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REVISTA Araken Vaz Galvão Claudia Alves Demian Melo Edina Rautenberg Fabiano Godinho Faria Helen Ortiz Jussaramar da Silva Mário Maestri Paula Schaller Raquel Varela Romulo Costa Mattos Waldir José Rampinelli Ano 6 - Edição Nº 10 Novembro 2010 - R$ 15,00 Militares e Luta de Classes Revista História & Luta de Classes Nº 10 – Novembro de 2010 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO............................................................................................................................................ 5 DOSSIÊ MILITARES E LUTA DE CLASSES Vida, Luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares Mário Maestri e Helen Ortiz................................................................................................................................7 Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército Claudia Alves....................................................................................................................................................16 O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República Romulo Costa Mattos.......................................................................................................................................23 Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart Fabiano Godinho Faria.....................................................................................................................................29 A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa Demian Melo....................................................................................................................................................36 A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) Edina Rautenberg............................................................................................................................................. 44 As AESI’s de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira Jussaramar da Silva...........................................................................................................................................51 Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75) Raquel Varela....................................................................................................................................................57 DEPOIMENTO Brizola, os Sargentos e a Luta Armada Araken Vaz Galvão...........................................................................................................................................64 ARTIGO Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões Paula Schaller...................................................................................................................................................69 RESENHA Los Argentinos Somos Derechos y Humanos Waldir José Rampinelli.....................................................................................................................................75 NORMAS PARA AUTORES...........................................................................................................................78 Organizadores gerais deste número: Felipe Demier (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Renato Lemos (UFRJ). Editor: Gilberto Calil (Unioeste). Comissão Editorial: Danilo Martuscelli (SP), Enrique Serra Padros (RS), Gelsom Rozentino de Almeida (RJ), Gilberto Calil (PR), Igor Gomes Santos (BA), Kênia Miranda (RJ), Lorene Figueiredo (MG), Lúcio Flávio de Almeida (SP), Virgínia Fontes (RJ). Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Afonso Alencastro (UFSJ), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (UFF), Angélica Lovatto (UNESP), Antonio Cláudio Rabello (UNIR), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Cláudia Trindade (UFF), Danilo Martuscelli (UFFS), David Maciel (UFG); Demian Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (UFRJ), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UFF), Gabriela Rodrigues (RS), Gelsom Rozentino (UERJ), Gerson Fraga (UFFS), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Hélio Rodrigues (IESB/CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), Jairo Santiago, Joana El-Jaick Andrade (USP), João Raimundo Araújo (FFSD), José Pedro Cabrera (UNT), José Rodrigues (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Larissa Costard (UFF), Leandro Galastri (PUCCAMP), Lorene Figueiredo de Oliveira (UFJF), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luis Fernando Guimarães Zen (UNIOESTE) Luiz Bernardo Pericás (FLACSO), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marcos Smaniotto (UNIOESTE), Maria José Acedo Del´Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Silva (UDESC), Nara Machado (PUCRS), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP e NEILS), Paulo Villaça (UFF), Paulo Zarth (UFFS/UNIJUÍ), Pedro Marinho (MAST), Rafael Caruccio (RS), Renata Gonçalves (UEL), Renato Della Vecchia (UCPEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo Gama da Costa (FFSD), Rômulo Costa Mattos (USS), Sarah Iurkiv Ribeiro (UNIOESTE), Selma Martins Duarte (PR), Sérgio Lessa (UFAL), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Tarcísio Carvalho (Pedro II), Teones Pimenta de França (FSSSL) Theo Piñeiro (UFF), Tiago Bernardon (UEPB), Valério Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (CEFET-RJ). Próximos Números: Violência e Criminalização. Envio de contribuições encerrado; Revolução e Contra-Revolução. Envio de contribuições até 30.03.2011; Educação e Ensino de História. Envio de contribuições até 30.09.2011. Distribuição: [email protected]. Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagem da Capa: 1. Cartaz da Confederação Nacional dos Trabalhadores, 1936, Guerra Civil Espanhola; 2. Revolta dos sargentos; 3. Repressão no Chile logo após o golpe de 1973; 4. Cartaz produzido pelos aparelhos repressivos, Brasil. Revisão e Edição: Gilberto Calil. Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45) 3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PR. Foram impressos 1.000 exemplares em Novembro de 2010. APRESENTAÇÃO 5 Militares e Luta de Classes O exame sistemático da historiografia relativa ao campo temático militares-política sugere a persistência de um modelo analítico cuja longevidade e capacidade de influenciar pesquisas o eleva à condição de verdadeiro paradigma. Subjacente a ele, há uma concepção ideal de sociedade, identificada com o modelo liberal que serviu de base ao Estado moderno. Nele, a função atribuída às instituições militares supõe que a sua participação política deve fazer-se de maneira subordinada ao aparato político estatal e dentro da legalidade estabelecida. Desta maneira, a ação política dos elementos militares é apreendida, sempre, por referência à ação política dos elementos não militares, os civis, portanto como “relações militares-civis”. Mais do que um preciosismo, a crítica da expressão “relações militares-civis” sugere um paradigma/programa de pesquisa alternativo. Trata-se de superar a imprecisão dos seus termos. De que se fala? Do relacionamento entre gente fardada e paisana? Sim, porque parte dos funcionários da área militar é paisana, exercendo, no entanto, função política comum, enquanto funcionário do Estado. De que militares se fala? Das distinções recíprocas criadas por civis e militares? Até que ponto elas contribuem para a determinação de atitudes políticas? Neste dossiê, História e Luta de Classes apresenta análises da inserção do elemento militar em processos políticos da perspectiva dos interesses sociais em conflito. Assim, a historicidade do tema será definida por sua conexão estrutural com a dinâmica da sociedade de classes, que dá sentido lógico à ação das categorias sociais ligadas ao Estado, como os militares. O dossiê é constituído por oito artigos e um depoimento. O artigo Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares apresenta breve resumo biográfico de uma das mais destacadas e pouco conhecidas lideranças do movimento dos sargentos anti-golpistas e revolucionários, aprisionado e morto, pela repressão policial-militar em 1966, no Rio Grande do Sul. Com forte repercussão na mídia e entre a população sulina, o assassinato de Manoel Raimundo Soares ficou conhecido como "o caso das mãos amarradas. O artigo de Cláudia Alves − Exército e república: aspectos da liderança de Benjamin Constant – discute o papel de segmentos da intelectualidade militar na derrubada da monarquia no Brasil, tomando como objeto as ideias de Benjamin Constant, militar e professor que seria entronizado como “Fundador” no panteão republicano, que analisa de acordo com as reflexões do pensador italiano Antônio Gramsci. Já artigo de Rômulo Costa Mattos – Favelas e militares de baixa patente na Primeira República – tem o foco na base da pirâmide castrense, isto é, militares subalternos que se encontraram, já na primeira década republicana, entre os primeiros habitantes de favelas no Rio de Janeiro, discutindo que identidade lhes era conferida pela grande imprensa da capital: defensores da pátria ou membros das “classes perigosas”? Os textos de Fabiano Faria e Demian Melo discutem, sob diferentes aspectos, as estratégias constituídas pelo governo de João Goulart para evitar ou enfrentar um Golpe de Estado. O primeiro – Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart -, analisa a constituição do chamado “dispositivo militar” do governo João Goulart, à luz da discussão sobre o papel dos militares na política, avaliando as contradições e debilidades da estratégia militar de Jango. O segundo – A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta – enfoca a organização sindical janguista e os limites de sua relação com os militares legalistas, marcada pela desconfiança destes em relação à organização autônoma dos trabalhadores. O artigo de Edina Rautemberg A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) discute o tratamento dado pela revista Veja às organizações da esquerda armada, evidenciando sua intervenção política voltada à estigmatização e combate aos grupos guerrilheiros, analisando criticamente suas estratégias discursivas e em sua ação pedagógica antipopular. O texto As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira, de Jussaramar da Silva, parte da documentação das Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI's) da Itaipu Binacional para refletir sobre os mecanismos de vigilância e controle desenvolvidos pelos organismos de informação em Foz do Iguaçu e em toda região da Tríplice Fronteira. 6 A historiadora portuguesa Raquel Varela discute os impasses da Revolução dos Cravos no texto Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75), apontando os limites e contradições da ação política do Movimento das Forças Armadas (MFA) no período pós-revolucionário e sua intervenção visando frear a Revolução Social, pôr fim à dualidade de poderes e restabelecer a ordem social. O texto-depoimento do Sargento Araken Vaz Galvão relata a articulação dos sargentos revolucionários após o Golpe de 1964 e sua relação com Leonel Brizola, bem como suas iniciativas voltadas à preparação de um levante armado e condições que inviabilizaram sua concretização Para além do dossiê, a revista traz ainda um artigo e uma resenha. O artigo Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões, de Paula Schaller, propõe uma reflexão sobre o processo político argentino recente a partir do conceito gramsciano de crise orgânica, demonstrando como uma conjunção de crise econômica, política e social produz uma ruptura da hegemonia de um grupo social e permite a emergência de um novo bloco social. A resenha de Waldir José Rampinelli, Los Argentinos Somos Derechos y Humanos, parte da abordagem de uma obra fundamental sobre a ditadura argentina para discutir as estratégias de terror e dominação e o conteúdo antipopular e anticomunista daquela ditadura. História & Luta de Classes chega à sua décima edição, em seu sexto ano de publicação. O trabalho coletivo de seus associados tem permitido manter periodicidade regular e rigor acadêmico, nos termos do perfil anunciado já seu primeiro número, quando propunha “servir de canal para reflexão teórica, particularmente para aquela orientada pelos ventos constantemente renovados do marxismo” Os objetivos então enunciados permanecem atuais: Em tempos de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências Sociais, a REVISTA História & Luta de Classes procura servir como ferramenta de intervenção daqueles historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir e se opõem a essa dominação. As diferentes manifestações dos conflitos sociais ao longo do tempo; a história social do mundo do trabalho; as propostas e processos revolucionários; os temas políticos e as contradições econômico-sociais atuais e passadas; a cultura vista por uma perspectiva materialista são alguns dos temas e áreas de estudo que serão abordados nos artigos publicados por REVISTA História & Luta de Classes. Hoje a crise geral do capitalismo e seus efeitos perversos não podem mais ser mascarados; os sinais de retomada das lutas da classe trabalhadora se multiplicam; e constituem-se processos sociais que, ao menos parcialmente, desafiam ou confrontam a ordem vigente. Ainda assim, a barbarização das relações sociais segue em marcha, junto às formas de pensamento irracionalistas que a sustentam. Permanece urgente e necessária, portanto, a constituição de instrumentos de reflexão, crítica e propagação de visões e perspectivas que correspondam aos interesses históricos das classes trabalhadoras, ao enfrentamento da barbárie promovida pelo capitalismo e às perspectivas irracionalistas que ainda proliferam nas ciências humanas. História & Luta de Classes se constitui com esta perspectiva, produzida a partir do esforço coletivo e militante e sem se dobrar às imposições ranqueadoras e aos critérios produtivistas impostos por agências governamentais. Os dez dossiês e mais de uma centena de artigos, resenhas, depoimentos e traduções publicados constituem uma contribuição efetiva para a disseminação desta perspectiva, que se soma e se articula com diversas outras que vêm se constituindo neste período. Novembro de 2010 Gilberto Calil Editor Felipe Demier Renato Luis do Couto Neto e Lemos Mario José Maestri Filho Coordenadores do Dossiê História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 7 Vida, Luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares 1 Mário Maestri e Helen Ortiz2 N a cidade de Belém, norte brasileiro, em 15 de março de 1936, Etelvina Soares dos Santos pariu Manoel Raimundo, possivelmente em sua residência humilde. Como tantas outras mulheres paraenses fortes, criou o menino e seus dois irmãos, desejando-lhes um futuro melhor como trabalhadores dignos. Manoel Raimundo mostrou-se muito logo menino e jovem inteligente e de fibra. Após concluir o primário, cursou estudos técnicos, enquanto trabalhava em oficina mecânica. Em 1953, com apenas 17 anos, Manoel Raimundo abandonou a pacata Belém para morar com conhecidos na capital federal, então grande palco dos fortes confrontos políticos e sociais que dilaceravam o Brasil. Por se envolver neles, mais e mais, com a galhardia dos velhos guerreiros cabanos, o menino de dona Etelvina conheceria a morte, na luta por seus ideais, aos trinta anos, distante de sua terra natal, nas águas geladas do rio-estuário de Porto Alegre. Rápida Progressão Em 1955, meses após a comoção nacional causada pelo suicídio de Getúlio Vargas, Manoel Raimundo, com 19 anos, alistou-se no Exército, alcançando o posto de segundo sargento, após quatro promoções. Em setembro do mesmo ano, após namoro de apenas três meses, casou-se com a jovem Elisabeth Chalupp, mineira de origem humilde, criada por família estranha, trabalhando no RJ como operária industrial. Manoel Raimundo gostava de chamar a esposa de Betinha e Beta.3 Falta-nos ainda informação mais precisa sobre a precoce e destacada participação do jovem sargento paraense nos conflitos vividos pela sociedade e, junto com ela, pelas Forças Armadas, nesses anos em que o país foi fortemente tensionado por sucessivas iniciativas golpistas conservadoras, com destaque para a tentativa de 1 Versão resumida e atualizada do artigo “Por mais terras que eu percorra...Vida, luta e martírio do sargento Manoel Raimundo Soares” publicado pelos autores em Tribunal Federal da 4ª Região, Coordenadoria de Documentação (org.). O Direito na História: o caso das mãos amarradas. Porto Alegre: TRF da 4ª Região, 2008. p.177-200. 2 Mário Maestri, 62, é professor do Curso e do PPG em História da Universidade de Passo Fundo [[email protected]]; Helen Ortiz, 34, é doutoranda em História na PUCRS e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul em Porto Alegre [[email protected]]. 3 Cf. Entrevista de Elizabeth Chalupp, pela jornalista Tânia Faillace, Zero Hora, Porto alegre, 2.09.1966. deposição de Goulart, em 1961. Ensaio golpista derrotado que transformou o jovem governador sulino Leonel Brizola no principal líder nacionalista e grande referência para o movimento dos suboficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica.4 Desde o governo de Juscelino Kubitschek [19561961], Manoel Raimundo começou a despontar como militante de vanguarda da luta pela organização sindical e política dos suboficiais do Exército. O ex-sargento Araken Vaz Galvão assinala que, por voltas de 1958, Manoel exercia o que ele definiu como “liderança suave, relacionada com os problemas” dos sargentos discutidos no Clube da classe, transformando-se, logo, em um dos “principais fundadores” do “Movimento dos Sargentos”, assim batizado por ele.5 Por sua cultura, inteligência e decisão, Manoel Raimundo era referência entre seus companheiros de farda. O ex-subtenente pára-quedista do Exército Jelsi Rodrigues descreve-o como homem muito culto e sobremaneira corajoso. Araken Galvão, seu companheiro e particular amigo, lembra que era um “grande orador” e “neurótico por cultura”. Antes mesmo do golpe, interessava-se pela literatura marxista, lendo e divulgando Marx, Engels, Lênin.6 O Golpe de Estado de 1964 No mínimo desde 1963, Manoel Raimundo preocupava-se com a necessidade de organizar resistência ao golpe militar, que se aproximava, tendo procurado preparar as condições para resistência, na Serra do Mar, nas proximidades do RJ, possivelmente inspirado na experiência cubana. O que lhe ensejou inquérito no Exército, por desvio de armas e cooptação de sargentos.7 Devido à manifestação de sargentos do Exército, em 11 de maio de 1963, no Sindicato dos Comerciários, no centro do RJ, Manoel sofreu pena disciplinar e foi transferido, do RJ para Campo Grande, no MT, o mesmo ocorrendo com seus companheiros, promotores da 4 Cf. MARKUN, Paulo & HAMILTON, DUDA. 1961: que as armas não falem. São Paulo: SENAC, 2001. 