POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS: PROCESSO DE INCLUSÃO DO ÍNDIO
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POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS: PROCESSO DE INCLUSÃO DO ÍNDIO
POLÍTICAS LINGÜÍSTICAS: PROCESSO DE INCLUSÃO DO ÍNDIO NAS UNIVERSIDADES PARANAENSES Ana Massako Kataoka TOBIAS (UNICAMP) 1. Introdução Considerando o processo de inclusão indígena nas universidades, neste trabalho, a partir das redações produzidas pelos candidatos Kaingang1 no IV Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná, propomos explicitar o processo de inclusão/exclusão na/pela linguagem nas práticas que envolvem a prova de redação desse vestibular (edição realizada na Universidade Estadual de Maringá - UEM). Inicialmente, levaremos em conta algumas questões sócio-históricas que têm constituído as políticas lingüísticas referentes ao índio e também as que envolvem a constituição da política institucional de inclusão indígena na caracterização do próprio vestibular. Em seguida, tomaremos o tema da redação e o material de apoio apresentado no comando da prova, enquanto condições de produção do discurso indígena, para observar como essas duas questões são desenvolvidas nas redações e/ou nos títulos das mesmas, ou seja: como o vestibulando interpretou esses textos base? Como os relaciona na sua própria redação? E como se isso se dá diante da aparente cadeia discursiva no que se refere ao lugar de autoria? E por fim, quais os sentidos produzidos no próprio processo de inclusão? 2. Políticas lingüísticas: relação de poder e dominação A nossa reflexão está centrada na temática das políticas lingüísticas referente à população indígena e sua inclusão na universidade, mas antes de prosseguir é preciso tecer algumas considerações teóricas estabelecidas no campo da linguagem. Auroux (1992) trata o saber lingüístico enquanto saber que se produz sobre a linguagem humana “seja a linguagem humana, tal como ela se realizou na diversidade das línguas; saberes se constituíram a seu respeito; este é o nosso objeto” (p.13). Nesse sentido, Auroux desenvolve e coordena um projeto de pesquisa, na Universidade de Paris VII, centrado na questão da história do conhecimento metalingüístico em uma perspectiva abrangente inscrita na História da Ciência. Esse projeto de sustentadas bases metodológicas é articulado com pesquisadores de outros países, os quais produzem conhecimento concentrado em trabalhos que tocam a questão da história das teorias lingüísticas e, cujos pressupostos serviram de base para a constituição do projeto brasileiro. Articulado a esse projeto de Auroux, o projeto brasileiro coordenado por Orlandi traz uma proposta de pesquisa diferenciada, centrada na história da constituição de um saber metalingüístico articulada com a história da formação da língua nacional, através de um estudo discursivo. Nesse sentido, a particularidade da constituição do portuguêsbrasileiro como língua nacional reside “no modo de pensar e trabalhar a questão da língua nos países de colonização”, cuja característica se sustenta na origem de uma língua imposta, o que difere, singularmente, no modo como estas questões são 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 consideradas no continente europeu (Orlandi, 2001:7). Seguindo esse entendimento, trataremos da questão concernente à política lingüística de acordo com alguns estudos desenvolvidos no projeto História da Idéias Lingüísticas (HIL) no Brasil. A questão da política lingüística é guiada pelo princípio ético a partir da distinção de três posições: da dominação como valor, diversidade como valor e da unidade como valor (conf. Orlandi, 1998). Na primeira posição, as políticas são regidas como resultado das relações entre: povos, nações e estados por meio da dominação da língua do conquistador sobre a do subjugado, ou seja, como razões de Estado, já que a nossa língua foi imposta pelo colonizador português, de tal modo que sofremos um certo tipo de colonialismo cultural e intelectual. Já a segunda posição, que destaca como valor a diversidade concreta das línguas, contraditoriamente, interfere na última (unidade como valor), pois, pela história da nossa sociedade “o princípio ético está justamente não em apagar, mas em se trabalhar a contradição unidade/diversidade” (idem, p.12). Tal contradição mostra a língua nacional como um dos elementos de definição da unidade nacional, específico do Brasil, na medida em que ela pode caracterizar o Brasil para distinguir de Portugal. Porém, quando se trata de característica do Brasil, as variações (indigenismos, africanismos e provincianismos) surgem como diferenças “domesticadas”. Conforme Orlandi (idem:11), “É preciso então acentuar o fato de que a constituição de uma língua nacional trabalha de modo específico a relação entre as línguas indígenas e as línguas européias na situação de colonização”. Devemos considerar