Sem título - Faculdade Santa Marcelina
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Editorial Quadragésima edição do Inter-Relações 3 Tadeu Morato Maciel Artigos As Relações Internacionais no Brasil: notas sobre o início de sua institucionalização 5 Tullo Vigevani; Laís Forti Thomás; Lucas Batista Leite SUMÁRIO A memória do futuro: a Rússia e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva 12 Diego Santos V. de Jesus Conceitos em Relações Internacionais: atores e perspectivas históricas nas teorias das relações internacionais 24 Leonardo Dutra Energia e integração regional: neofuncionalismo na América do Sul 33 Gustavo Tonon Lopes Dossiê – Segurança Humana e Relações Internacionais Segurança Humana: o discurso para ou da periferia? 41 Ariana Bazzano Soberania, direitos humanos e autoridade no debate contemporâneo sobre intervenções humanitárias 54 Ana Clara de Souza MONUSCO e Ilhas de Estabilidade: influência sobre a operacionalização da proteção de civis nas missões de paz da ONU 63 Graziene Carneiro de Souza Ascensão do sul e governança global: contribuições do sul para a segurança e desenvolvimento humanos 78 Juliana Bulsonaro; Tadeu Morato Maciel; Sarah Serrano O engajamento internacional pela segurança humana: apontamentos de uma crítica pós-colonial 88 Carolina Yamada; João Paulo Gusmão P. Duarte; Rafaela Godoi Resenhas Controlar o insuportável 96 Tiago Guimarães Marmund P ágina |1 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Inter-Relações ISSN: 1980-3702 Editoração: Prof. Ms. Tadeu Morato Maciel. Revisão: Prof. Ms. João Paulo Gusmão P. Duarte Deborah de Almeida Sheps. Conselho editorial: Prof. Dr. Clóvis Brigagão (IUPERJ-UCAM). Prof. Dr. Eliézer Rizzo de Oliveira (UNICAMP). Prof. Dr. Flávio Rocha de Oliveira (UNIFESP). Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues (UFABC). Dr. Kjeld Jakobsen (Instituto Observatório Social). Profª Dra. Meire Mathias (UEM). Prof. Dr. Moisés da Silva Marques (FASM/FESP-SP). Prof. Dr. Paulo-Edgar Resende [in memoriam] (PUC-SP). Prof. Dr. Peter Demant (USP). Prof. Dr. Rafael Duarte Villa (USP). Prof. Dr. Ricardo Seitenfus (UFSM). Prof. Dr. Sergio Aguilar (UNESP). Prof. Dr. Thiago Rodrigues (UFF). Prof. Dr. Wagner de Melo Romão (UNICAMP). Coordenação de Relações Internacionais: Profª. Ms. Rita do Val. Coordenação do Laboratório de Análise Internacional: Diogo Bueno de Lima. Faculdade Santa Marcelina (Campus Perdizes) Rua Dr. Emílio Ríbas, 89. Perdizes. São Paulo – SP. CEP 05006-020. Tel.: (55) (11) 3824-5800 E-mail: [email protected] www.fasm.edu.br “As opiniões expressas nos artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as posições dos editores e da Faculdade Santa Marcelina”. Direção: Ir. Valéria de Araújo Carvalho. P ágina |2 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Quadragésima edição do Inter-Relações São diversos os motivos que tornam esta edição do Inter-Relações extremamente especial. Neste ano o curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM) comemora 15 anos de existência. Considerando que o segundo curso de graduação nesta área no Brasil surgiu em meados da década de 1990, é possível considerar que o curso da FASM é um dos pioneiros dentre os que permanecem ativos. A partir de um corpo docente extremamente capacitado e valorizando a pesquisa acadêmica como elemento essencial para a formação do estudante de Relações Internacionais, a FASM procurou apresentar nestes 15 anos novas possibilidades para aqueles que se interessam pelas relações internacionais e buscam por novas formas de compreender e atuar em um mundo cada vez mais globalizado e dinâmico. Em consonância com esse processo, em 2013 foi criada a linha de pesquisa sobre Segurança Internacional, a qual procura promover debates e análises sobre as mudanças conceituais e práticas que conformam as questões de segurança que permeiam a chamada governança global. Como resultado das reuniões realizadas no Laboratório de Análise Internacional (LAI), foram idealizados alguns textos que congregam os resultados obtidos até o momento, os quais compõem o dossiê “Segurança Humana e Relações Internacionais”. Não haveria melhor momento para a publicação dos resultados desta pesquisa, visto que o dossiê será lançado na XVII Semana de Relações Internacionais da FASM, além de ser parte integrante desta quadragésima edição do Inter-Relações. Esta edição de aniversário deste periódico tem a participação de pesquisadores, professores e estudantes que pensam as relações internacionais por inúmeras miradas, demonstrando a multiplicidade de temas que as conformam. O primeiro artigo é uma gentil contribuição do Prof. Tullo Vigevani e dos pesquisadores Lucas Batista Leite e Laís Forti Thomáz, todos representantes do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas. Esse texto traz uma importante reflexão sobre o início da produção de pensamento, de pesquisa e do ensino relativo às relações internacionais no Brasil. Ao partir do questionamento sobre os motivos pelos quais a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) não promove efetivamente a segurança entre seus membros, o segundo artigo, assinado pelo Prof. Diego Santos V. de Jesus (ESPM-RJ e UNI-IBMR), procura analisar como os objetivos estratégicos da Rússia podem ser vistos como obstáculos à promoção de um sistema de segurança coletiva na região. No terceiro artigo, o Prof. Leonardo Dutra (Universidade de Vila Velha) promove uma discussão sobre os atores que compõem as relações internacionais e a durabilidade na história dos conceitos que os definem. O primeiro bloco desta edição é finalizado com artigo do Prof. Gustavo Tonon Lopes (FASM), o qual trata da possibilidade de uma integração energética no Cone Sul, utilizando-se das teorias funcionalistas e neofuncionalistas. O segundo bloco desta edição é composto pelo dossiê “Segurança Humana e Relações Internacionais”, o qual congrega tanto contribuições de importantes pesquisadores que trabalham com esta temática quanto os resultados obtidos a partir das reflexões realizadas pelos professores e P ágina |3 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 estudantes da FASM. O primeiro artigo deste dossiê é assinado pela pesquisadora Ariana Bazzano, pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, e traz uma análise extremamente profícua sobre o conceito de segurança humana e sua inter-relação com as ideias de desenvolvimento e soberania. O objetivo da autora é questionar se o discurso da segurança humana é uma ação política dirigida às periferias ou uma bandeira levantada por elas em busca de emancipação. O segundo artigo do dossiê é a importante e rica contribuição da pesquisadora Ana Clara de Souza (Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio). A autora analisa como os debates contemporâneos sobre intervenções humanitárias parecem contrapor soberania e não intervenção como normas irreconciliáveis do Direito Internacional, subjazendo, em meio a isso, discussões mais profundas sobre moral e ética das intervenções humanitárias, sobre autoridade e novas formas de imperialismo e, por fim, sobre as implicações políticas do humanitarismo militarizado. No terceiro artigo do dossiê, a pesquisadora Graziene Carneiro de Souza (Mestre em Estudos Estratégicos em Defesa e Segurança pela Universidade Federal Fluminense e Consultora do Fundo de Populações das Nações Unidas) nos agracia com uma gentil e eminente análise sobre como o uso legítimo da força aplicado em ações ofensivas pela Força da Brigada de Intervenção na República Democrática do Congo, com autorização do Conselho de Segurança, levou à emergência do conceito de “ilhas de estabilidade” e modificou a operacionalização da proteção de civis. A segunda parte do dossiê traz os resultados das pesquisas sobre Segurança Internacional realizadas no Laboratório de Análise Internacional da FASM. Em conjunto com as estudantes Juliana Bulsonaro e Sarah Serrano, elaborei um texto que, a partir do Informe de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2013, debate como esta instituição relaciona as mudanças na dinâmica global por conta da ascensão dos países emergentes com a importância deste fenômeno para o desenvolvimento humano. O segundo texto, das estudantes Carolina Yamada e Rafaela Godoi, em conjunto com o Prof. João Paulo Gusmão P. Duarte, realiza uma reflexão crítica a respeito da introdução da temática da segurança humana nas relações internacionais, utilizando-se das abordagens dos Estudos Pós-coloniais para apontar como o engajamento contemporâneo pela proteção humana dá continuidade à lógica orientalista imposta aos países, culturas e sociedade consideradas falidas, atrasadas e subdesenvolvidas. Esta edição é finalizada com a resenha do estudante Tiago Marmund para o livro Terrorismo: caos, controle e segurança, do Prof. João Paulo Gusmão P. Duarte (São Paulo: Desatino, 2014), no qual se busca discutir a atualidade do terrorismo e do contraterror. Boa Leitura! Tadeu Morato Maciel Editor do Inter-Relações P ágina |4 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 As Relações Internacionais no Brasil: notas sobre o início de sua institucionalização O objetivo do artigo é apresentar o início da produção de pensamento, de pesquisa e do ensino relativo às relações internacionais no Brasil. Pretende-se demonstrar como existiram intelectuais de diferentes formações e políticos preocupados com as relações internacionais e com a política externa em períodos que antecedem a institucionalização da área nos anos 1980. Tullo Vigevani1 Laís Forti Thomáz2 Lucas Batista Leite3 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 5 - 11 Introdução A área de Relações Internacionais é relativamente recente no Brasil. Lembremos que como primeira institucionalização acadêmica e de pesquisa em termos mundiais, é citado o Royal Institute of International Affairs, de 1920. Alguns anos depois, em 1927, a London School of Economics criou o primeiro departamento de Relações Internacionais. No Brasil, o primeiro curso de graduação iniciou-se em 1974 na Universidade de Brasília (UnB), e em 1984 foi nela criado o mestrado. O segundo curso de graduação foi o da Universidade Católica de Brasília (UCB), em 1995. Em 1987, o Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) deu início ao mestrado. Isso não significa que o tema Relações Internacionais não tenha existido antes. O tema sempre foi tido como importante, tanto por intelectuais, quanto por políticos. No caso do Brasil, considerando o longo 1 Professor do Programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP. 2 Doutoranda do Programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). 3 Doutorando do Programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). P ágina |5 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 período para a institucionalização desta área acadêmica de forma mais específica, as relações internacionais foram cultivadas em áreas correlatas, sobretudo no campo do direito, mas também na filosofia, na economia, na história, na ciência política, na geografia, etc. A partir dos anos 1990 houve um aumento das pesquisas relacionadas às relações internacionais, o que justifica o que Lessa (2005) chama “adensamento do ‘pensamento brasileiro de relações internacionais’” (Lessa, 2005: 1). Esse adensamento pode ser identificado em diferentes setores da sociedade: a) instituições governamentais, em especial no Ministério das Relações Exteriores, mas também no Ministério da Defesa e em outros órgãos, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), além da atuação dos governos subnacionais (estados e municípios); b) organizações não governamentais, inclusive entidades empresariais e sindicatos, além dos partidos políticos; c) sobretudo as universidades. Podem ser indicadas muitas manifestações desse aumento, sobretudo na parte relativa aos estudos acadêmicos: uma evidente é a expansão quantitativa do ensino superior, com a explosão do ensino de graduação e, em menor medida, da pós-graduação. Outra manifestação está ligada ao papel dos estudos de relações internacionais em termos de pesquisa. Nosso objetivo neste texto é apresentar o início da formação da área acadêmica de Relações Internacionais no Brasil. Na perspectiva deste texto a produção de pensamento, de pesquisa, o ensino relativo ao campo das relações internacionais, são todos fatos que antecedem a institucionalização da área nos anos 1980. O ensino de Direito Internacional nas Faculdades de Direito (as de Olinda e São Paulo foram fundadas em 1827) demonstram esta dinâmica. O mesmo pode ser dito no tocante ao campo de economia internacional (Almeida, 2001), tema que é estudado no Brasil há bem mais de um século. O início do estudo de relações internacionais e sua institucionalização Em todo o mundo, a expansão dos cursos e da área de pesquisa acadêmica de Relações Internacionais aconteceu ao final da década de 1940, depois do fim da II Guerra Mundial, no nascer da Guerra Fria, tendo depois continuidade crescente. Grande parte dessa expansão deu-se nos Estados Unidos: a instituição mais importante e de referência está lá sediada, a International Studies Association (ISA), fundada em 1959. Apenas para termos elementos de comparação, a British International Studies Association (BISA) foi fundada em 1975; o World International Studies Committee (WISC) foi criado em 2002, congregando as instituições nacionais de estudos internacionais; a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) foi formada em 2005. Assim, não é estranho que reiteradamente tenha se colocado a questão, sob forma de pergunta ou de afirmação, de se a "ciência" conhecida como Relações Internacionais seria uma "ciência" e também uma "teoria", sobretudo, norte-americana. Sem dúvida, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos a disciplina tem relação, ainda que não exclusiva, com a importância que as relações internacionais tiveram para o próprio Estado nacional. Isso em que pese o crescente interesse nas P ágina |6 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 nascentes organizações internacionais e a busca pela compreensão da relação entre poder e direito internacional, sobretudo a busca da compreensão das formas pelas quais a desordem e a guerra relacionam-se com a paz e a ordem. Pensemos em Hans Kelsen e em Hedley Bull. Em outros termos, procurava-se refletir sobre os problemas do equilíbrio e da justiça. Os estudos imediatamente pré e imediatamente pós-II Guerra Mundial dirigiram-se a questões tipicamente estatais, particularmente às relações conflituosas ou cooperativas desses atores. As formas efetivamente tomadas pela Guerra Fria, as mudanças sistêmicas e das relações de poder, as modificações havidas na economia e na tecnologia, levaram a questionamentos e à evolução das premissas teóricas e metodológicas, bem como ao aprofundamento das questões ontológicas e epistemológicas. Velhas fórmulas foram questionadas e surgiram no plano internacional novas perspectivas e desenhos de pesquisa (Herz, 2002). Concentrando nosso foco nas formas como se desenvolveram os estudos das relações internacionais no Brasil, retomemos a ideia já apresentada de que existiram intelectuais de diferentes formações e políticos preocupados com as relações internacionais e com a política externa em períodos bem anteriores àquele que é considerado o início da institucionalização da área. Basta folhear as publicações do Ministério das Relações Exteriores, particularmente da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e seus Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) e Centro de História de Documentação Diplomática (CHDD), para comprovar a afirmação. Atores com reflexão intelectual importante deixaram obra e formularam ideias e políticas: José Bonifácio de Andrada e Silva, Joaquim Nabuco, Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, Afrânio de Melo Franco, Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas, Araujo Castro, etc.. Ricupero (2011: 15) lembra alguns intelectuais que colaboraram diretamente na elaboração da política exterior: Domício da Gama, Graça Aranha, Euclides da Cunha, Clóvis Beviláqua, e outros. Mesmo considerando os inúmeros textos acadêmicos (artigos, capítulos, teses, livros) refletindo a respeito da área nos anos 1990 e 2000, os quais contribuem decisivamente para este mesmo escrito, nos damos conta ser necessária uma obra de grande porte sobre o tema, de pesquisa, síntese, aprofundamento e sistematização, considerando o longo prazo em que diversas reflexões sobre a área têm sido produzidas. Nos anos 1950 e 1960 iniciativas-marco na área aconteceram. A título de exemplo: a) os trabalhos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955 pelo Ministério da Educação e Cultura; b) a criação, em 1954, do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) (Dulci, 2013) e a publicação por este Instituto, a partir de 1958, da Revista Brasileira de Política Internacional, sendo seu diretor, Cleantho de Paiva Leite, um dos principais idealizadores; c) a revista Política Externa Independente, apenas três números editados, entre 1965 e 1966. O marco de referência intelectual, como havia sido nas décadas anteriores, baseava-se na ideia de Nação. O golpe de Estado de abril de 1964 teve como consequência interromper em boa parte essa reflexão, ao menos dificultá-la seriamente. Ainda que em difíceis condições, algumas pesquisas foram desenvolvidas e aos poucos o espaço das relações internacionais foi avançando na P ágina |7 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 universidade: no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 Carlos Estevão Martins com pesquisas, Oliveiros da Silva Ferreira oferecendo disciplinas na área de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), José Carlos Brandi Aleixo na UnB. No final dos anos 1970, período posterior à criação do curso de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB), novas iniciativas foram tomadas, criando-se a cultura da reflexão e do estudo sistemático, metódico. Herz (2002) ressalta algumas dessas iniciativas já citadas e apresenta outras: (...) a criação do curso de graduação em Relações Internacionais na UnB, em 1974, do Conselho Brasileiro de Relações Internacionais (CBRI), em 1978, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio, em 1979, e, posteriormente, do seu Programa de Mestrado em 1987, do Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas e de seu Programa de Relações Internacionais, em 1980, do Grupo de Trabalho sobre Relações Internacionais e Política Externa (GRIPE) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1980 (até 1994), do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da USP, em 1988, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, em 1985, do Centro Brasileiro de Documentação e Estudos da Bacia do Prata (CEDEP), em 1983, do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI), em 1987, fazem parte do processo de consolidação da área de relações internacionais no Brasil. (Herz, 2002: 19-20). Entre inúmeros outros eventos, Miyamoto (1999) lembra que: (...) com o apoio do Iuperj, do Programa de Estudos Comparados Latino-americanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), do Instituto Latino-americano de Desenvolvimento Econômico e Social (ILDES), ligado à Fundação Friedrich Ebert, e da Fundação Ford, se realizaram dois grandes seminários em 1977 e 1978 em Nova Friburgo. (Miyamoto, 1999: 89). É no encontro de 1978, no qual foi criado o já citado Conselho Brasileiro de Relações Internacionais (CBRI), que se congregou boa parte da primeira geração acadêmica que fundou e consolidou a área no meio universitário, juntamente com diplomatas. Ainda nesse período vale lembrar a experiência da Revista Política e Estratégia, publicada pelo Centro de Estudos Estratégicos do Convívio em São Paulo, de 1983 a 1990. Fonseca Junior (2011), em trabalho escrito em 1981, mostra a importância dos diplomatas na institucionalização da área. Aliás, esse vínculo, como existia há muito nos Estados Unidos, foi explicitamente construído. Do ponto de vista do Itamaraty, é fundamental definir uma política de operação. Ou seja, existe, diante do fenômeno do surgimento da preocupação acadêmica, a possibilidade de definir, de forma integrada, sistemática, com perspectiva de longo prazo, uma estratégia de P ágina |8 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 conduta, em uma palavra, uma política de ligação com a Universidade (Fonseca Junior: 2011: 67). Santos (2005) defende que a genealogia dos cursos de Relações Internacionais no Brasil tem seu início nos estudos de história diplomática, e que a disciplina que convencionou-se chamar de História das Relações Internacionais teria sido o primeiro campo a ser desbravado da área. A autora afirma ainda que a institucionalização da disciplina inicia-se na década de 1970, seguindo uma tendência de programas de pesquisa em História de outros países, particularmente da França. O curso na UnB é a expressão desse processo. Como vimos, em termos nacionais, a questão parece ter maior complexidade, visto que em outras instituições universitárias brasileiras foram professores e pesquisadores com formação em distintos campos de conhecimento - direito, ciência política, economia, etc. – os pioneiros na introdução definitiva e permanente do ensino e da pesquisa em Relações Internacionais. Essa forma de evolução está longe de ser característica brasileira. A conexão entre História, Direito, Sociologia, Filosofia, Economia, Geografia e Relações Internacionais existe há mais tempo. Lembremos autores como Norman Angell, Edward Carr, Raymond Aron, sem falar de Tucídides ou de Hugo Grotius. A partir da preocupação para entender as causas da Primeira Guerra Mundial, antes, e da Segunda depois, bem como do objetivo de construir premissas teóricas e de reconstruir esses eventos, a área de Relações Internacionais teria ganhado prestígio e iniciado seu processo de institucionalização. Não se trata mais de História Diplomática strictu sensu, mas de História das Relações Internacionais, incorporando o espírito da École des Annales, particularmente os estudos de Renouvain e Duroselle. Dentro desta mesma perspectiva se colocam Cruz e Mendonça (2010), ao afirmarem que as Relações Internacionais se consolidaram no Brasil a partir de outras disciplinas como o Direito Público Internacional, a História Diplomática e a Economia. Cruz e Mendonça (2010) lembram também a criação do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) em 1954, na Fundação Getúlio Vargas. Sua revista de relações internacionais deveu muito de seu vigor aos desenvolvimentistas ligados aos governos Vargas e Kubitschek. Lessa (2005) explica a transição da História Diplomática para a História das Relações Internacionais no Brasil: uma das transformações que acarretaram o amadurecimento da área de Relações Internacionais foi o abandono da chamada “história diplomática”, especialmente em estudos de política externa brasileira, em prol do que viria a se firmar como História das Relações Internacionais – com abordagens interdisciplinares e que não condicionavam os acontecimentos à atuação de um ator solitário, além de buscar compreender a mudança no que se designa como Sistema Internacional e a possibilidade de agentes internos também constituírem as relações existentes. Enfim, podemos dizer que importantes expressões de estudo se davam externamente à vida universitária há muitos anos. Fizemos referências ao IBRI e ao ISEB no final da década de 1950 e início de 1960. Nos anos 1970 e 1980 instituições universitárias e outros centros de pesquisa, P ágina |9 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 acadêmica ligados ou não à universidade, também convergiram para as Relações Internacionais, sendo um deles o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), em São Paulo, e outro o Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI), da Universidade de São Paulo (USP). A transição do regime autoritário para o democrático, entre 1985 e 1990, teve como consequência indireta estimular mais a pesquisa na área. A redemocratização brasileira começou a trazer maior transparência e tornou-se um pouco mais fácil consultar e ter acesso direto a fontes documentais que estivessem em poder do Estado. Na área de relações internacionais, a gestão Celso Lafer, já no governo Collor de Mello, desencadeou um debate sobre a disponibilização do arquivo do Ministério. É o que sinaliza Lessa (2005) em relação aos documentos produzidos a partir 1945, cujo arquivo é organizado pelo Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. O acesso a ele antes de 1990 não era possível. Considerações finais O objetivo desse trabalho foi discutir as premissas da institucionalização da área de relações internacionais no Brasil. Vimos que tem raízes bem anteriores à de sua consolidação formal nos anos 1980, o que é possível verificar a partir da sua presença no panorama intelectual brasileiro, a qual vem de longe, como chamou a atenção José Honório Rodrigues (1969). A partir dos anos 1970 adensou-se o número de professores e intelectuais que se envolveram de forma sistemática na pesquisa, formando novas gerações. Diplomatas do Ministério das Relações Exteriores contribuíram de forma importante com este processo. A partir dos anos 1990 houve expansão quantitativa e qualitativa das pesquisas na área, com efeitos consolidados nos anos 2000. Uma última reflexão que pode contribuir, ainda que válida para amplo espectro de questões, a explicar a consolidação do ensino e da investigação em relações internacionais, assim como o ensino e a ciência em geral no Brasil, é o papel da transição à democracia nos anos 1985-1990, particularmente o papel da Constituição de 1988. Uma Constituição que afirmou a propensão da sociedade e do Estado para o bem-estar. Ao longo do tempo viabilizou a expansão do ensino universitário, expressando-se tanto no seu setor público quanto no seu setor comunitário e no privado. A redemocratização também teve como subproduto a relativa melhora no acesso a documentos e acervos, com maior transparência e estímulo à pesquisa. Fenômeno que foi se dando, ainda que de modo parcial, nos governos Sarney, Collor de Mello, Itamar Franco, Cardoso, Lula da Silva e Rousseff. Referências Bibliográficas: ALMEIDA, Paulo Roberto. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil. São Paulo, SENAC, 2001. P á g i n a | 10 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 CRUZ, Sebastião Velasco e MENDONÇA, Filipe. “O Campo das Relações Internacionais no Brasil: Situação, Desafios, Possibilidades”. In: MARTINS, Carlos Benedito e LESSA, Renato (org.) Horizontes das ciências sociais no Brasil: ciência política. São Paulo, ANPOCS, 2010. DULCI, Tereza Maria Spyer. “Instituto Brasileiro de Relações Internacionais”. In: Revista Brasileira de Política Internacional: desenvolvimento e integração do Brasil nas Américas (19541992)". Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. FONSECA JUNIOR, Gelson. Diplomacia e academia: um estudo sobre as análises acadêmicas sobre a política externa brasileira na década de 70 e sobre as relações entre o Itamaraty e a comunidade acadêmica. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. HERZ, Monica. “O crescimento da área de Relações Internacionais no Brasil”. In: Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 24, nº 1, janeiro/junho 2002, pp. 7-40. LESSA, Antônio Carlos. “Instituições, atores e dinâmicas do ensino e da pesquisa em Relações Internacionais no Brasil: o diálogo entre a história, a ciência política e os novos paradigmas de interpretação”. In: Rev. Bras. Polít. Int. 48 (2), 2005, pp. 169-184. RICUPERO, Rubens. “Prólogo. Democracia: princípio e fim da diplomacia”. In: FONSECA JUNIOR, Gelson. Op. Cit. 2011. RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969 [1952]. MIYAMOTO, Shiguenoli. “O ensino das Relações Internacionais no Brasil: problemas e perspectivas”. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20, p. 103-114, jun. 2003. SANTOS, Norma Breda dos. História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a área. História. São Paulo, v.24, n.1, p.11-39, 2005. P á g i n a | 11 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 A memória do futuro: a Rússia e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva O objetivo do artigo é explicar por que a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) não promove efetivamente a segurança coletiva entre seus membros. O argumento central aponta que os obstáculos à promoção de um sistema efetivo de segurança coletiva estão relacionados aos objetivos estratégicos da Rússia de preservar a sua autonomia e flexibilidade a fim de garantir sua predominância políticomilitar em relação a outras potências. Entretanto, ela ainda utiliza a OTSC para procurar tornar tal predominância mais legítima e menos custosa. Diego Santos V. de Jesus4 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 12 - 23 Introdução O vácuo de poder após o fim de Guerra Fria permitiu a ocorrência de um jogo geopolítico entre Rússia, China, Índia, EUA e União Europeia na Ásia Central, que também funciona como uma zona que separa Estados nuclearmente armados ou com o potencial para desenvolver armas nucleares. Além de ser uma área estratégica importante pelos seus recursos energéticos e estar no meio de grandes rotas comerciais e do trajeto de oleodutos, a Ásia Central é uma parte importante do mundo islâmico, no qual, por conta das tensões étnicas e da natureza opressora de muitos regimes políticos, criou-se um campo fértil para o terrorismo, os tráficos de drogas e de armas e o crime organizado. Ao terem a Rússia como vizinha e não disporem de saídas para o mar, os Estados centro-asiáticos sempre enfrentaram limitações nas escolhas de seus parceiros. A deterioração da 4 Doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio e Professor de Relações Internacionais da ESPM-RJ e UNI-IBMR. P á g i n a | 12 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 situação de segurança no Afeganistão, a dependência energética da União Europeia em relação à Rússia e a tensão entre a Rússia e a Geórgia levaram à percepção de que os Estados centro-asiáticos têm menos margem de manobra que outros membros da Comunidade de Estados Independentes (CEI), sendo notável a influência russa nos seus assuntos políticos, militares e econômicos. O fortalecimento da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) – que tem como membros em 2014 Rússia, Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão – é tanto um resultado desses processos como um instrumento para fortalecer a predominância russa no seu entorno (POP, 2009, p.278-279). Após o fim da URSS, uma série de lideranças russas planejava formar não só um espaço único de segurança na CEI, mas também uma aliança defensiva. Os objetivos iniciais seriam uma estrutura única de segurança sob o comando da Rússia, o controle dos bens das Forças Armadas da extinta URSS, o posicionamento de unidades militares russas no território da CEI e um mecanismo integrado para solução de conflitos no espaço pós-soviético. A incapacidade de Estados centroasiáticos de preservarem sua segurança levou a diversos acordos relacionados às operações de manutenção da paz e à resolução de conflitos (POP, 2009, p.281). O Tratado de Segurança Coletiva foi assinado em 1992 pelos líderes de Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão e Uzbequistão. Posteriormente, Azerbaijão, Geórgia e Belarus aderiram. O tratado entrou em vigor em 1994, e, em 1999, o protocolo sobre o prolongamento do tratado foi assinado por seis deles, exceto por Azerbaijão, Geórgia e Uzbequistão. O Azerbaijão e a Geórgia denunciaram o tratado em 1999. O Uzbequistão chegou a deixar a cooperação em 1999, mas aderiu novamente à OTSC em 2006 diante das ameaças das Revoluções Coloridas apoiadas pelos EUA. Porém, ele suspendeu sua adesão à organização em 2012. Em 2002, a Carta da OTSC e o acordo sobre o status jurídico da organização foram assinados e, em 2003, entraram em vigor. O objetivo fundamental da organização é dar continuidade e fortalecer as relações entre os membros nas esferas de política externa, assuntos militares e técnicos e coordenação de esforços conjuntos no combate ao terrorismo internacional e outras ameaças à segurança. Tal objetivo está relacionado à provisão de seguranças nacional e coletiva, cooperação e integração político-militares intensivas, coordenação em termos de política externa em temas de seguranças regional e internacional, o estabelecimento de mecanismos de cooperação multilateral e o desenvolvimento de cooperação na resposta a desafios e ameaças de segurança como o terrorismo internacional, o tráfico de drogas, a migração ilegal, o crime organizado transnacional, a segurança cibernética e da informação e a cooperação técnica na área militar. Segundo os próprios Estados membros, a organização se transformou de um bloco político-militar clássico focado na proteção de aliados em relação à agressão externa para uma organização multifuncional capaz de oferecer segurança aos membros e reagir rápida e flexivelmente a um amplo conjunto de desafios e ameaças (MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF THE REPUBLIC OF BELARUS, s.d.). Entretanto, desde sua criação, a organização é criticada pela sua inabilidade de responder aos principais desafios na área de segurança e de desenvolver respostas conjuntas a ameaças, uma das