Revista Jurídica Unic - Vol. 12 Nº 1

Transcrição

Revista Jurídica Unic - Vol. 12 Nº 1
COMITÊ CIENTÍFICO
ADRIANA KOSZUOSKI
DANIELA M. ECHEVERRIA
DANIELA M. SAMANIEGO
DARLÃ MARTINS VARGAS
DINARA DE ARRUDA
DYNAIR DALDEGAN
FRANCISCO A. FAIAD
JENZ PROCHNOW JR.
JOSÉ PATROCÍNIO BRITO JR.
MARCOS HENRIQUE MACHADO
SAUL DUARTE TIBALDI
Universidade de Cuiabá – UNIC
Pró-reitoria Acadêmica
Centro de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão
Faculdade de Direito
UNIVERSIDADE DE CUIABÁ
ISSN: 1519-1753
Rev. Juríd. UNIC
v.12 – n.1
Jan./Jun. 2010
© Universidade de Cuiabá – UNIC, 2010
Os conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade dos autores.
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta publicação, desde que citada a fonte.
Av. Beira Rio, 3.100 – Jardim Europa – 78.015-480 – Cuiabá - MT
Tel.: (65) 3363-1000
E-mail: [email protected]
UNIVERSIDADE DE CUIABÁ
Revista Jurídica da UNIC
Direção Editorial
Antonio Alberto Schommer
Coordenação Editorial
Marcos Juvenal da Silva
Revisão
Doralice de Fátima Jacomazi
Produção Gráfica, Capa e Editoração Eletrônica
Estúdio 11
Desenvolvimento Gráfico e Editorial
Dados CIP – Biblioteca Central UNIC
REVISTA JURÍDICA DA UNIVERSIDADE DE CUIABÁ. Universidade de Cuiabá - UNIC. Faculdade de Direito. Cuiabá;
Edunic, v. 1, n. 1, jul./dez., 1999.
periodicidade semestral.
192 p.
Direito – Periódico
1. Direito - Periódico I. UNIC. Faculdade de Direito
II. Título.
CDU: 340 (05)
SUMÁRIO
Apresentação
7
A (Des)Obrigatoriedade da Aceitação do Cheque
como Forma de Pagamento nas Relações de Consumo
Armindo de Castro Júnior
9
Teoria da Argumentação Jurídica
Da Magna Graecia à Contemporaneidade
Carmen Hornick
17
A Evolução do Divórcio no Direito Brasileiro
e as Novas Tendências da Dissolução Matrimonial
Clarissa Bottega
31
A Evolução do Ministério Público Português
e seu Desempenho à Luz dos Princípios Constitucionais
Daiane Zappe Viana
37
A Improbidade Administrativa e o
Terceiro (Não Agente Público) Envolvido
Darlã Martins Vargas
55
Contrato de Aprendizagem:
Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
63
Amicus Curiae e o Princípio do Iura Novit Curiae:
Compatibilidade no Sistema Jurídico Romano-Germânico
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
83
Direito Penal do Inimigo
Lídio Modesto da Silva Filho
93
A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
Marcos Henrique Machado
107
Poder Investigativo do Ministério Público
Mariana Leite Nabarrete
129
Progressão de Regime Prisional na
Lei de Crimes Hediondos
Miguel Juarez Romeiro Zaim
145
A Função Notarial e dos Registros Públicos
Milena Rondon Luz Tarachuk
175
Normas e Instruções aos Colaboradores
da Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá – Unic
191
APRESENTAÇÃO
Inicia-se agora a segunda década de caminhada da Revista Jurídica.
Muito trabalho já permeou controvérsias que provocaram pesquisas e conclusões totalmente apartadas da vala comum e da mesmice. A finalidade da
pesquisa acadêmica é exatamente esta. A discussão, o debate e o advento
de novos entendimentos.
Hoje surge outra geração com nova forma de aprender e de interagir
em grupo, que a um só tempo está isolada e conectada ao mundo. Que
ouve música, vê filmes, estuda e fala nos sites de relacionamento, concomitantemente. E os professores, aos moldes antigos e analógicos, se não
mudarem rapidamente, estão fadados à exclusão. As longas aulas expositivas devem dar lugar à interação e à busca de seus interesses. Está à frente
deles uma geração mais ágil, mais inteligente e mais interativa e que por
essa razão mesmo exige, a cada dia, mais dos mestres.
A Revista Jurídica vem, nesse contexto, trazer nova roupagem e
maneira de encarar esta juventude que vê as coisas de outra forma, com
outro matiz ético e moral, pelo qual o saber não basta, é preciso ser, saber
fazer e conviver.
As pesquisas acadêmicas, se não têm o poder de modificar seus pensamentos e avaliações, pelo menos os trazem ao raciocínio e à melhor compreensão do mundo jurídico em que estarão fatalmente inseridos no amanhã.
Com a abordagem de variada gama de áreas do Direito, a Revista Jurídica e os professores entregam à comunidade científica a possibilidade de
uma discussão maior dos temas, alargando os horizontes do conhecimento.
Inicia a caminhada da segunda década sem a intenção de querer impor ideias e nem filosofismos, mas, sim, de instigar a abertura de caminhos
e contribuir com a formação sempre mais adequada dos acadêmicos que
adentram as portas das Universidades.
Sejam todos bem-vindos ao mundo científico e boa leitura.
Antonio Alberto Schommer
Diretor Editorial
Cuiabá, maio de 2010
A (DES)OBRIGATORIEDADE DA ACEITAÇÃO
DO CHEQUE COMO FORMA DE PAGAMENTO
NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Armindo de Castro Júnior1
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é verificar se o cheque tem curso forçado nas
relações de consumo; em outras palavras, se o empresário é obrigado – ou
não – a receber o pagamento de bem ou serviço mediante cheque, bem
como a legalidade de se estabelecer condições para sua aceitação.
ACEITAÇÃO DE CHEQUES
O entendimento sobre a obrigatoriedade – ou não – da aceitação de
cheque como forma de pagamento passa, obrigatoriamente, pela análise
dos dispositivos legais aplicáveis, bem como pela interpretação doutrinária
e jurisprudencial.
DISPOSITIVOS LEGAIS
O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, inciso IX,
estabelece como ser vedado, por prática abusiva, “recusar a venda de bens
ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los
mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais”.
Interpretando esse dispositivo legal, chega-se facilmente à conclusão que, se o consumidor se propuser a comprar um bem em moeda
corrente, o empresário é obrigado ao fornecimento, uma vez que não há
dúvida de que o dinheiro representa pronto pagamento. Com efeito, é o
que dispõe nosso Código Civil: “Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão
ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo
1 Advogado em Cuiabá-MT. Professor universitário da Universidade de Cuiabá – Unic, mestre em
Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade de Coimbra, Portugal.
10
A (Des)Obrigatoriedade da Aceitação do Cheque como Forma de Pagamento...
o disposto nos artigos subsequentes”.
Alguns autores, como Sérgio Gabriel2 e Lúcio Cavalcante de Sou3
za , entendem que o cheque teria esta mesma característica, de pronto
pagamento, partindo da falsa premissa de que esse título teria capacidade
liberatória, por ser pagamento à vista. Na verdade, o cheque consiste em
ordem de pagamento à vista. Nela, o emitente do título dá uma ordem
para que o banco pague a importância consignada e o banco sacado pode
não cumprir com a ordem dada, não pagando a cártula.
O cheque, como em regra todo título de crédito, é emitido pro-solvendo, ou seja, não quita a obrigação que lhe deu origem; essa obrigação
somente se dará por satisfeita com o pagamento do cheque pelo banco
sacado. Assim, por exemplo, se o consumidor emitir um cheque para pagamento da compra de uma geladeira, sua obrigação (de pagar a geladeira)
somente se dará por encerrada quando o cheque for pago pelo banco. A Lei
do Cheque (Lei nº 7.357/85) é suficientemente clara sobre o assunto: “Art.
62. Salvo prova de novação, a emissão ou a transferência do cheque não
exclui a ação fundada na relação causal, feita a prova do não-pagamento”.
No mesmo sentido, a Lei nº 8.002/90 (hoje revogada pela Lei nº
8.884/94), que dispunha sobre a repressão de infrações atentatórias contra
os direitos do consumidor, tinha a seguinte redação, bastante esclarecedora:
Art. 1º - Fica sujeito à multa, variável de 500 a 200.000 Bônus do Tesouro Nacional - BTN, sem prejuízo das sanções penais que couberem na
forma da lei, aquele que:
I - recusar a venda de mercadoria diretamente a quem se dispuser a
adquiri-la, mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;
[...]
§ 2º - Considera-se pronto pagamento o que é efetuado:
I - em moeda corrente nacional, cheque visado ou cheque administrativo, no ato da entrega da mercadoria;
II - mediante cheque, no ato do pedido de mercadoria, caso em que a
entrega será feita após compensado o mesmo.
2 GABRIEL, Sérgio. Da aceitação do cheque. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2332>. Acesso em: 31 jan. 2008.
3 SOUZA, Lúcio Cavalcante de. O cheque como forma de pagamento. No Jurídico, 22 nov. 2007.
Disponível em: <http://www.nojuridico.com.br/?p=colunas&id=56>. Acesso em: 31 jan. 2008.
Armindo de Castro Júnior
11
Como se vê pelo dispositivo legal, somente o dinheiro e o cheque
administrativo (o cheque visado já não mais é utilizado no país) teriam capacidade liberatória. O cheque comum não quita desde logo a obrigação.
Portanto, não se pode falar no pronto pagamento definido pelo Código
de Defesa do Consumidor. Waldirio Bulgarelli, comentando o assunto, entende que seria obrigatória a aceitação de cheque nas relações de consumo, “condicionando a entrega da mercadoria à compensação dos cheques comuns”.4
A Lei nº 8.002/90, apesar de revogada, serve como parâmetro para
entender o pensamento do legislador. Contudo, não mais tendo caráter
coercitivo, prevalece o disposto em nossa Constituição Federal que, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, em seu artigo 5º, inciso II, deixa
claro que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”.
ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO
A melhor doutrina nacional tem interpretação semelhante à ora exposta. Pontes de Miranda, em sua magnífica obra, assim entende: “Isto
importa dizer-se que o cheque faz as vezes do dinheiro, porém não é
dinheiro, não tem curso forçado”.5
Rubens Requião tem opinião idêntica à de Pontes de Miranda:
O cheque não tem o poder liberatório da moeda. Ninguém é obrigado
a receber cheque em pagamento, pois só a moeda tem curso forçado.
O uso de cheque se explica pela facilidade com que mobiliza os valores
monetários.6
Não poderia faltar a lição de Fran Martins, que resume o entendimento supracitado:
Dispensa-se, assim, com o cheque o uso do dinheiro em espécie. Mas
o simples recebimento do cheque, por parte do portador, não significa
pagamento, donde poder o portador recusar o cheque para a solvência
4 BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 351.
5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito cambiário: cheque. v. 4. 2. ed. Campinas: Bookseller,
2001. p. 73.
6 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 2. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 479.
12
A (Des)Obrigatoriedade da Aceitação do Cheque como Forma de Pagamento...
do seu crédito. Isso porque o cheque é apenas uma “ordem de pagamento” e na realidade esse pagamento só se verifica quando a ordem é
cumprida, seja com a entrega real do dinheiro, seja com o lançamento
em conta da importância mencionada no cheque. Só aí caberá ao portador quitar o seu crédito, pois só então o débito desaparece. Até o
momento do pagamento pelo sacado o devedor continua sendo o emitente do cheque, razão pela qual não pode o portador voltar-se contra o
sacado que não paga e sim contra o sacador que, pelo cheque, apenas
ordenou o pagamento mas, na realidade, não efetuou o mesmo, já que
o cheque não representa moeda e sim um instrumento de pagamento,
como acima foi assinalado.7
ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
O Superior Tribunal de Justiça igualmente firmou entendimento de
que o cheque não tem curso forçado, ou seja, o empresário não é obrigado
ao seu recebimento. Vejamos:
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL.
PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULAS NS. 282 E 356-STF.
PAGAMENTO COM CHEQUE RECUSADO POR SUPERMERCADO, EM
FACE DE PRÁTICA COMERCIAL DO ESTABELECIMENTO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. MERO CONTRATEMPO. INEXISTÊNCIA DE
ATO ABUSIVO. REVISÃO DE MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE.
SÚMULA N. 7-STJ.
I. A ausência de prequestionamento das questões federais suscitadas
constitui óbice ao acesso à via especial.
II. Mera recusa de pagamento de compras de supermercado com cheque de valor superior ao admitido na sistemática comercial do estabelecimento não constitui prática abusiva, tampouco causa dano de ordem
moral, mas mero dissabor ou contratempo não indenizável.
III. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ.
IV. Recurso especial não conhecido.
7 MARTINS, Fran. Títulos de crédito: cheques, duplicatas, títulos de financiamento, títulos representativos e legislação. v. 2. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 13, 14.
Armindo de Castro Júnior
13
(STJ. Órgão Julgador: Quarta Turma. Recurso Especial nº 509.003/MA.
Relator: Min. Aldir Passarinho Junior. Data do julgamento: 04 mai. 2004.
Publicação: Diário de Justiça, 28 jun. 2004. p. 328).8
Em seu voto, o eminente relator Aldir Passarinho Junior fundamentou
seu voto em diversos julgados e na doutrina, concluindo que: “O comerciante não está obrigado a aceitar cheques, podendo fazê-lo de acordo com os
critérios que melhor entender para a administração do seu negócio”.
No mesmo sentido, está o Recurso Especial nº 831.336/RJ, ao entender que: “Receber ou recusar cheque é opção do comerciante. Não há Lei
que determine curso forçado dessa forma de pagamento”.9
CONDIÇÕES PARA RECEBIMENTO DE CHEQUES
Não sendo obrigado a receber pagamento em cheque, o empresário
pode perfeitamente estabelecer regras para aceitar o título, ante a regra de
hermenêutica de que “quem pode o mais, pode o menos”.
Dessa forma, é possível que o comerciante somente aceite receber
cheque da praça de pagamento em que está situado seu estabelecimento,
na medida em que, na eventualidade de o título não ser pago pelo banco,
sua cobrança ficará facilitada.10
O critério para o estabelecimento de tais condições, contudo, não
pode discriminar arbitrariamente o consumidor, como ocorre ao se condicionar o recebimento de cheques ao tempo de existência da conta bancária
ou idade mínima do emitente. Segundo entendimento do Departamento
de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, tal conduta
“reveste-se de abusividade, eis que fere um dos princípios norteadores das
relações de consumo, qual seja: o da boa-fé”.11
8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso
em: 2 abr. 2009.
9 Idem.
10 O cheque somente poderá ser protestado ou executado na praça de pagamento descrita no cheque (domicílio da agência bancária) ou, ainda, no domicílio do emitente, ante o que dispõem a
Lei do Cheque, artigo 48 e o CPC, artigos 94 e 100, IV, ‘d’.
11 BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Direito Econômico. Departamento de Proteção
e Defesa do Consumidor. Coordenação Geral de Assuntos Jurídicos. Nota Técnica nº 206/
CGAJ/DPDC/2004. Data: 13 ago. 2004. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/>. Acesso
em: 2 abr. 2009.
14
A (Des)Obrigatoriedade da Aceitação do Cheque como Forma de Pagamento...
Solução mais plausível para o empresário está em condicionar o recebimento de cheque à prévia aprovação de cadastro: caso tenha dúvidas
sobre a idoneidade de determinado comprador ou, ainda, se a venda for
vultosa, poderá exigir o preenchimento de ficha cadastral, com apresentação de documentos pessoais e comprovante de residência, sem que fira os
direitos do consumidor.
DIREITO À INFORMAÇÃO
Apesar de não ter curso forçado, o cheque é regularmente aceito
pelo comércio. A recusa no recebimento de cheques, ou mesmo, o estabelecimento de condições para tal, poderia ocasionar o descumprimento
do disposto no Código Civil: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser
interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Para evitar dissabores, o empresário deve informar ao consumidor
que não aceita cheques ou as condições para recebimento, através de
placas colocadas ostensivamente na vitrine e no caixa do estabelecimento
(não aceitamos cheques; pagamento em cheque sujeito a cadastro, etc.),
evitando, assim, violação ao direito à informação, previsto no Código de
Defesa do Consumidor:
Art. 6º - São direitos básicos do consumidor:
[...]
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e
serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça está que, havendo confronto entre o direito de o empresário recusar o recebimento de
cheques e o direito à informação, previsto no CDC, haverá obrigação de
indenizar o consumidor:
EMENTA
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DANOS MORAIS.
OCORRÊNCIA. ESTABELECIMENTO COMERCIAL. COMPRA COM PAGAMENTO À VISTA MEDIANTE CHEQUE. RECUSA SEM ESCLARECIMENTO PRÉVIO AO CONSUMIDOR. SITUAÇÃO VEXATÓRIA DIAN-
Armindo de Castro Júnior
15
TE DE OUTROS CLIENTES. FIXAÇÃO DO VALOR INDENIZATÓRIO.
REDUÇÃO.
1. No pleito em questão, as razões recursais cingem-se, exclusivamente,
ao inconformismo quanto ao valor indenizatório, arbitrado pelo Tribunal de origem em R$ 8.000,00 (oito mil reais), postulando a recorrente
sua redução a valores “compatíveis com os princípios da equidade”.
2. Como já decidiram ambas as Turmas que integram a 2ª Seção desta Corte, constatando-se exagero ou manifesta irrisão na fixação do
montante indenizatório do dano moral, pelas instâncias ordinárias, descumprindo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é
possível a revisão nesta Corte da aludida quantificação.
3. Em atenção as peculiaridades do caso em questão e observados os
princípios acima mencionados, o valor indenizatório fixado pelo Tribunal de origem – em R$ 8.000,00 (oito mil reais) – mostra-se excessivo,
não se limitando à compensação dos prejuízos advindos do evento
danoso. Assim, para assegurar ao lesado justa reparação, sem incorrer
em enriquecimento ilícito, reduzo o referido montante, para fixar a indenização dos danos morais na quantia certa de R$ 3.500,00 (três mil e
quinhentos reais).
5. Recurso conhecido e provido.
(STJ. Órgão Julgador: Quarta Turma. Recurso Especial nº 820.643/ES.
Relator: Min. Jorge Scartezzini. Data do julgamento: 15 ago. 2006. Publicação: Diário de Justiça, 11 set. 2006, p. 307).12
CONCLUSÃO
Pelo exposto, pode-se concluir que, apesar de o Código de Defesa do
Consumidor estabelecer a obrigatoriedade do fornecimento de bens ou serviços a quem pretender adquiri-los mediante pronto pagamento, o cheque
não é pagamento à vista e, sim, uma ordem de pagamento à vista, que
pode não ser cumprida pelo banco no caso de falta de provisão de fundos.
Não tendo capacidade liberatória, o cheque não tem curso forçado.
Não há, atualmente, qualquer dispositivo legal que obrigue o empresário a
aceitar pagamento através deste título de crédito, prevalecendo, pois, o já citado artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, ao estabelecer que “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Op. cit.
16
A (Des)Obrigatoriedade da Aceitação do Cheque como Forma de Pagamento...
O empresário pode recusar-se a receber cheque ou, ainda, estabelecer condições para sua aceitação, desde que informe ao consumidor, de
forma ostensiva, tal recusa ou condição. Assim procedendo, evita violação
ao direito à informação, previsto no Código de Defesa do Consumidor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Direito Econômico. Departamento de
Proteção e Defesa do Consumidor. Coordenação Geral de Assuntos Jurídicos. Nota
Técnica nº 206/CGAJ/DPDC/2004. Data: 13 ago. 2004. Disponível em <http://
www.mj.gov.br/>. Acesso em: 2 abr. 2009.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível em: <www.stj.jus.
br>. Acesso em: 2 abr. 2009.
BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
GABRIEL, Sérgio. Da aceitação do cheque. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52,
nov. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2332>.
Acesso em: 31 jan. 2008.
MARTINS, Fran. Títulos de crédito: cheques, duplicatas, títulos de financiamento,
títulos representativos e legislação. v. 2. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito cambiário: cheque. v. 4. 2. ed. Campinas:
Bookseller, 2001.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 2. 23. ed. São Paulo: Saraiva,
2003.
SOUZA, Lúcio Cavalcante de. O cheque como forma de pagamento. No Jurídico,
22 nov. 2007. Disponível em: <http://www.nojuridico.com.br/?p=colunas&id=56>.
Acesso em: 31 jan. 2008.
TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
DA MAGNA GRAECIA À CONTEMPORANEIDADE
Carmen Hornick1
INTRODUÇÃO
Inserido em um contexto econômico-histórico-social o âmbito educacional dos cursos de Direito encontra-se flagrantemente voltado para a
instrumentalização. Vislumbrando-se tal panorama, mister faz-se pontuar
alguns aspectos vitais para reavivar a percepção científica do exercício da
ciência jurídica, a qual, hodiernamente, figura suplantada pela impertinência do tecnicismo.
Bittar e Almeida pontuam em sua obra a urgência do pensar sugerindo como marca da sociedade contemporânea a ausência de autorreflexão, “a apatia política sobre os desafios futuros comuns, a inércia expectadora, a aceitação do status quo e o consumo compensador”. Afirmam
que vivemos em uma “sociedade de controle, com forte predominância da
razão instrumental, na acepção da Escola de Frankfurt, ou seja, da razão
orientada para fins imediatistas (razão técnica, para a produtividade, para
a economia, para a eficiência, para o mercado) [...]”.2
Pautado nessas constatações, este artigo propõe-se a percorrer os
caminhos históricos que consagraram o processo argumentativo como elemento essencial para a prática democrática do Direito. Haja vista que ao
discorrer sobre tal tema pretende fazer-se observar a inter-relação entre
elementos políticos, econômicos, históricos e sociais que engendram a
prática do Direito, o conceito do que é justo para cada época e que, por
conseguinte, deflagra as leis e o direito na sociedade.
A imbricação de comportamento, cultura, política e sociedade delimita as fronteiras do avanço de dada sociedade. São esses conceitos que,
ressignificados ao longo do tempo, articulam-se e provocam mudanças,
1 Professora de Teoria da Argumentação Jurídica da Universidade de Cuiabá, mestra em Estudos
Linguísticos pela Universidade Federal de Mato Grosso, especialista em Linguística Aplicada
pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]
2 BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme de Assis. Curso de Filosofia do Direito. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2009. p. 8.
18
Teoria da Argumentação Jurídica – Da Magna Graecia à Contemporaneidade
alterações, estabelecem novos paradigmas, enfim, reinventam padrões e
constroem contradiscursos.
O século XX vivencia essa transformação, especialmente no ensino das
ciências jurídicas, por meio da Nova Retórica do professor Chaïm Perelman,
da Universidade de Bruxelas, o qual renova o espaço discursivo ao pontuar
cientificamente a importância da argumentação jurídica, recuperando a herança Aristotélica. Fetzner e Paladino afirmam, ipsis litteris, que o filósofo de
Bruxelas “preocupa-se com o ponto de partida do raciocínio, com seu desenvolvimento e com o resultado a ser obtido, retomando conceitos e categorias
da Antiguidade, ao valorizar a argumentação para lidar com valores”.3
A argumentação é própria de um espaço tenso e permeado por conflitos, tal qual é o exercício do Direito, pois, na prática, em qualquer ação jurídica há a disputa entre dois certos, o que caracteriza a existência de pontos
de vista divergentes, os quais se relacionam intimamente a metas, crenças e
valores. Há, no entanto, a tentativa de um ator social prevalecer seu ponto
de vista sobre o do outro, para que este adira à sua tese. Observa-se por este
ângulo a natureza dialógica da argumentação, a possibilidade de transição
em um movimento constante de ir e vir até o alcance do ajuste.
Nosso artigo apontará, a priori, o panorama histórico da humanidade desde seus primórdios até alcançar o processo argumentativo instalado
em um diferente panorama. A posteriori, apresentaremos a Nova Retórica
e seus principais conceitos e, finalizamos, à guisa de conclusões, discorrendo sobre a disciplina de Teoria da Argumentação Jurídica no curso de
Direito como proposta de autonomia e emancipação.
A RETÓRICA AO LONGO DA HISTÓRIA
Ao nos atermos aos estudos da linguagem e, por conseguinte, da
comunicação, observa-se que desde os primórdios o homem já se comunicava mesmo sem ter estudado comunicação, bem como em sua interação
social, ainda que sem ter o conhecimento ou a reflexão sobre a retórica,
este dela já fazia uso. Fazemos referências aqui à retórica natural defendida
por De Mayer, a qual está inserida na linguagem do ser humano de maneira universal, sem levar em consideração raça ou cultura.4
3 Fetzner e Paladino, 2008. p. 104.
4 DE MAYER, L. Vers l’invention de La rhétorique. Une perspective éthno-logique sur La communication em Grèce ancienne. Louvain – La-Neuve: Pecter, 1997. p. 262.
Carmen Hornick
19
Na Grécia, mais precisamente a Magna Graecia, atualmente a região
da Sicília, no século V a.C., dá-se o nascimento da retórica que foi marcado
pela publicação de um manual, composto por Córax e seu discípulo Tísias,
intitulado Tékhne rhetórike, que se preocupa em ensinar ao cidadão comum os preceitos básicos para expor suas queixas diante de um tribunal.
Tal publicação não se deve ao mero acaso, mas às condições políticas e
econômicas que marcavam aquela época e aquela região.
Das terras da Sicília foram expulsos os tiranos que haviam se apropriado dos quinhões daquela região. A partir de então, os cidadãos que
haviam tido seus bens usurpados por esses malfeitores reclamaram seus
direitos. Iniciam-se, pois, os conflitos judiciários que, de certa forma, forçaram o nascimento da retórica. Como não existia a figura do advogado, o
próprio cidadão precisava pleitear seus direitos diante da corte.
Naquele momento não havia preocupação com a filosofia ou literatura do discurso. O desejo do cidadão era apresentar uma aparência de
verdade – verossímil –, mas que convencesse o tribunal de sua razão, já
Córax e Tísias almejavam uma meta bem prática: ganhar dinheiro.
Conta-nos Antônio Henriques que Anthíphon levou a retórica jurídica
de Córax e Tísias a Atenas. O objetivo era de prover ao povo lugares-comuns
– topói –, que pudessem ser aplicados a qualquer caso, como: “responsabilizar
o adversário pelo processo; atribuir-lhe o ônus da prova, transformando o
autor do processo em réu; elogiar a sabedoria e a imparcialidade dos juízes”.5
A proto-retórica dessa época configura-se como o embrião da retórica técnica solidamente organizada por Aristóteles, o qual, no século IV,
estabilizou e deu consistência a essa arte. A justiça e a ética foram os temas
que floresceram com esse filósofo. Discípulo de Platão, foi fundador do
Liceu e preceptor de Alexandre Magno. Aristóteles, por meio de seus textos, sintetizou e veiculou conhecimentos gregos anteriores a ele, a saber:
pré-socráticos, socráticos, sofistas.... Aristóteles se refere às fábulas em sua
“Retórica” dizendo que a fábula esópica é uma das formas da arte de persuadir, as quais foram referência anterior de seu mestre, Platão, que deu a
Esopo um lugar de honra em sua “República”.
As fábulas foram citadas por vários pensadores gregos devido ao
seu poder suasório nas questões que envolviam ensinamentos moralistas.
Porquanto essas tratarem de personagens que podiam ser homens, animais
5 HENRIQUES, Antônio. Argumentação e discurso jurídico. São Paulo: Atlas, 2008. p. 6.
20
Teoria da Argumentação Jurídica – Da Magna Graecia à Contemporaneidade
ou deuses em determinada situação de conflito, na qual se revelavam tolos
ou sábios, bons ou maus. Daí a menção sempre presente a tais textos: seu
poder de convencimento por meio de alegorias singulares, que intentavam
e conseguiam a adesão do auditório à sua tese.
Prosseguindo nossa viagem, não podemos deixar de mencionar o
conceito de dialética, que parte de Sócrates, um questionador indomável
na busca pelo conhecimento. Esse grande filósofo funda o “método socrático” valorizando a interação entre as pessoas, com sessões de perguntas e
respostas. É o germe da dialética, ciência estratégica de troca de posicionamentos e de críticas que visa ampliar o pensamento intelectual.
Note-se que partindo de Sócrates, passando por Platão é que chegamos
a Aristóteles, que considera que uma interação entre dois argumentadores é
um processo de geração de conhecimento. Para melhor esclarecer esse posicionamento, anotamos que quando desfilamos nossos motivos e razões sobre
determinado tema, propomos uma tese. Um comentário, uma ironia vinda do
interlocutor sobre este ponto de vista institui a antítese. Essa proposição que
vem de encontro a determinado modo de agir e pensar, obriga-nos a raciocinar sobre formas e justificativas que possam sustentar a tese proposta. Dados
os pontos de vista divergentes, tanto nós quanto nosso interlocutor haverá de
reavaliar nossas/suas posições sobre o tema, de maneira seletiva: acolhendo o que é interessante e descartando o que não é relevante. Assim, estamos realizando a síntese, que é, resumidamente, a busca pelo consenso,
observando-se a argumentação dos dois atores sociais. No entanto, o que
nos é perceptível é que a busca por tal consenso não encerra o fim do debate, mas o promove a outro patamar, no qual a discussão ressurgirá provocando novas teses, antíteses e sínteses, em um processo ad infinitum.
Aportando à Idade Média, marcada pela invasão dos bárbaros, e,
consequentemente, por uma reformulação estrutural no modus vivendi da
população, não há que se falar em desenvolvimento e progresso das ideias
anteriormente manifestadas pelos pensadores gregos.
Nessa época, apresenta-se como retor Santo Agostinho, que faz uso
da retórica para persuadir o auditório tomando como base Cristo e ação
de graça divina. Na fase final da Idade Média, a dialética e os julgamentos
declinam, conforme preleciona Henrique, para dar espaço à “instauração
do reinado da razão pura, provocou-se o divórcio litigioso e definitivo com
a razão retórico-aristotélica”.6
6 Ibidem, p. 28.
Carmen Hornick
21
Assim, a retórica esvai-se do campo jurídico, seu berço e nascedouro, para ocupar espaço na seara literária, fadada a compor meramente os
meios de expressão e os ornamentos literários. Novamente, percebem-se
os fluxos históricos e os discursos hegemônicos inerentes à época influenciarem a sociedade, a cultura, a política e os processos decisórios. Não se
pode olvidar que o poder na Idade Média apresentava-se descentralizado
– nas mãos dos senhores feudais – e as relações eram estabelecidas entre
vassalagem e suserania. Aos vassalos cabia o trabalho no campo, a divisão
da produção com seu suserano e o pagamento de impostos. Todos os poderes: jurídico, econômico e político, centravam-se nas mãos dos senhores
feudais. De outra sorte, figura o poder do clero – membros da Igreja Católica – que era responsável pela proteção espiritual da sociedade, por isso
isento dos impostos, além de lhe caber o direito da cobrança do dízimo.
Outro fato importante a ser assinalado é o início da Santa Inquisição, também desfraldado nessa época, que visava combater o sincretismo religioso.
Diante de tais fatos, não havemos de nos espantar de a retórica
aristotélica ser relegada ao campo da literatura. Não havia acomodação
para a argumentação, a discussão, muito menos para a defesa de pontos
de vista. Quando impera o absolutismo, os processos jurídicos, as relações de poder ou qualquer outra forma de dissensão não são cabíveis
dentro do sistema. E, mesmo em um período pós-medieval, a retórica
não retoma suas forças argumentativas.
Contudo, o passar do tempo é inexorável, e, com o Renascimento, movimento caracterizado pela ruptura dos valores e crenças presentes na Idade
Média, mudam as formas de pensar sobre o mundo e o Universo ganha novos
rumos. Entra em cena o antropocentrismo – o homem é o centro do universo –, em detrimento ao teocentrismo. A razão passa a ser considerada a
base de todo conhecimento. O nascimento da burguesia, classe em ascensão
econômica e política, pauta seus ideais no empirismo e no idealismo.
Victor Gabriel Rodriguez afirma que Chaïm Perelman elege a Revolução Francesa como marco de diferenciação de um contexto de absolutismo monárquico no qual o rei intervinha nas decisões judiciais e que
estas não passavam de uma sucinta exposição do contexto probatório, sem
qualquer fundamentação.7 Assevera ainda que:
7 RODRIGUEZ, Víctor Gabriel. Curso de Argumentação Jurídica: Técnicas de Persuasão e Lógica
Formal. Campinas: Vox, 2004. p. 15.
22
Teoria da Argumentação Jurídica – Da Magna Graecia à Contemporaneidade
[...] o advento da separação dos poderes, as leis escritas e a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais trouxeram à tona
a necessidade da construção do discurso, dos processos escritos, da
racionalização do processo de construção do direito. Depois de muito
tempo de arbitrariedade, a Revolução Francesa marca como maior valor
jurídico a segurança e a igualdade, ali entendidos como conformidade
da decisão com a lei prévia. O juiz submete-se à letra da lei, e é isso o
que há de mais relevante em sua atividade: a racionalização como fuga
ao subjetivismo e aos privilégios.8
Conta-nos ainda o referido autor que nesse contexto mesclam-se as
ideias de Darwin e sua teoria sobre a evolução das espécies, Freud e sua
análise dos sonhos e das personalidades, os Enciclopedistas a recontar a
história em clara oposição à fé, e a aproximação ao empirismo.
Nessa torrente de pensamentos e posicionamentos, o progresso alcança as ciências jurídicas lançando luz à possibilidade da argumentação
e a flexibilização para os paradigmas humanos. O anterior sistema jurídico
fechado abre-se para as várias soluções possíveis de uma lide. A busca
pela verdade absoluta rende-se ao processo comunicativo, no qual o ordenamento jurídico torna-se orientador e limitador.
CHAÏM PERELMAN E A NOVA RETÓRICA
Professor da Universidade Livre de Bruxelas, percorrendo o caminho da herança aristotélica, inaugura uma nova fase na história da argumentação jurídica. Em 1958, publica em co-autoria com a professora Lucie
Olbrecht-Tyteca a obra Tratado da Argumentação: A nova retórica. Em
seu escrito estabelece laços entre uma velha tradição, da Retórica e da
Dialética gregas. No início de 1970, o pensador inseriu um curso de Argumentação na Universidade de Bruxelas, onde lecionou.
Bittar e Almeida anotam que o pensamento das ciências humanas
e das ciências jurídicas é o fio condutor das interlocuções de Perelman.9
Sua principal preocupação foi o raciocínio jurídico, que procura lidar e
conciliar as seguintes questões:
8 Ibidem, p. 15, 16.
9 BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme de Assis. Curso de Filosofia do Direito. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2009. p. 448.
Carmen Hornick
23
a–
b–
c–
d–
Como se raciocina juridicamente?
Qual a peculiaridade do ensino jurídico?
Quais as características desse raciocínio?
De onde extrai o juiz subsídios para a construção da decisão
justa?
e– Até onde leva a argumentação das partes em um processo?
f – Qual a influência que a argumentação e a persuasão possuem
para definir as estruturas jurídicas?
Tais questões orientaram o trabalho desenvolvido por Perelman, na
criação de conceitos que lançam bases para uma reflexão sólida sobre o
julgamento e o ato decisório. Em sua obra, o professor faz uma releitura da
retórica aristotélica, a qual constitui o arcabouço teórico da Nova Retórica.
O que significa dizer que sua obra não se caracteriza por uma ruptura, mas
pela ressigificação no sentido de harmonizar Analítica e Retórica. Henriques preleciona que “assim como Aristóteles faz uma releitura de Córax e
Platão, Perelman e Tyteca releem Aristóteles”10 e que, consequentemente,
encontraremos pontos ora divergentes e pontos ora convergentes entre
Aristóteles e Perelman.
Nos pontos em comum, Henriques destaca a estruturação da retórica no trinômio demonstração-argumentação-persuasão11; a presença do
logos (discurso racional), do éthos (conjunto de atributos com que o orador
se apresenta ao auditório) e do páthos (a paixão); ambos, Aristóteles e
Perelman, concebem o dialogismo como indispensável na argumentação
para a adequação da mensagem ao auditório, considerando-se a visão
partilhada do interlocutor e o alter ego do enunciador; os dois pensadores
têm como base de seu raciocínio o entimema.12
As diferenças entre tais pensadores podem ser evidenciadas quanto ao auditório, a Nova Retórica tem em vista não só o auditório particular, mas o universal; a proposta de Perelman preocupa-se não só com
o discurso oral, mas também com o escrito e o texto impresso; objetiva
o estudo das estruturas da argumentação e das técnicas argumentativas;
10 HENRIQUES, Antônio. Op. cit., p. 30.
11 Idem.
12 Termo grego cognato de time (avaliação, apreciação, estima). Em Filosofia, é o silogismo em
que falta uma das premissas. Na Retórica Aristotélica é o raciocínio que opera com o conceito
da verossimilhança.
24
Teoria da Argumentação Jurídica – Da Magna Graecia à Contemporaneidade
busca não só a adesão do auditório, mas, uma vez conquistada a adesão,
preocupa-se com a manutenção e crescimento, incitando a ação; Perelman pende para o polo lógico-cognitivo em detrimento do polo emotivo
tão valorizado por Aristóteles.
Indispensável é ainda pontuar a questão da proposta positivista,
pois no Brasil o ensino de Direito erigiu-se sob forte influência do positivismo jurídico. Tal fato sugere que para entendermos as bases da Teoria da
Argumentação precisamos apreciar o que significa esse sistema denominado Positivismo, visto que o próprio Perelman demonstrou ser importante
contrapor a argumentação à demonstração, dedicando-se a assinalar os
diferentes enfoques.
Conforme enfatiza Fetzner, a proposta positivista, impulsionada
a partir da metade do século XIX, lança suas bases pautada na confiança de que o progresso advinha essencialmente da técnica e da
ciência.13 Esta teoria filosófica pretendia uma reforma na sociedade
em busca da ordem.
No âmbito das ciências jurídicas julgou-se que tal ordem seria conseguida por meio da elaboração de leis gerais, capazes de antever os
comportamentos sociais sobre as quais o Estado deveria atuar, por meio da
técnica. No afã da conquista pelo almejado progresso, da dissolução dos
problemas que o entravavam, o rigor metodológico floresceu.
A crença no método capaz de prover segurança jurídica reduziu a
prática jurídica à aplicação objetiva das normas vigentes ao caso concreto.
Discorre Fetzner que o poder de “dizer adequadamente o direito” era baseado em uma operação lógica, centrada no silogismo.14 Assim exemplifica
a autora a tomada de decisão:
O enunciado “matar alguém: pena de 6 a 20 anos de reclusão” foi
previamente determinado pelo Estado como uma norma a ser seguida.
Esse fundamento legal deve ser encarado, pois, como uma premissa
maior (PM). Ao observar o caso concreto, verifica o juiz que “João Alberto matou Patrício Motta”. Essa segunda proposição será a premissa
menor (Pm) do silogismo. Ora, se matar alguém gera como sanção o
13 FETZNER, Néli Luiza Cavalieri. Lições de Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 4.
14 Do grego silogismos. Argumento constituído de duas premissas (maior e menor) e de uma conclusão. As premissas chamam-se antecedentes e a conclusão, consequência, por estar implícita
nas premissas.
Carmen Hornick
25
cumprimento da pena de reclusão, e se João matou Patrício, chega-se
à conclusão (C) lógica que deverá o acusado cumprir pena fixada pelo
juiz dentro dos limites legais estabelecidos.15
Enfim, o método positivista proposto inspirou-se em um sistema incontestável e racional, tal qual o utilizado pelas ciências exatas – Matemática, Física e Astronomia. Nessas ciências é perfeitamente possível obter-se
resultados verdadeiros e absolutos, pois “a validade das premissas é que
determina a validade das conclusões”.
Constatamos daí que, para as ciências exatas, o método é perfeito. Mas, o que dizer do comportamento humano? Seria o legislador
capaz de prever todas as possibilidades da vida social? Todas as situações de conflitos gerariam consequências idênticas? É possível perceber
nas situações fáticas, mesmo que a prática do delito seja idêntica, que
esta é cercada de características e motivações diferenciadas e, portanto,
não pode ser analisada de maneira singular e, nem mesmo, receber as
mesmas sanções.
O sistema formal é incapaz, ou insuficiente, para analisar o contexto
dos fatos, o estado psicológico de quem pratica um ato ilícito, ou mesmo
as motivações existentes para tal. O que demonstra que as certezas das
ciências não podem ser aplicadas à natureza humana. A interpretação da
letra da lei foi adequada a um período histórico no qual os paradigmas
humanos não eram importantes. Hodiernamente, esse método é flagrantemente insatisfatório para lidar com a prática jurídica.
Bittar declara que Perelman possui “um objetivo muito claro, jamais
negado ou desmentido em seus escritos: declarar guerra ao positivismo
jurídico”.16 Em suas obras, esmerou-se em provar a impropriedade do pensamento positivista afirmando categoricamente que o raciocínio jurídico
não obedece à mecânica do raciocínio exato. Mas o professor Belga não
se preocupa simplesmente em apresentar um pensamento antiformalista,
criticando a lógica formal. Ele propõe a não-fixação da interpretação jurídica no princípio in claris cessat interpretatio, pois não acredita que “o texto
jurídico possa chegar a sua plenitude absoluta de sentido”. Preocupa-se ele
em afirmar o engajamento do raciocínio jurídico ao seu contexto econômico, ideológico, social, cultural e político.
15 FETZNER, Néli Luiza Cavalieri. Op. cit.
16 BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme de Assis. Op. cit., p. 450.
26
Teoria da Argumentação Jurídica – Da Magna Graecia à Contemporaneidade
Observe-se que o desabrochar positivista acontece em um momento
político no qual a tendência autoritária era dominante, a saber: nazismo,
facismo e outras formas de governo autoritário. Nesse contexto, para a
discussão, a argumentação, não há espaço. No entanto, diante dos acontecimentos, nem sempre satisfatórios, a sociedade clama por um espaço para
o diálogo, para a ponderação de situações controversas. Inicia-se, então, a
luta pelo espaço democrático, no qual os fatos sociais estivessem à mercê
de debates. É nessa atmosfera, na segunda metade do século XX, que se
insurge Perelman demonstrando a sua decepção com a lógica formal e
propondo a Teoria da Argumentação Jurídica, que se preocupa com os
problemas concretos do Judiciário sob a luz de uma ponderação de valores, de uma razão prática.
O que torna o pensamento e o trabalho de Perelman indispensáveis para a área jurídica é a percepção do movimento social e político na
construção do direito, das leis em si. A dinâmica da evolução da sociedade carece de observação, sensibilidade e decisões judiciais singulares.
O filósofo-jurista propõe não mais a busca pela verdade absoluta, dado
que tal busca é inerente às ciências exatas e ao pensamento cartesiano,
mas sugere o alcance do que é verossímil, plausível e provável, por meio
do diálogo. No intuito de aprimorar a Teoria da Argumentação como estudo de técnicas discursivas que busca a adesão dos espíritos. Então, este
a opôs ao pensamento de Leibniz e de sua teoria da demonstração, a qual
considerava que mesmo o evidente precisava de alguma prova e que toda
a prova seria redução à evidência. No entanto, não nega a importância
da demonstração, visto que esta poderá ser utilizada em conjunto com a
argumentação, para, então, produzir resultados satisfatórios.
Para melhor visualizarmos as diferenças entre a demonstração, típica das ciências exatas, do método cartesiano, apresentamos o quadro
esquematicamente organizado, adaptado de Fetzner17:
17 FETZNER, Néli Luiza Cavalieri. Lições de Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 14.
Carmen Hornick
27
DEMONSTRAÇÃO
ARGUMENTAÇÃO
Meio de prova, fundado na proposta
de racionalidade matemática, que
visa delimitar os passos a serem
percorridos (silogismo) para deduzir
premissas de outras já existentes.
Atividade que objetiva o “estudo das
técnicas discursivas que permitem
provocar ou argumentar a adesão dos
espíritos às teses que se apresentam”.
Estabelece regras imutáveis, próprias
das ciências exatas e naturais:
raciocínios matemáticos e analíticos.
Adota procedimentos flexíveis,
próprios das ciências humanas e
sociais:
raciocínios dialéticos – mais de uma
tese – valores.
Orador x Auditório
Lógica formal: método dedutivo (geral
para o particular).
Lógica do razoável: método do
indutivo (particular para o geral).
Opera-se por axiomas.
Recorre às teses.
Premissas verdadeiras.
Premissas verossímeis.
Silogismo lógico
Entimema (tipo de silogismo dialético)
Premissa maior (PM) – norma
Premissa menor (Pm) – fato
Premissa menor (Pm) – fato
Premissa maior (PM) – norma
Conclusão (C)
Conclusão (C)
Atemporal
Histórica e temporal
Utiliza uma linguagem artificial,
técnica.
Recorre a uma linguagem comum,
simples, acessível, que facilite a
persuasão.
Raciocínio de conclusão certa.
Raciocínio de conclusão provável.
Quadro 1 – Quadro comparativo
Ao nos apoderarmos das perspectivas de Perelman sobre essa ciência, e ao considerarmos o panorama histórico em que se insere nosso país,
em especial o Estado Democrático de Direito, notamos que resplandece o
convite ao cidadão a participar ativamente da vida pública, a exercer, ad
litteram, sua cidadania. O exercício dessa cidadania é feito por meio da
ponderação, do julgamento, da formação dos juízos de valor, o que sintetiza o ato de argumentar.
28
Teoria da Argumentação Jurídica – Da Magna Graecia à Contemporaneidade
O comprometimento da Teoria da Argumentação é com a realidade
social, com os casos concretos. Aos aplicadores da lei cabe a aplicação nas
situações fáticas que compõem o cotidiano do Judiciário. Aos juízes demanda a obrigação de adaptar o texto frio da lei ao contexto da sociedade
viva, em constante mudança.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como considerações finais podemos apor, levando em consideração
a brevidade do texto diante de um tema de fôlego profundo, que os cursos
de Direito, em todo o país, apressam-se em inserir a Teoria da Argumentação Jurídica no intuito de operacionalizar as estratégias de persuasão para
seus alunos, pois estes irão se deparar com a necessidade desse conhecimento quando do exercício de sua profissão.
Preocupados com a formação humanística e reflexiva, os órgãos
responsáveis pelo ensino de Direito no Brasil – Ministério da Educação
(MEC) e a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) – têm estimulado a
inclusão da disciplina nos cursos de graduação de Direito.
No entanto, não podemos deixar de comentar, em pleno acordo
com Fetzner18, que vivemos na era da informática. Ao mesmo tempo em
que o panorama histórico-político aponta para a democracia no discurso
jurídico, vivencia-se o cenário em que a reprodução (cópia) de textos é
cada vez mais comum, inclusive no Judiciário, o que aponta para a utilização da linguagem e seus recursos sem qualquer reflexão.
A internet é sem dúvida uma ferramenta indispensável, mas precisa
ser utilizada de maneira criativa, e não escravizante. O que se pode notar
na redação de alguns advogados é a mera reprodução de modelos, na
qual são dispensados os critérios de reflexão, avaliação e aplicação aos
casos concretos. As particularidades de cada situação são relegadas ao que
consta no modelo a ser copiado. Há de se observar que muitas vezes a
“colcha de retalhos” que se transforma a peça processual de determinados
operadores do Direito revela, pelo mau uso da linguagem, uma completa
inadequação para o caso em comento. Em nossa ponderação, tanto a internet quanto os modelos podem e devem ser usados como referência, mas
não como fonte de reprodução.
18 Ibidem, p. 15.
Carmen Hornick
29
Nosso pensamento volta-se para o antagonismo da questão. Por
um lado a necessidade da representação mental e do discurso inserido na
contemporaneidade, um discurso construído pelo diálogo, pelo processo
democrático e pela consideração de cada caso como singular. Por outro
lado, a presença incondicional da informática encaminhando a busca pelo
que está pronto e não carece de concentração.