5 Depoimento aos autores do ex-sargento Araken Vaz Galvão, através de e-mail, em 6 de maio de 2008; “Retrato de um sargento”, capítulo do livro inédito “O Sargento na História do Brasil”, de Araken Vaz Galvão, gentilmente cedido pelo autor. 6 COSTA, José Caldas da. Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura. São Paulo: Boitempo, 2007. pp. 26 e 67. 7 Id.ib. pp. 68. 8 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares reunião, do Comando Geral dos Sargentos [CGS], enviados para o mesmo estado e para outras destinações.8 Em 1964, as burguesias industrial e financeira nacionais romperam com o projeto nacionaldesenvolvimentista autônomo, para impor padrão de acumulação de capitais através de maior integração ao capital mundial; super-exploração do trabalho; orientação do consumo aos segmentos ricos nacionais e ao comércio mundial, etc. O golpe iniciou em MG, em 31 de março, chefiado por militar ex-integralista, com o apoio dos USA. Em Porto Alegre, Brizola tentou reviver a Legalidade, apoiado pelo comandante do III Exército, pela Brigada, pelos sub-oficiais do Exército e da Aeronáutica, por populares. Em 2 de abril, já na capital sulina, João Goulart negou-se a chefiar a resistência, permitindo que o golpismo se instalasse praticamente sem oposição. Goulart viajou para sua estância em São Borja e, dali, para o Uruguai. O PCB, única organização de esquerda com força sindical e popular, subordinara a oposição ao golpismo à direção de Goulart e a esquema militar organizado em torno de altos membros das forças golpistas.9 A imposição da ditadura sem resistência ensejou a maior derrota histórica que o mundo do trabalho e da democracia jamais viveu no Brasil, com gravíssimas conseqüências para o país, para a América Latina e para o mundo, que se mantém até hoje. Após o golpe, a alta oficialidade militar interveio nas associações sindicais e profissionais, no legislativo, no executivo e no judiciário; expurgaram, prenderam e torturaram opositores, que abandonaram comumente o país, quando puderam, sobretudo pelo Uruguai, onde se encontravam Goulart e Brizola, com as relações políticas e pessoais cortadas. A Sub-Oficialidade Nacionalista A frustração ensejada pela derrota sem resistência e o crescente descontentamento popular levaram a que sub-oficiais nacionalistas de esquerda das forças armadas, sobretudo do Exército e da Marinha, presos e reformados em grande número, tenham sido setor social que se disponibilizou prontamente para a luta anti-ditatorial direta, organizando-se em torno de Brizola, que seguia no Uruguai disposto a lutar pelas forças das armas pelo fim da ditadura. Manoel Raimundo teve a prisão decretada, em abril, e foi expulso do Exército, em junho de 1964. Para não ser preso e poder integrar-se à luta anti-ditatorial, apenas estourou o golpe, desertou seu quartel em Campo Grande, junto ao sargento Araken Galvão, também destacado no MT. Manoel e Araken viajaram para Juiz de Fora e, a seguir, para o RJ, de onde partiram, mais tarde, para o RS. Manoel Raimundo teria declarado à polícia que viajou para Porto Alegre, em janeiro de 1965, à procura de emprego, retornando ao RJ, em março. Em fins de setembro, teria voltado ao Sul, sob promessa de trabalho, feita pelo sub-oficial Leony Lopes, que lhe teria igualmente apresentado Edu Rodrigues, civil pretensamente oposicionista mas, nos fatos, informante da polícia, como veremos.10 Mais de vinte sargentos teriam viajado, como Manoel Raimundo, do RJ para Porto Alegre, para integrar-se à resistência. Fato mais do que compreensível, pois desde 1964, o RS tornara-se a principal via para alcançar ou manter contatos com o Uruguai, então centro anti-ditatorial.11 A Primeira Resposta Armada à Ditadura Foi precisamente do Uruguai, em março de 1965, que o coronel do Exército Jéferson Cardin de Alencar Osório e o sargento da Brigada Militar Alberi Vieira dos Santos ingressaram no RS para organizar coluna de pouco mais de vinte homens. O grupo armado, após tomar a cidade sulina de Três Passos, em 25 de março, dirigiu-se ao oeste do Paraná, onde, no dia 27, foi disperso, após combate desigual com as forças da ditadura. No combate morreu sargento das forças repressivas. O objetivo da coluna do Movimento Nacionalista Revolucionário [MNR], ligado a Brizola, era sublevar militares oposicionistas, no RS e, a seguir, no Brasil.12 Em Porto Alegre, desde começos de 1965, Manoel Raimundo, companheiros seus do CGS e outros resistentes locais participaram ativamente da organização de dois levantes de quartéis da Brigada e do Exército da capital. O primeiro contaria com “entre quarenta e setenta pessoas prontas para fazer a insurreição”, “espalhadas por aparelhos em Porto Alegre”, e mais outros suboficiais que chegariam do RJ. O plano teria desandado devido à prisão de Araken Galvão.13 Em fevereiro-março de 1966, após o fracasso da chamada “Guerrilha de Três Passos”, um segundo projeto de levante em Porto Alegre não prosperou, devido à denúncia do plano, com a prisão de oficiais, suboficiais, trabalhadores, estudantes, etc. O fracasso do segundo levante fortaleceu a proposta da organização da luta antiditatorial através de focos armados rurais, desejada pelos suboficiais do Exército e Marinha, à qual Brizola resistia.14 A Queda de Manoel Raimundo Na tarde de 11 de março, Manoel Raimundo foi preso ao entregar panfletos, possivelmente por ele 10 Zero Hora, Porto Alegre, 05.09.1966. Cf. VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. 3 ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1981 p.18. 12 Cf. CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Arte & Ofícios, 1977. pp. 99 et seq. 13 Cf. COSTA, Ob. cit. pp. 118 et seq. 14 Id.ib. p. 123. 11 8 Id.ib. pp. 68 e 72 Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil. 1961-1964. 7 ed. rev. e ampl. Brasília: EdiUnB; Rio de Janeiro, Revan, 2001. 9 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 9 escritos, com os dizeres “Abaixo a ditadura militar”, contra a chegada, naquele dia, a Porto Alegre, do generalditador Castelo Branco, a Edu Rodrigues, um civil acagüete. Na distribuição dos manifestos estariam envolvidos funcionários da Carris, empresa pública com antiga tradição de luta sindical e política.15 Conhecido pelo serviço de informação do Exército como uma das principais lideranças do movimento dos sargentos e possivelmente por seu envolvimento nos movimentos de resistência em Porto Alegre e no RS, Manuel era uma presa valiosa para a repressão. A documentação conhecida assinala que, quando da sua prisão, Manoel militava em pequeno grupo reunindo sobretudo remanescentes da “Guerrilha de Três Passos”, denominado Movimento Revolucionário 26 de Março [MR-26]. Praticamente toda a escassa informação disponível publicada sobre Manoel reafirma essa militância. Jelsi Rodrigues, companheiro de Manoel Raimundo no RJ e em Porto Alegre, lembra que, naquele então, os suboficiais resistentes reconheciam-se sobretudo como membros do CGS. Quando muito, Manoel se compreenderia como parte do MNR, organizado sobretudo pelos suboficiais do Exército e da Marinha, em associação com Brizola e seguidores. Jelsi Rodrigues sequer tem conhecimento do MR-26.16 Araken Galvão, com participação destacada na primeira tentativa de levante em Porto Alegre e um dos companheiros mais próximos de Manoel Raimundo, declarou: “Ao que eu saiba, Soares nunca militou no MR-26. Aliás, nem sei que movimento foi esse [...].”17 Companheiros de Farda Manoel Raimundo foi preso por dois militares à paisana, da 6ª Cia. da Polícia do Exército [PE], Carlos Otto Bock e Nilton Aguaidas, sem qualquer determinação judiciária, ao arrepio das próprias leis então reconhecidas pela ditadura, devido à denúncia do informante Edu Rodrigues, como visto. A ordem de prisão teria partido de Darci Gomes Prange, capitão da referida companhia. Era o início do longo calvário do jovem paraense, nas mãos dos torcionários do Exército e da Polícia Política. Manoel foi levado à sede da PE, onde, sem delongas, sofreu as primeiras sevícias infligidas pelo sargento Pedroso e pelos tenentes Nunes e Glênio Carvalho de Sousa. A seguir, foi transferido para o mais experiente Departamento de Ordem Política e Social [DOPS], no Palácio de Polícia, para ser duramente torturado e espancado, por longos dias, agora pelos delegados Enir Barcelos da Silva, Itamar Fernandes de Souza, José Morsch, entre outros. 15 Depoimento aos autores do ex-subtenente Jelsi Rodrigues Correa colhido por telefone em 04 de maio de 2008; Depoimento aos autores do ex-sargento Araken Vaz Galvão, através de e-mail, em 06 de maio de 2008; Zero Hora, Porto Alegre, 03 e 05.09.1966; COSTA, Ob.cit. p. 142. 16 Depoimento aos autores do ex-subtenente Jelsi Rodrigues Correa colhido por telefone em 04 de maio de 2008. 17 Depoimento aos autores do ex-sargento Araken Vaz Galvão, através de e-mail, em 06 de maio de 2008. O ódio acumulado por oficiais golpistas e direitistas contra o destacado líder do CGS e sua importância na resistência anti-ditatorial talvez expliquem a violência com que foi interrogado. Sem qualquer resultado. Ainda hoje, os companheiros de Manoel Raimundo lembram-se emocionados da decisão com que o jovem enfrentou o interrogatório, sem jamais dobrar-se, não revelando sequer um nome de companheiros e depósitos de armamentos, prontamente transferidos, após a sua queda.18 Depoimentos Incontornáveis São precisas, abundantes e concordantes as declarações, sobretudo de outros presos políticos, sobre os maus-tratos sofridos pelo jovem paraense, na semana em que permaneceu no DOPS. Em depoimento publicado no Jornal Zero Hora, de 17 de setembro de 1966, Antônio Giudice, detido no DOPS, de 10 a 15 de março de 1966, relatou “que conversou com Manoel Raimundo, vendo os hematomas e cicatrizes” “das torturas que vinha sofrendo”, pois “era diariamente, torturado, colocado várias vezes no pau-de-arara, sofrendo choques elétricos, espancado e queimado por pontas de cigarros”.19 Aldo Alves Oliveira, funcionário da Cia. Carris, preso no DOPS desde 10 de março, testemunhou ter conhecido Manoel Raimundo, que “mostrava vários sinais de sevícias”. Na ocasião, viu, quando o ex-sargento “estava sentado no corredor” de “acesso à cela”, “sem camisa”, “as marcas de queimaduras” e sinais de violência. Tão forte fora o espancamento que ele “não podia engolir alimentos sólidos, razão pela qual” Aldo e outros presos forneciam-lhe “alguma porção” do “leite que lhes era enviado por familiares”.20 Aldo Alves relatou igualmente que, durante o tempo que esteve preso, “Percebia que, quase todas as noites, pela madrugada, o ex-sargento Manoel Raimundo Soares era torturado, o que podia ser comprovado pelos gritos da vítima e também pelo aspecto físico que apresentava quando era trazido de volta a sua cela e passava defronte a porta em que se encontrava o depoente [...]”.21 Também presa no DOPS em março de 1966, a advogada Élida Costa afirmou que, ao ouvir “gritos, urros de dor e ruídos de coisas que caíam”, um “agente policial” lhe explicara que “se tratava de uma festa em [um] outro andar”.22 Ao deparar-se com “uns seis ou oito presos”, todos da Carris, quando ia ao banheiro, ela contou-lhes o que passava, “e o risco que todos [eles] corriam”.23 18 Depoimento aos autores do ex-subtenente Jelsi Rodrigues Correa colhido por telefone em 04 de maio de 2008; COSTA, Ob.cit. p. 14. 19 Dados retirados do site www.torturanuncamais-rj.org.br. Acesso em 24 abril de 2008. 20 Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 41-42. 21 Loc.cit. 22 Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 43. 23 Loc.cit. 10 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares do dia 11 de março, sexta-feira, em frente ao Auditório Araújo Viana. Fui levado para o quartel da P.E., onde fui “interrogado” durante duas horas e depois fui levado para o DOPS. Estou bem. Nesta ilha me recuperei do “tratamento” policial. Até o dia em que fui preso estava dormindo em hotéis e pensões variadas.29 Élida passou a noite temendo “que o mesmo poderia lhe suceder”. Temor acrescido quando, de madrugada, “viu, com os próprios olhos, um rapaz que, pelo estado de seu corpo, que estava inclinado para frente, ia sendo carregado por dois homens”. Na ocasião, “ouviu dizer” que o preso estava ferido, sangrava e se encontrava em “coma” e que “fora recolhido a uma cela fechada à chave”. Mais tarde, o ex-sargento “foi levado”, com dificuldades, “pelos presos”, até a advogada, que ouviu do mesmo chamar-se Soares.24 Manoel Raimundo seguia: Não sei como vou me arranjar no dia em que eu for solto pois o Leo [possivelmente o já citado sargento Leony Lopes] único amigo que eu tinha em Porto Alegre, perdi o contato com ele e eu não sei o endereço. Espero que você esteja bem e que se mantenha em calma. Isto passa. Nos dias seguintes ao que eu for solto, teremos uma nova lua de mel em uma cidade bonita qualquer.30 Na Ilha do Presídio Manoel Raimundo foi torturado em forma incessante, por mais de uma semana, pelos torcionários à procura de informação sobre seus companheiros de luta e de ideal, sendo recolhido apenas em 19 de março de 1966, nove dias após sua prisão, à ilha do Presídio, no rio Guaíba, destinada desde o golpe militar também ao encarceramento de presos políticos. A ilha do Presídio, caracterizada pela forte umidade, era local onde os prisioneiros políticos encontravam-se relativamente protegidos das torturas policiais, devido à estreiteza das instalações, ao elevado número de detidos, às dificuldades dos inquisidores de se deslocarem até ela. Para serem interrogados, os prisioneiros eram habitualmente levados de volta a Porto Alegre. Em 1966, o guarda civil Selço José Muller dos Santos permaneceu encarcerado na ilha por dez dias. Mais tarde, declarou que, na ocasião, auxiliou Manoel Raimundo a se mover “até sua cela”, pois se encontrava “bastante ferido”, com “dificuldade para locomoverse”.25 À noite, Selço preparava “salmoura para passar nas costas e pernas de Manoel”, partes do corpo muito feridas devido aos espancamentos.26 Selço teria aconselhado ao sargento que “pusesse água com açúcar” em “uma espécie de hematoma” que tinha no olho. Devido a ferimento propiciado pelo tenente Nunes durante a tortura, Manoel perdera parcialmente a visão de um olho.27 No Inverno, sem Sapatos Manoel Raimundo pedia à esposa que enviasse, se pudesse, “algum dinheiro” através de agência bancária, pois precisava de coisas como “aparelho de barba, um sapato 38, escova de dentes, roupa de frio e coisas de comer”.31 O fato de ser filho de família humilde, sem relações no Sul, dificultava a já difícil situação do prisioneiro, preocupado igualmente com a sorte de sua esposa. Na mesma carta, Manoel Raimundo avançava sugestão para a esposa: “Você NÃO precisa vir aqui. Isto não ajudará NADA e você não conseguirá ver-me. Não permitirão.” Possivelmente temia envolvimento da esposa com a repressão. Pedia também para que ela mantivesse a “calma” e, sobretudo, instruía a esposa a procurar o “o Dr. Sobral Pinto”, no RJ, para providenciar “pedido de habeas no Superior Tribunal Militar”.32 Em 5 de maio de 1966, Manoel escreveu a quinta carta à esposa, a segunda que ela recebia. Na correspondência, se refere as suas condições de aprisionamento e às torturas que recebera: Em meu corpo ficaram gravadas algumas das medalhas com o que me agraciaram. Aqui estou sem sapatos, sem roupas de frio, sem cobertas, usando unicamente uma camisa de Nylon e uma calça de lã preta. [...] Não sei bem, mas creio que estou preso à disposição do III Exército. Por isto, só um ‘habeas-corpus’ do Superior Tribunal Militar poderá libertar-me.33 Cartas do Cárcere Elizabeth, esposa de Manoel Raimundo, vivera com ele por algum tempo em Porto Alegre, abandonando a seguir a capital rio-grandense, para retornar ao RJ.28 Logo que pôde, Manoel Raimundo arranjou-se para retomar contato com ela através de correspondência. Em 15 de abril de 1966, em carta que chegou às mãos de sua esposa, relatava que fora preso para “averiguações”: Finalmente acabei sendo preso. Caí em uma cilada de um “dedo-duro” chamado Edu e vim parar nessa ilha-presídio. Fui preso às 16.50 hs. 24 Loc.cit. Relatório Tovo p. 22 26 Loc.cit. 27 Loc. cit. 28 Cf. COSTA, Ob.cit. p. 142. 25 29 Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 15 de abril de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 23 30 Loc.cit. 31 Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 15 de abril de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p.23. 32 Loc.cit. 33 Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 2 de maio de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 24. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 11 A carta era igualmente momento de tentar estreitar sentimentos pela esposa fortalecidos pelo sofrimento: Como vês o papel está acabando, por isto aproveito para lembrar-te que meu pensamento é só para ti; durante todas as horas destes últimos dias não sais do meu pensamento. O banquinho da cozinha, os beijos nos olhos, tudo aquilo que liga meu corpo a tua alma (ou espírito que é mais certo). Recebe mil beijos e um caminhão de abraços do teu Manoel.34 Manoel Raimundo permaneceu durante cinco meses na ilha do Presídio, incomunicável, privado de notícias da família e do mundo, passou fome e, certamente, muito frio, ao qual estaria pouco habituado. Nas suas primeiras cartas conhecidas, dos primeiros meses de cárcere, registra sua calma e esperanças. Intensificando-se o martírio e a solidão, tentou fortalecerse centrando-se também no sentimento que nutria pela esposa. O ex-sargento acreditava que seria posto em liberdade em pouco tempo. Na época, a instituição do habeas corpus ainda vigia. Não sabia que dois pedidos de libertação impetrados junto ao Superior Tribunal Militar (STM) haviam sido negados, já que, em falsas declarações, as autoridades militares e policiais afirmavam que não estava preso. Mais tarde, o Exército tentaria negar sua responsabilidade na prisão ilegal e assassinato de Manoel Raimundo afirmando que respondera ao STM que não tinha Manoel em seu poder, sem informar, logicamente, que ele fora entregue pela PE ao DOPS. Quando o terceiro habeas corpus estava para ser julgado, os torturadores já haviam dado fim a sua vida. Últimas Cartas Manoel Raimundo contava: [...] já tenho escova de dente, sabonete e até roupas e sapatos, fizeram chegar até aqui. Mas, nada disso pode aliviar a dor que me causa o fato de não poder receber cartas de minha Beta. Acredito que minha situação ainda não mudou muito. Até hoje (amanhã completam-se quatro meses), não fui ouvido em I.P.Ms. e desde que mandaram-me para esta ilha não mais saí.36 Mais adiante, insistia com a esposa na necessidade do pedido de habeas corpus perante o STM para libertá-lo. A segunda das duas cartas escritas por Manoel Raimundo, em 10 de julho, foi a quarta e última que a esposa recebeu. Ele iniciou com a mesma afirmação, que à leitora deveria causar alívio e esperança, mas que parece registrar a consciência do prisioneiro da ameaça sob a qual vivia: “Ainda estou vivo”. Em seguida, relatava: “A saúde que havia chegado ao meu corpo, partiu, deixando a normalidade que você tão bem conhece. Fígado, intestinos e estômago.37 Espero de todo o coração que você tenha recebido as cartas anteriores. Esta é a de número nove.”38 Manoel Raimundo seguiu falando de seu amor: Nestes últimos dias tenho sido torturado pela realidade de estar impedido de ver o rosto da mulher que amo. Eu trocaria se possível fosse, a comida de oito dias, por oito minutos junto ao meu amor, ainda que fosse só para ver. Tenho uma fé inabalável de que, os adversários não conseguirão destruir nosso amor. Sei hoje, que você tinha razão, em muitas de nossas discussões sobre nosso tipo de vida. Em seu dilacerante diálogo com a esposa distante, Manoel retomava temas passados: As duas últimas cartas que Elisabeth recebeu do marido foram escritas em 10 de julho de 1966. Na primeira, afirmava: Ainda estou vivo. Espero de todo o coração que você tenha recebido as cartas que remeti anteriormente. Esta é a oitava. Nunca pensei que o sentimento que me une a você chegasse aos limites de uma necessidade. Nestes últimos dias, tenho sido torturado pela idéia de que estou impedido de ver teu rosto ou de beijar teus lábios. Todas as torturas físicas a que fui submetido na PE e no DOPS não me abateram. No entanto, como verdadeiras punhaladas, t o r t u r a - m e , m a c h u c a , a m a rg a , e s t e impedimento ilegal de receber uma carta, da mulher, que hoje, mais do que nunca, é a única razão de minha vida.35 Você ganhou. [...] Tudo passará. A política, a cadeia, os amigos; só uma coisa irá durar até a morte: o amor que tenho por essa mulherzinha que é hoje, a única razão de querer viver, deste presidiário. [...] Só agora avalio o que é estar junto da mulher amada. Com a tranquilidade da certeza de que apesar de tudo ainda mereço o teu amor remeto um caminhão de beijos, com o calor dos dias mais felizes de nossa vida. Do sempre teu Manoel.39 Novo Interrogatório Em 13 de agosto de 1966, Manoel Raimundo foi retirado da ilha do Presídio para ser levado outra vez ao DOPS, para novo interrogatório e tortura, agora sob as 36 Loc.cit. Manoel Raimundo sofria desses males. COSTA, Ob.cit. p. 145. 38 Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 10 de julho de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p.26. 39 Id. Ibid. p. 26-27. 37 34 Id. ibid. p. 24-25. Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 10 de julho de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p.25. 35 12 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares ordens dos tenentes coronéis Átila Rochester e Luiz Carlos Menna Barreto, chefe do DOPS. Não sabemos as razões precisas para o novo e violento inquisitório de Manoel, após longos meses na prisão. Em depoimentos concedidos recentemente, seus companheiros de luta relatam que ele teria escrito clandestinamente também para o STM sobre sua detenção e torturas em Porto Alegre e, com a concessão de habeas corpus, fora subtraído da prisão para revelar, sob tortura, os carcereiros que eventualmente teriam facilitado a correspondência clandestina.40 Em agosto de 1966, prosseguiam febrilmente os preparativos do MNR para implantar colunas combatentes em Goiás-Maranhão, no MT, e em Caparaó, entre o ES e MG. Um quarto foco armado deveria nascer no norte do RS e sudoeste de SC. Nos fatos, tratava-se de ambiciosa articulação anti-ditatorial, envolvendo argentinos, paraguaios e bolivianos. Quando a pequena coluna do MNR instalou-se no alto da serra de Caparaó, em fins de 1966, Che Guevara e seus companheiros organizavam-se também na selva da Bolívia. Manoel Raimundo participara ativamente da preparação desses movimentos, após o fracasso do segundo levante em Porto Alegre. Teria escrito até mesmo um “decálogo do guerrilheiro” para as operações.41 Há alguma divergência sobre as razões do abandono da frente armada no Brasil meridional. Flávio Tavares propõe que a desistência deveu-se à prisão, “no inverno de 1965”, do “seu subcomandante, o ex-sargento Manuel Raimundo Soares”.42 Segundo a informação confirmada por Jelsi Rodrigues, envolvido diretamente na iniciativa, apesar da notícia da queda, continuaram os planos para o estabelecimento do núcleo armado na serra do Mar, em SC. A desconfiança de camponeses com a perambulação de estranhos na região e a prisão de dois militantes, sob suspeita de assalto a banco, teriam levado ao abandono da proposta.43 Dos quatro núcleos guerrilheiros planejados pelo MNR prosperou apenas o de Caparaó, desbaratado em inícios de 1967, ensejando com esse tropeço o abandono de Brizola do projeto de resistência militar à ditadura, insurrecional ou guerrilheira. A seguir, o MNR dividiria-se, confluindo seus militantes em outras organizações armadas, como a VPR, a VAR-Palmares, etc.44 Jacuí, para ser submetido a falsos afogamentos. Possivelmente jamais saberemos se Manoel escapou inadvertidamente das mãos dos seus torcionários ou foi abandonado propositadamente às águas geladas para morrer. Era habitual militares e policiais torturarem alcoolizados e drogados prisioneiros políticos. Até agora, o que sabemos de certo é que, onze dias mais tarde, Manoel Raimundo foi encontrado, morto, boiando no rio, com os pés e as mãos atadas. O corpo de Manoel foi descoberto, em 24 de agosto de 1966, boiando entre algumas taquareiras, por dois moradores da ilha das Flores, próxima a Porto Alegre, que informaram rapidamente as autoridades policiais. O policial responsável pela operação de resgate do cadáver declararia que o mesmo tinha As mãos amarradas às costas pela própria camisa que vestia, sendo que as ataduras cobertas por um suéter banlon que a vítima trajava; os bolsos laterais das calças completamente repuxados para fora [...]; calças de cor escura; um pé calçado com um sapato marrom e outro descalço.45 Na madrugada do dia 25, peritos do Instituto de Criminalística analisaram o corpo, determinando que a morte se dera por afogamento e que a vítima estaria embriagada. Destaque-se que Manoel Raimundo era abstêmio, entre outras razões, por problemas com o fígado. Entretanto, mesmo que ele se encontrasse embriagado, quando de sua morte, não significa que se houvesse embriagado. Anos após o homicídio, em processo movido pela viúva, os defensores da União alegaram o estado de embriaguez do ex-sargento. Defesa rejeitada pelo juiz, que, irônico, lembrou que “seria realmente uma façanha de Manoel Raimundo Soares: amarrar as mãos às costas, e então embriagar-se. Ou então embriagar-se e amarrar suas mãos às costas”.46 Acidente de Trabalho Após acompanhar as investigações sobre o homicídio, o promotor Paulo Cláudio Tovo propôs uma provável sequência para os fatos: [...] A vítima teria sido passível de “banho” ou “caldo”, por parte dos agentes do DOPS [...], processo despótico que consiste em mergulhar o paciente nas águas do rio, quase até a asfixia, para dele extorquir a confissão [...]. Nesse “trabalho” [...] realizado dentro de uma lancha [...] com a vítima segura pelos pés e o restante do corpo mergulhado na água, seus torturadores teriam-na deixado escapar, por [...] "acidente de trabalho” não conseguindo mais encontrá-la [...].47 Mãos Amarradas Talvez a vontade de arrancar rapidamente informações de Manoel Raimundo sobre apoios na ilha do Presídio ou sobre os atos em cursos de seus companheiros tenha levado seus torturadores a transportá-lo, na mesma noite de 13 de agosto até ao rio 40 Cf. COSTA, Ob.cit. p. 145. Id.ib. 141. 42 TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. p. 195. 43 Cf. COSTA, Ob.cit. p. 127; Depoimento do ex-subtenente Jelsi Rodrigues Correa, colhido por telefone em 04.05.2008. 44 Cf. CAPITANI, Ob.cit. p. 101-2. 41 45 Relatório Tovo. p. 3. Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 72. 47 Relatório Tovo. p. 34. 46 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 13 Não é de se afastar igualmente a hipótese de uma execução do prisioneiro, devido a sua negativa em fornecer as informações exigidas, para aterrorizar seus companheiros, ou por qualquer outra razão desconhecida. É também possível que Manoel tenha morrido afogado inadvertidamente durante a tortura, sendo após lançado ao rio. O fato que os responsáveis pelos atos não tenham jamais sido levados a julgamento impede a possível elucidação da sequência precisa do assassinato. Não há sequer informação precisa sobre o dia da morte de Manoel Raimundo, ocorrida entre 13 e 20 de agosto. Em data de 19 daquele mês, telegrama do STM, encaminhado primeiramente ao diretor da ilha do Presídio e, no dia seguinte, ao DOPS, pedia informações urgentes sobre Manoel para fins de habeas corpus. Enquanto o DOPS permanecia em silêncio, em 20 de agosto, o delegado e diretor da Divisão de Segurança Política e Social, José Morsch, entrou no necrotério do Instituto Médico Legal, à procura de cadáver de identidade ignorada.48 Foi em vão a tentativa de Morsch de localizar o corpo de Manoel Raimundo pois, como referido, só seria encontrado no dia 24. Entretanto, o ato registrou o conhecimento anterior ao achado, pelas autoridades, da morte do prisioneiro político. Mesmo após o corpo ser encontrado e identificado como sendo de Manoel, os agentes do DOPS seguiram teimando que nada sabiam sobre os acontecimentos. Na época, havia ainda liberdade de informação relativa. Nas páginas de Zero Hora, de 2 de setembro de 1966, o jornalista e humorista Carlos Nobre comentava irônico e indignado: O troféu bolha da semana é para o DOPS porque, segundo o delegado Delmar Kuhn, os agentes levaram o sargento Manoel Raimundo Soares para a Ilha do Presídio, dias depois ele aparece morto, boiando no rio Jacuí com as mãos atadas e o DOPS diz ignorar qualquer violência na vítima [...].49 Os assassinos de Manoel Raimundo tentaram mascarar os fatos, com a ajuda de alguns jornalistas de grandes meios de comunicação. Foi longamente divulgado que a morte do Sargento faria parte de “trama subversiva diabólica” “para fins de propaganda antirevolucionária”, ou seja, contra o governo ditatorial. A versão oficial dizia que ele fora posto em liberdade em 13 de agosto, apoiada em documento de soltura pretensamente assinado pelo sargento. No livro de registros de presos da Ilha, constava que Manoel fora retirado de lá naquele dia. No livro de ocorrências do DOPS, podia-se ler: “Às 13:30 horas foi liberado por este DOPS, o detido MANOEL RAIMUNDO SOARES.”50 48 Cf. Relatório Tovo. p. 32. VILLALOBOS, Marco Antônio. A guerrilha do riso: Carlos Nobre x ditadura militar brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000. p. 60. 50 Relatório Tovo. p. 25. 49 Acidente ou Execução? Na época, a proposta de libertação, em 13 de agosto, de Manoel Raimundo, foi defendida para negar a responsabilidade do Exército e da Polícia. O que sugere que a assinatura tenha sido forjada pelas autoridades, preventivamente, após o "acidente de trabalho" no rio Jacuí, talvez sob a injunção dos pedidos prementes de informação determinados pelos habeas corpus impetrados em favor do prisioneiro. Entretanto, a assinatura foi autenticada pela perícia. Caso ela realmente pertencesse ao prisioneiro, se fortalece a hipótese de execução através de afogamento, realizada talvez após o ministro forçado de bebida alcoólica. Araken Galvão, ex-sargento e seu companheiro de luta, subscreve a tese do assassinato. “Aplicaram-lhe injeções de álcool nas veias para embriagá-lo – ele que nunca colocara na boca uma taça de vinho sequer – quando viram que ele não delataria ninguém [...] jogaram, depois de uma terrível sessão de torturas, ainda vivo no Rio Guaíba [...].”51 Nesse caso, o único acidente teria sido o lançamento de Manoel com os pés e as mãos amarradas, o que tirava credibilidade à tese de suicídio ou acidente devido à embriaguez. O registro da libertação teria sido medida preparatória à execução. Manoel Raimundo não foi positivamente libertado às 13:30 horas. Em depoimento de 3 de novembro de 1966, o guarda civil Gabriel Medeiros de Albuquerque Filho afirmou que viu o ex-sargento em uma das celas do DOPS, na noite de 13 de agosto, quando prestava serviço naquele local.52 Esta informação foi também confirmada pelo então estudante Luis Renato Pires de Almeida, detido à mesma época naquela prisão.53 Um Último Encontro Araken Galvão relata sobre a viagem de Elizabeth a Porto Alegre, onde chegou em 30 de agosto de 1966: “Quando a notícia de sua morte chegou ao Rio eu recebia [...] a missão de acompanhar Betinha até Porto Alegre e, durante a viagem, já ir preparando o seu espírito para amortecer o impacto da tragédia.”54 No necrotério, Elizabeth fez o reconhecimento do cadáver. De pequena estatura, acabrunhada pela morte, a jovem mostrou grande decisão e coragem na defesa da memória de seu esposo e na exigência do castigo dos culpados. Em 2 de setembro, o enterro de Manoel Raimundo foi acompanhado por pequena multidão. Por onde passava o cortejo triste, as lojas fechavam-se em sinal de homenagem ao combatente caído. Trabalhadores da Carris tomaram o caixão pela alça e carregaram-no até 51 “Retrato de um sargento”. Capítulo de livro inédito “O Sargento na História do Brasil”, de Araken Vaz Galvão, gentilmente cedido pelo autor. 52 Cf. Relatório Tovo. p. 27. 53 Dados retirados do site www.torturanuncamais-rj.org.br . Acesso em 24 abr. 2008. 54 “Retrato de um sargento”. Capítulo de livro inédito “O Sargento na História do Brasil”, de Araken Vaz Galvão, gentilmente cedido pelo autor. 14 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares a Pira da Pátria, no Parque Farroupilha. Já no cemitério, um estudante gritou para policial que vigiava à paisana o ato fúnebre: “Assassinos!” O cadáver foi depositado, finalmente, no Cemitério São Miguel e Almas.55 A jovem Elizabeth não teve forças para acompanhar a longa marcha fúnebre, pois a “três dias não comia e quase não dormia”.56 Uma semana depois, também não compareceu à missa de sétimo dia de falecimento. Em ato de vilania inusitada, após vitimarem o jovem suboficial, os esbirros da ditadura voltavam-se agora contra sua esposa, golpeada pela perda irreparável. Elisabeth fora convocada para depor na Secretaria de Segurança naquela data, sendo interrogara por cinco horas.57 Total Impunidade A Procuradoria Geral do Estado designou o promotor Paulo Cláudio Tovo para acompanhar as investigações sobre o crime. Mesmo pressionado pelo Secretário de Segurança, ele concluiu relatório em inícios de 1967, produzindo provas fundamentais. A Assembléia Legislativa do RS instaurou também CPI para averiguar as circunstâncias da morte e a forma como eram tratados os presos políticos, que resultou em valioso relatório publicado no Diário da Assembléia, em junho de 1967. Divulgado por dias amplamente pelos meios de comunicação, o homicídio de Manoel Raimundo chocou profundamente a sociedade sulina e brasileira da época. A ilegalidade do ato, as torturas praticadas, a violência com que fora tratado anunciavam porém as práticas e as armas que o governo militar empregaria nos anos seguintes contra seus opositores, agora sob a proteção do amordaçamento absoluto da imprensa. Até hoje, não houve elucidação precisa da execução de Manoel Raimundo. Os responsáveis denunciados jamais foram punidos, seguindo suas carreiras encobertados e protegidos pelas autoridades civis e militares superiores, sob as ordens das quais cometeram aquelas e tantas outras violências. Sequer após a redemocratização do país, em 1985, seriam levados à Justiça. Em agosto de 1973, a viúva Elizabeth ajuizou ação indenizatória pelo assassinato de seu esposo contra a União, o estado do RS e alguns militares do Exército Brasileiro. Transferido da Justiça estadual para a federal, o processo tramitou por mais de trinta anos! Quando, em dezembro de 2000, a autora conseguiu sentença favorável, a União recorreu da decisão. Somente em setembro de 2005, a ação foi julgada procedente pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. A Elizabeth foi garantido pela Justiça o direito à pensão mensal vitalícia (retroativa a 13 de agosto de 55 Dados retirados do site www.torturanuncamais-rj.org.br . Acesso em 24 abril de 2008; Zero Hora, Porto Alegre, 1 de setembro de 1966. 56 Discurso do deputado Jacques D´Ornellas em 28 de maio de 1984. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 59. 57 Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 59. 