bases do princípio de segurança coletiva. A organização P á g i n a | 13 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 teve um fraco desenvolvimento de estruturas políticas e não endereçou ou lidou superficialmente com desafios como a gestão de conflitos nos territórios dos seus membros, a realização de monitoramento pré-conflito, o desenvolvimento de medidas efetivas de alerta e sanções e a inserção de novos aspectos da segurança, como a oferta e a gestão de recursos hídricos e energéticos. O objetivo do artigo é explicar por que a OTSC não promove efetivamente a segurança coletiva entre seus membros. O argumento central aponta que os obstáculos à promoção de um sistema efetivo de segurança coletiva estão relacionados aos objetivos estratégicos da Rússia de preservar a sua autonomia e flexibilidade a fim de garantir sua predominância político-militar em relação a outras potências. Entretanto, ela ainda utiliza a OTSC para procurar tornar tal predominância mais legítima e menos custosa. No próximo item, apresentarei o conceito de segurança coletiva, a forma como ele aparece articulado no Tratado de Segurança Coletiva de 1992 e os principais obstáculos à concretização de um sistema efetivo de segurança coletiva entre seus membros. A seguir, examinarei a atuação da OTSC na contemporaneidade e explicitarei as formas como tais obstáculos se manifestam. Antes de tecer as considerações finais, analisarei os interesses e o papel da Rússia na organização. O conceito de segurança coletiva e a OTSC O conceito de segurança coletiva envolve a criação de um sistema em nível internacional no qual o perigo de agressão por qualquer Estado deve ser enfrentado pela determinação de outros Estados de exercer pressão moral, diplomática, econômica e militar para frustrar o ataque sobre qualquer um deles. Segundo os defensores do conceito, a segurança coletiva era um sistema mais efetivo para o enfrentamento de agressores com a preponderância do poder coletivo, de forma que a paz não seria mais baseada num equilíbrio instável. Tal preponderância é articulada para propósitos defensivos a fim de desencorajar os agressores. A segurança coletiva remete a um sistema organizado que contrasta com um arranjo descentralizado de equilíbrio de poder ao visar à criação de uma comunidade de Estados organizados pela paz. A aliança dos Estados num sistema de segurança coletiva remete a uma aliança geral e universal, que é voltada “para dentro” e busca oferecer segurança a todos os seus membros. Ela pressupõe a exploração do potencial cooperativo com o desenvolvimento de uma estrutura de cooperação geral para evitar o conflito. Nesse sistema, os Estados estão prontos para se juntar em uma ação coletiva a fim de dissuadir qualquer ameaça, de forma que a paz e a segurança são indivisíveis. A iniciação da guerra é vista como um desafio aos interesses de todos os Estados, e a segurança é concebida de forma cooperativa: prevê-se uma resposta organizada em apoio a qualquer vítima de agressão. Já um sistema de equilíbrio de poder opera com base em alianças concebidas como agrupamentos “orientados para fora”, elaborados para organizar a ação cooperativa entre seus membros a fim de lidar com situações de conflito causadas por Estados externos. O objetivo de tal sistema é a manipulação da rivalidade por meio de um arranjo de modelos apropriados de relações conflituosas, e se abre espaço para maior amplitude de P á g i n a | 14 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 cálculos ad hoc sobre o que o interesse nacional requer em circunstâncias particulares. Não se postula num sistema de equilíbrio de poder uma rede única de paz e ordem internacionais, uma vez que a lógica é baseada na segurança competitiva. Confirma-se a liberdade de manobra do Estado num sistema de segurança competitiva, no qual ele só deve aderir à resistência a um agressor se a sua própria segurança for afetada (CLAUDE JR., 1962, p.94-149). De acordo com o Tratado de Segurança Coletiva de 1992, os Estados signatários mantêm a sua segurança em base coletiva. Em caso de uma ameaça à segurança, à integridade territorial e à soberania de um ou mais Estados membros ou uma ameaça à paz e à segurança internacionais, o tratado prevê que os Estados signatários imediatamente deverão colocar em prática o mecanismo de consultas conjuntas com o objetivo de coordenar suas posições e tomar medidas para eliminar tal ameaça. O tratado também estipula que, em caso de um ato de agressão cometido contra quaisquer signatários, todos os demais oferecerão às partes agredidas a assistência necessária – inclusive a militar – e apoio com os meios à sua disposição no exercício do direito à defesa coletiva, de acordo com a Carta da ONU. Caso um sistema de segurança coletiva seja estabelecido na Europa e na Ásia e tratados de segurança coletiva sejam concluídos para esse fim, os Estados signatários do Tratado de Segurança Coletiva entrarão em consultas imediatas uns com os outros a fim de fazer emendas necessárias ao tratado. De acordo com uma declaração de 1995 assinada pelos Estados partes do tratado, ao combinarem seus esforços na esfera da segurança coletiva, esses Estados consideram o estabelecimento do sistema de segurança coletiva como uma parte não somente do sistema de segurança europeu, mas como um bloco construtor de uma estrutura potencial de segurança na Ásia. Inicialmente, o tratado promovia a criação de Forças Armadas nacionais dos Estados partes, oferecendo as condições adequadas para seu desenvolvimento independente. No fim da década de 1990, em face do desenvolvimento das situações de risco no Afeganistão próximas à fronteira dos Estados centro-asiáticos partes do Tratado de Segurança Coletiva, o potencial do tratado foi aplicado para o combate a ações extremistas voltadas para a desestabilização da situação na região (CTSO, s.d.). Após sua criação, a OTSC tornou-se uma organização euro-asiática não somente em termos geográficos, mas políticos e jurídicos por meio de princípios universais e propósitos práticos, bem como de participação direta dos Estados membros em estruturas de segurança europeias e asiáticas. A decisão adotada pelos líderes dos Estados membros de criar uma organização internacional foi causada pela necessidade de adaptação do Tratado de Segurança Coletiva à dinâmica das seguranças regional e internacional e de resposta às novas ameaças e desafios. A cooperação no âmbito da organização mantinha-se baseada nos princípios proclamados no tratado. A OTSC é concebida como um elemento de dissuasão politico-militar. Seus Estados membros não veem quaisquer Estados específicos como seus inimigos e buscam uma cooperação mutuamente benéfica com todos os Estados, de forma a se mostrar aberta à adesão a qualquer Estado que partilhe seus propósitos, que estariam relacionados ao fortalecimento da paz e das seguranças regional e internacional e à garantia de proteção coletiva da independência, da integridade territorial e da P á g i n a | 15 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 soberania de seus membros. Na busca desses propósitos, os Estados devem dar prioridade aos meios políticos (CTSO, s.d.). Após a fase inicial de estabelecimento de vínculos militares em nível estatal e formulação de uma estrutura básica para a cooperação política, a OTSC consolidou seu papel enquanto organização e, ao aprovar um plano para a construção de forças de coalizão, entrou numa nova fase de seu desenvolvimento, em que busca integrar as forças militares dos Estados membros em um nível maior. Desde a sua criação, a OTSC destacou que sua função primordial era a gestão de novas ameaças e desafios na esfera da “segurança branda”, como o tráfico de drogas e a migração ilegal. Contudo, com a transição para uma defesa aérea conjunta, formações integradas de Exércitos, sistemas militares horizontalmente integrados e forças coletivas de manutenção da paz, a integração da organização parece apontar, na visão de especialistas, na direção de uma aliança militar mais tradicional, próxima em diversos aspectos a uma organização de defesa coletiva num contexto de equilíbrio de poder, não de segurança coletiva. Para exercer um papel efetivo voltado para a segurança coletiva, a organização deveria enfatizar o desenvolvimento de estruturas políticas, trabalhar com os conflitos nos territórios dos seus membros, realizar monitoramento pré-conflito, desenvolver medidas de alerta e sanções, organizar um processo de negociação e garantir acordos pós-conflito. Ademais, novos aspectos da segurança deveriam ser inclusos, como a oferta e a gestão de recursos hídricos, a redistribuição de eletricidade e a limitação de apagões, que podem ser consideradas questões de segurança nacional na Ásia Central (NIKITIN, 2007, p.35-37). A OTSC na contemporaneidade No fim da década de 2000, os líderes dos Estados membros da OTSC adotaram a decisão de formar forças coletivas de reação rápida, mas Belarus – por conta de disputas comerciais com a Rússia – e Uzbequistão decidiram não participar. Tais eventos são sintomáticos dos obstáculos que os Estados pós-soviéticos da organização estão encontrando em concretizar o sistema de segurança coletiva, obstáculos que emanam das diferenças significativas nos interesses e nas capacidades estratégicas dos membros. A ideia de criação de forças de reação rápida, que agiriam sob a responsabilidade da OTSC, é discutida desde o início da década de 2000, quando os membros do Tratado de Segurança Coletiva decidiram criar forças de segurança coletiva. Em 2001, eles decidiram desenvolver forças coletivas de desdobramento rápido para a Ásia Central, cujos principais propósitos seriam a realização de atividades de contraterrorismo e a prevenção de agressões externas. A organização conduziu diversas operações militares conjuntas. As ideias de forças coletivas de desdobramento rápido ou de forças coletivas de reação rápida estiveram sempre na agenda dos Estados partes do Tratado de Segurança Coletiva, mas novos esforços nessa direção foram feitos no fim da década passada, quando os membros preocuparam-se com instalações militares de Estados estrangeiros e apontavam a necessidade de se estabelecer uma nova infraestrutura militar e restabelecer alguns elementos da infraestrutura soviética nas fronteiras da P á g i n a | 16 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 organização. Para Estados como o Uzbequistão, a última proposição era inaceitável; assim, a decisão de se criarem as forças coletivas de reação rápida refletiu a fraca coletividade em uma questão sensível, a aplicação do poder militar para defender as seguranças nacional e coletiva dos membros. O Uzbequistão demonstrou sua relutância em fazer parte das forças, sinalizando que elas deveriam ser usadas somente para enfrentar a agressão externa e não servir como instrumento para solucionar disputas dentro da organização ou no espaço da CEI; a decisão de seu desdobramento deveria ser estritamente baseada no consenso; o envio de contingentes ao território de um Estado membro deveria ser permitido somente se isso não contradissesse a legislação nacional do Estado em questão; e o acordo não deveria entrar em vigor se não fosse ratificado pelos parlamentos dos Estados membros (TOLIPOV, 2009). Os Estados da extinta URSS que são membros da OTSC deparam-se com grandes obstáculos ao tentarem colocar em prática o sistema de segurança coletiva inicialmente imaginado. Tais obstáculos estão relacionados a diferenças significativas nas percepções de ameaça entre os Estados membros, às atitudes de uns em relação aos outros e às suas posturas geopolíticas. As forças de reação rápida são compostas predominantemente de contingentes russos, além de que os poderes político e militar russos oferecem as bases para o sistema da OTSC. A Rússia inicia qualquer decisão estrategicamente importante da organização, vende equipamentos aos parceiros a preços domésticos e oferece um guarda-chuva de segurança para todos os Estados membros, tornando a OTSC uma organização altamente assimétrica que constrange a liberdade de manobra dos membros mais fracos. A assistência russa na área de segurança vem geralmente acompanhada de obrigações que os demais membros devem assumir. Por conta disso, Estados como o Uzbequistão viram a criação de forças coletivas de reação rápida como prematura, uma vez que a OTSC não se desenvolveu como um bloco político-militar completo. Ademais, não há clareza sobre as formas como os membros reagirão a ameaças potenciais. A situação de conflito entre o Azerbaijão e a Armênia em torno de Nagorno-Karabakh é emblemática, uma vez que a Armênia hoje é membro da OTSC e o Azerbaijão não, mas ambos são membros da CEI. Desde a independência, os Estados pós-soviéticos buscaram predominantemente lidar com as ameaças de segurança sozinhos, usando suas próprias forças nacionais de segurança. Nenhum deles respondeu a ameaças terroristas usando a OTSC ou outras organizações regionais. Ironicamente, as forças coletivas de reação rápida podem apenas reagir lentamente, uma vez que não são coletivas de fato (TOLIPOV, 2009). Questionamentos à atuação da OTSC ficaram claros no contexto do golpe que retirou Kurmanbek Bakiyev da presidência do Quirguistão em 2010. Na ocasião, o presidente de Belarus Alexander Lukashenko expressou dúvidas sobre o futuro da OTSC pelo fato de a organização não ter impedido a derrubada de Bakiyev. Lukashenko anteriormente havia acusado a Rússia de punir Belarus com sanções econômicas depois da recusa de Lukashenko de reconhecer a independência da Abkhazia e da Ossétia do Sul. Uma vez que a economia servia de base para a segurança comum, Lukashenko apontava que as ações da Rússia dificultavam a consolidação da cooperação no âmbito da OTSC. Com os conflitos étnicos entre quirguizes e minorias uzbeques no sul do Quirguistão em P á g i n a | 17 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 2010, líderes pediram que a OTSC enviasse tropas, mas a Rússia alegou que, somente em caso de invasão estrangeira ou de uma tentativa externa de se tomar o poder, seria possível considerar aquele um ataque à OTSC. Ela também argumentou que os problemas no Quirguistão tinham raízes internas. Entretanto, posteriormente, o secretário-geral da organização Nikolai Bordyuzha admitiu que a resposta da OTSC pode ter sido inadequada e alegou que “mercenários estrangeiros” provocaram a violência quirguiz contra as minorias étnicas uzbeques (FOLHA, 2010). Os interesses e o papel da Rússia na OTSC Após a dissolução da URSS, a política externa da Rússia parecia assumir uma orientação mais pró-ocidental, e a Ásia Central ocupava uma posição relativamente marginal nos interesses russos. Entretanto, a Rússia tornou-se mais ativamente envolvida na Ásia Central como resultado da guerra civil no Tadjiquistão, especialmente por causa das minorias russas na região. Em 1993, a proposta russa era promover relações especiais renovadas com os Estados centro-asiáticos, de forma que a Rússia não poderia deixar a Ásia Central sem prejudicar suas fronteiras meridionais. Por conta disso, o controle russo sobre as fronteiras da CEI na Ásia Central era um objetivo desejável. Dentre as prioridades da Rússia, cabe citar o desdobramento de tropas e a instalação de bases militares; o desenvolvimento de relações econômicas; a contribuição russa para a prevenção e a resolução de conflitos por meio de mecanismos eficientes de manutenção da paz; e a não intervenção de partes terceiras nos assuntos centro-asiáticos. Em meados da década de 1990, a Rússia insistia em políticas pragmáticas na Ásia Central, levando em consideração os contratos dos consórcios energéticos ocidentais na CEI, bem como o programa Parceria para a Paz com a OTAN. O fortalecimento das posições russas na Ásia Central deu-se com a promoção de relações mais fortes com Estados como o Irã, a China e a Índia a fim de enfraquecer as relações entre os Estados centro-asiáticos e o Ocidente; um processo de aproximação entre os membros da CEI pelo Grupo dos Quatro – Rússia, Belarus, Cazaquistão e Quirguistão – e o término da guerra civil no Tadjiquistão (POP, 2009, p.279-280). A presidência de Vladimir Putin marca o desenvolvimento de uma política externa ainda mais pragmática, em especial aquela orientada para o entorno da Rússia. O papel geopolítico da Rússia como uma das potências euro-asiáticas veio acompanhado da responsabilidade de manter a segurança em níveis global e regional. Na Ásia Central, a estratégia de Putin seguiu em duas grandes direções. Em uma delas, a administração Putin buscou construir uma estratégia mais consistente em relação ao desenvolvimento de relações políticas e econômicas com a Ásia Central. A introdução de uma união aduaneira em meados da década de 1990 e a decisão de permitir a livre movimentação de cidadãos entre muitas das antigas repúblicas soviéticas – o que resultou na criação da Comunidade Econômica da Eurásia em 2000 – fortaleceram a cooperação. Na outra, a Rússia enfatizou os perigos relacionados ao fundamentalismo islâmico e ao terrorismo internacional, o que passou a ter urgência maior após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos P á g i n a | 18 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 EUA. A Rússia conseguiu assim receber apoio dos Estados centro-asiáticos para suas ações militares na Chechênia. Em 2003, o novo conceito de política externa desenvolvido pela administração Putin procurou diversificar instrumentos de ação na Ásia Central, como se vê no apoio aos líderes locais, na cooperação militar e nos investimentos em infraestrutura e energia. Tal administração apoiou uma ordem mundial multipolar e rejeitou a exportação da democracia por Estados ocidentais. Isso veio acompanhado do desenvolvimento da OTSC e do direito da Rússia de manter “interesses especiais” na CEI. No fim da década passada, lideranças russas apontaram como pontos centrais da política externa do Estado a importância das exportações no setor de energia, a recuperação econômica e o desenvolvimento do poder militar. Sinalizavam também a importância da OTSC, da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e da Comunidade Econômica da Eurásia. No âmbito das relações bilaterais com os Estados da Ásia Central, o Cazaquistão era colocado como o parceiro mais importante da Rússia. As críticas aos EUA aumentaram – ainda que houvesse o interesse no desenvolvimento de relações amigáveis com Estados ocidentais –, e os interesses privilegiados da Rússia no espaço pós-soviético foram ressaltados posteriormente pelo presidente Dmitri Medvedev (POP, 2009, p.279-281) e, mais recentemente, mais uma vez por Putin em seu terceiro mandato. Na garantia dos interesses russos no espaço pós-soviético, a OTSC veio tomando um papel cada vez mais central. Em meados da década de 2000, a organização conduziu exercícios militares antiterrorismo e testou a sua força de desdobramento rápido pela primeira vez no Cazaquistão e no Quirguistão. Isso se deu em um contexto em que a União Europeia e a OTAN manifestaram preocupações com relação a ameaças que viriam da Ásia Central. A Estratégia Europeia de Segurança de 2003 identificou como principais ameaças à União Europeia o terrorismo, a proliferação de armas de destruição em massa, conflitos regionais, Estados falidos e crime organizado, além de reconhecer a dependência energética como uma fonte de preocupação. Os interesses da União Europeia na Ásia Central eram a ampliação da estabilidade e da capacidade dos Estados da região de gerir as ameaças; o apoio às operações militares no Afeganistão; o enfrentamento do tráfico de drogas e do crime organizado; a ampliação da capacidade de gestão de crises; a não proliferação de armas de destruição em massa e a segurança energética, além da questão migratória. Já a OTAN estabeleceu relações formais com os Estados centro-asiáticos, que entraram no Conselho de Cooperação do Atlântico Norte (1992) e no Conselho de Parceria Euroatlântica (1997), além do programa Parceria para a Paz (1994). Em 2003, os ministros de Relações Exteriores da OTAN confirmaram seu compromisso com os Estados da Ásia Central, que tiveram um papel crucial na Força Internacional de Assistência para Segurança (ISAF na sigla em inglês), liderada pela OTAN para atuação no Afeganistão, num momento em que esses Estados apoiaram as operações no Afeganistão com bases militares para forças ocidentais. Em 2004, a OTAN criou a posição de um representante especial para o Sul do Cáucaso e a Ásia Central. Entretanto, os Estados dessas regiões preferem relações bilaterais com os EUA e outros membros da OTAN na área de segurança. A Rússia manteve sua atitude negativa em relação ao alargamento P á g i n a | 19 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 da OTAN, especialmente aos planos de admissão da Ucrânia e da Geórgia à aliança e à aproximação da infraestrutura militar da OTAN em relação às suas fronteiras. Autoridades russas chegaram a apoiar um diálogo direto entre a OTAN e a OTSC, incluindo as atividades conjuntas para a estabilização do Afeganistão. Porém, a cooperação é difícil em face do desenvolvimento das forças conjuntas de manutenção da paz pela OTSC e os esforços dessa organização de desenvolver sua própria relação na área de segurança com o Afeganistão. A guerra entre a Rússia e a Geórgia em 2008 acelerou a militarização da OTSC. A declaração de Moscou do Conselho de Segurança Coletiva da organização em 2008 foi considerada a primeira posição realmente consolidada da aliança e mencionou as preocupações com a tentativa da Geórgia de resolver o conflito na Ossétia do Sul pela força e o escalonamento das tensões no Cáucaso (POP, 2009, p.283-287). Em 2009, o secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, estava preparando uma proposta para um engajamento formal da OTAN com a OTSC, mas membros do governo dos EUA conseguiram impedir que tal engajamento ocorresse. Eles argumentavam que fazer isso legitimaria uma organização em declínio, que, na sua visão, não se mostrou efetiva na maior parte de suas atividades. Em 2010, o secretário-geral da OTSC, Nikolai Bordyuzha, foi descrito por membros da embaixada dos EUA em Moscou como condescendente e ainda muito ligado ao seu passado como um oficial de carreira da KGB e da FSB. Tais membros viam que, se o governo russo estivesse realmente disposto a promover as possibilidades de cooperação da OTSC com a OTAN, eles precisariam de um melhor interlocutor que Bordyuzha. Em abril de 2014, a organização anunciou que interromperia seus contatos com a OTAN num contexto de críticas de Estados da aliança norteatlântica à intervenção russa nos assuntos domésticos da Ucrânia e à anexação da Crimeia e de chantagem da OTAN a todos os Estados membros da OTSC. A decisão não encontrou tanta repercussão na OTAN, uma vez que ela raramente demonstrou interesse em cooperar com a OTSC. Na falta de contatos com a OTAN, a OTSC passou a buscar mais a cooperação com a OCX contra ameaças (KUCERA, 2014). Representantes da OTSC e da OCX já tinham assinado em 2007 um memorando de entendimento que oferecia as fundações para a cooperação entre as duas organizações. O acordo – pelo qual a Rússia pressionou a China por tanto tempo – pode ser interpretado como uma tentativa de engajar a China numa aliança militar plenamente desenvolvida. A Rússia procurou limitar a liberdade de ação chinesa na Ásia Central e demonstrar a predominância russa, em especial no campo da segurança. Entretanto, o documento assinado por ambas as organizações é muito lacônico e consiste de quatro pequenos artigos, em que ambas as organizações concordam em cooperar nos campos das seguranças regional e internacional, bem como na luta contra o terrorismo e os tráficos de drogas e armas e em outras áreas. Ambas concordam em conduzir consultas e compartilhar informação, além de encorajarem a cooperação em programas e atividades conjuntos. A linguagem do acordo foi precavida e geral, o que indicava a falta de vontade chinesa de se comprometer com o que poderia ser percebido como uma aliança militar ou que poderia envolver a China em compromissos militares. A China não desejava estar numa frente contrária aos EUA liderada pela P á g i n a | 20 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Rússia, além de se mostrar preocupada com a própria posição russa. Entretanto, não se pode assumir que a China esteja interessada somente nas questões econômicas ou energéticas dentro da OCX, uma vez que quer manter a possibilidade de estabelecer contatos militares com outros Estados centro-asiáticos. Todavia, ao tentar construir a cooperação da OCX – na qual a influência russa é limitada pela chinesa – com a OTSC, a Rússia busca definir-se como a principal coordenadora de atividades multilaterais na Ásia Central e também monitorar os contatos da China com os Estados centro-asiáticos na dimensão da segurança. A cautela chinesa limita as possibilidades de que sejam conduzidas operações comuns por ambas as organizações, mas a Rússia procurou fortalecer a OTSC ao criar forças conjuntas de manutenção da paz e, ao mesmo tempo, pressionar a China por um acordo formal entre a OTSC e a OCX (KACZMARSKI, 2007). Segundo Kucera (2014), a Rússia, a China e os Estados centro-asiáticos planejam a criação, após a retirada das tropas ocidentais do território afegão em 2014, de pequenos estados tampão no Afeganistão a fim de impedir o avanço do radicalismo islâmico e da violência para o espaço pós-soviético. A OTSC – enquanto uma instituição político-militar liderada pela Rússia – buscou também enfrentar os problemas relacionados às “Revoluções Coloridas”, que, na perspectiva da Rússia, são orquestradas pelos EUA e Estados ocidentais. Segundo Bordyuzha, tais revoluções são cuidadosamente preparadas com o treinamento de líderes e grupos especiais capazes de organizar protestos populares a fim de se criar pressão informacional e psicológica sobre os governos. Por isso, elas se configuram como fontes de desafios, riscos e ameaças de caráter não militar à Rússia e seus aliados na OTSC. Por conta disso, seria necessária uma resposta coletiva usando a OTSC para combater tais ameaças nos Estados membros. Entretanto, diante da crise ucraniana em 2014, o secretário-geral da OTSC foi vago acerca da forma exata como a organização poderia agir. A Ucrânia não é membro da OTSC, e o uso das forças de reação rápida em seu território não seria autorizado. Entretanto, caso a Ucrânia tentasse recuperar o território da Crimeia, é possível argumentar que os membros da OTSC seriam obrigados a auxiliar a Rússia a defender o que ela considera parte de seu território (KUCERA, 2014). Considerações finais A OTSC vem sendo amplamente criticada por sua inação em face das ameaças reais à segurança. Recentemente, tais críticas foram feitas mais uma vez diante da crise entre o Tadjiquistão e o Quirguistão por uma disputa de fronteiras em 2014. Nessa crise, Bordyuzha disse que estava em constante contato com as lideranças dos dois Estados e que buscou discutir medidas para a contenção do conflito, mas que caberia a ambos os lados resolverem o conflito. Ao ser indagado sobre as ações da organização, Bordyuzha mostrou-se surpreso de que se espera que a OTSC lide com inúmeros desenvolvimentos distintos. Em sua resposta, ele disse que se perguntava por que a OTAN não era acusada de não trabalhar com a Turquia acerca da questão dos curdos ou com Estados dessa organização que tinham problemas de fronteira. Ele também argumentava que, P á g i n a | 21 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 se a OTSC começasse a intervir nos assuntos domésticos dos Estados membros, ela agiria como polícia e que a função da organização era garantir a segurança dos membros. Ademais, os chefes de Estado da organização não tinham oferecido a ela o mandato para esse tipo de intervenção. É no mínimo curioso que ele fizesse uma comparação com a OTAN, uma vez que membros do governo russo frequentemente questionam a existência dessa organização – que é de defesa coletiva, não de segurança coletiva – e a criticam como uma instituição ainda baseada na geopolítica da Guerra Fria. Ainda assim, parecia que a OTAN era o padrão a partir do qual a OTSC deveria ser julgada. Membros do governo russo evitam as comparações com a OTAN e refutam a visão de que a OTSC seria uma “OTAN do Leste” ou uma “OTAN de Putin” (KUCERA, 2014). Nenhuma das prioridades da OTSC para 2014 listadas por Bordyuzha não tinha sido discutida antes: ajuda ao Tadjiquistão para auxiliar a proteger a fronteira com o Afeganistão e o estabelecimento de forças militares conjuntas, inclusive Forças Aéreas. Uma das realizações concretas da organização em 2013 tinha sido o fechamento de fontes de informação – supostamente websites – que apoiavam o terrorismo e o extremismo. É verdade que, quando um confronto armado interestatal ou intraestatal ocorre na Ásia Central, muitos especialistas culpam a OTSC por não intervir; porém, a organização geralmente não tem mesmo que intervir, porque juridicamente ela deveria ter um pedido oficial dos membros. Mesmo se ela tivesse, a OTSC não era destinada a lidar com questões de segurança interna ou conflitos entre Estados membros. A OTSC é uma organização orientada para lidar com ameaças e agressões externas, como ameaças que viessem do território afegão – como o extremismo e o tráfico de drogas – ou a migração ilegal de Estados terceiros. Entretanto, crises como a do Tadjiquistão e do Quirguistão poderiam ser uma oportunidade para que a OTSC testasse suas capacidades de manutenção da paz ao enviar, por exemplo, um pequeno contingente para separar as partes do conflito. Uma operação jurídica e politicamente segura demonstraria que a organização é um ator viável na gestão de conflitos e posteriormente se poderia desenvolver a cooperação da OTSC com a ONU nos temas relacionados à manutenção da paz. Entretanto, a própria ONU não mostrou muito interesse no engajamento da OTSC, e não há uma estrutura jurídica para que a OTSC seja engajada. Em face de sua flexibilidade, a OTSC continua sendo interessante para a Rússia para que ela legitime sua predominância e simultaneamente mantenha a autonomia para decisões mais assertivas em seu entorno. Enquanto isso, a segurança coletiva – presente no próprio nome da organização liderada pela Rússia – continua sendo a lembrança de um futuro de indivisibilidade de paz e segurança que jamais se concretizou efetivamente. Referências bibliográficas: CLAUDE JR., Inis. Power and International Relations. Nova York: Random House, 1962. CSTO. Basic facts. CSTO website, s.d. Disponível em: <http://www.odkb.govru/start/index_ aengl.htm>. Acesso em: 25 maio 2014. P á g i n a | 22 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 FOLHA. Mortos podem chegar a 200 no Quirguistão; ex-líder pede envio de tropas. Folha.com, 14 jun. 2010. Disponível em: <http://m.folha.uol.com.br/mundo/750696-mortos-podem-chegar-a-200no-quirguistao-ex-lider-pede-envio-de-tropas.html>. Acesso em: 23 maio 2014. KACZMARSKI, Marcin. Russia attempts to limit Chinese influence by promoting CSTO-SCO cooperation. CACI Analyst, 17 out. 2007. Disponível em: <http://www.cacianalyst.org/ publications/analytical-articles/item/11497-analytical-articles-caci-analyst-2007-10-17-art11497.html>. Acesso em: 19 maio 2014. KUCERA, Joshua. CSTO To Cut Contacts With NATO, Increase Ties With SCO. EURASIANET.org, 24 abr. 2014. Disponível em: <http://www.eurasianet. org/node/68303>. Acesso em: 24 maio 2014. MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF THE REPUBLIC OF BELARUS. Collective Security Treaty Organization, s.d. Disponível em: <http://mfa.gov.by/en/organizations/ membership/list/cddd96a3f70190b1.html>. Acesso em: 16 maio 2014. NIKITIN, Alexander I. Post-Soviet Military-Political Integration: The Collective Security Treaty Organization and its Relations with the EU and NATO. China and Eurasia Forum Quarterly, v.5, n.1, p. 35-44, 2007. POP, Irina Ionela. Russia, EU, NATO, and the strengthening of the CSTO in Central Asia. Caucasian Review of International Affairs, v.3, n.3, p. 278-290, verão 2009. TOLIPOV, Farhod. CTSO: collective security or collective confusion ? CACI Analyst, 9 jan. 2009. Disponível em: <http://www.cacianalyst.org/publications/analytical-articles/item/11896-analyticalarticles-caci-analyst-2009-9-1-art-11896.html>. Acesso em: 16 maio 2014. P á g i n a | 23 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Conceitos em Relações Internacionais: atores e perspectivas históricas nas teorias das relações internacionais Este ensaio investiga alguns conceitos fundamentais das relações internacionais, nomeadamente, os atores que compõem estas relações e a durabilidade destes conceitos na história. Buscando similaridades do espaço internacional no tempo, é aqui demonstrada a constância das comunidades políticas independentes na história como peças-chave para o entendimento das relações internacionais. Leonardo Dutra5 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 24 - 32 Introdução As relações internacionais produzem tanto resultados distintos na interação entre os diversos atores internacionais quanto diferentes análises e explicações teóricas sobre tais interações. Neste contexto, existe determinado consenso sobre o objeto de estudo das Relações Internacionais 6 estar concentrado em uma sociedade internacional, caracterizada como um espaço composto por diversas redes de interligações existentes entre vários atores em um cenário internacional. Assim, a exposição conceitual de uma sociedade internacional demanda uma delimitação dos atores que compõe tais interconexões, bem como, uma definição da abrangência temporal de tais ligações diante da disparidade dos atores no mundo. 