Resta-nos neste momento, quiçá conclusivo, retomar o que comentamos na introdução. A marca da sociedade contemporânea é o convite à
anestesia reflexiva sobre ela mesma. O desejo pela formação técnica em
detrimento da formação científica carrega em seu bojo o desejo de resultados rápidos e fáceis, e estes são, sem dificuldades, encontrados no universo
virtual e até em algumas salas de aula. O predomínio do poder econômico,
da sedução midiática, determina uma prática muito distante da reflexão.
A presença da disciplina de Teoria da Argumentação Jurídica nos
cursos de Direito legitima o desejo de que a autonomia, o cientificismo
e a reflexão tornem-se o centro das decisões. Se há o espaço para que
se fale sobre o tema, seja nas salas de aula, seja em artigos como este
que agora produzimos, então é possível que novos pontos de vista sejam
recepcionados, dispersados e divulgados por aqueles que compreendem
as razões do conhecimento da matéria. É muito mais que aprender uma
disciplina curricular, visto que a Teoria da Argumentação Jurídica é interdisciplinar e está presente em todas as disciplinas do currículo, para
quem bem sabe aplicá-la. É um convite a perceber criticamente o mundo
e a contemporaneidade.
Este estudo não termina por aqui.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme de Assis. Curso de Filosofia do Direito.
7. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
DE MAYER, L. Vers l’invention de La rhétorique. Une perspective éthno-logique sur
La communication em Grèce ancienne. Louvain, La-Neuve: Pecter, 1997.
FETZNER, Néli Luiza Cavalieri. Lições de Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro:
Forense, 2009.
FETZNER, Néli Luiza Cavalieri. Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008.
30
Teoria da Argumentação Jurídica – Da Magna Graecia à Contemporaneidade
HENRIQUES, Antônio. Argumentação e discurso jurídico. São Paulo: Atlas, 2008.
PERELMAN, Chaïm. Olbrechts-Tyteca, Lucie. The New Rhetoric. Notre Dame: University of Notre Dame, 1969.
_____. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
RODRIGUEZ, Víctor Gabriel. Curso de Argumentação Jurídica: Técnicas de Persua­
são e Lógica Formal. Campinas: Vox, 2004.
A EVOLUÇÃO DO DIVÓRCIO NO DIREITO
BRASILEIRO E AS NOVAS TENDÊNCIAS
DA DISSOLUÇÃO MATRIMONIAL
Clarissa Bottega1
“Todo mundo quer acreditar que o amor é para sempre.
Mas não adianta, é infinito enquanto dura”.2
A CONQUISTA DO DIVÓRCIO.
BREVES LINHAS APÓS A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
O divórcio no Brasil sempre foi um tema que causou e causa até
hoje certa celeuma, talvez em razão de nossas raízes cristãs que pregam o
casamento indissolúvel, por certo que a luta pela dissolução do casamento
civil não é nova. Vejamos um breve histórico antes de tratarmos do assunto
principal.
Em 1827 foi proclamada a independência do Brasil em relação à
Portugal e instaurada a monarquia. Na época a influência da Igreja era quase absoluta e por assim dizer o casamento era indissolúvel, sem qualquer
possibilidade de uma eventual dissolução civil do matrimônio.
O Decreto de 1827 (03/11/1827) tinha como previsão a obrigatoriedade da observância do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia como jurisdição eclesiástica em relação ao casamento.3
Ressalte-se que a Constituição fora instituída em 1707.
No Brasil Império, precisamente em 1861, surgiu a primeira evidência da flexibilização do matrimônio no Brasil, pois o Decreto 1.144
(11/09/1861) possibilitou o casamento de pessoas de religiões e credos
1 Mestra em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra, Portugal. Advogada e professora universitária da cadeira de Direito de Família e Bioética na Universidade de Cuiabá – Unic.
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Cuiabá, MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, RJ, e membro do IBDFAM.
2 DIAS, Maria Berenice. Divórcio e dignidade feminina. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.
br/?artigos&artigo=593>. Acesso em: 20 mar. 2010.
3 CAHALI, Yussef Said. Divórcio e Separação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 39.
32
A Evolução do Divórcio no Direito Brasileiro e as Novas Tendências da Dissolução Matrimonial
diferentes, obedecendo aos requisitos de sua religião ou ainda pessoas
não católicas (sem credo), porque até então somente as pessoas católicas
poderiam se casar.
Esse Decreto foi aperfeiçoado com o Decreto 3.069 (17/03/1863)
que possibilitou três formas de casamentos: casamento católico; o misto;
e o não católico.4
Em 15 de novembro de 1889 foi Proclamada a República, e assim
houve definitivamente uma sensível separação entre o Estado e a Igreja,
sendo necessário, agora, que o Estado passasse a regular a questão dos
casamentos.
O Decreto nº 119-A (17/01/1890) estabeleceu a definitiva separação
entre a Igreja e o Estado, tornando o Brasil um país laico e não confessional.
Nessa esteira de acontecimentos, Rui Barbosa, através do Decreto
181 (24/01/1890)5, dispôs que no Brasil somente o casamento civil teria validade, determinando, após o Decreto 521 (26/06/1890), que o casamento
civil deveria preceder o casamento religioso de qualquer credo.
Uma curiosidade desse Decreto 521 é que nele se estabelecia a pena
de prisão ao ministro de qualquer religião que celebrasse o casamento
religioso antes do casamento civil.6
No ano de 1893 surge, através do deputado Érico Marinho, a primeira proposição divorcista, proposta esta que foi renovada em 1896 e 1899,
porém sem sucesso.7
Em 1900 o deputado Martinho Garcez renovou a proposta divorcista, que também foi rejeitada.
Clóvis Beviláqua apresenta em 1901 seu anteprojeto de Código Civil, que fora duramente criticado e debatido, tendo sido alvo de várias
alterações e mudanças, sendo aprovado em 1916, consolidando assim, na
época, o direito ao “desquite” no Brasil, lembrando que o desquite não
autorizava novo casamento, mas tão-somente autorizava a separação dos
cônjuges e o encerramento do regime de bens.8
4 CAMPOS, Adriana Pereira; MERLO, Patrícia M. da Silva. Sob as bênçãos da Igreja: o casamento
de escravos na legislação brasileira. Revista Topoi, v. 6, jul./dez. 2005. p. 343.
5 Idem.
6 COSTA. Dilvanir José da. A família nas constituições. Disponível em: <http://www.senado.gov.
br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_169/R169-02.pdf>. Acesso: 3 mar. 2010.
7 IBDFAM. A trajetória do divórcio no Brasil: A consolidação do Estado Democrático de Direito.
Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?noticias&noticia=2989>. Acesso: 25 fev. 2010.
8 Idem.
Clarissa Bottega
33
A Constituição de 1934 apresentou dispositivo constitucional acerca da
indissolubilidade do casamento no Brasil, conforme previsão no artigo 144.9
A Constituição de 1937 manteve a indissolubilidade do casamento
sem qualquer grande mudança, sendo seguida pelas Constituições de 1946
e 1967.10
Durante a vigência da Constituição de 1946 fora apresentado um
projeto para retirar a expressão “vínculo indissolúvel” do texto legal, porém tal projeto sequer fora apreciado.
A Constituição de 1969 determinou que qualquer projeto de divórcio somente poderia ser aprovado através de emenda constitucional.
Em 1975 foi apresentada a Emenda Constitucional nº 5, de
12/03/1975, que permitia a dissolução do vínculo conjugal após cinco anos
de desquite ou sete anos de separação de fato. Essa emenda não foi aprovada em razão da não-obtenção do quorum mínimo exigido.
Em 1977 o divórcio é instituído no Brasil através da Emenda Constitucional nº 9, datada de 28/06/1977, de autoria do senador Nelson Carneiro. Essa emenda sofreu muitas críticas e gerou uma enorme polêmica
para a época, pois tornava o casamento solúvel e propiciava às pessoas
divorciadas a possibilidade de um novo casamento.
A Emenda Constitucional nº 09 foi regulamentada pela Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/1977) que inicialmente permitia apenas mais um casamento e alterava o nome do antigo instituto denominado “desquite” para
o que conhecemos hoje como separação judicial.
Foi a Constituição Federal de 1988 que instituiu o divórcio sem limitação numérica, mais precisamente no seu art. 226, § 6º.
A Lei nº 7.841 (17/10/1989) revogou o art. 38 da antiga lei do Divórcio, excluindo assim a restrição numérica do pedido de divórcio.
O fato é que a separação judicial foi instituída como uma fase intermediária para a dissolução definitiva do casamento, como se fosse um
estágio para saber se realmente era essa a vontade dos ex-cônjuges.
O Código Civil de 2002 manteve o mesmo sentido da Constituição
Federal de 1988, prevendo a questão da separação judicial ou separação
de fato como requisito para o pedido de divórcio.
9 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16/07/1934. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em:
24 fev. 2010.
10 Todas as Constituições podem ser encontradas na íntegra no site da Presidência da República
Federativa do Brasil (www.presidencia.gov.br).
34
A Evolução do Divórcio no Direito Brasileiro e as Novas Tendências da Dissolução Matrimonial
Em 2007 surge uma nova lei para facilitar ainda mais os pedidos de
divórcio, possibilitando o divórcio cartorário, ou seja, extrajudicial, quando a extinção do vínculo matrimonial for consensual e preenchidos certos
requisitos, conforme a Lei nº 11.441 (04/01/2007).
É possível verificar pelo breve histórico acima que a evolução da
forma de dissolução da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial se
deu de forma lenta e conforme as mudanças sociais. Ocorre que ainda
temos algumas “velharias jurídicas” em nosso ordenamento jurídico que
precisam ser, urgentemente, corrigidas.
A CONQUISTA DO DIVÓRCIO. NOVA PEC DO DIVÓRCIO.
EXTINÇÃO DA SEPARAÇÃO JUDICIAL. NOVOS RUMOS.
Após anos utilizando o sistema, já ultrapassado, da culpa na dissolução
da sociedade conjugal, surge, como uma novidade de necessidade óbvia, a
Proposta de Emenda Constitucional nº 28/2009, sugerida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), com o intuito de alterar a redação do §
6º do artigo 226 da atual Constituição Federal, para extinguir de vez o instituto
da separação judicial, facilitando a dissolução do vínculo matrimonial.
A nova redação do dispositivo em referência somente faria menção
ao divórcio como forma de dissolução do casamento, definitivamente extinguindo a separação judicial, anteriormente denominada de “desquite”.
Com parecer favorável da Comissão Especial da Câmara dos Deputados e votação encerrada nessa casa legislativa nos dois turnos, a PEC
seguiu para o Senado Federal.
Na Câmara dos Deputados a PEC foi votada em 20 de maio de 2009
em primeiro turno e em 02 de junho do mesmo ano em segundo turno,
obtendo o número de votos suficientes para encaminhamento da proposta
ao Senado Federal.
No Senado Federal a PEC recebeu o nº 28/2009, tendo obtido parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça – CCJ. Ocorre que até
hoje só houve uma votação no Senado Federal, estando ainda pendente a
segunda votação para que a PEC seja definitivamente aprovada e entre em
vigor em nosso país.
A votação em segundo turno era para ocorrer em março de 2010.
Toda a sociedade esperava a aprovação, pois a PEC do divórcio era a segunda da pauta do Senado Federal, porém, ainda não foi desta vez, vamos
Clarissa Bottega
35
ter que aguardar mais alguns tempos para comemorarmos a vitória da
dignidade da pessoa humana e dos princípios da liberdade e autonomia.
Sobre a necessidade de aprovação da PEC do divórcio, com a extinção do atual sistema dualista, dificultoso e demorado de dissolução do
casamento, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald já se manifestaram dizendo que “não há justificação lógica em terminar e não dissolver
um casamento. Escapa à razoabilidade e viola a própria operabilidade do
sistema jurídico”.11
Assim, é fácil perceber que mais uma vez a evolução da sociedade
e da família pressiona para que as respostas do legislador sejam mais rápidas e objetivas quando se busca a proteção do ser humano como objeto
principal de proteção do ordenamento jurídico, principalmente quando se
trata da dignidade da pessoa humana.
Mariana Chaves assim já disse que
É de se concluir que a PEC do divórcio em boa hora emergiu, expurgando procedimentos desnecessários, acompanhando o real momento
vivido pela sociedade, fugindo dos velhos dogmas enraizados e mais:
consagrando o princípio da liberdade e da autonomia da vontade que
devem estar presentes tanto na constituição como na dissolução das
relações conjugais.12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16/07/1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao
34.htm>. Acesso: 24 fev. 2010.
CAHALI, Yussef Said. Divórcio e Separação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
CAMPOS, Adriana Pereira; MERLO, Patrícia M. da Silva. Sob as bênçãos da Igreja:
o casamento de escravos na legislação brasileira. Revista Topoi, v. 6. jul./dez. 2005.
CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
11 CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010. p. 321.
12 CHAVES, Mariana. PEC do Divórcio – autonomia da vontade. Disponível em: <http://www.
ibdfam.org.br/?artigos&artigo=591>. Acesso em: 15 mar. 2010.
36
A Evolução do Divórcio no Direito Brasileiro e as Novas Tendências da Dissolução Matrimonial
CHAVES, Mariana. PEC do Divórcio – autonomia da vontade. Disponível em
<http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=591>. Acesso em: 15 mar. 2010.
COSTA, Dilvanir José da. A família nas constituições. Disponível em: <http://www.
senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_169/R169-02.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2010.
DIAS, Maria Berenice. Divórcio e dignidade feminina. Disponível em: <http://
www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=593>. Acesso em: 20 mar. 2010.
IBDFAM. A trajetória do divórcio no Brasil: a consolidação do Estado Democrático de Direito. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?noticias&noticia=2989>.
Acesso em: 25 fev. 2010.
A EVOLUÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PORTUGUÊS E SEU DESEMPENHO À LUZ DOS
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Daiane Zappe Viana1
INTRODUÇÃO
No presente trabalho será analisado o Ministério Público Português
à luz dos Princípios Constitucionais, que se foi afirmando, orientado pelas
ideias-forças de separação e paralelismo perante a magistratura judicial, autogoverno e significativa autonomia ante os Poderes Executivo e Legislativo.
Tendo em vista que atualmente o Poder Judiciário, em regra, nos
vários países, encontra-se estruturado ainda no modelo preconizado por
Montesquieu, embora tenha por função a prestação da tutela jurisdicional,
constitui-se numa função inerte do Estado, no sentido de que não pode
prestar a proteção jurídica senão quando devidamente provocado, através
do processo legal.
Ademais, as constituições assumem hoje uma vital importância. Nas
palavras de Jorge Miranda:
O Direito Público passou por uma revolução copernicana, ou seja, a
passagem de uma fase em que as normas constitucionais dependiam da
interpositio legislatori a uma fase em que se aplicam (ou são suscetíveis
de se aplicar) diretamente nas situações de vida. Desse processo de
ruptura paradigmática não resultou apenas mudanças do regime político ou da ideia de constituição. Resultou, sobretudo, no aparecimento
de uma justiça constitucional, como tal estruturada e legitimada.2
1 Mestra em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra, Portugal. Coordenadora
do Curso de Direito da FCJ Unime Lauro de Freitas, BA. Professora de Direito Constitucional,
Criminologia e Direito Penal.
2 MIRANDA, Jorge. Apreciação da dissertação de doutoramento de Rui Medeiros. Direito e Justiça.
Vol. XIII, Tomo 2. Separata. Lisboa: Universidade Católica, 1999.
38
A Evolução do Ministério Público Português...
Conclui-se portanto que o constitucionalismo atual tende para a
inclusão, entre as funções essenciais do Estado de Direito de uma instituição encarregada da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e
dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a qual tenha poderes e
prerrogativas que lhe permitam bem desempenhar esse mister, sob pena
de desconfiguração do Estado Democrático de Direito.
O Ministério Público então, sem dúvida alguma, vem paulatinamente assumindo o papel acima preconizado, e, no século atual, já se
confirma a sua imprescindibilidade em toda e qualquer constituição de
Estado que se proponha a ser verdadeiramente um Estado Democrático
de Direito.
Em Portugal, o Ministério Público conquistou autonomia que de forma jurídico-constitucionalmente lhe é adscrita de forma expressa, e assim,
no presente trabalho, será analisado, brevemente, o caminho trilhado até
esta conquista, e a função hoje do Ministério Público, à luz dos princípios
constitucionais.
BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A instituição do Ministério Público vem evoluindo com o passar dos
tempos. A maioria da doutrina, de modo geral e de maneira mais ou menos uniforme, costuma situar as origens da Instituição na França, no século
XIV, ao final da Idade Média, onde os procuradores e os advogados privados do monarca são apontados como sendo os mais prováveis ancestrais
do Ministério Público.3
Porém, segundo Marcelo Pedroso Goulart4, para alguns autores, a
instituição precursora do Ministério Público remonta à civilização egípcia, há mais de 4.000 anos, representada pelo magiai – procurador do
rei – consistente num corpo de funcionários com atribuições no âmbito
da repressão penal, para castigar os rebeldes, reprimir os violentos,
proteger os cidadãos pacíficos, formalizar acusações e participar das
instruções probatórias na busca da verdade, bem como na esfera civil,
3 SAUWEN FILHO, João Francisco. Ministério Público Brasileiro e o Estado Democrático de Direito.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 11.
4 GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e democracia. Site do Sindicato dos Membros do
Ministério Público de Portugal. Disponível em: <http://www.smmp.pt/goulart.htm>. Acesso em:
19 maio 2005.
Daiane Zappe Viana
39
para defender determinadas pessoas, como órfãos e viúvas.5
Na Grécia Clássica teriam existido os temóstetas, responsáveis pelo
exercício do direito de acusação. Em Roma, os praefectus urbis, os praesides, os procuradores caesaris, o praetor fiscalis, os curiosi, o iranercha
e os stazionarii, são apontados como embriões do Ministério Público, alguns com função na área fiscal, outros na área de repressão a criminosos.
Na Idade Média, são apontados como precursores do Ministério Público os saions germânicos, funcionários fiscais, responsáveis por atividades assemelhadas a de Ministério Público, pelo fato de que defendiam o
erário, intervinham na justiça na defesa de incapazes e de órfãos.
Já na Alemanha, houve o gemeiner Anklager, que exercia a função
de acusador criminal no caso de omissão da vítima. Os bailios e os senescais defendiam os interesses dos senhores feudais, sendo também considerados figuras semelhantes às do Ministério Público.
Entretanto, alguns doutrinadores entendem que na antiguidade não
houve nenhuma instituição semelhante ao Ministério Público, pois o sistema de organização política da Grécia clássica era fundado na pólis e a sociedade regida pela democracia direta, fundada na participação popular na
tomada de decisões, assim, isso teria inibido o surgimento de instituições
ao moldes do Ministério Público. Relativamente a Roma, afirmam que as figuras supracitadas teriam apenas funções administrativas ou jurisdicionais,
e não teriam exercido acusação em nome do Estado Romano. Então, tais
instituições seriam apenas semelhantes ou próximas do Ministério Público
atual, que surgiu como tal apenas no século XIII, na França, com a consolidação, em 1629, do monopólio jurisdicional da realeza – Estatutos de São
Luís. Na Ordonnance de Filipe, o Belo, datado de 25 de março de 1302, foi
o Ministério Público reconhecido formalmente e ganhou contornos com a
legislação pós-revolucionária.
O rei francês Filipe, o Belo, através de sua conhecida oronnance,
reuniu tanto seus procuradores, encarregados da administração de seus
bens pessoais, quanto seus advogados, que lhe defendiam os interesses
privados em Juízo e que, em conjunto, eram conhecidos or les gens du roi,
numa única instituição.6
5 Houve o descobrimento de textos de leis de aproximadamente 4.000 anos, encontrados em
escavações arqueológicas, levadas a efeito no Vale dos reis, em 1933, nos quais eram mencionados deveres de funcionário real. Cf. Roberto Lyra. Teoria e Prática da Promotoria Pública. Rio
de Janeiro: Livraria Jacintho, 1937.
6 SAUWEN FILHO, João Francisco. Ministério Público Brasileiro, p. 11.
40
A Evolução do Ministério Público Português...
Em Portugal houve um processo semelhante ao francês, com a luta
da realeza pelo monopólio da jurisdição. Com a lei de 19 de março de
1317, sob o reinado de Dom Dinis, a Coroa interveio nos tribunais senhoriais e fortaleceu o poder real, assumindo a função de julgar as demandas
em última instância. Com as ordenações do reino (as Ordenações Afonsinas, de 1456, as Ordenações Manuelinas, de 1521, e as Ordenações Filipinas, de 1603) a Coroa possuía o monopólio total da função jurisdicional.
Explicitamente, a primeira referência ao promotor de justiça em Portugal se deu nas Ordenações Manuelinas, atribuindo a este órgão função
de fiscal do cumprimento da lei e de sua execução.
Nas Ordenações Filipinas, juntamente com o Promotor de Justiça da
Casa de Suplicação, foram previstas outras figuras, como o Procurador dos
Feitos da Coroa, Procurador dos feitos da Fazenda e o Solicitador da Justiça
da Casa da Suplicação, nomeado pelo rei, que tinha a função de fiscalizar
o cumprimento da lei e de formular a acusação criminal nos processos
perante a Casa da Suplicação.
Com a Revolução Francesa, a evolução do Ministério Público passou
a ser relacionada com o constitucionalismo.
Nas Constituições de cunho liberalista, o papel do Ministério Público ficou ainda ligado à representação do poder público, à função de
tímido fiscalizador do cumprimento da lei, restrita aos processos em que a
lei impunha a sua manifestação, e a função de acusador criminal.
Com o aparecimento das Constituições sociais, além dos direitos de
cidadania civil e política, tradicionalmente assegurados nas Constituições
Liberais, foram elevados a nível constitucional os direitos de cidadania
social, exemplificando o acesso ao ensino como direito público subjetivo,
o atendimento nas áreas de saúde, previdência e assistência social, enfim,
uma série de direitos que causou uma assustadora demanda por uma funçao estatal que cobrasse dos poderes públicos e dos particulares a concretização das referidas garantias constitucionais.
Para concretizar tais direitos difusos e coletivos, foi necessário uma
legislação para superar o caráter individualista dos códigos, que tendiam a
admitir apenas conflitos intersubjetivos, que obstaculizava o conhecimento
pelo Poder Judiciário dos conflitos coletivos, tão presentes nas sociedades
contemporâneas.
Assim, o Ministério Público, que historicamente esteve ligado à defesa da lei, foi, aos poucos, assumindo a titularidade da defesa destes
Daiane Zappe Viana
41
direitos difusos e coletivos, que vieram surgindo e permanecem a surgir.
Nas Constiuições mais evoluídas, passou a ser o defensor do povo, como
uma resposta do Estado ao crescente clamor social, sobretudo a partir de
meados do século XX.
O fortalecimento da sociedade civil impõe estruturação de um Ministério Público independente e direcionado para a defesa dos interesses
sociais e dos valores democráticos, servindo de abertura de novos espaços
de participação, à conquista de direitos e à ampliação da cidadania.
Perceptível portanto que a análise histórica do Ministério Público
revela que esta instituição mudou de função com o transitar da sociedade,
da sociedade política para a sociedade civil, e aquele Ministério Público
que trabalhava na defesa dos interesses do poder público, que eram os
interesses do seu titular, o rei, e nem sempre o interesse do povo, hoje
defende os interesses deste, que sejam coincidentes ou não com os dos
titulares do Poder (administradores).
O MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA PORTUGUESA DE 1976
Aprovada pela Assembleia Constituinte em 2 de abril de 1976, a
Constituição da República Portuguesa entrou em vigor em 25 de abril de
1976. No seu artigo 1º afirma Portugal como uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana, e em seu artigo 2º, a República
Portuguesa como Estado Democrático de Direito.
Ao optar por um regime democrático, o Princípio Democrático é eleito como estruturante fundamental do Estado, e a perspectiva em regra é a de
resgatar a cidadania social e econômica, bem assim a participação popular.
Deve-se salientar que o regime democrático não se limita aos aspectos políticos, à técnica de escolha de governantes, à definição das formas
de expressão da soberania popular. Mais do que isso, apresenta-se como
um projeto que, a partir do desenvolvimento econômico, visa erradicar a
pobreza e a marginalizaçao e reduzir as desigualdades sociais e regionais,
para transformar o país numa sociedade livre, justa e solidária, promotora
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
Em face das implicações inerentes ao Estado Democrático de Direito, os valores constitucionalmente positivados devem ser fontes e limites à
42
A Evolução do Ministério Público Português...
operacionalização do Direito Penal. Como afirma Figueiredo Dias, a correta determinação da função do Direito Penal só é possível no horizonte
da concepção do Estado e do modelo valorativo jurídico-constitucional em
que ela se traduz7. Assim o Direito Penal há de ter um enfoque constitucionalista, este é o horizonte de sentido do Direito Penal.
Nesse contexto é que surge a necessidade de que em todos os Estados Democráticos de Direito exista uma instituição incumbida da defesa do
regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e cuja atuação tenha como paradigma o projeto democrático delineado pela Constituição e seja pautada pelos princípios e objetivos fundamentais do Estado.
Não há que negar, pois, que o Ministério Público se enquadra neste
perfil, após sua evolução, deixando de ser aquele hipócrita procurador da
Coroa para ser reconhecido como um autêntico defensor do povo.
Foi nesse sentido que a Constituição de 1976 inovou e veio dedicar
ao Ministério Público um capítulo do título respeitante aos tribunais (Capítulo IV do Título V) cujos artigos (arts. 224 a 226) foram aprovados por
unanimidade, desenhando e afirmando traços constitucionais que ainda
hoje caracterizam o Ministério Público Português.
Senão vejamos: a organização e competência do Ministério Público e
o estatuto dos respectivos magistrados passam a integrar a reserva relativa
de competência legislativa da Assembleia da República (alínea p do art. 165
da CRP de 1976). Na Constituição de 1933, constituía matéria da exclusiva
competência da Assembleia Nacional a aprovação das bases sociais sobre
organização dos tribunais, estatuto dos juízes dos tribunais ordinários.
O Ministério Público foi reconhecido constitucionalmente como
uma das componentes pessoais dos tribunais.8
Ficou igualmente constitucionalizada a ideia de que o Ministério Público corresponde a uma magistratura9 e consagrado o fim da sua natureza
vestibular relativamente à magistratura judicial.
O Ministério Público foi sistematizado na Constituição da República Portuguesa de 1976 num capítulo próprio e ainda foi afirmado que goza de estatuto
próprio, ainda que este não tenha sido definido explicitamente (artigo 224).
7 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal e Estado-de-Direito Material. Revista de Direito Penal e
Criminologia. v. 31. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 43.
8 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada.
2 vol. 2. ed. Coimbra Editor, 1985. p. 346.
9 RODRIGUES, José Narciso da Cunha. Em Nome do Povo. Coimbra Editora, 1999. p. 73.
Daiane Zappe Viana
43
A Assembleia Constituinte pretendeu reforçar a independência da
administração da justiça, assim estabeleceu que:
Os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei (artigo
225, n. 1).
Atribuiu ainda à Procuradoria-Geral da República a nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o
exercício da ação disciplinar (art. 225, n. 2). Afirma que a ProcuradoriaGeral da República é órgão superior ao Ministério Público, presidido pelo
Procurador-Geral da República (art. 226) cuja nomeação e exoneração
é de competência do presidente da República, sob proposta do governo
(alínea 1 do art. 136).
Nesse norte, ficaram consignados no artigo 225 princípios que já
existiam no direito anterior, como o da hierarquia e da responsabilidade,
porém com uma inovação, que é a garantia da estabilidade.
A responsabilidade consiste em responderem nos termos da lei,
pelo cumprimento dos seus deveres e pela observância das diretivas, ordens e instruções que receberem – redação uniforme dos artigos 71 n. 2 da
Lei n. 39/78, de 5 de julho; 55, n. 2, da Lei n. 47/86, de 15 de outubro e 76,
n. 2, da Lei 60/98, de 27 de agosto; tendo as duas últimas leis consignado
ainda respectivamente nos artigos 56 e 77, que fora dos casos em que a
falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada
mediante acção de regresso do Estado.
Por seu turno, a hierarquia consiste na subordinação dos magistrados de grau inferior aos de grau superior, nos termos da presente lei, e na
consequente obrigação de acatamento por aqueles das directivas, ordens e
instruções recebidas, conforme os artigos 71, n. 3, da Lei n. 38/78; 55, n. 3,
da Lei 47/86, e 76 e, da Lei 60/98, de 27 de agosto. Sem prejuízo do disposto
quanto ao limite dos poderes directivo – respectivamente artigos 74, 58 e 79.
Por derradeiro, a estabilidade foi consignada nos artigos 72 da lei
39/78, 57, da Lei 47/86, e 78 da Lei 60/98, sendo a redação do último
nos seguintes termos: os magistrados do Ministério Público não podem ser
transferidos, suspensos, promovidos, aposentados, demitidos, ou, por qualquer forma, mudados de situação senão nos casos previstos na lei.
44
A Evolução do Ministério Público Português...
O fato de terem sido atribuídos à Procuradoria-Geral da República
os poderes de gestão e disciplina sobre os magistrados do Ministério Público é o reconhecimento implícito da autonomia. Corroborador pelo fato de
que quando a Constituição da República de 1976 afirma que a ProcurdoriaGeral da República é o órgão supeiror do Ministério Público e é presidida
pelo Procurador-Geral da República, confirma a orientação de autonomia
do Ministério Público.
Por essa via desapareceu a dependência orgânica do governo e foi
neste sentido que se desenvolveu a Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da
República de 1976 – DL 917/76, de 31 de dezembro, publicada por força
do artigo 301, nº 2, da CRP de 1976.
A Constituição devolve à lei ordinária as regras de organização e
composição da Procuradoria-Geral da República, tendo o Decreto Lei
917/76 atuado sobre os preceitos constitucionais.
A Procuradoria-Geral da República passou a exercer funções de gestão e disciplina por intermédio de um órgão denominado Conselho Superior
do Ministério Público, participado por elementos natos, elementos eleitos
e elementos designados pelo ministro da Justiça. Foi instituído o cargo de
Vice-Procurador-Geral da República, criou-se um serviço de inspeção, reorganizou-se a secretaria, visto que agora possuíam novas responsabilidades.
A Constituição da República Portuguesa de 1976 veio trazer um
certo compromisso, pois apontava o caminho a trilhar, qual seja, o da autonomia do Ministério Público, e desde então esta questão tem estado no
centro do debate.
Da análise dos preceitos constitucionais, construi-se a ideia de que
um regime de subordinação ante o governo seria incompatível com a autonomização funcional e orgânica do Ministério Público.10 Assim, em 1º de
junho de 1978 foi aprovada pela Assembleia da República a primeira Lei Orgânica do Ministério Público, publicada em 5 de junho com o número 39/78.
O Ministério Público, com os princípios e funções institucionais que
lhe dão vida, afigura-se consagrado em uma Constituição democrática, a
qual, afastando-o do Poder Executivo, tornou-o, em uma consideração
pragmática, esperança social.11
10 NOGUEIRA, Alberto Pinto; SIMAS, Manuel Santos. Lei Orgânica do Ministério Público. Porto
Editora, 1979. p. 40.
11 STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Forense: Rio de Janeiro, 2003. p. 47.
Daiane Zappe Viana
45
A AUTONOMIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO – DO ESTATUTO
AOS DIAS ATUAIS
A primeira Lei Orgânica do Ministério Público (39/78) trouxe inovações, seguindo os preceitos constitucionais.
Foi consagrada a magistratura do Ministério Público como carreira
própria, não mais vestibular da magistratura judicial, definindo-se então
uma nova estrutura organizacional.
A autonomia do Ministério Público foi agora declarada expressamente em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local. No
entanto, tal autonomia era caracterizada pela vinculação a critérios de legalidade estrita e de objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados
e agentes do Ministério Público às diretivas, ordens e instruções previstas
na lei (art. 2), porém, ao ministro da Justiça eram reconhecidos poderes
diretivos e de vigilância sobre os órgãos e agentes do Ministério Público,
nomeadamente os de dar ao procurador-geral da República instruções de
ordem genérica e de tomar iniciativa da ação disciplinar relativamente aos
agentes e magistrados do Ministério Público (artigo 75, 1 e 2, a e c).
O estatuto recolheu a sugestão contitucional no sentido mais de um
governo próprio que de um autogoverno e adotou um exíguo elenco de
competências privativas, cujo núcleo duro residia na condução dos processos penais.12
Com o estatuto tornou-se claro ainda que a Polícia Judiciária era
fiscalizada pelo Ministério Público e exercia suas funções na sua dependência funcional.
Ocorre que na verdade uma liberdade de investigação sem intromissão política era meta quase inatingível, eis que o governo, além da
competência para propor a nomeação e exoneração do procurador-geral
da República e de nomear representantes para o Conselho superior do Ministério Público, das já citadas instruções genéricas em matéria penal, por
intermédio do ministro da Justiça, podia também requisitar informações
sobre os processos e, las but not the least, tinha a tutela e a diponibilidade
das polícias.13
12 RODRIGUES, José Narciso da Cunha. Ministério Público: Os passos de uma autonomia. 25 anos
do Estatuto do Ministério Público. Coimbra Editora, 2005. p. 55.
13 Ibidem, p. 56.
46
A Evolução do Ministério Público Português...
Na Lei Orgânica de 1986 (Lei n. 47/86, de 15 de outubro – alínea a
do art. 59 foram mantidos estes poderes ao Ministro da Justiça, apesar de
contestada sua constitucionalidade.
Somente após, com a Revisão Constitucional de 1989 (art. 59 a, na
redação da Lei 23/92, de 20 de agosto) é que foi eliminado este poder
do ministro da Justiça e consagrada constitucionalmente a autonomia do
Ministério Público.
A Constituição da República Portuguesa passou a referir que o órgão
colegial integrado na composição da Procuradoria-Geral da República, o
Conselho Superior do Ministério Público, inclui membros entre si eleitos
pelos magistrados do Ministério Público e membros eleitos pela assembleia
da República. Desse modo, a reforma constitucional garantiu ao Ministério
Público uma certa medida de autogoverno.
As funções atribuídas ao Ministério Público até a revisão constitucional de 1997 eram definidas deste modo: “Ao Ministério Público compete
representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar” (n. 1 do art. 224, em 1976, n. 1
do art. 224, em 1982 e n. 1 do art. 221, em 1989 e 1991).
Com a revisão constitucional de 1997 foi ampliada esta função, afirmando então que,
lhe compete representar o Estado e os interesses que a lei determinar,
bem como, com respeito pelo seu estatuto próprio e autonomia, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e
defender a legalidade democrática (n. 1 do art. 219).
Essa definição passou a constar no Estatuto do Ministério Público, e
efetivamente é o instrumento institucional de compatibilização de atuação
do Ministério Público com a política criminal defendida pelos órgãos de
soberania, não estando mais o Ministério Público submetido a quaisquer
instruções ou ordens do Executivo, ainda que genéricas, pois são incompatíveis com sua autonomia já consagrada constitucionalmente, estando
portanto o Ministério Público unicamente subordinado à lei e ao Direito.
Assim como a Constituição foi modificada com o passar dos tempos e com a evolução do Ministério Público, igualmente o processo penal teve que se submeter a modificações, pois sendo o “processo pe-
Daiane Zappe Viana
47
nal direito constitucional aplicado, sismógrafo ou espelho da realidade
constitucional”14 afinal, o Código de Processo Penal de 1929, atrasado e
muito disperso15 deveria ser substituído por outro que contemplasse a nova
realidade e refletisse o novo pensamento constitucional, assim a reforma
processual penal era indispensável e urgente.
Na data de 8 de junho de 1983, o então ministro da Justiça Menéres
Pimentel condensa em nota preambular à apresentação do anteprojeto do
novo Código de Processo Penal as razões fundamentais que presididiram
não só a decisão de elaborar um novo Código de Processo Penal, como as
opções nele vertidas, arrancadas das linhas de força apresentadas oportunamente pelo presidente da Comissão Revisora, o prof. Figueiredo Dias.
Somente no ano de 1986 é apresentado o projeto do novo Código
de Processo Penal, sendo discutida na Assembleia da República a proposta
de Lei nº 21/IV, que concedia a autorização legislativa ao governo para
aprovar o novo Código de Processo Penal, em 17 de julho de 1986.16
Assim, em 4 de dezembro de 1986 foi aprovado o novo código, acolhendo nomeadamente a direção da investigação pelo Ministério Público.
O Código de Processo Penal entrou em vigor em janeiro de 1988, e o
Ministério Público carecendo de instrumentos vitais passou a exercer efetivamente a investigação. “O Ministério Público e o tribunal de instrução criminal
iriam tornar-se, pouco a pouco, naquilo a que alguns sociólogos chamam de
corpo sem braços”17. Mas todas as reformas são condicionadas pelo tempo.
De fato, o Código de Processo Penal pressupunha a criação de departamentos do Ministério Público que, numa relação de proximidade com
as polícias, dirigissem a investigação criminal. Por outro lado exigia o reforço na formação dos magistrados do Ministério Público na área da investigação, uma correta assimilação das novas funções do juiz de instrução
criminal, com juiz das liberdades e uma efetiva dependência e subordinação dos órgãos de polícia criminal, nomeadamente a criação de condições
14 DIAS, Jorge Figueiredo. Para uma Nova Justiça Penal. Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados. Livraria Almedina. p. 194.
15 MENÉRES PIMENTEL. Código de Processo Penal. Anteprojecto. Ministério da Justiça. Lisboa,
1983. p. 6.
16 Cf. Diário da Assembleia da República. I série. Nºs 98, 99, 103, de 18, 22 e 26 de julho de 1986,
respectivamente.
17 CUNHA RODRIGUES. Ministério Público: os passos de uma autonomia. 25 anos do estatuto do
Ministério Público. Coimbra Editora: 2005. p. 62.
48
A Evolução do Ministério Público Português...
estritas de lealdade processual.18
Apesar da autonomia organizacional e da independência do Ministério Público para investigar, a disponibilidade dos órgãos de polícia criminal
continuava a ser uma atribuição do Executivo. É flagrante a desproporção
entre poderes jurídicos e poderes de fato nas instituições que se ocupam
do crime. Os poderes jurídicos relacionados ao Ministério Público e à polícia correspondiam cada vez menos aos seus poderes efetivos.
A polícia criminal possuía na investigação uma discricionaridade excessiva e não controlada por uma magistratura, isto corroborado pela distância funcional e a ausência de mecanismos sistemáticos de fiscalização.
O Código de Processo Penal optou por um modelo de polícia criminal que teria uma independência organizatória, administrativa e disciplinar
e uma dependência funcional relativamente às autoridades judiciais. Consoante Figueiredo Dias, conduz a um tríplice grau de disponibilidade: grau
mais tênue ou mais fraco (colaboração durante a audiência de julgamento);
grau intermédio (disponibilidade funcional para atos que pertencem ao
juiz de instrução criminal em matéria de instrução); grau máximo ou mais
forte (disponibilidade em relação ao Ministério Público).19
A autonomia do Ministério Público está assim limitada pela atuação
da polícia judiciária, restando mais ao serviço da função acusatória do que
da investigação criminal, que nas exatas palavras de Cunha Rodrigues, no
mínimo, parecia um subaproveitamento da diretiva constitucional.20
A defesa da policialização da investigação judiciária seria:
Incompatível com uma abordagem conceptualmente fundada nas soluções jurídico-constitucionais do nosso sistema, chocando com um dos
patrimônios do modelo de Estado de direito consagrado na Constituição: a limitação teleológica da investigação criminal e o princípio de
que no foro criminal é sempre inadmissível qualquer procedimento
administrativo prévio.21
18 Ibdem, p. 62.
19 FIGUEIREDO DIAS. A polícia criminal no âmbito do novo CPP. Revista de investigação criminal.
Directoria do Porto da polícia judiciária, n. 21, dez. 1986, p. 23 e seguintes.
20 CUNHA RODRIGUES. Ministério Público. p. 64.
21 MESQUITA, Paulo dá. Direcção do Inquérito Penal e garantia judiciária. Coimbra Editora, 2003.
Daiane Zappe Viana
49
O MINISTÉRIO PÚBLICO E O EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL
No processo penal português, de estrutura acusatória, cabe ao Ministério Público ser o titular da ação penal. Nos termos da Constituição
da República Portuguesa o Ministério Público deve exercer a ação penal
orientada pelo princípio da legalidade na qual age não em nome de qualquer outra autoridade (política ou econômica) nem em seu próprio nome,
mas, pelo contrário, em nome da sociedade.
Destarte o Ministério Público não é parte no processo e sim uma
autêntica magistratura, sujeita ao estrito dever de objetividade.22
Para designar a investigação preliminar, o legislador português utilizou o termo inquérito, definido no artigo 262 do CPP como “o conjunto
de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os
seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas,
em ordem à decisão sobre a acusação”.
Ou seja, além de averiguar o fato e seus autores, a investigação preliminar portuguesa tem o fim, especificadamente previsto, de possibilitar a
decisão acerca da abertura ou não do processo penal.
O Ministério Público está encarregado de levar a cabo a fase préprocessual, segundo o artigo 263 do CPP, contando para isso com a assistência da polícia judiciária que atua sobre seu mando direto e dependência
funcional (artigo 56 do CPP). No entanto a polícia possui independência
técnica e tática.
Junto ao Ministério Público intervém um juiz da instrução, com a necessária posição de garante, mas que também é chamado a praticar alguns
atos específicos, que, por sua relevância, o legislador português achou por
bem ser necessária a sua presença mais ativa.
Tal atuação do juiz pode ser classificada em dois grupos: investigação e garantia. Porém, apesar da aparente atividade instrutória do juiz o
verdadeiro titular da ação penal é o Ministério Público (salvo nos delitos
de ação penal privada), pois, ainda quando o juiz pratica atos de instrução,
está condicionado à prévia petição do Ministério Público, da polícia, do
sujeito passivo ou do assistente da acusação. Ou seja, não age de ofício
sendo a função do juiz da instrução preliminar predominante garantista e
excepcionalmente investigadora.
22 PREÂMBULO DL 78/87, ponto 10.
50
A Evolução do Ministério Público Português...
O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Primeiramente cumpre esclarecer que, conforme supracitado, a
Constituição da República Portuguesa é explícita na afirmação de que o
Ministério Público exerce a ação penal orientada pelo princípio da legalidade (artigo 219 CRP). Também está explícito tal princípio no Código de
Processo Penal, primeiramente quando fixa a regra de que a notícia de
um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito (artigo 262, nº 2, CPP).
Assim, todos os fatos que tenham relevância criminal que sejam objeto de
denúncia, queixa ou participação, obrigatoriamente terão que ser investigados e posteriormente objeto de uma avaliação final da prova recolhida
e/ou admissibilidade legal do procedimento.
Nos casos em que não haverá abertura de inquérito, não há um
poder discricionário da decisão à não investigação, mas sim a afirmação
da sua desnecessidade em casos de frescura, simplicidade e evidência da
prova, quando seja de aplicar o processo sumário (artigos 381 e 382) ou
processo abreviado (artigo 391).
Também está explícito o princípio da legalidade quando determina
e se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se
ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz
a acusação (nº1 do artigo 283, CPP).
Isto é, quando por força dos indícios recolhidos resultaram a
possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento,
uma pena ou medida de segurança (nº 2, artigo 283, CPP), o Ministério
Público terá, obrigatoriamente, de promover o prosseguimento do procedimento criminal, nas palavras de Pedro Caeiro, dever de investigar
e “dever de acusar”.23
Nos casos em que foi recolhida prova bastante de se não ter verificado o crime ou de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de
ser legalmente inadmissível o procedimento (artigo 277, nº 1) ou se não
tiver sido possível obter indícios suficientes da verificação de crime ou de
quem foram os seus agentes (artigo 277, nº 2) o Ministério Público tem o
dever de determinar o arquivamento do inquérito.
Nesta trilha, o Ministério Público deve proceder todas as diligências necessárias a fim da busca da verdade, seja na comprovação da exis23 CAEIRO, Pedro. Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da justiça absoluta e
o fetiche da gestão eficiente do sistema. Revista do Ministério Público, n. 84, p. 32, out./dez. 2000.
Daiane Zappe Viana
51
tência do crime e da autoria do arguido, ou no sentido da inexistência
do fato ou não autoria do arguido, ou ainda da inadmissibilidade legal
do procedimento.
Por força do disposto no artigo 219, nº 1, da Constituição, cabe ao
Ministério Público a defesa da legalidade democrática e a defesa dos interesses que a lei determinar.
A Lei 60/98, de 27 de agosto, que aprovou o Estatuto do Ministério
Público, reproduz em seu artigo 1º o texto do artigo 219 constitucional,
onde estatui que:
O Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que
a lei determinar, participa na execução da política criminal definida
pelos órgãos de soberania, exerce ação penal orientada pelo princípio
da legalidade democrática, nos termos da Constituição, do presente
estatuto e da Lei.
No artigo 3º do referido estatuto encontram-se as competências do
Ministério Público, e estas são novamente indicadas no art. 51 do Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais, no qual estabelece:
Compete ao Ministério Público representar o Estado, defender a
legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei processual lhe
confere.
Consoante expresso nos artigos, a Instituição do Ministério Público possui diversas competências, a saber: Fiscalizar a constitucionalidade
dos atos normativos; defender o Interesse Público; recorrer de qualquer
decisão que tenha sido proferida com violação da lei expressa; requerer a
prática de atos administrativos legalmente devidos; requerer a emissão de
regulamentos necessários à exequibilidade da norma, que os prevê; realizar ações de prevenção criminal, através de fiscalização prévia dos atos
administrativos dissuasores dos crimes de corrupção, ambientais, branqueamento de capitais e outros.
Perceptível, portanto, que o Ministério Público, como defensor do
povo, é o defensor dos direitos coletivos e interesses difusos, “valores
constitucionais que, não sendo susceptíveis de apropriação ou invocação
52
A Evolução do Ministério Público Português...
individual ou exclusiva, para cada cidadão, são patrimônio de todos nós”.24
Na verdade, ele é quem defende os Princípios Constitucionais consagrados.­
Neste norte, o Ministério Público possui meios legais para defender
tão nobres valores, quer na fiscalização da sua legalidade, quer suscitando
inconstitucionalidades, quer atacando os regulamentos e atos administrativos que com tais valores não se conformem.25
Consequentemente, há que verificar que houve uma evolução de
um Ministério Público protetor dos interesses individuais, na moldura de
uma sociedade liberal-individualista, para um Minstério Público atual, que
claramente tem que assumir uma postura intervencionista em defesa do
regime democrático e dos direitos fundamentais-sociais.
Defender o Estado Democrático de Direito nem de longe pode ser um
conceito vazio; o significado material deste novo paradigma de Estado é que deve nortear a atuação da instituição ministerial. E qual
é o desiderato do constituinte, ao assumir o paradigma (potencialmente
transformador) do Estado Democrático de Direito? A resposta é facilmente encontrável no texto constitucional, desde que compreendido
em sua materialidade.26
CONCLUSÃO
A Instituição do Ministério Público passou por significativos avanços, sobretudo nos últimos 25 anos, um período de aceleração histórica
e perante uma sociedade atingida por profundas transformações, sendo
hoje constitucionalmente consagrada a sua autonomia e sua magistratura
de promoção.
São vastíssimas as atribuições do Ministério Público, conforme já relatadas, enunciadas no art. 219 da CRP. Mas de todas as suas atribuições e
competências, é em matéria penal que está a face mais visível da atividade
do Ministério Público, participando este inclusive na execução da política
criminal definida pelos órgãos de soberania.
24 CLUNY, Helena. O Ministério Público como Defensor dos Princípios Fundamentais Constitucionais – Do direito à natureza, do ambiente, da preservação dos recursos naturais e do correcto ordenamento do território. Revista do Sindicato dos magistrados do Ministério Público,
­n. 167-168, p. 16. nov./dez. 2004.
