Apostila 2005s1
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Apostila 2005s1
HISTÓRIA DO PORTUGUÊS DO BRASIL* FORMAÇÃO HISTÓRICA DA LÍNGUA PORTUGUESA: O PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI – SELEÇÃO DE TEXTOS A CARTA DO ACHAMENTO, DE PERO VAZ DE CAMINHA Sñor posto que o capitam moor desta vossa frota e asy os outros capitaães screpuam a vossa alteza a noua do achamento desta vossa terra noua que se ora neesta nauegaçam achou. nom leixarey tambem de dar disso minha comta a vossa alteza asy como eu milhor poder ajmda que pera o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer./ pero tome vossa alteza minha jnoramcia por boa vomtade. a qual bem certo crea q por afremosentar nem afear aja aquy de poer mais ca aquilo que vy e me pareceo./ da marinhagem e simgraduras do caminho nõ darey aquy cõnta a vossa alteza porque o nom saberey fazer e os pilotos devem teer esse cuidado e portanto Sñor do que ey de falar começo e diguo./ que a partida de Belem como vossa alteza sabe foi segda feira ix de março. e sabado xiiij do dito mês amtre as biij e ix oras nos achamos amtre as Canareas mais perto da Gram Canarea e aly amdamos todo aquele dia em calma a vista delas obra de tres ou quatro legoas. e domingo xxij do dito mês aas x oras pouco mais ou menos ouvemos vista das jlhas do Cabo Verde. s. da jlha de Sã Njcolaao segº dito de Pero Escolar piloto, e a noute segujnte aa segda feira lhe amanheceo se perdeo da frota Vaasco de Atayde com a sua naao sem hy aver tempo forte ñe contrairo pera poder seer. fez o capitam suas deligencias pera o achar a huuas e a outras partes e nom pareceo majs./ E asy seguimos nosso caminho per este mar de lomgo ataa terça feira de oitavas de pascoa que foram xxj dias de abril que topamos alguus synaaes de terra semdo da dita jlha sego os pilotos deziam obra de bjelx ou lxx legoas. os quaaes herã mujta camtidade de ervas compridas a que os mareantes chamã botelho e asy outras a que tambem chamã rrabo de asno./ E aa quarta feira segujnte pola manhã topamos aves a que chamã fura buchos e neeste dia a ora de bespera ouvemos vjsta de terra s. premeiramente de huu gramde monte muy alto. e rredondo de outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos. ao qual monte alto o capitam pos nome o monte Pascoal e aa terra Terra de Vera Cruz. mandou lamçar o prumo acharam xxb braças e ao sol posto obra de bj legoas de terra surgimos amcoras em xix braças amcorajem limpa. ali jouvemos toda aquela noute. e aa quinta feira pola manhã fezemos vella e segujmos dirtos aa terra e os navjos pequenos diãte himdo per xbij xbj xb xiiij xij x. e ix braças ataa mea legoa de terra omde todos lançamos amcoras em dirto da boca de huu rrio e chegariamos a esta amcorajem aas x oras pouco mais ou menos a daly ouvemos vista de homees q amdavam pela praya obra de bij ou biij sego os navjos pequenos diseram por chegarem primeiro./ aly lançamos os batees e esquifes fora e vieram logo todolos capitaães das naaos a esta naao do capitam moor e aly falaram. e o capitam mandou no batel em terra Njcolaao Coelho pera veer aqle rrio e tamto que ele começou pera la de hir acodirã pela praya homees quando dous qado tres de maneira que quando o batel chegou aa boca do rrio heram aly xbiij ou xx homees pardos todos nuus sem nhuua cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. traziam arcos nas maãos e suas seetas. vijnham todos rijos pera o batel e Njcolaao Coelho lhes fez sinal que posesem os arcos. e eles o poseram. aly nom pode deles aver fala ne entedimento que Apostila elaborada pelo Professor Márcio Renato Guimarães (UFPR/SCHLA/DLLCV) para uso exclusivo na disciplina HL 397 – Língua Portuguesa V – do curso de Letras. Boa parte do material aqui foi copiado de outras obras, casos em que há indicação da fonte. A apostila não resume toda a matéria da disciplina – existe uma bibliografia auxiliar, que aprofunda alguns pontos. Além disso, aquilo que é dito em sala e passado no quadro é considerado matéria dada. Não esqueçam de vir para as aulas com caderno e caneta. * aproveitasse polo mar quebrar na costa. soomente deulhes huu barete vermelho e huua carapuça de linho que levava na cabeça e huu sombreiro prto. E huu deles lhe deu sombreiro de penas de aves compridas cõ huua copezinha pequena de penas vermelhas e pardas como a de papagayo e outro lhe deu huu rramal grande de comtinhas