo. Seu coração disparou em alegria. Seria esse então o motivo de sua vinda? A Deusa tinha ouvido as preces dos anciões e tinha enviado uma visão ao xamã, para avisá-lo de onde encontrar alimento para seu povo? O caçador rapidamente pegou outro dos pacotes cinza e rasgou a pele, e novamente foi agraciado com mais e mais sementes! Será que todos os pacotes eram iguais? Depois de rasgar tantas peles quanto pôde o caçador jogou-se ao chão numa mistura de cansaço e alegria. Todas aquelas sementes seriam mais do que suficientes para alimentar seu povo até a época das chuvas, e quem sabe mais até. Havia sementes de vários tipos e tamanhos, algumas familiares, outras que o caçador jamais tinha visto. Lágrimas corriam pelo seu rosto enquanto seu coração batia forte pela emoção, por saber que a Deusa tinha ouvido seus chamados. Ele se virou e a viu próxima, ainda flutuando no ar e falando na língua dos Deuses. — É óbvio que desejamos que esse depósito nunca seja utilizado para a finalidade para o qual foi construído: reconstituir a fauna e a flora terrestre no caso de uma catástrofe global. Mas se esse momento negro um dia chegar estaremos prontos para ajudar em tudo o que for possível. Esse depósito é o nosso legado para as futuras gerações. Nosso modo de dizer ao mundo: mesmo que o pior aconteça não vamos simplesmente desistir. Vamos reconstruir e repovoar esse mundo, vamos recriar o Jardim do Éden. As lágrimas haviam secado no rosto do caçador, seu medo da Deusa era agora uma distante lembrança. Ele agora apenas sentia um grande respeito, um grande amor por Ela. Ele se ajoelhou no chão frio e começou a cantar uma música de agradecimento, a única que conhecia. A Deusa continuou a flutuar a sua frente, observando sua humilde oferenda. — Pedimos desculpas, prezado visitante, mas nosso sistema automático não está reconhecendo a língua que está utilizando, pedimos por favor que você se diriga à nossa recepção para maiores informações. O caçador parou de cantar e começou a juntar as peles num grande pacote. Resolveu carregar menos peso do que conseguia, agora que sabia onde encontrar comida, ele não se preocupava mais com o destino de seu povo. Em sinal de respeito, ele saiu andando de costas, sempre olhando para a Deusa, marcando cada pedaço do seu rosto na memória. A Deusa começou a segui-lo. Ele chegou à grande caverna onde tudo começara e parou, para mais uma vez agradecer e honráLa. A Deusa pareceu finalmente entender e reagiu aos seus atos. Ela parou a sua frente e levantou uma mão, mantendo a palma aberta ao lado do corpo. Rapidamente o caçador deixou o pacote cair e repetiu o gesto. 90 MARCELO JACINTO RIBEIRO — Esperamos que sua visita tenha sido educativa e gratificante. Nossos esforços pelo bem estar da Humanidade estão acima da política, das raças e das religiões. Esperamos que você, prezado visitante, tenha visto o quanto este projeto é importante para o futuro, que você possa um dia contribuir para ampliar nosso repositório, seja na forma de sementes, seja na divulgação de idéias. Tenha um bom dia e uma ótima viagem de volta ao lar, visitante. Aguardamos em breve seu retorno. A última visão que o caçador teve da Deusa foi seu sorriso se desfazendo lentamente enquanto ela desaparecia nas nuvens de frio. Ele abaixou a sua mão e começou a sair da caverna para retornar ao seu povo. Com certeza vários dos seus não acreditariam na sua história, mas ele tinha a visão do xamã, ele tinha a localização da caverna, ele tinha as sementes. E se fosse preciso ele voltaria com mais pessoas para que vejam com os próprios olhos. Mas tudo isso não importava. A única coisa de que era importante saber agora ele tinha certeza absoluta: a Deusa amava seu povo, e seu futuro seria brilhante como o Sol que brilhava no cabelo dela. A HERANÇA 91 contos dos leitores Traidores diante de um espelho MARCOS VILELA 92 Nem um mundo vigiado e monitorado está livre de complôs, ameaças, planos, esquemas e traições, e muitas vezes a arma da destruição pode ser algo muito, muito simples. A chuva caía sem parar desde a madrugada do dia anterior. Não havia ninguém