25 Idem.
26 STRECK/FELDENS. Op. cit., p. 48.
Daiane Zappe Viana
53
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAEIRO, Pedro. Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da
justiça absoluta e o fetiche da gestão eficiente do sistema. Revista do Ministério
Público, n. 84, out./dez. 2000.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa
Anotada. 2 vol. 2. ed. Coimbra Editor, 1985.
CLUNY, Helena. O Ministério Público como Defensor dos Princípios Fundamentais
Constitucionais – Do direito à natureza, do ambiente, da preservação dos recursos
naturais e do correcto ordenamento do território. Revista do Sindicato dos magistrados do Ministério Público, n. 167/168, nov./dez. 2004.
DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal e Estado-de-Direito Material. Revista de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, Forense, v. 31, 1981.
_____. Para uma Nova Justiça Penal. Ciclo de Conferências no Conselho Distrital
do Porto da Ordem dos Advogados. Livraria Almedina.
GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e democracia. Site do Sindicato
dos Membros do Ministério Público de Portugal. Disponível em: <http://www.
smmp.pt/goulart.htm>. Acesso em: 19 maio 2005.
MENÉRES PIMENTEL. Código de Processo Penal. Anteprojecto. Ministério da Justiça.
Lisboa, 1983.
MESQUITA, Paulo dá. Direcção do Inquérito Penal e garantia judiciária. Coimbra
Editora, 2003.
MIRANDA, Jorge. Apreciação da dissertação de doutoramento de Rui Medeiros.
Direito e justiça. Vol. XIII, Tomo 2. Separata. Lisboa: Universidade Católica, 1999.
NOGUEIRA, Alberto Pinto; SIMAS, Manuel Santos. Lei Orgânica do Ministério Público. Porto Editora, 1979.
RODRIGUES, José Narciso da Cunha. Em Nome do Povo. Coimbra Editora, 1999.
54
A Evolução do Ministério Público Português...
SAUWEN FILHO, João Francisco. Ministério Público Brasileiro e o Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a legitimidade da
função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E O
TERCEIRO (NÃO AGENTE PÚBLICO) ENVOLVIDO
Darlã Martins Vargas1
Inegavelmente o estudo da improbidade administrativa não encontra unanimidade na opinião dos juristas e, em razão disso, busco estar
atento a todas as novidades a respeito da matéria, seja na seara doutrinária,
seja na seara jurisprudencial, não só em razão da minha atividade profissional, mas, principalmente, pela evolução ocorrida nos últimos tempos,
pelos Tribunais, na interpretação daquela legislação.
Em razão dessas pesquisas, dias atrás, me chamou a atenção a publicação de uma sentença de 1° Grau em razão de seu desfecho com relação
ao terceiro beneficiário pelo ato acoimado de ímprobo pelo magistrado
que, condenando aquele, justificou:
Vale ressaltar, ainda, que o requerido ......., embora não sendo agente público, no momento da edição da lei, era seu único beneficiário,
inserindo-se, portanto, como sujeito passível da aplicação das disposições da Lei n. 8.429/1992, vez que o artigo 3° da mesma lei dispõe o
seguinte:
Art. 3°. As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele
que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma
direta ou indireta.
Sendo assim, ambos os requeridos cometeram os atos de improbidade
previstos no artigo 10, inciso XII, e o artigo 11, caput, e inciso I, da Lei
n. 8.429/90, os quais são passíveis de aplicação das sanções previstas
na mesma lei.
O fato sob oculi, registre-se, era a vigência de uma lei reconhecidamente inconstitucional que instituía ao terceiro as famosas “pensão de
mercê”.
1 Advogado, mestre em Direito Público pela Universidade de Franca, SP, professor da Graduação
e da Pós-Graduação da Universidade de Cuiabá – Unic.
56
A Improbidade Administrativa e o Terceiro (Não Agente Público) Envolvido
Nada obstante, preocupei-me em analisar todo o teor da decisão no
sentido de visualizar a conduta imposta ao terceiro no iter do ato ímprobo,
pois, sem qualquer dúvida, sempre entendi que para a responsabilização
do terceiro no ato de improbidade administrativa não se poderia prescindir
do elemento volitivo daquele, tal como se deve fazer, aliás, com o próprio
agente público.
Com efeito, entretanto, para meu espanto a justificativa daquela sentença condenatória era exatamente aquele antes exposto, qual seja, de que
o terceiro “era seu único beneficiário”, em síntese, nada obstante aquele
(terceiro) não ter participado de qualquer fase do iter necessário à configuração do ato ímprobo, mas, por “sorte” ter sido “beneficiado” pela lei que
instituía aquele tipo de pensão inconstitucional que, diga-se, teve todo o
processo legislativo formal realizado junto à Casa de Leis, fora condenado,
solidariamente ao agente público, à devolução dos valores recebidos ao
erário devidamente corrigidos, mais juros de 1% (um por cento) ao mês,
bem como à multa civil de 5 (cinco) vezes o valor percebido pelo agente
público (autor do projeto de lei), durante sua gestão.
O conhecimento da decisão suso relatada fez com que adentrasse
mais especificamente ao tema, pois continuava e continuo entendendo
que, para o terceiro ser condenado, seja como co-autor ou partícipe do
ato ímprobo, é necessário que pratique a conduta de “induzir ou concorrer” para a prática do ato e, no caso de se “beneficiar”, é necessário, no
mínimo que, de má-fé, esteja ciente da improbidade cometida, dela se
locupletando.
Tal assertiva se deu em razão de que, em estudos anteriores, analisamos o conceito da improbidade concluindo que:
Denota-se desses estudos iniciais que o conceito de improbidade é
bem mais amplo do que, simplesmente, o ato lesivo ou ilegal em si. Na
realidade, é o contrário da probidade, cujo significado é a qualidade
de probo, a integridade de caráter, honradez. Conclui-se, nesse caso,
que improbidade é a desonestidade, o mau caráter, enfim, a falta de
probidade.2
2 VARGAS, Darlã Martins. O termo da “moda” nos meios sociais é improbidade administrativa!
mas o que é isso afinal. Revista Interesse Público, n. 39, set./out. 2006. Porto Alegre: Notadez.
p. 389, 398.
Darlã Martins Vargas
57
Por uma questão de lógica jurídica não se pode admitir que um
terceiro que nenhum tipo de vínculo – objetivo ou subjetivo – tenha com
o ato inquinado de ímprobo venha, em razão deste, ser condenado por
decisão judicial que o considerará desonesto, mau caráter, enfim ímprobo.
É bem verdade que os tipos descritos na Lei de Improbidade Administrativa são excessivamente abertos como tivemos a oportunidade de
analisar em outro trabalho3, entretanto é obrigação do intérprete ao fazer
a exegese de uma lei com reflexos inegavelmente punitivos, com forte
conteúdo penal, como escreveu o ex-ministro do STF Nelson Jobim, citando Cláudio Ari Mello, na Reclamação n°. 2138/DF, referindo que “o
condenado por improbidade administrativa ver-se-á na indigna posição de
não-cidadão, em face da perda dos direitos políticos (Improbidade Administrativa – Considerações sobre a Lei n°. 8.429/92. In: RT, Cadernos de
Direito Constitucional e Ciência Política, 3. ed., n°. 11, p. 58, abr./jun. 95)”,
utilizar a interpretação restritiva e jamais aquela chamada de extensiva.
Assim é que, quando o legislador descreveu o artigo 3°, da Lei n°.
8.429/92, o fez com a intenção clara de que a lei deve ser interpretada não
somente pela sua forma literal, mas, principalmente, também, pela sistematização de seus preceitos. Ora, para que o terceiro (3°) beneficiário do ato
ímprobo possa ser co-responsabilizado com o autor do fato é necessário
que seja demonstrado, através de provas lícitas, que de alguma forma participou para realização do resultado (iter do ilícito).
Interpretação contrária levaria ao absurdo, como no presente caso,
de condenar-se como ímprobo pessoa que não teve qualquer atitude/
conduta (comissiva ou omissiva) no sentido da criação, desenvolvimento e
resultado do ato, sendo, apenas e tão-somente, seu beneficiário.
Nesse sentido, aliás, merecem destaque as seguintes decisões de
nossos Tribunais:
3 Pois bem, como já se viu, a Lei de Improbidade Administrativa traz em sua composição um
forte conteúdo penal e evidencia-se que suas sanções, por vezes, são mais graves que aquelas
previstas a um crime comum. Certamente, em razão disso, deveria trazer na sua descrição legal, tipos claros, elementos objetivos que delimitassem a conduta tida como ilícita, o que não
acontece, gerando, com isso, por vezes, dificuldade na defesa daqueles que são acusados da
prática de determinadas condutas chamadas de ímprobas (VARGAS, Darlã Martins. Improbidade
Administrativa: o bis in idem com a matéria penal e seus tipos abertos. Revista de Administração
Pública e Política, L&C, n. 109, julho de 2007. Brasília: Consulex. p. 30, 34).
58
A Improbidade Administrativa e o Terceiro (Não Agente Público) Envolvido
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO
TERCEIRA CÂMARA CÍVEL
Número do Protocolo: 40667/2007
Data de Julgamento: 16-3-2009
EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA –
AJUIZAMENTO CONTRA TERCEIRO – IMPOSSIBILIDADE DA PRÁTICA DO ATO ISOLADAMENTE – NECESSIDADE DA PARTICIPAÇÃO DE
AGENTE PÚBLICO – CASO CONCRETO DE RESCISÃO CONTRATUAL
POR INEXECUÇÃO DE CONTRATO - RECURSO IMPROVIDO.
Para a condenação de terceiro por improbidade administrativa é necessário que este aja de maneira a contribuir com um agente público
na consecução do ato ímprobo dele se beneficiando direta ou indiretamente. Não pode ser utilizada a ação de improbidade da Lei Federal n.
8.429/92 quando o caso concreto é de ação de rescisão contratual com
perdas e danos.
Ou ainda,
TRF – PRIMEIRA REGIÃO
Apelação Cível n°. 200639030011077
Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL TOURINHO NETO
TERCEIRA TURMA
DATA DA DECISÃO: 01/09/2008
DJF: 12/09/2008 – Pág. 65
EMENTA:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE IMPROBIDADE. RÉU. AÇAO AJUIZADA
TÃO SÓ CONTRA TERCEIRO.
1. Somente agentes públicos, com ou sem a cooperação de terceiros,
podem praticar atos de improbidade, sujeitos à ação de improbidade
administrativa.
2. Lei de improbidade é para alcançar o administrador desonesto, que
agiu de má-fé. Alcança o terceiro quando o administrador está com ele
conluiado, maquinado, conivente.
No mesmo sentido, ainda, a seguinte decisão do Tribunal de Justiça
do Estado de Minas Gerais:
Darlã Martins Vargas
59
EMENTA: Improbidade Administrativa. Terceiro. Licitação na modalidade convite. Juntada de documento na fase de habilitação com data
expirada. Não caracterização de dolo ou culpa. O ato de improbidade
administrativa é praticado dolosamente por agente público – ou por
terceiro com ele beneficiando-se – e contrário às normas da moral, da
lei e dos bons costumes, ou seja, aquela que indica falta de retidão da
conduta, no modo de proceder perante a Administração Pública. Ausente a prova de dolo ou culpa do terceiro, é de se julgar improcedente
o pedido contido na ação para reconhecimento da improbidade administrativa. (TJ/MG, Rel. Des. Wander Marotta, Ap. Cível n°. 000.317.3168/00, 7ª CC, DJ de 21.8.93).
No voto condutor do v. acórdão antes transcrito, o eminente Des.
Wander Marotta, com maestria, deixou consignado:
Assim, o direito à reparação existe apenas com a presença e certeza dos
seguintes pressupostos: a) que o lesado sofra dano injusto, patrimonial
ou moral; b) que seja decorrente de fato de terceiro; e c) que haja
nexo causal entre o evento e a ação do terceiro. [...] As drásticas
sanções da Lei de Improbidade só podem ser aplicadas em casos de
comprovado dolo dirigido no sentido da ação perniciosa, segundo indicam a doutrina majoritária e a melhor orientação jurisprudencial.
Não podia ser diferente quando na doutrina encontramos, por
exemplo, os ensinamentos de Francisco Octavio de Almeida Prado, que,
ao tratar do assunto, ensina:
A lei contempla, ainda, como sujeito ativo do ato de improbidade o
beneficiário, assim considerado ‘quem dele se beneficie sob qualquer
forma, direta ou indireta’. Assim, a auferição de benefício foi adotado
pela lei como elemento configurador de responsabilidade por ato de
improbidade administrativa. Mas é importante salientar que a fixação
dessa responsabilidade não pode prescindir do elemento subjetivo. É
que sem o vínculo subjetivo inexiste a possibilidade de responsabilização por ato de improbidade.4
4 PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade Administrativa. São Paulo: Malheiros,
2001. p. 71.
60
A Improbidade Administrativa e o Terceiro (Não Agente Público) Envolvido
No mesmo sentido Waldo Fazzio Júnior comenta:
Na formatação da improbidade de terceiro, é necessário que se atente
para o pressuposto da vantagem patrimonial, sob a perspectiva subjetiva. Para ser ilícito, o desfrute patrimonial deve decorrer de um antecedente vínculo subjetivo de injuridicidade contraído entre o agente público e o terceiro. A abordagem puramente objetiva é insuficiente para
traçar a perfeita conformação do quadro de improbidade. Demonstrações consistentes de conluio são necessárias para a censurabilidade,
sob pena de ceder às suposições vizinhas da injustiça.5
Ora, é inegável que, nada obstante o reconhecimento da inconstitucionalidade da inserção da conduta culposa no artigo 10 da Lei n°.
8.429/92 pela maioria da doutrina, o ato de improbidade prescinde de
dolo ou culpa.
Nelson Hungria6, citado por Fazzio Júnior, lembrava que “somente
com a averiguação in concreto desse nexo subjetivo se pode atribuir ao
agente, para o efeito da punibilidade, uma conduta objetivamente desconforme com a ordem ético-jurídica, ou reconhecer sua incidência no juízo
de reprovação”.7
Aliás, ao tratar da responsabilidade do agente ímprobo, o próprio
Fazzio Júnior, com extrema clareza, conclui:
Estendendo esse fundamento penal para o plano dos atos de improbidade para que se considere um ato como passível de sofrer sanções,
não é suficiente a existência de conexão causal objetiva (entre ação [ou
omissão] e o resultado), nem sua subsunção típica (num artigo da LIA).
É imprescindível a culpabilidade (culpa lato sensu) do agente público.
Não se pune com fulcro em responsabilidade objetiva.8
Com efeito, não poderia ser dado tratamento diferente ao terceiro
sob pena de se estar ressuscitando a responsabilidade objetiva, vedada
5 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2007. p. 257.
6 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 112.
7 Idem. Ibidem, p. 80.
8 Idem. Ibidem.
Darlã Martins Vargas
61
como vimos em nosso sistema jurídico punitivo, excetuando-se, por óbvio,
a responsabilidade do Estado.
O professor Mauro Roberto Gomes de Mattos, com sua peculiar
sapiência, registra:
A análise da participação do particular no evento que envolva o agente
público é de curial importância, tendo em vista que a boa-fé e a pura
vontade do terceiro podem, em determinados casos, ser elemento de
grande valia na descaracterização do que vem preconizado no art. 3°,
por ausência do elemento subjetivo, que é o dolo.9
Também Marino Pazzaglini Filho, ao debruçar-se sobre o assunto,
escreveu:
Indução é o ato de instigar, sugerir, estimular, incentivar agente público
a praticar ou omitir ato de ofício caracterizador de improbidade administrativa. O concurso é atividade de auxílio, de participação material
na execução por agente público de ato de improbidade administrativa.
Auferir benefício é tirar proveito patrimonial, direto ou indireto, de ato
ímprobo cometido por agente público, seja ajustado previamente com
este, seja sem associação ilícita, agindo, nesse caso, o terceiro, de má-fé,
ciente da improbidade cometida, dela se locupletando.10
De se notar que, como registramos no início deste estudo, embora
não haja unanimidade na interpretação da Lei de Improbidade Administrativa, é certo que a grande maioria dos doutrinadores aponta para a
necessidade de verificação e comprovação da conduta dolosa do terceiro,
seja nas condutas de induzir ou concorrer, ou quando ele figure apenas e
tão-somente como beneficiário direto ou indireto do ato ímprobo.
Conclui-se, desse modo, que é imprescindível para a condenação
do terceiro que fique configurado/provado que, no mínimo, estava ele
ciente da improbidade administrativa praticada pelo agente público e da
ilicitude do benefício por ele recebido, sob pena de, desconsiderando-se
9 GOMES DE MATTOS, Mauro Roberto. O limite da improbidade administrativa: o direito dos
administrados dentro da Lei n° 8.429/92. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005. p. 48.
10 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. Aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. Legislação e
jurisprudência atualizadas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 27.
62
A Improbidade Administrativa e o Terceiro (Não Agente Público) Envolvido
estes aspectos, fundamentar-se uma condenação na responsabilidade objetiva que, como vimos, é vedada em nosso sistema jurídico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA PRADO, Francisco Octavio. Improbidade Administrativa. São Paulo: Malheiros, 2001.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de Improbidade Administrativa: Doutrina, legislação
e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2007.
GOMES DE MATTOS, Mauro Roberto. O limite da improbidade administrativa: o
direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92. 2. ed. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2005.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. Aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. Legislação e jurisprudência atualizadas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
VARGAS, Darlã Martins. O termo da “moda” nos meios sociais é improbidade administrativa! mas o que é isso afinal. Revista Interesse Público, n. 39, set./out. 2006.
Porto Alegre: Notadez.
_____. Improbidade Administrativa: o bis in idem com a matéria penal e seus tipos
abertos. Revista de Administração Pública e Política, L&C, n. 109, julho de 2007.
Brasília: Consulex.
CONTRATO DE APRENDIZAGEM:
SUA APLICAÇÃO E BENEFÍCIOS
PARA O APRENDIZ1
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz2
INTRODUÇÃO
O propósito deste artigo acadêmico é apresentar os resultados da
pesquisa realizada sobre o Contrato de Aprendizagem, sua aplicação e benefícios para o Aprendiz. Abordar este tema é de extrema relevância, considerando a faixa etária do seu público-alvo e as características dessa clientela,
por serem considerados seres humanos em processo de desenvolvimento
pessoal e profissional, além da possibilidade de analisar a aplicação da legislação, a fim de averiguar se esta não é mais uma norma sem eficácia.
Diante das regras de tutela encontradas em um contrato de trabalho, as indagações motivadoras do trabalho acadêmico foram: estariam
realmente as empresas colocando em prática os princípios que norteiam a
implantação de um contrato de aprendizagem, como prevê a legislação, e
têm este trazido reais benefícios para o aprendiz?
Na primeira parte deste artigo será apresentada uma breve retrospectiva histórica da origem do contrato de aprendizagem e sua evolução.
Na sequência, com a finalidade de clarificar esse tipo de contrato, abordaremos os dispositivos legais e as características do contrato de aprendizagem, bem como o papel das empresas e do Programa de Aprendizagem
do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac/AR/MT e suas
respectivas responsabilidades.
Ao final apresentamos os resultados da pesquisa realizada com os
aprendizes do Programa de Qualificação do Aprendiz – PQA, do Senac/
AR/MT que nos permitiu a análise e a reflexão crítica sobre este impor1 Artigo resultante da monografia apresentada à Faculdade de Direito – Unic sob a orientação da
professora Ma. Myriam C. Vieira Almeida.
2 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade de Cuiabá – Unic, pedagoga pela UFMT, mestre
em Gestão Econômica do Meio Ambiente pela UnB/Univag, especialista (MBA – Executivo) em
Gestão Empresarial pela FGV, em Gestão de Pessoas para Qualidade e Produtividade – Unic, e
em Metodologia e Didática do Ensino Superior – Unic.
64
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
tante instrumento legal com enorme alcance social, sua eficácia e benefícios deste para o aprendiz. Utilizamos também a pesquisa documental
e a bibliográfica que auxiliou nos fundamentos teóricos, necessários ao
aprofundamento do objeto de pesquisa. Dessa forma, espera-se com este
artigo elucidar e estimular as discussões acerca desse preocupante assunto,
sabendo que outras questões poderão ser levantadas com a finalidade de
contribuir com este debate.
CONTRATO DE APRENDIZAGEM:
BREVE RETROSPECTIVA HISTÓRICA
O trabalho, desde os primórdios dos tempos, esteve associado à
ideia de sofrimento e durante muito tempo, na antiguidade, consistiu na
exploração forçada do homem pelo homem, pela escravidão, o modo de
produção reinante na época. Tal concepção contribuiu para agregar ao
trabalho uma condição de desvalor.
Com a evolução da sociedade, o trabalho humano passou por diversas fases até chegar a uma regulamentação jurídica, notadamente a partir da Revolução Industrial, surgindo nessa época o Direito do Trabalho.
Fazendo um recorte na história e focando as crianças e os adolescentes,
percebe-se que desde o início dos tempos já vivenciavam uma relação de
trabalho.
E assim é que, já no Egito, em Roma e na Grécia Antiga, os filhos
dos escravos trabalhavam para os amos ou senhores ou para terceiros, em
benefício daqueles, sem remuneração. Na Idade Média, a aprendizagem
começou a ser expandida pela Europa Ocidental, através do trabalho do
menor nas corporações de ofício. Estes ficavam durante dois anos e às
vezes até mesmo por dez ou doze anos, tempo desproporcional ao necessário à aprendizagem.3
Na maioria dos serviços, o número de aprendizes era limitado a um
ou dois, e mesmo nos momentos de crise, o mestre estava proibido por três
ou seis anos de ter aprendizes. Ele propiciava educação ao aprendiz e este
lhe dava todo o seu tempo, pois dormia sob o seu teto e comia à sua mesa.
Orlando Gomes (apud Perez) destaca que “a aprendizagem medieval apresentava-se sob a forma de um contrato celebrado entre o mestre e
3 OLIVA, José Roberto Dantas. O princípio da proteção integral e o trabalho da criança e do adolescente no Brasil. São Paulo: LTr, 2006. p. 31, 38.
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
65
os pais do menor”.4 Segundo Grunspun estes pertenciam às corporações,
guilden, em conjunto com os adultos ou ficavam em casa com as mulheres
nas tarefas domésticas.5
A história do trabalho humano sempre esteve pautada nos princípios da produção taylorista-fordista, paradigma este em processo de superação decorrente de uma nova visão de mundo. No Brasil, a partir da
década de 1970, quando entrou em crise esse modelo de produção, o
contexto socioeconômico começou a sofrer incessantes mudanças, com
intensa velocidade nos processos tecnológicos, na escala de produção, na
organização do processo produtivo e na qualificação dos trabalhadores.
Desse momento em diante começam a surgir radicais reorganizações na sociedade e a delinear uma nova sociedade mais democrática e
fundamentada nos direitos, nas diferenças e nas diversidades das pessoas.
As transformações ocorridas na produção de bens e serviços, nesses últimos anos, decorrentes das inovações tecnológicas, de novos padrões de
administração e de novas formas de gestão do trabalho, mudaram a face
do mundo do trabalho.
Com uma sociedade em constante evolução, não há como não ter
mudanças também na relação entre o trabalho e o ser humano no decorrer
da história da humanidade, e ao fazer esse resgate percebemos, então,
que as crianças sempre trabalharam junto à família, praticando atividades
incompatíveis com a sua idade.
A dificuldade econômica das famílias tem sido a principal responsável
pela exploração de que são vítimas os menores, desde a primeira infância e
nas mais variadas épocas da humanidade. A necessidade de aprender uma
profissão também tem colocado os menores a serviço da própria família ou
de outrem, que, em geral, recebe a ajuda e nem sempre os remunera.
Hoje, a criança e o adolescente só podem trabalhar mediante um
contrato de aprendizagem, entendendo como aprendiz a pessoa maior de
14 anos e menor de 24 anos. Para Martins os “fundamentos principais da
proteção do trabalho da criança e do adolescente são quatro: de ordem
cultural, moral, fisiológica e de segurança”.6 Assim, qualquer trabalho para
esse público não deve perder de vista esses aspectos.
4 PEREZ, Viviane Matos González. Regulação do trabalho do adolescente: uma abordagem a partir
dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2008. p. 28.
5 GRUNSPUN, Haim. O trabalho das crianças e dos adolescentes. São Paulo: LTr, 2000. p. 46.
6 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 605.
66
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
DISPOSITIVOS LEGAIS E CARACTERÍSTICAS
DO CONTRATO DE APRENDIZAGEM
A aprendizagem tem por objetivo aprender um ofício para exercer
uma profissão. Encontramos os fundamentos legais do contrato de aprendizagem no disposto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 70,
inciso XXXIII, alterado pela Emenda Constitucional n. 20, publicada no
DOU de 16/12/1998 e na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que
dedica o capítulo IV à proteção do trabalho do menor.
Recentemente, a CLT se adequou ao mandamento constitucional
pela Lei n. 10.097, de 19 de dezembro de 2000, que deu nova redação ao
artigo 428 da CLT, a saber:
Art. 428. Contrato de Aprendizagem é o contrato de trabalho especial,
ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador
se compromete a assegurar ao maior de quatorze e menor de dezoito
anos, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e
psicológico, e o aprendiz, a executar, com zelo e diligência, as tarefas
necessárias a essa formação.7
Ainda no parágrafo 10 desse mesmo artigo estabelece que, para a
validade do referido contrato, são necessários os seguintes requisitos:
– Anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social;
– Matrícula e frequência do aprendiz à escola, caso não haja concluí­
do o ensino fundamental; e
– Inscrição em programa de aprendizagem desenvolvido sob a
orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica.
As principais características da aprendizagem, além dessas citadas,
resultantes das alterações trazidas pela Lei n. 10.097/2000, são8:
7 BRASIL, CLT: Legislação Previdenciária e Constituição Federal. Obra coletiva da Editora Saraiva
com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e
Lívia Céspedes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 294.
8 SENAC. DN. Programa de Aprendizagem Comercial: referenciais para a ação Senac. Rio de
Janeiro: SENAC/DEP/CTP, 2006. p. 7.
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
67
– O programa é destinado ao menor trabalhador de 14 até 18 anos,
conforme a Emenda Constitucional n. 20, de 15/12/1998;
– Existe a obrigatoriedade legal (Art. 429 – CLT) para todos os estabelecimentos de qualquer natureza de contratarem aprendizes
e matriculá-los em cursos de aprendizagem, em número mínimo
de 5% e no máximo 15% do total de empregados do estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional. Não enquadram nessa obrigatoriedade as micros e pequenas empresas,
definidas por lei e por força de seu estatuto específico.
– A partir de um contrato de trabalho especial a garantia de direitos
trabalhistas e previdenciários, ajustado por escrito e por prazo
determinado não superior a dois anos e vinculado a um programa
de formação técnico-profissional metódica, com atividades teóricas e práticas, ministrado pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem. No caso dessas Instituições não oferecerem o programa, este
poderá ser ministrado pelas escolas técnicas ou entidades sem fins
lucrativos, desde que atendidos os requisitos legais.
– O aprendiz poderá se contratado diretamente pelo estabelecimento ou por entidade sem fins lucrativos, desde que esteja capacitada a ministrar a aprendizagem.
– Aos aprendizes que concluírem os Programas de Aprendizagem
com aproveitamento, receberão certificados.
– A jornada máxima permitida será de seis horas para os que ainda
não concluíram o Ensino Fundamental. Podendo ser de oito horas
para os que estejam cursando o ensino médio, desde que nela
estejam concluídas as horas destinadas à aprendizagem teórica.
Proibida a prorrogação e a compensação de jornada.
– Aos aprendizes será garantido o salário mínimo-hora, salvo condição mais favorável.
Em outubro de 2003, a Lei n. 10.748/2003, atualizada pela Lei n.
10.940/2004, instituiu o Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego para Jovens (PNPE), que foi concebido para “transformar as expectativas de jovens em situação mais crítica de pobreza em possibilidades
sustentáveis de um futuro decente, por meio do acesso e permanência no
atual mundo do trabalho”.9 Tal programa contempla jovens entre 16 e 24
9 SENAC. DN. Programa de Aprendizagem Comercial: referenciais para a ação Senac. Op. cit., p. 9.
68
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
anos e com o objetivo de propiciar a sua inserção no mercado de trabalho
está, também, a aprendizagem.
Com o objetivo de conciliar as faixas etárias dos jovens atendidos pelo
PNPE (entre 16 e 24 anos) e pela aprendizagem (entre 14 e 18 anos) foi promulgada a Lei n. 11.180, de 23/09/2005, e o Decreto n. 5.598, de 01/12/2005,
dispondo sobre os requisitos necessários à condição de aprendiz. A principal
alteração se deu na fixação da faixa etária para o aprendiz, que passa a ser
a pessoa com idade maior de 14 anos e menor de 24 anos. Porém, a idade
máxima de 24 anos não se aplica aos aprendizes com deficiência.
Recentemente os parágrafos 10 e 30 do artigo 428 da CLT foram alterados pela Lei n. 11.788, de 25 de setembro de 2008, que dispõe sobre o estágio
de estudantes, além de acrescentar o parágrafo 70, ficando assim definidos:10
Art. 428. ......................................................................................................
§ 1o . A validade do contrato de aprendizagem pressupõe anotação na
Carteira de Trabalho e Previdência Social, matrícula e frequência do
aprendiz na escola, caso não haja concluído o ensino médio, e inscrição
em programa de aprendizagem desenvolvido sob orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica.
......................................................................................................................
§ 3o. O contrato de aprendizagem não poderá ser estipulado por mais
de 2 (dois) anos, exceto quando se tratar de aprendiz portador de deficiência.
......................................................................................................................
§ 7o. Nas localidades onde não houver oferta de ensino médio para o
cumprimento do disposto no § 1o deste artigo, a contratação do aprendiz poderá ocorrer sem a frequência à escola, desde que ele já tenha
concluído o ensino fundamental (NR).
Com essa alteração a principal mudança se refere à validade do
Contrato de Aprendizagem com relação à frequência do aprendiz à
escola; antes era considerado o ensino fundamental e agora o ensino
médio. Além da inclusão do § 7º, que possibilita nas localidades onde
não houver a oferta do ensino médio a contratação do aprendiz desde
que este tenha concluído o ensino fundamental.
10 MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Lei n. 11.788, de 25 de setembro de 2008. Disponível em: <www.mte.gov.br/legislações>. Acesso em: 16 maio 2009.
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
69
Diante das características e especificidades do contrato de aprendizagem percebe-se claramente que a responsabilidade é compartilhada com
as empresas para que qualquer programa de aprendizagem possa atender
aos objetivos dispostos na legislação. Dessa forma, é fundamental a participação efetiva das empresas como parceiras das ações de aprendizagem
envolvendo esse público-alvo. Resta, entretanto, averiguar até que ponto
essa parceria é real ou fictícia e se realmente se encontram presentes na
execução dos contratos de aprendizagem os princípios da proteção ao
trabalho da criança e do adolescente.
AS EMPRESAS, O CONTRATO E O PROGRAMA
DE APRENDIZAGEM
Para que os objetivos das legislações referentes à aprendizagem possam ser alcançados, são necessárias a união de esforços e a interação entre
os diversos atores sociais envolvidos com a operacionalização do contrato
de aprendizagem. Não restam dúvidas de que o adolescente só pode trabalhar mediante a efetivação de um contrato de aprendizagem, sendo este totalmente de caráter educativo. Assim, considerando a condição de aprendiz,
é primordial priorizar a educação e não somente a produção.
No contexto organizacional atual presenciamos a todo momento
que as empresas, por atuarem em um mercado altamente competitivo,
passam a buscar novos padrões produtivos, nos quais qualidade e produtividade são fatores de competitividade. As transformações tecnológicas pelas quais passam as empresas, aliadas aos efeitos da globalização
econômica, exigem mudanças na filosofia e na organização da empresa,
entre elas a necessidade da presença de um novo trabalhador.11 Um trabalhador que deverá ter qualidades não apenas operacional como também conceitual, ou seja, como atributos do trabalhador deverão estar
relegadas a segundo plano as habilidades manuais, valorizando mais as
aptidões cognitivas e conhecimentos teóricos acerca da função ocupada.
Necessitam então de um profissional “multidisciplinar” com uma visão
abrangente do seu campo de trabalho. E como o aprendiz pode ajudar
nesse contexto?
11 PEREZ, Viviane Matos González. Regulação do trabalho do adolescente: uma abordagem a partir
dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2008. p. 134.
70
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
Para tal, o Estado viabiliza a profissionalização do adolescente mediante o ensino técnico e profissional para que possa ser inserido no mercado de trabalho com o perfil adequado à necessidade empresarial. A
educação profissional do adolescente é questão prioritária neste contexto!
Ao analisar a legislação da educação profissional, encontramos o Decreto n. 5. 154, de 22/07/2004, que regulamenta o parágrafo 20 do artigo 36 e
os artigos 39 a 42 da LDB – Lei de Diretrizes e Bases, o qual prescreve que:
A educação profissional será desenvolvida por meio de cursos e programas de formação inicial e continuada de trabalhadores, educação
profissional técnica de nível médio e educação profissional tecnológica
de graduação e pós-graduação, buscando integrar o trabalho à ciência
e à tecnologia, e, com isso, conduzir o educando ao desenvolvimento
de suas aptidões para a vida produtiva.12
Aqui identificamos o Programa de Aprendizagem, caracterizado então como formação inicial e continuada de trabalhadores que devem ser
organizados e desenvolvidos sob a orientação e responsabilidade de entidades qualificadas em formação técnico-profissional.
Perez destaca que o artigo 63 e incisos do Estatuto da Criança e do
Adolescente estabelece três princípios estruturadores da formação técnicoprofissional, a saber: “a garantia de acesso e frequência obrigatória ao ensino regular; atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente;
horário especial para o exercício da atividade”. Afirma ainda que “o espírito da norma é o da prevalência da escolarização sobre o trabalho, devendo
a formação profissional do adolescente ser parte integrante da construção
do futuro adulto”.13
Segundo o Decreto n. 5.598, consideram-se entidades qualificadas
em formação técnico-profissional metódica:
I – os Serviços Nacionais de Aprendizagem, assim identificados:
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai;
Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – Senar;
Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac;
12 PEREZ, Viviane Matos González. Regulação do trabalho do adolescente: uma abordagem a partir
dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2008. p. 135.
13 Idem, p. 136.
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
71
Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte – Senat; e
Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo – Sescoop.
II – as escolas técnicas de educação, inclusive as agrotécnicas; e
III – as entidades sem fins lucrativos, que tenham por objetivos a assistência ao adolescente e à educação profissional, registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.14
Dessa forma, essas instituições são responsáveis pelo desenvolvimento, acompanhamento e avaliação dos Programas de Aprendizagem
que têm como público-alvo os aprendizes contratados pelas empresas, e
estas têm a obrigatoriedade da contratação do referido aprendiz, podendo
variar entre 5% e 15% dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional.
As responsabilidades das empresas na operacionalização do contrato de aprendizagem são, em síntese, as seguintes:
– Efetivar o contrato de aprendizagem, conforme determina a legislação;
– Criar condições para o efetivo aprimoramento técnico do aprendiz;
– Garantir os direitos trabalhistas e previdenciários do trabalhador
aprendiz;
– Assegurar a transparência dos acordos firmados;
– Assegurar a transparência da documentação específica; e
– Assegurar a integridade dos Contratos de Aprendizagem.
Cabe destacar que uma das principais responsabilidades, além das
exigências legais e contratuais, é propiciar ao aprendiz as oportunidades
de crescimento profissional e pessoal, considerado ser este um contrato de
caráter essencialmente educativo. Deve, portanto, a empresa propiciar as
condições de trabalho para o aprendiz desenvolver a sua função em conformidade com o disposto no Programa de Aprendizagem, não podendo este
executar atividades diferentes daquelas aprendidas no referido Programa.
O objetivo do trabalho foi abordar a aprendizagem empresária,
aquela realizada nos estabelecimentos empresariais e concomitantemente
pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem Comercial, o chamado Sistema
“S” – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac, Serviço Na14 BRASÍLIA. Decreto n. 5.598, de 1 de dezembro de 2005. Regulamenta a contratação de aprendizes e dá outras providencias.CLT: Legislação Previdenciária e Constituição Federal. Obra coletiva da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz
dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 720.
72
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
cional de Aprendizagem Industrial – Senai, Serviço Nacional de Aprendizagem de Transportes – Senat, Serviço Nacional de Aprendizagem Rural –
Senar e Serviço Nacional de Aprendizagem de Cooperativismo – Sescoop.
Neste caso, especificamente, o trabalho do SENAC, Administração Regional
em Mato Grosso.
O Senac foi criado pelo governo federal através do Decreto-Lei n.
8.621, de 10 de janeiro de 1946. Na mesma data da sua criação, foi promulgado outro Decreto-Lei, o de n. 8.622, que dispõe sobre a aprendizagem
dos comerciários, que era o objetivo número um da criação da instituição. A
classe empresarial do setor terciário – comércio e serviços – ao criar o Senac,
propunha uma ação educativa e social voltada para a união de empregados
e empregadores, visando contribuir para a solução dos graves problemas socioeconômicos pelos quais país atravessava, após a segunda Guerra Mundial.­
A Instituição tem como objetivos gerais os seguintes: formar e desenvolver profissionalmente recursos humanos para as atividades do comércio e prestação de serviços, tendo em vista a evolução e as necessidades do mercado de trabalho, a demanda social, a valorização profissional
e o desenvolvimento socioeconômico do País; assessorar tecnicamente as
empresas de comércio e serviços, em especial, quanto a recursos humanos; e valorizar as atividades de comércio e serviços em função do desenvolvimento socioeconômico do país.
Os eixos norteadores que estruturam o Programa de Aprendizagem do Senac e que servem de referenciais para o trabalho de todos os
Departamentos Regionais são os seguintes: observância aos princípios da
educação básica; independência e articulação com os ensinos fundamental e médio; respeito aos valores estéticos, políticos e éticos; a estética da
sensibilidade; a política da igualdade; a ética da identidade; o desenvolvimento de competências profissionais para a laboralidade; flexibilidade,
interdisciplinaridade e contextualização curricular; identidade dos perfis
profissionais de conclusão dos cursos; atualização permanente dos cursos
e currículos; organização dos cursos do Programa de Aprendizagem segundo itinerários formativos; articulação com a educação básica; observância
às diretrizes do Programa Deficiência & Competência; priorização de atendimento a alunos da Educação Básica; e o compromisso com a preservação do meio ambiente e com a sociodiversidade.15
15 Programa de Qualificação do Aprendiz. Documento Norteador. Cuiabá: Senac-MT, 2008. p. 11, 13.
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
73
No Senac, Administração Regional de Mato Grosso, esses eixos norteadores encontram–se presentes no seu Programa de Aprendizagem que
é composto por dois cursos: Aprendizagem Comercial em Serviços de Escritórios e Aprendizagem Comercial em Operações de Supermercados.
O referido Programa possui um Documento Norteador orientativo
para a operacionalização dos cursos, em todos os Centros de Educação
Profissional que são as Unidades fixas da Instituição presentes nos municípios de Cuiabá, Rondonópolis, Primavera do Leste, Barra do Garças,
Tangará da Serra e Colíder.
O Programa tem como objetivo geral o de ampliar as condições e
as possibilidades para que o jovem seja capaz de construir o seu próprio
destino, com capacidade para o exercício pleno da cidadania, sendo um
trabalhador exemplar na área de comércio e serviços.
E como objetivos específicos proporcionar, na forma da Lei, aos
aprendizes do setor de comércio e serviços, as competências necessárias
ao exercício profissional; propiciar aos aprendizes a oportunidade de desenvolverem a iniciativa, autonomia, responsabilidade e ética, qualidades
indispensáveis no mundo atual; utilizar instrumentos que viabilizem a formulação e a operação criativa de planos de autodesenvolvimento e de
projetos coletivos de melhoria da qualidade de vida, em especial nos ambientes de trabalho; promover a manutenção, no cotidiano profissional,
de um comportamento solidário e do exercício da cidadania; promover a
formação integral do aprendiz desenvolvendo as competências pessoais
básicas, competências profissionais e competências de gestão; e possibilitar o ingresso do aprendiz no mercado de trabalho.16
Ainda referenciando o Documento Norteador do Senac-MT, este apresenta os requisitos de acesso ao programa informando que prioriza os adolescentes na faixa etária de 14 a 18 anos, que estejam cursando no mínimo a
6a série do ensino fundamental; tem que estar matriculado no ensino regular,
não sendo válida a matrícula em Ensino Supletivo, EJA ou qualquer outro
equivalente; não ter participado de nenhum Programa de Aprendizagem do
Senac; e estar empregado, sob regime de contrato de aprendizagem previsto
em Lei, em empresas de comércio, serviços ou turismo.17
16 Programa de Qualificação do Aprendiz. Documento Norteador. Cuiabá: Senac-MT, 2008. p. 6.
17 Idem, p. 9.
74
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
Os cursos de aprendizagem totalizam uma carga horária de 1.140 horas e todos possuem uma carga horária referente à Vivência Organizacional,
correspondente a 740 horas, que é desenvolvida na empresa de origem do
aprendiz. Durante esse período existe um acompanhamento da Orientação
Pedagógica do Senac, bem como de um Supervisor Local da empresa.
Esclarecem que a metodologia utilizada é baseada nos métodos ativos de ensino e aprendizagem e utilizam também outras estratégias que
favoreçam o contato direto do aprendiz com situações de vida ou de trabalho, promovendo a eles um desafio com vista a despertar a autonomia,
o espírito crítico e a capacidade de negociar e tomar decisões.
A PERCEPÇÃO DA APLICAÇÃO DO CONTRATO
DE APRENDIZAGEM E DO PROGRAMA DE APRENDIZAGEM
NA ÓTICA DO APRENDIZ
Mesmo perante a existência legal do contrato de aprendizagem, algumas preocupações são apontadas acerca da sua aplicabilidade no meio
empresarial, contrapondo o seu objetivo essencial e a proteção ao trabalho
do menor. Para auxiliar nas respostas a essas indagações foi aplicado um
questionário aos aprendizes que frequentam o Programa de Qualificação
do Aprendiz do Senac-MT. Por ocasião da pesquisa, a Instituição contava
com 25 turmas em andamento em todo o Estado, totalizando 920 aprendizes matriculados.
Para alcançar o objetivo do trabalho, a pesquisa foi aplicada no dia 17
de novembro de 2008, aos aprendizes que se encontravam sob a responsabilidade do Centro de Educação Profissional de Cuiabá, nas turmas que se iniciaram no dia 10 de março de 2008 e concluíram o curso no dia 10 de março
de 2009. Foram 63 participantes do Curso de Aprendizagem Comercial em
Operações de Supermercados e 51 participantes do Curso de Aprendizagem
Comercial em Serviços de Escritório, totalizando 114 aprendizes.
As respostas obtidas foram sistematizadas de modo a fornecer elementos básicos para se buscar responder às indagações levantadas.
CARACTERIZANDO OS APRENDIZES
Do total de questionários respondidos, 98,25% dos aprendizes estavam na faixa etária entre 14 e 18 anos, e 1,75% estava na de 19 a 24 anos,
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
75
aspecto este preocupante, uma vez que o programa da Instituição é direcionado para a faixa etária entre 14 e 18 anos. Tal fato nos levou a algumas
deduções, dentre elas a de que os aprendizes podem ter se enganado ao
responder o questionário ou de que houve um erro do Senac, ao efetivar a
matrícula dos aprendizes e não perceber a faixa etária deles.
Com relação à escolaridade dos aprendizes, percebeu-se que 105
deles possuíam escolaridade acima da exigida pelo programa. Deste total
57,89% estavam cursando o ensino médio e 31,58% já havia terminado.
Esse nível de escolaridade facilita o desenvolvimento do curso e propicia
um melhor nível de compreensão e entendimento dos conteúdos abordados, bem como promove com mais eficácia a apropriação das competências necessárias para o exercício da profissão. Apenas 6,14% dos aprendizes
encontravam-se ainda cursando o ensino fundamental e 2,63% possuíam o
ensino fundamental completo. Do total, 1,75% não informou a escolaridade.
Ao serem questionados sobre o tempo de trabalho na empresa na
condição de aprendiz, 98,25% responderam que estão entre 6 (seis) meses
e 1 ano, e 1,75% respondeu que está há menos de seis meses. Considerando que essas turmas começaram em março de 2008 e que a pesquisa
foi aplicada em novembro de 2008, ou seja, já haviam decorridos 8 (oito)
meses do programa, desconsideramos essas duas respostas (1,75%), pois
elas não procediam, uma vez que o aprendiz apenas é matriculado no curso mediante o contrato de aprendizagem assinado com a empresa. Neste
caso, todos os contratos eram de março de 2008, então deduzimos que
houve aqui um erro da informação fornecida pelo aprendiz, ou, até mesmo, que existia um desconhecimento deste a respeito dessa informação.
AVALIAÇÃO DO APRENDIZ SOBRE O PROGRAMA
DE APRENDIZAGEM
Ao serem questionados se conheciam os objetivos do Programa de
Aprendizagem, 94,74% dos aprendizes informaram positivamente e 5,26%,
parcialmente. Percebeu-se que a maioria não participava de forma alienada do programa, o que propiciava a eles um posicionamento crítico e
participativo. Ficou perceptível que, embora o corpo docente do programa
trabalhasse com os aprendizes no sentido de esclarecer constantemente os
seus objetivos, ainda possuía um percentual de 5,26% que o conheciam
parcialmente, indicando que esses aspectos deveriam ser reforçados.
76
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
Essa análise veio ao encontro com as opiniões levantadas na pesquisa quando os aprendizes foram questionados sobre os temas abordados no
curso, se eram importantes, parcialmente importantes ou sem importância.
Percebeu-se que 88,60% dos aprendizes responderam que são importantes
e 11,40% afirmaram ser parcialmente importantes, ou seja, sabiam avaliar
o grau de importância dos conteúdos abordados para o desenvolvimento
das competências necessárias para a sua prática na empresa, bem como
para sua vida pessoal, considerando que eles, se encontravam em fase de
crescimento e desenvolvimento físico e moral.
Analisando as respostas dos aprendizes quando questionados sobre se acreditavam que o curso proporcionaria a eles os conhecimentos
necessários para o desempenho da sua função na empresa, do total de
114 aprendizes, 85,96% afirmaram positivamente, 13,16%, parcialmente e
0,88% respondeu que não. Foi perceptível pelas respostas da grande maioria que estava havendo uma sintonia entre a função desempenhada na
empresa e os conhecimentos adquiridos nos cursos, o que propiciava a
eles um desempenho compatível com as necessidades da empresa e com
o seu aprendizado, além de apontar para o cumprimento, por parte das
empresas, dos objetivos da lei.
Outro aspecto positivo e que pode ser constatado foi diagnosticar
que 93,86% dos aprendizes afirmaram que as atividades desenvolvidas no
decorrer do curso propiciavam a eles a oportunidade de desenvolver iniciativa, autonomia, responsabilidade e ética, enquanto 6,14% responderam
que parcialmente.
Isso nos levou a concluir que os conteúdos dos cursos estavam
contribuindo não somente para o desenvolvimento do saber o que fazer, ou seja, da competência técnica, mas, sobretudo, de dar oportunidade a esses jovens de adquirirem outras competências de caráter
sociocomunicativas que proporcionam a eles capacidade de refletir,
compreender e adotar uma conduta profissional mais ética no mundo
do trabalho como referenda a Portaria MTE n. 615, de 13/12/07, no art.