brancas meudas que querem parecer de aljaauveira as quaaes peças creo que o capitam manda a vossa alteza e com isto se volveo aas naaos por seer tarde e nom poder deles aver mais fala por aazo do mar./ a noute segujnte ventou tamto sueste cõ chuvaceiros que fez caçar as naaos e especialmente a capitana. (...) Davãnos daqueles arcos e seetas por sonbreiros e carapuças de linho e por qualqr coussa que lhes home queriã dar./ daly se partirã os outros dous mancebos que nom os vimos mais./ amdavam aly mujtos deles ou casy a mayor parte, que todos traziam aqueles bicos de oso nos beiços furtados e nos buracos traziam huus espelhos de paao que pareciam espelhos de boracha e alguus deles traziam tres daqueles bicos. s. huu da metada e os dous nos cabos. e amdavam hy outros quartejados de cores. s. deles a meetada da sua propria cor e a meetade de timtura negra maneira de azulada e outros quartejados de escaques./ aly amdavam antre eles tres ou quatro moças bem moças e bem jentijs com cabelos mujto pretos comprjdos pelas espadoas e suas vergonhas tam altas e tã çaradinhas e tam limpas das cabeleiras que de as nos muhto bem olharmos nõ tinhamos nhuua vergonha./ aly por emtam nom ouve mais fala ne entendimento cõ eles por a berberja deles seer tamanha que se nom emtendia nem ouvja njnge./ (...) Esta terra Sñor me parece que da ponta q mais conta o sul vimos ataa outa ponta que conta o notre vem de que nos deste porto ouvemos vista./ sera tamanha que avera neela bem xx ou xxb legoas per costa./ traz ao lomgo do mar em alguas partes grandes bareiras delas vermelhas e delas bramcas e terra per cima toda chaã e mujto chea de grandes arvoredos./ de pomta e pomta he toda praya parma e mujto chaã e mujto fremosa./ pelo sartaão nos pareceo do mar mujto grande porque a estender olhos nõ podiamos veer se nõ terra e arvoredo que nos parecia muy longa terra./ neela ataa agora cousa de metal nem de fero. nem lho vjmos./ pero a terra em sy he de mujto boos ares frios e tenperados coma os de Antre Doiro e Minho porque neste tempo d’agora asy os achavamos coma os de la/ agoas sam mujtas jmfimdas. E em tal maneira he graciosa que querendoa aproveitar darsea neela tudo per bem das agoas que tem./ pero o mjlhor fruito que neela se pode fazer me parece que sera salvar esta jemte e esta deve seer a principal semente que vossa alteza em ela deve lamçar./ E que hy nõ ouvesse majs ca teer aquy esta pousada pera esta navegaçom de Caelcut. Abaastaria/ quanto majs desposiçã pera se neela conprir e fazer o q nossa alteza tamto deseja. s. acrecetamto da nos santa fe/. E neesta maneira Sñor dou aquy a vossa alteza do que neesta vossa terra vy e se aalguu pouco alomguey. ela me perdoe./ ca o desejo que tijnha de vos tudo dizer mo fez asy poer pelo meudo. E pois que Sñor he certo que asy neeste careguo que levo como em outrã qualqr coussa que de vosso serviço for vossa alteza ha de ser de my mujto bem servido./ a ela peço que por me fazer simgular merçee mãde vijr da jlha de Sam Thomee Jorge de Osoiro meu jenrro. o que dela rreceberey em mujta merçee./ beijos as maãos de vossa alteza./ deste Porto Seguro da vossa jlha de Vera Cruz oje sesta feira primeiro de mayo de 1500// A CARTA DE MESTRE JOÃO FARAS João Faras era o médico da armada de Cabral. Segundo alguns textos, Juan Farás ou Faraz nasceu em Sevilha. A respeito dele, diz seu genealogista, Diogo Rangel de Macedo (apud Valentim 1004: 121): passou a este Reyno expulsado de Castella o Mestre Joam que fazia publica profiçam da ley Hebrayca, e era muito doutto em Medecina, por cuja cauza o dicto Rey D. Manoel dezejava muito a sua conversam e como ele era não só doutto, mas de clarissimo entendimento, com lhe explicarem algus textos que elle intrepretava, mal abraçou logo a verdade da doutrina Christãa e abjurou os seus erros, recebendo o baptismo em 24 de Janeiro de 1496. Em que tomou o nome de Joam em obzequio do Primcepe e aapellido da Paz por devoçam de N. S.