ainda, que antes do contato com a civilização, no período anterior ao descobrimento, havia no Brasil aproximadamente mais de mil línguas indígenas (Rodrigues, 1993). Num processo contínuo de exterminação, aos poucos elas foram desaparecendo e hoje restam apenas cerca de cento e oitenta línguas, muitas delas ainda ameaçadas de extinção. Uma das causas que influenciaram nesse processo de extinção teve início em 1549 com a chegada dos jesuítas, através de um trabalho de descrição da língua tupi (falada pelos habitantes da costa). Essa foi a primeira implantação de uma política lingüística no Brasil, já que os missionários utilizavam a língua tanto para propagar a religião dentro do ambiente indígena, como para disciplinar a língua tupi. Ao reduzir a língua tupi como verdadeiro exemplo das línguas indígenas do Brasil trouxe algumas conseqüências históricas (Nunes: 1996, Orlandi:1998). Não apenas contribuiu para uma homogeneização lingüística, mas também para o apagamento de outras línguas que se faziam presente na época colonial. Conforme Nunes (1996), outra política lingüística que afetou o panorama lingüístico indígena se deu com a expulsão dos jesuítas em 1759 pelo Marques de Pombal, cuja política instituiu não apenas a obrigatoriedade do ensino do português, mas também a proibição do ensino das línguas indígenas. Essa imposição, também, contribuiu para a anulação das línguas indígenas. Por sua vez, também, o tupinógrafo ao estudar e, até mesmo, ao aperfeiçoar a língua indígena, o faz orientado pelo ideal da gramática ocidental, conscientemente ou não (conf. Orlandi e Souza, 1988). De modo que, tanto o missionário quanto o estudioso constroem a língua como deve ser (como acreditam), orientados pelo ideal da gramática portuguesa que por sua vez segue a latina. Essa língua ideal considerada por Orlandi e Souza (1988) como língua imaginária diz respeito às línguas-sistemas, normatizadas, a qual se opõe à língua fluida. Esta última é a língua que foge desses sistemas e fórmulas, ou seja, é a língua constituída 732 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 historicamente de movimento e fartura. Na relação entre essas duas línguas (imaginária e fluida), não se admite nem “a influência mais substancial das línguas indígenas no português, porque não se considera a língua em movimento, também não se quer reconhecer a influência do português sobre as línguas indígenas, no caso sobre o tupi jesuítico” (idem, p.35). Apesar do longo período em que a língua indígena foi estudada e ensinada pelos jesuítas, aproximadamente dois séculos, a relação de contato entre a língua indígena e a língua portuguesa restringe-se ao nível de vocábulo para afirmar que o contato não foi significativo. Verifica-se também a negação do status de empréstimo, enquanto fato científico utilizado, neste caso, para descaracterizar a língua indígena como língua. Língua que acaba sendo “Atomizada, restrita e descaracterizada” e, que não apresenta realidade nem cultural, nem histórica na relação de contato, mas não se pode restringir a língua indígena como mero elemento isolado, imóvel e incapaz de influir em processos e formas das línguas (Orlandi e Souza, 1988). No que diz respeito à língua Kaingang, uma estimativa preocupante é a diminuição de falantes dessa língua nativa. Segundo Juracilda Veiga & Wilmar da Rocha D’Angelis (2000), alguns anos atrás o percentual de kaingang que falavam a língua indígena era de 70%. Estima-se que este número caiu para 50% aproximadamente. Este fato decorre tanto de pressões discriminatórias como “de políticas sistemáticas para que os índios deixassem de falar a língua materna” (idem: 312). Tal política educacional na escola primária da não manutenção da língua indígena perdurou até meados da década de sessenta, e nos anos setenta passou a ser bilíngüe, mas apenas como língua de alfabetização, com o pretexto de eficácia pedagógica. Na década de noventa, desde a proposta instituída pelo MEC-LDB (1993), passa a existir um movimento que altera esse panorama: entra em discussão nos programas educacionais e nas pedagogias oficiais o tema multiculturalismo. Sob esse mesmo tema, em 1998, o MEC publicou o Referencial Curricular Nacional para a Escola Indígena (RCNEI). Segundo esse Referencial: O RCNEI constitui-se em proposta formativa que pretende garantir os pontos comuns, encontrados em meio à desejada diversidade e multiplicidade das culturas indígenas, tal como estão garantidos nos princípios legais do direito à cidadania e à diferença, traduzidos numa proposta pedagógica de ensino-aprendizagem que promova uma educação intercultural e bilíngüe, assegurando a interação e parceria. Seu objetivo maior é oferecer subsídios e orientações para a elaboração de programas de educação escolar que melhor atendam aos anseios e interesses das comunidades indígenas (negritos nossos). No que diz respeito a essa educação intercultural e bilíngüe preconizada pelo RCNE, é possível notar uma expressiva modificação no sentido de considerar e incluir a participação efetiva dos povos indígenas na nossa sociedade. Essa mudança está relacionada à conjuntura histórica do processo de redemocratização do ensino no Brasil, pois, essa conjuntura, em boa medida, influenciou a adoção de políticas públicas de ação afirmativa, as quais buscam combater as exclusões sociais, étnicas e raciais. A inclusão da diversidade nas universidades brasileiras é uma delas, e o fato de incluir o índio na universidade parte do pressuposto de ele ser excluído. 