3°, inciso III, § 1°, a saber:
As dimensões teórica e prática da formação do aprendiz deverão ser
pedagogicamente articuladas entre si, sob a forma de itinerários formativos que possibilitem ao aprendiz o desenvolvimento da sua cidadania, a compreensão das características do mundo do trabalho, dos
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
77
fundamentos técnico-científicos e das atividades técnico-tecnológicas
específicas à ocupação.18
AVALIAÇÃO DO APRENDIZ SOBRE O TRABALHO NA EMPRESA
Analisando o período em que os aprendizes estavam na empresa,
28,07% manifestaram que o aprendizado obtido na empresa tinha contribuído decisivamente para o seu desempenho profissional, 71,05% entendiam
que tinha contribuído bastante e 0,88% expôs que contribuía regularmente.
Essas respostas sinalizaram um comprometimento das empresas com o crescimento desses jovens em todas as suas dimensões, considerando que estavam em plena fase de desenvolvimento físico e moral, além de consolidar
que eram parceiras do Senac na efetivação do referido programa.
Quando questionados a propósito do tempo dedicado ao trabalho
na empresa, 81,58% afirmaram ser adequado e 18,42% disseram que deveria ser maior. Interessante a manifestação por uma ampliação da carga
horária na empresa, o que sinalizou uma predisposição dos aprendizes
para um aprendizado mais sistemático e ampliado na empresa.
Esse anseio pode ser observado do mesmo modo nos depoimentos
registrados na questão que apurou as sugestões dos aprendizes sobre o
que alterariam no seu trabalho na empresa, se isso fosse possível. Destacam-se alguns comentários: “alteraria o horário de trabalho”; “preferiria trabalhar mais tempo e mudar de seção para aprender e se qualificar em outras seções”; “que dessem mais oportunidade de conhecer outros setores”;
“aumentar a carga horária, pois 04 horas são insuficientes para se terminar
algo que foi começado no mesmo dia”; e “mais funções para executar”.
Percebeu-se que 18,42% dos aprendizes apresentavam uma pré-disposição e interesse em ampliar seu tempo na empresa. Ao estender a jornada de trabalho, consequentemente se dará um maior aproveitamento do
seu aprendizado. Porém, a grande maioria considerou o tempo dedicado a
empresa adequado, o que não justificou a interpretação de que estes não
possuíam a mesma preocupação com a ampliação de seu aprendizado.
Se considerarmos que esses adolescentes precisavam estar, ao mesmo tempo, trabalhando, estudando na escola formal e vinculados a um
programa de aprendizagem, além das condições socioeconômicas dessa
18 MISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Portaria MTE n. 615, de 13 de dezembro de 2007.
Disponível em: <www.mte.gov.br/legislação/portarias>. Acesso em: 4 abr. 2009.
78
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
clientela, pode-se avaliar como compreensiva as respostas referentes à carga horária, levando-se em consideração o acúmulo de atividades, tarefas e
responsabilidades atribuídas a eles.
Ao serem questionados sobre a aplicação na empresa dos conhecimentos que aprendiam no Senac, 81,58% dos aprendizes responderam
que sempre há a possibilidade de aplicá-los na prática, 1,75% que não há
nenhuma possibilidade de aplicá-los na prática, 15,89% responderam que
há possibilidade de aplicá-los na prática, de vez em quando, e 0,88% não
soube avaliar.
Percebeu-se que a grande maioria, 81,58% dos aprendizes, registrou
que sempre há a possibilidade de aplicar os conhecimentos apreendidos
no curso, em seu local de trabalho, seguidos de 15,89% que responderam
que há a possibilidade de aplicação prática, mesmo que de vez em quando. Essas afirmações sinalizaram que o contrato de aprendizagem tem
proporcionado à grande maioria dos adolescentes o direito à profissionalização e que estes têm a oportunidade de vivenciar uma prática profissional
adequada e condizente com a realidade do mercado de trabalho.
Ao analisar estas respostas e ao estabelecermos um cruzamento dos
dados com a avaliação anterior, feita pelos aprendizes, quando 85,96%
deles disseram que o curso que estão fazendo proporcionaria a eles os
conhecimentos necessários para o desempenho da função na empresa,
percebeu-se que tinham a convicção de que o curso lhes dará as competências necessárias para o trabalho na empresa, e a vivência organizacional
está oportunizando a eles a relação da teoria com a prática, além das condições de aplicar o seu aprendizado nas rotinas do trabalho.
Percebeu-se, também, que ao conseguirem colocar em prática os
conhecimentos adquiridos, a empresa estava valorizando esse conhecimento e considerando importante para o seu desempenho operacional.
Não conseguimos identificar pelas respostas obtidas nenhum tipo de descomedimento por parte da empresa, com relação ao trabalho do aprendiz.
Ao solicitar a opinião dos aprendizes sobre o acompanhamento e
orientações recebidas durante o trabalho na empresa, 90,35% responderam
que sim, possuíam acompanhamento e recebiam orientações. Do total,
8,77% dos aprendizes responderam que possuíam acompanhamento e recebiam orientações parcialmente, e 0,88% não respondeu.
Essa atenção ao aprendiz por parte da empresa veio validar uma das
suas atribuições no programa, que é designar formalmente um empregado
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
79
monitor, responsável pela coordenação dos exercícios práticos e acompanhamento do aprendiz no estabelecimento. Ressalta-se que, durante a
Vivência Organizacional, o Senac, por meio da Orientação Pedagógica, do
mesmo modo, faz esse acompanhamento in loco emitindo relatórios de
acompanhamento e fazendo reuniões constantes com o corpo docente,
com a área de recursos humanos da empresa e com os pais ou responsáveis pelos aprendizes.
Para confirmar a aplicação do contrato de aprendizagem, seus princípios e objetivos, foi questionado mais uma vez aos aprendizes se eles colocavam em prática na empresa o aprendizado obtido no Senac; 78,95% responderam que sim, 20,18% responderam que parcialmente e 0,88 % respondeu
que não. As respostas foram coerentes com as anteriores, pois 81,58% dos
aprendizes já haviam se manifestado de forma positiva sobre os conhecimentos que aprendiam no Senac quanto a sua aplicação na empresa.
Mais uma vez constatamos a opinião dos aprendizes no que se
refere à aplicação do contrato de aprendizagem, tendo a maioria se manifestado de forma favorável.
Com o objetivo de avaliar as perspectivas para o futuro dos aprendizes, estes foram questionados se acreditavam que a participação no Programa e o trabalho na empresa abririam portas para o seu futuro profissional. Do total de aprendizes, 98,25% responderam que sim e apenas 1,75%
respondeu que parcialmente.
Partindo da análise das respostas, tornou-se perceptível que a experiência do contrato de aprendizagem realmente trouxe-lhes benefícios de
caráter prático, proporcionando-lhes expectativas para o futuro profissional e, principalmente, que acreditavam que a experiência vivenciada fará
diferença na sua vida profissional e pessoal. Vislumbrou-se aqui que os
contratos de aprendizagem, aliados ao programa de aprendizagem, cumpriram com seu papel na perspectiva de ser esta uma ação social e cidadã,
que pode ser comprovada pelos depoimentos dos aprendizes.
Referentemente a esse assunto foram registrados diversos comentários sobre as expectativas dos aprendizes quanto ao seu futuro profissional, após o contrato de aprendizagem. Entre eles, destacamos os mais
mencionados: “ser contratado pela empresa”; “arrumar outro emprego”,
“fazer faculdade e seguir a vida”; “que facilite a entrada no mercado de
trabalho”; “procurar um novo emprego”; “terminar os estudos”; “fazer um
estágio”, “trabalhar na área e fazer um concurso”; “continuar na empresa
80
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
e crescer profissionalmente”; “vou ter muita credibilidade e vou ser muito
valorizado por ter trabalhado em uma grande empresa”; “o programa é
uma oportunidade que abre muitas portas”; “as minhas expectativas são
muito boas”; “espero estar pronta para o mercado de trabalho, pois aprendi
muito”; e “continuar estudando e trabalhando para ter um futuro melhor”.
As expectativas de serem contratados foram confirmadas, novamente, quando questionados se a empresa, na visão deles, tinha pretensões
de contratá-los após o término do programa; 56,14% dos aprendizes responderam afirmativamente, 36,84% responderam que parcialmente, 6,14%
responderam negativamente e 0,88% não respondeu.
Analisando os dados coletados, notou-se que a maior expectativa dos
aprendizes era serem efetivados nas empresas em que estavam trabalhando
mediante o contrato de aprendizagem, aspecto este que demonstrou o seu
interesse em dar continuidade ao contrato, em decorrência dos resultados
que este trouxe para a sua vida pessoal e profissional. Ao mesmo tempo, se
tornou claro ao analisar os depoimentos que mesmo que não fossem contratados, a vivência organizacional já adquirida lhes forneceu uma “bagagem”
considerável e suficiente para enfrentarem o mercado de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos que o adolescente é um ser humano em pleno desenvolvimento e que goza de potencialidades a serem desenvolvidas e estimuladas nesse
momento da vida e se lhe for dada uma oportunidade no mercado de trabalho,
poderá contribuir muito com o crescimento de uma empresa, além de incentivar
o desenvolvimento de suas competências comportamentais e técnicas.
Apesar de só o crescimento econômico com justiça social gerar os
empregos e a renda que os(as) brasileiros(as) precisam, a qualificação
contribui para que se obtenham melhores postos de trabalho, com carteira
assinada, com os direitos garantidos ou maior possibilidade de renda.
Principalmente os jovens, que buscam a realização do sonho do PRIMEIRO EMPREGO, precisam e sentem a necessidade de oportunidades de formação profissional que, de alguma forma, possibilitem a sua inserção no mundo
do trabalho, e o contrato de aprendizagem é uma das vias para esse ingresso.
Dessa forma, o papel da empresa moderna e atuante, além de contribuir para criar mais e melhores oportunidades de trabalho, é incentivar
o desenvolvimento sustentável e solidário, e também o combate à discrimi-
Gilsane de Arruda e Silva Tomaz
81
nação, às desigualdades sociais e à pobreza com geração de oportunidades
de trabalho e de renda. A empresa é um empreendimento coletivo, onde
todos têm um papel a executar e um compromisso a assumir.
Assim, a oportunidade oferecida aos adolescentes através da aprendizagem é única, e, em função da relevância do tema e do público-alvo, a
partir dos resultados deste trabalho, renova-se a esperança de ser a legislação
da aprendizagem uma norma que tenha vindo realmente contribuir com a
formação e o desenvolvimento físico, moral, psíquico e social desse público,
bem como proporcionar a estes a inclusão social e a preparação profissional
necessárias ao mercado de trabalho e garantidas a eles na nossa Carta Magna.
Mediante a análise dos resultados da pesquisa, percebeu-se que as
empresas pesquisadas que adotam o Contrato de Aprendizagem não o
fazem unicamente como uma obrigação legal, mas também com o compromisso de contribuir com a melhoria de vida desses jovens e consequentemente com o contexto socioeconômico em que vivem. Em nenhum
momento da pesquisa houve registro pelos aprendizes apontando pelo
descumprimento das obrigações legais por parte delas ou qualquer outro
comentário que pudesse nos levar a deduzir que a empresa estivesse incorrendo em atos ilícitos com relação ao trabalho do aprendiz.
Pode-se concluir com base nessa amostra que a atuação do aprendiz
na empresa tem sido conduzida de acordo com o disposto no programa
de aprendizagem e que as atividades desenvolvidas servem de estímulo
e motivação e ainda geram expectativas com relação ao seu crescimento
pessoal e profissional; bem como propiciam ao adolescente uma oportunidade de relacionamentos diversos e de desenvolver competências técnicas,
sociais e comunicativas no contexto organizacional.
A partir dos depoimentos dos aprendizes, podemos afirmar que os
resultados do contrato de aprendizagem estão sendo benéficos para eles,
pois percebem a importância do programa e da sua atuação prática na
empresa como uma oportunidade para o seu sucesso profissional.
Não ficou perceptível pelas respostas coletadas durante a pesquisa
e nem houve depoimentos que pudessem nos levar a concluir que a utilização do trabalho do aprendiz pelas empresas seja uma forma de burlar a
legislação trabalhista, contratados com a intenção de obter trabalho oriundo de mão-de-obra barata. Assim, essa hipótese pode ser descartada.
Sabemos que ao ser humano foi dada a prerrogativa de construir
a sua história, enquanto ser social, ativo e participativo. Atualmente, a
82
Contrato de Aprendizagem: Sua Aplicação e Benefícios para o Aprendiz
esse ser humano historicamente contextualizado está sendo delegada uma
grande missão: a de reconstruir com seus semelhantes um mundo pautado
em um novo sistema de valores. Se não o fizer, o seu destino e o de toda
a humanidade estarão comprometidos.
Acreditamos que é com este compromisso que devemos continuar
trabalhando com a Aprendizagem, procurando através da parceria formalizada entre aprendiz, empresas e instituições educativas uma grande aliança em busca de um novo mundo, pautado em novos valores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASÍLIA. Decreto n. 5.598, de 1 de dezembro de 2005. Regulamenta a contratação
de aprendizes e dá outras providencias. In:____CLT: Legislação Previdenciária e
Constituição Federal. Obra coletiva da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes.
3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
BRASIL. CLT. In:____CLT: Legislação Previdenciária e Constituição Federal. 3. ed.
Obra coletiva da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. São Paulo: Saraiva, 2008.
GRUNSPUN, Haim. O trabalho das crianças e dos adolescentes. São Paulo: LTr, 2000.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Portaria MTE, n. 615, de 13 de dezembro de
2007. Disponível em: <www.mte.gov.br/legislação/portarias>. Acesso em: 4 abr. 2009.
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Lei n. 11.788, de 25 de setembro de 2008.
Disponível em: <www.mte.gov.br/legislação/portarias>. Acesso em: 16 maio 2009.
OLIVA, José Roberto Dantas. O princípio da proteção integral e o trabalho da criança e do adolescente no Brasil: com as alterações promovidas pela Lei n. 11.180, de
23 de setembro de 2005, que ampliou o limite de idade nos contratos de aprendizagem para 24 anos. São Paulo: LTr, 2006.
PROGRAMA DE QUALIFICAÇÃO DO APRENDIZ. Documento Norteador.
Cuiabá-MT, 2008.
PEREZ, Viviane Matos González. Regulação do trabalho do adolescente: uma abordagem a partir dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2008.
SENAC. DN. Programa de Aprendizagem Comercial: referenciais para a ação Senac. Rio de Janeiro: SENAC/DEP/CTP, 2006.
AMICUS CURIAE1 E O PRINCÍPIO DO
IURA NOVIT CURIAE2:
COMPATIBILIDADE NO SISTEMA JURÍDICO
ROMANO-GERMÂNICO
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa3
INTRODUÇÃO
Amicus curiae é intitulado como auxiliar da justiça. A sua intervenção poderia se dar em qualquer causa ou interesse? Há efetiva aplicação
prática no Brasil? E a sua aplicação causaria conflito com o princípio do
iura novit curiae?
Nos Estados Unidos da América é ampla a aplicação do instituto do
amicus curiae, enquanto que no Brasil e Argentina, países em que o sistema jurídico é embasado no Direito Romano-Germânico, a sua aplicação é
minimizada. De qualquer sorte, indiscutível a importância do instituto, que
visa unicamente auxiliar a corte em sua decisão, enriquecendo o debate
acerca do tema através da exposição de opiniões de especialistas da matéria, bem como enfatizar a repercussão social, econômica e política que a
transcendência desta decisão poderá acarretar.
Contudo, há concreta preocupação acerca do hipotético conflito e
impacto em relação ao princípio iura novit curiae, ou seja, se o auxiliar da
justiça poderia influenciar a respectiva decisão judicial.
BREVE RETROSPECTIVA
O objetivo do amicus curiae é decorrente de um interesse em dar
suporte fático e jurídico à questão posta em juízo, não favorecendo nenhuma das partes, ou melhor, não tendo interesse processual, a não ser os de
questões coletivas e abstratas na sociedade, na economia, na indústria e
1 Instituto jurídico que pode ser traduzido como: amigo da corte.
2 Máxima latina conhecida como o princípio de que o juiz conhece o direito.
3 Professor de Direito Civil da Universidade de Cuiabá – Unic. Advogado militante nas áreas cível
e consumerista. Email: [email protected]
84
Amicus Curiae e o Princípio do Iura Novit Curiae: Compatibilidade no Sistema Jurídico...
principalmente no meio ambiente, ou em quaisquer outras áreas onde essa
discussão possa causar influências.
Como delimitador de sua atuação, o amicus curiae é o instrumento
que serve como uma espécie de auxiliar à justiça, atuando fortemente na
discussão de assuntos relevantes, difíceis de serem decididos, assim, ampliando a sua discussão para que os juízes tomem como melhor entendimento da matéria controvertida, e por seguinte tomem uma decisão mais
firmada em conhecimento e credibilidade.
O instituto do amicus curiae está previsto em leis brasileiras desde a
edição da Lei 6.385, do ano de 1976, em seu artigo 31, no qual trouxe legitimidade para participar como uma forma de auxiliar a justiça a Comissão
de Valores Mobiliários (CVM), que é uma autarquia federal.
Posteriormente a Lei 9.868, de 1999, trouxe em seu artigo 7º, parágrafo 2º, a possibilidade do amicus curiae nos casos que envolvem julgamentos de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e de Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC).
Contudo, também devemos analisar juntamente com este instituto um
princípio que por sua essência já se encontra desvirtuado, que é o princípio
do iura novit curiae, que presume que as partes litigantes não precisariam
indicar os preceitos legais envolvidos, uma vez que o juiz julga o direito.
Mas esse princípio também não é de todo verdadeiro, pois, quando
de sua criação no direito romano, a quantidade de leis era outra, havia um
número reduzido de edições dessas. Porém, nesse universo em que vivenciamos hoje, não há que se falar que o juiz conhece de todo o direito, visto
que a quantidade de leis ordinárias, medidas provisórias, tratados, etc., que
compõe nosso ordenamento jurídico é imensa.
Por evidente, a observação acima poderá valer-se da máxima iura
novit curiae para leis de observação nacional, como é o caso de códigos,
leis importantes ou corriqueiras, pois essas sim são dever implícito do juiz
conhecer o direito.
Em resumo, o amicus curiae, como intitulado auxiliar da justiça,
tem por fundamento principal pluralizar o debate entre as partes e enriquecer a justiça de subsídios legais para contribuir com a tomada de uma
decisão mais clara e com menos chances de erro.
Com isso, garante maior efetividade e legitimidade às decisões proferidas pela justiça. Em outras palavras, essa intervenção vem a calhar aos
julgadores mais algum elemento jurídico de informação e experiências de
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
85
implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais notáveis.
Conforme já demonstrado em análise principiológica, o amicus
curiae é uma ferramenta válida e eficaz de aplicação em causas controversas e/ou inéditas e que apresentem questões de direito humano e/ou
interesse coletivo, sendo estes os motivos autorizadores da manifestação
de um terceiro alheio ao processo.
O amicus curiae visa unicamente auxiliar a corte em sua decisão,
enriquecendo o debate acerca do tema através da exposição de opiniões
de especialistas da matéria, bem como enfatizar a repercussão social, econômica e política que a transcendência desta decisão poderá acarretar.
Assim, o amicus curiae atua em temas de forte interesse público,
tais como violação aos direitos humanos, aborto, etc.
Ressalta-se que o instituto do amicus curiae tem ampla aplicação
nos Estados Unidos da América (EUA) onde os casos submetidos à apreciação da Suprema Corte servem de paradigmas, efetivando novas jurisprudências para uso em casos análogos no futuro, razão esta que demonstra a
importância da profunda análise dos casos inovadores trazidos à Suprema
Corte dos EUA.
Nesse norte, temos que o direito norte-americano baseia-se na common law4, ou seja, num direito baseado principalmente nos costumes e nas
análises de casos análogos, sendo estes julgamentos anteriores utilizados
para a fundamentação de novas decisões. Dessa feita, é cristalina a importância e necessidade da figura do amicus curiae no direito norte-americano, ou seja, num direito baseado principalmente nos costumes e nas análises de casos análogos, sendo estes julgamentos anteriores utilizados para a
fundamentação de novas decisões. Dessa feita, é cristalina a importância e
necessidade da figura do amicus curiae no direito norte-americano.
Contudo, insta salientar que o Brasil tem o sistema jurídico embasado no Direito Romano-Germânico, no qual a figura do amicus curiae é
menos utilizada.
Sendo o iura novit curiae um dos princípios basilares do sistema
jurídico latino, perceberemos nos casos trazidos à baila neste tópico que
este princípio não se choca com o instituto do amicus curiae porquanto
o magistrado jamais se abdicará de sua obrigação de aplicar o direito
pertinente ao caso posto à apreciação judicial e a decisão independerá
4 Sistema jurídico de países anglo-saxões em que o direito costumeiro prevalece sobre o direito
codificado (tradução livre).
86
Amicus Curiae e o Princípio do Iura Novit Curiae: Compatibilidade no Sistema Jurídico...
de coincidir ou não com a argumentação trazida pelo amicus curiae, não
havendo, pois, qualquer afronta àquela máxima latina.
CASO NORTE-AMERICANO
Acerca das participações do amicus curiae nos EUA, podemos citar
o caso Grutter contra Bollinger, que discorria acerca da política de ação
afirmativa na Universidade de Michigan.
Nesse exemplo de fato ocorrido nos EUA temos que o fato do julgamento de uma Ação Afirmativa acerca de cotas na Universidade de Michigan
despertou o interesse de grandes corporações e entidades, tanto que a universidade foi apoiada por mais de 150 amici curiae5, dentre eles figurando
grandes empresas, outras universidades e organizações civis organizadas.
Diante da relevância da questão debatida no caso Grutter contra
Bollinger houve uma mobilização na sociedade norte-americana com natural demonstração do grande interesse coletivo na causa. Via de consequência, seria inconcebível que a manifestação ficasse apenas a cargo dos
causídicos das partes, merecendo, pois, a exposição de motivos de outras
entidades com interesse nessa decisão. Infelizmente a restrita observância
ao princípio da efetividade e democratização da justiça entrou em conflito
com a celeridade processual porquanto mais de 150 amici curiae se manifestaram nestes autos, ocasionando um tumulto processual.
CASOS BRASILEIROS
A exemplo dos EUA, tivemos caso semelhante no estado do Rio de
Janeiro. No período de 2001 a 2004 estabeleceu-se a implantação de ações
afirmativas para a população negra no ensino superior, gerando importantes acontecimentos.
Três leis estaduais destinadas à reserva de vagas em universidades
públicas: Lei 3.524, de 2000, sobre alunos de escola pública; Lei 3.708,
de 2001, sobre cotas para negros, e Lei 4.061, de 2003, sobre cotas para
deficientes. Essas três leis foram aglutinadas na Lei 4.151, de 2003, que
reservava 20%, 20% e 5% das vagas, respectivamente, para as classes
supramencionadas.
5 Plural de amicus curiae.
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
87
Destarte, foi impetrada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Cofenen) contra a Lei 4.151, de 2003. Inevitável a resposta jurídica imediata do
Movimento Negro através do amicus curiae na ADI.
Importante frisar que a política mais contestada, dentro da argumentação da ADI é a reserva de vagas para negros, pois ela traz à tona, de
forma direta, o critério racial como fator de inclusão social.
Nesse aspecto, uma questão poderia ser lançada: qual o peso jurídico que o julgamento desta ADI teria de efetivo em todas as ações em
andamento e aquelas a serem implementadas, onde as cotas raciais estejam
inseridas? Com certeza um reflexo muito grande ocorreria, uma vez que o
julgamento desta ADI daria o norte para demais leis de cotas raciais nos
demais estados da Federação. Dessa forma, o julgamento de uma ADI concernente a uma lei do Estado do Rio de Janeiro implicaria tangentemente
os interesses de todos os negros brasileiros.
Nesse norte, cristalino o interesse coletivo que ensejou a participação do Movimento Negro como amicus curiea em defesa dos interesses de
seu grupo, o que em nenhum momento afrontou o princípio do iura novit
curiae, mas pelo contrário, apenas fortaleceu o amplo debate judicial da
matéria, democratizando o acesso à justiça.
Convergindo neste entendimento, é relevante termos a percepção
de Silva6 quanto ao alcance da ADI, quando afirma que:
[...] foi exatamente isso que fizeram diversas entidades do movimento
negro brasileiro, ao invés de cruzar os braços e, passivamente, aguardar
as decisões a serem proferidas pelos tribunais, quando um deputado
estadual propôs no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
duas Representações por Inconstitucionalidade, bem como quando a
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN
fez o mesmo perante o Supremo Tribunal Federal (uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade – ADI) contra as pioneiras leis que instituíram o
ingresso diferenciado e permanência para negros na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Nesse cenário emergiu a citada figura do amicus
6 SILVA, Luiz Fernando Martins da. As políticas públicas de ação afirmativa e seus mecanismos
para negros no Brasil e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico nacional. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6357>. Acesso em: 30 jan. 2010.
88
Amicus Curiae e o Princípio do Iura Novit Curiae: Compatibilidade no Sistema Jurídico...
curiae (“amigos da Corte”) utilizada por um conjunto de organizações do Movimento Negro, nos anos 2003 e 2004, para defender
os direitos da comunidade negra. Por exemplo, no caso da manifestação (memorial) apresentada perante o Supremo Tribunal Federal, de
alguma forma inspirada nos amicus cuirae brief apresentados no caso da
Universidade de Michigan perante a Suprema Corte dos EUA, enfatizou
uma redefinição dos conceitos jurídicos em face das modificações da
realidade, ou seja, buscou produzir uma peça jurídica que primasse pela
interdisciplinaridade com as Ciências Sociais. (grifo do autor)
Assim, caso deferida a liminar ou julgada procedente a ADI, haveria um efeito cascata que se estenderia às demais iniciativas de ação
afirmativa, posto que qualquer juiz monocrático poderia barrar novas leis
de ações afirmativas fundamentando-se em decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF). Sendo fundamental a questão racial, com um compromisso
de milhares de pessoas, não seria justo com a população negra que esta
não pudesse se manifestar, o que pôde ser efetivado pelo amicus curiae.
Por outro lado, apesar de a figura do amicus curiae estar prevista
desde 1976 no ordenamento jurídico brasileiro tendo em vista a Lei 6.385,
de 1976, vale ressaltar que somente em 1999, com a Lei 9.868, que dispõe
acerca dos procedimentos para a tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o STF é
que o amicus curiae pôde ter seu uso expandido e democratizado no Brasil.
Nessa esteira, inegável o auxílio trazido à corte pelo amicus curiae,
como, por exemplo, no caso exposto abaixo em que se debatia a constitucionalidade do artigo 39 da Lei 10.741, de 20037, acerca da gratuidade
do transporte público urbano e semiurbano para os maiores de 65 anos de
idade. Neste caso atuou como amicus curiae a Associação dos Usuários
de Transportes Coletivos de Âmbito Nacional (AUTCAN) em plena defesa
dos interesses de uma das partes. Ao final, a ADI número 37688 foi julgada
improcedente, cuja decisão final e ementa estão abaixo transcritas, tendo o
trânsito em julgado ocorrido em 5 de novembro de 2007:
7 Também conhecida como estatuto do idoso.
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.768, julgada em
19 de setembro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3768&classe=ADI&codigoClasse=0&origem=AP&recurso=0&tipoJulga
mento=M>. Acesso em: 30 jan. 2010.
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
89
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 39 DA LEI N.
10.741, DE 1º DE OUTUBRO DE 2003 (ESTATUTO DO IDOSO), QUE ASSEGURA GRATUIDADE DOS TRANSPORTES PÚBLICOS URBANOS E SEMI-URBANOS AOS QUE TÊM MAIS DE 65 (SESSENTA E CINCO) ANOS.
DIREITO CONSTITUCIONAL. NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA
PLENA E APLICABILIDADE IMEDIATO. NORMA LEGAL QUE REPETE A
NORMA CONSTITUCIONAL GARANTIDORA DO DIREITO. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 1. O art. 39 da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso)
apenas repete o que dispõe o § 2º do art. 230 da Constituição do Brasil.
A norma constitucional é de eficácia plena e aplicabilidade imediata,
pelo que não há eiva de invalidade jurídica na norma legal que repete os
seus termos e determina que se concretize o quanto constitucionalmente
disposto. 2. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação direta,
nos termos do voto da Relatora, vencido, em parte, o Senhor Ministro
Marco Aurélio, que emprestou interpretação conforme a Carta à primeira parte do artigo 39, excluindo toda interpretação que afaste o ônus
do próprio estado e, no tocante ao § 2º, concluiu pela inconstitucionalidade, nos termos de seu voto. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie.
Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Eros Grau. Falaram, pelo
requerente, o Dr. Marcelo Proença Fernandes, pela amicus curiae,
o Dr. Ruber Marcelo Sardinha e, pela Advocacia-Geral da União, o
Ministro José Antônio Dias Toffoli. Plenário, 19.09.2007. (grifo do autor)
Eis a ADI nº 32779 transitada em julgado em 6 de junho de 2007,
que é outro exemplo em que claramente se evidencia a manifestação do
amicus curiae:
Ação direta de inconstitucionalidade: L. est. 7.416, de 10 de outubro de
2003, do Estado da Paraíba, que dispõe sobre serviço de loterias e jogos
de bingo: inconstitucionalidade formal declarada, por violação do art.
22, XX, da Constituição Federal, que estabelece a competência privativa
da União para dispor sobre sistemas de sorteios.
9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.277, transitada em julgado em 6 de junho de 2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/
processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3277&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&ti
poJulgamento=M>. Acesso em: 30 jan. 2010.
90
Amicus Curiae e o Princípio do Iura Novit Curiae: Compatibilidade no Sistema Jurídico...
Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente a ação direta para
declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.416, de 10 de outubro de
2003, do Estado da Paraíba, nos termos do voto do Relator, vencido o
Senhor Ministro Marco Aurélio. Votou o Presidente. Falou pela amicus
curiae, Associação Brasileira de Loterias Estaduais – ABLE, o Dr.
Roberto Carvalho Fernandes. Licenciada a Senhora Ministra Ellen
Gracie (Presidente). Presidiu o julgamento o Senhor Ministro Gilmar
Mendes (Vice-Presidente). Plenário, 02.04.2007. (grifo do autor).
Nesse último caso temos o debate acerca da constitucionalidade da Lei
estadual 7.416/2003, que instituiu o sistema de loteria na Paraíba. Em seu relatório, o ministro Sepúlveda Pertence explicitamente defere a intervenção da
Associação Brasileira de Loterias Estaduais como amicus curiae nesses autos.
Frisa-se neste ponto um certo desvirtuamento do instituto do amicus curiae no Brasil porquanto este quase sempre tem o interesse econômico vinculado a sua manifestação, não se notando a figura do amicus
curiae como apenas um amigo da corte, mas sim como verdadeiro amigo
de uma das partes.
No último exemplo colacionado temos o caráter parcial do amicus
curiae, o qual não exporia suas teses simplesmente para auxiliar a corte no
julgamento, mas sim com o objetivo de ter esta ADI julgada improcedente
e, consequentemente, validar a Lei estadual n° 7.416, de 2003.
Contudo, apesar de um dos objetivos originários do amicus curiae
ter se desviado em sua aplicação no Brasil, percebemos que sua convivência com o princípio do iura novit curiae continua inabalada, porquanto
aos julgadores permanece a discricionariedade no aceite das argumentações expostas pelas partes e amicus curiae, não se vinculando em momento algum àquilo trazido à baila pelo amigo da corte.
Como forma de ratificar esta desvinculação do juízo com as teses
do amicus curiae, basta analisarmos os dois últimos exemplos brasileiros
retromencionados. Em ambos tivemos a participação do amicus curiae
com o claro objetivo de promover a improcedência da Ação Direta de
Inconstitucionalidade em que atuaram. Contudo, ambas tiveram deslindes
distintos, sendo a primeira julgada improcedente e a segunda procedente,
comprovando-se cabalmente que a manifestação do amicus curiae em
nenhum momento afronta a máxima latina do iura novit curiae, sendo seu
uso perfeitamente aceitável em países cujo sistema jurídico origina-se do
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
91
direito Romano-Germânico, não sendo de uso exclusivo de países regidos
pelo common law.
Diante do exposto, confirmamos através dos exemplos empíricos
carreados que uma sociedade mais justa far-se-á pela ampla democratização do acesso ao Judiciário, sendo uma de suas formas conseguidas pela
participação cidadã nos temas de interesse coletivo, que poderá se efetivar
pela manifestação do amicus curiae.
Assim, não há dúvida de que o amicus curiae é importante instrumento processual utilizado quando há um interesse coletivo em litígio e
que legitima que um terceiro, que não se reveste da qualidade de parte do
processo, possa fazer chegar ao conhecimento do juízo relevantes aspectos
do tema em tela, auxiliando, pois, na resolução da causa, sem, contudo,
vincular a decisão judicial à manifestação perpetrada pelo amicus curiae,
não violando, pois, o princípio do iura novit curae.
CONCLUSÃO
Uma ordem jurídica justa e perfeita somente será alcançada através
de legítimos debates de ideias, sendo este o objetivo primordial do amicus
curiae, pelo qual um terceiro excepcionalmente entra no processo tãosomente para se manifestar acerca de determinado assunto em que tenha
notório conhecimento ou represente uma sociedade civil organizada, tudo
com o fim de expor ideias para auxiliar em uma decisão que refletirá no
interesse de uma coletividade.
Essa intervenção não fere o brocardo do iura novit curiae, o qual
somente indica que o juiz não está vinculado as argumentações jurídicas
dos jurisdicionados, podendo, inclusive, fundamentar sua decisão conforme o direito que creia pertinente ao caso.
Dessa forma, nada indica que o aceite da manifestação do amicus curiae viole a máxima latina supramencionada, uma vez que ambos
são processualmente conciliáveis, tendo em vista que a definitiva decisão
do litígio judicial será posta exclusivamente pelo magistrado, e não pelo
amicus curiae, que simplesmente trará à corte seus argumentos acerca da
situação em julgamento.
Por outro lado, reconhecemos o eventual impacto que a intervenção
de um amicus curiae perpetrado por respeitadas entidades e/ou prestigiosos especialistas pode exercer sobre a decisão judicial. Contudo, essa
92
Amicus Curiae e o Princípio do Iura Novit Curiae: Compatibilidade no Sistema Jurídico...
eventual pressão, ao invés de ir de encontro ao princípio iura novit curiae,
serve para reforçá-lo, posto que ao estar cercado de fortes e quase irrefutáveis argumentos, o magistrado deverá redobrar seus estudos para aprofundar sua fundamentação, exercendo o amicus curiae, também neste ponto
de vista, um caráter benéfico ao deslinde do caso.
Nesse diapasão, mesmo o juiz sabendo o direito, conforme prevê o
princípio do iura novit curiae, ele também será um intérprete da norma e
valores, assim como os causídicos das partes e do amicus curiae, devendo,
pois, analisar todas as consequências de suas decisões em prudente tratamento das questões postas a sua apreciação.
Conclui-se nessa linha de raciocínio que o instituto do amigo da corte convive em perfeita harmonia com o brocardo latino iura novit curiae
enfatizando, inclusive, a economia processual e a democratização do debate judicial, corroborando reflexamente com o devido processo legal e
a consequente elaboração de sentenças razoáveis, justas, expressão da
vontade coletiva e com uma sólida base jurídica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro
enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.768,
julgada em 19 de setembro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/
processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3768&classe=ADI&codigoClasse=0
&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 30 jan. 2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.277,
transitada em julgado em 06 de junho de 2007. Disponível em: <http://www.stf.
gov.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3277&classe=ADI&ori
gem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 30 jan. 2010.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2009.
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
SILVA, Luiz Fernando Martins da. As políticas públicas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico nacional. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6357>.
Acesso em: 30 jan. 2010.
DIREITO PENAL DO INIMIGO
Lídio Modesto da Silva Filho1
INTRODUÇÃO
O conceito de Direito Penal do Inimigo surgiu em um Congresso
realizado em Frankfurt, em 1985, através da explanação de um dos maiores juristas da história, o alemão Günther Jakobs, quando afirmou que
excepcionalmente haveria necessidade de ser separado o Direito Penal em
Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal dos Cidadãos, não havendo, na
época, muita repercussão em suas reflexões.
A segunda fase de Jakobs sobre o tema ocorreu durante a realização
da Conferência do Milênio em Berlim, ocorrida em 1999, entretanto, a reação crítica de juristas foi muito diferente, causando forte atenção.
O tema do Direito Penal do Inimigo é atual e causa debate jurídico-penal em diversos países do mundo, em razão de sua essência normativa radical.
O Brasil, um país pacífico, vive apavorante momento de sua história, pois a população está desacostumada a lidar com situação de terror
orientada por criminosos que se valem de táticas guerrilheiras e arquitetada logística, que traz para a sociedade um trauma e multiplica a sensação
de insegurança.
Várias cidades de diferentes unidades da Federação, mas principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, que contam com milhões de moradores,
são alvos de atentados contra pessoas comuns, bases policiais, agências
bancárias, instituições públicas, estações de metrô, supermercados, vários
ônibus são queimados, centenas de pessoas são mortas e dezenas de rebeliões são deflagradas nos presídios, demonstrando a força que emana dos
segregados controladores das ações criminosas e a ineficiência do Estado,
sobretudo no combate ao crime organizado.
No cenário internacional, em um passado não muito distante, temos
a imagem que o mundo testemunhou com incredulidade no dia 11 de se1 Graduado pela Universidade de Cuiabá – Unic. Juiz de Direito Auxiliar de Entrância Especial
em Cuiabá, MT. Especialista em Direito Penal, Processo Penal, Direito Civil e Processo Civil.
Especializando em Poder Judiciário pela FGV – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. Doutorando em Direito pela Universidade Católica de Santa Fé, Argentina.
94
Direito Penal do Inimigo
tembro de 2001, quando aviões de carreira das empresas America Airlines
e da United Airlines chocaram contra as Torres Gêmeas – o World Trade
Center – e o Pentágono, foi considerada a mais impressionante investida
terrorista da humanidade e serviu para demonstrar a vulnerabilidade do
mais poderoso país do planeta. O desmantelamento de uma utópica segurança do país trouxe a todos um panorama nada fortalecido, do que antes
se pensava inatingível.
Situações como estas incentivaram Günther Jakobs a introduzir no
mundo jurídico sua teoria do Direito Penal do Inimigo.
Percebe-se pelo cenário da atualidade que fatalmente teses como
a de Jakobs, inseridas no contexto jurídico como solução de combate à
criminalidade oriunda do fenômeno da globalização, tendem a propor um
enrijecimento por parte do Estado, ainda que suprimindo garantias fundamentais da pessoa, que necessitaram de séculos para serem incorporadas
ao Direto Penal.
Não diferente do que pensa Jakobs, Jesús-Maria Silva Sánchez, jurista espanhol, anuncia um prognóstico de que em razão da galopante evolução da sociedade em razão da globalização econômica e da integração
supranacional, haverá de existir um Direito Penal da globalização, crescentemente unificado e menos garantista. Da sua teoria das velocidades do
Direito Penal, aponta o Direito Penal do Inimigo como o Direito Penal de
Terceira Velocidade.2
Silva Sánchez conceitua a sociedade atual como a Sociedade da
Insegurança Sentida, ou como a Sociedade do Medo, diante da atividade
da criminalidade organizada, da criminalidade de Estado, da delinquência
patrimonial profissional, da delinquência sexual violenta e reiterada e do
terrorismo, sociedade esta que demonstra dificuldade de adaptação em
relação à sua contínua aceleração, e que certamente não está disposta a
admitir a existência de um Direito Penal mínimo.3
2 SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Expansão do Direito Penal – Aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. Tradução da 2ª edição espanhola. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 75, 78.
3
Ibidem, p. 33 e 145.
Lídio Modesto da Silva Filho
95
TEORIA DAS VELOCIDADES DO DIREITO PENAL,
SEGUNDO SILVA SÁNCHEZ
De acordo com a teoria de Silva Sánchez, no Direito Penal existem
três velocidades. O Direito Penal de Primeira Velocidade diz respeito ao
Direito Penal em que a pena privativa de liberdade é a mais aplicada, sem,
contudo, perder de vista as garantias individuais, ou seja, haveria a “rígida
manutenção dos princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais”.4
O Direito Penal de Segunda Velocidade se traduz em um modelo em
que há uma flexibilização de garantias penais e processuais e concomitantemente ocorra a exclusão da pena de prisão, mediante sua substituição
por penas alternativas, como de “privação de direitos e pecuniárias”.
No Direito Penal de Terceira Velocidade existe um agrupamento
entre os dois modelos anteriores, como no Direito Penal de Primeira Velocidade que se aplica a pena privativa de liberdade, mas agora com flexibilização de garantias penais e processuais, que está prevista no Direito
Penal de Segunda Velocidade. O Direito Penal do Inimigo mostra-se como
uma nova velocidade do Direito Penal, pois se trata de um sistema com
total cerceamento dos direitos e garantias processuais dos indivíduos eleitos inimigos, mas como o próprio Silva Sánchez frisa, diante da perene
situação de emergência da sociedade, vem crescendo e sendo estabelecido
nos países, “ainda que ilegitimamente”.5
O DIREITO PENAL DO INIMIGO DE GÜNTHER JAKOBS
As reflexões de Günther Jakobs revelam um Direito Penal com sistema de normas rígidas que visam combater o indivíduo eleito inimigo da
sociedade. Por outro lado, em recente manifestação o alemão alega não
ter realizado uma proposta de um novo ordenamento jurídico, mas que
demonstrou a existência de um sistema de normas rígidas já existente em
vários países.
4 SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Op. cit., p. 148.
5 Ibidem, p. 151.
96
Direito Penal do Inimigo
CONCEITO E CARATERÍSTICAS
Em consonância com o desenvolvimento de Günther Jakobs, o Estado teria a seu favor a possibilidade de dispensar dois tratamentos aos
delinquentes, seriam dois os Direitos Penais, um para o cidadão que eventualmente vem a cometer delito e outro àquele que por princípio viola a
legitimidade do ordenamento jurídico, sendo este indivíduo considerado
um inimigo.
Seriam, desta maneira, conhecidos dois polos ou tendências de regulação do Direito Penal, um para o cidadão comum, que é reprimido,
ou seja, haja a reação estatal quando este exteriorize sua conduta que
faz frente à paz social, outro, seria o inimigo, que se reprime mediante
interceptação no estado prévio de sua conduta, pois é combatido por sua
periculosidade.
Considerando que a ocorrência de delitos somente se observa em
um Estado de Direito organizado, diz Jakobs que o “delito não aparece
como princípio do fim da comunidade ordenada, mas só como infração
desta, como deslize reparável”. Com efeito, o Estado moderno tem o agente delituoso, não como um inimigo, mas um cidadão, uma pessoa que,
através de sua conduta, viola a norma vigente e, por esta ação deve ser
chamado a equilibrar o dano, na vigência da norma, todavia, como cidadão e não como inimigo.
Este seria o Direito Penal do Cidadão, que continua sendo Direito
Penal de todos, ainda quando se refere ao delinquente, que segue sendo
pessoa, como um cidadão que ataca a vigência da norma. A esta pessoa
é plenamente assegurado o devido processo legal, sendo-lhe asseguradas
todas as garantias penais e processuais existentes para que possa se ajustar
com a sociedade. Para o Estado esta pessoa não é inimigo, mas apenas um
autor de fato normal e que, ainda que cometa um delito, mantém o status
de pessoa, mas não vê no indivíduo um inimigo que precisa ser destruído,
mas o autor de um fato normal, que, mesmo cometendo um ato ilícito,
mantém seu status de pessoa e cidadão dentro do Direito.
O Direito Penal do Inimigo é direito voltado ao indivíduo que intimida o cidadão e é considerado indivíduo perigoso, que não garante
interesse em ajuste com a sociedade e com o ordenamento jurídico. É
para o indivíduo que rechaça, por princípio, a legitimidade da vigência da
norma e persistentemente comete crimes, e por isso persegue a destruição
Lídio Modesto da Silva Filho
97
da ordem social, tornando-se inimigo a ponto de o Estado instaurar contra
ele, uma guerra.
O foco de atenção do Direito Penal do Inimigo é para aqueles indivíduos que, sobretudo, cometem crimes resultantes da evolução da globalização, como o terrorismo, a criminalidade econômica, delitos sexuais,
crimes relacionados a drogas tóxicas, tráfico de pessoas e outras formas
de manifestação da criminalidade organizada, em que o sujeito passivo é
difuso e o bem jurídico violado é da coletividade.
Jakobs afirmou que “um indivíduo que não admite ser obrigado a
entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do
conceito de pessoa”.6
Na teoria de Jakobs, a pessoa é detentora de direitos e obrigações,
ainda que cometa um delito lhe são asseguradas as garantias penais e
processuais existentes até que uma pena seja estabelecida como sanção
ao ilícito praticado, ao passo que, diferentemente, o indivíduo, que não
demonstra segurança de um adequado comportamento, não conta com
direitos processuais e contra ele é instaurado um procedimento com ações
coativas até que a ele seja aplicada uma medida de segurança.
Do cidadão espera-se que ele exteriorize sua conduta criminosa
para que haja a reação do Estado, quando lhe é aplicada uma pena na
medida de sua culpabilidade e se confirme a prevalência da estrutura normativa da sociedade, sendo certo que após o ajuste com a sociedade lhe é
garantido o status de pessoa, de cidadão.
A regra contra o indivíduo selecionado como um inimigo do Estado
se prende não no que fez, em sua culpabilidade, mas no que poderá vir
a fazer, o perigo que representa, não sendo, portanto, aplicado a ele um
Direito Penal retrospectivo, mas sim prospectivo. Ao inimigo não é aplicada
uma pena, mas lhe é estabelecida uma medida de segurança, ainda que
intensa e desproporcional à medida.
O indivíduo torna-se um objeto de coação do Estado, que lhe estabelece um regramento que se adianta ao âmbito de proteção da norma para alcançar até os atos preparatórios para que seja interceptado em
estágio prévio, ou seja, um comportamento ainda não realizado, apenas
planejado, por ser tratado como indivíduo perigoso.
6 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e críticas. Editora
Livraria do Advogado, 2005. p. 36.
98
Direito Penal do Inimigo
A periculosidade do agente da futura dinâmica delitiva é que o caracteriza como um inimigo, de modo que sua punibilidade se baseia no
âmbito interno da preparação, e a pena se dirige à segurança frente a fatos
futuros, revelando a incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o
princípio do Direito Penal do Fato, sendo, pois, um Direito Penal do Autor.7
A identificação do Inimigo da sociedade se dá pela dimensão do
crime por ele cometido, bem como pela participação de organizações criminosas, hediondez das práticas delitivas, que o diferencia do delinquente
comum, de caráter cotidiano, o Inimigo é um indivíduo que há necessidade de reação frente ao perigo que emana de sua conduta reiteradamente
violadora da norma.
Afirma Jakobs que a divisão do Direito Penal do Cidadão e do Inimigo tende a garantir o Estado de Direito, voltado para o cidadão e o
Estado tem o dever de procurar pela mantença da ordem, pois os cidadãos
têm um direito à segurança, ainda que a ação estatal seja mediante intensa
coação ao Inimigo eleito.
Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa,
mas o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.8
Caracteriza-se o Direito Penal do Inimigo por seu objetivo não ser
o de zelar pela garantia atual da vigência da norma, mas neutralizar um
perigo de dano futuro.
FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Remonta de muitos anos o alicerce filosófico do Direito Penal do
Inimigo defendido por Jakobs, pois antigos pensadores e filósofos como
Kant, Hobbes, Rousseau e Fichte já prepararam e trabalharam teses com
figuras de pessoas tratadas como inimigas.9
7 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p. 36 e 80.
8 Ibidem, p. 42.
9 KANT, HOBBES, ROUSSEAU e FICHTE apud JAKOBS. In: JAKOBS; Cancio Meliá. Op. cit., p. 25,
30 e 34.