ª que com esta invocassam se festejava naquelle dia. El Rey D. Manoel o ennobreceu e deu armas novas que são em campo azul hua patra de pratta entre quatro rosas vermelhas. Foy muito rico e se estabeleceu na cidade do Porto onde fez huas cazas no sítio onde chamão o Padram de Belmonte e nellas pos as sobreditas armas. Estas cazas vieram a ser de Manuel Pacheco, primeiro juiz da Alfandega da dicta cidade. A conversão (forçada) dos judeus de Portugal, em 1496, ordenada por D. Manuel, era uma das cláusulas do contrato de casamento de seu filho com a princesa D. , filha dos reis Católicos da Espanha, D. Isabel e D. Fernando. Essa cláusula foi exigência dos reis espanhóis, como condição para o casamento. No tempo do Renascimento, quando ainda não havia se esboçado a tendência, no campo científico, de alta especialização, os físicos se ocupavam de diversos tipos de estudos. Entre as incumbências de Farras estava o do estabelecimento da posição exata das estrelas no céu meridional, a fim de que elas pudessem ser usadas para a navegação. O “físico” acaba por concluir que é melhor navegar utilizando o sol como referência. Mestre João viajava, na Frota de Cabral, na caravela Nossa Senhora da Anunciada pertecente ao tio do Duque de Bragança, D. Jaime, em sociedade com alguns comerciantes florentinos, e parece que era a menor das caravelas da frota cabralina. Señor O bacharel mestre Johan fisico1 e cirurgyano de Vosa Alteza beso vosas reales manos. Señor porque de todo lo aca pasado largamente escrivieron a vosa alteza asy2 arias correa como todos los otros solamente escrevire dos puntos senor ayer segunda feria que fueron 27 de abril descendimos em terra yo e el, pyloto do capitan moor e el pyloto de Sancho de touar e tomamos el altura del sol al medyodya e fallamos 56 grados e la sonbra era septentrional por lo qual segund las reglas del estrolabio jusgamos ser afastados de la equinocial por 17 grados, e por consyguiente tener el altura del polo antarctico en 17 grados3, segund que es magnifiesto en el espera e esto es quanto alo uno, por lo qual sabra vosa alteza que todos los pylotos van adiante de mi en tanto que pero escolar va adiante Fisico, aqui, tem o significado mais próximo do inglês physician, i.e., “médico”, do que do significado moderno da palavra. Físico, no fim da Idade Média e no Renascimento era também o nome genérico daqueles que se dedicavam à investigação do mundo empírico, em oposição àqueles que se dedicavam a disciplinas especulativas (entre elas, a gramática...). Pensem que em 1500, Nicolau Copérnico era um jovem estudante polonês viajando pela Itália, faltavam 64 anos para o nascimento de Galileu e 142 para o de Newton. 2 Asy Aires Correa como todos los otros. Em português contemporâneo diríamos tanto Aires Correa como todos os outros. 3 Uma rápida consulta a um mapa moderno mostrará que o paralelo 17° passa bem em cima do Monte Pascoal. O que demonstra que o Mestre era bom no astrolábio! 1 150 leguas e otros mas e otros menos: pero quien disse la verdad non se puede certyficar fasta que en boa ora4 allegemos al cabo de boa esperança e ally sabremos quien va mas cierto ellos con la carta e con el estrolabio: quanto Señor al sytyo desta terra mande vosa alteza traer un mapamundy que tyene pero vaaz bisagudo e por ay podrra ver vosa alteza el sytyo desta terra5, en pero aquel mapamundy non certyfica esta terra ser habytada, o no: es napamundi antiguo e ally fallara vosa alteza escrita tan byen la mina: ayer casy entendimos per aseños que esta era ysla1 e que eran quatro e que de otra ysla vyenen aqui almadias6 a pelear con ellos e los lleuan catiuos: quanto Señor al otro puncto sabra vosa alteza que cerca de las estrellas yo he trabajado algo de lo que he podido pero non mucho a cabsa de una pyerna que tengo mui mala que de una cosadura se me ha fecho una chaga mayor que la palma de la mano7, e tan byen a cabsa de este navio ser mucho pequeno e mui cargado que non ay lugar pera cosa ninguna solamente mando a vosa alteza como estan situadas las estrellas del, pero en que grado esta cada una non lo he podido saber, antes me paresce ser impossible en la mar tomarse altura de ninguna estrella porque yo trabaje mucho en eso e por poco que el navio enbalance se yerran quatro o cinco grados de guisa que se non puede fazer synon en terra, e otro tanto casy digo de las tablas de la India8 que se non pueden tomar con ellas sy non con mui mucho trabajo, que si vosa alteza supiese como desconcertavan todos en las pulgadas reyrya dello mas que del estrolabio porque desde lisboa ate as canarias unos de otros desconcertavan en muchas pulgadas que unos desian mas que otros tres e quatro pulgadas, e otro tanto desde las canarias ate as yslas de cabo verde, e esto rresguardando todos que el tomar fuese a una misma ora, de guisa que mas