733 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 3. Política institucional de inclusão da diversidade: vestibular indígena No Paraná, sob a forma de política governamental conforme a determinação da lei estadual nº 13134 /2001 e o termo de convênio nº 502/2004, foi instituída a abertura de vagas suplementares nas universidades estaduais do Paraná. As vagas são preenchidas por meio de um processo seletivo: um vestibular diferenciado, de caráter unificado, o qual é realizado anualmente em conjunto com as universidades envolvidas2. A designação3 I Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná caracteriza a especificidade deste vestibular: serem disputadas entre os estudantes indígenas “do” Paraná. E nesse primeiro4 vestibular, realizado em 2002 na UNICENTRO, foram oferecidas quinze vagas (três em cada universidade), e esse número passa para dezoito a partir da adesão da UNESPAR. Em 2004, com a criação da Comissão Universidade para Índios (CUIA) o vestibular passa a ser organizado pelos membros dessa comissão, a qual é formada por representantes de cada universidade participante. Além disso, a comissão também tem se ocupado das questões que envolvem os indígenas já inseridos nas universidades, em razão da demanda apresentada no funcionamento do próprio processo de inclusão, pois, nos primeiros anos em que acadêmicos indígenas passaram a freqüentar a universidade já foi constatado inúmeras dificuldades quanto à permanência dos mesmos: houve desistências de alguns acadêmicos, ainda há alunos inclinados a desistir e outros em dependência de algumas matérias com possibilidade de perder a vaga conquistada. Daí a compreensão de que apenas criar vagas e receber os índios nas universidades não bastava. De fato, havia necessidade de se criar mecanismos que pudessem garantir não só permanência desses acadêmicos, mas também condições para que os mesmos pudessem concluir os seus cursos. A CUIA, desde então, tem trabalhado no sentido de aperfeiçoar o próprio processo de inclusão. Alguns resultados desse trabalho foram: a implantação de projetos de ensino com monitorias específicas destinadas aos acadêmicos indígenas, e a obtenção, junto ao governo federal, de um auxílio moradia e bolsas de estudo para os mesmos. A partir de 2006, com a adesão da UFPR/Curitiba há uma mudança significativa na nomeação deste vestibular que passa a ser designada: Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná. Se antes “do Paraná” determinava e qualificava os povos indígenas desse estado, com a substituição “no Paraná” desaparece a especificação em relação aos povos indígenas (específico do Paraná). Assim, “dos Povos Indígenas” passa a qualificar o vestibular; e por sua vez, “no Paraná” passa a evidenciar o espaço de efetivação do vestibular. Essa substituição lexical de “do” por “no” foi necessária, pelo fato de a UFPR abrir cinco vagas só para os indígenas do Brasil (os do PR concorrem apenas às vagas do próprio estado). Desde então, participam desse vestibular não apenas indígenas paranaenses, mas também indígenas de todos os estados brasileiros, e a cada ano tem aumentado significativamente o número de participantes. No vestibular de 2006, um grande avanço no sentido de contemplar a tradição indígena foi a implantação da prova oral como parte da avaliação de língua portuguesa. Essa inovação colaborou, também, para a mudança na nomeação do último vestibular realizado em dezembro de 2007 na UNICENTRO/Guarapuava, o qual passa a ser denominado: Vestibular Específico Interinstitucional dos Povos Indígenas no Paraná. Ao introduzir os vocábulos “específico e interinstitucional” assinala-se a especificidade e o caráter unificado na própria nomeação desse vestibular. 734 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 É possível notar que, na medida em que vestibular foi adquirindo novas configurações, houve a necessidade de alterar também a própria designação, pois a anterior já não correspondia com a significação das novas mudanças. 