que estivesse sossegado e que pudesse dormir com aquela chuva incessante. Telas enormes no interior de cada casa exibiam a mesma página de informações. Isto era o que se podia permitir depois dos últimos acontecimentos. Apenas um canal de notícias transmitia informações para todo o país. A República estava corrompida há muitos anos. Diante da grande tela instalada à sua frente, Luís de joelhos manipula um aparelho antigo: um controle remoto. Era preciso enviar novas mensagens. A revolução corria risco de ser desmantelada e ele devia cumprir seu dever como um dos líderes. “Para que serve uma revolução”, dizia o título de um livro velho de páginas amareladas. Tinha sido muito lido durante um tempo. O pensamento de Luís vagava distante, com aquele aparelho em suas mãos, tendo aquele livro ao seu lado. Rompendo o silêncio daquela sala, um breve e sonoro alarme dispara chamando a atenção de Luís. Sentado agora no chão de seu minúsculo apartamento, mastigava um pão dormido enquanto contemplava a vidraça e as gotas de chuva que escorriam pela janela, aguardando a aparição do holograma. — É necessário cumprir sua obrigação enquanto líder — sentencia a imagem. — Mas, não posso — balbucia Luís. — Não se deve negar aquilo que você defendeu tão arduamente. A revolução precisa de você e este é um momento de sobrevivência para todos nós. — Não me importo. — Continuava estudando o controle remoto. Na tela à sua frente, nenhuma daquelas informações desconexas chamava a atenção do telespectador solitário que tinha ali aquela visita costumeira. O holograma, próximo da janela, parecia ouvir o barulho dos trovões que interferiam naquele diálogo. A imagem dinâmica, muito familiar a Luís, não podia ser vista com tanta nitidez por outras pessoas que, por acaso, estivessem ali. Era impossível reconhecê-la. — O que você sabe sobre nosso líder não deve ser divulgado — ordenou a imagem. — Não sei do que você está falando. Tudo aquilo que se experimentava naquela sala parecia sem sentido. O único canal de informações que estava ali na tela apresentava notícias que não tinham nenhuma relação com aquela realidade. Eram veiculadas histórias reais com personagens reais em um mundo diferente daquele que se vivia. Todos acreditavam. Era o único modo de conhecer o mundo em sua amplitude e saber as notícias que circulavam no país. “Até quando a revolução será enganada com estas histórias”, pensava Luís, que dividia o olhar entre a tela, o controle remoto e o livro. — Quando tudo estiver terminado e o Grande Império estabelecido, não será mais necessário nenhum outro artifício de engano — respondeu o holograma, como se ouvisse os pensamentos de Luís. A revolução era fruto de mais uma das grandes desordens que se instalavam naquele país, chamado País do Salvador. O Brasil, desde o ano de 2243, sofria constantemente com grandes insurgências contra o modelo político estabelecido. A República já não era o símbolo da prosperidade e da liberdade cultural dos cidadãos. O País do Salvador declarou independência do Brasil e continuava guerreando pela separação daquele grande país-continente. Tratava-se de uma imensa TRAIDORES DIANTE DE UM ESPELHO 93 faixa territorial que se localizava nos antigos estados nordestinos, tomando boa parte da região litorânea do continente. Paralelamente às lutas do separatismo, no interior do País do Salvador lutavam grupos para a tomada do poder soberano. A antiga divisão política renascia como se fosse uma novidade naquele século. Republicanos desgastados digladiavam com os insurgentes monarquistas. A monarquia aparentemente desaparecida do continente sempre se manteve presente na Tradição subalterna das classes oprimidas. “Virá um Messias, a nova encarnação de um Rei, que destruirá com mão de ferro todos os seus inimigos”. Luís pertencia a este grupo. Era um dos generais da revolução monarquista que acreditava trazer a paz através de um poder único, soberano e divino. A revolução tinha como líder um rei que entendesse as misérias de seu povo sofrido e soubesse fazer a justa divisão das riquezas. Um Juiz soberano. — Tudo isto não passa