São Paulo em Perspectiva, vol.14 n.3 – Ciência e Tecnologia
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São Paulo em Perspectiva, vol.14 n.3 – Ciência e Tecnologia
A ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS NACIONAIS DE AVALIAÇÃO E DE INFORMAÇÕES... EDUCAÇÃO CIENTÍFICA uma prioridade nacional GLACI T. ZANCAN Professora de Bioquímica da Universidade Federal do Paraná Resumo: O avanço explosivo do conhecimento está marginalizando os povos que não dispõem de uma infraestrutura de pesquisa associada à formação de recursos humanos de alto nível e a uma educação científica universal. A análise da situação do país mostra a necessidade da expansão da base de pesquisa acadêmica e da inovação tecnológica. É destacada a urgência na mudança do sistema de ensino fundamental, médio e superior, passando de informativo para formativo, como meio de capacitação do homem para o mercado de trabalho, altamente dependente de um aprender contínuo. Palavras-chave: educação científica; ciência e tecnologia; políticas públicas. A ciência é antes de mais nada um mundo de idéias em movimento – o processo para a produção do conhecimento – e busca descobrir a unidade existente nas diferentes facetas da experiência do homem com o seu meio. Assim como ela, as artes também procuram a unidade na variedade (Bronowski, 1965). As descobertas da ciência e o trabalho das artes são faces da mesma criatividade e compreendem a recriação da natureza. É na formulação de hipóteses que o cientista usa imaginação como o artista, mas trilha um caminho próprio quando exerce a crítica e a experimentação. A atividade científica busca soluções ao confrontar, o que poderia ser feito com aquilo que é (Jacob, 1997). Ela é a principal realização do mundo atual e, talvez mais do que qualquer outra atividade, distingue este século dos demais. Devido à natureza social da ciência, a sua divulgação é crucial para o seu progresso, sendo que o avanço da ciência da informação afeta todos os campos científicos (Rutherford e Algreen, 1990). Os benefícios da ciência são, no entanto, distribuídos assimetricamente entre países, grupos sociais e sexos. O desenvolvimento científico tornou-se um fator crucial para o bem-estar social a tal ponto que a distinção entre povo rico e pobre é hoje feita pela capacidade de criar ou não o conhecimento científico (Unesco, 2000). Já a tecnologia reflete e molda o sistema de valores e estende nossas habilidades para mudar o mundo, sendo uma força poderosa no desenvolvimento da civilização e própria de cada cultura. As tecnologias, ao se tornarem sofisticadas, estreitaram sua ligação com a ciência, tornando difícil, em alguns campos, separar uma da outra. Como a tecnologia afeta o sistema social e cultural mais diretamente do que a pesquisa científica, as implicações imediatas de seus sucessos e fracassos refletem diretamente na atividade humana (Rutherford e Algreen, 1990). É reconhecido que desenvolvimento tecnológico requer uma sólida base científica. As novas tecnologias devem ser direcionadas para processos produtivos seguros e limpos, mais eficientes no uso dos recursos e na proteção do meio ambiente. A ciência e a tecnologia devem ser dirigidas para aumentar a competitividade, o emprego e a justiça social (Unesco, 2000). A tecnologia também não está distribuída igualmente entre os povos. Apenas 15% da população da terra fornece todas as inovações tecnológicas do mundo. Mais da metade da população mundial está apta a adotar essas tecnologias para produção e consumo, o restante corresponde a regiões tecnologicamente excluídas. A maioria dessas regiões estão nos trópicos e imersas na pobreza. É hoje reconhecido que a tecnologia é mais excludente que o capital e, juntamente com a ciência, define o futuro de um povo. A capacidade tecnológica de uma economia depende não só de suas próprias inovações, mas também da capacidade de adaptar as tecnologias desenvolvidas em 3 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(1) 2000 outros lugares (Sachs, 2000). Para Sachs, “O mundo de hoje é dividido não pela ideologia mas pela tecnologia.” A Conferência Mundial sobre a Ciência declara que, “sem instituições adequadas de educação superior em C&T e em pesquisa, com uma massa crítica de cientistas experientes, nenhum país pode ter assegurado um desenvolvimento real” (Unesco, 2000). E o último relatório do Banco Mundial sobre Ensino Superior (World Bank, 2000) complementa: “É pois vital para o futuro dos países em desenvolvimento que eles assumam a tarefa de constantemente estimular e de manter seus talentos em ciência e tecnologia” e exemplifica com o caso de países africanos que passaram a ter dificuldades nas negociações internacionais devido ao desaparecimento da agenda de pesquisa em suas universidades. Por outro lado, o avanço do conhecimento e sua apropriação comercial está colocando para a reflexão humana uma série de indagações que outras épocas históricas não vivenciaram. Os problemas decorrentes das novas tecnologias precisam e devem ser discutidos por todos, pois afetarão profundamente a vida do homem sobre a terra. Para poder opinar e decidir é preciso primeiro conhecer. Dentro desse contorno, é fundamental olhar criticamente a situação de nosso país. Nos últimos 30 anos, com a finalidade de implantar a pesquisa nas universidades, foi viabilizada a criação da pós-graduação com o financiamento dos grupos de pesquisa existentes na década de 70. Os resultados estão aí para comprovar que as políticas públicas, quando são bem definidas e implantadas, resultam em sucesso. Na Tabela 1, apresenta-se a expansão da formação de recursos humanos, cujo contingente vem sendo praticamente todo absorvido pelas universidades. O país montou um parque de formação de recursos humanos invejável, cobrindo praticamente todas as áreas do conhecimento. Como a pós-graduação nasceu e se desenvolveu estreitamente associada à pes- GRÁFICO 1 Artigos Publicados em Periódicos Indexados no Institute for Scientific Information Brasil – 1994-00 Fonte: Dados coletados no web of science (www.webofscience.fapesp.br). quisa, o número de artigos originais de pesquisa cresceu. Em 1996, o Brasil ocupava o 18o lugar em produção científica (King, 1997), que continua a crescer (Gráfico 1). Na realidade, houve crescimento em todas as áreas do conhecimento acima da média mundial, mas a produção, avaliada pelos artigos originais de pesquisa publicados, ainda está ao redor de 1% da produção científica indexada no Institute for Scientific Information (ISI). Outro dado importante é que esta produção está concentrada na região Sudeste, mais particularmente em São Paulo, gerando uma distribuição desigual entre as diferentes regiões do país. Os dados da Tabela 2 mostram que a capacidade de inovação tecnológica no Brasil é ainda muito baixa (Freeman, 1999) e precisa se expandir para que se possa não só atender às necessidades imediatas da população com tecnologias apropriadas, como também produzir bens e serviços que impulsionem o desenvolvimento econômico. Essa tarefa depende basicamente da capacidade das empresas, portanto, são necessários investimentos privados orientados por uma política industrial bem equacionada. O fato de o país dispor de uma base científica razoável permite planejar o crescimento da inovação através do estímulo da integração das universidades com as empresas. Por outro lado, há a necessidade de dispor de engenheiros nos centros de desenvolvimento tecnológico das empresas, uma vez que os números indicam que há apenas 0,6 pesquisador em tem- TABELA 1 Número de Mestres e Doutores Brasil – 1976-1999 Anos Mestres 1976 1985 1992 1997 1998 1999 2.171 3.931 6.841 11.988 12.510 14.171 Doutores 138 718 1.504 3.633 3.945 4.656 Fonte: Guimarães e Humman (1995). MEC/Capes/DAV/SED. 4 A ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS NACIONAIS DE AVALIAÇÃO E DE INFORMAÇÕES... TABELA 2 TABELA 3 Indicadores de Ciência e Tecnologia Brasil, Coréia e Japão 1999 Corpo Docente das Instituições de Ensino Superior Públicas e Privadas, segundo Grau de Formação Brasil – 1998 Indicador Cientistas e Engenheiros (por milhão de hab.) Porcentagem de Investimento Governo Indústria Outros Total de Patentes Porcentagem de Patentes obtidas por Residentes no País Brasil Coréia Japão 235 1990 5677 81,9 18,1 2.479 17,2 82,4 0,4 3.741 19,4 71 9,6 36.100 14 69 84 Grau de Formação Públicas Privadas Total Total Doutorado Mestrado Especialização Graduação 83.738 23.544 25.073 20.793 14.328 81.384 7.529 20.409 36.884 16.562 165.122 31.073 45.482 57.677 30.890 Fonte: MEC/Inep. do país, equivalendo a uma média de 4,1 anos no Nordeste e 6,2 anos no Sudeste, em contraste aos 11,1 anos dos países do OCDE (World Bank, 1999). Os dados mostram que o país tem um desempenho educacional médio, como médio é o índice de desenvolvimento humano recentemente publicado pelo PNUD (2000). Convém entender que essas informações refletem médias estatísticas e, portanto, escondem enormes desequilíbrios internos. Os números melhoraram nos diferentes níveis de ensino, mas certamente a qualidade não atende às necessidades do mundo atual. Os problemas avolumam-se em todos os níveis educacionais. A reforma acadêmica das universidades é premente e começa já com o sistema de acesso. Será necessário enfrentar com criatividade o gargalo do ingresso, pois, ao se eliminar, por motivos econômicos, um universo de jovens criativos, potencialmente capazes de gerar conhecimento e inovações, está se limitando nossas chances competitivas, há a necessidade da reforma de gestão das universidades por parâmetros gerenciais modernos, com a implantação de uma autonomia responsável e socialmente controlada no sistema federal de ensino superior. As políticas para o desenvolvimento do sistema universitário público devem promover o crescimento mais harmônico entre as diferentes regiões do país para evitar que a formação das elites fique circunscrita a uma única região. Paralelamente, é preciso melhorar os métodos de avaliação do desempenho dos egressos para que a qualidade do ensino no nível superior seja aprimorada. Por outro lado, é primordial alterar a vida acadêmica, podendo-se fazer algumas sugestões para modernizar o processo de formação: estimular a flexibilização dos currículos através de programas de estudos individualizados usando a tutoria; incentivar os jovens criativos, envolvendo-os nas atividades de pesquisa e extensão; estimular os jovens empreendedores com a criação de empresas jovens; Fonte: Freeman (1999). po integral para 1.000 trabalhadores, índice muito baixo quando comparado ao de países de economia menor que a nossa (World Bank, 1999). Se, por um lado, é preciso expandir a capacidade de inovação, por outro, é fundamental não esquecer de que a base científica precisa crescer ainda mais para atingir pelo menos uma posição equivalente à nossa economia, sem o que se perderá a competitividade internacional. A recente criação dos fundos setoriais é um fator importante na expansão da inovação, mas deve-se ressaltar que, sem o suporte de um parque científico forte, não haverá inovação. Como o incremento da ciência ocorreu nas universidades, vale a pena se deter sobre as repercussões do crescimento observado no interior do sistema de ensino superior. Os dados da Tabela 3 mostram que o número de Doutores no sistema de ensino superior é pequeno e concentra-se no sistema público (MEC, 2000). Os números são globais e mesmo dentro do universo das instituições públicas há uma grande heterogeneidade. Portanto, estamos longe da universalização da pesquisa nas universidades, como sonharam Anísio Teixeira (1968), Florestan Fernandes (1979), Darci Ribeiro (1975) e tantos outros. Outro fator a destacar é que o crescimento do ensino superior, voltado para o ensino profissionalizante, se deu fundamentalmente no sistema privado que, já em 1980, era responsável por 64% das matrículas (MEC, 2000). Outro dado que emana das análises disponíveis sobre o ensino superior é que o sistema de acesso é perverso ao excluir os jovens de famílias de menor poder aquisitivo (World Bank, 1999). O problema da exclusão, infelizmente, não está só no ensino superior, na realidade, aparece no ensino secundário seja na cidade seja na zona rural. Além disso, o tempo de permanência na escola diminui com o poder aquisitivo, e é desigual nas diferentes regiões 5 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(1) 2000 so Nacional, desenha corretamente a formação do magistério, calcando-a na pesquisa como princípio orientador. Os professores de todos os níveis precisam estar conscientes de que a ciência não é só um conjunto de conhecimentos, mas sim um paradigma pelo qual se vê o mundo. Para colocar o sistema educacional em novo patamar, próprio do novo século que se inicia, o professor deverá ser um orientador de seus alunos no processo da descoberta e da reflexão crítica. Logo, a pesquisa educacional precisa ser ampliada, pois as experiências educacionais nem sempre podem ser transportadas de uma realidade sociocultural para outra, exigindo que sejam estimuladas por investimentos apropriados. O desafio é criar um sistema educacional que explore a curiosidade das crianças e mantenha a sua motivação para apreender através da vida. As escolas precisam se constituir em ambientes estimulantes, em que o ensino de matemática e da ciência signifique a capacidade de transformação. A educação deve habilitar o jovem a trabalhar em equipe, a apreender por si mesmo, a ser capaz de resolver problemas, confiar em suas potencialidades, ter integridade pessoal, iniciativa e capacidade de inovar. Ela deve estimular a criatividade e dar a todos a perspectiva de sucesso. Neste contexto deve-se deixar claro que as políticas públicas para área de ciência e tecnologia devem ser amplas, envolvendo não só a inovação, mas, fundamentalmente, o desenvolvimento das ciências, tendo ainda a educação científica, em todos os níveis, como prioritária. É preciso considerar que o analfabetismo científico aumentará as desigualdades, marginalizando do mercado de trabalho as maiorias que hoje já são excluídas. Para ser bemsucedida, a reforma do sistema educacional deve nascer da comunidade, envolver e valorizar os professores, a fim de que possamos ter alguma perspectiva como nação, na sociedade do conhecimento. integrar os grupos de pesquisa das universidades com um objetivo comum, visando atender às demandas da sociedade. Cabe à universidade a liderança do sistema educacional e, para isso, ela deve ser crítica, competente e eficiente. Os currículos desde o ensino fundamental até o superior estão desenhados para que os estudantes memorizem um vasto número de fatos, não relacionados com sua vida diária. Aqui valeria a pena lembrar o texto de Paulo Freire (1967): “A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos da criação, re-criação e decisão, vai dinamizando o seu mundo. E, na medida em que cria, recria e decida, vão se transformando as épocas históricas (...) Por isso, desde já saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará a sua vocação natural para integrar-se. Necessitávamos de uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política. Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o identificasse com métodos e processos científicos”. Considerando que hoje fica difícil entender o mundo em que vivemos sem o conhecimento dos princípios básicos da ciência e da tecnologia, “é fundamental aumentar o capital humano da nossa população através de uma educação científica voltada para o apreender como apreender” (Toffler, 1970). A Declaração da Unesco coloca: “A educação científica, em todos os níveis e sem discriminação, é requisito fundamental para a democracia. Igualdade no acesso à ciência não é somente uma exigência social e ética: é uma necessidade para realização plena do potencial intelectual do homem.” Trata-se de selecionar a informação pertinente e que seja necessária para fundamentar raciocínio e decisões. A mudança básica significa não se limitar a memorizar um conjunto desconexo de fatos, mas sim estruturar um arcabouço relevante para análise de conceitos básicos para a compreensão da ciência. Os membros da comunidade científica brasileira tem hoje mais uma tarefa: lutar para mudar o ensino de informativo para transformador e criativo. Este desafio é uma tarefa gigantesca, pois abarca todos os níveis de ensino sem privilegiar um em detrimento de outro. Para que se atinjam os objetivos de alterar o sistema educacional, é preciso concentrar esforços na formação dos professores. O Plano Nacional de Educação, elaborado pelo Congres- NOTAS E-mail da autora: [email protected] [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL.Câmara dos Deputados.Plano Nacional de Educação. Projeto de Lei. Brasília, 1999, mimeo. BRONOWSKI, J. Science and human values. 2a ed. Nova York, Harper & Row, 1965. 6 A ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS NACIONAIS DE AVALIAÇÃO E DE INFORMAÇÕES... FERNANDES, F. Universidade brasileira: reforma ou revolução. São Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1979. MEC/CAPES/DAV/SED. Avaliação da pós-graduação. Comunicação pessoal, ago. 2000. 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Washington, 2000. 7 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 UNIVERSIDADE, INOVAÇÃO E IMPACTO SOCIOECONÔMICO FLAVIO FAVA-DE-MORAES Professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e Diretor Executivo da Fundação Seade. Foi: Reitor da Universidade de São Palo, Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico e Diretor Científico da Fapesp Resumo: O papel da universidade é inquestionável para a formação de pessoas qualificadas e para o desenvolvimento socioeconômico de um país, principalmente quando fundamentado em uma política científica tecnológica articulada no espaço das relações entre universidade, Estado, empresariado e outros setores sociais. Uma pesquisa sobre o MIT aponta nessa direção, ao demonstrar a importância da inovação e do fomento econômico propiciados pela atuação de seus alunos, professores e pesquisadores. Mérito acadêmico, ação estratégica para pesquisa, investimentos e transferência de conhecimento tornam-se referências para o alcance da mudança social e consolidação de uma sociedade. Considerações semelhantes podem ser admitidas notadamente para as Universidades Públicas do Estado de São Paulo. Palavras-chave: universidade e sociedade; inovação tecnológica e desenvolvimento; impacto socioeconômico. M uito se discute sobre o real significado da Universidade no papel posterior dos seus recémformados no desenvolvimento socioeconômico do país, estado ou cidade em que passam a atuar. Esta análise envolve muitos indicadores, tais como: integração a projetos de pesquisa inovadora em Universidades ou Institutos; participação em empresas modernas e competitivas; e criação de novas empresas de serviços ou tecnologias avançadas. Em qualquer dos casos, o objetivo é contribuir para mudanças tecnológicas, econômicas e sociais que afetem positivamente a riqueza nacional ou regional. Importante estudo neste sentido foi recentemente concluído nos Estados Unidos, sob a coordenação e patrocínio do Banco de Boston, identificando a importância do Massachusetts Institute of Technology (MIT), através do seu alunado e das suas pesquisas inovadoras, na economia do Estado de Massachusetts, nos EUA e no exterior. Se esta avaliação mostrou-se relevante naquele país, sua divulgação no Brasil é fundamental por constituir prova convincente do inquestionável papel socioeconômico que uma boa Universidade oferece para a sociedade e para a nação. Missão esta reconhecida por poucos e negada por muitos representantes dos poderes constituídos, que, por miopia, amiúde atacam a Universidade como centros elitistas, ociosos, privilegiados e descolados dos interesses das políticas governamentais e das demandas sociais. Um dado inicial impressionante do MIT é a constatação de que as empresas criadas por seus alunos ou docentes egressos constituem, sozinhas, a 24ª economia mundial. São 4.000 empresas, com 1,1 milhão de empregados e US$ 232 bilhões de faturamento anual (superior ao PIB de muitos países, como, por exemplo, a Tailândia). Portanto, é enorme o impacto que uma Universidade de Pesquisa (no caso, o MIT) gera nos mais variados aspectos da economia de uma nação. A maioria destas empresas não é de grande porte, sendo que 1.500 foram criadas na década de 90, com uma média anual de 150 empreendimentos novos e inovadores. Todas, além de possuírem profissionais qualificados, são preferencialmente de alta tecnologia aplicada a um limitado número de setores, como o da eletrônica, responsável por 13% das empresas, 57% dos empregos e 56% das vendas das 4.000 já citadas. O MIT tem como missão atrair os estudantes mais talentosos do país (e do exterior), fornecendo com precisão o “estado da arte científico-tecnológico”, estimulando-os precocemente no espírito empreendedor e no enfrentamento de riscos e gerando neles a confiança de que gente talentosa que trabalha em equipe vence desafios resolvendo problemas. É interessante destacar que apenas 8,7% dos estudantes do MIT são do Estado de Massachusetts e que muitos dos seus professores são estrangeiros, demonstrando que a Insti- 8 UNIVERSIDADE, INOVAÇÃO E IMPACTO SOCIOECONÔMICO ria absurdo encarar a relação custo/benefício dessa interação na Universidade sob o campo da lucratividade financeira sem considerar outras destacadas repercussões diretas e indiretas. A participação do financiamento empresarial na pesquisa universitária deve, contudo, merecer muita cautela para que não ocorra “sigilo e privatização (capitalização) do saber”, o que seria um desastre total para os valores acadêmicos. O alerta se faz necessário porque já há muitos casos em que, para manter laboratórios e salários, pesquisadores comprometem-se a não publicar até mesmo resultados de pesquisa básica conveniada sem prévia autorização da empresa patrocinadora. Um exemplo marcante foi divulgado pelo Wall Street Journal (1996), quando uma empresa farmacêutica proibiu a publicação de pesquisa aceita por revista científica conceituada, ao saber que fármacos muito mais baratos de empresas concorrentes mostraram-se substitutos terapêuticos eficientes, fato que comprometeria o mercado da sua droga em US$ 600 milhões anuais. Porém, cabe destacar que a pesquisa básica executada “espontaneamente” pela Universidade ainda é comprovadamente a maior fonte de resultados aplicáveis do que a pesquisa dita “encomendada” por empresa. O setor empresarial, sem dúvida, está mais diretamente interessado na pesquisa tecnológica inovadora, haja vista que só a IBM incorpora ao seu patrimônio, atualmente, mais de dez novas patentes por dia. Para tentar garantir tais objetivos, surgiram as chamadas “Universidades Corporativas”, que, apesar dos resultados ainda inconclusivos, pretendem que o estudante receba um preparo mais específico aos interesses da organização. Porém, mesmo com esses propósitos produtivos e com o Instituto de Pesquisa Industrial/DC/USA admitindo que 50% do PIB americano deve-se à inovação, o setor industrial não abandona o apoio à ciência básica (semente da inovação), pois seu financiamento, no período 1994-2000, passou de US$ 6 bilhões para mais de US$ 11 bilhões, dos quais US$ 2,5 bilhões foram diretamente para as melhores Universidades. Esta ação estratégica, sem a qual a tecnologia torna-se obsoleta, ganhou ênfase prioritária no “Fundo de Pesquisa/Século 21”, proposto pelo Governo ao Congresso Americano para, sob controle e avaliação da Fundação Nacional de Pesquisas, executarem no ano 2000 o maior investimento da sua história na valorização da ciência básica. No Brasil, a mesma prioridade está na Constituição Federal, art. 218, parágrafo 1º, mas muito distante da realidade orçamentária! A exceção é o Estado de São Paulo que, sem cortar as fontes privadas, aportes tuição prioriza o mérito e desconsidera o corporativismo interno. Esta identidade do MIT conquistou o reconhecimento social e a credibilidade tanto governamental como do setor privado, que lá investem, juntos e em quantias semelhantes, um total de quase meio bilhão de dólares em projetos de pesquisa. Dos investimentos privados que chegam a 30% do orçamento total do MIT, nada menos do que US$ 70 milhões são destinados a 2.100 bolsas de pesquisa usufruídas por 40% dos seus estudantes. Estes devem, obrigatoriamente, participar como verdadeiros catalizadores dos projetos de pesquisa entre Universidade e empresa, pois sua alienação teria o risco de estas parcerias desvirtuarem integralmente a missão universitária. Esta cultura institucional pela qualidade e pela inovação é o melhor mecanismo de transferência de conhecimento para as empresas criadas pelos formados no MIT, destacando-se o princípio de sempre respeitar o consumidor, ouvir empregados e fornecedores, fabricar produtos de excelente desempenho e reinvestir, em pesquisa, significativa parcela dos lucros (10% a 18%). Este último ponto reflete a visão inteligente de que pesquisa e desenvolvimento são condições indispensáveis para a conquista e manutenção do êxito empresarial. Essa ação estratégica em pesquisa e desenvolvimento é visualizada concretamente nos EUA pelo aumento do investimento industrial privado que, de US$ 97 bilhões em 1994, passou para US$ 166 bilhões em 1999, com uma estimativa de US$ 184 bilhões para o ano 2000. É interessante frisar que, nos EUA, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento não são exclusivamente de origem nacional. Há bilhões de dólares de investimentos realizados por empresas estrangeiras, que até 1998 já estabeleceram 715 centros de pesquisa, sendo 505 deles oriundos principalmente de quatro países: Japão (251), Alemanha (107), Reino Unido (103) e França (44). As razões principais para estes países criarem Centros de Pesquisa e Desenvolvimento nos EUA têm sido, principalmente, o acesso aos cientistas e à infra-estrutura universitária e dos centros de inovação e a melhor cooperação interempresarial e a adequada comunicação com sua matriz sobre como adequarse ao mercado e ao meio de vida norte-americano. Ou seja, a relação Indústria/Universidade é entendida como de vital importância para o êxito empresarial e com benefícios mútuos via patentes compartilhadas, que cresceram de 8% (até 1973) para 25% (até 1993), apesar de, com raríssimas exceções, o rendimento médio de licenciamentos para a Universidade (5%) ser ainda muito baixo. Entretanto, se- 9 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 dades de Pesquisa para cooperar, financiar e usufruir do avanço do conhecimento que terão “conseqüências” produtivas a médio e longo prazos. Ou seja, a Universidade ainda é o centro principal de produção do conhecimento em todo o mundo, embora não detenha mais a sua exclusividade. Além disso, este “entorno universitário” apresenta outras vantagens que favorecem o crescente investimento empresarial: é fonte de pessoal talentoso e qualificado, está próximo de áreas procuradas pelo mercado consumidor; fornece boa infra-estrutura escolar, hospitalar, cultural, de telecomunicação, lazer, transporte, áreas verdes, etc., ou seja, constituiu-se em locais com diferenciais positivos para uma melhor qualidade de vida. Por isso tudo, é sabido que este desenvolvimento regional, que não é instantâneo, não ocorreria se o Estado não continuasse investindo com convicção num forte sistema universitário, no qual o MIT ocupa posição de inegável destaque. Ou seja, uma boa Universidade é requisito essencial, mas não totalmente suficiente para o desenvolvimento regional, pois seu êxito também depende das condições complementares de infra-estrutura e da capacidade de o meio externo absorver e utilizar o resultado de suas pesquisas. Além destas citadas conseqüências internas para o Estado de Massachusetts e para os EUA, o MIT é também responsável por impactos além fronteiras, que lhe conferem prestígio internacional. Numa época de globalização, o êxito empresarial na conquista de mercados no exterior é critério de excelência no desempenho pela superação das dificuldades culturais, normativas e financeiras enfrentadas. Estes desafios estão sendo eficazmente vencidos, pois já são 220 as empresas estabelecidas por seus ex-alunos no exterior, predominantemente na Europa, mas destacando-se 52 empreendimentos na América Latina, sendo que o Brasil é o país mais procurado, com a instalação de 12 empresas. Não é necessário argumentar laudatoriamente sobre a importância dessa questão estratégica e de se realizar estudo semelhante ao do MIT para comprovar que o Brasil também é dependente de suas boas Universidades. Não estamos ainda na vanguarda desejada e nem mesmo colhendo todos os frutos possíveis diante dos nossos esforços já realizados. Entretanto, avançamos muito em curto espaço de tempo, pois nas Universidades Públicas do Estado de São Paulo, onde predomina a maior atividade científico-tecnológica brasileira (a pioneira USP só tem 66 anos), já temos exemplos de vários e inquestionáveis sucessos. federais ou recursos gerados por suas próprias instituições, aplicará em 2001, em ciência e tecnologia, um percentual do seu PIB compatível com o dos países mais desenvolvidos. Entretanto, uma iniciativa federal é a recente criação do Fundo Universidade-Empresa para a Inovação, lançada pela Lei nº 10.168, de 29/12/2000. Voltando aos ex-alunos do MIT, é também preciso salientar que não há uma relação direta previsível entre o curso que realizam e a natureza dos seus empreendimentos posteriores: por exemplo, no setor de biotecnologia, 40% das empresas foram criadas por engenheiros e apenas 18% por biomédicos. Contudo, o setor industrial moderno, nacional e estrangeiro, tem crescido nos EUA prioritariamente nas áreas da tecnologia eletrônica e na biotecnologia, pois oito empresas destes dois setores estão entre as dez que mais investiram em pesquisa e desenvolvimento em 1998. Outro fator relevante é que o MIT, antes formador majoritariamente de engenheiros, gradua atualmente 43% dos seus alunos nas áreas de Ciências Sociais e Administração. Estes profissionais foram responsáveis pela iniciação de 892 empresas, em setores como Ciência Política (35), Urbanismo (89), Ciências Sociais (44), Filosofia (3), além de estarem sendo demandados cada vez mais para posições relevantes pelas empresas das “Ciências Exatas e da Vida”. Isto quer dizer que uma boa Universidade nunca deve comprometer sua missão e seus valores e nem sujeitar seus esforços apenas com resultados de interesse mercantil e jamais deve ser julgada só pelo lado econômico, como fábrica de diplomas ou forja de produtos. Consideração de relevância inquestionável sobre as empresas criadas pelos ex-alunos é a sua localização preferencial no entorno geográfico do MIT ou, quando em outras regiões, também próximas a Universidades qualificadas, demonstrando que a eficácia na inovação é tanto maior quanto menor é a distância do centro inovador. Basta dizer que oriundas do MIT e localizadas na região metropolitana de Boston (Rota 128) estão 1.065 empresas, com 353.000 empregos diretos e US$ 53 bilhões de faturamento (Digital, Gillette, etc.). Da mesma forma, também provenientes do MIT, mas situadas no Vale do Silício (Califórnia), estão outras 467 empresas, com 350.000 empregos e US$ 86 bilhões em vendas (HewlettPackard, Intel, etc.). Portanto, por inúmeras e óbvias razões, empresas dependentes da pesquisa e desenvolvimento associadas à inovação tecnológica não cometerão jamais a ingenuidade de interromper suas relações com excelentes Universi- 10 UNIVERSIDADE, INOVAÇÃO E IMPACTO SOCIOECONÔMICO FAVA-DE-MORAES, F. “Universidade-Indústria. Há um catalizador?” Rev. USP, n.25, 1995, p.16-19. Todavia, o Brasil não deve se iludir com importantes conquistas eventualmente exploradas com personalismo e ufania na mídia. O Brasil precisa conhecer o quadro real para ousar com humildade e exigir que decisões de política científico-tecnológica sejam tomadas conjuntamente pelas Universidades-Governo-Setor Privado (triângulo de Sabato ou tríplice hélice). Atualmente, outros setores sociais também devem participar da tomada de decisões. Finalmente, é fundamental que a Universidade concentre responsavelmente sua atenção na motivação de magnetizar a juventude talentosa neste árduo e contínuo desafio a vencer. Como mostrado neste caso do MIT, a Universidade é insubstituível não só na sua missão principal de educar gente capacitada para a futura liderança científico-tecnológica, cultural, política, empresarial, jurídica, diplomática, etc., como notadamente na formação dos cidadãos com riqueza de caráter que darão o grande diferencial na consolidação do sucesso almejado por nossa sociedade. __________ . “Parceria Governo-Empresa estimula o avanço da ciência e tecnologia”. Coleção CIEE, n.14, 1998, p.27-29. __________ . “Ciência, tecnologia e governabilidade: visão do poder Executivo”. Cadernos de Gestão Tecnológica/Cyted, n.47, 2000, p.38-42. __________ . “Educación superior e desarrollo. Visiones del futuro. In: LOPEZSEGRERA, F. e FILMUS, D. America Latina 2020: scenarios, alternativas, estrategias. Buenos Aires, Temas Grupo Ed., 2000, p.257-264. FLORIDA, R. “The role of the university: leveraging talent, not technology”. Issues in Science and Technology. Summer, 1999. GAUGER, J.D. “Entre Humboldt e ‘high-tech’: sistema e reforma do ensino superior na Alemanha”. Universidade: panorama e perspectivas. São Paulo, Cadernos Adenauer (n.6), 2000, p.83-104. GODIN, B. e GINERAS, Y. “The place of universities in the system of knowledge production”. Research Policy, n.29, 2000, p.273-278. HIRSCH, W.Z. e WEBER, L.E. Challenges facing higher education at the millennium. Oxford, IAU Press & Pergamon, 1999. HORNBECK, D.W. e SALAMON, L.M. 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Prova disso são as bem-sucedidas intervenções políticas do Estado, no mundo mais desenvolvido, para combater seus efeitos nocivos. Examina-se, em seguida, como a questão tem sido historicamente conduzida no Brasil e suas perspectivas atuais. Finalmente, salienta-se a importância de um aprimoramento contínuo das políticas e ações públicas, caso se queira realmente reverter o atual quadro brasileiro de desequilíbrios regionais da produção técnico-científica. Palavras-chave: desequilíbrios regionais; ciência e tecnologia; política regional. U m dos traços mais marcantes da sociedade brasileira diz respeito às grandes desigualdades socioeconômicas que caracterizam seu território. Esses contrastes, embora estejam assustadoramente disseminados no contexto dos grandes centros urbanos, também se constituem em alvo de preocupação e de políticas públicas quando vistos do ponto de vista regional. Convive-se, assim, há décadas, com informações que revelam as grandes disparidades de desenvolvimento existentes entre as grandes macrorregiões brasileiras. Apesar do crescimento econômico relativo verificado nos últimos 30 anos, os indicadores das condições sociais das regiões tradicionalmente menos desenvolvidas (Nordeste, Norte e Centro-Oeste) são ainda extremamente preocupantes.1 As diferenças na distribuição regional dos recursos científicos e tecnológicos são também muito acentuadas. Basta salientar, por exemplo, que 82% dos grupos atuantes em pesquisa, no país, estão nas Regiões Sudeste e Sul.2 A base técnico-científica instalada no Brasil tem, assim, sua expressão mais potente nessas duas regiões, para onde é canalizado a maior parte dos investimentos em ciência e tecnologia realizados pelo Estado brasileiro. Os efeitos negativos dessa concentração excessivamente desproporcional, todavia, não têm sido ignorados. Ao contrário, desde a década de 70, o Estado brasileiro tem procurado intervir com ações regionais para transformar essa realidade tão heterogênea. Entretanto, os resultados alcan- çados são ainda inexpressivos, pois, além da debilidade das intervenções, o problema tornou-se mais complexo no contexto da economia globalizada. De fato, se, por um lado, a relevância que a capacitação técnico-científica passou a ter como vetor básico de competitividade e desenvolvimento no novo ciclo de desenvolvimento capitalista, acarretou tomada de consciência mais ampla sobre as conseqüências negativas dessas diferenciações, determinando maior mobilização política e iniciativas mais locais em torno da questão, por outro, o próprio processo de produção do conhecimento, ao se tornar mais competitivo, vem sofrendo significativas transformações na sua organização social que, conforme observa Gibbons (1994), podem contribuir para ampliar as desigualdades existentes no contexto contemporâneo. Diante dessa realidade tão complexa, na qual os Estados nacionais continuam a desempenhar um papel crucial no encaminhamento da questão, as intervenções com maiores chances de atenuar ou mesmo reverter a problemática dependem, entre tantos fatores, de um grande esforço de planejamento que possa desencadear, além de ações coerentes com cada realidade específica, uma administração de políticas públicas articuladas, de uma exploração criativa de potencialidades e naturalmente de investimentos maçicos bem direcionados. Exemplos de sucesso, como o recente caso de integração das duas Alemanhas, comprovam a possibilidade das 12 OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA transformações desejadas e necessárias para um desenvolvimento mais equilibrado espacialmente. Tomando esse estímulo como ponto de partida e tendo como premissas que essas intervenções estão ancoradas em profunda compreensão das realidades que se busca transformar e que cada situação apresenta-se com suas peculiaridades, foram reunidas, neste artigo, algumas informações básicas sobre a questão regional de ciência e tecnologia no Brasil, acompanhadas de reflexões críticas que possam contribuir para ações mais vigorosas e coerentes com as necessidades, possibilidades e potencialidades brasileiras. TABELA 1 Distribuição de Pesquisadores Brasil – 1997 Região Pesquisadores Mestrado 33.980 21.427 5.941 4.198 1.824 590 9.539 5.191 2.050 1.532 572 194 Total Sudeste Sul Nordeste Centro-Oeste Norte Doutorado N Absolutos % 18.775 12.533 2.892 2.133 928 289 100,00 67,00 15,00 11,00 5,00 2,00 os Fonte: Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997. DIFERENÇAS REGIONAIS DA BASE TÉCNICO-CIENTÍFICA BRASILEIRA Os indicadores científicos e tecnológicos existentes revelam, sem dúvida, um grande desnível da base técnico-científica entre as grandes regiões que compõem o território brasileiro. Tomemos como exemplo básico um fator fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico, ou seja, os recursos humanos qualificados para a pesquisa (Tabela 1). Como se pode verificar, as três regiões menos desenvolvidas (Nordeste, Centro-Oeste e Norte), juntas, agregam apenas 18% dos pesquisadores existentes no Brasil de acordo com o levantamento feito pelo CNPq. Esse problema ganha dimensão ainda mais preocupante ao se considerarem outras informações associadas à distribuição regional de recursos humanos qualificados para a pesquisa. Segundo dados fornecidos pela Capes, por exemplo, a titulação de mestres e doutores por região está ocorrendo conforme mostra a Tabela 2. Verifica-se, dessa maneira, que 70,79% dos mestres e 91% dos doutores que estão sendo titulados no Brasil são da Região Sudeste. Além de concentrar o maior número de mestres e doutores brasileiros, o Sudeste é também a região que vem titulando a grande maioria dos novos mestres e doutores no país. Pode-se concluir, portanto, que a formação de pesquisadores em escala regional está seguindo o mesmo padrão das desigualdades existentes, revelando a tendência de continuidade de um problema incompatível com as condições que favorecem o desenvolvimento técnico-científico. Pode-se argumentar, no entanto, embora a titulação ocorra com total predomínio nessa região, que grande parte dos pós-graduandos pode ser proveniente de outras localidades. Mas outros dados confirmam que a composição dos quadros docentes das universidades brasileiras conti- TABELA 2 Alunos Titulados em Cursos de Mestrado e de Doutorado Brasil – 1990-93 Região 1990 1991 1992 1993 Mestrado Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Doutorado Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste 5.536 43 547 3.946 843 157 1.255 4 6 1.210 33 2 6.848 86 620 4.966 946 230 1.516 4 24 1.430 51 7 7.393 86 673 5.342 1.049 243 1. 786 8 13 1.655 101 9 7.574 80 654 5.362 1.212 266 1.804 10 21 1.642 112 19 Fonte: MEC/Capes. TABELA 3 Distribuição Regional dos Resultados Finais dos Editais do Pronex Brasil – 1996/98 Instituição Participante Instituição-Sede Região Total Sudeste Sul Nordeste Norte Centro-Oeste Exterior Nos Absolutos % Valor (R$ mil) % N os Absolutos % 208 153 36 12 2 5 - 100,00 73,60 17,30 5,70 1,00 2,40 - 189.144 137.409 35.626 10.767 1.500 3.840 - 100,00 72,60 18,80 5,70 0,80 2,00 - 516 289 79 53 20 29 46 100,00 56,00 15,00 10,30 3,90 5,06 8,9 Fonte: Coordenação do Pronex. 13 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 nua com uma expressiva maioria não só de doutores mas também de mestres concentrada no Sudeste. Assim, conforme observam Guimarães e Caruso (1996), o sucesso da pós-graduação verificado nos últimos dez anos no Brasil não foi alcançado pelo conjunto das universidades brasileiras, ou seja, o programa ainda não conseguiu capacitar os docentes de forma ampla, resumindo-se ainda a algumas áreas e regiões. Os indicadores relativos aos fatores infra-estruturais para o desenvolvimento da pesquisa revelam, por sua vez, que a Região Sudeste abriga também grande parte dos centros universitários com o mais alto nível de excelência em inúmeras áreas do conhecimento e os institutos e empresas de pesquisa mais bem aparelhados do país. Os resultados finais dos editais dos anos 1996, 1997 e 1998 do Programa Nacional de Apoio aos Grupos de Excelência/Pronex (Tabela 3) evidenciam de certa forma essa realidade. Mais de 90% dos projetos e dos recursos investidos pelo Programa foram direcionados para as Regiões Sudeste e Sul. E note-se também que apesar de estar se colocando em prática um novo tipo de mecanismo de política de desenvolvimento regional por meio de cooperação e articulação institucionais, tanto a Região Norte quanto a CentroOeste, que poderiam vir a se beneficiar mais com a referida estratégia programática, têm um percentual de participação menor que o de instituições localizadas no Exterior. O fato é que grande parte dos investimentos públicos federais destinados à ciência e tecnologia continua a ser canalizada para as regiões mais desenvolvidas. Os dados apresentados no Gráfico 1 dão uma noção dessa distribuição espacialmente tão desproporcional. Mas existem os investimentos estaduais e municipais que objetivam também o desenvolvimento técnico-científico.3 Todavia, se verificarmos os percentuais das despesas realizadas pelas unidades federativas e suas respectivas regiões (Tabela 4), veremos que existe uma reprodução da concentração observada nos gastos realizados por fontes federais. Como se vê, as Regiões Sudeste e Sul – apesar de serem internamente também heterogêneas – são responsáveis por 81,98% do total investido pelos Estados brasileiros. Embora não sejam tão recentes, esses são os últimos dados disponíveis sobre o assunto. Sabe-se, todavia, que as proporções de participação regional de investimentos estaduais em C&T não sofreram grandes alterações, havendo apenas variações em grande parte dos Estados, como é o caso do Rio de Janeiro. GRÁFICO 1 Distribuição dos Investimentos Realizados em Bolsas e Fomento à Pesquisa (1) Brasil – 1999 Fonte: CNPq/SUP/Coav. (1) Inclui o total dos investimentos relativos a algumas instituições multiestaduais ou multirregionais como a Embrapa, por exemplo. TABELA 4 Despesas Realizadas em C&T, segundo Regiões e Unidades Federativas Brasil – 1994 Região/ Unidades Federativas Despesas Realizadas (R$) % sobre a Região % sobre o País BRASIL Norte Acre Amapá Amazonas Pará Rondônia Roraima Tocantins Nordeste Alagoas Bahia Ceará Maranhão Paraíba Pernambuco Piauí (1) Rio Grande do Norte Sergipe Sudeste Espírito Santo Minas Gerais Rio de Janeiro São Paulo Sul Paraná Rio Grande do Sul Santa Catarina (1) Centro-Oeste Distrito Federal Goiás Mato Grosso (1) Mato Grosso do Sul 416.956.330 5.072.610 2.036.534 223.574 978.055 1.176.005 585.726 61.437 11.279 36.635.277 2.784.344 9.019.104 2.747.479 1.697.112 6.444.051 12.752.601 520.609 1.818 668.159 272.612.447 269.922 89.288.867 12.532.887 170.520.801 69.268.374 21.142.171 37.353.208 10.772.445 33.367.592 11.603.701 18.087.554 1.359.323 2.317.014 100,00 40,15 4,41 19,28 23,18 11,55 1,21 0,22 100,00 7,60 24,62 7,50 4,63 17,59 34,81 1,42 0,005 1,82 100,00 0,10 32,75 4,60 62,55 100,00 30,52 53,93 15,55 100,00 34,78 54,21 4,07 6,94 1,22 0,49 0,05 0,23 0,28 0,14 0,01 0,003 8,79 0,67 2,16 0,66 0,41 1,55 3,06 0,12 0,0004 0,16 65,38 0,06 21,41 3,01 40,90 16,60 5,07 8,95 2,58 8,01 2,78 4,34 0,33 0,56 Fonte: Balanços Gerais dos Estados – 1994 e COOE/SUP/CNPq. (1) Valores estimados com base na dotação inicial 1994 (Lei Orçamentária). 14 OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA acompanhando a acumulação do capital. Conforme observa Buarque (1988), a liderança econômica além de requerer uma base técnica mais desenvolvida, apta para ser introduzida na atividade produtiva, necessita do conhecimento como fator de acumulação de capital. É a partir, portanto, do centro de difusão do capital que se propaga a base técnico-científica sobre outros espaços, ao mesmo tempo em que se dinamiza e reforça a capacitação técnico-científica no centro. Segundo Ben-David (1974), a tendência de concentração das atividades técnico-científicas em pólos econômicos mais dinâmicos – que ele denomina de centros – tem sido uma constante na história do desenvolvimento científico e tecnológico. Mas, ele ressalta que, embora a mudança de hegemonia de um centro para o outro indique uma ligação entre o crescimento econômico e o científico, ela não é direta nem exclusiva. Existem, segundo o autor, fatores culturais e individuais, como o valor atribuído pela sociedade à ciência e o talento de determinados cientistas, que são também importantes para a compreensão do processo de desenvolvimento científico. Dessa forma, Ben-David não chega a afirmar que a tendência concentradora seja inexorável. Na sua visão, o apoio dado à ciência e a adequação das organizações e dos sistemas de pesquisa são os fatores mais dinâmicos para o desenvolvimento técnico-científico. Com isso, ele admite que esse processo possa ser trabalhado politicamente, podendo vir a ser menos concentrado. Nesse sentido, sua contribuição aproxima-se da de Salomon (1995), que acredita que a concentração das atividades científicas e tecnológicas em poucos países no contexto contemporâneo possa ser atenuada desde que os governos nacionais definam seus projetos de desenvolvimento adequados às condições de cada país e atrelem suas políticas de ciência e tecnologia a outras políticas estratégicas, a exemplo do que fazem os países desenvolvidos. Acrescente-se que, em geral, esses países, até mesmo aqueles de menor extensão territorial como o Japão, têm mantido uma política regional de distribuição mais proporcional de sua base técnico-científica em torno de potencialidades e necessidades locais. Essa constatação, de certa forma, comprova a existência de uma consciência mais amplamente difusa da correlação direta que há entre produção e uso do conhecimento e desenvolvimento no novo contexto globalizado. Sabe-se, por exemplo, que até mesmo nos Estados Unidos, onde a descentralização da política de C&T é um Pode-se continuar a afirmar, por conseguinte, que as regiões que estão investindo recursos mais substantivos são as mesmas contempladas com maiores percentuais do governo federal. É compreensível que isso esteja ocorrendo, pois as regiões mais capacitadas agregam condições de atrair e absorver a maior parte dos recursos públicos federais destinados à ciência e tecnologia. É de se questionar, no entanto, uma vez que existe um comprometimento político de se buscar meios para atenuar essas desigualdades regionais que inviabilizam o atendimento de necessidades e o desenvolvimento de potencialidades regionais, comprometendo assim toda a unidade federativa, se as ações regionais desenvolvidas pelo Governo Federal, longe de estarem atenuando o quadro de desigualdades regionais, não estariam contribuindo para mantê-las? Esse círculo vicioso não é conseqüência de uma estratégia política débil, inadequada às necessidades da realidade brasileira? Não existe premência de se rever as bases da política de descentralização que está sendo posta em prática? É coerente que o Governo Federal, tradicionalmente o principal responsável pelo desenvolvimento técnico-científico no Brasil, continue esperando maiores investimentos dos Estados e do setor privado, quando ele tem conhecimento do grande número de dificuldades a ser enfrentado pelo menos a curto-prazo? Existem condições de se romper com o mencionado círculo vicioso? Isso é possível no contexto contemporâneo? A concentração espacial da produção técnico-científica é inexorável? Como tem se caracterizado a atuação do Estado brasileiro na condução do processo de desenvolvimento científico e tecnológico perante os exemplos do mundo em fase de alta modernidade? Todas essas perguntas deverão formar o eixo central da reflexão a ser desenvolvida nos próximos itens. A QUESTÃO DA CONCENTRAÇÃO E O TRATAMENTO POLÍTICO NO CONTEXTO INTERNACIONAL As grandes mudanças de ordem estrutural que vêm ocorrendo no mundo contemporâneo, que têm causado, inclusive, reestruturação do modo capitalista de produção, não modificaram uma de suas características básicas, a dinâmica concentradora. Como afirma Soja (1993), o capitalismo baseia-se nas desigualdades regionais ou espaciais como meio de sua sobrevivência contínua. As atividades técnico-científicas seguem essa tendência, distribuindo-se de forma desigual sobre os espaços e 15 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 O ENCAMINHAMENTO DADO NO BRASIL fato consolidado, com forte participação estadual e local, existe ainda preocupação do Estado no âmbito federal para garantir uma distribuição espacialmente mais equilibrada da capacitação técnico-científica nacional. Exemplo disso são os programas especiais implementados pela National Science Foundation, com recursos aprovados pelo Congresso, em Estados que não atingem certos patamares de capacitação no complexo de C&T. Dessa maneira, mesmo havendo nos Estados Unidos uma base técnico-científica de ponta mais concentrada em poucos Estados,4 tenta-se garantir nos demais o desenvolvimento de atividades ligadas à educação, formação e treinamento, capacitação tecnológica, entre outras, de forma a permitir uma apropriação mais ampla dos avanços da ciência e da tecnologia (Barros, 1999a). Um outro exemplo que se destaca na prática constante de políticas regionais, que tem resultado em realidades nacionais menos heterogêneas, é o da França. Esse país, que tinha um sistema tradicional de poder unitário e centralizado, conseguiu transformar-se em modelo de Estado descentralizado, no qual a instância regional desempenha papel estratégico para a organização e desenvolvimento mais harmônico de todo o seu território. São 21 regiões, com conselhos eleitos, poder de decisão e meios financeiros próprios atuando, desde 1982, de forma articulada com o Estado central, que tem o papel de principal formulador e coordenador das políticas regionais conduzidas em estreita associação com as regiões. Existe hoje, na França, um entendimento – conforme expressa a nova lei de organização e desenvolvimento do território de fevereiro de 1995 – sobre as políticas regionais serem de interesse geral, pois concorrem para a “unidade e solidariedade nacionais” (Tavares, 1996). Essa perspectiva de desenvolvimento regional acompanha naturalmente a política de C&T, que, além de estar articulada aos projetos e aos programas de desenvolvimento, busca também descentralizar seu aparato institucional. Esse processo pode ser constatado tanto na expressiva distribuição espacial das unidades de pesquisa dos grandes institutos franceses como o Centre National de Recherche Scientifique – CNRS, quanto no progresso obtido em regiões como Rhône-Alpes e Provence-Alpes-Côte d’Azur, hoje destacadas como fortes centros de pesquisa no contexto europeu (Barros, 1999b). E no Brasil, como tem sido tratada essa questão regional? Qual a percepção atual que se tem da problemática? Quais as perspectivas de uma intervenção mais eficaz? A redução das diferenças regionais nunca chegou a ser considerada propriamente prioridade nacional pelo Estado brasileiro. Pode-se dizer que houve sempre um descompasso entre o discurso e a política posta em prática. Para que se tenha uma visualização mais completa e sucinta dessa intervenção, ainda que correndo o risco de simplificar em demasia, deve-se periodizá-la em duas grandes fases. A primeira tem como marco mais significativo a criação da Sudene em 1959 e atinge seu apogeu na década de 70, quando o desenvolvimento regional foi considerado estratégico para o crescimento nacional. O planejamento, centralizado em instâncias federais, pretendia reverter o quadro do grande desequilíbrio socioeconômico existente entre as grandes regiões brasileiras, promovendo uma maior integração nacional. Na prática, porém, essa política fluiu, como observado por Jatobá (1980), basicamente para duas direções: ou a exploração de potencialidades locais que beneficiava a dinâmica de expansão econômica comandada pela indústria implantada principalmente em São Paulo, ou para ações compensatórias, quase de caráter assistencialista, a fim de abrandar as graves disparidades. Nesse período, as ações regionais voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico estiveram formalmente acopladas a essa política mais geral de concepção desenvolvimentista e de integração nacional. Entretanto, como salienta Barros (1999b), a política regional de C&T, expressa inicialmente nos Programas do Trópico Úmido e do Semi-Árido Nordestino, não considerou devidamente os limites e necessidades locais; mais grave ainda, esteve pouquíssimo articulada aos programas de desenvolvimento regional – dos quais provinha a grande parte dos recursos aplicados –, tendo assumido um teor mais científico que tecnológico. Como conseqüência dessas distorções, os resultados da intervenção regional do Estado brasileiro, nessa fase que termina com a eclosão da crise econômica dos anos 80, ficaram praticamente limitados a uma relativa integração da economia nacional e a um pequeno abrandamento dos problemas centrais. Quanto à questão técnico-científica, especificamente, não ocorreram também grandes transformações. No entanto, alguns Estados das Regiões Norte e Nordeste tiveram suas bases fortalecidas não só em termos de recursos humanos e de infra-estrutura para pesquisa, mas na organização institucional das atividades técnico-científicas. 16 OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA co-científicas ao se aglomerarem podem tornar-se mais dinâmicas e produtivas. Exemplos disso são os casos das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo. O problema diz mais respeito à intensidade com que se apresenta a concentração espacial e institucional da produção técnico-científica no país. Isto porque está claro também que a ausência ou quase ausência de determinado nível de capacitação técnico-científica em um determinado espaço acarreta desvantagens comparativas em termos de atração de investimentos produtivos. Dessa maneira, localidades que não contam com uma base educacional mais forte, com uma infra-estrutura de apoio técnico (laboratórios, prestação de serviços, etc.) e com uma infra-estrutura de comunicação correm o risco de ficar estagnadas ou mesmo de ser excluídas do processo de desenvolvimento em curso. Como ressalta Barros (1999b), embora não exista uma correlação direta, automática entre C&T e desenvolvimento econômico e social, não há como negar, no atual contexto, o círculo virtuoso que se realimenta desses fatores. Percebe-se também que a debilidade ou ausência de competência técnico-científica pode resultar na impossibilidade de aproveitamento de potencialidades locais e de respostas, sobretudo tecnológicas, para problemas específicos. Coloca-se, por exemplo, a situação da Região Amazônica que, por não contar com uma densidade de massa crítica, de núcleos de excelência locais, de institutos de pesquisa e desenvolvimento, deixa ainda de aproveitar as oportunidades abertas por um universo tão rico para a pesquisa e a exploração produtiva. De uma forma geral, visualiza-se que em um país da dimensão do Brasil, com desigualdades regionais há muito sedimentadas, mas que procura manter uma certa unidade nacional, corre-se o perigo de se ter regiões estanques, desagregadas, com maiores dificuldades e cada vez mais atrasadas. Daí muitos serem favoráveis a uma política de âmbito regional mais incisiva liderada pelo governo federal, pois ele tem sido a principal fonte indutora das atividades científicas e tecnológicas no país. Por isso, há quem acredite que, na falta de uma distribuição mais eqüitativa, mais balanceada dos recursos federais, o problema da concentração se perpetuará indefinidamente. Essa crença é, no entanto, rebatida por outros, que vêem maior complexidade na questão. Para essa corrente, não se trata apenas de garantir mais recursos; há aspectos culturais, políticos e da própria capacidade local em absorver e aplicar corretamente os recursos que precisam ser levados em consideração. A segunda fase, que se estende até hoje, está associada às mudanças políticas e econômicas que se estabeleceram a partir da expansão do processo de globalização da economia. O Estado, bastante fragilizado por uma série de fatores, tenta redefinir seu papel e suas funções. As dificuldades político-administrativas vividas, então, foram grandes. A economia brasileira atingiu índices inflacionários altíssimos que inviabilizavam qualquer tentativa de se pensar e se planejar a médio ou longo prazos. Nesse contexto, o planejamento e as ações de cunho regional evidentemente declinaram. A questão ficou mais complexa e as estratégias para o desenvolvimento mais equilibrado entre as regiões tornaram-se mais difíceis. Os investimentos em C&T passaram a declinar, o que levou até mesmo os centros mais desenvolvidos a enfrentar situações calamitosas. Assim, a política científica e tecnológica nacional, bastante afetada pela crise, passa a se restringir basicamente ao incentivo de uma maior participação tanto do setor produtivo quanto dos Estados federados nos investimentos em C&T, colocando em prática, dessa forma, uma decisão de se descentralizar também as ações voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico. Essa política de descentralização, entretanto, ainda carece de bases mais consistentes e de instrumentos mais adequados a cada realidade específica. É preciso levar em conta, de acordo com Lavinas (1997a), que muitos Estados, principalmente no Nordeste, dependem de significativas transferências do governo federal, não tendo, por conseguinte, fôlego para criar políticas sociais ou de desenvolvimento. Cabe lembrar ainda que no caso da política científica e tecnológica existe mais um fator limitante que é a falta de tradição de atuação desses Estados na área de ciência e tecnologia. Com a retomada da estabilidade política e econômica e amadurecidas as perplexidades das mudanças e das expectativas quanto ao processo de globalização, torna-se a considerar com mais atenção os grandes contrastes socioeconômicos regionais que, conforme informa Lavinas (1997b), recrudesceram nas últimas décadas. Verifiquemos aqui as mudanças e perspectivas que se colocam para a dimensão científica e tecnológica da questão. PERCEPÇÃO ATUAL DO PROBLEMA REGIONAL, A AÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E SUAS PERSPECTIVAS Existe hoje um entendimento mais amplo nas esferas acadêmica, burocrática e política de que a concentração em si não chega a ser problemática. As atividades técni- 17 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 seqüentes representam, sem dúvida, um fato significativo na experiência de intervenção do Estado brasileiro. Esse esforço de desenvolver ações mais articuladas com interesses e potencialidades locais, e a participação efetiva de Estados e municípios poderão, aprimorando-se continuamente, trazer transformações significativas. Alguns programas do CNPq, como o do Agronegócio, o de Apoio às Tecnologias Apropriadas, os do Nordeste e CentroOeste de Pesquisa e Pós-Graduação já se alinham nessa direção. Louvável também é o trabalho de planejamento realizado pelo Programa Plurianual/PPA 2000-2003 que buscou retomar a articulação institucional, sobretudo federal, para o desenvolvimento das ações de ciência e tecnologia, além de referendar a determinação de se ampliar a competência tecnológica no país. Outras ações políticas, tais como a definição de percentuais regionais para os recém-criados Fundos Setoriais de Pesquisa, injetam uma perspectiva mais promissora para o encaminhamento da questão regional pois, como se sabe, um fator complicador contribui decisivamente para a manutenção do problema e diz respeito aos recursos reduzidos para ciência e tecnologia existentes no Brasil. Esses, como vimos, estão sendo canalizados principalmente para a base técnico-científica mais desenvolvida que está localizada no Estado de São Paulo. Tal fato, entretanto, não evidencia uma necessidade de que o país venha a ter uma participação mais efetiva na produção técnico-científica no contexto mundial? Aí parece residir o aspecto perverso da questão. Sabemos das desvantagens de termos uma realidade tão heterogênea que, até por razões estratégicas para o desenvolvimento, precisa ser modificada. Por outro lado, sabemos também da importância de se garantir uma participação mais expressiva na produção técnico-científica no contexto mundial, que está também cada vez mais concentrada. Se não se quer nivelar por baixo, como superar esse impasse sem contar com mais recursos? A ampliação de recursos públicos para a área é, sem dúvida, um fator importante. Eles poderão garantir, por exemplo, os pré-investimentos necessários naquelas localidades que se encontram praticamente desprovidas de recursos científicos e tecnológicos. Por fim, é importante acentuar que o trabalho político desenvolvido pelo Estado, a fim de reverter as incômodas e negativas desigualdades regionais, não deveria se limitar a garantir maiores investimentos públicos para Esse embate tem contribuído possivelmente para uma nova configuração do tratamento da questão regional, ainda que de forma embrionária. A abordagem do problema em escala de grandes regiões é considerada, por exemplo, inadequada e superficial, pois além de tentar integrar realidades bastante diferenciadas, é de difícil operacionalização, porque o regional, na organização político-administrativa do Estado brasileiro, não corresponde a uma instância de poder. Assim, a abrangência do regional está sendo identificada como de âmbito estadual e novas linhas de atuação regional estão sendo testadas e formatadas nas instituições federais, principalmente aquelas que estimulam o envolvimento e a participação dos Estados. Essa política de articulação com os Estados, todavia, ainda se processa de forma lenta e sobretudo como iniciativa daquelas localidades que contam justamente com uma base mais consolidada. Isso ocorre, talvez, por não existirem canais institucionalizados mais definidos para esse fim na esfera federal. Não há dúvida, porém, que essa estratégia é bastante promissora, podendo representar um grande avanço no encaminhamento da questão. Problemas associados ao planejamento – como o da escolha de prioridades e de entrosamento com os programas de desenvolvimento local – ou ao envolvimento efetivo de atores locais envolvidos no processo, para não mencionar os de ordem operacional, poderão encontrar nessas parcerias soluções eficazes. Ademais, apesar da instabilidade política da grande maioria dos sistemas estaduais de C&T,5 a atuação recente de alguns Estados, como o Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia, entre outros, representa no cenário nacional o fato novo mais promissor. Não só por estarem ampliando seus investimentos em C&T, como também aprimorando sua organização institucional, suas articulações e atuações. Todavia, as ações regionais desenvolvidas no âmbito das agências de fomento federais não conseguiram imprimir ainda o impacto mais vigoroso que a situação requer. Isso talvez porque ainda não haja uma definição clara de política regional por parte do Ministério da Ciência e Tecnologia. Dessa forma, caminha-se em um sistema híbrido, no qual estão reunidos os programas nacionais que procuram considerar a dimensão regional, as ações regionais de cunho mais tradicional e as novas experiências de parcerias com os Estados. COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS As novas formas de conceber ações regionais voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico mais con- 18 OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS o desenvolvimento técnico-científico. Ele precisa aprimorar continuamente sua intervenção: seja para aperfeiçoar seus instrumentos que induzam o setor privado a um investimento mais significativo em inovação tecnológica nas diferentes regiões, seja para colocar mais em uso sua experiência técnica acumulada, pondo em prática ações mais criativas de articulação com os Estados e municípios, seja para reavaliar sua atual política de descentralização. BARROS, F.A.F. de. “ Descentralização da C&T no Brasil”. Jornal da Ciência. Rio de Janeiro, n.411, abr. 1999a. __________ .Confrontos e contrastes regionais da ciência e tecnologia no Brasil. Brasília, Ed. Universidade de Brasília e Paralelo 15, 1999b. BEN-DAVID, J. O papel do cientista na sociedade: um estudo comparativo. São Paulo, Pioneira/USP, 1974. BUARQUE, S. “Ciência, tecnologia e desenvolvimento regional”. In: Textos de Referência Seminário Nordestino de Integração Universidade e Desenvolvimento Regional. João Pessoa, 1988. COMISSÃO Especial Mista do Congresso Nacional. Relatório final sobre o desequilíbrio econômico inter-regional brasileiro. Brasília, 3v., 1993. GIBBONS, M. et alii. The new production of knowledge. Londres, Sage, 1994. NOTAS GUIMARÃES, R. e CARUSO, N. “Estudos sobre a questão regional: documento base”. São Paulo, 1996, mimeo. 1. A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional (1993). JATOBÁ, J. et alii. “ O papel do Estado e o desenvolvimento regional recente”. Pesquisa e Planejamento Econômico. Rio de Janeiro, v.10, n.1, 1980, p.273-318. 2. Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997. LAVINAS, L. “Desigualdades Regionais: indicadores sócio-econômicos nos anos 90”. Rio de Janeiro, Ipea, n.460, 1997a (Texto para discussão). 3. A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos para a área. __________ . “Abismo Regional” [Entrevista]. Veja, v.30, n.8, fev. 1997b, p.9-11. SALOMON, J.-J. “The ‘uncertain quest’: mobilising science and technology for development”. Science and Public Policy, v.22, n.1, fev. 1995, p.9-18. 4. Dados da National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia. SOJA, E.W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro, Zahar, 1993. 5. O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia. TAVARES, H.M. “Planejamento regional e integração: um estudo comparativo”. Encontro Nacional da Anpur, 6. Anais... Brasília, Anpur, 1996, p.40-50. 