5 Doutor em Teoria Jurídico-Política e Relações Internacionais pela Universidade de Évora, Portugal, e Professor da Universidade de Vila Velha. 6 Neste trabalho, Relações Internacionais em maiúsculo faz referência à área de conhecimento científica, enquanto relações internacionais, em minúsculo, à relação entre os atores internacionais. P á g i n a | 24 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Na tentativa de resolver o problema, este ensaio irá discorrer sobre a existência de um espaço internacional7, trabalhando a hipótese de que um tipo de ator internacional predominante é a condição necessária para a existência deste ambiente além do círculo doméstico, supondo, então, que as relações internacionais são as relações entre os atores internacionais neste espaço. Consequentemente, encontrar uma argumentação sólida capaz de definir as condições de existência de um ambiente internacional será a condição para o entendimento dos atores fundamentais que compõem as conexões neste espaço, primeiramente, explicando o conceito de sociedade internacional e, em segundo lugar, apontando a permanência deste espaço internacional em uma perspectiva histórica. Atores e espaços internacionais A investigação sobre a definição dos atores internacionais pode encontrar alguns fatos relevantes para a construção de um conceito sobre esses atores na descrição de muitos Estados do mundo contemporâneo, a exemplo da atual realidade do Estado brasileiro. O Brasil é um país de proporções continentais, composto por vinte e sete unidades federativas e com uma extensão territorial maior do que a da União Europeia, o que aponta para a possibilidade de existência de grupos sociais bastante heterogêneos dentro do próprio país, como acontece em outros Estados de grande extensão territorial no mundo, como os Estados Unidos e o Canadá. Assim, a distância que separa a capital de um dos Estados federados do Brasil, o Rio Grande do Sul, da capital de outro Estado federado brasileiro, o Amazonas, é de aproximadamente 4.500 quilômetros. Para efeitos de comparação, esta é a distância aproximada entre Lisboa, em Portugal, e Moscou, na Rússia. De tal modo, em que pese as severas diferenças dos Estados federados citados e as disparidades entre seus habitantes, como ambientes geográficos com grandes diferenças entre si, bem como, hábitos, normas sociais, entre outras características distintas dos moradores de cada região, nunca a relação de indivíduos, organizações ou outros atores dos Estados federados citados seriam caracterizadas como relações internacionais. Logo, se assumirmos que as Relações Internacionais possuem como foco o estudo da sociedade internacional, e se esta sociedade é composta pela formação de redes entre atores em um cenário internacional, a interação de indivíduos ou organizações culturalmente distintas e geograficamente distantes dentro de uma mesma comunidade política independente não configura nenhum tipo de relação internacional. Neste contexto, uma ilustração concorrente ajuda na caracterização de um espaço internacional: a relação entre povos semelhantes culturalmente e geograficamente próximos que, contudo, pertencem a Estados distintos8. A fronteira sul do Brasil com a República Oriental do 7 “Espaço internacional”, “cenário internacional” e “ambiente internacional”, são nomenclaturas com o mesmo significado conceitual para este artigo. 8 Além da homogeneidade entre populações apresentada pelo povo gaúcho que ocupa o pampa sul-americano, pode-se citar exemplos mais acentuados da separação de semelhantes em distintas comunidades políticas, a exemplo de vários P á g i n a | 25 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Uruguai ilustra a perspectiva sobre um ator predominante para a concepção de um espaço capaz de definir as relações internacionais. Em regiões de fronteira como a do Estado federado brasileiro do Rio Grande do Sul com o Uruguai, as populações de ambos os países vivem em condições bastante semelhantes. Além disso, em algumas regiões de limite pertencentes à área rural dos países, inexiste qualquer tipo de barreira física entre os Estados do Brasil e do Uruguai, tornando difícil a delimitação dos espaços pertencentes a cada comunidade política. Contudo, qualquer relação entre indivíduos ou organizações culturalmente semelhantes e geograficamente próximas neste espaço será tratada como uma relação entre atores em um cenário internacional, simplificadamente, ratificando que as relações internacionais dependem da existência de comunidades políticas independentes para existirem, estas que dão origem ao chamado ambiente internacional, e consequentemente, constroem as Relações Internacionais. Assim sendo, são relações internacionais as interações entre atores pertencentes a distintas comunidades políticas em um cenário internacional, independente da similaridade cultural destes atores, formação étnica, proximidade geográfica, ideologia econômica, religiosa ou política, entre outros pontos que poderiam distinguir comunidades de indivíduos no mundo. De tal modo, o ambiente internacional formado pela interação de atores internacionais pode ser então caracterizado como um espaço virtual, onde agentes pertencentes a distintas comunidades políticas independentes, ou seja, comunidades que não reconhecem outras comunidades independentes como hierarquicamente superiores a si mesmas, interagem mutuamente. Conclui-se que a configuração de comunidades políticas independentes é a condição necessária para a existência de um espaço além destas comunidades, caracterizado como espaço internacional. Segue que hoje estas comunidades políticas independentes são individualizadas como Estados, portanto, as relações internacionais que derivam da interconexão entre atores em um cenário internacional, conceitualmente, são a análise das interações entre atores em um cenário composto por diferentes Estados no mundo 9. Assim, a existência do Estado como condição necessária para a configuração de um espaço internacional contemporâneo confere importância a este ator como protagonista destas relações; contudo, estas ainda são compostas por diversos outros participantes, que atuam neste cenário, e desta forma, merecem nossa atenção no estudo das relações internacionais. Entre outros10, poderíamos citar uma série de instituições formadas por Estados ou pelos nacionais destes, como a Organização das Nações Unidas, a Organização Internacional de Aviação Estados africanos, separados por linhas quadrangulares de fronteira traçadas por governantes que possivelmente não representavam as vontades de seus governados. 9 Martin Wight (1960, p. 36) igualmente apresenta uma perspectiva semelhante a abordada neste artigo em uma das obras basilares para as Teorias das Relações Internacionais. 10 Lista de atores internacionais proposta por Ricardo Seitenfus (2007, p. 69-74): organizações de caráter internacional e objetivos gerais, organismos globais de propósitos delimitados, organizações de alcance não global mas regional, organizações regionais com objetivo de integração econômica entre seus membros, corporações transnacionais, organizações não governamentais de atuação internacional, instituições religiosas tradicionais e organizações fundamentalistas, e, ainda, o indivíduo. P á g i n a | 26 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Civil, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, o MERCOSUL, a companhia brasileira Petrobrás, o Greenpeace, a Igreja Católica, a Al Qaeda, além dos indivíduos, como atores que oriundos de determinada comunidade política independente, igualmente como os Estados, efetivamente constroem e participam das relações internacionais. Assim, é possível inferir que quando indivíduos são responsáveis pela crescente interdependência e cooperação no cenário internacional, estes são atores do cenário internacional, da mesma forma que quando outra instituição igualmente importa ou interfere neste cenário, ela igualmente é um ator internacional. Neste contexto, são muitos os exemplos de Estados que oficialmente não cooperam, contudo, possuem forte interação entre seus nacionais, demonstrando a complexidade da caracterização dos atores internacionais. Estas interações podem acontecer desde o moderno relacionamento dos homens em redes sociais digitais até a clássica interação entre organizações como as igrejas, universidades e associações civis, entre outros agrupamentos, que historicamente constroem (ou construíram) a malha cooperativa de indivíduos e instituições entre Estados não cooperativos. Apesar disso, embora uma definição sobre sociedade internacional 11 e relações internacionais tenha sido construída, o questionamento sobre a homogeneidade da configuração destas relações no tempo se impõe como importante fator para o estudo do cenário internacional. Neste cenário, erguese a pergunta ao analista das relações internacionais sobre até que ponto um cenário internacional como definimos existiu como caracterização internacional na história, ou ainda, em que medida as relações internacionais são um fenômeno moderno, para tanto, exigindo uma melhor conceitualização da existência dos atores internacionais no tempo e no espaço. A abordagem histórica A análise da extensão da existência dos atores internacionais no tempo pode ajudar a delimitar o método a ser utilizado na análise das relações internacionais como um todo. Porque, se a história não demonstra similaridades estruturais com outros períodos desta mesma existência, o estudo das relações internacionais desta linha temporal possivelmente não apontaria nada mais do que fatos, simplificadamente, negando a construção de linhas de pensamento duradouras sobre a composição das relações internacionais 12. Enquanto a análise da história pode estar focada no apontamento fidedigno dos fatos, a busca por modelos de comportamento na política internacional está mais preocupada com os padrões de conduta ou regras duradouras da ação política que vários acontecimentos históricos em conjunto 11 Entre outros conceitos, a proposta conceitual de uma Sociedade Internacional de Hedley Bull é pertinente a este ensaio. Para Bull (2002, p.19), “existe uma sociedade de estados (ou sociedade internacional) quando um grupo de Estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituições comuns.” 12 Hedley Bull (1966, p. 361) corrobora uma abordagem semelhante em um clássico artigo sobre o tema. P á g i n a | 27 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 podem demonstrar, “tendo mais liberdade para apontar o fato de que se as políticas fossem diferentes, as consequências também poderiam ter sido” (WIGHT, 2002, p. 306). Desta forma, constrói-se aqui a hipótese de que a análise da história poderia assinalar grande similaridade na caracterização do cenário internacional. Este pressuposto parte do conceito de que, independentemente do tipo de formação doméstica que as diversas comunidades políticas independentes tiveram na história, em suas relações externas, estas comunidades formaram um cenário internacional explicado por um grupo semelhante de variáveis no tempo 13. O argumento recebe força se elaborarmos modelos mentais sobre a caracterização da existência humana em uma situação diferente do arranjo entre comunidades políticas que existiram na história. Assim sendo, em que pese a não existência de uma para-existência, as sucessivas caracterizações políticas na nossa história majoritariamente apresentaram formações culturais, lideranças, adaptações geográficas, entre outros fatores, que resultaram da existência de distintas comunidades independentes no planeta. Segundo Nye (2009, p. 3), entre uma série de outras descrições da justaposição ou aglutinação entre comunidades políticas na história que poderiam ser citadas como bases para este argumento, a existência de um Sistema Mundial Imperial, situação onde um tipo de governo controlou grande parte dos territórios que tinha contato, como o Império Romano, figura como das diferenciações das comunidades políticas no tempo.Da mesma forma, existiu um Sistema Feudal, como outra configuração de comunidades políticas no mundo, caracterizada pela lealdade dos homens circundada por limites terrestres comandados por senhores locais, donos desta fidelidade. Igualmente, segundo o mesmo autor, o sistema anárquico de Estados, marcado pelo não reconhecimento de comunidades com algum poder superior às outras no cenário internacional, figura como um ordenamento similar da nossa existência, entre tantos que existiram e que, igualmente, ilustram a heterogeneidade de formações políticas e sociais no espaço e no tempo. O ponto específico defendido aqui é que a heterogeneidade das formações humanas em comunidades no mundo, ao contrario da existência de uma comunidade política homogênea em toda a história, alimenta a hipótese de que distintos agrupamentos políticos independentes sempre reclamaram igualdade de status nesta mesma linha temporal, desta forma, figurando como atores internacionais. Assim, mesmo diante das diferenças de complexidade no tempo, estes atores podem ser caracterizados como agentes que concretizaram relações internacionais nos mais variados períodos da história. Em suma, a partir da análise das diversas formações que caracterizaram o mundo como conhecemos efetuadas por expressivos estudos sobre o assunto14, sustenta-se aqui a hipótese da 13 A hipótese aqui inicialmente apresentada para o estudo das relações internacionais parte do chamado método dedutivo da prova. Neste, segundo Popper (2002, p. 30), uma determinada hipótese só admite prova empírica tão somente após a sua formulação como hipótese. Assim, o trabalho do cientista consiste, inicialmente, na elaboração de teorias, para, posteriormente, estas serem colocadas à prova dos fatos. 14 Entre as investigações que poderíamos citar, Martin Wight principia o trabalho de questionamento e comparação entre diversas comunidades políticas da história com o objetivo de construir um entendimento histórico sobre as P á g i n a | 28 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 existência de similaridades nas relações externas das comunidades independentes na história, dentro do ambiente que aqui definimos como um cenário internacional. Desta forma, se existe algum significado na diferenciação das caracterizações de ordem no tempo, esta pode ser relativa somente à durabilidade desta simbolização de ordem diante de outras existências. De tal modo, extrai-se desta experiência apenas algum entendimento de hierarquia temporal que define a existência do indivíduo como inferior a da sociedade a que ele está inserido, esta que, por sua vez, ainda perecerá diante da existência do mundo, que permanecerá hierarquicamente superior às demais existências. Assim sendo, se partirmos da hipótese que aceita as similaridades de comportamento entre as diversas comunidades políticas na história, a construção de uma linha teórica nesta perspectiva poderia estar baseada no pressuposto de que a caracterização do cenário internacional está ligada à experiência das comunidades independentes no tempo. Segundo Watson (2004, p. 14), estas comunidades hoje exemplificadas pelos atuais Estados reconhecem a mesma reivindicação de independência de outras comunidades do sistema que fazem parte, independente da forma, caracterização ou do exercício do poder doméstico destas comunidades. Assim, refutando definições que acentuem a análise do efetivo exercício do poder doméstico das comunidades políticas na história e focando a atenção nas relações que estas comunidades possuíam com outras comunidades que reivindicavam independência em um mesmo sistema, a história pode apontar severas similaridades de comportamento entre os atores em um cenário internacional. Neste contexto, desde que algumas comunidades estejam suficientemente envolvidas umas com as outras, elas tendem a demarcar seus próprios limites em um ambiente internacional, independente das particularidades de sua formação política interna. Ou seja, pelo fato de reclamarem independência em relação a outras comunidades igualmente independentes em seu entorno, estas praticaram relações internacionais, e assim construíram a diferenciação entre distintos povos na história humana, resultando na heterogeneidade de comunidades no mundo durante toda a existência conhecida15, bem como, na preponderância das comunidades políticas independentes hoje denominadas Estados como atores principais para existência das relações internacionais. Portanto, segundo Watson (2004, p. 28), é possível conjecturar que a composição deste cenário internacional composto por comunidades política independentes esteve sempre em algum similaridades e diferenças entre tais agrupamentos; contudo, a morte relativamente prematura de tal pensador deixa para Adam Watson a tarefa de conclusão deste trabalho. Entre outros estudos, ver WIGHT, Martin. Systems of States. Bristol: Leicester University Press, 1977; WATSON, Adam. A Evolução da Sociedade Internacional: Uma análise histórica comparada. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004; e, ainda, WATSON, Adam. Systems of States. Review of International Studies. n. 16, p. 99-109, 1990. 15 Entre outras definições, as teorizações de Spengler-Toynbee citadas por Voegelin (2010, p. 175-177) auxiliam o entendimento dos diversos ordenamentos na história. A teoria é fundamental para Spengler pela caracterização da história desde diferentes civilizações, entendidas como o florescimento de uma alma coletiva, cultural, dentro de um cenário histórico. Nesta perspectiva, estas almas civilizacionais floresceriam apenas uma vez, e as civilizações produzidas repetiriam suas histórias como analogias orgânicas à juventude e à maturidade, e, assim, uma civilização tem fim quando sua vitalidade se esgota. Toynbee calculou um futuro de 1743 milhões de civilizações para existência terrestre, todas cheias de vida e significado como a história da sociedade helênica ou o Império Romano. P á g i n a | 29 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 ponto de um espectro que varia entre dois extremos: a completa independência entre as comunidades ou um império absoluto. Assim, as comunidades existem em algum lugar entre a completa autonomia umas das outras ou onde a associação destes agrupamentos gerou diferentes sistemas, situações que poderiam ser caracterizadas no máximo como um império absoluto. Logo, ainda segundo o referido autor, é presumível que em toda a história conhecida do mundo o cenário internacional pode ter compreendido ordenamentos formados por comunidades semelhantes aos Estados contemporâneos que se encontravam em alguma posição intermediária entre estes dois extremos dentro de um sistema. Isso significa que poderíamos apontar as recentes mudanças no cenário internacional após 1989, por exemplo, como adequações de um sistema específico dentro de uma linha temporal, onde comunidades políticas variaram sua existência ocupando alguma posição intermediária dentro de um espectro extremado pela independência, por um lado, e pelo total imperialismo, de outro. Igualmente, o argumento explica a evolução da comunidade política contemporânea como conhecemos – o Estado, que tem seus contornos consolidados com a Revolução Francesa e a Revolução Norte-Americana, porém, que recebe modificações conceituais em dois outros períodos na nossa história recente: ao final da II Guerra Mundial, com o processo de descolonização, e no período posterior à desconstrução do antigo Império Soviético, já próximo ao século XXI. Logo, estes atores internacionais alteraram algumas de suas características no tempo, tornando-se mais complexos e maiores em algumas vezes, e por outras, apresentando uma fragmentação e evolução da forma de existir. Assim, a composição interna ou o exercício do poder, igualmente, sofreu modificações na história, desde comunidades políticas baseadas no domínio de um rei ou imperador concedendo participação limitada no exercício de seu governo à sua aristocracia, até o momento onde o cenário internacional mostrou sinais de alteração de uma soberania monárquica para uma soberania popular, concebendo a comunidade política independente como uma ordem política estabelecida pela vontade do povo. Ainda, analisando a recente história do século XXI é notória a alteração de comunidades políticas completamente independentes entre si, que pela formação de alguns sistemas, se aproximam de outros Estados modificando a caracterização de sua autonomia em alguns casos. Os processos de integração regional, como o da União Europeia, exemplificam tal argumento, onde comunidades politicamente independentes em um passado recente hoje se aglutinam sob uma mesma bandeira, certamente, até o ponto em que novamente modificarão suas relações, entretanto, ainda dentro de uma amplitude de extremos configurados como total dependência ou independência entre estas comunidades. Conclusão Exposta a perspectiva teórica que aborda as relações internacionais como um sistema internacional que repete suas características de forma relativamente homogênea na história, as P á g i n a | 30 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 similaridades nas relações internacionais ou as heterogeneidades das comunidades políticas resultantes deste processo histórico podem ser verificadas. Assim, os diferentes agrupamentos humanos na história construíram lógicas de interação que, se entendidas de forma desvinculada do poder doméstico destas comunidades políticas, podem ratificar alguma similaridade de comportamento entre os antecessores do atual Estado contemporâneo. Existindo algum tipo de interação relativamente permanente entre as comunidades políticas, pela necessidade da existência conjunta destas comunidades, algumas ferramentas são logicamente construídas para a comunicação entre as partes envolvidas, tais como a diplomacia ou o comércio internacional. Assim, desde que tenha existido um grupo de comunidades com relações permanentes umas com as outras neste sistema, estas comunidades compuseram um cenário além das suas próprias fronteiras, caracterizando um cenário internacional, de forma semelhante ao moderno espaço internacional contemporâneo. Logo, esta perspectiva valida a abordagem histórica das relações internacionais como caminho apropriado para o entendimento de grandes padrões de existência dos atores internacionais, bem como, corrobora a existência de uma série de importantes atores para construção das relações internacionais, que, em última análise, demandam a existência de comunidades políticas independentes para a composição de um espaço internacional. Referências Bibliográficas: BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica: um estudo da ordem na política mundial. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. BULL, Hedley. International Theory: The Case for a Classical Approach. World Politics. Vol. 18, nº 3, 1966. NYE, Joseph. Cooperação e Conflito nas Relações Internacionais. São Paulo: Editora Gente, 2009. POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Editora Cultrix, 2002. SEITENFUS, Ricardo. Relações Internacionais. Barueri: Manole, 2007. VOEGELIN, Eric. Ordem e História - Vol. 1. São Paulo: Edições Loyola, 2010. WATSON, Adam. A Evolução da Sociedade Internacional: Uma análise histórica comparada. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. WATSON, Adam. Systems of States. Review of International Studies. n. 16, 1990. P á g i n a | 31 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 WIGHT, Martin. A Política do Poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. WIGHT, Martin. Systems of States. Bristol: Leicester University Press, 1977. WIGHT, Martin. Why is there no International Theory? - International Relations. n. 2, 1960. P á g i n a | 32 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Energia e integração regional: neofuncionalismo na América do Sul Este artigo visa tratar da possibilidade de uma integração energética no Cone Sul focando na importância geoestratégica, política e econômica. Para tanto, é abordado o desenvolvimento da economia mundial de energia e a possibilidade da cooperação funcional pelo viés energético no cone sul. Posteriormente, apontam-se as teorias políticas de integração econômica regional, o funcionalismo e o neofuncionalismo, que dão suporte a este artigo. Ao final, é apresentada uma proposta de integração concreta para a região do Cone Sul. Conclui-se que a integração setorial, através da energia, faz-se importante, viável e necessária para a região. Gustavo Tonon Lopes16 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 33 - 40 O desenvolvimento da economia mundial de energia A energia sempre esteve presente na história da humanidade, entretanto a forma de obtenção e utilização da energia se alterou muito ao longo do tempo. Durante os séculos XI e XIII inicia-se na Europa Ocidental um processo de mecanização em decorrência da expansão das atividades tecnológicas. Impulsionados pelas necessidades de uma indústria em estado embrionário, o moinho hidráulico surge como importante fonte de energia mecânica. Logo depois a madeira passou a ser utilizada como fonte energética e posteriormente, no século XIX, o carvão mineral se difundiu por toda a Europa, enquanto importante fonte de energia. 16 Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade de São Paulo (PROLAM- USP) e Professor de Relações Internacionais da FASM. P á g i n a | 33 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Outro impulso importante no crescimento da demanda por energia se dá a partir do próprio crescimento demográfico observado na Europa; entretanto, o consumo cresce a uma velocidade muito mais elevada que o crescimento da população: Para a economia da energia, o longo prazo é inicialmente um crescimento do consumo mundial que se dissocia do da população no inicio do século XIX, que cresce a uma taxa anual média aproximada de 2% durante um século (1850-1950), e que depois se acelera até 4,5% entre 1950 e 1970. O consumo médio por habitante passa, assim, de menos de 0,3 tep em 1850 para 0,5 em 1900, 0,8 em 1950, 1,4 em 1970 e 1,6 em 1992. No que diz respeito ao consumo anual de energia útil, ela poderia ter sido multiplicada por mais de duzentos com a elevação da eficácia global do balanço energético. (MARTIN, 1992, p. 41). Com o advento da industrialização a necessidade de iluminação mais eficiente se impõe como um desafio para ciência, e a partir do progresso científico e inovações tecnológicas surge a indústria elétrica. Uma indústria totalmente nova que responde às necessidades impostas pelas revoluções industriais. O desenvolvimento tecnológico dessa indústria foi liderado pelos EUA e Alemanha; entretanto, a forte demanda mundial logo forçou a “eletrificação” de toda a energia utilizada no mundo. Esse processo foi acentuado no pós-Segunda Guerra Mundial. Nesse período a demanda efetivamente parte de todas as partes do globo, inclusive a América Latina, que entrou em um processo de industrialização mais profundo. É evidente que a energia é fundamental para o crescimento econômico das nações; entretanto é importante enfatizar que a energia não é o próprio desenvolvimento, mas uma ferramenta que propicia o desenvolvimento. É necessário que haja uma política energética que fomente o crescimento econômico a partir dessa poderosa ferramenta. Muitas vezes, se mal planejado, a energia pode ser rarefeita e onerosa o que pode inclusive limitar o crescimento econômico. Dessa maneira, a energia desde sua descoberta e massificação se tornou um recurso indispensável para o desenvolvimento das nações. Em suas múltiplas formas, se tornou um produto passível de negociação no mercado internacional; uma commodity energética. A América do Sul é reconhecida internacionalmente pela abundância de recursos naturais; podemos citar como exemplo a riqueza hídrica que a Bacia do Prata e o bioma amazônico nos fornece e as enormes reservas de gás natural encontradas na região da Bolívia e Peru. A complexidade no uso das energias em países de muita demanda, como o Brasil, exige uma organização perfeita no fornecimento dos diferentes tipos de energia, nas quantidades suficientes para suprir a demanda, determinantes para incentivar o crescimento econômico. E apesar da América do Sul ser extremamente rica nesses recursos, nem todos são encontrados em cada um dos países, em quantidades suficientes para suprir suas necessidades internas. Os fornecedores ideais são aqueles que estão mais próximos (países vizinhos), pois como as distâncias são menores haveria uma maior facilidade no transporte e infraestrutura, e, consequentemente, uma redução no custo final da energia. Se houvesse, portanto, um sistema P á g i n a | 34 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 energético integrado no Cone-Sul haveria maior confiabilidade no processo de suprimento, além de menores custos operacionais para todos os sistemas energéticos nacionais (OLIVEIRA, 2005). A questão energética na América do Sul é muito interessante, pois alguns países da região (notadamente Bolívia e Paraguai) têm a energia como seu único grande produto de exportação, e passível de gerar riquezas internamente. As relações bilaterais do Brasil com esses dois países sempre estiveram intrinsecamente ligadas à questão energética, o que colaborou, mas ao mesmo tempo restringiu, o processo de integração no Cone-Sul (VIOTTI, 2000). Teorias da Integração Antes de abordar as teorias de integração, primeiramente tem-se que compreender no que consiste a integração econômica regional em si e quais as causas que a motivam. Os países buscam a integração através da formação de blocos econômicos, coalizões, grupos, áreas de livre comércio, com o intuito maior de se fortalecerem, o que proporcionaria aos Estados alcançarem maior inserção no sistema internacional e ampliarem sua participação no comércio e na economia mundiais. Além dos benefícios econômicos, a integração é um mecanismo político para obter maior influência regional, ou maior resistência frente a um ator hegemônico, segundo a definição de alguns autores, como Regina Simões e Cristiano Morini (2002). É importante observar que este trabalho aborda as teorias políticas de integração econômica regional, que não dizem respeito às motivações para a integração, as quais podem ser as mais variadas possíveis (motivações econômicas, políticas, tecnológicas, entre outras), mas concerne ao processo de integração em si, isto é, como se daria este processo. Para compreensão das teorias políticas de integração regional, é necessário o entendimento de que o processo de integração regional é lento, porém, com grande probabilidade de eficiência. Ocorre de maneira gradual e os melhores resultados são a médio e longo prazo. A abordagem das duas teorias – funcionalista e neofuncionalista – explica porque o processo ocorre gradualmente, sendo que começa por um setor e pode se transbordar para outros setores (Spill Over). Apesar das limitações de ambas as teorias, estas auxiliam na compreensão da importância da integração setorial inserida em um processo de integração regional mais amplo. A opção pelo funcionalismo e pelo neofuncionalismo se deu em virtude da busca de um aporte teórico para a proposta integracionista, que será apresentada ao final do trabalho, sendo que o mesmo não visa a discussão teórica, mas apenas utiliza os dois modelos como base. Mitrany formulou sua teoria no contexto do pós II Guerra Mundial, quando os paradigmas realista e idealista não mais explicavam o sistema mundial. No caso do realista, que assume o Estado como o único ator das Relações Internacionais, este não era mais aplicável devido ao surgimento de outras organizações e atores privados que passam a ganhar espaço no cenário internacional. Já o paradigma idealista entrou em contradição, pois sem restringir a soberania política dos Estados (como se fosse somente jurídica) não é possível uma paz mundial, uma vez que P á g i n a | 35 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 os Estados, embora “moralmente conectados”, ainda seriam livres para se agredir (SARFATI, 2005). Deste modo, o funcionalismo surge como uma proposta teórica que defende que a paz poderia ser alcançada “em partes”, através da cooperação funcional em determinados setores, o que levaria a um processo de integração gradual. Através da criação de uma nova estrutura institucional para gerir a integração técnica, os Estados membros estariam cedendo parte de sua soberania em prol de relações pacíficas de cooperação, tornando a possibilidade de guerra inviável para não prejudicar as benéficas relações cooperativas. À medida que os Estados cooperam em funções específicas e vão gradualmente cedendo suas soberanias nessas funções, Mitrany acredita que seria alcançada uma ‘paz em partes’, ou seja, cada parte de soberania cedida em prol do bem comum é mais uma parte adicionada para as relações pacíficas entre as nações. (SARFATI, 2005, p. 185). A teoria funcionalista considera que a forma mais segura de alcançar a integração e a paz é a cooperação ao nível de certas tarefas funcionais, tanto de natureza técnica como econômica, ao invés da criação de novas estruturas institucionais no plano político. Nesse sentido, as organizações internacionais funcionais