Revista Jurídica Unic - Vol. 13 Nº 1
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Revista Jurídica Unic - Vol. 13 Nº 1
COMITÊ CIENTÍFICO ADRIANA KOSZUOSKI DANIELA M. ECHEVERRIA DANIELA M. SAMANIEGO DARLà MARTINS VARGAS DINARA DE ARRUDA DYNAIR DALDEGAN FRANCISCO A. FAIAD JENZ PROCHNOW JR. JOSÉ PATROCÍNIO BRITO JR. MARCOS HENRIQUE MACHADO SAUL DUARTE TIBALDI Universidade de Cuiabá – UNIC Pró-reitoria Acadêmica Centro de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão Faculdade de Direito UNIVERSIDADE DE CUIABÁ ISSN: 1519-1753 Rev. Juríd. UNIC v.13 – n.1 Jan./Jun. 2011 © Universidade de Cuiabá – UNIC, 2011 Os conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta publicação, desde que citada a fonte. Av. Beira Rio, 3.100 – Jardim Europa – 78.015-480 – Cuiabá - MT Tel.: (65) 3363-1000 E-mail: [email protected] UNIVERSIDADE DE CUIABÁ Revista Jurídica da UNIC Direção Editorial Antonio Alberto Schommer Coordenação Editorial Marcos Juvenal da Silva Revisão Doralice de Fátima Jacomazi Produção Gráfica, Capa e Editoração Eletrônica Estúdio 11 Desenvolvimento Gráfico e Editorial Dados CIP – Biblioteca Central UNIC REVISTA JURÍDICA DA UNIVERSIDADE DE CUIABÁ. Universidade de Cuiabá - UNIC. Faculdade de Direito. Cuiabá: Edunic, v. 1, n. 1, jul./dez., 1999. periodicidade semestral. 202 p. Direito – Periódico 1. Direito - Periódico I. UNIC. Faculdade de Direito II. Título. CDU: 340 (05) SUMÁRIO Apresentação 7 Estágio mascarado. Estagiário marginalizado Abraham Lincoln de Barros Ferreira 9 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional Adriana Koszuoski Ziezkowski Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros 13 A indústria dos danos morais Clarissa Bottega Mariana Gomes de Oliveira 43 As medidas socioeducativas Cleidimil Leite da Cunha 65 A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa Darlã Martins Vargas 87 Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão da culpa pela separação dos cônjuges José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa 99 O significado do primado da dignidade da pessoa humana na sociedade de riscos globais. Os deveres para com a humanidade Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 107 A gestão florestal plena em Mato Grosso Marcos Henrique Machado 123 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro na relação consumerista em Cuiabá Orivaldo Peres Bergas Jéssika Matos Paes de Barros Elza de Souza Dias 143 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas Sonia Cristina de Oliveira Edison Pereira Prado 163 Breves comentários à Lei Maria da Penha Valdenir Rodrigues Barbosa Filho 181 Erro de Tipo e Erro de Proibição: uma abordagem didática dos institutos Wanderlei José dos Reis 193 Normas e Instruções aos Colaboradores da Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá – UNIC 201 APRESENTAÇÃO Chega mais um volume da REVISTA JURÍDICA DA UNIC, permeado de pesquisas, estudos e concepções de acadêmicos e professores da graduação e pós-graduação. Caminhar à frente de seu tempo, buscando incessantemente o futuro e novas formas de entender o conhecimento Jurídico, é tarefa de todos aqueles que, comprometidos com a ciência, têm coragem de colocar à crítica do mundo científico suas conclusões e opiniões, contribuindo decisivamente para a transformação da sociedade. É na trilogia ensino, pesquisa e extensão que professores e acadêmicos buscam alicerçar novos conhecimentos, que através da reflexão, intercâmbio e suas interfaces sedimentam a construção da cidadania e com ela a reconstrução das entidades políticas, interferindo diretamente na ordem social e econômica de modo que seja feito do direito um real instrumento de pacificação e justiça social. A presente revista abre novo espaço para o embate de ideias, de conteúdos à luz da interdisciplinaridade e da diversidade teórica dos vários docentes, aos quais mais uma vez fazemos aqui nosso agradecimento, pela ousadia e coragem de exporem seu pensar, seu refletir e, mais que isso, suas inquietações e respostas ante um mundo cada vez mais confuso, sem paradigmas e sem diretrizes jurídicas. Dessa forma a Revista Jurídica da UNIC, ao trazer à luz esses debates jurídicos, realiza seu objetivo institucional, contribuindo para o avanço do conhecimento jurídico e da cidadania. Antonio Alberto Schommer Diretor Editorial Cuiabá, julho de 2011 ESTÁGIO MASCARADO ESTAGIÁRIO MARGINALIZADO Abraham Lincoln de Barros Ferreira1 Tem-se abordado constantemente nas doutrinas de Direito do Trabalho, bem como na jurisprudência aplicável à esfera laboral, as manobras utilizadas por alguns empregadores, que vêm reiteradas vezes marginalizando o trabalho do estagiário, lhe atribuindo funções diferentes da caracterizada no estágio. É notório que a carga tributária, bem como as verbas previdenciárias, mexe com o bolso do empregador, razão pela qual muitos fazem a opção de não assinar a CTPS do empregado, ou assinar com salário inferior ao aquele que foi acordado com o obreiro, ou então o tão famoso Salário Marginal (salário pago por fora). Esses são alguns dos exemplos de trabalhos mascarados pelos empregadores. Não obstante, trata-se de uma atividade bastante explorada por oportunistas que veem no estagiário a possibilidade de obter mão de obra barata, sem a menor preocupação de contraprestação do necessário ensino da prática profissional àquele que estagia. Essa gama de trabalhos mascarados, num contexto generalizado, vem se tornando habitual, principalmente no que diz respeito ao estagiário, que, contratado como tal, exerce função diferente à que lhe foi atribuída. Algumas empresas ou escritórios contratam o trabalhador para exercer a função de estagiário, mas sem observação clássica à Lei 11.788/08, ou seja, acabam por subordinar o trabalho dele como um empregado comum, de acordo com os requisitos imprescindíveis para a caracterização do contrato Individual de Trabalho, quais sejam: pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação. Assim, passam a remunerá-lo como estagiário, porém, com labor de um empregado regido pela CLT. Sabemos também que as artimanhas apresentadas para a descaracterização dele como empregado comum já é uma rotina da Justiça Traba1 Professor do Curso de Direito na Universidade de Cuiabá – Unic 10 Estágio mascarado – Estagiário marginalizado lhista, que age rigorosamente punindo a empresa que adota esse tipo de procedimento. Há que se advertir que a Justiça do Trabalho está totalmente preparada para lidar com esse tipo de ocorrência, aplicando não só a CLT, como também julgados já pacificados pelo Tribunal Superior do Trabalho. Mas o que vem a ser Estágio? A Lei 11.788/08, em seu Artigo 1º, incumbiu-se de esclarecer que “Estágio é ato educativo, supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos”. De posse dessa informação, verifica-se que o estágio nada mais é do que o aprendizado com objetivos de caráter educacional, devendo ser de forma e com finalidades de estudo e prática, conforme o labor exercido. Estagiário não é empregado regido pela CLT, assim sendo, observados os parâmetros da Lei 11.788/08. Entre o labor do estagiário e ele, deverá haver uma intermediação de uma instituição de ensino. Se não houver, perde-se o caráter de estagiário, e aplicam-se as normas da CLT como de um empregado comum. O estágio realizado com qualquer empresa não cria vínculo empregatício de qualquer natureza, mas dá chance ao aluno, a chance única de que, ao final do estágio, seja contratado como funcionário. No cotidiano, encontramos, não incomum, alunos totalmente prejudicados em seus estágios, tendo em vista as fraudes praticadas por seus contratantes. Cita-se como exemplo a empregada que trabalha em um hospital, como secretária, mas no contrato de compromisso, registrada como estagiária, intermediado por uma escola de Inglês. Pergunta-se: Existe contrato de estágio? A resposta é negativa. Nesse caso, a atividade exercida pela empregada não é de estágio, pois a atividade deve possuir compatibilidade com o sistema de educação do obreiro, e, pelo que notamos, a atividade em área médica não possui nenhuma compatibilidade, como regra geral, com a atividade de ensino de línguas estrangeiras. Desse modo fica clara a intenção do empregador em marginalizar o trabalho desse estudante. Abraham Lincoln de Barros Ferreira 11 Ao estagiário, deve ser oferecida atividade para aprendizado, o cotidiano da profissão, que só será adquirido com a prática. Não se pode, dessa feita, marginalizar o labor do estagiário, atribuindo-lhe funções desregradas, repassando o empregador finalidades inespecíficas ao aluno, de maneira que venha a colocá-lo como mero oficce boy de luxo, ou então, a expressão vulgarmente elencada de “escraviário”, coagindo-o a efetuar serviços bancários, xerox, serviços particulares do sócio da empresa e até mesmo faxinas dentro do estabelecimento comercial, prejudicando em muito sua atividade de aprendizado profissional. Três são os requisitos para a caracterização do trabalho do estagiário: a) matrícula e frequência regular do educando em curso de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e nos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos e atestados pela instituição de ensino; b)celebração de termo de compromisso entre o educando, a parte concedente do estágio e a instituição de ensino; c) compatibilidade entre as atividades desenvolvidas no estágio e aquelas previstas no termo de compromisso. Assim, se não houver esses requisitos, não se caracteriza atividade de estágio, mas sim, de emprego comum regido pela CLT. Devido à atividade do estagiário ser ligada à de sua formação escolar, é necessário que se observe o parâmetro de sua jornada laborativa, o que não poderá ultrapassar de 4 (quatro) horas diárias e 20 (vinte) horas semanais, no caso de estudantes de educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional de educação de jovens e adultos e, de 6 (seis) horas diárias e 30 (trinta) horas semanais, no caso de estudantes do ensino superior, da educação profissional de nível médio e do ensino superior regular. Se houver jornada superior aos horários estipulados pela Lei 11.788/08, é descaracterizada a atividade laboral de estágio e passa a ser considerada de empregado regido pela CLT, razão pela qual, se dessa forma for, serão computadas como horas extraordinárias as que passarem das 8 diárias ou 44 semanais. Por derradeiro, a atividade em estágio remunerado, para não atrair pastas trabalhistas e descontentamento das empresas, deve ser rigorosa- 12 Estágio mascarado – Estagiário marginalizado mente observada, nos parâmetros da Lei 11.788/08, sendo certo que, ao estagiário, deve ter preservado sua habilidade para o aprendizado da prática, o que, muitas vezes, não se consegue em sala de aula. UMA ANÁLISE DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL1 Adriana Koszuoski Ziezkowski2 Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros3 INTRODUÇÃO A presente monografia analisa o instituto da relativização ou desconsideração da coisa julgada, com enfoque na inconstitucionalidade, tema extremamente polêmico e que tem gerado calorosas discussões entre doutrinadores e juristas em geral. Quanto ao desenvolvimento deste, no primeiro capítulo têm-se um breve delineamento histórico sobre a evolução do processo civil no mundo, bem como sobre seu desenvolvimento no Brasil. Aborda ainda a evolução da coisa julgada nos direitos romano e medieval, até alcançar a análise desse instituto no direito moderno. Segue com uma abordagem geral sobre a sentença e a coisa julgada, trazendo conceitos e noções sobre seus requisitos, efeitos, tipos, classificação, limites e importância no mundo jurídico. Analisar-se-á a tendência à relativização da coisa julgada, enfocando seu conceito e seus fundamentos. Além dos argumentos favoráveis à sua aplicação, serão explanados os argumentos contrários à sua desconstituição, objetivando demonstrar que existe conflito entre a res iudicata (coisa julgada) e outros princípios igualmente merecedores de agasalho, por estarem, também, acobertados pelo manto constitucional. Serão também expostos os meios processuais hábeis a desconstituir a coisa julgada. Ao aclarar a possibilidade de reforma das decisões transitadas em julgado e analisar esta tese sob a ótica da base do nosso ordenamento jurídico, sopesando seus benefícios, que vão de encontro a alguns princípios constitucionais, teremos uma noção mais crítica e fundamentada acerca 1 Artigo resultante da monografia apresentada à Faculdade de Direito – Unic, sob a orientação da professora MS.c Adriana Koszuoski Ziezkowski. 2 Professora da Universidade de Cuiabá, mestre em Relações Internacionais para o Mercosul pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul, Florianópolis, SC. 3 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade de Cuiabá – Unic 14 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional das vantagens e desvantagens de desconsiderar a imutabilidade da coisa julgada em face de decisões mais justas e principalmente em conformidade com a Carta Maior. Objetiva demonstrar as hipóteses de sentenças e, conseqüentemente, coisas julgadas “inconstitucionais” e abordar meio possível de desconstituir essas decisões transitadas em julgado em desconformidade com a Carta Maior, quando já não cabem mais os instrumentos processuais previstos em lei. DA SENTENÇA CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA As partes possuem o direito subjetivo de invocar a prestação jurisdicional, que corresponde ao dever do Estado em declarar a vontade da lei para pôr fim à lide. E assim, o juiz, representando o Estado, cumpre o seu dever por meio da sentença. Conforme a interpretação dos artigos 162, § 1º, e 269, caput, do Código de Processo Civil, conclui-se que sentença é o ato do juiz que extingue o processo ou põe fim à fase de conhecimento resolvendo ou não o mérito da demanda.4 O mestre Arruda Alvim discorre sobre a natureza jurídica da sentença e diz que: [...] é ato intelectual de índole, ou com estrutura, predominantemente lógica (formal e material), que pressupõe apuração dos fatos e identificação da norma, através da qual o Estado-juiz se manifesta, concretizando imperativamente a vontade do legislador, traduzida ou expressada pela lei.5 Assim, acerca natureza jurídica da sentença pode-se dizer que ela é a conclusão de um trabalho de análise e crítica dos fatos e do direito pelo juiz, o qual, representando o Estado, concretiza os preceitos, as vontades da lei. 4 BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L5869.htm>. Acesso em: 10 mar. 2010. 5 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. v. 2, p. 649, 650. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 15 REQUISITOS DA SENTENÇA Para que uma sentença seja eficaz, é necessário que reúna condições intrínsecas e formais, prescritas ou não pela lei, de modo que a inobservância pode levar à nulidade da decisão. Os requisitos formais, por serem lógicos, não mais estão expressos em lei, contrariamente aos essenciais, como a seguir veremos. REQUISITOS FORMAIS Os requisitos formais da sentença, apesar de não mais serem mencionados expressamente na lei, a doutrina se encarrega de enumerá-los. A esse respeito, Humberto Theodoro Junior justifica que “tão lógica é essa exigência que o novo Código nem sequer a mencionou diretamente”6. São dois os mais importantes: a clareza e a precisão. Quanto à clareza, se faz necessária a sua presença para evitar obscuridades, incertezas e contradições. Deve ser empregada uma linguagem simples, porém utilizando-se de vocabulário técnico-jurídico sempre que necessário for.7 Em relação à precisão, a sentença deve ser exata, munida do rigor necessário, a fim de impedir o surgimento de dúvidas. Deve se limitar aos requerimentos do autor, não dando além do que foi pedido, nem a mais, tampouco deixando de apreciar parte do que lhe foi posto sob seu crivo. Da mesma forma, não deve ser proferida sentença ilíquida se o pedido formulado foi certo. REQUISITOS ESSENCIAIS Os requisitos essenciais estão definidos no artigo 458 do CPC, que são o relatório, os fundamentos de fato e de direito (motivação) e o dispositivo, que corresponde à conclusão da sentença. Importante enfatizar que essas formalidades previstas na lei são indispensáveis, visto que a sua inobservância acarreta a nulidade da sentença. 6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit. p. 501. 7 Idem, p. 501. 16 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional RELATÓRIO É no relatório da sentença que o juiz delimita o campo do pedido do autor, bem como as razões do réu e ainda as controvérsias que devem ser resolvidas, sempre observando a clareza, a precisão e a síntese, sem, contudo, ser omisso. Deve nele conter os elementos identificadores da lide, que são o nome das partes, a síntese do pedido do autor e a resposta do réu. Essa peça da sentença possibilita à sociedade verificar se o magistrado conhece dos autos, já que nela deve conter a demonstração de tudo o que aconteceu no processo, obrigando-o a estudá-lo em sua totalidade. Parafraseando Pontes de Miranda, citado pelo eminente professor Moacyr Amaral Santos, o relatório “é a exposição, que o juiz faz, de todos os fatos e razões de direito que as partes alegaram, e da história relevante do processo”.8 FUNDAMENTAÇÃO Depois de preparar o processo para o julgamento, porém antes de decidi-lo, cumpre ao magistrado motivar sua decisão, e assim expõe os fundamentos de fato e de direito que formaram a sua convicção, na etapa da sentença denominada de motivação ou fundamentação. Nesse requisito da sentença, o vencido no processo pode entender os motivos que o levaram ao insucesso na demanda, e assim interpor recurso, rebatendo cada uma das razões apontadas pelo magistrado de primeiro grau. Além disso, não só as partes, mas também a sociedade, a opinião pública, precisam conhecer dos motivos da decisão, para assim se convencerem. Por essas razões, “diz-se que a motivação da sentença redunda de exigência de ordem pública”.9 Ademais, a motivação/fundamentação permite ao órgão de segundo grau compreender as razões que sustentaram a convicção do juiz de primeira instância. Por outro lado, a obrigatoriedade desse requisito, assim como o relatório, exige que o magistrado faça um exame criterioso e apurado dos fatos, o que consequentemente faz com que seja atento e cuidadoso ao 8 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de processo civil. 1974, v.5. Apud SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3, p. 16. 9 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 19. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 17 apreciar a demanda e emitir a sentença. A propósito, sobre a importância da motivação, entende José Frederico Marques, citado pelo ilustre professor Humberto Theodoro Júnior, que: [...] o magistrado, examinando as questões de fato e de direito, constrói as bases lógicas da parte decisória da sentença. Trata-se de operação delicada e complexa em que o juiz fixa as premissas da decisão após laborioso exame das alegações relevantes que as partes formularam, bem como do enquadramento do litígio nas normas aplicáveis.10 Não bastasse, a legislação infraconstitucional, através do artigo 458, inciso II do Código de Processo Civil Brasileiro, que prevê a motivação como requisito essencial da sentença, sua importância é consagrada pelo artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, que exige a fundamentação em todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade. DISPOSITIVO Também chamada de conclusão da sentença, esta é a parte em que, aplicando a lei ao caso concreto, o juiz acolhe ou não, no todo ou em parte, os pedidos deduzidos pelo autor, e em caso de procedência, determina o que deve ser feito para que o direito material seja efetivamente realizado. Assim, é no dispositivo que reside a ordem, o comando, característicos da sentença. A ausência do dispositivo em uma sentença revela haver um ato inexistente. Em verdade não há, nem nunca existiu sentença, já que este requisito é elemento substancial do julgado. O dispositivo pode ser direto ou indireto. Será direto quando especificar a prestação imposta às partes, quando o juiz decidir exprimindo com suas palavras, e indireto quando o magistrado apenas se reportar ao pedido do autor para julgá-lo procedente ou improcedente.11 Importante frisar que o dispositivo encerra muita importância, já que apenas essa parte da sentença é revestida pela autoridade da coisa julgada material, após o trânsito em julgado. 10 MARQUES, José Frederico. Instituição de direito processual civil. Rio de Janeiro, 1959, v.3. Apud THEODORO JUNIOR, Humberto. Op. cit., p. 500-501. 11 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 501. 18 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional COISA JULGADA NATUREZA E DEFINIÇÃO Proferida a sentença, seja terminativa ou definitiva, é possível a interposição de recurso com a finalidade de reformá-la. Decorrido o período recursal, a decisão torna-se irrecorrível, e a partir desse momento ocorre o trânsito em julgado da sentença, surgindo, assim, a coisa julgada. Parafraseando Vicente Greco Filho, “a coisa julgada, portanto, é a imutabilidade dos efeitos da sentença ou da própria sentença, que decorre de estarem esgotados os recursos eventualmente cabíveis”.12 Ao estabelecer a imutabilidade da sentença a partir do momento em que a decisão se torna irrecorrível, o Estado busca segurança jurídica, que seria impossível de se alcançar se as questões decididas pelo Poder Judiciário pudessem ser discutidas ad infinitum (até o infinito). Sobre a coisa julgada, o mestre Alexandre Freitas Câmara entende que: A nosso juízo a coisa julgada se revela como uma situação jurídica. Isto porque, com o trânsito em julgado da sentença, surge uma nova situação, antes inexistente, que consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da sentença, e a imutabilidade e indiscutibilidade é que são, em verdade, a autoridade de coisa julgada. Parece-nos, pois, que a coisa julgada é esta nova situação jurídica, antes inexistente, que surge quando a decisão judicial se torna irrecorrível.13 Ao entendermos o que é a coisa julgada e suas premissas, concluímos que ela se apresenta como um dogma jurídico, um instituto intransponível, capaz de assegurar a imutabilidade das decisões judiciais, evitando que modificações sejam possíveis após o trânsito em julgado de uma decisão judicial. Ocorre, porém, que este entendimento tem sido flexibilizado diante de claras situações de injustiça, em que se sobrepõe a forma sobre o conteúdo, o que jamais deveria ocorrer. E, com a costumeira sabedoria, reflete 12 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2, p. 274. 13 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 16.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. v.1, p. 487. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 19 Cândido Rangel Dinamarco, citado pelo ilustre Montenegro Filho que “os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual”14. Os motivos ensejadores dessa flexibilidade serão abordados mais adiante. COISA JULGADA FORMAL E COISA JULGADA MATERIAL Necessário tratar destes dois momentos da coisa julgada. Como já dito, a definitividade de uma sentença nasce a partir do momento em que determinada decisão já não admite recurso, ou seja, quando se verifica a ocorrência do trânsito em julgado. Tendo a decisão resolvido ou não o mérito da demanda, se tornará imutável, e a este fenômeno chamamos de coisa julgada formal, que é a imutabilidade da decisão dentro do mesmo processo. Assim, em certo momento, todas as decisões fazem coisa julgada formal.15 Ocorre, porém, que a coisa julgada formal opera-se dentro do processo findo, em nada impedindo que se reabra a discussão em outro feito. Já a coisa julgada material, por resolver o mérito da causa e incidir sobre sentenças definitivas, tem a autoridade de tornar imutável e indiscutível o objeto da demanda dentro e fora do processo. Significa dizer que, formada a coisa julgada material, não poderá a mesma matéria ser rediscutida em nenhum outro processo. O douto jurista Eduardo Talamini assim define a coisa julgada material: [...] pode ser configurada como uma qualidade de que se reveste a sentença de cognição exauriente de mérito transitada em julgado, qualidade essa consistente na imutabilidade do conteúdo do comando sentencial.16 Assim, seguindo esse entendimento, conclui-se que a coisa julgada formal traduz a imutabilidade da sentença, enquanto que a coisa julgada material, a imutabilidade do conteúdo da sentença. 14 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v.1, p. 249. Apud MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 1, p. 565. 15 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 274. 16 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 30. 20 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional LIMITES Importante se faz delimitar os efeitos da coisa julgada, que estabelece a “lei ao caso em concreto”, capaz de reger a situação deduzida em juízo. Deve-se saber a quem ela se estende e também que parte da sentença está sujeita ao trânsito em julgado. LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA O artigo 468 do CPC regulamenta que a sentença faz coisa julgada nos limites do objeto da demanda, ou seja, apenas aquilo que foi deduzido no processo e, consequentemente, o que foi objeto de cognição judicial. Significa dizer que o que não tiver sido objeto do pedido não estará acobertado pela autoridade da coisa julgada. Os artigos 469 e 470 do codex (código) processual complementam esse sistema concluindo que apenas a parte dispositiva da sentença transita em julgado, como já dito. A apreciação de questões prejudiciais também não é acobertada pela coisa julgada, senão quando tiver havido ação declaratória incidental, uma vez que terá passado a integrar o objeto principal do processo, conforme entendimento do artigo 470 do Código de Processo Civil. Também integra o sistema dos limites objetivos da coisa julgada o artigo 474 do CPC, que trata da eficácia preclusiva da res iudicata (coisa julgada), segundo o qual: Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.17 Com esse dispositivo conclui-se que, uma vez alcançada a autoridade da coisa julgada, todas as alegações que poderiam ter sido feitas em juízo e não o foram tornam-se irrelevantes, já que os motivos de uma sentença não transitam em julgado, mas tão-somente o dispositivo da sentença. Isso porque não se poderia admitir que, sempre que a parte vencida se lembrasse de algo que esqueceu ou por outro motivo não levou ao conhecimento do magistrado, pudesse reabrir a discussão. 17 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 21 Portanto, por esse dispositivo torna-se impossível voltar a discutir, em qualquer processo, o que já está coberto pelo manto da coisa julgada. LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA A coisa julgada tem também limites subjetivos, que estão tratados no artigo 472 do CPC, em que estabelece que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”.18 Essa norma é corolário das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da inafastabilidade da jurisdição. É com brilhantismo que nos explica o mestre Eduardo Talamini acerca do assunto: Estaria sendo vedado o acesso à justiça ao terceiro, caso se lhe estendesse a coisa julgada formada em processo alheio. Depois, isso implicaria privação de bens sem o devido processo legal. Haveria ainda a frustração da garantia do contraditório: de nada adiantaria assegurar o contraditório e a ampla defesa a todos os que participam de processos e, ao mesmo tempo, impor como definitivo o resultado do processo àqueles que dele não puderam participar.19 Dessa forma, como regra, a coisa julgada faz a sentença imutável e indiscutível apenas entre as partes, não podendo tal autoridade atingir terceiros, estranhos ao processo em que imutabilidade e indiscutibilidade se formaram. É certo que, por vezes, o terceiro não consegue se subtrair dos efeitos definitivos da sentença, mas não porque a coisa julgada se estende a ele, e sim porque a relação jurídica de que é titular se subordina com referência àquilo que já foi decidido em outro feito. Assim, Ernane Fidélis dos Santos exemplifica: “se o terceiro aluga imóvel do réu e este vem a perdêlo, em pedido reivindicatório, a relação locatícia fica prejudicada, sem que o terceiro nada possa reclamar”.20 Exceto casos dependentes como esse, a coisa julgada não atinge aqueles que não tiveram a oportunidade de participar do processo. 18 Idem. 19 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 96. 20 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Op. cit., p. 633. 22 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional Aqui se percebe nitidamente a relevância da teoria de Liebman acerca dos efeitos da coisa julgada, em que esta recai sobre os efeitos da sentença, ou mais especificamente sobre o conteúdo do decisum (resultado), e atingirá, inicialmente, apenas aqueles que participaram como partes no processo. Em outras palavras, o terceiro, ao ser atingido pela repercussão causada pelos efeitos da sentença em determinado processo, não fica impedido de buscar pronunciamento jurisdicional diverso do decidido no feito que não participou, não lhe podendo opor a coisa julgada. A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL Não obstante ser a coisa julgada a imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da sentença de mérito, casos há em que se faz necessário desconsiderá-la, reabrindo-se a discussão acobertada pelo trânsito em julgado. A isso chamamos de relativização da coisa julgada material, um tema que tem gerado fervorosas discussões no mundo jurídico. FUNDAMENTOS DA AUTORIDADE DA COISA JULGADA Os juristas que sustentam ser absolutamente impossível tornar a discutir o que já está decidido pela sentença transitada em julgado argumentam o seguinte. Acima de todas as razões, a coisa julgada é uma garantia constitucional, revelando-se uma norma imperativa de segurança jurídica e pacificação dos conflitos sociais. Além desse grande e maior obstáculo, temos que o nosso Código Processual Civil, nos artigos 471 e 474, impede que o juiz volte a discutir o que já está acobertado pelo trânsito em julgado. Vejamos o que dispõe o artigo 471: Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; II - nos demais casos prescritos em lei.21 21 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 23 Essa autoridade da coisa julgada possui interesses de natureza jurídica e ordem política, e assim Moacyr Amaral Santos fundamenta o interesse político: A verdadeira finalidade do processo, como instrumento destinado à composição da lide, é fazer justiça, pela atuação da vontade da lei ao caso concreto. Para obviar a possibilidade de injustiças, as sentenças são impugnáveis por via de recursos, que permitem o reexame do litígio e a reforma da decisão. A procura da justiça, entretanto, não pode ser indefinida, mas deve ter um limite, por exigência de ordem pública, qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não houvesse um termo além do qual a sentença se tornasse imutável.22 Portanto, esse é o fundamento político da autoridade da coisa julgada, em que motivos de ordem prática, de certeza do direito, de segurança no gozo dos bens da vida implicam a necessidade de que haja um limite nas discussões e prazos recursais. Com relação à ordem jurídica, o mesmo autor aponta várias teorias existentes a respeito, vez que não há unidade de pensamento entre os juristas, no que concerne a esse tema. Vejamos rapidamente cada uma das mencionadas teorias: TEORIA DA PRESUNÇÃO DA VERDADE CONTIDA NA SENTENÇA Essa teoria foi fundada por Ulpiano e guiada pela filosofia escolástica e seus seguidores fundamentavam que a autoridade da coisa julgada estava baseada na presunção de verdade, contida na sentença. Segundo a escolástica, o processo tem como finalidade a busca pela verdade e, em que pese por vezes seja proferida sentença injusta, sem observância da verdade real, ainda assim produzirá coisa julgada. Assim, não se pode dizer que uma sentença retrate a verdade, mas tão-somente a presunção da verdade.23 Essa teoria consagrou-se no código napoleônico, perpetuando-se em outros códigos, inclusive era a teoria esposada pelo Regulamento 737, de 1850. 22 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 49. 23 Idem, p. 50. 24 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional TEORIA DA FICÇÃO DA VERDADE Savigny é o criador dessa teoria, que também considera as sentenças injustas, sejam por erro de fato ou de direito, passíveis de fazerem coisa julgada. Como tal sentença, ao transitar em julgado, não pode deixar de ser considerada como verdadeira, tanto pelas partes, quanto pelo juiz, no mesmo ou em outro processo, entende-se que a sentença traduz uma ficção da verdade.24 Assim, a autoridade da coisa julgada está na verdade aparente, artificial, na ficção da verdade, mesmo que não seja verdadeira. TEORIA DA FORÇA LEGAL, SUBSTANCIAL, DA SENTENÇA Essa teoria, idealizada por Pargenstecher, entende que toda sentença é constitutiva de direito, uma vez que, ao atribuir ao dispositivo a imutabilidade, indiscutibilidade, inconstestabilidade, a sentença se torna constitutiva de um direito novo, com força de lei.25 TEORIA DA EFICÁCIA DA DECLARAÇÃO CONTIDA NA SENTENÇA Seus elaboradores e defensores, dentre eles Hellwig, Binder e Stein, fundamentam que a eficácia da declaração de certeza trazida pela sentença impõe às partes o dever de cumpri-la.26 É essa eficácia da declaração que forma a autoridade da coisa julgada, porque corresponde ao fenômeno pelo qual a sentença torna-se indiscutível, imutável, inconteste, tanto pelas partes, quanto pelos juízes. TEORIA DA EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO JURISDICIONAL Teoria construída por Ugo Rocco, cujos conceitos de sentença e coisa julgada se prendem aos conceitos de ação e jurisdição.27 Assim, ação é o direito subjetivo do indivíduo pedir que o Estado solucione um conflito, enquanto que jurisdição se traduz na obrigação estatal de declarar o direito. 24 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 50. 25 Idem, p. 51 26 Idem, p. 51, 52. 27 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 52. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 25 Nesse raciocínio, sentença é o ato culminante, o meio pelo qual o Estado declara o direito aplicável, prestando sua obrigação jurisdicional. Portanto, a sentença pressupõe a extinção da jurisdição e, por conseguinte, o direito de ação, resultando em uma sentença estável, imutável, produtora de coisa julgada. TEORIA DA VONTADE DO ESTADO Essa teoria, de grande aceitação na Alemanha, teve Chiovenda como um dos mais ilustres defensores. Segundo ela, a sentença é um comando, um ato de inteligência e vontade, proferido por um juiz, cuja autoridade provém da vontade estatal. É o Estado que lhe confere força obrigatória, imutabilidade e indiscutibilidade, justamente porque seu dispositivo está pautado na lei.28 TEORIA DE CARNELUTTI Carnelutti, assim como Chiovenda, defende que a autoridade da coisa julgada provém do Estado. Para melhor compreensão desta, é interessante que se compare com a teoria anterior. Chiovenda entende que a sentença traduz a lei ao caso concreto, e, portanto, a substitui. Assim, o comando da sentença é autônomo, paralelo ao comando da lei. Já Carnelutti entende que o comando da sentença pressupõe o da lei, sendo suplementar, e não autônomo. Este comando contém imperatividade, por emanar de um juiz e assim consistir um ato estatal.29 Dessa forma, a coisa julgada está na imperatividade do comando. Nota-se que há inversão do fenômeno processual da coisa julgada. Enquanto que para as demais teorias a coisa julgada material pressupõe a formal, para ele, esta é que pressupõe aquela. Assim, a imperatividade da decisão constitui a res iudicata (coisa julgada) material, sendo, com a preclusão dos recursos, transformada em coisa julgada formal.30 28 Idem, p. 53. 29 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p 54. 30 Idem, p. 54. 26 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional TEORIA DE LIEBMAN Para Liebman, a eficácia natural da sentença é condicionada à verificação da justiça e legalidade da decisão, através dos recursos. Portanto, produzirá os efeitos normais a partir da preclusão dos recursos de efeito suspensivo.31 Enquanto a sentença estiver produzindo seus efeitos normais, está passível de reforma. Porém, após a preclusão de todos os recursos, a eficácia da sentença se reforça, formando a coisa julgada formal, que consiste na imutabilidade da sentença. Depois, como consequência, tem-se a coisa julgada material, consistente na imutabilidade dos efeitos da sentença.32 Enfim, são muitos os renomados doutrinadores que defendem a tese da imutabilidade da coisa julgada e a predominância de sua autoridade. Eles argumentam ainda que a possibilidade de o juiz desconsiderar a coisa julgada diante de determinados casos importa em estimular a eternização dos conflitos e o agravamento na demora pela pacificação das lides. Entretanto, mesmo com toda essa gama de valores e garantias que acobertam a res iudicata (coisa julgada), não se pode concluir que o nosso sistema jurídico tenha previsto todos os mecanismos para torná-la imutável. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA Em alguns casos é preciso reconhecer que a res iudicata (coisa julgada) deve ser afastada, que a realidade não deve se submeter à indiscutibilidade da coisa julgada, portanto, não há que se falar em prazo para ação rescisória. Nesse sentido, muitos doutrinadores defendem que a coisa julgada não deve subsistir diante de graves injustiças, porém, não parece sábio que se desconstitua uma sentença sempre e apenas por mostrar-se injusta, e sobre esse ponto se manifesta o grande processualista alemão Othamar Jauerning: [...] a intangibilidade da declaração transitada em julgado não pode ser aplicada sem exceções. Questiona-se sobre que pressupostos pode ser admitida a ofensa do caso julgado. Não é permitida a revogação ou alteração da sentença por simples incorreção. Senão, bastaria a simples 31 Idem, p. 54. 32 Idem, p. 55, 56. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 27 afirmação da incorreção para impugnar qualquer sentença com trânsito em julgado e, assim, poderia repetir-se, novamente, qualquer processo findo. A parte vencedora no processo (anterior) seria forçada a discutir sempre de novo com a parte contrária e apenas seriam decisivos a obstinação e o poder financeiro, quando a calma chegasse. Desse modo, o caso julgado perderia o seu significado. É mais suportável que uma sentença incorreta exista e deva aceitar-se, que qualquer sentença possa ser impugnada a todo momento. Assim, o caso julgado garante que, mesmo no caso concreto, domine a segurança jurídica e desse modo um elemento essencial do Estado de direito e isso significa que um princípio constitucional do GG é realizado.33 Defendem que é possível desconsiderá-la, não apenas quando se caracterizar injusta, mas quando, consequentemente, incidir sobre uma sentença que contraria a Constituição Federal, o que pode ser chamado de sentença inconstitucional transitada em julgado, que brilhantemente explica o professor Alexandre Freitas Câmara: A rigor, o que contraria a Constituição não é a coisa julgada, mas o conteúdo da sentença. Essa sentença inconstitucional, aliás, já contrariava a Lei Maior antes de transitar em julgado. É a sentença, pois, e não a coisa julgada, que pode ser inconstitucional.34 Como sabemos, a inconstitucionalidade é vício insanável e, admitindo-se que uma sentença inconstitucional seja acobertada pelo manto da coisa julgada, seria admitir que tal imutabilidade estivesse acima do controle de constitucionalidade, e mais: implicaria admitir que o juiz tem o poder de afastar norma constitucional em um dado caso em concreto. Em vista disso é que se sustenta a possibilidade de desconsiderar a coisa julgada em casos em que a autoridade incida sobre sentença que ofende a Carta Maior, e assim, julgar novamente a causa, como se aquela decisão não existisse. Ademais, a tese da desconsideração da coisa julgada encontra guarida em três princípios básicos, além do ponto de vista constitucional: o da proporcionalidade, o da instrumentalidade e o da legalidade. 33 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 493. 34 Idem, p. 494. 28 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional No tocante a este último princípio, tem-se que o processo, enquanto instrumento do direito, somente tem sentido se baseado nos ideais de Justiça e adequação à realidade. O princípio da legalidade significa dizer que o Estado, que detém o poder-dever de julgar, deve-se ater aos limites da lei, portanto, conclui-se que o Estado não deve conferir proteção à coisa julgada, quando esta é alheia ao direito positivo. Sustenta o princípio da proporcionalidade que a coisa julgada é apenas mais um princípio acobertado pela Constituição Federal, assim como muitos outros igualmente dignos de proteção, e assim, pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho.35 Sabemos que a proporcionalidade é uma regra hermenêutica, e assim, pode solucionar situações de choque entre a manutenção da coisa julgada e a proteção de bem que faz indispensável à revisão do julgado. É de se concluir, portanto, que nem toda situação de injustiça ou desarmonia com o ordenamento constitucional implica ineficácia ou nulidade do julgado. Segundo Cândido Rangel Dinamarco, citado pelo mestre Eduardo Talamini, o papel principal é desempenhado pela ponderação de valores. O ilustre professor defende que deve ser feito um juízo comparativo entre a relevância ético-política da coisa julgada material como fator de segurança jurídica e a grandeza de outros valores humanos, éticos e políticos, alçados à dignidade de garantia constitucional tanto quanto ela.36 Assim, através desse juízo de comparação é que casos graves e excepcionais devem ser identificados para que se afastem os efeitos da coisa julgada. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À TESE DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA Há ainda grandes doutrinadores que discordam da tese da “relativização” da coisa julgada quando não mais couberem os instrumentos previstos em lei, como a ação rescisória. Assim entendem Araken de Assis, Nelson Nery Júnior, Luiz Guilherme Marinoni, dentre outros. 35 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Op. cit., p. 663. 36 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 393. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 29 Esses doutrinadores exaltam o valor constitucional da garantia e autoridade da res iudicata (coisa julgada) e argumentam que, ao estabelecer esse instituto como garantia constitucional, a Carta Maior já fez a ponderação entre a segurança jurídica e a possibilidade de eventuais sentenças injustas e conflitantes com demais princípios previstos na Magna Carta. Essa vertente da doutrina assume a coexistência de valores constitucionais que por vezes entram em conflito, porém defende que esses valores devem ser ponderados. Ocorre que essa ponderação deve ser feita pela própria lei. Seguindo esse raciocínio, entende que o princípio da proporcionalidade já estaria retratado na admissão de ação rescisória e outros meios previstos nas normas positivadas. Para eles, jamais seria possível invocar o princípio da proporcionalidade para desconstituir a coisa julgada em um caso em que falte expressa previsão.37 MEIOS PROCESSUAIS PREVISTOS PARA A DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA Importante discorrer sobre os meios processuais aptos a desconstituir decisão acobertada pela coisa julgada, para que se saiba identificar quando é possível utilizar-se de via processual típica e quando já não mais é cabível, devendo lançar mão da “quebra atípica da coisa julgada”.38 AÇÃO RESCISÓRIA Essa ação, prevista no art. 485 do codex (código) processual brasileiro é uma das formas de se impugnar, desconstituir ou rescindir – como diz o nome – uma sentença definitiva transitada em julgado. Em outras palavras, é um meio para se desconstituir a coisa julgada material.39 Embora a coisa julgada sane os vícios que se verificaram no processo, o fato de tornar determinada decisão indiscutível é injustiça tão grave e tão ofensiva aos princípios que norteiam nosso ordenamento jurídico, que se fez necessário prever alguns mecanismos para revisar a decisão transi37 Idem, p. 400. 38 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 615. 39 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit. 30 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional tada em julgado, e um deles é a ação rescisória.40 É ação de competência originária dos Tribunais, cujos fundamentos estão expressamente previstos no mencionado art. 485, não admitindo interpretação extensiva. São eles: I- prevaricação, concussão ou corrupção do juiz da causa; II- juiz impedido ou absolutamente incompetente; III- dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou conluio com objetivo de fraudar a lei; IV- ofensa à coisa julgada; V- violação de literal dispositivo de lei; VI- baseada em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou na própria ação rescisória; VII- depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.41 Em verificando qualquer dessas hipóteses, a parte prejudicada pode propor ação rescisória destinada a obter a anulação da coisa julgada, permitindo a revisão do julgamento.42 Além de estar presente uma dessas hipóteses, é necessário que haja uma sentença que aprecie o mérito da demanda, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o pedido formulado. Necessário ainda a ocorrência da coisa julgada material sobre essa decisão, em função da preclusão da faculdade recursal sobre ela, e o não exaurimento do prazo previsto para a propositura da ação rescisória, que é de dois anos a partir do trânsito em julgado da decisão rescindenda. Para desconstituir uma sentença meramente homologatória ou atos judiciais que independem de sentença, utiliza-se a ação anulatória, como veremos a seguir, portanto, descabida está a ação rescisória para esses tipos de decisões. 40 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1, p 649. 41 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit. 42 Idem. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 31 AÇÃO ANULATÓRIA A denominada “Ação Anulatória de Ato Judicial” apenas rescinde sentenças homologatórias ou atos judiciais que não dependem de sentença, e não as lides apreciadas e decididas conforme o entendimento do magistrado Sua base formal encontra-se no art. 486 do CPC, conforme descrição abaixo: Art. 486. Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil.43 O termo “rescindidos” é utilizado inadequadamente no referido artigo, uma vez que não se trata de “rescindir”, mas sim de “anular” determinados atos. Assim, a ação anulatória é cabível sempre que houver fundamento para impugnar sentença homologatória que não é apta a alcançar a autoridade de coisa julgada material, a exemplo das homologatórias de divórcio consensual. Já para se definir a base material para este tipo de ação, deve-se realizar um exame do “ato judicial” com a finalidade de se concluir se encontra ou não guarida no direito material, ou seja, sempre que houver algum vício causador de anulabilidade de ato jurídico, será cabível ação anulatória. Ocorre que esse vício, esse fundamento, deve estar previsto em norma de direito material, não necessariamente em normas de direito civil, mas sim na lei civil, como, por exemplo, os vícios do consentimento como dolo, erro, coação, fraude, simulação, dentre outros. A expressão “nos termos da lei civil” deve ser interpretada de forma extensiva, e, acerca disso, explica-nos José Arnaldo Vitagliano, citando Humberto Theodoro Júnior: Os fundamentos da ação anulatória deverão ser procurados no direito material. A expressão “lei civil” do art. 486 deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo todos os ramos do direito material.44 43 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit. 44 THEODORO JÚNIOR, Humberto. A Ação Rescisória e o Problema da Superveniência do Julgamento da Questão Constitucional. In: Revista de Processo, 79. p. 167. Apud VITAGLIANO, José Arnaldo. Coisa julgada e ação anulatória. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=4206&p=1 > Acesso em: 26 fev. 2010. 32 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional Portanto, não devemos interpretar restritivamente a expressão “lei civil”, pois os motivos de anulabilidade são os previstos em quaisquer normas de direito material de todos os ramos, não apenas especificamente relativas ao direito civil. Importante fixar que não se aplica à ação anulatória o disposto no artigo 495 de nosso código processual, sendo certo que o prazo decadencial é o fixado pela norma de direito substancial aplicável ao caso concreto.45 No tocante à competência, é do juízo de primeira instância e, por força do artigo 108 do Código de Processo Civil, será atribuída ao mesmo juízo onde tramitou originariamente o processo que contém o ato que se pretende invalidar, anular. Seguirá o procedimento comum, ordinário ou sumário, conforme o valor da causa.46 Considerando que o julgamento de procedência do pedido deduzido na ação anulatória pode produzir importantes consequências no processo em que o ato anulado foi praticado, é necessário que este seja suspenso até o julgamento final da ação anulatória, no caso de ainda estar em andamento. Porém, se o processo principal findou-se antes de proposta a ação anulatória, deve ser retomado a partir do ponto em que o ato cassado foi praticado. QUERELA NULLITATIS Esse instituto contribuiu, juntamente com outros, para o surgimento da ação rescisória e até hoje é utilizado. Quando se verifica alguma nulidade na sentença e o processo está dentro do biênio a que se refere o artigo 495 do Código de Processo Civil, é possível que o interessado escolha entre o ajuizamento de ação rescisória e a querela nullitatis. Porém, se tiver fora do referido prazo, o interessado poderá propor a ineficácia da sentença apenas através da querela nullitatis, conforme os ensinamentos de Câmara em sua obra “Ação Rescisória”.47 Frequentemente se vê a afirmação de que esse instituto tem por finalidade declarar a nulidade de uma sentença. Ocorre, porém, que a querela nullitatis deve ser compreendida como um instrumento apto a declarar a ineficácia de uma sentença, e não sua nulidade. 45 CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 273. 46 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit. 47 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 277. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 33 Isso porque, como se sabe, a coisa julgada possui eficácia sanatória geral, fazendo desaparecer os vícios da sentença com o trânsito em julgado. Dessa forma, as sentenças impugnáveis através da querela nullitatis existem, até porque, se fossem elas nulas ou inexistentes, não se pensaria em remédios processuais para atacá-las, já que a inexistência não convalesce jamais. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL A coisa julgada, como já explanado, é apenas a imutabilidade que recai sobre a sentença. Portanto, quando se faz alusão à coisa julgada inconstitucional, na verdade, trata-se de uma sentença inconstitucional revestida de res iudicata (coisa julgada). Porém, é correto dizer “sentença inconstitucional”? Por um lado, a inconstitucionalidade é característica normalmente reservada às normas. Os atos de aplicação da norma, como a sentença, geralmente não recebem essa qualificação, e dessa maneira, também não estão submetidos aos mecanismos de controle de constitucionalidade. O que pode ocorrer é que tais atos podem ser aludidos como nulos, ineficazes ou inexistentes quando contrários à Carta Magna. De outro canto, embora não crie normas gerais e abstratas, a sentença declara a vontade da norma in concreto (em concreto). Assim, a sentença não pode ser considerada apenas como mero efeito das normas, justificando-se convencionar a atribuição do qualificativo “inconstitucional” às sentenças.48 Nesse mesmo sentido compreende-se a alusão à coisa julgada inconstitucional, até porque nesses casos verifica-se a gravidade inerente ao impedimento em revisar a sentença. De maneira sábia, Eduardo Talamini indaga: Daí que a primeira utilidade da expressão ‘coisa julgada inconstitucional’ está a enfatizar o cerne da questão: em que medida a garantia constitucional da coisa julgada deve prevalecer quando está conferindo estabilidade, ‘imunidade’, a um pronunciamento incompatível com outros valores e normas constitucionais?49 48 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 404. 49 Idem, p. 405. 34 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional Segundo ele, a expressão “coisa julgada inconstitucional” deixa claro que toda e qualquer discussão sobre quebra da coisa julgada só é legítima se norteada por parâmetros constitucionais.50 HIPÓTESES DE SENTENÇA (E COISA JULGADA) INCONSTITUCIONAL Como dito acima, a inconstitucionalidade aqui assume o sentido amplo de situação incompatível entre um ato e uma norma. Para melhor compreensão, analisemos cada uma das hipóteses. A SENTENÇA AMPARADA NA APLICAÇÃO DE NORMA INCONSTITUCIONAL Pode acontecer de a sentença se basear em: I - uma norma que já foi declarada inconstitucional em sede de controle concentrado ou que foi suspensa pelo Senado, depois de reconhecida incidentalmente sua inconstitucionalidade pelo Supremo; II - uma norma que, posteriormente, vem a ser declarada inconstitucional pelo controle concentrado; III - uma norma cuja inconstitucionalidade, embora existente, não é verificada em controle direto, ou porque ele não cabe ou porque nenhum dos legitimados pleiteou-o e, portanto, não é declarada, tampouco retirada do ordenamento jurídico pelo Senado.51 Ademais, frise-se que a norma inconstitucional não precisa estar na própria sentença. Pode ter sido aplicada no curso do processo e repercutida na sentença. Portanto, a norma pode ser de direito material como também de direito processual. Esta é a mais frequente hipótese de coisa julgada inconstitucional. 50 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 405. 51 Idem, p. 406. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 35 SENTENÇA AMPARADA EM INTERPRETAÇÃO INCOMPATÍVEL COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL Todo problema de interpretação é um problema de ofensa à norma. E esta é extraída do texto legal mediante a interpretação de seu sentido, e a interpretação deve estar sempre afinada conforme a Constituição. Ao aplicar uma norma infraconstitucional, o juiz deve ter o cuidado de utilizá-la, interpretá-la em conformidade com a Carta Magna. Tal como na hipótese “a” acima mencionada, a interpretação desconforme a Constituição Federal pode residir na sentença ou em momento anterior no processo. Pode também recair tanto em dispositivo de direito material como também em de direito processual. Ademais, ocorre da mesma forma já mencionada: I- antes do proferimento da sentença, já havia pronunciamento do STF dizendo que outra era a interpretação conforme; II- o pronunciamento do STF é posterior à sentença; III- o juiz interpreta a norma de modo contrário à Constituição, mas sem que haja qualquer pronunciamento sobre a inconstitucionalidade daquela interpretação, nem antes, nem após a sentença.52 SENTENÇA AMPARADA NA INDEVIDA AFIRMAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA NORMA A não-aplicação da norma erroneamente considerada como inconstitucional pode representar uma afronta a valores e normas constitucionais, além de ofensa à legalidade. A exemplo, quando uma norma que dava eficácia a algum direito ou garantia constitucional e, ao deixar de ser aplicada, verifica-se uma espécie de “inconstitucionalidade por omissão”.53 Quando o juiz interpreta um dispositivo como sendo inconstitucional, está adotando uma interpretação incompatível com a Constituição. Seria compatível a interpretação do dispositivo que permitisse seu aproveitamento. 52 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 408. 53 Idem, p. 409. 36 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional SENTENÇA AMPARADA NA VIOLAÇÃO DIRETA DE NORMAS CONSTITUCIONAIS OU CUJO DISPOSITIVO VIOLA DIRETAMENTE NORMAS CONSTITUCIONAIS Como exemplo, temos a sentença que nega (ou está baseada em negativa de) direito assegurado pela Constituição em norma autoaplicável, de caráter processual ou material, conforme explica-nos Talamini.54 Quando determinada questão está disciplinada apenas na Constituição, essa hipótese fica mais fácil de ser caracterizada, assim, a violação contida na sentença será sempre uma afronta às normas constitucionais. Ocorre, porém, que se torna mais problemática essa visualização quando, além da Constituição, uma norma infraconstitucional disciplina o mesmo tema, ora repetindo comandos constitucionais, ora especificando-os ou estabelecendo outras imposições que são razoáveis decorrências daqueles.55 Na hipótese acima surge a discussão a respeito da “ofensa reflexa”, que se trata de identificar quando e em que medida está sendo violada a Constituição e quando essa violação se refere a normas infraconstitucionais, refletindo apenas de forma indireta sobre a disciplina constitucional.56 Para que se configure a sentença inconstitucional, a ofensa à Constituição deve ser verificada autonomamente. Assim, quando a Constituição remete a disciplina de determinado tema à norma infraconstitucional, a ofensa à essa norma não constitui “inconstitucionalidade”. Há, porém, que se fazer a ressalva de que as normas infraconstitucionais devem sempre ser interpretadas à luz dos princípios previstos na Constituição. Como nas demais hipóteses, a violação pode incidir sobre norma processual ou material e situar-se na sentença ou em momento anterior ao processo, mas desde que tenha repercussão direta sobre a sentença. Consigne-se que a ofensa direta a princípio constitucional também se enquadra nesta hipótese de “sentença inconstitucional”, visto que os princípios possuem força normativa e nada menos que constituem as bases do sistema constitucional. 54 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 411. 55 Idem, p. 411. 56 Idem, p. 411. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 37 SENTENÇA QUE ESTABELECE OU DECLARA UMA SITUAÇÃO DIRETAMENTE INCOMPATÍVEL COM OS VALORES FUNDAMENTAIS DA ORDEM CONSTITUCIONAL Aqui se encaixa a conhecida hipótese de sentença que incorretamente afirma ou nega uma relação de filiação quando ainda não existiam as técnicas científicas que hoje existem, e que posteriormente a decisão é “desmentida” pelo exame de DNA. Este é, indubitavelmente, o exemplo mais importante de desconsideração da coisa julgada material. Em casos como esse, à época em que a sentença foi proferida, não houve qualquer violação às garantias processuais das partes, portanto, não se desconsiderou, nem se aplicou erroneamente alguma norma. Assim, não há uma violação constitucional na sentença, nem nos atos que a precederam. Nesse caso, a incorreção em manter essa sentença é o que constitui uma grave afronta a um valor fundamental. Ao declarar que uma pessoa é filha de outra, quando não corresponde à verdade e impedir que a decisão seja reanalisada é uma afronta ao mais relevante princípio constitucional: o da dignidade da pessoa humana. A violação aqui é uma repercussão, um reflexo da sentença. Nesse sentido, já temos vários julgados favoráveis à desconsideração da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade, veja-se: PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Coisa julgada decorrente de ação anterior, ajuizada mais de trinta anos antes da nova ação, está reclamando a utilização de meios modernos de prova (exame de DNA) para apurar a paternidade alegada; preservação da coisa julgada. Recurso especial conhecido e provido.57 O caso acima foi julgado com base na precedente ação de investigação de paternidade: 57 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=Resp+226436&&b=ACOR&p=true&t= &l=10&i=2 >. Acesso em: 10 fev. 2010. 38 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO. I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. II – Nos termos da orientação da Turma, “sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza” na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, “a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade”. IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.58 Note-se que é possível que uma sentença seja desconsiderada, a fim de respeitar certos princípios e valores constitucionais fundamentais, sendo mister que se identifiquem os critérios e mecanismos de um equilibrado 58 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=Resp+226436&&b=ACOR&p=true&t= &l=10&i=5>. Acesso em: 10 fev. 2010. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 39 juízo comparativo entre o valor desrespeitado e a coisa julgada, protetora da segurança jurídica. A QUEBRA ATÍPICA DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL Consiste em remédio processual equiparado à ação rescisória quando esta não couber, seja em razão do prazo de propositura ou dos pressupostos de cabimento. Nesse sentido, a quebra atípica possui caráter subsidiário. Na peça inicial, mister se faz demonstrar a pretensão em afastar a coisa julgada anterior por motivo de inconstitucionalidade, a ser devidamente demonstrada. É preciso demonstrar o juízo de ponderação, o balanceamento dos valores jurídicos envolvidos e também deixar claro que a sentença deve ser revisada e, consequentemente, proferida nova solução para o litígio, tendo em vista o grave defeito nela contida. O magistrado então aplicará a chamada flexibilidade no exame de aptidão da petição inicial. No que concerne à fixação da competência, duas soluções poderiam ser pensadas. A primeira, seria considerar que, por tratar-se de ação de conhecimento, devem ser aplicadas as regras gerais de competência tendo em vista o objeto do feito em que se formou a coisa julgada. A segunda seria a aplicação das regras de competência da ação rescisória. Ao adotar a primeira hipótese, a competência seria do juiz de primeiro grau, ainda naqueles casos em que o último pronunciamento foi de um tribunal superior. Todavia, essa fixação seria contraditória, porque a própria ação rescisória, em relação à qual a quebra atípica possui caráter subsidiário, é sempre de competência originária de um tribunal ou, ainda, daquele que por último se pronunciou. Isso evita que a sentença seja rescindida por um juiz de instância inferior ao que a proferiu. Seria teratologia um juiz de primeiro grau considerar “inconstitucional” e rescindir uma sentença acobertada pela coisa julgada proveniente de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, por exemplo. Mais acertada e coerente é a segunda hipótese, em que se aplicam as regras de competência da ação rescisória. Contra essa solução, poder-se-ia dizer que não se admite interpretação extensiva às hipóteses de competência dos tribunais, previstas em rol taxativo na Constituição Federal, as quais não podem sequer ser adicionadas por lei, tampouco por mera interpretação. 40 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional Ocorre, porém, que tais argumentos não procedem. Ao reconhecer o caráter rescisório da ação de quebra atípica da coisa julgada, preservase a competência dos tribunais. A Constituição Federal, ao aludir à “ação rescisória de seus julgados” abrange todas as ações destinadas à revisão de pronunciamento revestido de coisa julgada, emitido por esses tribunais. O eminente jurista Eduardo Talamini conclui que: [...] competente é o órgão que teria competência para a ação rescisória (típica) – sob pena de se criar contradição sistemática injustificável. Uma vez que o pronunciamento jurisdicional juridicamente existe, está acobertado pela coisa julgada e é eficaz, a competência para a ação de quebra deve submeter-se às mesmas regras que a ação rescisória (típica).59 Assim, seguindo a lógica da sistemática de nosso ordenamento jurídico, é competente para julgar a quebra atípica da coisa julgada o órgão que possui competência para julgar ação rescisória, uma vez que aquela nada mais é do que uma rescisão atípica, não-positivada. Enfim, depois dessa análise acerca da coisa julgada e seus diversos aspectos, ou seja, a evolução histórica, conceito, fundamentos, limites, análise constitucional, e sua revisão, constatamos que esse instituto não deve ser aplicado em sua integral dimensão, justamente por deverem ser respeitados outros institutos jurídicos que, por vezes, esbarram na imutabilidade da coisa julgada. Assim, deve-se considerar o conflito existente entre a coisa julgada e outros valores existentes em nosso ordenamento e procurar meios de rescindir decisões desse cunho. CONCLUSÃO Por não ser a tese da relativização da coisa julgada positivada em nosso ordenamento jurídico, o tema assiste tanta discussão. A principal delas reside no fato de que algumas decisões acobertadas pela autoridade da coisa julgada, ao não permitirem a mutabilidade, acabam por ferir princípios constitucionais. Tem-se observado que o tema da inconstitucionalidade tem as aten59 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 639. Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski 41 ções e as preocupações jurídicas voltadas aos atos legislativos, não havendo maior preocupação com os atos do Poder Judiciário, especialmente com as decisões em desconformidade com a Constituição Federal. Desse modo, torna-se indispensável repensar no controle dos atos jurisdicionais e, antes disso, na possibilidade de rescindir aqueles atos que contrariam a Magna Carta e detêm a proteção da coisa julgada. Assim, demonstrou este trabalho que a coisa julgada, ainda que acobertada pelo manto constitucional, não deve ser erigida ao patamar da indiscutibilidade, por ferir, em determinados casos, o próprio texto constitucional, e ferindo a Lei Maior, deixa de representar a segurança jurídica almejada pela sociedade. Ademais, existem em nosso ordenamento pátrio outras garantias tão relevantes e até mesmo mais relevantes, que devem se sobrepor à ideia da imutabilidade e indiscutibilidade das decisões transitadas em julgado, a exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana. Restou demonstrado que o rigorismo formal, justificado pelo desejo de segurança jurídica, não deve prevalecer sobre a verdade e a Justiça na pacificação dos conflitos, que é a finalidade maior da busca pela prestação jurisdicional. Tornar imutável uma decisão abusiva, sem embasamento probatório, mas unicamente para se respeitar prazo para a propositura de ação rescisória seria medida desrespeitosa para com outros ideais constitucionais, por isso faz-se necessário estudar e sistematizar meios para rescindir, independentemente dos meios típicos de rescisão, as sentenças acobertadas pela coisa julgada. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. _____. Manual de direito processual civil. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Disponível em: <http://www.stj.jus.br >. CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. _____. Lições de direito processual civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. 42 Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2. LEITE, Gisele. Desenvolvimento do direito processual. Disponível em: <http://www. jusvi.com/artigos/2165>. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1. _____. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1. MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1997. v. 1. _____. Manual de direito processual civil. 9.ed. Campinas - SP: Millenium, 2003. v.2. MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3. SOUZA, Leonardo Fernandes de. Breve histórico da coisa julgada. Disponível em: <http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3178>. TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 1. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de processo civil. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006/2007. v. 1. A INDÚSTRIA DOS DANOS MORAIS Clarissa Bottega1 Mariana Gomes de Oliveira2 INTRODUÇÃO O presente artigo tem sua problemática voltada à valoração da indenização pelos danos morais sofridos nas relações de consumo, através de breve análise da conceituação dos danos morais na história e a sua evolução trazida com a redação expressa pela nossa Constituição Federal de 1988. Atualmente, podemos verificar que os danos morais estão reconhecidos e são passíveis de indenização pecuniária na esfera jurídica, tendo em vista a previsão constante da Carta Magna. Porém, a grande celeuma que se instala se refere ao valor pecuniário reparador do dano sofrido na moral do suposto lesado. Sabemos que no mundo jurídico há grandes discussões acerca do exato valor da dor e da moral de alguém. Apesar de tais discussões, nossos julgadores ainda continuam inertes, e ainda esquecem a grande evolução cultural e tecnológica da nossa sociedade no momento de valorar a dor supostamente sofrida e a lesão à honra relatada nos autos. A atividade jurisdicional não deve se esquecer de atentar para tais discussões de extrema relevância para a sociedade. Sendo assim, será analisada a realidade da indenização dos danos morais através de julgados proferidos após a positivação dos danos morais na Constituição Federal de 1988, e em especial, traremos à baila jurisprudências, comparando a disparidade entre julgados proferidos pelos Juizados Especiais Cíveis do Estado de Mato Grosso. Através deste artigo vamos analisar que a sociedade, cada vez mais, não tem entendido o que realmente vem a ser dano moral e quais são suas reais consequências. No decorrer do texto, percebe-se que a problemática da quantificação perdura e que a jurisprudência vem para colaborar com 1 Mestra em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra, Portugal. Advogada e professora universitária da cadeira de Direito de Família e Bioética da Universidade de Cuiabá – Unic. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Cuiabá, MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas, RJ, membro do IBDFAM. 2 Acadêmica do 9º semestre do curso de Direito da Universidade de Cuiabá – Unic. 44 A indústria dos danos morais a divergência, em muitos casos não trazendo um consenso válido e justo, fazendo com que muitos sejam injustiçados e até mesmo desmoralizados com o quantum indenizatório, enquanto outros, que não necessitam de ressarcimento, são compensados de maneira exorbitante e enriquecedora. Com esse quadro, a notoriedade da industrialização dos danos morais torna as relações humanas instáveis e frágeis, subordinadas a um eventual produto moral industrializado. A honra, a moral e a dignidade, produtos da indústria dos danos morais, vendidos por preços de mercado, estão sendo valorados erroneamente pela jurisprudência pátria gerando uma enorme insegurança jurídica. A disparidade dos julgados tem promovido oscilações nas indenizações e expandido cada vez mais a “prostituição” dos danos morais, trazendo a sensação de ganhar na loteria ou em alguma espécie de prêmio fácil e lucrativo. Os magistrados, em análises medíocres, têm quantificado de forma aquém ou além do que realmente o indivíduo lesado merece, posicionando-se positivamente quanto à prenda indenizatória, ultrapassando limites pecuniários, inserindo em nossa sociedade a ideia do enriquecimento fácil e continuo. BREVES NOÇÕES CONCEITUAIS E PRINCÍPIOS BASILARES A problemática dos danos morais tem repercutido nas relações sociais, sobretudo, nas relações de consumo, que, em regra, devem ser abarcadas pelo respeito, e, principalmente, devem atentar-se ao estatuído no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal de 1988: a preservação e respeito à dignidade da pessoa humana3, que abrange a honra e a moral da pessoa, independentemente de raça, gênero ou nacionalidade. Os danos morais dificilmente eram admitidos pela doutrina dominante, graças ao fato da relutância natural em admitir um preço para a dor, na incerteza da ocorrência do dano moral, de não haver preceituação normativa prevendo a possibilidade da ocorrência de lesão à honra e na impossibilidade de sua avaliação e indenização. Com a promulgação da Carta Magna de 1988,4 hoje os danos morais, são previstos expressamente, facilitando, assim, a sua admissibilidade e eventual indenização. 3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum Compacto) 4 Idem. Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 45 A Constituição da República é inconteste ao preceituar a possibilidade de reparação aos danos morais sofridos pelo lesado. De forma emblemática dispõe no artigo 5°, incisos V e X que: V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral, ou à imagem; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.5 Os dispositivos constitucionais supracitados sedimentaram definitivamente a problemática da ausência de disposição expressa dos danos morais prevendo, ainda, eventual indenização nos casos em que a honra e moral sejam agredidas, seja com ou sem intenção de causar a lesão, independentemente de danos à esfera patrimonial. Atualmente a dignidade da pessoa humana é cânone constitucional. Qualquer ato que fere, macula ou agride este princípio, é passível de reparação por parte daquele que a lesou. A honra e a moral são elementos subjetivos, que compete a cada pessoa valorar, conforme a sua cultura e berço familiar. Averigua-se, então, que a Constituição Federal de 1988 trouxe grandes benefícios no campo da responsabilidade civil, no que tange aos danos morais causados a outrem, independentemente da relação que os causou, não assumindo, assim, um caráter taxativo, e sim, emblemático, dotado de grande valoração moral e jurídica tendo como norte a consciência moral da nossa sociedade. Graças a essa evolução, hoje se admite o dano moral pura e simplesmente, tornando-se, assim, desnecessária a ocorrência de danos na esfera patrimonial do ofendido. Cada um possui um entendimento do que é honra, e cada qual sabe o que fere ou não o seu decoro íntimo, e o que deve ser levado a juízo para possível reparação. Diante de tal conclusão averigua-se o quanto é difícil e complexa a conceituação dos danos morais, até mesmo porque, é um elemento que faz parte da honra subjetiva, e, além do mais, sua constatação e prova são extremamente difíceis e factíveis de mutação. 5 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Op. cit. 46 A indústria dos danos morais Analisando a doutrina, extraem-se inúmeros conceitos do que realmente vem a ser dano moral. Porém, oportuno destacarmos o brilhante conceito prelecionado pela doutrinadora Maria Helena Diniz, afirmando que “O dano moral vem a ser a lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica [...], provocada pelo fato lesivo”.6 Conclui-se então que, apesar do dano moral ser permeado de subjetividade, sendo variável o seu reflexo de pessoa para pessoa e difícil a sua constatação na prática jurídica, tais fatores não elidem o seu reconhecimento e possível reparação pecuniária, sendo totalmente admissível a sua ocorrência nas relações consumeristas, devendo também limitar o campo de sua incidência, para que assim não torne o instituto em algo banalizado e incoerente. Entretanto, apesar da previsão legal da possibilidade de ressarcir os danos morais, infelizmente, a nossa legislação não preceituou critérios claros para a valoração da indenização, deixando, assim, uma tipificação aberta, sem limites específicos reguladores. Sendo assim, atualmente, as indenizações devem se pautar na prudência e nos princípios norteadores da decisão do juiz, para que, assim, diante do caso concreto, o magistrado determine uma indenização que irá reparar o dano moral sofrido. Oportuno frisar alguns princípios que atualmente assumem extrema importância e que devem, em regra, abarcar as indenizações em relação aos danos ocasionados à moral e à honra de alguém, quais sejam: o livre convencimento do juiz, a razoabilidade e a proporcionalidade. O livre convencimento do juiz, consagrado no sistema processual brasileiro, apresenta extrema relevância no que tange à reparação dos danos morais, pois, como já citado, tais danos são permeados de subjetividade, sendo em cada circunstância analisado e constatado de forma diversa, o que contribui para que o magistrado tenha ainda mais prudência ao arbitrar a prenda indenizatória. Graças ao princípio do livre convencimento do juiz, que está previsto no Código de Processo Civil, em seu artigo 131,7 observa-se que o magistrado, ao proferir sua decisão, deve analisar cada caso concreto e, de acordo com a sua consciência, determinar a melhor solução para a lide que 6 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 88. 7 BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (1973). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum Compacto). Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 47 lhe foi apresentada, apreciando livremente as provas carreadas aos autos, sem deixar de expor as circunstâncias que lhe motivaram o decisium. Outro princípio que deve nortear as indenizações é o da razoabilidade, que funciona como uma espécie de sistema de freios e contrapesos no âmbito da responsabilidade civil. O princípio da razoabilidade funciona como um mediador, um aguilhão da consciência do julgador no momento em que este atribui a prenda indenizatória, objetivando, sobretudo, aplicar ao caso concreto uma decisão que seja razoável ao dano sofrido pelo lesado, sem que esse seja injustiçado ou obtenha um lucro fácil. Demonstrando sua experiência acerca do tema, Sérgio Cavalieri Filho assim comenta, em sua obra “Programa de Responsabilidade Civil”, sobre a necessidade da razoabilidade nas indenizações: [...] A razoabilidade é o critério que permite cotejar meios e fins, causas e consequências, de modo a aferir a lógica da decisão. Para que a decisão seja razoável é necessário que a conclusão nela estabelecida seja adequada aos motivos que a determinaram; que os meios escolhidos sejam compatíveis com os fins visados; que a sanção seja proporcional ao dano.8 Sendo assim, conclui-se que o princípio da razoabilidade visa evitar que a indenização se submeta a total discricionariedade do juiz, devendo, assim, ser abarcada por um valor considerado razoável, sendo tal decisão permeada pela prudência e princípios norteadores de uma indenização justa e em consonância com a lesão sofrida. Por fim, outro princípio basilar para alcançar uma indenização justa é o da proporcionalidade, conforme exposto em linhas anteriores. O magistrado deve levar em consideração as regras de convivência em sociedade, a teoria do homem médio no momento do reconhecimento e valoração dos danos morais, porém, por mais que a situação em apreço seja passível de um valor pecuniário determinado, o magistrado deverá também analisar a proporcionalidade, que nada mais é que analisar se a indenização é proporcional ao agravo sofrido pelo lesado, conforme previsão legal do Código Civil de 2002, que assim dispõe: 8 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 109. 48 A indústria dos danos morais Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.9 Conclui-se então que uma indenização considerada justa é aquela que é permeada pela prudência, pelos parâmetros considerados razoáveis e proporcionais pela doutrina dominante e, sobretudo, de acordo com o dano vivenciado pelo consumidor, ora reclamante de reparação pecuniária. FATORES GERADORES DE DANOS MORAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO Sucintamente, adentraremos nos motivos que ensejam eventuais indenizações oriundas das relações de consumo, dentre eles, de bom alvitre começar com um dos motivos mais discutidos atualmente no âmbito do Poder Judiciário: a negativação cadastral indevida do nome do consumidor. Tal motivo tem gerado inúmeras discussões e tem sido um dos principais fatores que levam o consumidor a propor ações requerendo vultosas indenizações contra o fornecedor, objetivando assim que este lhe conceda uma reparação aos danos morais sofridos com a inscrição indevida. Os bancos de dados de proteção ao crédito, atualmente, assumem papel extremamente importante nas relações de consumo baseadas no tempo e na confiança, sendo ferramenta essencial para o sucesso de tal relação jurídica. Entretanto, apesar da confiabilidade depositada nas informações prestadas por esses bancos de dados, muitos consumidores vêm sendo lesados diariamente com informações cadastrais inverídicas ou até mesmo infundadas, inseridas por fornecedores que por erro ou fraude são induzidos a negativar o nome de seus clientes, impedindo estes de adquirirem bens, produtos ou serviços. Devemos lembrar que “toda vez que um incidente altere o equilíbrio emocional, crie constrangimento ou atrapalhe a rotina do consumidor a lei autoriza a se pleitear a indenização por dano moral ao consumidor”.10 9 BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum Compacto). 10 SILVA, Américo Luiz de Toledo. O Dano moral e a sua reparação civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 272. Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 49 Segundo o desembargador Araken de Assis, um dos mais lúcidos juristas do Brasil, são deveras “bem conhecidos os reflexos terríveis que a inscrição no Serviço de Proteção ao Crédito e em outros bancos de dados causam às pessoas, ao lhes restringir ou vetar acesso ao crédito [...]”.11 Entretanto, não encontramos na nossa jurisprudência um consenso válido acerca da indenização devida quando ocorrer este fato gerador de danos, qual seja, a negativação indevida do nome do consumidor. A título de exemplo e por amor ao debate, destacam-se dois julgados conflitantes no que tange às indenizações por este fato gerador que nada mais é que um ato ilícito cometido injustamente pelo fornecedor. Veja-se: Posto isto e na consideração do que mais dos autos consta, JULGO PROCEDENTES os pedidos para CONFIRMAR a antecipação de tutela concedida às fls. 27, tornando-a definitiva, e, para DECLARAR inexistentes os débitos cobrados ao autor indevidamente, ainda, com fundamento nos artigos 186, 927, do C.C. e art. 5º, inciso X, da Constituição Federal, atento a toda a situação, particularmente diante a necessidade de se inibir a prática futura de condutas desta natureza CONDENO a ré a pagar ao autor a título de danos morais, a importância de R$ 10.200,00 (dez mil e duzentos reais) ou o equivalente a 20 (vinte) salários mínimos, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de 12% (doze por cento) ao ano, contados a partir da data da sentença. (1º Vara Cível da Comarca de Sinop/MT – Proc. nº. 425/2008 – Dr. Paulo Martini- publicado em 22/10/2010 – grifo nosso).12 Em contrapartida: Diante do exposto e, por tudo mais que dos autos constam, hei por bem em JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE a presente reclamação, com fundamento no artigo 269, inciso I, CPC, para condenar (...) a pagar em favor da reclamante, a título de dano moral, a quantia de R$ 1.000,00 (mil reais), devidamente corrigido e atualizado na seguinte forma: juros de mora de 1% (um por cento), e correção monetária 11 GRINOVER, Ada Pelegrini et. al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 480. 12 JURISPRUDÊNCIA. Dano moral. Disponível em: <http://servicos.tjmt.jus.br/processos/comarcas/dado sProcessoPri nt.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2010. 50 A indústria dos danos morais (INPC/IBGE) a partir desta data. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Havendo trânsito em julgado, o que certamente o Cartório certificará, sem a manifestação das partes, ao arquivo com baixas de estilo. Nada mais. Cumpra-se. (1º Juizado Especial Cível da Comarca de Cuiabá/ MT – Proc. nº. 1871/2008 – Dra. Serly Marcondes Alves – publicado em 28/08.2009 – grifo nosso).13 Note a disparidade das prendas indenizatórias: casos semelhantes (negativação indevida do nome do consumidor) com reconhecimento expresso pelo Juízo da ilicitude do ato praticado pelo fornecedor nos casos concretos, porém, com indenizações totalmente divergentes. Ainda, em caso semelhante, veja-se decisão reconhecendo pela total improcedência do pedido indenizatório, repita-se, pelo mesmo fato gerador, dano moral pela inscrição indevida nos órgãos de proteção ao crédito: [...] Isto é assim porque tal fato, in casu, resta irrelevante ante as inúmeras anotações no referido órgão, o que, sem sombra de dúvida, há muito tempo é de conhecimento do reclamante e, por ser costumeiro e contumaz, sabia que o seu nome estava cadastrado por outros motivos que não só o do caso ora relatado. Pelas razões acima expostas e mais que dos autos constam, julgo parcialmente procedente a pretensão formulada na inicial. Determino que o reclamado proceda a baixa do nome da reclamante no banco de dados do serviço de proteção ao crédito em razão dos débitos sub judice. Deixo de condenar a reclamada nas custas pleiteadas. Deixo de condenar em custas e honorários por não serem cabíveis nesta fase. Preclusa a via recursal, nada sendo requerido, arquive-se com as baixas necessárias. (7º Juizado Especial Cível – Proc. nº. 001.2008.009.893-8 – Dr. Dirceu dos Santos - Decisão proferida em 31/08/2009 – grifo nosso).14 Sendo assim, diante de tais julgados conflitantes, observa-se que nem sempre a jurisprudência guarda entendimento pacífico no que tange ao valor da prenda indenizatória, gerando, assim, insegurança jurídica para ambas as partes, pois, sempre irá depender da sorte, e não de requisitos 13 Idem. 14 JURISPRUDÊNCIA. Dano Moral. Disponível em: <http://projudi.tjmt.jus.br/projudi/listagens/ Download Arquivo?arquivo=403187>. Acesso em: 30 nov. 2010. Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 51 estabelecidos na doutrina e legislação pertinente à matéria em relação a um valor considerado proporcional e razoável ao caso apreciado pelo ilustre julgador. Importante destacar outro fato que está em evidência nos últimos tempos, qual seja, a ocorrência de atrasos nos transportes aéreos. As empresas de aviação aérea, se compararmos com alguns anos atrás, têm recebido uma enorme demanda e, por isso, e outros motivos diversos e alheios à vontade do consumidor, o transporte aéreo também tem sido deficiente no que tange à pontualidade, vindo dia após dia desrespeitando os consumidores, gerando transtornos diários e prejuízos que muitas vezes são incalculáveis. Tal fato também tem gerado repercussão no que tange às indenizações concedidas, e mediante a pesquisa realizada, oportuno trazer à baila dois julgados de casos semelhantes, porém com entendimentos divergentes. No primeiro caso, o voo atrasou aproximadamente 4 horas, e o magistrado entendeu por devido um quantum indenizatório no valor de R$ 10.400,00. Veja: ISTO POSTO, e de tudo mais que dos autos consta, diante da doutrina e da jurisprudência, e com fulcro no artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil c/c artigo 6º da Lei nº 9.099/95, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido inicial, e condeno a Reclamada, (...), pagar a parte Reclamante o valor de R$ 10.400,00 (dez mil e quatrocentos reais) por danos morais, acrescido de juros de 1% (um por cento) ao mês e correção monetária a partir do Presente decisum. (5º Juizado Especial Cível – Proc. nº. 001.2010.019.996-5 – Dr. Yale Sabo Mendes – Decisão proferida em 27/08/2010 – grifo nosso) Agora, veja o segundo caso, semelhante ao primeiro, porém, o Reclamante sofreu um atraso de voo correspondente a duas horas, e o nobre julgador entendeu que não seria cabível nenhuma indenização, tendo em vista que o alegado dano moral não ocorreu: Diante do exposto, com arrimo no artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO TOTALMENTE IMPROCEDENTE o pedido inicial formulado pelo Reclamante em desfavor da Reclamada. (4º Juizado Especial Cível – Proc. nº. 001.2010.022.279-1 – Dr. Sebastião Barbosa Farias – Decisão proferida em 09/03/2011 – grifo nosso) 52 A indústria dos danos morais Sendo assim, não basta apenas o atraso do voo para configuração dos danos morais, mas sim, deve observar se verdadeiramente houve atraso passível de gerar efetivos danos ao consumidor, a ponto de ser indenizado pelo atraso abusivo, ou até mesmo, atrasos que sejam passíveis de responsabilidade objetiva da empresa de transporte aéreo. Por fim, um dos fatores que têm gerado grande discussão no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis de Mato Grosso é o caso das filas de banco, amplamente pleiteada e fundamentada na Lei Municipal nº. 4069/2001.15 Inúmeros casos foram levados à apreciação dos magistrados, gerando condenações divergentes entre si, sendo levadas em grau de recurso para apreciação das Turmas Recursais Cíveis, que ultimamente vêm reduzindo drasticamente as indenizações concedidas pelo juiz monocrático. A título de exemplo, veja decisão recente da 6ª Turma Recursal Cível de Mato Grosso: RECLAMAÇÃO – INDENIZAÇÃO – FILA DE BANCO – PERMANÊNCIA POR MAIS DE UMA HORA – LEI MUNICIPAL Nº 4.069/2001 – DANO MORAL – NÃO OCORRÊNCIA. (6ª Turma Recursal - Recurso Inominado n°. 1122/2010 – Relator: Dr. Lídio Modesto da Silva Filho - publicado em 09/09/2010) Apesar do entendimento da brilhante Turma Recursal, recentemente o Juízo do 5º Juizado Especial Cível concedeu indenização no valor de R$ 5.000,00 ao cliente de agência bancária que ficou aproximadamente 36 minutos na fila. Veja a parte dispositiva do julgado, proferido em 21 de fevereiro de 2011: Julgo Parcialmente Procedente o Pedido Inicial, e CONDENO o reclamado, (...), ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), ao reclamante [...] (5º Juizado Especial Cível - Proc. n° 001.2010.041.459-6 – decisão proferida em 21/02/2011) Através dos julgados apresentados, vê-se que a posição dos Juizados Especiais Cíveis, em muitos casos, não tem buscado analisar a existência e a real extensão dos danos morais indenizáveis, concedendo decisões to15 Para consultar a citada php?pag=legislação. Lei acessar o link: http://www.camaracba.mt.gov.br/index. Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 53 talmente descabidas e arbitrárias, contribuindo assim para uma verdadeira industrialização dos danos morais. Dentre os julgados colacionados, concedendo vultosas indenizações por danos morais que, com uma simples análise dos autos, não passariam de meros aborrecimentos, analisa-se que o magistrado, por diversas vezes, atribuiu quantum debeatur com total arbitrariedade e discricionariedade, sem analisar no caso concreto os princípios norteadores de uma indenização justa e equânime. NATUREZA JURÍDICA DA INDENIZAÇÃO A doutrina não é uníssona em relação à natureza jurídica da indenização por danos morais. Aponta-se a existência de três correntes sobre o tema que serão sucintamente analisadas, para que assim haja maior compreensão da realidade jurídica da natureza dos danos morais na atualidade. A primeira delas prega que a indenização por danos morais tem intuito meramente reparatório ou compensatório, destituída de qualquer caráter punitivo ou disciplinador.16 Significa dizer que o julgador, no momento de arbitrar o quantum debeatur, analisaria, tão-somente, a função precípua de compensar o ofendido pelo dano causado pelo ofensor. Vale ressaltar que essa função é primordial no campo das indenizações em relação aos danos causados à esfera extrapatrimonial do ser humano, e tal função deve, em regra, estar inerente em todas as indenizações de cunho moral e pessoal. Pela segunda corrente, essa indenização teria caráter flagrantemente punitivo ou disciplinador. É a corrente que fundamenta os punitive damages do Direito norte-americano, baseada na teoria do desestímulo.17 Tal corrente justifica as indenizações que apenas visam ao caráter punitivo em relação ao ofensor, aplicando assim a teoria da punição da ação causadora do dano em relação ao ofendido e à sociedade. As indenizações baseadas na teoria do desestímulo analisam somente o ofensor, visando atribuir sanção pecuniária valorada de tal forma que este não venha mais a cometer o dano. 16 MENEZES, Luciana Duarte Sobral. Revista Jurídica Consulex, n°. 330. Brasília: Consulex, 2010. p. 63. 17 Idem. 54 A indústria dos danos morais Mas há ainda uma corrente intermediária, que sustenta que a indenização por danos morais estaria revestida de um caráter principal reparatório e de outro pedagógico ou disciplinador acessório, visando coibir novas condutas. Esse caráter acessório somente existiria se acompanhado do caráter principal reparador da indenização.18 Existe corrente doutrinária que defende a tríplice função da indenização por danos morais: compensatória; sancionatória ou punitiva; e preventiva, pedagógica ou dissuasória.19 Colaborando com o entendimento da função tríplice da indenização, veja a brilhante decisão: [...] COBRANÇA POSTERIOR AO CANCELAMENTO DA LINHA, CONTENDO LIGAÇÕES EFETUADAS DURANTE A CLONAGEM. COMPLETO DESRESPEITO POR PARTE DA EMPRESA DE TELEFONIA. APLICAÇÃO DAS FUNÇÕES COMPENSATÓRIA, PUNITIVA E DISSUASÓRIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. (2ª Turma Recursal Cível do Rio Grande do Sul - Recurso Cível nº. 71001558345 - Relatora: Vivian Cristina Angonese Spengler, Julgado em 06/08/2008 – grifo nosso).20 Contudo, prevalece na jurisprudência brasileira, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que a indenização por danos morais tem apenas dupla função: compensatória e punitiva, menosprezando-se o caráter preventivo e pedagógico dessa indenização.21 Nesse sentido tem-se decisão do Superior Tribunal de Justiça: RECURSO ESPECIAL. DNER. UNIÃO. SUCESSORA. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE CAUSADO EM RODOVIA FEDERAL. OMISSÃO DO ESTADO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. MÁ CONSERVAÇÃO DA RODOVIA FEDERAL. CULPA DA AUTARQUIA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ADEQUAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. (Superior Tribunal de 18 MENEZES, Luciana Duarte Sobral. Op. cit. 19 Idem. 20 JURISPRUDÊNCIA. Dano moral. Disponível em: <http://www3.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download /exibe_documento.php?codigo=1043317&ano=2008>. Acesso em: 31 nov. 2010. 21 MENEZES, Luciana Duarte Sobral. Op. cit. Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 55 Justiça - REsp nº. 763.531-RJ - 2005/0099984-1 – Relator: Ministro Carlos Fernandes Matias – publicado em 15/04/2008 – grifo nosso).22 Verifica-se assim que a função das indenizações por danos morais não deve limitar-se somente ao que tange à compensação sofrida pela vítima do ato ilícito mas também o julgador deve no momento de mensurar e quantificar o valor da indenização analisar, também, a condição econômica do ofensor, arbitrando um valor que expresse punição e ao mesmo tempo aprendizagem para que o causador do dano não venha a incorrer em tal prática novamente. Tais funções não devem ser desconsideradas pelo julgador, sob pena de tornar a indenização uma fonte de enriquecimento sem causa para a vítima, gerando até mesmo uma fonte de lucro ou prêmio de loteria, e em contrapartida, a indenização não deve ser tão insignificante ao ponto de não causar desestímulo e punição para o causador do dano. Contudo, oportuno lembrar que os julgadores têm se mostrado cada vez mais sensíveis à causa e depreendido inúmeros esforços, objetivando, assim pacificar entendimentos em relação a causas similares, para que assim, não gerem disparidades e injustiças. TEORIA DOS MEROS ABORRECIMENTOS Oportuno destacar a diferença entre danos morais e meros aborrecimentos cotidianos. Tal diferenciação não deve ser menosprezada pelo julgador no momento de analisar o caso concreto, pois, conforme exposto o que vemos hoje é o abarrotamento do Poder Judiciário com causas fundadas em meros desconfortos, exigindo indenizações descabidas, a ponto de até mesmo gerar insegurança nas relações e menosprezar a natureza do instituto da indenização em danos morais. O julgador deve, a todo tempo, estar atentado às situações trazidas a sua apreciação, pois sabemos que muitos transtornos diários podem ser resolvidos com um simples contato do consumidor com o fornecedor, não sendo necessário provocar a atividade judicante para causas simples e fáceis de serem resolvidas na esfera administrativa dos fornecedores. 22 JURISPRUDÊNCIA. Danos Morais. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ Abre_Do cumento.asp?sLink=ATC&sSeq=3817323&sReg=200500999841&sData=20080415&sTip o=5&Fo rmato=PDF>. Acesso em: 30 nov. 2010. 56 A indústria dos danos morais Havendo entendimento de que situações corriqueiras podem ser resolvidas entre as partes da relação de consumo, haverá de pronto uma drástica diminuição de processos reclamando compensações sem nexo de causalidade, e em contrapartida, estaremos atribuindo aos fornecedores à capacidade de resolverem pequenos transtornos junto aos seus clientes, sem a precisão de amargar um litígio judicial. Com intuito de contribuir com o debate, oportuno citar lição do doutrinador Pablo Stolze, que assim dissertou: Superadas, portanto, todas as objeções quanto à reparabilidade do dano moral, é sempre importante lembrar, porém, a advertência brilhante de Antônio Chaves, para quem ‘propugnar pela mais ampla ressarcibilidade do dano moral não implica no reconhecimento de todo e qualquer melindre, toda suscetibilidade exacerbada, toda exaltação do amor próprio, pretensamente ferido, à mais suave sombra, ao mais ligeiro roçar de asas de uma borboleta, mimos escrúpulos, delicadezas excessivas, ilusões insignificantes desfeitas, possibilitem sejam extraídas da caixa de pandora do Direito centenas de milhares de cruzeiros (grifo nosso)23 Vislumbra-se então que a reparabilidade dos danos morais não deve se confundir com a ocorrência de simples atos que representem pequenos incômodos ou desgastes diários, mas sim, para se pleitear por uma compensação, deve averiguar se realmente houve danos à esfera extrapatrimonial do consumidor, com a ocorrência de fatores já citados no presente estudo ou de outros que comumente entenderem aplicáveis e pertinentes de reparação em pecúnia. Não se inclui no rol dos danos morais indenizáveis os transtornos passageiros que sequer geraram danos efetivos, caso contrário, estar-se-ia admitindo que quaisquer inoportunos seriam passíveis de compensação, reconhecidos como atos ilícitos, provocando, assim, transtornos e indenizações injustas. Deve-se evitar que a sociedade confunda meros aborrecimentos com efetivos danos à moral e à honra, caso contrário, enfrentar-se-ia um grande problema para o futuro: pessoas cada vez menos intolerantes e mais oportunistas, buscando assim, indenizações indevidas ao caso concreto. 23 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 85. Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 57 Colaborando com tal entendimento, oportuno citar decisão proferida pelo E.TJMT, reconhecendo que meros aborrecimentos não refletem prejuízos a ponto de causar danos morais ou extrapatrimoniais: APELAÇÃO CÍVEL - DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO - MERO ABORRECIMENTO - RECURSO IMPROVIDO. O aborrecimento do consumidor não induz automaticamente à indenização e, não havendo elementos nos autos aptos a demonstrarem que o apelante sofreu efetivo prejuízo íntimo, humilhação, vergonha ou constrangimento públicos, não se pode falar em indenização por dano moral. (TJMT – Apelação 42213/2009 – julgado em 18/05/2010 – grifo nosso).24 O colendo Superior Tribunal de Justiça também se manifestou acerca dos meros aborrecimentos: CIVIL. DANO MORAL. NÃO OCORRÊNCIA. O recurso especial não se presta ao reexame da prova. O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se dirige (Recurso especial não conhecido.” (REsp. 403.919/MG, 4ª Turma/STJ, rel. Min. César Asfor Rocha, j. 15.05.2003, DJ. 04.08.2003 – grifo nosso).25 Conclui-se então que os meros incômodos vivenciados no dia a dia não possuem o condão de desencadear a possibilidade de indenização, pois a jurisprudência e a doutrina dominante não admitem tal possibilidade quando há ocorrência de pequenos transtornos comuns na sociedade moderna, limitando, assim, a indenização somente aos casos em que são nítidos os gravames ocasionados à esfera extrapatrimonial do consumidor diante da relação de consumo. 24 JURISPRUDÊNCIA. Meros Aborrecimentos. Disponível em: <http://servicos.tjmt.jus.br/process os/tribunal/ViewAcordao.aspx?key=3793da7e-60b1-4d4e-88be-b24d83622fc4>. Acesso em: 31 nov. 2010. 25 JURISPRUDÊNCIA. Meros Aborrecimentos. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronic a/Abre_Documento.asp?sSeq=407627&sReg=200200020320&sData=20030804&formato=P DF>. Acesso em: 30 nov. 2010. 58 A indústria dos danos morais ALGUNS PARÂMETROS PARA A INDENIZAÇÃO As atividades judicante e legiferante não poderiam ficar adstritas à problemática da quantificação da indenização nos casos de ocorrência de danos à honra e à moral, e por isso, na tentativa de solucionar tal celeuma jurídica, a atividade legislativa elaborou alguns projetos de lei, apenas a título de sugestão de tabela de quantificação dos danos morais. Oportuno citar o Projeto de Lei n°. 150/99,26 que foi elaborado pelo senador Antônio Carlos Valadares, sendo apresentado sob a justificativa de ausência de critérios objetivos para estipular o valor das indenizações em relação aos danos morais, concedidas pelos juízes brasileiros. Apesar de o projeto de lei ter sido elaborado sob a justificativa de mitigar a dificuldade enfrentada pelos magistrados no momento de mensurar e valorar a indenização, os dispositivos do projeto de lei infelizmente ferem um dos princípios basilares do instituto da indenização: o livre convencimento do juiz. O artigo 11 do Projeto de Lei nº. 150/99 assim preleciona: Art. 11. [...] § 1º Se julgar procedente o pedido, o juiz fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes níveis: I - ofensa de natureza leve: até cinco mil e duzentos reais; II - ofensa de natureza média: de cinco mil duzentos e um reais a quarenta mil reais; III- ofensa de natureza grave: de quarenta mil e um reais a cem mil reais; IV - ofensa de natureza gravíssima: acima de cem mil reais.27 Em que pese à importância de se elaborar critérios legais objetivos para a estipulação do quantum indenizatório, entende-se que o projeto de lei falhou ao preceituar a natureza dos danos e seus respectivos limites indenizatórios, o que, em tese, estaria maculando a conceituação de danos morais, e os princípios constitucionais vigentes, pois, conforme dispõe o artigo 5°, inciso X, da Constituição Federal de 1988, aquele que se sentir 26 BRASIL. Projeto de Lei do Senado Federal nº. 150 de 1999. Disponível em: <http://www.senado.gov. br /senadores/senador/antval/ATUAPAR/PROP/PROJ/pls150_99.htm>. Acesso em: 2 dez. 2010. 27 Idem. Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 59 lesado tem “assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.28 Entende-se que o instituto da indenização não deve possuir uma espécie de legislação rígida no que tange à quantificação, pois, caso contrário, o lesado, ao levar a juízo a sua causa, já saberia a qual valor teria direito, o que poderia ocasionar grave violação aos dispositivos constitucionais vigentes. Oportuno ressaltar que o projeto de lei em apreço atualmente encontra-se arquivado, desde 2007 na secretaria de arquivos da Câmara dos Deputados. Outra tentativa legislativa em solucionar a problemática foi o Projeto de Lei nº. 334/2008,29 elaborado pelo Senado Federal com base na análise jurisprudencial. Os senadores do Congresso Nacional, através desse projeto de lei, estipularam alguns parâmetros para a fixação de uma indenização mais justa e equânime. A iniciativa de regulamentar os valores do quantum indenizatório em sido reivindicada por muitos operadores do direito, principalmente julgadores, tendo em vista que tal limitação facilitaria, e muito, o momento de atribuir o valor da compensação na sentença, e também viabilizaria mais acordos entre as partes, pois o reclamante, no momento de interpor a ação, já teria uma noção do quanto iria receber a título de compensação. Oportuno citar uma breve síntese da justificativa do projeto: Por essa razão, entende-se adequado o momento para regular o tema, suprindo lacuna existente no nosso ordenamento jurídico por meio do estabelecimento de parâmetros e critérios claros para a fixação das indenizações, buscando, assim, conferir segurança jurídica às relações jurídicas (grifo nosso).30 Apesar da iniciativa do projeto de lei em estipular um valor mínimo e máximo de valores indenizatórios, acredita-se que, infelizmente, tal limitação fere alguns princípios norteadores do instituto da indenização, 28 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Op. cit. 29 BRASIL. Projeto de Lei n°. 334/2008, do Senado Federal. Disponível em: <http://legis.senado. gov.br /mate-pdf/13971.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2010. 30 Idem. 60 A indústria dos danos morais dentre eles, o princípio da proporcionalidade, pois, os valores mínimos, como exemplo, no caso de abalo ao crédito, que estipulou o mínimo indenizatório em R$ 8.300,00 (oito mil e trezentos reais),31 não apresentam muitos benefícios em relação ao ofensor, pois nem sempre um abalo ao crédito gerado por uma suposta negativação indevida possui o condão de estipular um quantum indenizatório consideravelmente elevado. Acredita-se que a iniciativa em estipular uma tabela de valores facilita a atividade judicante, porém, tal tabela não pode, de modo algum, representar um rol taxativo, e sim, apenas exemplificativo, preservando, assim, os princípios inerentes ao instituto: razoabilidade, proporcionalidade e livre convencimento do juiz. Por fim, importante destacar que o C.STJ recentemente preceituou alguns parâmetros para estabelecer o valor das indenizações pelos danos morais sofridos. Conforme destacado, o C.STJ tem se posicionado em relação à corrente da dupla função da indenização: a função reparadora, isto é, que visa reparar o dano sofrido injustamente pela vítima, e a função punitiva, que, sobretudo, visa punir o causador do dano com a contraprestação de uma indenização de caráter pecuniário. No momento da quantificação do dano moral, segundo posição do C.STJ, o julgador deverá analisar as condições econômicas do ofensor, que na maioria das vezes são empresas bem-sucedidas financeiramente, e também as condições econômicas do ofendido, para que este não venha a receber uma indenização com valor tão alto, que lhe gere enriquecimento sem causa. O C.STJ também tem estipulado tetos máximos de valores razoáveis e proporcionais a danos morais ocasionados por situações e fatores semelhantes, como no exemplo abaixo, os danos morais pelo abalo de crédito, que atualmente tem por base o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a título de indenização: [...] Com efeito, nas hipóteses de protesto de títulos, indevida inscrição em cadastros negativos de crédito, como SPC, SERASA e afins, ou devolução de cheques, esta Turma tem fixado o ressarcimento no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Nesse sentido, dentre outros: REsp n. 31 O art. 6º do Projeto de Lei nº. 334/2008 assim prevê: O valor da indenização por dano moral será fixado de acordo com os seguintes parâmetros, nos casos de: (...) IV – ofensa à honra: a) por abalo de crédito: de R$ 8.300,00 (oito mil e trezentos reais) a R$ 83.000,00 (oitenta e três mil reais). Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 61 850.159/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, unânime, DJ de 16.04.2007; REsp n. 815.339/SC, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, unânime, DJ de 19.03.2007 [...] (STJ. 4ª Turma – RESP 1.140.213/SP – Voto Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – 24/08/2010 – grifo nosso).32 Graças à edição da emenda acima, acredita-se que não haverá mais tantos julgados com valores absurdos e diversos, resgatando, assim, o principal objetivo do instituto dos danos morais: compensar o abalo à honra e à dor sofrida, com uma indenização de caráter pecuniário que irá proporcionar um breve gozo e sentimento de justiça. CONCLUSÃO Conclui-se que o dano moral é permeado de subjetividade, não possuindo assim uma conceituação expressa do que realmente venha a ser o dano à moral e à honra de alguém. Em contrapartida, tem-se o trabalho incansável da doutrina e da jurisprudência dos tribunais pátrios, em contribuir para a conceituação dos danos morais, que, conforme exposto, nada mais é que a ofensa ao bem de natureza extrapatrimonial do ofendido. A jurisprudência dos tribunais pátrios, em concordância com a doutrina, além de averiguar a ocorrência dos danos morais no caso concreto, também tem estipulado critérios norteadores da indenização devida, visando, assim, à inocorrência de enriquecimento sem causa ou de indenizações tão ínfimas que nem sequer chegam a compensar a dor sofrida pelo lesado. Apesar dos inúmeros esforços dos operadores do direito, e até mesmo da atividade legiferante em elaborar projetos de lei estipulando limites indenizatórios, ainda assim, encontram-se julgados com valores exorbitantes, concedendo indenizações que garantem ao ofendido a oportunidade de constituir uma poupança robusta e até mesmo uma espécie de prêmio de loteria, e em contrapartida, o empobrecimento daquele que teve que suportar o ônus da indenização, e por consequência a vulgarização do instituto dos danos morais. 32 JURISPRUDÊNCIA. Fixação de valores de indenização. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/ revis taeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=10851815&sReg=200900922470&sDat a=20100910&sTipo=51&formato=PDF>. Acesso em: 2 dez. 2010. 62 A indústria dos danos morais Pois bem, infelizmente, apesar do avanço jurisprudencial em conceder indenizações em patamares razoáveis e proporcionais, ainda há muito que se fazer para que a indenização pelos danos morais sofridos nas relações de consumo não incida em apenas mais uma discussão doutrinária infrutífera. Espera-se que, apesar da evolução dos julgados e da nova temática do C.STJ em agrupar fatores e casos semelhantes a limites pecuniários específicos, o dano moral não seja mais um meio de descrédito da Justiça, e nem muito menos, continue sendo um produto industrializado, vendido a preço de mercado, acessível àqueles que apenas buscam uma aposentadoria milionária. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum Compacto). BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum Compacto). BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (1973). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum Compacto). BRASIL. Lei Municipal n°. 4069/2001. Disponível em: http://www.camaracba. mt.gov.br/index.php?pag=legislação. Acessado em 31/03/2011. BRASIL. Projeto de Lei do Senado Federal nº. 150, de 1999. Disponível em: <http:// www.senado.gov.br/senadores/senador/antval/ATUAPAR/PROP/PROJ/pls150_99. htm>. Acesso em: 2 dez. 2010. BRASIL. Projeto de Lei n°. 334/2008 do Senado Federal. Disponível em: <http:// legis.senado.gov.br /mate-pdf/13971.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2010. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. GRINOVER, Ada Pelegrini et. al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: co- Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira 63 mentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. JURISPRUDÊNCIA. Dano moral. Disponível em: <http://servicos.tjmt.jus.br/processos/comarcas/dadosProcessoPrint.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2010. JURISPRUDÊNCIA. Dano Moral. Disponível em: <http://projudi.tjmt.jus.br/projudi/ listagens/DownloadArquivo?arquivo=403187>. Acesso em: 30 nov. 2010. JURISPRUDÊNCIA. Dano moral. Disponível em: <http://www3.tjrs.jus.br/site_phpconsulta/download/exibe_documento.php?codigo=1043317&ano=2008>. Acesso em: 31 nov. 2010. JURISPRUDÊNCIA. Danos Morais. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=3817323&sReg=2 00500999841&sD ata=20080415&sTipo=5&Fo rmato=PDF>. Acesso em: 30 nov. 2010. JURISPRUDÊNCIA. Meros Aborrecimentos. 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Alguns, talvez os mais críticos, chegam a afirmar que se trata de uma lei avançada no tempo para uma população ainda no atraso cultural e social. Independentemente das opiniões, o Estatuto da Criança e do Adolescente está aí e vem sendo aplicado pela maioria dos juízes nos Juizados da Infância e Juventude. Evidentemente que no decorrer dos vinte anos houve muitas falhas não da lei enquanto lei abstrata, mas na sua interpretação e aplicação na realidade social deste nosso amado país. Não se pode esquecer das limitações e interesses que muitas vezes podem prevalecer acima das leis que regulam o tratamento que deveria ser dispensado às crianças, adolescentes e jovens. Vinte anos. Para os otimistas o tratamento dispensado às crianças e adolescentes neste país mudou e muito para melhor. Para outros nem tanto. Para os pessimistas a violência contra crianças e adolescentes aumentou e, pior, está sendo praticada por adolescentes e jovens. Observam, ainda, apontando para os noticiários policiais diários que estão repletos de fatos que envolvem adolescentes e jovens, quando não autores, partícipes em crimes ou em delitos de menor gravame social. Como dito no prelúdio deste artigo é nosso intuito abordar algumas reflexões sobre este tema, em especial a questão das medidas socioeducativas como remédios públicos de retorno ao convívio social e, sobretudo, de repensar pedagogicamente um projeto de vida voltado para a inclusão familiar e social. 1 Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá-MT. Liderança comunitária. 66 As medidas socioeducativas O ESPÍRITO DA LEI: A PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Os vinte anos seguintes à aprovação da Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, vêm assistindo a uma mudança considerável quanto ao tratamento legal dispensado à criança e ao adolescente em conflito com a lei. A lei vigente até 1990 (Lei nº 6.697/79) considerava como causas da delinquência juvenil aquelas provenientes da situação irregular, sem, no entanto, analisar os motivos geradores da “irregularidade”. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), pelo contrário, aborda a questão a partir da consideração básica da situação de risco pessoal e social da criança e do adolescente tendo como sua maior causa a marginalização determinada pela pobreza e pelo abandono. Isso posto, vê-se que o ECA é uma doutrina baseada na total proteção dos direitos infanto-juvenis com seu alicerce jurídico e social na Convenção Internacional sobre os direitos da criança, adotada pela Assembleia Geral da Nações. Por sua vez, o Brasil adotou o texto, em sua totalidade, através do Decreto 99.710, de 2 de novembro de 1990, após ser retificado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo, nº 28, de 14 de setembro de 1990.2 Por essa razão, Edson Sêda considera as medidas de proteção como sendo o “coração do estatuto”, a “pedra angular” do novo direito, as providências adotadas por autoridades com poderes especiais sempre que crianças e adolescentes forem ameaçadas ou violadas em seus direitos.3 De fato, seguindo a orientação trazida pelo artigo 227 da CF/88, as crianças e adolescentes têm tratamento especial, abrangendo todos os direitos básicos, tais como à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à recreação, à convivência familiar e comunitária. Essas medidas garantem às crianças e adolescentes a proteção integral de seus direitos sempre que forem ameaçados ou violados. O Estatuto considera ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal (art. 103). Na verdade, não existe diferença entre os conceitos de ato infracional e crime, pois de qualquer forma são condutas contrárias ao direito, situando-se na categoria de ato ilícito. O importante a ser considerado está na lei definir a aplicação de medidas socioeducativas, marcadas por seu cunho pedagógico (art. 2 LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 14 3 SÊDA, Edson. Art. 98. In: CURY, Munir. Op. cit., p. 303. Cleidimil Leite da Cunha 67 112, ECA) e com sua finalidade essencialmente educativa. Essa proposta legal direciona-se, exclusivamente, aos adolescentes entre 12 e 18 anos de idade. Para os menores de 12 anos, que estejam em conflito com a lei, aplicam-se as medidas protetivas do art. 101, ECA, por iniciativa do Conselho Tutelar ou pelo juiz de Infância e da Juventude, caso no local não exista o referido órgão colegiado. As medidas socioeducativas são atividades impostas aos adolescentes comprovadamente autores de ato infracional. Destinam-se à proteção, recuperação e reinserção do adolescente à vida familiar e social. Os métodos para o tratamento e orientação tutelares são pedagógicos, sociais, psicológicos e psiquiátricos, visando, sobretudo, à integração do adolescente em sua própria família e na comunidade local. As medidas socioeducativas dividem-se em dois grupos diferenciados. As medidas não privativas de liberdade e as privativas de liberdade. O primeiro grupo de medidas é formado pela advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida. O segundo é formado pelas medidas socioeducativas da semiliberdade e internação. AS MEDIDAS NÃO PRIVATIVAS DE LIBERDADE Como a própria terminologia já diz, as medidas não privativas de liberdade não possuem o caráter da privação da liberdade. O adolescente permanece junto de sua família, no entanto é acompanhado pelo Poder Público no cumprimento de medidas educativas de integração social. Entre as privativas de liberdade, a primeira é a advertência feita pela autoridade judicial. A ADVERTÊNCIA O termo “advertência” deriva do latim advertentia e significa a admoestação, chamar a atenção, censurar, repreender.4 De todos os significados, o Estatuto da Criança e do Adolescente assumiu o de “admoestação”, “repreensão”, “censura”, destacando, porém, a finalidade pedagógica muito mais do que a punitiva. 4 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 30. 68 As medidas socioeducativas Junto com a admoestação, o adolescente infrator recebe da autoridade competente conselhos e orientações, perante seus pais ou responsáveis. Na verdade, a autoridade competente, no caso, o juiz da Infância e da Juventude (art. 146, ECA), somente ele tem a competência para aplicar medidas socioeducativas. “O Ministério Público não tem competência para aplicar as medidas socioeducativas. Qualquer sanção ao infrator só poderá ser imposta pelo juiz, observado o procedimento legal”.5 Ao representante do Ministério Público compete somente a formulação da representação e conceder a remissão (ECA, arts. 126 e 180, II), pois ao Poder Judiciário é reservada a aplicação de qualquer medida restritiva de direitos. O art. 115 prevê o termo de advertência que, segundo a correta lição de Jason Albergaria: Não será um instrumento rotineiro ou burocrático, pois há de prever o aspecto pedagógico da medida, prescrevendo os deveres do menor e as obrigações do pai ou responsável com vista à recuperação do menor que permanecerá em seu seio natural, à família, à escola e o emprego.6 Isso posto, com base na observação e nos comentários de colegas que exercem atividade profissional com adolescentes em conflito com a lei, tem-se a argumentar que a aplicação da medida socioeducativa da advertência surte os efeitos práticos desejados na medida em que o adolescente conta com o apoio e acompanhamento de sua família na recuperação. Observa-se, no entanto, que muitos pais somente se dão conta de que seu filho se envolveu na prática de algum ato infracional quando é chamado em juízo. A partir do tribunal, alguns pais, despertados pelas suas obrigações, passam a dedicar mais atenção ao filho, que se sente mais amado e valorizado. Acredita-se que é nessas condições que, via de regra, pode ocorrer a sua recuperação. Entretanto, quanto inexiste família, ou esta não se interessa pela recuperação do adolescente, ser em formação, onde prevalece o descaso e o desamor, quase sempre se nota que as práticas infracionais continuam, ensejando a aplicação de medidas socioeducativas mais rigorosas. 5 CHAVES, Antônio. Op. cit., p. 510. 6 ALBERGARIA, Jason. Direito do Menor. Belo Horizonte: UMA, 1979. p. 116. Cleidimil Leite da Cunha 69 A Lei nº 8.069/90 prevê a aplicação de “advertência” nas seguintes situações: a) ao adolescente, no caso de prática de ato infracional (art. 112, I, c/c o art. 103); b) aos pais ou responsáveis, guardiães de fato ou de direito, tutores, curadores, etc. (art. 129, VII); c) às entidades governamentais ou não governamentais que atuam no planejamento e na execução de programas de proteção socio educativos destinados a crianças e adolescentes (art. 97, I, “a”, e II, “a”). Na primeira hipótese incide a aplicação de medida socioeducativa, nas demais, medida de proteção. Visto de forma geral, o “ato de advertir”, no sentido de admoestar, já possui em sua estrutura semântica o caráter sancionatório e, ainda mais, quando externado oficialmente pela autoridade judiciária. Tem-se como importante a reflexão sobre o perigo da simplificação ou banalização dessa medida socioeducativa que pode surgir da visão dogmática do direito, visto como um mundo de puras normas racionais, lógico-abstratas, desvinculadas da realidade social vivida pelo adolescente. Isso posto, faz-se mister a prevenção contra a tentação de transformar a advertência prevista no art. 115 do ECA em mera rotina ou num ato de mera burocracia. Nesse sentido, é preciso levar-se em consideração que o adolescente “sob a admoestação é titular do direito subjetivo à liberdade, ao respeito e à dignidade” (artigos 15 a 18 do ECA), “é alguém que se apresenta na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (art. 6º, ECA) e que não pode ser exposto ou submetido, por quem quer que seja, a qualquer tipo de crueldade, violência e opressão física ou moral, nos termos do art. 5º do ECA. Por outro lado, coerentemente com a doutrina de proteção integral, que preside o Estatuto, e para que se atendam às exigências ético-jurídicas desse paradigma, o tratamento, tanto teórico quanto prático, das medidas socioeducativas, entre as quais se insere a advertência, pressupõe que sejam levadas em conta as contribuições da Psicologia Evolutiva e da Psicologia Educacional no que se refere ao entendimento que se deve ter do adolescente e de suas peculiaridades como pessoa em desenvolvimento. 70 As medidas socioeducativas No entendimento da Psicologia Evolutiva, a adolescência é: um período crítico de definição da identidade do eu cujas repercussões pode ser de graves consequências para o indivíduo e a sociedade... Representa uma fase crítica do processo evolutivo em que o indivíduo é chamado a fazer importantes ajustamentos de ordem pessoal e de ordem social. Entre esses ajustamentos temos a luta pela independência financeira e emocional, a escolha de uma vocação e da própria identidade sexual.7 A advertência como medida socioeducativa aplica-se principalmente aos adolescentes primários. Nesse caso ela prescinde de maiores formalidades, embora constitua um grande meio eficaz e educativo, capaz de surtir os desejados efeitos, quando o ato infracional resultou de conduta impensada e precipitada. A presença dos pais ou responsável torna-se indispensável à audiência, pois, se concorreram para o ato infracional, impõe-se-lhes, também, a medida prevista para eles (art. 129, VII, ECA). A advertência deve ser reservada aos atos infracionais leves, pois, dependendo de sua gravidade, existem outras medidas mais apropriadas que exigirão um procedimento formal, com garantia do contraditório. Toda medida aplicável ao adolescente deve visar à sua integração sociofamiliar, por isso a advertência deve ser a mais usada, como forma de tomada de consciência e de alerta, tanto para o adolescente como para os pais ou responsáveis que estejam concorrendo para o ato infracional. A OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO A obrigação de reparar o dano é a medida socioeducativa que melhor conjuga a função pedagógica e a preocupação com a lesão sofrida pela vítima. Entende-se, portanto, que o adolescente poderá obrigar-se a compor os prejuízos causados pela prática de seu ato infracional. Tal medida, antes de ser punitiva, pretende, de forma pedagógica, orientar o adolescente a respeitar os bens e patrimônio de terceiros. 7 MERVAL, Rosa. Psicologia da Adolescência. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 43-44. Cleidimil Leite da Cunha 71 Segundo o art. 159 do CC, a prática de um ato ilícito impõe ao seu autor a obrigação de reparar o dano, salvo nos casos de legítima defesa ou no exercício regular de um direito (art. 160, I e II, CC). Quando o dano for causado por ato ilícito atribuído a menor de 16 anos, responderão pela reparação exclusivamente os pais ou responsável. Se o menor tiver entre 16 e 21 anos, a lei o equipara ao maior no que concerne às obrigações resultantes de atos ilícitos em que for culpado. Nesse caso, o adolescente responderá solidariamente com seus pais, tutor ou curador pela reparação devida (artigos 156 e 1521, CC). O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos incompletos de idade e adolescente, aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade” (art. 2º, ECA). Por sua vez, a medida socioeducativa de obrigação de reparar o dano (art. 112, III) se aplica ao adolescente, assim entendido o menor que tenha entre 12 (doze) anos completos e 18 (dezoito) incompletos. Em breve regressão histórica observa-se que o Código de Menores de 1927 (Mello Matos), repetindo preceito do Dec. 16.272, de 20.12.1923, dispunha, no seu art. 68, § 4º que: São responsáveis pela reparação civil do dano causado pelo menor, os pais ou a pessoa a quem incumbia legalmente a sua vigilância, salvo se provar que não houve de sua parte culpa ou negligência. Por sua vez, o art. 103 do Código de Menores de 1979 (Lei nº 6.697/79) previa uma forma de simplificação do procedimento de composição do dano causado por menores autores de infração penal. Previa que a autoridade judiciária, “sempre que possível e se for o caso, tentará, em audiência com a presença do menor, a composição do dano por ele causado”. A composição do dano dava-se por acordo entre a vítima e o responsável legal pelo menor, homologado pelo juiz do processo instaurado para a apuração da infração penal, considerando-se o respectivo termo documento hábil para a execução, nos termos da lei processual civil. Com isso, evitava-se que a vítima tivesse de recorrer à ação de reparação de dano, resguardando-se o menor contra a maior repercussão social do seu ato e abreviando-se o tempo e os gastos da vítima na obtenção da reparação. 72 As medidas socioeducativas Segundo Anísio Garcia Martins, esse procedimento era salutar e vantajoso: Pois a reparação consentida, no fragor dos acontecimentos, torna-se efetiva e compensadora, além de ter o efeito psicológico de viva impressão na consciência do menor, que sente de imediato as consequências negativas dos seus atos.8 O Estatuto da Criança e do Adolescente avança no tratamento dado à matéria pelas leis anteriores. Prevê que a autoridade poderá ir além de uma tentativa de composição patrimonial, estabelecendo em seu favor a faculdade de determinar, isto é, de decidir, que o adolescente repare o dano decorrente de sua ação ilícita. Na aplicação do art. 116 do ECA, o Ministério Público e a autoridade judiciária devem dar preferência à solução mediada, evitando, dentro do possível, impor aos adolescentes infratores o seu ponto de vista, em termos de decisão. A autoridade competente, no dizer de Miguel Moacyr Alves Lima: Atuando dessa forma estará dando destaque à pedagogia da participação, tanto da vítima quanto do adolescente, e seu responsável, favorecendo uma compreensão dos fatos que transcenda o ‘meramente jurídico’ e o ‘meramente econômico’. Enfim, estará propiciando a todos e especialmente ao adolescente infrator, a oportunidade de experimentar uma vivência compartilhada, fortalecendo elementos e aspectos que podem conduzir a uma socialização ou ressocialização positiva, porque baseada na valorização de sua pessoa, de sua imagem, de sua opinião, de sua condição de ‘ser de relações’ e ‘sujeito de direitos’.9 Quando a solução mediada se apresentar inviável, a autoridade competente deverá sempre ter em mente o caráter socioeducativo da medida, estabelecendo formas de reparação, seja quanto à natureza, seja quanto à extensão, em que o potencial pedagógico seja visível aos interessados. Com isso, de um lado estará atendendo aos interesses da vítima em ver o seu prejuízo reparado com presteza, e, de outro lado, estará sendo fiel ao novo paradigma proposto pela Lei 8.069/90 em vigor no Brasil, que 8 MARTINS, Anísio Garcia. O Direito do Menor. Op. cit., p. 136. 9 LIMA, Miguel Moacyr Alves. Art. 116. In: CURY, Munir. Op. cit., p. 382. Cleidimil Leite da Cunha 73 exige para o adolescente infrator uma recepção, um processamento e um julgamento adequados à sua condição de pessoa humana e não de mero objeto, passivo e amorfo da ação judicante. A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE A prestação de serviços à comunidade (artigos 112, III e 117, ECA) apresenta-se como a medida mais apropriada para conscientizar o adolescente da importância do trabalho, proporcionando-lhe e a oportunidade de participar de atividades construtivas, e, assim, despertar para o senso de solidariedade e a consciência social. Consiste, portanto, a presente medida, na realização de tarefas gratuitas de interesse coletivo por parte do adolescente, realizadas junto a entidades assistenciais ou governamentais. Mencionadas tarefas, entretanto, não podem exceder a oito horas semanais, e o período estabelecido para a realização dos serviços nunca deverá ser superior a seis meses. O objetivo da presente medida não é punir o adolescente com a prestação de serviço para a vítima. As tarefas gratuitas e de interesse geral devem responder às exigências constitucionais e estatutárias relativas ao trabalho do adolescente. Assim, deverão atender às restrições do art. 67, ECA, relativas às condições de trabalho do adolescente. A jornada de trabalho nunca poderá ultrapassar oito horas semanais, distribuídas aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis de modo a não prejudicar a frequência à escola ou à jornada normal de trabalho (art. 117, § único, ECA). No direito penal, a prestação de serviços à comunidade constitui pena restritiva de direitos, que consiste na atribuição ao condenado de tarefas gratuitas junto a entidades assistenciais, tais como: hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais (art. 46, CP). É inegável o caráter jurídico moderno e a abrangência educativa e social desta medida, apesar do contrário daqueles que defendem a maior eficiência das penas privativas de liberdade. Nesse ponto vale ressaltar Evandro Lins da Silva: Já estamos assistindo a implantação das chamadas penas alternativas, outras formas de manifestar a reprovação social contra o crime que não seja o encarceramento do acusado: as interdições de direitos; o ressar- 74 As medidas socioeducativas cimento do dano ocasionado pelo crime; a multa; a prisão de fim de semana; a prestação de serviço gratuito à comunidade.10 A prestação de serviços à comunidade, como medida socioeducativa inserida num contexto comunitário abrangente (entidades assistenciais, etc), possibilita o alargamento da visão do bem público e do valor da relação comunitária, cujo contexto deve estar inserido numa verdadeira práxis, onde os valores de dignidade, cidadania, trabalho, escola, relação comunitária e justiça social sejam cultivados durante sua aplicação. A relevância de aplicação dessa medida reside não só na cultivação dos valores que dignificam o ser humano, mas também na inserção e exercício prático da cidadania, aqui entendida como efetivação de todos os direitos e garantias inerentes à pessoa elencados na lei e na Constituição. Inegáveis se fazem, pois, tais aspectos num país cuja perspectiva de vida digna, de planos pessoais em nível profissionalizante, conhecimento desalienante, realização pessoal, entre outros, sofrem profunda deterioração entre a população juvenil. A LIBERDADE ASSISTIDA A liberdade assistida (artigos 112, IV, 118 e 119, ECA) é considerada a medida mais adequada para a recuperação do adolescente que pratica ato infracional, sobretudo se ele puder permanecer junto da família. A medida tem como finalidade acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente promovendo sua recuperação e reinserção na sociedade. Os códigos de Menores de 1927 (Código Mello Mattos) e o de 1979 (Lei 6.697/79) já contemplavam esta medida para o menor infrator e para o menor com desvio de conduta (art. 2º, V e VI, c/c art. 38), sob o nome de liberdade vigiada. O legislador acolheu as Regras de Beijing (China), assumidas pela Organização das Nações Unidas, em 1985, onde a liberdade assistida foi abrigada como uma das várias opções ao alcance das autoridades competentes (regra 18), desde que obedecidos os princípios constantes da regra 17, que trata dos princípios que embasarão a decisão judicial e das medidas correspondentes. 10 SILVA, Evandro Lima. Sistema Penal para o Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 78. Cleidimil Leite da Cunha 75 17.1 - A decisão da autoridade competente pautar-se-á pelos seguintes princípios: a) a resposta à infração será sempre proporcional não só às circunstâncias e gravidade da infração, mas também às circunstâncias e necessidades do menor, assim como às necessidades do menor, assim como às necessidades da sociedade; b) as restrições à liberdade pessoal do menor serão impostas somente após estudo cuidadoso e se reduzirão ao mínimo possível c) [...] d) o bem-estar do menor será o fator preponderante no exame dos casos. 18.1 - Uma variedade de medidas deve estar à disposição da autoridade competente, permitindo a flexibilidade e evitando ao máximo a institucionalização. Tais medidas que podem algumas vezes ser aplicadas simultaneamente incluem: a) determinação de assistência, orientação e supervisão; b) liberdade assistida; c) [...]”11 Essas regras fizeram parte da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (Assembleia Geral da ONU, novembro de 1989), onde ficou evidenciada a variedade de dispositivos para utilização, sempre levando em conta a necessidade da aplicação da medida mais adequada à reintegração e o compromisso do adolescente no engajamento de seu papel como sujeito de direitos e construtor da sociedade.12 O art. 119, caput, estabelece que a liberdade assistida deve ser exercida por pessoa capacitada, com formação especializada, designada pelo juiz da Infância e Juventude, o qual deve orientar sua atuação junto ao adolescente, segundo as regras de conduta que lhe forem ditadas. Para realizar essa função, a pessoa poderá ser indicada por entidade ou programa de atendimento, que poderá ser o Conselho Tutelar (arts. 131 e 5º, ECA), já que, entre suas atribuições de aplicar as medidas de proteção (art. 101, I a VIII) , 11 Regras Mínimas das Nações Unidas para a administração da Justiça da Infância e da Juventude. Regras de Beijing-UNICEF. In: CURY, Garrido & Marçura. Op. cit. p. 257-263. 12 Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança – UNICEF. In: CURY, Garrido & Marçura. Op. cit., p. 250-251. 76 As medidas socioeducativas poderá também acompanhar a aplicação das medidas socioeducativas (art. 112, I a II), pois só assim haverá o cumprimento das disposições estatutárias.13 A liberdade assistida deve ser aplicada somente para os reintegrantes na prática de atos infracionais e que demonstrem tendência para reincidir, já que os primários devem ser apenas advertidos, com a entrega aos pais ou responsáveis. Deverá a autoridade judiciária, após a ocorrência do contraditório, com a oportunidade do adolescente de ampla defesa, fixar o prazo mínimo de 6 (seis) meses, podendo ser a qualquer tempo prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor (art. 118, § 2º). Compete ao orientador apresentar relatório do caso, mensalmente, ou conforme determinação judiciária, já que essa exigência, quanto menos espaçada, mais demonstrará a certeza do acompanhamento, que deve ser assíduo e frequente. No relatório deve constar a frequência e o aproveitamento escolar, bem como sua inserção em programa profissionalizante. Daí, para o bom êxito da medida, ser importante que o adolescente resida na comarca onde a medida lhe foi imposta pela autoridade competente. No ensinamento de Níveo Geraldo Gonçalves, sob o enfoque das ciências humanas: A liberdade assistida se define como modalidade de tratamento em meio livre, com prévio estudo médico-psicopedagógico e social da personalidade do adolescente, elaboração do programa de reeducação e sua execução por pessoal especializado. O tratamento seria o traço característico de liberdade assistida, mesmo diante do art. 118 do Estatuto que, de forma clara, teima em não usar a palavra tratamento. Fala em acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.14 Resta claro, portanto, que o conceito de liberdade assistida não é totalmente novo, uma vez que os artigos 118 e 119 do ECA enfatizam a palavra “assistida”. Com certeza, o Estatuto passou a entender os adolescentes 13 Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança – UNICEF. In: CURY, Garrido & Marçura. Op. cit., p. 250-251. 14 GONÇALVES, Níveo Geraldo. Conselho Tutelar – Justiça da Infância e da Juventude e Liberdade Assistida. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 56. Cleidimil Leite da Cunha 77 não como objetos de vigilância e controle (caso de liberdade vigiada dos códigos menoristas), mas como sujeitos livres e em desenvolvimento que requerem apoio e assistência no exercício de sua liberdade e nos primeiros passos da construção de um projeto de cidadania plena. Trata-se de uma medida judicial de cumprimento obrigatório para o adolescente que dela é sujeito. No entanto, pela natureza da medida, considere-se importante que esta se realize com o maior grau possível de boa vontade e comprometimento do adolescente, tendo como objetivo não só a satisfação da medida, entendida no cumprimento da pena, mas especialmente na sua conscientização e compromisso pela construção de um novo projeto de vida. Nesse sentido, entende-se ser o papel do orientador de suma importância e suas ações de apoio e assistência devem necessariamente ser antes discutidas e acordadas com o adolescente, respeitando seu direito de escolher seu próprio projeto. Assim, procurar-se-á fazer da liberdade um valor em si e que atue como principal elemento de reeducação e reintegração social. No dizer de Elias Carranza: A experiência de outros países que utilizam a liberdade assistida, aconselha iniciar cada passo com um documento de “compromisso”, subscrito pelo juiz ou quem ele designe, o orientador, o adolescente e um membro de sua família. Este ato de compromisso enfatiza o exercício de um código de lealdade e honra que se vincula com práticas sociais que envolvem e valorizam os próprios adolescentes que se sentem responsáveis pela sua recuperação.15 A aplicação dessa medida só será pertinente quando o adolescente pertencer a um grupo familiar que lhe sirva de referência. Todavia, não desconhecemos ser a reeducação de adolescentes infratores uma tarefa nem sempre fácil. É que durante o período de acompanhamento, o adolescente permanece no seio de sua família, e, sendo ela desestruturada, a reeducação e inclusão social se tornam mais complexas e difíceis. A liberdade assistida, como medida socioeducativa, reconstrói no adolescente os seus valores, a convivência familiar, social e profissional. Ela facilita ao adolescente a construção de um novo projeto de vida, fundado em novos valores e, consequentemente, em novas atitudes. 15 CARRANZA, Elias. Artigo 118. In: CURY, Munir. Op. cit., p. 380-390. 