19 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO GUGA DOREA Jornalista e Sociólogo ROSEMARY SEGURADO Socióloga, Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP e Analista da Fundação Seade Resumo: O presente artigo aborda as questões conceituais do debate científico e suas relações com os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais, analisando as continuidades e descontinuidades verificadas ao longo da história. Pretende-se avaliar alguns dos desdobramentos do discurso científico considerados relevantes para a configuração da chamada sociedade de controle. Palavras-chave: ciência e controle; divulgação científica; história da ciência. O s debates sobre questões científicas costumam apresentar continuidades e descontinuidades conceituais no transcorrer da história. Descobertas ou invenções surgem carregadas de valores éticos, religiosos, bem como de aspectos econômicos, políticos e de forças sociais. Em alguns períodos históricos, o homem teria pensado que a terra era achatada, em outros, que era o centro do universo. Ao longo do tempo, portanto, noções e conceitos estão a todo instante em pleno processo de mutação e são constantemente reinterpretados e mesmo reinventados, além dessas compreensões terem marcado o pensamento de várias gerações. Considerando-se o conjunto de interesses e a atuação dos grupos envolvidos na processualidade de uma determinada descoberta, é possível direcionar as investigações científicas para múltiplas possibilidades de percursos a serem seguidos, e esse aspecto é decisivo tanto para o processo de pesquisa quanto para o objeto que está no foco da atenção. A ciência, segundo François Jacob, é imprevisível. E essa imprevisibilidade, que para o autor sempre busca o novo, não revela em sua origem qual será o percurso fixo da pesquisa e muito menos seu destino final. A trajetória da pesquisa é múltipla e complexa. São as desterritorializações que tornam a ciência e a própria história da humanidade tão instigantes. A apropriação das descobertas científicas continua sendo uma questão premente de ser discutida nos dias de hoje. O Projeto Genoma Humano, por exemplo, vem sendo alardeado por grande parte da mídia como o caminho para a cura da maioria dos males que afetam a saúde da humanidade, subestimando-se a possibilidade do surgimento de efeitos colaterais. Talvez seja interessante fazer algumas ponderações necessárias para a ampliação desse debate, e nada como voltar ao passado para perceber que “alguns dos males que a ciência e suas aplicações provocam nascem do desejo de fazer o bem. Os primeiros radiologistas, por exemplo, não tinham idéia que os raios X poderiam provocar câncer. Nem os químicos que os adubos destinados a melhorar as colheitas seriam a causa de temíveis poluições” (Jacob, 1998:110). Trata-se, portanto, de buscar avaliar os possíveis efeitos da ciência na humanidade, que são diversos e muitas vezes imprevisíveis. O problema é, na maioria das vezes, esse debate se manter praticamente circunscrito à comunidade científica, que tende a se autoproclamar como foco de disseminação de verdades totalizantes sobre as pesquisas em andamento. “Quem fala de ciências conhecendo-as em detalhe e de primeira mão? Os próprios cientistas. Também falam de ciência os professores, os jornalistas, o grande público, só que falam de longe, ou com a incontornável mediação dos cientistas. ‘Para falar de ciência é preciso ser especialista’, declara-se, de modo a bloquear de antemão qualquer pesquisa direta de campo. Esse estado de coisas seria muito chocante em política ou economia. Imaginemos um político 20 CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO berta de novos mundos, de outras culturas e paralelamente da idéia de “outro”. Surge então a ciência moderna descrita como uma ruptura da ciência antiga. Essa noção de modernidade também é caracterizada como a possibilidade do ser humano alcançar a perfectibilidade e um futuro cada vez mais promissor pelo avanço da ciência e da tecnologia, sempre centrado na figura do indivíduo empreendedor e dono de si, capaz de domesticar a natureza humana, concebendo a humanidade como um sistema orgânico e civilizado. “O século XIX viu nascer noções fundadoras de uma visão da comunicação como fator de integração das sociedades humanas. Centrada de início na questão das redes físicas, e projetada no núcleo da ideologia do progresso, a noção de comunicação engloba no final do século XIX, a gestão das multidões humanas” (Mattelart e Michele, 1999:13). Em meados do século XIX, Ortega Y. Gasset defende a necessidade da ordem em relação à emergente multidão que, no seu entender, promoveu uma súbita e talvez até inesperada invasão no até então refúgio das elites: a cidade. Em contraposição a Marx, Gasset prefere falar em divisão entre os homens, restando à chamada massa amorfa e sem escrúpulos navegar como bóias à deriva, sempre em oposição à minoria especializada, que está acima da mediocridade e da incapacidade de agir sobre si mesmo, característica própria da maioria. O indivíduo na multidão, segundo Gustave Le Bon, é insaciável e age apenas com o instinto. Exige-se, portanto, a regulação e a normatização hierárquica dos sentimentos irracionais e cruéis, para que se erga da multidão o que Le Bon chama de “unidade mental da multidão”. O trabalho científico não está à margem de toda essa dinâmica. Em muitas ocasiões, a ciência tornou-se um instrumento fundamental para o desenvolvimento das sociedades ditas civilizadas, em contraposição ao mundo considerado inculto e irracional, ainda não incorporado e disciplinado sob a ótica do progresso. Trata-se de uma visão de progresso que, associada ao período de crescente desenvolvimento industrial na Europa do século XVIII, levou a um aprimoramento cada vez mais crescente do processo produtivo emergente. “A evolução da divisão social do trabalho implicou a constituição de conjuntos produtivos cada vez mais gigantescos. Mas esse agigantamento da produção provocou uma molecularização cada vez mais acentuada dos elementos humanos” (Guattari, 1987:181). Podemos dizer que a expressão mais aprimorada dessa molecularização das relações sociais está na idéia de so- dizendo: ‘Só os políticos estão aptos a falar de política’, (...), ou um jornalista: ‘Eu sou a corrente de transmissão dos políticos, aquela que explica ao público o que é preciso pensar’” (Latour e Woolgar, 1997:25). A essa hierarquização corresponde um modelo de ciência adotado sobretudo no século XVIII, no chamado século das luzes. O cientista, a partir de então, passa a ser visto como o legítimo portador de verdades absolutas, da eficiência, da neutralidade e da objetividade total sobre os fenônemos naturais. Se durante a Idade Média a religiosidade era propagada com o propósito de disseminar a idéia que somente as pessoas de fé poderiam obter uma vida sadia, em um período posterior a saúde dos indivíduos busca obediência às leis dos homens, abandonando a centralidade da divindade cristã. Já em meados do século XVII, Francis Bacon pensava a ciência como um instrumento fundamental para melhorar a vida da humanidade, capaz de garantir as condições necessárias para o bem-estar dos indivíduos. Essa crença na ciência provedora da plena saúde aos homens talvez tenha começado a ser delineada a partir do século XVI. Tal crença se tornou mais evidente no século XVIII com as freqüentes experimentações públicas, nas quais os cientistas produziam exposições das pesquisas em desenvolvimento. Muitas dessas experimentações ocorriam em praças públicas e terminavam por reforçar e legitimar a imagem do “homem de ciência”, dando força a um dos aspectos que engendraram a ciência moderna: a sua espetacularização. Nesse período, o cientista era visto como capaz de desvendar os mistérios da natureza, possibilitando, entre outros aspectos, o aprimoramento da espécie humana. Tal busca pela perfeição, não podemos deixar de ressaltar, não é nova. No diálogo entre Sócrates e Diotima, descrito por Platão no Banquete, a busca pela perfeição e pelo belo coloca o homem na perspectiva de alcançar o status de verdadeiro semideus. Platão é apriorístico ao colocar o nascimento como o divisor de águas entre o modelo da sociedade ideal e o simulacro. A teoria platônica apresenta, portanto, uma hierarquização valorativa, na qual o simulacro é visto como uma cópia mal-feita que deveria ter como objetivo principal alcançar os pressupostos do modelo ideal de sociedade. Nesse sentido, todo comportamento ou expressão da diferença perderá suas características próprias ao ser incluído no que Platão concebeu como a síntese da perfeição humana. Sobretudo a partir do século XVI, no entanto, a intensificação das navegações pelos europeus levou à desco- 21 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 vido ao avanço dos estudos da anatomia, considerada como uma espécie de “livro” que continha múltiplas possibilidades de leitura e aprendizado sobre a existência humana. Até a era renascentista, as práticas médicas de tratamento das mais variadas doenças não aceitavam os métodos mais invasivos. O cirurgião, naquele momento, era associado ao carrasco e durante muito tempo a prática da cirurgia foi condenada por uma das mais importantes instituições de ensino da época, a Faculdade de Medicina de Paris. As práticas de dissecação de cadáveres eram realizadas por artistas, principalmente os escultores do período renascentista, como Michelangelo. Essas dissecações tornavam mais compreensível a anatomia dos corpos e, conseqüentemente, mais fácil expressar a musculatura e seus movimentos. Talvez seja um dos primeiros momentos da história em que o corpo passou a ser considerado como depositário de informação capaz de revelar seu funcionamento, bem como servir de base para múltiplas possibilidades de sua própria intervenção e transformação. Seguramente a anatomia pode ser considerada um marco de intervenção mais profunda nos corpos. Outro momento importante nesse processo de transformação da natureza humana foi sendo delineado a partir dos estudos de genética. As experiências com ervilhas, realizadas pelo monge austríaco, Gregor Mendel, não descortinou apenas um campo de pesquisa novo dentro da biologia, mas se constituiu em uma das mais importantes descobertas científicas da história da humanidade. Em 1865, Mendel apresentou seu trabalho à Sociedade de Naturalistas de Brünn, mas apesar de ser considerada uma pesquisa de notável precisão metodológica, não recebeu naquele momento o devido destaque. Não foi sequer relacionado como um dos elementos mais importantes para a teoria da evolução. Mesmo assim, tornou-se conhecido, até os dias de hoje, como o pai da genética. São vários os motivos que levaram os cientistas a não aceitarem a teoria de Mendel. “Dentre as justificativas aventadas pelos historiadores das ciências a mais convincente analisa o status dos hibridistas nos meios acadêmicos daquele tempo. Os hibridistas eram vistos com algumas reservas, não sendo considerados cientistas, mas, no máximo, ‘cientistas menores’ ou ‘práticos’ da profissão de botânico” (Oliveira, 1995:38). Observa-se, portanto, que a genética já nasce num processo de hierarquização do pensamento científico e as experiências com ervilhas utilizadas por Mendel não foram compreendidas em seu tempo como uma verdadeira ciedade disciplinar desenvolvida por Michel Foucault que, segundo o autor, começou a ser configurada na segunda metade do século XVIII e atingiu seu grau de perfeição e de implantação a partir das e nas instituições sociais durante o século XIX. Ao pesquisar as formas de poder presentes na sociedade, Foucault abrirá outra perspectiva na abordagem do poder para além das questões jurídicas. Desenvolveu a análise do processo pelo qual o poder disciplinar capta os indivíduos em sua esfera molecular, seu próprio corpo, a fim de torná-los mais dóceis e úteis para a sociedade que está sendo engendrada. O registro das informações a respeito dos comportamentos das pessoas era considerado fundamental para se conseguir uma espécie de visibilidade total dos corpos, cujo objetivo principal era poder desenvolver uma série de dispositivos capazes de garantir a vigilância desses comportamentos, desenvolvendo mecanismos que possibilitassem a melhor forma de discipliná-los. As técnicas disciplinares foram aprimoradas a partir de sua ampla utilização pelo Estado Moderno, a fim de gerir a vida dos indivíduos. O racismo, por exemplo, caracterizou-se como o processo de seleção dos corpos que seria capaz de purificar a espécie. “Eu procuro analisar como, no início das sociedades industriais, instaurou-se um aparelho punitivo, um dispositivo de seleção entre os normais e anormais” (Foucault, 1979:150). A estratégia de exploração contínua dos corpos tornouse um imperativo da sociedade disciplinar, constituindose num elemento-chave para as dinâmicas políticas, econômicas e sociais, definindo-se, a partir daí, padrões de saúde e modelos de normalidade. “O projeto de criar uma sociedade sadia e estabelecer uma economia social esteve sempre ligado ao projeto de transformação do desviante – mendigo, louco, entre outros – em indivíduo normalizado” (Portocarrero, 1994:62). A elaboração do conjunto de regras e normas para o bom funcionamento da sociedade exige a vigilância permanente dos indivíduos que passam a ser classificados em sua esfera cotidiana. Nesse sentido, incluir significa a apropriação dos corpos para melhor extrair suas potencialidades, ou seja, tudo aquilo que estiver fora da possibilidade de utilização deve estar circunscrito e confinado em instituições “adequadas”, em territórios fechados, como a escola, o hospital, a fábrica, entre outras. O corpo transformou-se em fonte de informações e de pesquisas ainda na Idade Média. Entre os séculos XV e XVI, ele passou a receber um destaque diferenciado de- 22 CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO para a história da biologia celular. Mas foi em julho do ano 2000 que a comunidade científica tornou pública a informação mais esperada: o seqüenciamento do genoma humano. A divulgação nos meios de comunicação chegou a comparar os resultados preliminares da pesquisa com a chegada do homem à lua e a invenção da bomba atômica. Transmitida em cadeia pela CNN, uma das mais influentes redes de televisão do planeta, reuniu o cientista e empresário Craig Venter, sócio da Celera Genomics Corporation, e Francis Collins, diretor do chamado Hugo (Human Genome Organization). Também participaram desse evento o presidente norte-americano, Bill Clinton, e o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, demonstrando a importância que os respectivos países vêm atribuindo a esse projeto. Efetivamente, desvendar o funcionamento do genoma humano deve ser considerado uma das mais importantes descobertas da história da humanidade, sobretudo por sua capacidade de abrir múltiplas possibilidades de intervir na natureza humana. Por outro lado, a forma pela qual grande parte da mídia, principalmente a televisão, está tratando do assunto nos faz pensar no que o filósofo francês, Gilles Deleuze, chamou de sociedade de controle. Talvez a ficção científica nos ajude – mais uma vez – a compreender a noção desenvolvida por Deleuze. O personagem Ethan Hawke do filme Gattaca, de 1997, apresenta a perspectiva da divisão dos indivíduos em duas espécies genéticas: os “valids” e os “invalids”. Se pensarmos que as sociedades já foram entendidas como classes sociais, a partir da teoria marxista, apresentando de um lado a classe dominante e de outro a classe trabalhadora, aqui a divisão se dá de uma forma extremamente peculiar. Em Gattaca, é no próprio momento do nascimento que essa classificação é possível. O personagem central do filme, assim que sai da barriga da mãe, rompendo sua primeira fronteira, é submetido a um exame no qual é extraída uma amostra de seu sangue para ser analisado. Após poucos segundos, sai o resultado dessa análise, quando ficamos sabendo todos os tipos de problemas de saúde que Hawke poderá desenvolver no futuro. Nesse instante, começa a sua odisséia ao ser rotulado como “invalids” e, portanto, considerado como incapaz de desempenhar as funções mais valorizadas da sociedade. É nesse sentido que o controle ocorre sem a necessidade de confinamento. Se o princípio central da sociedade disciplinar estava justamente no confinamento, Deleuze nos aponta uma nova forma de controle, que passa a ser agora exercida molecularmente. “É certo que entramos em sociedades de ‘con- bifurcação na história das ciências. A genética só veio a se desenvolver de maneira efetiva durante o século XX. Entre outros fatores, o que é importante ser destacado ocorreu em 1952 quando Alfred Hershey e Marta Chase demonstraram que o DNA continha e transmitia as informações-chaves para o processo de hereditariedade. Em 1953, Watson e Crick apresentaram a forma espacial do DNA que é chamada até hoje de dupla hélice. “Desvendar a dupla hélice da molécula de DNA tornou viável um salto qualitativo nas ciências biológicas e a aceleração de novas descobertas em todas as áreas da biologia, em especial da molecular, nos setores da citogenética. Descortinou-se um campo de pesquisas, cujas descobertas e inventos biotecnológicos têm repercussões ainda incalculáveis na história da humanidade e dos seres vivos em geral” (Oliveira, 1995:55). A partir das experiências de Mendel podem ser conhecidos os princípios básicos dos fenômenos da hereditariedade, o que propiciará um debate extremamente polêmico em torno dessa temática durante todo o século XX. Obviamente, os avanços tecnológicos da era contemporânea introduzem uma aceleração a todas as investigações científicas como nunca se pôde verificar. Essa corrida rumo a novas descobertas como, por exemplo, o mapeamento e seqüenciamento do genoma humano, demonstra o quanto a informática tornou-se um diferencial fundamental no processamento da informação genética. Durante os anos 70, foram realizados diversos simpósios e conferências sobre os possíveis desmembramentos em torno das pesquisas em andamento do que, na década seguinte, seria chamado de Projeto Genoma Humano. Esses debates tiveram como principal enfoque as questões éticas em relação aos riscos que envolviam tais descobertas e suas eventuais apropriações. Entre os fatores que vêm se constituindo em um verdadeiro vetor de aceleração dessas transformações está a informação como um dos aspectos mais valiosos de nossa era. Nesse sentido, a informação, de qualquer natureza, se torna o diferencial para qualquer processo vivido em sociedade. “Tal compreensão provocou um ímpeto extraordinário na pesquisa biotecnológica e abriu um campo novo para a exploração capitalista, na medida em que possibilitava a apropriação da própria vida no seu nível mais ínfimo, que é o da informação genética” (Santos, 2000:418). É nesse contexto que poderíamos abordar o debate em torno do mapeamento e seqüenciamento do chamado mapa da vida. Essas pesquisas, iniciadas nos anos 80, apresentaram na década seguinte seus resultados mais relevantes 23 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Autores como Deleuze e Guattari nos ajudam a compreender como o sistema gera mecanismos próprios para capturar a subjetividade dos indivíduos e sobrepor suas formas e expressões. Diante disso, o papel dos meios de comunicação de massa passa a ser fundamental na sociedade contemporânea, denominado por diversos autores como o Quarto Poder, sobretudo em função de sua capacidade de produzir modos de vida e dinâmicas sociais. A mídia é um potente disparador de processos de subjetivação, porque ela investe como ninguém no cotidiano de cada indivíduo, buscando adequar comportamentos e maneiras de pensar de acordo com os interesses do capitalismo. Trata-se de dizer que o capitalismo está sempre pronto a criar novos desejos ou a se apropriar dos fluxos que não estejam de acordo com a sua dinâmica de funcionamento. Desse ponto de vista, quanto maior for a “inclusão diferencial”, mais eficaz será o controle e a passividade diante do estabelecido como hegemônico. Conforme nos disseram Deleuze e Guattari, “não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem” (Deleuze e Guattari, 1996:45). Entre as continuidades e descontinuidades dos debates em torno do Projeto Genoma Humano, a decifração do código genético pode estar apontando para a idéia de que eventuais diferenças estão sendo dissipadas pela instrumentalização científica, sufocando qualquer possibilidade de resistência à subjetividade forjada permanentemente pelo capitalismo. Nesse sentido, poderíamos nos indagar se apenas com o desenvolvimento das informações genéticas e do prenúncio de um futuro mais sadio para a humanidade, estaríamos engendrando novos modos de existência? Ou então, o que fazer com os processos de resistência daqueles que de alguma maneira não se ajustam ou não querem se adequar às padronizações e serializações impostas pela subjetividade capitalista? Se pensarmos em Guattari (1987:165), “há muitas maneiras de abordar esse ‘avesso’ da racionalidade humana. Pode-se negar o problema ou reduzi-lo ao domínio da lógica habitual, da normalidade e da boa adaptação social (...). Dessa perspectiva, nada mais resta que tentar corrigir tais falhas, de modo a retornar às normas dominantes. Inversamente, pode-se considerar que esses comportamentos dependem de uma lógica diferente, que deve ser estruturada como tal. Em vez de abandoná-los à sua irracionalidade aparente, vamos então tratá-los como uma trole’, que já não são exatamente disciplinares. Foucault é com freqüência considerado como o pensador das sociedades de disciplina, e de sua técnica principal, o confinamento (não só o hospital e a prisão, mas a escola, a fábrica, a caserna). Porém, de fato, ele é um dos primeiros a dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea” (Deleuze, 1992:215-216). Quando se afirma que a sociedade de controle aboliu os muros das instituições sociais (família, escola, fábrica, prisão, entre outras), está-se dizendo que o controle nessa nova forma de sociedade pode ser realizado até mesmo ao ar livre. Portanto, se utilizarmos as idéias desenvolvidas por Michel Hardt, a partir de Deleuze, veremos que a era em que vivemos caracteriza-se como a do controle, pois o sistema capitalista teria alcançado sua forma política ideal que é inclusiva e ondulatória, funcionando com a dinâmica das instituições sociais, mas prescindindo delas. “O controle é, assim, uma intensificação e uma generalização da disciplina, em que as fronteiras das instituições foram ultrapassadas, tornadas permeáveis, de forma que não há mais distinção entre fora e dentro” (Hardt, 2000:369). À medida que o capitalismo busca o alargamento de seus limites, encontramos em Hardt uma noção para ilustrar o quanto esse sistema necessita, para sua própria perpetuação, de uma forma de “inclusão diferencial”. Trata-se de um processo de desterritorializações e reterritorializações constante e contínuo, no qual se parte da idéia “politicamente correta” de que não há mais diferenciações no processo de entrada na dinâmica produtiva do mercado capitalista. Em princípio, todos são igualmente capazes de se inserir no processo competitivo. É o próprio mercado que vai selecionar e hierarquizar. Nesse sentido, a hierarquização se dará no próprio convívio social. Nem todos estarão aptos a alcançar o que é visto como modelo ideal a ser vislumbrado na dinâmica capitalista. Considerando que a produção e o consumo são os pilares mais importantes do sistema vigente, todos os indivíduos com necessidades especiais, como a Síndrome de Down por exemplo, serão considerados aptos a alçar vôos competitivos mais altos quando se revelarem capazes de se aproximar da chamada normalidade. Aqueles que não conseguirem entrar nessa disputa inerente à lógica capitalista, poderão ser inseridos no mesmo patamar dos “invalids” do filme Gattaca, sendo essa portanto uma forma mais sofisticada de exclusão social. 24 CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO espécie de matéria-prima, como espécie de mineral de que se podem extrair elementos essenciais à vida da humanidade, especialmente à sua vida de desejo e às suas potencialidades criativas”. HARDT, M. “Sociedade mundial de controle”. In: ALLIEZ, É. (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo, Editora 34, 2000. HELLMAN, H. 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Mediante estas práticas, fundadas na inseparabilidade da cultura científica e da cultura das humanidades, coloca-se a possibilidade da restauração sustentável de Gaia, mesmo que cenários do futuro encontrem-se ainda atrelados ao desenvolvimento unidimensional da biotecnologia, da robótica e da neurotecnologia. Palavras-chave: ética e ciência; mudança tecnológica. A cional-lógico-dedutivos e mítico-imaginários se retroalimentassem mutuamente. A insistência de Snow de que era preciso agir rápido e repensar a educação em moldes menos especializados e fragmentados, e isso do ensino fundamental à universidade, não encontrou eco em planejadores e gestores, que se incumbiram de implantar o divórcio entre tecnologia e humanismo, entre razão e desrazão. É bem verdade que o termo cultura tem múltiplas acepções, que vão desde refinamento e sofisticação, até soberba e erudição. Se o conceito tivesse deixado de lado essas acepções e passasse a ser identificado simplesmente com a práxis cognitiva planetária gerada por grupos sociais múltiplos, a distinção entre cultura científica e humanista certamente cairia por terra. É claro que quando olhamos de frente para esse planeta globalizado, que inclui e exclui por uma dialética perversa e fóbica, batemos de frente na velocidade unidimensional e irreversível do progresso, instalada a partir da revolução mercantil do século 16, consolidada com a revolução industrial do século 18 e solidificada com a revolução digital do 20. Opondo definitivamente magia e ciência, a idéia de progresso ganhou força, passando a reprimir qualquer tipo de cognição que não fosse regida pela causalidade e pelo determinismo e não aspirasse atingir verdades paradigmáticas consensuais. O chamado paradoxo neolítico chega a parecer inocente quando se depara com a voracidade cisão entre a cultura científica e a das humanidades permanece intocada até os dias de hoje. Produto da visão cartesiana e newtoniana que se constituiu em paradigma do mundo ocidental, essas duas culturas não se intercomunicam, cada uma vivendo às custas dos escombros da outra. Malgrado os esforços de múltiplas áreas do conhecimento em rejuntar saberes e repensar o objeto complexo, essas iniciativas são dissipações, brechas que não conseguem abalar o sólido edifício das dualidades instaladas e consolidadas no universo da política, da economia e da própria ciência. Em 1959, Charles Snow soube melhor do que ninguém avaliar os efeitos deletérios dessa incomunicabilidade, ao afirmar que “quando esses dois sentidos se desenvolvem separados, nenhuma sociedade é capaz de pensar com sabedoria” (Snow, 1995:72). A existência de uma terceira cultura formada pelas ciências da sociedade, que se incumbisse de manter boas relações tanto com cientistas quanto com literatos, deixouse contaminar pelo estigma da separação. Com isso, o panteon do conhecimento redividiu-se de novo, constituído agora pelas ciências da natureza, pelas ciências da cultura e pelo imaginário presente nas artes, na literatura e na poesia. Incomunicáveis, essas três galáxias foram contaminadas pelo desenvolvimento fantástico da tecnociência, que selou de vez as mais variadas formas de dominação do homem sobre a natureza, impedindo que itinerários ra- 26 TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA Essas potencialidades pervertidas das tecnologias ganham expressão máxima no sistema desigual de trocas que atravessa o planeta em sua totalidade. Ao analisá-las, René Passet (1998:65) afirmou que “os fluxos transfronteiriços de mercadorias representam, em sua maioria, trocas inter ou intra-firmas transnacionais”. Com isso, os EstadosNações não conseguem mais controlar a massa das mercadorias e isso porque “os capitais circulam mais fácil e rapidamente do que as mercadorias” (Passet, 1998:65), como se estivessem submetidos a estrutura virtual invariante, situada além e aquém dos homens. Essa “nova ordem mundial” inundou de desigualdades todas as sociedades sem distinção de longitude ou latitude, aumentando os sem-emprego, os sem-terra, os sem-teto. Todas estas ausências sociais, por vezes circundadas por uma vitimização e infantilização excessivas, repercutem a cada dia na pauperização do trabalho e da vida. Se deixadas a seu bel-prazer, conterão três possibilidades: ou o sistema se autodestrói, ou se recompõe por soluções paliativas, ou se nega por uma utópica revolta civil acionada pela legião dos estarrecidos do planeta. Na verdade, não há como identificar nesse espaço/ tempo geopolítico aonde se localizam os novos inimigos do mundo, pois eles se encontram disseminados, como um monstro de múltiplas cabeças, entre os setores constitutivos das classes dominantes que detêm o controle do poderio nuclear, do narcotráfico, do crime organizado, da desfaçatez midiática e dos cinismos da representação política. A world culture, expressão crítica utilizada por Ramonet (1998), que deslocalizou unidades de produção e aglutinou unidades de consumo conspícuo, gerou um espaço econômico transnacional e transpolítico capitaneado pelos EUA, Japão, União Européia, mesmo que terrorismos, neonazismos, corrupções e até traições conjugais empanem o brilho que o bloco pretende exibir, nem sempre com sucesso. Para que a reprodução dessa máquina mortífera se amplie sem traumatismos, a comunicação e o mercado passaram a ser os dois paradigmas estruturantes do pensamento, incumbidos de aplacar os dissidentes e incensar os prosélitos. Essa pacificação e passividade tramadas nos gabinetes do poder instituído vêm esbarrando em alguns problemas, e isso porque a ampliação da insignificância do mundo começa a exigir reflexões éticas sobre a ciência e a técnica. Em primeiro lugar, cabe pensar um pouco sobre o significado dessa palavra. Quem se incumbiu dessa tarefa, de modo irretocável, foi Cornelius Castoriadis (1996). Não que o controle da natureza apresentou nos tempos modernos. Mesmo que se assuma cognitiva e politicamente com Claude Lévi-Strauss (1962) a inexistência de diferença de natureza e grau entre os pensamentos mágico e científico, a hipermodernidade preferiu concentrar-se apenas no prometeísmo da ciência e da razão. A noção de progresso parece andar em crise e, como apontou Paolo Rossi, temas como a escravidão do homem, a erosão da subjetividade, as extinções de espécies vegetais e animais retornaram à cena político-cultural de modo obsessivo, sinalizando a urgência de uma tomada de posição diante dessa geopolítica do caos. Ao que tudo indica, “o que é moderno não coincide mais com o que é humano” (Rossi, 2000:97). Esse antagonismo entre modernidade e humanidade fez com que a condição humana passasse a contar pouco diante da hegemonia da regulação das instituições, do narcisismo da política e da arrogância da ciência. Por isso, “olhar para o futuro assemelha-se a uma viagem oceânica em frágeis caravelas” (Rossi, 2000:130). No contexto dessa viagem sem destino, a devastação das águas, ares e terras espelha, de modo substantivo, a fragilidade dessas caravelas imaginárias, cujos condutores são aqueles que ainda acreditam nas forças de conjunção que solidarizam, fraternizam e universalizam. Mesmo diante de mares bravios e da pirataria escondida em potentes submarinos, essa consciência telúrica ampliouse consideravelmente a partir dos anos 70, consubstanciando-se em inúmeros encontros transnacionais que, sem diabolizarem a noção de desenvolvimento, passaram a postular que ele deveria ser norteado pela sustentabilidade. “O desenvolvimento é durável se as gerações futuras herdam um meio ambiente cuja qualidade seja pelo menos igual ao das gerações precedentes” (Ramonet, 1998:7). O ponto de partida de qualquer iniciativa regida pela sustentabilidade requer uma crítica contundente à civilização tecnológica, impelindo indivíduos e sociedades a se mobilizarem contra a violentação da vida e a desolação da terra. O planeta sinaliza um certo cansaço diante de vacas loucas, águas contaminadas, dejetos tóxicos, catástrofes nucleares, andróides gênicos, máquinas espirituais e próteses corpóreas siliconadas. Ao que tudo indica, a mutação contemporânea, regida por uma taxa ampliada de acumulação material e imaterial que encanta os “donos do poder”, vem gerando um desencantamento recalcado, cujos sintomas são visíveis a olhares mais complexos e sensíveis. 27 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 vinculados a elas, à infra-estrutura tácita de conceitos e idéias que produziram e às ressonâncias reais e imaginárias que operaram. Mas é sempre bom relembrar que toda essa herança cultural “é para as massas e não apenas para intelectuais de torre de marfim” (Brody e Brody, 1999:25). Revoluções científicas foi o nome dado a esse conjunto de alterações prodigiosas, produto de mentes inquietas, dominadas pela pulsão da descoberta. Se seu resultado foi mais visível na ampliação da parafernália instrumental e mais oculto na planilha dos conceitos, o fato é que mudaram o estilo do entendimento do mundo, introduziram certezas e semearam incertezas por todo lado. Com o humor de sempre, Freeman Dyson (1998:45) referiu-se a dois estilos contrastantes que cercam a fabricação científica: “a organização e a disciplina rígidas representadas por Napoleão, o caos e liberdade criativos representados por Tolstoi. No mundo dos computadores, Napoleão é o pesado mainframe da IBM: Tolstoi é o humilde Macintosh. A revolução da informática representou uma saída das ambições napoleônicas de Von Neumann em direção à anarquia tolstoiana da Internet”. Mesmo que Dyson credite à genética e à neurofisiologia o pódio científico do século XXI, napoleônicos e tolstoianos terão que se unir para derrubar as fronteiras e entender a vida de modo menos linear e mais interdependente, de modo a superar os efeitos que tecnologias civis e militares vêm provocando no crescimento das desigualdades. “O mal pode ser visto em muitas partes do mundo, especialmente nas grandes cidades das Américas do Norte e do Sul” (Dyson, 1998:80). A tecnologia, enquanto modo de produção cercado por dispositivos instrumentais e de controle postos em ação por predadores inventivos obstinados, criou uma forma inquisitorial que saqueou os tesouros do mundo natural, atirando-os nos compartimentos do poder. Essa cultura fáustica, decadente e trágica, foi responsável pela “montagem de um mundo em miniatura, criado por nós, que se moveria, tal como o Universo, graças à sua energia própria e obedecendo apenas à mão do homem” (Spengler, 1993:102). O questionamento feito por Oswald Spengler, em 1931, sobre essa megamáquina, que exibia uma potência de domínio sem precedentes e atraía a fina flor de indivíduos mais dotados cognitivamente, resumia-se em saber quanto tempo seria ainda necessário para que sua devoração e corrosão se concretizassem. A irreversibilidade do tempo incumbiu-se de mostrar que a racionalidade e a racionalização padronizaram as relações humanas com velocidade máxima, como se as se trata, apenas, de uma insignificância na cultura ou na política, mas também no pensamento e nos pensadores acometidos pelo conformismo e pela apatia, incapazes de enxergarem para além dos contornos do infinitamente pequeno, especialistas nos fragmentos do corpo, da alma, da sociedade, da mente. Para Castoriadis, torna-se prioritário desentranhar forças psíquicas capazes de bater de frente no progresso instrumental, nos cães de guarda do poder e em todos aqueles que, ao lado dos tiranos institucionais, impedem a emergência de uma criação imaginária radical. Por isso, em sua cosmovisão, os profissionais da política são massacrados sem clemência e seus desmandos, corrupções e narcisismos denunciados implacavelmente. Algum paradoxo insolucionável não conseguiu harmonizar conquistas democráticas e maravilhas científicas com a humanização da cultura. Ao contrário disso, ampliaram-se a resignação e a impotência diante da fatalidade da crise, sendo que a reunificação de cidadãos em torno de aspirações coletivas planetárias não se processou como se esperava. Diante da ampliação dos horrores políticos, econômicos e culturais produzida pelo século XX, o sistema planetário sepultou paixões e utopias, substituindo-as por desesperanças e conformidades. Mesmo assim, é preciso resistir e criar condições de autonomia e liberdade para o pensamento e para a ação. Para dizer a verdade ao poder e às cintilações dele emanadas, não é mais possível pensar apenas como especialista, mas como um “outsider vigilante”, que questiona a desumanização cultural. Como reitera Edward Said (1996:33), é preciso experienciar cotidianamente a condição de “intelectual exílico, que não responde à lógica da convenção, mas à da audácia”, que transcende os contornos sitiados de sua zona de saber e opta pela condição de amador, preferindo “o risco da incerteza no domínio público – uma conferência, um livro, um artigo – ao espaço fechado e controlado pelos expertos e pelos profissionais” (Said, 1996:43). O amadorismo a que se refere Said exige intelectuais polivalentes, universalistas e éticos, que enfrentem com vigor e determinação as contradições do cenário planetário contemporâneo. Para isso, ciência e técnica devem ser entendidas num amplo circuito de ambivalências, mesmo que as maiores descobertas da ciência, como a gravitação universal, a estrutura do átomo, a relatividade, o big-bang, a mecânica quântica e a decifração do genoma, representem momentos irreversíveis que a história humana produziu sobre ela mesma. Por isso, queiramos ou não, estamos 28 TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA dos, mas de propor uma política de civilização (Morin e Naïr, 1997) que redefina a vida em comum, entenda o sapiens como meio, fim, objeto e sujeito da política e propicie boas notícias para Gaia. Uma desaceleração nos níveis tecnológicos, acoplada a uma planilha de precauções ético-políticas, não seria impensável para uma renovação de valores experimentais universalistas, que investissem na conservação, na frugalidade, na preservação e se recusassem a reconhecer em Gaia um laboratório de experimentações mefistofélicas de cunho produtivista e inumano. Uma mudança de escala nesse laboratório sem supervisores nomeados, fundada numa ética valorizadora da convivência entre os seis bilhões de humanos que hoje habitam o planeta, e que amanhã, por volta de 2025, somarão entre 7,3 e 10,7 bilhões, segundo os últimos dados divulgados pela ONU, poderia vir a restaurar o sentimento da totalidade e da harmonia, assim como a unidade entre mente e matéria, entre ciência e vida tão desprezada ultimamente. Foi esse o tom utilizado por Tseard Zoethout (1999:38) que, ao considerar Spinoza um filósofo da totalidade, afirmou que “uma pessoa tem de olhar o mundo a partir do ‘ponto da eternidade’”. Essa maneira de olhar é verdadeiramente uma arte de conhecimento que requer, acima de tudo, intuição intelectual. Somente assim será possível voltar a reconhecer que a totalidade nunca será capturada pela soma das partes, porque implica sempre a interconexão contraditória e indeterminada de todos os eventos, sejam eles coisas ou idéias, fatos ou representações, amores ou desamores. Esse sentimento de totalidade requer uma revolução noológica que se defronte contra qualquer forma de colonização. Se esse processo histórico soube invadir as alteridades a partir de 1492, submetendo-as às imposições do dominador, a segunda chegada de Colombo é agora representada pela biopirataria de culturas, plantas, animais. Com a determinação que lhe é peculiar, Vandana Shiva (1997) exemplificou essa colonização interior, referindose ao patenteamento de células e genes realizado pelos próprios homens de ciência. Entre os patenteamentos celulares e os territoriais, é estabelecida apenas uma diferença de natureza. Se os últimos classificavam as culturas não ocidentais como inferiores, pré-lógicas e, portanto, passíveis de apropriação indébita, os primeiros classificam os iguais como privados de vida e direitos, porque sofredores e desesperançados. “Terras e florestas, rios e oceanos, a atmosfera como um todo foram colonizados, erodidos, poluídos. O capital agora tem que se lançar para novas colônias, para invadi-las e explorá-las, a fim de palavras e as coisas dessem as costas para a segunda lei da termodinâmica. Desse modo, individualidade e propriedade passaram a ser entendidas como sinônimas, e isso porque a diminuição do quantum de energia per capita despendido nos processos de trabalho não permitiu a ampliação da criatividade, da liberdade e da autonomia. Como acuradamente percebeu Herbert Marcuse (1999:103), “tal Utopia não seria um estado de felicidade perene. A individualidade natural do homem é também a fonte de sua aflição natural”. Se o homem traz consigo a marca da felicidade e da aflição, do contingente e do necessário, do prazer e da dor, da dominação e da dependência, constata-se que essa dialética de ambivalências não permitiu a supressão do ‘cativeiro da humanidade’, mesmo diante dos horrores cotidianos que o planeta vem presenciando. É interessante constatar que, tanto Marcuse quanto Spengler, mesmo situados em campos epistêmicos distintos, produziram essas reflexões entre 1931 e 1941, como que prefigurando, cada um a seu modo, as conseqüências deletérias que o nazifacismo e o nacional-socialismo do terceiro Reich provocariam na alma da civilização planetária. Generalizou-se o mal-estar, embora nesse final milenar corações e mentes “eugênicas” se incumbam de direcionar o futuro da Terra para onde bem pretenderem. O homo-sapiens 2000 se aparenta a um ventríloquo acometido pela experiência da repetição e vacinado contra a experiência da criatividade. É possível que venha a ser geneticamente correto e esterelizado, embora eticamente incorreto, discriminador e relativista. Reinventou-se a natureza, computou-se o DNA, processou-se a informação em níveis surpreendentes, mas as concepções mecanicistas não foram superadas, malgrado as estruturas dissipativas, os fluxos de dispersão e as tendências reorganizatórias que cercam a impermanência de todos os sistemas vivos. “Com as novas tecnologias, os seres humanos assumem o papel de artistas criativos (…) mas esse novo tipo de arte (…) é uma arte da imitação, cheia de técnicas de cálculo racional, produção em massa e personalização” (Rifkin, 1999:234). Caso a revolução biotecnológica seja mesmo capaz de produzir uma reviravolta no sentido da existência, como acredita Jeremy Rifkin, aprimorando os nexos da vida democrática em escala ampliada, os riscos de uma entropia e de uma desordem generalizadas poderão vir a ser minimizados, desde que o mito do progresso e o antropocentrismo dele decorrente seja colocado em seu devido lugar. Não se trata mais de restaurar a carcomida querela entre antigos e modernos, ou entre apocalípticos e integra- 29 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 nela, para que seja possível exercitar a parcimônia diante de apetites vorazes e incontrolados. Torna-se crucial que assumamos com Jonas a necessidade da temperança antes que seja tarde demais. “Nós podemos até chegar a reduzir a extensão da voragem e voltar a viver com menos, antes que um esgotamento catastrófico ou a poluição do planeta nos constranjam a algo pior que a temperança” (Jonas, 1999:415). Esse algo pior já pode ser constatado em diagnósticos que detectam e, de certa forma, naturalizam a destruição planetária. A Nasa, por exemplo, já admite que gerações futuras possam concentrar-se em “células de sobrevivência”, nas quais chips e tamagochis substituirão plantas e animais e um banco espermático acabe de vez com as ambigüidades da repressão sexual. Nessas cidades futuras, talvez só reste aos homens supor que a vida exista em outros planetas e, a partir daí, produzir uma terceira colonização, dessa vez extraterrestre, que se exerceria sobre os sólos áridos de Marte, ou os mares obscuros de Vênus (Santos, 2000:30). O próprio diretor da agência espacial americana declarou que o objetivo das missões, como a Mars Global Surveyor e a Mars Express, reside na ampliação da fronteira humana (Ball, 2000). Se as suspeitas da existência vierem a se concretizar como insistem os tecnocientistas, a voracidade da exocolonização redefinirá o conceito de vida, como, aliás, já vem sendo ensaiado em encontros recentes que rediscutem as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. “A vida é um mecanismo capaz de auto-replicar-se e que evolui de forma darwiniana” (Ball, 2000:20). Considerações dessa natureza costumam ser ainda entendidas como ficções científicas e, por isso, rotuladas como acrimônicas e anódinas, constituindo-se em prefigurações e projeções de um futuro inglório que ninguém, em sã consciência, deseja. Todo esse estranhamento diante do mundo vem provocando irritações visíveis em pensadores como Peter Sloterdijk (1998), quando referiu-se à perda do olfato dos teóricos diante das tendências globais do processo civilizatório ocidental. Drogados pela ansiedade do sucesso e intoxicados pela cultura da distração, eles não conseguem mais estabelecer a interdependência entre vida, mundo e realidade. A “scienza nuova” da cidadania do mundo funda-se eticamente na formação de “coalizões de atenção”, que lutem por uma qualidade evolutiva ampliada que perceba o planeta como “base única para todas as hordas, povos, nações e círculos culturais” (Sloterdijk, 1998:364). Se, para isso, for preciso reconhecer explicitamente o fracasso do ser humano, que isso seja feito de uma vez. “O garantir sua acumulação futura. Essas novas colônias são os espaços interiores dos corpos das mulheres [e também dos homens], plantas e animais” (Shiva, 1997:13). Esse deslocamento estratégico da colonização passou a exigir que a ética da vida ocupe cientistas e técnicos de modo inabalável e definitivo. Hans Jonas (1990) que, desde 1979, dedicou-se aos contornos cognitivos do Princípio Responsabilidade, foi mais do que enfático, ao advertir que a civilização técnica carrega consigo uma responsabilidade metafísica, pelo menos “desde que o homem tornou-se perigoso não apenas para ele mesmo, mas para toda a biosfera” (Jonas, 1990:261). A restauração da simbiose homem/natureza é o primeiro passo a ser dado diante da arquitetura do mal perpetrada por intelectos teórico-práticos. A nova obrigação de sujeitos éticos nasce dessa agonia planetária considerada descartável por muitos. Essa ameaça exige, antes de mais nada, “uma ética da conservação (…) do impedimento e não uma ética do progresso e do aperfeiçoamento” (Jonas, 1990:266). Para Jonas, qualquer ampliação do potencial do Fundus técnico de uma sociedade traz consigo um fardo ético que implica sempre avaliar que o fazer, o saber e o poder nunca constituem apenas um para-si, mas um para-os-outros. “Sacamos hipotecas sobre a vida futura por proveitos e necessidades presentes e de curto prazo e, no que concerne a isso, por necessidades na maioria das vezes autogeradas” (Jonas, 1999:411). Se o preço a pagar pela hipoteca é alto demais para ser resgatado pelas gerações futuras, nossas decisões prático-mundanas trariam para o proscênio ético uma necessária solidariedade inter-humana e isso porque “as conclamações à responsabilidade crescem proporcionalmente aos feitos do poder” (Jonas, 1999:412). Foi preciso que o planeta se apavorasse com a destruição da biosfera para que riscos técnicos começassem a ser avaliados e criticados por organizações não-governamentais, como a Greenpeace e a Anistia Internacional, dentre outras, que lutam, com a força persuasiva que possuem, contra a desmesura que tomou conta dos donos do poder, esses prometeus modernos para quem as ampliações da técnica são sempre entendidas como irreversíveis. Sabe-se que a irreversibilidade sempre foi um problema para um antropocentrismo decadente, sempre ignorante das lições de vida oferecidas pela dinâmica da natureza. Maravilhados porque desceram das árvores, perderam o rabo, copulam de frente e, mais do que tudo, porque falam, os homo-sapiens se perderam no horizonte crepuscular de uma existência prosaica demais. Demasiadamente humanos, precisam reencontrar-se com a natureza, diluírem-se 30 TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA táfora criada por Mary Shelley em 1818 (1985) fosse teletransportada para 2000, poder-se-ia supor que felicidade e virtuosidade são invariantes da alma e que a tecnociência, por mais pretensiosa que seja, não tem o direito de impedir que elas floresçam nas criações humanas, sejam elas reais ou imaginárias. ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser-animal (…) e em seu permanecer-animal (Sloterdijk, 2000:34). Acusado de professar um determinismo genético e totalitário, por problematizar algumas das conseqüências advindas da evolução biotécnica, as novas regras do parque humano terão que polemizar sobre o velho humanismo antropocêntrico e reler a longa história das relações entre animalidade e humanidade, assim como experienciar a incerteza das fronteiras entre as histórias da natureza e da cultura. O que está colocado em xeque é o caráter derrisório da noção de humanidade. A humanitas não implica apenas amizade e entendimento, mas também reconhecimento do poder de homens sobre homens. “A história real da clareira (…) consiste, portanto, de duas narrativas maiores que convergem em um perspectiva comum, a saber, a explicação de como o animal sapiens se tornou o homem sapiens” (Sloterdijk, 2000:33) e, simultaneamente, demens. Essa perspectiva comum requer um outro modo de pensar e fazer, uma aceitação da responsabilidade social destinada a impedir que a política do pior floresça. Esse é o papel reservado a intelectuais capazes de identificar, no largo espectro das tensões sociais, uma utopia social viável, uma arquitetura, ou seja, um paradigma da coerência construtiva que recombine tensões e integridades, razões e desrazões. Trata-se, em resumo, de agir e participar sempre que possível, mesmo que a perdição seja grande e a tentação do refúgio paranóico maior ainda. A imagem do cientista ambicioso, isolado da natureza e dos afetos, criador de criaturas, deve ser superada, para dar lugar ao cientista amoroso, capaz de fazer dialogar o sensato e o insensato que sempre marcou a aventura humana. Com isso, talvez seja possível aplacar os monstros da razão e perceber que a vida é bela, apesar das desavenças e domesticações que a historialidade imprimiu ao cientista, compelindo-o a optar entre um racionalismo redutor e um idealismo apaixonado. “Faça-me feliz e eu serei de novo virtuoso” foi o apelo desesperado que o monstro dirigiu a Victor Frankenstein para que o deixasse viver, malgrado os ódios e desprezos que todos lhe dirigiam. O criador não se deu conta que o monstro, considerado com um fragoroso erro experimental, era o duplo dele mesmo. Deixando-o sucumbir, devorou-se a si próprio e mergulhou definitivamente na infelicidade da hubris. Se a me- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALL, P. “Sueños poco realistas de la Nasa para Marte”. El Pais, 21/09/2000. 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Ora, se lembrarmos que uma parcela cada vez maior da vida e das atividades do homem contemporâneo tende a passar pelas redes, quem melhor colocado para acessar os seus dados senão os provedores de acesso ao ciberespaço? Palavras-chave: controle digital; informação e consumo. N o dia 1o de julho último, o jornal Los Angeles Daily News publicou um artigo de David Bloom intitulado: “Internet oferece voyeurismo em tempo integral”. Nele o jornalista relata como a vida privada pode hoje não ser simplesmente vivida, mas exposta e encenada para um público de telespectadores que não se contenta mais com os programas de realidade na televisão, nem com o sexo ao vivo dos sites de pornografia, mas quer agora poder assistir a vida em tempo real (Bloom, 2000).1 Aprendemos, então, que há vários sites de Lifecam, com nomes sugestivos: AspiringActresses.com, Crushedplanet.com, TheRealHouse.com, CoupleTV, FirstApartment.com. Neles, jovens que querem sair do anonimato, exibicionistas, gente em busca de uma experiência diferente, estudantes, aceitam viver suas vidas para as câmeras da web e interagir com os fãs, em troca de parte da renda paga por assinantes mensalistas, dividida com os proprietários dos sites. Dá para pagar algumas contas e não precisar “ter de ser garçonete sete noites por semana” – declara Lisa Nowicki, cujo cotidiano é bisbilhotado diariamente por cerca de quatro mil espectadores de todo o mundo que, segundo o proprietário do site, mantêm uma janela aberta em seus computadores para monitorar o que está acontecendo na vida dela, enquanto vivem as suas próprias. À experiência de Lisa e de tantos outros exibicionistas da rede, valeria a pena acrescentar a de June Houston, relatada pelo jornal Le Monde (em 18 de novembro de 1997) e analisada por Paul Virilio em La bombe informatique. Como conta o pensador das tecnologias, essa americana de 25 anos instalou 14 câmeras em pontos estratégicos de sua casa para lutar contra os fantasmas que parecem assombrá-la. Tais câmeras estão ligadas e conectadas à rede para captar e transmitir aos visitantes do site Fly Vision as aparições que porventura vierem a se manifestar. Graças a uma janela interativa, os “espreitadores de fantasmas” podem alertar por e-mail a presença de algum “ectoplasma”. “É como se os internautas se tornassem meus vizinhos, testemunhas do que acontece comigo”, diz June Houston, acrescentando: “Não quero que as pessoas venham fisicamente ao meu espaço. Não podia portanto receber ajuda externa, até que compreendi o potencial da Internet” (Virilio, 1998:70). É evidente que, aqui, não se trata de transformar o lar num palco para a encenação da vida privada; mas sim, como bem percebeu Paul Virilio, de torná-lo objeto de uma televigilância diferente daquela a que estamos habituados. Com efeito, diz o pensador da tecnologia, não se trata mais de se precaver contra a intrusão de ladrões, mas de compartilhar as angústias e os medos com toda uma rede, graças à superexposição do local onde se vive. Na verdade, segundo Virilio, estamos diante da emergência de um novo tipo de TELE-VISÃO, cujo objetivo não é mais informar ou divertir a massa de telespectadores, mas expor e invadir o espaço doméstico com uma nova ilumi- 32 LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO tológica. Isso fazia dele (...) um pesquisador extremamente competente. (...) O dado relevante (...) era o fato de ele ser um pescador intuitivo de padrões de informação: do tipo de assinatura que um indivíduo inadvertidamente cria na rede na medida em que vai dando seguimento ao ofício mundano e, no entanto, infinitamente multiplex, de viver numa sociedade digital. O déficit de atenção de Laney, pequeno demais para ser registrado em algumas escalas, fazia dele um zapeador natural de canais, indo de programa a programa, de um banco de dados a outro, de plataforma a plataforma, de um modo bem... intuitivo” (Gibson, 1999:32). Laney é, portanto, mais do que um navegador competente; ele conjuga seu conhecimento dos processos informacionais a um déficit de atenção que na verdade é um ganho. Assim como o psicanalista, que ouve seu paciente com a atenção flutuante e por isso mesmo capta intuitivamente na trama da fala a falha de seu discurso e a irrupção do desejo, Laney, zapeando na esfera digital, focaliza no cruzamento dos padrões e na teia dos dados uma peculiaridade informacional, a diferença qualitativa que confere novo relevo ao conjunto e conduz o investigador a túneis de informação “que poderiam ser seguidos até um outro tipo de verdade, outro modo de saber, bem no fundo de minas de informação”. Essas singularidades, o internauta chama “pontos nodais”. É importante sublinhar que Laney trabalha para um programa na rede, um certo tipo de noticiário que faz e desfaz celebridades para um público perpetuamente faminto da sua vida íntima; na verdade, uma versão hiper high-tech dessa imprensa sensacionalista que está crescendo e proliferando no Brasil. Ali o internauta integra a equipe que se dedica aos aspectos mais privados das vidas dos ricos e famosos; e no exercício de sua função, uma coisa começa a ficar clara para Laney: a mulher que ele televigia descobre que está sendo controlada. Escreve o narrador: “Alison Shires sabia, de alguma forma, que ele estava lá, observando. Como se ela pudesse senti-lo olhando para o mar de dados que eram um reflexo da sua vida: sua superfície feita de todos os pedaços que formavam o registro diário de sua vida à medida que ficava registrada na tecitura digital do mundo. Laney viu um ponto nodal começando a se formar a partir do reflexo de Alison Shires. Ela ia cometer suicídio” (Gibson, 1999:46). O trecho acima merece algumas considerações. Em primeiro lugar, convém notar que Laney não vê diretamente nem a imagem nem a performance de Alison Shires, mas sim o diagrama, isto é, as linhas de força e as tendên- nação capaz de revolucionar a noção de vizinhança. “Graças a esta iluminação em “tempo real”, escreve Virilio, o espaço-tempo do apartamento de cada um torna-se potencialmente comunicante com todos os outros, e o medo de expor sua intimidade cotidiana dá lugar ao desejo de superexpô-la aos olhares de todos, fazendo que a tão temida vinda dos “fantasmas” seja para June Houston apenas um pretexto para a invasão de seu domicílio pela “comunidade virtual” dos inspetores, dos investigadores furtivos da Internet” (Virilio, 1998:70). Virilio vê nessa espécie de luz indireta, que devassa todos os cantos da vida cotidiana de June Houston e de todos os exibicionistas da Internet, a expressão de um processo mais amplo, generalizado, de superexposição de todo tipo de atividade, no mercado global. Como se tudo precisasse ser mostrado e propagandeado incessantemente, como se tudo pudesse ser observado e comparado a todo momento. “Hoje, comenta Virilio, o controle do ambiente suplanta (...) em larga medida o controle social do Estado de direito e, para tanto, deve instaurar um novo tipo de transparência: a transparência das aparências instantaneamente transmitidas à distância...” (Virilio, 1998:72). A nova televigilância e esse novo tipo de transparência, porém, não são exercidas unicamente por meio da transmissão de imagens digitalizadas das pessoas e de seu ambiente doméstico, controlados à distância. Há um modo muito mais sutil e perverso da vigilância eletrônica violar a privacidade, método que prescinde da instalação de câmeras no espaço domiciliar e até mesmo do consentimento do vigiado que se encontra superexposto. Trata-se do cruzamento e processamento dos dados que cada um de nós gera ao entrar, sair e transitar nos diversos sistemas informatizados e nas diversas redes que compõem a vida social contemporânea. Diferentemente dos exemplos mencionados anteriormente, o que será invocado agora para explicitar esse controle à distância foi extraído de Idoru, o último livro de ficção científica de William. A escolha desse exemplo fictício é propositada: o que interessa é perceber por um casolimite a lógica de um processo que se encontra em franca, e aparentemente irrefreável, expansão. Colin Laney, o personagem central de Idoru, é um internauta que gosta de ver a si mesmo como pesquisador. Mas não é um voyeur. O narrador descreve-o da seguinte maneira: “Tinha uma aptidão peculiar com a arquitetura de compilação de dados e um déficit de atenção documentado medicamente que ele conseguiu transformar, sob certas condições, num estado de hiperfocalização pa- 33 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 cia do usuário do ciberespaço, e principalmente do usuário brasileiro, que freqüentemente nem sabe da existência dos cookies, esses pequenos bits de software plantados em seu computador para coletar parte de seus dados pessoais, só encontra paralelo na ignorância generalizada sobre a relação estreita que se estabelece entre o controle do acesso à esfera digital e o controle do acesso às informações do usuário. Todos sabem que o capitalismo passa por uma verdadeira mutação, em virtude da aceleração tecnocientífica e econômica que tomou conta do planeta e se converteu em estratégia de dominação, em escala global. Diversos termos tentam enunciar essa passagem e capturar os sinais dos novos tempos: era da informação, sociedade pós-industrial, pós-modernidade, revolução eletrônica, sociedade do espetáculo, globalização, etc. Por outro lado, todos pressentem que a cultura contemporânea está sendo rapidamente desmaterializada, isto é, digitalizada e reelaborada na esfera da informação. Analisando o processo no campo artístico, Mark Dery, por exemplo, considera que a cibercultura está prestes a atingir a “velocidade de escape”, essa velocidade em que um corpo vence a atração gravitacional de outro corpo, como por exemplo uma nave espacial quando abandona a Terra; em outras palavras: Dery pensa que a cibercultura está prestes a romper o limite que a prende ao mundo geográfico, mundo da matéria. Como se o mundo virtual se desprendesse do mundo atual, ganhando dinâmica própria (Dery, 1998). Entre as muitas propostas de leitura do que está ocorrendo, há uma, recentíssima, que busca compreender o impacto da aceleração econômica e tecnocientífica na relação fundamental da sociedade capitalista moderna: a relação de propriedade. Trata-se do livro de Jeremy Rifkin, The age of access, que explora as tendências suscitadas pelo processo de digitalização no que está sendo chamado de “nova economia” (Rifkin, 2000). Rifkin descobre que o papel da propriedade está mudando radicalmente e considera que as implicações de tal mudança para a sociedade são enormes e de longo alcance. No seu entender, “A propriedade é uma instituição lenta demais para ajustar-se à velocidade quase aberrante da cultura do nanosegundo. A propriedade se baseia na idéia de que a posse de um bem físico ou de parte de uma possessão num extenso período de tempo tem valor. ‘Ter’, ‘manter’, e ‘acumular’ são conceitos cultivados. Agora, entretanto, a velocidade da aceleração tecnológica e o ritmo vertiginoso da atividade econômica freqüentemente tornam a noção de propriedade problemática. cias que se desenham a partir do processamento dos dados que ela vai gerando enquanto vive. Laney faz uma leitura desse diagrama, que torna a vida de Shires transparente para o internauta. Escreve o narrador: “Ele nunca a havia encontrado, ou falado com ela, mas acabara conhecendo-a, ele achava, melhor do que alguém já a conhecera ou conheceria. Maridos não conheciam suas esposas deste jeito, ou esposas a seus maridos. Espreitadores podiam aspirar a conhecer os objetos de suas obsessões desse modo, mas nunca conseguiam” (Gibson, 1999:5354). A vida de Shires tornara-se transparente, mas segundo esse novo tipo de transparência apontado por Virilio: a transparência das aparências instantaneamente transmitidas à distância. Laney olha o mar de dados que refletem a vida de Shires, olha essas aparências que são instantaneamente transmitidas à distância, à medida que vão sendo registradas na tecitura digital do mundo. Laney olha e lê – e é a leitura que faz das aparências transparência, é a leitura que torna cristalina a evolução de uma vida, é a leitura que anuncia por um ponto nodal a inflexão dessa vida rumo à morte. Para entender melhor o que se quer dizer, talvez convenha reproduzir as palavras do narrador quando descreve como Laney trabalha: “O ponto nodal estava diferente, embora ele não tivesse linguagem adequada para descrever a mudança. Peneirou os incontáveis fragmentos que haviam se aglutinado ao redor de Alison Shires em sua ausência, procurando a fonte de sua convicção anterior. Baixou as músicas que Alison havia acessado enquanto ele estivera no México, tocando cada música na ordem em que ela as havia selecionado. Descobriu que as escolhas haviam ficado mais positivas; ela havia mudado para um novo provedor, Upful Groupvine, cujo produto incansavelmente positivo era o equivalente musical do Good News Channel. Cruzando as despesas dela com os registros de sua financeira e seus clientes varejistas, obteve uma lista de tudo o que havia comprado na última semana” (Gibson, 1999:53). Combinando intuição e análise dos padrões informacionais gerados nas compras, no consumo de músicas ou na mudança de provedor, Laney capta mínimas mudanças na conduta e no estado de espírito da mulher que observa. É claro que estamos diante de um caso-limite. Mas talvez não fosse exagerado afirmar que esse é o horizonte almejado e pouco a pouco construído pela crescente colonização das redes e a acelerada integração dos bancos de dados. Alison Shires intui que está sendo observada; e Laney intui que ela intui. Mas quantos são como ela? A inocên- 34 LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO Don Peppers e Martha Rogers, não se trata mais de tentar vender um único produto para o maior número possível de consumidores, mas sim de tentar vender para um único consumidor o maior número possível de produtos, durante um longo período de tempo. Em outras palavras, é preciso poder acessar o consumidor e torná-lo cativo (apud Rifkin, 2000:98). Tendo em vista a nova perspectiva que se abria, os economistas e marketeiros começaram a calcular a existência do consumidor, concebendo-a em termos de experiências de vida traduzíveis em potenciais experiências de consumo. É o que denominam “valor do tempo de vida”, uma medida teórica de quanto vale um ser humano se cada momento de sua vida for transformado em mercadoria de uma ou outra maneira. Visando calcular o valor do tempo de vida de um consumidor, projeta-se então o valor presente de todas as futuras compras contra os custos de marketing e de atendimento investidos para criar e manter uma relação duradoura. Assim, estima-se por exemplo que a fidelidade de um consumidor médio de um supermercado norte-americano vale mais de US$ 3,600 por ano. Otimizar o potencial valor do tempo de vida do consumidor passa então a ser a prioridade máxima. Ora, é aqui que a informação torna-se uma arma fundamental. Pois como escreve Rifkin, “as novas tecnologias de informação e de telecomunicações da economia de rede tornam possível determinar o valor do tempo de vida de uma pessoa. O feedback eletrônico e o código de barras permitem que as empresas recebam continuamente informação atualizada sobre as compras dos clientes, fornecendo perfis detalhados dos estilos de vida dos consumidores – suas preferências alimentícias, guarda-roupa, estado de saúde, opções de lazer, padrão de suas viagens. Através de apropriadas técnicas de modelização computadorizada, é possível utilizar essa massa de dados brutos de cada indivíduo para antecipar futuros desejos e necessidades e mapear campanhas direcionadas para engajar os consumidores em relações comerciais de longo prazo” (Rifkin, 2000:99). Controlar os consumidores e principalmente monitorar as potencialidades de cada uma das dimensões de suas vidas tornam-se uma exigência do próprio processo, impondo a coleta e o tratamento de informações. Ora, se lembrarmos que uma parcela cada vez maior da vida e das atividades do homem contemporâneo tende a passar pelas redes, quem melhor colocado para acessar os seus dados senão os provedores de acesso ao ciberespaço? Como observa Emilio Pucci, é preciso ter em mente que, se por um lado as redes oferecem um enorme fluxo de informa- Num mundo de produção flexível, de contínuas inovações e upgrades, e de ciclos de vida da produção cada vez mais curtos, tudo se torna quase imediatamente ultrapassado. Faz cada vez menos sentido ter, manter e acumular numa economia em que a mudança é a única constante” (Rifkin, 2000:6). Na estratégia da aceleração, parece que não vale mais a pena possuir. Com efeito, observando a performance das empresas e a conduta dos consumidores, Rifkin percebeu que tanto umas quanto os outros tendem cada vez mais a substituir a propriedade pelo acesso, a substituir a relação de compra e venda pela relação de fornecimento e uso. Isso não significa porém que a propriedade será questionada ou abolida na nova era que Rifkin anuncia, a Era do Acesso: a propriedade continua existindo mas é muito menos provável que seja trocada em mercados. Em vez disso os fornecedores, ou provedores, como se diz na nova economia, mantêm a propriedade e alugam, fazem leasing ou cobram uma taxa de admissão, uma assinatura, uma mensalidade para o seu uso no curto prazo. A transferência de propriedade entre vendedores e compradores dá então lugar ao acesso a curto prazo entre provedores e clientes operando numa relação de rede (Rifkin, 2000:4-5). Rifkin define os novos tempos da seguinte maneira: “A Era do Acesso é definida, acima de tudo, pela crescente transformação de toda experiência humana em mercadoria. Redes comerciais de toda forma ou tipo tecem uma teia em torno da totalidade da vida humana, reduzindo cada momento da experiência vivida à condição de mercadoria. Na era do capitalismo proprietário, a ênfase recaía na venda de bens e serviços. Na economia do ciberespaço, a transformação de bens e serviços em mercadorias tornase secundária face à transformação das relações humanas em mercadorias. Numa nova e acelerada economia de rede em permanente mudança, prender a atenção dos clientes e consumidores significa controlar o máximo possível do seu tempo. Passando das unitárias transações de mercado, que são limitadas no tempo e no espaço, para a mercantilização de relações que se estendem abertamente no tempo, a nova esfera comercial garante que parcelas cada vez maiores da vida diária fiquem presas no final da linha” (Rifkin, 2000:97). Com a Era do Acesso, dá-se portanto uma mudança de perspectiva que traz para o centro da atividade econômica o controle do tempo do consumidor. O consumidor não é mais um alvo do mercado, ele torna-se o próprio mercado, cujo potencial é preciso conhecer, prospectar e processar. Pois como argumentam os consultores de marketing 35 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 artigo 12: “Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.” Finalmente, seu artigo 19 enuncia: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber ou transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” A esses dispositivos legais, veio acrescentar-se, em julho de 1996, uma lei que regulamenta o inciso XII do artigo 5o da Constituição, mais especificamente a interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática. Mas tal lei, que visava principalmente a questão da escuta telefônica, nada diz sobre todas as ações e práticas que são objeto de nossa atenção nesta conferência. Na verdade, como a proteção constitucional à privacidade antecedeu as possibilidades técnicas de acesso e manipulação dos dados a partir das redes digitais, há um evidente vazio legal que aparentemente deixa os internautas brasileiros indefesos. Desde 1996, porém, tramitaram tanto no Senado quanto na Câmara Federal projetos de lei visando regular a prestação de serviço por redes de computadores, assegurar a privacidade dos usuários, combater os delitos informáticos, e normatizar a veiculação da pornografia. Sua leitura, entretanto, sugere muito mais uma preocupação em proteger o Estado e as empresas contra os hackers do que a inviolabilidade do cidadão comum. Tanto assim que um deles, o Projeto de Lei no 84, de 1999, do deputado Luiz Piauhylino, propõe, no art. 16: “Nos crimes definidos nesta lei somente se procede mediante representação do ofendido, salvo se cometidos contra o interesse da União, Estado, Distrito Federal, município, órgão ou entidade de administração direta ou indireta, empresa concessionária de serviços públicos, fundações instituídas ou mantidas pelo poder público, serviços sociais autônomos, instituições financeiras ou empresas que explorem ramo de atividade controlada pelo poder público, casos em que a ação é pública incondicionada.”2 Ora, pode-se imaginar que o cidadão comum dificilmente terá até mesmo a possibilidade de descobrir que foi ofendido. Suponhamos, por exemplo, que um grande banco privado brasileiro se associe a um provedor global de acesso à Internet. A parceria será evidentemente anunciada como um ganho para os clientes, que poderão contar com serviços mais ágeis, tecnologias mais avançadas, etc. Mas como não pensar que os milhões de clientes do banco são um ativo interessantíssimo para um provedor que acaba de ções no sentido provedor-usuário, por outro, preciosíssimos fluxos partem deste último para o gestor do serviço, compostos sobretudo de dados sobre os hábitos e a identidade dos utilizadores (Pucci, 1995:48). Por outro lado, se acessar e processar as informações dos usuários é quase uma decorrência natural das atividades dos provedores, a recíproca não é verdadeira: é muito difícil que o internauta comum tenha meios de acessar as informações das empresas que não estão destinadas à divulgação. Desde que se explicitou a estreita relação entre acesso ao ciberespaço e acesso aos dados do usuário, temos assistido a um duplo movimento. No plano econômico instaurou-se a corrida do capital global pelo controle e colonização das redes, estratégia que consistiu num primeiro momento em promover a privatização das telecomunicações para, numa segunda fase, assegurar a privatização de todo o campo eletromagnético, o que está em vias de acontecer. Mas por outro lado, no plano jurídico-político, a possibilidade de extensa e intensa exploração das informações sobre o usuário colocou em questão o impacto das novas tecnologias sobre a cidadania e a democracia, uma vez que ficavam abalados o direito à privacidade e a liberdade de informação. A responsabilidade pelas discussões sobre a criptografia, o clipper chip e a assinatura eletrônica, segundo alguns, é uma ameaça à cidadania e à democracia; outros acreditam que a questão da segurança, do sigilo e da proteção dos dados no ciberespaço interessa principalmente às empresas, porque transações confiáveis com o dinheiro eletrônico exigiriam um “sujeito virtual autêntico” (Marchisio, 1996:143 e ss.). Qual é a vulnerabilidade do cidadão brasileiro diante do poder das grandes corporações e do Estado que podem acessar e manipular seus dados capturados nas redes digitais? O artigo 5o da Constituição protege a privacidade e a liberdade de informação: o inciso X declara invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; o XI, sua casa; o XII, o sigilo de sua correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas; o XIV assegura a todos o acesso à informação e resguarda o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; o XXXIII garante a todos o direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma em seu 36 LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO de leucemia e foi se tratar no centro médico da Universidade da Califórnia; lá tiraram-lhe o baço e, sem seu consentimento, extraíram do material removido uma linhagem de células que foi imortalizada, porque continha uma verdadeira mina de ouro para a pesquisa sobre determinadas formas de câncer. Em 1984, as informações genéticas foram evidentemente patenteadas pela equipe médica e em seguida comercializadas para o laboratório suíço Sandoz; em 1990, seu valor chegava a algo perto de três bilhões de dólares. Descobrindo o que ocorrera, Moore moveu um processo reivindicando o direito às suas células; isto é: reivindicando a “legítima propriedade” sobre seus “bens corporais”. Os advogados dos médicos argumentaram que o DNA das células de Moore não era uma parte dele, sobre a qual ele tivesse o poder extremo de dispor durante a sua vida. Comentando o argumento, o jurista francês observa: “Isto significa que do ponto de vista microbiológico, quer dizer do ponto de vista dos componentes do gene, não haveria mais indivíduo enquanto tal. Para dizer as coisas cruamente, a pessoa humana não existiria nos segredos de suas células. Vejamos o deslocamento: não se trata mais de saber se uma pessoa tem ou não um direito sobre suas células, mas de sustentar que ela não tem existência em suas células. Assim, por um lado, nada se oporia a que elas sejam postas à venda, e por outro, uma vez desprovidas de qualquer personalidade, “elas não teriam mais proprietário”. Na lógica do direito de propriedade, continua Bernard Edelman, tal argumento pesava pouco. Com efeito, pouco importava que Moore existisse ou não em suas células, já que era proprietário delas. O direito de propriedade não quer saber se o objeto sobre o qual ele se aplica é o suporte da identidade do proprietário! Pensando bem, esse expediente até tendia mais no sentido do direito de propriedade: pois se no DNA não há nada de humano, é porque a célula é uma coisa e, conseqüentemente, pode ser objeto de propriedade. Portanto, teria sido lógico que o tribunal descartasse esse argumento fazendo valer, precisamente, que o poder extremo de dispor é o direito do proprietário. E no entanto, muito curiosamente, ele recuou diante dessa lógica” (Edelman, 1999:298-299). O tribunal considerou que o homem possui o direito imprescritível à sua identidade e pouco importa que esse direito seja protegido pela noção de privacy (direito de personalidade), de property (direito de propriedade) ou de publicity (direito de tirar proveito dos “atributos” da personalidade: voz, imagem, etc.) desde que a proteção seja efetiva. No caso Moore o tribunal concluiu que “um aportar no país? Como não pensar na potencial sinergia do cruzamento de seus cadastros com o banco de dados do provedor? Como não imaginar que essa soma de 1 + 1 = 3, pela proliferação de novos negócios que ela pode propiciar? E como acreditar que tanto os clientes do banco quanto os usuários do provedor ficariam sabendo, caso seus dados pessoais fossem usados sem seu prévio consentimento? Num país de capitalismo selvagem como o nosso, onde a cidadania nem chegou a ser plena e já está em vias de desmanche, é de se suspeitar que nossa vulnerabilidade seja grande e será ainda maior. Basta evocar um exemplo, colhido sem esforço: o jornalista Josias de Souza publicou recentemente, na Folha de S.Paulo, que no início deste ano era possível comprar em São Paulo, por apenas R$ 4.000, o banco de dados da Receita Federal de 1996, contendo as informações sigilosas de 11,5 milhões de brasileiros – 7,6 milhões de pessoas físicas e 3,9 milhões de empresas! Renda, faturamento, ocupação, ramo de atividade, patrimônio, endereços, números de telefones, tudo vendido em CDs, para festa do marketing e da mala-direta. O banco havia sido roubado no início de 1997 dentro da própria Serpro, e ao que tudo indica por funcionários graúdos da empresa (Souza, 2000: A-13). Quem acredita ser possível responsabilizar o Estado por essa gigantesca violação, que em qualquer país sério teria no mínimo provocado uma crise política e o corte de algumas cabeças? Podem os contribuintes exigir um ressarcimento por danos que eles não têm condições de comprovar e muito menos contabilizar, mesmo quando desconfiarem que suas informações estão sendo criminosamente utilizadas? O problema é muito mais complexo do que parece e comporta muitas dimensões. Não é só o cidadão que, reduzido à condição de consumidor cativo, fica superexposto e tem a sua privacidade violada. Na verdade, na nova economia, a própria existência do indivíduo é posta em questão. Aqueles que processam a sua vida descendo a níveis microscópicos não o concebem mais como sujeito, mas sim como gerador de padrões informacionais que é preciso manipular; aos olhos de quem opera com o valor do tempo de vida, o indivíduo dissolve-se em fluxos de dados. Entretanto, não é só no plano da informação digital que o indivíduo desaparece, – também no plano da genética assistimos à sua desintegração. Pois como observa Paul Virilio, o individuum, literalmente o que é indivisível, deixa de sê-lo no plano molecular. Basta lembrar o caso Moore, estudado por Bernard Edelman em La personne en danger. Como se sabe, em 1976, John Moore soube que era portador de um tipo raro 37 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 “interioridade” do indivíduo, como abertura dos grandes meios de confinamento que haviam sido estudados por Foucault, e a sua substituição por novas formas de controle aberto. “As sociedades disciplinares têm dois pólos, escreve Deleuze: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (...). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. (Deleuze, 1992:222). Este artigo teve por título Limites e Rupturas na Esfera da Informação. Mas agora, ao terminar de escrevê-lo, percebe-se que ele é impróprio. Diversas rupturas operadas na esfera da informação foram aqui apontadas; entretanto, não se pode dizer o mesmo dos limites. Muito ao contrário, creio que o poder de intervenção da tecnociência e da economia sobre o corpo e a mente do indivíduo, e até mesmo sobre a própria natureza humana, parece ilimitado. paciente deve ter o poder extremo de controlar o que vai ser de seus tecidos. Admitir o contrário abriria a porta a uma invasão maciça de sua privacy e de sua dignidade em nome do progresso médico.” Mas como bem observa Bernard Edelman tal conclusão, ao reconhecer o direito de personalidade, parece entrar em contradição com o direito de propriedade: “Na lógica da propriedade, escreve o jurista, as células são coisas, “bens mobiliários corporais”. Não é de se espantar então que se possa negociá-las, transferi-las, lucrar com elas. Mas na lógica da privacy, as células exprimem a identidade da pessoa. Ora, o homem não pode se vender, sob pena de reduzirse ao estado do escravo, e as células deveriam ficar fora do comércio jurídico. No entanto, o tribunal parece não ter tido dificuldade alguma em combinar o direito de propriedade com o right of privacy. Como compreender essa conciliação?” (Edelman, 1999:299-300). Edelman demonstra que a possível contradição foi resolvida pelo direito de publicidade, que confere ao indivíduo a possibilidade de explorar sua imagem, seu personagem, e permite que seus atributos possam adquirir o valor de um “bem”, como uma marca ou uma grife, por exemplo. Em outras palavras: a imagem do indivíduo torna-se um produto relativamente independente da pessoa que ela representa: de um lado, conserva algo de sua origem, de outro, leva sua vida comercial de modo independente. Assim, o tribunal tratou as informações genéticas de Moore como a imagem – suas células são ao mesmo tempo a pessoa enquanto privacy e a pessoa enquanto publicity, isto é, enquanto pessoa que pode ser comercializada. Por isso Edelman concluirá que o tribunal resolve a contradição denegando-a: “O direito de propriedade sobre os produtos de seu corpo constitui o corpo como escravo; em contrapartida, a pessoa não é senão o que permite ao sujeito colocar-se em regime de exploração. O right of publicity está prestes a absorver o right of privacy; o mercado absorve a subjetividade” (Edelman, 1999:302). Traduzido em informação digital e genética, o indivíduo torna-se divisível, ou para usar o termo empregado por Gilles Deleuze, “dividual”. O sujeito não é mais modelado de uma vez por todas mas sim permanentemente modulado, segundo uma nova lógica de dominação que nos faz passar da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, segundo a expressão cunhada por William Burroughs e emprestada por Deleuze. É interessante observar como para o filósofo a passagem de uma sociedade a outra se expressa como crise dos espaços fechados, inclusive o espaço doméstico e a NOTAS Conferência apresentada na 52a Reunião da SBPC, realizada na Universidade Nacional de Brasília, dia 13 de julho de 2000. 1. Ver: The New York Times News Service em português, www.uol.com.br Tradução de Déborah Weinberg. 2. Projeto de Lei no 84, de 1999. http://infojur.ccj.ufsc.br/arquivos/informaticajuridica/ normas/projetodelei84.htm REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLOOM, D. “Internet oferece voyeurismo em tempo integral”. Los Angeles Daily News, 1/7/2000. DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro, Ed. 34 (Trad. de Peter Pál Pelbart), 1992. DERY, M. Velocidad de escape – La cibercultura en el final del siglo. Madrid, Ed. Siruela, 1998 (Trad. de Ramón Montoya Vozmediano). EDELMAN, B. La personne en danger. Doctrine Juridique. Paris, Presses Universitaires de France, 1999. GIBSON, W. Idoru. São Paulo, Conrad Livros, 1999 (Trad. de Leila de Souza Mendes). 38 LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO MARCHISIO, O. “Cyberbucks e identità”. In: (Bifo) BERARDI, F. (ed.). Cibernauti – Tecnologia, comunicazione, democrazia. Roma, Castelvecchi, 1996. RIFKIN, J. The age of access – The new culture of hypercapitalism, where all of life is a paid-for experience. Nova York, Jeremy P. Tarcher/Putnam, 2000. 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A divulgação científica pela imprensa pode contribuir para aumentar o grau de objetividade desse debate, mas se encontra tolhida por deficiências diversas, do baixo grau de informação científica do público à sua própria incapacidade de problematizar a apresentação ideológica da biotecnologia. Palavras-chave: biotecnologia; alimentos transgênicos. A triz perturbadora de hábitos e convenções em vários domínios da vida social: economia, direito, saúde, ambiente, reprodução e alimentação. Mais que a capacidade de manipular as letras do código hereditário de plantas, animais e homens, a engenharia genética se notabiliza pelo poder de pôr em crise representações basilares sobre o que seja humano e natural, impondo ao mundo seus clones e quimeras (como pés de milho que produzem hormônio de crescimento humano e cabras que secretam proteínas da teia de aranha no próprio leite). Não parece estranho, portanto, que surjam do público as reações mais adversas diante da admirável nova biologia. A repulsa aos alimentos transgênicos parece ser apenas o topo visível de uma profunda desconfiança, alimentada pela percepção de que a fronteira entre natureza e cultura – que, diga-se, sempre foi móvel e historicamente determinada – está sendo retraçada não tanto sob os ditames de uma ciência pura e desinteressada, mas sim, predominantemente, sob interesses daquilo que se poderia denominar “complexo industrial-biotecnológico”, a exemplo do complexo industrial-militar que movia economia e pesquisa nos anos 60 e 70 (além de toda uma literatura de crítica sociológica). Defensores das biotecnologias (entre eles autoridades reguladoras que deveriam manter maior distanciamento), no entanto, tendem a atribuir a resistência da opinião pública à ignorância, o que a tornaria vulnerável a argumentos ditos “emocionais” esgrimi- engenharia genética e outras biotecnologias ocupam hoje o lugar central na representação social da ciência, a ponto de se tornar corrente a opinião de que este século – ou talvez o próximo – ficará conhecido como o Século da Biotecnologia. Ela aparece para o público como o próprio paradigma da tecnociência, o estágio atual da pesquisa que, diferentemente do século 19, faz da investigação científica o motor mesmo do avanço técnico, deitando por terra o sistema de dicotomias que dava solidez à sua representação tradicional: ciência vs. técnica; natureza vs. sociedade; biologia vs. tecnologia. Uma ciência que não se limita a explicar coisas, mas já o faz para modificá-las e mobilizá-las no processo de produção. O potencial que dissolve valores e representações encerrado na engenharia genética parece inesgotável. Para a marcha lenta da esfera pública, os anos 80 e 90 estão repletos de controvérsias públicas e jurídicas desencadeadas por movimentos bruscos e imprevisíveis, oriundos dos laboratórios de pesquisa e das “companhias de ciências da vida”, das quais os laboratórios dependem em escala crescente. Do patenteamento de seres vivos, inaugurado nos Estados Unidos em 1980 com a decisão da Suprema Corte em favor de Ananda Chakrabarty e da General Electric, à presente disputa jurídico-regulatória em torno do cultivo de alimentos transgênicos no Brasil e na Europa, a genética se revelou em duas décadas uma ma- 40 BIOTECNOLOGIAS, CLONES E QUIMERAS SOB CONTROLE SOCIAL: MISSÃO... 1995, sem qualquer imposição de rótulos ou segregação de produtos. No Brasil, desde junho de 1998 a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) examinava um pedido de licença da empresa Monsanto para comercializar a soja geneticamente modificada Roundup Ready, uma variedade resistente ao herbicida Roundup, da própria Monsanto. Em 24 de setembro do mesmo ano, apesar de uma liminar sustando o plantio, obtida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pela organização ambientalista Greenpeace, a CTNBio reiterou sua autorização, deliberando que nada haveria a temer do ponto de vista da biossegurança e deixando outros aspectos de licenciamento a critério do Ministério da Agricultura. Era a primeira licença que a Comissão concedia para cultivo em escala comercial, ainda que prevendo um monitoramento sob sua égide, e ela serviu de rastilho para uma saraivada de recursos e liminares. Com o concurso da Justiça, que vem sistematicamente tomando decisões contrárias à CTNBio e à Monsanto, o Brasil ainda se recusa a seguir o caminho da Argentina, país que aprovara a novidade da biotecnologia sem pestanejar e hoje conta com aproximadamente 80% de sua safra geneticamente modificada, mais que os Estados Unidos (mais de 50%) e o Canadá (cerca de 10%). O contraste entre os paradigmas norte-americano e europeu, sobre a intensidade regulatória e a aceitação pelo público, tem sido empregado com freqüência para tentar explicar – e influenciar – o panorama brasileiro. Tal dicotomia padece, entretanto, de um defeito crucial: falta-lhe o elemento dinâmico, ou seja, ela pouco tem a dizer sobre a evolução dessas tendências de um e de outro lado do Atlântico Norte. Aqueles que se comprazem em anotar uma atitude mais favorável dos reguladores e do público norte-americano aos alimentos transgênicos podem deixar escapar que esse comportamento parece estar em transformação, em prejuízo das culturas geneticamente modificadas. Por outro lado, engana-se provavelmente quem concluir que europeus têm uma opinião contrária, por princípio, às manipulações genéticas, ou que só eles vêem com desconfiança o desempenho de seus representantes no Estado encarregados de zelar pela saúde humana e do ambiente na introdução de novos alimentos. Um quadro muito mais matizado emerge, na realidade de uma série de quatro artigos baseados em extensas sondagens de opinião pública que foi publicada recentemente pela revista especializada Nature Biotechnology (2000:935-947). dos por organizações ambientalistas e de consumidores, supostamente mais interessadas em confundir do que explicar. Sem negar o papel exercido pela falta generalizada de conhecimentos científicos básicos, em particular num país como o Brasil, este trabalho tem por objetivo colocar em dúvida essa visão um tanto míope e indicá-la como uma das importantes razões pelas quais a biotecnologia agrícola encontra tanta dificuldade para tornar-se aceitável para o público, seja ele brasileiro, japonês, europeu ou mesmo norte-americano. A divulgação científica tem papel relevante a cumprir na abertura de um terreno comum de neutralidade e racionalidade entre os campos opostos e extremados, mas não pode por si só gerar o consenso necessário, pelas limitações institucionais da imprensa e dos centros produtores de pesquisa (que não são órgãos políticos de representação), ou porque a própria imprensa se encontra prisioneira de mecanismos de reprodução do que caberia chamar de ideologia cientificista. Esses temas serão discutidos com base na polêmica dos já mencionados alimentos transgênicos e no entusiasmo com o Projeto Genoma Humano. TRANSGÊNICOS: MAIS INFORMAÇÃO NÃO GARANTE MAIS APOIO A descoberta de que os alimentos transgênicos estavam perto de chegar ao mercado acordou a opinião pública brasileira no segundo semestre de 1998. A perspectiva de passar a ingerir vegetais geneticamente modificados despertou vagos fantasmas, semelhantes aos da energia nuclear: uma tecnologia incompreensível, fora de controle público e capaz de pôr em circulação ameaças invisíveis contra a saúde humana e o ambiente. A polêmica chegava com certo atraso, embora mais rapidamente do que aos Estados Unidos, onde só se tornou tema de debate este ano. Enquanto isso, na Europa e na Ásia, os transgênicos literalmente pegavam fogo, com militantes ambientalistas incendiando campos cultivados com variedades de organismos geneticamente modificados (os famigerados OGMs), plantas “engenheiradas” para se tornarem resistentes a insetos ou herbicidas. Diante da forte reação pública, a União Européia (que havia autorizado a importação e o processamento da soja transgênica em 1996) havia decidido, já em maio de 1998, introduzir regras para rotular alguns produtos contendo soja ou milho geneticamente alterados. Nos Estados Unidos, em contraste, culturas transgênicas já estavam aprovadas e em plantio desde 41 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 apresentado por esses dados é o de um público algo dividido, nos Estados Unidos. Embora ao se olhar apenas para números acumulados seja possível argumentar que os Estados Unidos permanecem positivos sobre a biotecnologia, de uma maneira geral, também não é incomum a resistência. (...) o prognóstico de um debate público mais acalorado sobre essas questões, nos Estados Unidos, parece consistente com tais resultados” (Priest, 2000:942). O artigo que relata a sondagem realizada no Canadá chega a conclusões similares quanto ao mito de que uma atitude negativa em relação à biotecnologia seja fruto, necessariamente, de desinformação: “Há controvérsia sobre o papel da ‘informação científica’ (scientific literacy) em julgamentos sobre ciência e tecnologia; alguns sustentam que ela leva a julgamentos positivos, enquanto outros sugerem o contrário. Os resultados deste estudo sugerem que a posse de conhecimento sobre genética nem mesmo participa desse cálculo – um ponto importante a ter em mente no contexto da crença comum de que elevar a informação vá render apoio”, diz a autora. E acrescenta: “Ao fiar-se numa ‘avaliação de risco com base científica’ estreitamente definida, as instituições reguladoras existentes tendem a descartar peremptoriamente essas preocupações mais amplas do público e/ou a encontrar dificuldades para enfrentá-las quando emergem” (Einsiedel, 2000:944). Pesquisas de opinião coordenadas em 16 países da União Européia, entre 1993 e 1999, revelam igualmente, como seria de se esperar, uma queda continuada no otimismo quanto à biotecnologia em geral. De 53% otimistas em 1993, passou-se a 50%, em 1996, e a 46%, em 1999 (Gaskell et alii, 2000). Os dados mais relevantes, contudo, provêm de uma distinção antes insuspeitada entre biotecnologia aplicada à agricultura e biotecnologia aplicada à alimentação (diferenciação de todo cabível, uma vez que plantas transgênicas podem ser criadas para produzir substâncias de interesse, vale dizer, para que funcionem como biorreatores, secretando em suas células proteínas como hormônios humanos, ou que sirvam para a produção de plásticos, por exemplo). Convidados a julgar sete aplicações biotecnológicas (testes genéticos pré-natais, terapias genéticas, biorremediação ambiental, clonagem de células humanas, clonagem de animais, culturas transgênicas e alimentos transgênicos) sob quatro parâmetros (utilidade, risco, aceitabilidade e apoio), os entrevistados fizeram surgir um padrão inusitado, em que a biotecnologia agrícola aparece sob uma luz bem mais favorável que os alimentos transgênicos em si: enquanto estes são percebi- No caso dos Estados Unidos (Priest, 2000), apesar de haver ainda maioria de entrevistados (59%) favoráveis à biotecnologia, observa-se uma contínua erosão desse apoio. Segundo o levantamento do International Food Information Council (IFIC) citado no artigo, ele era de 63% em outubro de 1999, de 75% seis meses antes e de 78% em 1997. Em seu próprio levantamento, a autora do trabalho na Nature Biotechnology encontrou 52,8% com uma visão positiva dos desenvolvimentos na biotecnologia, mas chama a atenção para o contingente nada desprezível (30,1%) daqueles que acreditam na possibilidade de que ela “torne as coisas piores”. Somente a energia nuclear, entre os campos tecnológicos submetidos à avaliação dos entrevistados, obtém tal grau de desconfiança (Gráfico 1). Também parece carecer de fundamento empírico, a julgar pelo perfil de opiniões coletadas, a convicção de que níveis maiores de informação científica ou de escolaridade, assim como a dos norte-americanos, têm alto grau de confiança nas autoridades governamentais reguladoras (só 39,5% disseram que elas estavam fazendo um bom trabalho em relação à biotecnologia, o índice mais reduzido entre as várias instituições mencionadas na pesquisa, menos até do que a imprensa, com 44,4%). A conclusão é que, mesmo na pátria da biotecnologia, ela ainda poderá enfrentar tempos difíceis: “O quadro GRÁFICO 1 Opiniões sobre Tecnologia Estados Unidos — 2000 Fonte: Nature Biotechnology (2000:939). 42 BIOTECNOLOGIAS, CLONES E QUIMERAS SOB CONTROLE SOCIAL: MISSÃO... GRÁFICO 2 Opiniões sobre Biotecnologia União Européia — novembro de 1999 Fonte: Nature Biotechnology (2000:936). dos como pouco úteis, muito arriscados, pouco aceitáveis e indignos de apoio, aquela tem sua utilidade concebida como ligeiramente superior ao risco que engendra e algo aceitável, ainda que não chegue a despertar apoio (Gráfico 2). Dissociação comparável ocorre entre a clonagem de células embrionárias humanas (células-tronco) para fins terapêuticos, tida como aceitável em razão de potenciais benefícios (como a esperada síntese de órgãos para transplante em laboratório ou o tratamento de doenças degenerativas), e a clonagem de animais inteiros, considerada inaceitável. Para os autores do trabalho, esses dados indicam que a imagem mais problemática da biotecnologia na Europa parece não decorrer de uma objeção de princípio, apenas e tão-somente moral, mas sim de uma ponderação de riscos e benefícios, em cada caso: “O apoio maior para clonagem de células e tecidos humanos, em relação à clonagem de animais, sugere que considerações morais se referem especificamente a aplicações particulares e não necessariamente às técnicas de biologia molecular subjacentes. Mais ainda, a maior oposição a alimentos transgênicos, em comparação com culturas transgênicas, sugere que, para o público, a segurança alimentar pesa mais que preocupações ambientais” (Gaskell et alii, 2000:935). Recapitulando: é mais que questionável a dicotomia que opõe um consenso norte-americano em favor da biotecnologia a um consenso europeu contra ela, assim como interpretações de fundo culturalista, segundo as quais, por um lado, os Estados Unidos seriam mais pragmáticos, tecnófilos e confiantes em suas autoridades reguladoras, e a Europa, por outro, mais filosófica, tecnofóbica e desconfiada de seus representantes (por conta dos traumas como nos casos de contaminação de alimentos por dioxinas e pela chamada “doença da vaca louca”, ou BSE). Isso para não falar do contra-senso evidente de imaginar que o público europeu seja mais desinformado e manipulável por organizações não-governamentais ambientalistas do que o norteamericano, ou que tudo se resume a uma conspiração protecionista, um capítulo a mais na guerra tarifária movida por um continente que não dispõe da tecnologia OGM. Enquanto essas categorias forem aplicadas para tentar explicar ou resolver o amarrado debate brasileiro sobre a biotecnologia agrícola, ora estacionado nas barras da Justiça, pouco se avançará. É tarefa do jornalismo científico, além de fornecer as informações básicas para entender a tecnologia, livrar-se ele mesmo dessas imagens simplificadoras e oferecer ao público um quadro mais matizado e próximo da complexidade social e política da questão. O PROJETO GENOMA E SUA IDEOLOGIA No centro de gravidade da biologização da tecnologia mencionada no início deste artigo encontra-se o Projeto Genoma Humano (PGH), lançado em 1986. O projeto tem sido, na última década, a parte mais visível da pesquisa genética para o grande público, pois se tornou notícia obrigatória ao introduzir a biologia no domínio da Grande Ciência (Big Science), com projetos de pesquisa – como Manhattan e Apollo – em que os cientistas mobilizados se contam em milhares e os dólares despendidos, em bi- 43 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Crick que suporta o código-fonte dos genes. Suas características fundamentais seriam a capacidade de auto-replicar-se e de comandar a síntese de todas as proteínas que compõem um organismo. Tal é o cerne do Dogma Central formulado por Crick em 1958: a unidirecionalidade causal, sempre dos genes para as proteínas, explicação padronizada encontrável em quase toda reportagem de divulgação sobre genética. Há algum tempo, porém, essa imagem simplificadora vem sendo substituída na prática científica por outra, que não faz tábula rasa da embriologia e da biologia do desenvolvimento. Não é preciso sair do campo da biologia molecular para se dar conta de que o Dogma Central é insuficiente. Antes de mais nada, porque os genes não agem de moto próprio, mas apenas quando ativados por proteínas. No caso da reprodução sexuada, a maquinaria reguladora incorporada ao novo ser pelo óvulo (também portador dos genes maternos) é fundamental para que o DNA comece a ser “lido”, ou seja, passe da potência para o ato. Em seguida, a síntese em cascata de proteínas, obviamente já sob a influência do ambiente que circunda o organismo em desenvolvimento, passa a regular quais genes serão expressados, em que tipos de tecidos e em que fase do desenvolvimento, ou situação. Um sem-número de mecanismos de controle e interação são também inerentes ao próprio genoma, como os fenômenos da recombinação, splicing, imprinting e interação gênica. O desenvolvimento da tecnologia genética se encarregou de explicitar as limitações desse “deeneaísmo”, como se poderia batizar a moléstia infantil do reducionismo genético. Esse processo foi reconstruído por Evelyn Fox Keller em seu livro Refiguring Life: “A metáfora-guia do discurso da ação gênica é a dos genes como agentes ativos, capazes não só de animar o organismo mas também de pôr em prática sua construção (…). Essa imagem dupla do gene, em parte o átomo dos físicos, em parte alma platônica, foi imensamente produtiva para geneticistas, tanto técnica quanto politicamente. (…) Inevitavelmente, claro, esse modo de falar sobre genes também teve seus custos, e esses custos se fizeram sentir mais obviamente pelos embriologistas. (…) Ele não deixava nem tempo nem espaço nos quais o restante do organismo, a economia excedente do soma, pudesse exercer seus efeitos” (Keller, 1995: xiv-xv). Esse “imperialismo genético” parece exercer, entretanto, uma função social e simbólica de maior alcance que a de um mero discurso portátil para lobistas em busca de fundos de pesquisa. Não são poucos os autores – como a lhões. Não faltam para a mística do Genoma nem mesmo os temperos ideológicos da concorrência e da dicotomia: estatismo vs. privatização, adicionados à polêmica em maio de 1998 com a criação da Celera, uma empresa com capital de US$ 200 milhões resultante da associação entre a Perkin-Elmer (fabricante de equipamentos para laboratórios) e Craig Venter, cientista que se notabilizou no início dos anos 90, tanto pela invenção de técnicas para o seqüenciamento automático de DNA quanto por multiplicar pedidos de patentes para genes humanos. No final de junho de 2000, Venter protagonizou, com o presidente Bill Clinton, o premiê Tony Blair e o chefe norte-americano do PGH oficial, Francis Collins, o midiático anúncio do seqüenciamento completo do código genético humano (embora a esperada publicação conjunta do “mapa” genômico só deva acontecer nos próximos meses). Apesar do nome Projeto Genoma Humano, que parece restringir a empreitada à espécie humana, estão nela incluídos também os seqüenciamentos de organismos de outras espécies, até como etapas preparatórias para alcançar o que já se chamou de Santo Graal da biologia. Esses esforços permitiram decifrar dois primeiros genomas de animais multicelulares, o do verme C. elegans (dezembro de 1998) e o da mosca Drosophila melanogaster (julho de 1999). Até no Brasil há esforços genômicos em andamento, dois deles com a alça de mira voltada para dividendos da biotecnologia na citricultura: os das bactérias causadoras das doenças do amarelinho da laranja (Xylella fastidiosa) – notabilizado em julho pela publicação de um artigo científico na prestigiada revista Nature, que o destacou em sua capa – e do cancro cítrico (Xanthomonas citri). O verdadeiro esteio do Projeto Genoma Humano junto à opinião pública é uma ficção muitas vezes realimentada pelo jornalismo de ciência: a idéia de que o seqüenciamento completo das bases nitrogenadas do genoma de uma espécie dará acesso à sua “essência”. No caso do homem, ao que significaria ser humano e, assim, à chave de todas as doenças, até mesmo do comportamento e de seus distúrbios. Sem esse gênero de operação simbólica, o Projeto Genoma dificilmente amealharia as verbas milionárias de que necessita. A sobrevivência do programa depende da sobrevivência da concepção reducionista e determinista dos genes como átomos plenipotentes da natureza, inclusive da humana. O núcleo duro dessa ideologia genética é o ácido desoxirribonucléico (DNA), molécula em forma de dupla hélice modelada em 1953 por James Watson e Francis 44 BIOTECNOLOGIAS, CLONES E QUIMERAS SOB CONTROLE SOCIAL: MISSÃO... segurança que a ignorância científica é ainda mais chocante. Basta mencionar que, segundo pesquisa de opinião do instituto Datafolha realizada com paulistanos poucos dias depois do anúncio da finalização do seqüenciamento do genoma humano (um evento que foi manchete dos principais jornais brasileiros e do mundo), apenas 4% dos entrevistados souberam definir com alguma correção o que é genoma. Aqui, também, o grau de instrução não melhora muito o quadro de desconhecimento: mesmo entre paulistanos com nível superior de escolaridade, meros 17% foram capazes de oferecer respostas aceitáveis. É o caso de perguntar-se, diante desses dados desalentadores, que condições o público brasileiro teria de participar de um debate público sobre a pesquisa genômica, se fosse chamado a isso. Ou, pior ainda, se fosse relegado a acompanhar a distância, impotente e atordoado, um debate tão confuso e fechado quanto tem sido o da regulamentação das culturas transgênicas, que só ultrapassou as paredes acanhadas da CTNBio porque ONGs como o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) decidiram furar o cerco e se dirigir diretamente à opinião pública (sendo por isso tachadas, paradoxalmente, de obscurantistas). Outro debate que para todos os efeitos não está ocorrendo, ao menos não sob a força detergente da luz do sol, é o do patenteamento de genes humanos relacionados com a gênese e o funcionamento de tumores, seqüências de DNA com provável e alto valor comercial que já começam a ser decifradas por um dos projetos genômicos financiados pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) com dinheiro público, o chamado Genoma do Câncer. A lei brasileira proíbe patentes para seres vivos ou suas partes, e muitos pesquisadores são doutrinariamente contrários ao privilégio de invenção para dados da natureza (que podem, assim, ser objetos de descoberta, mas não da invenção pressuposta na idéia de proteção patentária), mas o fato é que essas patentes já estão sendo requeridas por brasileiros no exterior. A resposta para a questão apresentada acima é óbvia: é mínima a condição do público brasileiro participar, de maneira informada e democrática, de um debate como o dos alimentos transgênicos, ou das implicações da pesquisa genômica. Seria uma falácia, no entanto, concluir que essa constatação diminui, por menos que seja, seu direito de tomar parte nessa discussão. Seria antes o caso de dizer que esse estado de coisas cria uma obrigação para todos os atores do processo, a começar pelos jornalistas: fornecer informação compreensível, qualificada e contextualizada sobre as biotecnologias, da engenharia gené- própria Keller, ou Dorothy Nelkin, Jeremy Rifkin e Richard Lewontin – que o vêem articulado numa constelação política mais ampla e fundamental, que poderia ser resumida na idéia de naturalização do comportamento e das relações sociais, retomando o projeto sociobiológico – agora com a âncora maciça da biologia molecular – demolido numa polêmica feroz dos anos 70. Inflada como foi em seu potencial por pesquisadores e jornalistas, a genética se presta a toda sorte de interpretação fundada no exagero. Se é descabido buscar nesse determinismo atenuado as mesmas raízes totalitárias das quais brotou o eugenismo negativo e de massa da primeira metade do século, que alcançou seu paroxismo com o nazismo, não seria um despropósito encontrar nele as sementes de uma nova e mitigada eugenia, positiva e talhada mais para os indivíduos. Em lugar de políticas de Estado voltadas para a melhoria uniformizante de contingentes inteiros de população no futuro, organiza-se o acesso via mercado a um upgrade de saúde e normalidade para os próprios descendentes numa base individual. Esfuma-se, dessa maneira, a distinção tão cara para os pioneiros do Projeto Genoma, como James Watson, entre a eugenia e a genética, definida esta como a atividade científica neutra usurpada, naquela, por “mãos erradas”. Mais que uma possibilidade aberta pela genética, para os militantes do Projeto Genoma a prática que se poderia batizar como ortogenia representa um imperativo de ordem ética. Assim como os entusiastas dos alimentos transgênicos argumentam que contrapor-se a eles é abortar a solução tecnológica para o problema da fome mundial, deixar de pesquisar os meios para desenvolver geneterapias seria um crime de lesa-humanidade. O aspecto fundamental a reter, aqui, é a invasão de um domínio da vida social antes reservado à interação e à comunicação pelos critérios e procedimentos “objetivos” e “racionais” da tecnociência. O círculo ideológico, se puder ser rompido, só o será por uma problematização do Projeto Genoma na esfera pública, em que a divulgação científica possa oferecer contribuição destacada – embora por enquanto, no Brasil, atue ainda muito timidamente nessa direção. Uma das raízes da deficiência desse trabalho se encontra na realidade educacional brasileira. O jornalismo científico, por aqui, tem de partir de um patamar muito baixo. Se nos Estados Unidos já é alto o grau de desinformação sobre as bases da genética, a ponto de apenas 21% de seus cidadãos serem capazes de dar uma definição de DNA (Augustine, 1998:1.640), no Brasil se pode afirmar com 45 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 tica à transgenia, da genômica à eugenia. São três os níveis de desafio a serem enfrentados simultaneamente pela divulgação científica, representados por três patamares de ignorância pública acerca dessa força cada vez mais produtiva da realidade social: - A ignorância de base – É preciso um esforço considerável para esclarecer mesmo os conceitos mais basilares da biologia e da genética, principiando com células, cromossomos, mitose e meiose, etc., pois eles são ignorados mesmo entre intelectuais. extraviada numa algaravia fundamentalista, e cada vez mais distante do controle social que sobre ela deveria ser exercido. - A ignorância sobre o que está acontecendo – A pesquisa genética é um dos campos mais produtivos da tecnociência, hoje, com publicação copiosa de trabalhos. É fundamental acompanhá-la e cobri-la, jornalisticamente, o que equivale dizer: com critério, hierarquizando e noticiando com destaque somente o que de fato for importante, sem se render ao gene do dia ou da hora. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NOTAS E-mail do autor: [email protected] Coluna Ciência em Dia: http://www.uol.com.br/folha/pensata/leite.htm AUGUSTINE, N. “What we don't know does hurt us. How scientific illiteracy hobbles society”. Science. Washington, AAAS, v.279, mar. 1998, p.1.6401.641. EINSIEDEL, E.F. “Cloning and its discontents – a Canadian perspective”. Nature Biotechnology. Washington, Nature America Inc., v.18, set. 2000, p.943-944. GASKELL, G. et alii. “Biotechnology and the European public”. Nature Biotechnology. Washington, Nature America Inc., v.18, set. 2000, p.935-938. HABERMAS, J. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W.e HABERMAS, J. Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores), p.313-343. - A ignorância das implicações – Investigar e expor as conseqüências éticas, jurídicas e sociais das biotecnologias, do monopólio da produção de sementes à patente de seres vivos, da nova eugenia à discriminação genética no emprego e por seguradoras. É talvez a mais complexa de resolver, pois dela padecem até mesmo os jornalistas que cobrem ciência. KELLER, E.F. Refiguring life. Metaphors of twentieth-century biology. Nova York, Columbia University Press, 1995. LEITE, M. Os alimentos transgênicos. São Paulo, Publifolha, 2000 (Folha Explica). __________ . “Os genes da discórdia – Alimentos transgênicos no Brasil”. Política Externa. São Paulo, Paz e Terra, v.8, n.2, set. 1999, p.3-14. LEWONTIN, R.C. The doctrine of DNA. Biology as ideology. Londres, Penguin, 1993. Esse desafio triplo está posto para a divulgação científica, mas não só para ela. Especial atenção deveriam ter para com ele as autoridades reguladoras, encarregadas que são de defender o interesse difuso, pois dos interesses particulares da indústria biotecnológica pode cuidar ela mesma. Sem uma intervenção esclarecida e decidida da imprensa e do Estado, a questão da biotecnologia continuará NELKIN, D. Selling science. How the press covers science and technology. Nova York, W.H. Freeman, 1995. PRIEST, S.H. “US public opinion divided over biotechnology?” Nature Biotechnology. Washington, Nature America Inc., v.18, set. 2000, p.939942. RIFKIN, J. The biotech century. Harnessing the gene and remaking the world. Nova York, Jeremy P. Tarcher/Putnam, 1998. WILSON, E.O. Consilience. The unity of knowledge. Nova York, Alfred A.Knopf, 1998. 46 PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA MAYANA ZATZ Professora de Genética Humana e Médica do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, Membro da Academia Brasileira de Ciências Resumo: Os avanços na tecnologia da biologia molecular têm sido tão rápidos que o número de testes genéticos disponíveis, tanto para características normais como patológicas, estão aumentando dia a dia. Enquanto questões éticas a ela relacionadas estão sendo debatidas no âmbito acadêmico, os laboratórios estão disputando a possibilidade de desenvolver e aplicar testes de DNA, pois do ponto de vista comercial os interesses são enormes. Neste artigo, ilustramos com alguns exemplos reais a complexidade de algumas situações e a dificuldade de se tomar decisões em benefício dos envolvidos, evidenciando a importância de se discutir questões éticas com toda a sociedade. Palavras-chave: biologia molecular; ciência e ética; pesquisa e mercado. O projeto genoma humano (PGH) tem como objetivo identificar todos os genes responsáveis por nossas características normais e patológicas. Os resultados a longo prazo certamente irão revolucionar a medicina, principalmente na área de prevenção. Será possível analisar milhares de genes ao mesmo tempo e as pessoas poderão saber se têm predisposição aumentada para certas doenças, como diabete, câncer, hipertensão ou doença de Alzheimer, e tratar-se antes do aparecimento dos sintomas. As vacinas de DNA poderão eliminar doenças como a tuberculose ou a Aids. Os remédios serão receitados de acordo com o perfil genético de cada um, evitando-se assim os efeitos colaterais. Paralelamente a esses avanços, inúmeras questões éticas já estão sendo discutidas e outras irão surgir. Mas, por enquanto, as implicações éticas, legais e sociais dos conhecimentos gerados pelo PGH em relação às características normais e patológicas e sua integração na clínica médica têm sido discutidas no ambiente acadêmico. Na prática, entretanto, já estão sendo desenvolvidos testes genéticos para a escolha do sexo de futuros bebês e bancos de DNA da população. Um número crescente de laboratórios oferece testes de DNA para doenças hereditárias ou para determinar se uma pessoa tem maior risco de desenvolver certas doenças como câncer ou doenças cardíacas. Será que as pessoas que se submetem a esses testes sabem o que exatamente está sendo testado? O que significa um teste positivo? O que significa um teste negativo? Nos exemplos a seguir, veremos que a resposta a essas perguntas não é fácil e exige amplas discussões dos pontos de vista social, médico e principalmente ético. BANCOS POPULACIONAIS DE DNA: UM BENEFÍCIO OU UMA AMEAÇA? Em um artigo recente, Dawkins (1998) discute os prós e os contras de se ter um banco nacional com os dados de DNA (“fingerprint” ou impressões genéticas) da população. Seria um benefício ou uma ameaça? Na Inglaterra, onde já existe um banco de DNA com mais de 300 mil amostras, seus defensores argumentam que ele é muito importante para identificar criminosos ou infratores da lei. Mas quais seriam as possíveis implicações do uso negativo dessas informações, como por exemplo, em testes de paternidade? No livro O animal moral: psicologia evolutiva e vida cotidiana, Robert Wright sustenta que a infidelidade tem razões genéticas mais fortes que os padrões morais. De acordo com essa hipótese, seria uma vantagem evolutiva para garantir descendentes “geneticamente melhores”, isto é, a manutenção e propagação de genes “melhores”. Realmente, estudos populacionais estimam que a taxa de falsa paternidade seja da ordem de 10% e, conseqüentemente, um grande número de homens acredita erroneamente que é o pai biológico de seus filhos, a maioria sem nenhum questionamento. Qual seria o impacto 47 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 ças psiquiátricas ou distúrbios de comportamento. Descobriu-se, por exemplo, um polimorfismo ligado ao gene transportador da serotonina que causa uma recaptação diminuída dessa substância na fenda sináptica (Heil et alii, 1996). Trabalhos recentes confirmados na nossa população mostraram que pacientes com doença de Alzheimer (Oliveira et alii, 1998) e distúrbios psiquiátricos (depressão maior, distimia e doença bipolar) diferem quanto a esse polimorfismo em comparação com controles normais. Em um estudo muito interessante realizado na Noruega verificou-se que, entre os alcoólatras, aqueles que se tornam agressivos sob o efeito do álcool também diferem dos não-agressivos em relação a esse polimorfismo. Trabalhos recentes em modelos animais têm mostrado que poderiam existir genes que levam ao alcoolismo ou à dependência de drogas, pois enquanto alguns se tornam dependentes outros têm aversão às mesmas substâncias (Crabbe et alii, 1994; Palmour et alii, 1997). O mesmo comportamento já havia sido observado em humanos, uma vez que um estudo realizado em um grupo de voluntários verificou que a injeção de heroína, em teste cego, provocava uma reação de prazer em alguns e de aversão em outros. Outros trabalhos muito polêmicos sugerem que o homossexualismo masculino (Hu et alii, 1995), o “bomhumor” e o otimismo também teriam influências genéticas. Segundo os autores, os genes do “bom humor”, por exemplo, atuariam no metabolismo das dopaminas ou serotoninas (Hamer, 1996). Enquanto os marcadores genéticos responsáveis pelo comportamento humano continuam sendo pesquisados, a questão central é o seu o uso para identificar traços de personalidade desejáveis ou não. E novamente as perguntas: Os indivíduos com predisposição genética para o alcoolismo ou para a dependência de drogas podem ser julgados culpados? O que são características indesejáveis? Agressividade? Preguiça? Homossexualismo? Mau humor? Os indivíduos portadores de genes “de distúrbios de comportamento” serão mais tolerados ou discriminados? Por outro lado, se soubermos que o mau humor tem uma explicação biológica teremos maior compreensão com as pessoas birrentas e constantemente mal-humoradas? se, a partir de um banco de DNA da população, os “supostos pais” e seus filhos soubessem a verdade ou tais informações fossem utilizadas para chantagear as pessoas envolvidas? Por outro lado, um número crescente de genes com suscetibilidade para algumas formas de câncer, doenças cardíacas ou doenças neurodegenerativas de início tardio (como mal de Alzheimer) está sendo identificado. As novas tecnologias que vêm sendo introduzidas permitirão, em pouco tempo, a identificação de centenas de genes “patológicos” em uma única reação. É inquestionável que as companhias de seguro-saúde e seguro de vida teriam o maior interesse em obter essas informações, isto é, saber que doenças teremos risco de desenvolver e a data prevista da nossa morte. E os nossos empregadores também não teriam interesse em obter tais informações sigilosas? A questão é: seremos capazes de manter o caráter confidencial de nosso perfil genético? Poderemos não concordar em nos submeter a um teste de DNA? Para aqueles que acreditam que implementar um banco de DNA da nossa população ainda é uma realidade distante, basta lembrar que recentemente se propôs que todos os recém-nascidos em São Paulo tivessem uma amostra de DNA coletada (a partir de sangue do cordão umbilical) para se obter uma impressão genética de cada um. Para encobrir os interesses comerciais (já que haveria um custo para cada exame), o motivo alegado foi evitar a troca de crianças em maternidade. E se essa coleta fosse obrigatória? GENES DE COMPORTAMENTO A influência genética em doenças psiquiátricas, tais como a doença do humor (ou psicose maníaco-depressiva), a esquizofrenia ou o alcoolismo, já é amplamente aceita (Alper e Natowicz, 1993; Mallet et alii, 1994). Em uma genealogia extensa da Holanda (Brunner et alii, 1993) identificaram, em indivíduos com comportamento agressivo e anti-social, uma mutação recessiva em um gene do cromossomo X (e que portanto só afeta indivíduos do sexo masculino). Essa mutação causa a deficiência de uma enzima, a momoamina oxidase A ou MAOA (responsável pelo metabolismo da dopamina, serotonina e noradrenalina). Felizmente, essa deficiência parece ser rara. Entretanto, outros estudos realizados em gêmeos (LaBuda et alii, 1993) sugerem que a delinqüência juvenil possa ter pouca influência genética, mas a delinqüência que persiste na idade adulta teria um componente genético importante. Nos últimos anos, inúmeros pesquisadores vêm tentando identificar genes de suscetibilidade para doen- ESCOLHA DE SEXO Uma outra questão ética é a possibilidade de se escolher o sexo de um futuro bebê. Na Inglaterra, Statham et 48 PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA Detecção de Portadores Assintomáticos de Genes Deletérios alii (1993) enviaram a um grupo de cerca de 2.300 grávidas um questionário com as seguintes perguntas: você prefere um menino, uma menina ou é indiferente? A análise dos resultados mostrou que se a população da GrãBretanha pudesse escolher o sexo de seus futuros filhos isto não causaria um desbalanceamento sexual. Já na China, onde a maioria dos casais só tem um descendente, o aborto seletivo de fetos do sexo feminino já criou uma desproporção sexual gigantesca em favor do sexo masculino. E no Brasil, o que aconteceria se os casais pudessem optar pelo sexo de seus filhos? Por outro lado, a possibilidade de se determinar o sexo de embriões antes da sua implantação (diagnóstico préimplantação na fertilização “in vitro”) para casais com risco de doenças genéticas que só afetam o sexo masculino (como a hemofilia ou a distrofia de Duchenne) evitaria o diagnóstico pré-natal e o sofrimento de ter de interromper uma gestação no caso de fetos portadores. A seleção sexual de embriões por essa técnica, no entanto, é ética no caso de casais sem risco genético aumentado, que quiserem recorrer a essa prática somente para escolher o sexo de um futuro bebê? Em algumas sociedades, a herança material só passa de pai para filho se ele tiver descendentes do sexo masculino, isto é, não ter um filho varão pode significar perder toda a herança da família e ficar reduzido à pobreza. Não é difícil imaginar que a procura de testes pré-implantação para determinar o sexo deva ser muito grande nesses casos. Seria ético negar essa possibilidade em uma situação como essa? Em relação a testes genéticos neste grupo, os exemplos seguintes levantam outras questões, tais como: Até onde vai o nosso direito de interferir? Devemos sempre dizer a verdade? Podemos nos negar a fazer um teste genético? Uma consulente vem procurar um serviço de Aconselhamento Genético para diagnóstico pré-natal. O levantamento da genealogia mostrou que seu pai é hemofílico, o que significa que ela é portadora assintomática deste gene e portanto um feto, de sexo masculino, terá uma probabilidade de 50% de vir a ser afetado por hemofilia. Inesperadamente, o estudo de DNA da consulente e de seus pais revela que “o suposto pai hemofílico” não é na realidade o seu pai biológico. Isso significa que a consulente não é portadora do gene da hemofilia e portanto não existe risco para esta ou futuras gestações, o que dispensa a realização de qualquer teste genético. É ético revelar à consulente que “seu pai não é seu pai” e arriscar a desestruturação de uma família aparentemente unida? Ou, por outro lado, é ético submeter a paciente a um exame pré-natal desnecessário, sabendo-se de antemão que não somente esta como futuras crianças dessa consulente não têm risco de hemofilia? Em outro caso, a consulente tem um filho afetado por distrofia de Duchenne (DMD), uma doença letal grave, cujos afetados raramente ultrapassam a terceira década. O exame de DNA revela que tanto a consulente como sua mãe são portadoras do gene da DMD e, portanto, há um risco de 50% de virem a ter descendentes de sexo masculino com DMD. Durante o Aconselhamento Genético (AG) a consulente é informada sobre seu risco genético e que suas tias, primas e sobrinhas, também em risco de serem portadoras do gene da DMD, podem recorrer ao exame de DNA para tentar prevenir o nascimento de novos afetados. A consulente, entretanto, nega-se terminantemente a alertar seus familiares sobre esse risco. Pergunta-se: É ético deixar que pessoas em risco ignorem essas informações que poderiam prevenir o nascimento de uma criança afetada por uma doença genética grave? Por outro lado, temos o direito de invadir a privacidade dos outros? Ou quebrar o princípio da confidencialidade deve ser uma norma no AG? Um terceiro exemplo ilustra uma situação ainda mais complicada. Uma consulente adolescente é encaminhada para diagnóstico pré-natal pois tem dois irmãos afetados por DMD. O estudo de DNA revela que ela é portadora do gene da DMD e, portanto, existe 50% de risco de que DOENÇAS GENÉTICAS Já no caso de doenças genéticas, a identificação de genes deletérios é fundamental para o diagnóstico diferencial de doenças clinicamente semelhantes, para a prevenção (pela identificação de portadores com risco de virem a ter filhos afetados e por diagnóstico pré-natal) e para futuros tratamentos. Do ponto de vista ético, entretanto, a detecção de portadores de genes deletérios pode ter conseqüências totalmente diferentes, pois distinguem-se basicamente dois grupos: os portadores assintomáticos, nos quais o risco de uma doença genética só existe para a prole, como no caso da herança autossômica recessiva ou recessiva ligada ao X; e os portadores sintomáticos ou présintomáticos, nos quais o risco existe tanto para a prole e para si mesmos, como o caso da herança autossômica dominante. 49 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 venha a ter um filho afetado. Antes de realizarmos o estudo de DNA do feto, entretanto, somos informados de que há uma suspeita de que o pai biológico da criança seria o próprio pai da consulente. Somos consultados sobre a possibilidade de confirmar essa suspeita, pelo exame de DNA, sem o conhecimento da consulente. Do ponto de vista genético, o risco de uma criança, fruto de uma relação incestuosa (pai-filha), ser afetada por uma doença genética (retardo mental, doenças recessivas ou malformação congênita) é da ordem de 50%, independentemente do sexo. Ou seja, é um risco tão grande quanto o da DMD, mas neste caso sem possibilidades de um diagnóstico pré-natal. As grandes questões são: a) é ético realizar um exame de DNA sem o prévio consentimento dos interessados?; b) ou é mais ético não realizar esse exame, mesmo sabendo do alto risco para o feto e da possibilidade, neste caso, de se interromper a gestação com amparo legal? poderiam ser evitadas aquelas que requerem habilidade manual, pois é a primeira a ser comprometida no caso da DMS. Por outro lado, vale a pena angustiar-se antecipadamente e saber que se tem uma doença para a qual não existe cura? A pesquisadora Nancy Wexler, cuja mãe morreu de CH pergunta: você quer saber quando e como vai morrer? Após inúmeras discussões éticas internacionais a respeito, o consenso foi não realizar testes pré-sintomáticos em crianças, com risco para doenças genéticas de manifestação tardia, para as quais ainda não há tratamento. O argumento mais forte é que ao testar crianças assintomáticas estaremos negando-lhes o direito de decidir, quando adultas, se querem ou não ser testadas. A nossa experiência pessoal mostra que essa conduta talvez seja a mais adequada, pois recentemente vários jovens adultos “em risco” foram informados de que já existia um teste de DNA para confirmar se eram ou não portadores do gene. Nenhum deles, no entanto, quis se submeter ao teste, o que mostrou que “viver na incerteza” talvez seja mais tolerável do que o risco de “ter certeza”. Testes Moleculares em Doenças Dominantes de Início Tardio. Doenças Ainda sem Tratamento: o Exemplo dos Genes Dinâmicos Genes de Risco para Doenças com Possível Tratamento: o Exemplo dos Genes BRCA1 e BRCA2 de Suscetibilidade para Câncer de Mama Hereditário Em doenças como a Coreia de Huntington (CH) ou a Distrofia Miotônica de Steinert (DMS), os portadores, além de manifestar a patologia, têm um risco de 50% de vir a transmitir o gene defeituoso para a sua descendência. Na CH [causada por uma expansão do número de repetições (CAG)n no gene huntingtina (Kremer et alii, 1994)] o quadro clínico geralmente tem início após a quarta ou quinta década, e leva a uma demência progressiva e irreversível. Na DMS [causada por uma expansão de repetições (CTG)n no gene da proteína-quinase da distrofia miotônica (Brook et alii, 1992)] a situação é um pouco diferente, pois o quadro clínico é muito variável. Indivíduos portadores do gene podem ter como único sinal clínico uma calvície precoce ou catarata em idade avançada, enquanto no outro extremo existem aqueles que apresentam um quadro grave, com início na infância, manifestado por: retardo mental, desenvolvimento, fraqueza e degeneração muscular e esterilidade no sexo masculino. A forma clássica, a mais comum, tem início em geral na idade adulta. As questões éticas que se colocam são: quais seriam os prós e os contras de se testar crianças assintomáticas, descendentes de afetados, e saber de antemão se elas são portadoras do gene da CH e DMS? Os defensores do teste présintomático argumentam que saber precocemente seria importante na escolha da futura profissão. Por exemplo, Mulheres portadoras de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 têm um risco de cerca de 80% de desenvolver câncer de mama e um risco aumentado para câncer de ovário (Ponder, 1997). A identificação desses genes levou vários laboratórios a oferecer testes de DNA (a custos altíssimos) à população feminina, supostamente para identificar as pessoas portadoras de mutações nesses genes e poder oferecer um tratamento preventivo àquelas com resultados positivos. Para as mulheres com história familiar de câncer de mama a detecção precoce pode ser muito importante para o tratamento preventivo. Entretanto, a questão ética é se esses testes devem ser feitos na população feminina em geral. Isso porque o risco global (life time risk) que uma mulher, sem história familiar, tem de desenvolver um câncer de mama ao longo da vida é da ordem de 10%, enquanto o câncer hereditário constitui apenas 1-2% dos casos. Assim, é dez vezes mais provável que, se uma mulher vier a desenvolver um câncer de mama, ele não esteja relacionado a mutações nos genes BRCA1 e BRCA2. A questão ética é: será que uma mulher cujo teste não revelou mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 sabe disso ou vai ficar tranqüila achando que está livre do 50 PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA genéticos disponíveis, tanto para características normais como patológicas, estão aumentando dia a dia. Enquanto as questões éticas estão sendo debatidas no âmbito acadêmico, os laboratórios estão disputando a possibilidade de desenvolver e aplicar testes de DNA, pois do ponto de vista comercial os interesses são enormes. Só para exemplificar, estima-se que nos Estados Unidos (Nowak, 1994) haveria cerca de 30 mil famílias em risco para a doença de Huntington, 36 mil famílias para distrofia miotônica, de três a cinco milhões de pessoas para doença de Alzheimer e um milhão de mulheres portadoras de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2. As questões que precisam ser debatidas do ponto de vista médico, social e ético são: - Qual é o benefício de testes pré-sintomáticos? risco de ter câncer de mama? Além disso, como existem centenas de mutações patológicas ao longo desses genes (e é ainda inviável testar todas elas), os laboratórios testam apenas as mais comuns, o que levanta outra questão: sabemos exatamente o que está sendo testado? DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL E O PROBLEMA ÉTICO DA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO Os problemas éticos relacionados com o diagnóstico pré-natal e interrupção de gravidez de fetos portadores de genes deletérios também têm sido amplamente discutidos. No caso de doenças letais (na primeira ou segunda décadas) ou as incompatíveis com uma vida independente (como aquelas que causam um retardo mental profundo), a decisão para um casal em risco de interromper uma gestação é mais fácil. Por outro lado, para aquelas de início tardio ou prognóstico indefinido, como a CH ou a DMS, o questionamento é enorme. Alguns indivíduos alegam que não querem transmitir esse gene para a sua descendência, mas será que não existirá uma cura definitiva nas próximas décadas? Ou, podemos garantir que um filho nosso terá uma vida saudável por muitas décadas? É fundamental salientar que vários centros do mundo que realizam diagnóstico pré-natal mostraram que a legislação a favor da interrupção da gestação no caso de fetos certamente portadores de genes deletérios tem reduzido significativamente o número de abortos em famílias com risco genético. Isso porque muitos casais decididos a interromper uma gravidez no caso de um feto “em risco” deixaram de abortar quando o diagnóstico pré-natal de certeza comprovou um feto normal para aquela doença. De fato, no nosso laboratório, onde já foram realizados mais de 100 exames de diagnóstico pré-natal em casais em risco (para diferentes formas de distrofias musculares, atrofia espinhal e fibrose cística), somente cerca de 10% foram diagnosticados como afetados. Portanto, o diagnóstico pré-natal de certeza e a possibilidade do aborto terapêutico têm salvado inúmeras vidas normais. Por isso a importância fundamental de discussões éticas em torno da legalização da interrupção da gestação no caso de doenças graves ou incuráveis, pois as nossas leis certamente não têm acompanhado os avanços das pesquisas. - As pessoas sabem para quê estão sendo testadas, o que significa um teste positivo ou um resultado negativo? - Quem irá regular a produção e o uso de testes genéticos, a sua qualidade e o acesso da população a eles? - Quando oferecer testes? - Empregadores e companhias de seguro-saúde terão acesso às informações? - Quem vai controlar a confidencialidade? - Poderemos nos negar a ser submetidos a um teste genético? - Quem vai interpretar os resultados e ser responsável pelo aconselhamento genético? - Quem vai controlar os aspectos éticos? - Estamos preparados para lidar com essa avalanche de novos conhecimentos que serão gerados pelo Projeto Genoma Humano? NOTAS E-mail da autora: [email protected] Gostaria de agradecer a uma “superequipe de colaboradores” do Centro de Estudos do Genoma Humano e da ABDIM (Associação Brasileira de Distrofia Muscular) que muito tem contribuído para as discussões éticas aqui relatadas e à Fapesp, CNPq e Pronex pelo apoio constante que têm dado à nossa pesquisa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONCLUSÃO ALPER, J.S. e NATOWICZ, M.R. “On establishing the genetic basis of mental disease”. Trends in Neuroscience, v.16, 1993, p.387. Em resumo, os avanços na tecnologia da biologia molecular têm sido tão rápidos que o número de testes BROOK, J.D.; MCCURRACH, M.E.; HARLEY, H.G. et alii. “Molecular basis of myotonic dystrophy: expansion of a a trinucleotide (CTG) repeat at the 3’end of a transcript encoding a protein kinase family member”. 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Tem atuado como Professor visitante na USP, Unicamp e PUC-SP Resumo: Freqüentemente recorre-se à ciência para legitimar a prioridade atribuída ao desenvolvimento de sementes transgênicas na pesquisa agronômica, e a proteção privilegiada concedida aos direitos de propriedade intelectual sobre tais sementes. Alega-se que as sementes transgênicas incorporam conhecimento científico, mas não as sementes selecionadas na agricultura tradicional; e que o conhecimento científico sustenta não haver, além da agricultura que faz uso substancial de sementes transgênicas, maneira alternativa nenhuma de alimentar a humanidade. Ambas as alegações são questionadas por meio de um argumento que reconhece na agroecologia uma séria alternativa (pelo menos parcialmente) à predominância da biotecnologia na agricultura, uma alternativa que não apenas encontra forte apoio na evidência empírica, mas também responde aos valores da sustentabilidade ecológica e da justiça social. Palavras-chave: desenvolvimento científico; transgênicos; agroecologia. N a consciência moderna avultam as conquistas e promessas da ciência, assim como os ampliados poderes humanos de exercer controle resultantes dos desenvolvimentos científicos. Embora a ciência e as novas tecnologias provoquem medo e apreensão em algumas pessoas, para a maioria no mundo contemporâneo seu valor foi profundamente internalizado. Assim, uma ampla legitimidade foi atribuída à pesquisa e aos desenvolvimentos de novas possibilidades tecnológicas, e há uma tendência a aceitar como pressuposto – não sem oposição – que o futuro será, e mesmo deverá ser, em grande parte moldado em resposta a eles. As sementes transgênicas (TG) e outros “avanços” biotecnológicos estão entre os mais recentes e mais visíveis de tais desenvolvimentos. Para seus defensores as sementes TG representam o futuro da agricultura; elas são também testemunho do engenho e providência do empreendimento científico. Um manual muito usado tem por título Tecnologia do DNA: a espantosa habilidade (Alcamo, 1996), um bom resumo da situação. Criticar a biotecnologia parece beirar a blasfêmia, uma oposição ao desdobrar do futuro e à própria ciência. Busca-se com freqüência a legitimação do desenvolvimento e emprego de sementes TG na autoridade e prestígio da ciência e com isto espera-se silenciar todos os críticos. Contrariando essa postura, pode-se argumentar que a ciência não autoriza tal legitimação, e não coloca barreiras à exploração de formas alternativas de agri- cultura que estejam mais em sintonia com a luta por justiça social. As sementes TG contêm genes tirados de organismos de diferentes espécies, inseridos diretamente em seus próprios materiais genéticos, com a finalidade de gerar plantas com as específicas qualidades “desejadas”, tais como as capacidades de resistir a inseticidas. Para seus criadores, as sementes TG incorporam conhecimento científico e trazem a marca da ciência. Elas também trazem a marca da economia política da “globalização”, uma vez que seu desenvolvimento tem sido visto tanto como um objetivo da economia neoliberal global quanto como um meio de fortalecer suas estruturas. Tais marcas gêmeas emprestam uma aura de inevitabilidade à “revolução” agrícola prometida com o advento das sementes TG: a ciência definiu a rota, a economia global fornece as estruturas para sua efetiva implementação. Assim, não é surpresa que as plantações com sementes TG (milho, soja, e outras culturas) tenham tido um crescimento explosivo nos últimos anos. Não há outro caminho, os defensores insistem, nenhuma outra maneira de fornecer o necessário para alimentar a crescente população mundial nas próximas décadas.1 Devem os críticos silenciar? Os críticos são de vários tipos. Alguns rejeitam cabalmente ou mostram-se apreensivos diante da “intrusão na natureza” exemplificada pelas sementes TG (Príncipe de Gales, 1998). Outros exigem medidas de precaução à luz 53 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 a ciência, com sua fé nela e na tecnologia avançada para resolver todos os problemas? Ou, talvez, seja o código para “esta é a maneira de proceder dentro das estruturas da globalização”, cuja progressiva consolidação é considerada inevitável e não deixa nada de fora (Lacey, 1998, cap. 8), e para um reconhecimento oculto de que estas estruturas, por meio de mecanismos como a concessão seletiva de direitos de propriedade intelectual (DPI), tendem a solapar as alternativas (Lewontin, 1998)? As sementes TG não podem ser produzidas sem a modificação de sementes selecionadas pelos agricultores (sementes SA), ou sementes derivadas originalmente de sementes SA, para uso na agricultura convencional. Sua própria existência pressupõe o desenvolvimento anterior destas últimas (Kloppenburg, 1988). E contudo as proteções dos DPI podem ser concedidas a sementes TG mas não a sementes SA. Na falta de tais proteções, as sementes SA são consideradas parte do patrimônio comum da humanidade e podem ser (sob os predominantes acordos internacionais e leis em vigor) legalmente apropriadas à vontade sem consulta ou compensação aos agricultores que as selecionaram (Kloppenburg, 1987). Quando as sementes SA são apropriadas, os críticos falam de “biopirataria” e detectam injustiça. Os que desenvolvem as sementes TG apropriam-se livremente das sementes SA, mas o agricultor não tem livre acesso a sementes TG. Não apenas o agribusiness (por seus pesquisadores), mas também gerações de agricultores contribuem para a produção de sementes TG mas, graças aos DPIs, quem lucra são principalmente o agribusiness e seus clientes. Quaisquer lucros desse tipo pressupõem a livre apropriação das sementes SA. Mais ainda, as condições em que acontecem tendem a facilitar a substituição das sementes SA pelas TG.2 A biopirataria envolve não apenas a exploração dos agricultores que produzem as sementes, sem as quais as sementes TG não poderiam existir, mas também, no final, a exclusão do próprio uso destas sementes (Shiva, 1997; 2000). A biopirataria e o regime dos DPIs são profundamente interligados. O desenvolvimento e a utilização das sementes TG dependem de ambos. Quais diferenças entre sementes TG e SA podem justificar a norma de que àquelas, mas não a estas, sejam concedidas as proteções dos DPIs? Uma das diferenças apontadas consiste em que as sementes TG mas não as SA incorporam conhecimento científico. Em virtude disso elas podem satisfazer os critérios padrão para conseguir uma patente – novidade, inventividade, utilidade/aplicação industrial, e fornecimento de instruções suficientes para dos riscos ambientais e para a saúde, da inadequação dos procedimentos de avaliação de riscos, de questões de escolha dos consumidores e rotulagem de produtos TG, de ameaças à biodiversidade, perigos de controle do suprimento de alimentos pelas grandes empresas, e o solapamento potencial das condições necessárias para a agricultura orgânica (Risler e Mellon, 1996; Lappé e Bailey, 1998). Alguns criticam o uso corrente de sementes TG por visar principalmente o lucro empresarial, embora apoiem a pesquisa e desenvolvimento que tem por objetivo ajudar os povos dos países empobrecidos, por exemplo, produzindo arroz mais rico em vitamina (Nuffield Council on Biothics, 1999; Serageldin, 1999). Alguns pensam que os riscos envolvidos são motivo para que se abandone todo o empreendimento. Ainda outros questionam o projeto de globalização e estão envolvidos tanto na pesquisa quanto na luta política para tornar viáveis métodos alternativos de agricultura (Altieri e Rosset, 2000; Kloppenburg, 1991; Shiva, 1993). São poucas as concessões dos defensores. Eles reconhecem riscos, naturalmente, mas sustentam que os riscos reais podem ser administrados e regulamentados. Com o apoio da US Food and Drug Administration, eles também alegam não haver evidência científica concreta de que produtos TG atualmente no mercado causem riscos maiores que os produtos da agricultura convencional. Confiantes nos resultados e promessas da ciência, e encorajados por seus sucessos anteriores, eles não se deixam abalar por apelos para que se tenha especial cautela no uso de produtos TG. Além disso, não concedem aos críticos a posição de superioridade moral. Bem ao contrário, replicam que o uso de sementes TG permite alta produtividade combinada com uma atitude amigável em relação ao meio ambiente, e, como já mencionado, insistem que é necessário alimentar a humanidade (Specter, 2000). Dessa perspectiva quaisquer riscos ocasionados pelo uso de sementes TG desaparecem na insignificância em comparação com as conseqüências de sua não-utilização; é aos críticos que falta a devida preocupação moral (McGloughlin, 2000). Muita coisa depende da alegação de que “não há outra maneira” de alimentar a humanidade. A legitimidade de ir adiante rápida e imediatamente com o emprego de sementes TG, sem tomar medidas de precaução especiais, pressupõe sua veracidade. Será que ela é realmente verdadeira? Se não, quais são as alternativas? É apoiada por evidências científicas? Ou é apenas um reflexo de quem está seguramente dominado pela atitude moderna perante 54 AS SEMENTES E O CONHECIMENTO QUE ELAS INCORPORAM desnutrição apesar de haver produção suficiente para alimentar a todos. Com certeza não há nada na maneira como a ciência biotecnológica é conduzida hoje que possa refrear o ceticismo, pois ela se ocupa primordialmente com a estrutura molecular dos genes, a química de suas expressões, e de como elas podem ser modificadas para produzir traços “desejados” nas plantas, sem dar atenção ao impacto ecológico a longo prazo das culturas (Risler e Mellon, 1996) e (na medida em que é custeada pelo agribusiness) praticamente nenhuma ao impacto social geral. Porém, sem uma investigação sistemática e empírica sobre os impactos ecológico e social a longo prazo, e sobre a possibilidade de alternativas, como poderia a pesquisa científica apoiar a tese de que o desenvolvimento de sementes TG é o único modo de proceder, ou mesmo que é um modo viável de proceder? Naturalmente, essa questão teria pouca relevância se de fato não houvesse alternativas. A fim de se ter claro o que está envolvido, devem ser consideradas mais duas questões: - maximização: como podemos maximizar a produção de uma cultura em condições – uso de fertilizantes, controle de pragas, emprego de água, maquinário, linhagens de sementes, etc. – que podem ser amplamente replicadas? estar de acordo com a condição de “suficiência de revelação” – e assim tornar-se propriedade intelectual. Dessa perspectiva é pura demagogia e sentimentalismo chamar de biopirataria a livre apropriação e possível substituição de sementes SA. O prestígio da ciência é dessa forma mobilizado contra o uso de um termo moralmente tão carregado. Apenas a propriedade pode ser pirateada, e as sementes SA não são propriedade intelectual. Além disso, de acordo com seus defensores, o desenvolvimento de sementes TG beneficia a todos, pois “não há outro meio de alimentar a humanidade.” Será verdade que, primeiro, as sementes TG mas não as SA incorporam conhecimento científico; e segundo, que as sementes SA não podem formar a base (ou uma parte importante) da produção necessária para alimentar a humanidade? Respostas afirmativas às duas questões constituiriam um grande avanço na direção de legitimar não apenas a transformação da agricultura para acomodar as sementes TG, mas também a “biopirataria” e a privilegiada proteção concedida às sementes TG pelos DPIs. Ao tratar dessas questões, estará em jogo a pergunta “em que consiste a ciência?” Considera-se que a ciência inclui qualquer forma sistemática e empírica de investigação que procura entender os fenômenos do mundo, ou seja, que almeja captar as causas e possibilidades das coisas e fenômenos (Lacey, 1998; 1999, cap. 5). Que formas de investigação científica devem ser empreendidas se desejamos estudar sistemática e empiricamente as possibilidades de alimentar a humanidade no futuro, e testar a alegação de que culturas TG são necessárias e amplamente suficientes, e culturas SA insuficientes (e nem mesmo necessárias em certas localidades), para este fim (Lacey, s/d)? Tenha-se em mente a persistência da fome hoje; e que produzir alimento suficiente para alimentar a todos não significa que todos serão alimentados. Sermos todos alimentados depende não apenas da produção de alimento em quantidade suficiente, mas também que as pessoas tenham acesso a ele; e, para pessoas não-participantes de comunidades agrícolas produtivas, isso significa ter de comprá-lo (Altieri e Rosset, 2000). Deve-se observar também que a manutenção de alta produtividade a longo prazo depende da preservação da biodiversidade, da saúde humana e ambiental, e da ausência de conflitos sociais violentos (Altieri, 1995). Lembrando tudo isso, pode-se ficar cético quanto à idéia de que as culturas TG vão permitir que a humanidade seja alimentada. Afinal, elas estão inseridas na mesmas estruturas e representam os mesmos interesses que aceitaram a persistência da fome e da - fortalecimento local: como podemos produzir culturas de modo que todas as pessoas na região de produção tenham acesso a uma dieta bem equilibrada num contexto que fortaleça a ação e o bem-estar locais, sustenha a biodiversidade, preserve o ambiente e favoreça a justiça social? Ambas são questões científicas; ambas estão abertas à investigação de maneiras empíricas e sistemáticas. São questões diferentes, relacionadas a preocupações morais e sociais diferentes. A primeira enfatiza as quantidades de alimento produzidas, a segunda, quem de fato é alimentado e em que condições. Responder a uma delas, e adotar os métodos necessários para respondê-la, não é suficiente para responder à outra. Os métodos biológicos utilizados para investigar o que pode ser produzido com sementes TG são apropriados para a maximização. Tais métodos tentam identificar possibilidades do ponto de vista da capacidade de serem geradas as sementes a partir de estruturas moleculares subjacentes e processos bioquímicos regidos por leis. Eles abstraem em grande parte a realização de tais possibilidades e suas relações com arranjos sociais, vidas e experiências humanas, as condições sociais e materiais da pesquisa, e o impacto ecológico amplo e de longo prazo – e desta forma, 55 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 ciência praticada com métodos materialistas, ou do interesse dos agentes e projetos da economia global. Os defensores das sementes TG não se deixarão abalar por esse argumento. Como muitos outros que adotam a postura moderna perante a ciência, eles tendem a identificála com o emprego praticamente exclusivo dos métodos materialistas. Num nível, trata-se apenas de uma questão terminológica. A palavra “ciência” é, na verdade, amplamente utilizada para designar “pesquisa empírica sistemática praticada com métodos materialistas”, o tipo de investigação que leva à expansão de nossa capacidade de exercer controle sobre os objetos naturais. Não tenho objeção alguma a esse nível. Tudo o que foi dito pode ser reformulado sem perdas usando “pesquisa empírica sistemática” em vez de “ciência” (Lacey, 1999, cap. 5). Num outro nível, entretanto, sustenta-se que a terminologia usual reflete o fato de o conhecimento adquirido com métodos materialistas ser (em princípio) mais solidamente assentado em evidências empíricas e experimentais, e que ele tem credenciais epistêmicas superiores. Isso se questiona. A pesquisa agroecológica parte de conhecimento adequadamente testado na prática em culturas tradicionais, por exemplo, o conhecimento incorporado em sementes SA, que forneceu a “matéria-prima” para o desenvolvimento de sementes TG. O fato desse conhecimento carecer da “universalidade” do conhecimento materialista e (com freqüência) de sua forma teórica precisamente integrada não significa que ele seja empiricamente menos bem-assentado, mas é um tipo de conhecimento bastante específico quanto ao local, e capaz de fornecer respostas a questões como a do fortalecimento local. Restringir o uso de “ciência” na pesquisa praticada com métodos materialistas representa assim a concessão de um privilégio para a pesquisa materialista – porém um privilégio não conquistado em bases epistêmicas (Kloppenburg, 1991; Shiva, 1991). Conceder privilégio ao conhecimento científico adquirido com métodos materialistas desvia a atenção para longe de formas alternativas de agricultura, informadas por conhecimento científico (sistemático e empírico), que em princípio pode levar a respostas positivas e eficazes para a questão do fortalecimento local em muitas localidades, e pode até gerar produtividade local aumentada, consistente com a sustentabilidade ecológica e social, a partir de melhoramentos nos métodos segundo os mais as sementes SA são coletadas (Lewontin e Berlan, 1990). Também insinua que temos apenas opinião, não conhecimento sólido, quando lidamos com a completa e temporalmente de qualquer ligação com valores. São métodos “materialistas”, métodos que separam a biologia da sociologia, da economia e da ecologia, de tal forma que o fortalecimento local não é considerado como pertencendo propriamente ao mesmo domínio de pesquisa que a maximização. Quando não simplesmente ignorado, é discutido nas ciências sociais, depois de terem sido respondidas questões como a da maximização. Existem, entretanto, outras abordagens para a investigação científica, cujos resultados podem informar práticas agrícolas alternativas, especificamente aquelas da agroecologia. A pesquisa em agroecologia – embora recorrendo de inúmeras maneiras ao conhecimento das estruturas subjacentes e da química das plantas, solos e insumos da produção agrícola – situa a agricultura integralmente dentro de sua situação ecológica e social, e coloca questões que não envolvem abstrações dela (Altieri, 1995). De acordo com Altieri, um de seus mais notáveis proponentes,3 ela trata as coisas em relação ao agroecossistema (sistema agrícola/ecológico) inteiro de que são partes constituintes, e preocupa-se simultaneamente com: “[A] manutenção da capacidade produtiva do agroecossistema, a preservação da base de recursos naturais e da biodiversidade, o fortalecimento da organização social e diminuição da pobreza, [e] o fortalecimento [empowerment] das comunidades locais, manutenção das tradições, e participação popular no processo de desenvolvimento” (Altieri, 1998:56-7). Ela não separa a biologia da sociologia por qualquer razão de princípio. Seu foco primordial são as questões do tipo do fortalecimento local; e assim seus resultados variam com a localidade, recorre e desenvolve (em muitos casos) o conhecimento tradicional que informa as práticas de uma cultura, e não restringe os papéis na geração do conhecimento a especialistas, preservando papéis para os próprios agricultores (Lacey, 1998, cap. 6). As sementes SA incorporam variedades de conhecimento agroecológico (Shiva, 1991). Uma vez que o fortalecimento local situa-se fora da perspectiva daqueles que restringem a investigação ao uso de métodos materialistas, sua pesquisa não pode nos dizer que as alternativas agrícolas informadas por pesquisa agroecológica são incapazes de fornecer uma parte importante da base necessária para alimentar a humanidade. Dessa forma, quando eles alegam que “não há outra maneira”, não estão relatando um resultado de sua pesquisa científica, ou mesmo uma hipótese que eles tenham os meios para investigar seriamente. Aparentemente a alegação decorre ou da aceitação acrítica das promessas da 56 AS SEMENTES E O CONHECIMENTO QUE ELAS INCORPORAM extensa série de variáveis ecológicas, humanas e sociais e os efeitos das práticas agrícolas. Assim, ele solapa ilegitimamente a força da crítica baseada na investigação agroecológica. Por outro lado, os métodos materialistas são de maneira geral adequados para tratar da maximização, e realmente levam à identificação de possibilidades genuínas das culturas TG. Não podem, porém, identificar as possibilidades necessárias para tratar do fortalecimento local, e é impossível responder à grande questão da necessidade de desenvolvimento de sementes TG se nos abstivermos de utilizar métodos que levem em conta esse fortalecimento. A grande questão pode ser tratada cientificamente, por meio de investigação empírica sistemática, mas apenas se permitirmos que a ciência inclua uma variedade de métodos, dos quais o materialista é apenas um (embora muito importante). Métodos de investigação materialistas e agroecológicos estão em princípio no mesmo patamar. Outros autores, influenciados pelo construcionismo social, tiraram conclusões semelhantes questionando a “objetividade” do conhecimento materialista bem-estabelecido; nossas conclusões apontam a “objetividade” do conhecimento agroecológico. Tanto as sementes SA quanto as TG podem ser informadas pelo conhecimento científico: umas pelo conhecimento agroecológico, outras pelo conhecimento materialista. Assim, a concessão de proteções dos DPIs às sementes TG mas não às SA não pode se basear na alegação de que aquelas incorporam conhecimento com credenciais epistêmicas superiores. Mais plausível, em nossa opinião, é o inverso: o conhecimento materialista é privilegiado (tido como detentor de maior valor social e talvez, erroneamente, maior valor epistêmico), pois na aplicação ele pode ser facilmente incorporado em produtos com valor de mercado, inclusive alguns para os quais pode-se obter as proteções dos DPIs. O prestígio dos métodos materialistas e o usual estreitamento do significado de “ciência” refletem não credenciais epistêmicas superiores, mas o maior valor social de suas aplicações entre aqueles que dão prioridade a relações de controle sobre os objetos naturais e o valor econômico das coisas.4 A concessão das proteções dos DPIs às sementes TG e a “pirataria” com as sementes SA são momentos diferentes do mesmo processo. Se a ciência não fornece uma justificativa para legitimar a atribuição de diferentes estatutos legais para os dois tipos de sementes, é possível que se recorra a outra razão: sem as proteções dos DPIs, o desenvolvimento e a utilização de sementes TG provavelmente encontraria obstáculos intransponíveis. Dentro da lógica da economia neoliberal global tal alegação pode ser muito convincente, especialmente porque a pesquisa associada à maximização bem pode dar apoio à tese de que (em estruturas neoliberais) apenas com os novos métodos é possível produzir alimentos adequadamente. Mas para conseguir legitimação além dos limites dessa lógica, é necessário apelar também para a pressuposição de que “As sementes TG são necessárias para alimentar a humanidade”, para a qual, de novo, não há base científica até agora.5 O tribunal da ciência permanece aberto às possibilidades de produzir alimento de modo que todos possam ser alimentados nas próximas décadas. A questão pode ser submetida à exploração científica mas apenas, como vimos, se reconhecermos que a ciência contém uma multiplicidade de diferentes tipos de métodos, incluindo os agroecológicos tanto quanto os materialistas. Tal exploração ainda não foi tentada e, se for, pode tornar válida a pressuposição dos defensores das sementes TG, mas também pode ser que isto não aconteça; e pode levar à conclusão de que há papéis importantes tanto para as sementes SA quando para as TG nas práticas agrícolas que não apenas produzir em quantidade suficiente para alimentar a todos, mas o fazer de modo a assegurar que todos sejam adequadamente alimentados e que respondam à questão do fortalecimento local de forma bem geral.6 Antes da exploração os críticos não fazem jus a maior certeza que os defensores. Ao mesmo tempo, os dados empíricos atuais apóiam a afirmação que responder à maximização não é suficiente para responder ao empoderamento local; e de que em numerosas localidades em todo o terceiro mundo tentativas de tratar do fortalecimento local sistemática e resolutamente têm sido promissoras, recorrendo a métodos agroecológicos com pequena contribuição de tentativas de responder à maximização (Altieri, 1995). Uma investigação fidedigna da pressuposição de que “não há outra maneira de alimentar a humanidade” deve levar isto em conta. Ela vai requerer, portanto, que investigações com métodos agroecológicos sejam desenvolvidas muito mais completamente, e com provisão dos recursos necessários; e esses métodos podem ser desenvolvidos apenas se práticas agroecológicas são intensificadas e ampliadas. O fornecimento de tais recursos, entretanto, entra em conflito com as tendências da própria economia global, cuja lógica favorece a transformação rápida e imediata dos métodos agrícolas na direção do uso de sementes TG em larga escala. Tal tendência serve para solapar as condi- 57 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 2. O caso extremo de biopirataria ocorre quando um órgão estrangeiro consegue patentes para pequenas variantes de produtos disponíveis há séculos em países “subdesenvolvidos” e que são bem compreendidos dentro de sistemas de conhecimento local – por exemplo, produtos da árvore neem na Índia (Shiva, 1997: 6972) e o arroz basmati (Shiva, 2000: 84-86). Uma decisão judicial recente revogou a patente concedida ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e a W. R. Grace Corporation para um produto de neem pela razão de que não estava envolvido passo inventivo algum (The Times of India News Service, 12 de Maio de 2000). Sobre o papel da biopirataria em certas áreas de pesquisa médica e a indústria farmacêutica, ver Alier, 2000. ções (a disponibilidade de agroecossistemas produtivos e sustentáveis) necessárias para a investigação científica de uma pressuposição daquilo que a legitima. Qualquer autoridade que a ciência legalmente exerça deriva dos resultados de investigação empírica sistemática. Tal autoridade não apóia nem as distinções legais entre as sementes TG e SA, nem que os métodos agrícolas que usam as sementes SA não devam ter um papel integral na produção de alimento nas próximas décadas. Talvez o apelo à ciência feito pelos defensores das sementes TG mascare a falta de um fundamento moralmente convincente para a globalização, ou um esforço para enervar seus críticos, ou uma fé ilimitada nos poderes dos métodos materialistas. Em qualquer caso, os críticos que recorrem à agroecologia não se opõem à ciência estabelecida. Ao contrário, o fortalecimento da agroecologia é necessário para que haja uma investigação científica das possibilidades de alimentar a todos no futuro imediato e no futuro previsível. No conflito sobre as sementes, dois modos de vida fundamentalmente incompatíveis se contrapõem: um enfatizando os agroecossistemas sustentáveis, o outro, a primazia do mercado. A ciência (pesquisa empírica sistemática), pela sua multiplicidade de métodos, pode informar a ambas porém não legitima nenhuma. A oposição ao desenvolvimento e à utilização de sementes TG pode se enraizar mais solidamente nas práticas da agroecologia. É aí que as energias dos críticos devem ser postas – essa é uma questão de solidariedade, prática agrícola, economia política, estilo de vida, e aquisição de conhecimento. 