1966, relativa à remuneração integral de segundosargento) e ressarcimento por gastos à época com viagem, hospedagem, alimentação, funeral e luto de família. Foi-lhe determinado pagamento de indenização por dano moral. Porém, o processo criminal ajuizado foi arquivado por caducidade, garantindo a impunidade dos torcionários e executores de Manoel Raimundo. Na obra Segurança Nacional, ao enumerar medidas necessárias para reduzir o poderio e privilégio dos militares na Nova República, Roberto Martins alerta para que “sejam desvendados os crimes contra os direitos humanos. Se a impunidade for mantida, muito fácil será no futuro repetir os mesmos crimes. Sem justiça, será falsa qualquer democracia implantada”.58 *** ANEXO: O que sei sobre o caso das Mãos Amarradas. por Jorge Loeffler - 18/10/2009 Em 1965, com vinte e um anos, decidi submeter-me a um concurso público, ingressando na então Escola de Polícia. Enfrentei o curso de formação de Inspetores e Escrivães. Aquela foi uma das melhores, senão a melhor turma da Escola. Lembro de alguns colegas de curso como do Joaci Casagrande Paulo, hoje psiquiatra, do Jorge Anselmo Barrios, Procurador da República aposentado, do Julio Cezar Coitinho, Juiz de Direito aposentado, do Luiz Carlos Celi Garcia, hoje cirurgião plástico bem sucedido em Caxias do Sul, do Arnaldo Buede Sleimon, desembargador em nosso TJ ainda em atividade, do Edemar Mainardi, engenheiro ferroviário aposentado. Belíssima turma. Havia muitos outros que foram muito bem sucedidos e cujos nomes no momento não recordo, pois nossa turma era composta de cerca de 150 alunos Terminado o curso, em meados de 1966, fui lotado na Delegacia de Polícia de Bom Jesus. Meu único irmão consangüíneo, o Henrique que trabalhava na REFAP, refinaria da Petrobrás em Canoas, foi removido para a refinaria de Araucária no Paraná que estava por inaugurar. Nossos pais já com 60 anos, o que na época era considerado velhice, ficaram sozinhos. Tínhamos um vizinho, Escrivão de Polícia e redator no Correio do Povo. Seu nome Luiz Carlos Costa, já falecido e que se aposentou como Delegado de Polícia. O Costa, um excelente vizinho, e por sua condição de jornalista conseguiu junto a então Chefia de Polícia meu retorno à Capital, mas a lotação conseguida seria no DOPS. Não me restou alternativa. Ali me apresentei dia primeiro de agosto de 1966 e permaneci até o final daquele ano. Fui lotado no plantão. Havia lá uma escala de sobreaviso, ou seja, durante a folga ficávamos sempre a disposição para eventual substituição de algum colega. Pois no dia 13 daquele mês, no final da tarde, fui buscado em casa tendo em vista que o Escrivão de Polícia Laurentino Scomazzon adoecera. Mal havia chegado lá chegou o Delegado Enir Barcelos da Silva, irmão de um oficial do Exército e que se comportava com se fosse militar. Mandão como ele só. 58 MARTINS, Roberto. Segurança Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 77-78. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 15 Chegara ele trazendo um jovem casal. Eram namorados. Reconheci a ele como sendo vizinho no meu bairro, era o Edgar Pernau, filho do senhor Henrique Pernau, gerente de Lojas Renner. O crime do Edgar e sua acompanhante fora ter participado de um leve acidente com danos matérias com a viatura discreta usada pelo Delegado Enir. Tão somente por isto foram conduzidos ao plantão do DOPS. Meu Deus o que ocorrera neste país para chegarmos a tamanha barbaridade? Enquanto os dois ali estavam, um colega lotado há mais tempo naquele Departamento trouxe da cela um sujeito de altura média, com feições típicas de nordestino. Ele trajava uma calça de nycron preta, sapatos sociais pretos, camisa volta ao mundo, branca, com as mangas arregaçadas. Sob um dos braços tinha uma caixa de sapatos com objetos de higiene e outros pessoais. Ele me pareceu nervoso. Em poucos momentos foi liberado e recebi de um veterano a ordem de não me aproximar da janela. Descumpri tal determinação e vi que o preso cuja identidade ainda não conhecia, depois de sair da porta lateral do prédio (Avenida Ipiranga), rumou até a Rua da Azenha [av. João Pessoa] e então tomou o rumo do centro, mas ainda sobre a ponte da Azenha [João Pessoa] foi apanhado por dois homens que trajavam gabardines e colocado num automóvel Renault Gordini. Depois fiquei sabendo que sua soltura fora registrada em livro próprio como tendo ocorrido ao meio dia. Não mais o vi. Na noite do dia 23, ou seja, dez dias depois surgiu a notícia de que haviam encontrado corpo de um preso político boiando no Guaíba. No dia seguinte, ou seja, 24 de agosto fomos, eu e o Régis ao antigo necrotério (fundos da Santa Casa). Lá chegando reconheci o cadáver como sendo daquele preso liberado ao anoitecer do dia 13. O colega que me acompanhou era o Dionísio Régis Torres Medeiros, Guarda Civil e cedido ao DOPS. Alguns dias depois nos encontramos na escada do prédio e ele feliz da vida me disse que iria para Rio Grande, se livrando daquilo ali. Ele fora campeão de pugilismo quando no Exército. Lembro ter dito a ele que tomasse cuidado, pois Rio Grande era um porto marítimo e, portanto sempre perigoso. Ali nos despedimos e ele disse-me que sabia se cuidar. Alguns dias depois fiquei sabendo que no mesmo dia em que chegara a Rio Grande ele se envolveu numa briga no porto e o dono do bar o matou com um tiro na cabeça. Esta foi a versão do fato que chegou ao meu conhecimento, porém se verdadeira ou não, confesso que não sei. Naquele período negro e lamentável de nossa história recente morrer ou desaparecer não era algo tão difícil assim. Uma coincidência me despertou a atenção. É que na manhã do dia 24 de agosto, algumas horas depois da “descoberta” do corpo no Guaíba, desembarcava de um ônibus na Rodoviária, a senhora Elizabete Chalupe Soares, esposa da vítima, vinda do Rio de Janeiro. Lembro quão difícil foi esta situação. Anos mais tarde um advogado desqualificado de nome Aldrovando de Oliveira Micelli decidiu escrever um livro no qual afirmava terem sido matadores do sargento os Comissários João Ribeiro e Jorge Pinto Loeffler. Num determinado dia cheguei a Área Judiciária para trabalhar e um dos Escrivães que compunham nossa equipe me mostrou o Correio do Povo com a matéria sobre o tal livro. Aquelas 24 horas custaram muito a passar. No dia seguinte rumei cedo para Cidreira onde minha esposa e filhos, todos pequenos, me aguardavam. A Cíntia era a mais velha deles e tinha seis anos. Hoje ela tem 36 anos, logo isto ocorreu faz trinta anos. Até mesmo foram à porta da casa do meu irmão em Curitiba perguntar para minha cunhada se o assassino era parente deles. Hoje tenho 65 anos e ainda não me considero velho o bastante, mas longe estou de ser jovem. Muito tenho refletido e sempre me lembro do Scomazzon que nem mesmo lá estava quando da saída da vítima e sempre constou como sendo um dos envolvidos nesta morte covarde. Até mesmo circularam as versões de que teria sido um “caldo”. Conversa fiada, ele foi mesmo afogado, pois para o tal caldo não é necessário um rio inteiro. Versão infantil mesmo. Circulou naquela época o rumor de que ele havia sido morto para vingar uma surra aplicada por companheiros dele num major do Exército ligado a repressão. Ao lado da Delegacia de Polícia do Oitavo Distrito residia um sargento do Exército que chegou a major durante a repressão política, era o senhor Darci Paiva Soares. Seu filho, o Carlinhos acabou “trabalhando” no DOI-CODI por influência do pai e sempre contava suas façanhas, isto já anos depois, quando eu trabalhei no plantão daquele distrito. Não sei onde anda o Scomazzon que fora meu vizinho na Chácara das Pedras. Lembro que tinha duas filhas. Sua esposa era professora e amiga da minha. Não sei se ele ainda vive. Espero que sim e que tome conhecimento deste meu desabafo que lhe faz justiça, pois além do sargento ele é outra vítima. Sei que este texto poderá me causar algumas incompreensões, mas nesta quadra da vida, isto a mim pouco importa. Me importa sim que matar alguém por determinação e num regime ditatorial é algo inconcebível a alguém como eu que tive uma família que muito bem soube me educar. Lembro do que o meu pai me contava sobre como enfrentou uma rejeição estúpida depois da guerra, tendo sido naturalizado ainda em 1927, pois foi considerado quinta coluna vez que mandava daqui, via Cruz Vermelha, para suas irmãs e sua cunhada café, açúcar e roupas. Meu tio que morreu faz alguns anos em Munique, era então prisioneiro dos ingleses em Bari, no sul da Itália, onde permaneceu até fins de 1947. Num salto foi atingido ainda no ar por fogo inglês e sofreu fratura numa das pernas. Tio Edmund acabou se familiarizando com aquela cidade e depois da guerra passou a veranear lá. PS. A noite deste domingo, depois de ter encerrado este texto soube do telefone do Scomazzon e conversei com ele. Está com mais de setenta anos e bem de saúde. 16 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército Claudia Alves1 A participação da oficialidade do exército no golpe que instaurou o regime republicano tem sido tratada na historiografia sobre o tema como um elemento dos mais relevantes. Entretanto, a ênfase tem sido colocada quase exclusivamente sobre o protagonismo da mocidade militar, organizada a partir da Escola Militar da Praia Vermelha, o centro mais importante de formação intelectual e profissional da oficialidade do exército naquele momento. Argumentos consistentes foram reunidos para fundamentar esse enfoque, que está centrado nos momentos finais da monarquia, quando o quadro de crise se agudiza e atores decisivos assumem o centro da cena.2 Nossa atenção, entretanto, tem se voltado para outros engajamentos que, por vezes de maneira subterrânea, constituíram a possibilidade de ação política desse sujeito coletivo “corporação militar”, por meio de uma fração organizada de seus oficiais.3 Temos nos ocupado em perseguir indícios da construção da organização de uma parcela da intelectualidade militar. Temos como pressuposto que toda ação política se alicerça na possibilidade de algum nível de direção intelectual e moral, em conformidade com as reflexões teóricas de Antonio Gramsci, em suas anotações nos Cadernos do Cárcere. No presente artigo, tomamos um caso particular de mobilização da oficialidade do exército como expressão da organização que se processava por dentro da instituição. Interessa-nos compreender a maneira como Benjamin Constant se inseriu nos debates que envolveram a oficialidade na década final do período imperial, tomando as propostas que elaborou nos anos 1887/1888 como expressão do papel que passara a desempenhar entre as lideranças da corporação. Para tal, elegemos os documentos redigidos pelo próprio Benjamin, nas duas ocasiões, conservados dentre os manuscritos de seu acervo particular, como as principais fontes para a nossa análise. A formação de oficiais em debate na década de 1880 Desde sua criação, como Real Academia Militar, em 1810, a principal escola de oficiais, que se notabilizaria com o nome de Escola Militar, teve seu ensino reformado várias vezes durante o império.4 Na segunda metade do século XIX, é possível observar a crescente participação de oficiais intelectualizados nas comissões encarregadas de construir as reformas do ensino militar. Constituídas por nomeação direta do Ministro da Guerra, tais comissões tinham a possibilidade de catalisar posições presentes nos debates travados entre parte da oficialidade. O auge desse processo ocorreu na década de 1880, quando um grupo de oficiais tomou a iniciativa de criar um periódico que se constituiu em veículo para a discussão de temáticas relativas a esses interesses, a Revista do Exército Brasileiro. No ano de 1881, um decreto imperial5 atingia o ensino militar, alterando a formação de oficiais, de modo a aprofundar a diferença entre, de um lado, as chamadas armas científicas - a artilharia e a engenharia – e, de outro, as não científicas – a infantaria e a cavalaria. Pelo decreto, a formação de infantes e cavalarianos poderia ser concluída com a aprovação apenas nas disciplinas do primeiro ano da Escola Militar da Corte ou da Escola de Infantaria e Cavalaria do Rio Grande do Sul. Na perspectiva gramsciana, esse tipo de iniciativa deve ser tomado como parte da construção da direção intelectual, necessária à luta por hegemonia. No caso particular que abordamos, é nítido o investimento de parte da intelectualidade do exército em tentar influir nas decisões sobre a formação da oficialidade, por meio de um instrumento próprio à ação “de partido”, com a finalidade de ganhar adesão para a sua concepção: “A imprensa (quem o contesta?) é o mais poderoso meio que se tem inventado para a divulgação do pensamento, e pôlo em dúvida seria arremessar o paradoxo contra a evidência”.6 1 Professora Associada da Faculdade e do Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. 2 CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CASTRO, Celso. Os Militares e a República. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. SCHULZ, John. O Exército na Política: Origens da Intervenção Militar, 1850-1894. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. 3 ALVES, Claudia. Cultura e Política no Século XIX: O Exército como campo de constituição de sujeitos políticos no Império. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002. 4 MOTTA, Jehovah. Formação do oficial do Exército Brasileiro: currículos e regimes na Academia Militar, 1810-1944. Rio de Janeiro: Cia. Brasileira de Artes Gráficas, 1976. 5 Decreto n. 8205, de 30 de julho de 1881. Altera algumas disposições dos Regulamentos das Escolas Militar da Corte e de infantaria e cavalaria da província do Rio Grande do Sul. 6 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 161. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (16-22) - 17 Pelo que se pode depreender da leitura de diversos artigos escritos por oficiais do exército nos anos que se seguiram ao decreto, seu conteúdo despertou reações de lideranças importantes do corpo de oficiais, que o entenderam como uma desqualificação das armas de infantaria e cavalaria. O principal veículo de circulação dessas idéias, a Revista do Exército Brasileiro, publicou textos assinados por oficiais de diversas patentes, em torno de questões que estavam no centro das preocupações da oficialidade. A reestruturação do exército e a formação de seus quadros, em todos os níveis, eram os dois eixos que polarizavam as discussões e definiam posições expressas por esses autores. Um exame da Revista do Exército Brasileiro (1882-1889) demonstra a importância que esse periódico assumia, diante daquele contexto, para um grupo de oficiais. A capacidade de refletir sobre os problemas da corporação e de apresentar caminhos possíveis de estruturação de suas forças aparecia, nas páginas da revista, associada ao acervo de conhecimentos acumulados pela oficialidade por intermédio dos estudos formais, das leituras efetuadas, da prática vivenciada no exercício de suas funções e das oportunidades de contato com a experiência de exércitos estrangeiros. Embora o móvel imediato do envolvimento no debate estivesse referido à distribuição do poder e das posições na corporação, que interferiam nas possibilidades de ascensão na carreira, é notável a visão de conjunto e o nível de elaboração de propostas de que dispõem os oficiais que participam do debate. No que dizia respeito à formação de oficiais, para além de divergências pontuais, ganhava dimensão importante, nos artigos, a preocupação comum com a diminuição das distâncias entre as armas, sobretudo entre os dois blocos – as científicas e as não científicas – pela promoção de uma instrução mais sólida aos alunos inscritos nos cursos de infantaria e cavalaria. De modo geral, a ênfase recaía sobre a necessidade da instrução, tanto teórica quanto prática, como meio de afirmação do exército. O enfoque do tema insistia na qualificação de seus quadros como parte da construção de forças armadas mais eficientes, ao mesmo tempo em que a considerava patamar indispensável à projeção e conquista de reconhecimento pela sociedade. Nos discursos que circulavam no seio da oficialidade do exército nessa década, o protagonismo da instrução aparecia vinculado a dois aspectos considerados centrais para a elevação do nível da corporação: de um lado, a garantia da disciplina; de outro, a preparação para o uso das inovações tecnológicas que estavam transformando a guerra. Na representação construída nos discursos, a instrução aprimorada potencializaria o cumprimento das ordens pelo aumento da compreensão dos comandados a seu respeito. Pelo avesso, as dificuldades de disciplina no exército brasileiro eram pensadas como resultado de uma frágil formação. Pressupunha-se que o soldado intelectualmente mais bem preparado, compreenderia sua própria importância para a nação, lutando imbuído de verdadeiro sentimento patriótico. Um certo ideal de racionalidade se impunha como remédio para as atitudes movidas pela emoção, que estariam na base da indisciplina. Com relação à inovação tecnológica, a urgência de preparar a tropa para adequar-se às suas exigências direcionava os discursos para o anseio por estudos de caráter científico. Nas palavras de um orador daquele momento, dirigindo-se à alta oficialidade, encontramos uma imagem que sintetiza essa preocupação: para ele, a guerra deixara de ser escola para ser exame.7 Em sua explanação, argumentava que o tempo de concentração das tropas, que antecedia a luta propriamente dita, reduzira-se drasticamente, exigindo que o exército chegasse ao campo de batalha já treinado para se por em movimento. A velocidade que os novos armamentos imprimiam aos conflitos armados fazia com que a guerra se tornasse cada vez mais mental e menos corporal. Benjamin Constant e a reforma de 1887 Benjamin Constant integrava a geração de oficiais que, naquele momento, organizava-se em torno desses debates. Embora não se incluísse entre os articulistas da Revista do Exército Brasileiro, nem seu nome seja citado entre os participantes que faziam intervenções durante as chamadas Palestras militares, realizadas na Biblioteca do Exército, em 1885, sua presença na Escola Militar foi marcada por uma posição de liderança. Há um indício, ainda, em um dos documentos analisados para este trabalho8, de sua proximidade com o círculo da Revista do Exército Brasileiro, pois, ao referir-se a um livro publicado em francês, no ano anterior, afirma que ele pode ser encontrado na biblioteca da revista, o que indica que conhecia seu acervo e mantinha, com aquele ambiente, relações próximas. A solicitação feita pelo comandante da Escola Militar, em 1886, general Severiano da Fonseca, para que redigisse o projeto de um novo Regulamento, ou seja, que elaborasse ou sistematizasse um plano de reforma dos estudos ministrados naquela escola, também pode ser tomada como um indicador do respeito e confiança de que gozava naquele meio intelectual militar. Naquele contexto, suas idéias pareciam ganhar uma receptividade significativa entre importantes setores da oficialidade, ao mesmo tempo em que se abria uma oportunidade real para a participação de Benjamin Constant nos debates acerca da formação dos militares. No entanto, não era somente no âmbito do exército que Benjamin Constant vinha ganhando um grau considerável de reconhecimento profissional. No panorama educacional da Corte, a sua figura de professor e intelectual positivista também vinha recebendo, naqueles últimos anos, mostras progressivamente mais significativas de importância. A experiência adquirida ao 7 Senador Henrique d'Ávila, Palestras militares, Revista do Exército Brasileiro, ano quarto, 1885, p. 77. 