4. Condições de produção das redações A análise dos textos da prova de redação se inicia com a observação das suas superfícies textuais pensando na relação do tema proposto pela instituição com a escrita das redações. Para tanto, é importante ressaltar que, além da apresentação do tema (Qual a importância do conhecimento construído na universidade para as sociedades indígenas brasileiras hoje?), o comando da prova traz também os seguintes textos e enxertos: 1)A Educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto; 2) Fraseador, de Manoel de Barros; 3) Uma estranha realidade, de Carlos Castaneda; e 4) um enxerto publicado pela Revista Eletrônica Cult/2004, como material de base para os vestibulandos, os quais, conforme as instruções servem de apoio para a Prova de Redação do IV Vestibular Indígena/2005. Estas são algumas das condições de produção da redação. Em vista disso, a nossa pergunta é: as redações apresentam marcas materializadas que possam indicar a utilização dos textos de apoio? Observando as redações foi possível notar a rara utilização destes textos de apoio e, quando utilizadas não foi possível apontar traços da heterogeneidade marcada quanto à utilização dos mesmos, conforme o enxerto da primeira redação5: E foram construido e sem organizado para que os índios tivessem apoio e foi ai que descobriram que os povos indígenas tem muito valor. Mas tão pouco descobriu o valor dos povos indígenas Pois os indios são educado e não abrem mão do conhecimento tem educação pela pedra e freqüenta até chegar au fim6. Na educação no ensino temos apoio e fomos apoiado pela universidade. Neste enxerto o vestibulando vale-se de fragmentos do primeiro texto de apoio o poema A educação pela pedra de João Cabral de Melo Neto, conforme os dois primeiros versos da seguinte estrofe: Uma educação pela pedra: por lições Para aprender da pedra, freqüenta-lá; (...) Lições da pedra (de fora para dentro, (cartilha muda), para quem soletrá-lá. Um outro exemplo da utilização do texto fonte é a segunda redação: A cada dez anos, tive felicidade a cada dez anos tive felicadade mas os outros não. algum que tivemos felicidade. são aqueles que já concluíram o que eles querem nos. não somos iguais do jeito das pessoas que nós querem fazer da vida de cada um ums que não concluir tudo o que a gente quer fazer da vida de cada um das pessoas. 735 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Mas vida e tudo para crianças e jovens e adultos essas felicidade é tudo que a gente faz na vida de cada um ninguêm manda sua vida mas a vida das pessoas são aquelas que sempre andando ou caminhando nos matos igual dos animais nos não são aqueles, nós somos gente que vida. Apontamos na segunda redação um gesto do autor na utilização do texto Uma estranha realidade de Carlos Castaneda na produção de sua redação, já que o mesmo inicia deste modo: “Há dez anos tive a felicidade de conhecer um índio yaki do Nordeste do México (...)”, mas parece que este vestibulando não consegue desenvolver sua redação, e ainda, ao colocar como título de sua redação A cada dez anos, tive felicidade parece produzir um gesto de apropriação. É preciso, então, considerar que a prova redação do vestibular indígena tem o fim de examinar o grau de competência escrita do candidato à vaga na universidade, por meio de uma banca examinadora que funciona, conforme a denominação de Foucault, como uma “polícia discursiva” que controla e avalia se o candidato produz um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. Além disso, é importante que o produtor do texto atente para algumas regras básicas: determinar um título (criativo), não fugir do tema, onde houver erro é aconselhado a não rasurar, mas sim colocar entre vírgulas e especificar com “digo”. Esses são alguns dos limites que serão policiados pela instituição que controla a produção textual dos vestibulandos. Mas se o vestibulando não segue determinado “padrão”, conseqüentemente será excluído, pois, a nossa sociedade cultua e valoriza uma certa imagem do texto ideal, da mesma maneira que o faz em relação à língua, pensando na língua ideal. É possível perceber neste processo de inclusão um movimento contraditório que constitui o próprio processo. Há um princípio controlador (institucional) que age, exclui toda vez que o vestibulando não segue as regras. Conforme Foucault (1996: 42), um dos procedimentos de sujeição do discurso é o ritual da palavra, cuja prática determina a qualificação exigida dos indivíduos falantes, concomitantemente, “propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos”, isto é, se de um lado, os falantes devem “ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados” no jogo dialógico; por outro, o ritual define “os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso” e, ainda fixa a suposta ou imposta eficácia das palavras, tanto no seu efeito (a quem se dirige) como nos seus limites (no valor de coerção). Pelo que foi possível observar nestas duas redações que utilizam, de certa forma, os textos de apoio, não estabelecem uma relação dialógica com os textos fonte a ponto de exercerem a função de autoria na produção de seus textos. No entanto, ao tomar a textualidade das redações enquanto lugar de materialização do discurso, os vestígios deixados através dos gestos de interpretação dos vestibulandos dão abertura para a significação, ou seja, este silêncio7 em relação aos textos de apoio também significa. Se uma das particularidades do dispositivo de análise se assenta na relação do dito com o não dito, então, buscamos perceber que aquilo que o sujeito não diz, do mesmo modo, faz sentido para Análise de Discurso tanto quanto aquilo que é dito, ou seja, essa relação produz determinados efeitos de sentidos. Em vista disso: Como os vestibulandos interpretaram os textos fonte? Ou qual foi o gesto de interpretação deles frente aos textos de apoio? Tais textos cumpriram sua função ou não? Se não qual é a causa? 