estariam mais habilitadas do que os Estados, para levar a cabo determinadas tarefas, com o que conquistariam as "lealdades nacionais" e excluiriam quaisquer suspeitas de pretenderem exercer um controle supranacional. Um exemplo bastante claro no caso da América Latina é a CIER – Comisión de Integración Eléctrica Regional – cuja sede fica no Uruguai. A Comissão é composta por dez países sulamericanos e foi criada em 1964. Hoje possui status de Organização Não Governamental, formada por empresas do setor energético e organismos sem fins lucrativos, unida aos setores elétricos dos dez países-membros, com o objetivo de trocar informações, conhecimentos, experiências, formar profissionais e desenvolver projetos com enfoque regional. No total são duzentas e vinte e nove empresas participantes, além do comitê CIER para América Central e Caribe (CECACIER). A ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica do Brasil) e a Usina Hidrelétrica Binacional de Itaipu são vinculadas. A cooperação iniciada a partir de questões técnicas se dá mais rapidamente e é mais eficaz, de acordo com Mitrany, do que a integração envolvendo questões políticas. No caso da integração bilateral energética, da qual trata este artigo, a criação bem sucedida de Itaipu demonstra como a integração setorial técnica acarretou benefícios aos dois países. Itaipu supriu deficiências elétricas do Brasil para a região de maior produção industrial do país (região Sudeste) e aproveitou recursos antes subutilizados no Paraguai, com mais eficiência do que uma integração política lenta acarretaria. O desenvolvimento econômico e tecnológico faz da integração uma situação possível e necessária; o mundo integrado econômica e tecnologicamente deu lugar a muitos problemas P á g i n a | 36 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 tecnicamente complexos que os Estados individualmente não podem tratar eficazmente, mas que organizações internacionais funcionais criadas para gerir determinado setor resolveriam. No caso da teoria neofuncionalista, assume-se que as forças econômicas e tecnológicas estão a conduzir a uma maior integração política. Haas define um aspecto de “spillover” da integração, ou seja, o seu transbordamento (SARFATI, 2005). No caso em questão, de acordo com Haas, a integração que se inicia pela questão energética poderia, e naturalmente iria, atingir outros setores (educação, saúde, transporte, etc.), até que se alcançasse uma integração política total. Isto ocorreria naturalmente, como consequência da própria conjuntura de interdependência entre os países. Cabe aqui explicar que, segundo a Teoria da Interdependência das Relações Internacionais, o mundo é interdependente, ao passo que as redes financeiras, econômicas, comerciais, políticas, culturais, sociais, etc. estão interligadas e dependem umas das outras. O sistema internacional atual pressupõe que os Estados “dependem” uns dos outros, em termos que a política de um afeta a política de outro, reciprocamente (KEOHANE; NYE, 2001). É importante salientar que a União Europeia era estudo de case de Haas e, portanto, não necessariamente no caso de Brasil e Paraguai a união política total, completa e exclusiva seria viável para os dois países no momento atual. Para Sarfati (2005), Haas assume que os próprios interesses de grupos de poder nacionais induzem ao processo de integração, ao passo que a integração parte de anseios e expectativas convergentes entre grupos de poder dentro dos países, que criarão instituições para atendê-los. Esta dinâmica fica evidente no caso do CIER, pois os grupos de empresários são importantes atores privados na política doméstica e têm, na contemporaneidade, ganhado espaço e relevância no cenário das relações internacionais. Para além desse fato, a energia é um dos principais interesses estratégicos de um Estado, sendo fundamental para o crescimento econômico deste e necessária para o próprio abastecimento da população, de modo que, neste caso, os interesses do setor privado (empresários do setor de energia elétrica) e os interesses estatais atuam em conjunto, buscando promover uma maximização de recursos e condições para o desenvolvimento. Tanto Mitrany quanto Haas partem do pressuposto de que parte da autonomia decisória (soberania) dos Estados é repassada às instituições de cooperação técnica, ou integração setorial técnica. Proposta de Integração regional no Cone Sul e os benefícios energéticos Partindo das teorias funcionalistas e neofuncionalistas de que uma integração setorial é mais viável e de menor dificuldade de implantação, este trabalho propõe um modelo de integração energética no Cone Sul baseado no artigo de Adilson de Oliveira (2005). De acordo com o autor, grande parte do potencial hidrelétrico gerado pelas binacionais (Itaipu, Yaciretá e Salto Grande) na bacia do Prata, bem como grandes bacias produtoras de gás natural (Neuquen, Campos e San Alberto), geram um grande volume de energia que conjuntamente já seriam suficientes para estruturar um mercado energético integrado da Patagônia ao Norte do Brasil. P á g i n a | 37 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 A criação do Pólo-Anel teria como principais funções: i) operar como reservatório compartilhado de energia para a região, mitigando os riscos de suprimento decorrentes dos ciclos econômicos e hidrológicos; ii) oferecer ao mercado energético regional um preço de referência orientador da valorização dos recursos energéticos regionais; iii) reduzir o custo do suprimento energético regional, incrementando a competitividade das economias da região. (OLIVEIRA, 2005, p. 79). É importante ressaltar que no contexto do Cone Sul, apesar de o Paraguai ser um país relativamente pequeno ele ocupa uma posição estratégica, pois está situado no centro nevrálgico entre os dois maiores consumidores, Brasil e Argentina, ao lado da Bolívia, que possui grandes reservas de gás natural, além, claro, de possuir 50% de Itaipu. O Pólo-Anel poderá utilizar parte da infra-estrutura física já existente na região (rodovias, gasodutos, linhas de transmissão elétrica), mas obviamente que um grande volume de investimentos adicionais se faz necessário para o incremento e modernização da infraestrutura, propiciando a integração física da região. Uma empresa Plurinacional seria criada para a administração e comercialização dos recursos gerados pelo Pólo-Anel; a institucionalização desse Pólo partiria de uma decisão diplomática por parte dos países membros. Todas as decisões importantes dessa empresa nacional, como o preço a ser cobrado pela energia produzida, seriam tomadas a partir do consenso. Um dos grandes entraves nos processos de integração é a perda da autonomia (ou mesmo abdicação de parte da soberania) em detrimento de uma personalidade supranacional assumida pelo bloco. Entretanto, em consonância com Mitrany, afirma-se que em um processo de integração setorial a institucionalização da integração só regerá aquele setor específico, não interferindo diretamente nos assuntos internos de cada Estado, ou seja, não implicando em perda de soberania. Adilson de Oliveira também compartilha dessa hipótese: Esta proposta de integração não mina a autonomia dos países, mas estimula de modo prático a progressiva integração de mercados nacionais. A regulamentação dos mercados nacionais não precisa ser alterada. Apenas as regras do funcionamento do Pólo-Anel devem ser consensuais. Os países preservam sua independência para a configuração de seus esquemas regulatórios e decisões em matéria de política energética. O Pólo-Anel funciona apenas como elemento orientador da trajetória energética regional, oferecendo o benefício de menores custos de suprimento e maior confiabilidade do suprimento. (2005, p. 81). A proposta de Oliveira (2005) é apenas um estudo acadêmico, e não um projeto dos governos sul-americanos. Porém, a viabilidade do projeto e seu potencial de sucesso, além dos prováveis benefícios aos países compreendidos no Pólo-Anel, demonstram que tal proposta, em conformidade com as teorias funcionalista e neofuncionalista, expostas neste trabalho, deveria ser considerada pelos governos como uma possibilidade de desenvolvimento conjunto através da cooperação. Dada P á g i n a | 38 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 a importância da energia nas relações internacionais contemporâneas, já abordada anteriormente, considera-se que o projeto de integração setorial energética deveria ser repensado, para ocupar um papel primordial na agenda dos Estados do Cone Sul. Referências bibliográficas: BARBOZA, Mario Gibson. Na diplomacia o traço todo da vida. Riolde Janeiro: Record. 1992. BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: Da Independência a 1870, volume III. Tradução Maria Clara Cescato. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. A Política Externa Brasileira: 1822 – 1985. São Paulo: Editora Ática, 1986. CERVO, Amado Luiz. Relações Internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas. 2ª ed. revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2007. COSTA, Wilma Peres. 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P á g i n a | 39 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 PINTO, T. Itaipu: Integração em concreto ou uma pedra no caminho. Barueri: Manole. 2009. PRADO JUNIOR, Caio. Evolução política do Brasil: colônia e Império. 16ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1988. SILVA, Alberto da Costa. Da Guerra da Tríplice Aliança ao Mercosul: as Relações entre o Brasil e o Paraguai. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Sessenta anos de Política Externa Brasileira (1930-1990). Volume III – O desafio geoestratégico. São Paulo: USP. 2000 p. 85-110. SIMÕES, Regina Célia Faria; MORINI, Cristiano. A ordem econômica mundial: considerações sobre a formação de blocos econômicos e o Mercosul. Revista Impulso. v.13, n.31, p.139 - 154, 2002. VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. As Relações Brasil-Bolívia sob o signo da cooperação energética (1930-1990). In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon (org.). Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990): o desafio geoestratégico. São Paulo: USP. 2000. P á g i n a | 40 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Segurança humana: o discurso ‘para’ ou ‘da’ periferia? Neste artigo será apresentado o conceito de segurança humana e sua interrelação com duas questões clássicas das relações internacionais e da ciência política: desenvolvimento e soberania. O objetivo é questionar se o discurso da segurança humana é uma ação política dirigida às periferias ou uma bandeira levantada pelas periferias em busca de emancipação. Ariana Bazzano17 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 41 - 53 Introdução Dentro da Ciência Política e das Relações Internacionais, tradicionalmente, os estudos de segurança se dedicavam aos assuntos ligados à proteção dos Estados e do território. No âmbito interno, esses estudos se relacionavam com as questões de segurança pública, como a proteção da vida dos seus cidadãos e do patrimônio, e os seus meios de proteção proveriam do aparato policial. No âmbito externo, a preocupação em relação à segurança internacional estava ligada à possibilidade da guerra e o meio de proteção dos Estados eram os recursos militares. Contudo, ao longo do século XX e especialmente, após a 2ª Guerra Mundial, houve um intenso debate acadêmico e político a respeito da redefinição do conceito de segurança. Passa-se a debater sobre quem deveria ser o referente principal da segurança (Estados, sociedades, indivíduos) e quais meios seriam utilizados para a proteção (militar, economia, desenvolvimento social). Este debate até hoje é polêmico e controverso, porém, com o fim da Guerra Fria, ganhou-se certo reconhecimento internacional de que o referente principal da segurança deveria ser o indivíduo e 17 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). P á g i n a | 41 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 um dos principais meios para protegê-los seria por meio do desenvolvimento humano. A essa proposta de segurança convencionou-se chamar de Segurança Humana. A percepção de que as inseguranças humanas estão interligadas, e que os direitos humanos e o desenvolvimento precisavam estar associados com as questões de segurança, trouxe destaque à ideia de segurança humana. Essa ideia foi popularizada na década de 1990 pelas agências da ONU, como o PNUD, ACNUR, etc., que estavam empenhados em aliviar o sofrimento humano nos casos em que o Estado não assume a responsabilidade de garantir a dignidade dos seus cidadãos (CHENOY; TADJBAKHSH, 2009, p.76). Neste artigo será apresentado o conceito de segurança humana e sua inter-relação com duas questões clássicas das relações internacionais e da ciência política: desenvolvimento e soberania. O objetivo é questionar se o discurso da segurança humana é uma ação política dirigida às periferias ou uma bandeira levantada pelas periferias em busca de emancipação? Para responder a pergunta, o texto será dividido em três seções: 1) nesta primeira parte é apresentado o conceito de segurança humana, tal como proposto pelo PNUD em 1994; 2) na segunda seção, é destacada a relação entre segurança humana e o desenvolvimento e 3) por fim, a relação entre as intervenções humanitárias, prevenção de conflitos e a segurança humana. O Conteúdo da Segurança Humana A maior parte das publicações de segurança humana cita o fim da Guerra Fria como um fator importante para permitir o desenvolvimento de abordagens alternativas para a segurança. Ao mudar a ênfase do conflito entre os Estados para as necessidades de proteção de todas as pessoas, independentemente do seu pertencimento a um determinado Estado, o discurso da segurança humana se entrelaça com os direitos humanos e desenvolvimento, buscando se consolidar como uma alternativa às tradicionais perspectivas de segurança estadocêntrica. Em 1994, o PNUD lança em seu relatório anual – Informe sobre o Desenvolvimento Humano – o conceito de segurança humana. O relatório recomenda uma transição conceitual profunda da “segurança nuclear”, ou seja, militar, para a segurança humana. De acordo com o PNUD, para a maioria das pessoas, a insegurança resulta muito mais de preocupações da vida cotidiana do que da possibilidade de um evento cataclísmico. O relatório afirma que serão exploradas as novas fronteiras da segurança humana da vida cotidiana, pois é necessário descobrir prematuramente os sinais de alerta de uma possível crise, para que dessa maneira se possa colocar em prática ações de diplomacia preventiva (PNUD, 1994, p. III). Para o PNUD, o cerne da insegurança humana é a vulnerabilidade e a pergunta central que se deve fazer é: como proteger as pessoas? A segurança humana possui dois aspectos principais: manter as pessoas a salvo das ameaças crônicas como a fome, as doenças, a repressão (freedom from want) e protegê-las de mudanças súbitas e nocivas nos padrões da vida cotidiana, por exemplo, das guerras, dos genocídios e das limpezas étnicas (freedom from fear). Esses dois aspectos da segurança humana foram inspirados no famoso discurso proferido pelo Presidente Franklin Roosevelt ao Congresso Americano em 1941, P á g i n a | 42 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 intitulado “As Quatro Liberdades”. Neste discurso, Roosevelt afirmou que um mundo seria justo e seguro se estivesse fundado nessas liberdades: Liberdade de expressão e opinião; Liberdade de culto; Liberdade das privações (freedom from want) e Liberdade dos temores (freedom from fear). Dessa maneira, influenciados por Roosevelt, os formuladores da segurança humana atribuíram a ela essas duas dimensões: freedom from want e freedom from fear. O que, por um lado, significa proteger as pessoas das vulnerabilidades decorrentes do subdesenvolvimento e, por outro, protegê-las das violências físicas que provêm das guerras e dos conflitos civis. Além desses dois grandes aspectos principais, o PNUD identifica sete dimensões da segurança: 1) Segurança Econômica; 2) Segurança Alimentar; 3) Segurança Sanitária; 4) Segurança Ambiental; 5) Segurança Pessoal; 6) Segurança Comunitária; 7) Segurança Política. Dessa maneira, uma das características que definem a nova natureza dos temas relacionados com a segurança é a sua interdependência; o próprio relatório afirma que os sete elementos de segurança humana são interligados e a ameaça contra um elemento provavelmente se propagará a todos os outros. Para os formuladores da segurança humana, as ameaças provêm tanto de outros Estados como de outros atores não estatais ou das relações estruturais de poder, nos seus mais diferentes níveis. Para essa abordagem, as ameaças são transnacionais, não há fronteiras nacionais para problemas como desequilíbrios ecológicos, terrorismo, epidemias, etc... E já que as ameaças não se circunscreveriam às fronteiras nacionais, a solução dos problemas também não poderia ficar restrita ao plano estatal. Lloyd Axworthy, ex-ministro das Relações Exteriores do Canadá, sugeriu que o conceito de segurança humana deveria se tornar um princípio organizador central das relações internacionais e um importante catalisador para encontrar uma nova abordagem para a condução da diplomacia. A noção de segurança humana é baseada na premissa de que o individuo é o foco irredutível para o discurso de segurança. As reivindicações de todos os outros referentes (o grupo, a comunidade, o Estado, a região e o globo) derivariam da autonomia do indivíduo e do direito à vida digna (MACFARLANE, KHONG; 2006, p.02). Além das discussões em torno do conceito de segurança humana como uma possibilidade de condução da diplomacia e da cooperação internacional, alguns autores (Duffield, Waddell) ainda a veem como uma categoria biopolítica, nos moldes foucaultianos. Mark Duffield afirma que a segurança humana poderia ser considerada como uma relação ou tecnologia de governança que permitiria aos diversos atores (Estados, ONGs, instituições internacionais) agirem e atuarem, principalmente nos povos do Sul, o que lhe daria um caráter de biopolítica global. Por esse caráter, a “segurança das populações contra os fatores antropogênicos que põem em risco a qualidade da existência” se situaria na convergência de dois componentes: o desenvolvimento e a proteção (segurança) (DUFFIELD; 2005, p.03). O primeiro componente se insere na formulação da segurança humana ao securitizar as questões advindas do subdesenvolvimento (pobreza, fome, epidemias), assim o subdesenvolvimento é visto como uma ameaça à vida das pessoas. Duffield e Waddell afirmam: P á g i n a | 43 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 (...) o desenvolvimento relaciona-se com diversidade e escolhas que permitem às pessoas gerir melhor as contingências de sua existência e, por meio de intervenções regulatórias e compensatórias, ajudar as populações, à escala global, a atingir e manter a homeostase. Essa é vida desenvolvida (developmental life) securitizada no âmbito da segurança humana (idem, p.03). E o segundo componente, a proteção, representaria, de acordo com Pureza, a ascensão do horizonte normativo da “responsabilidade de proteger”. Assim, o objetivo estratégico seria proteger as pessoas e dar aos Estados – a todos os Estados – “a capacidade efetiva de, in loco, criarem condições para que as pessoas sob sua jurisdição sintam-se dia-a-dia seguras” (idem, p.03). Dessa forma, Pureza destaca que a formulação da segurança humana se inscreve num certo consenso que cada vez mais se consolida no meio acadêmico e político, favorável ao aumento do intervencionismo internacional. Então, a segurança humana definiria: (...) uma urgência e, em simultâneo, define um conjunto de tecnologias de resolução de conflitos e de reconstrução social destinadas a separar governantes de governados e, ao mesmo tempo, a atuar sobre as populações para incrementar sua resiliência, promover a inclusão, reconstruir instituições civis e garantir a representação política (idem, p.01). Para compreender os aspectos e as possibilidades dos campos de operacionalização da segurança humana, neste trabalho, as duas faces da segurança humana – a “freedom from want” e a “freedom from fear” – serão tratadas em itens distintos. Desta maneira, a face “freedom from want”, será tratada neste texto, no item intitulado: o homem vulnerável, no qual será abordada a relação entre desenvolvimento e segurança. E a face “freedom from fear”, será apontada no item o homem desprotegido, que destacará a relação das intervenções humanitárias com a questão da soberania dos Estados. O Homem Vulnerável: A dimensão do desenvolvimento Jorge Nef explica que, entre 1945 e 1989, o desenvolvimento e a segurança foram separados, tanto conceitualmente como na prática. A segurança nacional foi enquadrada dentro de um debate Leste-Oeste, enquanto a dinâmica Norte-Sul era tratada em torno do problema do desenvolvimento. Depois de 1989, com a mudança de foco da segurança para os problemas internos, como as guerras civis, os conflitos étnicos, a disputa por recursos naturais, etc., a segurança e o desenvolvimento não poderiam mais ser vistos numa perspectiva de soma zero, mas sim a partir de uma perspectiva de soma diferente de zero, com possibilidades de ganhar e perder juntos. Com o advento das ameaças transfronteiriças, as sociedades aparentemente seguras do Norte passaram a ser cada vez mais vulneráveis aos eventos nas regiões menos seguras e menos desenvolvidas do globo. As mudanças após a década de 1990 precisavam ser cada vez mais P á g i n a | 44 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 entendidas através de uma conceituação abrangente e dinâmica, que exigem abordagens interdisciplinares a fim de explicar melhor a interdependência complexa (CHENOY; TADJBAKHSH, 2009, p.100). Dado o contexto da década de 1990, Jorge Nef propõe reconceituar os paradigmas de Norte/Sul (desenvolvimento) e Leste/Oeste (segurança) pelo modelo centro-periferia, baseado na ideia de vulnerabilidade mútua. Para Nef, o paradigma da segurança humana se basearia na noção de vulnerabilidade mútua, o que significaria dizer que, em um mundo interdependente, mesmo os setores mais desenvolvidos e aparentemente mais protegidos se encontram também num estado de vulnerabilidade, enquanto outros setores sofrem de uma situação de vulnerabilidade e insegurança extrema. Nef afirma: “mientras exista vulnerabilidad e inseguridad extrema en algunos sectores del conjunto, todos somos, en cierta medida vulnerables” (NEF; 1999, p.41). Assim, para Nef, o tema central da segurança humana seria a redução do risco coletivo e compartilhado das causas e circunstâncias da insegurança. Para o autor, a segurança é a probabilidade de redução do risco e da vulnerabilidade, ou seja, a diminuição e o controle da insegurança. Esta definição enfatiza a prevenção das causas e dos tipos de inseguranças; o que preocupa Nef é aquilo que afeta a grande maioria da população, especialmente os setores mais suscetíveis a uma maior vulnerabilidade e exposição de fatores de risco. Mahbub ul Haq é quem pela primeira vez afirma que a segurança humana é um suplemento para o debate do desenvolvimento humano no Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, em 1994. De acordo com Chenoy e Tadjbakhsh, o conceito foi introduzido como uma “extensão natural do desenvolvimento humano no campo da segurança” no contexto das oportunidades do pós-Guerra Fria para os dividendos da paz (CHENOY; TADJBAKHSH, 2009, p. 98). Os autores do Relatório do PNUD de 1994 ressaltam que a segurança humana não deve ser equiparada ao desenvolvimento humano, pois este é um conceito mais amplo, que ressalta a ampliação das oportunidades para os indivíduos. A segurança humana seria a possibilidade das pessoas exercerem as suas opções de forma segura e livre, além de uma relativa confiança de que essas oportunidades serão perenes (PNUD, 1994, p. 26-27). Assim, poder-se-ia afirmar que a segurança humana seria a capacidade de desfrutar dos benefícios do desenvolvimento humano num ambiente seguro e o desenvolvimento humano seria um dos meios de se criar a segurança humana. Vale destacar que uma importante contribuição para a inserção da dimensão do desenvolvimento na proposta de segurança humana são os trabalhos do economista indiano e Prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen. Os estudos de Sen identificam a superação das privações como parte central do processo de desenvolvimento. O autor destaca que o desenvolvimento e a riqueza são os meios para os indivíduos conquistarem aquilo que desejam. Claro que essa relação não é exclusiva, nem uniforme, pois além da importância de se reconhecer o papel crucial da riqueza na determinação das condições e da qualidade de vida, também é preciso entender a natureza restrita e dependente dessa relação. Por P á g i n a | 45 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 isso, uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e do crescimento econômico, em termos de PNB, “sem desconsiderar a importância do crescimento econômico, precisamos enxergar muito além dele” (SEN, 2008, p.28). Desta forma, para Sen, o objetivo do desenvolvimento deveria ser a melhora das vidas humanas por meio da expansão de suas capacidades, tanto de ser como de fazer; assim, o desenvolvimento significaria a remoção dos obstáculos que impedem a expansão das escolhas individuais, tais como: o analfabetismo, a fome, ausência de atendimento médico ou ausência de liberdades civis e políticas. Logo, as mulheres que nascem em sociedades repressoras, a criança que não vai à escola, o trabalhador escravizado, não estão privados somente do bem-estar, mas das capacidades e do potencial que os levariam a uma vida responsável e autônoma, já que esta dependeria do usufruto de certas liberdades básicas, como diz Sen: “responsabilidade requer liberdade” (idem, p. 322). Em virtude disto, Sen insiste na necessidade de adotar a segurança humana como um instrumento para repensar o futuro e o próprio desenvolvimento. O desenvolvimento não se relaciona somente com o crescimento da renda per capita, mas também com a expansão das liberdades humanas e da dignidade. Sen defende que se deve redefinir as velhas instituições internacionais e elaborar uma agenda de mudanças necessárias, o que deveria incluir os acordos comerciais, as leis de patentes, as iniciativas de saúde global, além de possibilitar a educação universal, disseminar a tecnologia, preservar o meio-ambiente, alterar o tratamento dado à dívida externa, investir no desarmamento e alterar a gestão dos conflitos. Enfim, uma agenda para tornar viável a segurança humana. Dessa forma, como afirma Ruth Jacoby, a “liberdade do querer” e a “liberdade do medo” são indivisíveis, sendo o desenvolvimento outra palavra para essas duas liberdades. Para a autora, a insegurança seria o desenvolvimento no seu sentido inverso, pois estudos empíricos mostram que a insegurança não só prejudica as perspectivas de sobrevivência, como também diminui as variáveis macroeconômicas e de qualidade de vida, particularmente para os mais pobres. Assim, para Jacoby, o desenvolvimento deveria promover a segurança e as pesquisas têm demonstrado que a ausência de desenvolvimento econômico e social estaria relacionada com a “falência” do Estado, com a violência e conflito. Logo, estas interligações significariam que as estratégias para uma redução efetiva da pobreza deve ser a parte central dos esforços para se alcançar um mundo mais seguro e vice-versa (JACOBY, 2006, p.03). O Homem Desprotegido: a dimensão humanitária O contexto da década de 1990 e as “novas ameaças” na pauta política internacional trouxeram à tona e evidenciaram as graves crises humanitárias que ocorriam no interior dos países. Ruanda, Somália, Bósnia e Haiti são alguns dos exemplos que levantaram importantes questões a respeito da defesa dos direitos humanos e da garantia da segurança humana. Desta maneira, ganhou evidência nos anos 1990 o debate sobre as intervenções humanitárias. Além do contexto histórico, o próprio P á g i n a | 46 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 escopo conceitual da segurança humana questiona o status da soberania e o princípio de não intervenção dos Estados, já que para os formuladores da segurança humana as ameaças são transnacionais e o esforço para combatê-las também exigiria uma coalizão internacional. Assim, um caso que exemplifica bem a inter-relação entre a segurança humana e a soberania, são as intervenções humanitárias. Sucintamente, pode-se definir as intervenções humanitárias como uma intervenção militar, com ou sem a aprovação do Estado, para prevenir genocídios, violações em larga-escala dos direitos humanos (incluindo a fome em massa) e as graves violações do direito internacional humanitário (KALDOR, 2001, p. 109). A partir dessa definição, percebe-se o quão complexo, tanto na teoria, como na prática, é o tema das intervenções humanitárias, pois envolve questões como os direitos humanos e a soberania. E, talvez, uma das perguntas mais problemáticas que surge dessa definição seja: é legítimo utilizar a força, num outro Estado, para defender outros cidadãos, em nome dos direitos humanos? Os analistas de operações de paz da ONU distinguem entre as diferentes “gerações” das operações de paz: as de “primeira geração” consistiam na observação do cessar-fogo entre as forças armadas regulares, e vingou do ano de 1948 até o fim da década de 80 (GALLARDO et all., 2006, p.53). No início da década de 1990, tem-se as operações de apoio à paz de “segunda geração” ou “multidimensionais”, que participavam da negociação dos acordos de paz. E no final da década de 1990, surgem as operações de paz de “terceira geração” ou “operações de imposição de paz”, que se utilizam da força para estabilizar os conflitos, cujo marco é a Guerra de Kosovo, em 1999 (BARANYI, 2006, p.08). Desde as intervenções dos EUA no final de 2001, os analistas internacionais e acadêmicos discutem a possibilidade de incluir uma quarta geração de operações, chamadas pelos seus promotores de “estabilização”. A invasão do Afeganistão liderada pelos EUA após os ataques terroristas de 11/09 parece uma extensão dessa tendência em direção a uma intervenção forçada, ainda que seja distinta em determinados pontos das demais intervenções, segundo Baranyi. A intervenção no Afeganistão foi justificada por razões de auto-defesa, apoiada pelo Conselho de Segurança da ONU por supostos motivos “humanitários”. Além do que, os EUA permitiram que a ONU e as novas autoridades nacionais liderassem a reconstrução do país. Já a intervenção no Iraque, dois anos depois, foi justificada pelos EUA como uma medida preventiva de auto-defesa, jamais foi aprovada e sequer punida pelo Conselho de Segurança da ONU, e as potências ocupantes mantiveram o controle quase total da vida pública no Iraque. Assim, essas operações de estabilização começam a ser compreendidas como as iniciativas que se iniciam como intervenções militares, que gozam de muito menos apoio multilateral, e na maior parte das vezes são ações unilaterais ou coalizões de poucos países. Nestes casos, também não há solicitação do país afetado e terminam combinando os instrumentos bélicos com as ferramentas de consolidação de paz. Dessa forma, pode se observar uma tendência de transição, P á g i n a | 47 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 especialmente após o 11/09/01, de uma consolidação de paz, antes muito mais baseada em processos negociados, para operações de estabilização de caráter militar. Outra questão que especialistas em relações internacionais levantam é sobre os Estados poderem ou não promover intervenções em outros países, sem a autorização expressa do Conselho de Segurança da ONU. Numa mesa-redonda chamada Humanitarian Intervention After 9/11, analistas se reuniram e tomaram posições bem distintas quanto à possibilidade de uma intervenção sem a autorização da ONU. Autores como J.L. Holzgrefe e Tom Farer afirmaram que, caso o Conselho de Segurança não consiga colocar fim às graves violações aos direitos humanos, os Estados devem intervir, mesmo sem autorização. Já Daniele Archibugi e Nicholas Wheeler consideram que todas as intervenções sem a autorização da ONU são ilegais, e se mostram extremamente preocupados com ações unilaterais, tal como ocorreu no Iraque. Assim, para eles, há a necessidade de se reestruturar e reafirmar o papel do ONU e especialmente do Conselho de Segurança (FARER et all; 2005, pp. 211-251). Por meio dessa mesa-redonda, percebe-se o quão controverso é o tema das intervenções humanitárias, especialmente por causa da questão da soberania. A soberania é uma questão clássica das relações internacionais e da ciência política. Muitos autores afirmam que a Paz de Westfalia, em 1648, na Europa, consolida a tendência de territorialização da política. Assim, com a Paz de Westfalia ganha forma o sistema de Estados territoriais, conhecido como a “ordem westfaliana”, para o qual a soberania é territorial e não existiria autoridade suprema acima dos Estados. É claro que o conceito de soberania e a questão da inviolabilidade dos territórios é um assunto controverso e polêmico. Contudo, em várias situações da política internacional, os Estados não hesitam em levantar o argumento da soberania e da inviolabilidade dos territórios quando se sentem ameaçados por outros Estados. E as intervenções humanitárias só veem a aprofundar essa polêmica em