jusgauan quantas pulgadas eran por la quantydad del camino que les paresçia que avyan andado que non el camino por las pulgadas: tornando Señor al proposito9 estas guardas nunca se esconden antes syenpre andan en derredor sobre el orizonte, e aun esto dudoso que non se qual de aquellas dos mas baxas sea el polo antartyco, e estas estrellas principalmente las de la crus son grandes casy como las del carro, e la estrella del polo antartyco, o sul es pequena como la del norte e muy clara, e la estrella que esta en riba de toda la crus es mucho pequena: non quiero mas alargar por non ynportunar a vosa alteza, saluo que quedo rogando a noso Señor ihesu christo la la vyda e estado de vosa alteza acresciente como vosa alteza desea. Fecha en uera crus a primero de maio de 500. pera la mar mejor es regyrse por el altura del sol que non por ninguna estrella e mejor con estrolabio que non con quadrante nin con otro ningud estrumento. do criado de vosa alteza e voso leal servidor. Johannes Em boa hora, significa “oportunamente”. Essa expressão, que originou a conjunção embora ainda era usada no seu sentido original, embora ela já começasse aparecer como uma contração e com o sentido moderno. Observe que ela figura em português, num texto em espanhol. Esta controversa passagem sugerem que já haveriam mapas com a localização do Brasil antes de 1500. Algumas informações mais à frente, no texto, sugerem que se julgava tratar de uma ilha. 6 Almadia, (do ár. al ma’adīa) “embarcação africana e asiática, muito comprida e estreita, feita, por via de regra, de um só pau, escavado, escavado; tone”, segundo o Aurélio. É como os portugueses de 1500 chamavam as igaras dos índios. 7 Se você sempre quis saber o que acontece com quem fica vários meses sem tomar banho e com a mesma roupa, agora descobriu. 8 Ele se refere às observações astronômicas feitas por astrônomos indianos e árabes. Como a Índia e a Arábia ficam numa latitude mais baixa que a Europa, de lá pode-se observar parte do céu meridional. 9 Neste ponto, no texto, existe um desenho das constelações meridionais. 4 artium el medicine bachalarius. Sobrescrito: A el Rey nosso senor Nota quinhentista: De mestre Johã q vay ha Callecut. [texto copiado a partir da digitalização disponível em http://books.google.com.br/books?id=fx1Np41_90C&pg=PA342&vq=cirurgyano&source=gbs_search_r&cad=0_1#v=onepage&q=cirurgyan o&f=false; uma cópia dessa digitalização está disponível no verbete da wikipedia sobre o Mestre João. Senhor: O bacharel mestre João, físico e cirurgião de Vossa Alteza, beijo vossas reais mãos. Senhor: porque, de tudo o cá passado, largamente escreveram a Vossa Alteza, assim Aires Correia como todos os outros, somente escreverei sobre dois pontos. Senhor: ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos em terra, eu e o piloto do capitão-mor e o piloto de Sancho de Tovar; tomamos a altura do sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional, pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17°, e ter por conseguinte a altura do pólo antártico em 17°, segundo é manifesto na esfera. E isto é quanto a um dos pontos, pelo que saberá Vossa Alteza que todos os pilotos vão tanto adiante de mim, que Pero Escobar vai adiante 150 léguas, e outros mais, e outros menos 10, mas quem diz a verdade não se pode certificar até que em boa hora cheguemos ao cabo de Boa Esperança e ali saberemos quem vai mais certo, se eles com a carta, ou eu com a carta e o astrolábio. Quanto, Senhor, ao sítio desta terra, mande Vossa Alteza trazer um mapa-múndi que tem Pero Vaz Bisagudo e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; mas aquele mapamúndi não certifica se esta terra é habitada ou não; é mapa dos antigos e ali achará Vossa Alteza escrita também a Mina. Ontem quase entendemos por acenos que esta era ilha, e que eram quatro, e que doutra ilha vêm aqui almadiasa pelejar com eles e os levam cativos. Quanto, Senhor, ao outro ponto, saberá Vossa Alteza que, acerca das estrelas, eu tenho trabalhado o que tenho podido, mas não muito, por causa de uma perna que tenho muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão; e também por causa de este navio ser muito pequeno e estar muito carregado, que não há lugar para coisa nenhuma. Somente mando a Vossa Alteza como estão situadas as estrelas do (sul), mas em que grau está cada uma não o pude saber, antes me parece