de grandes mentiras. — Luís agora fitava o holograma. — Mas você não é o traidor — sorria o holograma. — Eu sei... Luís tomava em suas mãos o livro de folhas amareladas. De pé, diante do holograma, que era um pouco mais alto que Luís, folheava as páginas do livro como se buscasse algum trecho em especial. — Você não encontrará o que procura neste livro. — Eu sei, mas talvez... — Não existem dúvidas. Assuma sua posição de líder, de general e cumpra seu dever. — Irritado, o holograma parecia se aproximar de Luís. Silêncio. — Por que tudo é através deste controle remoto? — Luís tinha agora o livro numa mão e o controle remoto em outra. O holograma apenas sorriu. Um riso de ironia. — São dez teclas, nove números, um botão sem identificação. — Aquela imagem parecia impaciente. Era um tempo no qual os diálogos se tornavam cada vez menos necessários. Tudo se passava na memória. A mente parecia agora ter a liberdade que antes não se imaginava. Mas o pensamento nunca foi linear. Fragmentos e colagens. Pouco sentido e vários significados. O holograma era um alter ego mal acabado de uma consciência atormentada. — Não me importo. — Luís parecia espantar algum pensamento ruim. O holograma voltava sua atenção para a janela e a chuva que insistia em cair. — O que você queria que acontecesse? Somos um grupo e nosso líder maior quer a vitória... — Seu líder, não o meu! — Luís esbravejou várias vezes. — Nosso país precisava disso, e você sabe as conseqüências de se manter distante das discussões — o holograma dizia com tranqüilidade. — Não sei mais quem sou! — sentencia Luís. — Ninguém tem mais estas certezas. Isto é ultrapassado. A revolução no País do Salvador contava com nove generais. Cada um tinha em seu poder 94 MARCOS VILELA um controle remoto. Tratava-se de um equipamento de comunicação que estava interligado a um chip implantado na nuca de cada uma daquelas pessoas. A identidade de todos eles permanecia em sigilo. Tudo se passava na mente fragmentada dos envolvidos. Os controles remotos, em um tempo distante, serviam para alterar os canais de informação de uma tela semelhante àquela que estava fixada nas casas das pessoas. Hoje, a revolução aproveitou o instrumento ultrapassado para enviar informações a todos os generais. Uma conexão segura, através da mente e do controle de imagens de pensamento remotas. “Vamos lá, aperte um número e resolva tudo isto”, dizia Luís a si mesmo. Todos os generais, inclusive o líder maior, possuíam este controle remoto. Bastava selecionar as imagens contidas na memória de cada um e os pensamentos se tornavam uma mensagem a ser transmitida pela rede segura. Cada general era identificado por um número, e qualquer um daqueles botões permitia enxergar na própria mente o pensamento do outro. As mensagens eram assim enviadas para todos, e eles se tornavam canais de informações. Luís era o número cinco. — Não temos mais tempo, você precisa liberar as informações — o holograma parecia irritado. O chip na nuca de Luís latejava, como se estivesse alertando para novas informações recebidas. — O líder maior enviou uma mensagem, receba-a — ordena o holograma. — Não vou fazer isso — Luís retrucou. — Aperte o número, vamos. Luís, vencido, aperta o número 1. Como se estivesse adentrando num delírio, sem discernir o sonho da realidade, Luís vê um homem velho empunhando firmemente um livro na mão direita, falando um idioma esquecido há muitos anos. O homem estava diante de um espelho. Uma multidão observa aquilo que parecia um discurso. Em êxtase, com os olhos vidrados na multidão, Luís esperava a ordem final... A comunicação fora interrompida. A sala permanecia mergulhada em silêncio e o holograma de braços cruzados, observa Luís retornar da mensagem: — É sua hora, faça! Os hologramas acompanhavam todos os generais. Funcionavam como conselheiros. Na verdade, não se podia confiar muito nestes conselheiros. Não se podia confiar em ninguém naquele momento. Mesmo que eles fizessem parte ativa da mente dos generais, assumiam comportamentos distintos daqueles que se planejavam. Os hologramas eram imagens muito reais e muito