torno da soberania e do princípio de não intervenção dos Estados. A relação entre a soberania e as intervenções humanitárias é tratada por Robert Keohane, no livro Humanitarian Intervention – Ethical, Legal and Political Dilemmas, publicado em 2003. A questão central do livro é sobre que circunstâncias a intervenção humanitária não autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas está justificada eticamente, legalmente ou politicamente, como, por exemplo, o caso da intervenção da OTAN em Kosovo, em 1999. Todos os autores dos artigos apresentados no livro não consideram a intervenção humanitária como algo condenável em si, mas estão cientes do potencial de abuso inerente em sua prática (KEOHANE, HOLZGREFE, 2005, p. 01). O enfoque do livro é na análise das intervenções humanitárias no contexto dos “Estados falidos” e explora questões fundamentais da teoria moral, além dos processos de mudança no direito internacional e como as concepções de soberania estão se movendo como resultado das mudanças das normas em direitos humanos (idem, p. 02). Num panorama geral do livro, pode-se observar uma forte tendência liberal. Há uma grande defesa dos direitos humanos, mesmo que seja necessária uma intervenção humanitária, seja ela autorizada ou não. Dessa maneira, para os autores do livro, a soberania é um valor instrumental, útil P á g i n a | 48 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 em algumas condições, mas não uma condição inabalável, principalmente quando há riscos à vida humana. Assim, a omissão teria consequências mais graves do que a atuação, como por exemplo, a ausência de intervenção para impedir o genocídio em Ruanda, em 1994. Outro texto importante que se preocupa com a eficácia das intervenções humanitárias é o livro, escrito por Michael W. Doyle e Nicholas Sambanis, Making War and Building Peace – United Nations Peace Operations, publicado em 2006. O livro examina o trabalho das Nações Unidas nas missões de manutenção da paz após a guerra civil, comparando os processos de paz nos quais houve o envolvimento da ONU com aqueles sem a presença da organização, analisando estatisticamente todas as guerras civis de 1945 a 1999. Michael Doyle e Nicholas Sambanis argumentam que cada missão tem de ser projetada para se encaixar no conflito, com a autoridade e os recursos adequados. As missões da ONU podem ser eficazes ao apoiar novos atores comprometidos com a paz e com a construção de instituições governamentais, acompanhando e fiscalizando a execução dos acordos de paz. Mas os autores concluem que não é bom a ONU intervir em guerras em curso. Se o conflito é controlado por spoilers ou se as partes não estão prontas para fazer a paz, a ONU não pode desempenhar um papel de aplicação efetiva. Pode, no entanto, oferecer os seus conhecimentos técnicos em operações de paz multidimensionais para acompanhar a execução de missões realizadas por Estados ou organizações regionais, como a OTAN. Os autores constatam que as missões da ONU são mais eficazes nos primeiros anos após o fim da guerra, e que o desenvolvimento econômico é a melhor maneira de diminuir o risco de novos combates em longo prazo. Além disso, o livro discute que o papel da ONU no lançamento de projetos de desenvolvimento após a guerra civil deve ser ampliado. Uma lacuna das intervenções da ONU é de que não são adequadamente focalizadas na relação entre a reconstrução econômica, o desenvolvimento e a paz. Os autores apontam que as capacidades locais são importantes para alcançar a paz negativa (ausência de guerra), tanto no curto como no longo prazo. Já as missões de paz da ONU podem até expandir a participação política, porém não têm conseguido iniciar um processo de auto-sustentação do crescimento econômico. O crescimento econômico é fundamental no apoio aos incentivos para a paz (particularmente, negativa) e contribui para evitar a guerra, mesmo na ausência de extensas capacidades internacionais. Além de ser um determinante importante de uma paz duradoura, o crescimento econômico e uma redução nos níveis de pobreza são determinantes de uma democracia sustentável. Assim, reduzir o fosso entre a política de manutenção da paz e a assistência no desenvolvimento, com ênfase na transformação estrutural, é uma boa estratégia de consolidação da paz. Os autores sugerem que as missões de peacebuilding das Nações Unidas se beneficiariam ao adicionar políticas econômicas nas suas operações, e isto é um fator decisivo para resolver essa lacuna das operações de paz. Portanto, de acordo com os autores apresentados acima, as intervenções humanitárias seriam necessárias, principalmente, pela possibilidade da reconstrução político-econômica dos Estados que sofrem as intervenções. Os autores, apesar de trabalharem os seus argumentos de forma diferente – Robert Keohane discute teoricamente o conceito de soberania e a sua relação com as intervenções e P á g i n a | 49 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Michael Doyle e Nicholas Sambanis analisam as missões de paz e os fatores que podem garantir o seu sucesso – apresentam as mesmas conclusões: de que não basta por um fim no conflito, é preciso garantir que eles não ocorram novamente e a melhor maneira para se garantir isso, é investir na construção de instituições políticas fortes e na estabilidade econômica. A partir desses dois textos, algumas questões sobre intervenções humanitárias podem ser discutidas, dentre elas: em que condições há o uso da força nas intervenções humanitárias? Quais elementos justificam o uso da força? Intervenções ocorrem em momentos de graves violações aos direitos humanos, mas o que determina a gravidade das violações dos direitos humanos? Enfim, o que é uma emergência humanitária? E quando deve ser feita uma intervenção? Todas essas questões giram em torno da problemática dos direitos humanos, afinal os direitos humanos são um importante fator para a autorização de uma intervenção. Os direitos humanos aparecem no cenário internacional como uma bússola moral, assim a violação dos direitos humanos está além das questões jurídicas, política e estatais. Os direitos humanos implicam em questões morais e, por isso, os abusos aos direitos humanos mobilizam fortemente a comunidade internacional. Contudo, apesar das questões morais e do forte conteúdo normativo que os direitos humanos mobilizam, as intervenções humanitárias não são um consenso e vários problemas preocupam durante a sua execução e eficácia. Uns dos problemas mais discutidos é a seletividade das intervenções. A ausência de clareza do que é uma emergência humanitária pode gerar situações de seletividade das intervenções, afinal essas missões dependem da aprovação do Conselho de Segurança da ONU, embora haja casos de intervenção que ocorreram sem autorização da ONU, como o caso da invasão do Iraque, em 2003, pelos Estados Unidos, que se utilizou da terminologia de intervenção humanitária. As situações ficam sujeitas à seletividade dos atores envolvidos, o que cria um espaço muito grande para cálculos estratégicos e políticos. Além do que, atualmente, as intervenções humanitárias são muito mais reativas do que preventivas, quando, na verdade, o que deveria ocorrer era justamente o contrário, as intervenções humanitárias deveriam agir como um mecanismo dissuasório de conflitos internos. Assim, o fato das intervenções humanitárias serem reativas e padecerem da seletividade dos agentes envolvidos leva a situações nas quais há uma forte resposta internacional, enquanto outras são veemente ignoradas. Ruanda e Darfur são exemplos de que as intervenções humanitárias não estão pautadas inteiramente nos direitos humanos e que os interesses dos grandes países – que não querem gastar dinheiro, nem soldados, em missões sem interesses econômicos – ainda é um ponto crucial na decisão de intervir. O que leva a uma pergunta fundamental: Por que algumas situações de violações de direitos humanos merecem a atenção das organizações internacionais e dos Estados e outras não, apesar de todas elas terem algo em comum: o sofrimento humano? P á g i n a | 50 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Considerações Finais Neste texto, buscou-se apresentar o conceito de segurança humana e, por meio dos seus aspectos principais – “freedom from want” e “freedom from fear”, a sua inter-relação com os temas de desenvolvimento e soberania, esta através do debate das intervenções humanitárias. Pureza destaca que a discussão sobre a segurança humana possui um eixo alicerçado em três causas principais. A primeira causa seria conseguir estabelecer políticas que possam garantir bemestar e dignidade aos seres humanos, apesar das tensões entre os Estados e indivíduos. Desta forma, para Pureza, a segurança humana representaria um arcabouço conceitual demonstrativo da periferia “como o lugar de falha da modernidade”, no seu sentido institucional e jurídico. Assim, a construção do conceito de segurança humana está enraizada no discurso que estabelece “relações de causalidade entre subdesenvolvimento, má governança, insegurança e violência comunitária”, ou seja, os problemas advindos da vulnerabilidade estariam interconectados com os problemas de segurança. Portanto, a dimensão do freedom from want seria vista “como requisito de continuidade entre a segurança individual e as seguranças nacionais e internacionais” (PUREZA, 2009, p.29). A segunda causa é que a segurança humana seria uma projeção, no campo da segurança, da credibilidade obtida pelo regime internacional de direitos humanos, o que pode ter legitimado a compreensão da soberania baseada no princípio da responsabilidade de proteger (idem, p.29). Assim, em nome da proteção dos indivíduos, a dimensão do freedom from fear se relaciona com a garantia de sobrevivência a esta e às gerações futuras, independente de religião, gênero ou etnia, assegurada pelos Estados ou pela comunidade internacional. E, finalmente, para Pureza, a terceira causa seria a prevenção da insegurança estrutural, uma clara influência dos estudos de paz. Dessa maneira, os formuladores da segurança humana incorporaram a discussão sobre a violência estrutural, proposta por Johan Galtung. Assim, a segurança humana agregou a orientação preventiva que se traduziu “no combate às causas profundas da insegurança antes que estas deflagrem em violência, o que torna a prevenção de expressões de violência estrutural e de violência cultural ingrediente essencial da segurança humana” (idem, p.29-30). Por fim, vale a pena destacar que embora a formulação da segurança humana seja uma proposta institucional do PNUD, dois grandes intelectuais e economistas participaram e colaboraram ativamente no interior do PNUD para o desenvolvimento do conceito de segurança humana, são eles: Mahbub ul Haq e Amartya Sen. Mahbub ul Haq foi um renomado economista paquistanês e os seus trabalhos se destacaram pela formulação do conceito de desenvolvimento humano. Ele e o seu amigo, Amartya Sen, economista indiano, formularam o IDH, enunciado no relatório do PNUD de 1993, e, no ano seguinte, apresentaram a segurança humana. A participação ativa desses dois economistas, juntamente com os seus trabalhos intelectuais – marcadamente dirigidos às periferias – pode explicar o grande peso dado à dimensão do desenvolvimento na proposta de segurança humana. P á g i n a | 51 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Contudo, esse caráter preventivo da segurança humana, pode ter ficado momentaneamente obscurecido, em virtude das consequências políticas da “guerra ao terror”. É difícil avaliar os efeitos políticos de um evento tão recente, mas há alguns indícios para se afirmar que a “guerra ao terror” possa, ao menos, ter desvirtuado os propósitos iniciais da formulação de segurança humana. Um desses indícios seria a mudança nos critérios de ajuda internacional. O que antes estava associado ao combate a pobreza passa a ser associado com a cooperação às políticas de combate ao terror, encabeçadas pelos Estados Unidos. Florian Hoffmann afirma que após o 11/09 teria havido “um deslocamento da ênfase para um conceito abstrato de segurança, que corresponde à percebida demanda pública pela securitização das relações sociais” (HOFFMANN, 2010, p.271). Desta maneira, como expõe Pureza, a “guerra ao terror” teria causado uma crise no equilíbrio dinâmico entre as dimensões da segurança humana – o desenvolvimento e a proteção – fazendo com que a face da proteção seja priorizada, em detrimento das políticas de desenvolvimento. Assim, se na década de 1990 as políticas de segurança humana eram destinadas às comunidades das periferias do sistema internacional, após os atentados de 11 de setembro de 2001 a preocupação seria garantir a segurança de quem estava no centro, ou seja, dos países mais ricos. A periferia passaria a ser fonte de todas as ameaças – terrorista, migração, pandemias - e “essa visão da periferia tem como consequência uma tendência geral para acentuar a segurança, a “nossa” segurança, em detrimento da segurança “deles”” (PUREZA, 2009, p.31-32). Quanto à resposta da pergunta que intitula este trabalho – “discurso da ou para as periferias? Talvez ela se encontre numa frase de Ken Booth, inspirada nos estudos construtivistas: “segurança é o que fazemos dela, é um epifenômeno, intersubjetivamente criada” (BOOTH, 1994, p.15). Dessa forma, as políticas de segurança humana serão aquilo que os seus formuladores fizerem dela: desenvolvimento, proteção ou até mesmo retórica vazia. Referências Bibliográficas: BARANYI, S. ¿Estabilización o paz sostenible?¿Qué clase de paz es posible después del 11-S? Madrid: Centro de Investigación para la Paz (CIP-FUHEM), 2006. BOOTH, Ken. Security and self-reflections of a fallen realist. YCISS Occasional Paper Number 26, October 1994. CHENOY, Anuradha M.; TADJBAKHSH, Shahrbanou. Human Security – Concepts and Implications. London:Routledge, 2009. DUFFIELD, Mark. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror. Paper prepared for the GDI panel ‘New Interfaces between Security and Development’ 11th, Bonn, 2005. Disponível em: eadi.org/gc2005/confweb/papersps/Mark_Duffield.pdf. Acesso: 07/10/2014. P á g i n a | 52 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 FARER, T.; Archibugi, D.; BROWN, C.; CRAWFORD, N. C.; WEISS, T. G.; WHEELER, N. J.. Roundtable: Humanitarian Intervention After 9/11. International Relations, 2005, 19. GALLARDO, C. et all. Operaciones de Paz: tres visiones fundadas. Chile: Academia Nacional de Estudios Políticos y Estratégicos: Ministerio de Defensa Nacional, 2006. HOFFMANN, Florian. Mudança de paradigma? Sobre direitos humanos e segurança humana no mundo pós-11 de setembro. IN: HERZ, Mônica; AMARAL, Arthur (org.). Terrorismo e relações internacionais: perspectivas e desafíos para o século XXI. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Edições Loyola, 2010. KALDOR, Mary. A Decade of Humanitarian Intervention: The role of Global Civil Society. ANHEIER, Helmut; GLASIUS, Marlies; KALDOR, Mary (eds.). Global Civil Society. 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P á g i n a | 53 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Soberania, direitos humanos e autoridade no debate contemporâneo sobre Intervenções Humanitárias Os debates contemporâneos sobre intervenções humanitárias parecem contrapor soberania e não intervenção como normas irreconciliáveis do Direito Internacional. Em meio a isso, subjazem discussões mais profundas sobre moral e ética das intervenções humanitárias, sobre autoridade e novas formas de imperialismo e, por fim, sobre as implicações políticas do humanitarismo militarizado. Ana Clara de Souza18 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 54 - 62 Introdução À primeira vista, os debates em torno das intervenções humanitárias, sejam eles de cunho teórico ou empírico, parecem se resumir às contradições decorrentes da interação entre duas normas internacionais em parte derivadas dessas duas narrativas: a norma de não intervenção nos assuntos internos de um Estado, derivada de uma concepção westfaliana sobre a formação do Estado moderno; e a(s) norma(s) de proteção e promoção de Direitos Humanos universais, baseada em concepções modernas sobre humanidade. De acordo com Martha Finnemore (2008), essas contradições são resultado de mudanças na estrutura normativa da política internacional, que produzem novas definições sobre humanidade e novas expectativas em relação à atuação dos governos nacionais em relação à sua população. Para a autora, estruturas normativas em mutação moldam não apenas as percepções da comunidade internacional sobre o que constitui uma crise humanitária, mas também as respostas apresentadas a elas, inclusive as militares. Uma vez que põem em conflito diferentes normas fundamentais à sobrevivência da comunidade internacional como a conhecemos – sejam elas a soberania, os direitos humanos ou a autodeterminação –, as crises humanitárias colocam em pauta genuínos dilemas morais sobre que normas devem prevalecer sobre as demais (Finnemore, 2008). 18 Mestranda do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, bolsita do CNPq. P á g i n a | 54 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 O objetivo do presente artigo é apresentar um panorama das discussões sobre moral, ética e direito internacional que subjazem a literatura corrente de Relações Internacionais sobre intervenções humanitárias. Pretende-se discutir a leitura tradicional derivada da contraposição entre soberania e não intervenção para, posteriormente, explicitar de que maneira esse debate é atravessado por discussões sobre autoridade e neoimperialismo colocadas à mesa por potências emergentes do Sul Global. Por fim, oferecemos uma breve exposição sobre o posicionamento ético de leituras teóricas pós-estruturalistas e pós-coloniais sobre intervenções humanitárias, que procuram apontar as implicações políticas de um projeto global de tratar intervenções militares em termos humanitários. Entre humanos e soberanos Kai Michael Kenkel (2012a) aponta para a existência de um debate contínuo entre duas interpretações normativas sobre soberania, não intervenção e Direitos Humanos: uma que percebe tanto a igualdade horizontal dos Estados – i.e., as normas internacionais de autodeterminação e não intervenção – quanto o contrato vertical entre Estados e cidadãos como partes integrantes de uma tensão inerente ao conceito de soberania; e outra que entende a soberania como constituída exclusivamente pelo “componente externo horizontal da não intervenção e da inviolabilidade das fronteiras” (Kenkel, 2012a, p. 18). Esse debate é sustentado por interpretações sobre as próprias normas que dão base às Nações Unidas: por um lado, a determinação expressa da Carta da ONU, que, em seu Artigo 2º, §4º, proscreve a seus Estados-membros o uso da força contra a integridade territorial e a autonomia política de seus pares; e, por outro, a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e demais instrumentos normativos que levam adiante a agenda da organização de proteção a direitos e garantias fundamentais. Nesse contexto, proliferam visões que entendem que, a partir da difusão de normas e práticas relacionadas à promoção dos Direitos Humanos, associada à transformação na própria concepção de humanidade levada adiante por acontecimentos históricos como a abolição da escravidão e a descolonização, emergiram novas concepções de soberania que desafiam as visões tradicionais sobre o Estado moderno westfaliano, como as conceituadas por pluralistas e realistas das Relações Internacionais (Finnemore, 2008). Nas palavras de Koffi Annan, Secretário-Geral das Nações Unidas entre 1997 e 2007, “qualquer evolução em nosso entendimento sobre soberania estatal e individual será encarada, em alguns lugares, com desconfiança, ceticismo e até mesmo hostilidade. Mas é uma evolução a qual devemos dar boas vindas” (Annan, 1999, sem página – tradução livre). Nicholas Wheeler (2004) argumenta que, no pós-Guerra Fria, estava em curso, de fato, o desenvolvimento de uma norma internacional que protegesse civis ameaçados em contextos de genocídio, assassinatos em massa e limpeza étnica. Para o autor, o ponto máximo de inflexão das concepções internacionais sobre não intervenção em direção à noção de “soberania como responsabilidade” vem com a operação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) P á g i n a | 55 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 durante a Guerra do Kosovo, em 1999. Segundo Wheeler, após o início das atividades de bombardeio da OTAN em Kosovo – sem que houvesse autorização expressa do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) para tal –, a maioria dos membros do CSNU rejeitou resolução russa que pedia a interrupção da ação da OTAN, porque entendeu que a mesma se justificava por questões humanitárias. De fato, quando analisamos a literatura contemporânea sobre o tema, a operação da OTAN durante a Guerra do Kosovo parece ser paradigmática em demonstrar a alegada inconsistência entre a legalidade – o que a Carta das Nações Unidas e demais instrumentos normativos prescreveria ou proscreveria em relação ao uso da força em contexto internacional – e a legitimidade – a pretensa evolução de uma norma ou um paradigma de atuação sobre o uso da força em contextos de crise humanitária – das intervenções humanitárias. Sendo assim, de acordo com Martha Finnemore, “o que há de novo sobre crises humanitárias não é o fato dos assassinatos em massa, [mas] o quadro normativo através do qual o mundo vê esses episódios” (Finnemore, 2008, p. 206 – tradução livre). O “horror da inação” (ICISS, 2001, p. 1) derivado do fracasso em se prevenir o genocídio e os assassinatos em massa em Ruanda e Somália contribuiu para que a comunidade internacional se engajasse na busca de práticas de intervenção humanitária que não esbarrassem nas limitações impostas pelas normas de soberania e não intervenção derivadas do sistema de Estados westfaliano. Durante a Guerra do Kosovo, conforme argumenta Wheeler (2004), a comunidade internacional pareceu priorizar a proteção e a promoção dos Direitos Humanos em detrimento da inviolabilidade de fronteiras, contribuindo para que se conformasse um novo arcabouço normativo em torno da legalidade e da legitimidade de intervenções em contextos de emergência humanitária. Não obstante, para Finnemore, o principal ponto de tensão normativa em torno do tema de intervenções humanitárias não vem tanto da contraposição entre intervenção e soberania, mas entre intervenção e autodeterminação. Segundo a autora, a perspectiva ética liberal sobre autodeterminação é ingênua ou, no pior dos casos, hipócrita, uma vez que torna invisível o fato de o próprio processo de autodeterminação dos Estados ocidentais – aqueles que, hoje, pretendem-se interventores em nome do humanitarismo – ter-se constituído através da violência. Essas contradições deixam claro, para a autora, que as discussões sobre intervenções humanitárias não deve tentar esconder os diversos dilemas morais que as subjazem, mas entender que a existência de tensões éticas faz parte da tentativa de encontrar soluções pacíficas mais adequadas aos problemas que se apresentam. É em sentido semelhante que Aidan Hehir (2012) caminha quando diz que o verdadeiro obstáculo à consolidação de uma norma de intervenção humanitária, sobretudo dentre os países em desenvolvimento, vem da suposta falta de legitimidade com que ela é empregada. Entendida como um ato unilateral, a intervenção humanitária encontra resistência entre Estados cujo passado recente foi marcado pela colonização e que temem que o humanitarismo seja instrumentalizado em atos de neoimperialismo. As normas de soberania, não intervenção e, em última instância, P á g i n a | 56 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 autodeterminação parecem ser, nesse contexto, fatores de proteção contra operações humanitárias em nome do universalismo dos direitos humanos. Nesse quadro, Hehir oferece uma contribuição diferenciada, uma vez que entende que a aparente contradição entre as normas de não intervenção e de intervenção humanitária para a proteção de Direitos Humanos deriva do fato de ambas as interpretações dividirem entre si um entendimento equivocado do conceito de soberania, enxergando-a como incompatível com a intervenção. Segundo o autor, a “imagem negativa” da soberania é uma caricatura que tem pouca aplicabilidade no mundo real, em que intervenções, inclusive aquelas com pretensa motivação humanitária, aconteceram historicamente a despeito de uma concepção absolutista do Estado soberano. Para Hehir, a soberania é um conceito relativo de natureza mutável, que depende da comunidade internacional e de fatores externos, como o direito internacional e as transformações na natureza dos atores internacionais, para existir. Sendo assim, uma norma de intervenção não necessariamente elimina ou se contrapõe à soberania como norma internacional, apenas altera o entendimento da comunidade internacional sobre ela, como vem acontecendo costumeiramente na história mundial, segundo ele. Nesse sentido, para o autor, o obstáculo à consolidação de uma norma internacional de intervenção humanitária é menos teórico e mais prático – deriva da capacidade da comunidade internacional de construir um instrumento coletivo de decisão e execução de estratégias de intervenção que seja legítimo aos olhos de todos. Nesse quadro, a soberania seria normativamente rearticulada e passaria a ser entendida como condicional à aderência e ao respeito dos Estados ao regime internacional de Direitos Humanos. Sendo assim, segundo Hehir (2012), o debate em torno das intervenções humanitárias está relacionada à questão de autorização e, de modo mais abrangente, de autoridade em relação a quem formula e executa suas práticas – é uma questão que necessita, portanto, ser despolitizada, diz ele. É com o objetivo de responder às demandas por delimitação das práticas da intervenção humanitária que surge o conceito da Responsabilidade de Proteger (R2P), elaborado pela Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS), em 2001. Emergindo em um contexto histórico em que estava em voga o termo droit d’ingerence (Kenkel, 2012a), a R2P muda a perspectiva do debate sobre intervenções do direito das grandes potências para o direito dos atores afetados por crises humanitárias. Na esteira da intervenção da OTAN na Guerra do Kosovo, e dado o amargor provocado pela inação da comunidade internacional diante do genocídio em Ruanda, a R2P surge como tentativa de estabelecer parâmetros consensuais para a implementação de estratégias de intervenção no contexto de graves violações aos Direitos Humanos (Hehir, 2012). Nesse sentido, a R2P partia do princípio de que, dado que a responsabilidade de proteção dos cidadãos reside primordialmente no Estado nacional, e uma vez que ela não seja cumprida – que o Estado falhe em proteger sua população ou que seja ele mesmo o perpetrador de graves violações dos Direitos Humanos de seus cidadãos –, a comunidade internacional tem uma responsabilidade residual de intervir (Kenkel, 2012a). Em consonância com o argumento de Hehir (2012), a R2P P á g i n a | 57 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 avançava rumo a uma definição diferenciada de soberania, entendendo-a como uma responsabilidade. Nesse sentido, o conceito de soberania como atributo westfaliano por excelência, entendida como conceito absoluto que se contrapõe, inclusive, às normas internacionais de Direitos Humanos, é deixada de lado em favor de um entendimento que a condiciona à garantia de que os Estados nacionais protegeriam suas populações. Ao contrário da norma de Proteção de Civis (POC), que operava em nível tático no contexto das operações de paz, a R2P pretendia ser um instrumento eminentemente político para lidar com as incertezas e contradições do debate sobre intervenções humanitárias. Embora não constituísse um conceito novo – inseria-se em um conjunto mais amplo de tentativas de delimitação conceitual e prática das intervenções humanitárias –, a R2P foi capaz de estabelecer um quadro em torno do qual os debates sobre intervenções humanitárias poderiam orbitar a partir de então (Hehir, 2012). Para Luke Glanville (2010), o aspecto inédito da R2P residia especificamente na rearticulação da intervenção para fins humanitários também como uma responsabilidade, e não mais como direito (“de ingerência”), cujas origens podem ser identificadas na Convenção das Nações Unidas contra o genocídio de 194819. Segundo Aidan Hehir (2012), a absorção da R2P pela comunidade internacional foi feita de maneira ambígua e condicionada a mudanças no princípio originalmente formulado pela ICISS. De acordo com o autor, na Cúpula Mundial de 2005, o princípio da R2P foi incorporado ao relatório final com escopo de atuação limitado e sem que se tocasse em uma das questões mais importantes da discussão sobre intervenções militares para fins humanitários – a autoridade. Anos mais tarde, esse princípio seria mais uma vez retrabalhado pelo debate da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2009 – que, com base no relatório “Implementing the Responsibility to Protect”, elaborado pelo Secretário Geral da organização, deveria discutir os parágrafos 138 e 139 do relatório final da Cúpula Mundial de 2005 –, mas teria, segundo Hehir, “influência prática mínima”: reiteraria compromissos já existentes, falharia ao não abordar, mais uma vez, questões centrais de contestação e não ofereceria nenhuma proposta legal ou institucional concreta. O “humanitarismo oportunista” De fato, dentro do debate sobre intervenções humanitárias, a discussão sobre mudança de regime em contextos de atuação militar estrangeira é uma das mais controversas, e que se relaciona diretamente com questões relativas à autoridade. No caso da Resolução 1973 do CSNU sobre a Líbia – cuja intervenção teve como consequência última a dissolução do regime de Muammar alGaddafi (Welsh, 2011; Bellamy & Williams, 2011) –, a posição brasileira foi desfavorável e justificada por sua visão de que o uso da força não é parte mandatória da responsabilidade de proteger, que deve ser implementada de forma essencialmente pacífica (Kenkel, 2012b). Mais explicitamente, o Brasil frisou sua preocupação com a possibilidade de a norma de POC ser utilizada “como cortina de fumaça para intervenções ou mudanças de regimes” (CSNU, 2011a, p. 19 Em seu termo oficial, Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. P á g i n a | 58 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 11 – tradução livre). Endossada por outras potências emergentes como Rússia e África do Sul, a posição brasileira evidencia ser a relação entre proteção de civis e manutenção ou mudança de regime político um dos principais desafios a ser enfrentado pela comunidade internacional quando da operacionalização da R2P (Bellamy & Williams, 2011). As contradições existentes entre o posicionamento das potências ocidentais e dos países emergentes em torno da implementação da R2P no caso da Líbia mostram, ainda, que esse debate está intimamente relacionado, em última instância, à própria discussão sobre autoridade – quem define o que é a R2P, quais são suas funções e como e em que ocasiões ela será colocada em prática. Sendo assim, entram em disputa os próprios mecanismos de autoridade que são estabelecidos para regular e decidir sobre intervenções militares de fins humanitários – sejam eles as Nações Unidas, organizações regionais ou o próprio CSNU. Nos debates acadêmicos sobre intervenções humanitárias, distintas respostas a essa questão emergem. Para Hehir (2012), a preocupação dos países em desenvolvimento com uma autoridade neutra e independente depende necessariamente da capacidade desses Estados de promover reformas no sistema das Nações Unidas. Já para Alex J. Bellamy (2011), ela tem de ser desviada para o que realmente importa: a implementação efetiva das decisões do CSNU, e não tanto o processo de decisão do Conselho em si. Sobre essa questão, Ramesh Thakur (2011) oferece argumento interessante, uma vez que entende a própria delimitação normativa da R2P como um potencial para que o “Norte” se sinta gradualmente constrangido a implementar medidas unilaterais contra o “Sul”. A posição brasileira no caso da Líbia nos sugere também que, se por um lado, motivações morais e éticas são utilizadas para endossar posicionamentos favoráveis às intervenções humanitárias, por outro, elas também são mobilizadas por atores que se posicionam de forma crítica ao uso da força para fins humanitários. É nesse último quadro que se encaixa a proposição brasileira de Responsabilidade ao Proteger (RwP), apresentada ao CSNU em novembro de 2011, meses depois da intervenção na Líbia. Adotando um tom crítico ao uso indiscriminado da força no âmbito das intervenções humanitárias, o documento chama a atenção para os efeitos negativos das intervenções – o agravamento de conflitos, de ciclos de violência e da vulnerabilidade de populações – e também questiona o uso da retórica da intervenção humanitária para o alcance de objetivos outros, entre eles, a mudança de regime político. Nas palavras de Maria Luiza Ribeiro Viotti, representante permanente do Brasil nas Nações Unidas: Even when warranted on the grounds of justice, legality and legitimacy, military action results in high human and material costs. That is why it is imperative to always value, pursue and exhaust all diplomatic solutions to any given conflict. [...] The use of force must produce as little violence and instability as possible and under no circunstance can it generate more harm than it was authorized to prevent. (CSNU, 2011b, p. 2-3). Nesse sentido, o posicionamento brasileiro se alimenta claramente de uma ética consequencialista em relação a intervenções militares em casos de crise humanitária. De acordo P á g i n a | 59 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 com Eric A. Heinze (2009), a ética consequencialista parte do pressuposto de que avaliações morais sobre determinada ação devem levar em consideração até que ponto suas consequências promovem ou maximizam determinado valor ou bem. Para Heinze, o consequencialismo ético leva necessariamente à restrição do escopo da ação para situações em que as perspectivas de impacto positivo se mostram mais proeminentes, sobretudo em relação aos custos da inação – lógica relativamente absorvida pelos “Seis Critérios de Intervenção Militar” da R2P. No entanto, o posicionamento brasileiro é ligeiramente peculiar porque enfatiza a prioridade absoluta da resolução de conflitos por meios pacíficos em relação ao uso da força – o que inclui, ainda, a “responsabilidade de prevenir” como consta na R2P – e pede aos Estados, sobretudo as potências ocidentais, responsabilidade ao empregá-la. A ética para além do humanitarismo Por fim, em âmbito teórico, questionamentos éticos às intervenções humanitárias também são sistematizados, produzidos e reproduzidos por correntes teóricas como o pós-colonialismo e o pósestruturalismo. Em grande parte, essa literatura busca explicitar as consequências políticas e/ou morais da articulação de discursos sobre humanitarismo e intervenções humanitárias, e a forma como se reproduzem hierarquias e desigualdades que impactam na vida de atores e populações marginalizadas para além das consequências materiais (mas também através delas) do uso da força. Para Costas Douzinas (2007), por exemplo, a própria articulação entre militarismo e humanitarismo através de discursos morais produz hierarquias entre identidades antagônicas, entre o “eu” e o “outro”, entre o “salvador” e o “resgatado”, cujas consequências políticas são o apagamento e, por consequência, o aprofundamento das relações desiguais de poder entre Norte e Sul globais. Em sentido parecido, Vivienne Jabri (2007) argumenta que, na modernidade tardia, determinadas práticas de guerra e violência – entre elas, as próprias intervenções humanitárias – redefinem e rearticulam os limites do internacional, deslocando-os de suas dimensões territoriais e políticas em direção à inscrição de fronteiras no corpo e na vida dos indivíduos entendidos como os “outros”. Através de discursos e práticas cosmopolitas liberais, essas guerras produzem a violência em nome da paz e subjugam e oprimem populações que pretendem “salvar”. É em nome do global e do cosmopolita – articulado pelo neoliberalismo cosmopolita da modernidade tardia como “humanitarismo” – que se reproduzem práticas biopolíticas de controle nessas novas zonas fronteiriças, que são destituídas, justamente, de traços de humanidade. Nesse sentido, a guerra “humanitária” tem menos a ver com motivações – obedece menos a uma lógica instrumentalista ou humanitarista – e mais com a (re)constituição de identidades e diferenças (Jabri, 2007). Entende-se, portanto, que o debate sobre intervenções humanitárias traz consigo mais tensões e contradições que a dicotomia entre soberania e Direitos Humanos é capaz de dar conta. Para Jabri, a própria judicialização do debate – “são as intervenções humanitárias legais ou ilegais perante o Direito Internacional?” – é uma forma de despolitizar suas questões mais importantes, torná-las P á g i n a | 60 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 invisíveis diante de classificações arbitrárias sobre quem está “dentro” e “fora” da lei. Ao contrário de teóricos como Aidan Hehir (2012), que vê na politização da discussão sobre intervenções humanitárias uma ameaça à sua implantação, esses autores e autoras veem na politização uma chance de mais vozes serem ouvidas. O que se conclui a partir disso é que questões sobre moral, ética e legalidade são parte fundamental do debate contemporâneo sobre intervenções humanitárias. Referências bibliográficas: ANNAN, Koffi. Secretary General Presents His Annual Report to General Assembly. United Nations Press Release, SG/SM/736, GA/9596, 1999. Disponível em: http://www.un.org/News/Press/docs/1999/19990920.sgsm7136.html. Acesso em: 17/06/2014. BELLAMY, Alex J. & WILLIAMS, Paul D. The new politics of protection? Côte d’Ivoire, Libya and the responsibility to protect. International Affairs, v. 87, n. 4, p. 845-870, 2011. BELLAMY, Alex J. Global Politics and the Responsibility to Protect: From Words to Deeds. Nova York: Routledge, 2011. CSNU. S/PV.6531. 