3. Miguel Altieri é chileno, e atualmente professor no Departamento de Environmental Science, Policy and Management da Universidade da Califórnia – Berkeley; coordenador-geral do Development Programme’s Sustainable Agriculture Networking and Extension Programme da ONU; e assessor técnico do Latin American Consortium on Agroecology and Development. 4. Argumentou-se em outro lugar (Lacey, 1998, cap. 5; 1999, cap. 6) que há relações complexas mutuamente reforçadoras entre a pesquisa científica praticada quase exclusivamente de acordo com métodos materialistas e a valorização do controle sobre os objetos naturais. 5. Fora da lógica da economia neoliberal global, como sugerimos, não há base para atribuir um status (epistêmico ou legal) diferente para as sementes SA e TG. Existe, por outro lado, uma séria necessidade de os países do terceiro mundo protegerem suas reservas genéticas indígenas. Como fazer isso tem sido objeto de considerável controvérsia (Brush e Stabinsky, 1996; Alier, 2000; Lacey, 1998, cap. 6). Alguns autores sugeriram que os DPIs sejam estendidos para os recursos genéticos indígenas, outros propuseram que não sejam concedidas patentes a qualquer material vivo, incluindo sementes TG, ou várias formas de compensação pelo uso de recursos indígenas. Uma idéia promissora, que apenas recentemente começou a ser explorada, é desenvolver um enquadramento legal para “direitos intelectuais coletivos”, de acordo com os quais comunidades de agricultores (e povos indígenas) possam proteger, aperfeiçoar e controlar o uso das reservas genéticas situadas no âmbito de seu conhecimento local (Shiva, 1997:80; Garcia dos Santos, 1996). 6. Pode existir bastante espaço para um debate construtivo entre a agroecologia e a pesquisa sobre sementes TG associada ao CGIAR (McGloughlin, 2000). Ambas as abordagens se propõem a ser sensíveis às necessidades e problemas dos agricultores pobres. Em vez de empoderamento local, entretanto, a pesquisa ligada ao CGIAR tende a se preocupar com uma questão ligeiramente diferente: como podem os métodos da agrobiotecnologia ser desenvolvidos de tal modo que possam contribuir para satisfazer (por exemplo) as necessidades de produção de alimentos e lidar com desnutrição crônica em comunidades de agricultores pobres. Ela pressupõe que abordagens materialistas na ciência constituem a maior parte da solução dos problemas com os quais se defrontam as comunidades pobres mas, embora reconhecendo a “realidade” do regime dos DPIs, rejeita tanto a dominância da pesquisa em biotecnologia pelo agribusiness quanto o mercado enquanto único acesso a sementes disponível para os agricultores. Assim, o CGIAR conduz pesquisas visando desenvolver sementes TG que, por exemplo, podem produzir arroz com maior teor de vitamina, ou que podem ser cultivadas em solos salinos ou secos, desta forma fornecendo soluções técnicas para importantes problemas de agricultores pobres ou marginalizados. A agroecologia, em contraste, insiste em que as soluções técnicas propostas não sejam abstraídas dos contextos ecológicos e sociais em suas implementações (Shiva, 1991). NOTAS Tradução de Marcos Barbosa de Oliveira. O presente artigo é parte de um projeto maior, apoiado em parte pela US National Science Foundation (SES-9905945), que trata de questões filosóficas, éticas e científicas referentes à agrobiotecnologia e à agroecologia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Destacados porta-vozes do agribusiness, tais como Robert Shapiro, presidente-executivo da Monsanto, tendem a recomendar a rápida transformação da agricultura na direção de uma substancial dependência de culturas TG (ver as observações de Shapiro em Specter, 2000). Outros, inclusive os associados das organizações filiadas ao CGIAR (Consultive Group on International Agricultural Research), alegam mais modestamente que a sementes TG têm um papel importante a desempenhar na agricultura do futuro (Serageldin, 1999; Persey e Lantin, 2000; Nuffield Council on Bioethics, 1999; McGloughlin, 2000). O CGIAR tende a ser crítico de muitos desenvolvimentos de sementes TG realizados pelo agribusiness, considerando-os impulsionados pelo lucro, em vez de pelas necessidades de comunidades agrícolas pobres; tendo por objetivo o aumento nas vendas de pesticidas específicos ou a conquista de maior controle do mercado, em vez de aumento na produtividade de culturas especialmente em solos inferiores e alimentos saudáveis. Ironicamente, porta-vozes do agribusiness referem-se com freqüência à pesquisa patrocinada pelo CGIAR, que tem pouco potencial de lucro a curto prazo, para sustentar que o desenvolvimento de sementes TG serve a fins humanitários. ALCAMO, I. E. DNA technology: the awesome skill. Dubuque (Iowa), Wm. C. Brown Publishers, 1996. ALIER, J.M. “International biopiracy versus the value of local knowledge”. Capitalism, Nature, Socialism: a Journal of Socialist Ecology, v.11, n.2, jun. 2000, p.59-68. ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 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A sociedade brasileira deverá romper com essa situação, em que os progressos beneficiam apenas setores privilegiados, e promover a educação e divulgação científicas de qualidade a todos os níveis, concentrando sua aplicação em domínios essenciais para vencer atrasos e deformações da sociedade brasileira. Se a ciência e a tecnologia não tiverem relação direta com a realidade do dia-a-dia, traduzindo-se em melhoria da situação material e cultural do conjunto da sociedade, estarão se arriscando a evoluir para uma situação de atividade apenas virtual. Palavras-chave: biotecnologia; ciência e realidade; tecnologia e virtualidade. O progresso observado nas últimas décadas em ciências biológicas, demonstrando a universalidade dos princípios básicos de estrutura e funcionamento dos seres vivos e decifrando o código genético, promoveu um avanço vertiginoso de conhecimentos e uma convergência das disciplinas biológicas que, durante o século XIX e início do século XX, tinham conhecido uma lenta acumulação de informações e diversificação por meio da multiplicação das disciplinas. Essa evolução é bem recente: pode-se mesmo precisar a data de seu início em 1953, quando James Watson e Francis Crick publicaram seu famoso modelo de estrutura do DNA (ácido desoxiribonucléico), já identificado por numerosas pesquisas como sede química da informação genética. O modelo abria caminho para as manipulações experimentais que logo foram coroadas de êxito, com a síntese enzimática in vitro do DNA por Kornberg em 1956, a proposição do RNA mensageiro (ácido ribonucléico) e do modelo de regulação da expressão dos genes em 1961 por Jacob e Monod, o desenvolvimento das técnicas de seqüenciamento dos genes nos anos 70 por Gilbert e Sanger e a descrição dos enzimas ditos de restrição por Arber, que permitiram o nascimento da engenharia genética. Essas conquistas e descobertas em ciência fundamental tiveram repercussão imediata na esfera biotecnológica. Com o desenvolvimento de equipamentos especializados e a produção industrial de insumos e reagentes, “democrati- zou-se” a pesquisa, o que permitiu que os estudos em biologia molecular, restritos anteriormente a um punhado de especialistas e instituições privilegiadas, se generalizassem e a capacidade de investigação se estendesse a grande número de laboratórios e equipes em nível mundial. Novas biotecnologias se desenvolveram também como aplicações de interesse geral, tais como produtos de diagnóstico, técnicas de vacinação e de preparação de insumos químicos e biológicos, pela engenharia genética, técnicas de seleção e melhoramento de espécies vegetais e animais e a introdução da transgênese (transferência de informação genética de um organismo a outro, da mesma espécie ou de espécie diferente). A biologia celular e molecular teve grande desenvolvimento e, nos últimos anos, vem atravessando a fase denominada genômica, em que os pesquisadores se concentram na descrição do seqüenciamento do repertório de genes de seres vivos (genomas), desde vírus e bactérias até o homem, e na identificação de genes responsáveis por características fenotípicas normais ou patológicas, com a perspectiva de decifrar e definir, nos próximos anos, as informações completas dos repertórios de genes típicos de cada espécie. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se um capítulo próprio da informática, a bioinformática, que introduziu metodologias de análise das macromoléculas biológicas e de suas interações, permitindo a experimentação nas telas de computadores, com enorme economia de tempo e de complexas operações de 60 CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES lificados, capazes não apenas de acompanhar os progressos científicos e técnicos internacionais, como também de contribuir de forma original para esses progressos. O exemplo recente do sucesso na clonagem do seqüenciamento completo do genoma da Xylella fastidiosa, bactéria responsável pela doença dos cítricos conhecida como amarelinho, é uma prova, entre outras, da existência de competências humanas e estruturas laboratoriais capazes de situar a pesquisa científica e o desempenho tecnológico em âmbito mundial. Esse sucesso se desdobra em projetos atualmente em andamento, como o do câncer e o seqüenciamento da cana-de-açúcar e de outras variedades vegetais, assim como o de organismos patogênicos, tais como o paracoccidioides, responsável por uma grave micose profunda, todos financiados pela Fapesp. Participante que sou da atmosfera de orgulho legítimo de ver o país se colocar, com essas ações e iniciativas, na esfera internacional de vanguarda das pesquisas na área biológica e biotecnológica, não posso deixar de sentir, entretanto, certo temor de que a situação atual possa nos levar ao ufanismo, doença bem nacional, que a partir daí, contribuirá para criar no país uma relação de virtualidade com a ciência. O ufanismo brasileiro, que nos acompanha talvez desde os tempos da colônia e da carta de Caminha, tem se deslocado imperceptivelmente para o virtual. Se antes ele se exprimia pelo orgulho de termos as mais belas praias do mundo, os mais lindos coqueiros, bosques com mais flores, o melhor café do mundo, o melhor futebol, nota-se que esse orgulho vem se deslocando para o campo virtual. O que caracteriza o virtual? Evidentemente, é a focalização de fatos, ações, situações e acontecimentos dos quais não se participa senão virtualmente. A supremacia da Televisão e da Internet vem reforçando as atitudes de participação virtual. As telenovelas registram realidades virtuais. O cinema, principalmente o americano, com suas aventuras espaciais e fantásticas, valoriza apenas a participação virtual. O virtual invade não só as atividades de lazer como o conjunto da atividade humana e até o esporte. Ele penetra mesmo em nosso futebol, que era o esporte nacional. Até um passado recente, grande parte da população brasileira participava, é verdade, virtualmente pela televisão mas, por outro lado, tinha participação ativa, ao menos numa fase da vida, jogando suas peladas ou praticando seriamente. Os esportes nacionais estão se virtualizando, pois os mais prestigiados agora são o tênis e as corridas de fórmula 1. No tênis, milhões de brasileiros acompanham pela televisão os gestos frenéti- bancada. A bioinformática introduziu igualmente metodologias capazes de analisar estruturas moleculares ou frações para definir os responsáveis pela especificidade funcional da molécula, seja como enzima, como antígeno, como inibidor ou ativador, como receptor ou mediador, enfim, uma diversidade de funções possíveis. Num seguimento natural da fase atual, que é essencialmente de acumulação de informações, será possível observar, nas próximas décadas, o desenvolvimento da era pós-genômica (que já se inicia nos centros de vanguarda). Essa era abrirá um ciclo de ampliação dos conhecimentos científicos e será centrada na análise funcional dos genes seqüenciados, mas de função ignorada, e nos mecanismos de interação e regulação entre eles, que levam à expressão das capacidades funcionais de cada ser vivo. A compreensão desses mecanismos, aliada ao desenvolvimento das biotecnologias, permitindo a intervenção sobre o genoma primitivo, com integração de novas informações externas, cria diversas possibilidades de ação e promove um estreitamento das fronteiras entre os conhecimentos básicos fundamentais em biologia e o desenvolvimento de aplicações que atualmente se denominam de novas biotecnologias. Exemplos diários são divulgados pela mídia com um certo sensacionalismo sobre a clonagem de animais e plantas – e a discutida clonagem humana – e a produção de organismos geneticamente modificados (OGM). As expectativas favoráveis são grandes, por exemplo, no campo da medicina, com a prevenção de patologias hereditárias, e a correção de certos defeitos genéticos (terapia gênica); da agronomia, com a produção agropecuária e a melhoria funcional ou a adaptação de espécies úteis de plantas e animais; das indústrias químicas, alimentícias e farmacêuticas, com a produção de moléculas sintéticas capazes de agir como fármacos, alimentos, agrotóxicos, inseticidas biológicos, novos materiais e outros produtos de interesse. OS PROGRESSOS DA CIÊNCIA REDUNDAM AUTOMATICAMENTE EM PROGRESSO SOCIAL? Pode-se perguntar em que esses grandes progressos da ciência e da biotecnologia podem ou devem ser considerados instrumentos para acelerar o desenvolvimento socioeconômico da sociedade brasileira, desenvolver o bemestar de sua população, resolver seus problemas crônicos e colocar o país no caminho de um real progresso social. Temos certamente em algumas de nossas universidades e em alguns institutos de pesquisa cientistas e técnicos qua- 61 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 ve do que a atual, porque se limitava aos eruditos, os que tinham capacidade de leitura. O perigo atual é transformar a ciência em conhecimento “televisesco” e “internetesco”. Os livros eram e continuam a ser instrumentos indispensáveis para o aprendizado da ciência. Televisão e Internet são novos meios, agora fundamentais, de acesso aos conhecimentos científicos. Se o processo e a relação com a ciência se reduzir ao livro, à televisão, ao vídeo ou à Internet, caímos objetivamente no virtualismo. A ciência e a biotecnologia se tornam virtuais também à medida que a sociedade não tenha um nível de acesso aos benefícios que ela proporciona ou pode proporcionar, seja por falta de recursos, seja por não estar preparada culturalmente e/ou socioeconomicamente para incorporar as descobertas e as novas aplicações. Tomemos o exemplo das práticas médicas e biomédicas. Elas vêm se beneficiando de progressos extraordinários nas últimas décadas com a implantação de técnicas de exploração de imagens computadorizadas, novos reativos de diagnóstico precoce, microintervenções por radiação a laser robotizadas, terapêuticas antitumorais e antiinfecciosas, técnicas de intervenção, etc. Qual a fração da população que tem acesso a essas tecnologias? Uma porção reduzida, apesar dos inegáveis esforços da administração pública nacional para estender o acesso às pessoas mais carentes, pelo desenvolvimento dos Programas de Agentes Comunitários (Pacs) e de Saúde da Família (PSF). Apesar de certos programas federais de atendimento generalizado (o Brasil, por exemplo, é dos raros países onde o tratamento da Aids por associação de medicamentos é acessível a todos os afetados), é evidente que há um profundo contraste entre o acesso aos recursos de novas tecnologias médicas entre as classes médias e superiores urbanas do Sudeste e do Sul e as camadas mais pobres urbanas e periféricas dessas mesmas regiões e as populações rurais do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste. Mais do que isso, estas últimas encontram-se na verdade com um atraso de quase um século, pois não têm acesso nem mesmo às tecnologias já há tempos disponíveis às populações urbanas do Sudeste e do Sul, e mesmo à parte das zonas rurais do Sul. Essas pessoas, quando contemplam na televisão as maravilhas das novas biotecnologias, encaram-nas como realidades das quais elas estão automaticamente excluídas. O grande desafio nacional consiste, portanto, em vencer essa exclusão e marginalização. Podese ou deve-se intervir nesse processo com uma política de ciência e tecnologia? E em que isso teria repercussões no processo de desenvolvimento e progresso social? cos de enviar uma bolinha com uma raquete de um lado para o outro de uma rede; nas corridas automobilísticas das fórmulas 1, 2 e 3, outros milhões de brasileiros ficam horas contemplando as arrancadas ruidosas de “petardos” de alta tecnologia dirigidas por audazes aventureiros. Quantos brasileiros praticam o tênis ou a corrida automobilística? Um número insignificante. Mas tanto um como outro são considerados esportes de massa. Esportes virtuais. Mesmo o futebol está evoluindo para o virtual, porque o objetivo não é mais a prática em si, mas sim ser (ou ver) um craque que será vendido por milhões para um clube europeu. Quantos vão atingir esse tipo de realidade? Alguns poucos. Os outros, isto é, a maioria, participam apenas na contemplação. No virtual. CIÊNCIA COMO REALIDADE VIRTUAL? Não permitamos que a ciência também caminhe para o virtual. Como seria isso possível? Muito simples. Se a ciência, como conhecimento, não for algo acessível à sociedade – desde a escola primária até a universidade e, fora da escola, pela permanente informação científica correta, discreta e eficiente e pela prática em cada setor de atividade –, ela se transformará em atividade real apenas para um pequeno núcleo de privilegiados e em virtual para a maioria da população. A informação hoje é essencialmente sensacionalista. Nos últimos anos, a imprensa (não apenas a nacional) tem se especializado em destacar assuntos que alimentam a virtualidade da ciência, como, na área biológica, a clonagem de seres humanos e as qualidades ou os perigos dos produtos vegetais ou animais geneticamente modificados, os célebres OGM. Como muitos leitores são pouco informados ou ignorantes das bases científicas ou éticas de tais problemas, o que se obtém com isso é um pânico latente e/ou o desenvolvimento de verdadeiro obscurantismo medieval na população. É mais grave ainda a divulgação escandalosa de sucessos (alguns reais, mas em geral fantasiosos) de certas aplicações biotecnológicas que alimentam ilusões sobre como vencer o câncer, a esterilidade ou a velhice, criando outras fontes de virtualidade. Mas não é apenas pela ação de uma imprensa sensacionalista que se pode evoluir para uma virtualidade científica. É pela própria evolução da prática científica e de suas aplicações na sociedade. Falava-se, no passado, em conhecimento científico livresco, isto é, sem ligação com a prática e restrito à leitura e à transmissão do que foi aprendido. Era uma forma antiga de virtualização. Menos gra- 62 CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES luminosos, os cinemas e teatros, os bares e restaurantes, a circulação de veículos, etc. Observadores mais doutos, por outro lado, assinalam, como inexorável, o desaparecimento da agricultura de subsistência e da pequena e média propriedades, como decorrência obrigatória da evolução das tecnologias agrícolas e pecuárias, ou dos “agronegócios” como se costuma dizer, resultantes por sua vez dos progressos da ciência e da tecnologia. Consideram ao mesmo tempo essa “reserva de mão-de-obra”, representada pelas populações marginais, como útil ao desenvolvimento capitalista e à industrialização. É, portanto, de consenso geral que esse problema está diretamente ligado ao desenvolvimento e à evolução da ciência e da tecnologia agrárias ou, ao menos, do uso que delas se faz. E quais são as razões mais freqüentemente invocadas pelos migrantes rurais, quando a emigração se faz por iniciativa própria, para justificar o abandono da terra? São razões de saúde, isto é, a falta de acesso a recursos técnicos e humanos, médicos e farmacêuticos, para tratamento e prevenção das doenças, às vezes as mais banais a que estão sujeitos. Chegamos assim (após um longo desvio) a um dos pontos centrais que deveria ser tratado. A introdução irracional de ciência e tecnologia pode ser um fator de desequilíbrio e não de progresso social. No caso das ciências biológicas e da biotecnologia os exemplos não faltam nas suas duas áreas mais estratégicas, as ciências agrárias e as ciências médicas e biomédicas. CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA RESOLVER QUAIS PROBLEMAS? Entre os aspectos mais graves que caracterizam a sociedade brasileira nesta virada de século e que estão na base da exclusão e marginalização social destacam-se as desigualdades e os desequilíbrios entre populações rurais e urbanas e, nestas últimas, entre populações de áreas realmente urbanizadas e as de periferias ou favelas. Tais problemas, que se originaram nos tempos de colônia, se intensificaram com o processo de industrialização e modernização da agricultura, a partir dos anos 50, e provocaram a expulsão de populações agrícolas e migrações descontroladas. Esses fenômenos não foram privilégio do Brasil, e se manifestaram com intensidade variável em toda a América Latina. Em nosso caso, a estrutura econômica do país e as infra-estruturas urbanas são incapazes de absorver esse excedente de mão-de-obra, e assim crescem as populações marginalizadas, base da formação de favelas e subúrbios superpovoados, com degradação social e desenvolvimento da violência urbana. É o que se verifica não apenas nas megalópolis como São Paulo e Rio de Janeiro, mas também em cidades médias como Recife, Vitória, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Campinas e Santos, entre outras. Para um observador imparcial, causa estranheza a contradição flagrante desse processo migratório: de um lado, iniciativas do governo federal, em atenção a justos clamores por uma reforma agrária, tentando instalar famílias em áreas rurais e, de outro, o contínuo processo de migração do campo para a cidade. Com efeito, a população rural está nitidamente diminuindo no Brasil. Se há 50 anos representava ainda 60% do total, na avaliação do IBGE de 1996 representa apenas 20%, que entretanto, soma mais de 30 milhões de brasileiros residindo no campo (mais de três Bélgicas), aos quais seria justo acrescentar várias dezenas de milhões (uma Itália) de outros que residem nas periferias das cidades, à espera de uma hipotética integração social, onde as condições de infra-estrutura estão mais próximas das condições rurais, agravadas pela promiscuidade e desemprego, que das verdadeiras condições urbanas. Os fenômenos migratórios deviam assim ser considerados não processos de urbanização, mas processos de ruralização degradada das cidades. Na procura de causas, um consenso superficial sobre a questão assinala o chamado “atrativo das grandes cidades”, com as iluminações feéricas das ruas, os anúncios POR UMA NOVA BIOTECNOLOGIA AGRÁRIA Nas ciências agronômicas competências não faltam. Pode-se contar com nomes como o de Joahana Dobereiner e seus discípulos em trabalhos de vanguarda sobre a fixação do azoto, com grandes aplicações atualmente, como por exemplo, na cultura de cana, com redução considerável das necessidades de adubos nitrogenados. Vale lembrar ainda das equipes paulistas participantes do projeto do genoma da Xylella fastidiosa que nos colocou em posição de igualdade com o nível internacional de capacitação técnica dos grandes centros europeus e americanos do norte. Ao mesmo tempo, o organismo nacional responsável pelo desenvolvimento das biotecnologias na área agronômica, a Embrapa, é considerado internacionalmente como de nível equivalente, em competência e qualificação, aos grandes organismos de países avançados, como o Inra francês. A Embrapa tem se distinguido por grandes êxitos tecnológicos na seleção e melhoria de variedades de soja, cana- 63 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Poucos países têm condições de suprir a curto ou médio prazo essas necessidades, entre eles, naturalmente, o Brasil. Eis uma opção que nos seria portanto favorável. Novo problema, entretanto, se coloca nesse caminho: na opinião pública européia (gato escaldado tem medo de água fria) desenvolvem-se preconceitos crescentes contra o consumo de variedades vegetais modificadas geneticamente (os OMG) e a grande produção de soja americana (a brasileira segue a mesma tendência) é inteiramente de variedade transgênica. Esses preconceitos que ganham setores crescentes da opinião levaram os ministros da agricultura da Comunidade Européia a decidir por uma moratória, com suspensão da introdução de novos produtos transgênicos no Mercado Europeu por um período de dois anos. É interessante observar que, a partir de preconceitos justos ou injustos do consumidor e em contraposição aos alimentos de uma agropecuária extensiva e industrializada, vêm-se beneficiando na opinião pública os setores agroalimentares que se especializam nos chamados “produtos biológicos”, como frangos criados em pleno sol, com direito a circulação e alimentados à base de produtos de origem vegetal. O que se disse para as aves é válido para os bovinos, ovinos e suínos. O que foi dito para a soja transgênica se aplica ao milho, a frutos e legumes. O que é válido para a opinião pública européia, penetra na opinião americana e contamina inclusive a opinião tupuniquim. A Austrália e o Canadá, por exemplo, promulgaram decretos proibindo a utilização, para transfusão, de sangue de doadores que residiram na Grã-Bretanha ou na França nos últimos anos. Os produtos alimentares de origem agroindustrial provocam inquietude. Os produtos “biológicos” invadem as feiras livres e os supermercados. O problema tem repercussão no plano econômico-social e implica decisões políticas. Como se orientar nessa situação confusa em que se confrontam progressos da ciência e da tecnologia com hábitos e preconceitos alimentares, lobbies das grandes empresas internacionais na área alimentar contra pequenos produtores, acidentes inevitáveis com ações criminosas, interesses das macroempresas de adubos, de herbicidas e de inseticidas, conflitantes entre elas e com os consumidores e pequenos produtores? Tudo isso como expressão, muita ignorância e de explorações demagógicas do tudo biotecnológico ou do tudo “natural”? O cenário que se anuncia para o futuro é incerto. Mas um retorno à produção agropecuária em pequenas e médias propriedades e empresas, que permita a diversificação e melhor identificação dos produtos, é uma tendência que se reforça intensamente e deverá progredir nos próximos decênios. de-açúcar, milho, café, cítricos, entre outros, e no desenvolvimento de técnicas agrícolas, melhorias de solo, etc. Seus cientistas e técnicos dominam as biotecnologias mais sofisticadas e modernas nas áreas de pecuária, como as de inseminação artificial in vitro, congelamento e implantação de embriões, clonagem de embriões, etc; na área vegetal, os cientistas dominam as técnicas mais avançadas da biologia aplicadas a clonagem molecular, transgênese, seleções de marcadores, virologia e parasitologia, etc. Teríamos assim, teoricamente, os meios e as competências necessárias para que as ciências e tecnologias agrárias fossem importantes instrumentos de enriquecimento e progresso social: Mas elas são? Sem negar o grande papel que têm desempenhado a modernização e o progresso tecnológico de nossas atividades agrícolas e pecuárias (produtos agrícolas e carne representam itens fundamentais de nossas exportações), deve-se entretanto assinalar que os esforços de introdução de novas tecnologias baseadas em progressos científicos se concentraram essencialmente em benefício da agricultura e pecuária intensivas, favorecendo a produção para exportação. Isso se fortalece, de um lado, pelo esforço permanente das autoridades federais em estimular as exportações com facilidades de financiamento e, de outro, pelas tradições brasileiras das grandes estruturas latifundiárias no campo. Se essas políticas podem atender às necessidades a curto prazo para manter equilíbrios comerciais, elas contêm fatores de fragilidade que se acentuam progressivamente e acentuam a marginalização da população rural. Um primeiro fator de fragilidade dessa política é não considerar a evolução de hábitos alimentares que se observa na esfera internacional a partir de acidentes trágicos. Um deles foi a disseminação na Europa da epidemia de encefalite espongiforme (doença da vaca louca) que se originou da reciclagem de carcaças e restos de matadouros, introduzidos na década de 70, e que se generalizou no mundo, permitindo baratear consideravelmente o custo de rações e, em conseqüência, o preço da carne bovina, porcina e avícula. Essa tecnologia serviu de base para a elaboração do Programa Agrícola Comum (PAC) que previa, além disso, a redução de espaços agrícolas reservados a oleaginosas. A epidemia de encefalite espongiforme, que se manifestou inicialmente na Grã-Bretanha, mas se manifesta esporadicamente em países do continente europeu, levou a Comunidade Européia a decidir pelo abandono das farinhas animais nas rações. Isso torna a Europa dependente da importação de substitutos vegetais, em particular da soja, cujo custo é avaliado em 5 a 6 bilhões de dólares anuais. 64 CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES Dever-se-ia ainda acrescentar que, se realmente a preservação e exploração da biodiversidade, das quais tanto se orgulha o Brasil, são estrategicamente essenciais para o país, ela só será viável se houver reforço do setor de pequena e média empresas agropecuárias e limitação da implantação das grandes empresas madeireiras e de pecuária intensiva dos chamados agronegócios, por essência responsável pela degradação do meio ambiente, desflorestamento e destruição da biodiversidade. Um outro fator, em relação a países como o nosso, também favorável ao desenvolvimento da pequena e média empresa, é a agropecuária intensiva ter sua rentabilidade diminuída em função da concorrência internacional, incapaz, portanto, de transferir renda para promover melhorias do nível de vida da população rural. Efetivamente, os principais produtos como a soja, o milho, o açúcar, o café, os sucos cítricos, o cacau, o algodão, entre outros, são objetos de concorrência internacional selvagem; em certos casos, eles provêm de países de estrutura econômica atrasada, com mão-de-obra tão ou mais barata que o Brasil; em outros casos, provêm de países desenvolvidos que praticam formas abertas ou disfarçadas de subvenção da produção que garanta o nível de vida elevado de seus agricultores. Por uma razão ou por outra, as tendências observadas são de superprodução e os preços internacionais são constantemente aviltados. Assim, se a produção agropecuária extensiva permite ao grande proprietário uma remuneração adequada ou mesmo um enriquecimento, o valor acumulado da produção dificilmente poderia favorecer, mesmo com legislação redistributiva rigorosa, uma melhoria de renda efetiva dos trabalhadores envolvidos na produção. Sem abandonar a agropecuária extensiva, não é possível, no Brasil, deixar de acompanhar a tendência que se desenvolve no mundo por uma nova agricultura e pecuária, dita biológica e alternativa, que conquista, na Europa e na América do Norte, setores crescentes do mercado consumidor. Essa vertente, que já penetra o mercado brasileiro, só pode se desenvolver por meio da pequena e média empresas agrícolas e nelas os valores agregados são muito superiores aos da agricultura extensiva tradicional. Exemplos nesse sentido são numerosos. Os produtores de morango, das pequenas e médias propriedades da província da Almeria na Espanha, transformaram a região mais pobre na de maior renda per capita do país. No Brasil, os produtores de frutas tropicais e de vinho do sertão baiano e da Serra Gaúcha estão criando áreas de grande dinamismo econômico. O município de Envira, no Amazonas, com seus 6 mil habitantes, é um exemplo de sucesso do programa III Ciclo de Interiorização do Desenvolvimento no Estado, ao se tornar o município que mais exporta arroz, feijão, farinha, café, produtos avícolas e outros. Certos núcleos familiares no Estado do Amazonas estão extraindo essência do pau-rosa e comercializando produtos cosméticos, a partir das folhas, sem derrubar árvores como os fornecedores do mercado internacional de perfumes. O QUE SE ESPERA DAS UNIVERSIDADES E INSTITUTOS DE PESQUISA As Universidades brasileiras e a própria Embrapa não têm representado o papel que deveriam para o desenvolvimento das biotecnologias apropriadas às pequenas e médias empresas agrícolas, tanto na diversificação de produtos já comercializados e nos métodos de produção, como na introdução de novos produtos. Nesse sentido, a Colômbia, com todos os seus graves problemas, ultrapassou o Brasil, e não apenas no café, colocando, por exemplo, rosas no mercado americano e bananas-maçã no mercado mundial. O caso das bananas merece destaque. A banana comum, nanica, é produzida e exportada pelas repúblicas centro-americanas, das Antilhas e Caraibas, e por diversos países africanos. Seu preço mundial é aviltado e o consumidor europeu paga por ela menos de 1 dólar por quilo. A banana-maçã, que é muito mais saborosa, não era exportada em virtude da fragilidade da casca fina e rápido apodrecimento. Técnicos colombianos adaptaram algumas técnicas para possibilitar a exportação e por meio de uma pesquisa tecnológica encontraram a solução fácil e barata, o empacotamento em sacos plásticos contendo nitrogênio que inibe as enzimas de apodrecimento; a banana-maçã está sendo vendida na Europa a 10 dólares o quilo. Era uma simples questão de empacotamento. A diversificação de produtos como hortaliças, legumes e frutas, para atender aos mercados de consumo nacional e internacional, não é objeto de grande atenção de nossos cientistas e tecnólogos, nem de programas oficiais de estímulo à produção. Temos centenas de frutas originais na Amazônia e no Nordeste, mas os supermercados dessas regiões oferecem ao consumidor apenas maçãs, peras, ameixas, kiwis e uvas vindas do Sul. Apenas banana e mamão são locais. Ora, as técnicas genéticas de melhoramento e seleção tornam-se, em princípio, cada vez mais acessíveis aos nãoespecialistas e já poderiam ser ensinadas e utilizadas em escolas técnicas e mesmo em escolas não-especializadas. 65 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Cruz e do Instituto Butantã, que além de utilizar tecnologias clássicas na produção de soros e vacinas, estão caminhando para a introdução de biotecnologias atualizadas, como as vacinas de segunda e terceira gerações. Entretanto, mesmo esse setor se ressente da ausência de atividades de pesquisa nas universidades e instituições, ou em pequenas e médias empresas capazes de desenvolver a produção de reativos e insumos biológicos e químicos para uso em diagnóstico etiológico de afecções humanas e animais, de vacinas animais e em particular de fármacos. O país é dependente de importação de medicamentos, reativos, insumos e plásticos até para o diagnóstico de infecções virais mais comuns, como sarampo, rubéola, dengue, febre amarela, arboviroses. São raros os esforços que nos capacitem a identificar e diagnosticar viroses emergentes, principalmente as que ocorrem na Amazônia e para as quais não existem, obviamente, produtos no mercado internacional. As deficiências são particularmente evidentes no setor de fármacos. Fomos incapazes até o momento, apesar das competências científicas existentes nesse domínio, como a do professor Sérgio Ferreira, de desenvolver atividades produtivas nesse setor, não obstante a decantada riqueza da biodiversidade nacional, particularmente da biodiversidade amazônica, do consenso mundial sobre o potencial imenso que representa a pesquisa de novos produtos ativos de origem vegetal, originais em sua estrutura. Uma recente tentativa nesse sentido, com a criação da Bioamazônica pelo Ministério de Meio Ambiente, está evoluindo para o fracasso, pois a primeira iniciativa da sua diretoria foi propor um convênio com a Novartis, um dos grandes consórcios multinacionais do medicamento. O grande erro, nesse caso, não foi se associar a uma empresa multinacional. No mundo globalizado, associações desse tipo são inevitáveis. O erro foi o tipo de associação e as funções reservadas à Bioamazônica nesse convênio: preparar extratos! Vender extratos! Ora, o grande problema a ser vencido no progresso tecnológico nessa área é colocar nosso potencial de pesquisas em novas tecnologias (e nós a temos), participando das atividades mais complexas de purificação de produtos, identificação de princípios ativos, caracterização dessas atividades em laboratório e criação e desenvolvimento dos necessários modelos biológicos experimentais. O valor agregado nessas operações é imensamente superior ao da preparação e venda de extratos. Mesmo que depois seja necessário se associar a firmas multinacionais para finalização e comercialização de produtos. Se não for possível ultrapassar essas etapas, continuaremos a ser importadores de A generalização desse conhecimento seria um meio seguro de estimular iniciativas de nossos técnicos agrícolas e dos agricultores, criando efetivamente sistemas de produção em que o valor agregado do produto é muito superior. Sabe-se que o metro cúbico de madeira do eucalipto vale 10 dólares, e o metro cúbico de madeiras de lei, como o mogno, até 1.000 dólares. Mas se continua plantando apenas eucalipto, porque o retorno de renda é rápido. Uma nova política se impõe, portanto, com uma nova visão a longo prazo. É o que se chamou em artigo anterior (Gazeta Mercantil, 20/7/99) de retrobiotecnologia de vanguarda, cujo desenvolvimento e generalização possibilitará, a médio e longo prazos, promover aumento real de renda dos trabalhadores da área rural e com isso, seguramente, reverter a migração rural. O QUE SE ESPERA DAS BIOTECNOLOGIAS PARA A SAÚDE Em relação às ciências da saúde, em particular médicas e biomédicas e as tecnologias respectivas, os problemas são mais graves. Na verdade, as novas tecnologias de uso em medicina, em grande parte, dependem de equipamentos de exploração de imagens ou manipulação física com base em eletrônica, ótica, mecânicas finas e computação. Nesse domínio somos ainda quase inteiramente dependentes de importação direta de equipamentos mais que de importação de tecnologia e não me considero competente para discutir aqui políticas a serem seguidas para o desenvolvimento do setor. Evidentemente, como já foi salientado, impõe-se uma política de democratização do acesso a essas tecnologias, mesmo que as populações carentes tenham pouco ou nenhum acesso a elas. Entretanto, em relação a outros aspectos mais biológicos das ciências da saúde, humana ou animal, podem ser definidas situações equivalentes às das ciências e tecnologias agrárias. Existem excelentes cientistas, com competência reconhecida internacionalmente, nas áreas de biologia molecular, genética humana e animal, farmacologia, imunologia, parasitologia e microbiologia, mas suas atividades de pesquisa, grande parte dirigida a aspectos de ciência fundamental, têm pouca repercussão social, muito mais uma atividade de consumo (consumo caro, aliás, de produtos importados) que de produção ou de estímulo à produção. Há uma exceção a ser feita à produção de vacinas humanas tradicionais. Um programa nacional de auto-suficiência está nos fazendo avançar nesse campo, graças aos esforços em particular da Fundação Oswaldo 66 CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES tes máquinas estrangeiras, que não trazem nenhum benefício para o conjunto da sociedade. E com a evolução nessa direção, estariam se arriscando a serem considerados, algum dia, feiticeiros e extraterrestres, por uma opinião pública dominada pela superstição e pelo irracionalismo. Como na história contada ao autor deste artigo por Leonidas Deane, grande sanitarista já desaparecido, do tempo em que trabalhou na Vale do Rio Doce, durante a Segunda Guerra Mundial. Após a entrada dos americanos na guerra contra a Alemanha e o Eixo, em 1942, os americanos tinham muita necessidade do minério da Vale e resolveram, num esforço de boa vizinhança, investir na melhoria da situação social local, como em saúde pública, ao mesmo tempo que faziam campanha para atrair a simpatia da população a seu favor, contra os alemães. Deane visitava uma grande exposição realizada pelos americanos para mostrar os avanços da sua aviação e de todas as novas tecnologias de guerra de que dispunham. Viu um caboclo local aproximar-se de uma série de fotografias em um dos quadros que mostrava o super bombardeiro B-26. O caboclo aproximou-se, olhou bem, e depois disse: “que bruto avião alemão!”. fármacos patenteados, pagando preços exorbitantes e vendendo extratos brutos por preço de banana (nanica). Mais uma vez, será apenas explorando esse tipo de atividade que a pesquisa científica e técnica poderá participar do processo produtivo, promover agregação de valor e redistribuição de renda na direção do setor produtivo, contribuindo, assim, para o enriquecimento social e mostrar para a sociedade o seu interesse pela ciência e tecnologia real e não apenas da virtual. CONCLUSÃO Se não conseguirmos fazer da ciência e da tecnologia algo que tenha relação direta com a realidade do dia-adia, que se traduza por melhorias da situação material e cultural da sociedade, por um enriquecimento material e espiritual extensivo às grandes massas da população, elas se tornarão progressivamente atividades virtuais. Pode haver cientistas famosos, de muito sucesso na mídia e nos congressos internacionais, mas para a totalidade de seus compatriotas, os cientistas, seriam considerados, na melhor das hipóteses, Sennas e Barrichelos dirigindo poten- 67 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 CULTURA GENÉTICA vertigem ontológica e dissolução do conceito de “natureza” LUIZ FELIPE PONDÉ Filósofo, Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC-SP Resumo: O objetivo do artigo é discutir o processo psicossocial em curso no momento em que se instala a nova tecnologia genômica, processo que cria uma ruptura ontológica na cultura ocidental – à semelhança de outras rupturas, como a passagem do nomadismo caçador-coletor ao sedentarismo da agricultura –, identificada como dissolução do conceito de natureza e o horror ontológico que este fato implica. Tal dissolução será concretizada pela banalização “feliz” do consumo em larga escala dos bens genômicos, um comportamento de consumo, na realidade um desdobramento da aposta iluminista na emancipação humana que se artificializa definitivamente na matéria viva, normatizando-a dentro da categoria de insumo. Palavras-chave: tecnologia genômica; natureza e cultura; ciência e religião. “ O rias pressupostas na condição nômade (agilidade, força, velocidade, habilidade em se fazer invisível, enfim, formas superiores de movimento e deslocamento no espaço) para superação da condição humana essencial, ou seja, o constante terror da contingência manifestado no pavor estrutural do ser humano diante da sua evidente fragilidade em oposição ao poder absoluto da Natureza ou do Cosmo. À intratável corrupção física humana, o cosmo revela sua tranqüila e ativa permanência em si mesmo, opondo desta forma seu ser ao nosso miserável não-ser. Com a passagem à agricultura e ao sedentarismo, os seres humanos descobrem outras divindades, agora carregadas dos valores necessários para a manutenção da vida na ausência de deslocamento espacial, isto é, divindades que representavam as necessidades “técnicas” para se agir sobre as recém-descobertas “leis da natureza” específicas, percebidas pela observação dos modos naturais de reprodução da vida vegetal. O sol, a lua e seus ciclos, o fluxo das águas e seus poderes sobre a terra cultivada, passaram a manifestar o domínio do Sagrado (o Absoluto agente) e assim, apontavam para os modos de nos “defender”, talvez, de nossa estrutural miséria ontológica. O escritor e explorador inglês Bruce Chatwin (1997), praticando o que poderíamos chamar de uma antropologia social histórica minimalista, também chamou a atenção para os desdobramentos (para ele, defensor do nomadismo, infelizes) decorrentes da mesma transformação radical de hábitos hu- padrão social de controle da área a que nos referimos como ‘eventos naturais’ é bastante elevado nos países industrializados, e o mesmo se aplica ao autocontrole do pensamento e da observação neste campo. Nele, a insegurança das pessoas diminuiu expressivamente no decorrer dos últimos séculos, tal como aconteceu com o componente de desejo e medo na atividade mental nessa esfera. Mas em relação às vastas áreas do mundo humano, especialmente a suas tensões e conflitos, tanto o padrão de controle social sobre os acontecimentos quanto os de autocontrole na reflexão sobre eles são consideravelmente menores. As ameaças mútuas das pessoas e, particularmente, das nações, bem como da insegurança daí decorrente, ainda são muito grandes, e o refreamento dos afetos na reflexão sobre essa área é reduzido, comparado ao que é normal em relação aos fenômenos naturais.” (Elias, 1994:87). O historiador das religiões, o romeno Mircea Eliade (1978), mostrou que a passagem da cultura de caçadorescoletores para a agricultura envolveu toda uma alteração do campo religioso humano. Sendo as religiões, segundo o mesmo Eliade, modos criptoontológicos de pensamento, transformações religiosas implicam necessariamente abismos ontológicos desconhecidos. As divindades que habitavam e moldavam o real do homem e da mulher nômades carregavam em si as formas que estes mesmos homens e mulheres imaginavam ser as qualidades necessá- 68 CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO... atividade cognitiva, reflexiva e técnica do ser humano.1 E mais, os textos técnicos sobre o tema pouco ajudam a compreensão das transformações envolvidas na futura e provável banalização dos produtos da genômica.2 As discussões éticas também pecam pela “ingenuidade cínica”3 pois facilmente escamoteiam o caráter de emancipação que o consumidor verá na genômica e que forçosamente levará ao uso dos recursos biotecnológicos em escala semelhante aos usos da agricultura. Assim, a tentativa de compreensão dos campos de possibilidades e de pavor que geram a genômica de consumo fica limitada a discussões pouco proveitosas e “mistificadoras”, e acima de tudo de muito pouco valor para uma ampliação da capacidade do “senso comum” pensante para compreender e se comprometer com o profundo processo de mutação antropológica em curso. A produção filmográfica sobre o tema ficção científica (science fiction), apenas como introdução, pode nos servir como indicador interessante da visão atual de como poderão acontecer os desdobramentos do consumo sistematizado da genômica, que seguramente será introduzido pelos interesses do capital associado à face contemporânea de Prometeu. Entre os filmes mais recentes e de maior público, a produção Blade Runner de Ridley Scott (1981) introduz a análise mais importante dos fundamentos do “choque” genômico: a relativização das supostas diferenças que existiriam entre seres humanos naturais e artificiais. O que se esconde por trás da luta pela sobrevivência que leva a cabo os “replicantes” (os homens e mulheres artificiais) diante de seu criador cientista é a dissolução – tema fundamental que será novamente abordado – do conceito de natureza,4 transformação ontológica que causará a decadência dos vocabulários naturalistas nos quais ainda estamos incluídos. Segundo o filósofo pragmático Richard Rorty, assistimos nas últimas décadas à falência dos vocabulários teológicos (Rorty, 1992), que causou a perda de valor cognitivo – e com ele, qualquer possibilidade de significado, inclusive ético ou moral – de qualquer argumento racional baseado em fundamentos religiosos. Como exemplo da estranheza causada por esse processo de falência de uma rede específica de vocabulários, podemos mencionar as “absurdas” discussões sobre a humanidade (ou não) dos chamados índios concluídas pelos intelectuais espanhóis e portugueses na seqüência das grandes descobertas marítimas. O paradigma mental e filosófico desses debatedores era christian-oriented e portanto o choque da nudez dos índios associado a similaridade com os humanos justificava a controvérsia: como manos básicos. O sedentarismo e seu necessário conservadorismo geográfico envolveu o abandono do movimento contínuo e cíclico dos seres humanos, acarretando decrepitudes física, psicológica e social desconhecidas para os nômades. Os exemplos se multiplicariam: degeneração muscular e neuronal precoce devido à ausência de estímulos constantes e novos aos neurotransmissores, empobrecendo o arco-reflexo e a amplitude motora, obstruções vasculares cada vez mais rápidas pois o alimento, sem movimento contínuo, se transforma necessariamente em veneno, levando o sedentário à ridícula criação do movimento muscular estéril do ponto de vista da função motora, conhecido como “ginástica”, depressões e tédios constantes em virtude da monotonia estética do espaço residencial e da pobreza cognitiva associada, levando o homem e a mulher a se entregarem à risível aventura da invenção da distração e da decoração programadas, aos exageros da atividade reprodutora como “resto” da prática física permitida, a patologia social de comparação e acúmulo de bens materiais (agenciadores psicossociais da inveja e ancestrais primeiros do capitalismo) impossível ao nômade pelas necessidades naturais do movimento contínuo, a produção crescente de lixo acumulado e geometricamente multiplicado pela mesma mania de acúmulo de bens (estes e o lixo seriam “primos” sociais e, portanto, teriam a mesma raiz funcional), enfim, à inflação da dimensão estática daquilo que chamamos “hierarquia social”. Assim sendo, com o sedentarismo, inaugura-se o império da inércia patogênica e das grandes agonias sociais. São vários os campos de estudo que se ocupam com os infinitos desdobramentos associados aos modos de vida e às atividades produtivas da espécie humana. Os poucos exemplos acima ilustram a amplitude do campo de problemas que demandam uma reflexão detida. A variação desses modos e a verticalidade das transformações antropológicas causadas por tal variação se desdobram nas mais diversas áreas: da religião à ontologia, da fisiologia aos hábitos de comportamento, da sociedade à política. Como caso específico dessa variação – aliás, foco de interesse nesta rápida reflexão –, a prática generalizada da biotecnologia genética (os usos e recursos da genômica), a face contemporânea de Prometeu, tenderá a assumir, deste ponto de vista, a mesma amplitude que a revolução da agricultura e, portanto, nos encontramos às margens de um abismo ontológico (psicológico e social) de dimensões gigantescas. Em meio ao ruído sempre histérico e quase sempre efêmero da mídia, o que se esconde é o medo atávico do risco estrutural que acompanha as conquistas da 69 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 julga consistente sobre os efeitos da banalização da genômica pelo mercado livre de seus recursos – é a recente polêmica entre os filósofos alemães Peter Sloterdijk e Jürgen Habermas.6 Na seqüência da leitura e posterior publicação de seu texto “Regras para um parque humano – Uma resposta à carta de Heidegger sobre o Humanismo” na Alemanha, em um evento dedicado ao filósofo alemão Martin Heidegger, Sloterdijk foi violentamente acusado – por Habermas e outros intelectuais – de retomar irresponsavelmente a “palavra eugenista” em solo alemão. Não nos interessa aqui especificamente o curso da controvérsia e suas particularidades históricas alemãs, mas parece razoável a idéia de que se alguém, não um alemão, introduzisse uma reflexão semelhante a Sloterdijk, o “halo” do terror e da paranóia nazista seria seguramente menor.7 Evidentemente que o imaginário contemporâneo está pleno de referências ao aparentemente enorme grau de parentesco ideológico entre a manipulação programada dos seres humanos e o projeto nazista, e tal fato, aliás, como reconhece o próprio Sloterdijk, é fundamental na atitude cínica que a sociedade humanista assume diante da prática genômica: reprime histericamente, por discursos éticos rasos, a aceitação – em nome de uma emancipação que tem medo de revelar seu próprio nome – da genômica, a fim de concluir a revolução genética em silêncio e sem o barulho indesejável da sociedade aterrorizada, que se trabalhado poderia se transformar em um processo de conscientização política da dimensão da revolução em curso. O cinismo aqui é exatamente essa recusa pública de um tipo de reflexão que produz o desconforto moral necessariamente presente na forma bem-sucedida do projeto humanista ocidental, a biotecnologia, via manifestos pretensamente “éticos” mas que na verdade não enfrentam, na prática privada, o irresistível desejo humano de combater sua miséria ontológica estrutural – presente na evidente e terrível corrupção da matéria viva e muito ativo na luta de muitas mulheres, por exemplo, contra o envelhecimento pelas “delícias” estéticas da prática alegre de automutilação gerenciada pela moderna medicina plástica. Segundo Sloterdijk, na sua cadeia de argumentos que parte de Platão e sua “República” de sábios que “pastoreiam” o “resto humano”, em meio à falência das engenharias sociais e políticas entre os séculos XVIII e XX, surge a práxis genética como verdadeira descendente vitoriosa do projeto ocidental de aperfeiçoamento ontológico da espécie.8 Diante disso, seguindo os passos da reflexão de Sloterdijk, devemos passar urgentemente à legislação nãocínica de tal processo abissal. O remédio contra a refle- descendentes de Adão e Eva podiam andar nus? Onde estava neles a marca hereditária (no caso em particular, a noção de privacidade vergonhosa do corpo) do pecado original? Para além da completa validade específica ou não da argumentação rortiana, é evidente a decadência dos modelos teológicos de pensamento – claramente fora dos ambientes mais marcadamente religiosos – e portanto me parece consistente a analogia: penso que um tal processo se dará pelo valor cognitivo dos termos sobre o conceito de natureza (ou nature-dependent). Outro tema introduzido pelo filme é a “dúvida cética de formato cartesiano” (Descartes, 1983) no que diz respeito à certeza da própria identidade: como ter certeza da própria identidade se a memória, via manipulação de sua base (sua verdadeira natureza) bioquímica, poderia ser na realidade fruto de um “gênio maligno” – o engenheiro molecular – que aí introduzia dados até então inexistentes? O drama da identidade natural aqui se impõe. Outro filme que vale a pena mencionar, mais recente, é Gattaca de Andrew Niccol (1997). Interessante observar as relações sociais e jurídicas nele esboçadas: a associação entre patrimônio (logo diremos “capital”) genético e os mercados de trabalho e amor (afetos) e a preocupação do poder legislativo, ainda que de modo fatalmente cínico, de criminalizar o “genismo”, ou seja, a prática social leviana da discriminação baseada nos diferentes patrimônios genéticos – o Estado (leia-se, o Mercado) teria, é claro, o monopólio da violência discriminatória genômica legítima. Ainda com relação a esse filme, importante seria mencionar seu happy end, no qual a integridade pessoal e seu poder é salva como possibilidade que ultrapassa o determinismo genético, figurada na vitória do “filho do acaso” (miserável geneticamente) sobre seu irmão manipulado.5 Idealização vaga e infantil de que algo maior que o patrimônio genético, associado a um meio ambiente devorado e moldado pela sistematização social e política dos recursos genômicos, existiria e permaneceria como fundamento último de um livre-arbítrio (sobrenatural porque “sobregenético”) humano que agora, em vez de lutar contra os desígnios opacos de um Deus absconditus, lançar-se-ia à luta contra os desmandos da engenharia genética e sua lacaia, a sociedade genista. Típico manifesto cínico que falsamente ensaia a fuga (e recusa) do terror ontológico instituído pela sociedade baseada no consumo sistemático e legítimo de bens genômicos. Outro marco fundamental e exemplificador das controvérsias filosóficas com relação à genética de consumo – e que me servirá para introduzir o modo de reflexão que se 70 CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO... conteúdo ontológico latente da equação eliadiana (devido ao pavor que experimentamos diante da nossa desgraçada estrutura ontológica). Parece, portanto, que deveríamos dar mais atenção ao eixo propriamente ontológico do problema e, neste sentido, uma rápida reflexão sobre o motto no início deste percurso seria de grande ajuda. Segundo o que nos diz Elias, haveria uma redução acentuada nos pavores mentais sobre a prática das chamadas ciências naturais e a reflexão produzida sobre tal prática nas sociedades industrializadas,10 ao passo que, no campo dos conflitos sociais e de sua necessária reflexão, esses pavores mentais permaneceriam ativos em virtude da falta de segurança (antes de tudo, epistemológica) existente aí, em oposição à segurança com relação ao controle intelectual sobre o universo dos “objetos naturais”. A reflexão de Elias aqui, evidentemente, se insere na sua preocupação sobre a presença dos padrões “mistificadores” e da ingerência dos afetos (ansiedade, insegurança, etc.) no campo da epistemologia aplicada às ciências sociais (ou às ciências em geral), o que desenharia o círculo vicioso do pavor mental inviabilizando uma prática mais efetiva de objetividade no lidar com os “objetos sociais”. A reflexão de Elias situa o problema de modo bastante esclarecedor, ainda que evidentemente partindo de outra trama de conceitos e girando ao redor de outra gama de temas. A tentativa de descrição do processo de dissolução do conceito de natureza não deixa de ser um percurso conceitual que muito se aproxima da batalha de Elias contra a força aglutinadora, porém infeliz, de um ponto de vista cognitivo e epistemológico dos “fantasmas” dos produtos reificados do chamado intelecto – ele mesmo, uma reificação de uma função do sistema nervoso humano materializada no espaço social – sobre a atividade reflexiva humana ao longo da história da filosofia e das ciências, história que se coloca como um ato específico dentro do drama geral no Ocidente que chamaríamos, ainda seguindo Elias, de “o processo civilizador”. A tensão entre cultura e natureza é exatamente um dos modos pelos quais podemos descrever o devorar do natural pelo cultural. Por dissolução do conceito de natureza entende-se um longo movimento da cultura ocidental que, com o advento da biotecnologia, mais especificamente a genômica e sua engenharia, terminará por produzir a decadência da tensão citada, porque será normal a idéia segundo a qual aquilo que se chamava natureza passa a ter apenas o estatuto de matéria-prima bruta da atividade biotecnológica avançada – não existe tensão ontológica alguma entre os carros e o xão cínica seria exatamente a atitude intelectual que assume o mal-estar e encara o abismo ontológico no qual estamos prestes a mergulhar, fruto do próprio projeto de emancipação que caracteriza as “melhores almas” no Ocidente. Genômica não é na sua raiz delírio nazista, ainda que a ele tenha servido, mas o resultado do desejo do homem e da mulher ocidentais na sua luta interminável contra a natureza devoradora e seu Criador. Tal reconhecimento em absoluto pressupõe a institucionalização de um novo e ingênuo “14 juillet” para celebrar a queda da última Bastilha, a natureza, esta senhora caprichosa, mas sim a fundação de uma reflexão que parte da assunção do seu “objeto de desejo” com nome próprio, ou seja, a liberação do ser humano de qualquer forma de limite imposto à sua capacidade técnica e reflexiva de moldar seu próprio destino, seguindo a trilha baconiana de controle e submissão da natureza com o objetivo de melhorar suas condições de vida. A reflexão aqui, de certa forma, em muito se aproxima da “defesa de Adão” mencionada por John Milton na sua obra Paradise Lost: “transgredidos os limites impostos por Deus, que legislemos livremente sobre nosso jardim da des-graça” (Milton, s.d.). Poderia se dizer que este é o primeiro “halo” que na realidade paira como éter sobre o pensamento quando se trata de encarar o drama ontológico causado pela genômica. Nesse sentido ela reedita os mitos adâmico e prometeico na sua forma mais violenta, e retomando a equação proposta por Eliade, isto é, “religião é criptoontologia”, a relação entre a genômica e os universos míticos ocidentais que narram a desmedida humana aponta para as profundas ressonâncias religiosas que se impõem quando se trata de analisar detidamente a cultura e os hábitos de consumo que estão por surgir. Todavia, em uma primeira apreciação, não parece que a religiosidade oportunista de raiz instrumental e narcisista que caracteriza a retomada espiritual no final do milênio apresente muita resistência ao consumo dos recursos da genômica, pelo contrário, rapidamente deverá produzir alguma lenda periférica que justifique a libertação espiritual pelo aperfeiçoamento dos “genes imateriais”.9 As bravatas oficiais ou canônicas contrárias à genômica deverão seguir o curso normal das proibições ao uso de preservativos. Não penso que os desdobramentos mais interessantes se darão neste terreno da religiosidade explícita. As ressonâncias religiosas a que se fez referência anteriormente, ainda que certamente possam causar angústias legítimas de cunho religioso institucional em alguma parcela da população, apontam mais especificamente para o 71 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 mo, é usualmente compreendido como o rochedo contra o qual se despedaçam todas as formas de universalismos em virtude da falta de critérios últimos e insuperáveis: a (duvidosa) escolha humana torna-se agente da definição dos parâmetros de sentido na organização genista da matéria viva, e o sentimento de vertigem aproxima-se da condição de um barco à deriva, sem cais. A matéria (o Ser) é definitivamente submetida à ética, à economia e à política. No caso da cultura baseada no mercado livre de bens genômicos, os modelos platônicos pré-rearranjo técnico se revelam potencialmente inferiores, exatamente porque são identificados como meros produtos do acaso e não de uma ordem “perfeita” transcendente. Encurralase o absoluto desnudando-o de sua necessidade, iluminando, na realidade, sua miserável contingência. E contra os efeitos nefastos das contingências, a civilização ocidental lança seu “maduro” projeto baconiano que se estabelece como oferta da programação técnica de organizações superiores da matéria viva, mais apropriadas para as demandas do mercado da evolução humana. Aí repete-se a transcendência assustadora. Aparentemente, a miséria ontológica estrutural do ser humano parece contagiar a instância que até então era a portadora da dinâmica de perenidade, desmascarando sua condição de acaso. O “novo” paraíso de Adão será mais “adaptado” pois não estará preso (ou pelo menos, estará em menor escala) aos ditames da contingência (nova face da natureza criadora, mergulhada na humilhante categoria de objeto da técnica adâmica), e nessa medida, terá uma perfeição mais real e mais útil. Mas diante de tamanha possibilidade de emancipação, por que tamanho pavor, afinal? O abismo ontológico no plano religioso profundo pode ser identificado com o desconforto do ser humano em aceitar a proposta de Milton feita a Adão (legislar livremente sobre o jardim da des-graça) e a responsabilidade metafísica que tal proposta acarreta,13 aliás, o mesmo peso que faz (em menor grau) toda uma cultura contemporânea baseada no projeto existencial da “adolescência eterna, reativa ao vazio metafísico” recusar as agruras da idade adulta em todos os planos, mergulhando a sociedade em delírios narcíseos (a atitude narcísea é essencialmente infantil). Outro argumento também relacionado mais diretamente com explícitas dimensões ontológicas é a afirmação de que a manipulação gênica seria contra a condição humana. Mas afinal, o que vem a ser esta condição humana senão a de combater a natureza que nos devora? O fato da natureza passar a sofrer das mesmas mazelas humanas (isto é, sua intencionalidade duvidosa) pode ser seguramente uma outra referência do medo, materializado petróleo mas sim meramente procedimentos técnicoambientais e de produção. Tal processo envolverá a gradual perda de significado cognitivo (ainda que não-poético) dos vocabulários que têm seu eixo na idéia de natureza – que revelará desse modo sua real condição de “objeto reificado” desmontado pela genômica de consumo – e, como desdobramento, esvaziará toda e qualquer articulação racional que tentar fazer uso desses vocabulários como fundamento de práticas social, lógica e psicológica baseadas na tensão já referida. Todo esse processo recoloca o estranhamento e o desconforto na atividade reflexiva tal como Elias fazia referência na citação anterior. Esse processo se dá em um universo materialista que, ao contrário do que se pensava, foi o verdadeiro agente da mais radical experiência de