persuasivas, brotavam da mente dos usuários dos chips. Era resultado de um efeito colateral, mas que foi aproveitado e reorientado para as nobres causas da revolução. De posse do livro e do controle remoto, Luís tremia. Vários números, várias informações, nenhuma coragem. Impossível pensar. A grande tela que reproduzia as informações continuava a exibir aquelas notícias que todos já conheciam e naquele momento não fazia muita diferença prestar atenção ou não. A imagem com aquela voz estranhamente humana continuava a falar ininterruptamente, sem arrumar qualquer sentido no que dizia. Naquele lugar exatamente, apenas Luís devia cumprir uma obrigação. TRAIDORES DIANTE DE UM ESPELHO 95 A chuva continuava lá fora. Agora imperava um silêncio. Luís cuspiu. O holograma fitava impaciente aquele homem. As vertigens da memória fazem com que Luís recorde dias que nunca mais serão vividos. As memórias do líder monarquista tomam todos seus sentidos novamente, era uma nova mensagem que chegava. O holograma ansioso por respostas, aguarda. Luís aperta o número um. Um riso sem motivos ecoa pela sala. O holograma parece adivinhar o que se passa na mente de Luís: — Toda rede de comunicações possui falhas e certamente esta é a hora de fazer cumprir o que todos nós desejamos. — Uma gargalhada sinistra faz com que Luís retorne do transe. Era tarde. Alguma mensagem havia sido enviada. Luís atônito lança o livro contra o holograma, que continua sorrindo: — Para que se faz uma revolução? Por que estamos todos nós aqui? — Suas perguntas são infantis, meu caro general. Você acha que comanda sua mente, mas sua mente te comanda. Eu sou sua mente. Você não passa de um pequeno escravo de meu domínio. Não sou seu conselheiro, sou seu Rei. Os hologramas se comunicavam entre si. A revolução não era humana. Eram todos fantoches da dominação invisível. — A monarquia existe apenas na lembrança e nós a faremos real! Diante de Luís estava o traidor. Era ele mesmo, na figura de seu holograma. A mente é fragmentada e cheia de colagens de outras coisas que nem se sabe de onde veio. Existe um botão sem identificação naquele controle remoto. De todos os botões apenas um deles deveria encerrar aquela loucura. O holograma, sabendo que Luís desconfiava dos planos de dominação, ali estava para resguardar a força dos demais conselheiros, persuadindo-o a enviar qualquer mensagem para o grupo revolucionário: — Os homens fazem coisas irracionais — Luís, cabisbaixo, murmura. — Mas existe um modo de reverter esta loucura. — Não pode nos destruir. Somos vocês. Não podemos ser apagados assim simplesmente. Somos parte permanente de vocês, como uma imagem de espelho. Se você quebra o espelho, perde sua imagem. — Sabemos que em toda comunicação existem falhas. Em toda revolução existem traidores. Mas você se esqueceu de que também existem loucos. — Somente a morte é loucura — sorri o holograma. — Que seja! Luís aperta o botão que não possui identificação. Justamente o botão que finaliza as comunicações e desliga todo o sistema. Os canais deixam de existir. Apenas a morte é louca. Os generais possuíam a vida de seus companheiros em suas mãos, podiam exterminar qualquer um na suspeita de traição, bastava apertar o número que não era identificado. Mas não imaginavam que os traidores seriam eles mesmos e seus hologramas. O sistema fora desligado. Só assim os hologramas seriam destruídos. A morte de todos os generais interromperia o plano paralelo dos hologramas de tomarem o poder do país. Luís já sabia, mas não queria pensar. Tudo se passa na mente e o pensamento é uma mensagem fragmentada. Como se estivessem obedecendo ao comando de desligar, todas as telas de notícias do País 96 MARCOS VILELA reproduziam a informação da morte dos generais. Os planos de instaurar a monarquia haviam sido destruídos. O Rei soberano, justo, não reinaria para seus famintos, concedendo a igualdade estabelecida em sua natureza divina. A razão é louca, o pensamento é incoerente. Existem coisas que deveriam ser ditas ao invés de pensadas. Uma descarga elétrica no cérebro encerra a revolução. Em todas as