78 As medidas socioeducativas AS MEDIDAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE A expressão privativa já coloca de forma clara que se trata de perda da liberdade. O adolescente infrator passa cumpre a determinação judicial de reclusão ou de semirreclusão com o objetivo de repensar seu projeto de vida. A SEMILIBERDADE A semiliberdade, como regime e política de atendimento, é a medida socioeducativa destinada a adolescentes em conflito com a lei que trabalham e estudam durante o dia e, à noite, recolhem-se a uma entidade especializada que na esfera penal corresponde à casa do albergado. No estudo dessa medida, verifica-se, na prática, a existência de dois tipos de semiliberdade: o primeiro é proveniente do tratamento tutelar determinado desde o início pela autoridade judiciária, através do devido processo legal; o segundo caracteriza-se pela progressão de regime: o adolescente em regime de internação passa para a semiliberdade (art. 120, ECA). Como o próprio nome indica, a semiliberdade é um dos tratamentos tutelares que é realizado, em grande parte, em meio aberto, implicando, necessariamente, a possibilidade de realização de atividades externas, como a frequência à escola, as relações de emprego, etc. Caso não haja esse tipo de atividade, a medida socioeducativa perde sua finalidade. No período noturno, quando o adolescente deverá retornar à entidade especializada, os técnicos sociais deverão complementar o trabalho de acompanhamento, auxílio e orientação, sempre avaliando a progressão e o término do tratamento. Antônio Luiz Ribeiro Machado destaca a importância dessa medida e a atuação técnica como: Uma providência de alto valor terapêutico e eficaz para a integração social do adolescente, dando-lhe garantia e oportunidade de uma atividade útil e laborativa na comunidade, com o acompanhamento de uma equipe técnica especializada.16 16 MACHADO, Antônio Luiz Ribeiro. Código de menores comentado. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 54. Cleidimil Leite da Cunha 79 Os resultados a serem obtidos em programas de atendimento dependem muito do interesse e dedicação de uma equipe técnica devidamente preparada e de uma coordenação consciente e atuante na busca de resultados concretos. Em todas as formas de aplicação de medida socioeducativa, principalmente naquelas de regime de semiliberdade e internação, são obrigatórias a escolarização e a profissionalização, cuja operacionalização e recursos poderão ser captados na comunidade (art. 120, § 1º, ECA). Campos Costa e Seabra Lopes observam que: O regime de semiliberdade destina-se, sobretudo, aos menores, cuja agressividade, oposição ou instabilidade se explicam por frustrações afetivas, traumatismos da afetividade ou sentimentos de inferioridade; e, ainda, a adolescentes cuja inadaptação resulta da falta de direção familiar ou da extrema fraqueza dos pais. Daí a necessidade do exame médicopsicológico e social do menor candidato ao regime de semi-internato, que não será permitido sem essa prévia observação científica do menor.17 O Estatuto não fixa tempo de duração para o cumprimento da medida, sugere, no entanto, sua aplicação, no que couber, às disposições relativas à internação (art. 120, § 2º), inclusive quanto aos direitos do adolescente privado de sua liberdade (art. 124, ECA). Para Wilson Donizeti Liberati não existem limites e regras claras para a execução dessa medida socioeducativa e, por isso, autoridades judiciárias têm tido muita cautela em sua aplicação. Por se tratar de uma medida socioeducativa, os técnicos sociais deverão apresentar sistematicamente à autoridade judiciária relatórios circunstanciados do acompanhamento dispensado a cada um dos adolescentes enquadrados no cumprimento dessa medida socioeducativa. A INTERNAÇÃO A internação é a medida socioeducativa que priva o adolescente de sua liberdade e somente pode ser aplicada pela autoridade judiciária em decisão fundamentada (art. 106, ECA). 17 COSTA, A. Campos; LOPES, J. Seabra. Organização tutelar de menores. In PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 74. 80 As medidas socioeducativas Trata-se de medida excepcional, que só será determinada se for inviável a aplicação de outra medida socioeducativa sem jamais perder de vista a finalidade pedagógica da recuperação e reinserção do adolescente ao meio familiar e social. O art. 121 do Estatuto define a internação como medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração (art. 123, ECA). Os documentos internacionais que se referem explicitamente ao tema da privação de liberdade dos adolescentes são: a) Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude. Regras de Beijing – Unicef; b) Regras Mínimas das Nações Unidas para a proteção dos jovens privados de liberdade – Unicef; c) Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil – Diretrizes de Riad – Unicef. Todos esses documentos internacionais caracterizam a medida de privação de liberdade como sendo de: a) última instância; b) caráter excepcional; c) mínima duração possível. A Lei nº 8.069/90 distingue dois procedimentos jurídicos para a internação: o primeiro refere-se à internação provisória prevista no art. 183, a qual não pode ultrapassar o prazo máximo e improrrogável para a conclusão do procedimento iniciado com a representação que é de 45 (quarenta e cinco) dias. O segundo refere-se à internação por sentença judicial, fundamentada nos princípios da brevidade e da excepcionalidade. No dizer de Rosângela Martins Alcântara Zagaglia: A internação aplicada na sentença como medida socioeducativa tem características próprias, e, dentre outras, as principais são a brevidade, a excepcionalidade e o respeito à pessoa do adolescente, breve, porque deverá ser reavaliada periodicamente para possibilitar sua substituição (art. 133 c/c art. 99 da Lei nº 8.069/90) ou sua extinção a qualquer tempo: O mínimo de seis meses (art. 121, § 2º e o máximo de três anos § 3º) excepcional porque as demais medidas não se afiguram adequadas ao adolescente. Isto deve ser verificado após o término do Cleidimil Leite da Cunha 81 procedimento da apuração do ato infracional com todas as garantias constitucionais.18 A reavaliação não é da justiça da medida aplicada, mas do adolescente em face do ato cometido e sua repercussão no processo pedagógico de cumprimento da medida aplicada. Vale destacar que a medida de internação torna-se indispensável naqueles casos em que a natureza da infração e o tipo de condições psicossociais do adolescente fazem supor que, sem um afastamento temporário do convívio social, ele não será atingido por nenhuma medida terapêutica ou pedagógica e poderá, o que é mais grave, representar um risco para outras pessoas da comunidade, como, também, a internação na maioria dos casos representa uma garantia e segurança para sua própria vida. Pelo princípio do respeito ao adolescente em condição peculiar de desenvolvimento, o Estatuto reafirma que é obrigação do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhes adotar as medidas adequadas de contenção e segurança (art. 125). Ao efetuar a manutenção e a segurança dos infratores internos, as autoridades encarregadas não poderão, de forma alguma, praticar abusos ou submetê-los a vexame ou a constrangimento não autorizado por lei, Vale dizer que devem observar os direitos do adolescente privado de liberdade, alinhados no art. 124, ECA. Paulo Afonso Garrido de Paula, ainda na vigência do antigo Código de Menores, destacava: “que a finalidade da internação é educativa e curativa”.19 Educativa enquanto o estabelecimento reúne condições de proporcionar ao infrator escolaridade, profissionalização e cultura, instrumentalizando-o para enfrentar os desafios do convívio social. Curativa enquanto a internação se processa em estabelecimento ocupacional, psicopedagógico, hospitalar ou psiquiátrico e visa “curar” desvios de conduta do adolescente infrator. Concordando com a posição de Garrido, frisa-se que há um equívoco muito grande quando nos deparamos com a mentalidade popular de que a solução do problema do infrator é a internação. Na verdade, por 18 ZAGAGLIA, Rosângela Martins Alcântara. Algumas considerações interdisciplinares na aplicação das medidas socioeducativas, visando o melhor interesse do adolescente. In: PEREIRA, Tânia da Silva. Op. cit., p. 733. 19 GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. Menores, Direito e Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 94. 82 As medidas socioeducativas melhor que seja a entidade de atendimento, a internação deve ser vista e aplicada de forma excepcional, porque provoca no adolescente os sentimentos de insegurança, agressividade e frustração, acarreta um pesado ônus para o Poder Público e não responde às dimensões do problema. A internação terá eficácia, para Wilson Donizeti Liberati, se for considerada: Um meio para tratar o adolescente, e não um fim em si mesmo. Para tanto faz-se necessário a adoção de critérios rígidos na triagem para permitir o tratamento tutelar somente àqueles que dele necessitam. Disso decorre que a internação deve ser cumprida em estabelecimento especializado, de preferência de pequeno porte, no máximo 40 (quarenta) internos, e contar com profissionais altamente especializados nas áreas terapêutica, pedagógica e com conhecimentos de criminologia.20 Nesse sentido, Antônio Luiz Ribeiro Machado alerta que: A moderna pedagogia que orienta o tratamento do menor autor de infração penal, a tradicional disciplina imposta pela força e pela coação, deve ser substituída por um amplo processo que leve o menor a descobrir o seu próprio valor e, conscientemente passe a orientar a sua conduta segundo as normas de autodisciplina e autocontrole, tendentes à ressocialização.21 Em suma, a verdadeira terapia deve visar: a) à formação de uma personalidade sadia, despertando no adolescente a autoconfiança e a autoestima; b) ao domínio da agressividade; c) à sua readaptação social. A Lei nº 8.069/90 prevê para o cumprimento de medida de intervenção uma instituição fechada. O que não significa isolada do mundo, da sociedade. 20 LIBERATTI, Wilson Donizeti. Op. cit., p. 93. 21 MACHADO, Antônio Luiz Ribeiro. Código de menores comentado. Op. cit., p. 56. Cleidimil Leite da Cunha 83 Limitar a liberdade do adolescente em cumprimento de medida de internação em instituição fechada não significa segregar, esconder, ignorar ou excluir o adolescente do contexto social, ao contrário, é proporcionar educação, desenvolvimento, condições físico-mentais e sociais para habilitá-lo à vida comunitária. Somente instituições comprometidas com a pessoa humana com métodos psicopedagógicos que priorizam a dignidade, a autoestima e valores da solidariedade serão efetivamente capazes de realizar um trabalho de transformação dos adolescentes em conflito com a lei em cidadãos construtores de uma sociedade mais justa e igualitária. Dessa forma, mesmo que estas instituições cuidem de adolescentes privados de liberdade, têm a obrigação de saber que estes adolescentes não estão privados de seus sentidos, são seres humanos em situação peculiar de desenvolvimento, possuem sonhos e projetos a serem um dia concretizados. Com isso, essas instituições não podem perder a essência legal de escolas, porque na verdade são instituições pedagógicas com a responsabilidade civil de fazer com que estes adolescentes infratores redimensionem seu projeto de vida mediante a busca de uma autoestima positiva de si mesmo, ou seja, na busca de um sentido de vida e de uma capacitação profissional para enfrentarem as complexas exigências do atual mercado de trabalho. Com certeza, se trabalhando o essencial, no respeito à condição ontológica de seres em desenvolvimento, a recuperação e a reinserção social são possíveis. O importante será devolver à família e à sociedade um cidadão, consciente de sua capacidade, com autoestima e com um projeto de vida a ser construído. Compreende-se nessa abordagem reflexiva que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente só admitem privação de liberdade enquanto significa processo pedagógico de desenvolvimento do indivíduo adolescente em conflito com a lei. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nas últimas décadas, verificou-se é bem verdade, o agravamento da situação, através da constatação do alto índice de reincidência e da mudança de perfil do adolescente autor de atos infracionais, antes, caracterizados por pequenos furtos, porte de armas, e, atualmente, acrescidos por modificações significativas, ou seja, a essas infrações somam-se outras de maior 84 As medidas socioeducativas gravidade e complexidade jurídica, tais como: assaltos, homicídios, tráfico de drogas, estupros e latrocínios. A prática de atos infracionais cometidos por adolescentes e, até mesmo crianças, vem adquirindo no Estado de Mato Grosso, nos últimos anos, proporções mais significativas e preocupantes. Na atualidade, a demanda de adolescentes enquadrados em outras medidas que não a internação requer um acompanhamento sistemático e diferenciado pela própria complexidade de cada medida socioeducativa. A abrangência e o aumento do número de adolescentes em cumprimento a essas outras medidas têm proporcionado certo desequilíbrio no funcionamento, bem como, no andamento das atividades no Centro Acautelatório em Cuiabá, levando-se em consideração, especialmente, que os recursos humanos são insuficientes para atender às necessidades daqueles que não estão sob a medida de internação. Dessa forma, a sociedade exige que o Estado cumpra o seu papel na efetivação de medidas que venham minimizar essa problemática. Na solução desse problema e na necessidade urgente de implementação de programas de atendimento, a Constituição Federal (art. 227) e o artigo 125 do Estatuto da Criança e do Adolescente designam exclusiva e inequivocadamente o Estado como responsável absoluto para zelar pela integridade física e mental dos internos. Os programas socioeducativos de privação de liberdade deverão prever os aspectos da educação integrada, na perspectiva de proteção à vida dos adolescentes, inclusão social e, sobretudo, onde a cidadania seja o bem maior a ser preservado por todos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERGARIA, Jason Soares. Introdução ao Direito do Menor. Belo Horizonte: Lima, 1979. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13-7-1990. São Paulo: Saraiva, 2000. CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: LTr, 1997. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Cleidimil Leite da Cunha 85 GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. Menores, Direito e Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. GONÇALVES, Níveo Geraldo. Conselho Tutelar – Justiça da Infância e da Juventude e Liberdade Assistida. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. MACHADO, Antônio Luiz Ribeiro. Código de Menores Comentado. São Paulo: Saraiva, 1986. MARTINS, Anísio Garcia. Direito do Menor. São Paulo: LEUD, 1998. _____. O Direito do Menor. São Paulo: Universitária de Direito, 1998. MERVAL, Rosa. Psicologia da Adolescência. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Lei nº 8.069 de 13-7- 1990. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O Melhor Interesse da Criança: um Debate Interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e Ato Infracional. Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. A ILEGITIMIDADE PASSIVA DAS PESSOAS JURÍDICAS NAS AÇÕES CIVIS PÚBLICAS POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Darlã Martins Vargas1 Inegável nesses quase 19 (dezenove) anos as benesses trazidas pela Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº. 8.429, de 2 de junho de 1992. Evidentes, também, as inúmeras controvérsias e discussões jurídicas a respeito da aplicabilidade desta norma legal em razão de vários aspectos como, por exemplo, a necessidade da existência do elemento subjetivo doloso na conduta do agente em todos os tipos descritos pela lei, o excesso de tipos descritivos abertos, a aplicabilidade da lei aos agentes políticos, dentre tantas outras salutares controvérsias. Pois bem, com o passar dos anos, os Tribunais de nosso país foram delimitando a aplicabilidade da lei e, também, os excessos cometidos na interpretação de alguns a respeito da existência ou não dos atos ímprobos. Ocorre que, definitivamente, a doutrina e a jurisprudência pátrias concordaram que, para a prática do ato de improbidade, faz-se necessária a existência do elemento subjetivo na conduta do agente, não só com relação aos artigos 9º e 10, como, também, com relação ao artigo 11 da Lei nº. 8.429/92. Nesse sentido, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes julgados: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 11 DA LEI 8.429/92). ELEMENTO SUBJETIVO. REQUISITO INDISPENSÁVEL PARA CONFIGURAÇÃO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PACIFICAÇÃO DO TEMA NAS TURMAS DE DIREITO PÚBLICO DESTA CORTE SUPERIOR. SÚMULA 168/STJ. PRECEDENTES DO STJ. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NÃO CONHECIDOS. 1 Advogado, mestre em Direito Público pela Universidade de Franca-SP, professor da graduação e da pós-graduação da Universidade de Cuiabá-MT. 88 A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas... 1. Os embargos de divergência constituem recurso que tem por finalidade exclusiva a uniformização da jurisprudência interna desta Corte Superior, cabível nos casos em que, embora a situação fática dos julgados seja a mesma, há dissídio jurídico na interpretação da legislação aplicável à espécie entre as Turmas que compõem a Seção. É um recurso estritamente limitado à análise dessa divergência jurisprudencial, não se prestando a revisar o julgado embargado, a fim de aferir a justiça ou injustiça do entendimento manifestado, tampouco a examinar correção de regra técnica de conhecimento. 2. O tema central do presente recurso está limitado à análise da necessidade da presença de elemento subjetivo para a configuração de ato de improbidade administrativa por violação de princípios da Administração Pública, previsto no art. 11 da Lei 8.429/92. Efetivamente, as Turmas de Direito Público desta Corte Superior divergiam sobre o tema, pois a Primeira Turma entendia ser indispensável a demonstração de conduta dolosa para a tipificação do referido ato de improbidade administrativa, enquanto a Segunda Turma exigia para a configuração a mera violação dos princípios da Administração Pública, independentemente da existência do elemento subjetivo. 3. Entretanto, no julgamento do REsp 765.212/AC (Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 23.6.2010), a Segunda Turma modificou o seu entendimento, no mesmo sentido da orientação da Primeira Turma, a fim de afastar a possibilidade de responsabilidade objetiva para a configuração de ato de improbidade administrativa. 4. Assim, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento no sentido de que, para a configuração do ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/92, é necessária a presença de conduta dolosa, não sendo admitida a atribuição de responsabilidade objetiva em sede de improbidade administrativa. 5. Ademais, também restou consolidada a orientação de que somente a modalidade dolosa é comum a todos os tipos de improbidade administrativa, especificamente os atos que importem enriquecimento ilícito (art. 9º), causem prejuízo ao erário (art. 10) e atentem contra os princípios da administração pública (art. 11), e que a modalidade culposa somente incide por ato que cause lesão ao erário (art. 10 da LIA). 6. Sobre o tema, os seguintes precedentes desta Corte Superior: REsp Darlã Martins Vargas 89 909.446/RN, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 22.4.2010; REsp 1.107.840/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 13.4.2010; REsp 997.564/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 25.3.2010; REsp 816.193/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 21.10.2009; REsp 891.408/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJe de 11.02.2009; REsp 658.415/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 3.8.2006. No mesmo sentido, as decisões monocráticas dos demais integrantes da Primeira Seção: Ag 1.272.677/RS, Rel. Herman Benjamin, DJe de 7.5.2010; REsp 1.176.642/PR, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Dje de 29.3.2010; Resp 1.183921/MS, Rel. Min. Humberto Martins, Dje de 19.3.2010. 7. Portanto, atualmente, não existe divergência entre as Turmas de Direito Público desta Corte Superior sobre o tema, o que atrai a incidência da Súmula 168/STJ: “Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado”. 8. Embargos de divergência não conhecidos”2 (negrito nosso). No mesmo sentido, ainda: ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE. LEI 8.429/92. ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA. IMPRESCINDIBILIDADE. 1. A ação de improbidade administrativa, de matriz constitucional (art.37, § 4º e disciplinada na Lei 8.429/92), tem natureza especialíssima, qualificada pela singularidade do seu objeto, que é o de aplicar penalidades a administradores ímprobos e a outras pessoas - físicas ou jurídicas - que com eles se acumpliciam para atuar contra a Administração ou que se beneficiam com o ato de improbidade. Portanto, se trata de uma ação de caráter repressivo, semelhante à ação penal, diferente das outras ações com matriz constitucional, como a Ação Popular (CF, art. 5º, LXXIII, disciplinada na Lei 4.717/65), cujo objeto típico é de natureza essencialmente desconstitutiva (anulação de atos administrativos ilegítimos) e a Ação Civil Pública para a tutela do patrimônio público (CF, art. 129, III e Lei 7.347/85), cujo objeto típico é de natureza preventiva, desconstitutiva ou reparatória. 2 STJ – EResp nº. 875.163 – RS - Rel. Min. Mauro Campbell Marques – 1ª. Seção – Dje de 23/06/2010. 90 A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas... 2. Não se pode confundir ilegalidade com improbidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência dominante no STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos culposa, nas do artigo 10 (v.g.: REsp 734.984/SP, 1 T., Min. Luiz Fux, DJe de 16.06.2008; AgRg no REsp 479.812/SP, 2ª T., Min. Humberto Martins, DJ de 14.08.2007; REsp 842.428/ES, 2ª T., Min. Eliana Calmon, DJ de 21.05.2007; REsp 841.421/MA, 1ª T., Min. Luiz Fux, DJ de 04.10.2007; REsp 658.415/RS, 2ª T., Min. Eliana Calmon, DJ de 03.08.2006; REsp 626.034/RS, 2ª T., Min. João Otávio de Noronha, DJ de 05.06.2006; REsp 604.151/RS, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 08.06.2006). 3. É razoável presumir vício de conduta do agente público que pratica um ato contrário ao que foi recomendado pelos órgãos técnicos, por pareceres jurídicos ou pelo Tribunal de Contas. Mas não é razoável que se reconheça ou presuma esse vício justamente na conduta oposta: de ter agido segundo aquelas manifestações, ou de não ter promovido a revisão de atos praticados como nelas recomendado, ainda mais se não há dúvida quanto à lisura dos pareceres ou à idoneidade de quem os prolatou. Nesses casos, não tendo havido conduta movida por imprudência, imperícia ou negligência, não há culpa e muito menos improbidade. A ilegitimidade do ato, se houver, estará sujeita a sanção de outra natureza, estranha ao âmbito da ação de improbidade. 4. Recurso especial do Ministério Público parcialmente provido. Demais recursos providos3 (negritamos). Com efeito, entretanto, não raras vezes, encontram-se inúmeras ações civis públicas por ato de improbidade administrativa ajuizadas contra pessoas jurídicas (empresas) e, também, contra seus dirigentes (diretores, sócios, proprietários, etc), além, evidentemente, dos agentes públicos. Acontece que a responsabilidade inerente ao ato de improbidade administrativa é, e sempre será, subjetiva, como, aliás, percebe-se das decisões do egrégio Superior Tribunal de Justiça, antes colacionadas. Pois bem, nesse sentido, define-se o elemento subjetivo como sendo o 3 STJ – Resp. nº. 827.445 – Re. Min. Luiz Fux – 1ª Turma – Dje – 08/03/2010. Darlã Martins Vargas 91 coeficiente moral da ação humana. Liame psicológico entre o agente e o resultado da infração penal. Atualmente, com a tendência subjetivadora do Direito Penal, a responsabilidade objetiva está sendo excluída, constituindo dado essencial do ilítico. Na legislação brasileira compreende o dolo e a culpa, no tocante aos crimes, e a voluntariedade, relativamente ‘as contravenções penais4. Indiscutível, portanto, que se trata de uma conduta humana, incapaz de ser praticada por pessoa que detém existência ficta, irreal ou de pura abstração, nos dizeres de Savigny, societas delinquere non potest, base da teoria da ficção. Ressalve-se o não-desconhecimento da teoria da realidade defendida por Otto Gierke, todavia, analisaremos sua aplicabilidade ou não nos fatos discutidos mais adiante. De imediato, cabe registrar que, à unanimidade doutrina e jurisprudência estabeleceram que a responsabilidade por ato de improbidade administrativa é subjetiva, excluindo-se de forma plena e total a responsabilidade objetiva, considerando, inclusive, que a ação civil por ato de improbidade administrativa “se trata de uma ação de caráter repressivo, semelhante à ação penal” (julgado anterior). Ninguém discorda que a Lei de Improbidade Administrativa tem forte conteúdo penal quando, na fixação de suas sanções, prevê a indisponibilidade de bens e o ressarcimento do erário, além da perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos do réu (art. 12). Nesse sentido, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, em análise da Reclamação 2138/DF – Distrito Federal –, citando Cláudio Ari Mello, referia que “o condenado por improbidade administrativa ver-se-á na indigna posição de não-cidadão, em face da perda dos direitos políticos (Improbidade Administrativa – Considerações sobre a Lei n°. 8.429/92. In: RT – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, 3ª, n°. 11, p. 58, abr/jun 95). O ex-ministro, antes citado, complementou sua posição, afirmando: É evidente, pois, que, tal como anotado pela doutrina, a sentença condenatória proferida nessa peculiar “ação civil” é dotada de efeitos que, em alguns aspectos, superam aqueles atribuídos à sentença penal condenatória, é certo, pois, que a condenação proferida na ação civil de 4 Disponível em: <HTTP://www.jusbrasil.com.br/topicos/290985/elemento subjetivo>. 92 A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas... que trata o art. 37, § 4°, da Constituição, poderá conter, também, efeitos mais gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal. Não é preciso dizer, também, que muitos dos ilícitos descritos na Lei de Improbidade configuram, igualmente, ilícitos penais, que podem dar ensejo à perda do cargo ou da função pública, com efeito da condenação, como fica evidenciado pelo simples confronto entre o elenco de “atos de improbidade”, constante do art. 9° da Lei n°. 8.429/92, com os delitos contra a Administração praticados por funcionário público (Código Penal, art. 312 e seguintes, especialmente os crimes de peculato, art. 312, concussão, art. 316, corrupção passiva, art. 317, prevaricação, art. 319, e advocacia administrativa, art. 321). Tal coincidência ressalta a possibilidade de incongruências entre as decisões na esfera criminal e na ‘ação civil’, com sérias consequências para todo o sistema jurídico”. (Competência para julgar a improbidade administrativa. In: Revista de Informação Legislativa, n. 138, abril/junho 1998, p. 213/214). Nesse sentido também manifestou-se o ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça, na Reclamação 591, ao afirmar: Parece-me, contudo, Sr. Presidente, que a ação tem como origem atos de improbidade que geram responsabilidade de natureza civil, qual seja, aquela de ressarcir o erário, relativo à indisponibilidade de bens. No entanto, a sanção traduzida na suspensão dos direitos políticos tem natureza evidentemente, punitiva. ...Por isso, Sr. Presidente, enxergando nessas sanções natureza eminentemente punitiva, acompanho o Sr. Ministro Eduardo Ribeiro e aqueles que o seguiram. Evidencia-se, smj., que não há dúvidas com relação ao conteúdo penal, inserto nas punições previstas pela Lei de Improbidade Administrativa – Lei n°. 8.429/92. Com acerto, portanto, a exclusão da possibilidade de haver a responsabilidade objetiva quando da prática de atos de improbidade administrativa. Nada obstante, depreende-se da doutrina e da jurisprudência de nosso país a possibilidade de a pessoa jurídica figurar no polo passivo deste tipo de demanda, considerando-se para tanto a amplitude trazida pelo artigo 3º da Lei de Improbidade Administrativa que estabelece: Darlã Martins Vargas 93 Art. 3º. As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta. Nesse sentido, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves5 defendem que: Pensamos que ante a amplitude conferida pelos arts. 3º (As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta) e 6º (No caso de enriquecimento ilícito, perderá o agente público ou terceiro beneficiário os bens ou valores acrescidos ao seu patrimônio) da Lei de Improbidade, nada impede a sua inclusão como ré da ação civil pública, devendo figurar, nesta condição, ao lado de seus sócios e administradores (aqueles que tenham praticado atos de gestão dando ensejo à improbidade). De se notar que, a partir da teoria da realidade técnica, confere-se às pessoas jurídicas a capacidade para aquisição e exercício de direitos, capacidade para a prática de atos e negócios jurídicos, enfim. Pode-se afirmar, deste modo, que possuem elas uma vontade distinta da vontade de seus integrantes, sendo “dotadas do mesmo subjetivismo outorgado às pessoas físicas” (Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, p. 105). Não só vontade, como também existência distinta da de seus membros (art. 20 CC). Assim, ao praticarem atos ilícitos, responderão com seu patrimônio, sujeitando-se ao sancionamento adequado à sua realidade jurídica. Registre-se, ademais, que o fundamento geral para o aceite da pessoa jurídica como parte passiva na ação civil de improbidade administrativa tem por base a tese dos ilustres autores suso nominados. Com a devida vênia dos mestres, ousamos discordar de tal posicionamento em razão dos seguintes aspectos e fundamentos: Primo, não há dentre os estudiosos de Direito Administrativo qualquer discussão a respeito da origem da improbidade administrativa, ou seja, é latente que o nascimento deste ilícito dá-se pela prática de um ato administrativo. 5 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco Alves. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 562-563. 94 A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas... O mestre em Direito Administrativo Waldo Fazzio Júnior6, citando outros ilustres autores, de forma escorreita a respeito do tema, assim se manifesta: Os atos administrativos são manifestações de vontade, emissões determinativas intencionais. Michel Stassionpoulos (1954, p. 37) desenha, com linhas precisas a natureza do ato administrativo, ao apresentá-lo como ‘la déclaration de volonté émise par um organe administratif ET déterminant d’une façon unilatérale CE que este Du droit dans um cãs individuel’.7 Ato administrativo é o ato de agente público, daquele que encarna o Poder Público. Resulta de intenção: é uma atuação deliberadamente dirigida a um fim. Se esse objetivo é o atendimento do interesse público primário ou interesse social, o ato administrativo se insere na linha de regularidade administrativa, da boa administração. Dessa forma, indiscutível, igualmente, que o ato administrativo depende da conduta humana, manifestada através da vontade do agente. Secundo, é sabido por aqueles que lidam e estudam o direito administrativo que os tribunais superiores (STF e STJ), em inúmeras decisões (p. ex. aquelas antes citadas) já reconheceram o caráter penal de algumas das sanções normatizadas pelo artigo 12 da Lei nº. 8.429/92. Ora, se reconhecido pelos doutos que a natureza de algumas sanções insertas na Lei de Improbidade Administrativa é, também, penal e por vezes, mais grave que aquelas, como, por exemplo, na perda da cidadania (perda dos direitos políticos), evidencia-se, sobremaneira, que a interpretação aplicada aos tipos que descrevem a improbidade administrativa deverá ser de forma restritiva e não ampliativa, como defendido pelos ilustres Émerson Garcia e Rogério Pacheco Alves. De se registrar que, não se pode olvidar o excessivo caráter aberto dos tipos descritivos da Lei de Improbidade Administrativa que, aliás, 6 JÚNIOR, Waldo Fazzio. Atos de improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2007. p.161-162. 7 Nesse rumo, Miguel Reale (1980, p. 22) declara que o ato administrativo é “toda forma de realização, em casos concretos, de interesses configurados tipicamente em lei, em virtude de decisão unilateral, espontânea ou requerida, de agente do Poder Público, em virtude e nos limites de sua competência, com relevância jurídica fora da órbita da Administração”. Darlã Martins Vargas 95 já tivemos a oportunidade de abordar esse assunto em artigo próprio8, concluindo ser obrigação dos intérpretes e aplicadores da lei a necessária restrição em sua exegese. Com efeito, é sabido que ao se tratar da aplicação de normas sancionadoras o intérprete deverá, sempre, utilizar sua hermenêutica de forma restritiva, evitando-se, dessa forma, desvarios judiciais, ou no dizer de R. E. Zaffaroni, “valorações subjetivas duvidosas”.9 Note-se, portanto, que, sempre que se estiver interpretando uma lei incriminadora/sancionadora, o princípio da legalidade nos levará, inexoravelmente, a uma interpretação restritiva, impedindo, por certo, a aplicação da analogia contra o acusado. Dessa forma, quando o legislador, no artigo 3º da Lei de Improbidade Administrativa, escreve que: “as disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”, está se referindo ao terceiro que pratique uma conduta (elemento volitivo) que induza ou concorra para o ato ímprobo. Nesse sentido, o inesquecível Anibal Bruno10 já ensinava: (in verbis) Mesmo porque tôda lei, como tôda expressão verbal do pensamento, precisa ser interpretada. O que pretende dizer o velho adágio de ‘in claris non fit interpretatio’ é que, sendo a lei clara, não cabe procurarlhe um sentido diferente daquele que resulta evidentemente do texto. Apenas, se a lei é clara, a interpretação é instantânea. Conhecido o texto, apreende-se imediatamente o seu conteúdo. Mas, se é obscura ou incerta, precisa, então, submeter-se a lei ao processo interpretativo sistemático, processo lógico, que obede8 Denota-se, portanto, que muito embora não se reconhecesse existência do “bis in idem” com a matéria penal, o que se diz “ad argumentandum” ainda assim, em razão do caráter penal inserido na Lei n°. 8.429/92, não poderia ela trazer na descrição das condutas ilícitas, tipos “abertos”. Incluindo-se, aqui, condutas culposas, que não se coadunam com os elementos intrínsecos que compõem a conduta ímproba levando, com isso, o cidadão – agente político – a ficar predisposto, conforme o caso, à temperança, ao bom humor, do aplicador da lei quando não ficar evidenciado ter ele agido com má-fé característica do dolo. VARGAS, Darlã Martins. In: Improbidade administrativa o bis in idem com a matéria penal e seus tipos abertos. Revista de Administração Pública e Política. L&C n°. 109, julho 2007, p. 30-34. Brasília: Consulex. 9 ZAFFARONI, R. E. Panorama atual da Problemática da Omissão. In: Revista de Direito Penal e Crim, v. 33, p. 37. 10 BRUNO, Anibal. Direito Penal: parte geral. Tomo 1. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 198. 96 A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas... ce a regras e preceitos, cujo conjunto constitui a Hermenêutica, ou ciência da interpretação. A Hermenêutica, envolvendo através das várias correntes do pensamento jurídico, foi-se enriquecendo progressivamente de novos métodos, à proporção também que o sentido da função interpretativa se ia alargando, desde um estrito entendimento da letra da lei até um ajustamento da vontade nela contida, segundo os seus fins, às condições do momento de sua aplicação” (negritamos e sublinhamos). Ademais, com a vênia devida, a descrição do tipo não dá margem a uma interpretação extensiva como defendido por alguns. Primeiro, porque se fosse da vontade do legislador que a pessoa jurídica também pudesse responder por improbidade administrativa teria ele expressamente estabelecido esta possibilidade como, aliás, fez na Constituição Federal de 1988 quando tratou dos crimes ambientais. Segundo, não teria se expressado através de um pronome demonstrativo masculino – àquele que – (no caso com a contração da preposição “a”), numa clara intenção de tratar do outro agente [co-autor (induz) ou partícipe (concorre)] indicando, inclusive, as condutas de prática necessária a caracterização do ato ímprobo. Por certo o pronome demonstrativo (àquele) descrito na norma refere-se à expressão “mesmo não sendo agente público”, indicando, neste caso, a pessoa que poderá participar do ato administrativo inquinado de ímprobo, em conjunto com o agente público. Por outro lado, considerando a possibilidade de aplicação da “teoria da realidade” ou “da personalidade real” descrita pelos doutos Émerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, na obra antes citada, em defesa da prática de atos jurídicos pela pessoa jurídica, não se poderia olvidar a imprescindibilidade da presença de alguns requisitos, a saber: a) necessidade da infração/ilícito ser praticado no interesse da pessoa jurídica, ou seja, deverá ser útil à finalidade do ente coletivo; b) a infração não poderá situar-se fora da esfera de atividade da empresa. Isso significa dizer que estarão excluídas aquelas infrações que se situem além do domínio normal da atividade da pessoa coletiva, como aquelas que somente a pessoa física pode praticar na sua esfera individual. Haveria, portanto, uma restrição no leque de infrações que podem ser praticadas pela pessoa coletiva, pois a exigência precípua passa a ser a de que esteja dentro do domínio normal de atividade da empresa; c) a infração cometida deve ser praticada por alguém Darlã Martins Vargas 97 que se encontre estreitamente ligado à pessoa jurídica; e d) a prática do ato deve ter o auxílio do poderio da pessoa coletiva, ou seja, é a utilização da infraestrutura fornecida pela empresa que propicia o cometimento do crime. Sem a reunião de várias pessoas, agrupadas sob o manto da pessoa jurídica, o cometimento do crime, no mais das vezes, não seria possível.11 Ou como escreveu Sérgio Salomão Shecaira12: “é o poder, que se oculta por detrás da pessoa jurídica, e a concentração de forças econômicas do agrupamento que nos permitem dizer que tais infrações tenham uma robustez e força orgânica impensáveis em uma pessoa física”. Sendo assim, analisando os requisitos da teoria da realidade para a detecção de ato ilícito pela pessoa jurídica e considerando-se os elementos objetivos e subjetivos inerentes à prática de ato ímprobo, evidencia-se a impossibilidade de a pessoa jurídica ser, também, agente destes atos. Conclui-se, portanto, que a interpretação extensiva utilizada para admitir como parte passiva a pessoa jurídica na ação civil pública por ato de improbidade administrativa, s.m.j., vai de encontro à melhor técnica de interpretação e aplicação das normas jurídicas, mormente quando se trata de normas sancionadoras que, como expressado pelo Supremo Tribunal Federal, por vezes, são mais graves que as próprias normas penais. Registre-se, por oportuno, que o presente artigo busca, apenas e tão-somente, acrescentar uma nova visão à discussão do presente tema, sem qualquer pretensão de ser o mais ou o menos correto. 11 DE ARAUJO, Antonio Carlos Oliveira. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Disponível em: <www.advogado.adv.br/artigos/2001/araujo/respenalpessoajurídica.htm>. 12 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 100. DO MALFADADO ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002: CRÍTICA ACERCA DA POSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO DA CULPA PELA SEPARAÇÃO DOS CÔNJUGES José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa1 INTRODUÇÃO O cunho deste artigo visa investigar a (ir)relevância da discussão da culpa de um dos cônjuges pela separação do casal quando este já se encontra separado de fato e um dos consortes vem a falecer. Ocorre que a matéria debatida merece destaque em face do disposto no artigo 1.830 do Código Civil, o qual gera grandes discussões doutrinárias no âmbito civilista. A atecnia na elaboração do artigo 1.830 do Código Civil é notória, com intricada interpretação, além de possibilitar que aspectos superados no âmbito do direito de família sejam ressurgidos num limbo jurídico. Dessa feita, esta breve exposição demonstrará os critérios mais equânimes em que o operador do direito deve basear a aplicação do artigo ora elencado, visando evitar que injustiças sejam perpetradas no ordenamento jurídico brasileiro. Para melhor compreensão do tema, uma breve análise da (im)possibilidade do debate da culpa pela separação do casal será abordada para que, assim, seus reflexos sejam utilizados na correta interpretação do artigo 1.830 do Código Civil. Com estas ponderações, inicia-se a análise do objeto específico desta exposição, qual seja, o estudo crítico de uma das problemáticas geradas pela atecnia jurídica do artigo 1.830 do Código Civil de 2002, focando o debate na parte in fine do referido artigo. 1 Professor de Direito Civil na Universidade de Cuiabá (UNIC) e advogado militante na área cível e consumerista. Email: [email protected] 100 Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão... DO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE NA ATUALIDADE. BREVES LINHAS JURÍDICAS O Código Civil de 2002 representou relevante avanço para o direito sucessório do cônjuge porquanto o incluiu no rol dos herdeiros necessários2, bem como o elevou as duas primeiras classes preferenciais sucessórias, em concorrência com os descendentes e ascendentes.3 Dessa feita, o cônjuge passou a ter direito à legítima assim como os descendentes e ascendentes do de cujus, além de herdar concorrentemente com estes ou, exclusivamente, caso não haja sucessor em linha reta. Acerca da concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do falecido, merece destaque a ressalva de que o cônjuge vivo não será herdeiro caso tenha se casado com o autor da herança sob os regimes da comunhão universal de bens, separação obrigatória de bens ou comunhão parcial de bens sem que o falecido tenha deixado patrimônio particular. Contudo, para se aferir os direitos sucessórios cabíveis ao cônjuge supérstite, em concorrência com os ascendentes do de cujus, a análise do regime de casamento se torna dispensável posto que, independentemente do regime escolhido, o cônjuge vivo herdará conjuntamente com os ascendentes do falecido. Agora, caso inexistam descendentes ou ascendentes, independentemente do grau de parentesco, o cônjuge sobrevivente herdará a totalidade da herança. Ressalvas acerca do regime de bens também se tornam desnecessárias neste ponto porquanto não interferem na qualidade de herdeiro do cônjuge. DA LIMITAÇÃO SUCESSÓRIA DO CÔNJUGE CONSOANTE O ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL Infelizmente, ao invés de simplificar e tornar mais claros os desejos legislativos, o Código Civil estabeleceu em seu artigo 1.830 intricado texto que reza que o direito sucessório do cônjuge supérstite se encerra quando 2 Art. 1.845, CC: São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. 3 Art. 1.829, CC: A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais. José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa 101 este se encontra: a)separado judicialmente; b)separados de fato há mais de dois anos desde que a convivência do casal se tornara impossível com culpa do cônjuge sobrevivente. No que concerne à exclusão do cônjuge que já se encontra separado judicialmente nenhuma crítica se levanta, pelo contrário, totalmente coerente a disposição de não se atribuir direitos sucessórios a uma pessoa que já não tenha vínculo matrimonial com o autor da herança à época de seu falecimento. Ademais, a tendência desta disposição é tornar-se obsoleta tendo em vista a Emenda Constitucional nº 66 que extinguiu a separação judicial no Brasil, estabelecendo que a partir de 14 de julho de 2010 apenas o divórcio é o instrumento adequado para a dissolução do casamento, conforme lição exposta no artigo da professora mestra Clarissa Bottega, também publicado nesta Revista Jurídica sob o título “O Novo Divórcio no Direito Brasileiro. Breves Linhas”.4 Por outro lado, o fato de o Código Civil possibilitar o questionamento da culpa de um dos cônjuges pela extinção da convivência do casal é matéria recriminada pela moderna doutrina, gerando eminentes críticas, como veremos abaixo. DA DISCUSSÃO DA CULPA PELA SEPARAÇÃO DO CASAL. CONTENDA SUPERADA A Constituição Federal de 1988, em conjunto com o Código Civil de 2002, abandonou a velha visão patriarcalista do antigo Código Civil, prevendo que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal devem ser exercidos igualmente pelo marido e pela esposa. No entanto, apesar de “novo”, o Código Civil de 2002 já nasceu com algumas defasagens, dentre as quais podemos elencar a permanência do aspecto da culpa do cônjuge pela separação do casal, objeto do presente estudo em relação ao artigo 1.830 do Código Civil, fato chamado “no mínimo, de retrógrado”, segundo palavras da conspícua Maria Berenice Dias.5 Quando a legislação pátria permitiu que o cônjuge inocente pela separação pudesse propor ação de separação declinando ao outro alguma 4 BOTTEGA, Clarissa. Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá. Cuiabá, EdUnic, v. 12, n. 2, jul./dez. 2010. 