ser impossível, no mar, tomar-se altura de nenhuma estrela, porque eu trabalhei muito nisso e, por pouco que o navio balance, se erram quatro ou cinco graus, de modo que se não pode fazer, senão em terra. E quase outro tanto digo das tábuas da Índia, que 11 se não podem tomar com elas senão com muitíssimo trabalho, que, se Vossa Alteza soubesse como desconcertavam todos nas polegadas, riria disto mais que do astrolábio; porque desde Lisboa até às Canárias desconcertavam uns dos outros em muitas polegadas, que uns diziam, mais que outros, três e quatro polegadas, e outro tanto desde as Canárias até às ilhas de Cabo Verde, e isto, tendo todos cuidados que o tomar fosse a uma mesma hora; de modo que mais julgavam quantas polegadas eram, pela quantidade do caminho que lhes parecia terem andado, que não o caminho pelas polegadas. Tornando, Senhor, ao propósito, estas Guardas nunca se escondem, antes sempre andam ao derredor sobre o horizonte, e ainda estou em dúvida que não sei qual de aquelas duas mais baixas seja o pólo antártico; e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro; e a estrela do pólo antártico, ou Sul, é pequena como a da Norte e muito clara, e a estrela que está em cima de toda a Cruz é muito pequena. Não quero alargar mais, para não importunar a Vossa Alteza, salvo que fico rogando a Nosso Senhor Jesus Cristo que a vida e estado de Vossa Alteza acrescente como Vossa Alteza deseja. Feita em Vera Cruz no primeiro de maio de 1500. Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do sol, que não por nenhuma estrela; e melhor com Aqui e em outros pontos: observe que predominam as frases longas, com grande quantidade de assíndetos. Os padrões de coesão textual eram ligeiramente diferentes no século XV. 11 digo... que.... Não se trata de uma relativa, mas do complementizador pedido pelo verbo digo anterior. 10 astrolábio, que não com quadrante nem com outro nenhum instrumento. Do criado de Vossa Alteza e vosso leal servidor. Johannes artium et medicine bachalarius PEREIRA, Paulo Roberto Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil - Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. (MCG) GÂNDAVO: HISTÓRIA DA PROVÍNCIA DE SANTA CRUZ (1575) CAPÍTULO V DAS PLANTAS, MANTIMENTOS E FRUITAS QUE HA NESTA PROVINCIA São tantas e tam diversas as plantas, fruitas, e hervas que ha nesta Provincia, de que se podiam notar muitas particularidades, que seria cousa infinita escreve-las aqui todas, e dar noticia dos effectos de cada huma meudamente. E por isso nem farei agora mençam sinam de algumas em particular, principalmente daquellas de cuja virtude e fruito Participão os Portuguezes. Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós: quando a querem plantar em alguma roça cortão-na e fazem-na em pedacos, os quaes metem debaixo da terra, depois de cultivada, como estacas, e dahi tornaõ arrebentar outras plantas de novo: e cada estaca destas cria tres ou quatro raizes e dahi pera cima (segundo a virtude da terra em que se planta) as quaes põem nove ou dez meses em se criar: salvo em Sam Vicente que põem tres annos por causa da terra ser mais fria. Estas raizes a cabo deste tempo se fazem mui grandes á maneira de Inhames de S. Thomé, ainda que as mais dellas sam compridas e revoltas de feição de corno de boi. E depois de criadas desta maneira si logo as nam querem arrancar pera comer, cortam-lhe a planta pelo pé, e assi estão estas raizes cinco, seis meses debaixo da terra em sua perfeicão sem se danarem: e em Sam Vicente se conservam vinte, e trinta annos da mesma maneira. E tanto que as arrancão põem-na a curtir em agoa três quatro dias, e depois de curtidas, pizão-nas muito bem. Feito isto metem aquella massa em humas mangas compridas e estreitas que fazem de humas vergas delgadas, tecidas á maneira de cesto: e ali a espremem daquelle súmo da maneira que nam fique delle nenhuma cousa por esgotar: porque he tam peçonhento e em tanto extremo venenoso, que si huma pessoa ou qualquer outro animal o beber, logo naquelle instante morrerá. E depois de assi a terem curada desta maneira põem hum alguidar sobre o fogo em que a lanção, a qual está mexendo huma India até que o mesmo fogo lhe acabe de gastar aquella humidade e fique enxuta e disposta pera se poder comer que será por espaço de meia hora pouco mais ou menos. Este he o mantimento a que chamão farinha de páo, com que os moradores