transcendência produzida até então: com a biotecnologia encontramos, e vamos alargar, a brecha do Ser. Por que “transcendência”? Porque o Ser, ou seja, a matéria (viva) passa a ser submetida aos procedimentos (meramente) humanos de produção e sofisticação. A civilização ocidental agora lança suas garras sobre a matéria viva, organizando-a da melhor forma possível do ponto de vista da cultura.11 Transcendência porque ultrapassa-se (ou pelo menos reduz-se radicalmente) os padrões de sentido da matéria viva exclusivamente definida até então como a tensão onde a natureza seria o pólo que resistiria por definição à cultura. A natureza não é mais o outro da cultura. O que prepara o processo de “civilização da matéria viva” é o relativismo12 que se instala em seu seio. Por meio dele, a dimensão de ansiedade retorna ao trato com os objetos naturais porque os revela enquanto objetos da cultura e, assim sendo, volta a situá-los enquanto “objetos sociais” inseridos em um mar de intenções construídas social e psicologicamente, por exemplo, as diferenças (meramente) econômicas são redefinidas em termos biotecnológicos e portanto se dissolvem no mar do relativismo ontológico, revelando sua face mais violenta enquanto intratável equivocidade moral – quem não tiver acesso às técnicas de manipulação será entregue aos desmandos da natureza precária e selvagem, o “divino” acaso –, pois a espessura da miséria social será mais do que nunca também de espessura biológica. A reflexão a partir da biotecnologia genética é revisitada pelos pavores humanos, mas na sua modalidade lovecraft: o terror do abismo ontológico e da ausência de referências universais extra-humanas (ou sobre-humanas) consistentes. O corpo torna-se humano, demasiadamente humano. O relativismo forte, produto da mente praticante do ceticis- 72 CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO... tica como algo “opressor” por ser “antinatural”. Quem permanecer na recusa da revolução genética, em defesa de uma natureza inexistente, será como um nômade diante da revolução da agricultura, vagando no vazio da nova hierarquia social do Ser (social e psicológico), como um pária ontológico. Ainda que, na maioria das vezes, toda essa questão seja tratada dentro de um cenário “futurista” néon, na prática provavelmente se dará de um modo muito mais banal. O filme Gattaca, já citado, aqui também serve como indicação temática: as decisões deverão se dar muito mais no plano privado dos afetos e arranjos familiares. Casais possuidores de bons planos de saúde irão aos seus laboratórios, em manhãs cheia de sol e de amor (e dos “melhores” planos para a futura criança), aconselhados por um consciencioso profissional da área de pré-natal e lá completarão a seleção interna de seus patrimônios genéticos. Não será muito diferente dos passos, em breve arcaicos, que ocorrem hoje quando já somos munidos de formas precárias de terapias (preventivas) genéticas. Aliás, de certa forma, a terapia genômica será apenas uma forma poderosa de medicina preventiva pré-natal. Mesmo os mais amantes dos “delírios” em favor do acaso, terão mais dificuldades – dúvidas existências14 – em correr riscos quando contarem com formas seguras de evitar sofrimentos biológicos para sua prole. Evidentemente, toda essa sistematização produzirá um poderoso vetor de paranóia e discriminação, inclusive no já precário mercado do amor, levando os consumidores de parceiros love hunters ao delírio maior estilizado no filme Gattaca e seu genetic i.d. Em breve, toda a identidade genética15 – sem paranóias muito estranhas – será assimilada ao cabedal cotidiano de “dados” que um adulto consciente tem de levar em conta quando se lança à pesquisa mercadológica dos afetos, principalmente quando envolve a “sagrada” idéia de compromisso por amor. Pais conscienciosos, evidentemente, serão obrigados – movidos pelos “melhores sentimentos” produzidos por uma educação elaborada, típica das elites conhecedoras do que “há de mais novo” em termos de sofisticação dos modos de adaptação às necessidades do “mercado de futuros”– a introduzir essa variável nos diálogos esclarecidos com seus jovens filhos e filhas (produtos da “carinhosa” programação genética, evidentemente), que como sempre, tenderão a fazer escolhas pouco pensadas e por isso mesmo, de grande risco (genético). Todavia, uma outra variável (ainda mais aterrorizante para os descendentes angustiados de Adão) tem de ser introduzida nesta discussão acerca dos padrões de com- em idéias simplistas como “exércitos nazistas indestrutíveis”. Aqui, o infantil enredo cyberpunk (o cenário é muito mais próximo, na realidade, do livre e “democrático” mercado de bens de consumo, entregue às grandes companhias de seguros de saúde e às empresas como Celera Genomics, legítimos agentes do mercado de serviços e dessa arrasadora forma de medicina pré-natal) na realidade esconde a verdadeira face da trama política latente em discussões como o problema das patentes e a definitiva normalização jurídica do poder do capital sobre os códigos das (futuras) melhores formas genéticas de adaptação às demandas da evolução das espécies. Por outro lado, a simples determinação de que tais códigos seriam patrimônio público, ainda que representem um ganho, antes de tudo simbólico em relação à proposta (provavelmente vitoriosa em maior escala) da patente privada, não representa um grande avanço uma vez que todas as relações políticas tendem a ser sustentadas em bases de custos econômicos, e a humanidade, além de ser, como bem definiu o filósofo francês Alain Finkielkraut (1996), uma construção conceitual já perdida, que apenas permanece enquanto resto do conceito, não detém o monopólio da violência econômica legítima. A tendência será a privatização dos instrumentos de poder – assim como, por exemplo, privatizam-se os instrumentos de ação pública via a simples prática da corrupção ou de sua forma “sublime”, o lobismo – sobre a violência genômica legítima. Parece-me, portanto, que o aparente grande combate entre os partidários da privatização explícita e os defensores da propriedade pública (privatização implícita) tende a se esvaziar quando se tratar do acesso efetivo às técnicas genômicas, principalmente em sociedades como a brasileira, em que o Estado e a sociedade são suicidas. Todavia, tal embate pode representar seguramente um maior acesso democrático às técnicas genômicas uma vez que algumas sociedades, menos reféns da miséria política que assola países como o Brasil, assimilarem esse modo radical de emancipação aos seus programas político-sociais, em vez de ficarem paralisadas diante do imaginário aterrorizado pelo abismo ontológico que ela representa. Tal atitude é diretamente dependente de uma ampla democratização da reflexão sobre a engenharia genética, uma prática reflexiva que seja livre da consciência “pecadora” e que sofre de pesadelos noturnos por ter mais uma vez apostado na serpente. O terror aqui assume sua clara consistência política, portanto paralisa a capacidade do senso comum para perceber a revolução em curso, e, para isso, nada melhor que o investimento em imaginários infantis apocalípticos que apresentam a engenharia gené- 73 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 portamento dos casais reprodutores, sejam eles de fato binucleares ou mononucleares (usuários de bancos de espermatozóides ou óvulos): a alteração do critério legítimo de filiação. Hoje em dia, e ainda enquanto a filiação se der em bases “homogenéticas” (mesmo quando a programação interna ao patrimônio genético dos agentes for assimilada pelo comportamento sistemático da reprodução geneticamente assistida), a filiação é um evento integrado ao que poderia definir como “campo biológico estrito” – salvo nos casos de adoção que representam uma exceção à regra. Isso pode ser alterado desde que, genes desejados e úteis (isto é, os recursos genômicos existentes em um dado momento no mercado) possam ser aceitos juridicamente como parte da procriação geneticamente assistida, passando a filiação a ser redefinida por porcentagens homogenéticas ou de documentos representativos da “compra” legítima de patrimônios heterogenéticos que deverão garantir a melhor adaptação do amado filho ou da querida filha. A sistematização desse procedimento levará a sociedade a um rigoroso esforço jurídico para legitimamente redefinir as bases da hereditariedade familiar. Por exemplo, em uma eventual separação, o parceiro que tiver comprovado a “compra” do maior ou mais definitivo (inclusive em termos financeiros, talvez) componente heterogenético introduzido na criança, terá provavelmente um argumento de peso para a sua guarda.16 Vê-se aqui uma radical transformação da noção social de filiação, na qual o privilégio, antes dado à “continuidade” biológica, cede espaço aos processos jurídicos e “estritamente sociais” (artificializantes) de determinação das identidades e das legitimidades. Biologiza-se a sociedade na mesma medida em que se socializa a biologia: só que o biológico se torna commodity enquanto o social se radicaliza como critério (artificializante). É exatamente esse o processo de relativização ao qual se fazia menção anteriormente: os critérios são cada vez mais móveis e civilization-dependent. Dessa forma, seria possível se sugerir que todo o processo “natural” de adaptação da espécie (de todas as espécies, na realidade) torna-se função da sociedade civilizada e tecno-instrumental, e a ecologia genética da espécie, provavelmente, irá se tornar uma obviedade, na linha das decisões que definem as políticas (nos dois sentidos do termo) de biodiversidade.17 A relação entre a violência genômica legítima e o mercado de trabalho é algo já bastante evidenciado. A tendência deverá ser a assimilação progressiva dessa forma sofisticada de violência adaptativa aos processos já em curso de identificação de recursos humanos. Evidentemente que legislações poderão buscar formas de atenuar tal assimilação. Todavia, são tentativas que devem ocorrer dentro de um quadro já avançado de instalação das chamadas “formas de flexibilização” – legitimização definitiva da violência do capital sobre o trabalho – da alocação de recursos humanos. Assim sendo, o vetor aponta mais para uma pura e simples assimilação pacífica que para a sua inviabilização, reproduzindo nesse processo específico o movimento geral de cada sociedade e seus mecanismos (ativos ou não) de proteção dos indivíduos quanto à violência estabelecida por parte do capital contra o trabalho, isto é, a violência propriamente econômica da genômica tenderá a se ajustar aos quadros (ou vícios) já existentes em cada sociedade, acirrando, todavia, um agravamento das tensões preexistentes na estrutura. Por outro lado, os integrantes do mercado de trabalho deverão se adaptar na mesma linha de preocupações a ser apresentada pelos reprodutores biológicos. Assim como se deve aprender línguas estrangeiras, o indivíduo em busca de um maior grau de adaptação deverá investir no ajuste genômico de seus descendentes assim como no próprio, neste caso por formas paliativas de redução de fenótipos indesejáveis. A evolução de tal assimilação para atitudes discriminatórias e modos de funcionamento na base de “castas gênicas” pode ser um dos estágios no início do processo. Entretanto, com o aumento gradativo do consumo, via ampliação do acesso aos recursos, o que de início pode parecer uma “casta” voltará à “normalização” pela racionalidade do mercado: ninguém pensa no enorme contingente de pessoas que morrem de fome diariamente no mundo como uma “casta” legítima de vítimas que têm o direito de reivindicar o que lhes é negado pelo mercado, nem como vítimas de uma discriminação “étnica”, mas simplesmente como uma condição normal do processo de adaptação das “coisas”. Brevemente teremos “autoridades genômicas” – semelhantes, ainda que com maior consistência científica, às “autoridades monetárias”, esta falácia contemporânea – esclarecendo como os recursos genéticos são em si democráticos e “apolíticos”, e como os indivíduos que deles não fazem uso são vítimas da própria “culpa” ou atavismo comportamental. A usual metáfora “naturalista” lançada para neutralizar a conscientização política poderá ser bastante útil e, a menos que percebamos que o principal sentido filosófico da genômica é a própria dissolução da natureza, permaneceremos presos a esses discursos que absurdamente buscam o refúgio na pobre natureza para suas verdadeiras raízes ideológicas, históricas e sociais.18 É exatamente em 74 CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO... momentos como esses que a decadência ontológica da natureza gerada pela genômica no plano filosófico deve ser trazida à luz e tornada compreensível para o senso comum: o sentido verdadeiramente político de toda essa “história da Natureza” saltará então aos olhos. E se existe uma “história” é porque algum processo de relativização de alguma forma se deu. Civilizar é um modo específico de declinar a ação histórica. Com a morte dessa natureza, tudo se humaniza e se torna objeto social e político. Evidentemente “escolher cansa” e uma resistência cega permanecerá ignorando cinicamente o processo em curso de dissolução. É interessante perceber como, ao lado de tal revolução genética, os discursos naturalizantes da história permanecem ativos. Será possível identificar aí um processo de alienação semelhante ao papel político-social muitas vezes desempenhado pela religião: a pura e simples crença em uma natureza que legislaria via o (suposto, mas irreal) acaso, passa a ser o poder incognoscível que, eternamente latente no velho lamento da orfandade metafísica moderna, permanece como resíduo que legitima o pavor diante do risco estrutural que caracteriza a aventura do conhecimento – o medo de Fausto e de seu “pai” Adão. A idéia corriqueira de que grandes “desgraças” acontecerão devido à genômica é, em muito, fruto desse resquício teológico (e teleológico) de que forças indomáveis (O Sagrado) permanecem retendo o sentido das coisas. Convivemos diariamente com desgraças geradas pelo modelo econômicosocial que abraçamos e jamais consideramos o próprio modelo como a desgraça. Voltando ao diálogo com Sloterdijk, parece que sem dúvida o nazismo prestou um grande serviço ao imaginário “moral” do Ocidente ao dar uma suposta definitiva localização ontológica e “moralgeográfica” do mal, poupando-nos o desconfortável trabalho intelectual e afetivo de perceber o quanto de normal, banal e racional19 teve a aventura nazista. Na realidade, parece-me que o caráter mais marcadamente criminal da revolução genética acontecerá dentro dos padrões definidos pelo sociólogo espanhol Manuel Castels (1999) como “conexão perversa”. Grosso modo, essa “conexão” se caracteriza pela perfeita harmonia entre o comportamento do capitalismo globalizado e estabelecido em redes e o modus operandi das redes internacionais de crime organizado, empresas que por sua selvagem habilidade em operar com velocidade, flexibilidade e violência, estão na proa da atitude mais bem sucedidamente adaptada a uma sociedade (des)regrada pelas ausências de regras e submetida ao império dos desejos nas mais diversas escalas. Os recursos genômicos se enquadram total- mente na linha de produtos que a “conexão perversa” comercializa, aliás, toda a rede de comércio ilegal de órgãos humanos poderá servir já como uma pré-especialização para a identificação de recursos humanos logísticos alocados para lidar com a sofisticada mercadoria biológica. Um outro fator que poderá agravar uma tendência à “conexão genômica” é a demora da sociedade legítima para atuar sobre a revolução genética de modo não-cínico. Aqui também o horror ontológico pode fazer seu estrago, pois poderá abrir espaço para uma infeliz criminalização de alguns recursos genômicos mais agressivos tecnologicamente, ao potencializar o cinismo intelectual. Outro terreno em qualquer reflexão que pretenda enfrentar intelectualmente a revolução genética são os campos da fisiologia e psicologia. Não se pretende abordar aqui a longa e árdua discussão sobre o determinismo (ou não) presente nos modelos antropológicos genomicsoriented. Isso não implica supor que tal objeto de reflexão seja inválido, mas simplesmente que ele é uma superespecialização na reflexão geral sobre a revolução genética e não é o primeiro na escala de preocupações de uma reflexão que pretenda iluminar o “senso comum” quanto ao horror ontológico paralisante. Evidentemente, o palco da controvérsia entre deterministas e antideterministas será fundamental na reflexão sobre a revolução em curso.20 Todavia, não se pode pensar que a revolução genética dê a “vitória” tão evidente para qualquer um dos “lados”, simplesmente porque se tenderá a assimilar os recursos genômicos da gama de insumos que lançamos mão no processo de adaptação, e nessa medida os “genes” estarão fortemente submetidos às relações sociais e aos atores, eles mesmos devorados pela bioquímica genômica de consumo. Com isso, quer se apontar para a circularidade latente nessa controvérsia acerca do determinismo. Sem dúvida o patrimônio genético é um exemplo do que poderíamos chamar de “contexto forte”, entre outros inúmeros, na condição humana.21 Mas supor uma autonomia forte do ser humano, à semelhança dos iluministas utópicos pré-crítica romântica alemã, é pura ingenuidade filosófica. Carregar (prioritariamente) na discussão sobre o determinismo – supondo ser esta a grande issue no advento da genômica – é mais uma forma de escamotear a artificialização da natureza em curso na normalização da práxis genômica. Qualquer processo de observação empírica – assim como qualquer modelo terapêutico associado ou decorrente dela – do comportamento e da trama de dramas humanos aprenderá a lidar com o “contextualismo genômico”, da mesma maneira que 75 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 1. Ainda que no capítulo especialmente dedicado à biotecnologia se peque pelos mesmos erros metodológicos e de conteúdo a que faremos referência na seqüência, o livro de Roger Shattuck (1998), é uma interessante exposição introdutória, ao alcance do leitor brasileiro que (infelizmente) ainda não lê inglês, sobre o caráter estrutural de risco do conhecimento a que fazemos menção aqui. tem aprendido a lidar com o “contextualismo farmacológico”, por exemplo. Assim sendo, a fisiologia e a psicologia tenderão, neste modo de ver, a lidar “pontualmente” com a dissolução da natureza, isto é, dentro de seus campos específicos de observação e sem necessariamente tomar consciência de tal ruptura ontológica. Não parece que farão resistência significante ao processo em curso, e também insistirão em abordagens que iluminarão “microscopicamente” o processo, e assim sendo não facilitarão a vida do consumidor na melhora de sua “acuidade visual ontológica”. As alterações fisiológicas ou psicológicas – como, por exemplo, a elevação do “coeficiente genômico” da população – deverão fazer parte – como já o fazem – do próprio processo de normalização do paradigma genômico. Desse modo, pode-se pensar que para uma abordagem realmente esclarecedora da dimensão do que está em jogo no tema da revolução genética, faz-se necessário antes de tudo o enfrentamento deste tema em chave filosófica. É muito provável que a passagem se dê diretamente das discussões chamadas de “éticas” (que usualmente perdem de vista o problema ontológico do horror ao qual já se fez referência) para os procedimentos técnico-jurídicos, sem esclarecer suficientemente a ruptura ontológica fundamental que se processa diante de nossos olhos. Sofreremos os efeitos de tal ruptura ontológica de qualquer modo. Para além dos efeitos inevitáveis que uma ruptura dessa magnitude terá sobre a totalidade da sociedade, esse momento poderia se transformar em uma rara oportunidade para perceber que estamos mais uma vez, assim como nossos antepassados já estiveram, em profundo contato com movimentos viscerais do Ser. Lembrando pela última vez o historiador Mircea Eliade, Ser implica indagação do sentido último (ou sua total ausência) das coisas. O fenômeno sobre o qual se tentou lançar alguma luz, a dissolução da natureza pela genômica de consumo, é na realidade um diálogo radical e absolutamente contemporâneo com o Ser. Pelo diálogo, elabora-se o terror que tal vertigem envolve. Desde os primórdios sabe-se que nossa espécie elabora seu terror estrutural produzindo cultura. Faz parte necessariamente da ruptura atual tanto o terror que ela gera, como o possível diálogo com este mesmo terror. Palavras ditas a um coração angustiado podem evitar que ele seja devorado pelo medo. Quem silenciar, ficará cego. 2. Infelizmente, é comum uma certa incompreensão por parte dos técnicos em ciência laboratorial da amplitude dos desdobramentos de suas (pequenas) atividades diárias para a sociedade em geral, levando-os muitas vezes a simplesmente desconhecerem tais desdobramentos ou pensarem que se tratam de produtos delirantes de ficção. Um pouco de cultura histórica aplicada às ciências naturais seria interessante a fim de recuperar um pouco da perspectiva histórica a que fazem referência autores como (entre outros) Thomas Kuhn (1987), ou mesmo um maior trato com a clássica literatura de ficção científica como Júlio Verne e outros. 3. Este problema do cinismo será novamente abordado com a controvérsia Slotyerdijk/Habermas sobre a revolução genética. 4. Por tal dissolução não se pretende evidentemente dizer que as leis naturais deixam de existir mas simplesmente que a natureza, enquanto lugar ontologicamente oposto à técnica ou cultura, perde sua consistência geográfica. Essa clássica oposição, grosso modo, herdada da Grécia, perde a validade porque a natureza pode ser programada e organizada exatamente pelo conhecimento técnico que adquirimos sobre suas leis mais íntimas. Assim sendo, dissolve-se como agente absoluta alheia a intenções e necessidades humanas e passa a ser devassada pelo poder humano de transformação técnica. 5. Exemplo típico do “cinismo”: escamoteia-se a verticalidade e horizontalidade do problema colocado pelo próprio enredo do filme via uma solução “Cinderela”. 6. Sobre tal controvérsia seria interessante ver o Caderno Mais! (Folha de S. Paulo, 12/10/1999). 7. Neste aspecto, foram de grande valia como defesa da posição de Sloterdijk os textos publicados pelo intelectual francês e judeu, Bernard Henry-Levy: quem mais do que um judeu, diante da paranóia paralisante do nazismo, teria capital simbólico para reafirmar e esclarecer as “perigosas reflexões” do alemão Sloterdijk? 8. Mais especificamente, o projeto humanista (emancipação humana via uso de sua razão natural) veria esse aperfeiçoamento “assustador” como fruto da revolta renascentista e radicalizada pelo Iluminismo baseada na idéia da plena assunção do ser humano de sua condição de órfão de um Pai silencioso, inútil e injusto. 9. Sobre isto, já é possível ver as sínteses fantásticas que andam por aí a tratar de algo que seria uma “cabala genética”. 10. Libertando-nos do pensamento mágico como cadeia de argumentos que dariam conta dos fenômenos naturais. 11. Daí os comentários típicos (e rasos) quando se fala em engenharia genética, de que surgirão “modismos” nas cores dos olhos e coisas semelhantes. Para além do excesso “ficção científica hollywoodiana”, que serve de horizonte em tais reflexões simplistas, existe a consciência latente por parte do senso comum das fronteiras em jogo no processo “civilizador da matéria”. Com a biotecnologia genética, a matéria viva inteligente se liberta do domínio exclusivo dos “cegos instintos atômicos” e penetra as infinitas possibilidades dos arranjos técnicos, culturais e imaginários dos seres humanos. 12. O Homem passa a ser, seguindo a fala de Protágoras, a medida também da Natureza. 13. Trata-se do problema do medo diante da orfandade metafísica. 14. No início da sistematização do consumo legítimo, provavelmente a terapia genômica se converterá em mais uma das infinitas causas de conflitos maritais. 15. O termo “identidade” aqui se refere, ambiguamente, tanto à identidade pessoal psicossocial (agora também definida em termos genéticos) quanto ao RG. 16. Evidentemente que tal fato integra-se às variações psicossociais que vêm acontecendo no comportamento dos pais quanto ao cuidado dos filhos, isto é, mais e mais os papéis de “pai” e “mãe” se distanciam da relação direta com as figuras biológicas de “pai” e “mãe”. A crescente revolução das mulheres para se libertarem da “obrigação solitária” de cuidar da cria pode vir a ser um agravante na complexidade nas sentenças jurídicas que envolvam a decisão da guarda das crianças em um futuro próximo. 17. Insisto que nada disso implica um imaginário Admirável mundo novo. 18. Portanto culturais e não-naturais. 19. No sentido mais instrumental que possa ter este conceito. NOTAS 20. Seria interessante lembrar aqui a importância, por muitos desconhecida, da controvérsia do século XVII sobre a relação entre graça divina e natureza humana (agostinianos x jesuítas) quanto à economia moral do comportamento humano E-mail do autor: [email protected] 76 CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO... em todo o processo de decadência da consistência racional dos vocabulários teológicos – como dito anteriormente ao citar Richard Rorty – no Ocidente. Um dos principais produtos de tal controvérsia é exatamente a derrocada de Deus como integrante consistente do diálogo ontológico (moral e científico) nas sociedades filhas do Iluminismo francês. ELIADE, M. A history of religious ideas. Chicago, The University of Chicago Press, 1978. ELIAS, N. El Proceso de la civilización. México, Fonde de Cultura, 1993. __________ . A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994. FAYE, E. Philosophie et perfection de l’homme, Paris, J. Vrin, 1998. 21. Aliás, reconhecer tal força é mais que esperado, se pensarmos que o materialismo é nosso “paradigma normal”. FINKIELKRAUT, A. L’humanité perdue. Paris, Gallimard, 1996. FOLHA DE S. PAULO. Caderno Mais, 12/10/1999. GÖETHE, J.W. Fausto. São Paulo, Edusp, 1981. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KUHN, T. Estruturas das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1987. MILTON, J. Paradise lost. Londres, s.d. (publicado no séc. XVII). CASTELS, M. Fim do milênio. Rio de Janeiro, v.3, Paz e Terra, 1999 (Col. A era da informação: economia, sociedade e cultura). RORTY, R. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa, Editorial Presença, 1992. CHATWIN, B. Anatomia da errância. Lisboa, Quetzal Editores, 1997. SHATTUCK, R. O conhecimento proibido. São Paulo, Cia. das Letras, 1998. DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo, Ed. Abril, 1983 (Coleção Pensadores). WILSON, E. O conscilience. Nova York, Alfred A.A Knopf, 1998. 77 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 GEOTECNOLOGIA tendências e desafios OMAR YAZBEK BITAR Geólogo, Pesquisador da Divisão de Geologia do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo WILSON SHOJI IYOMASA Geólogo, Pesquisador da Divisão de Geologia do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo MARSIS CABRAL JR. Geólogo, Pesquisador da Divisão de Geologia do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo Resumo: Este artigo apresenta considerações sobre tendências e desafios no campo das aplicações do conhecimento das geociências, abordando aspectos relacionados ao uso da geotecnologia no monitoramento de processos geológicos naturais e induzidos, prevenção de riscos, recuperação de áreas degradadas, construção de obras civis, aproveitamento de recursos hídricos e mineração. Discute-se, em especial, a partir de observações gerais acerca do panorama mundial, as perspectivas da geotecnologia no contexto do Estado de São Paulo em face do desafio do desenvolvimento sustentável. Palavras-chave: geociências; processo geológico; recursos naturais. O panorama mundial de tendências no campo da geotecnologia, compreendendo em especial as múltiplas aplicações das geociências para a solução de problemas de engenharia e o aproveitamento de recursos naturais, particularmente os recursos hídricos, minerais e energéticos, encontra-se hoje fortemente influenciado pelo debate globalmente difundido em torno da crescente degradação ambiental do planeta e do desafio de alcançar um desenvolvimento verdadeiramente sustentável para a sociedade humana. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em junho de 1992 na cidade do Rio de Janeiro, tinha o objetivo de elaborar estratégias que pudessem interromper e reverter os efeitos da degradação em curso, reduzindo as ameaças à sobrevivência da humanidade e, ainda, tornando viável o desenvolvimento e interrompendo o ciclo causal e cumulativo entre subdesenvolvimento, condições de pobreza e problemas ambientais. A Agenda 21, principal produto da Conferência, avalia que a crescente demanda por recursos naturais tem gerado competição e conflitos que resultam na degradação do solo, indicando que a solução desse problema exige uma abordagem integrada do uso do solo, focalizando a tomada de decisões e a consideração simultânea das questões ambientais, sociais e econômicas. Surge, então, talvez até como esboço de um novo paradigma para a humanidade, a busca da qualidade de vida como referência existencial, em um contexto no qual os investimentos e as proposições de projetos de engenharia e uso de recursos naturais começam a deixar de ser analisados apenas pelo seu caráter tradicionalmente desenvolvimentista, passando a ser concebidos e avaliados sob a perspectiva de sua efetiva contribuição à sustentabilidade ambiental, social e econômica, tanto sob o ponto de vista local quanto regional e global. De fato, as geociências se adaptam a essa tendência geral e começam a direcionar parte significativa de suas pesquisas e aplicações para o desafio do desenvolvimento sustentável, procurando dar respostas às demandas correlatas. A realização do 31o International Geological Congress, evento quadrienal que reuniu cerca de 5 mil geocientistas de 120 países em agosto de 2000 na cidade do Rio de Janeiro, reflete claramente essa tendência, porque teve como foco principal o tema “Geologia e Desenvolvimento Sustentável: Desafios para o Terceiro Milênio”. Cordani (1998), ao discutir o papel das geociências na construção de um mundo sustentável, a partir de um panorama global, identifica importantes áreas de contribuição: monitoramento contínuo dos processos que compõem o sistema Terra; pesquisa, gerenciamento e suprimento de recursos minerais; pesquisa, gerenciamento e suprimento de recursos energéticos; conservação e gerenciamento de recursos hídricos; conservação e gerenciamento de recursos dos solos agricultáveis; e redução de desastres naturais. 78 GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS Outro aspecto relevante diz respeito aos diversos fenômenos de afundamento de terrenos em áreas ocupadas sobretudo por habitações ou indústrias, relacionados com a ocorrência de processos cársticos (abrangendo regiões de domínio de rochas carbonáticas, como no setor noroeste da Região Metropolitana de São Paulo e no alto vale do rio Ribeira) ou com problemas de contração/expansão de maciços terrosos e, ainda, decorrentes da presença de solos colapsíveis que provocam recalques diferenciados nas fundações de obras. Nesse contexto, as demandas em geotecnologia no Estado de São Paulo, sejam públicas ou privadas, estão hoje associadas sobretudo às necessidades de caracterização, avaliação e solução de problemas decorrentes da intensificação das relações continuadas entre intervenções humanas e o meio físico geológico, tanto na construção de obras de engenharia como na utilização de recursos hídricos e minerais, sob a perspectiva da sustentabilidade. MONITORAMENTO DE PROCESSOS E PREVENÇÃO DE RISCOS Serra do Mar O cenário da situação ambiental do território paulista evidencia o modo inadequado e insustentável pelo qual o meio físico tem sido historicamente ocupado e utilizado no Estado. Problemas como erosão laminar na agricultura, que ocorre em amplas áreas do oeste paulista, erosão linear (sulcos, ravinas e boçorocas) em diversas cidades médias e grandes (como Bauru, Casa Branca e Franca), assoreamento de cursos e corpos d’água (como demonstram os canais dos rios Tietê e Pinheiros na cidade de São Paulo), enchentes e inundações (como em São Paulo, Piracicaba e Presidente Prudente), subsidências e colapsos de terrenos (como em Cajamar e Apiaí), recalque de fundações de edifícios (como em Santos), escorregamentos em encostas ocupadas por habitações (como nos municípios da Baixada Santista, Litoral Norte e Vale do Paraíba), entre outros, são manifestações que notabilizam um quadro de deseconomias e severas ameaças à qualidade de vida da população e, portanto, ao desenvolvimento sustentável do Estado de São Paulo. Diante disso, o perfil de perspectivas para atender a essas demandas no Estado inclui a necessidade de desenvolvimentos tecnológicos dirigidos ao monitoramento de processos geológicos, entre os quais, pelas características do meio físico e o histórico de ocupação territorial, destacam-se os processos erosivos e os escorregamentos induzidos por diferentes formas de uso do solo, como obras civis e urbanização. Em obras civis, por exemplo, é o caso de reservatórios hidrelétricos, cuja formação tende a produzir efeitos que precisam ser monitorados continuamente, como a dinâmica de erosão e assoreamento, elevação e oscilação do lençol freático e sismicidade induzida. Tais desenvolvimentos inclinamse em contemplar métodos e técnicas de avaliação e controle desses processos, bem como de análise e gerenciamento de áreas de risco. Uma das porções do território paulista que tende a merecer atenção especial é a Serra do Mar, que é hoje uma região de importância estratégica para o desenvolvimento sustentável do Estado, pelo fato de abrigar as principais porções remanescentes da Mata Atlântica no Estado, e pelo significado da infra-estrutura pública e privada construída ao longo da história que comporta hoje em suas encostas obras essenciais às economias estadual e nacional, como ferrovias, rodovias, dutovias (óleo, gás, água) e linhas de transmissão de energia elétrica, além dos assentamentos humanos e das instalações industriais e portuárias adjacentes. A recorrência histórica de fenômenos associados a escorregamentos nas encostas da Serra do Mar, muitas vezes ocasionando a perda de vidas humanas e expressivos prejuízos à economia e à sociedade, expõe a vulnerabilidade da infra-estrutura instalada e ameaça sua sustentabilidade. Os acontecimentos relacionados às chuvas do final de 1999 e início de 2000, que afetaram severamente diversos trechos nas encostas da Serra, como no km 42 da Via Anchieta (Foto 1), ilustram de maneira dramática os riscos de escorregamentos aos quais estão submetidas as instalações existentes. O caso do km 42 fornece uma dimensão das deseconomias envolvidas com a ocorrência de escorregamentos, uma vez que exigiu despesas com obras corretivas emergenciais da ordem de R$ 20 milhões, provocou a interrupção da rodovia por 55 dias (em dois períodos alternados: 40 e 15 dias), ocasionando perdas significativas à economia paulista (incluindo lucros cessantes), o que se depreende pela redução do fluxo mensal de veículos no sistema Anchieta-Imigrantes em até 18% no período, com evidentes efeitos negativos à atratividade turística do litoral e ao movimento de cargas de exportação no Porto de Santos. 79 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 os quais se destaca o desenvolvimento de competências para os seguintes objetivos: realizar continuamente avaliações de risco para planejamento e execução antecipada de obras e medidas mitigadoras; fornecer subsídios de curto prazo sobre a probabilidade ou iminência de desastres associados a escorregamentos naturais e induzidos; caracterizar rapidamente os efeitos de escorregamentos ocorridos; orientar a tomada de decisões em situações emergenciais; e fornecer bases técnicas para a execução de obras de ampliação ou reformulação da infra-estrutura instalada e, ainda, para o planejamento de novos empreendimentos. FOTO 1 Evolução de Escorregamento na Pista Sul da Via Anchieta (km 42) Estado de São Paulo – 1999 RECUPERAÇÃO DE ÁREAS DEGRADADAS Ecovias Ao mesmo tempo que, por um lado, evidencia-se a tendência da necessidade de melhoria dos sistemas de prevenção de impactos ambientais e de riscos associados a processos geológicos, de modo a mitigar problemas futuros, por outro, cresce a convicção de que é igualmente essencial corrigir o que se encontra degradado ou, ao menos, interromper os processos atuais de degradação. Por isso, outro tema que requer dedicação especial no campo da geotecnologia envolve a contribuição para a flagrante necessidade de equacionar a questão das áreas degradadas no Estado, particularmente das condições do meio físico. Isso deve ocorrer tanto nos casos que provocaram a contaminação de solos e águas subterrâneas pela disposição inadequada de resíduos industriais (como na Região Metropolitana de São Paulo, Cubatão e municípios vizinhos e no Vale do Paraíba) e domiciliares (como nas centenas de lixões existentes em grande parte dos municípios paulistas), como naqueles em que se proporcionou a geração de áreas instáveis sob o ponto de vista geológico-geotécnico a partir da construção de obras civis ou da urbanização. Também na agricultura, além da erosão, as atividades de irrigação têm gerado alterações na estrutura física dos solos e, portanto, requerem medidas de recuperação. Nos casos de áreas contaminadas por substâncias químicas perigosas à saúde humana, a contribuição da geotecnologia deve estar associada principalmente à avaliação detalhada das condições de degradação do meio físico, para auxiliar a definição da melhor alternativa tecnológica de remediação. Aplicações prévias desse procedimento são fundamentais em sítios abandonados e suspeitos de contaminação, nos quais se pretende instalar Fonte: IPT. Nota: O escorregamento ocorreu entre os dias 11 e 12.12.1999 e atingiu, em 23.12.1999, a pista sul interrompendo o tráfego de veículos. Em decorrência disso, é urgente a necessidade de se desenvolver um sistema de monitoramento que permita ao Estado, concessionárias de serviços públicos e demais usuários anteciparem-se eficazmente à ocorrência de escorregamentos naturais e induzidos e, uma vez ocorridos, evitar a ampliação de seus efeitos negativos. O monitoramento contínuo das encostas e adjacências da Serra do Mar, tendo como foco o problema dos escorregamentos e demais tipos de movimentos de massa, deve ser desenvolvido de modo a apoiar as ações do Estado e da sociedade na prevenção de desastres associados a escorregamentos, reduzindo os riscos para instalações e ocupação existentes e mantendo a comunidade permanentemente informada sobre os riscos, bem como propiciar a geração de bases técnicas para o ordenamento sustentável da ocupação e das obras de transposição da região. O estabelecimento operacional de um sistema de monitoramento em toda a extensão da Serra do Mar contempla alguns desafios tecnológicos fundamentais, entre 80 GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS cada de 70. As preocupações agora devem se voltar para a questão da estabilidade e segurança das barragens instaladas, sobretudo as mais antigas, o que poderá exigir a desativação de alguns empreendimentos. A tendência de construção de novas obras aponta para as de pequeno a médio porte, de acordo com necessidades regionais e de conformidade com as características dos terrenos, às vezes exigindo soluções não-convencionais. Comparativamente a países mais desenvolvidos, o Brasil carece ainda de obras de infra-estrutura, como o aprimoramento da malha viária, integrando linhas de transporte multimodais (rodovias, ferrovias e hidrovias), além de usinas hidrelétricas reversíveis e termelétricas no setor energético. Para essa última, começam a ser direcionados grandes investimentos, especialmente a partir da operação do Gasoduto Bolívia-Brasil, com incremento considerável de gás natural, devendo o consumo nacional passar dos atuais 1,5 milhão de m3/dia para cerca de 10 milhões de m3/dia em poucos anos. alguma forma de uso do solo, como projetos de conjuntos habitacionais ou áreas de lazer. Na origem do problema da degradação causada pela disposição inadequada de lixo está a dificuldade de localizar e estabelecer áreas adequadas, particularmente em razão da carência de terrenos disponíveis para tal finalidade. Isso coloca à geotecnologia o desafio adicional de tornar viáveis os locais comumente disponibilizados pelo poder público, ainda que, idealmente, possam haver outras áreas mais favoráveis, mas que muitas vezes encontram impeditivos de ordem legal ou socioambiental. A degradação decorrente de obras civis (barragens, linhas de transmissão e estradas), urbanização (especialmente na implementação de projetos de parcelamento do solo, como loteamentos e condomínios) e extração mineral, pode apresentar problemas mais restritos aos de natureza geológico-geotécnica, o mesmo ocorrendo na mineração, porque no Estado os sistemas de lavra e beneficiamento raramente envolvem processos químicos. Nas áreas instabilizadas, as possibilidades de contribuição estão relacionadas com o entendimento da dinâmica dos processos geológicos que geraram a degradação e, com base nisto, a indicação de soluções (obras, medidas) adequadas que deve ser feita em conjunto com a engenharia. A Demanda por Obras Urbanas A despeito das grandes obras, assim como das duplicações de rodovias que se desenvolvem em virtude da implementação do regime de concessões rodoviárias para empresas privadas, nota-se expressivo crescimento na demanda de obras de infra-estrutura em áreas urbanas, como túneis viários e metroviários, estacionamentos subterrâneos, canalizações de córregos, redes de abastecimento de água e esgoto, disposição de resíduos, melhorias em ferrovias urbanas, entre outras. Indícios recentes desse crescimento são os projetos e as obras metroviárias das cidades de Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, entre outras, bem como os do rodoanel metropolitano em torno da capital paulista. Outra evidência da crescente demanda por obras urbanas é a grande quantidade de edificações de shopping centers e condomínios verticais, bem como o desenvolvimento de megaempreendimentos imobiliários. Ilustram isso iniciativas na cidade de São Paulo, como as dos projetos Panamby, com 715 mil m2 nas margens do rio Pinheiros, e Maharishi São Paulo Tower, edifício com 510m de altura, 108 andares e 1,3 milhão de m2 de área construída e idealizado para remodelar a região do atual Parque Dom Pedro II, situado no centro da cidade de São Paulo, que traz também a tendência do aumento de exigências da qualificação dos materiais naturais de construção empregados, como as rochas ornamentais. REDUÇÃO DE IMPREVISTOS EM OBRAS CIVIS A última década do século XX representou um período de estagnação para o segmento de construção de grandes obras civis no país, como as usinas hidrelétricas e os reservatórios para abastecimento de água. Entre vários fatores, destaca-se a redução de investimentos em obras públicas de infra-estrutura, motivada em parte pelos débitos financeiros dos governos federal e estaduais, embora alguns Estados, como Minas Gerais, mantivessem investimentos em estudos geológico-geotécnicos para a construção futura de obras, o que se verificou especialmente no setor energético com as usinas hidrelétricas. A possibilidade de construir novas obras gigantescas no país, como as hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, tornase cada vez mais remota em face da dimensão dos custos e dos impactos ambientais que obras desse porte podem gerar. Além disso, os locais propícios para construção de grandes barragens foram reduzidos, como no Estado de São Paulo, onde se concluiu o último barramento de grande porte, a usina hidrelétrica de Porto Primavera, consolidando a convicção de que “fecha-se o ciclo do gigantismo das barragens” (Carvalho, 1996) no país, iniciado na dé- 81 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 - aplicação em mineração; O crescimento de obras urbanas geralmente está associado ao aumento populacional das cidades. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, na segunda metade do século XX a população nas cidades passou de 25% para 75%, sendo que no caso do Estado de São Paulo esse último número chegava a 93% na década de 90. Considerando-se ainda que, sob o ponto de vista econômico, 82% do faturamento nacional ocorre nas cidades (Paiva, 1991), reforça-se a tendência de aumento na demanda de obras de infra-estrutura em áreas urbanizadas, parte das quais devem exigir parcelas significativas de investimentos financeiros governamentais. A crescente necessidade de construção de obras de infra-estrutura em áreas urbanizadas parece ser mundial, conforme atestam as novas linhas executadas nos metrôs de Lisboa e de Paris, entre outros. Em conseqüência, notase o crescimento de trabalhos técnico-científicos sobre esse assunto apresentados em eventos internacionais, como se verificou no 31st International Geological Congress realizado em 2000. Um levantamento efetuado no planejamento da Fase III do PADCT, promovido pela Associação Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental – ABGE (Zuquette, 1996), a fim de identificar as necessidades requeridas pelas obras civis, registra as tendências internacionais para o início do século XXI das principais atividades de geologia aplicada à engenharia, a Geologia de Engenharia. O estudo, efetuado com base em consultas a profissionais de outros países, publicações de congressos internacionais e em artigos referentes ao assunto publicados em 50 periódicos do mundo, mostra a seqüência dos assuntos abordados e destaca o posicionamento principal do tema de pequenas e médias obras urbanas em relação a outros, como: - obras civis de pequeno a médio porte destinadas às mais diferentes finalidades, principalmente nos centros urbanos; - caracterização, classificação e recuperação de áreas degradadas; e - remoção de obras antigas, como usinas hidrelétricas que já ultrapassaram a vida útil. Nas atividades listadas, destaca-se também a modificação ocorrida nas últimas décadas do século XX, qual seja o direcionamento de atividades técnico-científicas em Geologia de Engenharia para questões ambientais e de uso do solo. No Brasil, a análise dessa transferência de atenções foi demonstrada por vários autores em congressos nacionais da ABGE e inclui informações dos congressos internacionais promovidos pela International Association of Engineering Geology and the Environment – IAEG (Tabela 1). TABELA 1 Comparação Quantitativa de Artigos Publicados em Congressos Nacionais (ABGE) e Internacionais (IAEG), segundo Áreas de Atuação Brasil – 1969-1990 Congressos ABGE (1969-1990) Congressos IAEG (1970-1990) Áreas de Atuação Número de Artigos % Número de Artigos % Total 594 100,0 1.349 100,0 Obras 340 57,0 639 47,0 Uso do Solo 107 18,0 385 29,0 125 21,0 168 13,0 15 3,0 63 5,0 Propriedades de Solos e Rochas Investigação Sismicidade 3 0,5 46 3,0 Hidrogeotecnia 3 0,5 17 1,0 Ensino 1 - 31 2,0 Fonte: Vaz, 1996. - estudos do meio físico voltados ao planejamento territorial e geoambiental; Melhoria das Investigações Prévias - intensificação da atuação junto a áreas de conhecimento em interface com a engenharia; O crescimento das metrópoles vem exigindo, cada vez mais, tanto da Geologia de Engenharia quanto da Engenharia Civil, o direcionamento de atividades para resolver problemas de interferências das obras com as construções pré-instaladas. Na Geologia de Engenharia, a grande evolução tecnológica ocorreu a partir da segunda metade da década de 50, principalmente para atender às necessidades da indústria de construção de hidrelétricas e de túneis, que exigia - métodos de investigação mais adequados, tanto em resultados como em custos; - desenvolvimento e aplicação de softwares; - disposição de resíduos e rejeitos; - geologia de engenharia e processos geomorfológicos; - impactos ambientais devidos à exploração e às atividades antrópicas; 82 GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS sérios prejuízos financeiros ao país, podendo às vezes colocar vidas humanas em perigo. Nesse aspecto, o desafio é auxiliar a elaboração de um plano de zoneamento do espaço subterrâneo, a fim de que os aparelhos de infraestrutura sejam posicionados de acordo com as características geológicas presentes no subsolo. O panorama dos desafios geotecnológicos associados às aplicações em obras civis no país, particularmente em áreas urbanas, revela os seguintes temas específicos: - correlação de ensaios SPT manual e mecânico; estudos para a quantificação de parâmetros geológicos para a engenharia, o desenvolvimento de ensaios tecnológicos em materiais de construção e a busca de soluções para situações inéditas de geologia (Ruiz, 1998). Alguns aspectos dessas atividades ainda merecem atenção, porém atualmente os principais desafios são diferentes daqueles do passado. Exemplo disso é o caso de aterros sanitários, que não podem ser construídos apenas com os tradicionais parâmetros geológicos e geotécnicos, sendo necessária a consideração simultânea de aspectos ambientais e sociais. O apoio fundamental que a geotecnologia pode oferecer às demandas urbanas é o levantamento geológico prévio e adequado do terreno (solo e subsolo), muitas vezes efetuado de modo precário ou mesmo negligenciado em importantes obras de engenharia, o que tem gerado diversos acidentes e colapsos durante as escavações (como ocorreu na abertura do túnel Tribunal de Justiça na cidade de São Paulo e em túneis das rodovias Carvalho Pinto no Vale do Paraíba e Fernão Dias na transposição da Serra da Cantareira). O subsolo não é homogêneo e nem as camadas geológicas são perfeitamente horizontais. Por isso, é necessário pesquisá-lo para conhecer as estruturas presentes, de maneira que a ocupação subterrânea, para instalação dos aparelhos de infra-estrutura, seja feita com maior segurança e menor custo. Convém salientar as dificuldades em mapear áreas densamente ocupadas, devido aos poucos e reduzidos locais com afloramentos dos maciços rochosos ou terrosos que compõem o subsolo a ser escavado. Trata-se de um dos principais desafios geotecnológicos, que deve buscar o entendimento do comportamento do terreno por meio de testemunhos de sondagens mecânicas e ensaios indiretos do tipo geofísico, muitas vezes realizados longe da área de interesse. A elaboração de um cadastro georreferenciado de informações e a montagem de um banco informatizado de dados geológico-geotécnicos, extraídos de sondagens executadas para diversos fins, como o da cidade de Londres, por exemplo, permitiria confeccionar a carta geotécnica detalhada da cidade, auxiliar na elaboração de projetos de obras urbanas e no zoneamento do subsolo. A ocupação desordenada do espaço subterrâneo da metrópole paulista, bem como de outras grandes cidades do Estado, com a instalação de inúmeros cabos (telefônicos, de TV e de transmissão de energia elétrica), dutos de gás, redes de água e esgotos, galerias de águas pluviais, entre outros, tende a produzir danos materiais e causar - ensaios in situ em furos de sondagens; - ensaios geofísicos in situ: aprimoramento das técnicas existentes e desenvolvimento de novos métodos com equipamentos de última geração; - desenvolvimento de técnicas para detecção de obstáculos; - caracterização geotécnica de perfis de alteração; - comportamento geotécnico de rochas brandas; - identificação de áreas para estocagem de GLP e resíduos radioativos; - estado de tensão e mecânica e hidráulica de fraturas em rochas; - performance dos equipamentos de escavação; - efeito de sismos sobre obras subterrâneas; - desenvolvimento de técnicas para melhorar o desempenho de maciços; - disposição de resíduos e rejeitos: projetos que envolvam todas as vertentes do problema; - elaboração do zoneamento geológico e geotécnico do subsolo urbano; e - informática: desenvolvimento de bancos de dados geotécnicos e de softwares. O grande desafio, contudo, tanto para as obras distantes dos centros urbanos como no interior deles, é a redução dos “imprevistos geológicos”, aos quais têm sido imputados os altos custos construtivos, mas que na verdade são provenientes de um planejamento da obra mal-efetuado ou de inadequada investigação e conseqüente desconhecimento das características geológicas do terreno. Para reduzir esses imprevistos, deve-se buscar o conhecimento do subsolo por meio de um plano adequado de investigação prévia, envolvendo desde os mapeamentos geológico-geotécnicos, passando pelas tradicionais sondagens 83 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 USO SUSTENTÁVEL DE RECURSOS MINERAIS mecânicas até os novos métodos de prospecção com ensaios in situ em furos e ensaios geofísicos efetuados na superfície do terreno. Nesta transição de século, a mineração apresenta profundas alterações no cenário mundial, cujos principais desdobramentos são a perda da importância estratégica das chamadas commodities minerais metálicas na economia global e a necessidade da incorporação dos princípios de sustentabilidade ambiental no aproveitamento dos recursos minerais. Uma das tendências marcantes no setor mineral é o novo formato esboçado no mercado internacional, com a mudança dos pólos mundiais de mineração, pela progressiva transferência de empreendimentos dos países desenvolvidos para o Terceiro Mundo. Isso vem ocorrendo sobretudo em função das severas restrições ambientais que a atividade de mineração vem sofrendo naqueles países e do perfil de investimentos de suas economias, canalizados hoje nas indústrias emergentes de alta tecnologia. Desdobramentos dessas mudanças estruturais da mineração no mundo afetaram o Brasil, sobretudo nos anos 90. Importantes oportunidades de ampliação e diversificação da produção mineral estão ocorrendo, em virtude do citado redirecionamento de capitais da mineração para países em desenvolvimento. Alia-se a esse fato, a acentuada expansão do consumo doméstico de bens minerais, em particular de substâncias não-metálicas, deflagrada, por sua vez, pelo crescimento da indústria nacional, intensificação do processo de urbanização e construção de obras de infra-estrutura. Não menos importantes são os desafios de modernização tecnológica e gerencial colocados ao setor mineral brasileiro, diante da mudança de paradigma sobre a forma de inserção da atividade na economia atual e em particular quanto à necessidade de seu desenvolvimento em bases ambientalmente sustentáveis, o que pode ser sumarizado nas seguintes perspectivas de temas de desenvolvimento técnico-científico: otimização do aproveitamento dos minérios, da lavra à industrialização, com a maximização do aproveitamento de reservas, redução da geração de resíduos, melhoria na qualidade dos produtos minerais e aprimoramento do controle e recuperação ambiental dos empreendimentos; redução de consumo pela reciclagem, uso de rejeitos industriais e de mineração, e desenvolvimento de substitutos (naturais ou sintéticos) de melhor desempenho nos processos industriais; e aperfeiçoamento dos processos de aplicação in natura e de transformação industrial para CONSERVAÇÃO E PROTEÇÃO DE RECURSOS HÍDRICOS A situação dos recursos hídricos no território paulista, exposta por casos críticos como o da Região Metropolitana de São Paulo, exibe um cenário extremamente preocupante sobre a quantidade e qualidade das águas no Estado. No que se refere aos mananciais superficiais, o controle da erosão dos solos, de modo que evite o assoreamento de reservatórios e represas e a conseqüente perda da capacidade de armazenamento, mostra-se como a principal tendência de contribuição geotecnológica. Há, no Estado, algumas situações críticas, como a do reservatório Paiva Castro, no município de Mairiporã, que fornece água para a cidade de São Paulo e tem perdido parte significativa do volume útil em razão da acumulação de sedimentos em seu fundo. Outro aspecto se relaciona com a qualidade da água, sobretudo em regiões industrializadas e urbanizadas, pois os efluentes produzidos na sua bacia de contribuição, ao atingir os reservatórios, carreiam contaminantes que podem ser adsorvidos aos sedimentos acumulados no fundo, tornando-os fonte permanente de poluição. Esse problema pode ser avaliado com o apoio de estudos geofísicos e geoquímicos. Quanto às águas subterrâneas, sabe-se que o Estado possui grande potencialidade, e os desafios maiores prendem-se ao aumento do conhecimento dos aqüíferos regionais e seu gerenciamento (incluindo as fontes de produção de águas minerais), o que pode ser obtido por meio de caracterização hidrogeológica dos mananciais. O conhecimento dos aqüíferos é fundamental para o estabelecimento de estratégias de explotação e conservação, bem como para a definição de zonas de proteção em face de riscos de poluição provenientes do uso de agrotóxicos, vazamentos de postos de abastecimento de combustíveis, depósitos de lixo, além de inúmeras outras possíveis fontes de poluição intrinsecamente associadas às atividades antrópicas. Outro aspecto importante é a necessidade de redução das perdas em redes de distribuição e abastecimento ocasionadas por vazamentos, cuja detecção em áreas urbanas deve ser cada vez mais apoiada pelo desenvolvimento de métodos geofísicos adaptados às condições locais. 84 GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS melhoria de desempenho, redução de perdas e, conseqüentemente, diminuição do consumo de insumos minerais. em bases ambientalmente sustentáveis e do aprimoramento tecnológico e controle ambiental da mineração instalada. A extração de bens minerais ocorre na maior parte dos municípios paulistas, concentrando-se na produção de matérias-primas de uso na construção civil (areia, argila, brita, calcário para cimento e cal, e rochas para revestimento) e de insumos para agricultura (rochas calcárias e fosfáticas), além de minerais industriais diversos, utilizados pelas indústrias de transformação (metalúrgica, de alimentos, cerâmica, entre outras), e materiais de empréstimo (cascalho e saibro). O volume da produção desses bens minerais no Estado é tão expressivo que, ainda que São Paulo não seja considerado um Estado tradicionalmente minerador, insere-se entre os grandes produtores de bens minerais do país, a partir da extração, em território paulista, de cerca de 20 variedades de minerais industriais (Tabela 2 e Gráfico 1). Perfil da Mineração Paulista A mineração no Estado de São Paulo retrata claramente as tendências e desafios preconizados para o setor em âmbito nacional: entrada de empreendedores multinacionais nas áreas extrativas e de transformação, abrangendo indústrias de agregados – cimento, argamassa, areia industrial e vidro –, matérias-primas sintéticas e produtos cerâmicos; expansão do consumo de bens minerais e do mercado produtor paulista, envolvendo sobretudo os minerais industriais considerados de uso social, que incluem, basicamente, as matérias-primas para construção civil e agricultura, entre elas areia, brita, argilas e calcário; e necessidade do planejamento do desenvolvimento setorial TABELA 2 Principais Substâncias Minerais Não-Metálicas Produzidas no Estado Estado de São Paulo – 1996 Valor Anual Substância Mineral R$ x 10 Produção Total Pedras Britadas Areia e Cascalho Calcário Argilas Comuns e Plásticas Água Mineral Areia Industrial Rocha Fosfática Caulim Dolomito Filito Granito Argilas Refratárias Talco Quartzito Bentonita e Argila Descorante Turfa Bauxita Feldspato Calcita Outras Rochas Naturais Ardósia 6 % Total Quantidade (t x 103) 1.259,00 427,5 337,5 154,7 124,1 81,7 43,0 25,1 19,2 100,0 33,9 26,8 12,3 9,8 6,5 3,4 2,0 1,5 (1) 33.313,8 (1) 48.305,8 15.350,7 12.755,1 (2) 3,35 3.438,4 3.713,2 233,4 16,0 11,6 6,8 3,6 2,7 1,8 1,6 1,0 0,7 0,3 0,05 0,01 0,006 1,3 0,9 0,5 0,2 0,2 0,1 0,1 < 0,1 < 0,1 < 0,1 < 0,1 < 0,1 < 0,1 536,1 867,3 (1) 11,8 167,1 58,5 265,9 23,2 22,7 15,8 39,2 4,1 (1) 0,5 0,7 Setor Industrial de Consumo Construção civil Construção civil Cimento, Cal, Corretivo Agrícola, Siderurgia, Vidro e Cerâmica Cerâmica e Cimento Bebidas Fundição, Vidro, Cerâmica e Tintas e Vernizes Fertilizantes e Ácido Fosfórico Cerâmica, Papel e Celulose, Tintas e Vernizes, Produtos Farmacêuticos e Veterinários, Fertilizantes, Vidro, e Borracha Corretivos Agrícolas, Siderurgia, Tintas e Vernizes, e Vidro Cerâmica, Construção Civil, e Defensivos Agrícolas Construção Civil Cerâmica Cerâmica, Defensivos Agrícolas, Borracha, e Tintas e Vernizes Siderurgia, Tintas e Vernizes, Abrasivos, Perfumes, Sabões e Velas, e Cerâmica Fundição, Descoramento/Recuperação de Óleos, e Fertilizantes Agricultura Cerâmica e Sulfato de Alumínio Cerâmica, Vidro, e Tintas e Vernizes Tintas e Vernizes, Plásticos, Tapetes e Carpetes, Vidro, Borracha, e Cerâmica Construção Civil Construção Civil, Cerâmica, e Produtos Asfálticos Fonte: Brasil, 1997; Sintoni e Tanno, 1997; Cabral e Almeida, 1999. (1) Unidade expressa em metros cúbicos. (2) Unidade expressa em bilhões de litros. 85 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 GRÁFICO 1 Principais Substâncias Minerais Não-Metálicas Produzidas no Estado Estado de São Paulo – 1996 Fonte: Brasil, 1997. de extração, qualidade dos produtos, índices de produtividade, grau de mecanização, bem como ao atendimento às exigências da legislação mineral e ambiental e, conseqüentemente, quanto ao controle ambiental dos empreendimentos. Nesse cenário, a falta de ações de planejamento por parte dos poderes públicos e a carência de adoção de procedimentos técnicos adequados de pesquisa geológica e lavra têm gerado conflitos da atividade com outras formas de uso do solo, em muitos casos com desconforto e riscos às comunidades circunvizinhas. Aliado a isso, a falta de controle e a não-recuperação ambiental satisfatória das áreas mineradas têm causado uma série de outros impactos indesejáveis ao meio ambiente, como alteração da paisagem, desmatamentos, deflagração de processos de erosão e assoreamento, emissões de ruídos e vibrações, e poluição do ar e da água. Por outro lado, sendo a mineração uma atividade econômica fundamental que compõe a base de importantes cadeias produtivas do Estado, caso dos setores de construção civil, indústria cerâmica, cimenteira e vidreira e da agricultura, a dificuldade no controle da disponibilidade futura de insumos minerais coloca em risco a manutenção equilibrada dessas importantes atividades econômicas. Sendo assim, estabelece-se um binômio complexo e polêmico nas relações do desenvolvimento da mineração Assim, dados oficiais registram que são alcançados valores de produção da ordem de R$ 1,35 bilhão/ano, o que corresponde a 9,5% do montante da produção mineral brasileira, ocupando o terceiro lugar entre os estados produtores, apenas suplantado pelo Rio de Janeiro (que inclui o petróleo) e Minas Gerais. Nesse âmbito, segundo o Anuário Mineral Brasileiro (Brasil, 1997), os não-metálicos perfazem mais de 93% da produção mineral paulista, o que corresponde a cifras anuais superiores a R$ 1,26 bilhão. O restante refere-se à pequena produção de hidrocarbonetos na Bacia de Santos. Considerando a inconsistência e defasagem dos dados estatísticos oficiais e, ainda, a presença de uma parcela considerável de lavras em situação legal irregular, admite-se que o volume efetivamente produzido no Estado supere em 1,5 a 2 vezes o valor oficialmente registrado. A aptidão geológica de determinadas áreas, bem como a combinação, em certas regiões, de condicionantes geológicos para ocorrência de jazidas de minerais industriais, principalmente os de baixo valor agregado, com crescimento urbano e industrial, têm propiciado a nucleação da atividade de mineração em zonas específicas no Estado, promovendo a formação de pólos produtores regionais (Cabral Jr. e Almeida, 1999) Mapas 1 e 2. Essa produção é proveniente de cerca de 3 mil frentes de lavra, com características distintas quanto aos volumes 86 GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS MAPA 1 Pólos Produtores de Bens Minerais de Uso na Construção Civil Estado de São Paulo – 2000 Areia aaaaaaaaaaaaaa a a a a aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaa a a a a aa a aaaaaaaaaaa a a aaaaaaaaaaaaaaaa a aa a a a a a a aaaaaa a a aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aa a a a aaaaaaa a a a a a a a a a a a a a a aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa Brita aaaaaaaa a aaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaa aaaa aaaaa a a a aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa a a a a a Fonte: Modificado de Mello et alii,1997 e Almeida et alii, 2000. 87 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 MAPA 2 Pólos Produtores de Bens Minerais de Uso na Construção Civil Estado de São Paulo – 2000 Argila (cerâmica vermelha) aaaaa aaaaa aaaaa aaaaa aaaaa aaaaa aaa aaaaa aaa aaa aaa aaa aaa aaaaaa aaaaaaaaa aaaaaa aaaaaa aaaaaa aaaaaa aaaaaa aaaaaa aaaaaa aaaaaaa aaaaaaa aaaaaaa Calcário (cimento e cal) Fonte: Modificado de Tanno et alii, 1994 e Mello et alii, 1997. 88 GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS recursos minerais, com o desenvolvimento de técnicas e modelos exploratórios e de pesquisa mineral aplicáveis às condições do território paulista, bem como a melhoria da qualidade dos produtos minerais ofertados ao mercado, via aprimoramento de tecnologia de lavra e beneficiamento e por meio do desenvolvimento de substitutos de melhor performance na aplicação industrial (economia de consumo). Ainda como linhas prioritárias de pesquisa e desenvolvimento para otimização do uso de recursos minerais e redução de impactos e passivos ambientais, destacam-se: o aproveitamento de resíduos industriais e rejeitos de mineração, ressaltando-se, no caso de São Paulo, a reciclagem de entulho da construção civil e a aplicação industrial de finos de portos de areia, pedreiras e serrarias de rocha; desenvolvimento de tecnologias de controle e recuperação ambiental de áreas mineradas, em conformidade com as condições socioeconômicas, culturais e ambientais da circunvizinhança; e estabelecimento de indicadores geoambientais para controle de impactos e reabilitação das áreas degradadas. Ressalta-se que a promoção do desenvolvimento sustentável da mineração requer uma ação tripartite, envolvendo o setor produtivo, agentes do governo (instâncias de gestão e planejamento, órgãos de fomento e de crédito) e centros de pesquisa. Nesse contexto, a organização de um suporte tecnológico mais efetivo às indústrias extrativa e de transformação agregada pode se dar pela articulação de uma organização institucional, congregando os principais centros de pesquisa e universidades na área de geociências, engenharia e economia mineral. Suas ações abrangeriam a coordenação do desenvolvimento das pesquisas dirigidas ao setor, as atividades de treinamento e disseminação, particularmente para a pequena e a média mineração, e a assessoria técnica diretamente nas minas e “chãos de fábricas” (segmentos industriais agregados, como centrais moageiras, olarias, cerâmicas, entre outras). paulista em face do desafio de sua própria sustentabilidade: assegurar o suprimento futuro de matérias-primas minerais e garantir a qualidade das condições ambientais. A solução dessa equação passa necessariamente pela promoção de ações e projetos setoriais dirigidos ao planejamento, ordenamento e aprimoramento tecnológico da atividade de mineração no Estado. Desenvolvimentos Tecnológicos A perspectiva de contínua expansão da mineração de São Paulo, cuja parcela significativa do setor produtivo apresenta defasagens tecnológicas e tratamento inadequado da questão ambiental, associada à necessidade de políticas governamentais voltadas ao seu desenvolvimento em bases sustentáveis, requer diretrizes gerenciais e programas tecnológicos específicos, dirigidos ao aproveitamento racional dos recursos minerais no Estado. Os desenvolvimentos exigem, inicialmente, a promoção continuada da caracterização da estrutura do setor mineral do Estado, seus mercados produtor e consumidor, por meio da realização de levantamentos geológicos e estudos de economia e engenharia mineral, fundamentais à elaboração de políticas dirigidas ao aprimoramento tecnológico das cadeias produtivas das indústrias extrativas e de transformação, em especial das micro e pequena empresas, na garantia da otimização do aproveitamento dos bens minerais, diminuição dos impactos ambientais e na conservação estratégica dos ecossistemas primitivos intactos do território paulista. A formulação e implementação de planos diretores de mineração no contexto de planos regionais/municipais de desenvolvimento, como principal instrumento de planejamento e gestão da atividade pelos poderes públicos, também estão entre os desenvolvimentos de base necessários, assim como a montagem e implantação de sistema informatizado de registro, acompanhamento e fiscalização da indústria mineral de São Paulo, em convênio com o Governo Federal (Departamento Nacional da Produção Mineral – DNPM/Ministério das Minas e Energia – MME). Esse sistema deve compor uma base de dados digitais para monitoramento da mineração, como instrumento de suporte às ações de planejamento do Estado, e constituir uma plataforma de informações ao setor produtivo (Sintoni e Obata, 1999). Incluem-se como importantes desafios técnico-gerenciais, a ampliação e diversificação da disponibilidade de CONCLUSÕES Cabe, enfim, sintetizar os objetivos gerais que se apresentam à geotecnologia, ante as demandas e perspectivas colocadas pelo desafio do desenvolvimento sustentável no Estado de São Paulo: - proporcionar aos órgãos governamentais a aquisição de informações geológico-geotécnicas efetivamente úteis ao planejamento e gestão do uso do solo urbano e do rural por parte dos órgãos competentes, com ênfase naquelas 89 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS que se prestam objetivamente a identificação, avaliação e monitoramento de processos geológicos induzidos, sobretudo os erosivos e de escorregamentos; - avaliar áreas de riscos geológicos e prever a ocorrência de acidentes, de maneira que os órgãos governamentais e de defesa civil disponham dos meios técnicos necessários para o gerenciamento desses riscos e para a implementação de medidas preventivas e corretivas; - caracterizar a qualidade dos solos e das águas subterrâneas em áreas degradadas, especialmente no contexto de disposição de resíduos industriais e domiciliares, fornecendo aos promotores das obras e medidas corretivas as informações sobre as condições existentes e as alternativas tecnológicas para recuperação; - aprimorar a qualidade das investigações geológicogeotécnicas em obras de engenharia para reduzir a ocorrência dos chamados “imprevistos geológicos”, sobretudo em escavações subterrâneas e em áreas urbanas; ALMEIDA, A.S.; SARAGIOTTO, J.A.R. e CABRAL Jr., M. “Mercado de brita na Região Metropolitana de São Paulo: situação atual e perspectivas”. Areia e Brita. São Paulo, Anepac, n.9, jan.-mar. 2000, p.26-30. BRASIL. Ministério de Minas e Energia – DNPM. Anuário mineral brasileiro. Brasília, 1997, (www.dnpm.org.br). CABRAL Jr., M. e ALMEIDA, E.B. “Geologia e principais aplicações dos minerais industriais no Estado de São Paulo”. In: Encontro de Mineradores e Consumidores, VII. Rio Claro – SP. Anais... São Paulo, ABC, 1999, p.1-3. CARVALHO, E.T. de. “Linhas de pesquisa em Geologia de Engenharia”. Relatório final sobre o diagnóstico da sub-área de Geologia de Engenharia. São Paulo, Projeto PADCT-CNPq, ABGE, 1996, p.30-32. CORDANI, U.G. “Geosciences and development: The role of the earth sciences in a sustainable world”. Ciência e Cultura Journal of the Brazilian Association for the Advancement of Science. São Paulo, v.50, n.5, septemberoctober 1998, p.336-341. MELLO, I.S. de C.; CABRAL Jr., M.; MOTTA, J.F.M. e CUCHIERATO, G. “Pólos produtores de bens minerais de uso na construção civil no Estado de São Paulo”. V Simpósio de Geologia do Sudeste. Atas... Penedo, SBG, 1997, p.445-446. PAIVA, G. de. “Importância do mapeamento geológico urbano do Brasil”. Revista Escola de Minas. Ouro Preto, v.44, n.3 e 4, 1991, p.121-122. RUIZ, M.D. “Evolução tecnológica da Geologia de Engenharia no período 19561970”. ABGE 30 Anos. São Paulo, ABGE, 1998, p.11-19. - avaliar a disponibilidade e qualidade dos recursos hídricos subterrâneos e propiciar aos órgãos governamentais, produtores, usuários e consumidores as informações e orientações técnicas necessárias para aumentar a oferta de água e promover a proteção dos mananciais; SINTONI, A. e OBATA, O.R. “Sistema estadual de registro, acompanhamento e fiscalização das atividades de mineração”. VI Simpósio de Geologia do Sudeste. Boletim de Resumos. São Pedro, SBG. 1999, p.148. SINTONI, A. e TANNO, L.C. “Minerais industriais e de uso social: panorama do mercado consumidor no Brasil”. Brasil Mineral. São Paulo, n.147, 1997, p.34-39. - avaliar e propiciar o aprimoramento da disponibilidade de recursos minerais, fornecendo aos órgãos governamentais, produtores e consumidores as informações e orientações técnicas necessárias à garantia de suprimento regular desses recursos e à redução do consumo de insumos por meio de reciclagem, uso de rejeitos e desenvolvimento de substitutos. TANNO, L.C.; MOTTA, J.F.M. e CABRAL Jr., M. “Pólos de cerâmica vermelha no Estado de São Paulo: aspectos geológicos e econômicos”. Congresso Brasileiro de Cerâmica. Anais... Rio de Janeiro, ABC, 1994, p.378-383. VAZ, L.F. “Perspectivas da Geologia de Engenharia para o ano 2000”. Relatório final sobre o diagnóstico da sub-área de Geologia de Engenharia. São Paulo, Projeto PADCT-CNPq, ABGE, 1996, p.46-49. ZUQUETTE, L.V. “Relatório final sobre o diagnóstico da sub-área de Geologia de Engenharia”. In: Relatório final sobre o diagnóstico da sub-área de Geologia de Engenharia. São Paulo, Projeto PADCT-CNPq, ABGE, 1996, p.1-19. 