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P á g i n a | 62 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 MONUSCO e Ilhas de Estabilidade: influência sobre a operacionalização da proteção de civis nas missões de paz da ONU A proposta do presente artigo é explanar como o uso legítimo da força aplicado em ações ofensivas pela Força da Brigada de Intervenção na República Democrática do Congo, autorizado pela Resolução 2098 do Conselho de Segurança, levou à emergência do conceito de “ilhas de estabilidade” e modificou a operacionalização da proteção de civis. Graziene Carneiro de Souza 20 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 63 - 77 Introdução A Resolução 2098 do Conselho de Segurança da ONU autorizou a criação da Força da Brigada de Intervenção (FIB na sigla em inglês) da Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo - MONUSCO, e, pela primeira vez na história das operações de paz sob bandeira desta organização, permitiu o uso da força para neutralizar grupos armados. O engajamento ativo da FIB permitiu que os aspectos político, militar, e humanitário da MONUSCO fossem conjuntamente adaptados, influenciando a operacionalização da proteção de civis (PoC na sigla em inglês), e corroborando para a elaboração do conceito de “ilhas de estabilidade”. O uso legítimo da força aplicado em ações ofensivas pela Força da Brigada de Intervenção na República Democrática do Congo (RDC) modificou a operacionalização da proteção de civis. Se anteriormente os capacetes azuis assistiam estáticos à violação dos direitos humanos, agindo de forma reativa na RDC, a FIB passou a empregar ações robustas preemptivamente 21 a fim de evitar estas violações (BRAGA, 2010). 20 Mestre em Estudos Estratégicos em Defesa e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Consultora do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA). 21 Operações de paz robustas são as missões de paz que realizam operações militares ofensivas. P á g i n a | 63 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Neste contexto, o presente artigo tem o objetivo de analisar como a proteção de civis tem sua implementação modificada por meio da Resolução 2098, por sua Força da Brigada de Intervenção e pela autorização do uso da força. Com este propósito, este trabalho se dividirá em três partes: primeiramente, esboçará as principais características das três gerações de operações de paz; em seguida, exporá o conceito das “ilhas de estabilidade” e sua influência sobre a operacionalização da proteção de civis; e, posteriormente, apresentará algumas das principais críticas a esse novo conceito. A evolução das operações de paz da ONU e a origem do conceito de segurança humana e de proteção de civis Desde a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, as Resoluções do Conselho de Segurança, respaldadas nos Capítulos VI, VII e VIII de sua Carta, legitimaram a atuação de forças militares multilaterais22 na solução pacífica ou coercitiva das crises e conflitos. As operações de paz foram, então, empregadas como instrumento para ações reativas da comunidade internacional, representada pela ONU, face às ameaças à paz e à segurança internacionais. A partir de suas características de implementação, as operações de paz sob égide da ONU foram divididas em três fases. O período entre 1956 e 1987 foi assinalado com o auge de operações de manutenção da paz definidas como “clássicas”, “tradicionais” ou de “primeira geração” 23 (TAYLOR, CURTIS, 2006: 412), a maioria delas com mandatos que objetivavam o monitoramento de cessar-fogos, tréguas e armistícios, o patrulhamento de fronteiras e zonas de exclusão militar, o apoio à retirada de tropas e o acompanhamento de negociações para a assinatura de tratados de paz definitivos. Após a Guerra Fria, as operações de manutenção da paz foram denominadas como de “segunda geração” 24 (MALAN, 1998), o que, de acordo com Mark Malan (1998: 2), significa operações de paz desenvolvidas em associação ao fim dos conflitos remanescentes da Guerra Fria, em que a ONU, ou outra organização internacional, buscava a negociação de soluções políticas baseadas no compromisso mútuo dos adversários 25(BARNET, 1995: 415). 22 O caráter multilateral significa a participação ativa de países contribuintes de tropas para as operações, já que a ONU não dispõe de força militar própria. 23 As operações de manutenção da paz tradicionais envolvem o estabelecimento de um grupo de observadores ou de uma força de paz militar, sob o comando da ONU, que deve ser desdobrada e disposta entre as partes de um conflito, normalmente após um cessar fogo. 24 Exemplos inequívocos da concepção dessas operações de paz ocorreram na Namíbia (UNTAG), no Camboja (UNTAC), em Angola (UNAVEM I e II), em El Salvador (ONUSAL) e em Moçambique (ONUMOZ). 25 Segundo Michael Barnett, as operações de manutenção da paz ou peacekeeping operations e as operações de imposição da paz ou peace enforcement, constituem a segunda fase das operações de paz, visto que elas consideram a “segurança interna” e a “ordem doméstica” relevantes, também, para a manutenção da segurança regional e internacional. Barnett afirma que “se a maioria das operações de paz antes de 1988 diz respeito à transição da descolonização à soberania jurídica, quase todas, desde então, diz respeito à transição da guerra civil para a sociedade civil, refletindo uma mudança na conceituação de como melhor encorajar um sistema de paz estável e os meios adequados para realizá-lo”. P á g i n a | 64 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 A partir da segunda geração, a ONU passou a se envolver no término de conflitos internos, com a atribuição de tarefas multidimensionais às tropas mantenedoras da paz, que normalmente incluíam atividades de: separação de combatentes; desarmamento de forças irregulares; desmobilização e transformação de forças regulares e irregulares em um exército unificado; assistência para a reintegração de ex-combatentes na sociedade civil; estabelecimento de novos sistemas de policiamento ou instituições de polícia; e monitoramento de eleições para novos governos. Em 1992, Boutros-Ghali classificou as missões aprovadas sob o Capítulo VII como a “terceira geração” 26 das operações de paz, multilaterais e multidimensionais, 27 as quais envolviam a proteção de civis e mandatos diferenciados, relacionados às características das novas guerras. Caracterizados pelas dificuldades das distinções tradicionais entre vítima e agressor, público e privado, crime de guerra e delito, os novos conflitos deram origem a impasses relacionados aos três princípios norteadores das operações de paz; o consentimento das partes, a imparcialidade/neutralidade, e o uso da força apenas em caráter excepcional. Nas últimas décadas, a “terceira geração” de operações de paz representadas pelo consenso nas Nações Unidas tornou-se a principal resposta às violações sistemáticas dos direitos humanos e à ameaça à paz e à segurança internacionais 28. O esforço político de prevenir catástrofes humanitárias, no intuito de proteger o indivíduo, dentro da recente compreensão de que o ser humano e os direitos humanos devem ser valorizados na política internacional, tornou-se compromisso no cenário mundial (WEISS, 2004). Estas inquietações, juntamente às contribuições herdadas dos debates da década de 1990, em relação à segurança humana formulada por Bernard Kouchner e Tony Blair, enfatizaram este compromisso, com discussões a respeito de como e quando a comunidade internacional deveria intervir e usar a força em casos de violação sistemática dos direitos humanos 29. O parágrafo quinto da Resolução 1296 de 2000 foi além, anotando que: 26 Disponível em: http://www.un-documents.net/a47-277.htm. Acesso em 02 out. 2014. As Nações Unidas definem missões “multidimensionais,” aquelas operações “criadas para assegurar a implementação de abrangentes acordos de paz e ajudar a estabelecer as bases para uma paz sustentável.” Diferente das missões “tradicionais,” nas quais envolvem somente tarefas militares, as missões multidimensionais são operações complexas que abrangem desde o aparato militar até organizações civis para “ajudar a instituir governos, monitorar o cumprimento dos direitos humanos, assegurar reformas setoriais, até o desarmamento, desmobilização e reintegração de excombatentes.” Disponível em: http://www.peacekeepingbestpractices.unlb.org/Pbps/library/Handbook%20on%20UN %20PKOs.pdf. Acesso em 3 out. 2014. 28 Em 1994, Bouttros Bouttros-Ghali anunciou que as operações de manutenção da paz se tornariam prioridade das Nações Unidas, com aproximadamente 70.000 tropas em 17 operações em todo mundo. Em 2013, o DPKO afirmou que 117 países contribuíam com tropas, com um total de 97.157 pessoas, em 16 operações de paz. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/statistics/contributors_archive.shtml. Acesso em 05 out. 2014. 29 “Em janeiro de 2008, 119 países estavam contribuindo com forças militares e policiais para as operações de paz da ONU.” 27 P á g i n a | 65 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 (...) o ataque deliberado às populações civis ou outras pessoas protegidas e o cometimento de violações sistemáticas, flagrantes e generalizadas do direito internacional humanitário e de direitos humanos em situações de conflito armado podem constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais... prontidão a considerar tais situações e, sempre que necessário, adotar medidas adequadas.30 O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD ou UNDP em inglês) em seu relatório intitulado Human Development Report (Relatório de Desenvolvimento Humano), de 1994, destacou as políticas de segurança afastadas do conceito tradicional de “segurança pelas armas” para concentrar a atenção na segurança humana. Duas noções de segurança humana foram propostas: a primeira enfatizou a proteção contra a violência física (“freedom from fear”); a segunda, uma concepção mais geral relacionada à possibilidade de ameaça à dignidade humana (adicionando “freedom from want”), considerou a segurança contra pobreza e a ameaça de guerra ou conflito violento, e a sobrevivência da população na qual cada indivíduo deve ser respeitado. O relatório adicionou, ainda, que a “insegurança humana é a violação dos direitos humanos perpetrados por Estados ou atores não estatais em casos de guerra ou independente dela”.31 A implementação do conceito de segurança humana em operações de paz é vista na aplicação da proteção de civis. A definição de proteção de civis ainda não foi determinada pelo Conselho de Segurança. Contudo, em Setembro de 1999, o Conselho de Segurança adotou a Resolução 1265, na qual expressou a vontade da comunidade internacional em responder a situações de conflito armado, onde civis são alvos ou a assistência humanitária está sendo obstruída deliberadamente, considerando a adotar medidas apropriadas. 32 A Resolução, igualmente, alertou os Estados a ratificarem ameaças aos direitos humanos e processarem aqueles responsáveis por genocídio, crimes contra a humanidade e sérias violações à lei humanitária internacional. Finalmente, o Conselho expressou sua vontade em explorar o mandato das operações de paz e reestruturar o conceito sobre a proteção de civis. O Centro Global para a Responsabilidade de Proteger refere-se à proteção de civis como medidas que podem ser usadas para proteger a segurança, a dignidade, e a integridade de todos os seres humanos em tempos de guerra, nas quais estão enraizadas em obrigações da lei humanitária internacional (LHI), da lei sobre os refugiados, e da lei dos direitos humanos. 33 Em Abril de 2000, o relatório de Kofi Annan sobre a proteção de civis focou em seus aspectos operacionais a fim de melhorar a capacidade das forças de operações de paz para a proteção de civis. De acordo com nota conceitual do Departamento de Operações de Paz (DPKO) e 30 Traduções livre direto do texto em inglês. Disponível em: http://www.un-documents.net/a47-277.htm. Acesso em 02 out. 2014. 32 Maiores descrições sobre a emergência do conceito da Proteção de Civis no Conselho de Segurança estão disponíveis no Relatório do Conselho de Segurança intitulado “Protection of Civilians,” N. 2, 14 de out. de 2008. 33 Ver também Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas sobre a Proteção de Civis em conflito armado. (Security Council document S/2007/643). 28 de out. de 2007. Parágrafo 11. Disponível em: http://globalsolutions.org/files/public/documents/CivPro_R2P_POC.pdf. Acesso em 24 fev. 2012. 31 P á g i n a | 66 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 do Departamento de Apoio Logístico (DFS) da ONU, o conceito de Proteção de Civis perdurará por longo tempo, baseado em lições aprendidas e que proverão estratégias gerais para sua aplicação. Adicionalmente, a nota conceitual afirmou que a operacionalização da proteção de civis nas operações de paz está organizada seguindo três linhas de atuação: 1) Proteger por meio de processo político; 2) Prover proteção da violência física; e 3) Estabelecer ambiente protegido.34 Na concepção da ONU, apesar de a agenda de proteção de civis requerer ações militares coordenadas e concentradas, sua operacionalização precisa ser integrada em um plano de conduta conjunto com organizações não governamentais e outras agências das Nações Unidas (NAÇÕES UNIDAS, 2008: 23). Ela deve englobar grande variedade de atividades, tanto relacionadas ao Conselho de Segurança, em medidas acordadas com os Capítulos VI, VII, e VIII da Carta das Nações Unidas, quanto atividades relacionadas às outras instituições, envolvendo diversos atores governamentais, grupos armados organizados, instituições das Nações Unidas, e ONGs. A fim de promover a proteção de civis sob ameaça de violência física, as operações de paz possuem mandato específico baseado nas características de cada caso. Em cada parte do globo, as organizações regionais, juntamente com órgãos especializados das Nações Unidas, acordam e estabelecem planos e políticas para as operações de paz, fundamentados na lei internacional endossada pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança 35. Apesar da compreensão do conceito de proteção de civis permanecer a mesma, no caso da MONUSCO, a criação da FIB e a autorização do uso da força deram início a uma nova conduta na proteção da violência física, conforme evidenciado abaixo. O caso da MONUSCO: o ineditismo da Força de Brigada de Intervenção na proteção de civis Ao longo do processo de evolução das operações de paz, seus três princípios norteadores (consenso, imparcialidade e uso mínimo da força) foram adaptados às necessidades de respostas imediatas às novas ameaças e conflitos. Neste contexto, atuações da ONU como no caso do Haiti (1990-1997), da Somália (1992-1995), da ex-Iugoslávia (1992-1995), de Ruanda (1993-1996) e de Serra Leoa (1998-2005), apesar de planejadas para responder a distintos contextos locais, são exemplos de missões que inicialmente possuíam um mandato multidimensional não coercitivo, e que, com a escalada da violência, incorporaram elementos impositivos para tentar superar a 34 Disponível em: http://www.peacekeeping.org.uk/wp-content/uploads/2013/02/100129-DPKO-DFS-POC-Operational -Concept.pdf. Acesso em 01 out. 2014. 35 Isto resultou na necessidade do Secretário-Geral em relatar regularmente a proteção de civis em conflito armado. O Conselho de Segurança desde então adotou quatro resoluções especificamente observando a proteção de civis (1265, 1296, 1674, 1738). Resoluções sobre mulheres (1325), crianças (1612), a proteção para especialistas humanitários (1502), prevenção de conflitos (1625), e exploração sexual (1820) também incluem proteção de civis em situação de conflito. P á g i n a | 67 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 fragilidade de situações de recrudescimento de agressões, crimes contra a humanidade e abuso dos direitos humanos. O caso mais recente de inovação e resposta inédita do Conselho de Segurança ocorreu em 2013, por meio da Resolução 2098, a qual estabeleceu a criação da Força da Brigada de Intervenção da MONUSCO com mandato para realizar, inclusive, operações ofensivas. Devido aos ataques a civis, às contínuas ondas de violência, às crises humanitárias, às graves violações dos direitos humanos, principalmente, aquelas relacionadas à natureza sexual e de gênero, implementadas por grupos armados nacionais e estrangeiros na República Democrática do Congo (RDC), a Resolução 2098 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 28 de março de 2013, na tentativa de sublinhar as causas do conflito e garantir uma paz sustentável tanto no país quanto na região, criou a Força da Brigada de Intervenção (Force Intervention Brigade – FIB) 36. A MONUSCO foi autorizada a usar todos os meios necessários para alcançar e operacionalizar seu mandato, com destaque, entre outras coisas, para a proteção de civis, do pessoal humanitário e de agentes defensores dos direitos humanos, sob iminente ameaça de violência física, assim como para apoiar as FARDC (Forças Armadas da República Democrática do Congo) e o Governo da RDC nos esforços de estabilização e consolidação da paz. A resolução 2098 condenou fortemente o Movimento 23 de Março (M23), as Forças Democráticas para Libertação de Ruanda (RDLR), o Exército de Resistência do Senhor (LRA) e “todos os outros grupos armados e suas contínuas violações e abusos aos direitos humanos” 37. A FIB consiste de: três batalhões de infantaria, um de artilharia, uma força especial e uma companhia de reconhecimento com sede em Goma, comandada diretamente pelo Comandante da Força da MONUSCO, e tem a responsabilidade de neutralizar grupos armados e o objetivo de contribuir na redução de ameaças postas pelos grupos armados à autoridade do Estado e à segurança de civis no leste da RDC.38 Frente ao cenário daquela operação, atribui-se como mandato da FIB, a responsabilidade de: realizar operações ofensivas, unilateralmente ou em conjunto com as FARDC, de forma robusta, highlymobile e versátil e em estreita conformidade com o direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário (...) para evitar a expansão de todos os grupos armados, para neutralizá-los, e para desarmá-los (...).39 36 (S/2013/131) Resolução do Conselho de Segurança. Peace, Security and Cooperation Framework for the Democratic Republic of the Congo and the region. 5 mar. 2013. Parágrafo quinto. 37 (S/RES/2098) Resolução do Conselho de Segurança sobre a situação na República Democrática do Congo. 28 mar. 2013. 38 Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/monusco/background.shtml. Acesso em 20 jun. 2014. 39 “Carry out offensive operations, either unilaterally or jointly with the FARDC, in a robust, highlymobile and versatile manner and in strict compliance with international law, including international humanitarian law (...) to prevent the expansion of all armed groups, neutralize the groups, and to disarm them (…).” Tradução livre direto do texto em inglês. (S/RES/2098) Resolução do Conselho de Segurança sobre a situação na República Democrática do Congo. 28 de mar. de 2013. Parágrafo nono. P á g i n a | 68 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 A Força da Brigada de Intervenção é o primeiro núcleo de combate ofensivo criado pelo Conselho de Segurança para operacionalizar ações militares contra grupos armados na RDC. Alguns autores consideram que na história das operações de paz sob a égide das Nações Unidas, a presença de forças com este tipo de conformação e mandato foi utilizada nos casos da Somália e Haiti40 (BLYTH, 2013). Contudo, de acordo com Priscila Fett, os dois casos “não servem de base comparativa” uma vez que ambos representam o modelo de missão de estabilização, não sendo “adequados para fazer frente aos níveis de violência encontrados no país africano” (FETT, 2013). No Departamento de Operações de Manutenção da Paz do Secretariado das Nações Unidas, o debate sobre operações robustas não é recente. Ele permeia sobre a legitimidade da ação ofensiva e o perigo do limite do uso da força exercido por operações multinacionais. 41 No caso da MONUSCO a discussão remete à relação entre os três princípios norteadores das operações de paz e à implementação do mandato da Força da Brigada de Intervenção. Na Resolução 2098, inicialmente, a Brigada de Intervenção foi autorizada sob uma base excepcional, sem criar precedente ou qualquer prejuízo que discordasse dos princípios das operações de paz da ONU. De acordo com a Capstone Doctrine42 das Nações Unidas, as operações de paz são operacionalizadas com o consentimento das principais Partes do conflito (Nações Unidas, 2008:31). Na República Democrática do Congo, a MONUSCO obteve consentimento do Governo congolês, entretanto, a outra parte do conflito, a saber, os grupos armados ilegais, foram considerados a principal ameaça à segurança da população. Neste contexto, não se fazia conveniente buscar consentimento uma vez que aqueles grupos armados ilegais eram a parte “inimiga”. Elucidada naquele mesmo documento, a imparcialidade significa que o mandato deve ser implementado sem favorecer ou prejudicar qualquer das partes. Na MONUSCO, o princípio da imparcialidade/neutralidade foi esvaziado quando se identificou as Partes do conflito e se decidiu “autorizar a FIB a usar todos os meios necessários para alcançar e operacionalizar seu mandato,” apoiando a soberania do Estado e o Governo da RDC nos esforços de estabilização e consolidação da paz. A própria criação da Força da Brigada de Intervenção é contra o princípio mais controverso das operações de paz, o uso da força. O legítimo uso da força na República Democrática do Congo em ações ofensivas unilaterais ou em conjunto com as FARDC, de modo 40 Disponível em: http://theglobalobservatory.org/analysis/475-too-risk-averse-un-peace-keepers-in-the-dre-get-newmandate-and-more-chanllenges.html. Acesso em 21 jun. 2014. 41 Disponível em: http://www.r2pasiapacific.org/docs/R2P%20Ideas%20in%20Brief/UN_Peace_Operations_and_ All_Necessary_Means.pdf. Acesso em 4 jul. 2014. 42 A Capstone Doctrine é um documento do Departamento de Operações de Paz da ONU, produzido em 2008, que contém os princípios e as linhas gerais sobre as operações de paz da ONU. Disponível em: http://pbpu.unlb.org/pbps/library/capstone_doctrine_eng.pdf Acesso em 26 jul. 2014. P á g i n a | 69 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 robusto e versátil para neutralizar grupos armados, ocasiona mudanças na compreensão destes três pilares. O princípio do não-uso da força, exceto em autodefesa, data do primeiro desdobramento de capacetes azuis armados das Nações Unidas, em 1956. Entretanto, ao longo da evolução das operações de paz, as operações de manutenção de paz, como mencionado acima, passaram a empregar, pontualmente, o uso da força, como no Congo, entre 1960 e 1964, na BósniaHerzegovina, no período de 1992 a 1995, na Somália entre 1993 e 1995, e, recentemente, no Haiti entre 2007 e 2009. Apesar de seguirem modelo de missão de estabilização e não possuírem os mesmos níveis de violência encontrados na RDC, o Conselho de Segurança permitiu o uso da força limitado naquelas operações, em consonância com o princípio da autodefesa. Na República Democrática do Congo, o Conselho de Segurança percebeu a dificuldade de seu componente militar em antecipar-se às ameaças e agir pró-ativamente a fim de reduzir vulnerabilidades e dissuadir os grupos armados. Destarte, mais uma vez, a necessidade de atualização, adaptação e evolução para realizar a proteção efetiva de civis foi concretizada na FIB. Constituída de 3.069 militares da África do Sul, Maláui e Tanzânia, o mandato da Força da Brigada de Intervenção modificou a implementação da proteção de civis. Se anteriormente, os capacetes azuis assistiam estáticos aos abusos dos direitos humanos, à violência sexual, e aos crimes contra a humanidade na RDC, a FIB passou a desempenhar ações preemptivas com o propósito de evitar tais violações. As ações ofensivas preemptivas embasadas em dados da inteligência e de recursos tecnológicos, usados pela primeira vez em operações de paz, como os drones, permitiram resultados positivos na proteção de civis. De acordo com o Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas (Special Representative of the Secretary General – SRSG), Martin Kobler, em sua Declaração “Building on the momentum” para o Conselho de Segurança, em 14 de março de 2014, muito foi realizado. A derrota do Movimento 23 de Março – M23, as operações conjuntas contra as Forças democráticas de liberação de Ruanda – FDLR e as Forças Democráticas Aliadas – ADF, e a volta da segurança aos territórios liberados têm contribuído para a emergência das “ilhas de estabilidades,” (islands of stability) com a intenção de gradualmente restabelecer a autoridade Estatal no leste da RDC. 43 As ações militares ofensivas desempenhadas pela FIB permitiram que a proteção de civis tivesse uma nova abordagem. Apesar de a MONUSCO operacionalizar a proteção de civis dentro de um novo contexto, a Missão segue as linhas de atuação do DPKO, protegendo por meio de processo político; provendo proteção da violência física; e, estabelecendo ambiente protegido à população civil. O conceito de “ilhas de estabilidade” foi criado por Martin Kobler, com o propósito de concentrar os esforços militares, políticos e humanitários em uma determinada área, baseando-se 43 Disponível em: http://monusco.unmissions.org/Portals/monuc/Speeches/140314%20Statement%20of%20SRSG%20 Martin%20Kobler%20to%20the%20Security%20Council%20-20March%202014%20(%20version%20%20 W%20Eng ).pdf. Acesso em 10 set. 2014. P á g i n a | 70 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 nas prioridades da MONUSCO: primeiramente, a proteção e a segurança dos civis; segundo, a estabilização das áreas afetadas pelo conflito; e, terceiro, o apoio ao processo de reforma e implementação da paz, da segurança e do quadro de cooperação. As “ilhas de estabilidade” são um processo, iniciado pela ação robusta do componente militar. Nesta primeira etapa, a proteção de civis está relacionada à proteção física do civil, implementada por meio de ações robustas da FIB e não somente pela presença dos capacetes azuis. A ação militar dissuade os grupos armados e libera a área dominada, permitindo o retorno da população civil e o restabelecimento da autoridade Estatal, apoiados por organizações nãogovernamentais, agências das Nações Unidas e instituições que atuam na reconstrução da paz. Conforme Martin Kobler, o objetivo geral das “ilhas de estabilidade” é evitar a recaída imediata das comunidades envolvidas em um ciclo de violência depois que grupos armados liberaram uma determinada área, devido às operações robustas ou negociações da FIB e/ou das FARDC. De acordo com o SRSG, “a proteção robusta e a estabilidade duramente conquistada são a base para construir a paz”.44 Na RDC, após definição da causa do conflito, da identificação das partes e da ameaça, em particular, a ação robusta contra os grupos armados possibilitou o início do retorno da autoridade Estatal àquelas áreas anteriormente dominadas. É o caso de Kiwanja-Rutshuru, onde sucederam avanços na implementação de unidades policiais apoiadas pela UNPOL (Polícia das Nações Unidas), no retorno da administração territorial e de servidores civis, na reabilitação da justiça, da polícia, e dos edifícios da administração, e na reabertura da prisão da cidade após treinamento de seu pessoal pela MONUSCO. A transformação da MONUSCO em uma missão de campo fez com que sua sede, anteriormente em Kinshasa, fosse transferida para o leste, na cidade de Goma, na tentativa de reforçar o apoio às operações naquela parte do país. O estabelecimento da presença permanente de pessoal civil da ONU nas áreas mais atingidas, como nas cidades de Rutshuru, Masisi e Walikale, confirma a reconfiguração da interpretação do mandato da MONUSCO e sua influência sobre a operacionalização da proteção de civis. O esforço conjunto em todo o processo foi mencionado por Martin Kobler. Segundo o SRSG, “o uso da força sozinho não alcança resultados sustentáveis se não embutido em um quadro político.” Conjuntamente acertados, bem definidos no lema da Missão – “Um Mandato, Uma missão, Uma força” (“One Mandate, One mission, One force”) – os aspectos políticos, militares, e humanitários, concentram esforços em dinâmica única. A atuação política da MONUSCO empenha-se na busca de parcerias na comunidade internacional, de maior legitimidade e apoio do Conselho de Segurança, e de aproximação com o Governo da RDC, na tentativa de coordenar, principalmente, a reforma do setor de segurança, o processo de DDR e DDRRR, e