Lídio Modesto da Silva Filho
99
Jean-Jacques Rosseau, quando publicou sua obra Contrato Social,
afirmou que referido contrato seria uma livre associação de pessoas inteligentes, que por vontade própria decidem criar determinada sociedade, à
qual passam a prestar obediência em respeito à vontade comum, sendo o
Estado a unidade que expressaria a vontade geral. Afirmou que um malfeitor que atacasse o direito social deixaria de ser membro do Estado, pois
estaria em guerra com este e deveria morrer como inimigo, e não como
um cidadão.
Fichte asseverou que quem se desvincula do contrato cidadão, quando deveria ser prudente, perde todos os seus direitos como cidadão e como
ser humano, passando a um estado de ausência completa de direitos.
Hobbes defendeu um contrato de submissão, ainda que sob a forma
de violência, com a finalidade de que os “futuros” cidadãos não perturbem
o Estado em seu processo de auto-organização, todavia, mantém o delinquente na primordial função de cidadão, baseando-se na assertiva de que
o cidadão não pode, por si, eliminar este status. Contudo, quando há um
rompimento com a sociedade civil outra é a opinião, entende que há uma
rebelião, uma alta traição, consubstanciada em uma “recaída no estado de
natureza... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como
súditos, mas como inimigos”.
Kant fez uso do modelo contratual como ideia reguladora na fundamentação e na limitação do poder do Estado, no qual qualquer cidadão
estaria autorizado a obrigar o outro a ingressar em uma constituição cidadã.
Em havendo renitência, descompromisso ou violação à regra assentada no
“estado comunitário-legal”, deve abandoná-lo, e “não deve ser tratado como
pessoa”, mas como anota expressamente Kant, “como um inimigo”.
Para Kant somente com a instituição do estado civil seria possível
a construção de uma sociedade segura com a garantia da inexistência de
provocações recíprocas, pois no estado natural os homens vivem em constantes ameaças, podendo um ser considerado inimigo pelo outro, ou seja,
viveriam em incessante estado de guerra.
IDENTIFICAÇÃO DO INIMIGO
Jakobs afirma que a periculosidade do agente da futura dinâmica
delitiva é que o caracteriza como um inimigo, sua identificação se dá
pela dimensão do crime por ele cometido, bem como pela participação
100 Direito Penal do Inimigo
de organizações criminosas, da hediondez de suas práticas delitivas e por
este motivo há a substanciosa necessidade de reação frente ao perigo que
emana de sua conduta reiteradamente violadora da norma.10
O Inimigo é o indivíduo que rechaça, por princípio, a legitimidade
da vigência da norma e persistentemente comete crimes, e por isso persegue a destruição da ordem social, não podendo, pois, ser tratado como
pessoa.
DIREITO PROCESSUAL PENAL DO INIMIGO
Na obra em que Jakobs expõe o Direito Penal do Inimigo, revela
um esboço acerca do que seria o Direito Processual Penal do Inimigo.11
O sujeito processual pode ser preventivamente preso, pois é um
indivíduo que “com seus instintos e medos põe em perigo a tramitação
ordenada do processo”, pois pode empreender fuga, ocultar provas, ou
seja, é um inimigo.
Pode o Estado interferir no âmbito do imputado mediante investigações secretas, uso de interceptações telefônicas, sem, obviamente, nenhum
tipo de comunicação ao investigado.
O sujeito processual poderia ser conduzido a total incomunicabilidade, inclusive sem contato com seu defensor.
A dinâmica da persecução penal se desenvolve de maneira absolutamente rígida, como em uma guerra.
ANÁLISE DA TESE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
POR MANUEL CANCIO MELIÁ
Meliá preconiza que o Direito Penal do Inimigo de Jackobs se trata
de uma reação desproporcional do sistema contra o indivíduo eleito como
um inimigo, mas que não é eficaz na prevenção da prática de crimes, bem
como não assegura a paz social. Entende ser o Direito Penal do Inimigo
inconstitucional, pois estabelece o absoluto enrijecimento do Direto Penal,
sem observância de princípios fundamentais.
10 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p. 35, 36.
11 Ibidem, p. 39, 41.
Lídio Modesto da Silva Filho
101
O PUNITIVISMO E DIREITO PENAL SIMBÓLICO
A política criminal mundial observada nos últimos anos é fruto da
Expansão do Direito Penal, tese esta defendida por Silva Sánchez, que
constata a existência de um sistema punitivista, que é funcional e garantista, bem como trata de um segundo sistema, com flexibilização de garantias
e regras de imputação, mas que acaba se tornando meramente simbólico.
Com a inevitabilidade da globalização, contatou-se a proliferação da macrocriminalidade e também da microcriminalidade, que acabam servindo
de base para surgimento de novas teorias de combate, como o Direito
Penal do Inimigo.
Segundo Manuel Cancio Meliá, existe uma relação fraternal entre o
Punitivismo e o Direito Penal Simbólico.12 Da união de ambos temos como
produto o Direito Penal do Inimigo.
No Punitivismo o incremento da pena serve como único instrumento de contenção da criminalidade e no Direito Penal Simbólico, a
tipificação penal serve como mecanismo de criação de identidade social.
Este geralmente é criado como medida de urgência em uma coletividade, é
rigoroso, mas na prática acaba se tornando ineficaz, torna-se efetivamente
simbólico, embora sua instituição serve para serenar a sociedade.
CRÍTICAS À TESE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Embora haja grande respeito por parte de juristas de todo o mundo
em relação a Günther Jakobs, a doutrina vem criticando de forma incisiva
a teoria do Direito Penal do Inimigo, ainda que este tenha sido introduzido em alguns ordenamentos jurídicos como a Espanha, Alemanha e a
Colômbia.
A grande maioria dos criminalistas apresenta um posicionamento
crítico em relação às reflexões de Jakobs acerca do Direito Penal do Inimigo, alegando ser uma teoria inconstitucional, por ser inadmissível uma
pessoa ser tratada pelo ordenamento jurídico como um inimigo a ser aniquilado, despido de sua essência de pessoa. Que a legislação baseada em
linhas Jakobsianas não reduziram a criminalidade. Que o Direito Penal do
Inimigo é nocivo, inimaginável e desnecessário.
12 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p. 57, 65 e 72.
102 Direito Penal do Inimigo
Até mesmo Manuel Cancio Meliá, que publicou conjuntamente com
Jakobs a obra Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas, afirmou em seu
prólogo que o “Direito Penal do Inimigo não pode ser Direito”.13 Para que
efetivamente seja Direito, o Direito Penal deve estar vinculado à Constituição de um Estado.
Cancio diz se tratar o Direito Penal do Inimigo de “Direito Penal do
Autor”, posto que combate e pune o agente delituoso simplesmente pelo que
é, pela periculosidade que representa para a sociedade, ou seja, é um Direito
Penal Prospectivo. Revela incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com
o princípio do Direito Penal do Fato, que é Direito Penal da Culpabilidade,
que pune o agente pelo que fez, ou seja, é Direito Penal Retrospectivo.14
O inimigo eleito, ou os inimigos, na verdade violam expressivos
bens jurídicos e podem causar clamor social com suas ações, todavia, a
periculosidade se resume nisso, diferentemente do que estabelece o Direito Penal do Inimigo, cujas consequências dos atos inimigos não têm o
condão de abalar a estrutura existencial do Estado.
Seria o Direito Penal do Inimigo inconstitucional, pois, em um Estado de Direito, há a garantia da dignidade do ser humano, onde ninguém
pode ser tratado como não-pessoa e como um objeto de coação caso seja
identificada como inimigo, pois o procedimento instaurado não segue o
processo democrático, uma vez que suprime o devido processo legal e
elimina garantias penais e processuais, opção que contraria o regramento
que deve prevalecer em um Estado Democrático de Direito.
Para Meliá a garantia de eficiência do padrão estabelecido pelo Direito
Penal do Inimigo não foi atingida, pois não restou comprovada a redução de
prática de delitos e não conseguiu ser efetivo na prevenção da criminalidade.15
Na teoria de Jakobs, a pessoa é detentora de direitos e obrigações,
ainda que cometa um delito lhe devem ser asseguradas todas as garantias
penais e processuais existentes até que uma pena seja estabelecida como
sanção ao ilícito praticado, ao passo que, diferentemente, o indivíduo, que
não demonstra segurança de um adequado comportamento, não conta com
direitos processuais e contra ele é instaurado um procedimento de guerra,
com ações coativas até que a ele seja aplicada uma medida de segurança.
13 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p. 13, 14.
14 Ibidem, p. 36 e 80
15 Ibidem, p. 73, 76.
Lídio Modesto da Silva Filho
103
ATUAL POSIÇÃO DE JAKOBS SOBRE SUA REFLEXÃO
Miguel Polaino-Orts, escritor argentino, narra em sua obra Derecho Penal del Enemigo – Desmitificación de um concepto, com prólogo
de Günther Jakobs, que na verdade as reflexões de Jakobs, segundo este
mesmo afirma, não se trata de uma proposta de um novo ordenamento jurídico, mas que demonstram a existência de um sistema de normas rígidas
na essência de ordenamentos jurídicos de vários países.
Aduz Polaino-Orts que simplesmente Jakobs tratou explicitamente o
tema e que na realidade traços da teoria existem não somente em ditaduras, mas também em várias democracias do mundo.
Polaino-Orts diz que Jakobs apenas afirmou “que existem normas
concretas que se enquadram no fenômeno chamado por Jakobs de Direito
Penal do Inimigo”. Que não é verdadeiro afirmar que não existiam normas
com características do Direito Penal do Inimigo antes de Jakobs, apenas
este afirmou a existência.16
As diversas críticas às reflexões de Jakobs, entende este, que é em
razão da denominação de inimigo em contraposição à de cidadão, o que
faz parecer politicamente incorreto, drástico, beligerante, etc.
Polaino-Orts entende que seriam melhor recepcionadas as reflexões
de Jakobs se as tivesse nominado de “Direito Penal de Periculosidade Criminal, Direito Penal de Prevenção ou Direito Penal de Proteção ou Defesa
diante de Perigos”.17
Citado por Polaino-Orts, Luiz Gracia Martin afirmou que o “termo
“inimigo” induz já desde o princípio a um rechaço emocional de um pretendido Direito Penal do Inimigo”.18
Que ditas normas existem em vários Estados Sociais e Democráticos
de Direito, e que são submetidas a numerosos controles de legalidade,
que garantem todas as normativas de Direitos Humanos tratados em documentos internacionais e respeitam os direitos fundamentais constantes das
respectivas Constituições, de maneira que não podem ser tratadas, como
afirmam os críticos, de normas que suprimem garantias penais e processuais existentes e que não podem ser tratadas como Direito.
16 POLAINO-ORTS, Miguel. Derecho Penal del Enemigo – Desmitificación de um concepto. Córdoba: Editorial Mediterrânea, 2006. p. 168 e 246.
17 Ibidem, p. 169.
18 Ibidem, p. 255.
104 Direito Penal do Inimigo
DIREITO PENAL DO INIMIGO NO MUNDO E NO BRASIL
Em recente manifestação, conforme já delineado, Jakobs afirma que
jamais propôs um novo ordenamento jurídico, mas que simplesmente expôs
uma reflexão sobre normas já existentes em diversos lugares do mundo.­
A rigidez tratada por Jakobs realmente pode ser observarda ao longo
da história, tanto que na obra de Miguel Polaino-Orts, em sua preliminar
nota, cita a obra de ficção Dom Quixote de la Mancha, do escritor espanhol
Miguel de Cervantes, quando em um capítulo descreve um encontro de
Dom Quixote e Sancho Pança com alguns condenados. O último, chamado
Ginés de Pesamonte, que era um delinquente reincidente, diferentemente
dos cinco demais presos, estava sendo tratado de forma diversa, pois grande
corrente prendia seus pés e contornava todo o corpo e era presa com um
grande cadeado. Algemas também prendiam as mãos do preso.
Dom Quixote perguntou a um dos guardas por que o preso era tratado daquela maneira e teve como resposta, que se tratava de um homem
atrevido e que já teria praticado vários delitos, muito mais do que todos
os outros juntos e era muito velhaco. Que ainda que o levassem daquela
maneira, não estavam seguros e temiam que pudesse fugir.
Entende Polaino-Orts que o caso de Ginés de Pesamonte se trata
de um dos primeiros e mais claros exemplos do Direito Penal do Inimigo
e resume o ponto central desse fenômeno criminal, a saber, a erosão da
segurança cognitiva dos cidadãos – pessoas de direito – na vigência da
norma, em razão da conduta de um sujeito – o inimigo.19
Em dias atuais, temos como exemplo o ordenamento jurídico alemão que já possui expressamente textos legais com traços do Direito
Penal do Inimigo, sendo recentemente aprovada a Lei de Segurança do
Tráfego Aéreo, que tem como finalidade a proteção do espaço aéreo
alemão, evitando especialmente sequestros de aviões, atos de sabotagem
e ataques terroristas.
Há no ordenamento espanhol leis com traços expressos do Direito
Penal do Inimigo desde 1995, na aprovação do Código Penal, quando
cinco leis orgânicas foram introduzidas. Houve também traços do Direito
Penal do Inimigo na reforma de 2002. Destaca-se, ainda, a Reforma Penal
de 2003, que trata do combate ao terrorismo, do cumprimento íntegro e
19 POLAINO-ORTS, Miguel. Op. cit., p. 21.
Lídio Modesto da Silva Filho
105
efetivo das penas por parte dos terroristas, da segurança do cidadão e da
violência intrafamiliar.
Especificamente em relação à legislação espanhola que trata da violência intrafamiliar, pode-se verificar nítida semelhança com nossa chamada “Lei
Maria da Penha”, pois aquela prevê o imediato afastamento do infrator do seio
da família, proibição de se comunicar com a vítima e com outras pessoas da
família, de se aproximar deles e de residir no mesmo lugar.
Influência do Direito Penal do Inimigo pode ser verificada no ordenamento jurídico peruano e colombiano. Nesses dois países há doutrinadores que possuem obras que tratam das reflexões do alemão Günther
Jakobs.
Nos Estados Unidos da América há o Direito Penal Imigratório, altamente rígido e repressivo, mas com uma roupagem de legislação voltada
para a garantia da seguridade nacional e da paz social.
No Brasil, como visto, ainda que não seja tratada a norma como
produto de um Direito chamado de Penal do Inimigo, temos visíveis influências das reflexões de Jakobs, quando nosso legislador produziu a nossa
conhecida “Lei do Abate”, que permite a derrubada de aviões de narcotraficantes que invadam o espaço aéreo brasileiro. É como a lei alemã citada
em linhas anteriores.
Temos a novel legislação brasileira que trata do enrijecimento contra
indivíduos que praticam a violência doméstica, a conhecida “Lei Maria da
Penha”. Consoante normativas que seguem o Direito Penal do Inimigo, o
indivíduo que pratica violência doméstica não é um inimigo da sociedade,
mas é um inimigo de toda uma família, e, contra este, o Estado deve ter
uma legislação rígida e efetiva. Assim é na Espanha a específica legislação
contra a violência intrafamiliar.
Verifica-se que existem legislações penais atuais que se enquadram
no fenômeno do Direito Penal do Inimigo, devendo ser destacado que
foram aprovadas em Estados Sociais e Democráticos de Direito, que não
possuem regimes considerados injustos, autoritários ou ditatoriais.
CONCLUSÃO
Conforme acima traçado, embora vários juristas apresentem um posicionamento crítico em relação às reflexões de Jakobs acerca do Direito Penal
do Inimigo, este afirma ser compatível a convivência de uma normatização
106 Direito Penal do Inimigo
mais severa com uma mais branda, sempre com garantias ao indivíduo.
Diz o alemão que vários doutrinadores escreveram sobre o assunto
e vários países democráticos do mundo seguiram instituindo o Direito
Penal do Inimigo, sem que houvesse nenhum questionamento acerca da
legitimidade, ou se a medida era adequada, proporcional e justa.20
Da obra de Günther Jakobs é evidente que se pode verificar falhas com
necessidade de reformulações, mas que é possível resgatar aspectos positivos.
Imperioso é o reconhecimento de que não é possível em nossa época conceber a existência de uma sociedade que comporte uma dualidade
de ordenamentos jurídicos, mas fica claro ser possível termos um ordenamento com normatização rígida para o enfrentamento dos crimes mais
graves e organizados, tanto que vários são os países do mundo que já adotaram linhas do Direito Penal do Inimigo em seus ordenamentos jurídicos.
Com a elevação da criminalidade em todos os países do mundo, os
cidadãos clamam por uma medida mais severa por parte do Estado, com o
objetivo de se eliminar a violência, de modo que uma legislação mais rígida e
severa é medida que se impõe, todavia, em hipótese alguma é compreensível
um Estado tratar o infrator como um inimigo ou um irracional, afinal é um
ser humano e, por mais grave que seja sua conduta, não é crível a atuação
de um Estado com intolerância em relação a uma pessoa, que perde de vista normativas internacionais de direitos humanos, faz uso de procedimentos
sem garantias processuais e penais, pois somente é possível uma legislação
penal que esteja em harmonia com a Constituição do Estado, porque forma diversa seria dilacerar a estrutura de um Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANCIO MELIÁ, Manuel. In: JAKOBS, Günter; CANCIO MELIA, Manuel. Direito
Penal do Inimigo, Noções e Críticas. Organização e tradução: André Luis Callegari e
Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
POLAINO-ORTS, Miguel. Derecho Penal del Enemigo – Desmitificación de um concepto. Córdoba: Editorial Mediterrânea, 2006.
SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Expansão do Direito Penal – Aspectos da política criminal
nas sociedades pós-industriais. Tradução da 2ª edição espanhola. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
20 POLAINO-ORTS, Miguel. Op. cit., p. 255.
A ATUAÇÃO ULTRAPENAL
DO PROMOTOR CRIMINAL
Marcos Henrique Machado1
INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público alcançou amplas prerrogativas, sendo-lhe conferidas funções relevantes
de estatura constitucional, além de considerá-lo uma instituição essencial
para o funcionamento da Justiça.
A atuação do Ministério Público cresceu na área cível com aumento
do rol de interesses tutelados através da ação civil pública, dando-lhe nova
roupagem para propor demandas em defesa de crianças e adolescentes, do
consumidor, do erário público, dos portadores de necessidades especiais,
dos usuários dos serviços públicos fundamentais e do idoso.
As questões ambientais, relativas às várias formas de patrimônio,
como o artístico, o cultural e o histórico, e mais recentemente, a defesa da
probidade administrativa, tomaram corpo na instituição, com excelentes
resultados e reconhecimento social, em que pese alguns excessos individuais que maculam a imagem do Ministério Público.
Por muito tempo tais demandas ainda ocuparão a instituição, sendo
correto afirmar que, na quase totalidade das demandas de interesse social,
o MP ainda é o principal entre os legitimados com condições técnicas, éticas e políticas para o exercício da ação civil pública.
Tal qualidade, contudo, está fadada à diminuição, pela progressiva
democratização da sociedade e do controle social, que induzem a divisão
do zelo daqueles bens jurídicos de caráter difuso ou coletivo, entre os
legitimados.
Nesse sentido, a análise de Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz, aqui em tudo aplicável:
1 Promotor de Justiça em Cuiabá-MT, professor orientador de Direito Público na Faculdade de
Direito da Universidade de Cuiabá, membro da Academia Mato-Grossense de Direito Constitucional, pós-graduado em Direito do Estado, Direito Público, Direitos Difusos, Direito Processual
Civil e Direito Processual Penal.
108 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
A maior parte de nossas funções na área cível é exercida em caráter
circunstancial e, a rigor, transitório (por isso sem exclusividade, em sistema de colegitimação). A circunstância histórica que determina o grande acúmulo de responsabilidades pelo Ministério Público brasileiro, no
âmbito civil, é o do ainda incipiente florescimento de uma sociedade
civil mais organizada, que se defenda eficazmente das violações dos
direitos inerentes à cidadania – [...] Assim, é previsível que o aprimoramento da democracia importe na redução paulatina do hoje invencível
volume de funções do Ministério Público, a ele reservando apenas, ao
final dessa evolução, as questões mais complexas e relevantes.2
Sem se descuidar do muito que fora conquistado com a vigente
Constituição Federal, os membros do Ministério Público precisam aperfeiçoar a atuação na área penal, não apenas para valorizar a origem institucional, mas porque se mostra necessária a reformulação funcional nesta
esfera constitucional de atribuições, a única, para muitos promotores e
procuradores de Justiça, tendente à perenidade.
O presente trabalho visa apresentar cinco vertentes pouco utilizadas
por membros do Ministério Público que atuam na área penal.
AS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO
As Comissões Parlamentares de Inquérito, criadas pelo Senado Federal ou pela Câmara dos Deputados, e, por simetria constitucional, pelas
Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais de Vereadores, potencializaram a importância da atuação extrajudicial do promotor criminal no
combate e controle da ilicitude difusa (CF, art. 58, § 3°).
Com poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais,
além de outros previstos em Regimentos Internos das Casas Legislativas,
o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade e possibilidade
jurídica das CPIs ordenarem, independentemente de prévia determinação
de órgão judiciário, a quebra de sigilos fiscal, bancário, e de registros telefônicos, desde que fundamentadamente (CF, art. 93, IX) e apoiada em
indícios de prática criminosa.
Cumpre-se destacar que, por imperativo constitucional (CF, art. 58, § 3º),
as conclusões sobre os fatos apurados pelas CPIs, quando apontarem respon2 APMP Revista, n. 5, p. 35 e segs.
Marcos Henrique Machado
109
sabilidade civil ou criminal, deverão ser encaminhadas ao Chefe do Ministério
Público, materializadas em resoluções parlamentares, por força de lei, “conforme a atribuição constitucional estabelecida perante órgãos judiciários competentes para julgarem pessoas envolvidas em fatos ilícitos então apurados”,
para que promova, em trinta dias, providências cabíveis ou justifique eventual
omissão, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e penal.
Embora o STF tenha limitado alguns atos constritivos a direitos, seja por
confronto a direitos fundamentais do indivíduo, seja por incidência restritiva
do princípio da reserva de jurisdição, que somente autoriza a decretação de
prisão, busca e apreensão e escuta telefônica pelo Judiciário, prevaleceu o
poder investigatório pleno dos parlamentares em Comissões de Inquérito.
A Lei nº 10.001, de 04 de setembro de 2000, dispõe sobre a prioridade
nos procedimentos a serem adotados pelo Ministério Público e por outros
órgãos a respeito das conclusões das comissões parlamentares de inquérito.
Diz o texto legal:
Art. 1º Os Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal
ou do Congresso Nacional encaminharão o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito respectiva, e a resolução que o aprovar, aos chefes
do Ministério Público da União ou dos Estados, ou ainda às autoridades
administrativas ou judiciais com poder de decisão, conforme o caso,
para a prática de atos de sua competência.
Art. 2º A autoridade a quem for encaminhada a resolução informará ao
remetente, no prazo de trinta dias, as providências adotadas ou a justificativa pela omissão.
Parágrafo único. A autoridade que presidir processo ou procedimento,
administrativo ou judicial, instaurado em decorrência de conclusões de
Comissão Parlamentar de Inquérito, comunicará, semestralmente, a fase
em que se encontra, até a sua conclusão.
Art. 3º O processo ou procedimento referido no art. 2º terá prioridade
sobre qualquer outro, exceto sobre aquele relativo a pedido de habeas
corpus, habeas data e mandado de segurança.
Art. 4º O descumprimento das normas desta Lei sujeita a autoridade a
sanções administrativas, civis e penais.
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.3
3 Publicado no D.O.U. de 05.09.2000.
110 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
A finalidade da lei, de imediato, é instrumentalizar a responsabilização civil ou criminal dos infratores prevista no texto constitucional.
Como certo, note-se que o interesse de agir do Ministério Público,
até então sem prazo rígido para a instauração de lide civil ou penal, além
de desafiar pretensa vinculação ao relatório da Comissão Parlamentar de
Inquérito, passa a se submeter ao controle externo legislativo, em relação
ao exercício da pretensão punitiva a ser formulada.
Embora transpareça que as “prioridades de ação” do Ministério Público possam ser definidas fora da instituição, o Ministério Público assegura um eficiente instrumento de representatividade popular e domínio dos
interesses públicos, “como parte autônoma responsável, por incumbência
legal, de promover a responsabilização civil ou criminal de infratores cujos
atos ilegais ou lesivos foram objetos de CPIs”, dando absoluta preferência
às causas que movem a opinião pública ecoadas nas casas legislativas.
E nesse compasso, é extremamente conveniente o acompanhamento, pelo promotor de Justiça Criminal, dos trabalhos investigatórios, mesmo
porque não chegam aos objetivos traçados sem a imprescindível intervenção ativa e com discernimento acusatório (CF, art.129, I).
Com isso, algumas medidas que já se apresentavam disponíveis estão agora propícias para utilização no ofício do promotor criminal, diante
desse positivo cenário institucional, gerado pelas CPIs, que deve ser aproveitado para romper eventuais dúvidas ou resistências acerca de poderesdeveres ou faculdades de agir, outorgadas ao Ministério Público, em textos
constitucionais e legais.4
Obviamente, sem a devida atenção aos trabalhos de investigação
parlamentar, o Ministério Público poderá ser obrigado a suportar vontades
4 A CPI do Narcotráfico exibiu descobertas seguras sobre a incidência de policiais em núcleos
penais que tipificam o crime de tráfico de substância entorpecente. O único questionamento
jurídico, de oposição, foi vencido com os êxitos obtidos pelas CPIs. Tratava-se de interpretação de reserva corporativista e contrária ao interesse social, por ensejar exclusividade, pautada no Art.144, § 4o, da Constituição Federal, cuja dicção diz caber à Polícia Civil a apuração
de infração penal, exceto a de natureza militar, ressalvada a competência da União. As CPIs
demonstraram, na prática e com mérito, que essa atribuição constitucional não é exclusiva da
Polícia Civil. A CPI do Sistema Financeiro despertou, na atuação do promotor Criminal, a pertinência de medidas preventivas, assim entendidas que ordenem comportamentos positivos
ou negativos que evitem fatos socialmente relevantes. Um dos maiores, senão o maior, fato
social relevante é o crime, ainda que o desejo da lei penal seja o de que a conduta criminosa
não ocorra, tanto verdade que o tipo não representa norma de conduta reprovável, mas de
repressão, como penalidade consequente, caso haja incidência. Tanto a CPI do Narcotráfico
como a do Sistema Financeiro, devassaram, com objetivo de desvendar crimes, a atividade
funcional de agentes públicos, no sentido lato, e de particulares que com o Poder Público
entabulavam interesses de toda ordem.
Marcos Henrique Machado
111
políticas que, “embora sejam intrinsecamente viciadas por interesses partidários e/ou governamentais”, são abstratamente legitimadas por atos normativos – Resoluções – ser substituído por co-legitimados, entre os quais
o cidadão através da ação popular e da ação penal subsidiária da pública,
quando a vítima do ato ilícito é a sociedade.
Não obstante, a partir de trabalhos de investigação sobre fatos de relevante interesse nacional, regional ou local, desenvolvidos em sede legislativa, o promotor Criminal pode instaurar a lide penal com base em provas derivadas de atos públicos, independentemente da atividade policial.
A INVESTIGAÇÃO DIRETA
Esse tema diz respeito a uma das mais importantes atribuições do
Ministério Público, em fase anterior ao processo criminal e, muitas vezes,
de fundamental importância para a persecução criminal.
Longe de ser conceituado como mero procedimento administrativo,
a investigação criminal é um instrumento de autodefesa do Estado, em
favor da ordem pública, não sendo, portanto, de exclusividade de nenhum
órgão, instituição ou poder constituído.
Parte-se de uma reflexão extraída literalmente do inciso VIII do art.
129 da CF: se é concedido o mais, que é requisitar diligências investigatórias, como não se poder fazer o menos, que seria realizar diretamente tais
apurações?
O tema, porém, sofre questionamentos. Há opiniões contrárias, inclusive votos prolatados por ministros do STF.
A investigação independente, em relação a agentes policiais e delegados, bem como integrantes da Polícia Militar, tem sido de fundamental
importância para a persecução criminal, tanto para o êxito da pretensão
punitiva, como para desvendar a própria existência de crime e identificar,
ainda que por indícios, a autoria.
É certo que o promotor Criminal nunca esteve adstrito às investigações da Polícia Judiciária, mas indubitavelmente delas sempre dependeu, haja vista que o sistema processual penal não só prevê o exame do
Inquérito Policial, após concluído, ao Ministério Público, até mesmo por
contingência da titularidade da ação penal, como impôs sua inclusão à denúncia, sempre que servir de base a esta (CPP, art. 12). Noutra ordem, em
regra, também por definição processual penal, as diligências requisitadas
112 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
pelo Ministério Público devem ser cumpridas pela autoridade policial (CPP,
art. 13, II), e toda e qualquer diligência complementar às executadas pela
Polícia Judiciária, se imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, serão
satisfeitas pela autoridade que presidiu o inquérito (CPP, art. 16), salvo
impedimento legal ou motivo de força maior.
Nem por isso, ao promotor Criminal foi negada, pelo Código de Processo Penal, a possibilidade de colher provas diretamente para respaldar a
instauração da ação penal. Com a edição da vigente Constituição Federal,
foi expressamente autorizada a notificação pessoal e requisição (exigência
legal específica) para o êxito de investigação criminal (CF, art. 129, VI e
VIII). Assim, as provas são coligidas pelo promotor Criminal para sua própria formação de convencimento.
De novo se extrai que o promotor Criminal, ao receber notícia de
prática delituosa, terá o poder-dever de colher diretamente os elementos
confirmatórios, notificando pessoas para redução escrita de declarações e
requisitando documentos que constituem provas necessárias para formar
sua opinião acerca do delito, e não apenas a faculdade que, regiamente,
vem disposta com a remessa de peças informativas à Delegacia de Polícia
para instauração de inquérito policial. Isso porque, se o fato chegou inicialmente ao Ministério Público é sinal que há suspeita, desconfiança ou
anormalidade atribuídas à atividade policial.
Poder-se-ia indagar onde autuar e ordenar as diligências, realizadas sem ou separadas de inquérito policial? Apresenta-se, então, o procedimento administrativo (CF, art. 129, VI), instrumento legal adequado
também para atuação criminal, que não se confunde com o inquérito civil
preparatório para a ação civil pública (CF, art. 129, III).
Disciplinada pela LONMP (nº 8.625/93, arts. 26 e 27), ao promotor
Criminal cabe instaurar, instruir e tomar providências preliminares inerentes ao exercício da função ministerial, de cunho investigatório, indispensáveis ao bom desempenho de finalidades institucionais.
Não há dificuldades em se admitir a instauração de procedimentos
administrativos investigatórios no âmbito do MP, desde que haja a necessidade de apuração de determinado fato que, por sua vez, enquadre-se no leque
institucional das atribuições ministeriais, principalmente levando-se em conta a ligação doutrinária amplamente conhecida, segundo a qual o inquérito
policial é peça prescindível à instauração da ação penal, conclusão esta
retirada do próprio Código de Processo Penal, arts. 12, 27, 39, § 5º, e 46, § 1°.
Marcos Henrique Machado
113
O promotor Criminal não pode abdicar de promover diretamente a
investigação de fatos criminosos, mediante instauração de procedimento
administrativo de natureza penal, sempre que necessário, em que pesem
as carências estruturais de auxílio pessoal e, por vezes humanas, impostas
por sobrecarga de trabalho.
Isso por que, não se deve interpretar uma norma constitucional
isoladamente, mas, ao contrário, vê-la sistematicamente, considerando-se
cada preceito como parte integrante de um corpo, ou seja, todas as regras
em conjunto, a fim de que se extraia o correto sentido de cada uma delas.
A propósito, merece transcrição o pensamento de Carlos Maximiliano:
Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada
um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.5
Na doutrina, a matéria está consolidada.
Tourinho Filho firmou o seguinte raciocínio:
O parágrafo único do art. 4o (CPP) deixa entrever que essa competência atribuída à Polícia (investigar crimes) não lhe é exclusiva, nada
impedindo que autoridades administrativas outras possam, também,
dentro em suas respectivas áreas de atividades, proceder a investigações. As atinentes à fauna e flora normalmente ficam a cargo da Polícia
Florestal. Autoridades do setor sanitário podem, em determinados casos, proceder a investigações que têm o mesmo valor e finalidade do
inquérito policial.6
Para o saudoso Hely Lopes Meirelles:
‘Não resta dúvida que, estando o Ministério Público regido por lei orgânica própria, detendo funções privativas constitucionalmente e possuin5 Hermenêutica e Aplicação do Direito. São Paulo: Freitas Bastos, 1961. p. 165.
6 Código de Processo Penal Comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 16.
114 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
do seus agentes independência funcional, além de preencher os demais
requisitos elencados pela doutrina, os seus membros são agentes políticos, e como tal exercem parcela de autoridade’, concluindo: ‘Portanto,
indubitavelmente, exerce o MP parcela de autoridade e, administrativamente, pode proceder às investigações penais diretas na forma da
legislação em vigor’.7
Júlio Fabrinni Mirabete também não pensa diferente:
Os atos de investigação destinados à elucidação dos crimes, entretanto, não são exclusivos da Polícia Judiciária, ressalvando expressamente a lei a atribuição concedida legalmente a outras autoridades
administrativas (art. 4º do CPP). Não ficou estabelecido na Constituição, aliás, a exclusividade de investigação e de funções da Polícia Judiciária em relação às polícias civis estaduais. Tem o MP legitimidade
para proceder investigações e diligências, conforme determinarem as
leis orgânicas estaduais.8
Não obstante as opiniões divergentes, o certo é que tal atribuição se
revela suficientemente clara à luz do texto constitucional e da Lei Orgânica
do MP (LOMP).
Com efeito, diz o art. 129 da Constituição Federal que são funções
do Ministério Público, dentre outras:
II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia (grifo nosso).
VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua
competência, requisitando informações e documentos para instruí-los,
na forma da lei complementar respectiva (grifo nosso).
VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
7 Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 85 e 87.
8 Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1997. p. 77, citando várias hipóteses em
que “outras autoridades administrativas, que não delegados de Polícia, podem e devem proceder a investigações: Lei de Falências, arts. 103 e segs.; as já referidas CPIs; Lei n.º 4.771/65, art.
33, b; art. 43, do Regimento do STF”.
Marcos Henrique Machado
115
IX – exercer outras funções que lhe sejam conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial
e a consultoria jurídica de entidades públicas (grifo nosso).
Como se nota o inciso II, suprarreferido, a Constituição Federal permite que sejam promovidas as medidas necessárias para a garantia dos
direitos assegurados pelo próprio texto constitucional de 1988, que não
estejam sendo respeitados pelos poderes públicos ou pelos prestadores de
serviços de relevância pública.
Assim, quando um agente público, em ato de abuso de poder ou de
autoridade, transgride o direito à liberdade de um cidadão, prendendo-o
ilegalmente, é evidente que cabe ao MP, constitucionalmente, promover
medidas necessárias para a garantia do direito à liberdade, ora desrespeitado pelo agente público.
Já o inciso VI, complementando as atribuições do Ministério Público, refere-se expressamente à expedição de notificações “nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los”. Pergunta-se: para que serviriam tais notificações
ou as informações e os documentos requisitados, se não fosse para instruir
procedimento administrativo investigatório? É óbvio, segundo regra básica
de hermenêutica, que lei alguma traz palavras ou disposições inúteis, muito menos a Constituição Federal.
Comentando esse inciso, afirma Marcellus Polastri Lima:
Trata-se, à saciedade, de coleta direta de elementos de convicção pelo
promotor para elaborar opinio delicti e, se for o caso, oferecimento
de denúncia, uma vez que, como já asseverado, não está o membro
do MP adstrito às investigações da Polícia Judiciária, podendo colher
provas em seu gabinete ou fora deste, para respaldar a instauração da
ação penal.9
Portanto, ao receber o membro do Ministério Público a notícia de
prática delituosa terá o poder-dever de colher os elementos confirmatórios,
bem como declarações e requisitar documentos necessários para formar
sua opinião sobre o fato, em tese delituoso.
9 MP e Persecução Criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997. p. 88.
116 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
Com costumeira razão, afirma Hugo Nigro Mazzilli:
Tanto na área cível como criminal, admitem-se investigações diretas do
órgão titular da ação penal pública do Estado. Para fazê-las, não raro se
valerá de notificações e requisições.10
Essa atribuição não se confunde com a instauração do inquérito civil, preparatório para a ação civil pública, pois desta matéria cuida o inciso
III. O inciso VI, ao se referir aos procedimentos administrativos, não faz
alusão ao inquérito civil, que também é uma espécie do gênero “procedimento administrativo”.
Nesse raciocínio caminha Hugo Nigro Mazzilli, para quem se os
procedimentos administrativos a que se refere o inciso VI fossem apenas
em matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inciso III.
O inquérito civil nada mais é que uma espécie de procedimento administrativo ministerial. Mas o poder de requisitar informações e diligências
não se exaure na esfera cível; atinge também a área destinada a investigações criminais.11
Se não bastassem tais preceitos, há ainda o quarto deles, consubstanciado no inciso IX, a deferir o exercício de funções outras que forem
atribuídas ao MP e que sejam compatíveis com suas finalidades: a referida
LONMP (Lei nº 8.625, de 12.2.93) também prevê a instauração de procedimentos administrativos investigatórios, como veremos a seguir.
Dispõe, no seu art. 26, poder o MP:
I – instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los: (omissis);
II – requisitar informações e documentos a entidades privadas, para
instruir procedimentos ou processo em que oficie;
V – praticar atos administrativos executórios, de caráter preparatório;
(grifamos)
Especificamente em relação ao inciso V, trata-se das providências
preliminares que possam ser necessárias ao subsequente exercício de uma
10 Regime Jurídico do MP. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 239.
11 Idem.
Marcos Henrique Machado
117
função institucional qualquer. Providências administrativas de âmbito interno poderão ser de rigor para o melhor exercício de alguma função institucional, em determinadas circunstâncias. Por força desse inciso, está o
Ministério Público apto a realizar todas as atividades administrativas que
sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais,
por conse­quência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta
não apenas o funcionamento da instituição, mas também a sua atuação em
cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.
Note-se que, a exemplo da norma constitucional, o dispositivo legal
descrito no item I do art. 26, da Lei nº 8.625/93, refere-se não apenas aos
inquéritos civis, mas a quaisquer outros procedimentos administrativos.
Continuando a análise da lei orgânica nacional do MP, seu art. 27
prevê:
Art. 27 – Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de
garantir-lhe o respeito:
I – pelos poderes estaduais e municipais;
II – pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta
ou indireta;
(omissis).
Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo,
cabe ao Ministério Público, entre outras providências:
I – receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias
e dar-lhes as soluções adequadas.
II – zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos (omissis).
Tudo o que foi exposto vale para o Ministério Público da União, visto que a respectiva Lei Complementar Federal nº 75/93 “não deixa margem
de dúvidas quanto a operacionalização das investigações criminais diretas
no âmbito do Ministério Público”, como acrescenta Polastri12, no livro aludido, referindo-se, com certeza (ainda que não o diga expressamente), aos
seus arts. 7o, I, e 8o, VII, in verbis:
12 LIMA, Marcellus Postastri. Op. cit., p. 91.
118 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
Art. 7o – Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais:
I – instaurar inquérito civil e outros procedimentos correlatos.
(omissis).
Art. 8o – Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da
União poderá, nos procedimentos de sua competência:
(omissis).
VII – expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos
e inquéritos que instaurar.
Diante de tudo quanto foi exposto, pode e deve o membro do
MP, quando isto lhe é faticamente possível, investigar diretamente fatos
criminosos. Havendo dificuldades, material ou de pessoal, nada impede,
ao contrário, tudo indica, que seja requisitada a instauração de inquérito
policial ou de termo circunstanciado, na forma da Lei nº 9.099/95.
O ACESSO AO TRIBUNAL DE CONTAS
Sem maiores reflexões, a Constituição Federal assegura, literalmente, aos Tribunais de Contas o controle externo sobre os atos da Administração Pública. Porém, os fundamentos, as formas e os instrumentos desse
controle são distintos do controle exercido pelo Ministério Público.
Pelas funções cometidas, na Constituição Federal, ao Tribunal de
Contas nos arts. 71, IV, IX, XI, § 4º, e 74, § 2º, verifica-se que o órgão dispõe de competências de verdadeiro ombudsman13, pois atua sobre lacunas
omissivas e comissivas, abusos e distorções administrativas.
O controle – ou fiscalização – sobre os atos administrativos absorve
tanto a discricionariedade, o mérito administrativo, quanto a eficiência da
gestão. Embora falte aos Tribunais de Contas, em virtude do processo político de escolha de seus membros, a exata dimensão e a justa medida do
controle de legalidade dos atos administrativos, o sistema de controle externo previsto no texto constitucional garante a primazia do interesse público a
partir de regras e princípios que regem as relações entre Administração Pública e administrados, assim entendidos os servidores, usuários de serviços
públicos, prestadores e fornecedores à atividade administrativa do Estado.
13 GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho apud MARTINS JR., Wallace Paiva. Controle da Administração Pública. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 77.
Marcos Henrique Machado
119
Esse acervo de documentos e informações, à disposição do Ministério Público, é apto para esclarecer, explicar e instruir procedimentos
administrativos, inquéritos civis e ações penais.
Em Mato Grosso, embora esteja sendo construído o relacionamento
institucional entre o Ministério Público e o Ministério Público de Contas, e
também tenha sido celebrado um Termo de Cooperação entre a Procuradoria Geral de Justiça e a Presidência do Tribunal de Contas, o promotor
de Justiça Criminal não despontou, ainda, para a importância do órgão de
Contas para a efetivação de suas atribuições, de modo a formar uma convicção segura sobre ilícitos cometidos no exercício do cargo ou de função
pública, com base documental idônea.
Por decorrência da falta de manejo dessa faculdade, o promotor de
Justiça Criminal não se utiliza da sua possibilidade de solicitar diretamente
ao respectivo órgão de Contas os documentos pertinentes à investigação
deflagrada, capazes de caracterizar, por si, improbidade administrativa ou
infração penal.
Note-se que, por simetria constitucional (CF, art.75), o Tribunal de
Contas representa o acervo documental das gestões públicas estaduais e
municipais, fonte material para formação de juízo sobre eventual ilicitude
ocorrida no exercício da atividade pública, cometida por administradores
da coisa pública.
Através de balancetes e balanços gerais de cada ano, contratos, convênios e procedimentos licitatórios, tanto os atos de improbidade, previstos na Lei nº 8.429/92 (Arts. 9º, 10 e 11), quanto crimes de responsabilidade
(Lei nº 1.079/79; Decreto-Lei nº 201/71, art.1º), como crimes político-administrativos (Decreto-Lei nº 201/71, art. 4º), assim impropriamente denominados, e os comuns contra a Fé Pública e a Administração Pública (CP,
arts. 293 a 326), são passíveis de persecução penal.
Com efeito, qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais o Estado responda, ou que, em nome deste
assuma obrigações de natureza pecuniária, está obrigada a prestar contas
ao Tribunal (CF, art.70, § único).
O controle externo exercido pelo Tribunal de Contas compete: I –
apreciar as contas prestadas anualmente pelo Governador do Estado; II –
julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros,
bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fun-
120 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
dações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público Estadual e
Municipal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra
irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; III – apreciar, para
fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer
título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas
e mantidas pelo Poder Público, executadas as nomeações para cargo de
provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias,
reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem
o fundamento legal do ato concessório; IV – realizar, por iniciativa própria,
ou de Poder Legislativo, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e
auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II; V – fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pelo Estado mediante convênio,
acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, ao Município e entes da
Administração Pública Indireta; VI – aplicar aos responsáveis, em caso de
ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas
em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao
dano causado ao erário; VII – assinar prazo para que o órgão ou entidade
adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; VIII – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Assembleia Legislativa; IX – representar ao
Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados (CF, art. 71).
Com tais elementos de prova, de natureza orçamentária, financeira e
contábil, as peças, os papéis ou os documentos colhidos junto ao Tribunal
de Contas proporcionam segurança jurídica suplementar para promoção
de ações civil ou penal, sempre que o ato administrativo dependa ou exija
abordagem cognitiva.
Anote-se, ainda, que as diligências que visassem qualificar responsáveis, ou esclarecer circunstância de fato ou de direito, seriam complementadas por notificações, requisições ou inspeções (CF, art. 129, III, VI e VIII;
LONMP, art. 26, I, “a”, “b” e “c”), de modo objetivo e eficaz.
É inegável a importância do Tribunal de Contas, quando aferida sua
competência constitucional, bem como seu controle sobre a atividade administrativa, para suplemento e assistência investigatória do Ministério Público.
Sob outra ótica, a integração do Ministério Público junto ao Tribunal
de Contas com as Promotorias de Justiça ressalta maior importância quan-
Marcos Henrique Machado
121
do as decisões do Tribunal resultem em imputação de débito ou multa, vez
que possuem eficácia de título executivo, cabendo ao Ministério Público
promover unicamente a adequada ação de execução, sempre que o objeto
for a reparação de danos ao erário público. Nessa hipótese, o provável
ilícito já estaria materializado em título executivo extrajudicial (CF, art. 71,
§ 3º), prescindindo produção de provas ou maiores indagações.
Não se discute o dever do Tribunal de Contas quando: “em autos
ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais (por interpretação
lógica também o Tribunal de Contas) verificarem a existência de crime de
ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos
necessários para o oferecimento da denúncia” (CPP, art. 40). Por se tratar
de norma cogente aplicável em relação à atividade jurídica, e não apenas
à processual penal, parece razoável afirmar que, também, nos casos de suposta improbidade administrativa, a documentação deva ser encaminhada
ao Ministério Público, mesmo porque as peças sobre fatos que possam ensejar propositura de ação civil deverão ser remetidas ao Ministério Público,
para as providências cabíveis (LACP, art. 7º), por juízes e tribunais.
Independentemente das articulações institucionais, para o efetivo
resultado das funções afetas à promoção da ação penal por infrações lesivas ao patrimônio público ou contrária à administração ou à fé pública,
as faculdades conferidas ao promotor de Justiça Criminal, previstas no art.
8º, § 1º da Lei nº 7.347/85 (LACP), e no art. 47 do CPP, podem e devem ser
dirigidas ao Tribunal de Contas, visto que somente na hipótese de rejeição
de contas é que os autos são remetidos à Procuradoria-Geral de Justiça,
para exame de ilicitude civil ou penal, em conformidade com a competência estabelecida aos órgãos de execução do Ministério Público.
No Estado de Mato Grosso, o promotor Criminal pode se valer da
nova Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso (LC
nº 269, de 22.1.07).
AS AÇÕES CIVIS PÚBLICAS E DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Nas discussões institucionais do Ministério Público, há tempos se
defende que os órgãos especializados pelas questões cíveis, entre as quais
a defesa do consumidor, da cidadania, da criança e do idoso, recebam atribuição concorrente ou conjunta com o promotor de Justiça Criminal para
o exercício da ação penal, sempre que os fatos estiverem relacionados à
122 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
proteção dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
Esse entendimento, discutido em congressos e seminários, representa inegável avanço, uma vez que evita o “retrabalho” pelo promotor de
Justiça Criminal que, em regra, terá que analisar dezenas de volumes de
inquéritos civis já lidos e assimilados pelos titulares das funções ministeriais consideradas “especializadas”.
A ação civil pública, em vista de sua nomeclatura, aparenta retratar
instrumento exclusivo dos órgãos especializados de proteção a interesses
de natureza cível (não penal), tais como consumidor, cidadania, educação,
saúde, entre outros direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
As atividades bancárias e empresariais que servem para encobrir
ilícitos financeiros evidenciam que a ação civil pública deve ser promovida pelo promotor Criminal como instrumento de controle de fato social
contrário à ordem pública ou jurídico-penal, ou mesmo como medida de
apoio à repressão penal.