conspirações existem traidores. Luís não era um deles, também não se tornou mártir. As telas exibem agora outras notícias. Luís, caído no chão, morto, com os olhos abertos, parece observar as gotas escorrerem pela janela fechada. Não enxerga mais nenhuma imagem. Ninguém está ali perto para ouvir aquele murmúrio final e solene. Talvez nem existissem hologramas, talvez nem existissem revoluções. Os generais estavam mortos. No país do Salvador, em 2280 continua chovendo, não há líderes, todos morreram. TRAIDORES DIANTE DE UM ESPELHO 97 contos dos leitores 98 Posto 7 PABLO CASADO No futuro poucas coisas surpreenderão as pessoas, o que hoje nos parece impossível será algo comum, o que nos maravilha passará despercebido. Mas algumas coisas nunca mudam. Imprensa, ele disse, e num tom de voz que muitos considerariam agressivamente alto, mas que nada tinha a ver com algum sentimento de arrogância descontrolada que o tomava como uma febre de auto-afirmação. Segundo o horário terrestre — e o fuso no qual a cidade em questão incluía-se —, já passava das cinco horas da tarde, restando menos de uma hora para o início do Festival. Justificava-se assim a formação de aglomerações de terrenos e não-terrenos nas imediações, com toda aquela balbúrdia verbal que só elas são capazes de provocar e obrigando qualquer diálogo a atingir notas vocais elevadas. O segurança, então, apontou o leitor de identificação para o código de barras localizado na parte inferior do crachá preso ao redor do pescoço do homem. Nome, data e local de nascimento, cidade onde reside atualmente, filiação, opção sexual, profissão, foto e lista de doenças infectocontagiosas recentes foram elencadas no visor azulado do aparelho. Era fotojornalista há treze anos. Depois de passagens por dois periódicos virtuais de poucos pageviews, fora contratado pela Tribuna de Fobos & Deimos — onde permanecia até aquela data — após registrar com talento e coragem o combate épico entre as duas principais gangues do baixo distrito da capital de Marte. Possuía mais de dez prêmios na parede da sala e uma capacidade extraordinária de captar e editar as melhores imagens, sendo o mais disputado e paparicado fotógrafo da redação. O que significava, também, alguém munido do privilégio de escolher a dedo os trabalhos que gostaria de fazer. Depois de vinte anos, esta era a razão pela qual, estranhamente, retornava a sua cidade natal. Decisão causadora de questionamentos surpresos por parte de seus familiares e colegas de trabalho — inclusive dele próprio, sempre realizados no campo do pensamento e quando se encontrava seguramente sozinho. Lembraram-no dos adjetivos ressentidos remoídos por entre dentes, dos quais nunca explicara as razões para ninguém além da esposa, quando oportunidades de reviver memórias da cidade lhe eram impostas. Ele calhou de decidir cobrir, como num ato excêntrico sem precedentes em seu perfil profissional, o Festival de Artes de Ontem e Hoje a acontecer em um fim de semana de junho. Talvez, chegou a dizer para a mulher durante um jantar logo após a decisão tomada, Maceió seja como uma ex-namorada que, algum dia, a gente acaba reencontrando por aí e diz oi para não passar por mal-educado. Viajava com regularidade à Terra, a propósito. Esteve em Neo York no ano do décimo aniversário dos mortos durante a Guerra das Armadas Submarinas, que quase afundou Manhattan no Atlântico, onde registrou de um ângulo soberbo a lágrima solitária que correu pelo rosto de um soldado sobrevivente, convidado a discursar num palanque flutuante diante de uma multidão de milhões. Quase perdeu a cabeça durante uma batida, ao lado de um repórter investigativo da Tribuna, quando acompanhou a polícia de Tóquio X por uma semana na realização de uma matéria sobre andróides domésticos que, graças a um curto-circuito, transformaram-se em ninjas renegados. No Rio de Janeiro, foi o único fotojornalista a documentar a operação que inseriu o terceiro coração digital no peito de Antônio Silva Neto, o Seu Netinho, compositor de samba da Velha Guarda do Morro do Beira-mar, então com 146 anos. Um cardápio de cliques