a preparação de 44 Disponível em: http://monusco.unmissions.org/Portals/monuc/Speeches/140314%20 Statement%20of%20SRSG %20Martin%20Kobler%20to%20the%20Security%20Council%20-%20March%202014%20(%20version%20%20W% 20Eng).pdf. Acesso em 10 set. 2014. P á g i n a | 71 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 eleições e estabilização. O componente militar empenha-se em ações conjuntas com as FARDC a fim de agir prontamente e garantir a segurança e a proteção de civis. Já o elemento humanitário emprega suas tarefas, principalmente, na entrega de serviços à população, relacionados aos direitos humanos, à violência sexual, à pobreza, à educação, e à saúde, com projetos de impacto imediato (Quick Impact Project – QIP). “Ilhas de Estabilidade”: principais críticas e observações Desde que o SRSG, Martin Kobler, lançou o conceito de “ilhas de estabilidade,” muitas críticas se opuseram à compreensão do mesmo. As principais observações remetem à relação civilmilitar, à vinculação do pessoal humanitário ao aparato militar da MONUSCO, ao restabelecimento da autoridade Estatal, ao limitado contingente e capacidade da FIB, e à dificuldade de realização do processo de DDR e DDRRR. Mais de quinhentas agências humanitárias operam na província de North Kivu. De acordo com Michelle Brown e Michael Boyce, dentro do contexto da implementação das “ilhas de estabilidade” na RDC, muitas recriminam a falta de articulação clara do conceito. Elas temem sua vinculação à estratégia militar da MONUSCO contra os grupos armados, defendendo que sua associação com a Missão poderia colocar humanitários sob risco de violência ou ter suas operações obstruídas, particularmente, dado que a MONUSCO é uma missão estruturalmente integrada 45 (BROWN, BOYCE, 2014). Apesar de temerem a associação com a MONUSCO, nenhuma agressão às agências humanitárias foi reportada. Todavia, esta crença, de fato, dificulta a cooperação civil-militar na condução da proteção de civis e na reconstrução da paz. Em entrevista com o Coordenador Geral da Sede da MONUSCO em North Kivu (North Kivu Head of Office), Ray Torres confirmou seu apoio ao conceito de “ilhas de estabilidade,” sublinhando que a MONUSCO marcará a história das operações de paz, por inovar sua implementação e por ser a primeira vitória militar das Nações Unidas. A MONUSCO tem 13 sessões civis, incluindo desde direitos humanos às relações políticas e ao vírus da imunodeficiência humana (HIV na sigla em inglês). De acordo com o Coordenador Geral, após a criação das “ilhas de estabilidade,” o trabalho destas sessões se transformou, focalizando a presença permanente de civis da ONU em campo. Diariamente, servidores da ONU passaram a acompanhar o trabalho daqueles que receberam treinamento da MONUSCO, analisando se estão de acordo com o padrão solicitado pelas Nações Unidas e se estão suficientemente qualificados para realizar suas tarefas. Torres sublinhou, ainda, que a nova abordagem deixou de se basear somente no número de pessoas treinadas (“input of training”) para 45 Disponível em: http://refugeesinternational.org/policy/field-report/dr-congo-north-kivu%E2%80%99s-long-rockyroad-stability. Acesso em 18 set. 2014. P á g i n a | 72 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 concentrar-se na entrega de serviços (“delivery of service”), permitindo maiores garantias de estabilidade e a não retomada do conflito. Em relação ao medo de associação de organizações não governamentais e mesmo das agências humanitária à MONUSCO, Ray Torres assegurou que ele é causado pela falta de experiência (“lack of experience”) e de análises aprofundadas (“indepth analisis”) sobre a situação na RDC. Ainda assim, o Coordenador-Geral admitiu a dificuldade de relacionamento entre operações de paz e agências humanitárias e da distinção entre elas, já que trabalham conjuntamente, e, devido a recente criação da FIB, observou que o pessoal humanitário deveria tentar se manter distante do contingente militar para não ser percebido como parte do conflito. Contudo, reforçou que no caso da RDC, a imparcialidade é uma ilusão.46 Já Christoph Vogel mencionou o perigo da “noção de governança sem governo”, denominando as “ilhas de estabilidade” como “swamps of insecurity” relacionados à falta de governança Estatal. O autor alertou sobre o risco político e operacional da MONUSCO restabelecer a autoridade em partes nas províncias Kivu, com e para o Governo congolês, acrescentando, que isto é um desafio paradoxal, uma vez que o próprio exército congolês é uma das várias forças abusivas no país. As implicações políticas se referem à segregação de prioridades; enquanto algumas áreas serão consideradas importantes ou estratégicas, outras serão negligenciadas. O maior perigo político, entretanto, está no estabelecimento das “ilhas de estabilidade,” visto que as áreas próximas serão passíveis de falta de estabilidade, contrariamente à ilha, como, de acordo com o autor, nos casos das margens de Walikale e Shabunda. Operacionalmente, Vogel reiterou a dificuldade da MONUSCO em acessar certas áreas devido ao limitado pessoal militar e meios logísticos da FIB. Neste contexto, o autor afirmou que estabelecer “ilhas de estabilidade” pode se tornar mera securitização de áreas urbanas ou requerer, a nível local, investimentos massivos adicionais de reconstrução da paz (VOGEL, 2014). Os programas de DDR e DDRRR sofrem, igualmente, desaprovação. Os números de combatentes desmobilizados superam 2.500 (e mais de 3.000 dependentes) de mais de 20 grupos armados instalados na província de North Kivu. Todavia, a MONUSCO tem ainda dezenas de outros grupos armados para desmobilizar, especialmente, aqueles baseados nos vizinhos Uganda e Ruanda. O recém-criado processo de DDR ainda não iniciou suas tarefas na RDC, e o programa de DDRRR enfrenta dificuldades, mantendo dezenas de combatentes estrangeiros desmobilizados aguardando transferência para os campos designados. Christopher Vogel reiterou que se esforços conjuntos sobre DDR não ocorrerem em breve, como em exemplos prévios, os desmobilizados retornarão às florestas e aqueles que ainda não participaram do processo não estarão dispostos a cooperar. 46 Entrevista conduzida com o Coordenador Geral da Sede da MONUSCO em North Kivu (North Kivu Head of Office), Ray Torres, durante visita à MONUSCO, no dia 3 de setembro de 2014, em Goma, North Kivo, República Democrática do Congo. P á g i n a | 73 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Apesar das ações robustas não terem causado efeito colateral sobre o aspecto humanitário e de sua influência sobre a condução da proteção de civis, seu mandato tem gerado discussões acerca de sua duplicação. Ela é uma missão peculiar, não somente por usar a força contra grupos armados, mas, também, pela forma como é coordenada. O modo como o mandato da MONUSCO é interpretado, tornou-se, se não, o fator mais importante, muito influente sobre seus resultados. O SRSG, Martin Kobler, o Comandante da Força Militar, General-de-Divisão Carlos Alberto dos Santos Cruz e o Coordenador Humanitário Adjunto (Deputy Special Representative of the Secretary-General and UN Resident Coordinator, Humanitarian Coordinator, and Resident Representative of UNDP), Moustapha Soumaré, juntamente aos outros coordenadores da Missão, sistematizaram uma interpretação concisa e coesa nos três aspectos da operação de paz. A interpretação do mandato pelos líderes da MONUSCO diversificou a proteção de civis perante o uso da força. No contexto da RDC, o conceito de “ilhas de estabilidade” pôde ser criado devido aos acertos políticos entre a MONUSCO e o governo congolês naquela ocasião específica. A identificação da ameaça permitiu o estabelecimento de objetivos, a decisão de apoiar o governo congolês possibilitou que estes objetivos fossem mais prontamente conquistados, e a autorização do uso da força para desempenhar ataques ofensivos preemptivos unilaterais ou juntamente às FARDC viabilizou a implementação das “ilhas de estabilidade”. A duplicação deste modelo pode ser muito perigosa se as articulações políticas regionais e locais de cada caso não forem consideradas. Os resultados positivos das ações ofensivas da FIB ainda são demasiadamente recentes. Contudo, observa-se similaridades no mandato da MINUSMA (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Mali). A Resolução 2100 do Conselho de Segurança permitiu a MINUSMA adotar objetivos militares ofensivos para estabilizar os centros populacionais e consentiu resposta militar híbrida, ligando a estabilização internacional às forças francesas com objetivos múltiplos, incluindo a criação de ambiente seguro para a passagem de assistência humanitária47. A Resolução 2102 do Conselho de Segurança sobre a Somália visou alinhar as atividades do pessoal da ONU (UN country team) aos objetivos da UNSOM (Missão de Assistência das Nações Unidas na Somália) e do Governo Federal da Somália para a proteção de civis 48. Do mesmo modo, a Resolução 2155 do Conselho de Segurança sobre o Sudão do Sul modificou o mandato da UNMISS, centralizando as ações de proteção de civis a fim de direcionar as necessidades humanitárias e as questões de segurança 49. Estas resoluções comprovam o envolvimento das Nações Unidas em conflitos sob uma nova perspectiva. Considerando a complexidade de todos os elementos que o cercam: a vontade política 47 Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minusma/documents/mali%20_2100_E_.pdf. Acesso em 01 out. 2014. 48 Disponível em: http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF9 6FF9% 7D/s_res_2102.pdf. Acesso em 01 out. 2014. 49 Disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2155(2014). Acesso em 01 out. 2014. P á g i n a | 74 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 dos países contribuintes de tropas (TCCs na sigla em inglês), os riscos no emprego de engajamento ativo, a eficiência dos resultados das ações militares, e as ações que envolvem os esforços político, humanitário e militar no que tange à proteção de civis, à estabilização e à reconstrução da paz, no contexto das operações de paz, a proteção de civis se tornou um paradigma. Considerações finais A emergência do conceito de “ilhas de estabilidade” representa a visão dinâmica da proteção de civis, mais flexível e adaptada ao contexto da RDC e da ameaça dos grupos armados. Como já mencionado acima, esta nova interpretação influenciará não só a forma como as operações de paz serão conduzidas, mas, também, sua relação com as agências humanitárias e o modo como a assistência humanitária é administrada. Esta atualização, adaptação e evolução causaram o esvaziamento dos três princípios norteadores das operações de paz. Consequentemente, novas interpretações sobre o consentimento das partes, a imparcialidade/neutralidade, e o uso da força precisarão ser identificadas. Estudos aprofundados sobre os casos da MONUSCO, UNMISS, MINUSMA e UNSOM serão necessários para abarcar a amplitude e a complexidade destes conflitos e sua relação com o uso da força, para, assim, designar respostas apropriadas da comunidade internacional. É evidente que o uso da força não é a solução para o conflito, entretanto, se aprovado em nome da segurança coletiva, é, inicialmente, a forma que permite que problemas profundos enraizados nas sociedades, manifestados na organização de grupos armados, encontrem, posteriormente, solução política, econômica e social. No caso da República Democrática do Congo, a operacionalização da proteção de civis foi adaptada à sua realidade. O uso legítimo da força implementado pela FIB diversificou o modo como a proteção da violência física é conduzida. Neste sentido, ainda que muito recente, a implementação das “ilhas de estabilidade” mostra ser a prova da evolução e do início de um novo processo de transição das operações de paz. Referências bibliográficas: BARNETT, Michael. Partner in Peace?The UN, regional organizations, and peace-keeping. Review of International Studies: Vol. 21, 1995. pp. 401-433. BRAGA, Carlos Chagas Vianna. Desafios futuros para as operações de paz brasileiras. 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P á g i n a | 77 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Ascensão do sul e governança global: contribuições do sul para a segurança e desenvolvimento humanos A partir do Informe de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2013, este texto analisará como esta instituição relaciona as mudanças na dinâmica global por conta da ascensão dos países emergentes com a importância deste fenômeno para o desenvolvimento humano. Diante deste processo, entende-se que o Relatório procura não apenas reforçar as ideias de desenvolvimento humano e segurança humana como elementos essenciais para a manutenção da governança global, como também procura alertar para a importância da participação dos países do Sul nos esforços internacionais que procuram validar esse engajamento. Juliana Bulsonaro 50 Tadeu Morato Maciel 51 Sarah Serrano 52 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p.78 -87 Introdução A partir das discussões realizadas no âmbito da linha de pesquisa “Segurança Internacional Contemporânea: um estudo focado nas mudanças conceituais e práticas na segurança internacional pós-Guerra Fria”, foram idealizados alguns textos que congregam os resultados obtidos até o momento, os quais compõem o dossiê “Segurança Humana e Relações Internacionais" que está 50 Estudante do 4º período do Curso de Relações Internacionais da FASM. Professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM). Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, e Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. 52 Estudante do 4º período do Curso de Relações Internacionais da FASM. 51 P á g i n a | 78 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 sendo apresentado nesta edição do Inter-Relações. Este texto em específico procura problematizar o vínculo entre a ascensão dos países do Sul e as transformações na governança global. A participação mais ativa nas relações internacionais de alguns países outrora denominados como Terceiro Mundo, Subdesenvolvidos, Em Desenvolvimento, Não Alinhados, Emergentes, Dependentes, Periféricos, etc., influenciou a potencialização de uma nova denominação para este grupo: o Sul Global. Diante da ascensão de diversos desses atores do Sul Global após o fim da Guerra Fria, Bruno Ayllón entende que este conceito faz referência “aos países e sociedades em desenvolvimento do hemisfério Sul, e a outros localizados no hemisfério Norte, mas que possuem indicadores de desenvolvimento médios e baixos. Referimo-nos a maioria dos países africanos, latino-americanos e asiáticos, em um número próximo a 150 Estados independentes” (2013, p. 15). O termo Sul Global configura-se como uma designação simbólica para um grupo bastante heterogêneo de nações em desenvolvimento, gerando os riscos de homogeneização de realidades diversas em um mesmo conceito, tal como ocorre com diversas outras definições, visto que pode englobar realidades tão díspares como a Bolívia e a China. Além disso, alguns autores ressaltam o desafio de eleger quem pode ou não ser inserido dentro desta denominação, pois “cada vez é mais difícil identificar quem pertence ao Sul Global, pois está em curso um processo de reformatação do mesmo, vinculado à localização e ao deslocamento do poder rumo a novas geografias” (LECHINI, 2012, p. 17; MILANI, 2012 apud AYLLÓN, 2013). Alguns elementos ajudam a explicar o aumento da atuação internacional dos países que formam o Sul Global no início do século XXI, tais como: a crise financeira internacional, especialmente a partir de 2008; a ampliação do comércio entre os países do Sul, com destaque para o incremento das relações comerciais chinesas; o aumento dos investimentos estrangeiros diretos recebidos e efetuados por tais países (inclusive entre eles); a ampliação de espaços para a atuação mais ativa em instituições centrais no processo de governança global; a formação de blocos como o BRICS (Brasil, Rússia, Índia e China) e o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul). Diversos atores internacionais, tais como os Estados, as organizações internacionais, as organizações não governamentais e os grupos acadêmicos, passaram a dar maior atenção a este Sul Global, como se verifica a partir do Informe de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2013, intitulado “A ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo Diversificado”, no qual a ONU destaca as mudanças na dinâmica global por conta da ascensão dos países em desenvolvimento e a importância deste fenômeno para o desenvolvimento humano. Neste processo, os países do Sul seriam um elemento essencial no combate aos problemas globais que afetam a segurança internacional em diferentes esferas, tais como crises econômicas, políticas, ambientais, sociais e alimentares, permeadas por temas como os terrorismos, as violações de direitos humanos, as migrações forçadas, etc. É neste ambiente que se estabelece uma forte relação entre as contribuições dos países do Sul para a ordem internacional e o fortalecimento da concepção de segurança humana. Antes da análise mais focada em relação às P á g i n a | 79 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 propostas que conformam o Relatório do PNUD, considera-se essencial uma rápida abordagem sobre a evolução do conceito de segurança internacional nas últimas décadas. A ampliação do conceito de segurança internacional: rumo à segurança humana O final da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlin e a extinção da União Soviética geraram certo frenesi por parte de um amplo grupo de autores das relações internacionais, os quais se lançaram na busca por novos conceitos que abarcassem a realidade internacional que seria estabelecida a partir daquele momento. Em 1989, a revista norte-americana “National Interest”, publicou o artigo de Francis Fukuyama intitulado “Será o Fim da História?”, no qual o autor afirma que o fracasso do socialismo de Estado (pautado pelo marxismo-leninismo) cristalizaria a vitória da democracia liberal ocidental como modelo universal de governo. Fukuyama utiliza Hegel para alegar o fim do combate de ideias por conta da vitória e universalização da democracia liberal. Assim, parte do internacionalismo liberal proclamou que a nova ordem internacional seria definida pela “paz democrática”, a partir da expansão do capitalismo e da democracia, assim como a disseminação de valores universais atrelados aos direitos humanos. Nesse ambiente, as preocupações do internacionalismo liberal em relação aos elementos que poderiam abalar a ordem internacional também foram afetadas. Se com a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS desapareceu o medo do embate entre as duas grandes potências, no decorrer das décadas seguintes outros temas ganharam relevância nas agendas dos governos e organismos internacionais, tais como: os terrorismos; os tráficos transnacionais de drogas, de armamentos e de pessoas; as guerras civis e étnicas, os genocídios e as epidemias; e as questões climáticas e ambientais. Nesse processo, os mais diversos campos de estudos das Relações Internacionais (inclusive autores realistas) passaram a questionar o conceito de segurança como exclusivamente vinculado à segurança nacional e ao equilíbrio de poder entre potências, havendo o deslocamento do “foco do problema da segurança do seu vínculo exclusivo com o Estado para associá-lo a questões para além, para aquém e através do Estado” (RODRIGUES, 2012, p. 8). Estabelecia-se um novo cenário em relação às diretrizes que balizavam os debates sobre os temas de paz e segurança mundiais. O que era designado como internacional, especialmente no concernente à segurança, deixava de ser tema exclusivamente tratado no âmbito do Estado, havendo a atuação mais ativa de diversos atores internacionais no processo de governança global. Os conflitos nas relações internacionais começam a ser afetados pelos discursos em prol da ação conjunta de Estados e outros atores internacionais em nome de valores universais e de uma nova ordem mundial. Para o então presidente norte-americano George Bush, conforme declaração em 1991, a ação do governo dos EUA contra o Iraque naquele momento não significava a simples defesa do Kuwait, mas a busca por uma nova ordem mundial, na qual estariam garantidos os valores universais da humanidade. P á g i n a | 80 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Partindo deste panorama, o cientista britânico Barry Buzan afirmou que a segurança das coletividades (organizadas no sistema estatal) não se resumiria apenas a fatores militares (como antes pressupunham os autores realistas), mas também a fatores políticos (estabilidade e legitimidade das instituições políticas), econômicos (acesso a recursos mínimos para a manutenção do bem-estar e das instituições), societais (preservação de elementos como a língua, os costumes, a religião) e ambientais (manutenção da biosfera, necessária para o desenvolvimento dos outros fatores) (BUZAN, 2007, p. 38). Assim, a redefinição do conceito de segurança propunha que não somente as fronteiras estatais deveriam ser protegidas, e, por conseguinte, não apenas os conflitos interestatais seriam uma ameaça à segurança internacional, mas também problemas como a degradação ambiental, as epidemias, os deslocamentos massivos de populações e a pobreza extrema, elementos que afetavam sobremaneira os países do Sul, especialmente aqueles definidos como Estados falidos, fracos ou débeis. Neste sentido, os esforços realizados no decorrer do século XX para a criação de princípios de direito internacional que viabilizassem relações pacíficas frente à ameaça das grandes guerras parecia defasado frente às novas formas de violência que escapam aos conceitos de regulamentação da guerra de tipo clausewitziana (RODRIGUES, 2010). Neste ponto é de extrema importância destacarmos a ressalva de Florian Hoffmann (2010) e Thiago Rodrigues (2012), no sentido de que embora alguns acadêmicos tenham destacado a redefinição da ideia de segurança internacional no imediato pós-Guerra Fria, desde o final da Segunda Guerra Mundial a dinâmica dos conflitos globais “já registrava o movimento em direção ao aumento dos enfrentamentos dentro e através das fronteiras, mobilizados por grupos não-estatais” (RODRIGUES, 2012, p. 13). Embora inúmeras guerras civis e outras ameaças transnacionais tenham aumentado desde meados do século XX, apenas no início dos anos 1990 algumas correntes teóricas atentaram para a mudança no objeto da segurança, que migra do Estado (como era a característica da segurança nacional) para a população (o sujeito que deve ser protegido, frente às ameaças internas e transnacionais). Essa mudança foi operacionalizada no âmbito da ONU a partir da atuação do secretário-geral Boutros-Boutros Ghali (1992-1996), o qual apoiou a elaboração do Relatório do Desenvolvimento Humano (1994) por parte do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no qual constava o conceito de segurança humana, por meio do qual deveria ser afirmada a ênfase na defesa da população, o que resultaria na mudança da segurança por meios exclusivamente militares para a segurança por meio do desenvolvimento humano sustentável. É neste momento que termos como segurança humana e desenvolvimento humano passam a ser centrais dentro da concepção mais ampla de segurança internacional, sendo esta atualizada pela ideia de governança global, a qual pode ser definida como “o conjunto de instituições e normativas, composto pelos Estados e baseado em valores universais, voltadas à gestão de problemas que governo isolado algum, mesmo os mais poderosos, podem dar conta sós” (RODRIGUES, 2012, p. 31-2). É neste cenário que os conflitos e as possibilidades de insegurança que afetam as populações dos países do Sul passam a assumir um lugar central nos debates sobre segurança global. Ao tratar P á g i n a | 81 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 sobre segurança humana e desenvolvimento humano no Relatório do Desenvolvimento Humano de 2014, o PNUD destaca que “em algumas regiões da África Ocidental e Central, situações de anarquia e conflito armado continuam a fazer perigar os avanços no domínio do desenvolvimento humano”, enquanto em alguns “países da América Latina e das Caraíbas, a despeito dos grandes avanços alcançados no plano do desenvolvimento humano, muitas pessoas sentem-se ameaçadas pelo crescimento das taxas de homicídio e outro tipo de criminalidade violenta” (PNUD, 2014, p. 45). Desta forma, exigia-se uma atuação conjunta em nível global para a gestão e controle dos problemas que afetam as populações que conformam o Sul Global, tais como os terrorismos, os tráficos transnacionais (drogas, armamentos, pessoas), os conflitos internos e transnacionais, a pobreza extrema, as violações dos direitos humanos e a degradação do meio ambiente. Tais problemas não significariam ameaças exclusivas a determinados Estados, mas à governança global como um todo. Além disso, o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2013 ressalta um elemento adicional neste processo, pois ao analisar os novos atores e questões que determinam o panorama do desenvolvimento no século XXI, este Relatório afirma que a ascensão do Sul deve ser vinculada ao progresso sustentado do desenvolvimento humano (baseado na possibilidade das pessoas alargarem suas escolhas e capacidades), fazendo com que seja essencial a participação dos países emergentes nos processos que favorecem o fortalecimento da segurança e do desenvolvimento humanos. É a partir desta argumentação que o Relatório do PNUD procura vincular a participação dos países do Sul na governança global à segurança humana e ao desenvolvimento humano, o que será apresentado na seção abaixo. A participação dos países do Sul na consolidação da segurança e do desenvolvimento humanos Segundo o Relatório do PNUD de 2013, “a notável transformação de um elevado número de países em desenvolvimento em grandes economias dinâmicas com crescente influência política produz um impacto significativo no progresso do desenvolvimento humano” (PNUD, 2013, p. iv). Por exemplo, quanto ao primeiro Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, o qual trata da redução da extrema pobreza (pessoas que vivem com menos de 1,25 dólares por dia), verifica-se que “o Brasil, a China e a Índia reduziram, todos eles, de forma drástica a percentagem da sua população em situação de pobreza de rendimentos - o Brasil, de 17,2% da população em 1990 para 6,1% em 2009, a China, de 60,2% em 1990 para 13,1% em 2008, e a Índia, de 49,4% em 1983 para 32,7% em 2010” (PNUD, 2013, p. 14). Apesar de possuírem intensos níveis de desigualdade – como afirma o próprio Relatório “existe um ‘Sul’ no Norte e um ‘Norte’ no Sul” (PNUD, 2013, p. 2) – e de abrigarem grande parte da população pobre do mundo, ao desenvolverem políticas pragmáticas e ao focarem no desenvolvimento, tais países, com a ajuda da globalização, estariam abrindo caminho para oportunidades crescentes para suas economias. P á g i n a | 82 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Entende-se, ainda, que a crise do Norte poderia abrandar o desenvolvimento do Sul, por conta das políticas de austeridade e da redução da capacidade do Estado Providência, o que afetaria não apenas as suas populações, mas também minaria as perspectivas de desenvolvimento humano de inúmeras pessoas ao redor do mundo, devido à interdependência econômica. Assim, segundo o Relatório, “o Sul precisa do Norte, mas cada vez mais o Norte precisa do Sul” (PNUD, 2013, p. 2), visto que, por exemplo, depois de 2007 as exportações norte-americanas aumentaram 20% para países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), enquanto para a América Latina e Caribenha e para a China aumentaram 50%. Ao alertar que crescimento econômico não se traduz, por si só, em desenvolvimento humano, o Relatório propõe quatro temas que devem ser abordados para ampliar o desenvolvimento: reforçar a equidade, incluindo a dimensão do gênero; permitir uma maior representação e participação dos cidadãos; fazer face aos desafios ambientais; e gerir as alterações demográficas (PNUD, 2013, p. 89). Para o PNUD não é possível angariar grandes conquistas na matéria de desenvolvimento humano se temas como desigualdade e destruição ambiental não constarem como prioridade. Além disso, a crescente interdependência nas relações internacionais faz com que deva haver ações conjuntas em temas como a erradicação da pobreza, as mudanças climáticas, ou a paz e a segurança. O Relatório também reflete sobre a possibilidade de novas instituições que facilitem a integração regional e a cooperação Sul-Sul, tendo em vista as experiências profícuas para o desenvolvimento humano que podem ser obtidas com esta modalidade de cooperação, além de exigir que existam estruturas mais representativas de governança internacional que considerem a inequívoca ascensão do Sul. “Na verdade, todos os processos intergovernamentais ganhariam robustez com uma maior participação do Sul, que pode contribuir com recursos financeiros, tecnológicos e humanos substanciais, bem como apresentar boas soluções para os problemas mundiais prementes” (PNUD, 2013, p. 7). Nesse processo de criação ou reforma das instituições internacionais rumo a estruturas mais representativas, permanece a preocupação em relação à soberania nacional. Contudo, “as medidas nacionais não garantem aos cidadãos dos países o acesso a bens públicos globais. Alguns governos não são capazes de proteger suficientemente os direitos humanos dos seus cidadãos” (PNUD, 2013, p. 121). Desta forma, o PNUD entende que se deve caminhar rumo à ideia de “soberania responsável”, que busque a cooperação em nível mundial, responda pelos seus atos, busque o bem-estar mundial, auxilie na provisão de bens públicos globais, garanta o respeito aos direitos humanos, propicie a segurança da população, etc. Assim, para o PNUD “a soberania é vista não apenas como um direito, mas como uma responsabilidade” (PNUD, 2013, p. 8). Neste ponto, o Relatório utiliza o exemplo da Responsabilidade de Proteger como tentativa de uma nova segurança internacional que se baseie na ideia de soberania como responsabilidade, ao demonstrar que esta prática sofre pela falta de procedimentos que responsabilizem governos que violem princípios orientadores da governança global (PNUD, 2013, p. 121). P á g i n a | 83 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 A partir do contexto apresentado acima, a ideia de segurança humana e o vínculo com a ascensão do Sul parecem essenciais para o PNUD. Sobre este ponto, o Relatório de 2013 retoma a ideia do Relatório do Desenvolvimento Humano de 1994, no qual constava que era essencial que o conceito de segurança evoluísse da ideia de proteção militar das fronteiras do Estado “para a redução da insegurança na vida quotidiana dos indivíduos (ou insegurança humana)” (PNUD, 2013, p. 39). Nesse sentido, o Relatório afirma que a segurança humana tem sido prejudicada por diversas ameaças, como a fome, a doença, a criminalidade, o desemprego, as violações de direitos humanos e os desafios ambientais. De forma mais específica, o Relatório procura demonstrar diversos elementos que devem compor a ideia de segurança, como algumas questões econômicas (jovens desempregados no norte ou agricultores forçados a migrarem no Sul), alimentares (famílias que não conseguem ter pelo menos duas refeições ao dia) e de acesso à saúde (que adensam o caminho rumo ao empobrecimento). Portanto, “é preciso que as perspectivas sobre a segurança abandonem uma ênfase errônea colocada na força militar em benefício de um conceito equilibrado centrado nas pessoas” (PNUD, 2013, p. 40). Os avanços (ou retrocessos) nessa mudança de foco da segurança do Estado para as pessoas poderiam ser medidos por meio das estatísticas sobre despesas militares e criminalidade (altas taxas de homicídio, por exemplo, refletiriam na participação e confiança cívicas). O Relatório ressalta que embora os conflitos entre Estados pareçam estar em declínio desde o final da Guerra Fria, os conflitos intraestatais aumentaram a partir de meados do século XX. “Hoje, a maioria das ameaças à segurança não provém de outros países, mas sim de insurreições, do terrorismo e de outros conflitos civis” (PNUD, 2013, p. 41). Também é destacado o aumento dos gastos militares nos últimos anos, independente do nível do IDH (apenas países com IDH elevado reduziram o percentual de gastos militares). O Relatório afirma que tais gastos poderiam ser direcionados para programas e investimentos sociais, utilizando-se a Costa Rica como exemplo, e destaca que “nem todos os países possuem condições prévias propícias para concluir a desmilitarização, mas a maioria tem margem de manobra para proceder a um abrandamento substancial das suas despesas militares” (PNUD, 2013, p. 41). Por fim, o Relatório sublinha a importância de se atentar para o desenvolvimento humano como solução para os conflitos internos, pois, por exemplo, “a Índia mostrou que, embora a curto prazo o policiamento possa ser mais eficaz na redução da violência, a redistribuição e o desenvolvimento geral são, a médio prazo, estratégias mais eficazes na prevenção e contenção da agitação civil” (PNUD, 2013, p. 41). Conforme destacado no início do texto, para Florian Hoffmann (2010), desde a segunda metade do século XX (especialmente após o final da Guerra Fria) os conflitos entre