736 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Como subproduto desse silêncio há também o plágio que se dá no nível de autoria, pois quem plagia retoma a voz que foi calada por ele mesmo, ou seja, o plagiador toma o lugar do autor repetindo e apagando, interferindo no movimento histórico (trajetória dos sentidos), negando o percurso já feito, pois ele esquece a heterogeneidade do dizer (Orlandi,1996). Isso pode ser observado, no conjunto das redações desse vestibular indígena, ao confrontar o tema-pergunta (Qual a importância do conhecimento construído na universidade para as sociedades indígenas brasileiras hoje?) com os títulos das redações produzidas. É possível notar que em seis redações este tema foi transcrito integralmente como título, num gesto de apropriação, sem que apresente a heterogeneidade marcada (nenhuma marcação explícita); sete retomaram quase todo o enunciado (com apenas um ou dois vocábulos a menos que o original). Assim os vestibulandos que utilizaram o tema proposto do comando como título de suas produções textuais, na forma de repetição (apropriação), negando integral ou parcialmente o percurso já traçado, podemos dizer que tais vestibulandos plagiaram. 5. Algumas conclusões O processo seletivo do vestibular indígena trabalha de modo específico a relação inclusão/exclusão na situação da prova de redação, pois esta prova segue regras que são determinadas pelas instituições envolvidas, segundo a imagem do texto ideal concebida pelo branco. É possível notar que a prática política desse processo que objetiva a inclusão, ao mesmo tempo, produz o efeito de exclusão. Se por um lado, o vestibulando segue tais regras, então, neste caso, podemos dizer que há dominação, pois essas superfícies discursivas são determinadas por condições de produção que vão estabilizar e homogeneizar os discursos para que os mesmos se tornem aceitáveis, em conformidade com os padrões da instituição, o que não deixa de ser “um princípio de controle da produção do discurso” (Foucault, 1996). Por outro lado, na medida em que o vestibulando não segue determinadas regras, ele pode ser excluído no próprio processo que inclui. Esse movimento contraditório que constitui o vestibular tem o sentido de controlar e limitar o acesso à universidade, ou seja, não há possibilidade incluir todos os indígenas na universidade, mesmo porque as vagas são poucas, em comparação com o número de inscritos (no último vestibular foram inscritos mais de cem). Notas: 1 De acordo com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), foi convencionado que os nomes de povos indígenas não fazem concordância de número. 2 Universidades estaduais paranaenses: de Londrina (UEL) de Maringá (UEM), de Ponta Grossa (UEPG), do Oeste do Paraná (UNIOESTE), do Centro-Oeste (UNICENTRO), do Paraná (UNESPAR) e a partir de 2006, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) adere a essa política de inclusão. 3 Tratamos a questão da designação enquanto significação de um nome, próprio das relações que acontecem na e pela linguagem, ou seja “enquanto uma relação lingüística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história” (Conf. Guimarães, 2002:9). 4 A segunda edição (II) foi realizada em 2003 na UEL, a III em 2004 na UNIOESTE; a IV em 2005 na UEM/Maringá, a V em 2006 na UEPG e a VI edição foi realizada na UFPR. 737 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 5 Todas as redações que compõem nosso corpus foram transcritas precisamente como foram produzidas. As expressões em negrito nas redações são nossas. 7 Conforme Orlandi (1996), isto se deve ao aspecto histórico da forma-sujeito que pode ser compreendido em sua função de autoria , este silenciamento é um dos lugares em que podemos discorrer acerca da incompletude da linguagem. Neste espaço da incompletude, tomado como lugar do possível, inscrevemos o silêncio e a interpretação como movimento dos sentidos e dos sujeitos. 6 Referências bibliográficas AUROUX, S. (1992) A Revolução Tecnológica da Gramatização. Campinas:Unicamp. FOUCAULT, M. (1996) A Ordem do Discurso. Tradução: de Laura Fraga de Almeida Sampaio -3ª. Ed. 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