90 PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA JOSÉ GOLDEMBERG Professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo Resumo: É feita uma análise do perfil de consumo de energia no Brasil e as suas perspectivas para as próximas décadas. Com essa abordagem, verifica-se que energias renováveis representam 58% do consumo, sendo que o restante provém de combustíveis fósseis, com riscos de exaustão nos próximos 20 anos. Decorre daí a necessidade de acelerar os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento para enfrentar esta situação atuando em três frentes: eficiência energética; aumento da participação de fontes renováveis de energia; e novas tecnologias. Palavras-chave: fontes renováveis; eficiência energética; novas tecnologias; perfil de consumo de energia. E nergia é um ingrediente essencial para o desenvolvimento. Basta comparar o consumo per capita nos países industrializados da OCDE de 5,5 TEP per capita por ano com o consumo brasileiro de 1,39 TEP per capita por ano em 1998 para se dar conta do longo caminho que o país tem a percorrer. O perfil de consumo de energia da OCDE e o do Brasil são, contudo, substancialmente diferentes. Enquanto na OCDE combustíveis fósseis representam 81% do consumo, no Brasil, significam apenas 42% (Gráfico 1). O consumo de energia no mundo cresce cerca de 2% ao ano e deverá dobrar em 30 anos se prosseguirem as tendências atuais. O crescimento não é uniforme: nos países industrializados é de apenas cerca de 1% ao ano, mas chega a 4% ao ano nos países em desenvolvimento que estão crescendo rapidamente e que vão dominar o cenário mundial no que se refere ao consumo de energia dentro de 15 anos. Cerca de 400 bilhões de dólares são investidos, por ano, neste setor. As principais conseqüências desta evolução são o aumento do consumo de combustíveis fósseis e a resultante poluição ambiental em todos os níveis – local regional e global. Cerca de 85% do enxofre lançado na atmosfera (principal responsável pela poluição urbana e pela chuva ácida) origina-se na queima de carvão e petróleo, bem como 75% das emissões de carbono (responsável pelo “efeito estufa”). O consumo per capita de energia no Brasil tem crescido a uma taxa anual de 2,2% nos últimos anos, mas o país não precisa repetir a trajetória de desenvolvimento seguida pelos países que são hoje industrializados, nos quais o elevado consumo de energia de origem fóssil resultou em sérios problemas ambientais. No Brasil, 78,5% da energia consumida é produzida internamente e o restante é importado, principalmente petróleo e gás natural. A importação de petróleo e derivados representa 16,3% da oferta interna total de energia. A evolução do consumo de energia elétrica entre 1970 e 1998 mostra que o consumo de petróleo e o de lenha vêm se reduzindo em termos percentuais. Em contrapartida, estão crescendo o consumo de cana-de-açúcar e o de energia hidroelétrica (Gráfico 2). A importação de petróleo, que representava cerca de 50% no passado, tem caído lentamente e se encontra hoje no patamar de 30%. Fontes renováveis de energia significam cerca de 58% do consumo, em 1998, e sua percentagem tem se mantido aproximadamente constante desde 1970. Porém, a situação das reservas brasileiras de combustíveis fósseis não é encorajante (Tabela 1). Para o petróleo e gás, estas reservas não são superiores a 20 anos, mesmo considerando os recursos medidos e reservas estimadas. O Brasil encontra-se numa situação em que, por um lado, o consumo de energia está crescendo, o que levará 91 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 GRÁFICO 1 GRÁFICO 2 Perfil do Consumo de Energia OECD e Brasil – 1998 Consumo de Energia, segundo Fontes Brasil – 1970-1998 OECD aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaaa aaaaaaaaa População: 1,0 bilhão Consumo Total: 5.503.00 x 103 TEP Consumo per capita: 5,5 TEP Brasil aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaa aaaa aaaa aaaa aaaa aaaa aaaa aaaa aaaa aaaa Fonte: Ministério de Minas e Energia, 1999. certamente à exaustão rápida das reservas de combustíveis fósseis, e, por outro, o aumento do consumo agrava os problemas ambientais. A pergunta a se fazer é: existem soluções técnicas para este dilema? A resposta é afirmativa e as soluções são basicamente as seguintes: - melhorar a eficiência com que os combustíveis fósseis são usados, o que reduziria o seu uso e, conseqüentemente, prolongaria a vida das reservas. Com isso, seriam reduzidas as emissões anuais de poluentes. Isto já está ocorrendo porque inúmeros progressos tecnológicos estão sendo feitos o tempo todo, mas estes progressos não têm bastado para diminuir suficientemente a taxa de crescimento com que os combustíveis fósseis são usados; - aumentar a participação de fontes renováveis de energia, sobretudo as modernas, como a energia dos ventos, células fotovoltáicas e combustíveis obtidos da biomassa, como etanol no Brasil. Hoje, estas fontes representam apenas 2% do consumo mundial; População: 160 milhões Consumo Total: 250.088 x 103 TEP Consumo per capita: 1,39 TEP Fonte: UNDP/DESA/WEC, 2000; Ministério de Minas e Energia, 1999. TABELA 1 Produção e Recursos de Energia Brasil – 1998 Produção e Recursos de Energia Produção de Energia Primária (x103 TEP) Recursos Medidos (RM) RM/Produção (em anos) Reservas Estimadas (RE) RE/Produção (em anos) Recursos Totais (1) (RT) RT/Produção (2) (em anos) Petróleo 49.571 513.880 10,4 499.124 10,1 1.017.030 20,5 Gás Natural Carvão 10.443 120.400 11,6 980.200 9,4 218.671 21,0 2.030 80.175 39,5 175.910 86,6 256.137 126,1 - acelerar o desenvolvimento e a adoção de novas tecnologias, como células de combustíveis baseadas no uso de hidrogênio, o uso “limpo” de carvão e, eventualmente, energia nuclear em formas que evitem os problemas criados no presente. Fonte: Ministério de Minas e Energia, 1999. (1) RT = recursos medidos + reservas estimadas. (2) Assumindo que o consumo e as reservas medidas se mantenham constantes. 92 PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA Setor Industrial Em todas estas opções, Pesquisa e Desenvolvimento tem um papel relevante. Há diversas “tecnologias horizontais” de conservação de energia que são empregadas em muitas indústrias, podendo ser de dois tipos: componentes básicos dos equipamentos em todas as áreas da indústria; e tecnologias para aplicações individuais. Na categoria de componentes básicos estão incluídos: - motores/engrenagens – desenvolvimento de controladores de motor mais rápidos e mais inteligentes (com novos sistemas eletrônicos de potência); O USO EFICIENTE DE ENERGIA A maioria dos equipamentos e processos utilizados nos dias de hoje nos setores de transporte, industrial e residencial foi desenvolvida numa época de energia abundante e barata e quando as preocupações ambientais ou não existiam ou eram pouco compreendidas. Estes são os motivos pelos quais haja tantas oportunidades para melhorias na economia de energia, seja para aumentar a competitividade das empresas, seja para melhorar a imagem pública de indústrias que deixaram de ser poluentes. Nos países em desenvolvimento, a indústria foi estabelecida tardiamente: nas antigas colônias, a maior parte dos produtos industrializados era importada da Europa ou dos EUA, com exceção de alguns bens produzidos localmente, sobretudo por métodos artesanais. Ao longo dos anos, à medida que os mercados locais cresciam, máquinas ou fábricas inteiras foram transferidas para os países em desenvolvimento e serviram como a base para o desenvolvimento local. Geralmente, o equipamento era usado ou obsoleto, mas ainda assim servia à finalidade de produzir bens de consumo de baixa qualidade. Na maioria dos casos, o equipamento era ineficiente e apenas recentemente as melhorias feitas nos países industrializados começaram a chegar aos países em desenvolvimento. A integração de muitos deles na economia internacional e o aumento no comércio e nas exportações estão levando a uma modernização do desenvolvimento industrial de muitos desses países. Atualmente a eficiência global de conversão de energia primária em energia útil é de aproximadamente um terço (33%). Em outras palavras, dois terços da energia primária são dissipados no processo de conversão, principalmente sob a forma de calor a baixas temperaturas. Nos próximos 20 anos, a quantidade de energia primária poderá ser reduzida de 25% a 35% nos países industrializados com ganhos econômicos significativos. Reduções de mais de 40% poderão ser obtidas na economia em transição da Europa Oriental e ex-União Soviética. Nos países em desenvolvimento, que se caracterizam por um alto índice de crescimento econômico e também por uma grande presença de equipamentos obsoletos, os potenciais de melhora são ainda maiores, entre 30% e 45%. A seguir, apresentam-se os principais ganhos que poderão ser obtidos em diversas áreas. - caldeiras para a produção de vapor ou de água quente (usando queimadores de pequena emissão); - compressores com superisolamento contra barulho para uso direto nos lugares de trabalho; - sistemas de manejo energético para processos industriais e construções. Na categoria de tecnologias com aplicações individuais, podem ser incluídos: - controle de processo (novos sensores, microeletrônica); - separação de substâncias a baixas temperaturas (por meio de membranas); - processamento a laser (têmpera, corte e perfuração de buracos no aço); - aquecimento infravermelho, secagem; - aquecimento solar para a indústria (especialmente nos climas mais quentes). Setor Residencial Aproximadamente 20% de toda a energia usada nos países da União Européia é consumida em casas e apartamentos, sendo que a situação não é muito diferente no resto do mundo. Nos países industrializados, onde o problema de moradia da população já foi em boa parte resolvido, a tarefa é, principalmente, readaptar as construções existentes, o que poderá significar considerável economia de energia. Nos países em desenvolvimento, cujo problema é diferente porque há um enorme “déficit” de moradias, grandes economias podem ser obtidas melhorando o projeto e a construção de novos prédios. Essa é uma área muito promissora, pois a experiência mostra que para construir um prédio mais eficiente custa apenas um pequeno percentual a mais do que um convencional. No aspecto regulatório, ações importantes podem ser tomadas, tais como: 93 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 - códigos de construção para os prédios existentes; - sistemas avançados de controle de luz mais próxima. - códigos de construção para novos prédios (bem rigorosos, pois seria mais caro retardar sua introdução e depois adicionar melhorias comparáveis em prédios existentes); Aquecimento ambiental e água quente são freqüentemente produzidos em conjunto. Assim, as técnicas para melhorar a eficiência podem ser aplicadas simultaneamente a ambos. Exemplos são os seguintes: - aquecedores de água com condensadores; - certificados energéticos para os prédios; - incentivos financeiros (redução de impostos, financiamento) para prédios energeticamente eficientes. - aquecedores solares de água; - aquecimento distrital; Na Suíça, por exemplo, os prédios comerciais construídos atualmente consomem, por metro quadrado, apenas metade da energia consumida 20 anos atrás, o que foi obtido graças a códigos de construção mais rigorosos. No que concerne a tecnologias específicas, há três áreas principais de ação: aparelhos domésticos, iluminação e aquecimento ambiental. Os aparelhos domésticos, especialmente os elétricos, estão sendo cada vez mais utilizados. Há, portanto, amplas oportunidades para melhorias técnicas em cada uma das seguintes áreas: - refrigeração (incorporando isolamento livre de CFC que é mais eficiente, usando aerogel, e painéis cheios de gás e placas de vácuo); - bombas térmicas avançadas com custo competitivo para fornecer aquecimento e refrigeração; - reaproveitamento do calor desperdiçado por condicionadores-de-ar, sistemas de refrigeração, etc., para aquecimento local de água. Transporte O setor de transporte representa 22% do consumo total de energia dos países industrializados, principalmente pelos automóveis. Embora este seja o setor de crescimento mais rápido, a taxa de aumento na demanda por energia no transporte rodoviário tem diminuído na maioria destes países desde o final da década de 60. Isso reflete tanto uma melhoria na eficiência dos veículos quanto uma redução no número de automóveis por moradia. Contrastando com isso, o número de moradias com dois ou mais automóveis cresceu sistematicamente nas últimas décadas. Nos países em desenvolvimento, o transporte representa 14% do consumo total de energia, mas o número de automóveis é de aproximadamente 20 por 1.000 pessoas, comparado com 600/1.000 pessoas nos países industrializados. Se a utilização dos automóveis, em todo o mundo, alcançasse os níveis dos países da OECD, os problemas ambientais tornar-se-iam insolúveis. O congestionamento e o uso de terra para as estradas imporiam tensões adicionais em diversos países como, por exemplo, na China. As soluções técnicas para melhorar a eficiência e reduzir as emissões do setor de transporte são: - melhoria na eficiência do motor, aumentando o desempenho com o qual a energia no combustível é convertida em trabalho útil para mover o automóvel. A eficiência do motor é o produto de dois fatores: eficiência térmica, que reflete quanta energia de combustível é convertida em trabalho para mover o motor e o veículo; e a eficiência mecânica, que representa a fração deste trabalho que é transmitido pelo motor ao veículo; - novos tipos de aparelhos para cozinhar (microondas avançados, indução eletromagnética) e isolamento do forno melhorado; - aquecedores de madeira eficientes; - máquinas de lavar modernas (exigindo menos água para aquecer, temperaturas de lavagem menores e secagem mecânica a velocidades de rotação maiores, que reduzem as necessidades térmicas); - aparelhos de televisão e computadores de baixo consumo de energia; - equipamentos de escritório (aparelhos de fax com perdas reduzidas em standy-by). A iluminação é uma área na qual o potencial para se economizar energia pela readaptação de velhos sistemas é da ordem de 60%. São possíveis até economias maiores com a incorporação de “arquitetura solar passiva” no projeto de novos prédios. As áreas específicas são: - lâmpadas e refletores de alta eficiência; - controle automático da iluminação artificial como uma função da luz do dia; - sensores que controlam a iluminação de um ambiente de acordo com a sua ocupação; 94 PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA - uso de combustíveis alternativos à gasolina e ao óleo diesel. TABELA 2 Características Mundiais das Tecnologias de Energia Renovável 1994 A eficiência térmica pode ser melhorada, em princípio, aumentando a taxa de compressão dos motores a gasolina, passando dos atuais nove para cerca de 15, o que resultaria numa melhora da eficiência térmica nominal de aproximadamente 15%. Na prática, os ganhos são menores não apenas porque o atrito aumenta com a taxa de compressão, mas também porque crescem os efeitos de parede (esfriamento e combustível não queimado associado com a superfície). O aproveitamento da energia do gás de escape pode também ser significativo. Os gases de escape contêm aproximadamente 40% da energia do combustível usado pelo veículo, embora a qualidade dessa energia seja baixa por causa da temperatura reduzida. Uma melhora na eficiência mecânica pode ser alcançada diminuindo a potência exigida do motor ao reduzir a resistência do ar e de rotação, o peso, o atrito do sistema de transmissão de potência e as cargas acessórias do veículo. Ao contrário da eficiência térmica, para a qual não se pode esperar eficiências maiores de 50% devido às limitações dos ciclos termodinâmicos, é possível aumentar a eficiência mecânica média dos 40% atuais para aproximadamente 65%. A eficiência mecânica dos automóveis norte-americanos típicos é de aproximadamente 35%, quando se faz a média por todo o ciclo de transporte urbano, e de cerca de 50% nas estradas. A eficiência mecânica global tem uma média de 40%, sendo menor para os automóveis de alta potência e maior para aqueles de baixa potência. Turbinas a gás têm sido propostas para veículos devido a seu baixo peso, pequeno ruído e redução de emissões de escape (exceto NOx) e alta eficiência. Abaixo de 100 kW, contudo, elas atualmente são muito caras e ineficientes, tornando-as, assim, inconvenientes para uso na maioria dos automóveis. Tecnologias Biomassa Rejeitos Agrícolas “Fazendas” Energéticas Lixo Urbano Biogás Álcool Geotérmica Hidrotérmica Geopressurizada Rochas Secas Quentes Magma Hidroelétrica Pequena Escala Grande Escala Oceânica Marés Corrente de Maré Ondas Costeiras Ondas no Mar Térmica Oceânica (Otec) Gradiente de Salinidade Solar Termoelétrica Solar Térmica Solar Arquitetura Solar Fotovoltaica Termoquímica Fotoquímica Vento Em Terra Firme No Mar Bombas de Ar “Status” Técnico (1) “Status” Comercial Atual (2) P-D P-D P-D D M A A A A E M D P-D P E NE NE NE M M A A M P P-D P P-D P A? NE A? NE A? NE P-D M M-D M-D M-P P NE E E A A? NE M-D D M A A? A Fonte: “Energy and Environment Techonology to Respond to Global Climate Concerns”, Scoping Study 1994, IAE/OECD. Paris, 1994. (1) P = Pesquisa; D = Demonstrado; M = Maduro. (2) A = Econômico em certas áreas ou nichos de mercado; E = Econômico; NE = Não-Econômico. Produção de Álcool FONTES RENOVÁVEIS DE ENERGIA O desenvolvimento tecnológico das usinas de açúcar e álcool foi inicialmente dificultado pelo baixo nível técnico. Com o aumento na produção, avanços tecnológicos foram introduzidos nas fases agrícola e industrial: - uso de variedades selecionadas de cana-de-açúcar; As principais fontes renováveis disponíveis são apresentadas na Tabela 2, bem como o estágio que já atingiram tanto do ponto de vista técnico como comercial. Dentre elas, a mais relevante para o Brasil é a energia de biomassa, que representa uma importante contribuição ao consumo de energia no Brasil. Os avanços tecnológicos ocorreram sobretudo em duas áreas: produção de álcool e co-geração de eletricidade a partir de cana-de-açúcar. - redução do consumo de combustível na maquinaria e mecanização da colheita; - acoplamento de vários “contêineres” a um veículo para a transferência da cana-de-açúcar; 95 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 TABELA 3 GRÁFICO 3 Potencial de Redução do Custo de Produção de Etanol Estado de São Paulo – 1989 Em porcentagem Setor Total Curva de Aprendizado para o Custo do Etanol Brasil – 1985-1999 Redução de Custo (1) 23,1 Produção de Cana (agricultura) Seleção de Variedades e Manuseio Aplicação de Calcáreo Fertilizantes Líquidos Uso da Vinhaça Remoção de Ervas Daninhas Transporte Planejamento Operacional 9,8 1,6 0,7 1,0 2,1 0,5 3,4 Produção de Etanol (indústria) Moagem Fermentação Destilação Energia 1,3 3,3 0,3 1,5 Fonte: Copersucar. (1) Corresponde à razão entre os ganhos no benefício líquido menos os custos associados, incluindo custos de processamento e o custo total de produção e armazenagem do etanol. Fonte: Datagro (várias edições). Elaboração do autor. O custo do álcool produzido caiu rapidamente como resultado destes avanços. Geralmente o preço de qualquer produto manufaturado declina à medida que as vendas aumentam de acordo com a “curva de aprendizado”, que reflete ganhos devido ao progresso tecnológico, às economias de escala e ao aprendizado organizacional. A experiência mostra que tal redução é exponencial à medida que a produção cresce. Um indicador chamado razão de progresso (PR) é, em geral, usado para descrever este fenômeno. - manejo dos resíduos agrícolas – como a utilização do vinhoto para fertilizantes e a limpeza da cana sem a necessidade de lavagem, que leva a perdas de 1% a 2% do açúcar; - extração do suco – 45% superior ao de 1975, com redução da energia utilizada por tonelada de cana; - tratamento do suco e fermentação – graças à fermentação contínua e o controle biológico; - destilação – devido a melhorias nos equipamentos e mudanças no conteúdo do álcool da mistura. Outras reduções de custo de aproximadamente 23% poderiam ser obtidas nos próximos anos simplesmente adotando tecnologias disponíveis, algumas das quais já em uso (Tabela 3). É provável, portanto, que a taxa média de redução de custo (aproximadamente 4% ao ano na última década) possa ser mantida por vários anos. Como resultado de tais avanços tecnológicos, a produção de etanol passou de 2.633 litros por hectare, em 1977, para 3.811 litros, em 1985 (uma média de aumento anual de 4,3%). Durante o mesmo período, a produtividade agrícola cresceu 16% (medida em toneladas de cana por hectare) e a produtividade industrial aumentou 23% (medida em litros de etanol por tonelada de cana). Em 1989, a média de produtividade no Estado de São Paulo era de 4.700 litros de etanol por hectare, aumentando para 5.100 litros em 1996. A CO-GERAÇÃO DE ELETRICIDADE A PARTIR DA CANA-DE-AÇÚCAR A co-geração de energia, uma prática corrente da produção industrial do etanol no Brasil, reduz os danos ao meio ambiente e poderia ser aumentada significantemente se o desenvolvimento tecnológico acarretasse o uso dos resíduos da cana-de-açúcar, além do bagaço, para a geração de energia. A quantidade de resíduos estimada é de quase 40 x106 toneladas de matéria seca, sendo que uma porção significativa poderia ser usada. Em média, 280 kg de bagaço (que contém 50% de mistura) são produzidos por toneladas de cana, o que equivale a 2.1 gigajoules de energia por tonelada; 90% do bagaço é queimado para produzir vapor (450 a 500 kg de vapor podem ser gerados de 1 tonelada de cana) que, por sua vez, pode ser utilizado para co- 96 PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA gerar eletricidade e potência mecânica para os motores da usina. Na maioria das unidades de produção de álcool do Brasil, as caldeiras que produzem vapor para o estágio de destilação operam em pressões de 20 bar quando gerando pequena quantidade de eletricidade (15-20 kWh/t de cana), suficiente para as necessidades da unidade. Isto significa que o potencial para co-geração é praticamente inexplorado. A melhoria mais simples para a geração de eletricidade é usar turbinas de vapor do tipo condensação-extração (Cest) e pressões de até 8 megapascal e reduzir o uso de vapor de processo a 350 kg vapor por tonelada de cana. A eficiência para a produção de eletricidade em unidades que operam dessa forma pode atingir 10% a 20%, que é superior à eficiência das unidades em operação atualmente. Unidades tipo Cest são usadas rotineiramente em outras partes do mundo e são capazes de gerar um excesso de eletricidade de 80-100 kWh/t de cana que pode ser vendida à rede elétrica. Um sistema Cest é viável para a venda de eletricidade a 50 US$/MWh. Se o preço da eletricidade vendida for maior, a conseqüência é uma redução no custo do álcool. Isto está ocorrendo com a indústria do açúcar do Havaí e Ilhas Maurício, mas não é o caso do Brasil, onde a hidroeletricidade em bloco é vendida a um valor inferior a US$ 40/MWh. Este é um sério obstáculo à co-geração que exigirá uma melhor avaliação do custo marginal real da eletricidade em bloco no Brasil. A moderna tecnologia de gaseificadores de biomassa integrados com turbinas a gás (BIG/GT), ainda em desenvolvimento, deverá ser capaz de produzir um excesso de eletricidade de 600 kWh/t de cana. Um projeto está em desenvolvimento no Brasil para uma usina completa de demonstração de 25 MW, apoiada financeiramente pela Global Environment Facility (GEF). O potencial de co-geração de eletricidade foi estimado por vários grupos e poderia atingir vários milhões de kilowatts apenas no Estado de São Paulo. Várias outras oportunidades do uso de biomassa para fins energéticos têm sido exploradas no Brasil, mas ainda não atingiram um volume significativo (pequenas centrais termoelétricas utilizando lenha e resíduos vegetais, óleos vegetais como substituto de óleo diesel, briquetes de madeira, carvão vegetal e produção de metano em lixões). Novas Tecnologias Existe uma enorme gama de atividades em novas tecnologias que estão sendo exploradas para encontrar outros caminhos para enfrentar a necessidade crescente de energia e, ao mesmo tempo, reduzir os impactos ambientais do uso de combustíveis fósseis. Uma enumeração simples de algumas delas é a seguinte: - células de combustível para transporte; - células de combustível acopladas com turbinas a gás (ou vapor) para a produção de eletricidade ou co-geração de calor e eletricidade; - produção de hidrogênio a partir da redução de combustíveis fósseis (principalmente carvão) e seqüestro de CO2. Este seqüestro pode se dar por reinjeção em poços de petróleo, no mar a grandes profundidades ou em lençóis de água em terra firme; - uso de células fotovoltaicas e energia dos ventos que são intermitentes por natureza acopladas a geração hidroelétrica em armazenagem de ar comprimido. Os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento nessas áreas, no Brasil, são modestos e se destinam, de modo geral, a um acompanhamento do que se fez no exterior. Dignos de menção, contudo, são os trabalhos referentes ao “efeito estufa”, vinculados a emissões em reservatórios de barragens para geração de eletricidade. Existem, também, os diversos esforços para entender melhor o que ocorre na Amazônia, onde o desmatamento é uma das principais fontes de emissões de CO2, mas onde há também evidências para a “fertilização” da floresta e a resultante reabsorção do CO2 na atmosfera. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COPERSUCAR. “Pro-Álcool”. Fundamentos e perspectiva Copersucar. São Paulo, 1989. DATAGRO. Boletim informativo sobre a indústria sucro-alcooleira. Várias edições. GOLDEMBERG, J. Energia, meio ambiente e desenvolvimento. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1998. MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Balanço Energético Nacional, 1999. MOREIRA, J.R. e GOLDEMBERG, J. “The Alcohol Program”. Energy Policy, 27, 1999, p.229-245. UNDP/DESA/WEC – United Nations Development Programme/United Nations. Department of Economic and Social Affairs/World Energy Council. World energy assessment. Energy and the challenge of sustainability. Nova York, 2000. 97 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE SUELY MUNIZ Economista, Pesquisadora do Instituto de Pesquisas Tecnológicas Resumo: A intensificação da concorrência internacional e a difusão de setores econômicos ligados ao complexo microeletrônico têm demandado uma ampliação dos esforços institucionais, tecnológicos e organizacionais por parte de empresas e nações. Tais esforços são cumulativos e ancoram-se em processos de aprendizagens contínuos que são decisivos para a elevação da capacidade competitiva das empresas e nações e, portanto, para o crescimento econômico. No Brasil, entretanto, os investimentos ainda dirigem-se sobretudo para o “saber produzir”, enquanto aqueles destinados à formação de ativos complementares, como a elevação da capacitação tecnológica para projetar e desenvolver produtos e processos, são absolutamente insuficientes. Os desafios contemporâneos tornam imperiosas não apenas políticas industriais e tecnológicas, mas também, e sobretudo, uma nova inserção ativa e soberana da economia brasileira na nova dinâmica econômica internacional. Palavras-chave: inovação tecnológica; investimento e produção industrial. A competitividade de um país baseia-se não somente na competitividade das suas empresas, mas também na eficiência do conjunto da sua estrutura produtiva, na qualidade da sua infra-estrutura tecnológica e nas inter-relações entre as partes do sistema de produção. As “externalidades tecnológicas” favorecem os esforços próprios das empresas, elevando a qualidade de suas escolhas. Competitividades em âmbito macro e microeconômico são, portanto, complementares. Neste sentido, a tecnologia é capaz de alterar as vantagens comparativas das nações (e das suas empresas) e as suas possibilidades de inserção na economia mundial, particularmente nos momentos em que se difundem novas tecnologias de base. Essas vantagens não são dadas e estáticas, mas evoluem e requerem, portanto, um esforço de aprendizado tecnológico e organizacional contínuo. O desenvolvimento tecnológico apresenta hoje, ainda mais do que em épocas anteriores, imenso desafio para os países de industrialização tardia. Se no padrão anterior a tecnologia era basicamente incorporada nas máquinas e equipamentos e os países em desenvolvimento podiam acessá-la através das importações e dos contratos de licenciamento de tecnologia, atualmente esse acesso tornou-se muito mais complexo e especializado. Portanto, diferentemente do que se acreditou por muito tempo no Brasil, para a difusão das novas tecnologias não basta elevar a taxa de investimento em capital fixo e adquirir capacitação para operá-lo eficientemente. Na verdade, a difusão tecnológica ocorre através de um processo incremental e contínuo de mudança tecnológica, que promove a adaptação da inovação original a um sem-número de situações e o aperfeiçoamento contínuo das suas características e desempenho. A rigor, as inovações continuariam ocorrendo durante o processo de difusão e estes não deveriam, portanto, ser vistos como processos independentes (Dosi, 1988; Nelson, 1992). Dessa maneira, empresas e nações têm conduzido árduo esforço para elevar sua capacitação para produzir com elevada eficiência e, também, sua capacitação para inovar, entendida esta como o conjunto de atividades voltadas para o desenvolvimento e absorção das novas tecnologias. Esta última não ocorreria automaticamente com a elevação da primeira. Ao contrário, a capacitação para inovar terse-ia tornado uma atividade que, pelo elevado conteúdo de conhecimento especializado, demanda ações, investimentos, habilidades, experiências, equipes e inter-relações voltadas especialmente para a geração e a gestão da mudança tecnológica. Isto não quer dizer, entretanto, que essa atividade ocorre de modo estanque, em paralelo à atividade da produção. As sinergias, quer sejam com as equipes de produção, quer entre as equipes especializadas em produtos ou linhas de produtos, são altamente benéficas para a geração de melhorias contínuas de produtos e processos. 98 INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE Nesse sentido, a distinção feita por Bell e Pavitt (1993) entre os conceitos de mudança tecnológica e acumulação tecnológica (ou aprendizado tecnológico) é particularmente relevante para a compreensão da dinâmica industrial dos países em desenvolvimento. Enquanto a primeira diz respeito aos processos de incorporação de novas tecnologias à produção, a segunda trata dos recursos voltados especificamente para o fortalecimento da capacitação tecnológica e organizacional. Tal distinção importa na medida em que permite compreender que o investimento físico deve ser complementado por investimentos intangíveis, caso pretenda-se a sustentação da capacidade de produção eficiente ao longo do tempo. As empresas líderes, nas indústrias mais dinâmicas dos países industrializados, estariam realizando dispêndio com “intangíveis” superior ao investimento em bens tangíveis (Nelson, 1992; Bell e Pavitt, 1993). Entre os intangíveis destacam-se: investimento em tecnologia (aquisição e desenvolvimento de conhecimentos próprios e competências necessárias para introdução de novos produtos e processos ou sua melhoria, compreendendo P&D e engenharia não rotineira); investimento em qualificação (treinamento, organização e estrutura de informações); e softwares. Muitos autores têm verificado que a capacitação tecnológica evolui de forma diferenciada entre os países, ao contrário do esperado pelos ideólogos da liberalização, segundo os quais os países tenderiam a convergir não só na acumulação tecnológica (a “tecnoglobalização”), mas também na performance econômica. Com efeito, em estudo recente, Patel e Pavitt (1998) constataram a existência de padrões de acumulação tecnológica desiguais e divergentes mesmo entre os principais países da OCDE. Desta forma, a indústria brasileira entra na década de 90 – quando se acelera a implantação dos setores criados pelo novo paradigma nas economias industrializadas e nos países asiáticos de industrialização recente – com o mesmo perfil herdado dos anos 70, quando completou a estrutura típica da segunda revolução industrial, através da diversificação da indústria de bens intermediários – celulose e papel e química – de bens de consumo duráveis e de bens de capital. Nos anos 90, conduziu-se um acentuado processo de abertura comercial e financeira da economia brasileira. A redução acelerada da proteção tarifária e, a partir de 1994, a sobrevalorização cambial induziram à elevação do investimento, apesar das altas taxas de juros. A concorrência dos produtos importados e o acesso a máquinas e equipamentos atualizados tecnologicamente com juros significativamente inferiores aos nacionais constituíram fortes motivadores destes investimentos. Adicionalmente, a elevação do consumo de bens duráveis e de não-duráveis decorrente da estabilização da moeda atraiu investimentos nestas categorias de bens. Assim, nos últimos anos da década de 90, muitas intenções de investimento foram declaradas, entre as quais uma expressiva participação do capital estrangeiro que retornou ao país com maior expressão após 1994. Somente no Estado de São Paulo ocorreriam mais de 1.330 projetos de investimentos, totalizando aproximadamente US$ 70 bilhões, segundo dados de cadastro que abrangeu o período de 1996 a 1998, organizado pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico. Teriam tais investimentos a natureza e o volume necessários para sustentar um novo ciclo de crescimento econômico? EVOLUÇÃO RECENTE DO INVESTIMENTO NO BRASIL CARACTERÍSTICAS DOS INVESTIMENTOS RECENTES Durante a “década perdida”, o investimento privado e público foram muito baixos, em relação tanto ao ocorrido na década anterior quanto ao montante que seria necessário para a implantação dos “novos setores industriais” resultantes da difusão da microeletrônica.1 Ao longo dos anos 80, a capacidade de financiamento dos investimentos foi drasticamente reduzida em função da brutal transferência de recursos para o exterior, para o pagamento dos serviços da dívida.2 O componente estrangeiro do financiamento do investimento, seja sob a forma de empréstimos bancários, seja de investimento direto, reduziu-se, nos anos 80, a quase zero. Uma das principais características do investimento realizado na segunda metade dos anos 90 é a perda de capacidade de atração da indústria de transformação. Com efeito, esta indústria teria tido uma participação de 4,5% no período de 1971 a 1980 na FBKF (formação bruta de capital fixo) total, caindo para 2% no período de 1990 a 1994, para recuperar-se apenas parcialmente em 1995-97, com 3,3% (Bielschowsky, 1998). A análise do fluxo de capitais estrangeiros revela, com efeito, que o investimento nos anos 90 tem se dirigido em larga medida para o setor serviços e para as fusões e aqui- 99 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 TABELA 1 Fluxo de Capitais Líquidos Privados Brasil – 1990-98 Em bilhões de dólares Capitais Fluxo Total de Capitais Privados 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 8 3 14 12 10 33 35 20 17 Investimento Estrangeiro 0 0 2 1 2 3 10 15 25 Investimento em Portafólio 0 4 14 12 51 12 21 10 17 Outros Investimentos 7 -1 -2 -1 -43 19 4 -5 -25 Fonte: IMF (1999); UNCTAD (1998). sições de empresas. A partir de 1992, a entrada de capitais voltou a ter expressão, em particular o seu componente a curto prazo – o também chamado capital volátil –, que simplesmente saltou de níveis próximos a zero, em 1990, para US$ 51 bilhões, quando adveio a estabilização da moeda, em 1994 (Tabela 1). A crise mexicana certamente influenciou a queda para US$ 12 bilhões, assim como a crise asiática terá interferido sobre o montante que permaneceu neste patamar, em 1997, para recuperar-se apenas ligeiramente em 1998. A parcela de capital internacional que ingressou no país em forma de investimento direto estrangeiro (IDE) somente veio a tornar-se expressiva a partir de 1996, quando foram iniciadas as privatizações das empresas de energia elétrica e, depois, as de telecomunicações e petróleo. Em 1997, o IDE foi de US$ 15 bilhões e, em 1998, chegou a US$ 25 bilhões. Em 1999, o IDE teria atingido o recorde da década, alcançando US$ 30 bilhões, registrando em 2000 valores tão elevados quanto este último. Entretanto, o fluxo de investimento estrangeiro dirigido à indústria3 apresentou inexpressiva elevação no período 1990-96, tendo significado algo entre 13% e 25% do IDE. Por outro lado, os serviços absorveram a maior parte dos recursos, representando em torno de 74% a 84% do IDE no período mencionado (Laplane e Sarti, 1999). As declarações feitas recentemente pelo presidente da Sobeet – Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica, de que 80% dos investimentos estrangeiros estão no setor serviços, indicam que este quadro não foi alterado (Folha de S.Paulo, 29/08/2000). Nos últimos três anos, apenas 25% do IDE destinou-se à expansão da capacidade, enquanto 75% dirigiram-se à compra de empresas privadas ou privatizadas, conforme dados da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento – UNCTAD (1999). Em 1997, teriam ocorrido 372 casos de fusão, aquisição ou joint venture, dos quais 204 eram de capital estrangeiro e 168 de capital doméstico. Este número total caiu para 350, em 1998, e para 142, em 1999, dos quais 200 e 100 de capital estrangeiro, nestes anos, respectivamente (Lacerda, 1999). As aquisições de empresas públicas privatizadas teriam absorvido 26% do IDE líquido, em 1996, e 30%, em 1997. Ainda segundo dados da UNCTAD (1999), em 1998 as privatizações teriam mantido o patamar, absorvendo 25% do IDE. Em 1999 este percentual teria sido de 31%, segundo porta-voz do Banco Central (Folha de S.Paulo, 1999). Assim, verifica-se que a extraordinária expansão do IDE não se refletiu com a mesma intensidade nas taxas de investimento (17% do PIB, a preços de 1980, em 1998) porque parcelas expressivas do IDE nortearam-se pelo processo de compra ou fusão de empresas, principalmente aquelas públicas privatizadas, mas também empresas privadas, reduzidas em seu valor pela concorrência desigual que enfrentaram ao longo de quase duas décadas de crise e pela desvalorização cambial ocorrida em janeiro de 1999. O impacto do IDE sobre a indústria de transformação foi reduzido pelo fato de ter-se dirigido principalmente ao setor serviços. Conformou-se, desta maneira, intensa desnacionalização de empresas e de setores econômicos, sem implicar necessariamente ampliação da capacidade produtiva instalada ou implantação de “novos” setores industriais. A Tabela 2 apresenta indicadores da indústria brasileira que constituem evidências das dificuldades que passaram a envolvê-la após a abertura comercial e financeira e que os investimentos recentes não parecem ter sido capazes de neutralizar. O aumento da produtividade na indústria brasileira, na década de 90, foi reduzido – média anual de 4,1% no período 1991 a 1998 – quando medido pelo valor adicionado por trabalhador.4 Observe-se que as taxas da segunda metade da década foram menores, comparativamente às dos 100 INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE marketing, por exemplo) no interior da empresa, o fluxo de informações e a lógica da gestão da produção. São alteradas ainda a forma como se relacionam e como se estruturam as várias unidades dos grandes grupos econômicos e a forma como as empresas relacionam-se com outras empresas, grandes ou pequenas, com seus fornecedores, com seus clientes e com o sistema de ciência e tecnologia. Essas mudanças ocorrem acelerada e simultaneamente, porém de forma profundamente heterogênea entre as nações e, no interior das nações, entre setores e, nesses, entre as empresas. A absorção das tecnologias de informação e de telecomunicações e as novas filosofias de organização da produção e do trabalho contribuem para o sucesso de empresas e nações, porque as qualificam para as novas normas da concorrência que hoje não se baseiam apenas em preço, mas também em qualidade, flexibilidade, prazos, inovação e serviços pós-venda. Portanto, nos países onde o paradigma microeletrônico difunde-se mais intensamente, dois fenômenos ocorrem: o primeiro é a expansão e consolidação dos “novos setores” e o segundo “é que as inovações nestes poucos setores industriais vão gradual mas sistematicamente difundindo-se através de toda a atividade econômica, inclusive para indústrias que continuamos a tratar como tradicionais ou de baixa tecnologia” (Rosenberg, 1992:74). Um tecido industrial que incorpora setores com maior grau de complexidade tecnológica (indústrias baseadas em ciência, como as que integram o complexo eletrônico, a fabricação de aviões e alguns segmentos da indústria química como fármacos, biotecnologia, novos materiais) apresenta dinâmica tecnológica e econômica superior, dadas as maiores oportunidades. São indústrias que podem organizar-se através de sistema de produção flexível para alcançar a eficiência operacional (economias de escala e de escopo) e que requerem: organização de seus próprios departamentos de P&D&E; coordenação das interfaces entre as diversas atividades (P&D&E, produção, marketing, compras, etc.); estabelecimento de vínculos com outras instituições públicas e/ou privadas para acesso à pesquisa básica e aplicada em áreas de conhecimento específicas; e estímulo à inter-relação entre as equipes de P&D&E, no caso das empresas com mais de uma unidade, para a realização das inovações incrementais “contínuas”. O foco da atividade tecnológica dessas indústrias “complexas”, portanto, não é prioritariamente custo, mas sim o aperfeiçoamento do produto (design, desempenho, etc.), TABELA 2 Produtividade da Indústria, Saldo da Balança Comercial e Variação do PIB Brasil – 1990-98 Anos 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 Produtividade na Indústria (1) (%) 2,0 12,5 13,3 1,0 -3,5 0,1 5,5 0,6 - Saldo da Balança Comercial (US$ milhões) Variação do PIB (%) Total Indústria 10.753 10.579 15.308 12.938 10.440 -3.158 -5.554 -8.357 -6.484 -1.198 -4,33 1,03 -0,54 4,92 5,85 4,22 2,66 3,60 -0,12 0,82 -8,73 0,26 -4,21 7,01 6,73 1,91 3,28 5,76 -1,34 -1,66 Fonte: Manzano (2000). (1) Produtividade medida pelo valor adicionado por trabalhador (elaboração: Fiesp/Ciesp/ Decompi). Inclui indústria da construção civil e serviços industriais de utilidade pública. primeiros anos. A balança comercial passou a apresentar saldos negativos difíceis de serem revertidos, mesmo após a desvalorização cambial. O produto interno bruto (PIB) apresentou taxa média de crescimento anual de apenas 2,2% no período 1990-99, sustentado pela atividade agrícola, pois o PIB industrial cresceu no período somente 1,7%. É forçoso concluir, portanto, que a economia brasileira estaria abrindo um novo século sem conseguir reconfigurar sua estrutura produtiva industrial para os padrões do paradigma microeletrônico, o que implica graves conseqüências em termos de taxas de crescimento da economia, desequilíbrio na balança com o exterior,5 vulnerabilidade externa do país, crescimento do emprego e do sistema de ciência e tecnologia que tende, neste contexto, a ter sua importância reduzida. OS DESAFIOS ÀS EMPRESAS INDUSTRIAIS Os desafios postos às empresas de produção industrial, nestas últimas décadas, são imensos e têm como pano de fundo, de um lado, o lento crescimento da economia mundial e, de outro, o sistema financeiro, impondo-lhes, na prática, taxas de rentabilidade referenciais.6 Internamente, essas empresas vivem o desafio de uma inovação complexa e sistêmica. São transformações tecnológicas de vulto, conduzidas pela tecnologia de informações e de comunicações, vale dizer, outro paradigma, outra cultura. Em paralelo, alteram-se, às vezes radicalmente, as formas de organização do trabalho, de realização de P&D, de relacionamento das funções (P&D&E, produção e 101 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 tos. Esta característica é determinante para a reduzida geração de empregos observada: o saldo líquido entre empresas que informaram redução e aquelas cujo investimento resultaria em acréscimo do emprego é inexpressivo, de apenas 3%. que implica desenvolvimento de capacitações próprias e específicas às características da empresa para a realização de inovações incrementais contínuas. Além disso, como estas indústrias apresentam oportunidades tecnológicas elevadas, requerem ainda as chamadas capacitações dinâmicas, que permitem às empresas a constituição de “antenas tecnológicas” destinadas a captar eventuais novas rotas tecnológicas. Em face destes desafios, verificamse entre esse conjunto de indústrias, as mais elevadas necessidades de contratação de engenheiros e cientistas experientes e de constituição de relações com instituições públicas e privadas de pesquisa básica e aplicada (Bell e Pavitt, 1993). Já os desafios enfrentados pelas indústrias com complexidade tecnológica menor que a desse primeiro conjunto são elevados, porém, evidentemente, menores. As indústrias intensivas em escala, por exemplo, como a automobilística, eletrodoméstica e siderúrgica, demandam elevada capacidade de interação entre as áreas de engenharia da produção, projeto e fornecedores, que constituiriam as fontes principais de desenvolvimento tecnológico desse grupo. A capacidade organizacional para coordenar interações complexas tem, portanto, importância particular para esse conjunto de indústrias. Para as indústrias tradicionais (têxtil, bebida, mobiliário e alimentar), as principais fontes de aprendizado/acumulação tecnológica seriam: fornecedores de máquinas e, eventualmente, de matérias-primas; learning by doing; e serviços de consultoria. Portanto, seria menos comum a organização formal de departamentos de P&D nessas indústrias. Exceto para as empresas que se voltam para os nichos de produtos diferenciados, com elevado valor agregado, a ênfase na organização da produção seria a redução de custos através do aperfeiçoamento das tecnologias de processo e a principal forma de absorção de novas tecnologias seria a aquisição de máquinas e equipamentos de última geração e a competência para operá-los. TABELA 3 Empresas e Valor do Investimento, segundo Tipos de Investimento Estado de São Paulo – 1996-98 Tipos de Investimento No de Empresas Valor do Investimento (1) Valor Médio Nos Abs. % US$ milhões % 100,0 32,0 8.041 2.053 100,0 26,0 174 136 59,0 9,0 2.828 3.160 35,0 39,0 105 790 Total 46 Planta Nova 15 Expansão e Reestruturação da Produção e Novos Produtos 27 Não Declarado 4 (US$ milhões) Fonte: Pesquisa IPT (1999). (1) Refere-se ao valor total do investimento independente do seu estágio de realização. A maior parcela dos investimentos realizados no período 1996-98 (77% do valor) teve a finalidade de permitir à empresa a produção de novos produtos, enquanto 62% (55% do valor) objetivaram a reestruturação da produção. O investimento na expansão da produção foi menor, mas, ainda assim, expressivo. O investimento mostrou-se extremamente concentrado setorialmente. O setor automobilístico recebeu 41% dos recursos, os produtos químicos (commodities) ficaram com 24% e o setor siderúrgico captou 11%. Enquanto categoria de uso, o grupo de setores produtores de bens duráveis ocupou a primeira posição em valor do investimento (47%), mas não em número de empresas (25%), e é liderado pela indústria automobilística. O presente ciclo de modernização da indústria de veículos teria, necessariamente, que ser acompanhado por investimentos na indústria de autopeças, de forma a permitir-lhe acompanhar os requisitos técnicos e de custos da primeira. Incapaz – financeira e tecnologicamente – de realizar essa tarefa, em ambiente de importações favorecidas, elevados juros e de desvalorização cambial, esse setor viveu, no final da década, possivelmente o mais profundo processo de desnacionalização patrimonial da indústria brasileira. O processo de desnacionalização tende a continuar, também por decorrência da atual dinâmica tecnológica que requer a aproximação de fornecedores e clientes para o trabalho conjunto desde a fase do projeto de novos pro- PERFIL TECNOLÓGICO E ORGANIZACIONAL7 A análise desenvolvida a seguir procura apreender as características tecnológicas e organizacionais das empresas que investiram nos últimos anos da década de 90, a partir de dados e informações coletadas através de questionários, entrevistas e visitas às instalações fabris.8 A Tabela 3 evidencia que 32% das empresas investiram em novas plantas, enquanto 59% o fizeram na expansão e/ou reestruturação da produção e em novos produ- 102 INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE equipamentos, partes e peças com elevado conteúdo tecnológico. Não menos grave é a dificuldade em investir que encontram as pequenas e médias empresas neste cenário, uma vez que não possuem recursos financeiros, tampouco outras facilidades para a importação. Desta forma, a indústria não funciona como um sistema construído sobre relações densas e difusoras das novas tecnologias e, nesse sentido, alimentadoras de aprendizados e competências, tal como se observa nas economias industrializadas. Ao contrário, na medida em que não responde às demandas imediatas e em que não há restrições à demanda ao exterior, lamentavelmente, o sistema industrial brasileiro vai se esfacelando. Apresentam bom desempenho somente os setores que podem operar com elevada escala, beneficiando-se, desse modo, o tamanho do mercado interno, mas que não têm a característica de elevada sinergia com os demais setores industriais.9 A dificuldade em encontrar parceiros dos quais se possa esperar o cumprimento de prazos, qualidade, etc. mantém elevada a verticalização, mesmo após todo o processo de terceirização que marcou os anos 90. Neste cenário fica difícil a constituição de redes – forma de relação entre empresas que se difunde juntamente com o paradigma microeletrônico. Em resumo, se, por um lado, os investimentos dos últimos anos da década de 90 traduziram um grande esforço e, efetivamente, tornaram algumas empresas bastante competitivas, sobretudo no mercado interno, por outro, pouco contribuíram para a reconfiguração da estrutura produtiva industrial, a criação de “externalidades tecnológicas” e, em decorrência, para a geração de elevados e sustentáveis ganhos de produtividade. Quando consultadas sobre a sua estratégia de concorrência (Tabela 4), as empresas revelaram a grande ênfase que estão atribuindo à concorrência baseada na qualidade, seguida pela concorrência em custos: 57% das empresas definiram que sua concorrência baseia-se em qualidade e 43% em custos/preços. O que é notável – mas não surpreendente – é o número bastante reduzido de empresas (8%) declarando a inovação como principal estratégia de concorrência, bem como o número ainda menor (5%) concorrendo em prazos e em flexibilidade (3%). Por que a conduta das empresas brasileiras é tão diferente, em relação à inovação de produtos e processos, das empresas dos países industrializados e asiáticos de industrialização recente? Seguramente não é por desinformação ou incapacidade empresarial, mas sim conseqüência da presença na economia brasileira de um conjunto de fatores que agem como barreiras às atividades inovadoras.10 dutos e processos. Tendo em vista que as empresas brasileiras não se tornaram grandes o suficiente para participar ativamente no mercado internacional, não são interlocutoras nos momentos iniciais de projeto de novos modelos dos oligopólios internacionais, que ocorrem, em geral, nos países de origem destes grandes grupos. O exemplo da cadeia automobilística traduz uma lógica implacável: dado que os fornecedores de partes e componentes são definidos ainda na fase de projeto, ser apenas nacional pode significar a exclusão do mercado nessa cadeia produtiva. Nesse grupo de bens duráveis, o fato novo vincula-se ao investimento em material eletrônico, aparelhos e equipamentos de comunicações, que veio na esteira da privatização das telecomunicações. Seu valor, entretanto, foi inferior a 4% do total investido pelo conjunto de empresas da amostra. As empresas produzem equipamentos para infra-estrutura em telecomunicações, mas, à exceção de uma delas, estes respondem por reduzida fatia do seu faturamento, que depende fundamentalmente dos aparelhos para telefonia. A tendência à desnacionalização dos fornecedores de componentes repete-se neste setor, que se caracteriza por elevado grau de complexidade tecnológica, e pela exigência do modelo simultâneo de desenvolvimento de produtos e processos. Os setores produtores de bens intermediários também tiveram participação expressiva no investimento do período 1996-98 (46% das empresas e 41% do montante investido). Já o segmento de não-duráveis se fez representar pela indústria de alimentos e bebidas e indústria têxtil, mas não registrou a presença da indústria de couro e calçados ou de vestuário e o seu investimento médio é reduzido, em especial o da indústria têxtil. Finalmente, o segmento de bens de capital esteve totalmente ausente da amostra. Nenhuma empresa produtora de máquinas, de máquinas e equipamentos, aparelhos e materiais elétricos ou de fabricação de equipamentos para automação industrial anunciou investimentos e/ou se dispôs a informar sobre eles. Ao que tudo indica, a tendência é a elevação da defasagem tecnológica entre o setor produtor de bens de capital nacional e o do exterior, quando não da extinção, como parece ser o caso do segmento de produtores de equipamentos para automação industrial. Essa tendência é profundamente grave para a dinâmica industrial brasileira, pois gera a perda dos efeitos positivos do investimento que são, em grande medida, transferidos para fora, via importação de máquinas e 103 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Dessa forma, o baixo investimento privado em capacitação tecnológica, lamentavelmente, tornou-se tradição empresarial brasileira. Poucas seriam as empresas brasileiras que teriam passado do estágio de aprender a produzir com eficiência produtos licenciados por empresas estrangeiras, evoluindo para o detalhamento do projeto básico do produto e um número ainda menor teria evoluído para a capacitação no desenvolvimento local do projeto básico do produto. De fato, ainda hoje, o principal item do investimento é o de aquisição de máquinas e equipamentos, um fenômeno generalizado nas empresas da amostra desta pesquisa (Tabela 5). Quase 77% das empresas afirmaram que esse foi o item mais importante no investimento realizado (ou em realização). Quando são consideradas também aquelas que indicaram máquinas e equipamentos como o segundo item mais importante, o percentual amplia-se para 95% das empresas. Esse resultado indica mudança de postura em relação à primeira metade dos anos 90, quando os investimentos foram classificados de “defensivos”. Porém, por outro lado, mostra quão incipientes são os investimentos em intangíveis. TABELA 4 Número de Empresas, segundo Estratégias de Concorrência Estado de São Paulo – 1999 Estratégias (1) No de Empresas que Atribuem Grau 1 No de Empresas que Atribuem Graus 1 e 2 % do Item % das Empresas % do Item Total Qualidade Custo Inovação Prazo Flexibilidade 100,00 48,84 37,21 6,98 4,65 2,33 56,76 43,24 8,11 5,41 2,70 100,00 46,84 35,44 8,86 6,33 2,53 % das Empresas 100,00 76,68 18,92 13,51 5,41 Fonte: Pesquisa IPT (1999). (1) Algumas empresas classificaram mais de um item na mesma ordem. Inegavelmente, o sistema social de produção brasileiro não favorece a que as empresas se lancem a assumir os elevados riscos das atividades inovadoras. A razão central para o reduzido percentual de empresas inovadoras no Brasil relaciona-se, em larga medida, com a incapacidade da política econômica brasileira para fazer avançar a estrutura produtiva industrial, isto é, para gerar as condições macroeconômicas necessárias à implantação daqueles setores industriais típicos do paradigma microeletrônico, que apresentam as mais elevadas taxas de crescimento, expressão econômica do seu dinamismo tecnológico que produz contínuas inovações de produtos, abrindo novos mercados e ampliando os já existentes. O ritmo de inovações nos “setores antigos” é obviamente menor e refere-se sobretudo aos processos e menos aos produtos. Também são desfavoráveis às inovações os fatores mais diretamente relacionados à ciência e tecnologia, como o baixo investimento público e privado em pesquisa básica e aplicada, particularmente nas áreas de ponta, em treinamento nas várias engenharias, necessários para a promoção da sinergia e para a redução do risco na área privada. Estas características têm sido apontadas como decorrência da ocupação dos setores com maiores desafios tecnológicos pelas empresas multinacionais, cujas atividades de desenvolvimento tecnológico ainda permanecem, em sua maioria, localizadas em seus países de origem.11 O desenvolvimento tecnológico feito no Brasil (bem como em outros “mercados emergentes”) por multinacionais refere-se quase sempre a adaptações dos produtos às condições locais, sejam estas técnicas (clima, matérias-primas, etc.) ou econômicas (celular ou geladeiras com controle digital com funções menos sofisticadas – e mais baratos – que nos países de origem, por exemplo). TABELA 5 Investimentos Realizados pelas Empresas, por Ordem de Importância, segundo Tipos Estado de São Paulo – 1996-98 Em porcentagem Tipos de Investimento Ordem de Importância (1) 1o 2o Máquinas e Equipamentos 77 18 3 Instalações e Construção Civil 13 51 10 Treinam. e Qualificação de Mão-de-Obra 13 3 33 0 13 18 Softwares 3 10 15 Estudos Técnico-Econômicos 0 3 5 Outros 3 - 10 Serviços Científicos e Tecnológicos 3o Fonte: Pesquisa IPT (1999). (1) Algumas empresas classificaram mais de um item na mesma ordem. O segundo item de investimento mais importante foi o de instalações e construção civil, apontado por 13% das empresas e indicando que a introdução de novos produtos implicou a necessidade de ampliação do chão de fábrica. Treinamento e qualificação de mão-de-obra foram indicados por igual número de empresas (13%) como os mais importantes investimentos, refletindo a necessidade de adaptação da mão-de-obra à tecnologia microeletrônica incorporada às máquinas e equipamentos. 104 INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE sas, com maior incidência nas faixas de menores investimentos. 12 O que é importante salientar desses dados é que, apesar do elevado percentual de empresas buscando a realização de inovações13 – mesmo quando sua estratégia não é concorrer via inovações –, seu dispêndio é reduzido e a inovação é, em sua maior parte, de natureza puramente adaptativa. Apenas 19% das empresas acreditam que após os investimentos estão em mesmo nível tecnológico que seus concorrentes do exterior, enquanto 78% consideram-se superiores tecnologicamente aos concorrentes no mercado interno. Aquelas que se situam no primeiro caso (iguais tecnologicamente) são produtoras de commodities, tradicionais exportadoras ou produtora de bem de elevado valor agregado, o caso mais bem-sucedido da indústria brasileira no presente. Estes resultados são compatíveis com as informações obtidas nas entrevistas, de que os empreendimentos das empresas, inclusive as de capital externo, objetivam sobretudo o mercado interno brasileiro e de forma quase marginal o mercado supra-regional (Mercosul), não confirmando, portanto, a propalada contribuição do investimento estrangeiro para o equilíbrio da balança comercial com o exterior. Serviços científicos e tecnológicos, softwares e estudos técnico-econômicos tiveram inexpressiva participação no investimento do período 1996-98. Há que se considerar, entretanto, o problema de medição do investimento em softwares, cujo valor teria sido muitas vezes incorporado àquele relativo a máquinas e equipamentos, em conseqüência da dificuldade de discriminá-lo, por se tratar de máquinas com elevado grau de automação e integração. Este é o caso típico da indústria de aparelhos eletrônicos. Entre as empresas que investiram em aquisição de máquinas e equipamentos, cerca de 80% realizaram parte das aquisições no exterior, das quais 56% destinaram mais de 50% do investimento em máquinas adquiridas no mercado externo. Segundo foi possível apreender, máquinaschaves no processo ou que apresentam elevada automação microeletrônica são importadas principalmente da Alemanha ou Suíça, bem como de fabricantes japoneses, como no caso das telecomunicações, enquanto máquinas secundárias ou pouco dotadas em mecanismos microeletrônicos são adquiridas no mercado interno. Essa pesquisa confirma, dessa maneira, o elevado montante do componente importado do investimento em máquinas já diagnosticado em inúmeros estudos. Quase 80% das empresas informaram ter realizado, em 1998, investimentos em P&D&E, enquanto 66% declararam investimento em aquisição de tecnologia (licenciamento) e igual percentual informou investimento em informatização e em treinamento de pessoal. Estes valores revelam, sem dúvida, que a preocupação com a mudança tecnológica está presente entre este seleto grupo de empresas. O item informação tecnológica não constituiu objeto de inversão por parte de elevado número de empresas (62%), mas aquelas que o fizeram apresentam o mais elevado investimento médio. Entretanto, o detalhamento da atividade de P&D&E revela que o maior esforço é em desenvolvimento, com 97% das empresas fazendo algum tipo de atividade sob esse título. Cerca de 55% das empresas afirmaram realizar pesquisa aplicada, mas o investimento nesse item concentra-se nas menores faixas, com 51% das empresas dedicando-lhe menos de 50% dos recursos em P&D&E. O item engenharia não rotineira é praticado por metade das empresas que realizam desenvolvimento de produtos ou processos. O valor do investimento nesse item situa-se nos menores estratos e pode ser tomado como o indicador do reduzido esforço próprio na definição dos métodos de gestão da produção e do trabalho. As atividades de pesquisa básica são realizadas por 24% das empre- CONSIDERAÇÕES FINAIS A adoção de tecnologias baseadas na microeletrônica volta-se à solução de situações complexas na produção – como o rigor no controle de qualidade, a produção diversificada com possibilidade de regulação do tamanho dos lotes, etc. – à aceleração de lead time e à possibilidade de comunicação sem papel com fornecedores e clientes. É evidente, portanto, que a incorporação do progresso técnico, ou a modernização da empresa, e a busca da eficiência passam hoje por um tipo de ação profundamente mais complexa que a simples incorporação de um equipamento. Trata-se da gestão do saber, que ganha foros de atividade permanente, requerendo o aprendizado tecnológico e organizacional contínuo, uma vez que as situações de mercado e o saber evoluem em permanência. A literatura que investiga as razões do sucesso das grandes empresas14 sugere, assim, que a sobrevivência e o crescimento da empresa no presente requerem uma capacitação dinâmica (Teece e Pisano, 1998), uma atitude de aprendizado dessas novas tecnologias e modos de organização, um aprendizado que não é apenas individual, mas, sobretudo, coletivo, que é cumulativo e, neste sentido, 105 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 conduz a um processo de desnacionalização de alguns segmentos da indústria ou à sua desestruturação; condicionado pelos investimentos anteriores das empresas e determinante das suas possibilidades futuras. Um aprendizado que é local, isto é, vivenciado sobretudo por aqueles que concebem e operam o processo produtivo e que, dadas as várias áreas e interfaces, deve ser coordenado, o que significa a exigência de elevada qualificação de quadros diretivos. As novas tecnologias e os novos modos de organização conferem às empresas não só elevada capacidade de adaptação às oscilações da demanda, mas, também, eficiência dinâmica que lhes permite modificar, ao menos parcialmente, o ambiente em que atuam, em benefício próprio. Ao promover a aceleração de melhorias (inovações) em seus produtos, a elevação da qualidade e a personalização e ao aumentar a variedade e o nível dos serviços prestados, a empresa estará elevando as suas chances de conquistar maiores parcelas do mercado. Este é o processo pelo qual passam os grupos econômicos internacionais que se reestruturam em escala internacional, realizando não só o investimento na produção, mas também em distribuição, marketing, etc., obedecendo, via de regra, uma lógica de mercados regionais. Entretanto, não existem indícios de que as empresas brasileiras estejam caminhando firmemente nesta direção. Nem mesmo o conjunto das empresas que investiram nos últimos anos da década de 90 permite compor um quadro otimista. As evidências são inúmeras: - os problemas de financiamento dos investimentos industriais permanecem graves, dadas as elevadas taxas de juros, a reduzida parcela de IDE dirigida para novas plantas e a ausência de vínculos entre o capital financeiro nacional – que preferiu associar-se aos seus parceiros internacionais – e o capital industrial; - em ambiente caracterizado por elevada instabilidade e quase sempre desfavorável às atividades inovativas, a grande maioria dos empresários brasileiros adotou tradicionalmente a estratégia de adquirir tecnologia no mercado, em especial no mercado externo. Para a modernização da gestão da produção, está se repetindo a mesma prática, isto é, “método de gestão” adquire-se no mercado, via compra de softwares padrões. Essa pode ser uma má aposta, pois a capacitação tecnológica e organizacional é firma-específica e de difícil transferência. Ao não buscá-la, através de esforços próprios, as empresas perdem oportunidade para elevar a sua eficiência, produtividade e a competitividade da economia brasileira. O padrão tecnológico do parque industrial brasileiro, assim, aproxima-se daquele identificado (Pavitt, 1984; Bell e Pavitt, 1993) para as indústrias tradicionais, que têm os fornecedores de máquinas e equipamentos e de matériasprimas como principais fontes de desenvolvimento tecnológico. Os casos de empresas que refletem a complexidade tecnológica das indústrias baseadas em ciência não passam de algumas dezenas, sem fôlego, portanto, para impregnar o tecido industrial. Diferentemente do ocorrido até os anos 80, o atual padrão tecnológico e organizacional das empresas e da economia brasileira não parece ter força para enfrentar os desafios impostos pelas políticas de desregulamentação e de abertura comercial e financeira implementadas na década de 90. As empresas brasileiras enfrentam agora concorrentes poderosos que acumulam há anos, décadas e, em alguns casos, há mais de século, a capacitação tecnológica e organizacional que lhes permite produção com elevada eficiência ao longo do tempo e, não menos importante, lhes permite fundirem-se a outras e migrarem para os setores mais dinâmicos, em determinadas situações, abandonando aqueles de menores taxas de crescimento e lucros. Essas são, efetivamente, empresas competitivas. As nossas empresas, mesmo as consideradas competitivas, não encontram condições de oferecer resistência, porque não têm recursos – financeiros, tecnológicos e gerenciais – para garantir a eficiência ao longo do tempo. Se pressionadas por atores do oligopólio internacional, a capitulação é quase imediata. Como estes ex-empresários têm a possibilidade de continuar acumulando riquezas através das aplicações financeiras, não resistem à forma da inserção econômica nacional e à atual política econô- - as empresas nacionais estão entre aquelas tipicamente inovadoras, pois poucas integram o complexo microeletrônico ou as demais indústrias dinâmicas, nascidas do novo paradigma; - o número extremamente reduzido de empresas inovadoras dificulta a ampliação de externalidades tecnológicas que têm forte impacto sobre a produtividade do conjunto da economia: desverticalização da produção e ampliação de redes de empresas; intensificação do vínculo universidades/institutos de pesquisa e empresa; e aprofundamento das atividades de ciência e tecnologia; - as empresas brasileiras não constituíram grandes grupos privados capazes de tornarem-se players nesta economia internacional desregulamentada, característica esta que 106 INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE 11. A respeito da internacionalização das atividades de desenvolvimento tecnológico das grandes empresas, ver Patel e Pavitt (1998) e Patel e Vega (1998). mica. Os grandes grupos que permaneceram na atividade industrial tampouco resistem, pois parte de seus rendimentos são não-operacionais, obtidos junto ao mercado financeiro. Lamentavelmente, os investimentos industriais recentes não parecem ter sido capazes de implantar uma nova estrutura industrial dinâmica que assegurasse uma inserção competitiva da indústria brasileira na economia internacional. Apesar do elevado esforço para a sua realização, por parte de algumas dezenas de empresas, esses investimentos, em termos agregados, foram insuficientes para configurar um padrão tecnológico e organizacional superior, pouco favoreceram a estruturação de relações de novo tipo entre as empresas e entre as empresas e o sistema de ciência e tecnologia, pouco contribuíram para a geração de empregos e, finalmente, pouco colaboraram para o equilíbrio da balança comercial. 12. Uma das empresas afirmou ter destinado 100% dos recursos em P&D&E para este fim, o que sugere uma falha no preenchimento do questionário ou um problema de interpretação conceitual. 13. Mesmo quando se amplia o escopo de empresas, esta constatação permanece válida. A Paep apurou, junto à totalidade das empresas industriais paulistas com mais de 50 empregados, que a quantidade de empresas inovadoras é compatível com a encontrada em outras economias, segundo Quadros et alii (1999). 14. Ver Muniz (2000), capítulo 2. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELL, M. e PAVITT, K. “Technological accumulation and industrial growth: contrasts between developed and developing countries”. Industrial and Corporate Change, v.2, n.2, 1993, p.157-210. BIELSCHOWSKY, R. Investimentos na indústria brasileira depois da abertura e do real: o mini-ciclo de modernizações, 1995-97 (www.cepal.org), 1998. DOSI, G. “The nature of the innovative process”. In: DOSI, G. et alii (eds.). Technical change and economic theory. Londres, Pinter Pub., 1988, p.221-238. FOLHA DE S.PAULO. Caderno Dinheiro, 17/12/99, p.8. __________ . Caderno Dinheiro, 29/08/00, p.B14. NOTAS INSTITUTO DE PESQUISAS TECNOLÓGICAS – IPT. A dinâmica do investimento industrial em São Paulo e a capacitação tecnológica. São Paulo, 1999 (Relatório Final IPT/DEES n.40.425). Versão modificada de artigo enviado ao XXI Simpósio de Gestão da Inovação Tecnológica. São Paulo, nov. 2000. LACERDA, A.C. “Economia brasileira: reestruturação produtiva e vulnerabilidade externa”. 13o Congresso Brasileiro de Economistas. Rio de Janeiro, 1999. 1. A taxa de investimento (% do PIB a preços de 1980) caiu de quase 23%, em 1980, para pouco mais de 15%, em 1990. Em 1992 cairia abaixo de 14%. LAPLANE, M. e SARTI, F. Investimento direto estrangeiro e o impacto na balança comercial nos anos 90. Brasília, Ipea, n.629, 1999 (Texto para Discussão). 2. O endividamento contraído por empresas privadas e pelo setor público, durante os anos 70, avolumou-se desmesuradamente com a elevação das taxas de juros norte-americanas a partir de 1979. MANZANO, M.P.F. Liberalização econômica e produtividade no Brasil dos anos 90: impactos sobre o emprego. Tese de Doutorado. Campinas, Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, 2000. 3. Compreende indústria extrativa. MUNIZ, S. Sambando em gelo fino: investimento industrial, capacitação tecnológica e organizacional e competitividade brasileira nos anos 90. Tese de Doutorado. São Paulo, Escola Politécnica, Departamento de Engenharia de Produção, Universidade de São Paulo, 2000. 4. Esta metodologia que utiliza o valor adicionado e não a produção tem a vantagem de levar em conta o efeito da elevação das importações de insumos industriais no cálculo da produtividade para a indústria brasileira. O debate sobre as várias metodologias de cálculo da produtividade pode ser visto em Manzano (2000), capítulo 3. NELSON, R. “Recent writings on competitiveness: boxing the compass”. California Management Review, v.34, n.2, 1992, p.127-37. 5. Na medida em que a produção de bens do complexo eletrônico, química fina, etc. é internalizada de forma muito incipiente mas que empresas e consumidores finais desejam acesso a esses produtos, onerando as importações de bens com elevado valor agregado. PATEL, P. e PAVITT, K. National systems of innovation under strain: the internationalisation of corporate R&D. Sussex, SPRU, 1998 (Electronic Working Papers Series, 22). 6. Uma breve análise do domínio da lógica financeira sobre a atividade industrial é feita em Muniz (2000), capítulo 1. PATEL, P. e VEGA, M. Patterns of internationalisation of corporate technology: location versus home country advantages. Sussex, SPRU, 1998 (Electronic Working Papers Series, 08). 7. Esta seção analisa os resultados de uma pesquisa de campo conduzida por equipe do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em 1999, com 55 empresas, predominantemente de grande porte, que realizaram investimentos na indústria de transformação paulista, no período 1996-98. Essa amostra de empresas não é estatisticamente representativa do universo industrial brasileiro e por esta razão os resultados quantitativos da pesquisa não devem ser generalizados. Contudo, apresenta informações qualitativas extremamente ricas para a compreensão do presente momento. PAVITT, K. “Sectoral patterns of technical change: towards a taxonomy and a theory”. Research Policy, v.13, 1984, p.343-373. QUADROS, R. et alii. “Padrões de inovação tecnológica na indústria paulista”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.13, n.1-2, 1999, p.53-66. 8. Os questionários foram respondidos por 46 empresas. Destas, 9 foram também entrevistadas, além das entrevistas com outras 9 empresas. Os detalhes da pesquisa podem ser vistos em Muniz (2000), capítulo 4. ROSENBERG, N. “Science and technology in the twentieth century”. In: DOSI, G. et alii. Technology and enterprise in a historical perspective. Nova York, Oxford University Press, 1992, p.63-96. 