e gentio desta Provincia se mantém. Ha todavia farinha de duas maneiras: huma se chama de guerra e outra fresca. A de guerra se faz desta mesma raiz, e depois de feita fica muito seca e torrada de maneira que dura mais de hum anno sem se danar. A fresca he mais mimosa e de melhor gosto: mas nam dura mais que dous ou tres dias, e como passa delles, logo se corrompe. Desta mesma mandioca, fazem outra maneira de mantimentos que se chamão beijús, os quaes sam de feição de obreas, mas mais grossos e alvos, e alguns delles estendidos da feição de filhós. Destes uzam muito os moradores da terra, principalmente os da Bahia de Todos os Santos, porque são mais saborosos e de melhor disistão que a farinha. Tambem ha outra casta de mandioca que tem differente propriedade desta, a que por outro nome chamão aipim, da qual fazem huns bôlos em algumas Capitanias que parecem no sabor que excedem a pão fresco deste Reino. O sumo desta raiz nam he peçonhento como o que sae da outra, nem faz mal a nenhuma cousa ainda que se beba. Tambem se come a mesma raiz assada como batata ou inhame: porque de toda maneira se acha nella muito gosto. Além deste mantimento, ha na terra muito milho zaburro de que se faz pão muito alvo, e muito arroz, e muitas favas de differentes castas, e outros muitos legumes que abastão muito a terra. Huma planta se da támbem nesta Provincia, que foi da ilha de Sam Thomé, com a fruita da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta he mui tenra e nam muito alta, nam tem ramos senam humas folhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita della se chama bananas. Parecem-se na feição com pepinos, e crião-se em cachos: alguns delles ha tam grandes que tem de cento e cincoenta bananas pera cima, e muitas vezes he tamanho o peso della que acontece quebrar a planta pelo meio. Como são de vez colhem estes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. Depois de colhidos cortão esta planta porque nam frutifica mais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer della huns filhos que brotam do mesmo pé, de se fazem outros semelhantes. Esta fruita he mui sabrosa, e das boas, que ha na terra: tem huma pelle como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lanção fora quando a querem comer: mas faz dano á saude e causa fevre a quem se desmanda nella. Humas arvores ha tambem nestas partes mui altas a que chamão Zabucáes: nas quaes se criam huns vasos tamanhos como grandes cocos, quasi da feição de jarras da India. Estes vasos são mui duros em gram maneira, e estão cheios de humas castanhas muito doces, e saborosas em extremo: e tem as bocas pera baixo cubertas com humas sapadoiras que parece realmente nam serem assi criadas da natureza, senam feitas por artificio de industria humana. E tanto que as taes castanhas são maduras caem estas sapadoiras e dali começam as mesmas castanhas tambem a cahir pouco a pouco, até nam ficar nenhuma dentro dos vasos. Outra fruita ha nesta terra muito melhor, e mais prezada dos moradores de todas, que se cria em huma planta humilde junto do chão: a qual planta tem humas pencas como de herva babosa. A esta fruita chamão Ananazes, e nascem como alcachofres, os quaes parecem naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho, e alguns maiores. Depois que são maduros, tem hum cheiro mui suave e comem-se aparados feitos em talhadas. São tam sabrosos, que a juizo de todos nam ha fruita neste Reino que no gosto lhes faça vantagem, e assi fazem os moradores por elles mais, e os tem em maior estima que outro nenhum pomo que haja na terra. Ha outra fruita que nasce pelo mato em humas arvores tamanhas como pereiras, ou macieiras: a qual he de feição de peros repinaldos, e muito amarella. A esta fruita chamão cajús: tem muito sumo, e come-se pela calma pera refrescar, porque he ella de sua natureza muito fria, e de maravilha faz mal, ainda que se desmandem nella. Na ponta de cada pomo destes se cria hum caroço tamanho como castanha, da feição de fava: o qual nasce primeiro, e vem diante da mesma fruita como flôr; a casca delle he muito amargosa em extremo, e o meolo assado he muito quente de sua propriedade e mais gostoso que a amendoa. Outras muitas fruitas ha nesta Provincia de diversas qualidades comuns a todos, e são tantas que já se acharão pela terra dentro algumas pessoas as quaes se sustentavão com ellas muitos dias sem outro mantimento