5 DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 102 Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão... das “culpas” do artigo 1.573 do Código Civil, o rol deste artigo tornou-se improfícuo e meramente exemplificativo quando o parágrafo único6 do mesmo artigo possibilitou ao juízo da causa considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida conjugal. Destarte, inútil as condutas elencadas no artigo 1.573 do Código Civil, posto que o único fato que realmente importa para a separação de um casal é o fim do afeto. Se ainda houvesse amor de ambos, não haveria a separação. Assim, o mero fato da existência de ação de separação litigiosa já demonstra o fim do amor entre os cônjuges, sendo desnecessária a identificação do evento culposo perpetrado por um dos cônjuges. Vejamos relato da eminente doutrinadora Maria Berenice Dias: Felizmente, a jurisprudência passou a reconhecer como desnecessária a identificação de conduta culposa, bem como a dispensar comprovação dos motivos apresentados pelo autor para conceder a separação. O juiz, ao fixar os pontos controvertidos (CPC 331, §2º), impedia a discussão a respeito dos motivos do fim do casamento. [...] A perquirição da causa da separação acabou perdendo prestígio. O fim do casamento passou a ser concedido independentemente da indicação de um responsável pelo insucesso da relação, seja porque é difícil atribuir a apenas um dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão da justiça na intimidade da vida das pessoas.7 No mesmo posicionamento, leciona Eduardo de Oliveira Leite: Desde a mais tradicional postura de Pontes de Miranda até a posição de doutrinadores da atualidade a atribuição da culpa pelo fracasso do matrimônio a qualquer dos cônjuges não é mais admitida, substituindo6 Art. 1.573, CC: Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: I - adultério; II - tentativa de morte; III - sevícia ou injúria grave; IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo; V - condenação por crime infamante; VI - conduta desonrosa. Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum. 7 DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa 103 se aquele pressuposto de cunho subjetivo e privado pelo princípio da ‘deterioração factual’. Com efeito, como já se tem posicionado a jurisprudência nacional, não mais tem sentido, nem justificativa, a atribuição da culpa pelo rompimento da vida em comum, quando qualquer consequência pode advir desta declaração, bastando, para a decretação da separação, o reconhecimento do fim do vínculo afetivo.8 O Superior Tribunal de Justiça também assim se manifestou: SEPARAÇÃO. Ação e reconvenção. Improcedência de ambos os pedidos. Possibilidade da decretação da separação. Evidenciada a insuportabilidade da vida em comum, e manifestado por ambos os cônjuges, pela ação e reconvenção, o propósito de se separarem, o mais conveniente é reconhecer esse fato e decretar a separação, sem imputação da causa a qualquer das partes. Recurso conhecido e provido em parte.9 Em memorável conclusão, Cristiano Chaves de Farias relata que: “Impõe, por conseguinte, perceber que não há, seguramente, um único responsável pelo fracasso do amor. Ninguém é culpado por não mais gostar. Não há responsabilidade pela frustração do sonho comum”.10 DO ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E SUA PROBLEMÁTICA Dada uma visão geral concernente à irrelevância da discussão da culpa como motivo ensejador da separação de um casal, visão diferente não se poderia aplicar para o direito sucessório, porquanto o direito é uno e sua interpretação sistemática, não podendo repudiar eventual debate da culpa pela separação do casal em sede de direito de família e admiti-la em face do direito sucessório. 8 LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil aplicado. v. 5. (Direito de Família). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 467.184-SP. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 05/12/2002. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/ Justica/detalhe.asp?numreg=200201068117&pv=010000000000&tp=51>. Acesso em: 20 out. 2010. 10 FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coordenador). Afeto, Ética, Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 104 Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão... O falecimento de um ente já representa um grande desgaste para a família, sendo desnecessário e até mesmo desumano possibilitar que se ressurjam debates e dores passadas acerca de eventual culpa de um dos cônjuges pela separação do casal. Merece destaque o fato de que o cônjuge falecido não estará presente para sua defesa, gerando sérios problemas probatórios às partes, visto que a parte atacada como suposta culpada pela separação do casal já se encontra falecida. Seria cômico se na realidade não fosse trágica a situação imposta pela legislação pátria. Em síntese, ao se analisar a tendência doutrinária e jurisprudencial de nossos tribunais, verifica-se a impertinência na manutenção da aferição da culpa em qualquer caso. Frise-se que esse tema já foi objeto do Projeto de Lei nº 4.944/2005, que pretendia reformar o artigo 1.830 do Código Civil nos moldes ora discutidos. Este passaria a ter a seguinte redação: “Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados de fato”. Tal preceito se coaduna perfeitamente ao debate retroexposto e solucionaria todas as problemáticas causadas pelo artigo 1.830 do Código Civil. No entanto, tal projeto de lei foi arquivado em 31 de janeiro de 2007, fazendo com que a esdrúxula disposição do artigo 1.830 do Código Civil permaneça em nosso ordenamento pátrio. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo exposto, percebe-se a necessidade de cautela para análise do artigo 1.830 do Código Civil, em especial na disposição de que o direito sucessório do cônjuge supérstite não se encerra quando este se encontra separado de fato há mais de dois anos desde que a convivência do casal se tornara impossível sem culpa do cônjuge sobrevivente. A culpa não deve ser questão a ser debatida neste momento. O simples fato da ruptura da vida em comum, com falência da relação afetiva geradora do amor entre ambos, já basta para a ruptura do direito sucessório, seja o cônjuge supérstite culpado ou inocente pela separação do casal. Culpado ou não, esta é questão particular do casal, não devendo o Judiciário escancarar a intimidade dos cônjuges. José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa 105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ LEIS/2002/L10406.htm>. Acessado em: 20 out. 2010. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 467.184-SP. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 05/12/2002. Disponível em: <http://www. stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200201068117&pv=0100000 00000&tp=51>. Acesso em: 20 out. 2010. DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. _____. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. _____. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2010. FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coordenador). Afeto, Ética, Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado. Volume 5: direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2009. O SIGNIFICADO DO PRIMADO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA SOCIEDADE DE RISCOS GLOBAIS. OS DEVERES PARA COM A HUMANIDADE Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo1 INTRODUÇÃO A humanidade vive um grande paradoxo nos últimos tempos, o que tem suscitado reflexões não só de formadores de opinião, como a imprensa e a comunidade científica mundiais, mas de variados setores e segmentos da sociedade preocupados com o próprio futuro da vida em nosso planeta. É que não obstante os avanços experimentados pelo homem nas mais diversas áreas, nos últimos anos, crescentes e inúmeros também têm sido os riscos criados pela utilização desmedida da capacidade de interferência na natureza, capazes de alterar o ciclo natural da vida, a ponto de promover a extinção de espécies da fauna e da flora e comprometer a existência humana, inclusive. O domínio da técnica não tem sido acompanhado, infelizmente, pelo amplo conhecimento das dimensões e consequências do progresso que não pode prescindir de uma consciência ética que supere os estreitos limites da ética tradicional (Kant) de cunho eminentemente antropocêntrico. A ideia de se preocupar em agir conforme atos de bondade e justiça para com o semelhante no dia a dia já não basta, dada a necessidade de fazer com que o comportamento do presente repercuta de forma positiva também e, decisivamente, no futuro, com reflexos que extrapolam o campo imediato das relações sociais. Vivemos na chamada sociedade pós-industrial, que, ao contrário da sociedade industrial, expõe todos às consequências de escolhas e atitudes 1 Mestrando em Direito Agroambiental pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso. Defensor público de 2ª Instância do Estado de Mato Grosso. 108 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... descompromissadas, geradoras de riscos invisíveis e globais2, cujos reflexos há algum tempo vêm sendo sentidos em todas as partes do mundo, como verificado na emissão descontrolada de gases de efeito estufa, fator determinante para o aquecimento do planeta. O paradigma do progresso a todo custo não mais se adéqua à realidade do mundo que a cada dia vivencia o esgotamento dos recursos naturais. A crise ecológica é pauta global, merecendo de todos os países a atuação que não pode ficar resumida apenas a seminários e encontros internacionais, definidores de acordos que mais se aproximam de gestos simbólicos e programáticos, sem efeitos práticos e imediatos para o bemestar da população. Na “queda-de-braço” que se estabelece entre os interesses econômicos dos países desenvolvidos e os defensores do meio ambiente, aqueles ainda ostentam larga vantagem sobre estes, bastando verificar as dificuldades impostas sempre que se busca reduzir a emissão de gases de efeito estufa. A conta que se está a pagar pelo progresso desmedido se apresenta mais cara e onerosa aos países considerados pobres, cuja população é a que mais sofre com a escassez (e o desaparecimento total em algumas regiões) de recursos naturais imprescindíveis para a vida não só humana. A água é um exemplo disso, posto constituir um bem precioso que alguns povos, por não mais possuí-la, encontram-se em processo acelerado de desaparecimento aos olhos do mundo, sem despertar, entretanto, a sensibilidade sincera dos líderes mundiais que se responsabilizam pelos rumos da humanidade. Acontece que a exploração desenfreada dos recursos naturais tem acarretado prejuízos também para a qualidade de vida de pessoas ricas que até então não possuíam qualquer preocupação com os níveis de comprometimento ambiental, motivadas pelo consumismo típico da economia de mercado. Esse é o traço característico de um novo momento que está a demandar o dever de cuidado não somente com aquilo que nos cerca e imediatamente nos interessa, mas com tudo que possa afetar, direta ou indiretamente, a nossa relação com o planeta, considerando que ninguém 2 André Rafael Weyermüller afirma que “a face mais visível dos riscos de alcance global que hoje vislumbramos nos remete principalmente às questões ambientais devido à natureza complexa e difusa das mesmas, sendo o direito a um meio ambiente preservado para a presente e as futuras gerações um direito fundamental e humano previsto em muitos ordenamentos jurídicos nacionais e em iniciativas supranacionais a exemplo da Organização das Nações Unidas, que, bem ou mal, congrega as nações do mundo em torno de um objetivo comum” (In: WEYERMÜLLER, André Rafael. Direito ambiental e aquecimento global. São Paulo: Atlas, 2010. p. 44.) Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 109 está imune aos efeitos da interferência irresponsável na natureza3. O sentimento de cidadania ambiental4 a todos deve contagiar, para o bem da humanidade. O homem nada mais é senão parte da natureza, cuja defesa e proteção constitui bandeira de luta para sua própria sobrevivência. Isso mostra que não faz mais sentido acreditar que o desenvolvimento implica na tarefa de domínio ou conquista da natureza, pela exploração causadora de seu exaurimento. Pelo contrário, preservar a natureza faz dela a companheira fiel para o progresso e a sobrevivência do homem, numa relação harmônica e sustentável. O DEVER ESTATAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL É de fácil percepção que a preocupação do legislador está em sintonia com a consciência global de considerar o meio ambiente como direito fundamental à vida, do qual decorrem obrigações estatais para exercício de outros direitos.5 A Constituição Federal, no seu artigo 225, caput, dispõe que: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo3 É interessante a observação de Ulrich Beck sobre o chamado “efeito bumerangue”: “Inserido na globalização e, não obstante, claramente diferente dela, é um modelo de compartilhamento dos riscos, em que se inclui uma boa quantidade de dinamite política: os riscos afetam mais cedo ou mais tarde aqueles que os geram ou se beneficiam deles. Os riscos mostram em sua propagação um efeito social de bumerangue: nem os ricos tampouco os poderosos estão seguros diante deles. Os efeitos secundários anteriormente latentes ferem também os centros de sua produção. Os próprios atores da modernização caem em uma forma enfática e muito concreta no redemoinho dos perigos que desencadeiam e dos que se beneficiam deles”. “Contained �������������������������������� within the globalization and yet clearly differentiated from it is distribution pattern of risks which contains a considerable amount of political explosive. Sooner or later the risks also catch up with those who produce or profit from them. Risks display a social boomerang effect in their diffusion: even the rich and powerful are not safe from them. The formerly ‘latent side effects’ strike back even at the centers of their production. The agents of modernization themselves are emphatically caught in the maelstrom of hazards that they unleash and profit from” (tradução livre). (In: BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modernity. London: SAGE Publications Ltd., 1992. p. 37). 4 Segundo Solange Teles da Silva, “o exercício da cidadania ambiental conduz assim a uma análise do sistema de direitos e deveres, bem como dos espaços de participação da sociedade civil na concretização do direito ao meio ambiente sadio”. (SILVA, Solange Teles da. A emergência de uma cidadania planetária ambiental. p. 379. In: MARQUES, Claudia Lima; MEDAUAR, Odete; SILVA, Solange Teles da (Coord.). O novo direito administrativo, ambiental e urbanístico: estudos em homenagem à Jacqueline Morand-Deviller. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 5 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 81. 110 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserválo para as presentes e futuras gerações. Segundo ensinamento de Valerio de Oliveira Mazzuoli, [...] o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um prius lógico do direito à vida, sem o qual esta não se desenvolve sadiamente em nenhum dos seus desdobramentos. É dizer, o bem jurídico vida depende, para a sua integralidade, entre outros fatores, da proteção do meio ambiente com todos os seus consectários, sendo dever do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.6 Sabe-se que a ideia de proteção ao meio ambiente decorre de uma ética global, fundada no pensamento universal de que todos somos responsáveis pela preservação do nosso planeta.7 A sociedade está a despertar cada vez mais para uma realidade que não pode prescindir do devido cuidado com a natureza, pois o homem nela inserido integra o todo necessário para a perpetuação da vida. A ética nos moldes clássicos vem sendo redesenhada por uma nova ética calcada na responsabilidade, impondo ao homem repensar suas atitudes tendo como preocupação permanente a preservação da vida sobre a terra.8 6 MAZZUOLI. Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. p. 893. 7 Cf. BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 23. 8 A propósito do assunto, Hans Jonas esclarece: “[...] Decerto que as prescrições éticas ‘do próximo’ – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honestidade, da honradez, etc. – ainda são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, quotidiana, da interação humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual o ator, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade. [...] Um imperativo adequado ao tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: ‘Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra’; ou, expresso negativamente: ‘Aja de modo a que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida’; ou, simplesmente: ‘Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra’; ou, em um uso novamente positivo: ‘Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer’”. (In: JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto. PUC-Rio, 2006. p. 39, 47-48). Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 111 Nesse contexto de novos tempos e de novas ideias, o dever de defesa e proteção dos direitos humanos abrange a cultura da cooperação9 e da solidariedade universal10, espaço ideal para emergência daquilo que tem sido divulgado como Estado Mundial Ambiental11 ou Estado de Direito Ambiental, cujos postulados básicos seriam: [...] o postulado globalista centra a questão ambiental em termos de “Planeta”, atentando para o fato de que a proteção ambiental não pode ser restrita a Estados isolados, devendo ser realizada em termos supranacionais. O postulado publicista centra a questão ambiental no “Estado”, tanto em termos de dimensão espacial da proteção ambiental quanto em termos de institucionalização dos instrumentos jurídicos de proteção ambiental. O postulado individualista, por seu turno, restringe a proteção ambiental à invocação de posições individuais. Assim, sendo o ambiente saudável contemplando na perspectiva subjetiva, os instrumentos jurídicos de proteção ambiental utilizados seriam praticamente os mesmos referidos na proteção de direitos subjetivos, possuindo, a proteção ambiental, acentuado caráter privatístico. O postulado associativista procura formular uma democracia de vivência da virtude ambiental, substituindo a visão tecnocrática com proeminência do Estado em assuntos ambientais (postulado publicista) por uma visão de fortes conotações de participação democrática.12 Independentemente da denominação que possa ser empregada a esse modelo de Estado13 caracterizado, marcadamente, pela preocupação 9 A ideia do Estado Constitucional Cooperativo é muito bem exposta pelo professor Peter Häberle, que o caracteriza como uma resposta jurídico-constitucional à mudança do Direito Internacional de direito de coexistência para o direito de cooperação na comunidade de Estados. Destaca, ainda, o ilustre professor, o pensamento de solidariedade que também identifica o Estado Constitucional cooperativo, considerando aspectos mútuos de assistência ao desenvolvimento, proteção ao meio ambiente, combate ao terrorismo, dentre outras formas de cooperação internacional. (In: HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 71). 10 Cf. BOFF. Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível. V. I: hospitalidade: direito & dever de todos. Petrópolis - RJ: Vozes, 2005. p. 156. 11 WENDT, Alexander. Why a world state is inevitable. In: European Journal of International Relations, v. 9. SAGE Publications, 2003. 12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional ecológico e democracia sustentada. RevCEDOUA, n. 2, p. 9 e s., 2001. 13 O professor Vasco Pereira da Silva leciona que: [...] “Fruto da evolução histórica do Estado de Direito (sucessivamente: liberal, social e pós-social) assiste-se, hoje, a um retorno ao predomínio de uma certa visão garantística, no que respeita à protecção jurídica individual sem, no entanto, pôr em causa a necessidade de intervenção estadual, ainda que sob forma modificada, no quadro de uma Administração constitutiva ou infraestrutural”. (SILVA, Vasco Pereira da. Verde direito: o direito fundamental ao ambiente. p. 24. In: DAIBERT, Arlindo (Org.). Direito ambiental comparado. Belo Horizonte: Fórum, 2008). 112 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... de proteção do meio ambiente, fato é que o Brasil, no cenário internacional, se firma cada vez mais como Estado Ambiental, considerando a opção normativa constitucional de comprometimento com as gerações presentes e futuras, verdadeiro direito subjetivo constitucionalizado, conforme lição do professor Juan José Solozábal Echavarría.14 O dever de proteção determina ao Estado, nesse cenário de responsabilidades compartilhadas para com o meio ambiente, adotar medidas de política pública que busquem prevenir ao máximo riscos e danos capazes de agravar ainda mais as mínimas condições de existência humana, que necessariamente pressupõem o respeito à natureza e a todas as suas formas de vida.15 Incumbe ao Estado assegurar dignidade em formas e conceitos alargados, posto que a falta de respeito com os seres vivos, indistintamente, determina o descaso ou o desprezo com a própria dignidade humana, que tem no ambiente sadio sua validade e sua essência.16 A propósito desse assunto, Ingo Sarlet sustenta ser a dignidade da pessoa humana: [...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e 14 O professor denomina de elementos estabilizadores da Constituição, afirmando que: “[...] Lo que querría poner de manifiesto es que estas cláusulas sobre el medio ambiente integran lo que podríamos llamar “elementos estabilizadores” de la Constitución. Sin duda el compromiso conservador que implica la protección del medio ambiente restringe la capacidad autodispositiva del poder constituyente que puede dispensar a los poderes públicos em su actuación del limite del respeto al patrimonio ambiental que la comunidad actual ha recebido de las generaciones pasadas. No es cierto por tanto, como dijera Jefferson, que la tierra pertenezca a las generaciones vivas. Las generaciones presentes aceptan como limite el de la protacción de lo que han recebido, em cuanto reconocimiento de uma continuidad nacional, comprometiéndose a conservalo para las generaciones futuras”. (ECHAVARRÍA, Juan José Solozábar. El derecho al medio ambiente como derecho publico subjetivo, p. 32. In: COSTA, José de Faria (coord.). Boletim da Faculdade de Direito. STVDIA IVRIDICA 81. COLLOQUI – 13. A tutela jurídica do meio ambiente: presente e futuro. Universidade de Coimbra. Coimbra: Editora Coimbra, 2005). 15 Sobre o tema, Patryck de Araújo Ayala defende que “[...] A tarefa estatal de assegurar o bemestar ganha, portanto, a partir da afirmação de um Estado ambiental, dimensões bastante mais extensa em relação ao alcance de semelhante dever. Este lhe impõe severas exigências de escala para a consecução da tarefa de assegurar o bem-estar social, pois os valores da sociedade que se quer proteger estão vinculados agora aos interesses de titulares e beneficiários que ainda não participam da comunidade política, a saber, os animais não-humanos e principalmente, as futuras gerações, objeto de interesse desta exposição”. (AYALA, Patryck de Araújo. A proteção dos espaços naturais, mudanças climáticas globais e retrocessos existenciais: por que o estado não tem o direito de dispor sobre os rumos da existência da humanidade? p. 315. In: CUREAU, Sandra; LEUZINGER, Márcia Dieguez; SILVA, Solange Teles da (Coord.). Código florestal: desafios e perspectivas. Coleção direito e desenvolvimento sustentável. v. 1. São Paulo: Fiúza, 2010.) 16 FLEINER. Thomas. O que são direitos humanos? São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 124. Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 113 deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.17 É importante frisar que essa noção de dignidade humana reúne a dimensão ecológica18, que será, na sequência, analisada em conjunto com outras dimensões conferidas a esse princípio fundamental de caráter universal. Resta nítido que o Estado não pode prescindir do seu papel de concretizar seus deveres de proteção19 mediante instrumentos que efetivem a garantia do primado da dignidade humana20, afirmando a importância do meio ambiente equilibrado como condição de existência do próprio homem. AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Todo homem deve possuir a condição de ser livre, único e respeitado na sua individualidade. A essência da liberdade reside na sua capacidade de autodeterminação, pressuposto fundamental para o respeito daquilo que se pode compreender como dignidade. Quando o homem é privado da possibilidade de se desenvolver enquanto indivíduo inserido numa sociedade, resta subtraído o núcleo essencial de sua humanidade e personalidade.21 17 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 70. 18 MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 180. 19 Essa tarefa de proteção é bem definida por Patryck de Araújo Ayala “[...] Uma vez que, no contexto da ordem constitucional brasileira, os deveres de proteção estatal podem se manifestar como imperativos de ponderação preventiva ou imperativos de ponderação precaucional, é possível justificar, considerando a qualidade dos efeitos das fontes responsáveis pelas alterações climáticas extremas, e o princípio da responsabilidade de longa duração, que todos os deveres de proteção definidos pelo § 1º, do artigo 225, possuem a aptidão para veicular uma abordagem precaucional e vinculam os particulares e o próprio Estado” (AYALA, op. cit., p. 324). 20 Cf. AYALA. Patryck de Araujo. O direito ambiental das mudanças climáticas: mínimo existencial ecológico, e proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira. p. 270. In: BENJAMIN, Antonio Herman; IRIGARAY, Carlos Teodoro; LECEY, Eladio; CAPPELI, Silvia. Florestas, mudanças climáticas e serviços ecológicos. v. 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 21 cf. FLEINER. Thomas. O que são direitos humanos? São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 12. 114 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... A compreensão do conteúdo axiológico da expressão “dignidade da pessoa humana” implica a análise das dimensões que ela assume diante dos desafios que se apresentam no contexto da pós-modernidade. De plano, deve ser ressaltado que, conforme lição de Ingo Sarlet, a abordagem da dignidade da pessoa humana em dimensões se deve “à complexidade da própria pessoa humana e do meio no qual desenvolve a sua personalidade”.22 A dignidade constitui princípio irrenunciável da própria condição humana, considerando possuir o homem os atributos de razão e consciência determinantes de sua autonomia e liberdade enquanto pessoa, daí resultar evidenciada a dimensão chamada ontológica. Identifica-se o caráter ou a dimensão comunitária da dignidade na própria natureza do homem em conviver com os demais indivíduos em sociedade, respeitando uns aos outros em igualdades e direitos. É a ideia de complementaridade da dimensão ontológica, uma vez que a perspectiva intersubjetiva faz com que exista uma obrigação geral de respeito entre as pessoas, principalmente em razão da tendência cada vez mais marcante das sociedades contemporâneas, qual seja, a convivência harmônica e plural entre as pessoas não só do mesmo país, mas do planeta como um todo. A evolução da sociedade em seu aspecto histórico-cultural identifica a chamada dignidade como construção.23 Ainda na ideia de complementação das demais dimensões, tem-se que a dignidade é construída com base no progresso que o homem experimenta na sucessão das gerações da humanidade, aliada aos valores culturais. E por se tratar de categoria axiológica aberta, a dignidade experimenta avanços que permitem adequála às aspirações e aos anseios da sociedade em permanente transformação. É possível, também, visualizar a dignidade sob uma dupla dimensão: como limite e como tarefa para o Estado. Deve ser assegurada ao indivíduo proteção contra abusos estatais, ao mesmo tempo em que se impõem medidas de afirmação, promoção e exercício da dignidade.24 Infelizmente, não bastassem as omissões estatais, o indivíduo, não raras vezes, se vê agredido por atos arbitrários praticados por agentes do 22 SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-constitucional compatível com os desafios e com o impacto da assim denominada biotecnologia. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro; JUNIOR, Jerson Carneiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti (Orgs.). Hermenêutica Constitucional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 262. 23 Ibid., p. 273. 24 Ibid., p. 276. Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 115 poder público que, por força da ordem jurídica, possuem o dever precípuo de salvaguardar qualquer pessoa de todo tipo de risco ou violação que possa comprometer a essência de sua condição humana. A propósito desse aspecto, o Brasil, que a exemplo de outros países que elegeram em suas Constituições o primado da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado de Direito, caminha a passos ainda muito lentos para que seja concretizado o dever de propiciar o mínimo de existência digna a todos, indistintamente. Nota-se a necessidade de transformar o Estado – formalmente estruturado com os direitos e instrumentos criados para garantir o respeito e o exercício da dignidade – para a realidade de um Estado que verdadeiramente assegure, na prática, não só a dignidade em suas variadas dimensões, mas outros princípios que dela decorrem, como da igualdade, da liberdade, da integridade física e moral e da solidariedade25. MEIO AMBIENTE: DIREITO HUMANO DE TERCEIRA DIMENSÃO A abordagem do direito ao meio ambiente sadio como valor de dignidade remete à análise, ainda que breve, dos direitos humanos enquanto aspirações e instrumentos para o exercício da cidadania. Sabe-se que foi a partir da segunda Guerra Mundial que restou consagrada a ideia de se assegurar, no campo político, valores tidos como essenciais para a sobrevivência do gênero humano. Seriam direitos, e de fato são, que não constituiriam matérias de domínio reservado de cada país, por tratarem de interesses ligados a todos os povos. A ideia de universalidade e indivisibilidade ficou bem demonstrada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 10 de dezembro de 1948), considerada marco histórico da concepção moderna de direitos humanos26. Esses direitos configuram o substrato mínimo daquilo que deve ser assegurado ao homem para uma existência efetivamente digna. 25 Ibid., p. 281. 26 Edihermes Marques Coelho esclarece que “a melhor doutrina costuma adotar a expressão ‘direitos humanos’ para designar os direitos do ser humano num plano global; a expressão ‘direitos fundamentais’ para designar os direitos humanos garantidos nas constituições; a expressão ‘direitos básicos do ser humano’ para designar aqueles direitos que são essenciais à concretização da condição humana de existência. Assim, a expressão ‘direitos humanos fundamentais’ indica os direitos humanos consagrados na Constituição de um país” (In: COELHO, Edihermes Marques. Direitos humanos, globalização de mercados e o garantismo como referência jurídica necessária. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. p. 66). 116 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... É interessante observar a classificação defendida por Edihermes Marques Coelho27, Paulo Bonavides28 e Ingo Wolfgang Sarlet29, que distribuem os direitos humanos em dimensões, posto que a expressão ‘gerações’ poderia não contemplar a contento a ideia de somatório de qualificações jurídico-políticas e um desenvolvimento dialético dos direitos.30 Assim, os direitos de primeira dimensão contemplam as liberdades civis e políticas, frutos da ascensão do pensamento liberal-burguês dos séculos XVIII e XIX. Já os de segunda dimensão correspondem aos direitos sociais (assistência social, saúde, educação, etc.), reivindicados por movimentos sociais dos trabalhadores no decorrer do século XIX. Os direitos de terceira dimensão, por sua vez, emergiram no século XX, como consequência da ampliação das relações em sociedade e entre países, complementando, pois, os demais direitos. São considerados direitos de titularidade difusa ou coletiva, posto que são voltados para a coletividade. Aqui está incluído o direito à preservação do meio ambiente, a exemplo de outros conferidos aos povos indistintamente. Vale dizer que em relação ao meio ambiente o grande marco está na Declaração de Estocolmo, de 1972.31 Não há dúvidas em reconhecer que o meio ambiente constitui direito humano fundamental de terceira dimensão, cabendo a todos o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A ESPECIAL DIMENSÃO ECOLÓGICA DA DIGNIDADE HUMANA É sabido que assim como os direitos liberais e os direitos sociais ditaram o conteúdo da dignidade humana, a preocupação global com a temática ambiental ofereceu novos contornos a esse princípio, considerado 27 Ibid., p. 71. 28 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 474-482. 29 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998. 30 COELHO. Op. cit., p. 71. 31 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos e meio ambiente: um diálogo entre os sistemas internacionais de proteção. p. 71. In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos José Teodoro Hugueney (Orgs.). Novas perspectivas do direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Cathedral, 2009. Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 117 pedra basilar da edificação constitucional do Estado (social, democrático e ambiental) de Direito.32 O acréscimo do componente ambiental oferece à dignidade humana a dimensão chamada ecológica (ou socioambiental). Busca-se com isso reconhecer a dignidade da vida no planeta, que não se resume a seres humanos. Reconhece-se valor na proteção de todas as formas de vida, das quais, por óbvio, o ser humano não pode abrir mão, sob pena de comprometer sua própria existência. Ainda que não consigamos nos desvencilhar do pensamento kantiano, possível é o alargamento da visão antropocêntrica que influenciou a construção do princípio da dignidade, porquanto o ambiente não merece ser protegido apenas em razão da saúde e da qualidade de vida do ser humano, mas também em virtude de caracterizar um valor em si mesmo.33 Nas precisas lições de Sarlet e Fensterseifer: [...] é possível afirmar que a tendência contemporânea no sentido de uma proteção constitucional e legal da fauna e flora, bem como dos demais recursos naturais, inclusive contra atos de crueldade praticados pelo ser humano, revela no mínimo que a própria comunidade humana vislumbra em determinadas condutas (inclusive praticadas em relação a outros seres vivos) um conteúdo de indignidade. Tendo em conta que nem todas as medidas de proteção da natureza não humana têm por objeto assegurar aos seres humanos sua vida com dignidade (por conta de um ambiente saudável e equilibrado), mas dizem com a preservação, por si só, da vida em geral e do patrimônio ambiental, resulta evidente que se está a reconhecer um valor em si, isto é, intrínseco.34 Assegurar dignidade às demais formas de vida pode parecer um tema polêmico, mas não se pode perder de vista que a abertura é um traço distintivo do Direito Ambiental que se afirma quebrando paradigmas, dialogando construtivamente com as demais ciências, posto estar comprometido com a defesa da vida. 32 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. p. 177. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. 33 Ibid., p. 195. 34 Ibid., p. 196. 118 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... O DIREITO AO MÍNIMO DE EXISTÊNCIA O desafio permanente é assegurar níveis de proteção capazes de fazer valer o compromisso de garantia a todos os povos do mínimo para a existência. É fato que nos ordenamentos contemporâneos a existência digna contempla a necessidade de se oferecer direitos à alimentação, saúde e educação, em condições mínimas que possam permitir a todos perspectivas de desenvolvimento e progresso na sociedade. Felizmente, já se observa consolidada a visão de que, ao lado dos direitos sociais, ao Estado é imposta a obrigação de garantir o meio ambiente como pressuposto para uma vida digna. No Brasil, tal aspecto é claramente constatado pela configuração de proteção ofertada pela própria Constituição Federal. A consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República evidencia o grande valor atribuído ao direito à existência digna no mundo.35 Como Estado de Direito, o Brasil está comprometido com o bemestar de todos os indivíduos na consecução válida das políticas públicas que materializem o exercício e o acesso pleno aos direitos inerentes à afirmação da dignidade humana, notadamente no campo da proteção ao meio ambiente. Igualmente perceptível é a opção por um modelo de Estado Ambiental de Direito, haja vista a fixação de responsabilidades compartilhadas que vinculam ações e atitudes na missão de respeitar um direito humano fundamental, do qual nenhum de nós jamais poderá se eximir de abraçar e defender, quer em nossos comportamentos do dia a dia como pessoas inseridas em sociedade, quer como atores governamentais e não-governamentais nos cenários nacional e internacional. Não se pode deixar de destacar que a defesa do meio ambiente constitui uma responsabilidade de longa duração, isto é, ultrapassa a tutela dos direitos das pessoas no tempo presente para salvaguardar, com idêntico valor de proteção, as gerações futuras. Essa igualdade entre as gerações, chamada equidade intergeracional, possibilita que a proteção conferida pelo direito ambiental alcance sujeitos sequer concebidos, possuindo a presente geração a obrigação ju35 COELHO. Op.cit., p. 109. Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 119 rídica de satisfazer suas necessidades de desenvolvimento sem o comprometimento das futuras gerações.36 Dentre as metas a serem perseguidas pela estrutura normativa de proteção ambiental, merece especial destaque a preocupação em se assegurar qualidade de vida para todos, o que pressupõe um mínimo de existência em matéria ambiental como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. A ideia de um mínimo ecológico de existência implica uma série de atitudes voltadas sempre à fiel observância de padrões mínimos que estabelecem ofertar ao homem tratamento compatível com a condição de pessoa humana. Ao assegurar as prestações (saúde, educação, moradia, etc.) típicas do Estado Social de Direito, é acrescido o componente ecológico, o qual identifica o compromisso estatal de guiar suas ações, tendo por foco o equilíbrio ambiental.37 Há, pois, uma co-responsabilidade que se estabelece entre sociedade e Estado, na tarefa de se assegurar ao ser humano níveis considerados mínimos para uma existência conforme o conteúdo axiológico da dignidade, consagrado universalmente. 36 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilidade civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 45. 37 O Professor Patryck de Araújo Ayala afirma que “é possível conceber a noção de mínimo ecológico de existência na condição de resultado que decorre da combinação do exercício da iniciativa estatal e dos particulares, objetivando assegurar a proteção de níveis de qualidade dos recursos naturais, que sejam indispensáveis para que se possa assegurar um conjunto de realidades existenciais dignas ao homem, compreendido este sob a forma de uma específica imagem de homem em um Estado de direito, que é social, democrático e ambiental. Compreende-se, sob a noção de um mínimo ecológico de existência que, este homem, pessoa humana que deve ter asseguradas condições para o livre desenvolvimento de sua personalidade, somente pode fazê-lo se lhe estiverem acessíveis, realidades existenciais capazes de proporcionar o exercício dessas liberdades. Garantias relacionadas a um conjunto mínimo de prestações de conteúdo social, econômico, cultural e, agora, ecológico, constituem o veículo para a existência digna do homem como pessoa, destinatária da proteção estatal e, não mais como objeto de sua iniciativa. (...) A noção de mínimo ecológico de existência surge, portanto, conforme salientado como uma consequência no plano existencial (no plano ecológico de existência), de um sistema de responsabilidade compartilhadas. Se a coletividade possui o dever de defender e assegurar que seus comportamentos não degradem a qualidade de vida de um bem que é indivisível e, que pode afetar o bem-estar de terceiros, cabe ao Estado, em primeiro lugar, assegurar por sua iniciativa, que esta qualidade não seja degradada, por deficiência em sua proteção normativa, pela ausência de proteção ou por insuficiência na proteção”. (AYALA, Patryck de Araujo. A proteção dos espaços naturais, mudanças climáticas globais e retrocessos existenciais: por que o estado não tem o direito de dispor sobre os rumos da existência da humanidade?. p. 324. In: CUREAU, Sandra; LEUZINGER, Márcia Dieguez; SILVA, Solange Teles da (Coord.). Código florestal: desafios e perspectivas. Coleção direito e desenvolvimento sustentável. v. 1. São Paulo: Fiúza, 2010). 120 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... CONCLUSÃO A regra do consumismo desenfreado e do desenvolvimento a qualquer preço impôs à humanidade o pesado fardo de conviver exposta a riscos de dimensões globais, cujos reflexos a todos já alcançam através de mudanças detectadas no clima do planeta. O momento não se satisfaz apenas com reflexões acerca dessa nova realidade, exigindo de todos, particulares e agentes estatais, posturas e atitudes que possam contemplar a adequação das estruturas da sociedade e do Estado à nova consciência ética que se estabelece. Não é um compromisso limitado por barreiras territoriais e temporais, mesmo porque envolve a responsabilidade de todos pela preservação da vida no planeta, que não é habitado somente por seres humanos. É a oportunidade de exercitar a ética do cuidado38 e a dignidade da vida, em todas as suas formas, que inspira o sentimento de solidariedade39, tão necessário para a edificação da paz, que não se constrói sem o respeito à natureza. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AYALA, Patryck de Araújo. A proteção dos espaços naturais, mudanças climáticas globais e retrocessos existenciais: por que o estado não tem o direito de dispor sobre os rumos da existência da humanidade? In: CUREAU, Sandra; LEUZINGER, Márcia Dieguez; SILVA, Solange Teles da (Coord.). Código florestal: desafios e perspectivas. Coleção direito e desenvolvimento sustentável. vol. 1. São Paulo: Fiúza, 2010. _____. O direito ambiental das mudanças climáticas: mínimo existencial ecológico, e proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira. In: BENJAMIN, Antonio Herman; IRIGARAY, Carlos Teodoro; LECEY, Eladio; CAPPELI, Silvia. Florestas, mudanças climáticas e serviços ecológicos. v. 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modernity. London: SAGE Publications Ltd., 1992. 38 Leonardo Boff desenvolve a ideia de que o “futuro do planeta e da espécie ‘homo sapiens/ demens’ depende do nível de cuidado que a cultura e todas as pessoas tiverem desenvolvido”. (In: BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 87-88). 39 Ibid., p. 89. Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo 121 BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Record, 2009. _____. Virtudes para um outro mundo possível. V. I: hospitalidade: direito & dever de todos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional ecológico e democracia sustentada. RevCEDOUA, n. 2, p. 9 e s., 2001. CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilidade civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. COELHO, Edihermes Marques. Direitos humanos, globalização de mercados e o garantismo como referência jurídica necessária. São Paulo: Jurez de Oliveira, 2003. DAIBERT, Arlindo (Org.). Direito ambiental comparado. Belo Horizonte: Fórum, 2008. ECHAVARRÍA, Juan José Solozábar. El derecho al medio ambiente como derecho publico subjetivo. In: COSTA, José de Faria (Coord.). Boletim da Faculdade de Direito. STVDIA IVRIDICA 81. COLLOQUI – 13. A tutela jurídica do meio ambiente: presente e futuro. Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra, 2005. FLEINER, Thomas. O que são direitos humanos? São Paulo: Max Limonad, 2003. HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto. PUC-Rio, 2006. MARQUES, Claudia Lima; MEDAUAR, Odete; SILVA, Solange Teles (Coord.). O novo direito administrativo, ambiental e urbanístico: estudos em homenagem à Jacqueline Morand-Deviller. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MAZZUOLI. Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos José Teodoro Hugueney (Orgs.). Novas perspectivas do direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Cathedral, 2009. 122 O significado do primado da dignidade da pessoa humana... MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998. _____. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. _____. Dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídicoconstitucional compatível com os desafios e com o impacto da assim denominada biotecnologia. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro; JUNIOR, Jerson Carneiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti (Orgs.). Hermenêutica Constitucional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. WENDT, Alexander. Why a world state is inevitable. In: European Journal of International Relations, v. 9. SAGE Publications, 2003. WEYERMÜLLER, André Rafael. Direito ambiental e aquecimento global. São Paulo: Atlas, 2010. A GESTÃO FLORESTAL PLENA EM MATO GROSSO Marcos Henrique Machado1 INTRODUÇÃO A gestão florestal é uma divisão administrativa da gestão do meio ambiente, com a competência de assegurar a proteção da flora e permitir a exploração de forma sustentável, adotando práticas que conciliem o desenvolvimento socioeconômico com o equilíbrio ecológico. Gestão Florestal Plena é a capacidade de gerir a atividade florestal na sua inteireza, de forma absoluta, com a convergência de atos e ações administrativas, não só possibilitando o licenciamento da atividade florestal como também fiscalizando-a e impondo obrigações ambientais. O Ministério do Meio Ambiente buscou instituir a gestão florestal compartilhada entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e os órgãos estaduais (Secretarias de Estado, Autarquias ou Fundações) do Meio Ambiente, através de Termos de Cooperação Técnica. Após experiência desenvolvida no Estado de Mato Grosso, a legislação ambiental permitiu aos Estados-membros implantarem a gestão florestal plena, por expressa previsão contida na Lei de Florestas Públicas. Mato Grosso, em virtude da gestão florestal compartilhada e por força da delegação de lei federal para gerir plenamente a atividade florestal, instituiu normas e criou instrumentos de gestão para assumir e implantar a gestão florestal plena. Desde 23 de junho de 2005, quando foi criada a Secretaria de Estado do Meio Ambiente no Estado de Mato Grosso, a legislação ambiental estadual vem sendo aperfeiçoada em razão e em conformidade com as experiências e descobertas extraídas do seu próprio gerenciamento florestal. A evolução e os desafios são constantes, tendo em vista as características ambientais dos quatro ecossistemas existentes no 1 Desembargador do TJMT, ex-promotor de Justiça do MPMT, professor orientador de Direito Público na Faculdade de Direito da Universidade de Cuiabá, membro da Academia Mato-Grossense de Direito Constitucional, pós-graduado em Direito do Estado, Direito Público, Direitos Difusos, Direito Processual Civil e Direito Processual Penal. 