9. Evidentemente esta afirmativa não deve ser entendida de forma absoluta. A indústria automobilística, ao se modernizar, requer a modernização da indústria de vidros, siderúrgica, etc., com as quais tem forte sinergia. O que se quer enfatizar é que o caráter invasivo das indústrias de automação microeletrônica, informática, etc. e o seu efeito sobre a produtividade de todo o sistema são muito superiores. TEECE, D.J. e PISANO, G. “The dynamic capabilities of firms: an introduction”. In: DOSI, G. et alii. (orgs.). Technology, organization and competitiveness. Nova York, Oxford University Press, 1998, p.193-212. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 1999: foreign direct investment and the challenge of development. Genebra, United Nations, 1999. 10. Freqüentemente a explicação oferecida é de que se trata de um problema cultural do empresário brasileiro. Ao tratar a questão como sendo de responsabilidades individuais, isenta a responsabilidade maior da política econômica dos sucessivos governos brasileiros. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 1998: trends and determinants. Genebra, United Nations, 1998. 107 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO AO INVESTIMENTO PRIVADO EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais JOÃO SICSÚ Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense Resumo: Este artigo sugere a criação de uma Agência Especial de Seguros como forma de estimular o envolvimento do sistema bancário privado no financiamento do investimento inovativo e identifica duas dimensões da realidade tecnológica do Brasil: a imaturidade do sistema de inovação brasileiro, indicando a combinação entre escassez (de gastos em P&D) e desperdício (de oportunidades geradas a partir da infra-estrutura científica); e a incapacidade do sistema bancário em financiar o investimento inovativo. A proposta dessa agência busca introduzir um rearranjo no sistema de inovação brasileiro, para ampliar os recursos investidos em atividades inovativas sem ter de desviar recursos públicos para financiar o setor privado e sem deslocar recursos comprometidos com a infra-estrutura pública de ciência para a iniciativa privada. Palavras-chave: investimento e ciência; sistema financeiro; pesquisa e desenvolvimento. E ste artigo sugere a construção de uma Agência Especial de Seguros (AES) como uma inovação institucional que contribui para a superação da incapacidade do sistema bancário brasileiro de financiar o investimento inovador.1 A imaturidade do sistema de inovação brasileiro pode ser identificada tanto pelo percentual relativamente baixo de gastos com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) no país, como pelo desperdício de oportunidades oferecidas pela infra-estrutura científica ao setor produtivo. Para esse quadro de escassez e desperdício contribui de forma sensível a incapacidade do sistema bancário de financiar investimentos de longa duração e, em especial, investimentos inovadores. Este artigo se apóia em trabalho anterior (Sicsú e Albuquerque, 1998), que apresentou proposta teórica de uma Agência Especial para segurar operações de financiamento de investimentos inovadores, e discute especificamente o caso brasileiro, investigando a adequação dessa inovação institucional. Coutinho e Ferraz (1994), Schwartzman (1993) e Coutinho e Suzigan (1990), que apresentaram uma avaliação detalhada da estrutura industrial, do sistema de ciência e tecnologia e da infra-estrutura educacional do país. Uma compilação desses ricos estudos pode sustentar a avaliação do caráter imaturo do sistema de inovação brasileiro (Albuquerque, 1999). O dado mais revelador e sintético é a porcentagem do PIB brasileiro destinado a atividades de P&D: 0,8%, enquanto a média dos países do G-7 é de 2,4%. Outra diferença importante em relação aos países mais avançados, é a participação maior do setor público nas atividades de P&D existentes no Brasil (aproximadamente 70% do total no caso brasileiro, contra 45% no caso americano e 20% no caso japonês, segundo dados de Nelson, 1993). O sistema de inovação brasileiro encontra-se em uma situação intermediária no cenário internacional. Embora não faça parte do conjunto de países com sistemas de inovação inexistentes, possui características comuns a sistemas também incompletos e, por outro lado, outras identificadas com países de sistemas maduros. A partir de estatísticas de patentes (Albuquerque, 2000), foi possível identificar características comuns a países mais avançados: firmas nacionais (privadas e estatais) como líderes na obtenção de patentes; indícios de firmas multitecnológicas; distribuição do número de patentes em A IMATURIDADE DO SISTEMA NACIONAL DE INOVAÇÃO Uma avaliação geral do sistema de inovação do Brasil pode ser compilada a partir dos estudos abrangentes de 108 INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO AO INVESTIMENTO PRIVADO vação, é que firmas, universidades e centros de pesquisa devam ter um grau razoável de interação. Caso haja um fosso grande entre essas instituições constitutivas do sistema de inovação, isto deve se refletir em um baixo nível de interconectividade do sistema. Esse indicador pode contribuir para oferecer pistas sobre a qualidade dessas conexões. Para o tema deste artigo, o ponto importante na avaliação do indicador de aproveitamento de oportunidades é a posição do subconjunto, no interior do qual está localizado o caso brasileiro. O Brasil possui um IAO igual a 0,15. Encontra-se, portanto, entre os países de IAO mais baixo, inferiores a 0,26, ao lado de México, Argentina e Índia, todos países com sistemas imaturos. Os países mais desenvolvidos têm IAO maior, sendo que os países que fizeram processos de catching up no século XX (Japão e Coréia do Sul) possuem os IAOs mais elevados. No caso dos Estados Unidos, há um razoável equilíbrio entre as produções científicas e tecnológicas (IAO = 1,5). O Reino Unido possui o menor IAO entre os países desenvolvidos (IAO = 0,40). Nos sistemas imaturos, a participação do setor científico é razoavelmente superior à produção do setor industrialtecnológico, determinando o IAO baixo. Daí deriva-se o diagnóstico da existência de desperdício de oportunidades. Em termos agregados, o conjunto da infra-estrutura científica parece estar gerando informações e conhecimento não utilizados de forma apropriada pelo setor industrial e tecnológico. Dessa avaliação sumária do estágio de construção do sistema de inovação no país, duas questões particulares cobram da interface com o sistema financeiro respostas originais. Em primeiro lugar, há a necessidade de ampliação dos gastos nacionais com P&D, com destaque para um envolvimento maior e mais sistemático das firmas privadas nessas atividades. Em segundo lugar, o potencial existente nas atividades da infra-estrutura científica do país sugere a necessidade de instrumentos que possam reduzir o desperdício de oportunidades diagnosticado anteriormente. forma de “U”, de acordo com o tamanho da firma; elasticidade intersetorial P&D-patentes, compatível com os valores encontrados na literatura. Características comuns a outros sistemas imaturos foram encontradas: - participação elevada das patentes de indivíduos; - baixo envolvimento das firmas em atividades inovadoras; - falta de continuidade das atividades de patenteamento; - baixa sofisticação da divisão de trabalho inter-firmas; - papel declinante do setor produtor de bens de máquinas e equipamentos; - caráter predominantemente adaptativo das atividades tecnológicas das firmas estrangeiras; - diferenças entre a patenteação no INPI e no USPTO (United States Patent and Trademark Office), indicando que alguns setores que são líderes no patenteamento interno praticamente desaparecem nas estatísticas do escritório americano de patentes. Um aspecto particular da imaturidade do sistema de inovação brasileiro, característica comum a outros sistemas também imaturos, como o da Índia e do México (Albuquerque, 1999), é de especial interesse aqui: o desperdício de oportunidades criadas pela infra-estrutura pública de pesquisa. Para uma avaliação geral da relação entre a atividade científica e a atividade tecnológica, é possível utilizar um Indicador de Aproveitamento de Oportunidades (IAO) (Albuquerque, 1997). Esse indicador é construído a partir de duas proxies. A primeira é a participação relativa do país no total mundial de artigos científicos publicados: uma proxy das atividades científicas do país. A segunda é a participação relativa no total de patentes concedidas pelo USPTO: uma proxy das atividades tecnológicas executadas pelo país em questão. Ambas as proxies têm problemas (Velho, 1987; Griliches, 1990), mas contêm valiosas informações. O Indicador de Aproveitamento de Oportunidades é calculado dividindo-se a participação relativa no total de patentes concedidas pelo USPTO pela participação relativa no total mundial de artigos científicos. Qual o significado do IAO? Dada a complexidade da relação entre ciência e tecnologia, a comparação entre as duas participações relativas deve apresentar indícios da qualidade da interação entre elas. A avaliação da interação entre a ciência e a tecnologia é um aspecto importante da avaliação dos sistemas de inovação. A suposição básica, derivada da fundamentação teórica dos sistemas nacionais de ino- DEBILIDADES DO SISTEMA FINANCEIRO BRASILEIRO Um elemento importante da imaturidade do sistema de inovação brasileiro é a baixa articulação com o sistema financeiro, que aliás, possui uma incapacidade estrutural em conceder financiamentos de longa duração. Esta seção avalia essa incapacidade estrutural e discute se as 109 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 fornecidos pela Anpei não revelem, sabe-se que as fontes externas são fundamentalmente fundos fiscais e créditos oficiais e, certamente, a participação dos bancos privados deve ser quase nula no financiamento do investimento inovativo. Isso ocorre no Brasil porque o mercado de capitais e, especificamente, o mercado de ações é bastante débil, assim como não existe uma vocação do sistema financeiro brasileiro para se transformar em um sistema de crédito, em qualquer das versões destacadas na classificação de Zysman (1983). Cabe ressaltar, portanto, que até mesmo o investimento não-inovativo é fortemente autofinanciado na economia brasileira. Segundo Lees, Bott e Cysne (1990), durante os anos 80, a parcela dos gastos autofinanciada nas empresas privadas nacionais era de aproximadamente 77%, enquanto as empresas privadas estrangeiras utilizavam quase 88% de recursos próprios para financiar os seus gastos. A causa da debilidade do mercado de ações é basicamente o reduzido volume de poupança com perfil de longo termo que poderia dar densidade a esses mercados. Os fundos de investimento, por exemplo, administrados pelos bancos, são compostos pelo FIF (Fundo de Investimento Financeiro), por fundo de ações e outros – fundos que, desde sua criação, no início dos anos 90, são compostos em grande parte por títulos federais e uma reduzida parcela de ações. Nos primeiros meses do ano 2000, segundo dados do Boletim do Banco Central, mais de 70% do volume de recursos dos fundos de investimento estava direcionado para a aquisição de títulos federais e aproximadamente 8% para a aquisição de ações. Outro indicador da debilidade do sistema financeiro brasileiro é a sua concentração em atividades de curto termo. Pode-se identificar uma acentuada tendência de elevação da participação percentual do volume de crédito concedido aos setores que caracteristicamente tomam recursos para operações de curto termo (pessoas físicas e comércio). Enquanto em junho de 1988 essas operações representavam pouco menos de 10% do total do crédito ofertado pelo sistema financeiro, em outubro de 1999 passam a representar quase 30% desse total. De forma oposta, a participação percentual do volume de recursos emprestado pelo sistema financeiro aos setores que particularmente tomam crédito de longo termo (indústria e habitação) apresenta uma ligeira tendência de queda no mesmo período. Nem mesmo o Plano Real, instituído em julho de 1994, alterou essas tendências, embora tenha criado um clima mudanças que o sistema financeiro tende a sofrer no país representarão a superação dessa incapacidade estrutural. O investimento em P&D envolve algumas especificidades técnicas e econômicas que têm determinado a forma de seu financiamento, como o seu longo período de maturação e a necessidade de um volume elevado de recursos. Tais características geram uma aguda incerteza devido aos riscos técnicos e de mercado envolvidos. O elevado volume de recursos necessários deveria induzir as firmas inovadoras a solicitar recursos de terceiros. Contudo, os elevados riscos tendem a inibir as firmas inovadoras a recorrer a essas fontes. A opção de grande parte delas, mundo afora, tem sido o autofinanciamento já que, além dos fatores que inibem a demanda, a oferta de recursos para o financiamento externo é reduzida ou, até mesmo, inexistente, em decorrência das incertezas envolvidas. Segundo Zysman (1983), há três sistemas de financiamento do investimento em geral, e conseqüentemente, do investimento inovativo: os sistemas de mercado de capitais, os sistemas de crédito privado e os sistemas de crédito público. O primeiro modelo pode ser exemplificado especialmente pela forma de financiamento do investimento nos Estados Unidos e na Inglaterra. Nesses países, é privilegiado o canal do financiamento direto via emissão de papéis (ações, debêntures, etc.) pela firma investidora que busca captar os recursos do público poupador. No segundo sistema, os bancos proveêm as firmas de crédito de longo termo, caso da Alemanha. No terceiro sistema, semelhante ao segundo, o governo garante a oferta de crédito de longo termo. Instituições públicas, tais como bancos de desenvolvimento e agências de fomento, realizam essa oferta, como é o caso da França. Alternativamente, o governo pode, em vez de participar diretamente do sistema de financiamento, impor uma série de regras para dirigir o sistema de crédito privado para o financiamento de longo termo, caso do Japão. O sistema brasileiro de financiamento de recursos para o investimento em P&D, basicamente de autofinanciamento, não encontra lugar na taxonomia de Zysman (1983). Em relação aos gastos com P&D, de 1993 a 1998, os recursos investidos foram basicamente autofinanciados e somente uma reduzida parcela foi financiada por fontes externas que são as agências públicas (BNDES, Finep, etc.), as agências internacionais, o Sebrae, os bancos privados e outras fontes que subsidiam ou praticamente doam recursos para esse fim. Dados da Anpei mostram que nesse período, 1993-98, a parcela autofinanciada dos recursos investidos nunca foi inferior a 90%. Embora os dados 110 INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO AO INVESTIMENTO PRIVADO Nada indica que esse quadro deva mudar. Pelo contrário, a tendência do sistema financeiro internacional que será seguida no Brasil, em virtude da entrada de um grande número de bancos estrangeiros no País a partir de 1995, deverá manter ou agravar a situação de precariedade do financiamento externo ao investimento em P&D. A tendência do sistema financeiro internacional é o aprofundamento do processo de desintermediação financeira e o alargamento dos mercados de dívidas securitizadas. Desintermediação é o termo utilizado para designar o processo que os bancos estão há algum tempo desenvolvendo, principalmente nos Estados Unidos, onde reduzem suas operações de concessão de crédito e, simultaneamente, ampliam o volume de operações menos arriscadas de realização de negócios diretos entre poupadores e investidores, chamadas de securitização. A emissão de papéis por firmas investidoras para a aquisição direta por parte de instituições poupadoras com perfil longo-termista é uma tendência crescente do sistema financeiro internacional e, além disso, uma tendência alternativa aos sistemas de crédito privado e público em que as instituições carregam o risco inerente das operações de concessão de empréstimos e os seus custos mais elevados, devido às restrições regulatórias (reservas mínimas) e às formas específicas desses negócios (por exemplo, o estudo de cadastro). Essas operações não são recentes, pois as grandes corporações e instituições poupadoras longotermistas já participam dos mercados de dívidas há muitos anos. As empresas menores ou que realizam investimentos com maiores riscos não têm tido acesso a essa fonte porque não possuem a tecnologia dos negócios desse mercado, ou porque representam um elevado risco para o poupador (emprestador). Sendo assim, quando o processo de desintermediação ocorrer no Brasil, tal transformação muito provavelmente não mudará a situação de escassez do investimento em P&D. As empresas investidoras em P&D, aos olhos dos poupadores, continuarão a emitir papéis com possibilidades bastante arriscadas de negócios recompensadores e, certamente, a tomada de recursos para este fim, mesmo em uma operação direta com o poupador, representará uma possibilidade de financiamento em que o risco do emprestador tende a ser maior do que para projetos nãoinovativos. Ainda que exista demanda por financiamento para o investimento inovativo e haja oferta de fundos para a concessão de empréstimos, a taxa de juros de tal operação seria bastante elevada pelo risco de inadimplência, o que tenderá a tornar inviáveis os empréstimos. muito mais favorável às atividades reais de longo termo, como a construção de moradias e infra-estrutura e o investimento de ampliação ou de constituição de novas plantas. Se são reduzidas as poupanças com perfil longo termista, os sistemas de crédito (privado e público, na sua versão japonesa) também não podem ser uma alternativa, porque as instituições financiadoras (para conceder crédito de longo termo) não podem carregar passivos curtos. A participação percentual dos depósitos a prazo no total do passivo dos bancos comerciais era muito baixa no final dos anos 80 para sustentar a concessão de crédito de longo termo. Contudo, cabe ressaltar que os bancos comerciais não possuem horizontes longo-termistas. Os bancos múltiplos, estes sim, que possuem um estrutura de ativos e passivos mais diversificada, poderiam atuar com horizontes maiores. Entretanto, o percentual de participação dos depósitos a prazo nos seus passivos, no final dos anos 80, era inferior ao percentual alcançado pelos bancos comerciais. O crescimento acentuado dos depósitos a prazo no passivo dos bancos múltiplos e comerciais, que ocorreu até 1994, não foi devido ao aumento da propensão a poupar em ativos de longo termo, mas simplesmente porque esses eram ativos que protegiam os recursos monetários de seus possuidores em um contexto de inflação alta e crônica; além disso, seu prazo de resgate era bastante reduzido, e por vezes, dependendo do volume de recursos e de outras condições impostas pelos bancos, podiam ser resgatados em apenas um dia. O que pode ser observado, após a estabilização, a partir de julho de 1994, é que o percentual de depósitos a prazo, em relação ao total do passivo dos bancos múltiplos e comerciais, volta a declinar atingindo patamares semelhantes àqueles do final dos anos 80. A única diferença, recentemente, é os bancos múltiplos estarem captando depósitos a prazo em proporção maior (relativamente ao total de seus passivos) do que os bancos comerciais. A ausência de poupadores longo-termistas também se deve a fatores associados ao sistema financeiro. Por exemplo, a inexistência de instituições captadoras de grande porte e com tradição que desfrutem da confiança do público potencialmente poupador de recursos a longo termo e, paralelamente, a inexistência de mecanismos reconhecidamente eficazes de proteção das poupanças (isto é, mecanismos de controle de riscos das operações das instituições captadoras) podem ser considerados como fatores inibidores da realização de poupanças longo-termistas. 111 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Dadas as condições de incerteza inerentes às atividades de P&D que geram reduzidos financiamentos para estas atividades e o conseqüente subinvestimento neste segmento da economia, sugere-se a intervenção do setor público. O objetivo dessa intervenção seria diminuir tais condições desfavoráveis, uma vez que o mercado é incapaz de minorá-las. Propõe-se a criação de uma Agência Especial de Seguros que realize algum tipo de seguro não-tradicional dos financiamentos dos investimentos privados em P&D. A Agência pagaria uma indenização ao banco emprestador, que recuperaria uma parcela dos recursos comprometidos caso o projeto fracassasse por razões estritamente tecnológicas. O objetivo seria pagar uma indenização que satisfizesse parte da demanda por segurança desejada pelo investidor potencial em P&D e por seu financiador. O pagamento de uma indenização muito abaixo das necessidades do potencial-inovador e de seu financiador inibiria a decisão de investir, por outro lado, uma indenização muito elevada desestimularia os esforços necessários ao sucesso do projeto implementado, assim como incentivaria análises bancárias pouco rigorosas sobre o projeto de P&D. Uma indenização estratégica, isto é, intermediária (entre aquele valor que inibe a atividade e outro que desestimula e/ou reduz o rigor de análise) seria o ideal. A AES seria constituída inicialmente por um aporte de recursos públicos, inaugurando um fundo que seria por ela administrado. A partir de sua constituição, tal fundo seria alimentado por recursos privados, decorrentes dos pagamentos que empresários inovadores devem fazer à AES para garantir o direito de seguro de suas operações financeiras relacionadas às suas atividades inovadoras. Espera-se que a proporção de recursos privados cresça ao longo do tempo. O aporte inicial e constitutivo de recursos públicos tem um papel-chave para a construção da credibilidade da AES. Caso a parcela de recursos de origem pública do fundo venha a ser utilizada, isso indicaria a existência de graves problemas no funcionamento geral do sistema de inovação e de seu financiamento – porque a AES não estaria atraindo recursos privados. A AES, nesse caso, não conseguiria resolver os problemas que motivaram a sua criação. É importante lembrar que as atividades da AES estão entre as atividades cujo resultado negativo (o sinistro) apenas pode ocorrer depois de um certo período de tempo, o que fornece à AES uma importante margem de manobra inicial. A entidade proposta para compor o sistema financeiro é uma Agência por ser uma instituição semi-au- O que se pode concluir é que a única mudança que se vislumbra no sistema financeiro brasileiro, a desintermediação e a implementação da securitização, não poderá alterar de forma substancial o quadro atual de escassez de demanda e oferta de fundos para o financiamento do investimento inovativo. AGÊNCIA ESPECIAL DE SEGUROS A discussão das duas seções anteriores identificou a imaturidade do sistema de inovação brasileiro, indicando a singular combinação entre escassez (de gastos em P&D) e desperdício (de oportunidades geradas a partir da infraestrutura científica) e a incapacidade do sistema financeiro em custear o investimento inovativo. A questão agora é investigar como ampliar os recursos investidos em atividades inovativas sem ter de desviar recursos públicos para financiar o setor privado e sem deslocar recursos comprometidos com a infra-estrutura pública de ciência para a iniciativa privada. É importante salientar que existem um conjunto de instituições, programas e projetos que tentam suprir essas debilidades. A avaliação geral apresentada neste artigo sobre a imaturidade do sistema de inovação no Brasil é um diagnóstico da incapacidade dessas importantes tentativas em superar os problemas apontados na seção II. A proposta da AES, por isso, justifica-se. Certamente o sistema de inovação brasileiro tem muito a ganhar com mais recursos públicos investidos diretamente em suas instituições. O que se defende neste texto contribui para essa possibilidade, ao explicitamente buscar evitar que recursos públicos sejam destinados para apoiar o setor privado. Em suma, trata-se de investigar uma instituição que contribua para ampliar os recursos que o setor privado investe em atividades inovativas. Para tanto, o objetivo deve ser o de criar mecanismos que estimulem o envolvimento do setor financeiro com as atividades inovativas – e não recursos públicos. Deixado à própria sorte, o sistema financeiro brasileiro não desenvolverá as características necessárias para o financiamento do investimento inovativo. A proposta de uma AES foi apresentada como sugestão para superar um problema identificado a partir da avaliação das características do investimento inovativo. Trata-se agora de justificar porque essa Agência é necessária e adequada para o caso brasileiro. Sicsú e Albuquerque (1998:687-689) sintetizaram a proposta da AES. Os argumentos principais, extraídos daquele texto, são os que se seguem. 112 INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO AO INVESTIMENTO PRIVADO firma estabelecida (ou seja, esse tipo de operação envolve uma parcela de risco semelhante à do investimento inovativo). O efeito da criação da AES, portanto, será também o de facilitar esse tipo de operação. A criação de uma AES rearranja o sistema de inovação brasileiro em quatro dimensões. Em primeiro lugar, a AES constrói uma ponte entre o sistema financeiro e o sistema de inovação, criando condições para que o setor privado canalize recursos para atividades inovativas e para a criação de novas firmas de base tecnológica. Em segundo lugar, a entrada dos bancos e poupadores privados no processo de financiamento de atividades inovativas deve ser considerada um importante passo em direção ao amadurecimento do sistema de inovação. O desenvolvimento da capacidade de avaliação, monitoramento e fiscalização de empréstimos para atividades de enorme impacto econômico certamente representa uma importante mudança estrutural de um sistema financeiro incapaz de sair de um limitado horizonte de curto termo. Em terceiro lugar, o setor público tem papel-chave no financiamento e no aprimoramento da infra-estrutura científica do país. A criação da AES retira de entidades voltadas para o fomento da atividade científica a responsabilidade de injetar recursos para a viabilização do aproveitamento comercial de novos conhecimentos. Em quarto lugar, as agências que hoje aprovam projetos e destinam recursos para novas firmas e atividades inovativas (Finep, BNDES, Sebrae, Fapesp, etc.) têm uma contribuição importante para a constituição da AES: o know-how acumulado na avaliação de projetos e de sua viabilidade será útil para a preparação da capacidade técnica que a AES precisa ter. Nesse sentido, mesmo os bancos privados podem se beneficiar dessa capacitação já acumulada. Há um remanejamento de tarefas no interior dessas instituições. Bancos de fomento, uma vez liberados da função de destinar recursos para o setor privado, poderiam concentrar suas tarefas na execução de políticas industriais visando o amadurecimento do sistema de inovação brasileiro e o fortalecimento do sistema de bem-estar social. Enfim, a criação da AES reorganiza o sistema de inovação brasileiro, ampliando o número de agentes que atuam no sistema de inovação e definindo uma divisão de trabalho inter-institucional mais precisa. tônoma no interior do Estado que administrará recursos privados de acordo com objetivos públicos (não terá como meta a obtenção de lucros). A entidade proposta é Especial porque não é uma seguradora que aposta contra eventos cuja distribuição de probabilidades existe e é conhecida. É uma Seguradora porque, embora não o seja no sentido estrito do termo, a AES acabará por ser vista por banqueiros e empresários como uma instituição seguradora tradicional que paga indenizações em caso de fracasso. Por último, a proposição da AES decorre da concepção que não considera apropriadas políticas que sugerem a transferência direta de recursos governamentais para firmas privadas (Nelson e Romer, 1996). Tal política poderia resultar em uma indevida redução da participação do setor público na necessária sustentação da infra-estrutura científica, que possui um papel crucial na divisão de trabalho interinstitucional existente nos sistemas de inovação, ao garantir um pólo da complexa interação entre ciência e tecnologia. Portanto, a discussão teórica realizada sobre o caráter do financiamento do investimento em P&D foi combinada com uma preocupação adicional: como ampliar os gastos globais em P&D sem comprometer o financiamento do lado inescapavelmente público do sistema de inovação. A AES deve contribuir para que o sistema financeiro construa uma ponte com o sistema de inovação. A discussão do caso brasileiro, porém, sugere que a AES deva ser organizada de forma a dar conta das duas questões indicadas anteriormente: ampliar os gastos com P&D pelo setor privado e fortalecer as possibilidades de transformação do conhecimento gerado/absorvido pela infra-estrutura científica em atividades industriais e tecnológicas (o que significa apoio ao desenvolvimento de novas firmas de base tecnológica). Por isso, a proposta feita anteriormente deve ser ligeiramente adaptada para as tarefas específicas de um sistema imaturo. As tarefas apontadas, nesse caso, devem ser combinadas com tarefas como as desempenhadas pelo esquema britânico das loan guarantee scheme (LGS) (Goodcare e Tonks, 1996; National Economic Research Associates, 1990; Levitsky e Prasad, 1987). Esse esquema foi mencionado em Sicsú e Albuquerque (1998:689690) para apoiar a argumentação da AES. As especificidades do caso brasileiro justificam a inclusão das atividades do LGS entre as funções da AES. Assim, a discussão teórica realizada na seção III pode perfeitamente englobar os empréstimos para a abertura de novas firmas como portando mais risco do que empréstimos para uma CONCLUSÃO A proposta de uma inovação institucional caracterizada pela criação de uma AES parte de uma avaliação do 113 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 __________ . “National systems of innovation and non-OECD countries: notes about a tentative typology”. Revista de Economia Política, v.19, n.4, 1999, p.35-42. estágio de construção do sistema de inovação brasileiro e do grau de funcionalidade do sistema financeiro. É importante destacar que o caráter imaturo do sistema brasileiro de inovação enfatiza a existência de elementos que devem ser utilizados para o seu amadurecimento, em especial a infra-estrutura científica constituída, um importante ponto de partida. A presença de firmas (e não indivíduos) como líderes na patenteação é um outro ponto de partida importante. O sistema financeiro brasileiro, por outro lado, em que pesem as limitações discutidas no texto, é expressivo. Existem instituições poderosas que possuem condições de cumprir um papel crucial de apoio a um processo de desenvolvimento. A proposta da AES, portanto, é adequada ao estágio atual de construção tanto do sistema de inovação como do sistema financeiro, pois basicamente busca o estabelecimento de uma ponte entre ambos. Construída essa ponte, um enorme passo em direção ao amadurecimento do sistema de inovação brasileiro poderá ser dado. __________ . “Domestic patents and developing countries: arguments for their study and data from Brazil (1980-1995)”. Research Policy, 2000 (no prelo). ARROW, K. Essays in theory of risk-bearing. Amsterdam/Londres, North Holland, 1971. COUTINHO, L. e FERRAZ, J.C. (coords.). Estudo sobre a competitividade da indústria brasileira. Campinas, Papirus/Unicamp, 1994. COUTINHO, L. e SUZIGAN, W. Desenvolvimento tecnológico da indústria e a constituição de um sistema nacional de inovação. Campinas, IE/Unicamp, 1990. GOODCARE, A. e TONKS, I. “Finance and technological change”. In: STONEMAN, P. (ed.). Handbook of the economics of innovation and technological change. Cambridge, Mass., Basil Blackwell, 1996. GRILICHES, Z. “Patent statistics as economic indicators: a survey”. Journal of Economic Literature, v.28, 1990, p.1.661-1.707. LESS, F.; BOTTS, J. e CYSNE, R. 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Este artigo sintetiza os principais argumentos de trabalho em desenvolvimento (Sicsú e Albuquerque, 2000). __________ . O envolvimento do sistema financeiro com as atividades de P&D: o papel de uma Agência Especial de Seguros no Brasil. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 2000, mimeo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS VELHO, L. “The author and the beholder: how paradigm commitments can influence the interpretation of research results”. Scientometrics, v.11, n.12, jan. 1987, p.59-70. ALBUQUERQUE, E. “Notas sobre os determinantes tecnológicos do catching up: uma introdução à discussão sobre o papel dos sistemas nacionais de inovação na periferia”. Estudos Econômicos, v.27, n.2, 1997. ZYSMAN, J. “Governments, markets and growth: financial systems and the politics of industrial growth”. Nova York, Cornel, 1983. 114 TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA TECNOLOGIA E EMPREGO uma relação conflituosa JORGE MATTOSO Professor do Instituto de Economia da Unicamp e Secretário Municipal de Relações Internacionais de São Paulo Resumo: A relação entre tecnologia e emprego foi seguidamente reduzida à sua expressão mais simples. Este artigo rediscute essa relação, considerando sua complexidade e conflito, sempre imersa em relações macroeconômicas e sociais mais amplas. Nesse sentido, observa-se que hoje essa relação se constrói em meio a um processo de globalização financeira, de desregulação dos mercados e de redução da capacidade regulatória e de gasto do Estado. Esse processo, por sua vez, teria gerado um novo regime de crescimento, no qual as principais variáveis relacionadas ao emprego (produto, produtividade, tempo de trabalho, demanda e investimento) apresentariam um desempenho medíocre, se comparadas às de outros períodos. Palavras-chave: inovação tecnológica; mudanças e emprego; trabalho. D - do caráter cada vez mais concentrado dos capitais e desregulado da concorrência e dos mercados; esde a primeira revolução industrial até os dias de hoje têm sido acirrados os debates sobre a relação entre inovação tecnológica e emprego. Esses debates, no entanto, ocorreram por ondas, como que favorecidas pelo ciclo econômico. Nesse sentido, em períodos de forte crescimento as teses dominantes tenderam a valorizar os efeitos positivos do progresso técnico. Em contrapartida, em períodos de crise e de introdução mais intensa de novas máquinas, equipamentos e formas de produção, proliferaram as análises que viam o progresso técnico como o grande e único responsável pela redução de empregos. Com o desenrolar da crise iniciada nos anos 70 do século XX, essa discussão voltou à cena, ampliada pela desordem do trabalho que se abateu sobre muitos países. Nesta passagem de século, os processos de globalização financeira, desregulação dos mercados e intensas transformações tecnológicas geraram novas ou ampliaram velhas tensões, em meio à dificuldade em situá-las historicamente e à carência de alternativas coletivas transformadoras. Ampliaram-se, por isso, as tensões das sociedades capitalistas modernas neste final de século, resultantes: - da globalização financeira e de seu impacto sobre a instabilidade e o dinamismo do investimento e da acumulação produtiva; - da tendência do capital eliminar trabalho vivo no processo de produção (até para ver-se livre de uma força de trabalho sempre imprevisível, mas, sobretudo, para ampliar os seus ganhos de produtividade vis-à-vis seus concorrentes) e da necessidade de uma demanda final suficientemente dinâmica para realizar a produção no mercado; - do caráter cada vez mais internacionalizado do capital e nacional da gestão da força de trabalho (o direito, as relações de trabalho, a regulação do Estado, etc.). Nesse quadro, tendeu-se a menosprezar essas tensões do presente, assim como a necessidade de transformá-las. Um descaso com o presente que, muitas vezes, privilegiou uma volta ao passado ou um salto ao futuro e considerou que o direito ao trabalho e o pleno emprego seriam questões obsoletas. Dessa forma, terminou-se por admitir como fatalidade o baixo crescimento do produto e como inevitável, o desemprego e a “precarização” das condições e relações de trabalho, propondo-se apenas a buscar a elevação da capacidade de geração de empregos, que apresentou crescimento medíocre. Esse descaso com o presente favorece o menosprezo das relações macroeconômicas, sociais e institucionais mais amplas em que está imersa a inovação tecnológica, 115 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 A relação entre inovação e emprego sempre foi complexa, quando não conflituosa. Mas nesse quadro econômico internacional, essa relação parece assumir uma forma ainda mais complexa e conflituosa e, talvez por isso mesmo, sujeita a simplificações. Não é de hoje a introdução da inovação tecnológica no processo produtivo e é resultado da concorrência entre os capitais. Seu objetivo maior é elevar a produtividade e reduzir o trabalho vivo diretamente envolvido nesse processo. Se “a máquina é inocente das misérias que ela causa” (Marx, 1975), o desemprego é, contraditoriamente, conseqüência do desenvolvimento do progresso técnico, nas condições próprias ao funcionamento sem controle do modo de produção capitalista. Em outras palavras, embora o móvel da inovação tecnológica seja a dinâmica da acumulação na busca incessante da maior valorização possível do capital, ela move-se contra os trabalhadores e a sociedade como resultado da sua apropriação privada, de sua utilização unilateral e sem regulação social. A inovação tecnológica assumiria uma dupla dimensão: por um lado, poderia favorecer o emprego em períodos de expansão do ciclo econômico e, por outro, poderia ser fator de agravamento durante as depressões, quando emergiria o desemprego tecnológico, como parte do desemprego cíclico (Schumpeter, 1968). A expansão das atividades produtivas apareceria, então, como um processo de destruição criadora, em que um ciclo contínuo mais ou menos intenso de desestruturações e reestruturações criaria e destruiria empresas, atividades, empregos. Quando observadas situações históricas específicas, vêem-se diferentes movimentos e intensidades desse processo de destruição criadora. Também ocorrem distintos saldos desse processo de reestruturação e desestruturação, de criação e destruição, assim como diferentes condições macroeconômicas, sociais e institucionais em que se baseia esse processo. Dessa forma, alguns países podem apresentar pujança e dinâmica de crescimento, enquanto outros, estagnação ou decadência. Mas, não menos importante, um determinado país pode apresentar um saldo positivo dessa destruição criadora em um determinado período de intenso crescimento econômico, dominância dos aspectos reestruturantes da produção e da geração de empregos, e um saldo negativo em outro período, com relativamente baixo crescimento e dominância dos aspectos desestruturantes da produção e do emprego. O progresso técnico pode ser ao mesmo tempo fonte de crescimento e, portanto, de empregos, e origem da elevação da produtividade, que permitiria a supressão de fazendo sua relação com o emprego assumir uma forma simplificada, senão caricatural. GLOBALIZAÇÃO, INOVAÇÃO E EMPREGO É verdade que o processo de globalização financeira e de desregulação dos mercados coloca novos e verdadeiros problemas nos planos nacional e internacional. Por um lado, as políticas nacionais são mais suscetíveis aos choques que sacodem o sistema econômico internacional. Mas ao contrário do canto de sereia da convergência entre as nações, esse processo criou uma estrutura profundamente hierarquizada e desigual, em cujo epicentro encontra-se os EUA, com sua reconquistada hegemonia e extraordinário poder financeiro. Os Estados Nacionais, no entanto, conservam variadas formas de liberdade de ação e a situação econômica e social continua dependendo das políticas estabelecidas nos países – no campo macroeconômico, social e do mercado de trabalho – e de sua capacidade de constituir ou preservar uma estratégia nacional de desenvolvimento e de cooperação regional, em meio à inserção ativa e soberana na (des)ordem econômica internacional reinante. Essa mesma globalização financeira e desregulação dos mercados tem afetado sobremaneira a dinâmica econômica internacional, fazendo que vários analistas considerem a emergência de um novo padrão de acumulação de capital dominado pela esfera financeira (Chesnais, 1996; Guttmann, 1996; Kregel, 1996) e cujos níveis de crescimento seriam mais baixos que os do passado. Na década de 90, a expansão do produto mundial foi ainda menor que a dos anos 80 (3,2% e 2,5%, respectivamente, segundo World Bank 2000 e OCDE 2000a), e as duas grandes exceções, que compreendem mais de 2,2 bilhões de habitantes, foram a China e a Índia. Esses dois países tiveram nos anos 90 taxas de crescimento médias anuais de 11,2% e de 6,1%, respectivamente. Pouco se fala sobre justamente esses dois países haverem preservado políticas defensivas de sua produção e emprego e um projeto estratégico nacional. Por outro lado, a exacerbação da concorrência nos mercados mundiais e a mobilidade desregulada dos capitais favoreceram que as empresas ficassem crescentemente presas à lógica e à rentabilidade financeira e que emergisse uma verdadeira desordem do trabalho (Mattoso, 1995 e 1997), debilitando a posição dos trabalhadores, colocando em xeque as normas do trabalho e dificultando a capacidade dos Estados aplicarem políticas sociais e de emprego. 116 TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA postos de trabalho. Mas a inovação tecnológica e a elevação da produtividade, ao mesmo tempo que destruiriam produtos, empresas, atividades econômicas e empregos, também poderiam criar novos produtos, novas empresas, novos setores e atividades econômicas e, portanto, novos empregos. Não tenhamos dúvidas de que, do ponto de vista do emprego, o progresso técnico (e seu ritmo) favorece a aceleração das transformações qualitativas do trabalho (mudança da divisão técnica do trabalho, da organização do trabalho, das qualificações), assim como da distribuição setorial do emprego (nascimento, expansão e declínio das atividades econômicas). Portanto, o conjunto de inovações surgidas nos anos 60 e 70, e que vem sendo difundido nas últimas décadas, mudou a qualidade do trabalho e acelerou a destruição de velhos produtos, atividades econômicas ou formas de organização do trabalho. É evidente também que o progresso técnico – sobretudo quando observado em uma empresa, setor ou região – pode se refletir em supressão de empregos. No entanto, a inovação tecnológica – embora possa modificar a determinação da qualidade e da quantidade do emprego, principalmente quando observamos uma empresa ou setor – não determina a priori seu resultado em nível nacional. Somente em uma versão estática e em um universo ceteris paribus pode-se supor que um maior crescimento da produtividade seja automaticamente equivalente a um menor crescimento do emprego e, conseqüentemente, maior desemprego no plano nacional. Esse resultado não precisa necessariamente ser mais desemprego. Pode ser mais emprego, consumo, tempo livre ou desemprego e essa é uma escolha social, historicamente determinada pelas formas de regulação do sistema produtivo e de distribuição dos ganhos de produtividade.1 A economia seria então vista de forma bem mais indeterminada e a tecnologia faria parte de um processo histórico e cumulativo. Essa visão dinâmica da inovação tecnológica reconhece o papel central que desempenham os fatores de heterogeneidade e as assimetrias de comportamento ou de situação. Por outro lado, irão criticar as inconsistências teóricas de determinados mecanismos de compensação e considerar que será a intensa geração de novos produtos, surgida após um período em que os novos produtos são testados, que permitirá superar o desemprego (Freeman et alii, 1982; Romer, 1990). A procura sistemática de inovações estabeleceria um elemento dinâmico do desenvolvimento capitalista e seria impulsionada pela concorrência intercapitalista, permanente no regime capitalista de produção. Um novo paradigma tecnológico surgiria das sendas abertas pelo desenvolvimento científico no marco das dificuldades e contradições (de mercado, institucionais e sociopolíticas) levantadas ao longo de uma trajetória tecnológica (Dosi, 1982). No entanto, vale precaver-se contra um possível determinismo econômico e tecnológico, muitas vezes presente na literatura neo-schumpeteriana, e se considerar o sistema econômico imerso em relações econômicas, tecnológicas, sociais e institucionais que favoreceriam ou não o seu funcionamento. Uma boa articulação ou regulação dessas relações favoreceria o crescimento econômico. Em contrapartida, a sua desarticulação favoreceria a ocorrência de crises e até mesmo a superação dos modos de regulação (regime de acumulação, relação monetária, relação salarial, tipo de concorrência, regime internacional e as formas de intervenção do Estado), de formas institucionais e parâmetros para o crescimento e o progresso técnico (Boyer, 1988; Boyer e Petit, 1990; Petit, 1995). A tecnologia, portanto, pode e vem sendo reconhecida como fator-chave da definição de vantagens sustentadas da concorrência entre as empresas e as nações e como motor de alterações tanto da composição qualitativa da força de trabalho (divisão técnica, organização e qualificação do trabalho), quanto de sua composição quantitativa ou setorial (emergência, desenvolvimento e declínio das atividades). A tecnologia crescentemente associa-se ao conhecimento (Lundvall e Johnson, 1992) e a novas formas organizacionais e, portanto, é também formada por elementos intangíveis. Ao mesmo tempo, mantém uma relação complexa com o emprego, sem automatismos, em que se mesclam efeitos poupadores de força de trabalho, forças compensadoras e distintas formas de progresso técnico, em condições econômicas, sociais e institucionais determinadas pela reemergência de uma nova forma de laissez-faire sob dominância financeira. PRODUTIVIDADE E EMPREGO Mas se não há um automatismo na relação entre tecnologia e emprego, qual foi o resultado deste processo? Como têm se comportado os ganhos de produtividade resultantes da introdução das várias formas – técnicas, mas também organizacionais, comerciais e financeiras – da inovação2 no processo produtivo? Observemos, inicialmente, o ocorrido com algumas das principais variáveis de produtividade e emprego em três 117 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 bém foi alterada a dinâmica de expansão do produto (mais intensamente na Europa que nos EUA), do tempo de trabalho (as reduções do tempo de trabalho tornaram-se menos expressivas na Europa, enquanto nos EUA os trabalhadores passaram a trabalhar mais horas) e a expansão do emprego público sofreu uma redução significativa (mais na Europa sob os efeitos restritivos do acordo de Maastricht que nos EUA). A redução no crescimento da produtividade ocorrida nas últimas décadas vai favorecer o surgimento de uma importante questão econômica contemporânea. Trata-se do rompimento do ritmo de crescimento da produtividade ao mesmo tempo em que a introdução de novas tecnologias parece portadora de importantes ganhos de produtividade e de não menos importantes transformações no emprego. Mas se as novas tecnologias são portadoras de tal potencial de “revolução” das atividades produtivas e do emprego, por que é que não se verificou o crescimento da produtividade? Denominado “paradoxo de Solow”, a partir de um artigo onde o economista norte-americano e prêmio Nobel questionava essa nova realidade (Solow, 1987), este verdadeiro enigma tem recebido várias análises tentando decifrá-lo. Um primeiro eixo de análise buscou dar conta de tal paradoxo considerando, sobretudo, os planos metodológico e estatístico. Por um lado, buscou-se explicar a queda da produtividade como um efeito estrutural, levando- subperíodos distintos: um primeiro identificado com os anos de ouro do pós-guerra (iniciado em 1960 e terminado após o primeiro choque do petróleo em 1973); um segundo identificado com a crise dos anos 70 (tomando-se o seu início após o primeiro choque dos preços do petróleo e o fim após a intensa recessão do início dos 80); e a terceira fase identificada com o período atual de globalização, desregulação e financeirização. Inicialmente, observa-se que, no primeiro período, elevados níveis de produtividade foram acompanhados de baixas taxas de desemprego, quando não do pleno emprego. Isso foi possível graças às relações dinâmicas ocorridas entre os processos geradores de ganhos de produtividade e os vários componentes da demanda, especialmente a intensa expansão do produto, a redução do tempo de trabalho e a elevação do emprego público. Também foram importantes para a obtenção do pleno emprego, sobretudo no caso europeu, as políticas destinadas a reduzir a pressão sobre o mercado de trabalho, tais como: apoio à pequena propriedade, urbana e rural, elevação da escolaridade e adiamento do ingresso dos jovens, adiantamento da aposentadoria e da saída dos mais velhos do mercado de trabalho, etc. No atual período, em contrapartida, os ganhos de produtividade do trabalho são surpreendentemente menores que no período anterior, e, no entanto, as taxas de desemprego e/ou os níveis de precariedade das condições de trabalho elevaram-se entre 1984 e 1999. Na verdade, tam- TABELA 1 Taxas Médias Anuais de Variação das Principais Variáveis de Produtividade e Emprego EUA e União Européia – 1960-1999 Em porcentagem Taxa de Variação Média Anual Anos Emprego Total EUA 1960-1973 1974-1983 1984-1999 1,94 1,67 1,74 União Européia 1960-1973 1974-1983 1984-1999 (3) 0,29 -0,03 0,54 (4) Emprego Público (1) Produto Produtividade Horária Tempo de Trabalho Desemprego 3,92 1,46 1,49 4,31 2,06 2,94 2,63 0,61 0,93 -0,30 -0,23 0,26 4,94 7,48 6,07 3,52 2,32 0,71 5,08 2,05 2,38 5,65 3,11 2,07 -0,83 -1,00 (5) -0,02 (2) 2,43 5,70 10,82 Fonte: Elaboração própria com base em OCDE 1999, 2000 e 2000a. (1) Dados de 1969-73. (2) Dados de 1970-73. (3) Exclusive 1991. Os dados de 1999 são previsões da OCDE. (4) Dados de 1984-97. (5) Dados de 1984-98. 118 TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA de e o desenvolvimento tecnológico, portanto, iria requerer o longo prazo, quando então poderia amadurecer uma determinada inovação, tal como ocorreu na expansão da tecnologia vinculada ao automóvel. Esses estudos, no entanto, mantêm-se em um quadro analítico demasiado restrito às variáveis tecnológicas. Na verdade, diferentes “paradigmas tecnológicos” se caracterizam por diferentes conjuntos de novos produtos cujo efeito sobre o emprego pode variar segundo a época, o quadro institucional e as condições mais gerais da concorrência, do investimento e do crescimento econômico. Estudos, tendo por base as “novas teorias de crescimento”, buscaram em suas variáveis básicas a causa da queda dos ganhos de produtividade, mas, tendo acesso a uma série de modelos econométricos, têm sido cuidadosos e apresentado claras reservas quanto aos resultados, relacionando essas variáveis à queda da produtividade (educação, pesquisa e desenvolvimento, investimento em capital físico, infra-estrutura, etc.) (Englander e Gurney, 1994; OCDE, 1996). Outros trabalhos valorizaram o fim de um efeito “recuperação do atraso”. Durante os anos de ouro, o progresso técnico teria sido excepcionalmente rápido porque os países europeus e o Japão puderam imitar ou adaptar as técnicas de origem norte-americana (Baumol, Nelson e Wolf, 1994). Embora atualmente as taxas incrementais da produtividade européia também sejam relativamente mais baixas que no passado, continuam mais elevadas que as norte-americanas, tendo inclusive em alguns países, como a França e a Alemanha, ultrapassado nos últimos anos os níveis absolutos da produtividade norte-americana. Essa tese tampouco permite explicar porque também os EUA sofreram uma redução dos ganhos de produtividade desde pelo menos os anos 70, até muito recentemente.4 Um terceiro eixo de análise do paradoxo da produtividade tem suas bases analíticas nas transformações estruturais por que vem passando a ordem capitalista e em determinantes sociais e institucionais. 5 Nesse sentido, busca-se romper tanto com os limites dos determinantes invariáveis e universais da “nova teoria de crescimento”, quanto com a problemática da compensação baseada na substituição capital/trabalho, que faz da rigidez dos mercados de trabalho e do custo do trabalho os determinantes do conteúdo em emprego do crescimento. Adota-se, assim, uma determinação mais complexa da produtividade do trabalho, que seria determinada não apenas pela relação capital/trabalho, mas também pela taxa de crescimento da demanda e da acumulação. Em outras se em conta uma das características dos serviços: ter taxas relativamente inferiores de produtividade. Dessa forma, uma mudança da indústria para os serviços teria um efeito estrutural capaz de reduzir o crescimento médio da produtividade. Essa explicação, entretanto, não poderia dar conta da complexidade do fenômeno, mesmo porque a queda nos níveis de produtividade teria ocorrido também, senão até mais intensamente, no setor industrial manufatureiro (Petit, 1995; Husson, 1996). Por outro lado, buscou-se discutir a possível crescente perda de significado do conceito e da medida de produtividade. Em outras palavras, tratou-se de avaliar as dificuldades de medida da produtividade e seus efeitos sobre o cálculo da produtividade média. Múltiplos foram os trabalhos desenvolvidos por especialistas, inclusive no interior da OCDE (Englander e Gurney, 1994; OCDE, 1991, 1995 e 1996). É indiscutível, por um lado, que os atuais progressos da tecnologia da informação e da comunicação afetam a qualidade e a variedade, o que os torna mais difíceis de apreender do que os aumentos de quantidade. Essa situação seria ainda mais delicada nos serviços, porque as definições mais clássicas de produtividade apresentariam um viés “industrialista”. As diferentes formas de externalização e terceirização da produção adotadas pelas grandes empresas industriais, no entanto, também ampliam as dificuldades de medição, sobretudo entre os setores. Mesmo que se reconheça o enorme campo ainda aberto para o desenvolvimento da definição do volume de atividade nos distintos setores econômicos, sobretudo nos serviços, como também as evidentes dificuldades existentes para sua medição, as conclusões consideraram que o arrefecimento dos ganhos de produtividade não se reduzem a um problema metodológico.3 E há que se levar em conta também, do ponto de vista do emprego, que uma eventual subestimação dos ganhos de produtividade pode ser neutra, pois afetaria do mesmo modo a produção. Efetivamente, para a determinação do nível do emprego, é mais importante a diferença entre o crescimento da produção e o crescimento da produtividade. Um segundo eixo de análise observou que a redução dos ganhos de produtividade ocorrida desde os anos 70 seria conseqüência de razões tecnológicas. Os trabalhos evolucionistas consideraram que um cluster de inovações de grande amplitude levaria tempo antes de formar um novo sistema técnico coerente. Assim sendo, no curto prazo, um forte movimento de incorporação do progresso técnico se tornaria fator de instabilida- 119 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 palavras, a evolução dos mercados condicionaria a evolução dos ganhos de produtividade e, em contrapartida, a utilização destes ganhos condicionaria a dinâmica da demanda, logo, dos mercados. A globalização financeira e a desregulação dos mercados, tendo como principal característica a relação negativa daquelas variáveis, determinariam a passagem do pleno emprego ao desemprego e/ou escassez das condições de trabalho nas principais economias avançadas. E essa passagem não seria devida à rigidez do mercado de trabalho ou a erros de políticas econômicas, mas ao próprio processo de desenvolvimento e ao freio produzido pela demanda. Isso teria ocorrido, para vários bens de produção de massa, devido à diminuição da elasticidade da demanda relativa aos preços, enfraquecendo o círculo virtuoso que ligava o crescimento da produtividade ao crescimento da renda e demanda. O menor crescimento da produtividade seria determinado pela modificação do regime de demanda (pela maior importância dos mercados internacionais, a intensificação da concorrência, a especialização produtiva e a redistribuição dos mercados) que induziria, por sua vez, uma baixa dos ganhos e regime de produtividade (dada a intensificação da inovação). Nem o regime da demanda, nem o do progresso técnico, no entanto, se estabilizariam, seja pela crescente abertura das economias, pela desregulamentação financeira e alteração dos procedimentos de formação dos salários (pelo lado da demanda), ou porque o novo sistema técnico estabelecido em torno das tecnologias de informação e comunicação exigiria uma aprendizagem e maior prazo de maturação (pelo lado da produtividade), sugerindo a existência de um progresso técnico autônomo latente e ganhos de produtividade virtuais. Na verdade, a redução dos ganhos de produtividade poderia ser compreendida como parte de um amplo e complexo movimento de passagem a um outro regime de crescimento, sob dominância financeira. Efetivamente, considerando-se o conjunto dos países membros da OCDE, observaram-se no primeiro período níveis elevados do produto, produtividade, demanda e investimento. Em contrapartida, nos anos recentes verificaram-se menor crescimento do PIB, menor produtividade, menor demanda e menor acumulação. Esse desempenho recente caracterizaria um “novo” regime de crescimento, sob o domínio dos mercados e das finanças em uma economia governada pelas incertezas, que favoreceria a busca pela liquidez, inibição dos investimentos e insuficiência de demanda, como já observado nos anos 30 por Keynes (1983). TABELA 2 Taxas Médias Anuais de Crescimento do PIB, Produtividade, Demanda e Investimento Países Membros da OCDE – 1960-1999 Anos PIB Produtividade Demanda 1960-73 1984-99 (1) 5,5 2,9 4,0 1,7 5,6 3,0 Investimento (FBKF) 6,2 (2) 3,9 Fonte: Elaboração própria tendo por base OCDE 1999. (1) Exclusive 1991. Os dados de 1999 são previsões da OCDE. (2) Dados de 1984-97. Torna-se, assim, indispensável uma compreensão mais ampla e complexa das inovações e da produtividade, imersas nessa nova dinâmica de crescimento. Dessa maneira, os ganhos de produtividade não necessitariam somente de inovações tecnológicas, em suas várias formas, mas de bens que as incorporem e de uma demanda crescente que assegure sua realização. A produtividade do trabalho é, por definição, uma relação entre produção e emprego, e o desempenho do emprego, portanto, mantidas estáveis as outras condições (tempo de trabalho, gasto público, etc.) depende da relação entre produção e produtividade. Essa identidade indica que, no âmbito micro ou macroeconômico, um aumento da produtividade depende do desempenho da quantidade produzida.6 Em outras palavras, se o acréscimo da produtividade permite produzir mais com a mesma quantidade de trabalho, a maior ou menor geração de emprego dependerá dos níveis alcançados pela produção e da capacidade da demanda assegurar a ampliação dos mercados.7 O paradoxo da produtividade seria então uma das formas que indicariam a ocorrência de um regime de menores ganhos de produtividade, de menor crescimento econômico e menor demanda, em meio a uma intensa globalização financeira e desregulação dos mercados. Quando a acumulação financeira passa a ocorrer em escala mundial e a determinar as regras de comportamento das empresas e as políticas econômicas de boa parte dos países, ela consiste, sem sombra de dúvida, em uma esfera que disputa a atração dos capitais, em detrimento da produção, dos salários e do emprego, gerando uma crescente imprevisibilidade quanto ao futuro. CRESCIMENTO E EMPREGO Da mesma forma que observamos o menor crescimento da produtividade, da demanda e da acumulação, tam- 120 TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA bém o menor crescimento econômico e o menor crescimento do emprego ocorridos nestas últimas décadas são inquestionáveis. Mas, embora evidentes, pode-se dizer também que se debilitou a relação entre crescimento e emprego? Não foram poucos os que pretenderam que a intensidade e natureza adotadas pelo atual agrupamento de inovações tecnológicas tivessem reduzido acentuadamente a elasticidade do emprego e do crescimento do produto. Essa suposta capacidade menor de geração de emprego por unidade de crescimento econômico foi amplamente divulgada pela mídia como um “crescimento sem empregos” e como o enterro definitivo do pleno emprego. No entanto, ao contrário do senso comum e das extrapolações automáticas do campo micro ao macroeconômico, diversos estudos, por meio de métodos estatísticos simples ou de cálculos econométricos, têm apontado não apenas para a preservação da elasticidade emprego do crescimento econômico, mas até mesmo para sua elevação no período atual (Boltho e Glyn, 1995; Singh, 1995; Padalino e Vivarelli, 1997; OIT, 1996), ainda que mantidas as diferenças de longo prazo entre os distintos países. No setor industrial as mudanças ocorridas nas últimas décadas traduziram-se em menor crescimento da produção relativa ao passado,8 e este crescimento ocorreu sem geração de empregos e com elasticidade-emprego do crescimento negativas, exceção feita ao Japão. No entanto, nada disso ocorre se tomadas as economias em sua totalidade. De fato, em cinco dos países do G7 no período contemporâneo, para o conjunto da economia, a sensibilidade do emprego ao crescimento aumentou (Padalino e Vivarelli, 1997:223-226). As economias dos países avançados, ainda que com taxas de crescimento mais medíocres, ampliaram a intensidade de geração de empregos e reduziram os níveis de crescimento necessários para que a economia comece a criar empregos. Segundo a OIT, os EUA, por exemplo, no período 1960-73, precisavam de um mínimo de 2,3% de crescimento econômico para começar a criar empregos. No período 1974-95, bastou 0,7% de elevação do PIB para o emprego começar a crescer. Na União Européia, se entre 1960 e 1973 foi necessário 4,5% de crescimento econômico para iniciar a criação de empregos, mais recentemente (1974-95) bastou 1,9% de expansão da produção para que isso ocorresse9 (OIT, 1997:20). Em parte, isso foi possibilitado pela maior participação do emprego nos serviços. Esse setor, dadas as menores taxas de produtividade, apresentam uma maior elas- ticidade emprego do crescimento comparada à da indústria. A indústria passa nestas últimas décadas por um processo de desenvolvimento semelhante ao anteriormente passado pela agricultura: um crescimento da demanda e da produção relativamente menor ao crescimento da produtividade. Seria um erro supor, no entanto, que a demanda por produtos industriais estivesse esgotada, embora haja uma redução no crescimento da demanda e da produção industrial nos países avançados, relativa a outros períodos (Rowthorn, 1997). Esse crescimento menor da produção industrial, no entanto, continua sendo superior ao dos outros setores e ao PIB10 e tem gerado empregos indiretos e exteriores à indústria, seja pelas relações já existentes com os serviços, seja pelo seu realce por diferentes processos de externalização de atividades produtivas. O crescimento do emprego nos serviços vinculados às empresas depende também de outros serviços (financeiros e administração pública, por exemplo) que também externalizam atividades e serviços. Os sub-setores de serviços, entretanto, que mais geraram postos de trabalho nas últimas décadas foram os serviços sociais e pessoais, justamente aqueles setores de menores taxas de produtividade. Em um novo estudo sobre o emprego nos serviços, constatou-se que no período 1984-98 os empregos nos subsetores de serviços à produção, sociais e pessoais foram os que mais cresceram, e, na média dos países membros da OCDE, um terço do emprego nos serviços concentrouse nos serviços de distribuição, e outro terço nos serviços sociais. O restante foi distribuído em partes equivalentes entre os serviços pessoais e a produção (OCDE, 2000:86). Embora seja evidente a transformação ocorrida nos serviços, assim como o maior crescimento do emprego neste setor, uma redefinição conceitual dos serviços permitiu considerar que “as economias da OCDE permanecem basicamente voltadas à produção, distribuição e alocação de bens materiais” (Rowthorn, 1997:73-75). CONCLUSÃO A introdução da inovação tecnológica no processo produtivo continua cumprindo seu papel histórico na sociedade capitalista, ou seja, reduzir o trabalho vivo diretamente envolvido na produção, favorecendo a empresa inovadora com maiores ganhos de produtividade e maior competitividade vis-à-vis seus concorrentes. Nesse sentido, quando se observa uma empresa ou setor, é considerável o papel da inovação tecnológica (e em especial das 121 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 ropeus (Alemanha 2,5%, França 1,8%, Itália 2,0% e Inglaterra 1,9% (OCDE, 2000a:Tabela 2). atuais inovações da informação e comunicação) nas alterações qualitativas e quantitativas do emprego. A inovação tecnológica, no entanto, ao mesmo tempo que destrói produtos, empresas, atividades econômicas e empregos, também pode criar novos produtos, novas empresas, novos setores e atividades econômicas e, portanto, novos empregos. Em outras palavras, a inovação tecnológica, embora possa modificar a qualidade e a quantidade do emprego, não determina a priori seu resultado, sobretudo quando observada a economia nacional. O resultado das mudanças quantitativas do emprego não precisa necessariamente transformar-se em mais desemprego. Pode ser mais emprego, consumo, tempo livre ou desemprego e essa é uma escolha social, historicamente determinada pelas formas de regulação do sistema produtivo e de distribuição dos ganhos de produtividade. No quadro atual da economia mundial – sob domínio dos credores, da estabilidade a qualquer custo e do capital sem fronteiras e regulações –, os efeitos das tecnologias da info-comunicação sobre a desordem do mundo do trabalho podem parecer maiores do que efetivamente são, sobretudo quando ignoradas as atuais relações macroeconômicas, sociais e institucionais mais amplas. Nos dias que correm, a redução da capacidade de gasto e regulação do Estado, a concentração dos ganhos de produtividade nas mãos do capital financeirizado, a estagnação e até elevação do tempo de trabalho e, não menos importante, o relativamente menor crescimento do produto, da demanda e do investimento são elementos determinantes no entendimento do desemprego e da precariedade das condições e relações de trabalho. 5. Refere-se a um conjunto de autores de bases teóricas distintas, tais como Husson (1996), Appelbaum e Schettkat (1995), Bowles e Gintis (1995), Duménil e Lévy (1996), Eatwell (1996), Boyer e Petit (1990 e 1991) e Rowthorn (1997). 6. A recente recuperação da produtividade nos EUA é representativa desta dependência vis-à-vis os avanços da produção. Efetivamente, esse país, aproveitando-se das vantagens advindas do seu papel dominante na hierarquia da globalização financeira, tem podido crescer (ainda que a taxas menores que no passado) de 1984 até os dias atuais (à exceção dos anos 90-91). Esse longo ciclo de crescimento reflete-se hoje na expansão da produtividade. 7. Um estudo coletivo de A. B. Atkinson, O. J. Blanchard, J.-P. Fitoussi, J. S. Flemming, E. Malinvaud, E. S. Phelps e R. M. Solow também mostra que não existiria relação entre o ritmo de crescimento da produtividade e as taxas de desemprego, exceção feita aos anos 30. A esse respeito, ver OFCE, 1994. 8. No entanto, ao contrário do senso comum, na maioria dos países a indústria vem crescendo mais intensamente que os outros setores (agricultura e serviços) e que o crescimento do PIB total. Nos anos 90, a indústria mundial cresceu 3,3% ao ano, contra uma expansão do PIB de 2,5%, de 1,7% da agricultura e de 2,3% dos serviços (World Bank, 2000). 9. A recente recuperação européia tem surpreendido os observadores pela intensidade da geração de empregos, o que tem permitido à OCDE prever, mantidas as condições atuais, taxas de desemprego semelhantes para os EUA e a União Européia entre 2004 e 2005. 10. Como observado na nota 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMABLE, B. “La théorie de la régulation et le changement technique”. In: BOYER, R. e SAILLARD, Y. (eds.). Theorie de la régulation. L’état des savoirs. Paris, La Découverte, 1995. APPELBAUM, E. e SCHETTKAT, R. “Emploi et productivité dans les pays industriels”. Revue internationale du travail. Genebra, OIT, v. l34, n.4-5, 1995. 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Grosso modo distinguem-se seis formas de inovação na origem dos ganhos de produtividade: a fabricação de novos produtos, a introdução de um novo processo de produção, a abertura de um novo mercado, a descoberta de nova fonte de matérias-primas, uma nova organização da produção e a mudança da intensidade e natureza da pesquisa e desenvolvimento e do sistema nacional de inovações. COUTINHO, L. e BELLUZZO, L.G. “Desenvolvimento e estabilização sob finanças globalizadas”. Economia e Sociedade, n.7, dez. 1996. DOSI, G. “Technological paradigms and technological trajetories”. Research Policy, v.11, 1982, p.147-163. DUMÉNIL, G. e LÉVY, D. La dynamique du capital. Paris, PUF, 1996. 3. A OCDE, depois de vários seminários e estudos, concluiu em um de seus trabalhos dedicado à tecnologia, produtividade e criação de empregos: “the extend of the mismeasurement has, however, been too small to explain more than a minor part of the TFP (total factor productiviy) slowdown” (OCDE, 1991 e 1996:47). EATWELL, J. “Desemprego em escala mundial”. Economia e Sociedade, n.6, jun. 1996. ENGLANDER, S. e GURNEY, A. “La productivité dans la zone de l’OCDE: les déterminants à moyen terme”. Revue Économique de l’OCDE, n.22, primavera 1994. 4. Apesar da aceleração da taxa de crescimento da produtividade norte-americana na década de 90 (sobretudo nos últimos anos dessa década), as suas taxas de produtividade médias no período 1980-98, medidas pelo PIB por horas trabalhadas, (1,5%) continuam inferiores às do Japão (2,4%) e dos principais países eu- FREEMAN, C.; CLARK, J. e SOETE, L. Unemployment and technical innovation: a study of long waves and economic development. Londres, Frances Printer, 1982. 122 TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA __________ . Economic growth in the OECD area: recent trends at the aggregate and sectoral level. 2000a. ECO/WKP (2000)21 (www.oecd.org/ecp/eco). 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Paris, jun. 2000. 