capazes de fazer frente ao portfólio dos cinco mais talentosos fotógrafos de todas as seis colônias terrestres na Via Láctea — e que fazia. Nenhum acontecimento ou motivo de força maior, no entanto, tinham-no trazido de volta a Maceió. Pelo menos, nenhum que necessitasse figurar em um periódico como o Fobos & Deimos. Porque Maceió, e isso já durava tempo suficiente para que historiadores supersticiosos considerassem como um tipo de maldição, não era uma cidade dada a grandes feitos ou fatos. A nãoabertura de espaço para a instalação de grandes indústrias no Estado, preservando-se a plantação irrestrita de cana-de-açúcar por influentes empresários locais, condenou o seu desenvolvimento POSTO 7 99 ainda no século XX. Maceió, já em meados do século XXI, tombou como capital e catalisadora de mudanças sociotecnológicas para Alagoas, assumindo uma postura de província interiorana onde só os ricos possuíam carros com motor de combustão a vácuo enquanto o grosso da população se virava com os de propulsão à eletricidade. E, com a queda drástica do movimento turístico devido a depredação das belezas naturais do litoral, o Estado como um todo foi sepultado num período de esquecimento e renegação. Retornar, finalmente, à cidade natal como alguém que alcançou os louros perseguidos lhe dava a idéia de ter um tipo de proteção, uma armadura de respeitabilidade capaz de evitar que fosse devorado pelo buraco negro no qual Maceió se transformara. E seu problema, sua repulsa quase doentia para com o local era justamente esse: resumia-se a um lugar por demais miúdo para comportar os sonhos de grandeza dos mais ambiciosos e destemidos. E ele considerava-se ambos. Quando seu pai fora convidado a assumir um importante cargo numa empresa multicolonial na capital marciana, sentira como se o câncer que se alimentava de suas aspirações fosse finalmente extirpado. Poderia tornar-se alguém. E no vôo que partiu da capital marciana às nove da manhã, horário local, considerava-se esse alguém: o fotógrafo mais importante de um dos maiores jornais virtuais das colônias. Repetiria mentalmente esse mantra até seu cérebro entrar em parafuso se não estivesse acompanhado. Ela não passava dos vinte e três anos e meio e era dona de um diploma de Jornalismo alcançado com louvor, tendo engatilhado logo a seguir sua matrícula numa pós-graduação a distância, via spacenet, numa instituição com sede em Júpiter. Era um prodígio de redatora e uma das jóias que o editor da seção de cultura pretendia lapidar. Quando ele, o fotógrafo, decidiu cobrir o peculiar festival a ser realizado em Maceió, o outro, o editor, lançou sua protegida para verbalizar o evento. Ela é gente boa, meu velho, e escreve de um jeito que eu nem sei qualificar ainda, comentou o editor dando aqueles tapinhas nas costas que o fotojornalista achava tão irritantes. O argumento principal era de que a moça precisava trabalhar com profissionais mais experientes do ramo para afinar seu estilo e encontrar a voz certa. Não havia lido nada da garota para legitimar seu talento bruto, mas, durante a viagem, apreciou a empolgação que ela transmitia e a falta da pretensão pejorativa que alguns novatos carregavam. E o fato dela não bajulá-lo contou um bocado de pontos positivos. Chegaram a Maceió na quarta-feira, ela desejando fumar um cigarro, ele tomando comprimidos para acabar com a supernova em seu estômago. Subiram no primeiro táxi que encontraram. Pelo visto, o senhor não sabe onde tá pisando, hein?, rebateu com uma pergunta o motorista quando o seu veículo parou diante do terceiro semáforo no caminho do aeroporto para o hotel, devidamente indicado pelo sistema integrado entre o Google Earth e o mapa da cidade. O fotógrafo, num sentimento que tangenciou a indignação, mostrou-se numa afirmação espantado com a presença de moleques montados em pranchas flutuantes fazendo malabares ou limpando os pára-brisas na esperança de uns cartões com poucos créditos como troco. O taxista, como qualquer bom profissional do ramo, desandou a discursar sobre a situação social da cidade e como as coisas ainda precisavam melhorar, mesmo com todos os esforços dos governos municipal e estadual para solucionar as diversas mazelas que acometiam a cidade e o Estado. O fotojornalista, ao contrário da jovem repórter sentada ao seu lado, não ouvia uma palavra do motorista. Seus olhos permaneciam vidrados no menino de pele negra a realizar acrobacias com a prancha e algumas esferas coloridas, imaginando que, em Marte, ele não estaria fazendo as vezes dum artista circense no meio do tráfego e nem tão pouco se preocupando com o fato de que aquela camisa velha e rasgada não faria frente ao frio da noite. 