É irrelevante se o promotor Criminal exerça sua função exclusivamente no Juízo Criminal. As normas administrativas orgânicas não afastam,
nem possuem condão de limitar, as normas processuais que definem legitimidade e interesse de agir do Ministério Público na órbita penal.
Por isso, em sede ação civil pública, o promotor Criminal não só
pode como deve promover ações cominatórias se o objeto mediato for
conexo com o resultado prático das funções penais.
Por outro lado, há quem defenda ser necessário que tal atribuição
seja concorrente ou conjunta, de modo a permitir também ao promotor de
Justiça que atua na área cível agir e reagir sobre o fenômeno social chamado de criminalidade difusa ou macrocriminalidade.
Mostra-se de todo conveniente que o promotor de Justiça Cível se
utilize da ação penal para a mais perfeita tutela do bem jurídico, objeto
de sua atuação. Por identidade de razões, é imperioso que o promotor de
Justiça Criminal também possa manejar a ação civil pública nas hipóteses
em que este instrumento se mostre mais efetivo para o controle do fato
social, ou mesmo em complementação à repressão penal.
Vários exemplos concretizados podem ilustrar como o Ministério Público
Paulista14 enfrentou situações de fato que possuam efeitos cíveis e criminais.
14 Entre esses, destaca-se a ação civil pública proposta perante o Juízo Cível da Comarca de
Santos-SP, pelos promotores Wallace Paiva Martins Júnior e Rubens Lisboa visando à retirada
de “tachões” colocados em vias públicas que estavam provocando inúmeros acidentes e danos
à incolumidade física dos transeuntes e motoristas, ou ação civil pública proposta na Comarca
Marcos Henrique Machado
123
Em Mato Grosso, há bons exemplos de interesses pertinentes à prevenção e repressão à criminalidade difusa deduzidos no Juízo Cível por
promotores de Justiça que atuaram em Vara Única ou em Varas Cíveis no
interior do Estado.15
Inegavelmente, o conteúdo jurídico dessas ações interessava e estava intrínseco na atuação do promotor de Justiça Criminal, mesmo porque
a tutela dos interesses difusos e coletivos está tão intimamente ligada à
questão criminal, como prevê o CPP no art. 68, ao considerar indissociável
o fato criminoso da reparação do dano civil.
Por isso, não é apenas a ação civil que pode e deve ser utilizada
pelo promotor de Justiça Criminal. Também as ações cautelares inominadas e específicas, entre as quais a Notificação Judicial.
A propósito, lembra Hugo Nigro Mazzilli16 que foi justamente
uma Notificação apresentada ao Juízo Cível de Campinas, subscrita pelo
então promotor de Justiça Renato Guimarães Júnior, com vistas a fixar a
responsabilidade penal de terceiros que iriam praticar/tolerar ato danoso ao meio ambiente – pulverização de lavoura com produto impróprio
e nocivo –, a primeira ação de natureza cível de que se teve notícia na
história forense brasileira.
A prevenção ao crime é uma função institucional implícita do Ministério Público, afeta, na prática, ao promotor Criminal.
A todo instante, inúmeras vertentes de prevenção ao crime são vividas diariamente pelo promotor Criminal, nos centros urbanos passíveis de
contenção por via de ação civil pública, a saber:
1.ação para compelir a Administração a colocar semáforos, ou sinalização adequada em pontos do trânsito onde surgem, em quantidade intolerável, lesões corporais e homicídios, até com dolo
eventual;
2.ação para obrigar a Polícia Militar a realizar a segurança externa
das Cadeias Públicas;
3.ação para compelir a administração a apresentar presos requisitados em Juízo nos dias e horários designados;
de Cajamar-SP pela promotora Maria Eliselda Francisco com vistas à proibição da entrada de
novos presos na Cadeia Pública local, que estava superlotada, com a consequente transferência
e redistribuição dos presos para outras unidades do sistema penitenciário estadual.
15 Fonte: CAOP – Centro de Aperfeiçoamento Operacional da Procuradoria-Geral de Justiça de
Mato Grosso.
16 A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 134.
124 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
4.ação para a eficiente prestação dos serviços – de relevância pública – de policiamento ostensivo e persecução penal;
5.ação visando ao fechamento de toda e qualquer instituição/entidade que esteja se dedicando às atividades ilícitas.
A divisão de atribuições entre os promotores Cíveis e Criminais e
a própria racionalização dos serviços prestados pelo Ministério Público,
que fragmentaram os poderes funcionais do promotor de Justiça, que são
regidos pela Constituição Federal e pelas leis orgânicas, não possuem eficácia para afastar a legitimidade ou mesmo impedir que promotor Criminal
tenha uma atuação integral em defesa no interesse social.
A dúvida que se instala com este raciocínio é se os atos processuais­
decorrentes do ajuizamento da ação serão produzidos pelo promotor Criminal que subscreveu a ação ou pelo promotor Cível que atua junto ao
Juízo Cível que processará a lide. A solução pode ter duas vertentes de
instauração da lide: o promotor de Justiça Criminal ajuíza a ação civil,
conjuntamente ou não com o promotor de Justiça que atua na área cível
específica, o qual deverá, em ambas as hipóteses de ajuizamento, dar continuidade aos atos processuais sucessivos.
Em outra quadra, defende-se o pensamento de que o órgão do Ministério Público, embora com vinculação a Juízo Criminal, possa atuar no
polo ativo da ação, como autor, com deveres e ônus processuais, ao passo
que outro órgão também do Ministério Público, com atribuições no foro
cível, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei (LACP, art. 5º, § 1º).
O mesmo raciocínio pode e deve ser empregado diante de atos de
improbidade que forem conhecidos no exercício da atividade do promotor
de Justiça na área criminal, a qual proporciona a ciência de fatos ilícitos,
revelados em inquéritos, peças ou atos processuais, ou mesmo em documentos utilizados para fazer prova de fatos conexos ao objeto da ação
penal. A atuação em si é uma rica fonte de informações de natureza penal.
A análise sugerida se refere aos atos incompatíveis com os princípios da administração pública, ou seja, os atos de improbidade administrativa, nos seus vários tipos (Arts. 9° a 11, da Lei nº 8.429/92).
Estudos analíticos reconhecem que o peculato, a concussão, a corrupção passiva, e a prevaricação, entre outros crimes praticados contra a
Administração Pública, são condutas cuja prova em processo penal é dificílima, senão quase impossível quando há o envolvimento dos servidores res-
Marcos Henrique Machado
125
ponsáveis pelo ato administrativo que proporciona ou gera a conduta ilícita.
Não obstante, é não só factível como perfeitamente possível o controle dos atos administrativos, entre os quais os atos executados pela atividade policial ou pelo sistema prisional, áreas de maior incidência dos
crimes que chegam ao conhecimento do promotor Criminal.
Se o fato criminoso apresentado ao promotor Criminal induzir a existência de ato de improbidade administrativa, o art. 22 da Lei n° 8.429/92
deve ser aplicado, tanto para a coleta de provas como para propositura da
correspondente ação, preferencialmente às ações penais temerárias, diante
da desídia, conivência ou mesmo participação do agente público responsável pela apuração do ilícito.
Note-se que as investigações com base na Lei nº 8.429, de 2 de
junho de 1992, sobre as sanções aplicáveis a agentes públicos nos casos
de enriquecimento ilícito, no exercício do mandato, cargo, emprego ou
função na Administração Pública, acabaram descobrindo, paralelamente,
crimes de peculato, concussão, corrupção ativa e passiva, prevaricação e
até falsidade documental e ideológica.
Na hipótese de o fato ilícito estar satisfatoriamente demonstrado por
documentos, em inquérito policial ou autos de ação penal, ou mesmo em
representação endereçada ao promotor Criminal, a ação civil por ato de
improbidade deve ser por ele proposta.
O promotor Criminal deve conceber que, para obtenção de efetivo
resultado das funções penais, a aplicação da lei em foco lhe permite examinar a mutação patrimonial do agente público (Art. 13), aproveitando
conteúdos de representações e os relatórios de procedimentos instaurados
por autoridade administrativa investida no poder disciplinar (Arts. 14 e 17),
acerca de crimes contra a fé e/ou administração pública, notadamente se
há presunção de improbidade motivada pela desproporcional evolução do
patrimônio ou renda do agente público (Art. 9º, VII, da Lei nº 8.429/92),
e até mesmo no ostensivo padrão de vida absolutamente em desacordo
com os rendimentos aferidos pela classe ou categoria de agentes públicos.
CONCLUSÃO
De nada valerá a independência funcional se o promotor de Justiça
não tiver garantias e prerrogativas para exercer suas funções institucionais, definidas no texto constitucional ou previstas na legislação. Não basta
126 A Atuação Ultrapenal do Promotor Criminal
tornar a função independente, é preciso que os homens que a exercem
também o sejam.
As normas que fixam a competência jurisdicional estabelecem a organização judiciária ou mesmo regulam a divisão interna de funcionamento dos órgãos do Ministério Público não possuem eficácia ab-rogatória para
afastarem ou retirarem do promotor de Justiça Criminal o exercício pleno
de suas incumbências constitucionais e orgânicas.
O promotor de Justiça não pode perder sua referência genealógica
de que é, por vontade soberana do Poder Constituinte, o órgão incumbido
de defender os interesses da sociedade, sociais ou individuais indisponíveis, sem que dependa de autorização, permissão ou concessão de quem
quer que seja.
Na prática funcional, para que não haja duplicidade de atuação
do Ministério Público, ou conflito de atribuições entre promotores de
Justiça que atuam nas áreas cíveis, idealiza-se que essa atividade – com
pano de fundo de evitar retrabalho, otimizar e potencializar a atuação
do Ministério Público – seja coordenada por um Núcleo ou Central, a
partir de um processo de seletividade e valoração permanente sobre os
fatos de relevância social, perfeitamente enumerados mediante critérios
objetivos de prioridade.
Enfim, não temos dúvida de que a utilidade social do promotor de
Justiça Criminal depende de uma atuação ultrapenal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LIMA, Marcellus Postastri. MP e Persecução Criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1997.
MATO GROSSO. Guia de Implantação do Controle Interno da Administração Pública. Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso. Cuiabá, 2007.
_____. A Legislação do Ministério Público. Cuiabá, 1999.
MARTINS JR., Wallace Paiva. Controle da Administração Pública. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961.
MAZZILI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do MP. São Paulo: Saraiva, 1996.
Marcos Henrique Machado
127
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Atlas,
1997.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado.
v. 1. São Paulo: Saraiva, 1996.
JURISPRUDÊNCIA
RTJ 76/41, 64/343, RT 664/336
SÍTIOS CONSULTADOS
www.senado.gov.br
www.camara.gov.br
www.ibccrim.com.br
www.mp.mt.gov.br
PODER INVESTIGATIVO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Mariana Leite Nabarrete1
INTRODUÇÃO
O Estado possui inúmeras funções, e uma delas é a proteção dos direitos fundamentais e a promoção da justiça. Diante disso, com a notícia da
prática de uma infração penal surge para ele, visando ao seu jus puniendi,
o dever de colher elementos comprobatórios do fato e da autoria, através
de uma investigação prévia, e de promover a ação penal competente para,
ao final, chegar a uma decisão de mérito.
A investigação criminal é a fase pré-processual para a colheita de
elementos de convicção sobre a materialidade e da autoria de um fato ilícito. Abrange “todo e qualquer ato pré-processual direta ou indiretamente
voltado para o conhecimento sobre um fato delituoso”.2
Para a produção e colheita de elementos de convicção, o artigo 144
da Constituição da República estabeleceu como uma das funções das polícias a apuração de infrações penais, que se materializa através do inquérito
policial ou do termo circunstanciado.
Ocorre que há uma grande controvérsia no sentido de não ser exclusiva da polícia essa atividade de investigar. Nessa ocasião discute-se
a possibilidade de o Ministério Público realizar, diretamente, diligências
investigatórias.
É bem sabido que essa discussão vem de longe e tem suscitado
debates fervorosos, sobretudo com o advento da Constituição de 1988,
que teve papel fundamental na nova maneira de se enxergar o Ministério Público.
O cerne da questão encontra-se no artigo 129 da Constituição Federal, o qual encarrega o órgão estatal de exercer a ação penal pública,
1 Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá – Unic, pós-graduanda em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – FESMP, MT e
agente Administrativo no Ministério Público do Estado de Mato Grosso.
2 CALABRICH, Bruno. Investigação Criminal pelo Ministério Público: fundamentos e limites constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 54.
130 Poder Investigativo do Ministério Público
privativamente, o que, de acordo com a corrente que defende as pretensões ministeriais, fundamentaria a possibilidade de o Parquet investigar
diretamente.
Outro dispositivo de suma importância nessa discussão é o artigo
144 da Carta Magna, o qual define os órgãos que exercerão a segurança
pública. Ele, segundo a corrente contrária ao poder em questão, fundamenta a tese de exclusividade da atividade investigatória pela polícia.
Nesse contexto surgiram inúmeras discussões acerca da legitimidade
para realização de diligências investigatórias pelo órgão ministerial, com o
intuito de embasar futura ação penal. Esse tema já foi objeto de arraigadas
discussões que culminaram em dois grandes posicionamentos doutrináriojurisprudenciais que serão analisados sucintamente no intuito de se verificar a quem assiste razão.
ARGUMENTOS CONTRÁRIOS
O primeiro argumento, e o mais relevante entre os opositores do poder em questão, está fundamentado na exegese do artigo 144 da Constituição Federal de 1988, o qual define expressamente os órgãos que exercem
a segurança pública, limitando-se às Polícias: Federal, Rodoviária Federal,
Ferroviária Federal, Civis, Militares e aos Corpos de Bombeiros Militares.
Eduardo Mahon, advogado militante no Estado de Mato Grosso, tece
diversos argumentos para desqualificar as pretensões ministeriais, dentre
os quais este, fundamentado no artigo 144 da Constituição:
[...] temos a Constituição da República que, é verdade, não concede
privativamente à polícia o poder de conduzir o inquérito policial, mas
aponta para o exercício de diversas instituições entre as quais não figura o Ministério Público como legitimado constitucional, pela sua total
omissão no art. 144 da CF. Assim, é forçoso reconhecer que a omissão
do termo privativo/a, não impede essa interpretação (sic!), afastando a
hipótese de atribuição concorrente.3
Ademais, a corrente contrária conclui que não há previsão constitucional e nem abrigo em nosso ordenamento à pretensão do Parquet de
3 MAHON, Eduardo. O ministério Público de Robespierre: Uma repreensão jurídico-contitucional
às pretensões investigativas do Ministério Público. Brasília: Envelopel, 2004. p. 84.
Mariana Leite Nabarrete
131
ser titular da investigação criminal, já que no artigo 129 da Constituição
Federal não há expressamente tal possibilidade.
Nesse sentido, continua o eminente processualista:
Da mesma forma, não consta a pretendida atribuição nem no art. 129
da CF, concernente às funções do Ministério Público, nem mesmo da
respectiva Lei Orgânica e ainda na legislação de combate ao crime organizado.4
Outrossim, pela análise e interpretação do artigo 5º, do Código de Processo Penal, afirma a corrente contrária à pretensão ministerial que, a
letra da lei possibilita ao Ministério Público tão-somente requisitar a instauração do inquérito policial, nada explicitando sobre a possibilidade
do próprio Parquet instaurar a investigação.5
Da mesma forma destacam os artigos 18 e 28 do mesmo diploma legal.
Quanto ao primeiro dispositivo, levam em conta a possibilidade de
somente a autoridade policial proceder a novas investigações após o
arquivamento do inquérito policial, demonstrando assim, em tese, sua
titularidade para conduzi-las. Quanto ao artigo 28 concluem que, se o
Ministério Público não pode determinar o arquivamento do Inquérito
Policial e somente o requerer, não tem, da mesma forma, a atribuição
de conduzi-lo.6
Outro argumento levantado é a possibilidade de uma interpretação
teleológica do Código de Processo Penal, que leva em conta a possível
intenção da lei. Nesse sentido, afirmam que, se a lei possibilita ao Ministério Público requisitar a instauração de Inquérito Policial, é porque a sua
intenção é justamente essa, a de não conferir ao Parquet o poder de investigação, e sim, dotá-lo tão-somente de poder requisitório.7
No ataque à Teoria dos Poderes Implícitos, bandeira ostentada pelos
simpatizantes da legitimidade de investigar do Parquet, os repreensores
4 Ibidem, p. 84.
5 Ibidem, p. 87.
6 Idem.
7 Ibidem, p. 100.
132 Poder Investigativo do Ministério Público
desse poder entendem que nem sempre “quem pode o mais, pode o menos”. Para embasar essa questão é citada como exemplo a figura do magistrado, que tem o poder de julgar a ação, mas nem por isso poderia ele
mesmo investigar, pessoal e diretamente.8
Outrossim, questionam sobre a falta de imparcialidade que seria
gerada caso o Ministério Público fosse imiscuído na fase investigativa, visto
que as partes devem guardar equivalência e suas forças devem ser equilibradas, obedecendo ao Princípio da Isonomia Processual.
Ademais, adentram a seara do Direito Administrativo para afirmar
que o servidor público está adstrito a um Princípio da Legalidade mais
severo, podendo apenas agir em consonância com a lei, fazendo somente
o expressamente permitido. Portanto, o fato de inexistir vedação legal não
poderia, de maneira nenhuma, ser usado como argumento para legitimar
esse afã ministerial.9
ARGUMENTOS FAVORÁVEIS
No sentido oposto aos argumentos já expostos, o eminente doutrinador Marcellus Polastri Lima, procurador de Justiça no Estado do Rio
de Janeiro, contra-argumenta a tese de suposta exclusividade que estaria
inserida no artigo 144 da Constituição da República. Afirma que a única
exclusividade, que se pode extrair do artigo em questão, é a conferida à
Polícia Federal em relação ao exercício das atividades de Polícia Judiciária
da União, o que não se limita sobremaneira à apuração dos crimes.10
Também na defesa do aludido poder, e levantando mais um ponto
favorável à atuação do Ministério Público na fase investigativa, Hugo Nigro
Mazzili preceitua:
No inciso VI do art. 129, cuida-se de procedimentos administrativos
de atribuição do Ministério Público – e aqui também se incluem investigações destinadas à coleta direta de elementos de convicção para a opinio
delicti: se os procedimentos administrativos de que cuida esse inciso fossem apenas em matéria civil, teria bastado o inquérito civil de que cuida
o inc. III... Mas o poder de requisitar informações e diligências não se
8 Ibidem, p. 95.
9 Ibidem, p. 101.
10 LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e Persecução Criminal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
1997. p. 54, 55.
Mariana Leite Nabarrete
133
exaure na esfera civil, atingindo também a área destinada a investigações
criminais.11
Nesse sentido, Valter Foleto Santin, membro do Ministério Público
de São Paulo, afirma que o constituinte, através do artigo 129, IX, CF,
­autorizou o Ministério Público a exercer outras funções compatíveis com
sua finalidade, e assim sendo, os procedimentos investigativos criminais
estariam perfeitamente adequados a ela. É o que se extrai do trecho:
Ressalte-se que o constituinte autorizou o Ministério Público à “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis
com sua finalidade” (art. 129, IX, CF). É norma constitucional aberta, que se amolda perfeitamente à finalidade institucional de defesa
dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, CF),
inclusive para maior eficiência do exercício da ação penal (arts. 37,
caput, e 129, I, CF).12
Ademais, ainda que as funções do Ministério Público não estivessem inseridas na Constituição Federal, restaria ainda, no entendimento dos
defensores do poder de investigação, a aplicação da Teoria dos Poderes
Implícitos, a qual preconiza que se um órgão ou entidade detém um poder,
deve dispor de todos os meios disponíveis para a sua realização.
Nesse sentido afirma Guilherme Peña de Moraes, membro do Ministério Público do Rio de Janeiro:
[...] ao conferir ao Ministério Público a função institucional de promover,
privativamente, a ação penal pública, o constituinte conferiu-lhe, de
forma acessória e implícita, a busca de todos os meios – de modo geral
e moralmente admissíveis – para subsidiar a oferta de sua denúncia.13
No mesmo sentido, entende Marcellus Polastri Lima que, se o Ministério Público pode “requisitar a instauração de inquérito e diligências investigatórias”, que é o mais, obviamente poderá o menos, ou seja, dispen11 MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justiça. In: LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 88.
12 SANTIN, Valter Foleto. O Ministério Público na Investigação Criminal. Bauru-SP: Edipro, 2001.
p. 241.
13 MORAES, Guilherme Peña de. Lineamentos da investigação criminal pelo Ministério Público.
Femperj. Disponível em: <http://www.femperj.org.br/artigos/lineamentos_investigacao.php>.
Acesso em: 24 mar. 2007.
134 Poder Investigativo do Ministério Público
sá-lo, colhendo diretamente a prova. Quem pode o mais, pode o menos.14
Outro argumento utilizado por essa corrente fundamenta-se na dispensabilidade do inquérito policial para o oferecimento da denúncia, autorizado pelo Código de Processo Penal, caso o Ministério Público dispuser
de suficientes peças de informação.
Segundo Lima, o artigo 129, VI, da Constituição Federal, corrobora
essa tese, pois instrumentalizaria o agir do Parquet na coleta direta de elementos de convicção para a formação da opinio delicti.15
Valter Foleto Santin vai mais longe e afirma que:
Não há nenhuma razão lógica para restringir a atuação do inquérito
civil ou outro procedimento administrativo à área civil, porque colhidos
elementos que caracterizem crime o Ministério Público está autorizado
a acionar o Judiciário.16
Por derradeiro, levando-se em conta o argumento de obrigatória
imparcialidade do Ministério Público, Lima entende que não há nenhum
conflito em relação à colheita de provas e posterior oferecimento de denúncia por parte do Parquet. Isso porque, até à parte privada é conferida
a prerrogativa de colher elementos probatórios para embasar a queixacrime, e, assim sendo, defender que o Parquet, que é o titular privativo
da ação penal pública, não possa fazê-lo seria, no mínimo, incoerente.17
POSICIONAMENTO DO STJ
Nesse fogo cruzado, o STJ vem fixando sua posição, há tempos,
favoravelmente às pretensões ministeriais. Entende o Tribunal Superior
que a Teoria dos Poderes Implícitos é plenamente aplicável, já que, se
a Constituição Federal atribui ao Ministério Público a promoção da ação
penal pública, faz-se necessária, para o seu efetivo exercício, a colheita de
elementos para formação da opinio delicti. Ademais, rechaça a hipótese da
aludida exclusividade da polícia para investigar as infrações penais. Pode14 LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 89.
15 Ibid., p. 88.
16 SANTIN, Valter Foleto. Op. cit., p. 241, 242.
17 LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit., p. 88.
Mariana Leite Nabarrete
135
se extrair tal entendimento da leitura da ementa do HC 27113/MG, julgado
em 17/06/2003:
PENAL E PROCESSO PENAL – ESTELIONATO – FALSIFICAÇÃO – FORMAÇÃO DE QUADRILHA – CERCEAMENTO DE DEFESA – PODER INVESTIGATIVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – PROVAS ILÍCITAS – INOCORRÊNCIA – PRISÃO PREVENTIVA – NECESSIDADE.
– A questão acerca da possibilidade do Ministério Público desenvolver
atividade investigatória objetivando colher elementos de prova que
subsidiem a instauração de futura ação penal, é tema incontroverso
perante esta eg. Turma. Como se sabe, a Constituição Federal, em seu
art. 129, I, atribui, privativamente, ao Ministério Público promover a
ação penal pública. Essa atividade depende, para o seu efetivo exercício, da colheita de elementos que demonstrem a certeza da existência
do crime e indícios de que o denunciado é o seu autor. Entender-se
que a investigação desses fatos é atribuição exclusiva da polícia judiciária, seria incorrer-se em impropriedade, já que o titular da Ação é o
Órgão Ministerial. Cabe, portanto, a este, o exame da necessidade ou
não de novas colheitas de provas, uma vez que, tratando-se o inquérito de peça meramente informativa, pode o MP entendê-la dispensável
na medida em que detenha informações suficientes para a propositura
da ação penal.
– Ora, se o inquérito é dispensável, e assim o diz expressamente o
art. 39, § 5º, do CPP, e se o Ministério Público pode denunciar com
base apenas nos elementos que tem, nada há que imponha a exclusividade às polícias para investigar os fatos criminosos sujeitos à ação
penal pública.
– A Lei Complementar nº 75/90, em seu art. 8º, inciso IV, diz competir ao Ministério Público, para o exercício das suas atribuições institucionais, “realizar inspeções e diligências investigatórias”. Compete-lhe,
ainda, notificar testemunhas (inciso I), requisitar informações, exames,
perícias e documentos às autoridades da Administração Pública direta
e indireta (inciso II) e requisitar informações e documentos a entidades
privadas (inciso IV).
– De outro lado, no que concerne a prisão preventiva, observo que o
decreto constritivo ressaltou a extrema gravidade do delito, consubstanciado no fato do acusado utilizar-se de uma função pública delega-
136 Poder Investigativo do Ministério Público
da, da fé pública outorgada pelo Estado, para a prática de falsificações
de documentos públicos e estelionatos, ludibriando a população. (fls.
30). Sob outro prisma, salientou a necessidade de se preservar a instrução criminal, porquanto o acusado, único tabelião em exercício naquela localidade, praticava o delito em concurso de outros tabeliães,
sendo certo que, se solto, continuaria na prática delitiva ou comprometeria a colheita de provas. Assim sendo, considero irretocável o r.
decisum hostilizado que deve ser mantido.
– Ordem denegada.18
POSICIONAMENTO DO STF
O Supremo Tribunal Federal já fixou posição contrária à tese de que
o Ministério Público tenha poderes para realizar diretamente investigações
criminais, através da decisão do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº
81.326-DF, do qual se extrai a seguinte ementa:
EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. MINISTÉRIO
PÚBLICO. INQUÉRITO ADMINISTRATIVO. NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL/DF.
PORTARIA. PUBLICIDADE. ATOS DE INVESTIGAÇÃO. INQUIRIÇÃO.
ILEGITIMIDADE. 1. PORTARIA. PUBLICIDADE A Portaria que criou o
Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial no âmbito do Ministério Público do Distrito Federal, no que tange a publicidade, não foi examinada no STJ. Enfrentar a matéria neste
Tribunal ensejaria supressão de instância. Precedentes. 2. INQUIRIÇÃO
DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. ILEGITIMIDADE. A Constituição
Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências
investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). A
norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros
inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar
diligência nesse sentido à autoridade policial. Precedentes. O recorrente
é delegado de polícia e, portanto, autoridade administrativa. Seus atos
estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da Corporação, Chefia de
Polícia, Corregedoria. Recurso conhecido e provido.
18 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ministro Jorge Scartezzini, 5ª Turma, HC 27.113/MG.
Mariana Leite Nabarrete
137
Depreende-se da leitura do respeitável voto que sua fundamentação
está balizada em três aspectos, quais sejam: primeiro, na análise histórica,
tentando demonstrar que desde 1936 (com a tentativa de introdução do
juizado de instrução no sistema processual brasileiro) vem sendo negado
ao Ministério Público o pretendido poder de investigar; segundo, que a
Constituição não teria cometido esse poder ao Parquet; terceiro, na suposta “exclusividade” da Polícia, em face de uma “legitimidade histórica”, para
a realização daquela atividade.
Em acurada crítica aos argumentos apresentados, Lenio Luiz Streck e
Luciano Feldens analisam a decisão que gerou essa controvérsia.
Em um primeiro plano, destacam a fragilidade do método histórico interpretativo, visto que a escolha do método interpretativo varia para
cada intérprete.19 Além do mais, entendem que nem sempre a norma está
contida no texto, a interpretação da norma depende da época e da ordem
jurídica na qual ela foi inserida.
Desse modo, os autores afirmam que como um texto não carrega a
sua norma e a vigência de um dispositivo não implica que este seja válido,
então, seria possível afirmar que, com o advento de uma nova Constituição, os textos anteriores a ela recebem automaticamente novas normas. E
sendo assim, os sentidos atribuídos a textos legais, como, por exemplo, os
citados pelo eminente Ministro relator não se mantêm pela grande ruptura
paradigmática trazida com a Constituição de 1988, pela profunda alteração
do papel do Estado, da Constituição e, fundamentalmente da função a ser
exercida pelo Ministério Público.20
Outrossim, os juristas criticam também o argumento da falta de
previsão constitucional. Explicam que tal afirmativa é uma “armadilha
argumentativa”.21 Isso porque chegaríamos à conclusão de que o rol do artigo 129 da Constituição Federal seria taxativo, o que seria manifestamente
insustentável, segundo os autores.
Pela leitura do inciso IX do mencionado artigo, Streck e Feldens afirmam que o Parquet pode realizar outras funções, além das expressamente
elencadas, desde que ultrapasse três condicionantes, a saber:
19 STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: A legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 63.
20 Ibidem, p. 80.
21 Ibidem, p. 81.
138 Poder Investigativo do Ministério Público
a) proveniência legal da função (limitação formal);
b) compatibilidade da função legalmente conferida com a finalidade
institucional do MP (limitação material afirmativa);
c) vedação de qualquer função que implique a representação judicial ou a
consultoria jurídica de entidades públicas (limitação material negativa).22
De plano, eliminam a última condicionante pois, logicamente, não
existe nenhuma relação das pretensões ministeriais sob apreço com a representação judicial ou consultoria de entidades públicas.
Quanto à proveniência legal, citam a Lei Complementar nº 75/93
(Lei orgânica do Ministério Público da União), que em seu artigo 8º, inciso V, dispõe expressamente que o Parquet pode realizar diligências investigatórias. Dessa forma, concretizar-se-ia legislativamente, “e com carga de eficácia avigorada própria das leis complementares, o desiderato
constitucional”.23
E, por fim, os renomados doutrinadores não titubeiam em declarar
nítida a relação meio-fim existente entre a realização de diligências investigatórias pelo Ministério Público e a promoção da ação penal pública,
ultrapassando-se assim a última condicionante imposta pelo artigo 129, IX,
da Constituição da República.
No entanto, cumpre salientar que, em recente decisão, a Segunda
Turma do STF, em julgamento em 10 de março de 2009, quando da análise
do Habeas Corpus (HC) 91.661, reconheceu por unanimidade a existência
de previsão constitucional da possibilidade de investigação pelo Ministério
Público. Segundo a relatora do HC, ministra Ellen Gracie, é perfeitamente
possível que o órgão ministerial promova a colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e da materialidade
de determinado delito. “Tal conclusão não significa retirar da Polícia Judiciá­
ria as atribuições previstas constitucionalmente, mas apenas harmonizar as
normas constitucionais (artigos 129 e 144) de modo a compatibilizá-las para
permitir não apenas a correta e regular apuração dos fatos supostamente
delituosos, mas também a formação da opinio delicti”24, poderou a ministra.
22 Ibidem, p. 82.
23 Ibidem, p. 84.
24 Supremo Tribunal Federal. Íntegra do voto da ministra Ellen Gracie em HC que discutiu poder
de investigação do Ministério Público. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=104826&caixaBusca=N>. Acesso em: 24 mar. 2009.
Mariana Leite Nabarrete
139
Aduziu ainda que é princípio basilar da hermenêutica constitucional
o dos poderes implícitos, segundo o qual, quando a Constituição Federal
concede os fins, dá os meios. Entendeu que, se a atividade-fim foi conferida ao Parquet, com foro de privatividade, necessário se faz oportunizar a
colheita de prova para tanto.
Ademais, acrescentou que não há óbice legal para a colheita de
provas pelo Ministério Público e posterior oferecimento da denúncia, defendendo o poder investigativo, notadamente no caso em questão, no qual
policiais figuram como acusados.
Dessa forma, de maneira ainda tímida, porém de grande importância, a Suprema Corte demonstrou uma controvérsia e um valioso precedente a favor da corrente que defende as pretensões ministeriais.
CONCLUSÃO
A celeuma estabelecida em torno da legitimidade do Ministério Público para realização de diligências investigatórias certamente está longe
de acabar, o que talvez poderá ocorrer quando a lei, a seu respeito, dispuser expressamente. Até lá será preciso buscar, por meio de debates de
conteúdo jurídico-político, um fundamento legítimo de validade.
Após o estudo dos principais argumentos defendidos por cada uma
das correntes, encontro-me convencida de que o posicionamento mais
acertado é o que defende a legitimidade do Parquet para conduzir as investigações criminais.
O posicionamento que tomo deve-se, sobretudo, à análise jurídica do
nosso objeto de estudo levando-se em conta a interpretação constitucional.
Analisemos cada argumento.
Não se sustenta a tese de exclusividade da polícia para a realização
dessas diligências investigatórias em matéria criminal, extraída da leitura
do artigo 144 da CF, visto que é mais acertado que o que o citado dispositivo faz é, tão-somente, delimitar a competência de cada polícia.
O artigo em questão foi expresso ao conferir exclusividade à Polícia
Federal para as funções de Polícia Judiciária da União, o que não se confunde com a apuração de crimes. Chegamos a essa conclusão pela simples
leitura dos incisos I e IV do seu parágrafo 1º, os quais revelam a nítida
distinção entre essas duas funções, já que o primeiro trata da atribuição específica de apuração de infrações penais e o inciso IV, da função de Polícia
140 Poder Investigativo do Ministério Público
Judiciária da União, esta com caráter de exclusividade.
Ademais, também o parágrafo 4º do dispositivo em análise, que
especifica as funções das polícias civis, não faz referência alguma sobre
uma possível exclusividade na apuração de crimes. Em suma, a única exclusividade expressa no texto legal é a conferida à Polícia Federal no que
concerne às funções de Polícia Judiciária da União.
É sabido que o artigo 4º do Código de Processo Penal – CPP – dispõe sobre o conceito de Polícia Judiciária, restringindo a sua finalidade à
apuração de infrações penais e de sua autoria.
No entanto, devemos analisar a lei levando-se em conta a interpretação constitucional. E, se essa distinção entre Polícia Judiciária e investigação de infrações penais foi efetuada na atual Constituição da República (como depreendemos do art. 144, § 1º, I e IV, CF), o intérprete deve
analisá-la também na aplicação das leis infraconstitucionais.
As funções de Polícia Judiciária abrangem todas as funções necessárias para o cumprimento de decisões judiciais ou para a prática de determinados atos. E é essa função, de Polícia Judiciária da União (auxiliar do
Poder Judiciário) que é exclusiva da Polícia Federal.25
Nesse passo, também se vislumbra a improcedência da afirmação de
inexistência de previsão constitucional, haja vista o inciso IX do artigo 129
da Constituição Federal ser claro ao dispor que o Ministério Público pode
exercer outras funções compatíveis com a sua finalidade.
O dispositivo em comento impõe três condicionantes para que a
atribuição investigatória pelo Parquet seja legítima, a saber: a) proveniência legal da função; b) compatibilidade da função legalmente conferida
com a finalidade institucional do MP; e por fim c) vedação de qualquer
função que implique a representação judicial ou a consultoria jurídica de
entidades públicas.26
Nesse sentido, descarta-se de plano a terceira condicionante, já que
o poder de investigação não é vedado. Quanto à primeira, pode-se concluir, pela análise da Lei Complementar 75/93 e da Lei 8.625/93, que previsão legal expressa há, de forma cristalina e didática em seus artigos 8º, V
e 26, respectivamente.
Por derradeiro, é notável que a investigação criminal se encontra
inserida no escopo de atuação do Parquet concentrado no artigo 127 da
25 CALABRICH, Bruno. Op. cit., p. 97.
26 STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Op. cit., p. 82.
Mariana Leite Nabarrete
141
CF, existindo, portanto, compatibilidade do poder investigativo com a finalidade institucional do órgão ministerial.
Ocorre que a doutrina contrária à condução de investigações pelo
Ministério Público defende que a incompatibilidade prevista no inciso IX
em questão não está na relação entre a investigação e os fins do Parquet,
e sim na inadequação de uma investigação por parte desse órgão, já que
o modelo processual adotado impediria que o mesmo órgão que acusa
possa investigar, isso porque comprometeria a sua imparcialidade.27
O fato é que tal argumento não pode vingar. Não há conflito entre
colhimento de provas e posterior oferecimento de denúncia dentro do
modelo processual que o Brasil adota, precisamente o acusatório. Nesse
modelo há a pluralidade de sujeitos e a separação das funções.
Note-se que esse argumento seria válido se se tratasse de um sistema misto, já que o juiz colheria e produziria as provas, encaminharia ao
sujeito legitimado para a formalização da acusação, que por sua vez enviaria a outra autoridade judiciária, que seria a responsável pelo julgamento.
Nesse sistema, quem investiga não pode acusar nem julgar.28
É preciso entender que o Ministério Público é, sim, parte no processo penal, e por isso não é ele que deve ocupar ponto equidistante entre a
acusação e a defesa, mas sim o juiz, que possui a única função de julgar.
Sendo então parte formal na ação penal, o Ministério Público não tem a
obrigação de agir imparcialmente, mas sim impessoalmente. Convenhamos, como seria possível a formação de uma convicção, sendo obrigatória
uma conduta imparcial?
Em suma, a interpretação constitucional é a base sobre a qual se
assenta o sistema jurídico, servindo de norte às demais leis. Portanto, se
o artigo 129, IX, da Constituição da República é uma norma aberta e permite a interpretação a favor da possibilidade de o Ministério Público realizar diligências investigatórias, haja vista ultrapassar as três condicionantes
obrigatórias, é assim que o tema e as leis infraconstitucionais devem ser
analisados, de acordo com a vontade e interpretação constitucional.
Nesse passo, cai por terra a afirmação de que da leitura do CPP, mais
precisamente dos artigos 5º, 18 e 28, estaria demonstrada a titularidade privativa da autoridade policial, para condução das diligências investigatórias.
Do mesmo modo, é falaciosa a tese que leva em conta a possível intenção
27 CALABRICH, Bruno. Op. cit., p. 120.
28 Ibidem, p. 121.
142 Poder Investigativo do Ministério Público
legal, segundo a qual, da leitura do CPP extrair-se-ia que não é a vontade
da lei que o Parquet realize diligências investigatórias.
Melhor explicando, com o advento da Constituição de 1988, ocorreu
uma ruptura paradigmática em toda ordem jurídica vigente no país, o que
inclui o Código de Processo Penal. O que, logicamente, não quer dizer que
estaria revogado, mas que, simplesmente, deve ser interpretado conforme
a nova norma constitucional. A Constituição deve ser encarada como o
fundamento de validade de todo o ordenamento pátrio, e, nesse sentido,
deve-se atentar para os caminhos traçados por esta e não outra, principalmente, uma que venha contrariá-la.
Nesse sentido, interpretar a função de uma instituição, que foi erigida quase a um quarto poder pela Constituição de 1988, pelas letras de um
código da década de 40, ignorando o evidente distanciamento entre este
Ministério Público, forte, autônomo, independente e atuante, desenhado
pela nova ordem, e aquele fraco, simples apêndice do Poder Executivo,
seria desconhecer a estrutura balizadora do Estado Democrático de Direito
que tem na Constituição sua maior expressão.
Não obstante os argumentos apresentados, temos como destaque
a Teoria dos Poderes Implícitos. Como dito, preconiza essa teoria que,
“quem pode o mais, pode o menos”, e, sendo assim, se o Ministério Público pode requisitar que se instaure inquérito policial, pode, ele mesmo,
dispensá-lo, colhendo, diretamente, as provas que se fizerem necessárias à
formação da opinio delicti para a propositura da ação penal.
Nesse passo beiram ao absurdo alguns exemplos para contrapor
essa teoria no sentido de sinalizar que o juiz também poderia o mais, já
que tem o poder de julgar a ação, mas nem por isso tem o poder de investigar. Mas esse fundamento não pode vingar. Isso porque, em nada tem
a ver esse exemplo com as hipóteses abarcadas pela Teoria dos Poderes
Implícitos. Como sabemos, o processo penal compõe-se de três “partes”
distintas, quais sejam, o julgador, o acusador e a defesa. Sendo assim, é
totalmente descabida a razão discutida, pois não existe aqui “o mais”, simplesmente, o que ocorre é que à cada “parte” incumbe uma função diversa.
Outra tentativa de restrição aos poderes investigativos foi trazer à
discussão o Princípio da Legalidade, aplicado aos funcionários públicos,
segundo o qual estes só devem fazer o expressamente permitido em lei.
Contudo, esse argumento é facilmente combatido com fundamento no artigo 8° da Lei Complementar n° 75/93. Sendo assim, mesmo que se afastasse
Mariana Leite Nabarrete
143
o Poder Implícito conferido pela Lei Maior, o Ministério Público, dentro
dos limites da legalidade, poderia, ainda assim, investigar.
Sendo assim, mister se faz trazer à baila que a investigação criminal
no âmbito do Ministério Público não se materializaria como uma regra
geral, e muito menos excluiria a atividade das polícias. Pelo contrário, essa
investigação seria consubstanciada no sentido da necessidade circunstancial, no qual seu desencadeamento dependeria da inconveniência casuística da instauração de procedimento amplo como o inquérito policial, ou
mesmo quando da omissão da Polícia.
Em arremate, é possível concluir que o Ministério Público não só detém como deve exercer a legitimidade que lhe foi conferida para realização
de diligências investigatórias, cumprindo assim, da melhor maneira possível, o múnus constitucional que lhe foi cometido, atendendo aos anseios
da nova ordem constitucional, visto que é clarividente a compatibilidade
dessa função com o escopo da atuação ministerial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALABRICH, Bruno. Investigação Criminal pelo Ministério Público: fundamentos e
limites constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e Persecução Criminal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 1997.
MAHON, Eduardo. O ministério Público de Robespierre: Uma repreensão jurídicocontitucional às pretensões investigativas do Ministério Público. Brasília: Envelopel,
2004.
MORAES, Guilherme Peña de. Lineamentos da investigação criminal pelo Ministério Público. Femperj. Disponível em: <http://www.femperj.org.br/artigos/lineamentos_investigacao.php>. Acesso em: 24 mar. 2007.
SANTIN, Valter Foleto. O Ministério Público na Investigação Criminal. Bauru-SP:
Edipro, 2001.
STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: A legitimidade da
função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL NA
LEI DE CRIMES HEDIONDOS
Miguel Juarez Romeiro Zaim1
INTRODUÇÃO
A promulgação da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, Lei dos
Crimes Hediondos, teve como fatores determinantes a grande onda de violência que os grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro,
vinham sofrendo.
As últimas décadas foram tempos de intenso combate ao tráfico de drogas, como também ao grande número de sequestros e de homicídios violentos.
E diante desta situação, o legislador achou oportuno editar uma lei
que viesse reprimir de forma mais severa alguns crimes que, do seu ponto
de vista, seriam de grande relevância para o controle social e consequentemente para que a sociedade se sentisse mais segura.
A própria constituinte de 1988, diante dos fatos que estavam ocorrendo no país inteiro, introduziu no art. 5º, do capítulo referente aos direitos e garantias individuais, o inciso XLIII, estabelecendo que:
[…] a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a
prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo
os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.2
Depreende-se que a Constituição Federal de 1988 considerou a tortura, o tráfico de drogas e o terrorismo como uma espécie de crime repugnante e, diante disso, merecedora de uma reação punitiva mais severa.
Entrementes, desde a promulgação da citada lei, criou-se uma verdadeira polêmica em torno da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do § 1° do artigo 2°, da presente lei que dispõe “a pena por crime
1 Advogado em Cuiabá-MT. Especialista em Direito e Processual Penal, Processo Civil e Constitucional, especializando em Direito e Gestão Ambiental, doutorando em Ciências Jurídicas e
Sociais pela UMSA, Universidad Del Museo Social Argentino.
2 BRASIL. Constituição Federal de 1988.
146 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
previsto neste artigo será cumprida em regime integralmente fechado”.
A Suprema Corte do país vinha se posicionando favoravelmente
pela constitucionalidade deste artigo, no entanto com as profundas mudanças na composição de seus ministros, e pela densidade dos argumentos
doutrinários e jurisprudenciais vem ganhando fôlego a ideia da inconstitucionalidade do referido dispositivo, o que se confirmou com o julgamento
do hábeas corpus 82.959/SP no dia 23/02/2006, que teve como relator o
eminente ministro Marco Aurélio.
A decisão do tribunal, por maioria, deferiu o pedido e declarou
incidenter tantum a inconstitucionalidade do § 1° do artigo 2° da Lei n°
8.072, de 25 de julho de 1990, nos termos do voto do relator, vencidos os
ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e
presidente (ministro Nelson Jobin). O tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito
legal em questão não gerará consequências jurídicas às penas já extintas,
pois esta decisão envolve unicamente o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação,
caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão.
Entrementes, em razão da pequena diferença de votos favoráveis à
inconstitucionalidade (6x5) sobre este tema, está longe de uma pacificação
doutrinária a respeito, do qual se extrai dos próprios votos e decisões da
mais alta Corte do país, suscitando ainda alguns conflitos doutrinários.
Nesse sentido, a presente monografia tem por escopo analisar a
evolução dessa matéria, contextualizando o movimento lei e ordem na
política criminal brasileira, a Constituição Federal e seus princípios norteadores, das penas em geral e dos sistemas penitenciários, bem como a Lei
infraconstitucional 8.072/90, tudo isso à luz do entendimento da mais Alta
Corte do país, cotejando assim suas decisões e súmulas sobre o assunto.
A LEI DE CRIMES HEDIONDOS (LEI Nº 8.072, DE 25/07/1990)
ORIGEM DA LEI
Em 1990 foi promulgada a lei ordinária que estabelecia os crimes hediondos, mas com caráter de Lei Complementar, de número 8.072. O então projeto
em questão teve por base a mensagem presidencial 546/89 (projeto 3.754/89).
Miguel Juarez Romeiro Zaim
147
A votação foi marcada por um acordo entre todos os líderes de
partidos políticos, que aprovaram o texto na Câmara dos Deputados e em
seguida no Senado Federal. Na fase de sanção presidencial, houve apenas
o veto parcial (artigos 4º e 11), por parte do então presidente da República
Fernando Collor.
De acordo com Alberto Silva Franco, que analisava a trajetória da lei
durante esse período, perguntava-se:
O que teria conduzido o legislador constituinte a formular o nº XLIII
do art. 5º da CF? O que estaria por detrás do posicionamento adotado?
Nos últimos anos, a criminalidade violenta aumentou do ponto de vista
estatístico: o dano econômico cresceu sobremaneira, atingindo segmentos sociais que até então estavam livres de ataques criminosos; atos de
terrorismo político e mesmo de terrorismo gratuito abalaram diversos
países do mundo; o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins assumiu gigantismo incomum; a tortura passou a ser encarada como uma
postura correta dos órgãos formais de controle social. A partir desse
quadro, os meios de comunicação de massa começaram a atuar por
interesses políticos subalternos, de forma a exagerar a situação real,
formando uma ideia de que seria mister, para desenvolvê-la, uma luta
sem quartel contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos de delinquentes, mesmo que tal luta viesse a significar a
perda das tradicionais garantias do próprio Direito Penal e do Direito
Processual Penal.3
Sob o mesmo ponto, Victor Gonçalves declarava que, no período da
promulgação da nova lei:
[…] estavam ainda causando impacto no povo os sequestros de pessoas
bem situadas na vida econômica, social e política, e a mídia passou a
sacudir a opinião pública, que encontrou ressonância no Poder Legislativo, que aprovou o projeto de lei do Senado, através de votos de
lideranças, sem qualquer discussão, logo sem legitimidade e representabilidade, etc.4
3 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 334.