124 A gestão florestal plena em Mato Grosso Estado (amazônico, cerrado, Pantanal e Araguaia) e o interesse econômico de exploração agroflorestal proporcionado pelo território mato-grossense. DESENVOLVIMENTO Através da normatização específica e da divisão da competência ambiental, a Gestão Florestal Plena tem o objetivo de administrar a atividade florestal, de modo a melhorar o controle da exploração vegetal, conservar os recursos naturais, preservar a estrutura dos biomas e de suas funções, manter a diversidade ecológica e assegurar o desenvolvimento socioeconômico regional. Isso porque, a atividade florestal, enquanto ambiente natural, tem sido tomada como objeto de investigação por impor desafios crescentes a legisladores, pesquisadores, ambientalistas e autoridades públicas, entre os quais, os gestores. No Estado de Mato Grosso, a exploração florestal tem sido objeto de especulação e discussão mundial. E o interesse não é um acaso, já que a extensão de áreas produtivas, o clima, a regularidade de chuvas, e o preço das terras são atrativos econômicos. Com a descoberta do potencial madeireiro e dos altos índices de produção agropecuária, Mato Grosso sofreu ações desordenadas de desflorestamento a partir da década de 90. Além dos problemas ambientais físicos propriamente ditos, como redução da biodiversidade, as queimadas, a destruição de nascentes e matas ciliares, no ano de 2005, precisamente no mês de maio, após ter ser sido deflagrada a Operação Curupira2, o governo do Estado de Mato Grosso, sob o comando do governador Blairo Maggi, instituiu uma nova fase na gestão ambiental, a partir da criação de um grupo de servidores da então Fundação Estadual do Meio Ambiente para discutir a atividade florestal e sua exploração, com propósito de aperfeiçoá-la, de modo a se alcançar uma qualidade ambiental e a segurança jurídica dos atos de gestão. Após conversações e articulações entre o governo de Mato Grosso e o Ministério do Meio Ambiente, à época dirigido pela ministra Marina Silva, iniciou-se um processo verdadeiramente revolucionário de melhoria 2 Nome dado a uma operação policial executada pela Polícia Federal, a pedido do Ministério Público Federal e autorização da Justiça Federal, que investigou licenciamentos ambientais, autorizações de explorações florestais e planos de manejos florestais supostamente ilegais. Marcos Henrique Machado 125 da gestão florestal no Estado, a começar pela criação de um órgão gestor, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente, em 23 de junho do mesmo ano, através da Lei Complementar n. 214/05. Nasceu assim, para instrumentalizar a desafiadora missão de reformular o gerenciamento florestal em Mato Grosso, o primeiro Termo de Cooperação firmado entre o Ministério do Meio Ambiente, o �������������� Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Estado de Mato Grosso, por intermédio da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA), em 2 de setembro de 2005.3 Com a efetiva participação da Procuradoria Geral de Estado no assessoramento jurídico, o Código Estadual do Meio Ambiente foi revisado, atualizado e substancialmente alterado, com a edição da Lei Complementar n. 232, de 12.01.06. Simultaneamente, foi elaborada a Política Florestal do Estado de Mato Grosso, corporificada também em lei complementar (LC n. 235, de 21.12.05), com a participação de servidores, integrantes de organizações não-governamentais, representantes de entidades do setor produtivo, membros do Conselho Estadual do Meio Ambiente, promotores de Justiça e advogados militantes na área ambiental. Em março de 2006, reconhecendo a viabilidade da experiência florestal implantada no Estado de Mato Grosso, até então compartilhada, o governo federal, através do Ministério do Meio Ambiente, decidiu delegar aos estados a gestão das atividades florestais, sem prejuízo de atuação e fiscalização supletiva do órgão federal (IBAMA), ao aprovar a alteração do art. 19 do Código Florestal.4 Com a nova redação legal, “a exploração de florestas e formações sucessoras, tanto de domínio público como de domínio privado, dependerá de prévia aprovação pelo órgão estadual competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, bem como da adoção de técnicas de condução, exploração, reposição florestal e manejo compatíveis com os variados ecossistemas que a cobertura arbórea forme”. A partir dessa norma federal permissiva, a legislação ambiental, na 3 Termo de Cooperação Técnica para Gestão Florestal Compartilhada que entre si celebram o Ministério do Meio Ambiente, por intermédio da Secretaria de Biodiversidade e Florestas – SBF, da Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável – SDS, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e o Estado do Mato Grosso, por Intermédio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente – SEMA-MT. Fonte: www.sema.mt.gov.br. 4 Lei n. 11.284, de 2 de março de 2006, art. 83. 126 A gestão florestal plena em Mato Grosso prática, transferiu aos Estados-membros a gestão florestal plena, a partir da experiência desenvolvida no Estado de Mato Grosso. Depois dessa delegação legal, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente instituiu normas regulamentares, editou outras novas e criou instrumentos de gestão para instituir a gestão florestal plena, que vem sendo aperfeiçoada com experiências e descobertas extraídas do próprio gerenciamento florestal em evolução constante, bem como das características ambientais dos quatro ecossistemas existentes no Estado (amazônico, cerrado, Pantanal e Araguaia). Tanto a lei de Política Florestal como o Código Ambiental de Mato Grosso, ao longo do desenvolvimento da gestão florestal plena em Mato Grosso, sofreram alterações, entre as quais se destaca a Lei Complementar n° 327, de 22 de agosto de 2008, que criou o Programa Mato-grossense de Legalização Ambiental Rural, disciplina as etapas do Processo de Licenciamento Ambiental de Imóveis Rurais e dá outras providências, denominado MT LEGAL, com o objetivo de promover a regularização das propriedades e posses rurais e sua inserção no Sistema de Cadastramento Ambiental Rural e/ou Licenciamento Ambiental de Propriedades Rurais (SLAPR). Ocorre que, desde sua implantação, subsistem dúvidas, incompreensões e questionamentos na aplicação das normas estaduais, tanto em processos administrativos, como também no Judiciário, provocados, em regra, por servidores do IBAMA, exploradores e comerciantes do setor florestal, além de possuidores e proprietários rurais. Não bastasse, embora não consolidado um entendimento uniforme e pacífico sobre a legislação florestal de Mato Grosso, já foi concluído, pelo Poder Executivo Estadual, o projeto do novo Código Ambiental, após um consistente trabalho multidisciplinar que reuniu, além representantes dos segmentos interessados, produtivo e ambiental, servidores do Meio Ambiente, professores, advogados ambientalistas, procuradores do Estado e promotores de Justiça. O arcabouço legal ambiental que diz respeito, direta ou indiretamente, à ocupação, ao uso e à proteção dos espaços internos a uma propriedade rural, assim como dos recursos naturais que nela existem ou que, deveriam existir, é vasto e encontra-se disperso em diversos diplomas legais. Como ocorre em qualquer área da atividade humana, também para a gestão ambiental da atividade florestal, as normas mais importantes estão contidas na Constituição Federal de 1988. Marcos Henrique Machado 127 Assim, cabe mencionar que o art. 170 da CF determina que a ordem econômica deve considerar a soberania nacional, a propriedade privada, a função social da propriedade e a defesa do meio ambiente, dentre outros princípios a serem observados. Em seu art. 5º, inciso XXII, que “é assegurado o direito de propriedade”, o que obviamente inclui, também, a propriedade imóvel rural. Entretanto, na sequência imediata, o inciso XXIII, do mesmo artigo, determina que “a propriedade cumprirá sua função social”. É importante observar que o direito de propriedade assegurado pela CF 88 não diz respeito a qualquer propriedade, mas apenas àquelas que cumprem sua função social. Assim, ainda em norma constitucional, o conteúdo da função social da propriedade rural é descrito no art. 186, como segue: A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - Aproveitamento racional e adequado. II - Utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente. III - Observância das disposições que regulam as relações de trabalho. IV - Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Observa-se que a propriedade imóvel rural passou a ser considerada um bem produtivo e que tem uma destinação socioambiental, não sendo mais admitida sua utilização para fins especulativos. Assim, após a CF de 88, o uso da propriedade imóvel rural não é mais, apenas, um direito do seu proprietário, mas, de certa forma, um dever ou uma obrigação, na medida em que se impõe “o seu aproveitamento racional e adequado”. Tal aproveitamento é condicionado pelo conteúdo da norma que determina a “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”. O não-cumprimento da função social torna a propriedade rural passível de diversas penalidades, incluindo até mesmo a desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária. No entanto, excetuam-se 128 A gestão florestal plena em Mato Grosso daquela sanção as pequenas e médias propriedades, quando único imóvel de seu proprietário, e as propriedades consideradas produtivas conforme parâmetros legalmente definidos (Lei nº 8.269/93, art. 9º). Quanto ao meio ambiente propriamente dito, o art. 225 da CF de 88 prevê: Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - Preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo das espécies e ecossistemas; II - Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético; IV - Exigir, na forma da Lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental a que se dará publicidade; V - Controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VII - Proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. § 3º - As condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Cabe ressaltar que o conteúdo da norma expressa no art. 225 explicita que o conceito de Desenvolvimento Sustentável foi incorporado à CF 88, na medida em que as gerações futuras, sequer nascidas, já têm direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, restando, portanto, às gerações presentes, diversas obrigações. Adicionalmente, o exame dos parágrafos vinculados ao art. 225 revela a obrigatoriedade de elaboração de um Estudo Prévio de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (respectivamente, Marcos Henrique Machado 129 EIA e Rima), assim como do licenciamento ambiental. São previstas, também, e de forma explícita, a proteção dos processos ecológicos essenciais, da fauna e da flora, assim como a obrigatoriedade de reparação dos danos causados ao meio ambiente. Tendo em vista a realidade da agropecuária brasileira, verifica-se que a gestão ambiental dessa atividade é diretamente afetada. A Constituição Federal prevê, ainda, que a competência de gerir o Meio Ambiente cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal, segundo prevê o art. 23, VI e VII da Constituição Federal. Essa competência é denominada administrativa, comum ao ente federativo (União) e aos entes federados (Estados, Distrito Federal e Municípios). Todavia, essa competência, também chamada de material ou administrativa, decorre de outra, a legislativa, que compreende a elaboração de leis, decretos, resoluções e portarias. Por sua vez, a competência legislativa sobre o Meio Ambiente, adotada na vigente Constituição Federal (art. 24, I, VI, VII e VIII), prevê que cabe à União a edição de normas gerais em matéria ambiental (art. 24, § l°), restando aos Estados e Distrito Federal (art. 24, § 2°) a atuação suplementar. Consequentemente, é a legislação federal que dispõe sobre a gestão ambiental, entre as quais se destaca a Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e institui o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), integrado pela União, Estados e Municípios. Essa lei, em caráter geral, regula: 1) Os objetivos gerais da PNMA: art. 2°, caput, da Lei n. 6.938/81: a) a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental; b) assegurar condições ao desenvolvimento socioeconômico; c) promover os interesses da segurança nacional; d) proteger a dignidade da pessoa humana. • Objetivos Específicos da PNMA: art. 4º, I a VIII, da Lei n. 6.938/81: I - desenvolvimento sustentável; II - definição de áreas prioritárias de ação governamental; III - estabelecimento de critérios e padrões de qualidade ambiental; IV - desenvolvimento de pesquisas e tecnologias; V - difusão de tecnologias; divulgação de dados e informações am bientais; e formação de uma consciência pública; 130 A gestão florestal plena em Mato Grosso VI - preservação e restauração de recursos ambientais; VII - imposição ao poluidor de obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos (princípio do poluidor-pagador) e ao usuário da obrigação de contribuir (como compensação) pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos (princípio do usuário-pagador). • Os Princípios da PNMA: Art. 2º, I a X, da Lei n. 6.938/81: I - meio ambiente como patrimônio de uso comum do povo, portanto como patrimônio da coletividade; II - racionalização do uso de recursos naturais; III - planejamento e fiscalização do uso de recursos naturais; IV - proteção e preservação dos ecossistemas, inclusive com o estabelecimento de APAs e Estações Ecológicas de uso severamente restritivo; V - controle e zoneamento de atividades poluidoras; VI - incentivos ao estudo e à pesquisa; VII - acompanhamento do estado da qualidade ambiental; VIII - recuperação das áreas degradadas; IX - proteção de áreas ameaçadas de degradação; X - educação ambiental. • Os Instrumentos da PNMA: art. 9º, I A XII, da Lei n. 6.938/81: I - estabelecimento de padrões de qualidade ambiental (art. 8°, VII); II - zoneamento ambiental; III - avaliação dos impactos ambientais (o art. 225, § 1°, IV, da CF exige estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade efetiva ou potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente); IV - licenciamento e revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras (o licenciamento ambiental é previsto no art. 10 da Lei n. 6.938/81); V - incentivo à produção e instalação de equipamentos e criação ou absorção de tecnologia, voltados para a melhoria da qualidade ambiental; VI - criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal, tais como APAS, de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas (aqui se trata da criação de espaços especialmente protegidos, nos termos do art. 225, § 1°, III, da CF); VII - sistema nacional de informações sobre o meio ambiente; VIII - Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental; Marcos Henrique Machado 131 IX - penalidades disciplinares ou compensatórias ao não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção da degradação ambiental; X - Constituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente, a ser divulgado anualmente pelo IBAMA; XI - a garantia da prestação de informações relativas ao meio ambiente, obrigando-se o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes; XII - o Cadastro Técnico Federal de atividades potencialmente poluidoras e/ou utilizadoras dos recursos ambientais; XIII - instrumentos econômicos, como concessão florestal, servidão ambiental, seguro ambiental e outros. Pois bem, respeitadas as normas ambientais gerais, aos estados se reserva a faculdade de suplementar a legislação federal, bem como exercer a gestão ambiental concorrentemente. Ocorre que a legislação federal ainda dispõe sobre diversas matérias ambientais, que repercutem nos estados e acabam pautando a gestão ambiental estadual. Entre as principais leis federais ambientais está a proteção da flora e uso da terra (Código Florestal). De forma genérica, toda a legislação brasileira é intervencionista, limitando ou restringindo os poderes inerentes aos direitos de propriedade, em particular sobre a propriedade imóvel rural. Assim, ao proteger as florestas e outras formas de vegetação natural, o Código Florestal Brasileiro (Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965), impõe limites e condições à ocupação e ao uso das terras que compõem a propriedade (ou posse) imóvel rural. No art. 1º está previsto: As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem. § 1º - As ações ou omissões contrárias às disposições deste Código na utilização e exploração das florestas são consideradas uso nocivo da propriedade, aplicando-se, para o caso, o procedimento sumário previsto no Art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil. 132 A gestão florestal plena em Mato Grosso Por isso, o Código Florestal Brasileiro incorpora o instituto jurídico “Florestas e demais formas de vegetação (natural) de preservação permanente”, e que tem como propósito proteger os solos (contra a erosão) e as águas (contra o assoreamento com sedimentos resultantes dos processos erosivos). A Medida Provisória nº 1.956-50, de 28 de maio de 2000, reeditada com o mesmo conteúdo normativo, até a MP nº 2.166-67, de 24/08/2001, e que se encontra vigente, instituiu a figura jurídica das “Áreas de Preservação Permanente”, bem como incorporou, ao Código Florestal, uma definição legal para Reserva Legal, o que antes não existia, segundo os seguintes termos: § 2º - Para os efeitos deste Código, entende-se por: II - Área de preservação permanente: área protegida nos termos dos Arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. III - Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e à reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas. Na sequência, aquelas duas figuras jurídicas serão brevemente examinadas quanto às suas características intrínsecas e sua respectiva localização dentro da propriedade imóvel agrária. Em seu art. 2º, o Código Florestal estabelece o que segue: Considera-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) Ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será: (Tabela I). b) Ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais.5 c) Nas nascentes, ainda que intermitentes, e nos chamados olhos d’água, 5 Segundo dispõe a Resolução Conama 303/2002, (publicada no Diário Oficial da União, DOU, de 13/.../2002), a vegetação natural nas APPs ao redor de lagos e lagoas naturais, localizados em áreas rurais, deve ser mantida ou restaurada em faixas marginais com, no mínimo, 50 m (para lagos com área de até 20 ha), ou, no mínimo, 100 m (para lagos com área maior que 20 ha). Marcos Henrique Machado 133 qualquer que seja a sua localização topográfica, num raio mínimo de 50 (cinquenta) metros. d) No topo de morros, montes, montanhas e serras.6 e) Nas encostas com declividade superior a 45 graus. f) Nas restingas, para a fixação de dunas e estabilização de mangues. g) Nas bordas dos tabuleiros e chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixas nunca inferiores a 100 m, em projeção horizontal. h) Em altitude superior a 1.800 m. Tabela 1. Largura das áreas de preservação permanente (APPs) em função da largura dos rios. Largura do rio (em metros) Menos que 10 Largura da APP (em metros)* 30 Entre 10 e 50 50 Entre 50 e 200 100 Entre 200 e 600 200 Acima de 600 500 * Largura mínima, em cada margem e em projeção horizontal. ** A APP inicia-se no limite do leito maior sazonal ou cota de máxima inundação. O art. 18 do Código Florestal determina a necessidade da recomposição da vegetação natural original, nas hipóteses consideradas nos incisos do art. 2º, quando aquela não mais existir, mesmo que apenas parcialmente. A Reserva Legal é uma determinada parcela da área total de cada propriedade imóvel rural, coberta por vegetação nativa ou natural.7 Para efeitos legais, a RL é constituída apenas após a sua averbação à margem da inscrição da matrícula da propriedade rural no Cartório de Registro de Imóveis competente. Segundo o que dispõe o art. 16 do Código Florestal, as seguintes porcentagens da área total de cada propriedade rural devem ser mantidas a título de Reserva Legal, em diferentes fitofisionomias regiões do território nacional: 6 A Resolução Conama 303/2002 define morro como uma elevação do terreno com altura entre 50 e 300 m em relação à sua base e cujas encostas tenham declividade superior a 30%; topo de morro é a área delimitada a partir da curva de nível localizada a 2/3 da altura da elevação em relação à base. 7 Detalhes sobre esta figura jurídica podem ser examinados em Machado (1999, p. 637-644). 134 A gestão florestal plena em Mato Grosso I - 80% para fitofisionomias florestais, ou 35% para cerrado, na Ama zônia Legal; II - 20% em outras regiões do País; III - 20% em áreas de campo natural, localizadas em qualquer região do País. A lei admite a exploração da vegetação que compõe a RL, mas apenas por meio de cortes seletivos e desde que o proprietário rural elabore um Plano de Manejo Florestal Sustentável e que sua execução seja autorizada pelo órgão ambiental competente (o IBAMA ou órgão ambiental estadual). Em qualquer caso, é defeso realizar a supressão (por exemplo, por meio de corte-raso) da vegetação existente na RL. Para o cálculo da RL na pequena propriedade ou posse rural familiar, a lei admite considerar os plantios já estabelecidos com espécies exóticas (árvores frutíferas, ornamentais ou industriais), cultivadas em sistema intercalar ou em consórcio com espécies nativas.8 No entanto, para quaisquer propriedades, quando não mais existir a vegetação na RL, mesmo que apenas parcialmente, aquela deve ser restaurada com espécies nativas. Em qualquer caso, o art. 44 do Código Florestal (alterado pela Medida Provisória nº 1.956-50, DOU de 28/05/2000, reeditada, com o mesmo conteúdo normativo, até a MP nº 2.166-67, DOU de 25/08/2001, e que se encontra vigente por força da EMC 32, de 11/09/2001) determina que a recomposição da RL deverá ser realizada adotando-se as seguintes alternativas, isolada ou conjuntamente: I - pelo plantio, a cada três anos, de no mínimo, 1/10 da área necessária à sua complementação, com espécies nativas;9 II - pela condução da regeneração natural, desde que autorizada pelo órgão ambiental competente, após comprovação de sua viabilidade por meio de laudo técnico, podendo-se exigir que a área seja cercada. III - pela compensação: na mesma microbacia, e no mesmo ecossistema. 8 O Código Florestal define pequena propriedade ou posse rural familiar como aquela cuja área não exceda a 150 ha na Amazônia Legal, 50 ha no Polígono das Secas e a leste do Maranhão, e 30 ha nas demais regiões do País. 9 Como exceção àquela regra geral, a lei permite que na restauração da Reserva Legal seja realizado o plantio temporário de espécies exóticas, como pioneiras; visando à restauração do ecossistema original, de acordo com critérios técnicos gerais que ainda deverão ser estabelecidos pelo Conama. Marcos Henrique Machado 135 Por sua vez, a Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, fixa os fundamentos, define os objetivos e as competências institucionais e estabelece as ações e instrumentos pela Política Agrícola relativamente às atividades agropecuárias, agroindustriais e de planejamento das atividades pesqueira e florestal. Embora temas referentes à gestão ambiental permeiem todo o texto desse diploma legal, é no Capítulo VI que diz da Proteção ao Meio Ambiente e da Conservação dos Recursos Naturais, que podem ser encontradas as determinações mais pertinentes a essa análise. Assim, em seu art. 19, a Lei de Política Agrícola determina que o Poder Público deverá: I - Integrar a nível de Governo Federal, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios e as comunidades na preservação do meio ambiente e conservação dos recursos naturais. II - Disciplinar e fiscalizar o uso racional do solo, da água, da fauna e da flora. III - Realizar zoneamentos agroecológicos que permitam estabelecer critérios para o disciplinamento e o ordenamento da ocupação espacial pelas diversas atividades produtivas [...]. IV - Promover e estimular a recuperação das áreas em processo de desertificação. V - Desenvolver programas de educação ambiental, a nível formal e informal, dirigidos à população. VI - Fomentar a produção de sementes e mudas de essências nativas. VII - Coordenar programas de estímulo e incentivo à preservação das nascentes dos cursos d’água e do meio ambiente [...]. Parágrafo único - A fiscalização e o uso racional dos recursos naturais do meio ambiente são também de responsabilidade dos proprietários de direito, dos beneficiários da reforma agrária e dos ocupantes temporários dos imóveis rurais. Sem perder de vista o Código das Águas (Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934), que tem um enfoque econômico e dominial sobre as águas, como a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, instituiu-se a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Essa lei estabelece que a água é um bem de domínio público, com valor econômico e que a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implemen- 136 A gestão florestal plena em Mato Grosso tação da Política Nacional de Recursos Hídricos assim como para a implementação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos.10 Em seu art. 3º, a Lei nº 9.433/97 estabelece as diretrizes gerais de ação: III - A integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental. V – Articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do solo. Quanto aos instrumentos, os Planos de Recursos Hídricos incluirão no seu conteúdo mínimo a análise de alternativas de crescimento demográfico, de evolução das atividades produtivas e de modificações dos padrões de ocupação do solo. A Lei nº 9.433/97 dispõe, também, sobre a outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos (inclusive de aquíferos subterrâneos), a cobrança pelo uso da água, assim como sobre a criação e atuação dos comitês de Bacia Hidrográfica. A Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da CF da 88, e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Além de estabelecer as categorias, denominações e definições das Unidades de Conservação (UCS), a Lei do SNUC, como é conhecida, prevê a obrigatoriedade de que cada UC deva ter um plano de manejo. Salientese que o plano de manejo de uma Unidade de Conservação deve contemplar a área da UC propriamente dita, seu entorno e corredores de biodiversidade adjacentes. Em seu art.2º, essa lei define zona de amortecimento como “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade”. Adicionalmente, no art. 25, § 1º, informa-se que o órgão responsável pela administração da UC estabelecerá normas específicas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos de uma UC. Portanto, cabe registrar que há previsão normativa para o eventual uso condicionado do solo, para atividades produtivas, em propriedades rurais localizadas dentro da zona de amortecimento de uma UC. 10 O art. 20 da Lei nº 8.171 /91 também informa que “As bacias hidrográficas constituem-se em unidades básicas de planejamento do uso, da conservação e da recuperação de recursos naturais”. Marcos Henrique Machado 137 Visando regulamentar as disposições relativas aos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída com a Lei nº 6.938/81, a Resolução Conama nº 001/86 define Impacto Ambiental e exemplifica os empreendimentos que necessitam da elaboração do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima). A Resolução Conama nº 237/97 estabelece, exaustivamente, as atividades e empreendimentos que estão sujeitos ao licenciamento e seus respectivos níveis de competência. O art. 1º da Resolução Conama nº 001/86 define impacto ambiental segundo os seguintes termos: Para, efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: I - A saúde, a segurança e o bem-estar da população. II - As atividades sociais e econômicas. III - A biota. IV - As condições estéticas e sanitárias do meio ambiente. V - A qualidade dos recursos ambientais. A concessão do licenciamento é feita em etapas, na medida em que se trata de um processo evolutivo, onde cada fase do empreendimento é submetida à avaliação pelo órgão ambiental. Registre-se que impactos ambientais podem ocorrer tanto antes, como durante e até mesmo depois que o empreendimento tenha entrado em operação. por isso, as licenças ambientais são divididas, em três categorias distintas: • Licença Prévia (LP) - É solicitada no início do processo de licenciamento ambiental, na fase de planejamento do empreendimento, obra ou atividade; quando então o Poder Público procederá a avaliação em relação à situação ambiental e fará exigências em relação à necessidade de elaboração dos projetos específicos para o caso. • Licença de Instalação (LI) - É solicitada mediante Licença Prévia. Nessa fase, serão apresentados os planos e programas ambientais. Após se obter essa licença, o interessado poderá iniciar a implantação da atividade. 138 A gestão florestal plena em Mato Grosso • Licença de Operação (LO) - Somente poderá ser requerida após se obter a LP e a LI. Só nessa fase é que o empreendimento poderá operar. A autorização ambiental e/ou florestal difere da licença em virtude de ser concedida em etapa única e ser específica para uma determinada ação, permitindo ao requerente implementar, de imediato, a atividade objeto. Conforme o estabelecido no anexo I, citado no § 1º do art. 2º da Resolução nº 237/97, editada pelo Conama, dentre as atividades ou empreendimentos que estão sujeitos ao licenciamento ambiental, destacam-se: • Atividades Agropecuárias: projeto agrícola, criação de animais como, por exemplo, a suinocultura e os projetos de assentamentos e de colonização. • Uso de Recursos Naturais: silvicultura, exploração econômica da madeira, ou lenha e subprodutos florestais; atividade de manejo de fauna exótica e criadouro de fauna silvestre: utilização do patrimônio genético natural; manejo de recursos aquáticos vivos: introdução de espécies exóticas e/ou geneticamente modificadas e uso da diversidade biológica pela biotecnologia. Ocorre que, em se tratando de gestão florestal, o Código Florestal, alterado pela Lei Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006, prevê pela nova redação do art. 19 que: A��������������������������������������������������������������������� exploração de florestas e formações sucessoras, tanto de domínio público como de domínio privado, dependerá de prévia aprovação pelo órgão estadual competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente SISNAMA, bem como da adoção de técnicas de condução, exploração, reposição florestal e manejo compatíveis com os variados ecossistemas que a cobertura arbórea forme. Essa regra transferiu, na sua essência, a gestão florestal aos estados, estabelecendo um gerenciamento absoluto ou completo sobre a exploração vegetal através de uma divisão de competência muito semelhante ao que ocorre no Sistema Único de Saúde, cuja gestão é tripartida entre a União, Estados e municípios, mas por meio de uma contratualização se transfere ao município, com financiamentos pactuados, a gestão plena da saúde. Marcos Henrique Machado 139 Mato Grosso foi o primeiro Estado brasileiro a receber e assumir a gestão florestal plena, a partir de uma experiência compartilhada na forma de cooperação técnica que está sendo consolidada pela aplicação de atos normativos (leis, decretos, portarias) editados no âmbito estadual. Essa gestão florestal plena, inédita e em evolução, é, seguramente, um dos principais elementos de autonomia na gestão ambiental do Estado de Mato Grosso, que não apenas permite ao órgão estadual gerenciar a atividade de exploração vegetal, não apenas decorrente do inato poder de política e regulação, mas, sobretudo, porque exerce sobre o setor a tributação, cuja pauta de comercialização, transporte e industrialização da madeira é por ele fixada. CONCLUSÃO O presente artigo pretendeu mostrar a importância e as consequências socioambiental-econômicas no Estado de Mato Grosso da autonomia ambiental na área florestal, sem perder de vista o interesse tributário inerente à atividade de exploração florestal. Acredita-se que, a partir de um diagnóstico histórico, cronológico e crítico sobre a gestão florestal plena em Mato Grosso, seja possível se estabelecer os pressupostos para que assegurem verdadeiramente a sustentabilidade ambiental, conjugando a viabilidade econômica e a incidência tributária justa, inerentes à atividade de exploração florestal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, F. S. Direito de propriedade e meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2001. ARAÚJO, Luiz Ernani Bonesso; VIEIRA, João Telmo. ECODIREITO – O Direito Ambiental numa perpectiva. Santa Cruz do Sul-RS: EDUNISC, 2007. ASSAD, Zaluir Pedro. Legislação Ambiental de Mato Grosso. Cuiabá: Janina, 2007. DIAS, Genebaldo Freire. Ecopercepção – Um resumo didático dos desafios socioambientais. São Paulo: Gaia, 2004. FIGUEIREDO, G. J. P. de. A propriedade no Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Esplanada, 2004. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. 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Resoluções 001/86, DOU de 17 de fevereiro; 237/97, DOU de 22 de dezembro; 303/02, DOU de 20 de março. _____. Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <www.presidência.gov.br>. Legislação. _____. Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934 – Código das Águas. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Legislação. _____. Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965 – Código Florestal. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Legislação. _____. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981 – Política Nacional do Meio Ambiente Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Legislação. _____. Lei n. 8.171, de 17 de janeiro de 1991. Política Agrícola. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Legislação. _____. Lei n. 9.433, de 08 de janeiro e 1997 – Política Nacional de Recursos Hídricos. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Legislação. _____. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000 – Sistema Nacional de Unidades de Marcos Henrique Machado 141 Conservação. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Legislação. _____. Ministério do Meio Ambiente. Termo de Cooperação Técnica para Gestão Florestal Compartilhada, DOE/09/05. MATO GROSSO. Lei Complementar n. 214, de 23 de junho de 2005. Disponível em: <www.sema.mt.gov.br>. Atos Normativos. _____. Lei Complementar n. 232, de 12 de janeiro de 2006. Disponível em: <www. sema.mt.gov.br>. Atos Normativos. _____. Lei Complementar n. 235, de 21 de dezembro de 2005. Política Florestal do Estado de Mato Grosso. Disponível em: <www.sema.mt.gov.br>. Atos Normativos. _____. Lei Complementar n. 327, de 22 de agosto de 2008 - MT LEGAL. Disponível em: <www.sema.mt.gov.br>. Atos Normativos. SÍTIOS CONSULTADOS www.mma.gov.br www.sema.mt.gov.br www.ibama.gov.br. www.florestabrasil.com.br www.ambientebrasil.com.br www.arvore.com.br A COPA DE 2014 E A REALIDADE ESTRUTURAL NO ATENDIMENTO AO TURISTA ESTRANGEIRO NA RELAÇÃO CONSUMERISTA EM CUIABÁ Orivaldo Peres Bergas1 Jéssika Matos Paes de Barros2 Elza de Souza Dias3 INTRODUÇÃO Pensando na repercussão que despertaria a realização do evento da Copa do Mundo que acontecerá na cidade de Cuiabá em 2014, empreendeu-se uma pesquisa para abordar alguns aspectos relevantes, quanto às perspectivas e problemas atuais a serem solucionados ou, ao menos amenizados, no comércio em Cuiabá, sob o aspecto das relações consumeristas. Um dos questionamentos que levantamos é se o comércio local atende às expectativas necessárias ao atendimento do turista estrangeiro para a Copa em 2014 sob a ótica do atendimento jurídico, a qualidade dos produtos de consumo, a solução nos litígios consumeristas e quanto à barreira do idioma. Pretendemos demonstrar o que está satisfatório e o que ainda está para ser melhorado de imediato na realização de um atendimento de qualidade dentro dos padrões aceitáveis tanto em nível de comércio local, quanto em nível jurídico. Buscamos descobrir se as sociedades empresariais locais, bem como seus funcionários, estão preparados para atender e interagir com o turista estrangeiro em suas necessidades, se conhecem os produtos que vendem, 1 Professor universitário, graduado em Direito pela Faculdade Afirmativo, graduado em Ciências Sociais, História e Geografia FAFIPA-PR, mestre em Agricultura Tropical - UFMT, mestrando em Gestão Educacional INSET-SP, especialista em Metodologia do Ensino Superior - FGV. 2 Professora de Direito do Consumidor, especialista em Direito Empresarial; especialista em Direito Processual Civil; especialista em Docência do Ensino Superior; mestre em Educação pela Universidade de Cuba, mestre em Educação pela UNOESTE-SP; doutoranda em Direito pela Universidade da Espanha. 3 Graduada em Direito pela UFMT, advogada, superintendente do Fundo de Assistência Parlamentar da Assembleia Legislativa de Mato Grosso. 144 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... se possuem condições de oferecer ajuda na escolha do produto e, principalmente, condições para solucionar problemas advindos da má qualidade eventual de um produto ou mau funcionamento deste, direcionando o cliente para atendimento jurídico do Procon ou, ainda, solucionando o problema sem a necessidade de prosseguir a instância judicial. Os procedimentos metodológicos caracterizaram-se em uma abordagem ampla, com pesquisa de campo com a finalidade de obter informações e conhecimento acerca de um problema, e possibilitou descobrir novos fenômenos e as relações entre eles, por meio da qual se dá a superação de hipóteses sobre visões parciais, caracterizando, de modo geral, uma abordagem epistemológica privilegiando as dimensões analítica, empírica e normativa. Ficou determinada a realização da pesquisa exploratória consistindo em investigações cuja principal atribuição foi a formulação de questões ou de um problema. A pesquisa foi estruturada com base em um questionário e entrevistas em 22 lojas de diferentes pontos comerciais, tais como: o centro da cidade e os shoppings. Entre a diversidade de produtos podemos citar lojas de calçado, vestuário, alimentação, eletrodoméstico, transporte, perfumaria e livraria. Sob o ponto de vista histórico, podemos dizer que a última Copa na América do Sul foi no ano de 1978 na Argentina. Volta, portanto, a copa a ser realizada após 36 anos no continente sul-americano. A primeira no Brasil havia sido a de 1950, há 64 anos. Não é possível ainda se ter uma dimensão exata do que realmente será a Copa de 2014 para o Estado de Mato Grosso e, principalmente, para sua capital, porque os estudos ainda estão sendo realizados e os resultados só poderão ser avaliados após um detalhamento de critérios administrativos, mas podemos entender que, para se preparar a infraestrutura necessária, os investimentos públicos corresponderão com uma das maiores participações para o bom resultado desse evento. Esses investimentos vão interferir na capacidade dos serviços no comércio, na rede hoteleira de Cuiabá, devido aos turistas nacionais e internacionais, além do marketing regional do lugar, quanto às suas belíssimas características ambientais e turísticas (Chapada dos Guimarães, Pantanal e Amazônia), além, é claro, de uma grande geração de empregos. Sobre o fato de Cuiabá ter sido escolhida como sede da Copa de 2014, João Havelange acredita que haverá grandes reflexos para o Pantanal, como: Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 145 Um impacto interno e externo. Principalmente em função daqueles que aqui vierem e conhecerem o que essas regiões podem apresentar, oferecer, sua flora, fauna. Tudo isso as torna inesquecíveis para o turista. E isto traria, no decorrer dos anos, mais turismo e mais desenvolvimento para cada região.4 O ministro do Turismo, Luiz Barretto, afirmou que a realização da Copa de 2014 no Brasil “representa uma “janela de oportunidades” para o turismo brasileiro. É um evento que mobiliza não apenas uma cidade, mas todo o Brasil”.5 A fala do ministro foi reafirmada por Ray Whelan, consultor da Fifa: “será a grande oportunidade de o Brasil mostrar o que tem a oferecer, as ações para “vender” o Brasil vão se estender durante vários anos antes do evento e os resultados vão perdurar pelos 30 anos subsequentes”.6 O evento da Copa, um espetáculo vislumbrante, é um movimento que garante aglutinar valores, oportunidades e significados movidos por expectativas e propriamente ao consumo massivo de serviços e bens culturais produzidos essencialmente na direção da movimentação midiática ao momento em questão, o encantamento aumenta conforme se aproxima o momento da abertura do evento. Também, por formar e (re)constituir intercomunicações sociais, hábitos e estilos de vida que ordenam valores e viabilizam os caminhos da lógica mercadológica que rege a sociedade do consumo. Para Walter Feldmann, o esporte vai ocupar um papel determinante no país, na próxima década. Há dez anos o país persegue melhorias sociais e através do esporte temos essa alavanca de transformação. Não podemos perder a oportunidade de transformar um projeto esportivo em um projeto de país. A 4 RIVOLI, Luciana; ROQUE, Geraldo; CHAGAS, Celso. João Havelange fala sobre a Copa de 2014 e os desafios que o Brasil tem pela frente. Assessoria de comunicação da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Disponível em: http://www.portaldocomercio.org. br/media/Havelange2.pdf. Acesso em: 18 out. 2009. 5 BARRETO, Luiz. Evento será positivo para o turismo brasileiro. Disponível em: <http://www. copanopantanal.com.br/index.asp?p=noticia&id_noticia=133>. Acesso em: 9 abr. 2010. 6 WHELAN, Ray. Evento será positivo para o turismo brasileiro. Disponível em: <http://www. copanopantanal.com.br/index.asp?p=noticia&id_noticia=133>. Acesso em: 9 abr. 2010. 146 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... Copa diz respeito à economia, mas, sobretudo ao desenvolvimento e à qualidade de vida.7 Para Barretto, “hospitalidade, calor humano e talento para o futebol são fatos. O grande desafio do Brasil e dos brasileiros é dar exemplo de gestão, organização e administração”.8 O executivo Márcio Santiago explica que, no campo de ações debatidas, discute-se muito a nova configuração na qual: O turismo passa a ser visto como setor determinante para a manutenção da economia mundial, agindo intrinsecamente desde a geração de empregos a melhorias na infraestrutura, e mais recentemente fomos notados como fator preponderante na preservação ambiental. As trocas de experiências e visões estratégicas são oportunidades de desenvolvimento, melhorias econômicas e sociais e exposição e promoção junto à comunidade mundial.9 A Copa é um instrumento social interagindo de forma política em todo o cenário internacional, devendo fortalecer os laços e consolidando a imagem do Brasil e de Mato Grosso na geopolítica mundial. A imprensa e o governo, de forma geral, divulgam que o Estado de Mato Grosso vem sendo o Estado que mais cresce no Brasil e mantém a maior taxa de crescimento nas exportações, subindo a cada ano posições no ranking dos maiores exportadores brasileiros, ocupando atualmente a sexta colocação, respondendo por aproximadamente 6,5% do total das vendas externas do país e mantendo uma das maiores taxas de crescimento nacional, com um superávit na balança comercial acumulado em torno de US$ 3,34 bilhões, correspondendo a 36% do saldo comercial do país. 7 FELDMANN, Walter. Márcio Santiago será coordenador dos Conventions nas 12 cidades da Copa. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria turística brasileira. Caderno de Políticas do turismo. Disponível em: <http://www.brasilturis.com.br/canal_materia.neo?Materia=10565>. Acesso em: 9 abr. 2010. 8 BARRETO, Luiz. Seminário sobre a Copa identifica proposta. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria brasileira. Caderno de Políticas do turismo. Disponível em: <http://www.brasilturis. com.br/can al_materia.neo?Materia=10565>. Acesso em: 9 abr. 2010. 9 SANTIAGO, Márcio. Márcio Santiago será coordenador dos Conventions nas 12 cidades da Copa. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria turística brasileira. Caderno de Políticas do turismo. Disponível em: <http://www.brasilturis.com.br/canal_materia.neo?Materia=10565>. Acesso em: 9 abr. 2010. Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 147 Além da preocupação com a infraestrutura temos também que nos preocuparmos com a qualificação, tanto em nível dos receptivos turísticos, como em nível de relacionamento comercial, como atendimento aos estrangeiros em compras, serviços, transportes, hospedagens e nas riquezas socioculturais regionais. Para uma adequada convivência dos torcedores com os eventos dos jogos, a Fifa exige o bloqueio de uma área de 2 quilômetros específica como estrutura para os torcedores (World Cup Mile ou Fan Mile), onde são disponibilizadas telas gigantes para projeção dos jogos com estrutura de apoio, como: sanitários, alimentação, seguranças, posto de saúde, transporte etc., denominados Fans Gardens ou Fans Areas. Esses serviços têm sido utilizados nas Copas obtendo sucesso absoluto. Tanto a sociedade quanto o governo, empresários e profissionais de Mato Grosso devem se mostrar ambientalmente conscientes e desenvolver uma série de ações para a Copa de 2014, para obter o sucesso necessário no intuito de mostrar uma imagem vencedora e campeã. Periodicamente os consumidores nacionais vêm se conscientizando da importância e da necessidade de conhecimento sobre o Código de Defesa do Consumidor (CDC), como instrumento de amparo aos seus direitos e na relação de consumo. É sem dúvida um mecanismo inserido na sociedade para disciplinar deveres e obrigações aos produtores e fornecedores de bens e serviços, podendo esse instrumento ser um importante passo na busca de oferecer também ao turista estrangeiro esse amparo legal. A Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, que criou o Conselho Nacional de Imigração, define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, e em seu art. 1° diz: “em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair, resguardados os interesses nacionais”.10 Nossa Constituição Federal, de 1988, tem como princípios a proteção de uma vida digna a quem compartilha o espaço nacional sem distinção e sem discriminação, devendo todos compartilhar o espaço jurídico de Estado Democrático de igual forma em direitos e deveres, tendo como base de produção a livre iniciativa, gerando consumo e entretenimento. 