algum. Estas que aqui escrevo, são as que os portuguezes têm entre si em mais estima, e as melhores da terra. Algumas deste Reino se dão tambem nestas partes, convem a saber, muitos melões, pepinos, romãs e figos de muitas castas; muitas parreiras que dão uvas duas, tres vezes no anno, e de toda outra fruita da terra ha sempre a mesma abundancia por causa de não haver la (como digo) frios, que lhes fação nenhum prijuizo. De cidras, limões, e laranjas ha muita infinidade, porque se dão muito na terra estas arvores de espinho, e multiplicão mais que as outras. Além das plantas que produzem de si estas fruitas, e mantimentos que na terra se comem, ha outras de que os moradores fazem suas fazendas, convém a saber, muitas canas de açucar, e algodoaes, que he a principal fazenda que ha nestas partes, de que todos se ajudão e fazem muito proveito em cada huma destas Capitanias, especialmente na de Pernambuco que são feitos perto de trinta engenhos, e na Bahia do Salvador quasi outros tantos, donde se tira cada hum anno grande quantidade de açucares, e se dá infinito algodam, e mais sem comparaçam que em nenhumas das outras. Tambem ha muito páo brasil nestas Capitanias de que os mesmos moradores alcanção grande proveito: o qual páo se mostra claro ser produzido da quentura do Sol, e criado com a influencia de seus raios, porque nam se acha sinam debaixo da torrida Zona, e assi quando mais perto está da linha Equinocial, tanto he mais fino e de melhor tinta; e esta he a causa porque o nam ha na Capitania de Sam Vicente nem dahi pera o Sul. Hum certo genero de arvores ha tambem pelo mato dentro na Capitania de Pernambuco a que chamam Copahibas de que se tira balsamo mui salutifero e proveitoso em extremo, para enfermidades de muitas maneiras, principalmente as que procedem da frialdade: causa grandes effeitos, e tira todas as dores por graves que sejam em muito breve espaço. Pera feridas ou quaesquer outras chagas, tem a mesma virtude, as quaes tanto que com elle lhe acodem, sáram mui depressa, e tira os signaes de maneira, que de maravilha se enxerga onde estiverão e nisto faz vantagem a todas as outras medicinas. Este oleo nam se acha todo o anno perfeitamente nestas arvores, nem procuram ir busca-lo senam no estio que he o tempo em que asinaladamente o criam. E quando querem tira-lo dão certos golpes ou furos no tronco dellas pelos quaes pouco a pouco estão estilando do amago este licor precioso. Porém nam se acha em todas estas arvores sinam em algumas a que por este respeito dão o nome de femea, e as outras que carecem delle chamão machos, e nisto sómente se conhece a differença destes dous generos, que na proporçam e semelhança nam differe nada humas das outras. As mais dellas se achão roçadas dos animaes, que por instinto natural quando se sentem feridos ou mordidos de alguma fera as vão buscar pera remedio de suas enfermidades. Outras arvores differentes destas ha na Capitania dos llhéos, e na do Spirito Santo a que chamão Caborahibas, de que tambem se tira outro balsamo: o qual sae da casca da mesma arvore, e cheira suavissimamente. Tambem aproveita para as mesmas enfermidades, e aquelles que o alcanção tem-no em grande estima e vendem-no por muito preço, porque além de as taes arvores serem poucas correm muito risco as pessoas que o vão buscar, por causa dos inimigos que andão sempre naquella parte emboscados pelo mato e não perdoão a quantos achão. Tambem ha huma certa arvore na Capitania de Sam Vicente, que se diz pela lingoa dos lndios "Obirá paramaçaci", que quer dizer páo para enfermidades: com o leite da qual sómente com tres gotas, purga huma pessoa por baixo e por cima grandemente. E si tomar quantidade de huma casca de noz, morrerá sem nenhuma remissam. De outras plantas e hervas que nam dão fruito nem se sabe o pera que prestam, se podia escrever, de que aqui nam faço mençam, porque meu intento nam foy sinam dar noticia (como já disse) destas de cujo fruito se aproveitão os moradores da terra. Somente tratarei de huma mui notavel, cuja qualidade sabida creio que em toda parte causará grande espanto. Chama-se herva viva, e tem alguma semelhança de silvam macho. Quando alguem lhe toca com as mãos, ou com qualquer outra cousa que seja, naquelle momento se encolhe e murcha de maneira que parece criatura sensitiva que se anoja, e recebe escandalo com aquelle tocamento. E depois que assossega, como