4 GONÇALVES, Victor. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 100.
148 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
A relação entre a criminalidade violenta, a conjuntura política do
período e a criação da lei foram, também, tomadas por Damásio de Jesus
que declarou que:
[…] a criminalidade, principalmente, a violenta, tinha o seu momento
histórico de intenso crescimento, aproveitando-se de uma legislação
penal excessivamente liberal. Surgiram duas novas damas do direito
criminal brasileiro: justiça morosa e legislação liberal, criando a certeza
da impunidade.5
Simultaneamente, a Carta Magna permitiu ao legislador a iniciativa
de rotular outras infrações penais com a Mara jurídica da hediondez. E em
decorrência deste mandamento constitucional, o legislador aprovou a Lei
n. 8.072 de 25/7/90, que em seu art. 1º classificava como hediondos os
seguintes crimes:
[…] latrocínio (art. 157, § 3º, in fine), extorsão qualificada pela morte
(art. 158, § 2º), extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art.
159, caput e § 1º e § 2º), estupro (art. 213, caput e sua combinação com
o art. 223 caput e parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214
e sua combinação com o art. 223 caput e parágrafo único), epidemia
com resultado morte (art. 267, § 1º), envenenamento de água potável
ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art.
270, combinado com o art. 285), todos do Código Penal Brasileiro, e
de genocídio (arts. 1º e 2º da Lei n. 2.889, de 1º de outubro de 1956),
tentados ou consumados.6
Assim, pela primeira vez, o sistema punitivo brasileiro passou a distinguir entre as inúmeras condutas criminosas, algumas delas com o nomen júris de crime hediondo.
Porém, em virtude de severas críticas de que esta lei apresentava uma grande lacuna ao não elencar o homicídio como crime hediondo, veio, quatro anos mais tarde com a promulgação da Lei n. 8.930, de
06/09/94, a inclusão do homicídio na relação dos crimes hediondos.
5 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 2.
6 LEGISLAÇÃO BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990.
Miguel Juarez Romeiro Zaim
149
A partir desta lei, o homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I a
IV, CP) e o homicídio simples, quando praticados em atividade típica de
grupo de extermínio (art. 121, caput), passaram a ser rotulados de crimes
hediondos.
Há de se ressaltar, portanto, que o legislador de 1994 não se limitou
a apenas inserir o crime de homicídio no texto anterior (art. 1º), também
decidiu dar nova redação ao dispositivo, acrescentando a nova figura penal (homicídio) e excluir a conduta de envenenamento de água potável ou
de substância alimentícia ou medicinal, qualificada pelo resultado morte,
do rol dos crimes hediondos. Assim, desdobrou o texto original em sete
incisos que se referem a crimes previstos no Código Penal e em um parágrafo único, que rotula o genocídio (Lei n. 2.889/56) de crime hediondo.
Já a Lei 9.695, que entrou em vigor em 21 de agosto de 1998, alterou
o artigo 273 do Código Penal, tratando de adulteração de produtos destinados a fins terapêuticos e medicinais.
Desta forma, na atualidade, os crimes classificados como hediondos:
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo
de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V);
II - latrocínio (art. 157, § 3º , in fine);
III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º);
IV - extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput,
e §§ 1º, 2º e 3º);
V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo
único);
VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art.
223, caput e parágrafo único);
VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º);
VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º § 1º-A e
§ 1º-B, com a redação dada pela Lei n. 9.677, de 2 de julho de 1998).
Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio
previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei n. 2.889, de 1º de outubro de 1956,
tentado ou consumado.7
7 Artigo primeiro, incisos I a VII-B e parágrafo único, da Lei n. 8.702/90.
150 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
MOTIVOS PARA EDIÇÃO E PROMULGAÇÃO DA LEI
A Lei n. 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, de 25 de julho de 1990,
teve como fatores determinantes a grande onda de violência que os grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, vinham sofrendo.
As últimas décadas foram tempos de intenso combate ao tráfico de
drogas, como também ao grande número de sequestros e de homicídios
violentos.
E, diante dessa situação, o legislador achou oportuno editar uma lei
que viesse reprimir de forma mais severa alguns crimes que, do seu ponto
de vista, seriam de grande relevância para o controle social e, consequentemente, para que a sociedade se sentisse mais segura.
A própria constituinte de 1988, diante dos fatos que estavam ocorrendo no país inteiro, introduziu no art. 5º, do capítulo referente aos direitos e garantias individuais, o inciso XLIII, estabelecendo que:
[...] a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a
prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo
os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.8
Depreende-se que a Constituição Federal de 1988 considerou a tortura, o tráfico de drogas e o terrorismo como uma espécie de crime repugnante e, diante disso, merecedora de uma reação punitiva mais severa.
DEFINIÇÕES
E o que vem a ser crime hediondo? O termo hediondo tem para nós
o significado de um ato profundamente repugnante, imundo, horrendo,
sórdido, ou seja, um ato indescritivelmente nojento, segundo os padrões
da moral vigente.
Pode-se dizer que hediondo é o crime que causa profunda e consensual repugnância por ofender, de forma acentuadamente grave, valores
morais de indiscutível legitimidade, como o sentimento comum de piedade,
fraternidade, solidariedade e de respeito à dignidade da pessoa humana.
8 LEGISLAÇÃO BRASIL. Constituição Federal de 1988. Art. 5º, inciso XLIII.
Miguel Juarez Romeiro Zaim
151
Para Antonio Lopes Monteiro, um crime seria hediondo:
[...] toda vez que uma conduta delituosa estivesse revestida de excepcional gravidade, seja na execução, quando o agente revela total desprezo pela vítima, insensível ao sofrimento físico ou moral a que a
submete, seja quanto à natureza do bem jurídico ofendido, seja ainda
especial condições das vítimas.9
O legislador, ao classificar certas condutas como crimes hediondos,
partiu do pressuposto de que, seja quem for o seu autor, com sua personalidade e sua conduta social antecedente; sejam quais forem os motivos,
as circunstâncias e as consequências do crime; seja, ainda, qual tenha sido
o comportamento da vítima, tais crimes merecerão sempre uma resposta
punitiva mais grave e mais severa do que a prevista para as demais infrações penais.
Já Alberto Silva Franco, ao analisar o conceito de hediondez adotado pela Lei n. 8.072/90, não considera como hediondo o delito que se
revele repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto ou horrível, por
sua gravidade, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade
que presidiu a ação criminosa, mas aquele crime que:
[…] por um verdadeiro processo de colagem, foi rotulado como tal pelo
legislador.
O crime é hediondo porque faz parte do elenco enumerado pela lei,
e não porque apresenta características próprias, devidamente explicitadas.10
Talvez, este seja o conceito mais aceitável.
E a Lei n. 8.072/90 elenca diversas proibições aos condenados por
crimes hediondos e equiparados, como a proibição da concessão de anistia, graça e indulto, a proibição de fiança e de liberdade provisória para os
autores de crimes hediondos, e estabelece, em seu art. 2º, § 1º que terão de
cumprir a pena imposta integralmente no regime fechado.
9 MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: textos, comentários e aspectos polêmicos. São
Paulo: Saraiva, 1992. p. 54.
10 FRANCO, José Alberto. Crimes Hediondos. Notas sobre a Lei 8.072/90. São Paulo: Saraiva, 1994.
p. 201.
152 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
A singularidade do tratamento e das características dos crimes hediondos torna-o um assunto de bastante relevância para o mundo jurídico,
pois existem diversos posicionamentos sobre a matéria tratada. Até mesmo
a posição de nossos Tribunais Superiores pode mudar, não sendo um entendimento a se perpetuar no tempo, conforme será examinado adiante
acerca do novo posicionamento do STF que julgou pela inconstitucionalidade do citado art. 2º, § 1º, da Lei de Crimes Hediondos.
PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL
CONSIDERAÇÕES GERAIS
O sistema penal brasileiro adota como fundamento o regime de
progressão da pena, baseado em algumas características a serem apresentadas pelo sentenciado durante o cumprimento de sua pena, de tal modo
a concedê-lo a possibilidade de reinserção gradativa na sociedade. De
acordo com o seu comportamento e a sua capacidade de recuperação, vai
o preso adquirindo o direito a passar de um regime mais rígido para um
mais livre, até alcançar o livramento condicional.
Nesse sentido, o sistema progressivo de regime foi instituído com
vistas à reinserção gradativa do condenado ao convívio social. Ele cumprirá a pena em etapas e em regime cada vez menos rigoroso, até receber a
liberdade. Durante esse tempo, o preso será avaliado e só será merecedor
da progressão caso a sua conduta assim recomende.
O mérito do condenado para a progressão de regime prisional (requisito subjetivo) diz respeito a seu bom comportamento carcerário e aptidão
para retornar ao convívio social. Destarte, para que possa obter a progressão, entende-se que não basta o bom comportamento carcerário, sendo necessário, também, que esteja apto a ser colocado em regime menos rigoroso.
Mister salientar que contrariar essa filosofia penal, obrigando o preso a permanecer estacionado num mesmo regime durante todo o cumprimento da pena é algo repugnante do ponto de vista social, eis que lhe
retira a possibilidade de recuperação dos valores perdidos por ocasião do
cometimento do delito.
Acredita-se na alegação de que o regime progressivo tem um caráter
pedagógico e restabelecedor, vez que se a pena privativa de liberdade, tão
combatida atualmente pelo mundo jurídico, considerada modernamente
Miguel Juarez Romeiro Zaim
153
um mal necessário, pode ainda ser encarada como tendo um objetivo
ressocializador, certamente, a regra que determina o cumprimento integral
da pena em regime fechado aniquila de vez esse caráter ressocializador da
pena, nos remetendo a período histórico medieval, em que ela era vista
como mero castigo, simples retribuição.
Garantir ao preso a possibilidade de ser reinserido no corpo social,
adquirindo novos valores, é um direito constitucionalmente garantido, senão explicitamente consignado no texto, abstraído do sistema de proteção
individual que a Carta encerra. E isso só pode ser alcançado através da
aplicação incondicional do regime progressivo de execução penal.
REQUISITOS PARA PROGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL
Um dos instrumentos empregados para a verificação da aptidão
para a progressão de regime é o exame criminológico, que será realizado
quando for necessário.
O exame criminológico será realizado obrigatoriamente nos presos
que se encontrem no regime fechado e facultativamente nos que estão no
regime semiaberto (art. 8º da LEP). É uma espécie de exame de personalidade e tem a finalidade de obter elementos indispensáveis à classificação
do sentenciado e à individualização da execução penal. Por isso, examina
a personalidade do criminoso, sua periculosidade, eventual arrependimento, possibilidade de voltar a delinquir, etc., propondo as medidas necessárias para a recuperação. Por se tratar de perícia oficial, deve ser realizado
por profissionais capacitados (psicólogos e psiquiatras).
Com efeito, o condenado com mal comportamento carcerário, que
não queira trabalhar, com dificuldades para obedecer ao regulamento, que
exiba sinais de periculosidade, demonstra com sua conduta não ser merecedor do benefício da progressão de regime prisional. É importante salientar que, em sede de execução penal, vige o princípio do in dubio pro
societate (RT 744/579).
A classificação do condenado será feita por Comissão Técnica de
Classificação, que é o órgão responsável pela elaboração do programa individualizador da execução da pena privativa de liberdade (art. 6º da LEP).
A Comissão Técnica de Classificação existe em cada estabelecimento prisional e é presidida pelo diretor e composta, no mínimo, por dois
chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social,
154 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
quando se tratar de pena privativa de liberdade. Nos demais casos, a Comissão atuará junto ao Juízo da Execução e será integrada por fiscais do
Serviço Social (art. 7º da LEP).
Para a correta individualização da pena privativa de liberdade, a Comissão Técnica de Classificação deve valer-se do exame criminológico, nos
casos em que ele é exigido (regime fechado), ou quando ele for necessário
(regime semiaberto). A fim de obter dados reveladores acerca da personalidade do condenado, a Comissão poderá entrevistar pessoas; requisitar, de
repartições ou estabelecimentos privados, informações e dados a respeito
do condenado; realizar outras diligências e exames necessários (art. 9º da
LEP). Não havendo exigência ou necessidade da realização do exame criminológico, a classificação será feita por exame de personalidade comum,
em que serão colhidos elementos para a elaboração de um programa de
individualização da execução da pena.
Individualizar a pena consiste em propiciar ao preso as condições
necessárias para que possa retornar ao convívio social. A individualização
deve ater-se a métodos científicos, nunca improvisados, iniciando-se com
a classificação dos detentos, de forma que possam ser destinados aos programas de execução mais apropriados de acordo com suas necessidades
pessoais. A individualização da pena é direito constitucional previsto no
artigo 5º, XLVI, 1ª parte, da CF.
A Lei de Execuções Penais (LEP), em seu art. 112, dispõe que a pena
privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando
o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e
ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. Prevê, ainda,
a norma em seu § 1º, que a decisão será sempre motivada e precedida de
manifestação do Ministério Público e do defensor.
A Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, deu nova redação ao
artigo 112 da LEP, não mais exigindo que o mérito do condenado lhe seja
favorável à progressão, bem como a manifestação do Conselho Penitenciário e exame criminológico, quando necessário.
Embora a lei tenha mantido o sistema progressivo, instituiu como requisitos para a progressão de regime apenas que o preso tenha cumprido ao
menos um sexto da pena no regime em que se encontra e que ostente bom
comportamento carcerário, atestado pelo diretor do estabelecimento prisional.
Miguel Juarez Romeiro Zaim
155
Por outro lado, as normas que vedam a progressão de regime prisional, no caso a Lei dos Crimes Hediondos, permanecem íntegras, uma
vez que o artigo 112, caput, parte final, da LEP, em sua nova redação,
dispõe expressamente que essas normas devem ser respeitadas. Assim,
cometendo o agente crime hediondo, tráfico ilícito de entorpecentes ou
drogas afins, ou terrorismo, deverá cumprir a pena em regime integral
fechado, sendo vedada a progressão de regime, por expressa disposição
legal do art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/1990, caso este que tem entendimento
contrário a nossa Suprema Corte no julgamento da HC 82.959, conforme
será examinado pormenorizadamente adiante, sendo este o objeto desta
dissertação monográfica.
Além do bom comportamento carcerário do condenado, para que
possa ser deferida a progressão, há necessidade do cumprimento de pelo
menos um sexto da pena no regime em que se encontra (requisito objetivo),
sendo vedada a progressão por salto, ou seja, pulando um dos regimes.
Outra imposição da lei para a progressão é a prévia manifestação
do Ministério Público e do Defensor, e que a decisão judicial seja motivada (art. 112, § 1º, da LEP). Observamos que a manifestação do Ministério
Público e a fundamentação da decisão judicial sempre foram requisitos
necessários nos procedimentos afetos às execuções penais. O Ministério
Público possui a atribuição de fiscalizar a execução da pena e da medida
de segurança, oficiando em todos os processos e incidentes da execução
(art. 67, da LEP). À Defesa cabe defender os interesses do condenado, podendo requerer o que de direito para a obtenção da progressão de regime.
Entretanto, mesmo com a modificação do artigo 112 da LEP, entendemos que o Juiz pode determinar o exame criminológico quando o preso
tiver praticado crime doloso com o emprego de violência ou grave ameaça à
pessoa, ou seja, se houver necessidade de ser aferido o mérito do condenado. Isso porque o artigo 33, § 2º, do Código Penal, de forma genérica, diz
que a pena privativa de liberdade deve ser executada de forma progressiva
e segundo o mérito do condenado. Ora, se o Juiz das Execuções Penais
tiver dúvidas sobre a cessação da periculosidade do condenado, deverá
condicionar a progressão de regime prisional ao exame criminológico.
Seria um contrasenso permitir a progressão, ou até mesmo a liberdade, para alguém que ainda não possui condições de retornar ao convívio
social. Assim, se o exame criminológico concluir que o preso não tem
condições de progredir de regime prisional, o juiz deverá indeferir a pro-
156 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
gressão, dada à natureza do sistema progressivo de regime, que pressupõe
a readaptação gradativa do preso à liberdade.
Infelizmente, essa nova lei veio contrariar os anseios da sociedade,
que exige punições mais rígidas para os criminosos violentos. Da forma
como a lei foi criada, inúmeros criminosos perigosos e que não possuem
condições de retornar ao convívio social poderão ser colocados na rua,
uma vez que surgirão decisões no sentido de que basta o cumprimento de
um sexto da pena e bom comportamento carcerário, atestado pelo diretor
do estabelecimento prisional, para que o condenado possua o direito subjetivo de progredir de regime prisional.
O § 4º do artigo 33 do Código Penal, acrescido pela Lei n. 10.763, de
12 de novembro de 2003, estabelece que o condenado por crime contra a
administração pública terá a progressão de regime de cumprimento de pena
condicionada à reparação do dano que causou ou à devolução do produto
do ilícito praticado, com os acréscimos legais. Os crimes contra a administração pública vêm descritos nos artigos 312 a 359-H do Código Penal.
Cumpre-nos ressaltar que não são todos os delitos que causam dano
efetivo à administração pública ou que resultam produto em decorrência
da sua prática. Produto do crime é a coisa adquirida diretamente com a
prática criminosa (ex.: coisa subtraída), ou mediante sucessiva especificação (ex.: jóia feita com ouro desviado), ou conseguida mediante alienação
(ex.: dinheiro da venda do objeto apropriado), ou criado com o crime (ex.:
moeda falsa). Assim, produto do crime é todo bem material conseguido
direta ou indiretamente com a prática criminosa.
Há delitos que somente ocasionam dano potencial sem que ocorra
prejuízo material concreto para a administração pública ou a possibilidade
da obtenção de algum proveito material para o sujeito (produto do crime).
Nesses casos, não há o que ser indenizado ou restituído. Assim, a condição
somente será implementada quanto aos crimes que resultem dano material efetivo à administração pública ou que gerem proveito material para o
criminoso, como nos delitos de peculato-tipo e peculato-furto (o peculato
culposo possui regra própria), peculato mediante erro de outrem, corrupção
passiva, concussão, sonegação de contribuição previdenciária, e outros.
Observamos, ainda, que a norma não contempla a hipótese, como
ocorre em alguns delitos, de o sujeito deixar de indenizar a administração
pública ou de restituir o produto do crime, quando não puder fazê-lo. De
acordo com o dispositivo, o sujeito, para progredir de regime, deve neces-
Miguel Juarez Romeiro Zaim
157
sariamente reparar o dano de maneira genérica, seja restituindo o produto
ilicitamente auferido ou indenizando a administração pública e terceiro
eventualmente prejudicado, com as devidas atualizações monetárias.
Por outro lado, a ausência da devolução do produto do ilícito ou da
reparação do dano impede somente a progressão de regime de cumprimento de pena, não sendo óbice para outros benefícios, como a graça, o
indulto, o livramento condicional, e outros.
PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL NOS CRIMES HEDIONDOS
DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, § 1º DA LEI DE CRIMES
HEDIONDOS (LEI Nº 8.072, DE 25/07/1990) E O POSICIONAMENTO
DO STF NO HC 82.959/SP
Segundo entendimento de alguns renomados juristas11 a mudança
ocorrida no texto original do art. 2º, § 1º, foi defendida por boa parte da
doutrina, desde o primeiro momento de vigência da Lei dos Crimes Hediondos. Em síntese, os penalistas sempre entenderam que esta norma –
de absoluta proibição a priori – contrariava os princípios constitucionais de
maior grau de hierarquia normativa da individualização e da humanidade
da pena, além dos princípios do devido processo legal e da igualdade.
Posteriormente, a aprovação da Lei contra a Tortura trouxe um argumento ainda mais forte em favor da doutrina que veio a corroborar com a
sustentação de derrogação do § 1º, do art. 2º, da Lei dos Crimes Hediondos.
Como o § 7º, do art. 1º, da Lei contra a Tortura, determina que
o condenado deve iniciar o cumprimento da pena em regime fechado,
ficou claro – tanto para a doutrina como para a jurisprudência – que
poderia ser concedida a progressão para o regime semiaberto ao condenado por essa espécie de crime hediondo, pois o que a lei exige é
que o processo de execução da pena seja iniciado em regime fechado.
Para boa parte da doutrina, a proibição prevista no § 1º, do art. 2º, da Lei
de Crimes Hediondos, havia sido revogada pelo disposto no § 7º, do art.
1º, da Lei 9.455/97.
11 LEAL, João José. Crimes Hediondos. Op. cit., p. 209 e segs.; FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. Op. cit., p. 149; MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos. São Paulo: Saraiva, 1992.
p. 122; BARTOLI, Márcio. Crimes Hediondos. Revista dos Tribunais, 684/299; TOLEDO, Francisco
de Assis. Crimes Hediondos. Fascículos de Ciências Penais, v. 5, n. 2, p. 68, abr./jun. 1992.
158 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
Destarte, com a promulgação da lei supracitada, há posicionamentos doutrinários e até mesmo jurisprudenciais de que o art. 2º da Lei nº
8.072/90 foi revogado pelo sistema processual implantado por aquele diploma, que regula inteiramente e de forma diversa a matéria tratada, permitindo ao acusado responder ao processo em liberdade, bem como iniciar
o cumprimento da pena em regime fechado, o que traz de volta ao seio
de crimes como o de tortura e a ele equiparados a progressão de regime.
De se registrar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial nº 140.617-GO (97/0049790-9), no voto condutor do Min. Relator Luiz Vicente Cernicchiaro, guiado pelos ensinamentos
de mestres como Ney Moura Teles e Luiz Flávio Gomes, acolheu a tese
de que a Lei de Tortura revogou as disposições do art. 2º do diploma em
estudo, acórdão esse cuja ementa tomou o seguinte teor:
RESP. – CONSTITUCIONAL – PENAL – EXECUÇÃO DA PENA – CRIMES
HEDIONDOS (LEI Nº 8.077/90) – TORTURA (LEI Nº 9.455/97) – EXECUÇÃO – REGIME FECHADO – A Constituição da República (art. 5º,
XLIII) fixou regime comum, considerando-os inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. A Lei nº 8.072/90 conferiu-lhes a disciplina jurídica, dispondo:
“a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente
em regime fechado” (art. 2º, § 1º). A Lei nº 9.455/97 quanto ao crime
de tortura registra no art. 1º – 7º: “O condenado por crime previsto
nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena
em regime fechado. A Lei nº 9.455/97, quanto à execução da pena,
é mais favorável do que a Lei nº 8.072/90. Afetou, portanto, no particular, a disciplina unitária determinada pela Carta Política. Aplica-se
incondicionalmente. Assim, modificada, no particular a Lei dos Crimes
Hediondos. Permitida, portanto, quanto a esses delitos, a progressão
de regimes”. (STJ – 6ª T – REsp. nº 140.617-GO (97/0049790-9) – Rel.:
Min. Luiz Vicente Cernichiaro – j. 12.9.97).
Todavia, no tocante à norma proibitiva sob exame, a jurisprudência
percorreu caminho diverso daquele trilhado pela doutrina. Foi um caminho
tortuoso, marcado por uma hermenêutica de comprometimento com o sentido meramente literal da lei positiva, até a votação pelo ST do HC 82.959/SP.
Miguel Juarez Romeiro Zaim
159
Ressalva-se, no entanto, que em sua primeira decisão sobre a matéria, a Suprema Corte havia rejeitado a tese de inconstitucionalidade do
dispositivo penal em exame, sob o fundamento de que a Constituição Federal de 1988 conferiu ao legislador ordinário a prerrogativa de fixar, para
os crimes hediondos, o cumprimento da pena em regime fechado. Ao analisar a obrigatoriedade de cumprimento da pena em regime integralmente
fechado, a súmula do acórdão do Tribunal Pleno, que teve como relator o
então ministro Paulo Brossard, ficou assim redigida:
À Lei Ordinária compete fixar os parâmetros dentro dos quais o julgador poderia efetivar ou a concreção ou a individualização da pena. Se o
legislador ordinário dispôs, no uso da prerrogativa que lhe foi deferida
pela norma constitucional, que nos crimes hediondos o cumprimento
da pena será no regime fechado, significa que não quis ele deixar, em
relação aos crimes dessa natureza, qualquer discricionariedade ao juiz
na fixação do regime prisional. Ordem conhecida, mas indeferida (HC
nº 69.603-SP, DJU, 23-4-93, RT, 696/438).12
O entendimento da Suprema Corte foi adotado pelo STJ, que acabou consolidando a posição de que o condenado por crime hediondo não
tem direito à progressão no regime prisional, mesmo que, na sentença
condenatória, não tenha sido utilizada a expressão “integralmente fechado”. (HC 15.755-MG, 6ª Turma, DJU de 28.05.01, p. 209; HC 15.566-SP, 6ª
Turma, DJU 28.05.01, p. 173; HC 14.926-SP, 6ª Turma, DJU 07.05.01, p. 161;
REsp 271.977-SC, 5ª Turma, DJU de 07.05.01, p. 158).
Assim sendo, com apenas algumas decisões isoladas e marginais em
contrário de tribunais estaduais ou federais, a jurisprudência manteve o
entendimento em favor da constitucionalidade do então § 1º, do art. 2º, da
Lei de Crimes Hediondos.
12 Este entendimento, rejeitando a tese de inconstitucionalidade do § 1º, do art. 2º, da LCH, foi
adotado em diversos outros julgamentos do STF: HC nº 69.657 - SP, DJU, 18-6-93, p. 12.111; HC
nº 70.044 - SP, DJU, 7-5-93, p. 8.330; HC nº 70.121 - SP, DJU, 16-4-93, p. 758; HC nº 70.296 - UF,
DJU, 24-9-93, p. 19.576; HC nº 70.467 - MS, DJU, 3-9-93, p. 17.744; HC nº 70.657 - MG, DJU,
29-4-94, p. 9.716; nº 70.939 - SP, DJU, 3-6-94, p. 13.854 e acabou consolidando o entendimento
jurisprudencial, não só da Corte Suprema, mas dos demais tribunais inferiores.
160 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
ADEQUAÇÃO DA LEI DE CRIMES HEDIONDOS AO PRINCÍPIO
DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA E A JURISPRUDÊNCIA DO STF
Conforme visto alhures, após dezesseis anos de muita controvérsia,
o STF mudou o seu entendimento sobre a possibilidade de progressão de
regime nos chamados crimes hediondos, ao votar o HC 82.959-SP, em sua
sessão plenária ocorrida em 23.02.2006.
Embora declarada de forma incidental, a decisão passou a ser interpretada como declaratória de inconstitucionalidade, com eficácia erga
omnes da norma proibidora do direito à progressão de regime prisional,
como será examinado em linhas posteriores.
Diante da mudança de entendimento do STF, tornou-se imperiosa a
revogação ou, no mínimo, a alteração do mais rigoroso dispositivo (art. 2º
e seus incisos e parágrafos), da Lei de Crimes Hediondos.
Com a aprovação da Lei 11.464/2007, já não haverá mais qualquer
divergência doutrinária ou jurisprudencial: a nova lei permite a progressão
de regime. O condenado por crime hediondo inicia, obrigatoriamente, o
cumprimento da pena em regime fechado, mas encontra-se adequadamente inserido no espaço político-jurídico do sistema penitenciário progressivo. Pode, portanto, progredir se tiver, é claro, bom comportamento
carcerário e cumprido parte de sua pena. O que o diferencia dos demais
condenados, conforme veremos abaixo, é a obrigação de cumprimento de
um tempo maior da pena para obter o direito à progressão.
Pode-se dizer que a Lei 11.464/07 reflete o novo entendimento jurisprudencial do STF e dos demais tribunais, além de perfilhar dispositivos
das duas leis penais que reprimem os crimes hediondos de tortura e de
tráfico ilícito de drogas. Está de acordo, também, com o pensamento da
doutrina penal, que sempre defendeu a tese da progressão de regime prisional. Nesse tocante, cabe reconhecer que a nova lei contribui para tornar
o sistema penal menos assimétrico.
REQUISITOS PARA A PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL
POR CRIME HEDIONDO
Com a nova redação, que lhe foi dada pela Lei 11.464/07, o texto
original do § 2º, art. 2º, da Lei de Crimes Hediondos, que se referia ao
direito de apelar em liberdade, foi deslocado para constituir um terceiro
Miguel Juarez Romeiro Zaim
161
parágrafo. O novo texto do § 2º, agora dispõe sobre a progressão de regime e está assim redigido:
A progressão de regime, no caso de condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-à após o cumprimento de 2/5 (dois quintos)
da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se
reincidente.13
O dispositivo em exame prescreve que a progressão de regime “darse-à após o cumprimento de”, sem estabelecer qualquer outro requisito
legal para a obtenção deste benefício penal.
Por conseguinte, cabe indagar se, além deste requisito de ordem
temporal, deve ser exigido outro, como o bom comportamento carcerário,
previsto no art. 112, da Lei de Execução Penal – LEP, requisito, aliás, exigível dos demais apenados por crime não-hediondo.
Pode-se argumentar que a Lei de Crimes Hediondos criou um subsistema punitivo especial e autônomo, em relação ao sistema penal codificado.
É, portanto, um subsistema integrado por um conjunto próprio e autônomo
de normas penais criadas para o controle, a repressão e a execução penal
desta categoria criminal de maior gravidade. Em decorrência, e com base
na regra da interpretação restritiva da lei penal, não seria possível exigir-se
outra condição legal para a progressão de regime, além desta prevista expressamente no texto do § 2º, do art. 2º, da Lei de Crimes Hediondos.
Comunga-se, no entanto, que não é este o sentido do direito contido no parágrafo em exame. É preciso interpretar e aplicar o novo comando normativo contido no § 2º, do art. 2º, da LCH, em consonância com o
disposto no art. 33, § 2º, do Código Penal, que condiciona a progressão de
regime ao mérito do condenado. Portanto, a lei penal é expressa na exigência do merecimento, ou seja, do bom comportamento carcerário, para
que o condenado tenha direito ao avanço no regime prisional.
Necessário compreender, também, que o art. 112, da LEP, foi objeto
de derrogação apenas em sua parte relativa ao tempo de cumprimento da
pena como requisito para a progressão de regime dos apenados por crime
hediondo. No tocante ao mérito prisional, este dispositivo da LEP continua
com sua vigência e eficácia preservadas. E é taxativo ao estabelecer que
13 LEGISLAÇÃO BRASIL. Lei nº 11.464/07.
162 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
a progressão fica sujeita ao bom comportamento carcerário, comprovado
pelo diretor do estabelecimento.
Parece-nos certo que o juiz, no entanto, não está obrigatoriamente
vinculado ao atestado de bom comportamento carcerário. Poderá acatá-lo
ou rejeitá-lo, se entender que as informações prestadas pelo diretor do
estabelecimento prisional não se conformam com os fins maiores dos princípios da individualização da pena e da segurança coletiva.
Por isso, em casos de especial gravidade ou complexidade, cremos
que o juiz deverá determinar, ainda, que o condenado seja submetido ao
exame criminológico, previsto no caput do art. 34, do CP e 8º, parágrafo
único, da LEP, para fundamentar a sua decisão de conceder ou não o direito à progressão.
Quanto a este polêmico exame, é preciso frisar que o STF já decidiu
pela sua validade, sempre que o juiz da execução fundamentar a sua necessidade, em face da gravidade e complexidade do caso. Para a Suprema
Corte, se a obrigatoriedade do exame criminológico, para fins de progressão de regime, foi abolido pela Lei 10.792/03, “nada impede que, facultativamente, seja requerido o exame pelo juiz da execução”. (HC 86.631-PR
– rel. min. Ricardo Lewandowski. No mesmo sentido: HC 85.688-PR, rel.
min. Celso de Mello; HC 88.149-GO, rel. min. Sepúlveda Pertence; HC
84.811-PR, rel. min. Joaquim Barbosa; HC 85.484-DF, rel. min. Gilmar Mendes; HC 88.533-PE, rel. min. Sepúlveda Pertence).
A comprovação do bom comportamento prisional, portanto, continua sendo requisito indispensável para a progressão de regime prisional.
Destaca-se também como requisito que o condenado por crime hediondo precisa cumprir parte de sua pena em regime inicialmente fechado,
para alcançar o direito à progressão. No caso de ser primário, exige a lei o
cumprimento de dois quintos da pena. Por exemplo, o condenado a dez
anos de reclusão, pelo crime de homicídio qualificado, se primário, deverá
cumprir mais de quatro anos em regime inicialmente fechado, antes da
progressão ao semiaberto.
Entende-se que se trata de conceito especial de primariedade, aplicável apenas aos condenados por crime não hediondo. Portanto, diverso
daquele geral, estabelecido no CP. Cremos que, para o fim de aplicação
desta norma penal especial mais rigorosa, primário será todo aquele que
ainda não tenha sido condenado por crime hediondo, no momento da
prática do crime hediondo posterior e objeto da condenação posterior.
Miguel Juarez Romeiro Zaim
163
Se o crime anterior, com sentença condenatória transitada em julgado, não tiver sido classificado como hediondo, o agente, no momento da
condenação por crime posterior desta espécie, deve ser considerado ainda
primário. Portanto, poderá progredir de regime prisional após o cumprimento de dois quintos da pena e não de três quintos.
No caso de reincidente, o tempo de cumprimento da pena para a
progressão é de três quintos. Assim, o condenado a dez anos de reclusão
deverá cumprir, no mínimo, seis anos em regime fechado para ter direito
à progressão ao regime semiaberto, que somente será concedida se comprovado, também, o bom comportamento carcerário.
Uma interpretação mais colada à literalidade da dicção deste dispositivo legal pode conduzir à leitura de que a reincidência ocorrerá mesmo
quando o crime anterior não tenha sido considerado hediondo. Ou seja,
basta que, no momento da prática do crime hediondo, objeto da condenação posterior, o agente já tenha sido condenado por qualquer outro crime,
como, por exemplo, pelo crime de furto.
Entende-se que o conceito de reincidência – para o fim de aplicação
desta norma penal de maior rigor – não coincide com aquele descrito no
art. 63, do Código Penal e aplicável ao condenado pelas demais infrações penais não hediondas. Cremos que somente poderá ser considerado
reincidente e obrigado a cumprir três quintos da pena, antes do direito à
progressão, o agente que cometer um novo crime hediondo, após ter sido
condenado por crime desta mesma espécie, aí incluídos os crimes de tortura, de tráfico ilícito e de terrorismo.
Ensina Júlio Fabrini Mirabete que:
É verdade que a nova lei não utiliza a expressão “reincidente específico em crimes dessa espécie”, como utilizou no caso do livramento
condicional (art. 83, inciso V, do CP). Mas é preciso reconhecer que
a Lei de Crimes Hediondos criou um subsistema punitivo especial ou
próprio. Por isso, é válido argumentar que a reincidência, ali tratada de
forma especial, refere-se à superposição de crimes catalogados como
hediondos.14
14 MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
p. 336, 339.
164 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
Salienta-se que a posição hermenêutica aqui defendida parte da
premissa de que, na hipótese de crime hediondo, os novos marcos de
cumprimento da pena para a progressão são indiscutivelmente bastante
mais severos do que o período de apenas um sexto, exigido dos condenados – primários ou reincidentes – pelos demais crimes não hediondos.
Entre estes, pode estar o autor de um homicídio simples ou de um roubo
qualificado por lesões gravíssimas contra a vítima.
Em que pese ao crime de “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins”, surge outro problema de hermenêutica: que tipos penais devem ser
incluídos no âmbito de abrangência desta expressão normativa, para o fim
de se exigir os prazos de cumprimento de dois e três quintos da pena, com
vista à progressão de regime? A questão surge à medida em que a Lei nº
11.343/2006 – atual Lei Antidrogas – incrimina diversas condutas sem darlhes nomes jurídicos próprios ou distintos.
Um ponto de convergência doutrinária e jurisprudencial repousa na
distinção entre o crime de tráfico ilícito e o de porte para consumo pessoal
de droga. Nesta última hipótese, encontram-se incluídas as modalidades típicas de menor e de médio potencial ofensivo, previstas na Lei Antidrogas:
oferecimento de drogas para consumo em conjunto (art. 33, § 3º); prescrição culposa de drogas (art. 38); e condução de embarcação ou aeronave
após consumo de droga (art. 39 e parágrafo único).
Portanto, os autores dessas condutas de menor ou de médio potencial ofensivo, previstas na Lei Antidrogas, não estão sujeitos à norma contida no art. 2º, § 2º, da Lei de Crimes Hediondos, que estabelece requisitos
de maior rigor para o reconhecimento do direito à progressão de regime.
Aliás, o autor da infração penal de porte para uso pessoal de droga não
está mais sujeito à pena privativa de liberdade. Nesta hipótese, não se
pode falar sequer de progressão de regime.
No entanto, é preciso não esquecer que a Lei Antidrogas define outros tipos penais associados ao tráfico: petrechos para o tráfico de drogas
(art. 34); associação para o tráfico (art. 35, parágrafo único); financiamento
do tráfico (art. 36), e colaboração ao tráfico de drogas (art. 37). Em relação
a estes tipos penais, seria possível argumentar que constituem espécies de
crime de tráfico de drogas?
No tocante aos crimes de associação e de colaboração para o tráfico, parece não haver maior dificuldade para excluí-los da condição de
tipos equiparados à categoria criminosa mais grave. O primeiro, durante a
Miguel Juarez Romeiro Zaim
165
vigência da lei anterior, já foi objeto de decisões no sentido de que não se
trata de crime hediondo.
Quanto ao crime de colaboração para o tráfico, a Lei 6.368/76 considerava-o como um dos tipos penais equiparados ao crime de tráfico (art.
12, § 2º, inciso III). Porém, a atual Lei Antidrogas deu-lhe nova redação,
diminuiu a quantidade de pena e outorgou-lhe autonomia tipológica em
face do tipo penal básico de tráfico ilícito, definido no caput, art. 33, dessa
lei repressiva especial. Deixou, por isso, de ser um dos tipos penais equiparados ao tráfico ilícito de drogas.
Não se tratando propriamente de crimes de “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”, a estes dois tipos penais relacionados, mas não
equiparados ao crime maior de tráfico ilícito, não se aplica a norma de
maior rigor quanto à progressão de regime, prevista no § 2º, do art. 2º, da
Lei de Crimes Hediondos.
Compartilha-se com a ideia de que apenas os tipos penais definidos
nos arts. 33, caput e suas modalidades típicas previstas no § 1º, incisos I a
III, 34 e 36, da Lei 11.343/2006, é que podem ser enquadrados na denominação jurídico-penal “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”. Em
consequência, somente os condenados por estes tipos penais ficam sujeitos ao cumprimento de dois ou de três quintos da pena, como requisito
objetivo para alcançar uma possível progressão de regime.
RETROATIVIDADE E IRRETROATIVIDADE DA LEI Nº 11.464/07
Eis uma questão que ainda parte a opinião dos nossos penalistas, pois
não tem um entendimento pacífico.15 A maioria dos doutrinadores entende
que a nova lei, aparentemente mais favorável ao infrator, é na verdade mais
15 GOMES, Luiz Flávio. Lei nº 11.464/2007: liberdade provisória e progressão de regime nos crimes
hediondos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1371, 18 janeiro, 2008. Disponível em: <http://
jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9686>. Acesso em: 18 jan. 2008. SILVA, Amaury. Crimes
hediondos: Lei nº 11.464/2007 e fatos pretéritos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1371, 18 jananeiro, 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9687>. Acesso em:
18 jan. 2008. GRECO, Lucas Silva e. Lei nº 11.464/07: progressão de regime de cumprimento de
pena também para condenados pela prática de crimes hediondos. Jus Navigandi, Teresina, ano
11, n. 1371, 3 abr. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9689>.
Acesso em: 18 janeiro 2008. BASTOS, Marcelo Lessa. Crimes hediondos, regime prisional e
questões de direito intertemporal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1.380, 12 janeiro, 2008.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9734>. Acesso em: 12 jan. 2008.
SILVA, Ivan Luís Marques da. Previsões sobre a Lei nº 11.464/2007. Da resolução “indireta” do
Senado Federal sobre a inconstitucionalidade da vedação à progressão de regime para os crimes
hediondos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1.395, 27 abr. 2007. Disponível em: <http://jus2.
uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9815>. Acesso em: 18 jan. 2008.
166 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
severa. Portanto, sua eficácia retroativa, consagrada nos arts. 5º, inciso XL, e
2º, parágrafo único, do CP, deve ser afastada. Não sendo norma penal mais
benéfica, não pode ser aplicada aos casos pretéritos, mas tão-somente aos
crimes cometidos a partir de sua vigência, em 29 de março de 2007.
Em síntese, esta corrente doutrinária entende que a decisão do STF,
que julgou inconstitucional a proibição de progressão de regime, contida
na versão original do § 1º, do art. 2º, da LCH, tem eficácia erga omnes e
que, portanto, garantiu o direito a este benefício executório penal a todos
os condenados por crime hediondo, a partir de 23.02.2006. Os requisitos,
legalmente exigidos para a concessão da progressão, são os previstos no
art. 112, da LEP, ou seja, bom comportamento carcerário e cumprimento
de um sexto da pena.
Como a nova lei passou a exigir, no mínimo, dois quintos de cumprimento da pena para a progressão, é evidente que se trata de norma
de natureza penal mais rigorosa. Portanto, deve ser submetida à regra da
irretroatividade, em termos de sua eficácia temporal.
Parte da doutrina, no entanto, entende que a decisão do STF não
tem eficácia erga omnes, pois foi proferida no espaço hermenêutico judicial do controle difuso, para atender tão-somente à demanda jurídica de
um caso concreto. Em consequência, a decisão não teria força vinculante
para desconstituir as demais situações jurídicas relacionadas à progressão
de regime dos apenados por crime hediondo, que permaneceriam regidas
por uma lei vigente e aprovada segundo o processo legislativo previsto na
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988.
Há, ainda, o argumento de que, no espaço político-jurídico do Estado Democrático, a produção do Direito é função constitucionalmente
privativa do Poder Legislativo, não cabendo ao Poder Judiciário extrapolar
a sua competência estritamente jurisdicional para criar o direito, principalmente, contra expressa disposição legal. Para esta corrente doutrinária,
a mencionada decisão do STF não criou um direito à progressão após o
cumprimento de um sexto da pena.
Em consequência, a norma contida na lei em exame deve ser considerada mais favorável ao infrator, se comparada com a anterior, agora revogada e que não admitia a progressão de regime prisional. Sendo norma penal mais benéfica, está sujeita, portanto, à regra da retroatividade consagrada
nos arts. 5º, inciso XL, e 2º, parágrafo único, do CP, devendo ser aplicada não
somente aos casos futuros, mas também a todos os casos pretéritos.
Miguel Juarez Romeiro Zaim
167
É verdade que a decisão do STF, manifestada pela maioria de seus
membros, não ficou devidamente explicitada quanto ao alcance de sua eficácia, em relação ao direito à progressão para os demais condenados por
crime hediondo. Na verdade, a questão relativa aos efeitos erga omnes da
decisão, embora por diversas vezes discutida durante a longa e polêmica
votação, não foi objeto da necessária notificação ao Senado Federal para
que, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, tomasse a iniciativa de suspender a execução da norma acoimada de inconstitucional.
No entanto, é preciso ressaltar que:
O Tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará
consequências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data,
pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice
representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo
da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão
(STF: HC 82.959-SP).
Dessa forma, parece estar evidenciado que o STF, ao reconhecer –
mesmo que de forma incidental – a inconstitucionalidade da norma proibitiva da progressão de regime, prevista na Lei de Crimes Hediondos, garantiu o direito dos condenados por crime hediondo a postular a obtenção
deste benefício penal, após o cumprimento de mais de um sexto da pena.
Pode-se dizer que, após a declaração de inconstitucionalidade pelo STF, a
norma contida no § 1º, do art. 2º, da Lei de Crimes Hediondos, em exame,
manteve sua vigência formal, mas perdeu sua completa eficácia jurídica.
Se isso é juridicamente verdadeiro, é preciso admitir que, até a vigência da Lei 11.464/07, prevalecia uma situação jurídica bem mais favorável aos
condenados por crime hediondo, que tiveram o direito garantido de postular
a progressão de regime, após cumprimento de um sexto da pena.
Mesmo que tenha sido criado por decisão judicial, a verdade é que
se trata de um direito aplicável a todos os condenados por crime hediondo
que, naquele momento jurídico, encontravam-se na mesma situação jurídica, em termos de progressão de regime prisional.
Em consequência, todos os que tenham praticado crime hediondo
antes da vigência da Lei 11.464/07 – aí incluídos os autores dos crimes de
168 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
tráfico ilícito de drogas e tortura – poderão pleitear a progressão de regime
prisional após o cumprimento de um sexto da pena. Basta que comprovem
o bom comportamento carcerário.
Assim sendo, cremos que a nova norma penal, aparentemente mais
benéfica por reconhecer um benefício até então negado pela lei, agora formalmente revogada, é indiscutivelmente mais rigorosa. Por isso, não se pode
reconhecer-lhe eficácia retroativa. Sua eficácia somente alcançará os condenados por crime hediondo praticado após a sua vigência, em data de 29.03.2007.
A PROGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL E OS
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS
Finalmente, cabe um breve comentário sobre a Lei 11.464/07, à
luz da moderna Política Criminal e dos princípios penais consagrados
pela Constituição Federal. Quanto a estes, cremos que, com a nova lei,
o subsistema punitivo de maior severidade penal representado pela Lei
de Crimes Hediondos reconciliou-se com os princípios da individualização da pena, da igualdade penal e, em parte, também, com o princípio
da humanidade da pena, consagrados no art. 5º, caput, e incisos XLVI e
XLVII, da Constituição Federal.
Com a promulgação do novo texto da lei que veio alterar a lei de crimes hediondos, todos os condenados têm o direito assegurado de pleitear
a progressão de regime prisional. Basta que atendam aos requisitos legais.
Com isso, a nova lei colocou o processo de execução penal nos trilhos por
onde trafega o princípio da igualdade penal. Trata-se, é verdade, de uma
igualdade relativa, pois ainda dispensa tratamento de maior severidade aos
condenados por crime hediondo, mas garante-lhes, assim mesmo, o mesmo
direito assegurado aos demais condenados por crime não hediondo.
Com o direito à progressão assegurado, o pressuposto prático do
princípio da individualização da pena foi restabelecido pela lei penal em
exame. A partir de agora, os juízes não se encontram mais impedidos de
decidir, com a devida discricionariedade, sobre este relevante e básico
componente do princípio individualizador.
Quanto ao princípio da humanidade da pena, já foram formuladas
críticas ao rigor – visto como desproporcional – representado pela nova
exigência de cumprimento de dois ou de três quintos da pena para a progressão de regime. Realmente, é preciso reconhecer a severidade deste lap-
Miguel Juarez Romeiro Zaim
169
so temporal bem maior de cumprimento da pena, se comparado ao prazo
exigido dos demais condenados por crime não hediondo – mesmo os reincidentes – que é de apenas um sexto para a progressão de regime.
Nesse ponto, cremos que a nova lei representa uma resposta do
Parlamento à opinião pública que tem se manifestado, com veemência,
a favor de um Direito Penal de maior severidade como instrumento de
combate – discutível é verdade – aos elevados e assustadores índices da
violência brasileira. Esqueceu o legislador que, após 17 anos de vigência
da LCH, com o seu leque normativo de maior severidade, a criminalidade
violenta não diminuiu em nosso país.
Se estes novos marcos temporais de cumprimento de pena em
regime inicialmente fechado são efetivamente desumanos e, portanto,
juridicamente inadmissíveis, é uma questão que precisa ser discutida e
refletida com base nos princípios da moderna Política Criminal. Cremos
que uma reflexão séria e desideologizada acerca das regras politicamente mais adequadas do sistema punitivo em seu conjunto e do processo
de execução penal de forma específica, deve considerar os princípios
constitucionais penais garantidores da liberdade individual, mas também
o princípio da segurança pública, dever do Estado e direito e responsabilidade de todos os cidadãos.
Formalmente, cabe reconhecer que a nova lei, ao afastar uma proibição inconstitucional, por atentar contra os princípios da humanidade e
da individualização da pena e restabelecer o direito à progressão, avançou
no sentido de tornar nosso direito penal menos rigoroso e mais coerente
com o sistema penitenciário progressivo.