123 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA RUY QUADROS Professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, Consultor da Fundação Seade SANDRA BRISOLLA Professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, Consultora da Fundação Seade ANDRÉ FURTADO Professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, Consultor da Fundação Seade ROBERTO BERNARDES Sociólogo, Analista da Fundação Seade Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer um exercício de reflexão sobre o “sistema de inovação paulista” à luz da análise das informações sobre o sistema público de C&T no Estado de São Paulo e abordar os principais problemas das universidades e dos institutos públicos de pesquisa, estaduais e federais. São discutidos os obstáculos de integração entre empresas e o setor público de C&T, mapeando os fatores que determinam a baixa demanda do sistema produtivo paulista em relação ao sistema público de C&T. Palavras-chave: sistema de inovação; sistema de ciência e tecnologia paulista; política científica e tecnológica. O de dos ambientes e das instituições, e os sistemas e redes (networks) de conhecimentos locais, regionais ou transterritoriais adquirem efeitos sinergéticos e sistêmicos mutuamente reforçantes ou excludentes em relação às oportunidades tecnológicas e à inserção dos espaços locais diante do processo de globalização econômica (Campolina, 2000). Johnson e Lundvall (2000:3), entretanto, advertem que uma economia baseada em conhecimento e aprendizado não é exclusivamente uma “high-tech economy”, pois o aprendizado experimentado nas várias dimensões da economia, e a sua contribuição mesmo aqueles setores denominados “low-tech” ou tradicionais (vestuário, têxteis, calçados, etc.), revelam-se fatores críticos para o desenvolvimento econômico e tecnológico. Nessa visão, os mecanismos institucionais de aprendizado e interação (learning by interacting) são a chave do processo de mudança para a acumulação do conhecimento, da inovação, para a destruição e recriação das competências-chave direcionadas para o crescimento. As empresas encontram-se no epicentro das transformações tecnológicas dessa nova economia. Paradoxalmente, as decisões empresariais de investimentos em tecnologia e produção são comandadas cada vez mais por uma forte racionalidade de valorização dos ativos pelos circuitos dos mercados e instituições financeiras globais, impondo ao regime de acumulação um domínio financeiro da economia (Chesnais, 2000). conhecimento científico e o tecnológico, impulsionados pelos fluxos de investimentos em indústrias high-tech, em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) e capital humano, vêm lapidando um novo significado ao conceito contemporâneo de produtividade, implicando em um padrão mais sistêmico e integrado, consolidando o conhecimento e a informação como dínamos motrizes do ciclo de desenvolvimento econômico e na formação de poder e da riqueza das empresas, regiões e nações. Essa nova perspectiva teórica tenta traduzir o significado da produção, distribuição e do uso do conhecimento e da informação – acelerados pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) – como elementos nucleares para a mudança social, progresso tecnológico e o desenvolvimento econômico das nações avançadas (OECD, 1996a). A formulação de expressões como “economias baseadas em conhecimento” (Foray e Lundvall, 1996; Dosi, 1998), “sociedade da informação” (Bell, 1976; Castells, 1997), “economia do aprendizado” (Storper, 1996), “capitalismo de alianças, relacional e coletivo” (Dunning, 1997), tenta retratar, grosso modo, a transição de um modelo linear de inovação e C&T (Ciência e Tecnologia) para um modelo de ligações em cadeia (chain linked model) (Kline e Rosenberg, 1986), e posteriormente, alterando-se para um padrão sistêmico (Archibugi e Sirilli, 2000), no qual a idiossincrasia, diversidade e seletivida- 124 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA - transferência do conhecimento – disseminando o conhecimento e identificando inputs para demandas sociais e empresariais futuras. Vale salientar que os esforços de pesquisa básica e invenção são de atribuição das universidades e centros de pesquisa, já o processo de inovação passa a ter como locus privilegiado para a acumulação tecnológica os espaços produtivos das empresas. Nesse quadro, a nova matriz teórica sobre as políticas de inovação e os sistemas de C&T passa a ser fundamentada no advento de novos arranjos institucionais mais complexos e multilaterais direcionados para a inovação e o aprendizado tecnológico, revitalizando as relações entre universidade-indústria-governo e, por fim, na promoção de sistemas sustentáveis que criem competências dinâmicas para o surgimento da inovação (Leydesdorff e Etzkowitz, 1998; Johnson e Lundvall, 2000). Essas novas institucionalidades nas dinâmicas inovativas são interdependentes das trajetórias nacionais, da formação de mecanismos formais e informais que promovam a confiança e cooperação entre os agentes (Edquist, 1997), permitindo a transmissão do conhecimento tácito e codificado, na arquitetura de redes cooperativas transversais de conhecimento, e uma “atmosfera industrial inovativa” que estimule as rotinas de aprendizagem coletiva, do tipo produtor/usuário, fornecedor/produtor, reduzindo as incertezas, os riscos de investimentos e os custos de transação com o incremento da “eficiência coletiva dinâmica” ao longo das cadeias produtivas locais e globais (Humphrey e Schmitz, 1996; Gereffi e Korzeniewicz, 1995). Os sistemas de ciência e tecnologia, constituem-se em uma parte dos sistemas de inovação, exercendo uma função vital nas economias baseadas em conhecimento, particularmente pela construção de elos virtuosos de cooperação entre as empresas, governo e universidades, adquirindo uma relevância crescente nas demandas sociais das mais diversas áreas como saúde, biotecnologia, educação, meio ambiente, meteorologia, agricultura, aeroespaciais e comunicação. Com efeito, os laboratórios de pesquisa pública e instituições de ensino educacional são o coração desse sistema, que inclui a infra-estrutura governamental, os conselhos de pesquisas, agências de fomento e as políticas públicas, potencializadas pela construção de núcleos de inovações endógenas nessas economias, amparados em robustos sistemas de inovação locais/subnacionais/nacionais (Freeman, 1998; Nelson, 1993; Lundvall 1992; Cassiolato e Lastres, 1999). O sistema de C&T, por exemplo, pode contribuir nas seguintes dimensões (OECD, 1996a): - produção do conhecimento – desenvolvendo o conhecimento básico; Não obstante o Brasil apresente um padrão de desenvolvimento caracterizado por alguns entraves estruturais históricos, herdados do seu processo de industrialização, como uma estrutura produtiva marcada por profunda heterogeneidade, frágeis processos de aprendizado e uma capacidade limitada de inovação tecnológica (Coutinho e Ferraz, 1994; Quadros Carvalho, 1993), construiu em sua trajetória um sistema de C&T importante, posicionandose em uma situação intermediária entre os países de industrialização recente, mas ainda prosseguindo bastante distante da condição de delinear trajetórias de catching up em relação às nações líderes (Villaschi, 1993; Albuquerque, 1996; Viotti, 1997). Nesse quadro, o Estado de São Paulo destaca-se regionalmente respondendo por uma parcela expressiva dessa base tecnológica nacional constituída, seja pelo critério de dispêndios (32,0%) ou de resultados (50,0%). No entanto, uma das características mais frágeis dos sistemas de C&T brasileiro e paulista é identificada na fraca integração entre o sistema público de C&T e o sistema produtivo, que se reflete no contraste entre o crescimento da produção científica e a estagnação da produção tecnológica empresarial. Essa questão é o foco deste artigo e orientou sua organização em quatro seções, além desta introdução. Na primeira seção, é descrito e analisado o sistema público de C&T no Estado de São Paulo; são abordados os principais problemas sobre as universidades e os institutos públicos de pesquisa, estaduais e federais, como de recursos humanos e orçamentários; a situação relativa no cenário brasileiro; e a crise de financiamento dos institutos de pesquisa. Na segunda seção, os problemas da integração entre empresas e o setor público de C&T são tratados em maior profundidade e são discutidos os fatores determinantes da baixa demanda do sistema produtivo paulista em relação ao sistema público de C&T. Além disso, são repassadas as principais iniciativas governamentais para promover a integração empresa/pesquisa pública. Na terceira seção, são analisadas a performance e a natureza da inovação e das atividades de P&D nas empresas paulistas. Finalmen- - transmissão do conhecimento – educando e formando recursos humanos; e, 125 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Isso decorre da histórica importância econômica do Estado, que resultou em sua maior autonomia financeira. A primeira universidade estabelecida no país foi a Universidade de São Paulo, mantida com recursos do Tesouro estadual. O Estado de São Paulo mantém um sistema de pesquisa cujos principais componentes são os docentes das três universidades públicas. Esse sistema destaca-se dentro do cenário nacional de universidades públicas e privadas, conforme se observa na Tabela 1. É notável a diferença de titulação, visível pelo percentual de doutores nas universidades em São Paulo (de 59,0% a 66,0%), em relação à média de participação de doutores nas universidades públicas do país (22,0%). As universidades privadas, além de ter pouco pessoal titulado, empregam boa parte de seu pessoal em meio período. Somando cerca de 11 mil pesquisadores, esses docentes desempenham, no sistema de educação superior no país e no sistema de pesquisa nacional, um papel muito superior à sua representação percentual no total de docentes das instituições públicas de ensino superior brasileiras, uma vez que o Estado de São Paulo é responsável por metade da produção científica brasileira. Esses docentes representam quase três quartos dos pesquisadores no Estado. O sistema universitário público paulista é financiado preponderantemente por recursos orçamentários. Essas despesas, em 1997, somaram R$ 1,7 bilhão, representando 7,4% da arrecadação de ICMS, ou 6,62% das receitas tributárias, ou ainda 5,27% das receitas correntes do Estado. É esse compromisso com a educação, a ciência e a tecnologia – uma aposta no futuro – que tem mantido o Estado na vanguarda da produção econômica, social e cultural. Não apenas para a pesquisa e a docência voltamse as atividades das universidades públicas paulistas. Elas desempenham uma função social básica entre a população – principalmente mas não unicamente de renda mais baixa –, ao manter o pessoal e as instalações de vários te, a última seção resume os pontos principais do trabalho e aponta as principais conclusões. O SISTEMA PÚBLICO DE C&T: AVALIAÇÃO E EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS O Sistema Público de C&T do Estado de São Paulo é o mais diversificado e desenvolvido dentre os sistemas estaduais do país. Resultado de investimentos estaduais e federais sistemáticos, ao longo de três décadas, esse Sistema revela sua excelência no fato de ser responsável por metade da produção científica brasileira. Além disso, contribui para o desenvolvimento científico e tecnológico de outros Estados, seja pela formação de cerca de dois terços de todos os doutores brasileiros, ou por de uma intensa cooperação em pesquisa com universidades, empresas e institutos desses Estados. A Secretaria de Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico (SCTDE) é o órgão coordenador das instituições estaduais de pesquisa e das ações de apoio e promoção ao desenvolvimento tecnológico empresarial, tendo o Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia (Concite) a missão institucional de formular a política tecnológica do Estado de São Paulo. Nesta seção, são caracterizados e discutidos, à luz dos principais indicadores brasileiros, os principais componentes do Sistema Público de C&T paulista – as universidades públicas, os institutos de pesquisa e as agências de fomento –, bem como alguns de seus problemas atuais, especialmente aqueles referentes ao seu financiamento, que ameaçam a continuidade dos resultados acumulados. A Presença das Universidades Estaduais e Federais São Paulo é o único Estado do Brasil onde as universidades mais importantes não são federais, e sim estaduais. TABELA 1 Docentes das Universidades Públicas, por Nível de Titulação Estado de São Paulo e Brasil – 1995 Tipos de Universidade Graduação/Especialização Mestrado Doutorado Total Universidades do Estado de São Paulo 304 3.731 5.826 9.861 Universidades Federais em São Paulo 76 348 827 1.251 66,0 Instituições Públicas de Ensino Superior no Brasil (1) 37.005 21.268 16.850 75.123 22,0 Instituições Privadas de Ensino Superior no Brasil (1) 49.350 12.263 4.476 66.089 7,0 Fonte: SEEC/MEC e Fapesp. (1) Inclui as universidades paulistas. 126 Doutorado/Total (%) 59,0 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA tadas para a pesquisa aplicada e o desenvolvimento tecnológico, que atendem a demandas mais orientadas da sociedade e do sistema produtivo. Boa parte desses institutos tem uma nítida vocação setorial e possui objetivos claramente direcionados para o desenvolvimento de tecnologias. Sua clientela é formada pelas empresas e por certas demandas específicas da sociedade (saúde, alimentação, infra-estrutura, telecomunicações, meteorologia). Eles podem ser considerados, na maioria dos casos, um elo entre a pesquisa acadêmica, que está localizada principalmente nas universidades, e o sistema socioprodutivo. O Estado de São Paulo conta com uma importante rede de institutos de pesquisa. Dentro do setor público, eles ocupam um lugar de destaque logo após as universidades. Os institutos de pesquisa costumam ser financiados por recursos orçamentários, embora estes recursos estejam perdendo espaço progressivamente em benefício de outras fontes do setor público e do setor privado. A origem dos recursos orçamentários define duas modalidades principais de institutos públicos de pesquisa no Estado: os institutos federais e os institutos estaduais. Contrariamente à situação das universidades, os institutos federais são mais importantes do que os institutos estaduais em termos de recursos gastos, embora estes últimos utilizem um maior contingente de pesquisadores (Tabela 2). Os institutos públicos federais ocupam um lugar de destaque no cenário paulista e formam uma das principais áreas de alocação de recursos federais aplicados em C&T no Estado de São Paulo. Com efeito, segundo o levantamento feito pela Fapesp para o ano de 1995, os institutos federais são responsáveis por 51,63% dos recursos da União destinados à C&T no Estado de São Paulo. Esse número revela a importância desses institutos no contexto estadual e também nacional. Os institutos federais localizados no Estado de São Paulo respondem por 32% do gasto da União com essa modalidade de institutos no país. hospitais-escola, onde o atendimento é de padrão internacional, ainda que insuficiente para atender a uma demanda intensa. Assim mesmo, deve-se reconhecer o papel social que esses hospitais desempenham no sistema de saúde do país. A qualidade dos hospitais vinculados às universidades públicas paulistas é reconhecida e, em algumas áreas, a pesquisa médica situa-se na fronteira do conhecimento. Esse é sem dúvida o caso da pesquisa realizada no Instituto do Coração (Incor) e também na Faculdade de Medicina da USP, da Santa Casa e da Unicamp, para citar as mais importantes. O Brasil lidera incontestavelmente a formação de doutores na área de ciências médicas na América Latina. Depois de duas décadas de estagnação econômica, é evidência de resistência e determinação que o sistema público de pesquisa e pós-graduação, cuidadosamente construído nas universidades públicas paulistas, sobreviva com boa capacidade produtiva, apesar de já dar demonstração de problemas estruturais que podem comprometer o estágio alcançado. Dependente de recursos públicos para a manutenção de suas atividades, o que também ocorre com o sistema universitário de boa qualidade – público ou privado – nos Estados Unidos e na Europa, as universidades paulistas enfrentam os problemas comuns às instituições que vivem de recursos do Estado brasileiro na atualidade: dificuldades crescentes de acesso a financiamento e falta de condições (infra-estrutura) adequadas de trabalho. Particularmente sério é o estrangulamento de recursos orçamentários decorrente do pagamento de aposentadorias nas universidades, em virtude do crescimento rápido do número de docentes aposentados, num quadro financeiro em que os recursos orçamentários das universidades têm de financiar compulsoriamente os benefícios previdenciários. Se persistirem os motivos que causam essa crescente dificuldade, há risco de colapso para o excelente sistema de pesquisa e pós-graduação construído a duras penas pelo consórcio efetivo que se realizou entre o governo federal (pela ação da Capes e do CNPq) e o governo estadual (pela manutenção da verba orçamentária das universidades e da Fundação de Amparo à Pesquisa – Fapesp), durante os últimos 30 anos (USP, 2000). TABELA 2 Gastos e Recursos Humanos de Nível Superior Alocados a Institutos Públicos de Pesquisa Estado de São Paulo – 1995 Institutos Públicos de Pesquisa Institutos Públicos de Pesquisa: elo crítico entre o sistema produtivo e a sociedade Os institutos de pesquisa têm uma função muito importante no sistema científico e tecnológico que está sob a responsabilidade do setor público. São instituições orien- Gastos Engenheiros e (Em US$ milhões de 1995) Cientistas Total 537,42 3.605 Institutos Federais (1) 338,40 1.262 Institutos Estaduais 199,02 2.343 Fonte: Fapesp. (1) Exclui o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento – CPqD. 127 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Embrapa no Estado. Tal comparação é ainda mais significativa no campo da saúde, onde não há instituto federal de pesquisa. Os institutos da Secretaria da Saúde são responsáveis por mais da metade dos gastos dos institutos estaduais em ciência e tecnologia. A rede de institutos estaduais em saúde conta com instituições de muito prestígio nacional e internacional, como o Instituto Butantã, o Instituto Adolfo Lutz, o Instituto Emílio Ribas e o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, entre os mais importantes. Essa rede tem uma dimensão superior à da Fundação Oswaldo Cruz, que é a maior instituição de pesquisa em saúde do país e pertence ao governo federal. Em segundo lugar, com 20% do gasto de C&T estadual em institutos de pesquisa, se posicionam os institutos ligados à Secretaria de Agricultura. Nesse segmento, conta-se também com instituições de renome como o Instituto Agronômico de Campinas, a mais antiga instituição de pesquisa agrícola do país, o Instituto Biológico e o Instituto de Tecnologia de Alimentos, entre os mais importantes. As Secretarias do Meio Ambiente e de Ciência e Tecnologia se posicionam em terceiro lugar, com aproximadamente 13% dos gastos estaduais. O meio ambiente é uma área com vocação social na qual é muito importante a atuação do governo estadual por meio de seus institutos de pesquisa. A Secretaria de Ciência e Tecnologia abriga fundamentalmente o Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), uma instituição um pouco diferente das anteriores por atender à indústria e possuir uma vocação multissetorial. No IPT funcionam 12 divisões direcionadas a diversos setores da indústria. Essa rede de instituições federais e estaduais de pesquisa atravessa um importante processo de redefinição de funções e de mudança de relacionamento com o poder público. As instituições com vocação setorial, voltadas principalmente para a indústria, estão sofrendo importantes cortes ou têm perspectivas de cortes orçamentários. Os Governos Estadual e Federal estão claramente sinalizando para a necessidade de buscar fundos em recursos públicos concorrenciais (verbas de agências de fomento e fundos) ou privados. Como exemplo dessa transformação, podemos oferecer o exemplo do CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento), cujos recursos garantidos deverão provir, num futuro breve, de uma parcela do Fundo de Desenvolvimento Tecnológico de Telecomunicações e, em maior medida, do mesmo fundo, só que de forma concorrencial, ou então de contratos com empresas privadas e/ou com a Anatel. O mesmo pode ser dito do IPT A maior parte dos institutos de pesquisa federais localizados no Estado de São Paulo se destina às áreas estratégicas. São eles, principalmente, o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA), o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Instituto de Pesquisas Nucleares (Ipen), muito sensíveis às prioridades das políticas governamentais e aos imperativos das políticas macroeconômicas. O setor aeroespacial ocupa um lugar de destaque entre essas áreas estratégicas e tem sido impulsionado pelo Programa Espacial Brasileiro, sob a condução da Agência Espacial Brasileira, que ultimamente sofreu importantes cortes de recursos. Dentro do PNAE – Programa Nacional de Atividades Espaciais, destacam-se o projeto binacional CBERS – China-Brazil Earth Resources Satellites, para o qual foram destinados cerca de R$ 33 milhões entre 1998/99; e a Missão Espacial Completa Brasileira – MECB, que contém três vertentes: o desenvolvimento e o lançamento de cinco satélites; o desenvolvimento do VLS – Veículo Lançador de Satélites; e a participação brasileira no projeto da Estação Espacial Internacional (ISS), em que estão previstos investimentos da ordem de US$ 150 milhões para o fornecimento de suprimentos pela subcontratação de empresas nacionais intermediada pelo Inpe, a maior parte delas sediada em São José dos Campos. Os demais institutos federais têm uma vocação setorial. Eles estão ligados à Embrapa e ao Ministério de Ciência e Tecnologia, no qual destaca-se o Centro de Tecnologia de Informática. Esse instituto sofreu cortes profundos no seu orçamento de 1997 para 1998, uma queda de 14,1 para 5,8 milhões de reais. Os institutos federais setoriais, em São Paulo, têm dimensão muito menor que os das áreas estratégicas. Na segunda metade da década de 90, o contingente de institutos federais se ampliou com a instalação do Laboratório de Luz Sincroton (LNLS) e a transformação do CPqD numa fundação de direito privado após a privatização do sistema Telebrás. O LNLS se destaca no cenário paulista como um instituto federal fundamentalmente voltado para a pesquisa básica. Os institutos estaduais têm um perfil bastante diferenciado em relação aos institutos federais. Eles têm uma vocação para áreas sociais ou para setores econômicos com forte dimensão social, como a agricultura. Nessas funções predomina o gasto estadual sobre o gasto federal, o que está longe de se repetir nos demais Estados da Federação. Com efeito, segundo os dados da Fapesp, o gasto da Secretaria da Agricultura com seus institutos de pesquisa (US$ 33 milhões, em 1995) é mais de três vezes superior ao gasto do Ministério da Agricultura com os institutos da 128 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA que lhe garante por força de lei uma parcela fixa da arrecadação tributária, a Fapesp desfruta de uma situação privilegiada entre as demais fundações estaduais nacionais. Essa situação foi ainda incrementada a partir da metade da década de 90, quando o governo estadual passou a cumprir a nova Constituição Estadual que determina que a parcela destinada à Fundação passe para 1% da arrecadação do ICMS. Ainda assim, os recursos das agências federais continuam sendo mais importantes no âmbito estadual. Segundo os dados elaborados pela Fapesp, as agências federais eram responsáveis por 66% do total dos recursos destinados ao fomento de pesquisa no Estado de São Paulo. Por outro lado, os recursos alocados no Estado representavam, em 1995, 31% do total dos recursos aplicados pelas agências federais de fomento. Esses recursos se repartem basicamente entre CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas) e Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior), cabendo apenas uma pequena parcela à Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), responsável primordialmente pelo financiamento de caráter tecnológico. Os recursos do CNPq e da Capes se destinam basicamente ao pagamento de bolsas para estudantes de pós-graduação e pesquisadores. Pela sua importância dentro do sistema C&T estadual, as universidades públicas estaduais paulistas são responsáveis pela captação de 80% dos recursos das agências de fomento federais destinados ao Estado de São Paulo. O restante se divide entre as universidades federais, 12,7%, e as demais instituições públicas de pesquisa. O perfil de atuação da Fapesp é bastante distinto das agências federais e, de certa forma, complementar. Com efeito, os recursos da Fapesp se destinam em grande medida ao apoio à pesquisa e à infra-estrutura (equipamentos, instrumentos, livros e software) dessas instituições. Os recursos oriundos da Fapesp são hoje responsáveis por praticamente 85,8% dos recursos destinados à pesquisa e à infra-estrutura das universidades e institutos de pesquisa paulistas. Note-se que os financiamentos da Fapesp também beneficiam os institutos federais localizados em São Paulo (Tabela 3). A Fapesp tem tido um papel decisivo na manutenção e ampliação dos laboratórios e das atividades de pesquisa das universidades e, em menor medida, dos institutos de pesquisa do Estado de São Paulo durante a década de 90. Esse apoio se mostrou ainda mais decisivo porque as agências federais foram incapazes de desenvolver recursos significativos para sustentar o custeio e a compra de equipamentos de pesquisa. Sem o apoio da Fapesp, é muito que está em acelerado processo de transformação e para o qual as fontes extraorçamentárias já são responsáveis por aproximadamente 50% dos recursos. Essa transformação dos institutos de pesquisa industrial em direção ao mercado, se bem pode aumentar a interação de certos setores desses institutos com a economia e a sociedade, também apresenta a ameaça de comprometer a manutenção de determinadas competências científicas e tecnológicas acumuladas ao longo de décadas, voltadas para a pesquisa de mais longo prazo, e que por essa razão não costumam ser rentáveis. Mais grave ainda será quando a atividade de pesquisa – principal missão desses institutos – vier a ser substituída pela prestação remunerada de serviços que não acarretam acúmulo de conhecimento (SalesFilho, 2000). Agências Federais e Estaduais de Fomento como Instrumentos para Desenvolver a Pesquisa As agências de fomento têm um papel muito importante no financiamento da pesquisa científica. Elas canalizam recursos financeiros, grande parte a fundo perdido, para as atividades de pesquisa de universidades e institutos de pesquisa localizados no Estado. Ultimamente, essas agências de fomento vêm destinando uma parcela crescente dos seus recursos, embora ainda pequena, para as empresas que fazem pesquisa tecnológica sozinhas ou em parcerias com instituições públicas de pesquisa. O caráter concorrencial é uma característica central do financiamento dessas agências, estimulando as instituições que executam a pesquisa (universidades, institutos e empresas) a competir entre si na busca de maior excelência e produtividade acadêmica e científica. Para orientar a alocação de seus recursos, essas agências se apóiam em sistemas de avaliação que, na maior parte, funcionam entre os pares, reconhecidamente os mais eficientes de acordo com a experiência internacional. O sistema concorrencial responde, também, adequadamente a políticas de orientação de recursos e de definição de prioridades. O sistema de fomento, no plano nacional, está quase todo concentrado nas agências federais. Somente muito recentemente vem se consolidando uma rede de agências de fomento estaduais. Entretanto, o Estado de São Paulo é pioneiro no estabelecimento de uma agência de fomento à P&D, com a criação da Fapesp em 1962. Dada a riqueza desse Estado, que é responsável por 36% do PIB brasileiro, e uma legislação respeitada pelas autoridades 129 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 TABELA 3 Repartição das Verbas de Fomento à Pesquisa, segundo Tipo de Auxílio Estado de São Paulo – 1995 Tipo de Auxílio Fapesp Agências Federais (1) Total Em US$ milhões de1995 % Em US$ milhões de 1995 % Em US$ milhões de 1995 % 135,7 111,9 23,8 33,8 85,8 8,8 265,4 18,5 246,9 66,2 14,2 91,2 401,2 130,5 270,7 100,0 100,0 100,0 Total Auxílios e Infra-Estrutura Bolsas de Estudo Fonte: Fapesp. (1) Inclui CNPq, Capes e Finep. TABELA 4 Gastos e Recursos Humanos de Nível Superior no Sistema Público de C&T Estado de São Paulo – 1995 Sistema Público de C&T Dispêndios Em US$ milhões de 1995 Total Universidades Estaduais Universidades Federais Institutos de Pesquisa Estaduais Institutos de Pesquisa Federais Agências de Fomento Federais Fapesp 2.515 1.316 261 199 338 265 136 Docentes, Engenheiros e Pesquisadores % Números Absolutos % 100 52 10 8 13 11 6 14.717 9.861 1.251 2.342 1.262 - 100 67 9 16 8 - Fonte: Fapesp, Capes, CNPq, MEC, USP, Unicamp, Unesp. provável que uma parcela substancial da capacitação científica do Estado de São Paulo ficaria comprometida. Em função do declínio dos recursos provenientes da esfera federal, que se acentua a partir de 1997, esse frágil equilíbrio está sendo colocado em questão. As verbas federais para as bolsas estão se reduzindo em valores reais e números absolutos. Os gastos do Ministério de Ciência e Tecnologia com C&T caíram de 1,475 bilhão em 1997 para 708 milhões de reais em 1998, ou seja, menos da metade. O CNPq, que era ainda em 1995 a principal fonte de verbas de fomento federais para o Estado de São Paulo, viu seu orçamento reduzir-se de 770 milhões de reais em 1994 para 450 milhões em 1998, levando a comunidade acadêmica a exercer uma pressão crescente sobre a Fapesp para atender às necessidades de bolsas dos cursos de pós-graduação, o que a Fundação vem conseguindo suprir parcialmente, sob o risco de reduzir seu papel na renovação da infra-estrutura. Além de suas formas tradicionais de atuação, a Fapesp tem inovado, diversificando consideravelmente suas modalidades de apoio. Nos últimos anos surgiram novas linhas de incentivo destinadas aos laboratórios públicos de pesquisa, não mais por meio do chamado “balcão”, mas de programas especiais de pesquisa direcionados a problemas de grande relevância socioeconômica para o Estado, como o Genoma-Fapesp, o Biota-Fapesp e o programa de Pesquisas em Políticas Públicas. O programa Genoma-Fapesp se subdivide hoje em diversos projetos destinados a mapear o código genético de bactérias que afetam a cultura de frutas cítricas no Estado de São Paulo e da cana-de-açúcar. O projeto da Xylella fastidiosa, destinado a mapear o código genético do amarelinho, praga que ataca a laranja e já provocou grandes prejuízos, recebeu recursos da ordem de US$ 15 milhões e contou com a colaboração de universidades e institutos públicos de pesquisa paulistas. A Fapesp em conjunto com o Instituto Ludwig de pesquisas sobre o câncer, investiu cerca de US$ 20 milhões no programa Genoma do Câncer visando o seqüenciamento dos genes ativos dos tumores do câncer. Com base nesses esforços o Brasil é hoje o segundo país produtor de seqüências derivadas do câncer e o terceiro maior do mundo em termos de ESTs humanas (Expressed Sequence Tags). Anatomia do Sistema Público de C&T Paulistas Podemos fazer, neste ponto, um balanço que consolide os principais aspectos do Sistema Público de C&T 130 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA mento se deu com um expressivo número de bolsas concedidas pela Fapesp. Esse programa não apenas permite a titulação de docentes de todo o Brasil, mas é um mecanismo fundamental para a difusão de centros emergentes de pesquisa pelo país. A formação de docentes e pesquisadores de alto nível em São Paulo tem reflexos que se expandem para muito além da fronteira do Estado. O gasto com ciência e tecnologia em São Paulo representa 32,0% do dispêndio federal; os recursos humanos para pesquisa no setor público no Estado (docentes em tempo integral das universidades e pesquisadores dos institutos de pesquisa estaduais e federais localizados em São Paulo) equivalem a 22,8% dos recursos nacionais. Quando se incluem os pesquisadores titulados nas empresas industriais, o percentual de São Paulo sobre o total nacional é de 22% (Tabela 6). A produção científica paulista por 100 mil habitantes, é maior que o dobro da média nacional. Com base em publicações internacionais indexadas, a produção científica paulista representa quase 60% da média nacional, sendo de aproximadamente 75% na área médica (Tabela 7). Além da produção científica, o Estado de São Paulo assume clara liderança na formação em nível de pós-graduação em suas universidades. Assim, das 11.925 dissertações de mestrado defendidas em 1997 em todo o Brasil, 3.846, quase um terço (32,2%) delas, foram produzidas nas universidades públicas no Estado de São Paulo. Na produção de teses de doutorado a expressão das universidades públicas localizadas no Estado de São Paulo se destaca mais ainda no cenário nacional: em 1997, do total de 3.604 teses defendidas no país, 2.322 foram defendidas nas universidades paulistas, representando 64,4% do total nacional. paulistas. Como se observa na Tabela 4, esse sistema despendeu US$ 2,5 bilhões, em 1995, na execução de atividades de C&T. Esse montante correspondia a 1,11% do PIB paulista e a cerca de 46% do valor do dispêndio interno bruto em C&T financiado pelo setor público no Brasil, valor superestimado, uma vez que a totalidade dos recursos orçamentários das universidades foram apropriados como gastos em C&T. Um exercício que seguisse o procedimento de vários países e aplicasse um redutor de 50% aos dispêndios em educação superior reduziria o total dos gastos do Sistema Público de C&T paulista para US$ 1,72 bilhão – 0,76% do PIB paulista (muito próximo da relação gasto público em C&T/PIB nacional) e 32% do dispêndio em C&T financiado pelo setor público. Esses números evidenciam a importância do sistema de C&T paulista no cenário nacional dos insumos aplicados à C&T. Para que se tenha uma idéia da importância de São Paulo no esforço de pesquisa nacional, basta mencionar que, enquanto o número de pesquisadores em São Paulo (14.717) representa pouco mais de um quinto (23%) do total nacional (65 mil), em 1995, a C&T executada em território paulista envolve recursos equivalentes a pelo menos um terço dos recursos para pesquisa executados pelo governo federal. CRESCIMENTO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA O conjunto das universidades estaduais paulistas responde por boa parte da produção científica brasileira. Em 1995, São Paulo respondia por cerca da metade das publicações científicas nacionais (49%, segundo dados da Capes) e por dois terços delas na área de ciências da saúde, em que o Estado se especializa (Tabela 5). A formação de recursos humanos para pesquisa no país teve como plataforma impulsora o Programa Nacional de Bolsas para a Pós-Graduação, que envolveu a ação conjunta da Capes e do CNPq, mas em São Paulo o fortaleci- Integração entre Empresas e Setor Público de C&T As seções anteriores evidenciaram alguns traços, contrastantes, do sistema estadual de inovação paulista. TABELA 5 Produção Científica Total e em Ciências da Saúde Brasil – 1995 Ciências da Saúde Regiões Brasil Sudeste São Paulo São Paulo/Brasil (%) Publicações no País 9.939 8.121 6.629 66,70 Total Publicações no Exterior Publicações no País Publicações no Exterior 2.529 1.965 1.627 64,33 31.442 22.522 15.666 49,83 14.197 10.317 6.708 47,25 Fonte: Capes. 131 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 TABELA 6 Insumos e Produtos da Atividade Científica e Tecnológica Estado de São Paulo e Brasil – 1995 Indicadores Indicadores de Insumo de C&T Dispêndio em C&T (US$ milhões) Recursos Humanos para Pesquisa – Setor Público RH para Pesquisa – Setor Público e Privado Agências – Bolsas e Auxílios – Fed. Est. (US$ milhões) Indicadores de Produto ou de Impacto de C&T Produção Científica (Capes) Produção Científica – Ciências da Saúde Patentes Solicitadas por Residentes no Brasil Patentes Concedidas a Residentes no Brasil Teses de Doutorado Defendidas em 1997 Dissertações de Mestrado Defendidas em 1997 (1) São Paulo Brasil São Paulo/Brasil (%) 1.720,2 14.717 16.057 401,21 5.357,00 65.007 72.926 867,58 32,0 22,6 22,0 46,2 22.374 8.256 3.701 952 2.322 3.846 45.639 12.468 7.309 1.462 3.604 11.925 49,0 66,2 50,6 65,1 64,4 32,2 Fonte: Capes; CNPq e Fapesp. (1) Referem-se a US$ 265,44 milhões em bolsas e auxílios da Capes e CNPq e US$ 135,77 milhões da Fapesp. TABELA 7 Artigos Científicos, segundo Áreas de Conhecimento Brasil – 1981/1993 Áreas de Conhecimento Brasil Total Ciências Biológicas Ciências Biomédicas Medicina Medicina Social Química Física Matemática Engenharia Ciências da Terra Meio Ambiente Humanas e Artes Sem Especificação 47.184 8.338 12.130 5.639 1.206 3.976 8.568 1.066 3.069 990 848 1.354 10 Centros 24.711 2.449 7.043 2.680 574 2.819 5.385 624 1.184 357 225 645 726 Centros SP Fora SP SP/10 Centros (%) 14.253 1.151 4.042 1.994 435 1.929 2.906 316 549 171 99 299 362 10.458 1.298 3.001 686 139 890 2.479 308 635 186 126 346 364 57,68 47,00 57,39 74,40 75,78 68,43 53,96 50,64 46,37 47,90 44,00 46,36 49,86 Fonte: Meiss e Leta (1996), com base nas informações do Science Citation Index, ISI. Foram ressaltadas a relativa grandeza e o amadurecimento do sistema público de C&T paulista, que se expressa pelo desenvolvimento das universidades mais importantes do país e uma rede de institutos de pesquisa de porte considerável, além do peso da produção científica paulista na atividade científica nacional. Em países de industrialização recente, como o Brasil, a maior parte das atividades ligadas à inovação refere-se à difusão, adaptação e melhoria de tecnologias de produtos e processos já existentes, mais que à geração de novas tecnologias. Freqüentemente essas atividades são realizadas por funções de rotina como o controle de qualidade, a engenharia de manutenção e a engenharia de manufatura, ou ainda no âmbito de pequenos grupos de engenharia de produto e processo, em vez de laboratórios de P&D for- malmente organizados. No entanto, nos países de industrialização recente que deram prioridade ao alcance de maior autonomia tecnológica – isto é, a geração endógena de tecnologias novas a partir da absorção completa de tecnologias importadas –, a função de Pesquisa e Desenvolvimento empresarial cresceu progressivamente, até atingir proporção elevada no total realizado pelo país. Esse é, por exemplo, o caso da Coréia do Sul, em que a participação empresarial no dispêndio total em Pesquisa e Desenvolvimento do país superou 75% em 1995 – nível superior ao de países mais industrializados, como o Japão (67%), os EUA (62%) e a Alemanha (59%). Em contraste, nos países latino-americanos mais industrializados, como o Brasil, o México e a Argentina, as taxas históricas de participação das empresas nos dispên- 132 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA Desempenho Inovador dios nacionais em P&D mantiveram-se em torno de 20%, em média. Mesmo o recente crescimento dos gastos em P&D das empresas brasileiras, identificado pelos indicadores do MCT, não levou a participação do P&D privado a mais de 31% do dispêndio total com P&D no Brasil (dados de 1995). Isso se deve a um conjunto de características da estrutura industrial do país, que será discutido adiante, e determina não apenas níveis de gastos mais modestos na P&D industrial, como a concentração radical da P&D das empresas em atividades de desenvolvimento, com baixa participação da pesquisa. Essa última característica não favorece a cooperação empresas/sistema público de pesquisa. Nesse contexto, as relações de cooperação entre o setor privado e o sistema público de C&T são bastante incipientes, mas com alguns exemplos pontuais notáveis. Essa é possivelmente a maior vulnerabilidade do sistema de C&T paulista, pois significa que o potencial de conhecimento científico e tecnológico acumulado pelo investimento público em C&T não se traduz em capacitação tecnológica e de inovação no setor produtivo, ou seja, não se converte em benefícios econômicos. As empresas industriais no Estado de São Paulo apresentaram um desempenho significativo na introdução de inovações tecnológicas, em termos relativos, 25% das empresas introduziram produtos tecnologicamente modificados (inteiramente novos ou aperfeiçoados) e/ou processos tecnologicamente aperfeiçoados ou novos, no período de 1994-1996. Comparativamente com outros países, a taxa de inovação da indústria regional não se distancia tão significativamente das taxas calculadas com base em pesquisas de inovação instituídas em países que adotaram os mesmos procedimentos metodológicos de mensuração e apresentam uma estrutura produtiva com características tecnológicas e de diversificação semelhantes ou próximas às do Estado de São Paulo, como o caso da Espanha e da Austrália. A pesquisa de inovação espanhola (INE apud SanzMenédez e Garcia, 1998), por exemplo, cujo período de referência é 1992-94, feita a partir de uma amostra de 20 e mais empregados, captou uma taxa de inovação da ordem de 29,5%. O survey de inovação realizado na Austrália, para o quadriênio 1994-1997 revelou que a proporção de empresas inovadoras correspondia a uma taxa de inovação de 26%. Relativamente próximas, portanto, à taxa de inovação das empresas paulistas. Entretanto, quando confrontada a taxa de inovação da Paep com a de outros países de industrialização madura e mais avançada, como Itália, França e Alemanha, evidencia-se uma distância substancial entre os níveis de performance dessas taxas. O survey aplicado na Itália (Archibugi, Evangelista e Simonetti, 1995), abrangendo o período 1990-92, em empresas com mais de 20 empregados, calcula uma taxa de inovação em torno de 33%. Na França, a pesquisa de inovação Sessi (François e Favre, 2000), baseada em uma amostra com empresas de mais de 20 empregados, captou uma taxa de 41% de empresas industriais que introduziram algum tipo de inovação, no período de 1991-92. E, por fim, a pesquisa alemã (Licht, Schnell e Stahl, 1995) feita a partir de um universo amostral composto por empresas de mais de cinco empregados, com periodicidade anual, identificou um percentual de 53% de empresas que introduziram inovações tecnológicas. A propensão a inovar tem relação direta com o tamanho da empresa. Entre as pequenas empresas (5 a 99 empregados), a parcela de empresas inovadoras é de 22%, subindo para 52% e 59% nas médias (100 a 499 empregados), e alcançando a taxa de 70% entre as grandes empre- Inovação Tecnológica nas Empresas Industriais1 As empresas produtoras de bens e serviços são parte crucial do sistema de inovação tecnológica nos países industrializados. São pelas atividades de inovação das empresas que os conhecimentos científico e tecnológico se transformam em inovações de produtos e processos, que dão sustentação real à competitividade das empresas nos mercados em que atuam. Sendo o Estado de São Paulo responsável por cerca de 50% do produto industrial brasileiro, e onde se concentram os núcleos da maior parte dos setores mais dinâmicos, a questão das atividades tecnológicas das empresas e das suas relações com o sistema público de C&T é de importância decisiva para seu futuro. Essa avaliação pôde ser realizada devido à disponibilidade de informações sobre inovação tecnológica da indústria paulista produzidas pela Paep/Seade – Pesquisa da Atividade Econômica Paulista, que coletou informações sobre atividades de inovação tecnológica referentes ao triênio 1994/1996, em mais de 10 mil empresas industriais, de todos os portes (acima de cinco empregados), baseando-se nas diretrizes metodológicas recomendadas pelo Manual de Oslo da OECD, o que possibilitou a comparação com as práticas de outros países. A seguir sintetizamos as principais conclusões da pesquisa. 133 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 Atividades de P&D sas industriais (500 empregados e mais). Portanto, devido a sua maior disponibilidade de recursos financeiros, tecnológicos, humanos e gerenciais, as grandes empresas têm demonstrado maior capacidade para inovar, isto é, lançar novos produtos e adotar novos processos, colocando-se em melhor posição para proteger ou incrementar sua competitividade. Essa conclusão reforça, agora pelo lado das capacitações para inovar, o diagnóstico da fragilidade das pequenas empresas. Outro aspecto crucial a ser analisado na economia paulista é a origem do capital das empresas inovadoras, porque fazem parte de uma economia nacional com grande participação do capital estrangeiro nos setores industriais de maior peso econômico. As empresas controladas integral ou parcialmente por capitais estrangeiros apresentam maior propensão para inovar que as empresas controladas integralmente por capital nacional. Entre as grandes empresas (500 e mais empregados), 81% daquelas controladas por capital estrangeiro são inovadoras, ao passo que 65% das controladas por capital nacional são inovadoras.2 No Brasil, as multinacionais incorporam essas inovações adaptando-as às características do mercado brasileiro ou a limitações técnicas determinadas pelo fornecimento de matérias-primas e componentes locais. Não obstante, a atividade de adaptação de produtos e processos realizada por empresas com participação estrangeira é responsável pelo emprego da maior parcela de engenheiros e outros profissionais de nível superior que atuam em pesquisa e desenvolvimento na indústria paulista. Segundo informações da Paep/Seade, em 1996 havia 8.865 profissionais de nível superior trabalhando em atividades de P&D, em 3.422 empresas industriais paulistas, com 100 e mais empregados, que executavam essas atividades. Portanto, a média de profissionais de nível superior nessas empresas era de 2,5. Nota-se que o esforço em P&D é pequeno quando comparado com os esforços das indústrias de países mais desenvolvidos. A comparação aqui é feita entre o Estado de São Paulo e outros países devido a não haver informação equivalente, baseada em pesquisa amostral representativa, que permita conhecer o volume de recursos humanos empregados na P&D industrial brasileira. Em termos absolutos, o volume de pessoal de nível superior (em sua maior parte engenheiros) empregado em P&D em São Paulo é superior ao da Austrália e Espanha. No entanto, quando se analisa o emprego industrial total, percebe-se que o indicador de intensidade de P&D australiano (0,763) é o dobro do brasileiro. Brasil e Espanha, por sua vez, encontram-se muito distantes dos países europeus com maior densidade (França e Alemanha) e mais ainda dos países líderes (Japão e Estados Unidos). Não obstante, a posição do Estado de São Paulo (e brasileira) é de liderança na América Latina (Tabela 8), uma vez que a posição mexicana é próxima da argentina. Em resumo, pode-se dizer que o esforço em P&D industrial feito pela economia paulista, embora apresente um volume que o coloca em primeiro lugar na América Latina, está muito aquém daquele feito pelos países industrializados, inclusive países de industrialização recente como Coréia do Sul e Taiwan.3 Em outros termos, o bom desempenho da indústria quanto à taxa de inovação não dependeu primordialmente do esforço interno em P&D. O entendimento desse fenômeno requer uma avaliação mais detalhada das características estruturais do processo de inovação na economia paulista (e brasileira). A recente ampliação da internacionalização da economia brasileira (desnacionalização) aprofundou uma característica do processo de inovação industrial que já era dominante em períodos anteriores. Empresas localizadas no Brasil estão propensas a realizar gastos na importação de tecnologias e no P&D interno necessário para adaptálas às condições brasileiras (condições de mercado ou matérias-primas). Isto se verifica no significativo crescimento recente das importações de tecnologia no Brasil, que serão examinadas adiante. No entanto, as empresas ESFORÇO DE INOVAÇÃO A avaliação dos esforços (investimentos) realizados pelas empresas paulistas para alcançar as taxas de inovação, discutidas anteriormente, revela a relativa fragilidade do processo de capacitação tecnológica desenvolvido no Estado (como, de resto, no Brasil). Em primeiro lugar, observa-se que, apesar do notável desempenho inovador de novos produtos e processos no período 1994/1996, as indústrias do Estado de São Paulo não realizaram esforço de P&D compatível com tal performance. Em segundo lugar, esse fenômeno está associado ao fato de a estratégia tecnológica das empresas privilegiar o incremento dos fluxos de importação de tecnologia, sem acompanhar tal esforço com investimentos significativos em processos de absorção dessas tecnologias. Essa estratégia contribui para explicar a baixa interação entre as empresas paulistas e o sistema público de C&T. 134 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA TABELA 8 Pessoal de Nível Superior Empregado em Atividades de P&D na Indústria de Transformação Países Selecionados – 1993-1996 Países Anos Empregados de Nível Superior em P&D (1) Brasil (Estado de São Paulo) (2) México Espanha Austrália Canadá Itália Alemanha França Hungria Japão Estados Unidos 1996 1995 1993 1995 1994 1994 1993 1994 1995 1995 1994 8.865 1.339 8.084 8.541 22.662 24.136 121.705 55.857 2.069 368.960 540.700 Empregados de Nível Superior em P&D/ Pessoal Ocupado na Indústria X 100 0,382 0,026 0,337 0,763 1,163 0,531 1,196 1,342 0,056 2,534 2,682 Fonte: Fundação Seade. Pesquisa da Atividade Econômica Paulista – Paep; OECD, Basic Science and Technology Statistics, 1997; Yearbook of labour statistics, 1996. (1) Para o Estado de São Paulo, compreende o total de pessoas de nível superior e para os demais países, o número de cientistas e engenheiros alocados nessa atividade. (2) Corresponde a empresas com mais de 99 empregados, somente com sede no Estado de São Paulo. desenvolvimento que pouco demandam do sistema público estadual de C&T. Um grupo minoritário de empresas que atuam em áreas de média e alta intensidade tecnológica, entretanto, tem estabelecido laços com universidades e institutos de pesquisa. Esse tem sido o caso das indústrias aeronáutica e aeroespacial, química, siderúrgica e de segmentos da indústria eletrônica, nos quais o desenvolvimento de empresas médias de base tecnológica tem se beneficiado da proximidade dos principais centros de pesquisa paulistas.4 estão menos propensas a investir na absorção completa das tecnologias importadas, o que lhes permitiria deter conhecimento para desenvolver internamente produtos/ processos significativamente modificados. No que diz respeito às empresas transnacionais de controle externo, essa estratégia obedece a uma lógica de ampliação de escalas e redução de custos de P&D. Ao concentrar as atividades de P&D mais ligadas à pesquisa (pesquisa básica e aplicada) em poucos laboratórios de países mais industrializados, essas empresas ganham escala de pesquisa e acesso aos sistemas públicos de C&T mais avançados do mundo, de onde importam para os mercados emergentes as inovações tecnológicas mais significativas. Não obstante, o desenvolvimento de produtos para mercados locais requer volume considerável de atividades de adaptação/aperfeiçoamento/desenvolvimento – que em geral são concentradas em sedes regionais. Isso explicaria a concentração no Brasil, em particular em São Paulo, das atividades de desenvolvimento de empresas transnacionais, que servem ao conjunto de mercados da América do Sul. Já as grandes empresas nacionais, embora não disponham da mesma alternativa, seguem comportamento semelhante, confiando fundamentalmente na importação renovada de tecnologia para se manterem competitivas, e concentrando o P&D local na sustentação das capacidades necessárias para tornar viável este processo de dependência de fluxos externos de conhecimento. O resultado agregado dessas estratégias tem sido o crescente déficit no balanço de pagamentos tecnológicos (tema do próximo item) e a concentração da P&D local em atividades de Importação de Tecnologia pelas Indústrias A década de 90 tem sua política econômica caracterizada pela abertura comercial, provocando profundas mudanças nos marcos institucionais que regulam o comércio TABELA 9 Importação de Tecnologia Brasil e Estado de São Paulo – 1980-1996 Brasil Anos 1980 1985 1990 1996 Total Acumulado até 1996 (1) Em US$ mil de dez./96 Estado de São Paulo % Em US$ mil de dez./96 593.729 181.770 180.839 801.672 100,0 100,0 100,0 100,0 131.064 38.357 62.603 372.819 22,1 21,1 34,6 46,5 13.311.165 100,0 4.823.899 42,5 Fonte: Firce/Conap (Ufteco 86). (1) Refere-se ao total das importações de cada Estado até 1996, inclusive. Nota: Valores convertidos pelo IPC dos EUA. 135 % SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 TABELA 10 Patentes Concedidas, por Local de Residência do Solicitante Brasil – 1990-96 Anos Estado de São Paulo 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 967 728 532 648 858 952 623 Outros Estados 600 47 327 389 530 510 315 Brasil Exterior 1.567 1.145 859 1.037 1.388 1.462 938 3.120 2.234 1.656 2.502 2.289 2.606 1.662 Total 4.687 3.379 2.515 3.539 3.677 4.068 2.600 ESP/Brasil (%) 61,7 63,6 61,9 62,5 61,8 65,1 66,4 Fonte: Inpi. são de patentes. Os países com liderança tecnológica são os que apresentam os mais elevados indicadores de patentes, ainda que nem sempre suas especializações setoriais encontrem na propriedade industrial a melhor maneira de garantir o segredo do negócio. Em linha com o exposto nas seções anteriores, é importante registrar que, embora o grande investimento realizado pelo governo brasileiro (e paulista) nas últimas décadas tenha resultado em drástica elevação dos índices de produção científica nacional, esse crescimento não teve reflexo substancial no crescimento do número de patentes concedidas ou mesmo no nível de relacionamento entre universidades e empresas brasileiras. As patentes concedidas no Brasil são em número muito reduzido e destinam-se, na maioria das vezes, a legalizar a exploração de tecnologias de propriedade de empresas estrangeiras instaladas no mercado (as patentes concedidas a não-residentes superam aquelas concedidas a residentes) (Tabela 10). Outra maneira de se medir a produção tecnológica seria pelo coeficiente de inventividade, que representa a razão entre o número de solicitações de patentes por residentes no país e a população desse país. Aqui também o desempenho brasileiro tem sido limitado: o coeficiente nacional, na década de 90, tem mantido uma média pouco superior a quatro pedidos por 100 mil habitantes, em contraste com países como Taiwan (139/100 mil), Canadá (10/ 100 mil), Itália (14/100 mil), Estados Unidos (47/100 mil) e Suíça (563/100 mil). Ainda que essa lógica não possa ser atribuída inteiramente a uma falha na política científica e tecnológica (C&T) do país, pois, como se viu, deriva mais de condições estruturais agravadas pelo processo de globalização, a consciência dessa situação tem levado os responsáveis pela formulação e execução da política C&T a iniciativas visando criar de tecnologia. Em dezembro de 1991, a promulgação da Lei no 8.383 libera a contratação de tecnologia entre subsidiárias locais e suas matrizes no exterior. Em 1996, é aprovada a nova Lei de Propriedade Industrial, que entra em vigor um ano depois, em maio de 1997. Em relação aos contratos de transferência de tecnologia, essa lei suprime a atividade regulatória do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) – e portanto do Estado – sobre os fluxos tecnológicos. A partir de 1994, tornam-se marcantes os reflexos das transformações ocorridas tanto na legislação sobre a transferência de tecnologia, quanto nas políticas econômica e de comércio exterior adotadas no período. Conforme se nota na Tabela 9, há um crescimento muito significativo das importações de tecnologia, que saltam do patamar de US$ 180 milhões, em 1990, para mais de US$ 800 milhões, em 1996. A indústria que assume a liderança na importação de tecnologia nos anos 90 é a do setor eletroeletrônico, responsável por 13% do total no período, nos dispêndios com contratos de transferência de tecnologia. O comportamento dos gastos com importação de tecnologia (contratos de assistência técnica, royalties, marcas e patentes, serviços tecnológicos, etc.) no Estado de São Paulo apresenta um crescimento significativo a partir de 90, alcançando 46,5% das despesas nacionais em 1996. Essa ampliação da participação paulista nas importações de tecnologia possibilitou ao Estado superar o Rio de Janeiro, que até então era o maior importador de tecnologia. Descompasso entre o Crescimento da Produção Científica e a Estagnação da Geração de Tecnologias Uma das maneiras – ainda que imperfeita – para se avaliar a capacidade de geração de tecnologias de uma economia seria por seus indicadores de pedidos e conces- 136 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA tente dessa relação de encadeamento é o da formação de um complexo de empresas em torno do CTA e do Inpe voltadas para o setor aeroespacial, cujo caso de maior sucesso e impacto é o da Embraer (Bernardes, 2000a). De maneira geral, quando elas existem, as relações entre empresa e universidades costumam orientar-se para a necessidade de formação de recursos humanos de alto nível, que muitas vezes compõe os quadros das equipes de engenharia e dos laboratórios de pesquisa dessas empresas. A relação direta com as universidades visando a atividade de inovação é menos freqüente. Já os institutos de pesquisa, por estarem mais voltados para pesquisa tecnológica, exercem um papel mais importante enquanto fonte de informação no processo de inovação. Mesmo assim, as instituições públicas de pesquisa têm ainda um papel de pouca importância na introdução de inovações, estando posicionadas em oitavo e décimo primeiro lugar, nos casos respectivamente dos institutos públicos de pesquisa e das universidades. Isso evidencia que, no agregado, as relações empresas/sistema público de C&T são limitadas e frágeis, mesmo no Estado de São Paulo. Nas últimas décadas as universidades em associação com os poderes locais têm se empenhado em reforçar os elos com as empresas pela implantação de incubadoras de empresas e de pólos tecnológicos. O caso de maior sucesso é o da cidade de São Carlos, onde uma universidade federal e outra estadual desenvolveram uma experiência bem-sucedida de formação de pólo tecnológico. Contudo, por mais bem-sucedida que seja a experiência de incubação, freqüentemente as empresas de base tecnológica enfrentam o problema do mercado de produtos de alta tecnologia que é sempre limitado e depende do gasto público. Com a recente abertura da economia nacional e a maior facilidade para as empresas e a administração pública de importar esses produtos, as empresas incubadas estão tendo de encarar problemas crescentes de sobrevivência. E embora oriundas do meio acadêmico, têm demonstrado uma baixa propensão para manter esses vínculos no momento em que conseguem se afirmar no mercado, revelando que mesmo nesses casos ainda subsiste uma grande dificuldade de relacionamento entre a academia e as empresas de base tecnológica. mecanismos de vinculação (a chamada política vinculacionista) entre o sistema público de pesquisa e as empresas, sem que haja ainda evidências fortes de seu sucesso. A precária conformação das redes de pesquisa no Brasil, sua situação de país em via de desenvolvimento e as próprias limitações do processo de interação universidade/empresa nos países centrais são os principais fatores da relativa limitação dessas iniciativas que, em alguns casos, sequer tiveram tempo de maturação para serem avaliadas. Esses pontos são discutidos nos próximos itens. Sistema Público de C&T e as Empresas: a baixa demanda de tecnologia nacional As empresas de países em desenvolvimento como o Brasil, que adotaram um modelo de industrialização com baixa absorção de conhecimentos tecnológicos, se caracterizam por ter um baixo nível de demanda por insumos provenientes do sistema público de C&T. As políticas adotadas no passado para reforçar esses elos não foram muito efetivas. Como se viu anteriormente, tanto as filiais de empresas multinacionais como as empresas privadas de capital nacional, costumam estabelecer elos preferenciais com os países desenvolvidos. Mesmo as empresas estatais tinham uma orientação similar, pois preferiam importar a tecnologia já dominada dos países desenvolvidos a assumir o risco de desenvolvê-la localmente. Apenas algumas empresas estatais se destacam no cenário nacional por haverem iniciado políticas visando, de um lado, reforçar as capacitações científicas e tecnológicas existentes nas universidades e, por outro, desenvolver programas voltados para a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. Essas carências, que são bem conhecidas, logicamente estão presentes, embora atenuadas, no Estado de São Paulo, por ser este o maior Estado industrial e o que reúne o mais amplo acervo de instituições de pesquisa do país. Nesse Estado, existe um grupo – ainda que minoritário – de grandes e médias empresas com forte vocação tecnológica que costumam estabelecer laços com a rede de universidades e institutos estaduais e federais de pesquisa. Além da solidez e da consistência dessas instituições públicas de pesquisa terem sido um pólo de atração para empresas sediadas em outras regiões do país, como é o caso da Petrobras. O Estado de São Paulo reúne também um importante acervo de experiências no qual institutos públicos de pesquisa tiveram um papel decisivo na formação de empresas de base tecnológica. O exemplo mais consis- Políticas Públicas e Cooperação Universidade/ Institutos com Empresas Existe em todos os níveis da Federação uma vontade cada vez mais firme de reforçar os elos entre o sistema 137 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 utilização são a baixa atratividade da alíquota de renúncia fiscal e a dificuldade de acesso das empresas de base tecnológica e as pequenas e médias empresas à Lei no 8.661/91. Na prática, as micro, pequenas e médias empresas são pouco beneficiadas pela legislação atual, pois recolhem um valor muito reduzido de Imposto de Renda, que é o principal atrativo da Lei. A política definida pelo governo também atua em sentido inverso, exigindo que as empresas, quando contempladas por incentivos fiscais, recorram às instituições de pesquisa para a realização de parte do esforço de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. O exemplo mais importante dessa política, de maior impacto no Estado de São Paulo, é o da Lei no 8.248/91, de informática, que possibilita às empresas desse setor e do setor de equipamentos de telecomunicações, que gastam pelo menos 5% do seu faturamento anual em P&D, descontarem esses recursos do Imposto de Renda. A lei determina que no mínimo 2% do faturamento seja aplicado em convênios com institutos de pesquisas e entidades brasileiras de ensino. Em 1994, pela Portaria no 200, definiu-se como programas prioritários a Rede Nacional de Pesquisa – RNP, o programa Temático Multiinstitucional em Ciência da Computação – ProteM-CC e o Programa Nacional de Software para Exportação – Softex 2000. Todos estes programas são coordenados e operacionalizados pelo CNPq. Em relação à introdução do Softex, a avaliação de um modo geral é positiva. Ele tem duas vertentes de atuação: uma de mercado e outra tecnológica. O programa permitiu o desenvolvimento de novos softwares, gerando emprego em várias micro, pequenas e médias empresas no Brasil. O acesso e a oferta das linhas de financiamento são considerados relativamente eficientes pelos seus usuários para o desenvolvimento de novos produtos. Na vertente de mercado, o programa montou quatro escritórios internacionais para subsidiar as vendas externas, 20 núcleos regionais sediados em universidades de diferentes cidades brasileiras, descentralizando suas ações. Quatro deles situam-se nas Regiões Metropolitanas de São Paulo, Campinas, São José dos Campos e São Carlos. Graças a essa lei as empresas beneficiárias no Estado de São Paulo efetivaram aplicações em torno de R$ 600 milhões em projetos internos de P&D, representando 67% das empresas usuárias desses incentivos no país, e efetuaram também gastos em P&D da ordem de R$ 300 milhões em convênio com instituições de ensino e pesquisa paulistas, 62% do total dos gastos nacionais (Ministério da Ciência e Tecnologia, 1998) . público de C&T e as empresas. Essas políticas derivam da constatação de que o sistema público de C&T já alcançou um estágio de maturidade suficiente que o habilita para ser um importante interlocutor no esforço de inovação das empresas. O governo federal tem se sensibilizado crescentemente com a necessidade de reforçar os elos entre as empresas e as instituições públicas de pesquisa. Alguns programas destinados a apoiar o desenvolvimento tecnológico, e que eram tradicionalmente voltados ao meio acadêmico, passaram a usar como critério a concessão e a associação entre universidades/institutos com empresas. O caso mais importante é o do PADCT (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que em sua última versão passou a incorporar esse tipo de critério para a concessão de auxílios. O programa, nestes últimos dois anos, sofreu uma severa redução orçamentária passando de um volume de R$ 40 milhões, em 1998 para R$ 25 milhões, em 1999. A Lei no 8.661/91 dispõe sobre os incentivos fiscais para capacitação tecnológica da indústria e da agropecuária, com base na execução de Programas de Desenvolvimento Tecnológico Industrial (PDTI) e Programas de Desenvolvimento Tecnológico Agropecuário (PDTA). São programas de investimento das empresas nas atividades de pesquisa e desenvolvimento científico, mediante a criação e manutenção de estrutura de gestão tecnológica permanente ou o estabelecimento de associações entre empresas. Os incentivos fiscais perderam um importante fator de atratividade em virtude da redução de 8% para 4% do limite de dedução do Imposto de Renda devido, de valor equivalente à aplicação de alíquota cabível do imposto à soma dos dispêndios em atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, industrial e agropecuário. Com o estímulo desse instrumento, durante o ano de 1999, foram aprovados 105 programas, sendo 43 programas localizados em São Paulo, 42% do total, com a previsão de investimentos, entre o período 1994-2000, da ordem de R$ 3,85 bilhões com uma renúncia fiscal de R$ 1,1 bilhão para o Brasil (Ministério da Ciência e Tecnologia, 1999). Desse total, as empresas localizadas no Estado de São Paulo foram responsáveis por 49% dos investimentos em capacitação tecnológica, equivalendo a R$ 1,9 bilhão, e por 39% dos incentivos fiscais federais recebidos, ou R$ 418 milhões.5 Uma pesquisa realizada pela Fiesp, no universo das empresas industriais paulistas, sobre a percepção do setor sobre os incentivos fiscais, revelou que 77,0% dessas empresas tinham conhecimento da Lei no 8.661/91, mas somente 10,0% delas já a haviam utilizado. Os principais motivos considerados para a baixa 138 FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA versidades públicas do Estado em centros de organização e irradiação da formação de mestres e doutores para reciclagem do pessoal docente de nível superior em todo o país; formação de pesquisadores para os institutos e centros de pesquisa públicos e privados do país; e para fornecer pessoal para os departamentos de pesquisa e desenvolvimento e engenharia nas empresas industriais. O produto desse esforço pode ser avaliado pelos seguintes pontos: - a produção científica realizada dentro do Estado de São Paulo equivale a aproximadamente a metade da produção nacional, dois terços desse total no caso das ciências da saúde; A Fapesp tem inovado também lançando programas orientados para as empresas. O Pite (Parceria para a Inovação Tecnológica) é um programa de parceria entre empresas e instituições de pesquisa paulistas com o intuito de gerar inovações tecnológicas que já havia aprovado até o primeiro semestre de 2000, cerca de 46 projetos envolvendo a participação de 44 empresas, além de universidades e institutos de pesquisa. O montante de recursos destinados a esses projetos é de 21,6 milhões de reais, 47% de responsabilidade da Fapesp e o restante das empresas. O Pipe (Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas) serve para financiar, sem nenhuma contrapartida projetos de pesquisa em empresas com no máximo 100 empregados. Até o momento, 122 projetos foram aprovados envolvendo recursos da ordem de 10,6 milhões de reais. Para aproximar os esforços da ciência com a sociedade, a Fapesp lançou o programa Cepid (Programa de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão), que propõe uma nova abordagem da pesquisa científica, em que se privilegia uma visão integrada da atividade científica incentivando a transferência de conhecimento para os setores público e privado e a educação. Esses novos centros contaram com recursos de R$ 15 milhões anuais para o desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares que situam-se na fronteira do conhecimento. Em conjunto com o governo estadual, a Fapesp estabeleceu o programa Parceria para Inovação em Ciência e Tecnologia Aeroespacial (Picta) para apoiar projetos desenvolvidos por universidades e instituições de pesquisas em conjunto com empresas do setor aeroespacial, destinando-lhes recursos de R$ 18 milhões. - as cinco universidades públicas existentes no Estado, três estaduais (USP, Unesp e Unicamp) e duas federais (Unifesp e Federal de São Carlos), são responsáveis por 50% dos doutores no país; - o número de patentes solicitadas por residentes em São Paulo é a metade do número de patentes solicitadas por residentes no Brasil, e as patentes concedidas a residentes em São Paulo correspondem a 66% do total concedido para residentes no país em 1996. A nova agenda governamental de desenvolvimento tecnológico instituída nos anos 90 redefiniu o enfoque de uma política baseada na oferta da tecnologia para uma política focada na demanda do mercado e a empresa como principal agente do processo de inovação tecnológica. A nova política sinalizou, para os agentes econômicos, o caminho da acumulação e do desenvolvimento tecnológico pela conquista de novos critérios de qualidade e produtividade e pelo esforço tecnológico empresarial. Entretanto, a implementação de uma política tecnológica e de investimentos mais ampla e articulada com o setor produtivo, revigorando a rede de institutos de pesquisa com a construção de instâncias institucionais de coordenação entre os atores e a formação de visões de longo prazo, prossegue sendo elemento de constrangimento em relação ao futuro desenvolvimento tecnológico sustentado. O Estado de São Paulo, diferencia-se do quadro nacional, devido ao importante papel que o seu sistema institucional de C&T ocupa, tendo como eixo estruturante as ações virtuosas empreendidas pela Fapesp no apoio às pesquisas científicas acadêmicas e empresariais. Embora o padrão de relacionamento institucional entre institutos e centros de pesquisas universitários seja considerado incipiente, vem se presenciando nas universidades uma interação importante com as empresas industriais inovadoras. CONCLUSÕES O sistema científico do Estado de São Paulo foi resultado de uma ação conjugada bem-sucedida entre os esforços do governo federal na preparação de recursos humanos de alto nível em ciência e tecnologia; a determinação do governo estadual de assegurar um fluxo permanente de recursos para a manutenção de suas universidades – reconhecidos centros de excelência acadêmica –; e da pesquisa científica e tecnológica pela Fapesp, responsável pelo financiamento dessas atividades em todas as instituições de pesquisa, públicas e privadas, estaduais ou federais, localizadas no Estado, de acordo com o mérito dos projetos. O resultado de mais de três décadas de apoio sustentado à pesquisa e à pós-graduação foi transformar as uni- 139 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 é estigmatizado por um elevado grau de incerteza, tendo em vista que o processo de globalização está intensificando a concorrência e tornando cada vez mais difícil a sua sobrevivência. Por outro lado, as empresas associadas ao capital estrangeiro ou filiais de empresas multinacionais tornaram-se crescentemente clientes desses programas, podendo inaugurar um novo padrão de relacionamento entre políticas governamentais, empresas e instituições de pesquisa. Os elos entre o sistema público de C&T e as empresas irão depender cada vez mais da atratividade de nossas competências técnico-científicas perante as estratégias globais de empresas multinacionais, o que reforça a importância dos investimentos públicos na manutenção/aperfeiçoamento do sistema de C&T, na restauração das instituições, modernização da legislação fiscal e das políticas públicas para inovação tecnológica, a fim de promover a inserção competitiva e progressiva das empresas nacionais nas redes de conhecimento globais. Uma das principais conclusões deste artigo consiste na identificação de um desequilíbrio no “sistema de inovação paulista”, expresso no que denominamos de descompasso entre a expressiva produção científica efetuada nas universidades, baixa participação de cientistas e engenheiros (C&E) alocados à atividade de P&D e limitada capacitação tecnológica e de atividades de P&D nas empresas paulistas (bastante centralizada na função de desenvolvimento). Além disso, o déficit no balanço das importações e exportações de serviços tecnológicos e o tímido desempenho do Estado (e do país) no patenteamento de inovações tecnológicas sugerem a proposta síntese deste artigo, em relação ao padrão de inovação da indústria paulista: muita inovação e pouco conhecimento. O maior peso atribuído à importação de tecnologia, sem correspondente esforço de absorção, sugere a continuidade da fragili dade tecnológica das empresas, possivelmente a maior vulnerabilidade do sistema de C&T paulista, pois significa que o potencial de conhecimento científico e tecnológico acumulado pelo investimento público em C&T não tem se traduzido em capacitação tecnológica e de inovação no setor produtivo, ou seja, em resultados econômicos expressivos. No momento em que a interação universidade/empresa começa a ocupar um espaço crescente na agenda das empresas, das universidades e do próprio governo, pelo crescente conteúdo de conhecimento na formação de valor dos bens e serviços, os países em desenvolvimento como o Brasil ou regiões e setores dinâmicos como a indústria e os serviços do Estado de São Paulo devem incluir em sua agenda de desenvolvimento a preocupação em manter atualizada a base de conhecimentos científicos em âmbito internacional, ao mesmo tempo que deve mobilizar esforços na arquitetura de mecanismos que permitam transformar a prática da produção científica em prol de um programa de desenvolvimento econômico e social. Todavia, criticamos a visão simplista da interação universidade-empresa como panacéia para a resolução das necessidades de financiamento das universidades e das demandas de tecnologias das empresas, considerando que cada uma dessas instituições tem missões e culturas próprias, cabendo à política pública uma função estratégica na busca pelo equilíbrio entre demanda e oferta tecnológica nessa interação institucional. A efetividade dessas políticas de C&T e da inovação não depende apenas dos incentivos governamentais para que se possa realizar a pesquisa de forma associada e cooperativa. O futuro das empresas inovadoras nacionais NOTAS 1. Essa questão é discutida com maior profundidade em um estudo feito por Quadros et alii (1999). 2. Esse resultado pode ser explicado por vários fatores: menor custo do capital das empresas estrangeiras; acesso mais fácil às modalidades de transferência de tecnologia e conhecimento, o que contribui para acelerar a introdução de novos produtos e processos; esses produtos e processos modificados tecnologicamente são originados em países industrializados, nos quais as empresas transnacionais concentram seus principais centros de inovação tecnológica e P&D. 3. Em 1995, havia mais de 100 mil pessoas ocupadas em P&D, nas empresas industriais e de serviços da Coréia do Sul, e mais de 60 mil em Taiwan. 4. Da mesma forma, algumas transnacionais (casos como o da Siemens, da Fiat, da Mercedes-Benz e da Rhodia são bem conhecidos) têm ultrapassado os limites de seus próprios muros e transbordado sua atividade de P&D a fim de envolver alguma forma de cooperação com universidades e institutos, mostrando assim que há espaço para se construir políticas ativas para promover tal integração. 5. Deve-se ressaltar que do montante dos investimentos em P&D pela Lei no 8.661/91 aprovados em 1999 no Estado de São Paulo, somente a Embraer foi responsável por um programa no valor de R$ 737 milhões, o maior volume de recursos registrado dentre os programas aprovados no país para esse período (Bernardes, 2000b). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBURQUERQUE, E.M. “Sistema nacional de inovação no Brasil: uma análise introdutória a partir de dados disponíveis sobre a ciência e a tecnologia”. Revista de Economia Política, v.16, n.3 (63), jul.-set. 1996. ARCHIBUGI, D.; EVANGELISTA, E. e SIMONETTI, R. “Concentration, firm size and innovation: evidence from innovation costs”. Technovation, v.15, n.3, 1995. ARCHIBUGI, D. e SIRILLI, G. The direct measurement of technological innovation in business. Roma, National Research Council, 2000 (paper). BELL, D. The coming of pos-industrial society: a venture insocial forescasting. Nova York, Basics Books, 1976. 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