8 Trata-se do Parecer ao conselheiro Tomás Coelho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da guerra, sobre a reforma da escola Militar da Corte, p. 4. 18 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército longo dos anos em instituições educativas do Império – tais como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, o Instituto Comercial do Rio de Janeiro, a Escola Politécnica e o Colégio de Pedro II – e o posicionamento diante de questões que passavam pela organização do campo educacional, qualificaram Benjamin Constant para uma inserção mais dinâmica no ambiente intelectual do país. Entre julho e agosto de 1880, Benjamin Constant participaria, na qualidade de diretor da Escola Normal, de uma comissão interna que avaliou os primeiros meses de experiência da Escola e propôs mudanças no regulamento então vigente. Em fevereiro do ano seguinte, foi escolhido para integrar a Comissão Especial formada para estudar a reforma das bases de cálculo das porcentagens das jóias e anuidades do Montepio Geral. As discussões mobilizaram importantes intelectuais do país e foram divulgadas pelos jornais da Corte e pelo Instituto Politécnico Brasileiro. Ainda naquele ano de 1881, Benjamin foi convidado a intervir em um debate que vinha mobilizando as energias intelectuais do país. Fora submetido à apreciação das congregações de diversos estabelecimentos de ensino do país, inclusive a Escola Normal da Corte, o projeto de reforma no ensino superior e de criação de uma universidade na Corte. Atuando como diretor da Escola, Benjamin seguiu, de maneira geral, a posição tomada pela Congregação da Escola Normal, votando contra o projeto e argumentando que a proposta era contrária à tendência geral e bem acentuada do movimento intelectual moderno (...) tendência que consiste essencialmente em por toda a parte o ensino público, ou seja científico, leigo e livre.9 Já em 1882, foi solicitado pelo novo Ministro do Império para que opinasse sobre as bases do Congresso Pedagógico Brasileiro que estava sendo organizado. Benjamin foi convidado a participar dos trabalhos da 1ª seção. Em seu parecer, de ordem pública, e destinado especificamente ao conjunto de autoridades do sistema educacional, criticou duramente os responsáveis pela situação em que se encontrava a instrução pública primária do país. Partindo da importância da educação como preparo para o exercício da cidadania e como instrumento de formação da visão de mundo do homem, criticou o espírito geral da instrução oferecida e a precariedade do direito à educação primária no país. Como destaca Renato Lemos, as constantes iniciativas que tomara, como professor, militar e intelectual positivista, no sentido de tentar reformar aspectos vistos como problemáticos da sociedade brasileira, acabavam esbarrando na inércia institucional do país. Tanto na Escola Normal, como no exército, suas concepções como professor, pedagogo e militar combinaram-se com uma progressiva tomada de consciência político-corporativa para dar um novo conteúdo ao seu relacionamento com o poder público.10 9 Apud LEMOS, Renato Luís Couto Neto e. Benjamin Constant: vida e história. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1997. (Tese de Doutorado em História). 10 Idem, p. 273. Em 21 de janeiro de 1887, o então major e repetidor interino da Escola Militar Benjamin Constant começava a redigir um novo projeto de Regulamento para a Escola Militar da Corte, intitulado Plano Geral de Ensino Teórico e Prático. A proposta, cuja solicitação havia sido feita pelo próprio comandante da Escola, general Severiano da Fonseca, definia um novo currículo para a Escola, e situava a instrução ali ministrada diante das “transformações” por que passava o mundo no final daquele século. Além de indicar a redistribuição dos conteúdos ensinados de acordo com a natural dependência entre as ciências e as suas leis gerais de desenvolvimento, o documento chama a atenção por tencionar oferecer aos oficiais militares uma sólida instrução científica indispensável a todo cidadão. No seu texto, o redator insistia para que se proporcionasse ao oficial do exército, além dos conteúdos puramente profissionais vinculados à teoria e à prática militar, uma instrução geral necessária ao bom desempenho de seus deveres cívicos e profissionais. Se desde o começo da década de 1880 circulavam, pelos diferentes espaços da corporação, propostas para a reforma de aspectos da educação militar que conferiam um lugar privilegiado à instrução da oficialidade, os anos subseqüentes demonstraram como a figura de Benjamin Constant acabou por ampliar, nesse movimento, a sua receptividade entre importantes setores do exército. Quando submetido à Congregação da Escola Militar da Corte, o projeto seria unanimemente apoiado e aceito por seus membros. Também, posteriormente, Benjamin Constant desempenharia um papel fundamental nas discussões sobre a reforma do Regulamento das Escolas Militares, influindo ativamente nas discussões que culminariam na organização do Regulamento das Escolas Militares de 1889. O trabalho de construção de uma direção político-cultural, como parte da constituição de um sujeito coletivo, contou, portanto, desde o primeiro momento de sua articulação, com a liderança que esse intelectual exercia, não só sobre a juventude. A conjugação entre sua projeção nos círculos fora do exército e a respeitabilidade interna à Escola Militar o posicionaria no Estado, de forma a transitar entre sociedade política e sociedade civil, na consecução de um certo consenso em torno da proposta que representava. O projeto da reforma e a construção do consenso O extenso projeto elaborado por Benjamin Constant, em 1887, estava dividido em duas partes: uma em que expunha o currículo proposto e outra na qual justificava a reorganização do conteúdo oferecido nas diferentes etapas da instrução dos oficiais. O documento inicia-se com a apresentação do Plano Geral de Ensino Teórico e Prático, em que são listadas as disciplinas a serem estudadas, sob a forma de aulas e cadeiras, por ano, a cada etapa da formação: Curso preparatório, Curso Geral e Cursos Especiais. Pelo plano, pretendia-se dividir a instrução oferecida na Escola Militar em dois níveis de ensino – um literário e científico, comum a História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (16-22) - 19 todas as armas e composto conjuntamente pelo ensino secundário anexo à Escola Militar (o Curso Preparatório) e um Curso Geral a ser instituído; e outro de caráter essencialmente profissional, composto dos cursos especiais das diferentes armas do exército: infantaria, cavalaria, artilharia, estado maior e engenharia militar. Interessante observar como sua concepção de formação inicia-se nos estudos preparatórios, que correspondiam ao nível secundário, deixando transparecer o quanto o ensino ministrado nesse curso, edificado pelos próprios militares durante as décadas anteriores, era caro a essa oficialidade. Benjamin não se detém em discuti-lo, posto que, àquela altura, seu formato seriado em três anos já atingira o ponto de estabilidade possível e necessário aos exames de ingresso na Escola Militar. Ainda assim, introduz modificações que acentuam seu duplo caráter propedêutico e de formação profissional. O texto valoriza essa característica, procurando demonstrar o quanto os conteúdos que o compõem estão relacionados ao conhecimento introdutório às disciplinas dos cursos superiores, ao mesmo tempo em que garantem a preparação do futuro agrimensor – profissão para a qual se destinava sua formação. Apesar de se dedicar à exposição dos diferentes grupos de instrução em separado, a ênfase da argumentação foi colocada na justificativa de organização do Curso Geral, comum às três armas do exército, que ocupa cerca de três quartos do documento. Diferentemente do que se vinha fazendo, Benjamin Constant estava propondo, através da criação do Curso Geral, o estabelecimento de uma instrução geral que condensasse, em uma pequena enciclopédia, os conhecimentos científicos fundamentais necessários a todos os oficiais. Aqui se encontrava o ponto de convergência de todo o debate empreendido pelos intelectuais do exército nesse período. Ao construir a proposta de um Curso Geral, Benjamin procurava atender ao desejo de que se eliminasse a distância na formação entre as armas científicas e as não científicas, ao mesmo tempo em que pretendia adensar a formação do conjunto dos oficiais, com um currículo recheado de disciplinas que, nas suas palavras, compreendiam todos os elementos constitutivos de uma sã instrução fundamental. As estratégias que utilizou para construir a argumentação constituem-se em indícios da relação que guardava a proposta por ele apresentada com o debate geral. Recorreu, por exemplo, ao registro da fala de um dos lentes catedráticos, Francisco Carlos da Luz, que, em reunião anterior da congregação, havia reclamado da redução constante da instrução científica destinada às armas da cavalaria e da infantaria, perceptível em todos os regulamentos do ensino militar desde 1845. Frisou, ainda, a reconhecida importância dessa instrução para formar cidadãos, palavra recorrente nos discursos dessa geração de oficiais. Os oficiais de infantaria e cavalaria são, ao mesmo tempo como os das outras armas, cidadãos e soldados, e precisam portanto da mesma instrução geral necessária ao simples cidadão, além da instrução técnica indispensável à sua conveniente adaptação à classe à qual se destinam, e portanto ao bom desempenho de seus importantes deveres. (...) Anotemos, embora de passagem, que a falta de homogeneidade na instrução geral do nosso exército é um dos principais sintomas característicos de sua anomalia constitucional atual. Levando-se em conta o público a que se destinava o documento que redigira, é possível supor que, não só o recurso de apoiar-se na fala de um dos componentes da Congregação, mas o tom geral do texto, buscava angariar adesão por meio de argumentos que construíssem a aproximação das percepções dos professores da escola. A expressão que sintetizava a proposta que buscava contemplar esse anseio por formação era instrução integral. Esse era o cerne da proposta de formação comum, condensada nos cursos preparatório e geral, entendida como “... resumo do que há de verdadeiramente útil e fundamental no saber real da humanidade, relativamente ao mundo, à sociedade e ao homem considerados em seus diferentes aspectos essenciais...”. Tanto nessa concepção quanto na forma como apareciam ordenadas as disciplinas, a instrução integral trazia um forte conteúdo positivista, aspecto já bastante associado à figura de Benjamin Constant pela historiografia. Também é admitido pelos historiadores que se dedicaram ao estudo do exército que, embora não fosse posição unânime, o positivismo encontrava ressonância nesse meio intelectual militar Lins, 1936). A linguagem de Benjamin Constant, no documento, expressa, então, tanto a sua adesão ao ideário de Augusto Comte, quanto a anuência dos professores da escola em relação a essa forma de entender a ciência e o ensino. Outro aspecto da escrita do documento que vale notar é a transcrição de parte do parecer que o mesmo Benjamin havia escrito sobre as escolas normais anos antes, e que, neste contexto, funciona como reafirmação de princípios que deveriam ser comuns a qualquer seleção de conteúdos para o ensino. Além de demonstrar a coerência do autor, a legitimidade de um texto já tornado público através de publicação oficial, funcionava como aval à proposta. Nessa passagem, não por acaso, a atenção está centrada na introdução das matérias de Moral e Sociologia, expressão pura do pensamento comtiano, e que, dentro do exército talvez fossem as mais estranhas à formação militar. A apresentação dos Cursos Especiais, etapa final da formação de oficiais em cada arma, segue a forma escritural que busca fundamentar a seleção e organização das disciplinas num arcabouço teórico mais amplo, de cunho positivista. A separação entre a parte teórica e a profissional é apresentada como normal, ou se já, a que corresponde à norma, à regra, à normalidade, que se identifica com a própria natureza dos fenômenos, das leis que os regem e das ciências que os estudam. Com o propósito, certamente, de conseguir o apoio da 20 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército congregação, o texto enfatiza a vantagem dessa separação, também, pela diminuição da carga de ensino teórico nesse nível, o que abria espaço para maior preparação prática. Essa era outra mudança ansiada pela oficialidade. Com essas características, o projeto submetido e aprovado pela Congregação foi encaminhado, pelo comandante da Escola, general Severiano da Fonseca, ao Ministro da Guerra Alfredo Rodrigues Fernando Chaves. Estratégias de enfrentamento na sociedade política No ano seguinte, o novo ministro, o conselheiro Tomás Coelho, constituiu uma comissão para avaliar a dita proposta de reforma e organizar um projeto de Reforma Geral para as Escolas Militares da Corte e do Rio Grande do Sul. O próprio Benjamin Constant participaria da Comissão, acompanhado pelo general José Simeão de Oliveira, o capitão de infantaria Belarmino Mendonça, e sob a presidência do general Severiano da Fonseca. A necessidade de reformar o ensino militar não era uma idéia que circulasse unicamente nos espaços restritos da oficialidade. Os relatórios dos Ministros da Guerra vinham insistentemente retomando esse ponto a cada início de ano, diante da Assembléia Geral. O texto do relatório de 1885 era bastante claro a esse respeito: escrita, transparece o clima de aliança nessa construção comum. Na carta de 23 de outubro de 1888, uma frase evidencia a expectativa de que Benjamin elaborasse o texto do parecer e, ainda, que conseguisse um efeito de escrita que deslocasse as propostas divergentes: Na exposição ponha à margem toda a modéstia.13 Também no diário de Benjamin Constant foram encontradas anotações a respeito das reuniões da comissão, dando conta de que as reuniões iniciavam-se às 11 horas e terminavam no meio ou final da tarde, conforme o dia. Em 24 de julho, escreve: O Ex.° Sr. Brigadeiro José Simeão concordou afinal com o plano por mim proposto para o ensino da Escola.14 O documento manuscrito, de que nos utilizamos para o presente trabalho, traz o título de Borrão do parecer dirigido ao Ministro da Guerra sobre a Reforma da Escola Militar da Corte. Igualmente extenso, esse texto difere daquele apresentado à Congregação da Escola, pela mudança de finalidade e de público receptor. Após a apresentação inicial, em que o texto remete o leitor aos documentos que embasaram os trabalhos da comissão – o projeto enviado pela Congregação da Escola da Corte e as alterações propostas pelo comandante da Escola do Rio Grande do Sul –, o trecho seguinte trata de dirigir o foco para duas preocupações centrais, a primeira por parte do governo, a segunda por parte dos oficiais. É evidente o tom de negociação: Penso que esses projetos além de não exigirem aumento nas despesas que atualmente faz o Estado com a manutenção dessas escolas, e não ferirem direitos adquiridos, abrindo ao contrário mais largos horizontes às justas e bem fundadas pretensões dos distintos lecionistas, ex-alunos que na qualidade de coadjuvantes do ensino, tem dado no lago [exercício?] do magistério, numerosas e exuberantes provas de sua elevada competência moral e profissional e do seu louvável devotamento à causa da instrução, consultam de modo racional, completo e eficaz, incomparavelmente superior ao dos atuais e anteriores regulamentos que estas escolas têm tido desde sua origem, as várias e complexas necessidades teóricas e profissionais de nossa instrução e educação militar. Em Relatórios apresentados por alguns de meus antecessores, tratando-se deste nosso mais importante estabelecimento de instrução militar, mostrou-se a urgente necessidade de dar-se-lhe novo Regulamento, no duplo intuito de fazer-se uma melhor distribuição das doutrinas que ali se professam.11 O encaminhamento da proposta assumida pela Congregação da Escola, portanto, além de seguir um trâmite esperado, respondia a uma demanda explicitada pelos próprios ministros. Isso explica o fato de que, diante do projeto pensado para a Escola Militar da Corte, a comissão tenha sido nomeada para uma tarefa mais abrangente, que incluía a Escola do Rio Grande do Sul. Mais uma vez, Severiano, agora no lugar de presidente dessa comissão, solicitou que Benjamin redigisse o documento final que relatava os trabalhos ali desenvolvidos, embora o mesmo fosse escrito na primeira pessoa e assinado pelo Presidente da Comissão. A informação de que coube a Benjamin essa redação é apresentada por Renato Lemos. 12 De fato, na documentação preservada no arquivo pessoal de Benjamin Constant, encontram-se várias cartas a ele endereçadas pelo general Severiano, durante o período de funcionamento da comissão. Nelas, percebe-se a cumplicidade dos dois na direção dos trabalhos, em que documentos são repassados e, apesar da objetividade da Vê-se que Benjamin seguiu à risca a instrução do general, já que, entre os professores coadjuvantes aos quais se referia, incluía-se ele mesmo. Talvez por escrever um texto que viria assinado por outrem isso tenha sido mais fácil. Porém, o que é mais importante nesse parágrafo é a maneira como a construção do primeiro período procura mascarar a divergência de 13 BC/Doc. Par. Esc. Mil. 888.10.23 Transcrito por MENDES, Raimundo Teixeira. Benjamin Constant. Esboço de uma apreciação sintética da vida e obra do Fundador da República Brasileira. Rio de Janeiro, Apostolado Positivista do Brasil, 1891-1894, v. 2, p. 198. 