Sabe-se que, entre outros princípios básicos que regem a execução penal, nossa melhor doutrina aponta os da isonomia e da personalização da pena.
Isonomia significa tratar igualmente os iguais e desigualmente
os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. Em virtude desse
princípio constitucional (art. 5º, caput), não podemos dar o mesmo tratamento a condenados que tenham condições pessoais diversas. Se um
apenado “ostentar bom comportamento carcerário”, mas não tiver nenhuma condição psicológica para retornar ao convívio social fora do estabelecimento penitenciário, não poderá ser tratado de maneira idêntica
à de um outro que também seja bem comportado e tenha total condição
psicossocial de sair da prisão.
170 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
Se interpretarmos que a avaliação da personalidade do sentenciado para obtenção da progressão de regime ou do livramento condicional
se resume à simples análise de um “atestado carcerário”, estaremos dando azo ao total descumprimento do princípio constitucional da isonomia.
Ademais, estaríamos fragilizando por demais a sociedade, sendo certo que
com um exame mais apurado acerca da personalidade e conduta social
do segregado, maior o acerto acerca de sua volta ou não ao seio social,
quando preenchido o critério objetivo.
O executor da lei também é obrigado a cumprir o princípio da igualdade, razão pela qual o juiz, conforme o caso concreto, mesmo sob a égide
da Lei n. 10.792/03, deve requisitar o exame criminológico e o parecer da
CTC para verificação dos requisitos subjetivos do apenado, quando este for
perigoso ou no caso de ser constatado algum dado negativo sobre ele, ou,
ainda, pela hediondez da conduta.
O princípio da personalização da pena visa dar tratamento reeducativo ao condenado de maneira individualizada durante a execução, pois
é baseado nos antecedentes e personalidade, evitando a massificação da
execução (arts. 5º e 6º da LEP). Em virtude disso, para cada sentenciado
pressupõe-se um tipo diferente de execução, com o objetivo de se cumprir
o princípio da individualização da pena previsto no art. 5º, inc. XLVI, da
Constituição Federal. Princípio este que, inclusive, foi o norte utilizado
pelo Supremo para reconhecer a inconstitucionalidade do § 1º, do artigo
2º, da Lei n. 8.072/90.
Ao comentar o referido dispositivo constitucional, Luiz Luisi afirma que o “processo de individualização da pena se desenvolve em três
momentos complementares: o legislativo, o judicial e o executório”.16
Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, esta vai ser
efetivamente concretizada com sua execução. Nesse sentido, bem
­observa Aníbal Bruno, “ai é que a sanção penal começa verdadeiramente a atuar sobre o delinquente, que se mostrou insensível à ameaça
contida na cominação”.17
Guilherme de Souza Nucci leciona que é na terceira fase da individualização que se “faz com que a pena amolde-se, ao longo do seu
cumprimento, às necessidades de ressocialização do preso, conforme seu
16 LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. p. 52.
17 Aníbal Bruno, 2003. p. 55.
Miguel Juarez Romeiro Zaim
171
merecimento. Frise-se, pois, que tal processo constitucionalmente idealizado não foi alterado”.18
A jurisprudência também tem aceitado o entendimento de que a nova
redação emprestada pela Lei n. 10.792/03, ao artigo 112 da LEP, apesar de
não constar dentre os seus requisitos o “exame criminológico”, não o tornou
dispensável, em casos específicos, como nos crimes hediondos. Vejamos:
Processo Penal – Execução Penal – Recurso de Agravo – Progressão
de regime prisional – exame criminológico – art. 112 da LEP (Lei n.
10.792/03) – Condição para a progressão da pena prevista no Código
Penal e na Lei n. 7.210/84 – Mesmo com a nova redação do mencionado artigo 112 da LEP, convém recorra o Juiz, se entender pertinente, ao
exame criminológico para melhor avaliar a pretensão do sentenciado
em progredir de regime. Recurso desprovido. (TAPR – AG 0280276-2
– (233841) – Curitiba – 5ª C. Crim. Rel. Juíza Sônia Regina de Castro –
DJPR 01.04.2005) JLEP. 112.
CONCLUSÃO
Pelo que fora exposto no decorrer desta monografia, ficou evidenciado que com o intuito de combater a denominada criminalidade que
mais preocupa a população (estupro, latrocínio, etc.), o legislador brasileiro, em 1990, com fundamento na Constituição Federal (art. 5º, inc. XLIII),
aprovou a Lei n. 8.072/1990, que introduziu no nosso ordenamento jurídico infraconstitucional a figura dos crimes hediondos e equiparados, sendo
considerada um marco na legislação simbólica e punitivista (caracterizando
resposta rápida à sociedade, porém, ineficaz, pois não ataca as verdadeiras
causas do aumento de condutas criminosas, que são a falta de educação
para todos, socialização do menor e do adolescente, moradia, emprego,
integração familiar, menos desorganização social e política, etc.).
Em referida lei, o legislador foi feliz quando tratou com maior rigor
os crimes verdadeiramente hediondos. Porém, também cometeu equívocos, pois acabou capitulando como crime hediondo uma série de fatos
que não possuem essa natureza. Por exemplo: toque nas nádegas, beijo
lascivo, falsificação de cosméticos, etc. Nesses casos, o rigor da lei e sua
18 NUCCI, Guilherme de Souza. Primeiras Considerações sobre a Lei nº 10.792/03. Disponível em:
<www.cpc.adv.br/Doutrina/default.htm>. Acesso em: 20 jan. 2004.
172 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
desproporcionalidade são patentes. A proibição da progressão de regime
configura um desses instrumentos carentes de razoabilidade. O diploma
legal, com seus critérios abstratos, nem sempre se apresenta como instrumento justo nos casos concretos.
Diante disso, muitos doutrinadores e aplicadores do Direito lutaram
pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei
8.072/1990, que impõe o cumprimento da pena (por crime hediondo) integralmente em regime fechado.
É de bom alvitre registrar, desde logo, que o “integralmente” da Lei
8.072/1990 não nasceu verdadeiro, porque também os crimes hediondos
admitem livramento condicional, ressalvando-se o reincidente específico
em crime hediondo (não cabe livramento condicional).
Não obstante as manifestações contrárias, a Corte Suprema, até o
ano de 2004, consolidou clássica jurisprudência no sentido de que era
constitucional o citado dispositivo legal, não se permitindo, em tais, progressão de regime.
Assim, estudamos que a edição da Lei de Tortura no ano de 1997
(Lei 9.455/1997, art. 1º, § 7º) passou a permitir a progressão de regime nos
crimes lá tratados. Tentou-se estender sua incidência para todos os crimes
hediondos, mas o STF fulminou qualquer esperança de progressão para os
autores de crimes hediondos.
Com a nova composição do STF, esse quadro foi se alterando rapidamente (sobretudo no ano de 2005). No HC 82.959-7, rel. Min. Marco
Aurélio, onde se discutiu em profundidade a questão, o placar final foi
de seis votos (Marco Aurélio, Carlos Britto, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,
Eros Grau e Sepúlveda Pertence) a cinco (Carlos Velloso, Nelson Jobin,
Ellen Gracie, Joaquim Barbosa e Celso de Mello), pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/1990. A decisão do Pleno do STF foi
proferida em 23.02.2006.
Em análise aos julgamentos da Suprema Corte verifica-se que, antes
mesmo do HC 82.959, o STF já vinha concedendo inúmeras liminares para
afastar o óbice legal proibitivo da progressão de regime nos crimes hediondos. Dentre outros, podem ser mencionados os seguintes HCs.: 85.270,
85.374, 86.131, 84.122.
A decisão de 23 de fevereiro de 2006 foi o coroamento dessa tendência do Tribunal, cuja Primeira Turma, no HC 86.224, em 07.03.06, resolveu questão de ordem no sentido de que pode cada ministro decidir
Miguel Juarez Romeiro Zaim
173
individualmente (monocraticamente) os habeas corpus com pedido de
progressão de regime.
Portanto, diante do julgamento do STF, declarando inconstitucional
o § 1º do artigo 2º da Lei 8.072/1990, que impõe o cumprimento da pena
(por crime hediondo) integralmente em regime fechado, não há mais que
se falar em proibição da progressão para crimes hediondos, no atual arcabouço legislativo.
Assim, a partir da decisão do Pleno do STF (HC 82.959), o juiz pode
conceder a progressão do regime em alguns casos concretos. Isso significa, na prática, conferir ao juiz muito mais responsabilidade, colocando
fim à figura do “juiz carimbador”, que só tinha o trabalho de dizer: “crime
hediondo, regime fechado”.
Assim, comunga-se, por fim, com a correta hermenêutica da alteração legislativa ora comentada decorre da chamada “interpretação conforme” a Constituição Federal (art. 5.º, caput, e inc. XLVI, que tratam
dos princípios da isonomia e da individualização da pena), bem como
de uma análise sistemática dos artigos 5º, 6º, 8º e 112, §§ 1º e 2º (com as
alterações da Lei n. 10.792/03), e do art. 131, todos da Lei n. 7.210/84 de
Execução Penal (LEP), com o artigo 33, § 2º, e com o artigo 83, inc. III e
parágrafo único, do Código Penal.
Por outro norte, mister dizer que é evidente que, em casos de crimes
hediondos, prioritariamente quando não se tem legislação específica para
tratar da progressão, a mera análise do comportamento carcerário do preso não é suficiente para a verdadeira individualização da pena durante o
processo de execução, bem como para preencher-se o requisito subjetivo
para se progredir de regime prisional.
Por fim, conclui-se que a Lei dos Crimes Hediondos é um exemplo
claro de como não se deve legislar em matéria penal. As reações contrárias
levantadas ao texto, pelas vozes de insignes doutrinadores pátrios, são uma
demonstração positiva de que a nossa ciência penal alcançou um nível de
amadurecimento tal que não se deixa ser suplantada pela inconsciência e
arroubo do legislador de momento, que, levado pelas correntes radicais da
sociedade, acha que o Direito Penal é a solução para o apaziguamento das
tensões sociais que, em grande parte, geram a criminalidade.
174 Progressão de Regime Prisional na Lei de Crimes Hediondos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo:
Saraiva, 2003.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003.
DELMANTO, Celso, et al. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
FRANCO, Alberto Silva. O Regime Progressivo em Face das Leis nº 8.072/90 e
9.455/97. Boletim IBCCrim, nº 58 (ed. especial), set/97.
_____. Tortura – breves anotações sobre a Lei 9.455/97. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 19, junho-setembro/97.
LEAL, João José. Direito Penal Geral. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2004.
FRANCO, José Alberto. Crimes Hediondos. Notas sobre a Lei 8.072/90. São Paulo:
Saraiva, 1994.
GONÇALVES, Victor. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. São Paulo: Saraiva, 2001.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus,
2004.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. (rev. e ampl.) Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 21. ed. São Paulo:
Atlas, 2004.
MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: textos, comentários e aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 1992.
NUCCI, Guilherme de Souza. Primeiras Considerações sobre a Lei nº 10.792/03.
Disponível em: <http://www.cpc.adv.br/Doutrina/default.htm>. Acesso em: 20 jan.
2004.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
A FUNÇÃO NOTARIAL E DOS
REGISTROS PÚBLICOS
Milena Rondon Luz Tarachuk1
INTRODUÇÃO
Garantir a segurança jurídica dos atos praticados pelos registradores
e tabeliães do Brasil e consolidar a importância e o prestígio dos Registros
públicos no ordenamento jurídico nacional, atrelados ao exercício de função pública que é inerente ao Tabelião, revelam um complexo de dimensões civis, administrativas, tributárias e penais, relativos aos atos que são
praticados no serviço a seu cargo, inclusive por seus auxiliares.
O trabalho ora apresentado tem a finalidade de demonstrar uma
nova faceta da inserção e entrelaçamento do interesse na efetividade dos
procedimentos, noção que nos tempos modernos lidera os autores e pensadores dos processos e procedimentos civis não somente no Brasil, mas
em todo o mundo.
Trata-se da mais moderna linha metodológica da ciência processual, voltada à investigação das raízes políticas, sociológicas e crítica
ao processo que vamos praticando através dos tempos e sem alterações
funcionais significativas. Essas ideias têm sido discutidas e divulgadas
através de publicações frequentes e congressos promovidos por entidades regionais e internacionais e são de crescente aceitação no Brasil
e no mundo.
A FUNÇÃO NOTARIAL E DOS REGISTROS PÚBLICOS
A doutrina nacional, tradicionalmente, acusa a natureza jurídica da
atividade notarial como sendo administrativa. É o sentir de Serpa Lopes,
ao tratar de registros públicos, mas que se aplica à atividade notarial igualmente, in verbis:
1 Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá – Unic, e graduada em Turismo pela UFPR.
176 A Função Notarial e dos Registros Públicos
O sistema de publicidade, na concepção de Ferrara, converte-se
num serviço estatal, função administrativa, atividade gerida pelo
Estado no interesse público: uma forma de administração pública
no direito privado.2
Para Walter Ceneviva a natureza jurídica da atividade notarial é a
de prestação de serviços no interesse público. A expressão “organização
técnica e administrativa” contida no artigo 1º da Lei 8.935/94 não vincula
o notário à administração pública como pode parecer, apenas indica os
princípios dirigentes do próprio funcionamento do tabelionato, como explica Ceneviva:
A organização privada, técnica e administrativa vincula os serviços notariais e de registro a preceitos escolhidos na Economia, conhecidos
desde seu criador, Frederick W. Taylor, como taylorismo, relativos ao
desenvolvimento ordenado e científico do trabalho. Trata-se de preceitos em que a ciência jurídica tem, necessariamente, de se relacionar
com a Economia, para bem compreender o seu alcance.3
De fato, os Serviços de Notas e Registros não são órgãos da Administração Pública. Se assim fosse, o tabelião estaria jungido à hierarquia,
própria da Administração Pública, o que se tornaria incompatível com a
independência atribuída ao notário no artigo 28 da Lei 8.935/94 in verbis:
“os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício
de suas atribuições”. Além disso, os notários e registradores exercem
uma função pública, mas em caráter privado, na dicção do artigo 236 da
Constituição Federal.4
Isso não significa, porém, que eles não se submetam a qualquer tipo
de controle, mas por esse controle cabe apenas aos tribunais a faculdade
de demitir ou suspender o notário.
A função notarial é regulada pelo Diploma Constitucional, no seu
artigo 236, no Título IX, sob a epígrafe das Disposições Constitucionais
2 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos registros públicos. 4. ed. São Paulo: Freitas Bastos,
1960. p. 19.
3 CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada (Lei n. 8.935/94). 4. ed. rev.
ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002.
4 BRASIL. Lei 8935, de 18 de novembro de 1994. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil/
LEIS/L8935.htm>.
Milena Rondon Luz Tarachuk
177
Gerais e não debaixo da rubrica do Poder Judiciário. Sob o Capítulo IV,
da Constituição – Das funções essenciais à justiça –, consta a regulação
das atividades do Ministério Público, da Advocacia Pública e da Advocacia e Defensoria Pública.5
O que se depreende da leitura dos textos mencionados é que não
só o Poder Judiciário exerce uma função ligada à justiça, mas outros órgãos também, como o Ministério Público, a Advocacia Pública e privada
e a Defensoria Pública. No entanto, em nosso ordenamento jurídico, os
serviços notariais não foram enquadrados nesse mesmo grupo. Apesar
de ser possível por interpretação incluir o notário no âmbito da justiça,
por força da fiscalização exercida pelo Poder Judiciário, contida no artigo
236, § 1º, da CF, e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos termos do
inciso III, do § 4º, do artigo 103-B também da CF. Entretanto, apesar de
ligado à Justiça, assim como o promotor público e o advogado, o notário
não exerce função judicial.
Concordamos com a tese do tabelião Marco Antonio Greco Bortz,
que tem como convicção que a atividade notarial seja um múnus publico,
dotado de jurisdição – entenda-se: o poder de dizer o direito em face da
ausência do conflito. Ou seja, na representação do Estado, através da delegação a qual é representante, o notário e o registrador estão investidos
de um múnus publico de bem prestar o serviço de amparar os negócios
jurídicos com intervenção de profissionais dotados de fé pública, para dar
conformação legal a esses atos e, ao mesmo tempo, garantir o exercício da
liberdade individual, já que o Estado não desempenha bem essa atividade
diretamente.6
DEFINIÇÃO DOS ATOS NOTARIAIS E DE REGISTRO
Aqui faremos uma distinção entre atos notariais e registrais, afinal,
por mais que sejam interligados entre si na prática do dia-a-dia, a instrumentalização das formas que lhes dá característica, se evidencia por atos
completamente distintos entre si.
5 BRASIL. Constituição. Brasília: SenadoFederal, 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
6 BORTZ, Marco Antonio Greco. Disponível em: <registradores.org.br/pmcmv-em-debate-o-sofisma-do-alto-custo-cartorario>. Acesso em: 11 nov. 2009.
178 A Função Notarial e dos Registros Públicos
O ato notarial se caracteriza por ser o instrumento público autorizado por notário competente, a requerimento de uma pessoa com interesse legítimo e que, fundamentada nos princípios da função imparcial e
independente, pública e responsável, tem por objeto constatar a realidade ou verdade de um fato que o notário vê, ouve ou percebe por seus
sentidos, cuja finalidade precípua é a de ser um instrumento de prova em
processo judicial, mas que pode ter outros fins na esfera privada, administrativa, registral, e, inclusive, integradores de uma atuação jurídica não
negocial ou de um processo negocial complexo, para sua preparação,
constatação ou execução.
José Frederico Marques, citando Gaetano Donà, menciona que:
O notário, segundo o conceito de Donà, é um profissional livre, a que
pertence o ofício público destinado à autenticação de fatos, tempo,
lugar, coisas, pessoas e vontades, relativos a negócios jurídicos, mediante escrituras, com o valor de prova plena e, às vezes, com eficácia
executiva.7
O direito notarial brasileiro não teve a mesma evolução experimentada na Europa e em outros países sul-americanos.
As disposições sobre o notariado estão contidas nas Ordenações Filipinas de 1603. O articulado sobre os Tabeliães de Notas existente nas Ordenações Filipinas, livro 1, título 788, ao invés de regular a profissão e a forma
de seu exercício, possui muito mais um caráter punitivo. Assim, as normas
existentes nestas disposições dizem o que acontecerá ao tabelião caso ele
cometa um erro ou falta, além de se referir principalmente aos testamentos.
Muitas das práticas e das qualidades do notário descritas desde a
época das Ordenações Filipinas continuam a existir, tais como a honestidade, diligência e habilidade intelectual para bem compreender, redigir e
escrever os atos próprios de seu ofício. Esta realidade sobreviveu ao período imperial, chegando aos nossos dias, quando constatamos que muitas dessas características foram conservadas. Entretanto, inexistem regras
orgânicas sobre o notariado, pouco se sabe a respeito da função notarial,
7 MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a jurisdição voluntária. Atualizada por Ovídio Rocha
de Barros Sandoval. Campinas-SP: Millenium, 2000.
8 BRASIL. Panteão dos clássicos. Senado Federal. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/pantea.htm>.
Milena Rondon Luz Tarachuk
179
apesar de que, a todo momento, em seus atos, o tabelião brasileiro esteja
desempenhando essa função.
Sua exteriorização é que está prejudicada pela falta de uma lei. À
parte esta falta de autonomia profissional, também pouco podemos dizer
sobre a existência de normas reguladoras destinadas à materialização da
função notarial. Se nas Ordenações Filipinas as regras existentes são de
caráter punitivo, resta-nos saber de onde procedem as determinações que
devem seguir os tabeliães. Estas estão espalhadas em diversos regulamentos ditados pelos Tribunais de Justiça de cada Estado da Federação, a evidenciar que inexiste uma norma reguladora uniforme.
A função registral tem por finalidade constituir ou declarar o direito
real, através da inscrição do título respectivo, dotando as relações jurídicas
de segurança, dando publicidade registral erga omnes (ou seja, a todos
indistintamente), até prova em contrário.
A relação de títulos passíveis de registro está enumerada no Código
Civil. Essa enumeração é taxativa, não se podendo acrescentar ou retirar
situações de constituição de direitos reais. Veremos cada caso mais adiante.
A função registral é uma pretensão constante que o Registro seja
uma fiel reprodução da realidade dos direitos imobiliários. A vida material
dos direitos reais, bem como a sua vida tabular, dever-se-iam desenvolver
paralelamente, como se a segunda fosse espelho da primeira.
Segundo Luciano de Camargo Penteado:
Os atos fundamentais praticados pelo registrador são a abertura de matrículas, o registro, a averbação, bem como o ato de início do processo
de dúvida, que é de sua iniciativa e objetiva propiciar um controle jurisdicional, ainda que em sede meramente administrativa, dos atos pelo
oficial praticados. Além disso deve, ao receber um título para eventual
prática de ato registral, oferecer um protocolo, cujo número corresponde ao mecanismo de pré-notação, a qual, indicando data e hora, preserva os direitos do apresentante em matéria de prioridade.9
Importante frisar que a principal característica do registro imobiliário é a de possuir um efeito constitutivo nos atos praticados pelo Oficial Registrador. Isso significa que, por sua própria força, tem a a­ ptidão
9 GONÇALVES, Vânia Mara Nascimento (Org.). Direito Notarial e Registral. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
180 A Função Notarial e dos Registros Públicos
para transmitir o direito real. Sem o ato registral não ocorre a transferência do direito real.
A fé pública é atribuída constitucionalmente ao Notário e Registrador, que atuam como representantes do Estado na sua atividade profissional. A fé pública é atribuída por lei e “afirma a certeza e a verdade
dos assentamentos que o notário e oficial de registro pratiquem e das
certidões que expeçam nessa condição, com as qualidades referidas no
art. 1º” da Lei n. 8.935/94 (publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos).10
FINALIDADE DOS SERVIÇOS
O direito imobiliário está integrado por um conjunto de normas
de natureza civil. Portanto, não cabe a sua consideração como um ramo
jurídico autônomo, desvinculado do Direito Civil. O direito imobiliário regulamenta formas de publicidade dos atos de constituição, transmissão,
modificação ou extinção dos direitos reais sobre propriedades territoriais,
reservando mais especificamente ao Direito imobiliário tão-somente a regulamentação dos requisitos formais de finalidade publicitária dos atos
modificativos dos direitos reais. Embora o direito imobiliário só atenda à
regulamentação dos direitos reais sobre propriedades territoriais, ocasionalmente estende sua normatização a determinados direitos pessoais ou de
crédito, com o objetivo de dotar-lhes de certa garantia real ou de precisar
as eventuais consequências que, em relação ao domínio e demais direitos
reais possam ocasionar, como exemplo aqueles direitos pessoais orientados à obtenção de um direito real.
Dessa forma, podemos relacionar estritamente o direito imobiliário
e também os demais registros aos princípios da publicidade e da segurança
jurídica, princípios estes que estão por sua vez relacionados ao funcionamento do Estado Democrático de Direito por lhe ser inerente e essencial e
pedra-mestra de sustentação do direito de propriedade, o devido processo
legal, o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, entre outros.
A finalidade dos serviços extrajudiciais está na garantia do efeito
erga omnes dos atos praticados nas Serventias, e na publicidade que o re10 BRASIL. Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil/
LEIS/L8935.htm>.
Milena Rondon Luz Tarachuk
181
gistro em livros próprios proporciona assegurando a efetividade dos atos,
através da segurança jurídica que é caráter fundamental e ligado estritamente com a forma adequada de como o sistema registral e notarial
funciona no Brasil. Os registros, e principalmente o registro de imóveis,
atuam na segurança do comércio imobiliário, como suporte na concessão
e recuperação do crédito, na circulação dos novos instrumentos de investimentos imobiliários e temas conexos, os quais garantem credibilidade e
funcionamento da economia de mercado nos âmbitos interno e externo e a
elevação do grau de produtividade e de geração de emprego e renda. Essa
regularidade da atividade registraria, sob óbice do poder privado que tem
dentre suas responsabilidades a de prestar contas ao Poder Judiciário de
cada ato praticado, é esteio primordial para o desenvolvimento comercial
do setor imobiliário e, consequentemente, estimula a circulação de riquezas de uma sociedade.
INGRESSO NA ATIVIDADE
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 236, atribuiu tratamento igualitário aos serviços notariais e de registros, dispondo: “Os serviços
notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do
Poder Público”.11
É competência privativa da União legislar sobre registros públicos,
conforme art. 22, XXV, sendo, desta forma, a Lei Federal n. 8.935/94 a norma geradora do artigo 236 da Constituição que dispõe sobre os serviços
notariais e de registro.12
O ingresso na atividade notarial e de registros será mediante outorga de delegação pública para o exercício da titularidade de um serviço
de Registro de Imóveis ou de um serviço de Notas, através de concurso
público ou de remoção, a teor do art. 14 da Lei 8.935/94, dependerá dos
seguintes requisitos:
– Habilitação em concurso público de provas e títulos;
– Nacionalidade brasileira;
– Capacidade civil;
11 BRASIL. Constituição Federal. Brasília. Senado Federal. 1988. Disponível em: <www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
12 BRASIL. Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil/
LEIS/L8935.htm>.
182 A Função Notarial e dos Registros Públicos
– Quitação com as obrigações eleitorais e militares;
– Diploma de bacharel em direito;
– Verificação de conduta condigna para o exercício da profissão.13
O encarregado do registro recebe a denominação de oficial de Registro e o encarregado dos Tabelionatos, Oficial de Notas. Importa que os
serviços de registro e de notas sejam prestados de modo eficiente e adequados em dias e horários estabelecidos pelo Poder Judiciário, observado
o mínimo de seis horas diárias, atendidas as peculiaridades locais, em área
de fácil acesso ao público e que ofereça segurança para o arquivamento
de livros e documentos. Os oficiais de registro e de notas poderão, para
o desempenho de suas funções, contratar empregados com remuneração
livremente ajustada e sob o regime da legislação do trabalho.
Os concursos públicos para ingresso e/ou remoção na atividade são
exigência atual da legislação, e a vacância da Serventia por morte, afastamento ou aposentadoria do oficial titular de uma serventia acontece por
no máximo seis meses. Após esse prazo, de acordo com a Constituição
Federal, é dado início aos trâmites do concurso público para escolha de
um novo titular.
A remuneração dos notários e registradores não é feita diretamente
pelo Estado, e sim pelos particulares usuários do serviço, através do pagamento de emolumentos e custas, que são fixados por cada Estado. A
lei federal estabelece normas gerais para fixação de emolumentos, sendo
complementada pela competência concorrente dos Estados.
O caráter privado do serviço notarial e de registro não retira a obrigatoriedade de ingresso na atividade por concurso público de provas e
títulos, tanto para provimento ou remoção, conforme preceitua o § 3°, do
art. 236, da Constituição Federal. Importante ressaltar ainda que a delegação tem caráter personalíssimo, podendo somente o Delegado transferir
aos seus prepostos poderes para a prática dos atos notariais, não podendo
ocorrer a figura da cessão da Delegação.14
A fiscalização exercida nos serviços extrajudiciais de notas e registros é feita pelo Estado, e exercida através do Poder Judiciário, conforme
13 BRASIL. Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil/
LEIS/L8935.htm>.
14 BRASIL.Constituição Federal. Brasília. Senado Federal. 1988. Disponível em: <www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
Milena Rondon Luz Tarachuk
183
determina o § 1°, do art. 236, da CF/88, mas conforme preleciona Walter
Ceneviva “em cada Estado a delegação é outorgada pelo Poder Executivo
local, na forma da lei estadual, reservada, em qualquer caso, a fiscalização
à magistratura do respectivo Estado ou do Distrito Federal”.15
A COMPETÊNCIA DOS SERVIÇOS DE REGISTRO
Aos oficiais de registro de imóveis, de títulos e documentos e civis
das pessoas jurídicas, civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas
compete a prática dos atos relacionados na legislação pertinente aos registros públicos, de que são incumbidos, independentemente de prévia distribuição, mas sujeitos os oficiais de registro de imóveis e civis das pessoas
naturais às normas que definirem as circunscrições geográficas.
De acordo com os dispositivos legais, tais como os artigos 1.438,
1.448 e 1.492 do CC, os atos de registros e de averbações de direitos reais
imobiliários deverão ser feitos no local da situação do imóvel, fixando
deste modo que a competência do oficial registrador para a prática do ato
registral, segue o critério geográfico de base territorial delimitada, denominada circunscrição imobiliária.16
E em função dessa sistemática legal adotada no Brasil, os interessados em obter informações acerca dos imóveis situados em determinada
região deverão procurar por elas no cartório que tenha esta região como
sua base territorial.
Dessa forma, cada Serventia Extrajudicial de Registro de Imóveis será
competente pelo registro de imóveis daquela determinada circunscrição. Fato
não válido para as Serventias de Notas, em que o cidadão poderá lavrar qualquer ato de sua vontade na Serventia ou Tabelionato que melhor lhe convier.
RESPONSABILIDADE CIVIL E PENALIDADES
Os notários e registradores executam atividade profissional privada
de função pública geradora de efeitos jurídicos. Todo o risco é dele somente; risco profissional. Na verdade, o delegatário notarial e de registros
15 CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada (Lei n. 8.935/94). 4. ed. rev.
ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002.
16 BRASIL. Código Civil. Brasília. Palácio do Planalto. 2002. Disponível em: <www.planalto.gov.br/
CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>.
184 A Função Notarial e dos Registros Públicos
públicos insere-se na Administração Pública, em substituição ao Estado,
mas à sua conta e risco profissional, cumprindo-lhe ressarcir, pessoal e
objetivamente, os prejuízos infligidos aos usuários e a terceiros.
A fiscalização técnica ou disciplinar não lhe retira a independência
funcional e profissional para instrumentar notas públicas e qualificar títulos, documentos e papéis trazidos a registro.
A Constituição de 1988, que refletiu no seu texto longa trajetória desde o Brasil-Colônia, e, se posicionando politicamente, instituiu que os cartórios extrajudiciais, desligando-se da oficialidade, evoluíram a serviço público
delegado, em caráter privado, sob a fiscalização do Poder Judiciário.17
Os notários e os registradores exercem atividade estatal, entretanto
não são titulares de cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público. Não são servidores públicos, não lhes alcançando a compulsoriedade
imposta pelo mencionado art. da CF/88 – aposentadoria compulsória aos
setenta anos de idade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (STF – Tribunal Pleno – ADI 2.602-0/MG – Rel. para o acórdão Min.
Eros Grau – j. 24.11.2005 – DJ 31.03.2006).18
Então, se os notários e registradores exercem em caráter privado
atividade reservada ao Estado e, segundo o Plenário do STF, não são detentores de cargo público, não podem submeter-se às regras estabelecidas
para os agentes públicos.
De tal maneira, que a responsabilidade civil por todos os atos praticados pelas Serventias Extrajudiciais é do Titular pessoalmente, não podendo ser estendida nem que subsidiariamente à Administração Pública.
ENLACE ENTRE OS ATOS NOTARIAIS E DE REGISTRO E A
DESJUDICIALIZAÇÃO DOS ATOS DO PODER JUDICIÁRIO
Modernamente o estudo do direito iniciou uma nova fase, com visão voltada para a segurança jurídica, a celeridade, a informalidade, entre
outros aspectos, em função da mudança do paradigma que norteia o pensamento jurídico mundial, o da valorização do princípio da dignidade da
pessoa humana.
17 BRASIL. Constituição Federal. Brasília. Senado Federal. 1988. Disponível em: <www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Brasília. 2005. Disponível em: <www.jusbrasil.com.br/busc
a?q=ADI+2602&s=jurisprudencia>.
Milena Rondon Luz Tarachuk
185
No mesmo caminho segue o direito processual. A modificação alcançou os processualistas de todo o mundo que há muito reclamavam
modificações legislativas com o intuito de tornar o processo mais célere,
mais rápido, mais ágil, não penalizando tanto o autor, implantando de vez
o chamado processo civil de resultado, tão defendido por estudiosos e
juristas do mundo inteiro.
Sempre atentos e com olhos nos países onde a legislação visa formas
alternativas de solução de conflitos, tais como os Estados Unidos, que é extremamente avançada, pois prevê formas que têm no seu objetivo principal
a obtenção da celeridade, já que a cultura norte-americana sempre foi voltada para o pragmatismo, despindo-se ao máximo das formalidades jurídicoprocessuais, estas deixadas para os casos que realmente vão a julgamento.
Assim, as legislações do mundo ocidental passaram a oxigenar suas
respectivas legislações sempre focadas no princípio da celeridade processual, como forma de respeito à pessoa do autor, materializando o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
A partir de então vários conceitos dessa nova tese vêm se propagando no mundo jurídico, até chegar ao Brasil, tais como:
Segundo Eber Zoehler Santa Helena:
A desjudicialização engloba inúmeras possibilidades de desafogar o Poder Judiciário de suas atribuições em face da crescente litigiosidade das
relações sociais, em um mundo a cada dia mais complexo e mutante. A
desoneração do Poder Judiciário tem aplicação especial naquelas funções por ele desempenhadas que não dizem respeito diretamente à sua
função precípua em nosso modelo de jurisdição una, ou seja, o monopólio de poder declarar o direito em caráter definitivo, por seu trânsito
em julgado soberano, pós rescisória. Dentre as funções atípicas do Judiciário, encontramos o desempenho da jurisdição voluntária ou administrativa, ou administração pública de interesses privados, onde se dá
largo espectro de atuação da magistratura e do parquet, não havendo
partes, mas interessados, sendo a coisa julgada meramente processual e
não material, sempre sujeita à revisão pelo processo contencioso. Essas
funções atípicas são predominantes nos interesses do direito de família,
das sucessões, das coisas, em especial no tocante aos registros.19
19 SANTA HELENA, Eber Zoehler. O fenômeno da desjudicialização. Disponível em: <http://jus2.
uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7818>. Acesso em: 22 ago. 2009.
186 A Função Notarial e dos Registros Públicos
Para Jacques Béhin, notário francês:
O crescimento na Comunidade Europeia da tendência de legislar vias
alternativas extrajudiciais de resolução de conflitos, com atenção especial voltada para os litígios familiares, sob a perspectiva de desjudicialização da sociedade. E este título vem coincidir com a missão tradicional
do notário em matéria de mediação e de prevenção de conflitos.20
Mônica Sifuentes, juíza federal21, menciona ainda como exemplo
de desjudicialização o ordenamento português que tem adotado caminho
diferente do nosso na matéria relativa a menores ou relações familiares,
tais como atribuição de alimentos a filhos maiores, a autorização para
utilização ou proibição do uso do sobrenome do cônjuge divorciado, a
conversão da separação em divórcio, quando não houver litígio, a reconciliação de cônjuges separados, entre outras, que foram transferidas para o
Ministério Público ou o próprio Cartório de Registro Civil (Decretos-Leis n.
272 e 273, de outubro de 2001).
Desse modo, podemos afirmar que as profissões jurídicas estão passando por um pro­cesso de especialização, o qual tem sido desenvolvido
através do sistema de prática pro­fissional, implicando a adaptação das empresas, do mercado jurídico e do sistema de ensino universitário e de formação profissional. Dessa forma o trabalho passa a estar organizado de maneira
estandardizada e repetitiva, com uma separação das tarefas e atividades,
desconstruindo um trabalho com alto grau de complexi­dade.
Verifica-se, também, uma multidisciplinaridade, assis­tindo-se à integração de novas profissões jurídicas, mas também o recurso a profissões
não jurídicas, como economistas, assistentes sociais, entre outros, permitindo alterar os métodos e o conteúdo do trabalho jurídico. Por esse ponto de
vista, aumenta-se a complexi­dade da análise e reforça-se a argumentação,
mas se dilui a relação direta entre o jurista e o ‘cliente’. Existe uma expansão e/ou empresarializa­ção dos serviços jurídicos, havendo uma redução
dos profissionais libe­rais e um aumento de empresas jurídicas com juristas
assalariados, subcontratados ou mesmo em prestação de serviços. Surgem
20 BÉHIN, Jacques. Via extrajudicial de resolução de conflitos ganha espaço na Europa. Boletim
ANOREG, n. 2, 22. ed., fevereiro, 2001.
21 SIFUENTES, Mônica. Judicialização dos conflitos familiares. Disponível em: <http://jus2.uol.
com.br/doutrina/texto.asp?id=4242>. Acesso em: 22 ago. 2009.
Milena Rondon Luz Tarachuk
187
novos métodos de pesquisa e de trabalho (resul­tantes das novas tecnologias), bem como de comunicação dentro das profissões jurídicas, mas
também entre estas e os seus clientes e nos tribunais. As novas tecnolo­gias
permitem ainda uma maior aceleração processual, diminuindo o tempo
jurídico de cada ação.
A desjudicialização surge face à incapaci­dade de resposta dos tribunais à procura, ao excesso de formalismo, ao custo, à morosi­dade da
duração dos processos e ao difícil acesso à justiça.
Todas estas alterações no panorama jurídico levam a que se cami­
nhe para um novo conceito de Justiça, mais abrangente e adaptado às
novas característi­cas da sociedade.
CONCLUSÃO
Creio na eficiência das Serventias Extrajudiciais para abraçar e englobar, com toda a responsabilidade que já lhes é concernente, todas as
atribuições que a elas sejam transferidas, aumentando o seu grau de importância e também de seus rendimentos, afinal não nos esqueçamos que
a responsabilidade civil é do Tabelião e não do Estado.
As modificações já ocorridas no Código de Processo Civil Brasileiro decorrentes dessa forma moderna e mais adequada de se encarar
as necessidades dos clientes que buscam os serviços de caráter público
que os Cartórios em todo o país prestam, e que em função da segurança
jurídica que os Cartórios conseguem oferecer, através da organização dos
seus arquivos, sejam eles ainda através dos livros e cada vez mais de forma eletrônica, e ainda da forma descentralizada da busca e dos registros
imobiliários como é adotado em nosso país, principalmente no que tange
ao registro imobiliário de acordo com a circunscrição abrangida por cada
Cartório, é que torna os serviços prestados pelos Cartórios essenciais, com
a devida segurança jurídica, publicidade e que contribui sobremaneira com
a organização judiciária do nosso país.
Entendo que a celeridade ocasionada em função da desjudicialização de processos significará aumento de prestígio para o Poder Judiciário, que poderá se ater a fatos que impliquem conflitos que precisem da intervenção judicial, fazendo com que a eficácia dos serviços
jurisdicionais seja muito maior. Descentralizar, desde que de maneira
organizada e pautada no mais amplo processo legal, tornará o Poder
188 A Função Notarial e dos Registros Públicos
Judiciário muito mais respeitado do que já é.
Outro fator de grande relevância e não menos importante é a possibilidade de rendimentos financeiros para as Serventias Extrajudiciais atrelados aos atos que a desjudicialização ocasionará, afinal os tabeliães são
responsáveis por todos os atos por eles praticados, respondendo civilmente por meio do seu patrimônio pessoal.
As Serventias Extrajudiciais são empresas privadas que prestam serviços públicos, e por sua natureza privada precisam sim de fontes e subsídios financeiros para sua boa gestão administrativa e financeira. Esse
enfoque é de grande importância nos dias atuais, nos quais o bem-estar
coletivo se sobrepõe ao particular. Entretanto, o bem-estar coletivo no
sentido mais abrangente da expressão somente se faz se todas as engrenagens que o sustentam, e aqui incluo os serviços prestados pelas Serventias
Extrajudiciais em todo o Brasil, forem economicamente viáveis e rentáveis.
Não podemos ser hipócritas em defender uma tese que vise ao bem-estar
coletivo em detrimento do que a este cidadão que lhe presta um serviço
de caráter privado.
As Serventias Extrajudiciais são empresas privadas delegadas; sendo assim, precisam ser rentáveis para a sua gestão e para o lucro do
tabelião que ali exerce uma função pública, mas que possui sua fonte de
rendimentos pessoal. A Serventia da qual esse tabelião é titular é uma
empresa privada como outra qualquer no sentido de que paga impostos, contrata pessoas, gera riquezas para aqueles que são os seus gestores, funcionários e para todos os demais envolvidos na cadeia produtiva
(prestadores de serviços em geral, fornecedores de produtos usados nas
Serventias, entre outros).
De tal forma, que se tornará desestimulador exercer as delegações
de notário e registrador em função do bem-estar social e coletivo, em detrimento dos ganhos das Serventias, pois esse Tabelião não terá estímulos financeiros para querer continuar exercendo a função que lhe foi delegada.
Finalizo com o pensamento de que o caminho para a desburocratização dos serviços jurídicos se dará com a existência da desjudicialização
nos procedimentos, entretanto somente se na sua finalidade primordial,
que é a de proporcionar prestação de serviços céleres, atrelados à segurança jurídica, à publicidade dos atos praticados e da instrumentalização
das formas, for respeitado o caráter privado que as Serventias Extrajudiciais possuem.
Milena Rondon Luz Tarachuk
189
E, afinal, que a desjudicialização possibilite uma maior autonomia
ao Notário e Registrador em relação não somente aos atos praticados, mas
também uma forma de possuírem um incremento financeiro, principalmente no que diz respeito àquelas Serventias de pequeno e médio porte,
tornando-as um apêndice indispensável para a construção de uma cidadania sólida e respeitada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÉHIN, Jacques. Via extrajudicial de resolução de conflitos ganha espaço na Europa. Boletim Anoreg, Rio de Janeiro, n. 22, 22. ed., fevereiro/2001.
BORTZ, Marco Antonio Greco. O sofisma do alto custo cartorário. Disponível em:
<http://registradores.org.br/pmcmv-em-debate-o-sofisma-do-alto-custo-cartorario/>. Acesso em: 11 nov. 2009.
CARDOSO, Antonio Pessoa. Desjudicialização das Relações Sociais. Disponível em:
<http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewPDFInterstitial/25448/25011>. Acesso em: 2 nov. 2009.
CENEVIVA. W. Lei dos Registros Públicos Comentada. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2007.
GONÇALVES, Vânia Mara Nascimento (Coord.). Direito Notarial e Registral. Rio de
Janeiro: Forense, 2006.
LIMA, Frederico Henrique Viegas de Lima. Direito Imobiliário Registral na Perspectiva Civil – Constitucional. Porto Alegre: SafE, 2004.
MONTES, Angel Cristóbal. Direito Imobiliário Registral. Porto Alegre: SafE, 2005.
PAIVA, João Pedro. Novas Perspectivas de atos notariais: usucapião extrajudicial
e sua validade no ordenamento jurídico brasileiro. Colégio Notarial do Brasil. São
Paulo: Quartier Latin, 2009.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
190 A Função Notarial e dos Registros Públicos
SANTOS, Flauzilino Araújo. Registro de Imóveis – sua contribuição para o desenvolvimento jurídico, econômico e social do Brasil. São Paulo: IRIB, 2008.
SANTA HELENA, Eber Zoehler. O fenômeno da desjudicialização. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7818>. Acesso em: 22 ago. 2009.
SIFUENTES, Mônica. Judicialização dos conflitos familiares. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4242>. Acesso em: 22 ago. 2009.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Coleção Direito Civil, v. 5).
NORMAS E INSTRUÇÕES AOS
COLABORADORES DA REVISTA JURÍDICA
DA UNIVERSIDADE DE CUIABÁ – UNIC
O objetivo da Revista Jurídica da UNIC é divulgar a produção científica da comunidade acadêmica, na forma de artigos, ensaios, informes científicos e resenhas.
Os trabalhos devem ser inéditos e, uma vez aceitos pela Revista, não deverão ser
publicados, sob qualquer forma, em outro periódico ou livro, antes de decorridos
seis meses de sua publicação nesta Revista.
Não serão aceitos trabalhos que não obedecerem às normas e às instruções aprovadas pelo Conselho Editorial, dentre as quais as seguintes:
1 – Os trabalhos serão apresentados em português ou espanhol, gravados como
arquivo eletrônico em disquete 3½ e com uma cópia;
2 – Os autores devem encaminhar o disquete ou CD Rom com o trabalho digitado
e composto no editor de texto Microsoft Word, versão 7.0, ou mais moderna, em
fonte Arial ou Times New Roman, tamanho 12;
3 – Os textos serão digitados em espaço 1,5, em folha A4 (210mmX297mm), com
margens esquerda e superior de 3 cm e direita e inferior de 2 cm, numeração arábica das páginas no ângulo superior direito, conforme NBR 14724/2002, da ABNT;
4 – Todo trabalho será submetido à revisão linguística, da normalização técnica,
formal e metodológica, pela Editora da Unic;
5 – Os originais ainda não publicados não serão devolvidos aos autores;
6 – Os artigos científicos deverão ter a seguinte estrutura física e metodológica:
a) Perfazer, no máximo, 20 (vinte) laudas digitadas, impressas somente de
um lado da folha;
b) Título completo, subtítulo e observação numerada ao pé da página, se
houver;
c) Nome(s) do(s) autor(es);
d) Crédito(s) do(s) autor(es), com nota explicativa dos dados, ao pé da
página, incluindo titulação e vinculação institucional;
e) Resumo do artigo com no máximo 250 palavras (a EdUNIC sugere resumos mais curtos, com até 100 palavras) em português, e inglês ou espanhol,
obedecendo às normas da NBR 6028/2003 da ABNT;
f) Seleção de até quatro termos ou expressões que identifiquem o conteúdo
do artigo (Palavras-chave);
g) O texto do artigo deve conter parte introdutória, corpo do trabalho com
desenvolvimento livre, conclusões e referências bibliográficas elaboradas
de acordo com a NBR 6023/2002, da ABNT;
192 Normas e Instruções aos Colaboradores da Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá – Unic
h) As citações devem ser feitas no corpo do texto indicando a fonte em nota
de rodapé, pelo sistema de remissiva numérica sequencial em todo o texto,
obedecendo às regras da NBR 10520/2002, da ABNT e devem aparecer na
lista de referências bibliográficas do final do texto;
i) As ilustrações, tabelas e quadros, o uso de grandezas, unidades e símbolos, e as abreviaturas usadas no texto devem ser elaborados, preferencialmente, com os recursos do Microsoft Word, ou indicado o programa usado
para sua produção, e seguirem as normas nacionais da ABNT; o autor deverá indicar a posição delas junto ao texto;
j) Todos os títulos dos capítulos dos textos deverão ser grafados com corpo
de letra 12, em caixa alta e baixa e em negrito; os demais títulos das divisões e subdivisões do texto deverão ser grafados em corpo de letra 12, em
caixa baixa, com uma configuração de destaque gráfico padrão (grifada ou
negrito); se utilizar a Numeração Progressiva, para as divisões das partes
do trabalho, esta deverá ser adotada conforme a NBR 6024/2003, da ABNT;
7 – Os conceitos emitidos nos textos são de inteira responsabilidade dos seus
autores;
8 – Cada artigo científico publicado dará direito ao(s) autor(es) de receber, da EdUnic, cinco exemplares da edição em que ocorre a publicação, a título de retribuição
aos direitos autorais;
9 – Os direitos de edição dos artigos científicos e dos trabalhos efetivamente publicados serão transferidos para a Revista, sendo autorizada a reprodução mediante
indicação da fonte;
10 – A correção das provas tipográficas dos artigos e dos trabalhos ficará sob a responsabilidade do corpo editorial da Revista, salvo em caso de solicitação especial
e por escrito do(s) autor(es);
11 – Os trabalhos para publicação na Revista Jurídica devem ser encaminhados à
Coordenação do Curso de Direito da UNIC, que os repassarão à coordenação da
Editora da UNIC – EdUnic, com sua recomendação escrita;
12 – As resenhas, relatórios e outros tipos de trabalhos objeto de publicação na
Revista Jurídica deverão obedecer às normas específicas da ABNT;
13 – Para os aspectos não mencionados aqui, deverão ser adotadas as regras para
“Elaboração e apresentação de Trabalhos Acadêmicos”, NBR 14724/2002 da ABNT.