cousa já esquecida deste agravo, torna logo pouco a pouco a estender-se até ficar outra vez tam robusta e verde como dantes. Esta planta deve ter alguma virtude mui grande, a nós enconberta, cujo effeto nam será pela ventura de menos admiraçam. Porque sabemos de todas as hervas que Deos criou, ter cada huma particular virtude com que fizessem diversas operações naquellas cousas pera cuja utilidade foram criadas e quanto mais esta a que a natureza nisto tanto quiz assinalar dando-lhe hum tam estranho ser e differente de todas as outras. FONTE DOS TEXTOS: http://cultvox.locaweb.com.br/gratis_documentos_historicos.asp Como comparação, observe os seguintes trechos, exemplos do português do século XVII. Veja como em apenas algumas décadas houve mudanças bastante notáveis no estilo. (Frei Vicente do Salvador: História do Brasil, 1627) O motivo que teve Aristóteles para se divertir da especulação, a que o seu gênio e inclinação natural o levava, como consta da sua Lógica, Física, e Metafísica, e dar-se a escrever livros históricos e morais, quais as suas Éticas epólicas e a história de animais, além de lho mandar o grande Alexandre, e lhe fazer as despesas, foi ver também, que estimava tanto o livro de Homero, em que se contam os feitos heróicos de Achiles, e de outros esforçados guerreiros que, segundo refere Plutarco in vita Alexandre de ordinário o trazia consigo, ou quando o largava da mão o fechava em escritório guarnecido de ouro, e pedras preciosas, melhor peça, que lhe coube dos despojos de Dario, ficando-lhe na mão a chave, que de ninguém a fiava, e com muita razão, porque como diz Túlio, de oratore, os livros históricos são luz da verdade, vida da memória, e mestres da vida; e Diodoro Siculo diz in proemio sui operis, que estes igualam os mancebos na prudência aos velhos, porque o que os velhos alcançam com larga vida e muitos discursos, podem os mancebos alcançar em poucas horas de lição, assentados em suas casas. Mas muito mais cresceu neles o respeito, quando viram oito frades da ordem do nosso padre São Francisco, que iam com Pedro Álvares Cabral, e por guardião o padre frei Henrique, que depois foi bispo de Cepta, o qual disse ali missa, e pregou, onde os gentios ao levantar da hóstia, e cálice se ajoelharam, e batiam nos peitos como faziam os cristãos, deixando-se bem nisto ver como Cristo senhor nosso neste divino Sacramento domina os gentios, que é o que a igreja canta no Invitatório de suas Matinas, dizendo: Christum regem dominantem gentibus, qui se manducantibus dat spiritus pinguedinem, venite adoremus. Donde nasce também, que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi notar um bispo de Tucuman da Ordem de S. Domingos, que por algumas destas terras passou para a Corte, era grande canonista, homem de bom entendimento e prudência, e assim ia muito rico; notava as coisas, e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam: porque não se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas, e outras muitas a casas particulares lhas mandavam, então disse o bispo verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos (ainda que seja a custa alheia, pois muitos devem quanto têm) providas de todo o necessário, porque tem escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se não acha isto a venda. DUAS RECEITAS PORTUGUESAS DO SÉCULO XV De um Tratado de Cozinha do Século XV, constante do acervo da Biblioteca Nacional. A ortografia, entre outros detalhes, foi modernizada. Se quiser experimentar, fique a vontade (não precisa me convidar...). GALINHA ALBARDADA Assa-se uma galinha muito bem e corta-se em pedaços. Passe então os pedaços em ovo batido e leve-os a fritar em manteiga. Tome fatias de pão passadas no ovo e friteas em manteiga, tal qual a galinha. Passe tudo em açúcar, e arrume numa vasilha, as fatias de pão no fundo. Polvilhe com açúcar e canela. ALFITETE Façam uma massa fina com farinha bem peneirada, açúcar e manteiga a gosto, e duas gemas de ovos. Depois de bem sovada, estendam-na com o rolo, e fritem as panquecas em manteiga. Cozinhem muito bem a galinha com manteiga, toucinho, carneiro, e bastante tempero. Depois de bem cozida, desossem a galinha. Em seguida empilhem as panquecas numa vasilha, entremeadas com açúcar. Derramem por cima a galinha e o caldo em que foi cozida. Por fim cubram tudo com gemas de ovos escalfados e polvilhem com açúcar e canela.