14 11 Relatório do Ministro do Império dos Negócios da Guerra apresentado à Assembléia Geral. Ano de 1885, p. 11. 12 LEMOS, Op. Cit., p. 323. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (16-22) - 21 posições que se havia manifestado entre os componentes da comissão, e que refletia a oposição entre interesses do governo – que devia contar com o apoio de oficiais – e da oficialidade intelectualizada, em particular aquela envolvida com o ensino militar. Na comissão, esse confronto ficou caracterizado pelo voto em separado de José Simeão de Oliveira, que havia proposto alguns dispositivos que atingiriam diretamente os professores militares. Na sua proposição, extinguir-se-ia a vitaliciedade das três categorias existentes – lentes, repetidores e professores – com o estabelecimento de períodos de exercício que durariam de três a cinco anos, sendo nomeados pelo comandante da escola após aprovação em concurso, mas podendo ser por ele demitidos a qualquer momento, em determinados casos. Tratava-se, como se pode ver, de um estratagema para retirar a autonomia dos professores militares, até então amparados pelo instituto do cargo vitalício, acentuando o poder dos comandantes das escolas, de quem, em última instância, dependeria a permanência em serviço. O parecer redigido por Benjamin teve de apresentar a proposta de Simeão, depois de ter exposto toda a fundamentação científica do formato geral que defendia. Tratava, entretanto, de deixar claro que as razões em que se baseou o distinto Sr. Brigadeiro (...) são de todo inaceitáveis. Passava, então, a demonstrar como a adoção daquele modelo, baseado nas escolas militares da Prússia, seria incompatível com a organização das escolas brasileiras. A seu ver, as escolas militares prussianas eram de caráter essencialmente prático, porque contavam com o ensino literário e científico em escolas não militares, o que não ocorria no Brasil, onde a mesma escola militar acumulava a função de ministrar a instrução geral. O verdadeiro substrato do debate em torno da vitaliciedade dizia respeito à disciplina. O texto do parecer é explícito mais adiante: Teme-se ainda que a vitaliciedade origine abusos e desmandos por parte do corpo docente, em detrimento da disciplina e da autoridade do comandante da escola. Este temor é completamente infundado. Não há um só fato que o justifique. (...) O que se deve temer e com fundadas razões, é que as corporações docentes sem as garantias de vitaliciedade fiquem a mercê dos abusos e dos desmandos dos comandantes das escolas e de outras autoridades, sofrendo grandemente com isso não só a sua dignidade, e o livre exercício de suas árduas e melindrosas funções, mas também a causa da instrução, principalmente num país em que o patronato é exigente e por demais ousado. Por esse exemplo, é possível depreender que esse documento guarda uma grande distância em relação ao que havia sido apresentado à Congregação da Escola Militar no ano anterior, não pelo conteúdo do projeto que defendia, mas pela função que deveria cumprir no debate, frente aos constrangimentos de suas condições de produção e às necessidades de preparar a recepção dos indivíduos a quem se destinava. O tom do documento é menos teórico e mais político, chegando a tangenciar a crítica aos próprios dirigentes do exército e do país. Os argumentos mobilizados no parecer, em relação à organização dos estudos aprovada pela Congregação, e que se procurava reafirmar naquela instância superior, apresentavam-se menos travestidos do linguajar comtiano. A lógica da organização curricular é demonstrada exclusivamente pela articulação entre as disciplinas dos Cursos Preparatório e Geral e as dos Cursos Especiais, de forma a explicitar a necessidade do estudo dos conhecimentos científicos fundamentais. Uma passagem sintetiza o esforço de convencimento de que o parecer está imbuído: Desde a sua entrada para a escola até terminar seu curso, a atenção do aluno é constante e sistematicamente citada para assuntos inerentes à profissão militar e para os múltiplos e[...] deveres de cidadão e soldado. A ênfase no vocabulário militar, na instrução técnica e na indispensável referência à literatura e aos exércitos europeus compõem, ainda, o arsenal estilístico instrumentalizado no texto. Nesse último caso, as citações em francês, de títulos e trechos de obras militares, adequava-se às práticas discursivas do meio militar daquele momento. Por outro lado, cabe notar o cuidado em preservar a autonomia em relação aos modelos externos, com a análise crítica da instrução do exército prussiano, considerado o mais bem preparado de todos, após a vitória sobre o exército francês em 1870. Com sua referência crítica, Benjamin, ao mesmo tempo, demonstrava sua ilustração de oficial estudioso – expressão característica da Revista do Exército Brasileiro – e demolia antecipadamente argumentos que imaginava poderem ser levantados por seus opositores. Enfim, a comissão era uma frente de batalha, em que a objetividade, o conhecimento militar e o argumento técnico seriam as melhores armas de defesa de um projeto. Projeto que havia elaborado, mas que sabia representar as aspirações de boa parte da oficialidade que lhe era próxima, fato expresso na aprovação unânime da Congregação da Escola Militar. Sua responsabilidade e compromisso apareciam traduzidos, ainda, na confiança depositada pelo general Severiano da Fonseca que, nas duas ocasiões o convocou. Os desdobramentos dessa movimentação, entretanto, não seriam os mais felizes. Pelo que se pode observar do Regulamento finalmente aprovado em 1889, as vitórias obtidas na Congregação e na comissão ministerial não foram suficientes para garantir uma reforma do ensino militar sintonizada com os princípios defendidos pela intelectualidade do exército. No diário de Benjamin Constant, anotações de fevereiro de 1889 mostram-no ainda às voltas com esse embate, escrevendo: Estive todo o dia lendo e escrevendo para preparar o plano de reforma que devia apresentar ao Ministro da Guerra em substituição ao dele que é mau.15 15 Transcrito por TEIXEIRA MENDES, Op. Cit., v. 2, p. 199. 22 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército Parece, porém, que o investimento foi inútil. Severiano morreria logo após a promulgação do novo Regulamento. Considerações finais Este trabalho concentrou-se em abordar a participação de Benjamin Constant na construção da proposta de reforma dos estudos militares na segunda metade da década de 1880, por meio da análise de dois documentos que redigiu. A análise que empreendemos procurou demonstrar como as idéias que defendia, integravam um conjunto de demandas que ultrapassavam sua percepção individual, sendo partilhadas por aquela intelectualidade militar. Por outro lado, na escrita dos documentos, é possível perceber sua capacidade de operar com ferramentas intelectuais que permitem moldar o discurso aos diferentes momentos e públicos, lidando com os constrangimentos postos na busca de adesão e consentimento. A palavra torna-se arma na luta por um projeto coletivo que aposta na formação intelectual sólida como pré-requisito de uma atitude cidadã. O soldado seria mais cidadão quanto mais científica fosse a escola de sua preparação. A instrução integral, fundada num conhecimento enciclopédico, era a bandeira desfraldada por aquela oficialidade, que contava com a competência de Benjamin Constant para defendê-la, ao traduzir sua bagagem positivista associada à sua experiência pedagógica na elaboração de um projeto. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (23-28) - 23 O“ ”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República Romulo Costa Mattos1 A rticuladores vitoriosos e orgulhosos do golpe que pôs fim à monarquia no Brasil, os militares de alta patente, na virada do século XIX para o XX, sentiam os efeitos da perda do controle político para os setores cafeeiros de São Paulo. Mas, enquanto marechais, generais e almirantes se preocupavam com a diminuição de seu poder e prestígio no plano da política institucional brasileira, militares de baixa patente viviam no Rio de Janeiro outro tipo de problema, de ordem social: os efeitos da crise habitacional que assolou a cidade. Nesse contexto, muitos membros das Forças Armadas, proletarizados, subiram os morros e construíram “barracos” e “casebres” para abrigar a si e aos seus familiares. Além de apresentar indícios de que os militares de baixa patente estavam entre os primeiros habitantes das favelas cariocas, este artigo mostra como os mesmos acabaram sendo alvo de uma campanha sistemática da grande imprensa, no sentido estigmatizar os padrões comportamentais dos moradores desse tipo de assentamento habitacional. Dessa prática, identificamos uma questão curiosa nas páginas dos diários cariocas da Primeira República: seriam os militares que moravam em favelas defensores da pátria ou membros das “classes perigosas”?2 I O primeiro aspecto a ser abordado nesse texto diz respeito ao fato de que os militares de baixa patente estão relacionados com o surgimento das favelas cariocas. Entre 1893 e 1894, por exemplo, soldados que combateram a Revolta da Armada se instalaram no morro de Santo Antônio, no centro da cidade, sendo comprovadamente os seus primeiros moradores. Documentos oficiais mostram que, em 1897, já havia nesse morro 41 “barracões” construídos por praças do 7º Batalhão de Infantaria de Linha do Exército, com autorização do Coronel Moreira César.3 Quanto ao 1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Universidade Severino Sombra (USS). 2 Nas últimas décadas do século XIX, era possível distinguir uma lógica dominante nos debates parlamentares brasileiros: “os pobres carregavam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os pobres são, por definição, perigosos”. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 22. 3 ABREU, Mauricio de Almeida; VAZ, Lilian Fessler. Sobre as origens da favela. IV Encontro Nacional da ANPUR, Salvador, 1991. p. 489. povoamento do morro da Providência, localizado na região portuária, é provável que tenha sido iniciado por ex-moradores do cortiço Cabeça de Porco, demolido por ordem do prefeito Barata Ribeiro, em 1893.4 No entanto, a ocupação dessa colina só veio a ganhar características de adensamento e aglomeração em 1897, com a chegada de soldados que defenderam a República na Guerra de Canudos. Apesar da inexistência de documentos que comprovem esse episódio, geralmente considerado o mito de origem das favelas no Rio de Janeiro, há toda uma tradição oral que vai ao encontro de tal realidade. O morro da Providência merece mais atenção, uma vez que nele a herança deixada pelos integrantes das Forças Armadas foi ainda mais forte. O próprio termo favela – tal como o entendemos nos dias de hoje – está relacionado com a chegada das tropas republicanas a essa colina. É necessário explicar que, no município de Monte Santo, na Bahia, as tropas oficiais se alojaram em torno do morro da Favela, que tinha esse nome, justamente, por ser coberto por uma planta conhecida como favela. A questão é que a estada dos soldados da União ali acumulou baixas e desmoralizou a expedição.5 Como uma parte dos combatentes retornados ao Rio de Janeiro se alojou no morro da Providência, com o passar do tempo, ele também passou a ser chamado pela população da cidade de morro da Favela. Se essa mudança de nome pode ser observada na grande imprensa por volta de 1902, a forma substantivada e com f minúsculo da palavra favela apareceria somente em meados década de 1920.6 Folheando os jornais da Primeira República, é possível encontrar alusões à presença dos veteranos de Canudos no morro da Favela, o que geralmente se dava de forma pejorativa. Em 1909,7 o Correio da Manhã escreveu sobre o ex-praça do exército Julio de Souza Arruda, de 27 anos, “que diz ser um dos heróis de 4 VAZ, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol. 1, n. 2, 1986. p. 35. 5 CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora; Publifolha, 2000. p. 362. 6 ABREU, Mauricio de Almeida. Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão das favelas no Rio de Janeiro. Espaço & Debates, São Paulo, v.14, n. 37, 1994. p. 40. 7 Contextualizando, esse ano correspondeu ao auge da estigmatização imposta pelos jornalistas aos moradores das favelas. Nele observamos a alta dos aluguéis combinada com o aumento do custo dos gêneros alimentícios e a eclosão de uma revolta popular motivada pela alteração no trajeto dos bondes da Light. Desde 1908, as greves haviam retomado um ritmo ascendente, tendo culminado em 1912 e 1913 com a campanha 24 - O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República Canudos”.8 O texto ironizava esse “homenzinho [que] tem um gênio levado de todos os diabos”. Segundo o periódico, o fato de Julio não ter conseguido iniciar uma briga com “um rixento como ele [...] revoltou-lhe o sangue escaldante e pior ficou ingerindo copos de paraty”.9 Note-se aqui a associação da suposta agressividade do ex-militar e morador do morro com o álcool – lembrando que a campanha contra o consumo dessa substância foi uma constante na Primeira República, tendo envolvido preocupações médicas e policiais.10 Seja como for, “bêbedo e a chorar de raiva por não encontrar o outro, Julio que se achava no morro da Favela, vingou-se em seu próprio corpo golpeando com diversos talhos o braço direito”.11 Percebamos no trecho acima que o repórter incluiu o nome do morro da Favela na narrativa para dar relevância à reportagem e prender a atenção dos leitores, acostumados que estavam com as notícias de desordem envolvendo a localidade. No encerramento do texto, lemos que, “Tinto de sangue”, Julio foi preso e depois conduzido para o Posto Central da Assistência, onde o médico Augusto Costallat “teve ocasião de apreciar quanto valia a língua desbragada do pavoroso caboclo”. Portanto, a referência racial não foi esquecida, tendo aparecido na última linha da matéria.12 Um detalhe nessa reportagem é que não podemos acreditar na afirmação de que o ex-praça feriu o próprio braço por não ter encontrado uma pessoa com quem pudesse brigar. Provavelmente, Julio ocultou o nome de seu agressor, por ter preferido a “privatização” do conflito. Devido à descrença de que as autoridades policiais e judiciais pudessem arbitrar seus conflitos, os trabalhadores recorriam à “resolução de acordo com as regras de comportamento próprias do grupo sociocultural em questão”.13 Voltemos então à década de 1890, que foi marcada por distúrbios políticos, interdições e demolições de cortiços e crise habitacional. Nela os militares de baixa patente iniciaram ou adensaram a ocupação das primeiras favelas surgidas no Rio de Janeiro, sendo elas o morro de Santo Antonio e o morro da contra a carestia, a reorganização e o congresso operários e a luta contra o desemprego. MATTOS, Romulo Costa. A “aldeia do mal”. O Morro da Favela e a construção social das favelas durante a Primeira República. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. pp. 72-87. 8 Correio da Manhã. “Um herói de Canudos – Feriu-se cheio de raiva”. 26 de janeiro de 1909. 9 Idem. 10 MENEZES, Ary Fialho de. Aspectos Médicos e legais da luta anti-alcoólica no Rio de Janeiro, entre 1915-1940. A construção de demandas e de objetos de saber. Monografia (Especialização em Assistência a Dependentes de Álcool e outras Drogas) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. 11 Correio da Manhã. op. cit. 12 Idem. 13 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: Edunicamp, 2001. p. 304. Providência, mais tarde chamado de morro da Favela. É possível encontrar na grande imprensa indícios ou mesmo provas de que os soldados rasos criaram ou integraram a primeira leva de moradores de favelas que se encontravam distantes do perímetro central da cidade. Em 190714, o Correio da Manhã enviou uma equipe para conhecer o morro da Babilônia, localizado no bairro do Leme. O autor da matéria conversou com o morador João Carlos de Andrade, ex-praça do batalhão de engenheiros, que servia como ordenança do coronel Muniz Freire. “Tendo baixa e não podendo com a carestia de vida na cidade recolheu-se com a sua companheira”.15 O homem vendia bengalas de pequiá, produzidas pelo próprio, enquanto a sua companheira vendia em Copacabana aipim, batatas e frutas extraídas da horta do casal. O repórter travou contato também com o pernambucano Antonio José Bernardo, outro ex-praça do batalhão de engenheiros, que era “um dos mais antigos moradores da montanha” (grifo nosso). Veterano, tendo participado das campanhas do Uruguai e do Paraguai, sofria de reumatismo: “Que quer, meu senhor? aquela vida danada, às vezes toda uma noite nos banhados com água até a cima, à espera do inimigo...”. O interessante é que sua companheira, “uma cabocla rio-grandense”16, deixara o sul com um marinheiro, que morreu no Rio de Janeiro. Essa mulher não era a única no morro que perdera um companheiro militar na capital federal. O já citado João Andrade, ao ser perguntado sobre os seus vizinhos, respondeu: “Aqui perto mora uma muié, viúva d'um sordado; vive com o fio trabaiando na roça. Boa gente”.17 Note-se que o redator teve a intenção de aproximar o vocabulário dos habitantes da colina aos dos sertanejos. Era difundido o pensamento de que as favelas seriam, no melhor jargão euclidiano, sertões em plena capital federal.18 O mais intrigante foi a suposta relação estabelecida por aquele homem entre a forma de ocupação do morro da Babilônia e o cotidiano dos 14 Nessa conjuntura, os jornalistas já trabalhavam com a ideia de que as reformas urbanas haviam provocado a expansão das favelas na cidade. As matérias sobre esse tipo de assentamento habitacional assumiram um tom mais agressivo, ao mesmo tempo que ele passava a ser a principal representação de moradia popular – condição que antes pertencia aos cortiços. O Estado também começou a se preocupar mais com a ocupação dos morros pelos trabalhadores: os habitantes do morro da Favela, por exemplo, foram intimados pelo diretor geral de Saúde Pública Oswaldo Cruz a abandonarem suas casas, que seriam demolidas. A resistência dos primeiros, além de ter impedido a concretização de tal medida, colocou o tema das favelas no primeiro plano dos noticiários – o que explica a publicação da matéria que analisaremos a seguir. MATTOS, Romulo Costa. op. cit. pp. 58-72. 