10 BRASIL. República Federativa do Brasil. Estatuto do Estrangeiro. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 19 jun. 2007. 148 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... Além disso, tem como inovação a previsão legal dos direitos difusos e coletivos, com base constitucional na busca da igualdade, em especial, o direito do consumidor, conforme trata no: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXII, o Estado promoverá, na forma da Lei, a Defesa do Consumidor,11 Torna o direito do consumidor em direito fundamental, dando destaque à defesa do consumo ou liberdade ao capitalismo. A relação de consumo está também contemplada nos princípios gerais sobre a ordem econômica, trazendo no art. 170 da CF as seguintes relações: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] V- defesa do consumidor [...].12 O Código de Defesa ao Consumidor (CDC), em seu art. 4º, estabelece uma Política Nacional de Relações de Consumo e no art. 5º cria mecanismos para a execução desta política. Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo; Art. 5º - Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o Poder Público com vários instrumentos [...].13 11 BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/html/legislacao. Acesso em: 21 jun. 2007. 12 Idem (Internet). 13 BRASIL. República Federativa do. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 28 jun. 2007. Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 149 É de fácil compreensão que o direito do consumidor deve ser obedecido em todo o território nacional e por todos que, de uma forma ou de outra, transitem nele, nacionais ou estrangeiros naturalizados ou turistas que nele exerçam atividades econômicas passivas ou ativas sob a égide da livre iniciativa, tendo tanto os empreendimentos, como seus consumidores, que respeitar as regras constitucionais e infraconstitucionais adotadas dentro do nosso país. Se o turista é sujeito de direito, estando em território nacional, também está sujeito às obrigações aqui previstas em nossas leis, não constituirá ato lícito incitar o desconhecimento da lei. São conferidos os mesmos direitos que são dados ao brasileiro e ao estrangeiro residente. Com esse reconhecimento e em conformidade com o texto constitucional, que reconheceu explícita e, implicitamente, a vulnerabilidade e a hipossuficiência dos consumidores, é que foi editada a Lei nº 8.078 em 11 de setembro de 1990, que consagrou finalmente os Direitos do Consumidor no Brasil. Estudos realizados pela Organizações das Nações Unidas (ONU), durante todos os crescimentos históricos das atividades industriais e das práticas comerciais, verificadas a partir do século XX, e sensível com o aspecto social desse fenômeno, acreditou fazer-se necessário criar normas mínimas que pudessem garantir um justo equilíbrio de forças entre produtores e consumidores de bens e serviços, levando-se em consideração os interesses e necessidades entre todos os países filiados à ONU, em busca de desenvolvimento sustentável entre produções socioeconômicas, além da reciprocidade no tratamento do ingresso de estrangeiros. Essas normas estão na base da “Resolução 39/248, de 16 de abril de 1985, sob a forma de diretrizes gerais para a proteção do consumidor”.14 Outro órgão importante no desenvolvimento comercial é o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), o qual tem desenvolvido diversos projetos e iniciativas comuns com outros países, principalmente da América Latina, por compreender que “a defesa do consumidor somente pode ser efetiva se coordenada para além do âmbito do Estado nacional”.15 14 ONU. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 39/248-ONU, de 16/04/85. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/view/24028/23591>. Acesso em: 28 jun. 2010. 15 BRASIL. República Federativa do Brasil. Consumidor do Mundo: direito do consumidor. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEMIDC9360EA3FFE6 4AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm>. Acesso em: 19 jun. 2010. 150 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... Esses projetos envolvem temas como proteção do consumidor no comércio eletrônico, proteção de dados pessoais, construção de um sistema de informações latino-americano, bem como a promoção da harmonização normativa e do fortalecimento da legislação da defesa do consumidor na América Latina. O DPDC participa também de comissões e fóruns internacionais para a discussão de temas estratégicos e formulação de políticas comuns para a defesa do consumidor, dentre os quais se destacam, no âmbito do Mercosul, o Comitê Técnico nº 07 “Defesa do Consumidor” (CT07), cuja finalidade é harmonizar conceitos básicos das legislações de proteção ao consumidor dos países do Bloco e o SGT-13, que constitui grupo de trabalho que visa à implementação de normas comuns acerca de comércio eletrônico.16 O Brasil recebe anualmente a visita de muitos estrangeiros, seja a trabalho ou turismo. O governo desenvolve um Programa Nacional de Qualidade e Produtividade (PBQP). As ações constam de: conscientização, educação do consumidor e do usuário, divulgados através do Guia do Consumidor Estrangeiro, que tem o propósito de orientá-los temporariamente quanto aos seus direitos e responsabilidades, bem como estabelecer canais de comunicação no consumo de bens e serviços em nosso país. Esse guia baseia-se na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, que é um instrumento jurídico moderno e eficaz, a serviço dos seus direitos, tendo como base jurídica a Constituição brasileira preconizando como um dos deveres do Estado a defesa do consumidor. A política nacional de proteção ao consumidor é coordenada, em todo o Brasil, pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) coordenada pelo Ministério da Justiça, e executada por diversos órgãos públicos, da União, dos Estados e dos Municípios, que fiscalizam e controlam a produção, industrialização, distribuição e a 16 BRASIL. República Federativa do Brasil. Consumidor do Mundo: direito do consumidor. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEMIDC9360EA3FFE6 4AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm>. Acesso em: 19 jun. 2010. Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 151 publicidade dos produtos e serviços e pelas entidades privadas de defesa do consumidor. Todos integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).17 O conteúdo do guia dá ênfase especialmente no que diz respeito aos direitos básicos, ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e à reparação de danos, complementado pela transcrição da legislação vigente, aplicável aos produtos e serviços normalmente consumidos pelo estrangeiro temporariamente no país, como serviços, hotelarias e transportes. As principais atribuições e responsabilidades do SNDC, Dec. nº 2.181/97, é dar proteção ao consumidor estrangeiro, orientar e analisar suas consultas, denúncias, reclamações e sugestões no âmbito federal, e dos Procons e similares nos Estados e municípios. De acordo com o Código de Defesa do Consumidor e do Decreto 2.181/97, os Procons são organismos que têm a função de intervir nas relações de consumo em nível municipal, buscando harmonizá-las, protegendo os direitos do consumidor. Por ser um órgão integrante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, cabe ao Procon planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a política de proteção e defesa do consumidor em nível municipal. Deve receber, analisar, avaliar e apurar consultas e denúncias de consumidores, ou entidades que os representam, processando as reclamações e encaminhamentos a fim de determinar soluções. Cabe-lhe, ainda, fiscalizar as relações de consumo e desenvolver atividades que visem esclarecer, conscientizar, educar e informar o cidadão sobre seus direitos e deveres, enquanto consumidor. O nosso ordenamento jurídico estabelece também em sua conjuntura a efetivação da reparação dos danos como direito fundamental, como os que estão previstos em nossa Constituição no art. 5º, incisos: V - é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem 17 BRASIL. República Federativa do Brasil. Guia do Consumidor Estrangeiro. Ministério da Justiça. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEMIDC9360EA3FFE6 4AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm. Acesso em: 19 jun. 2010. 152 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.18 A efetiva reparação de dano é considerada como plena satisfação requerida sem limites legais ou de restrição de responsabilidade na relação de consumo, também prevista no CDC em seu art. 6º “são direitos básicos do consumidor” [...] inciso: VI: “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.19 O consumidor conta com a Justiça comum, bem como os Juizados Especiais, que têm competência para decidir conflitos relativos a direitos patrimoniais, desde que o valor da causa não ultrapasse 40 salários mínimos. Se o valor for inferior a 20 salários, o cidadão não necessita constituir advogado. As Promotorias de Justiça, órgãos do Ministério Público, são responsáveis pela garantia do cumprimento da legislação que protege o consumidor. Atuam nas questões coletivas que envolvam interesse social. Em muitos estados existem Delegacias de Polícia especializadas no atendimento, que atuam na repressão dos crimes praticados contra o consumidor estrangeiro. A ação na Justiça pode ser individual ou em grupo, se várias pessoas sofreram um mesmo tipo de dano previsto no art. 81 do CDC: “a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo [...]”.20 Se o dano for coletivo, os órgãos de proteção ao consumidor, o Ministério Público ou as associações de consumidores poderão, em nome próprio, ajuizar ação em defesa dos lesados. Os aspectos mais importantes do código, sem dúvida, estão na sistematização da defesa dos consumidores, possibilitando a reparação dos danos causados. Outro aspecto importante é o de orientação dos consumidores como prevenção e proteção nas relações de consumo. Os serviços mais utilizados pelos estrangeiros no país, enquanto consumidores, são: transportes, hotelarias e alimentação, e o CDC não trata apenas dos direitos básicos do consumidor. São também direitos do consumidor o que prevê o art. 6º: 18 BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 21 de jun. 2007. 19 BRASIL. República Federativa do Brasil. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 28 jun. 2007. 20 BRASIL. República Federativa do Brasil. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 28 jun. 2007. Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 153 Proteção da vida e da saúde, segurança; educação para o consumo; liberdade de escolha de produtos e serviços; informação clara sobre o produto; proteção contra publicidade enganosa e cláusulas abusivas; modificação das cláusulas contratuais; indenização e reparação de danos; acesso à Justiça e administrativos; facilitação de defesa de seus direitos, adequada prestação de serviços públicos.21 Receber um estrangeiro no país é um direito e não um dever da nação, por isso a situação jurídica é regulada pela Lei 6.815, de 1980, denominado “Estatuto do Estrangeiro”, com as alterações da Lei 6.984/81 estabelecendo a liberdade ao entrar, permanecer ou sair do Brasil, desde que respeitados os interesses do país. Segundo Fraga, “estrangeiro é todo aquele que não tem nacionalidade do Estado em cujo território se encontra”.22 O “turista estrangeiro” é aquele que vem para o país, em caráter de visita, sem finalidade imigratória, e sem intenção de exercer atividades econômicas remuneratórias e permanentes. O conteúdo apresentado teve avaliação analítica quantitativa e qualitativa, e na comparação dos resultados, entende-se que há necessidade de mudanças de atitudes, principalmente quanto aos conhecimentos jurídicos e administrativos de proteção ao consumidor e de idiomas estrangeiros. Na realização da pesquisa, algumas questões puderam ser respondidas de forma satisfatória, tais como: Das empresas pesquisadas 36% possuem uma média acima de 30 funcionários, sendo a maioria com idade que varia de 21 a 30 anos. Em termos empregatícios isso indica que são empresas de bom porte e estrutura para o atendimento ao público. 21 Idem (internet). 22 FRAGA, Mirtô. O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 1985. 154 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... Figura 1 – Nível de escolaridade dos funcionários A maioria dos empregados possui ensino médio completo (figura 1). As empresas que responderam que possuem funcionários que falam outros idiomas, geralmente se trata do gerente das lojas, porém os funcionários que têm um contato direto com o público não falam outros idiomas. Dos que falam outros idiomas, o inglês é o predominante, e em segundo lugar, o espanhol (línguas universais). Observamos que 44% das empresas não possuem nenhum funcionário com esta capacitação (figura 2). Figura 2 – Outros idiomas falados Quando se trata das modificações que deverão ser realizadas para aperfeiçoar seus empregados para melhor atendimento ao estrangeiro, cerca de 84% opinam que é mais importante a realização de cursos de capacitação e de idiomas para seus próprios empregados do que apenas a contratação de novos empregados com conhecimento de outros idiomas, Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 155 uma vez que já tiveram os treinamentos e aperfeiçoamentos necessários nos serviços e produtos oferecidos (figura 3). Figura 3 – Melhorias no atendimento Ao ser abordado o assunto acerca do Direito do Consumidor descobrimos que a grande maioria nunca participou de nenhum curso sobre esta temática e que não tem nenhum tipo de experiência de viagem ou de trabalho no exterior (figura 4). Figura 4 – Capacitação em Direito ao Consumidor Questionados sobre quais são as maiores dificuldades que os estrangeiros poderão encontrar no comércio em Cuiabá, é visível e incontestável que a maior dificuldade está relacionada ao idioma e não ao produto e 156 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... ao preço (figura 5). Salientamos que a obrigação principal no tratamento linguístico cabe ao turista, que deve se adequar às culturas locais. Figura 5 – Dificuldades do comércio local Com relação às informações de serviços e produtos, como cardápios e preços, a tendência deverá ser de que as empresas deverão adequá-los com informações no mínimo ao idioma inglês e na moeda dólar. Os governos locais também devem se preocupar em divulgar informações, mapas, endereços, locais turísticos, nesta mesma comunicação, já que tem sido a mais difundida no mundo. Quando o assunto é reclamação por estrangeiros, houve certa dúvida, em relação à autoridade competente para solucionar estes litígios consumeristas, muitos não sabem para onde encaminhar o estrangeiro (figura 6). Figura 6 – Para onde encaminhar o estrangeiro ou encaminhamento do estrangeiro Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 157 Esse é um tema que precisa ser mais divulgado por meio de órgãos governamentais, orientações pelos Procons, processos de informações midiáticas e, mesmo em nível comercial e social. Apesar de isso poder trazer um desconforto às instituições comerciais, poderá dar, simultaneamente, segurança a essa clientela exigente. Cerca de 59% das empresas não possuem um setor especializado para atendimento ao estrangeiro, porém, com a aproximação desse evento internacional, as empresas que desejam oferecer um atendimento e serviço de mais qualidade deverão preocupar-se com esse tipo de contratação, e provavelmente a temporária terá predomínio principalmente para atender à demanda nos momentos de ápice do evento. Na opinião dos entrevistados é fundamental uma cartilha sobre Direitos do Consumidor em outros idiomas (figura 7). Informamos que essa cartilha já existe é o “Guia do Consumidor Estrangeiro”. Além do idioma nacional, há duas versões, uma em inglês e outra em espanhol, e encontra-se no site do Ministério da Justiça http:// portal.mj.gov.br. É preciso dar maior divulgação desse guia, pois ele é desconhecido para a maioria da sociedade. Figura 7 – Cartilha para o estrangeiro A maioria dos turistas que vem para Mato Grosso são brasileiros de outras regiões do país, embora o Estado seja muito promissor em apresentar várias opções turísticas, o comércio local recebe poucos turistas internacionais, não possuindo uma retrospectiva de experiências. 158 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... Analisando as perspectivas para o comércio em 2014 (figura 8), percebemos que na visão dos lojistas, em relação à copa, equivale-se em igual valor tanto em oportunidade quanto ao desenvolvimento, vivem uma expectativa animadora. Figura 8 – Perspectiva para o comércio em 2014 Entretanto, oportunidade pode-se ter como indicativo de opções para resolver um problema, a qual terá uma plataforma de decisões delimitadas por soluções realmente escolhidas. Enquanto desenvolvimento entende-se por um processo que implica uma mudança, uma evolução, um crescimento e um avanço. Tanto as oportunidades quanto o desenvolvimento que a Copa poderá trazer têm sido motivo de muita atuação da sociedade e, ao se aproximar, tende a ser mais intensa a participação na busca de benefícios para o turismo e o desenvolvimento econômico de Mato Grosso, que está tendo o grande privilégio de ter sido escolhido como uma das sedes pela Fifa. O desenvolvimento está diretamente ligado ao conhecimento que o Estado poderá implementar com os benefícios que o evento tradicionalmente conduz e cria, e não apenas a uma posição casuística. Portanto, os investimentos só serão justificados para a sociedade e o Estado se os benefícios permanecerem mesmo com o encerramento do evento internacional. Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 159 CONSIDERAÇÕES FINAIS Entendemos que a aplicação correta do Código de Defesa do Consumidor cria um sistema de responsabilidade e de regras próprias no direito e garante a hipossuficiência dos consumidores. Esse é sem dúvida um instrumento de conhecimento para as atividades de turismo e recreação, o qual pode envolver estrangeiros e a eles possibilitar a aplicação de normativas jurídicas que possam garantir além da satisfação, do lazer de qualidade, a confiabilidade em um sistema jurídico nacional. A interação, proteção e conhecimento do consumidor estrangeiro com os órgãos de defesa do consumidor, baseados nas relações de consumo e serviços, são de fundamental importância. Os consumidores estrangeiros devem manifestar-se sempre que se sentirem lesados, e os órgãos de administração devem oferecer suporte a estes, pois, assim, além de os turistas estrangeiros terem seus direitos assegurados, os órgãos também estarão contribuindo para o aperfeiçoamento da qualidade dos produtos e serviços disponíveis nos mercados nacional e regional. Se o setor empresarial, a sociedade e o Estado ainda se encontram despreparados para receber um evento de tal porte internacional, é necessário começar a preparação urgentemente dos investimentos materiais e dos recursos humanos, como qualificação de mão de obra, capacitação, e informações quanto aos direitos e deveres em relação a turistas para a realização de um resultado qualitativo e que os investimentos aplicados possam ser importantes na continuidade, no desenvolvimento de programas sociais, após o encerramento do evento. Tanto os programas quanto os benefícios do evento devem continuar. Cabe aos organizadores e ao governo listarem os programas e os critérios que possam trazer benefícios para a sociedade. Concluímos ainda que deverá ser reconhecido o mínimo de direitos aos estrangeiros quando os estados permitirem a entrada destes em seu território, pelo exercício da personalidade e do respeito aos direitos humanos, sob pena de responsabilização internacional. Cabe salientar também que o Judiciário deverá desempenhar um papel importante para dar uma boa e rápida resposta aos possíveis conflitos existentes na relação consumerista, devendo realizar mudanças na estrutura jurídica de atendimento otimizado, necessário para as soluções. 160 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETO, Luiz. Evento será positivo para o turismo brasileiro. Disponível em: http://www.copanopantanal.com.br/index.asp?p=noticia&id_noticia=133. Acesso em: 9 abr. 2010. _____. Seminário sobre a Copa identifica proposta. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria brasileira. Caderno de Políticas do turismo. Disponível em: http:// www.brasilturis.com.br/canal_materia.neo?Materia=10565. Acesso em: 9 abr. 2010. BRASIL, República Federativa do Brasil. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/html/legislacao. Acesso em: 28 jun. 2007. _____. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.go v.br/ html/ legislacao. Acesso em: 21 jun. 2007. _____. Consumidor do Mundo: direito do consumidor. Ministério da Justiça. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEM IDC9360EA3FFE6 4AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm. Acesso em: 19 jun. 2010. _____. Estatuto do Estrangeiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/h tml/ legislacao. Acesso em: 19 jun. 2007. _____. Guia do Consumidor Estrangeiro. Ministério da Justiça. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEMIDC9360EA3FFE64AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm. Acesso em: 19 jun. 2010. FELDMANN, Walter. Márcio Santiago será coordenador dos Conventions nas 12 cidades da Copa. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria turística brasileira. Caderno de Políticas do turismo. Disponível em: http://www.brasilturis.com.br/ canal_materia.neo?Materia=10565. Acesso em: 9 abr. 2010. FRAGA, Mirtô. O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 1985. ONU, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 39/248-ONU, de 16/04/85. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/busc alegis/article/view/24028/23591. Acesso em: 28 jun. 2010. RIVOLI, Luciana; ROQUE, Geraldo; CHAGAS, Celso. João Havelange fala sobre a Copa de 2014 e os desafios que o Brasil tem pela frente. Assessoria de comunicação da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Disponível em: http:// www.portaldocomercio.org.br/m edia/Havelange2.pdf. Acesso em: 18 out. 2009. Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias 161 SANTIAGO, Márcio. Márcio Santiago será coordenador dos Conventions nas 12 cidades da Copa. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria turística brasileira. Caderno de Políticas do turismo. Disponível em: http://www.brasilturis.com.br/ canal_materia.neo?Materia=10565. Acesso em: 9 abr. 2010. WHELAN, Ray. Evento será positivo para o turismo brasileiro. Disponível em: http://www.copanopantanal.com.br/index.asp?p=noticia&id_noticia=133. em: 9 abr. 2010. Acesso FENÔMENO BULLYING: CONSEQUÊNCIAS PSICOLÓGICAS E JURÍDICAS1 Sonia Cristina de Oliveira2 Edison Pereira Prado3 INTRODUÇÃO Este artigo expõe um tema considerado atualmente um grande vilão das relações interpessoais, principalmente entre crianças e adolescentes – o bullying. Este pode ser considerado um tipo de violência cruel, proposital e sistemática na convivência humana, se tornou um problema mundial pela complexidade de sua identificação, intervenção e combate. Portanto, apresentamos uma breve contextualização histórica e conceitual e algumas possíveis causas, formas de prevenção, consequências, por fim, breve pontuação a respeito das consequências jurídicas com algumas sugestões e reflexões acerca do tema. DESENVOLVIMENTO Um grande desafio na atualidade, para profissionais de várias áreas do conhecimento, tem sido identificar e intervir em algum tipo de violência, que mesmo sendo antiga, apenas nos últimos 30 anos começou a ser pesquisada com olhar interdisciplinar e científico, em decorrência de seu notório aparecimento e sequelas produzidas no relacionamento interpessoal. De acordo com Silva, desde a década de 80, na Europa, os pesquisadores iniciaram estudos para estabelecer a diferença entre as brincadeiras 1 Este artigo tem como referência a monografia defendida na Universidade de Cuiabá – Unic em junho de 2010, sob o título “Prática do Fenômeno Bullying: medidas de Prevenção e Combate” 2 Psicóloga no Estado de Mato Grosso. Mestre em Educação pela UFMT. Professora no Curso de Direito e orientadora de monografia da Universidade de Cuiabá - Unic. 3 Acadêmico do décimo semestre do Curso de Direito, turma CN – formandos 2010 – da Universidade de Cuiabá - Unic. 164 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas naturais e saudáveis, típicas da vida estudantil, daquelas com requinte de crueldade e que extrapolam os limites de respeito e tolerância pelo outro.4 Conforme a autora, é comum crianças e adolescentes brincarem, “zoar”, por apelidos uns aos outros, tiram “sarros” dos demais e de si mesmos, e assim dão muitas risadas e se divertem, mas, quando as brincadeiras são realizadas com perversidade, elas se tornam verdadeiros atos de violência, que ultrapassam os limites suportáveis de convivência. Silvia explica que: As brincadeiras normais e sadias são aquelas nas quais todos os participantes se divertem. Quando apenas alguns se divertem à custa de outros que sofrem, isso ganha outra conotação, bem diversa de um simples divertimento. Nessa situação específica, utiliza-se o termo bullying, abrange todos os atos de violência (física ou não) que ocorrem de forma intencional e repetitiva contra um ou mais alunos, impossibilitados de fazer frente às agressões sofridas.5 A violência provocada por bullying tornou-se um problema mundial nas escolas, palavra ainda pouco conhecida, de origem inglesa e sem tradução no Brasil, utilizada para qualificar comportamentos violentos no âmbito escolar, entretanto, ocorre também em vários contextos além do escolar, tais como nas famílias, nos locais de trabalho, denominado de assédio moral, asilos, enfim, em lugares onde acontecerem as relações interpessoais. No dicionário, encontramos as seguintes traduções para a palavra bully: indivíduo valentão, tirano, mandão e brigão. E a expressão bullying significa um conjunto de atitudes de violência física e/ou psicológica, de caráter intencional e repetitivo, praticado por um bully agressor, contra uma ou mais vítimas que se encontram impossibilitadas de se defender. Está diretamente ligado ao “abuso de poder, à intimidação e à prepotência”, são algumas das estratégias adotadas pelos praticantes de bullying (os bullies) para impor sua autoridade e manter suas vítimas sob total domínio.6 4 SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullying: mentes perigosas na escola. Rio de Janeiro: Fonto- nar, 2010. 5 Idem, p. 13 (grifo nosso). 6 Idem, p. 21. Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado 165 O bullying está longe de ser considerado brincadeira inocente da infância, trata-se de comportamento agressivo, cruel, proposital e sistemático. Relacionado ao preconceito, à intolerância e dificuldade em lidar com as diferenças, fato este infelizmente presente nas relações interpessoais. De acordo com Fante, bullying é um conceito específico, e que não pode ser confundido com outras formas de violência. Por conta de sua peculiaridade, causa traumas ao psiquismo de suas vítimas e envolvidos.7 Atualmente, além da Noruega, os Estados Unidos, Portugal e a Espanha são os países com maior desenvolvimento de pesquisas sobre o tema. No Brasil, o primeiro grande levantamento foi realizado pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Juventude (ABRAPIA), entre 2002 e 2003. Referindo-se ainda ao significado de bullying, Neto diz que “trata-se de uma violência ou conjunto de comportamentos agressivos, intencionais e repetitivos, adotados sem motivação evidente contra outros”.8 Buscando ainda entender de outro modo o que significa esse fenômeno, concordamos com Albino e Terêncio, que dizem “todo agressor acredita piamente ter razões ou causas suficientes para aquilo que faz. São, sem dúvida, razões preconceituosas, entretanto, não se pode subestimar seu forte poder de motivar o comportamento violento”.9 Na verdade, quem não apresenta razões é justamente o agredido, que fica sem compreender as razões de tanta violência. Esse fator relacionado às causas é uma questão muito complexa, difícil, e que envolve muitos aspectos. Precisa ter uma atenção especial, uma conduta investigativa, ao contrário, corre-se o risco de encontrar soluções simplistas e desprovidas de visão interdisciplinar. Conforme é importante os pesquisadores problematizarem as supostas causas do bullying, e não se contentarem em citar fatores econô7 FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed. Campinas: Verus, 2005. 8 ARAUJO, Mariselena, M. S. de; CARVALHO, Neide. M. Bullying escolar: incidência, fatores de risco e conhecimento dos alunos – em escolas públicas – Uberlândia (MG). Desafios da produção e divulgação do conhecimento: caderno de resumos. In: X ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA ANPED Centro-Oeste, 5 a 8 de julho de 2010. PIMENTA, Eucídio Arruda; RESENDE, Haroldo de. (Orgs), Uberlândia, Minas Gerais. Faced, 2010. p. 1 (grifo nosso). 9 ALBINO, Priscila Linhares; TERÊNCIO, Marlos Gonçalves. Considerações críticas sobre o fenômeno bullying: do conceito à prevenção. Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, nº 15. Jul./dez. 2008, p. 169-195. Disponível em: http://portal.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/18_03_2010_15.21.10.2af5ca0c78153b8b4a47993d66a51436.pdf. Acesso em: 10 jun. 2010. p.7. 166 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas micos, sociais, culturais e individuais.10 É preciso considerar as influências familiares, de colegas, da escola, da comunidade, as relações de desigualdade e de poder, a relação negativa com os pais e o clima emocional frio em casa. Todos esses fatores não devem ser entendidos como naturais e apartados das contradições culturais. Questionando ainda as causas, a pesquisadora Fante refere-se à carência afetiva, à ausência de limites e ao modo de afirmação de poder e de autoridade dos pais sobre os filhos, por meio de práticas coercitivas que incluem maus-tratos físicos e explosões emocionais violentas.11 A autora demonstra especial atenção às questões de relacionamento intrafamiliar. O convívio familiar se apresenta ligado às causas, pois muitas crianças presenciam brigas dos pais, brigas entre irmãos, irmãos que brigam com os pais, em outras palavras, aprendem que com violência se resolvem os problemas, e o respeito não faz parte do relacionamento. Constatamos que a inveja é uma causa muito comum e mais recorrente entre as garotas; seguida do fator medo, pois a maioria das crianças tem medo de piadinhas de mau gosto e outros tentam proteger sua própria imagem. É preciso deixar claro que as causas desse tipo de comportamento abusivo são inúmeras, abrangendo fatores interno e externo aos sujeitos. Existem algumas atitudes que podem se configurar, de acordo com Silvia, em formas diretas ou indiretas de prática ao bullying.12 Entretanto, as vítimas recebem mais de um tipo de maus-tratos na maioria das vezes, e se expressam de formas tais como: verbal (insultar, ofender, xingar, fazer gozações, apelidos pejorativos, piadas ofensivas e zoar), físico e mental (bater, chutar, espancar, empurrar, ferir, beliscar, roubar, furtar ou destruir coisas da vítima, atirar objetos contra a vítima), psicológico e moral (irritar, humilhar, ridicularizar, excluir, isolar, ignorar, desprezar, fazer pouco caso, discriminar, ameaçar, chantagear, tiranizar, perseguir, difamar, fazer intrigas, fofocas, etc.), sexual (abusar, violentar, assediar, insinuar). Nota-se que essa violência pode ser verbal, moral, sexual, psicológica, material e até virtual, que é o cyberbullying. Esta modalidade permite ao agressor ficar no anonimato, e propagar de forma rápida o ato transgressor. 10 Idem, 2008. 11 FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed. Campinas: Verus, 2005. 12 Silvia, 2010. Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado 167 A literatura tem apontado nessa trama três papéis de destaque no bullying, que são: agressor, vítima e testemunha. O agressor vitimiza o mais fraco, costuma ter pouca empatia, geralmente se apresenta como o mais forte da turma, sente uma necessidade de dominar e subjugar os outros, gosta de impor suas vontades, gostos, preferências, custa a se adaptar às regras, não aceita ser contrariado, é considerado pela turma como malvado, durão, etc. A vítima costuma ter um aspecto físico mais frágil que o de seus companheiros, tem medo de que algo ruim lhe aconteça, de ser ineficaz nos esportes ou brigas, extrema sensibilidade e timidez, passividade, submissão, insegurança, baixa autoestima, apresenta uma característica habitual não agressiva, como aquela que serve de bode expiatório para um grupo. No entanto, existem dois tipos de vítima, a provocadora, que é aquela que provoca determinadas reações contra as quais não possui habilidades para lidar e a vítima agressora, que é aquela que reproduz os maus-tratos sofridos. A testemunha ou espectador, aquele que presencia os maus-tratos, porém não os sofre diretamente e nem os pratica, se expõe e reage inconscientemente a sua estimulação psicossocial. Entretanto, é necessária uma visão mais abrangente sobre essas categorias, pois, na prática, elas não funcionam assim tão separadas e estanques, existe na verdade um ciclo e rotatividade de papéis em muitos casos. Por isso afirmam Albino e Terêncio: [...] em situações da vida cotidiana os papéis nunca são tão fixos como essas categorias fazem crer [...] costuma provocar um ciclo perverso, no qual muitas vítimas, em uma determinada situação, acabam se tornando agressores de novos sujeitos [...] gerando uma progressão da violência.13 Por isso é muito relevante analisar essas categorias de forma dinâmica e crítica, olhar crítico e sistêmico, pois elas tendem a apresentar perfis altamente estanques e estereotipados dos sujeitos envolvidos e da dinâmica do problema. Em relação às testemunhas, por exemplo, nem sempre assistem calados, às vezes participam ativamente com aplausos que servem de estí13 Albino e Terêncio, 2008. p. 8. 168 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas mulo para os agressores. Nem todos assistem à violência silenciosamente, com medo de serem as próximas vítimas. Entretanto, sejam agressores, vítimas ou espectadores, todos precisam conhecer formas de combater o bullying e para isso é preciso que se tenha uma equipe de profissionais que dê suporte para as denúncias, orientações e intervenções eficazes. Em relação ao diagnóstico, não é uma tarefa fácil, existem fatores conceituais envolvidos, a questão do que é considerado violência, como estabelecer a diferença da brincadeira saudável e natural daquela intencional e com intenção de magoar e ferir.14 No Brasil, o atraso em identificar e enfrentar foi muito grande, em função de que o tema só começou a ser abordado junto à sociedade a partir de 2000, quando Cleo Fante e José Augusto Pedra realizaram uma pesquisa abrangente sobre o tema. O psicólogo norueguês e pesquisador Dan Olweus, reconhecido como um pioneiro e um Pai Fundador da investigação sobre Bullying, estabeleceu critérios para se identificar práticas de bullying, sendo o primeiro critério ocorrer ações repetitivas contra a mesma vítima num período prolongado de tempo, e o segundo, existir desequilíbrio de poder, o que dificulta a defesa da vítima e, finalmente, a ausência de motivos que justifiquem as agressões.15 As consequências psicológicas dessa violência podem ser consideradas o aspecto mais devastador. Às vezes, até na vida adulta, a vítima continua sendo alvo de gozações entre colegas de trabalho e familiares. Por isso destaca Gusmão e Eugênio que as dificuldades psicológicas, os transtornos de personalidade nas vítimas e, em ambos os envolvidos, podem ser reconhecidos não somente nas escolas, mas em outros contextos que existam relações interpessoais.16 Os efeitos afetam a todos os envolvidos de forma diferente, mas principalmente à vítima, que pode sofrer, no anonimato, boa parte de sua vida e levar as marcas por toda existência. De acordo com Silvia, “além de os bullying escolherem um alunoalvo que se encontra em franca desigualdade de poder, geralmente este 14 SILVA, 2010. 15 FANTE. Cleo; PEDRA, José. Bullying escolar: perguntas e respostas. Porto Alegre: Artmed, 2008. 16 GUSMÃO. Daniela; EUGÊNIO, Benedito G. Os professores e a situação de bullying na escola. Desafios da produção e divulgação do conhecimento: caderno de resumos. In: X ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA ANPED Centro-Oeste, 5 a 8 de julho de 2010. PIMENTA, Eucídio Arruda; RESENDE, Haroldo de. (Orgs.). Uberlândia, Minas Gerais: FACED, 2010. Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado 169 também já apresenta uma baixa autoestima [...] assim agrava o problema preexistente, como pode abrir quadros graves de transtornos psíquicos e ou comportamentais que, muitas vezes, trazem prejuízos irreversíveis”.17 Ainda existem muitos sintomas psicossomáticos que causam desconforto e prejuízos nas atividades cotidianas. Dentre os físicos podemos destacar: cansaço, insônia, dificuldades de concentração, náuseas, diarreia, boca seca, palpitações, alergias, crises de asma, sudorese, tremores, sensação de “nó” na garganta, desmaios, calafrios, tensão muscular e formigamentos.18 Sendo também objeto de observação o transtorno do pânico, que se caracteriza pelo medo intenso e infundado, que parece surgir do nada. A criança ou adolescente é tomado por uma sensação enorme de medo e ansiedade acompanhada de uma série de sintomas físicos. Atualmente, é possível constatar crianças de 6 a 7 anos de idade vítimas de pânico, em função de situações de estresse prolongado a que são expostas, e o bullying faz parte dessa condição. Apresentam-se também como consequências, baixo rendimento escolar, desinteresse pela escola, o que impulsiona a evasão escolar e, às vezes, culmina no quadro de fobia escolar, que se caracteriza por medo intenso da escola. É possível desenvolver quadro de extrema timidez, que evolui para fobia social. Igualmente, medo, insegurança, ansiedade, o que pode evoluir para transtorno de ansiedade. Sintomas esses que interferem no relacionamento interpessoal. Também os transtornos alimentares têm feito parte do universo de sequelas, denominados de anorexia e bulimia. Aspectos tais como irritabilidade, nervosismo, cansaço, estresse e tristeza são comuns nos ambientes de bullying. Em relação à vítima, esta fica com baixa imunidade, o que facilita a predisposição para as doenças. Sendo também considerado o abuso de drogas e álcool, sequelas estas presentes na vida adulta. Quadros mais graves, no entanto menos frequentes, podem ocorrer, como as psicoses, suicídio e homicídio. Conforme a intensidade da violência e o tempo submetido, podem desenvolver depressão, suicídio, desejos intensos de vingança que impulsionam o homicídio, às vezes seguido de suidício. É difícil demarcar de modo sistemático as consequências para cada participante, pois os papéis podem se inverter e assim os sintomas serem 17 SILVIA, 2010. p. 25. 18 Idem. 170 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas similares. Entretanto, Fante explica que para os agressores ocorrem o distanciamento e a falta de adaptação aos objetivos escolares. Igualmente, a supervalorização da violência como forma de obtenção de poder, o desenvolvimento de habilidades para futuras condutas delituosas, além da projeção de condutas violentas na vida adulta.19 Os espectadores, segundo a autora, que é a maioria dos alunos, podem sentir insegurança, ansiedade, medo e estresse, comprometendo o seu processo socioeducacional. Envolve e vitimiza a criança, na tenra idade escolar, tornando-a refém de ansiedade e de emoções que interferem negativamente no processo de aprendizagem devido à excessiva mobilização de emoções de medo, de angústia e de raiva reprimidas. Em relação ao agressor, ele reproduz em suas futuras relações o modelo que sempre lhe trouxe resultados que se refere ao mando-obediência pela força e agressão. É fechado à afetividade e tende à delinquência e à criminalidade.20 O bullying, afinal, afeta a todos, consequentemente toda a sociedade. Agressor, vítima e espectador saem com marcas e cicatrizes que, dependendo do nível e intensidade da experiência, causam frustrações e comportamentos desajustados gerando, até mesmo, atitudes de transtorno de personalidade antissocial. Diante dessas consequências, o bullying está longe de ser considerado brincadeira infantil entre crianças e adolescentes, haja vista que se caracteriza numa forma de violência que tem culminado, algumas vezes, em atos inflacionais julgados no Poder Judiciário. Conforme Albino e Terêncio, a CRFB/88 traz para o Brasil um novo paradigma na seara da infância e juventude, na qual crianças e adolescentes passam a ser considerados sujeitos de direitos, não mais figurando como propriedade da família ou objeto de tutela do Estado, fazendo jus à proteção integral.21 19 FANTE, Cleo. Fenõmeno bullying: prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed. Campinas: Verus, 2005. 20 SILVA, 2010. 21 ALBINO, Priscila Linhares; TERÊNCIO. Marlos Gonçalves. Considerações críticas sobre o fenômeno bullying: do conceito á prevenção. Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, nº 15, jul./dez. 2008. p. 169-195. Disponível em: http://portal.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/18_03_2010_15.21.10.2af5ca0c78153b8b4a47993d66a51436.pdf. Acesso em: 10 jun. 2010. Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado 171 Desse modo, as crianças e os adolescentes são acolhidos para o mundo dos direitos e dos deveres, em outros termos, o mundo da cidadania. Assim se delineia um sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, que se traduz pela Doutrina da Proteção Integral, representada no artigo 227 da CRFB/88. Garante os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e, igualmente, o direito subjetivo de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, preservando a sua liberdade e a sua dignidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/90, intensifica a Doutrina da Proteção Integral, vinca a absoluta prioridade, ressalta como devem ser tratadas as crianças e os adolescentes considerados pessoas em desenvolvimento. E obriga o dever à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao Poder Público de assegurar a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Entre esses direitos, ressaltam-se a preocupação com a educação, dignidade e respeito, por entender que estão muito próximos da temática deste artigo, o bullying. A educação é um direito fundamental, outorgada pela Carta Magna de 1988 (art. 6º) e estabelecido no art. 205 como direito de todos e dever do Estado. Por isso precisa ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, com a finalidade de desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e sua formação para o trabalho. É um aspecto indissociável ao exercício da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Na sequência, a questão do direito ao respeito que consiste, segundo o art. 17 do ECA, na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrange a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. O ECA, no art. 18, em relação ao direito à dignidade, diz que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Analisando sucintamente essas questões constatamos que o bullying se configura em amplo descumprimento desses direitos fundamentais atinentes à infância. Direitos estes que devem ser trabalhados na família, na sociedade e no Estado. 172 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas Nesse contexto, a escola tem se apresentado com muitas dificuldades diante do cumprimento desse papel, não só da construção de conhecimentos, mas também de garantias dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Neste caso, que envolve bullying, garantia da dignidade humana e dos direitos humanos. No entendimento de Albino e Terêncio, uma dificuldade encontrada nesse problema se refere em fazer a distinção entre comportamentos agressivos dentro da esfera dos atos de indisciplina e/ou dos atos infracionais, cuja distinção gera grandes mal-entendidos e favorece a adoção, inúmeras vezes, de medidas que contrariam a Lei 8.069/90.22 Para os autores o ato infracional se distingue da infração disciplinar justamente porque, de um lado, a prática do primeiro se equipara ao crime ou à contravenção penal (art. 103, ECA) previstos no Código Penal ou nas leis penais esparsas, enquanto a caracterização da segunda, de outro, depende unicamente das normas e diretrizes fixadas pelo regimento escolar. É muito importante entender a relação entre o adolescente, o ato infracional e/ou infração disciplinar, pois esse é um ponto fundamental para os encaminhamentos de políticas públicas voltadas à questão social e educacional. Mais do que a questão punitiva, é preciso investir na prevenção, direcionada para os problemas detectados. É importante que não se tenha apenas olhar punitivo, embora concordemos que todo ato de bullying é um ato ilícito, que causa lesão à dignidade da pessoa humana, estando todos obrigados a respeitar este direito constitucional, sob pena de responsabilização nas esferas cível e criminal. Os atos infracionais mais comuns, originários do bullying, são aqueles equiparados à injúria, à calúnia, à difamação, à ameaça, às lesões corporais e ao racismo. Entretanto, podem ocorrer violências outras que caracterizem o fenômeno, conforme a Apelação Criminal n. 2004091011545-4APR – DF, 13.10.2008. O Poder Judiciário levou em conta o autor de bullying, o seu responsável legal e o estabelecimento de ensino a uma indenização por danos materiais, morais e estéticos, com base em dispositivos do Código Civil.23 22 Idem. 23 ALBINO; TERÊNCIO, op. cit. Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado 173 A prática do cyberbullying é uma modalidade muito nociva em razão da rapidez com que se difunde o conteúdo eletrônico na internet, por isso tem sido alvo de análises e decisões judiciais, de acordo com o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Apelação Cível n. 1.0145.08.450392-2/001 – MG, 19.1.2009. Mediante essas considerações, é preciso dizer que a percepção do senso comum de que o ECA contemplaria apenas direitos das crianças e dos adolescentes, omitindo os deveres, é muito equivocada. Nessa linha de pensamento ressaltam ainda esses “críticos” que o ECA tem contribuído para o aumento dos atos de indisciplina e infracionais ocorridos nas escolas e na sociedade. As ações responsáveis pela diminuição da violência vão muito além de responsabilizar o ECA, ou seja, requer um trabalho conjunto entre família, sociedade e profissionais das áreas de saúde, educação e jurídica. No contexto escolar é fundamental a elaboração de regras claras, explícitas e construídas de forma participativa com o envolvimento de toda a comunidade escolar e, especialmente, a comunidade externa e os pais. Neste trabalho dar prioridade ao respeito, à tolerância e aceitação das diferenças. A família e a escola estão obrigadas juridicamente a agir para reprimir a atitudes agressivas dos estudantes. A omissão atrairá para ambas a condição de coniventes de um processo degradante das relações interpessoais, caracterizando a negligência ou até mesmo o dolo, elementos suficientes capazes de imputar-lhes o dever de reparar os danos dos agredidos, assim como de responsabilizar criminalmente. O diálogo entre pais e educadores ainda é a melhor solução, porém, reclama urgente para que continuemos vivendo em harmonia, mesmo que isso nos pareça utópico.24 A sociedade passa por um momento em que os pais não conseguem educar seus filhos emocionalmente e, tampouco, sentem-se habilitados a resolver conflitos por meio do diálogo e da negociação de regras. Optam muitas vezes pela arbitrariedade do “não” ou pela permissividade do “sim”, não oferecendo nenhum referencial de convivência pautado no diálogo, na compreensão, na tolerância, no limite e no afeto. 24 POGORZELSKI, Julio. Consequências jurídicas do bullying escolar. Disponível em: http://gramadosite.com.br/economiaenegocios/autor:profjuliopogorzelski/id:25801/xcoluna:1/xautor:1. Acesso em: 29 jun. 2010. 174 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas A escola também tem se mostrado inabilitada a trabalhar com a afetividade e com os limites, os alunos mostram-se agressivos, reproduzindo muitas vezes a educação doméstica, seja por meio dos maus-tratos, do conformismo, da exclusão pela falta de limites revelados em suas relações interpessoais. Conforme já citado, o bullying é um problema social complexo, por isso acreditamos que sua responsabilidade não pode ser delegada de modo acrítico para a Justiça. É preciso haver medidas de prevenção, mediação e diálogo entre todos. Segundo Mazzilli, o Mistério Público: guarda estreita ligação com as normas de proteção à criança e ao adolescente, haja vista se tratar de interesses sociais e individuais indisponíveis. Trata-se de instituição constitucionalmente incumbida da defesa dos interesses da sociedade, sejam eles coletivos, difusos ou individuais indisponíveis, e que, pelo texto estatutário, assumiu obrigações que lhe colocam na qualidade de verdadeiro curador da infância e adolescência.25 Para este autor é fundamental o envolvimento do Ministério Público de modo atuante no sentido de ir além do combate. Velar mesmo pelos interesses da criança e do adolescente com prevenção e proteção. Desse modo, o Poder Judiciário pode ir além de punições. É importante incentivar ações como campanhas educativas, palestras, etc. com base nesse pensamento. Por exemplo, o Ministério Público catarinense idealizou a campanha “Bullying: isso não é brincadeira”. O Estado do Rio Grande do Sul aprovou a Lei nº 13.474, de 28 de junho de 2010 (publicada no DOE nº 121, de 29 de junho de 2010), que dispõe sobre o combate da prática de “bullying” por instituições de ensino e de educação infantil, públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos. REFLEXÕES FINAIS O bullying é sem dúvida uma violência cruel, complexa e difícil de diagnosticar em virtude do silêncio da vítima, por outro lado, essa situação estimula e aumenta as agressões que produzem graves cicatrizes na construção psíquica, com sequelas, muitas vezes na vida adulta. 25 MAZZILLI, 1991. Apud ALBINO; TERÊNCIO, 2010. p. 16. Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado 175 É preciso levar em conta que existem os conflitos próprios da fase de crianças e adolescentes; eles passam por várias mudanças, nesse momento da vida, principalmente no que se refere à construção e afirmação da identidade. Isso gera insegurança, mudança de humor e outras contradições próprias desse período. É um momento que necessita de diálogos em casa e na escola. E de modelos de resolução de conflitos que não se sustentem na violência física e psicológica. O bullying pode ser considerado uma forma de resolução de problemas, na ausência de outros modelos assertivos. Modelo este representado pelos adultos numa cultura de violência. Por exemplo, o preconceito assimilado pelos jovens faz parte de uma sociedade que se pauta na exclusão social e na opressão dos mais fracos. No cotidiano das relações interpessoais crianças e jovens têm revelado o preconceito em comportamentos de intolerância ao diferente. Atualmente, o bullying é uma prática que apresenta uma enorme dificuldade em lidar com as diferenças, por constituir-se na manifestação exacerbada da aversão às coisas com as quais não sabe lidar, conviver e resolver. Nesse cenário, entendemos ser necessário repensar, senão seria por demais delegar ao Judiciário, que possui força estatal, a intervenção de um problema que se constitui na base vários fatores, tais como: econômico, social, cultural, individual, influências familiares, de colegas, da escola, da comunidade, relações de desigualdade e de poder, a relação negativa com os pais, que pode ser clima emocional frio e carência afetiva, ausência de limites, permissividade em excesso, autoridade dos pais sobre os filhos por meio de práticas coercitivas que incluem maus-tratos físicos e explosões emocionais violentas. Frente a essas inúmeras e variadas causas, acreditamos ser importante por parte dos operadores do Direito profundo entendimento, ir além da punição, pois apenas o viés punitivo está longe de alcançar esse problema. Isso não significa o Poder Judiciário não cumprir seu papel mediante atos infracionais e violentos cometidos. Mas sempre se perguntar qual a melhor forma de responsabilizar sujeitos que ainda estão em período de formação e ou amadurecimento psicológico, em evidência as escolhas, sua identificação e afirmação numa sociedade sem referências e sem modelos explícitos para as crianças e adolescentes. É preciso analisar que o bullying não pode ser pensado somente pela ótica do agressor que por sua vez lembramos a punição ou reparação. 176 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas Todos os envolvidos de alguma forma sofrem consequências. Por exemplo, para a vítima é importante a presença de um suporte familiar, este é muito decisivo para que o infante supere as situações traumáticas vivenciadas ou, ao contrário, ele pode se entregar ao isolamento social como forma de fuga e proteção contra as agressões. Ainda sobre essa questão, não podemos nos esquecer daqueles que desenvolvem sentimentos de vingança a ponto de cometer homicídios como a mídia tem noticiado. Isso significa que a situação pode, então, progredir para transtornos psicopatológicos graves, como fobias, depressões, ideias suicidas e desejos intensos de vingança. Acreditamos que não se trata de assunto que possa ser solucionado só com a intervenção da Justiça. É um problema social grave, que requer a intervenção de muitos profissionais – solução multidisciplinar. Mesmo o bullying sendo um problema que envolve as relações interpessoais em qualquer contexto, é no ambiente escolar que ele mais ocorre, por isso é necessário buscar solução com a intervenção de todas as pessoas envolvidas: os protagonistas do bullying (agressor, agredido e testemunhas), os pais, professores, diretores da escola, funcionários, e por que não, nessas reuniões, representantes do Ministério Público. Assim possibilita saber do problema de modo preventivo e não no momento de uma ocorrência policial. A responsabilidade na prevenção e combate precisa ser preocupação de todos. A omissão e conivência estimulam mais agressões por parte de adeptos dessa violência. Por outro lado, quando ocorrer lesão corporal, calúnia, injúria, difamação, os pais ou responsáveis devem registrar o fato em uma delegacia, pois casos que envolvem atos infracionais precisam de providências legais. A família precisa compreender que um ambiente acolhedor, com limites claros, com ênfase no respeito, no diálogo e na aceitação das diferenças é uma escolha importante. As escolas, com regras estabelecidas de modo claro, explícito, e definidas em seu regimento, é uma alternativa essencial, e assim trabalhar o preconceito e os comportamentos de violência, exclusão, indiferença e agressões por parte dos alunos. A partir desses apontamentos, podemos inferir que a punição, mesmo sendo às vezes necessária, não é o aspecto determinante de mudança comportamental. São necessárias intervenções com o envolvimento da família, dos protagonistas do bullying, da comunidade e toda a sociedade. Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado 177 Finalmente, todos os profissionais que lidam e trabalham com essa violência, seja das áreas jurídica, de saúde, da educação, do serviço social, da psicologia, precisam entender a importância desse tema na área de sua formação para que possam propor estratégias com a finalidade de mitigar as consequências desse dilema tão frequente neste século. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAPIA. Bullying, 2004. Disponível em: http://www.bullying.com.br. Acesso em: 15 jun 2010. ALBINO, Priscila Linhares; TERÊNCIO, Marlos Gonçalves. Considerações críticas sobre o fenômeno bullying: do conceito à prevenção. Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, nº 15. Jul./dez. 2008. p. 169-195. Disponível em: http://portal.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/18_03_2010_15.21.10.2af5ca0c7 8153b8b4a47993d66a51436.pdf. Acesso em: 10 jun. 2010. ARAUJO, Mariselena, M. S. de; CARVALHO, Neide. M. 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Esse tabu de que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher tem que ser eliminado, sendo evidente que é dever do Estado oferecer segurança para mulheres que sofrem com o machismo impregnado por uma herança cultural pela qual o homem pode tudo e a mulher pode nada. A referida lei trouxe para o nosso ordenamento jurídico as formas de violência doméstica caracterizando-se por agressões físicas, psíquicas, morais, patrimoniais e sexuais. Apesar de alguns juristas alegarem a inconstitucionalidade da Lei 11.340/06, com o objetivo de oferecer o mesmo tratamento para mulheres em relação aos homens, fortalecemos a lei com base no princípio da igualdade em que devemos dirimir as diferenças, tratando o igual com igualdade e o desigual com desigualdade, pois há uma discrepância em números de agressões domésticas sofridas pelas mulheres em relação às sofridas pelos homens. As mulheres, durante séculos, têm sofrido violência no âmbito familiar, violência esta que atinge todas as classes sociais, raça, cor, etnias e idade. Porém, antes do advento da Lei Maria da Penha, as agressões eram consideradas de pouca lesividade e quase nunca os agressores eram punidos. A Lei Maria da Penha veio com o intuito de dar maior segurança e proteção para a mulher formalizar suas denúncias contra o agressor, criando varas especializadas e medidas protetivas. 1 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Cuiabá – Unic. 10º semestre 2010/2. 182 Breves comentários à Lei Maria da Penha O PORQUÊ DA CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA Talvez muitos não saibam por que a Lei 11.340/2006 é chamada Maria da Penha. A justificativa é dolorosa, pois a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi mais uma das tantas vítimas da violência doméstica deste país. Como muitas outras mulheres ela reiteradamente denunciou as agressões que sofreu. Chegou a ficar com vergonha de dizer que tinha sido vítima da violência doméstica e pensava: “se não aconteceu nada até agora, é porque ele, o agressor, tinha razão de ter feito aquilo”.2 Mas, ainda assim, não se calou. Em face da inércia da Justiça, Maria da Penha escreveu um livro, uniu-se ao movimento de mulheres e, como ela mesma diz, não perdeu nenhuma oportunidade de manifestar sua indignação. Por duas vezes, seu marido, o professor universitário e economista M.A.H.V., tentou matá-la. Na primeira vez, em 29 de maio de 1983, simulou um assalto fazendo uso de uma espingarda. Como resultado ela ficou paraplégica. Depois de alguns dias, pouco mais de semana, nova tentativa, buscou eletrocutá-la por meio de uma descarga elétrica enquanto ela tomava banho. Tais fatos aconteceram em Fortaleza, Ceará. As investigações começaram em junho de 1983, mas a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984. Em 1991, o réu foi condenado pelo Tribunal do Júri a 8 (oito) anos de prisão. Além de ter recorrido em liberdade, ele, um ano depois teve seu julgamento anulado. Levado a novo julgamento em 1996, foi-lhe imposta a pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses. Mais uma vez recorreu em liberdade e somente 19 (dezenove) anos e 6 (seis) meses após os fatos, em 2002, é que M.A.H.V. foi preso. Cumpriu apenas dois anos de prisão. Essa é a história de Maria da Penha. Conforme Rogério Sanches: A repercussão foi de tal ordem que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM formalizaram denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.3 2 PENHA, Maria da. Antes de tudo, uma forte. Entrevista concedida à revista Leis e Letras, n. 6, ano II, p. 20-24, Fortaleza, 2007. 3 CUNHA, Rogério Sanches. Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e a Constituição Federal de 1988. Boletim IBCCRIM, n. 153, ago. 2005. p.8-9. Valdenir Rodrigues Barbosa Filho 183 QUEM SÃO OS SUJEITOS ATIVO E PASSIVO DA LEI MARIA DA PENHA Para a configuração da violência doméstica não é necessário que as partes sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados. Também na união estável, que nada mais é do que uma relação íntima de afeto e agressão, é considerada como doméstica, quer a união persista ou já tenha findado. Para ser considerada a violência como doméstica, o sujeito ativo tanto pode ser um homem como outra mulher. Conforme o doutrinador Sérgio Ricardo de Souza: Basta estar caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou de afetividade, pois o legislador deu prioridade à criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher, sem importar o gênero do agressor.4 A empregada doméstica, que presta serviço a uma família, está sujeita à violência doméstica. Assim, tanto o patrão como a patroa podem ser os agentes ativos da infração. Igualmente, desimporta o fato de ter sido o neto ou a neta que tenham agredido a avó, sujeitam-se os agressores de ambos os sexos aos efeitos da lei. A parceira da vítima, quando ambas mantêm uma união homoafetiva (art. 5º, parágrafo único), também responde pela prática de violência de âmbito familiar. Os conflitos entre mães e filhas, assim como os desentendimentos entre irmãs, estão ao abrigo da Lei Maria da Penha quando flagrado que a agressão tem motivação de ordem familiar. No que diz respeito ao sujeito passivo, há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Conforme Jayme Walmer de Freitas: “nesse conceito encontra-se as lésbicas, os transgêneros, as transexuais e as travestis, que tenham identidade com o sexo feminino”.5A agressão contra elas no âmbito familiar também constitui violência doméstica. Não só esposas, companheiras ou amantes estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do agressor, como sua mãe, sogra, avó ou qualquer 4 SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher: Lei Maria da Penha, 11.340/2006. Curitiba: Juruá, 2007. p. 47. 5 FREITAS, Jayme Walmer de. Impressões objetivas sobre a Lei de Violência Doméstica. Boletim Jurídico, ano 5, n. 212, Uberaba, 2007. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina. Acesso em: 15 abr. 2010. 184 Breves comentários à Lei Maria da Penha outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o polo passivo da ação delituosa. Mas há a possibilidade de o sujeito passivo não ser necessariamente a mulher. A lei prevê mais uma majorante ao crime de lesão corporal em sede de violência doméstica (CP, art. 129, § 11): “se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência”6. Seja de que sexo for o deficiente físico, sendo alvo de lesão corporal, a pena de seu agressor é dilatada. Aliás, a hipótese deveria estar inserida no artigo 61 do Código Penal, como agravante genérica, para todos os crimes cometidos contra pessoas portadoras de necessidades especiais, e não só na hipótese de lesão corporal doméstica. QUAL A FINALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA A Lei Maria da Penha nasce com a importante missão de resgatar a mulher de uma situação de desvantagem física, e ao mesmo tempo livrála de uma cultura machista arraigada durante séculos, onde o homem era mais importante, o cabeça do casal, o chefe da família, senhor de sua casa, o que gerou um preconceito (pré-conceito) de que as mulheres têm menos valor, são menos importantes, tendo de suportar humilhações e ofensas, agressões físicas e morais. A Lei 11.340/2006, apesar de não ser perfeita, assim como outras leis existentes, apresenta uma estrutura adequada e específica para atender à complexidade e à demanda do chamado fenômeno da violência doméstica ao prever mecanismos de prevenção, assistência às vítimas, políticas públicas e punição mais rigorosa para os agressores. Pode-se dizer que é uma lei que tem mais cunho educacional e de promoção de políticas públicas de assistência às vítimas do que a intenção de punir mais severamente os agressores dos delitos domésticos, pois prevê em vários dispositivos medidas de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, possibilitando uma assistência mais eficiente e salvaguarda dos direitos humanos das vítimas. 6 BRASIL. Código Penal. Constituição Federal, Código civil, Código de Processo civil, Código Penal, Código do Processo Penal, Código Comercial, Código de defesa do consumidor, Código Tributário Nacional, Código Eleitoral, Código de Trânsito Brasileiro,Consolidações das Leis do Trabalho, Legislação Complementar, Regimento Interno do STF, Regimento Interno do STJ, Súmulas Vinculantes do STF e Súmulas do STF, STJ, TSE e TST. 6. ed. Organização de Anne Joyce Angher. São Paulo: Rideel, 2009. p. 363. (Vade Mecum). Valdenir Rodrigues Barbosa Filho 185 Sobre o tema, a ilustre Stela Valéria lembra que: Não há dúvidas de que o texto aprovado constitui um avanço para a sociedade brasileira, representando um marco indelével na história da proteção legal conferida às mulheres. Entretanto, não deixa de conter alguns aspectos que podem gerar dúvidas na aplicação, e até mesmo, opções que revelam uma formulação legal afastada da melhor técnica e das mais recentes orientações criminológicas e de política criminal, daí a necessidade de analisá-la na melhor perspectiva para as vítimas, bem como discutir a melhor maneira de implementar todos os seus preceitos.7 Portanto, qualquer ação que tenha embutido sofrimento físico ou intelectual tomando por base o gênero feminino seguirá os trâmites designados pela lei 11.340/2006. A LEI MARIA DA PENHA E SUA CONSTITUCIONALIDADE LEI Nº 11.340/2006 Questiona-se a constitucionalidade da lei, vez que, segundo Rogério Sanches e Ronaldo Batista, “num primeiro momento, parece discriminatória, tratando a mulher como eterno sexo frágil, deixando desprotegido o homem, presumidamente impotente”.8 Tal diferenciação, como se sabe, há muito foi espancada pela Constituição Federal, que no seu art. 5º, I, equipara ambos os sexos em direitos e obrigações, garantindo aos dois sexos, no art. 226, § 8º, proteção no caso de violência doméstica. É o que pareceu, em bem elaborado artigo, por João Paulo de Aguiar Sampaio Souza e Tiago Abud da Fonseca, quando ressaltam que: Não é preciso muito esforço para perceber que a legislação infraconstitucional acabou por tratar de maneira diferenciada a condição de homem e mulher e o status entre filhos que o poder constituinte originário tratou de maneira igual criando, aí sim, a desigualdade na entidade familiar”.9 7 CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica contra a mulher no Brasil. 2. ed. Salvador, Bahia: Podivm, 2008. p. 37. 8 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 31. 9 SOUZA, João Paulo de Aguiar Sampaio; FONSECA, Tiago Abud da. A aplicação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Boletim do IBCCrim, n. 168, nov. 2006, p. 4. 186 Breves comentários à Lei Maria da Penha Para tornar a questão mais clara, citam-se exemplos de absurda injustiça (para com o homem), a saber: numa agressão mútua, o que justifica a mulher ficar amparada pelo presente diploma e o homem não? Sabendo que a violência doméstica não se resume à agressão do marido contra a mulher, qual o motivo para se proteger a filha agredida pelo pai e o filho agredido não? Para uma agressão do filho contra a mãe há lei específica protegendo a vítima, porém para a sua agressão contra o pai não? No entanto, tipos penais que discriminavam o homem foram alvo de recentes mudanças legislativas, corrigindo a odiosa discriminação, como aconteceu com o atentado ao pudor mediante fraude, “art. 216 do CP (onde se lia mulher honesta, a Lei 11.106/2005 alterou para alguém, abrangendo o homem) ou no tráfico de pessoas, art. 231 do CP (antes da Lei 11.106/2005, tipificava-se somente o tráfico de mulheres)”.10 Nessa linha é o pensar de Valter Foleto Santim: Como se vê, a pretexto de proteção a mulher, numa pseudopostura politicamente correta, a nova legislação é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e mulher, ao prever sanções a uma das partes do gênero humano, o homem, pessoa do gênero masculino, e proteção especial à outra componente humana, a mulher, pessoa do sexo feminino, sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa aparente formação de casta feminina.11 Apesar dos exemplos seduzirem (e muito) a tese da inconstitucionalidade, pensamos que uma interpretação conforme pode fomentar a sua aplicação, como exigem as estatísticas que demonstram a situação de verdadeira calamidade pública que assumiu a agressão contra as mulheres. Esclarecem, corretamente, Helena Omena Lopes de Faria e Mônica de Melo: 10 BRASIL. Código Penal. Constituição Federal, Código Civil, Código de Processo civil, Código Penal, Código do Processo Penal, Código Comercial, Código de Defesa do Consumidor, Código Tributário Nacional, Código Eleitoral, Código de Trânsito Braileiro, Consolidações das Leis do Trabalho, Legislação Complementar, Regimento Interno do STF, Regimento Interno do STJ, Súmulas Vinculantes do STF e Súmulas do STF, STJ, TSE e TST. 6. ed. Organização de Anne Joyce Angher. São Paulo: Rideel, 2009. p. 370. (Vade Mecum). 11 SANTIM, Valdir Foleto. Igualdade constitucional na Violência Doméstica. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 5 jun. 2010. Valdenir Rodrigues Barbosa Filho 187 O sistema geral de proteção tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida em sua abstração e generalidade. Por sua vez, o sistema especial de proteção realça o processo de especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto de forma concreta e específica, pois determinados sujeitos de direitos, ou certa violações de direitos exigem uma resposta diferenciada. Importa o respeito à diversidade e a diferença, assegurando-se um tratamento especial.12 Após os entendimentos diversos, citaremos uma jurisprudência que relata a constitucionalidade da lei. Respeitando o entendimento diverso, não há como ser considerada inconstitucional a Lei de Violência Doméstica, por força das disposições que traz em seus artigos 33 e 41, a atribuir a competência ao Juízo Criminal, enquanto não forem criados os Juizados de que trata. Agora, também em consonância com a citada norma constitucional, a Lei 11.340/2006, que é posterior e se refere especialmente às infrações praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher, por seu turno, ao afastar a aplicação da Lei 9.099/05 no tocante a estas infrações, deixou de considerá-las infrações de menor potencial ofensivo. Na verdade, o critério de pena para distinção entre crimes comuns e os de menor potencialidade ofensiva não é absoluto e pode ser modificado, por lei, em vista da relevância do bem tutelado. Por fim, não há que se falar em afronta ao princípio da isonomia, pois este não se refere à igualdade literal. Como ensina o ilustre jurista português J.J. Gomes Canotilho, ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. Significa “igualdade na aplicação do direito”. O princípio da igualdade pressupõe não somente a igualdade formal, mas também a igualdade material, ou seja, para todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou resultados jurídicos ou, ainda, deve-se tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual.13 12 FARIAS, Helena Omena Lopes de; MELLO, Mônica de. Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher e a Convenção para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. São Paulo: Centro de Estudo, 1998. p. 373. 13 TJSP. Conflito de jurisdição 150.521-0/8. Rel. Maria Olívia Alves, j. 08.10.2007. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/. Acesso em: 20 abr. 2010. 188 Breves comentários à Lei Maria da Penha Dessa forma, podemos verificar que há necessidade de maior proteção à mulher, em razão do maior número de infrações contra ela cometidas no âmbito doméstico. A legislação editada com essa finalidade, ao contrário, é a aplicação correta do princípio da isonomia. Está claro que quis o legislador, com a edição da nova lei, impor efetivamente tratamento mais severo do que aquele dispensado às infrações de menor potencial ofensivo, justamente para atender a nossa realidade social. OS BENEFÍCIOS CONQUISTADOS Serão elencados quatro benefícios conquistados com a Lei Maria da Penha. 1) Servidoras públicas em situação de risco poderão ser transferidas para outros locais de trabalho. 2) As trabalhadoras de iniciativa privada poderão pedir afastamento por até seis meses, sem perder vínculo empregatício. 3) Determina o encaminhamento de mulheres em situação de violência a programas e serviços de proteção extensivos à prole e dependentes. 4) Autoriza a criação de Juizados Especiais da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que serão órgãos da justiça ordinária com competência cível e criminal, podendo ser criados pelos Estados, pela União, pelo Distrito Federal e pelos territórios.14 A EVOLUÇÃO DAS LEIS DE PROTEÇÃO À MULHER Decreto-lei nº 2.848, de Criminaliza o estupro, o atentado violento ao pudor e a 07/12/1940 – CPl agressão física, psicológica e moral contra a mulher Constituição Federal de Permite a denúncia em casos de discriminação por motivo 1988 – Art. 2º, I – Discrimi- de sexo nação sexual CF de 1988 – Art. 226, § 8º - Assegura assistência à família, com mecanismos para coibir Violência intrafamiliar a violência Lei nº 9.099, de 26/09/95 – Dispõe sobre os JECC, que trata de ameaças e lesões corporais Jecrim leves 14 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 170. Valdenir Rodrigues Barbosa Filho 189 Lei nº 10.224, de 15/15/01 – Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 1940 – CP, sobre o assédio Assédio sexual no trabalho sexual em caso de superioridade hierárquica Lei nº 10.445, de 13/05/02 – Em caso de violência doméstica, o juiz pode determinar o Afastamento do agressor afastamento do agressor do lar Projeto de Lei nº 536, de Revoga o dispositivo de Lei nº 9.099/95, que dispõe sobre os 27/03/03 – Violência domés- JECC.15 tica Projeto de Lei nº 536, de Revoga o dispositivo de Lei nº 9.099/95, que dispõe sobre os 27/03/03 – Violência domés- JECC tica Lei nº 10.714, de 13/08/03 – Autoriza o Poder Executivo a disponibilizar, nacionalmente, Denúncias contra violência telefone para denúncias de violência contra a mulher Lei nº 10.778, de 24/11/03 Estabelece notificação compulsória no caso de violência con– Violência nos serviços de tra a mulher em serviços de saúde públicos ou privados saúde Lei nº 10.886, de 17/06/04 Acrescenta os parágrafos ao artigo 129 do Dec.-lei nº 2.848 – – Tipifica a violência domés- CP, para criar o tipo “Violência Doméstica” tica Projeto de Lei nº 4559, de Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, 16/11/04 – Violência Do- nos termos do § 8º do art. 226 da CF méstica e familiar Lei nº 11.106, de 28/03/05 – Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o 231Altera o CP A ao Dec-lei nº 2.848 – CP Lei nº 11.340, de 07/08/06 – Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar Lei Maria da Penha contra a mulher. Dispõe sobre a criação dos Jufams, altera o CP, o CPP e a LEP, entre outras providências CONCLUSÃO A explicação do número pequeno de condenações se dá pela simples medida de proteção resultando no afastamento do agressor do lar conjugal, a impossibilidade de aproximação da vítima. Na maioria das vezes essas medidas são suficientes para resolver o problema.15 A maior parte dos pedidos feitos à Justiça por mulheres vítimas de violência doméstica trata-se de medidas protetivas. O principal objetivo da Lei Maria da Penha é encorajar as mulheres a denunciar seus agressores e com isso coibir e prevenir a violência doméstica e familiar. 15 Idem, p. 173. 190 Breves comentários à Lei Maria da Penha REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Código Penal. Constituição Federal, Código civil, Código de Processo Civil, Código Penal, Código do Processo Penal, Código Comercial, Código de Defesa do Consumidor, Código Tributário Nacional, Código Eleitoral, Código de Trânsito Braileiro, Consolidações das Leis do Trabalho, Legislação Complementar, Regimento Interno do STF, Regimento Interno do STJ, Súmulas Vinculantes do STF e Súmulas do STF, STJ, TSE e TST. 6. ed. Organização de Anne Joyce Angher. São Paulo: Rideel, 2009. p.370 (Vade Mecum). CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica contra a mulher no Brasil. 2. ed. Salvador, Bahia: Podivm, 2008. p. 37. CUNHA, Rogério Sanches. Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e a Constituição Federal de 1988. Boletim IBCCRIM, n. 153, ago. 2005. p. 8-9. CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2008. p. 31. FARIAS, Helena Omena Lopes de; MELLO, Mônica de. Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher e a Convenção para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. São Paulo: Centro de Estudo, 1998. p. 373. FREITAS, Jayme Walmer de. Impressões objetivas sobre a Lei de Violência Doméstica. Boletim Jurídico, ano 5, n. 212, Uberaba, 2007. Disponível em: http://www. boletimjuridico.com.br/doutrina. Acesso em: 15 abr. 2010. PENHA, Maria da. Antes de tudo, uma forte. Entrevista concedida à revista Leis e Letras, n. 6, ano II, p. 20-24, Fortaleza, 2007. SANTIM, Valdir Foleto. Igualdade constitucional na Violência Doméstica. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 5 jun. 2010. SOUZA, João Paulo de Aguiar Sampaio; FONSECA, Tiago Abud da. A aplicação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Boletim do IBC- Valdenir Rodrigues Barbosa Filho 191 Crim, n. 168, nov. 2006. p. 4. SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher: Lei Maria da Penha, 11.340/2006. Curitiba: Juruá, 2007. p. 47. TJSP, Conflito de jurisdição 150.521-0/8. Rel. Maria Olívia Alves, j. 08.10.2007. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/. Acesso em: 20 abr. 2010. ERRO DE TIPO E ERRO DE PROIBIÇÃO: UMA ABORDAGEM DIDÁTICA DOS INSTITUTOS Wanderlei José dos Reis1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Os acadêmicos e os profissionais do Direito sempre se deparam na seara penal com a crucial distinção entre erro de tipo e erro de proibição. Diferenciação esta que já deve ficar assentada desde os primeiros anos do curso de Direito, como pré-requisito para a ampla e correta compreensão de outros institutos penais posteriores e pertinentes a estes no estudo da Parte Geral do Estatuto Repressivo. Este pequeno estudo não tem o condão de esgotar o tema – que já foi, inclusive, objeto de obras específicas de grandes penalistas pátrios –, mas, mostra-se peculiar aos acadêmicos de Direito, que, a partir dele, podem despertar para o fato de que são os pormenores, muitas vezes, que fazem a diferença entre os muitos institutos do Direito, demandando, assim, perspicácia por ocasião dos estudos, buscando-se a separação conceitual e, ao mesmo tempo, a integração entre eles, e que ao se estudar as diversas cadeiras dessa faculdade deve-se ter em mente a interdisciplinaridade, já que os ramos do Direito não são estanques. Cumpre destacar também, preliminarmente, que essa questão palpitante, objeto da análise, é de grande frequência em provas e concursos jurídicos.2 Antes da reforma de 1984, na Parte Geral do Código Penal, o erro de tipo e o erro de proibição estavam dispostos no art. 17, §§ 1º e 2º daquele estatuto, que estabelecia: 1 Juiz de Direito em Mato Grosso (1º colocado no concurso); ex-delegado de Polícia (1º colocado no concurso); doutorando em Direito; MBA em Poder Judiciário pela FGV; escritor; professor; doutrinador; graduado em Matemática; bacharel em Direito; especialista em Educação pela UFRJ, em Direito Público Avançado e em Processo Civil Avançado; autor de inúmeras obras e artigos jurídicos; membro da Academia Mato-Grossense de Letras e da Academia Mato-Grossense de Magistrados. Atua como juiz da 1ª Vara Cível de Sorriso-MT. Recebeu inúmeros reconhecimentos sociais (em nível regional e nacional) pelos trabalhos desenvolvidos no âmbito da Justiça nacional. 2 Como, à guisa de exemplo, o que nos submetemos em 04/06/2000 – Prova Oral para o Cargo de Delegado de Polícia do Estado de Mato Grosso – ou o XXXVIII Concurso de Ingresso ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais – 2ª Fase – 1999. 194 Erro de Tipo e Erro de Proibição: uma abordagem didática dos institutos Art. 17 - É isento de pena quem comete o crime por erro quanto ao fato que constitui, ou quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. §1º - Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. §2º - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro. Agora, são os arts. 20 e 21, do Código Penal, que tratam do assunto. Passemos ao tema. CRIME Para tratarmos de erro de tipo e erro de proibição, mister se faz, inicialmente, conceber-se o que é crime, seu conceito, sua estrutura e seus requisitos. A teoria clássica considera crime como sendo um fato típico, antijurídico e culpável. Hoje o entendimento da doutrina é praticamente pacificado que o Código Penal, reformado em sua Parte Geral pela Lei n.º 7209/84, adotou a Teoria Finalista – quesito fundamental para se aferir qual a estrutura do crime. Para esta teoria, crime, sob o prisma formal, é um fato típico e antijurídico. Constituindo-se a culpabilidade, juízo de reprobabilidade da conduta do agente, como pressuposto de aplicação da pena. Logo, crime – fato típico e antijurídico – possui a seguinte estrutura: 1 - Fato típico, que é composto dos seguintes elementos: a) Conduta humana3 dolosa ou culposa. b) Resultado (exceto nos crimes de mera conduta). c) Nexo causal entre a conduta e o resultado (exceto nos crimes de mera conduta e formais). d) Tipicidade (enquadramento da conduta realizada pelo agente à norma penal incriminadora). 2 - Antijurídico Diz-se que o fato é antijurídico ou ilícito quando contrário ao orde3 Por oportuno, ressalve-se que hodiernamente, com o advento da Lei n.º 9605/98 – art. 3º –, em decorrência do art. 225, §3º, da CR, há a possibilidade de a pessoa jurídica delinquir. Wanderlei José dos Reis 195 namento jurídico. Esse conceito de antijuridicidade se extrairá, na verdade, por exclusão, tendo-se que o fato típico, em princípio, é antijurídico, pois milita contra o fato típico a presunção da antijuridicidade, salvo se acobertado por uma das excludentes de ilicitude4 previstas em lei (legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, estado de necessidade, exercício regular de direito, normas permissivas da Parte Especial do Código Penal ou de legislação extravagante). Já a culpabilidade, que não integra o crime e sim funciona como condição de aplicação de pena, compõe-se dos seguintes elementos: 1 – Imputabilidade. 2 – Exigibilidade de conduta diversa. 3 – Potencial consciência da ilicitude. Assim, em resumo, para que alguém cometa um crime ou delito é necessário que pratique uma conduta típica e antijurídica. E mais, para que sobre ele recaia uma pena (espécie do gênero sanção penal) é necessário que se faça presente a culpabilidade (com seus três elementos supracitados). ERRO DE TIPO O erro é a falsa representação da realidade: é a crença de ser B, sendo A; é o equivocado conhecimento de um elemento, ao passo que ignorância é a ausência de conhecimento. O erro de tipo é tratado pela doutrina tradicional como erro de fato5 (error facti), o que a moderna doutrina penal, dentre eles Damásio, não mais faz.6 O art. 20, caput, do Código Penal, prescreve que: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”. Trata-se do erro de tipo, quando o agente não quer praticar o crime, mas, por erro, vem a cometê-lo. O erro aí incide sobre elementar ou circunstância do tipo penal (abrangidas também as qualificadoras, causas de aumento de pena e as circunstâncias agravantes). O agente tem uma falsa percepção da reali4 Também chamadas de excludentes de antijuridicidade, descriminantes, eximentes, justificativas ou causas de exclusão do crime. 5 Para Nelson Hungria, antes da reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro, o erro de fato excluía o dolo. 6 Damásio entende que o erro de fato não corresponde ao erro de tipo. 196 Erro de Tipo e Erro de Proibição: uma abordagem didática dos institutos dade, enganando-se, imaginando não estar presente uma elementar ou circunstância do tipo penal, e com isso falta-lhe a consciência e sem ela não há dolo, logo, o erro de tipo exclui o dolo, e sem este não há conduta, que, como se viu, integra o fato típico, excluindo a existência do próprio delito. Como exemplos citados pela doutrina tem-se o caso do caçador que atira em seu companheiro achando tratar-se de um animal bravio; indivíduo que se casa com pessoa já casada, desconhecendo o casamento anterior; alguém que recebe um carro idêntico ao seu das mãos do manobrista e o leva embora. Ora, nesses casos faltou aos agentes o dolo de matar “alguém” (pessoa), o dolo de casar com pessoa já casada e o dolo de furtar (subtrair coisa alheia móvel), respectivamente, logo não respondem por crime algum. Há duas formas de erro de tipo, que ensejam tratamentos e consequências diversas: erro de tipo essencial e acidental. O erro de tipo essencial é o que recai sobre elementares ou circunstâncias do tipo penal, de tal forma que subtrai do agente a consciência de que está praticando um delito. Com isso, exclui-se o dolo (se o erro essencial for vencível ou inescusável - art. 20, caput, 2ª parte e § 1º, 2ª parte, CP), permitindo a punição a título de culpa (se houver previsão legal), ou exclui-se o dolo e a culpa (se o erro essencial for invencível ou escusável - art. 20, caput, 1ª parte, e § 1º, 1ª parte, CP). Já o erro de tipo acidental é aquele que recai sobre elementos secundários e irrelevantes da figura típica e não impede a responsabilização do agente pelo crime, ou seja, não elide nem o dolo nem a culpa. Podendo assumir as modalidades de erro sobre o objeto (error in objecto), erro sobre a pessoa (error in persona), erro na execução (aberratio ictus), resultado diverso do pretendido (aberratio criminis) ou erro sobre o nexo causal (aberratio causae). Por fim, anote-se que, segundo Mirabete7, o § 1º do art. 20 do Código Penal, que trata das descriminantes putativas, está topograficamente mal colocado, haja vista que a teoria dominante entende que tais descriminantes se referem a erro de proibição (art. 21) e não erro de tipo. Por seu turno, Damásio8, com mais acerto no nosso entender, leciona que neste caso do 7 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 8. ed. v. 1. São Paulo: Atlas, 1994. p. 162. 8 JESUS, Damásio E. Direito penal. 19. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 272. Wanderlei José dos Reis 197 §1º do art. 20, se o erro incidir sobre os pressupostos de fato da excludente de ilicitude, trata-se sim de erro de tipo, aplicando-se o art. 20, §1º, CP; já, se o erro do sujeito recair sobre os limites legais (normativos) da causa de justificação, aplicam-se os princípios do erro de proibição (art. 21, CP). ERRO DE PROIBIÇÃO A doutrina tradicional trata o erro de proibição como erro de direito (error iuris), o que a moderna doutrina penal não mais faz.9 O art. 21, do Código Penal, prescreve que: “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá reduzi-la de um sexto a um terço. Considerando-se evitável o erro, se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.” Trata-se, pois, do erro de proibição. Consabido que, de acordo com o art. 3º, da LICC10, “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”, pois, ignorantia legis neminem excusat, tem-se assentado a inescusabilidade da ignorância da lei. Viu-se, inicialmente, que a culpabilidade é pressuposto de aplicação de pena e compõe-se de três elementos, dentre eles a potencial consciência da ilicitude, que exige do sujeito, por ocasião da prática do fato, consciência que aquele comportamento é contrário ao ordenamento jurídico (antijurídico). Daí, erro de proibição: erro que incide sobre a ilicitude do fato. Se a pessoa o pratica sem saber que ele é proibido, sendo inevitável esse desconhecimento, fica excluída a culpabilidade, dando-se a isenção de pena; se evitável, fica atenuada a pena de um sexto a um terço. No erro de proibição o erro incide sobre a ilicitude do fato, o sujeito supõe lícito o fato por ele praticado, fazendo um juízo equivocado sobre o que lhe é permitido fazer no convívio social. Como exemplos de erro de proibição, mencionados pela doutrina, pode-se citar o caso de dois irmãos que se casam supondo a inexistência de impedimento legal, ou a pessoa que tem cocaína na sua casa em depó9 Damásio defende que o erro de direito não corresponde ao erro de proibição. 10 A Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4657/42), ou, recentemente nominada, “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”, não obstante à nomenclatura (introdução ao Código Civil), não se refere apenas ao Direito Civil e nem somente ao direito privado. Ela regula as normas jurídicas de uma maneira geral, sejam elas de direito público ou privado, e é tida como uma norma sobre normas. 198 Erro de Tipo e Erro de Proibição: uma abordagem didática dos institutos sito reputando aquela conduta como legal. Eles sabem, perfeitamente, o que estão fazendo, só que julgam tais condutas permitidas. CONCLUSÃO Não há o que confundir erro de tipo e erro de proibição. Como salientado alhures, são institutos distintos. O erro de tipo recai sobre elementares ou circunstâncias do tipo penal, ao passo que o erro de proibição é aquele que incide sobre a regra proibitiva, sobre a antijuridicidade do fato. No erro de tipo (art. 20, do Código Penal) o erro recai sobre o fato em si (daí a doutrina tradicional chamá-lo de erro de fato – error facti, e o Código Penal vigente tratá-lo como tal), ou seja, o dolo do agente não é o de cometer crime (animus dolandi), mas, por erro sobre elementares ou circunstâncias do tipo penal, vem a cometê-lo (tem uma noção errônea do fato, não sabe o que está fazendo), v.g., quando o agente se apodera de objeto alheio achando que é seu, isso enseja a exclusão do dolo (permitindo a punição a título culposo, se houver previsão legal) ou do dolo e culpa. Já no erro de proibição (art. 21, do Código Penal) tem-se um erro de direito (daí a doutrina tradicional chamá-lo de error iuris, e o Código Penal vigente tratá-lo como tal), ou seja, o agente erra quanto à ilicitude do fato, tendo um juízo equivocado, entendendo que aquela conduta não é ilegal (o engano incide sobre o comportamento do sujeito), com reflexos na culpabilidade, excluindo-a ou atenuando-a, e, em consequência, a pena. Assim, a diferença marcante entre os dois institutos está na percepção da realidade, pois tem-se que no erro de tipo o agente não sabe o que faz, tendo uma visão distorcida da realidade, não vislumbrando na situação que se lhe apresenta a presença de fatos descritos no tipo penal incriminador como elementares ou circunstâncias; ao passo que, no erro de proibição, a pessoa sabe perfeitamente o que faz, existindo um perfeito juízo sobre tudo o que está se passando, mas há uma errônea apreciação sobre a injustiça do que faz, ela entende lícita sua conduta, quando, em verdade, é ilícita. Por fim, traçando-se um paralelo em casos concretos, basta volvermos aos dois exemplos suprarreferidos do erro de proibição. Ora, no primeiro caso, dos dois irmãos que se casam supondo a inexistência de impedimento legal, se eles desconhecessem a relação de parentesco, estar- Wanderlei José dos Reis 199 se-ia diante do erro de tipo, e não erro de proibição. Da mesma forma, no caso da pessoa que tinha cocaína em depósito, se ela julgasse que tal substância não fosse cocaína e sim outro material inócuo, o caso seria de erro de tipo e não erro de proibição. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALDACCI, Roberto. Teoria e questões de concursos. São Paulo: Edipro, 1999. v. 1 BARUFFI, Helder; CIMADON, Aristides. A metodologia científica e a ciência do direito. 2. ed. Porto Alegre: Evangraf, 1998. BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense. v. 1, 1959; v. 2, 1959; v. 3, 1962. DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 3. ed. São Paulo: Renovar, 1991. GONÇALVES, Victor E. Rios. Direito penal. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958. JESUS, Damásio E. Direito penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 1. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1994. v. 1. NORMAS E INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES DA REVISTA JURÍDICA DA UNIVERSIDADE DE CUIABÁ – UNIC O objetivo da Revista Jurídica da UNIC é divulgar a produção científica da comunidade acadêmica, na forma de artigos, ensaios, informes científicos e resenhas. Os trabalhos devem ser inéditos e, uma vez aceitos pela Revista, não deverão ser publicados, sob qualquer forma, em outro periódico ou livro, antes de decorridos seis meses de sua publicação nesta Revista. 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