100 PABLO CASADO O caminho do aeroporto para o hotel revelou-se conflituoso com a imagem guardada por ele de Maceió. A pobreza de vinte anos antes, ainda que não alcançasse as lembranças que sua memória lhe vendia como verídicas, estava presente de um modo que ele classificou como tímido. Apesar do choque com os meninos nos semáforos, não chegaram a serem tantos ao longo do trajeto; e o taxista comentou, em uma das poucas coisas que ouviu dele e de sua conversinha incansável, sobre um projeto social do município que estava trabalhando alternativas para essas crianças desgarradas. Além disso, as ruas pareciam mais bem cuidadas — admirou-se com árvores e canteiros de flores, decorando as vias públicas em pontos que lhe pareceram adequados urbanisticamente — e a própria estrutura da cidade transparecia um período de transformação. A única coisa a permanecer idêntica às suas recordações, e motivo de um sorriso disfarçado durante o percurso, foi o mar. Ele sempre imaginou o que diabos um inferno de cidade como aquela havia feito para merecer uma beleza daquelas. O hotel no qual ficaram hospedados ele e a jovem repórter localizava-se na orla da Jatiúca, bairro estabelecido como classe média alta nos idos do século XX; era separado do mar por uma avenida de seis vias, o calçadão e pela faixa de areia que decorava o oceano. A pouco mais de três quadras dali, sentido norte, avistava-se o local onde seria realizado o Festival de Artes de Ontem e Hoje, o Posto 7 — que nada mais era do que o ponto de encontro específico de determinadas tribos urbanas compostas por adolescentes e seus fetiches modísticos. Existia em seu tempo de garoto e muito antes disso, sem ele fazer a mínima idéia de sua origem; mas que, por alguma razão que apenas os estudiosos dos fenômenos urbanos e sociais poderiam discursar sobre, perdurava sem que seu fim pudesse ser avistado. Ele não gostava do Posto 7. Ou lembrava que não gostava, mesmo a razão não se fazendo presente em sua memória. Da janela de seu quarto, avistou o ponto daquela orla onde seus amigos e ele se reuniam para jogar bola nos fins de tarde das terças e quintas-feiras. Procurou pelo quiosque de comida natural que freqüentava regularmente com sua segunda namorada, uma mulata de penteado afro e alargadores de osso sintético nas orelhas, mas não o encontrou. Vinte anos, ele repetiu para uma brisa que passou, vinte anos. Na manhã de quinta-feira, ele alugou um carro numa locadora indicada pelo gerente do hotel: um modelo esportivo flutuante, com motor a vácuo e capota retrátil de cristal líquido. Uma escolha excêntrica, ele sabia bem, fruto da imagem do mantra que o protegeria da aura de pequenez da cidade. Era também o menino frustrado que se mudara para Marte há duas décadas se manifestando. Os três — homem, fotógrafo de sucesso e menino frustrado — deslizaram para o carro e deram a partida no possante. Suas mãos percorreram o volante em tom de carícia. Seus olhos degustaram o painel arrojado até se deterem no pezinho direito que chutava carinhosamente o nada. A jornalista, bem sentada no assento do passageiro, tinha o corpo decorado por um vestido estampado até a altura dos joelhos. Qual o itinerário de hoje? A fumaça do cigarro, preso entre os dedos indicador e médio dela, fugia de sua boca à medida que as palavras saíam formando a pergunta. Viu-se refletido nas lentes dos óculos imensos que ela usava e sorriu. Boa pergunta, sabia?, disse, acelerando. Com a mesma mão que segurava o cigarro, a repórter agarrou a aba de seu chapéu de