15 Correio da Manhã. “No morro da Babilônia”. 02 de julho de 1907. Data citada em: ABREU, Mauricio de Almeida. op. cit. p. 38. 16 Idem. 17 Idem. 18 Licia Valadares afirmou que o “mito de Canudos” esteve presente em várias descrições realizadas sobre as favelas na Primeira República. VALLADARES, Maria Licia do Prado. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 15, n. 44, out., 2000. pp. 09-12. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (23-28) - 25 militares: “aqui p´ra cima, como isto já teve baterias, é assim como um veterano, é militá reformado. A gente chega, escoie um canto, finca os esteio, barreia e fica morando”.19 Embora, é claro, não possamos garantir a fidelidade da reprodução dos depoimentos dos moradores pelo jornalista, o Correio da Manhã se preocupou em comprovar a veracidade das personagens e paisagens abordadas na reportagem com a farta publicação de fotos. Mesmo se aceitarmos a hipótese de que tais depoimentos foram deliberadamente inventados pelos repórteres20, ainda assim seria significativa a insistência do periódico no tema dos militares reformados no morro... Passemos da zona sul para a zona norte do Rio de Janeiro, e da década de 1900 para a de 1910, quando surgiram diversas favelas no tecido urbano da cidade, que apresentavam em comum a localização nas encostas dos morros e a proximidade de importantes fontes de emprego. Em 1916, o Correio da Manhã denunciou o surgimento de uma favela em plena Vila Militar. Segundo o jornal, a inação das autoridades civis e do Exército estava fazendo das aldeias regimentais “pontos perigosos para a ordem e também em foco de moléstias pela falta de higiene e imundície que ali se nota”.21 Nessa passagem, vemos a união da retórica da segurança com a da saúde pública, sendo que os pobres podiam ser perigosos também pelo risco que ofereceriam à higiene da cidade. Por essa razão, o jornal pedia “ao digno coronel Monteiro de Barros que lance suas vistas para os lados da Olaria, onde se estão formando uma verdadeira Favela, constituída por praças dos regimentos de infantaria e artilharia”.22 Percebamos que a palavra Favela foi escrita com f maiúsculo, como referência ao morro da Favela, considerado pela grande imprensa o principal território das “classes perigosas” na capital; utilizá-lo como exemplo podia garantir o entendimento correto do conteúdo do texto pelo público consumidor de notícias, de acordo com as intenções do autor. Cabe enfatizar que essa reportagem antecipa uma problemática que iremos explorar mais detalhadamente no próximo tópico deste artigo: muitas vezes, longe de serem abordados pela grande imprensa como defensores da pátria, os militares que moravam em favelas eram tratados como integrantes das “classes perigosas”. O periódico salientava “o estado de anarquia e imoralidade que dominam na aldeia do 2o regimento de infantaria, para onde tem ultimamente afluído toda a escória que tem sido corrida do 10o regimento de infantaria”. E encerrava a matéria com o pensamento de que o morro do Capão seria “coito de tudo que é ruim e pernicioso”, uma vez nele ocorreriam “atos criminosos e imorais [de] desertores [e] analfabetos”.23 19 Correio da Manhã. “No morro da Babilônia”... Podemos ler em um romance de Lima Barreto a afirmação de que, nessa época, o jornalista “possuía uma imaginação doentia”. BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Editora Brasiliense, 1976. p. 127. 20 21 Correio da Manhã. “A Vila Militar e a sua Favela”. 07 de janeiro de 1916. 22 Idem. Idem. 23 Os ataques contra os moradores da Vila Militar, citados no parágrafo anterior, devem ser analisados mais detalhadamente. Em primeiro lugar, vemos a menção a um “estado de anarquia”; ou seja, os militares eram associados a uma vertente política que era vista pelas classes dominantes como a principal promotora da desordem no país, uma flor exótica em meio à suposta índole pacífica do trabalhador brasileiro. Não obstante, o criminologista italiano Cesare Lombroso afirmou em seus estudos que os anarquistas seriam criminosos natos, em virtude de um desvio de histeria dos mesmos.24 Em segundo, observamos a referência à “imoralidade” de tais soldados, uma acusação relevante em um contexto de tentativa de imposição dos padrões e valores burgueses à população. Em terceiro, assistimos à denúncia de que haveria “desertores” no morro do Capão, o que era recorrente em relação às favelas. De fato, era grande o número de deserções na cidade, o que se relacionava com a aversão popular ao serviço militar, explicada, entre outros motivos, pela continuidade da aplicação dos castigos físicos aos soldados.25 Por fim, notamos a alusão aos “analfabetos”, os quais também poderiam constituir perigo para as elites, conforme Olavo Bilac escreveu por ocasião da Revolta da Vacina: “Quem não sabe ler [...] não é homem, é um instrumento passivo e triste, que todos os espertos podem manejar sem receio”.26 II Presente na reportagem acima analisada, a estigmatização dos militares que moravam em favelas era uma prática comum nos jornais da Primeira República, conforme veremos neste tópico. Antes de aprofundarmos essa reflexão, é importante perceber que era disseminada a ideia segundo a qual os soldados rasos compunham uma parcela significativa da população das favelas. Ao refletir sobre a pobreza no Rio de Janeiro do início da década de 192027, Lima Barreto referiu-se aos “soldados e lavadeiras da Favela”.28 Portanto, mesmo descrevendo em poucas palavras os habitantes desse morro, o cronista não deixou de mencionar os militares de baixa patente. 24 SAMIS, Alexandre. Clevelândia. Anarquismo, Sindicalismo e Repressão Política no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Imaginário/Achiamé, 2002. Ver capítulo 2, “Operários, repressão e polícia nos anos 20”. 25 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2008. pp. 87-88. 26 Apud: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. As barricadas da Saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. p. 110. 27 Nesse decênio, o processo de favelização na cidade se tornou “multidirecional e incontrolável”. ABREU, Mauricio de Almeida. op. cit. p. 38. Esse fenômeno foi incrementado pela compra de lotes pelo trabalhador suburbano para a realização da chamada autoconstrução. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiros. Dos cortiços aos condomínios fechados. As formas da produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: IPPUR, UFRJ: Fase, 1997. pp. 197, 198. 28 BARRETO, Lima. “O Prefeito e o povo”. In: BARRETO, Lima. Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956. p. 117. (Careta, 15 de janeiro de 1921). 26 - O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República Outro intelectual militante da classe trabalhadora abordou os soldados que residiam em favelas, sem a intenção de estigmatizá-los. A respeito do morro de Santo Antonio, Evaristo de Moraes afirmou, em 1909: “Assim se confundem na mesma desmoralizadora penúria, os representantes da nossa força armada, com certos miseráveis que vão esconder naquelas choupanas a hediondez de suas vidas”.29 Note-se que o objetivo do chamado advogado dos operários era denunciar a situação, no seu entender degradante, dos integrantes das Forças Armadas em tal colina. Por essa razão, ressaltou que os mesmos viveriam “esquecidos de todos os preceitos da Higiene, vitimados por toda sorte de degradações físicas e morais”.30 A questão é que, conforme afirmamos, os pobres eram considerados perigosos não apenas pelo risco que ofereceriam à ordem, mas também à higiene pública, considerando-se as históricas epidemias que assolavam a cidade do Rio de Janeiro, principalmente no verão. Ou seja, mesmo escrevendo com a finalidade de defender os militares que moravam no morro de Santo Antonio, ao reproduzir os postulados higienistas, Evaristo de Moraes reforçava o pensamento de que tais pessoas pertenceriam às “classes perigosas”. Convém então não perder de vista os discursos pejorativos sobre os membros das Forças Armadas que habitavam as favelas. A seguir, analisaremos três reportagens sobre o morro da Favela – publicadas na primeira década do século XX pelo Correio da Manhã –, para vermos em detalhes como os militares de baixa patente podiam ser considerados nocivos à capital da República. Em abril de 190531, a matéria intitulada “Tentativa de assassinato” anunciava com dramaticidade: “Um amante desprezado, vendo-se ferido do seu amor próprio não trepidou em, com uma arma assassina, tentar por termo aos duros sofrimentos que lhe invadiam a alma apaixonada, despertando contra si, ao mesmo tempo, o mais profundo rancor”.32 É nítida, portanto, a forma romanceada com o que o jornalista iniciou sua reportagem. Segundo o Correio da Manhã, com o tempo vieram as brigas e, vez ou outra, o nordestino ofendia sua companheira com toda a sorte de impropérios e tentava espancá-la. A narrativa do ataque de José Francisco a sua “amásia” seguia os romances naturalistas, uma vez que o homem se deixava guiar pelos instintos biológicos: “Com um olhar brilhante, fulo de raiva, Francisco tentou fazê-la calar e sacando da tesoura, de que se achava armado, cravou-a no ombro direito da infeliz, penetrando a arma cerca de quatro polegadas”. O periodista contava o desenrolar da história como se estivesse presente no momento da contenda: “Um grito de dor irrompeu dos lábios da pobre vítima que, numa luta horrível, tentava arrancar a arma das mãos do estúpido assassino!”.33 Vale observar que, mesmo não tendo matado sua companheira, José Francisco foi taxado de “estúpido assassino”. Mais adiante, o autor da matéria enfatizou o derramamento de sangue, o elemento por excelência da narrativa sensacional: “A infeliz caiu por terra, banhada num lago de sangue”. A emoção não parou por aí, tendo o repórter guardado mais uma novidade para o leitor. Eis que apareceu em socorro à vitima a vizinha Maria Antonieta: “Atracaram-se ambos numa titânica luta, Francisco, com uma agilidade indescritível, vibrou-lhe um profundo golpe nas costas, fugindo em seguida”.34 Vemos na sugestão de uma “agilidade incrível” mais uma influência dos romances naturalistas, posto que o agressor parecia ter os reflexos de uma fera, provavelmente, de um felino. Mesmo ferida, Maria Antonia correu para a rua, gritando por socorro. Alguns vizinhos, que já haviam corrido para o local, prestaram os devidos socorros às duas vítimas, enquanto outros corriam ao encalço do “criminoso”. A narrativa se encerrava com a captura de José Francisco, realizada por outro militar que morava no morro: A descer a ladeira, numa carreira vertiginosa, com as vestes tintas de sangue e rotas, foi ele surpreendido pela praça do 10º batalhão de infantaria José Joaquim da Costa e os srs. João Jorge Vidal, Julio de Andrade Bastos e Francisco Pereira de Lima que, agarrando-o, conseguiram prendê-lo. O agressor José Francisco era natural da Paraíba do Norte, onde verificara praça no 23º Batalhão de Infantaria. No Rio de Janeiro, “amasiou-se com uma linda rapariga” chamada Luiza Baptistina da Silva, com quem foi residir no Beco dos Melões, no morro da Favela. 29 Correio da Manhã. “A habitação”. 02 de junho de 1909. Idem. 31 Nesse ano, os impactos sociais das reformas urbanas começaram a ser percebidos mais nitidamente por diversos setores da sociedade. Houve, sobretudo, um forte clamor popular relacionado com o agravamento da crise de moradias. Os reflexos da insatisfação dos trabalhadores – que, durante o governo de Rodrigues Alves, passaram a ter nas greves uma nova estratégia de luta – podem ser vistos na campanha pela construção de casas “higiênicas” promovida pela grande imprensa e na movimentação do Estado em torno do tema da habitação. MATTOS, Romulo Costa. Pelos Pobres! As campanhas pela construção de habitações populares e o discurso sobre as favelas na Primeira República. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. pp. 45-53. 32 Correio da Manhã. “Tentativa de assassinato”. 23 de abril de 1905. 30 O redator lançou mão de uma descrição do “criminoso”, em que ressaltava a sua ligação com as Forças Armadas: Tipo perfeito de nortista, rosto quadrado, cabeça grande e um tanto achatada, cabelos encaracolados, olhos vivos, tem Francisco uma entonação particular na fala, deixando a cada momento escapar frases que [definem] perfeitamente a mais antiga posição de soldado.35 33 Idem. Idem. 35 Idem. 34 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (23-28) - 27 No trecho acima, podemos perceber também resquícios da frenologia de Lombroso.36 Baptistina foi atendida em uma farmácia e depois encaminhada para sua casa, enquanto Maria Antonieta apresentou ferimento sem gravidade. Já Francisco foi remetido para a Detenção. Note-se que o estardalhaço feito pelo Correio da Manhã com a ocorrência policial, “uma cena de sangue emocionante”37, não correspondia à gravidade do conflito. Vemos, inclusive, que Baptistina foi socorrida em uma farmácia, não tendo sido necessário levá-la à Santa Casa; portanto, os seus ferimentos também foram leves. depoimento. Após ser autuado em flagrante, Alfredo foi novamente removido para o seu Batalhão.40 Cabe o esclarecimento de que oficiais das Forças Armadas intervinham frequentemente e perturbavam a rotina da atividade policial. A prisão de um desordeiro podia ser tumultuada pela aparição repentina de um militar a interceder pelo suposto criminoso, disposto a fazer valer a autoridade de seu cargo. Um problema comum na ação policial ocorria quando um preso ou envolvido, vestido à paisana, declarava ser oficial do exército, sem disso apresentar prova.41 Fica evidente o objetivo da grande imprensa de dar ênfase aos conflitos ocorridos nas favelas no contexto das reformas urbanas, movimento em que os militares de baixa patente foram incluídos, de forma negativa. Embora criticasse fervorosamente as obras de renovação espacial empreendidas por Pereira Passos e Rodrigues Alves, o Correio da Manhã não poupou os trabalhadores do estigma das “classes perigosas”. Outra briga conjugal ocorrida no morro da Favela teve como protagonistas Amélia de Brito e Alfredo Ramos da Silva, ex-praça do 16º Batalhão de Infantaria na Bahia e, na época da reportagem, praça do 10º Batalhão de Infantaria da capital da República. O sonho do casal de se mudar para o Rio de Janeiro foi concretizado quando o pedido de transferência de Alfredo foi aceito pelo Exército. De acordo com o Correio da Manhã, os dois viviam na Bahia “em completa paz, já pelo procedimento bom da moça, já pelo carinho que ela dispensava a seu companheiro”.38 Essa reportagem do Correio da Manhã levantou um aspecto que não pode passar despercebido: a ideia de que Alfredo Ramos da Silva seria uma “perversa praça”.42 Vemos nessa frase que a grande imprensa deflagrara o processo de estigmatização dos militares que residiam em favelas. O problema aqui é que os portadores do estigma não são considerados completamente humanos, motivo pelo qual se constrói uma ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo representado. Racionaliza-se, assim, uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social.43 Em apenas 15 dias de Rio de Janeiro, o casal brigou seriamente, por um motivo claro: “Chegados eles a esta capital, foram residir no morro da Favela [...] lugar viciado [...] quase não se respeita quem lá reside”. Nessa localidade estigmatizada pelo jornal, Alfredo teria passado a desconfiar do comportamento de sua companheira: “Depois de aí estabelecidos, começou Alfredo a cismar que sua companheira não estava procedendo como dantes”. A agressividade do homem contrastava com a serenidade da vítima: “Esta, como tivesse a consciência tranqüila, respondeu às suas interrogativas, ao que Alfredo, mais indignado ainda, armou-se de uma enxada e, sem dó nem piedade, começou a esbordoá-la”.39 Os gritos da moça atraíram diversas pessoas, entre as quais David Ribeiro, também praça, embora do 23º Batalhão de Infantaria. A disputa entre a polícia e o Exército aparece sutilmente na narrativa do desfecho desse caso. David Ribeiro levou o seu colega agressor para o quartel. No entanto, o delegado da 9ª Delegacia urbana requisitou ao Exército o comparecimento de Alfredo Ramos da Silva, para que esse prestasse 36 O criminologista italiano achava que o tipo físico do criminoso era tão previsível que seria possível delimitá-lo de forma objetiva. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 49, 166. 37 Correio da Manhã. “Tentativa de assassinato”... 38 Correio da Manhã. “Amante feroz – Quase morta – No morro da Favela”. 25 de junho de 1905. 39 Idem. Em termos de discursos negativos contra os moradores dos morros cariocas, o exemplo mais contundente foi a matéria intitulada “Os dramas da Favela”44, de 1909, ano que correspondeu ao auge dos ataques da grande imprensa contra tais pessoas, conforme dissemos. Na introdução da reportagem, o Correio da Manhã publicou que o morro da Favela seria a “aldeia do mal” e também o “endemoninhado vilarejo”, entre outras ofensas. Nesse caso, além da sugestão de que a colina seria um povoado primitivo situado à margem da capital (“aldeia” e “vilarejo”) – no que podemos entrever a manifestação de uma distância simbólica –, cabe apontar que o demônio é o mal supremo na tradição cristã (“endemoninhado”). A associação do morro ao cotidiano dos militares de baixa patente foi bastante pejorativa: “A Favela é o grande mercado da prostituição barata, é o porto de rendez-vous da soldadesca”.45 Vale dizer que a prostituição era vista como um mal moral e sanitário; com a modernização, o saber médico condenou essa prática por ser um dos aspectos que expressariam o perfil caótico e colonial da cidade.46 Nessa perspectiva, os membros das Forças Armadas engrossariam a massa dos “habituées da Favela”47, entendidos como aqueles que “decidem ali 40 Idem. BRETAS, Marcos. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p. 58. 42 Correio da Manhã. “Amante feroz – Quase morta – No morro da Favela”... 43 GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp. 14, 15. 