Estados caíram, enquanto aumentaram vertiginosamente os conflitos intra-Estados. “Dessa forma, tanto o objeto quanto o sujeito da segurança mudaram, não se referindo mais a ameaças vindas de outros Estados, mas de atores não estatais dentro e fora das suas fronteiras, que ameaçam, primordialmente, a população civil” (HOFFMANN, 2010, p. 258). Segundo o autor, frente a um Estado que passa a ser considerado também um possível perigo para a segurança internacional, ou seja, que pode ser parte P á g i n a | 84 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 do problema (não mais simplesmente o ente a ser defendido), o foco da segurança internacional passa dos Estados para a vida humana. Em consonância com esse processo, passa-se a questionar a ideia de soberania, a qual, segundo o PNUD, deve ser “vista não apenas como um direito, mas como uma responsabilidade”, conforme exposto acima (PNUD, 2013, p. 8). Em consonância, surge a concepção da Responsabilidade de Proteger, como forma de atuação da sociedade internacional frente a Estados que não exercem a soberania como responsabilidade, colocando em risco seus próprios cidadãos. Neste ponto é possível analisar a proposta do PNUD por meio da discussão realizada por Mark Duffield, o qual se utiliza da analítica foucaultiana para vincular a segurança humana a uma biopolítica global das populações. A identificação de uma série de vulnerabilidades por parte da população ativaria um conjunto de “tecnologias de governança internacional”, o que permite compreender a segurança humana como uma tecnologia que fornece poder a instituições e atores internacionais para que possam agir, de forma individual ou em grupo, em países do Sul (DUFFIELD, 2005, p. 3). A segurança e o desenvolvimento humanos, em termos biopolíticos, potencializariam a capacidade de promover a vida da população. Com o crescimento dos Emergentes, tais países também deveriam ser inseridos no grupo daqueles que são autorizados a implementarem esforços em prol da gestão de possíveis riscos à governança global, adaptando, inclusive, seu know-how específico sobre desenvolvimento para situações de resolução de conflitos e reconstrução social, o que os habilitaria a lidar com situações mais próximas do seu cotidiano. Desta forma, esta governança mais plural em nome da segurança e do desenvolvimento mais equitativo também pode ser vista como uma espécie de “governança das desigualdades”, a ser gerida por diversas missões pontuais de intervenções sociais nos países mais pobres. Esta participação do Sul romperia com a ideia típica da Guerra Fria de que a segurança era alimentada pelo debate Leste-Oeste, enquanto a dimensão Norte-Sul definiria a questão do desenvolvimento53. Com este Relatório, o PNUD procura consolidar a ideia de participação ampla no processo de governança, destacando a essencialidade do aumento da representatividade dos países emergentes para o enfrentamento das vulnerabilidades e inseguranças que afetam a segurança das populações. Alinhada a esse processo, a preocupação com o desenvolvimento socioeconômico ganha novos contornos, fazendo com que as discussões sobre o tema deixem cada vez mais de mencionar o desenvolvimento estatal como processo de modernização pelo crescimento econômico e passe a falar no desenvolvimento sustentável centrado nos indivíduos (desenvolvimento humano): “o conceito de desenvolvimento sustentável tem desagregado o foco original do desenvolvimento, o Estado como unidade integral, enfatizando, em vez disso, aspectos específicos do espaço público estatal, tais como a saúde, a educação, a inclusão social ou o próprio meio ambiente” (HOFFMANN, 2010, p. 258). Essa concepção de desenvolvimento passou a ser divulgada em larga escala a partir da construção do Índice de Desenvolvimento Humano e sua incorporação no primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, em 1990. Assim, o Relatório do PNUD 53 Para ampliar esta questão, este texto sugere os debates propostos por Jorge Nef sobre segurança humana, desenvolvimento e vulnerabilidades mútuas. P á g i n a | 85 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 de 2013 procura não apenas reforçar as ideias de desenvolvimento, soberania e segurança como termos mais abrangentes (que consideram diversos outros problemas que afetam o “humano”), como procura convocar os países do Sul a cada vez mais participarem dos esforços internacionais que procuram validar esses entendimentos em prol da prevenção e combate às novas ameaças que colocam em risco a governança global. Considerações Finais O Relatório do PNUD de 2013 (A Ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo Diversificado) produz uma importante reflexão sobre a denominada ascensão do Sul, nos auxiliando a compreender como alguns fatores foram centrais neste processo, tais como a crise financeira internacional em 2008, o aumento do comércio e as boas perspectivas para o PIB em relação aos países do Sul (o que já não é a situação atual), o incremento dos investimentos estrangeiros diretos recebidos e efetuados por tais países, a aplicação de políticas públicas exitosas (em áreas como o combate à fome, saneamento básico e habitação), o fortalecimento de políticas externas que buscam novas formas de inserção internacional (especialmente a partir de coalizões sul-sul, formando blocos como o BRICS e o IBAS) e a atuação mais ativa em instituições centrais no processo de governança global. Após demonstrar a ascensão dos países emergentes e as novas possibilidades de desenvolvimento humano que eles podem proporcionar, o PNUD procura destacar a essencialidade da inclusão desses Estados nos esforços de governança global, como forma de potencializar o combate às possibilidades de inseguranças que desconhecem as fronteiras estatais. Por meio da análise do Relatório torna-se possível verificar a importância da relação entre desenvolvimento e segurança para o PNUD, como forma de corrigir as “imperfeições” que assolam inúmeras populações pobres ao redor do mundo, as quais geram vulnerabilidades para todos (tanto no Norte quanto no Sul). Ao vincular a ascensão do Sul a conceitos como desenvolvimento humano, soberania responsável e segurança humana, este Relatório se insere no debate contemporâneo das Relações Internacionais, no qual novos atores, temas e abordagens são alçados como essenciais para a compreensão do mundo e sua gestão. Referências bibliográficas: AYLLÓN, Bruno. 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P á g i n a | 87 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 O engajamento internacional pela segurança humana: apontamentos de uma crítica pós-colonial O presente artigo, que resulta de pesquisa desenvolvida no Laboratório de Análise Internacional (LAI-FASM), realiza uma reflexão crítica a respeito da introdução da temática da segurança humana nas relações internacionais. A argumentação teórica utilizada vai de encontro aos Estudos Póscoloniais, apontando como o engajamento contemporâneo pela proteção humana dá continuidade à lógica orientalista imposta aos países, culturas e sociedade consideradas falidas, atrasadas e subdesenvolvidas. Carolina Yamada 54 João Paulo Gusmão P. Duarte 55 Rafaela Godoi 56 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 88 - 95 Introdução O chamado aprofundamento e ampliação dos estudos de segurança internacional, ocorrido entre as décadas de 1980 e 1990, abriu espaço para a inserção de abordagens e perspectivas inovadoras no campo das Relações Internacionais (RIs). Impulsionado por uma conjuntura histórica de recomposição de forças e reconfiguração do sistema de Estados com o fim da Guerra Fria, o desenvolvimento de análises denominadas como reflexivistas motivou o ressurgimento de um vigoroso debate em torno das problemáticas de segurança. Durante longo período restrito às abordagens racionalistas – isto é, ao debate entre realistas e liberais, com amplo predomínio dos primeiros –, os estudos de segurança internacional passaram a incorporar perspectivas críticas e construtivistas que impuseram reflexões questionadoras às premissas tradicionais que praticamente 54 Estudante do 8º período do Curso de Relações Internacionais da FASM. Doutorando em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais pela PUC-SP; e Professor da FASM. 56 Estudante do 4º período do Curso de Relações Internacionais da FASM. 55 P á g i n a | 88 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 restringiam a segurança à temática militar, e que reconheciam os Estados como únicos sujeitos e objetos da segurança (Nye & Lynn-Jones, 1988). Desde então, novos temas foram incorporados e os assuntos militares passaram a dividir espaço com outros aspectos entendidos como fundamentais para o estudo da segurança internacional. O contexto de globalização, no qual vários atores passaram a interagir e se relacionar nos chamados processos de interdependência, impôs também a necessidade de se considerar novos agentes e matérias como componentes da segurança. Assim, a partir da percepção do surgimento de um cenário em que os conflitos interestatais entrariam em declínio, cedendo espaço para uma nova conjuntura política, problemas relativos à ecologia e economia, às questões identitária e humanitária, bem como diversos assuntos de ordem social entraram na pauta da produção teórica de segurança internacional57. Dentre os estudos que mais se destacaram, dois são emblemáticos e podem ser utilizados como exemplo desse novo engajamento de pesquisa que imprimiu análises com o intuito de aumentar a abrangência do entendimento que se tinha sobre o conceito de segurança: a abordagem multissetorial da Escola de Copenhagen, e a perspectiva liberal em torno da segurança humana. No primeiro, proveniente dos estudos de Barry Buzan e outros eminentes pesquisadores da Escola de Copenhagen, foi desenvolvida uma argumentação que indicou que a segurança internacional estava envolvida em assuntos que se dividiam em cinco setores fundamentais: militar, político, econômico, societal e ambiental. Nos setores militar e político permanecem as ideias tradicionais da segurança vinculada à defesa do Estado e da soberania por meio do uso da força bélica. No entanto, nos setores econômico, societal e ambiental, é apontado o alargamento da agenda, que passava a vincular questões como o controle sobre o mercado financeiro, e sobre crises sociais e desastres ambientais como pertencentes ao rol de problemas da segurança internacional (Buzan et al, 1998). Outro exemplo que demonstra o engajamento teórico pela ampliação dos temas de segurança vem de estudos liberais do início da década de 1990. De maneira geral, essa perspectiva indicou que o fim da Guerra Fria possibilitou a efetivação de novos objetivos na política internacional. Nesse sentido, reivindicaram o aprofundamento da segurança a partir da inclusão de novos princípios que iam além da esfera estatal, passando a demandar a introdução de questões referentes à proteção dos seres humanos como temática primordial da segurança (Rothschild, 1995). Segurança humana para quem? Paralelamente ao desenvolvimento teórico, o exercício prático em torno dos novos temas de segurança passou a ocorrer com frequência cada vez maior. Em relação à segurança humana, desde 57 É importante ressaltar que embora o período pós-Guerra Fria tenha impulsionado a introdução de novas temáticas nos estudos e práticas de segurança internacional, existem algumas procedências anteriores de grande relevância que, sobretudo a partir das décadas de 1960-70, impuseram ao campo a necessidade de abrangência nas abordagens sobre segurança. Conforme apontam Buzan e Hansen (2012), os Estudos da Paz são um exemplo. P á g i n a | 89 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 a década de 1990, vários acordos mediados por Estados, instituições internacionais e organizações não governamentais (ONGs) de grande influência foram assinados, levando a uma gradual inscrição normativa de recomendações e procedimentos em defesa da vida humana como sendo a real finalidade de qualquer engajamento pela segurança 58. Nesse processo, uma das determinações no plano dos regimes internacionais que alcançou grande destaque e efetividade de ações é o princípio da Responsabilidade de Proteger (RdeP), um mecanismo jurídico-diplomático-militar aprovado no âmbito das Nações Unidas (ONU), que possibilita o rompimento da soberania de Estados em que se detecta algum tipo de problema de ordem social e política que represente risco ou ameaça à sua população, permitindo, sequencialmente, a execução de intervenções externas para salvaguarda humanitária. A RdeP, idealizada em 2001 e homologada como instrumento de direito internacional em 2005, mesmo propagando ações e discursos grandiloquentes em defesa do humanitarismo numa escala mundial, expõe como o engajamento contemporâneo pela segurança está envolvido com interesses questionáveis e até mesmo escusos, nos quais se nota, de um lado, a transformação da proteção humana em uma panaceia global, e, de outro, a efetivação de estratégias de poder articuladas por alianças que dominam o sistema internacional. Desse modo, conforme apontam Rodrigues e Souza (2012), podemos estabelecer uma primeira crítica que identifica o mecanismo proposto pela RdeP como parte de um sistema interessado na gestão do planeta e do fluxos populacionais que nele habitam e transitam. Em ligação direta com o desenvolvimento discursivo e prático pela segurança humana, uma intervenção que segue o modelo da Responsabilidade de Proteger estaria envolvida, portanto, no objetivo de acompanhamento e controle sobre a vida humana numa escala que rejeita os limites da soberania. Então, busca estabelecer padrões de vida por meio da gestão e disposição das populações mundiais, idealizando a produção de um estado de paz baseado na expansão de valores ocidentais, tais como a democracia, o liberalismo e, fundamentalmente, o humanismo. Uma segunda crítica à utilização da RdeP indica como esse dispositivo funciona como um instrumento de poder angariado por organizações internacionais, ONGs e principalmente alianças de Estados que possuem e exercem a hegemonia no sistema. Nesse caso, é explícito o emprego das intervenções direcionado à periferia do sistema e aos chamados Estados falidos59, considerados hospedeiros de várias formas de violências que ascendem também ao campo internacional. O discurso humanitário, portanto, seria apenas a forma de justificar estas ações. 58 Entre as primeiras normativas que reconsideraram o conceito de segurança, colocando-o no centro de debate sobre desenvolvimento humano e proteção da vida, estão a Agenda para paz, documento emitido pelo secretário-geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, em 1992, e o Relatório sobre Desenvolvimento Humano, de 1994, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 59 A noção de Estado fraco, débil ou falido foi desenvolvida por Fukuyama (2005), e se caracteriza por instituir a necessidade de intervenções militares – justificadas como ações humanitárias – para a proteção da população de países em que o Estado não possuiria condições de governá-la de maneira eficiente, seja por deficiência ou ausência de seu escopo estatal de prestação de serviços sociais, seja por debilidades que o impedem de deter a coesão e monopólio do exercício da violência. P á g i n a | 90 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 Então, na prática o que se nota é que essa determinação legitima uma série de incursões em países que possuiriam a necessidade de tutela ou proteção externa, permitindo, objetivamente, uma forma de controlar o surgimento de violências nesses locais e, ao mesmo tempo, de sustentar a lógica de imposição de valores, possibilitando, por consequência, a manutenção de processos exploratórios que correspondem ao fluxo centro-periferia (Duffield, 2010). Ambas as críticas permitem afirmar que o desenvolvimento de iniciativas pela segurança humana dentro da esfera das relações internacionais não pressupõe uma real preocupação com a proteção humanitária, mas, sim, a ampliação contínua de um sistema de governamentalidade interessado em gerir a vida em todos os espaços do planeta, e um complexo jogo de poder que institui hierarquias que beneficiam os agentes controladores do sistema internacional. Segurança humana e Pós-colonialismo: uma análise teórica Diante das críticas apresentadas a respeito da funcionalidade do princípio da Responsabilidade de Proteger, é possível indicar que o empreendimento pela segurança humana também carrega consigo uma forte tendência de afirmação de padrões civilizacionais para a humanidade, isto é, uma lógica que opera por enquadramentos que ignoram as diferenças culturais entre os povos e os vinculam à obrigatoriedade de aceitação e assimilação de valores marcadamente ocidentais. Por conseguinte, havendo domínios de poder que se articulam pela lógica civilizacional, notase que tais procedimentos securitários atuam pela positivação e manutenção das disparidades existentes entre sociedades e culturas que se posicionam de maneira absolutamente desigual na estrutura da política internacional. Com isso, estabelece-se um exercício de dominação baseado em distinções identitárias que resultam na classificação de Estados e grupos sociais como subdesenvolvidos, subalternos, atrasados, perigosos e falidos. Não é difícil de identificar que a maior parte deles se localiza geograficamente na África, Oriente Médio e Ásia, locais em que o engajamento colonial dos séculos xix e xx foi ostensivo e que, atualmente, a segurança humana é evocada como receituário para a resolução da maior parte dos “problemas” que afetam o desenvolvimento dessas regiões. Essa situação nos leva a reconhecer a pertinência dos Estudos Pós-coloniais para a análise das relações internacionais contemporâneas. Partindo dos estudos de Edward Said (1978), um dos precursores do Pós-colonialismo, pode-se apontar que a submissão de culturas e sociedades possui como objetivo primordial autorizar ações de domínio e governo comandadas por unidades políticas que propagam e se beneficiam do discurso civilizacional – e, com isso, ocupam o topo da hierarquia do sistema internacional. Said explica que essa estratégia foi desenvolvida na Europa, no século xix, por meio da distinção normativa entre ocidente e oriente, tendo como uma das finalidades a legitimação das práticas colonialistas das grandes nações europeias em vários dos territórios que foram P á g i n a | 91 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 denominados como pertencentes ao oriente. Isso se tornou possível pela invenção epistemológica do oriente pelo ocidente, que pressupõe uma distinção ontológica entre os “dois espaços”, fixando aos conceitos “oriente” e “oriental” os estereótipos de irracionalidade, atraso, barbárie, entre outros aspectos difamatórios, e de “ocidente” e “ocidental” as representações de racionalidade, progresso e civilidade. A imposição desse discurso construído historicamente, que o autor chama de orientalismo, resulta na determinação de uma missão civilizatória direcionada àqueles grupos que representariam uma condição de inferioridade cultural, social, política e econômica. E então, o que se comprova com essa separação entre dois patamares supostamente distintos é criação de instrumentos de tutela de algumas culturas ou sociedades em relação a outras, consideradas deficitárias de um conteúdo civilizacional; ou seja, entre unidades providas e guiadas por valores classificados discursivamente como bons e verdadeiros, e aquelas desprovidas e não guiadas por esses mesmos valores (Puchala, 1998). Esse empreendimento pode ser visto, por exemplo, na instrumentalização das intervenções militares, que desde a oficialização da RdeP, são cada vez mais justificadas pela necessidade de defesa humanitária e proteção de populações vulneráveis nos Estados falidos e regiões classificadas como subdesenvolvidas e atrasadas. Torna-se explícito, portanto, que tal iniciativa faz funcionar a antiga lógica colonial, conformada, atualmente, em novas modulações da política internacional que perpetuam a primazia de relações hegemônicas, operadas pelo mesmo fundamento que impôs da distinção ocidente/oriente60. Segurança humana e Pós-colonialismo: uma constatação empírica Uma breve iniciativa de pesquisa nas disposições do Conselho de Segurança das Nações Unidas confirma essa situação. Desde 2005, quando se homologou a Responsabilidade de Proteger, o número de resoluções do Conselho de Segurança que foram direcionadas a países que são considerados pela lógica orientalista como deficitários de um conteúdo civilizacional obteve um crescimento substancial. Por outro lado, o número de resoluções voltadas aos países em que se identifica o provimento de valores ocidentais se manteve estável. Para ilustrar essa constatação61, o gráfico abaixo demonstra o percentual anual de resoluções voltadas a países africanos entre 2005 e 2014. De um total de 579 resoluções que o Conselho de Segurança emitiu nesse período, 317 são relacionadas a países do continente, representando uma 60 A utilização do conceito de orientalismo nesse artigo tem a função de exemplificar a missão civilizatória que está por trás do engajamento pela segurança humana. Desse modo, não significa que apenas países ou sociedades que se encontram geograficamente naquilo que se definiu como oriente são sujeitas a essas ações internacionais. 61 Considerando os limites desse artigo, a escolha do recorte da pesquisa empírica feita a partir da análise das resoluções do Conselho de Segurança da ONU foi direcionada apenas aos países do continente africano, no período referido de Janeiro de 2005 à Agosto de 2014. Esse quadrante, no entanto, já demonstra claramente a disparidade do engajamento internacional – no que se refere às questões de segurança – em relação ao que se denominou, pela lógica orientalista, como países atrasados, falidos, subdesenvolvidos e que não atingiram de certo patamar civilizatório. P á g i n a | 92 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 média de 54,75%. Os anos de 2005 e 2011 chegaram a atingir os picos de 69% e 65,2%, respectivamente. Porcentagem de Resoluções de Conselho de Segurança da ONU direcionadas a países do continente africano (Janeiro de 2005 - Agosto de 2014) 80,00% 60,00% 40,00% Ano 69,0% 51,7% 59,0% 65,2% 52,3% 48,0% 50,8% 52,8% 48,9% 46,5% 20,00% Relacionadas ao continente africano 0,00% 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Fonte: Pesquisa feita pelos autores no site do Conselho de Segurança da ONU (http://www.un.org/es/sc/documents/resolutions/). Nesse período, os países mais notificados por resoluções do Conselho de Segurança foram Sudão, Costa do Marfim, Mali, Congo, Somália, Libéria e Líbia. Em boa parte das resoluções o conteúdo está relacionado a algum tipo de problema ou questão que envolve a segurança de suas populações. Significa dizer que os procedimentos adotados ou recomendados quase sempre se vinculam à necessidade de promoção da segurança humana. Um dos casos mais emblemáticos e exemplares a se destacar é o da Líbia, país do norte da África que durante a onda de revoltas que ficou conhecida como Primavera Árabe, foi subitamente acusado de violar os direitos humanos de seus cidadãos. Naquele momento, uma parcela da população questionava a legitimidade do regime ditatorial de Muammar al-Gaddafi, e reivindicava mudanças políticas e sociais no país. Com o confronto que se estabeleceu entre o governo e os opositores, a comunidade internacional – representada, na ocasião, sobretudo por Estados Unidos, Israel, França e outros países da União Europeia –, passou a solicitar uma intervenção militar, autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, sob a alcunha do princípio da Responsabilidade de Proteger. Então, um forte engajamento internacional se voltou para as condições políticas e sociais na Líbia, que até meados da década de 2000 mantinha boas relações com os governos desses mesmos países que passaram a reivindicar a intervenção externa, além de apresentar razoáveis taxas de crescimento econômico e desenvolvimento humano 62. Conforme aponta Pureza (2012), apesar 62 No ano de 2011, a Líbia ocupava a 64ª posição no ranking de países avaliados pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), à frente, por exemplo, de países como Rússia e Brasil. No ano de 2013, em que foi feita a última avaliação do IDH, a Líbia seguia ocupando a 64ª posição. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH_global_2011>. Acesso em: 15 set. 2014. P á g i n a | 93 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 dessa situação, como base na RdeP, uma série de resoluções foi aprovada no Conselho de Segurança, sendo a mais importante delas a que autorizou uma zona de exclusão aérea que viabilizou bombardeios que desmobilizaram as forças do governo, possibilitando, inclusive, a captura e execução de Gaddafi e de vários de seus apoiadores. No conteúdo das resoluções são explícitos os discursos pela segurança humana. Nelas se condena as violações dos direitos humanos e o uso da força contra civis (Resolução 1970, de fevereiro de 201163), se reivindicam medidas para garantir a segurança da população – ao mesmo tempo em que se permite a formação da zona de exclusão para bombardeios aéreos (Resolução 1973, de março de 201164), e se decide sobre a implantação da United Nations Support Mission in Libya, missão da ONU destinada ao controle da transição política e social no país, que pressupõe o estabelecimento de uma nova autoridade responsável por gerir as condições de vida dos líbios (Resolução 2009, de setembro de 201165). Considerações finais A partir desse exemplo recente, é possível identificar que o grande empreendimento que se desenvolve atualmente por um almejado alcance pleno da segurança, não apenas imprime a necessidade de padrões de vida baseados na universalização do modelo ocidental de liberdade democrática e economia de mercado capitalista, como também garante aos promotores das operações de paz (quase sempre acionadas nos rincões do mundo globalizado), grandes domínios de poder exercidos por policiamentos de grandes dispêndios militares, endividamentos e submissões de ordem econômica, e ainda humilhações e hierarquizações pelo rebaixamento de valores culturais. Esse controle que atua pela demarcação e graduação de identidades e por uma remodulação autoritária quando se ativa as intervenções, de acordo com a leitura dos Estudos pós-coloniais, perpetua a lógica orientalista, sendo a segurança humana, na contemporaneidade, o instrumento discursivo por excelência a ser utilizado para se alcançar tal objetivo, pois representaria um valor universal e inquestionável, já que seria resultado do alcance máximo do desenvolvimento civilizacional. É essa a fórmula atual que possibilita prolongar a lógica de domínio colonial sobre regiões e países que seguem sofrendo com processos exploratórios, notadamente no Sudeste Asiático, no Oriente Médio e – como demonstrado – na África, mantendo-os subordinados ao ideário político ocidental e, com isso, na base da estrutura internacional. Ao mesmo tempo, é também a fórmula que viabiliza o estabelecimento de uma governamentalidade inédita interessada no controle da vida, que 63 Disponível em: <<http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1970(2011)>. Acesso em: 06 set. 2014. 64 Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1973(2011)>. Acesso em: 06 set. 2014. 65 Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2009(2011)>. Acesso em: 06 set. 2014. P á g i n a | 94 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 opera transpondo as barreiras da soberania, com uma atenção especial àqueles marcados pela identidade que simboliza a mais perfeita imagem da barbárie, do atraso e da irracionalidade: o oriental e suas inúmeras resignificações contemporâneas. Referências bibliográficas: BUZAN, Barry; WAEVER, Ole; WILDE, Jaap (1998). Security: a new framework for analysis. 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Terrorismo: caos, controle e segurança. São Paulo: Desatino, 2014, pp. 108. ISBN: 978-85-88467-28-6. Tiago Guimarães Marmund 66 Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 96 - 97 Um livro curto, mas que remete a inquietações. Lançado pela editora Desatino, - uma editora pequena formada por quatro amigos que quiseram enfrentar o cruel mercado editorial – o novo livro do professor e pesquisador João Paulo Duarte é o sexto volume da série Elementos, pensada no intuito de trazer aos estudantes, sejam eles de ensino médio ou de graduação, e aos leitores como um todo, livros que discutam temas variados, mas importantes na atualidade. A partir disto, a série já publicou livros com temas que abrangem desde a discussão sobre o narcotráfico e a Primavera Árabe, até o Futebol, e, agora, sobre o Terrorismo. João Paulo Duarte é professor no bacharelado de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina e pesquisador no GAPCon (Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos Internacionais) e neste livro nos convida a pensar e analisar a temática do terrorismo a partir de um olhar mais crítico e incisivo. Terrorismo: caos, controle e segurança é fruto de uma dissertação de mestrado defendida no ano de 2011, mas que somente agora no ano de 2014 foi editada e publicada. Com o intuito de ampliar a discussão acerca de um tema tão caro às Relações Internacionais, a obra é dividida em três capítulos, ou melhor, movimentos, como prefere o autor. Desde as primeiras páginas da apresentação do livro, deve-se ter em mente que por toda a sua extensão, se buscará discutir a “atualidade do terrorismo e do contraterror” (DUARTE, p.20); para isto, o primeiro capítulo busca fazer uma digressão histórica do terrorismo na modernidade. Deste modo, Duarte nos lembra logo de início que o terror, ou terrorismo, se preferir, não é algo que surgiu com o 11 de setembro de 2001, mas sim que remonta desde o cristianismo. Mais que isso, o terrorismo remonta também à consolidação do Estado como o conhecemos hoje. Significa dizer, portanto, que durante a Revolução Francesa e o terror instaurado pelos jacobinos com suas execuções contra todo e qualquer tipo de opositor do novo regime, o Estado era o principal meio pelo qual era usada a violência e o terrorismo. E ainda mais, vale notar que foi exatamente este novo regime político, que surge em meio a mortes e decapitações, que “hoje serve de modelo e é tido como a mais perfeita organização institucional das sociedades: a república 66 Estudante do 8º período do Curso de Relações Internacionais da FASM. P á g i n a | 96 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014 democrática” (DUARTE, p.27). O autor chama a atenção também a outras procedências terroristas, como: o terrorismo anarquista, o terror nacionalista, comunista e o fundamentalista. O que a pesquisa nos traz de novo para a compreensão do terrorismo é que após os ataques terroristas de 11 de setembro, inaugurou-se então novas formas de conflito. A guerra como a conhecemos antes se tornou agora “não convencional e de caráter transterritorial” (DUARTE, p.48). Desta forma, como mostra João Paulo, há “um estado de ameaça terrorista sempre presente, estabelecido por meio da promoção contínua de uma cultura do medo” produzida pela Guerra ao Terror (DUARTE, p.49). Foi dentro deste âmbito de caça e guerra a grupos e países considerados terroristas ou que alojavam grupos terroristas que se instaurou o que o autor chama de novo paradigma de segurança internacional, marcado por guerras preventivas em nome da paz. E a principal característica desta nova guerra é, segundo ele, “a generalização do estado de exceção” (DUARTE, p.59). Ao utilizarse desta definição proposta pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, Duarte demonstra como as medidas tomadas pelos Estados Unidos, ao não respeitarem, por exemplo, as normas de direito internacional e a própria ONU, estão numa espécie de limbo jurídico, no qual o não acatamento do ordenamento jurídico é justificado pela busca e reestabelecimento da paz mundial. Como mostra a pesquisa, para melhor entendermos como funciona este uso contínuo de medidas de exceção, por exemplo, basta lembrarmos da base de Guantánamo em território cubano. Com isso, como afirma o autor, há uma mudança clara nas práticas de segurança internacional que devemos prestar atenção. A partir do início da Guerra ao Terror dois conceitos são importantes para se entender o atual cenário das políticas de segurança internacional: as intervenções militares e a Responsabilidade de Proteger. Com a inscrição desta última como um princípio do Direito Internacional pela ONU, tornou-se, desde então, imprescindível a necessidade de zelar e proteger outros Estados ou populações em risco. Como consequência, a Responsabilidade de Proteger age como um ato policial que gere, molda e padroniza a vida das pessoas num âmbito planetário, buscando sempre prevenir a explosão de uma má conduta, neste caso, o terrorismo. É esta nova forma de vida que João Paulo Duarte nos chama a atenção. Uma vida controlada a todo momento para que qualquer sinal de insegurança seja rastreado de perto. Contudo, quanto mais controle se exerce, mais bombas explodem, pessoas morrem, terroristas e terrorismos surgem, pois o inimigo agora pode ser qualquer um, o seu vizinho ou você mesmo. Assim, quanto mais se procura controlar o insuportável, mais o insuportável nos rodeia. P á g i n a | 97