palha. Sessenta e três fotos — era o que indicava a memória de sua máquina fotográfica. Com o aperto num botão, mudou do modo de visualização para o de captação. Passava das cinco da tarde e a noite dava sinais de avanço no horizonte, como que devorando o Atlântico. Sessenta e quatro. Desligou a câmera e a acomodou sobre a cadeira vaga ao seu lado. Ele e a jovem jornalista estavam uns bons minutos em silêncio, observando o quebrar das ondas e a morte daquele dia num barzinho à beira-mar, lá pelas bandas do litoral norte. Passaram o dia visitando lugares a esmo — de pontos turísticos óbvios a outros nem tanto. Ela ficou impressionada, por exemplo, POSTO 7 101 com o Museu da Cana-de-Açúcar; especificamente com a seção destinada aos autômatos artesanais, movidos a bagaço de cana, e ainda usados pelos fazendeiros mais humildes que não podiam bancar uma máquina produzida pelas indústrias. Acendeu outro cigarro relembrando as vísceras férreas abertas de um dos autômatos, as legendas holográficas explicando o funcionamento de tubos e do maquinário de locomoção. Perdida em meio às remontagens mentais, levou dois ou três segundos para notar que o fotógrafo havia registrado seu momento de introspecção. Essa vai pro teu álbum pessoal, menina. Sessenta e cinco. Na sexta-feira, ela se meteu a desvendar mais da cidade por conta própria — levando consigo o conversível esportivo —, enquanto o fotógrafo não arredou o pé do hotel durante boa parte do dia. Limitou-se a passar um par de horas à borda da piscina, dando um ou outro mergulho e evitando o olhar transbordando de flerte de uma mulher mais nova, e almoçando no restaurante da própria hospedagem. Quando voltou para o quarto, ligou para a esposa, para seu editor e para a jovem jornalista, garota, eu espero que esse carro esteja inteiro quando você voltar, disse num tom de ameaça divertida. Receava que sua imagem pudesse sair arranhada, caso um misto de imprudência e bobagem viesse a acontecer, algo completamente ausente em sua carreira. Tranqüilizou-se ao saber que ela estava fazendo o caminho de volta para o hotel, porque eu preciso me arrumar, cara, já viu que horas são? Eram quatro e dezessete, conferiu no relógio, divertindo-se com mais um dos “cara” que ela enfiava em oito de dez frases. Vinte e cinco minutos depois, ambos estavam na entrada do backstage do palco principal montado no Posto 7, crachás inclusos, ele gritando imprensa! para o segurança por causa do barulho que tomava o lugar — ele os deixou entrar quando os crachás foram conferidos através do aparelho de identificação. Te encontro daqui a pouco, tá legal?, a repórter disse sem esperar por uma réplica afirmativa, seu par de tênis sacudindo a poeira do chão de terra batida. Faltava pouco para o início do Festival de Artes de Ontem e Hoje, os promotores do evento ajustando os detalhes finais aqui e acolá, e ela queria colher depoimentos de alguns dos artistas. Ele, com a máquina fotográfica já em mãos, fez o óbvio: começou a tirar fotos. Uma menina de oito anos, parte integrante de um grupo de Guerreiro, fez pose ao ser clicada. Já o ator que repassava mais uma vez suas falas para os seus colegas programados holograficamente foi captado quando simulava um momento de angústia — interpretava um escravo negro trespassado pela lança virtual de um capitão-do-mato gerado a partir de computação gráfica. Subiu até o palco principal e focalizou a platéia: pessoas nascidas em Maceió ou Alagoas, no Brasil ou em outros países, além daquelas que viram a luz pela primeira vez numa das colônias espaciais. Reunidas com o intuito de celebrar o passado e aceitar o novo que o presente oferecia, como dizia o slogan do Festival. O fotógrafo baixou a câmera e observou o contexto. Tudo parecia se encaixar. Não, não. Notou a ausência de uma peça. Foi até uma das caixas de som e colocou a máquina sobre ela, programando-a. Caminhou até a beirada do palco, ficou de costas para a platéia — alheia ao que ele fazia — e pôs-se de pose em cócoras. Cinco, quatro, três, dois, um. Flash. Agora estava completo. 102 PABLO CASADO 38 O MERCENÁRIO E O ABISMO