44 Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”. 05 de julho de 1909. 45 Idem. 46 Ver: ENGEL, Magali Gouveia. Meretrizes e doutores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989. 47 Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”... 41 28 - O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República todas as suas pendências, com um duelo à faca ou com dúzia e meia de tiros de revólver”. Na condição de moradores ou frequentadores do morro, os soldados rasos dariam sua contribuição aos “dias de muito sangue, [às] tardes de refrega, em que há tripas humanas expostas ao sol ou à lua”. O episódio que inspirou essas linhas agressivas foi protagonizado pelo corneteiro do Exército Manoel Nogueira da Silva, que matou a golpes de navalha o soldado da polícia Isidro José dos Santos. Também envolvido no conflito, Manoel Sant'Anna, cuja profissão não foi informada pelo jornal, saiu ferido à bala. O assassino foi encontrado por acaso pela polícia. De passagem pela Rua dos Arcos, no bairro da Lapa, o militar se vangloriou por ter dado uma navalhada “nas tripas de um meganha que com ele se metera em um conflito na Favela”.48 Através de uma rede de comunicações aparentemente despretensiosa, a polícia tomou conhecimento dessa autopropaganda e chegou até Silva. Baleado, Sant'Anna preferiu a “privatização” do conflito: afirmou que não sabia por quem havia sido atingido, pois se tratava de uma bala perdida. Já os outros presos disseram que não conheciam a pessoa que morrera. Esse parece ter sido mais um conflito resultante da rivalidade que opunha polícia e Exército no Distrito Federal. A transitividade existente entre a população marginal e o serviço militar garantia uma permanente antipatia dos inferiores das Forças Armadas contra os policiais.49 Além de uma caprichada introdução, a reportagem “Os dramas da Favela” também tinha uma espécie de conclusão, na qual “as tradições da aldeia da morte”50 eram ressaltadas: “Eis como a Favela recolheu mais uma página para a sua história vermelha – mandando para outros mundos um desgraçado soldado [...] e pondo em risco de ter igual fim um outro homem, que talvez já não pertença ao número dos vivos”. Sendo o terror o espaço do medo, o morro da Favela ganhava vida e se personificava. Transformada em uma personagem criminosa, a localidade virava protagonista de um folhetim policial: o jornalista escreveu as palavras “história” e “página”. III No entender das classes dominantes, não haveria lugar para as favelas em uma cidade-capital, que tinha por função exercer o papel de foco da civilização, núcleo da modernidade, teatro de poder e lugar de memória.51 Por esse motivo, os diários cariocas promoveram campanhas sistemáticas contra a permanência desse tipo de assentamento habitacional no Rio de Janeiro, nas quais os seus moradores foram tratados como membros das “classes perigosas”. Nesse movimento, foram também estigmatizados os homens das Forças Armadas que, pauperizados, subiram os morros em busca de uma moradia barata ou mesmo sem custo – lembrando que 48 Idem. BRETAS, Marcos. op. cit. p. 55. 50 Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”... 51 SILVA, Marly Motta. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 09. 49 a Primeira República foi o período em que a crise habitacional assumiu grandes proporções no Distrito Federal. Segundo a grande imprensa, esse seria o problema número um da época. É importante frisar que, historicamente, havia uma percepção social negativa em torno dos militares de baixa patente. No século XIX, o recrutamento forçado levava para os quartéis aqueles que apresentavam um ônus social, sendo assim merecedores de punição. Nesse sentido, “para a maior parte dos homens livres, fosse ela rica ou pobre, o serviço militar não era lugar de pessoas 'honradas', cidadãs, proprietárias e trabalhadoras”.52 Embora aquele sistema de alistamento arbitrário tenha sido interrompido a partir de 1874, nas primeiras décadas do século XX, ainda era permitido o ingresso de homens levados pela polícia por vadiagem, contravenção e pequenos crimes. O interessante é que o novo método adotado, o sorteio militar, era atravessado por critérios que favoreciam a exclusão de indivíduos mais ricos.53 Portanto, as Forças Armadas arregimentavam homens para complementar suas tropas entre os filhos da classe trabalhadora. Em resumo, os jornalistas apenas potencializaram um antigo preconceito – contra os militares de baixa patente –, ao conectá-lo a uma novíssima e já poderosa intolerância na cidade – em relação aos moradores das favelas. Dessa prática, evidenciou-se nas páginas dos diários uma questão intrigante: os homens que tinham como função defender as instituições e a soberania do país eram tratados como um risco à segurança e à higiene de sua capital, o Rio de Janeiro. Na condição de “classes perigosas”, os soldados que moravam em favelas eram então apresentados pelos repórteres como um rosto “homogêneo, identitário, uno 54 e, portanto, imutável”. Eram também considerados o “outro” indesejado, em um contexto marcado pela condenação dos hábitos relacionados à sociedade tradicional, pela negação da cultura popular, pela expulsão dos trabalhadores do centro da cidade e pela promoção ostensiva do cosmopolitismo.55 Eram, por fim, enquadrados em um tipo de discurso que justificava a negação da cidadania a uma parcela significativa dos trabalhadores da época: “essa gente não tem deveres nem direitos em face da lei”, dizia aquela reportagem sugestivamente batizada de “Os dramas da Favela”. 56 52 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. op. cit. pp. 88. Idem. p. 101. 54 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia imprensa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001. p. 250. 55 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 30. 56 Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”... 53 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 29 Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart Fabiano Godinho Faria1 N enhum presidente do Brasil teve seu mandato tão marcado pela ameaça de golpe de Estado como João Goulart. Não era segredo pra ninguém na época de Goulart, que seu governo sofria oposição e corria o risco de ser deposto por uma parte dos militares. A participação destes na política era então muito mais intensa do que hoje concebemos e estamos predispostos a aceitar. Desde a revolução de 30 sempre estiveram de uma forma ou de outra estiveram presentes ativamente no cenário nacional. A eleição que sucedeu Vargas em 1945 foi disputada entre dois oficiais, em todas as eleições presidenciais desde então até 1960, sempre houve um candidato da caserna entre os favoritos. Além da disputa eleitoral, absolutamente constitucional, homens de farda estiveram presentes em praticamente todas as crises. Não por acaso, depois de 1945, só dois presidentes eleitos concluíram seu mandato, um foi Juscelino Kubitschek, o outro Dutra, (que era general). Um sujeito que em 1964 tivesse 40 anos teria assistido intervenções militares desde o ano de seu nascimento. Em relação ao golpe de 64, existe uma ausência de estudos no que se refere ao dispositivo de defesa, o célebre “dispositivo militar” de João Goulart. Afinal, se as intervenções castrenses eram tão recorrentes e esse chefe de Estado em particular tinha razões tão sérias para temê-las, é perfeitamente natural que procurasse delas se defender antecipadamente. E apesar de existirem evidências de que se movimentou nesse sentido, não conseguiu evitar sua queda. Goulart foi deposto sem resistências, ou quase. O levante de uma tropa secundária se beneficiou de várias adesões. E batalhões de primeira linha a serviço do “dispositivo militar” não se moveram. Na vasta bibliografia que analisa a queda de João Goulart, muito já se falou sobre os movimentos conspirativos, mas quase nada se falou sobre o “dispositivo militar” que não funcionou. Existem repetidas referências ao “mistério da não reação”. Mas a história propriamente dos vencidos ainda não foi contada. O fracasso do tão propalado esquema foi de tal modo retumbante que mesmo seu principal articulador, o general Assis Brasil – chefe da Casa Militar – chegou a negar posteriormente que o mesmo existisse.2 1 Doutorando em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] 2 Ver: SILVA, Hélio. Golpe ou contragolpe? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, pág. 395. O que proponho neste trabalho, é fazer uma breve reflexão sobre a política militar de João Goulart. Comparar brevemente medidas neste sentido com outros exemplos. Analisar alguns fatos que possam indicar uma direção inicial para posteriores pesquisas sobre esse tão misterioso “dispositivo militar”. Não tenho a pretensão de chegar a muitas respostas, mas ao menos de poder começar a fazer as perguntas certas. Os militares na política. A participação dos militares na política não é um “privilégio” das nações latino-americanas, mas não há dúvida que neste subcontinente a participação dos homens de farda nos assuntos de Estado tenha se manifestado com força desde seu período colonial, e de forma particularmente dramática durante as décadas de 60 e 70 do século XX. Evidentemente toda esta tradição de intervenções militares tem sua explicação na história. Quem são nossos homens de farda? Serão, como amiúde se apresentam, os defensores do Estado? Ou do status quo? Se aceitarmos que são os guardiões dos Estados, o que entendemos como “Estado”? Haverá algum traço mais ou menos presente em todos os exércitos latinoamericanos que explique, ou ao menos indique este comportamento histórico? A discussão acerca do que são as Forças Armadas e a que interesses elas servem suscita discussões às vezes apaixonadas. Em termos elementares os militares fazem parte da classe média, visto que suas atividades não estão diretamente relacionadas nem à produção direta, nem à posse dos meios de produção.3 Todavia isso não esclarece o problema de sua origem e sua filiação de classe. Existe um consenso na historiografia quanto à origem de classe média da maior parte dos oficiais e da origem proletária da massa das tropas. No caso brasileiro, seguindo o trabalho de Stepan4, as regiões periféricas, do Sul e do Nordeste fornecem a maior parte dos alunos nas escolas 3 Embora no período imediatamente anterior ao processo histórico de 1964, vários oficiais tenham entrado para o mundo dos negócios na qualidade de executivos de grandes empresas ou mesmo como empresários, passando a fazer parte organicamente da burguesia. É evidente que são casos isolados, mas nem por isso irrelevantes. Ver:DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do estado; ação política, poder e golpe de classe. Vozes, Petrópolis, 1981. 4 STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro, Artenova, 1975. cap.1 30 - Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart de preparação de oficiais. O estado de São Paulo, por exemplo, fornece um contingente pequeno em relação aos estados dessas regiões em função da existência de maiores oportunidades para os filhos da classe média. Os cadetes de Nordeste, em especial, provêm de famílias da antiga aristocracia rural decadente. Possuem ainda a referência de sua importância social, malgrado já tenha perdido sua base material. Podemos usar esse exemplo para debater rapidamente uma afirmação muito recorrente de que os militares expressam em sua atuação política os anseios da classe média da qual se originam e fazem parte. Essa transposição direta de origem de classe e ideologia, por vezes atribui às Forças Armadas um perfil progressista. Tal é o caso de Nelson Werneck Sodré5, que vê nas Forças Armadas uma tradição progressista e democrática (afirmação que do nosso ponto de vista contém alguns exageros). A visão de Sodré, que foi um general de idéias progressistas, pode ser interpretada como uma variante à esquerda da visão que os próprios atores em questão sempre fizeram de si mesmos: defensores da “pátria”, do “povo”, da “nacionalidade”, etc. Em função de seu perfil político pessoal, Sodré tende a interpretar esses termos, que em si são eivados de subjetivismo, de um modo mais engajado à esquerda. Também importante sublinhar que enquanto categoria de classe média, os homens da caserna também têm suas especificidades. As instituições Forças Armadas são instituições totais, e como tal6, são fechadas sobre si mesmas. De um ponto de vista político, constituem em si o elemento força do Estado, enquanto para si, constituem uma complexa rede de interesses profissionais e corporativos, que vão desde as promoções dos oficiais às patentes mais elevadas até a participação ativa nos assuntos de Estado. Essa interdependência dos militares com a política, concomitante a existência de uma lógica específica levou Stepan a tomá-los como um subsistema do sistema político global.7 Para Edmundo Campos Coelho, que trabalha a partir de uma perspectiva sistêmica e recusando conceitos marxistas, como de classe e luta de classes, um progressivo processo de isolamento das Forças Armadas em relação à sociedade civil, gerou níveis cada vez maiores de autonomia e engendrou nestes, uma concepção de Estado e sociedade segundo valores próprios, nascidos e desenvolvidos a partir da convivência na caserna.8 Para Alain Rouquié9, que trabalha a partir de uma perspectiva histórica da América Latina, as Forças Armadas latino-americanas se constituíram desde a formação desses Estados, nas instituições mais firmes, 5 SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1965. 6 Para a compreensão do conceito de “instituição total”, consultar: GOFFMAN, Erving. Manicômios, conventos e prisões. São Paulo, Editora Perspectiva, 1974. 7 STEPAN, 1975, op cit. Cap.1. 8 COELHO, Edmundo Campos. Em busca da identidade: o exército e a política na sociedade brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. 9 ROUQUIÉ, Alain. O Estado militar na América Latina. São Paulo, editora Alfa – Omega, 1974. em face de sociedades civis gelatinosas, instituições civis frágeis e um tipo de poder político que tem no elemento força, muito mais peso que no consenso, sua justificativa e reprodução. As Forças Armadas desde sempre defendem um tipo de Estado historicamente espaço de uma negociação entre elites locais e estrangeiras. Existe na região, um abismo entre as constituições oficiais e reais. A imitação das superestruturas jurídicas européias (como os parlamentos, por exemplo) não absorve o grosso da sociedade. As elites, ainda herdeiras de um habitus10 colonial, buscam afirmar sua superioridade “ontológica” sobre as populações mestiças com extrema arrogância. Segundo Rouquié, é freqüente que nessas sociedades “a manutenção dos privilégios, às vezes, passa à frente da manutenção das taxas de lucro”.11 E “qualquer tentativa de participação não controlada, isto é, não decorrente de um acordo dos participantes da “cena privada”, é então considerada uma ameaça para o 'pacto de dominação'”.12 Assim as Forças Armadas atuam como prepostos radicais das elites dominantes. Muito embora tenham surgido em defesa das elites tradicionais, elas seguem defendendo o status quo, mesmo quando o grupo dominante se altera qualitativamente. Recorrendo a Gramsci, autor que não parece estranho a Rouquié, a oficialidade militar atua como camada intelectual dos grupos dirigentes. Segundo este autor, todo grupo social que aspira à hegemonia e ao poder político, organiza uma ou mais camadas de intelectuais, não apenas no campo econômico, mas também no social e político, no intuito de elaborar sua vontade de classe em termos de um projeto político para toda a sociedade. Alguns desses intelectuais são orgânicos, ou seja, nascem e se desenvolvem junto com a classe. Outra parte pode ser de formação independente ou anterior: “Categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas”.13 Seguindo a linha de Rouquié, que nos parece a mais profícua dentre as analisadas, as Forças Armadas constituem uma categoria de classe média e de origem majoritariamente de membros oriundos deste segmento. Todavia, tal constatação não ajuda muito a definir seu posicionamento político, em primeiro, por ser esse grupo social muito amplo e impreciso, em segundo porque em razão de seu intenso treinamento e vivência militar, os oficiais trazem mais forte em si as marcas da sua instituição do que de sua classe original (o que não quer dizer que esta influência seja irrelevante). De tudo isto, podemos extrair duas conclusões iniciais: a) “pátria”, “nação”, “povo”, etc. são categorias tautológicas sempre usadas pelos homens de farda para 10 Empregamos a expressão habitus para indicar uma determinada predisposição para determinada prática; um conjunto de disposições regradas duravelmente armado. Para uma melhor compreensão deste conceito, consultar: BOURDIEU Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. 11 ROUQUIÉ, 1974. op cit, pág 44. 12 Ibid, pag49. 13 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006. caderno 12. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 31 justificar suas atitudes sejam elas quais forem. Mas quando as Forças Armadas se unificam ou se dividem em relação a um governo ou regime, atuam em função de interesses concretos, se posicionam em relação a um conflito de classe existente, atuam sob a hegemonia de um grupo econômico fundamental e afirmam esse projeto de classe como a “causa da nação” e; b) as Forças Armadas fazem parte do Estado. Mas se ampliamos o conceito de Estado para além da sua estrutura jurídica formal, se reconhecemos os aparelhos privados de hegemonia como parte do Estado ampliado14, veremos que as Forças Armadas interagem e se posicionam em relação à sociedade civil e seus conflitos. Assim os militares em sua ação transbordam as fronteiras do Estado oficial e atuam como força partidária de frações da sociedade política. Sendo o Estado um equilíbrio inconstante entre as frações da sociedade civil, um organismo em permanente construção e reconstrução, as Forças Armadas atuam segundo sua própria lógica neste complexo, fazem parte também deste equilíbrio e têm sua importância aumentada ou diminuída em função da conjuntura e do tipo de Estado. Quando o grupo dominante possui grande poder hegemônico, tendem a se submeter ao consenso. Se por outro lado existe uma crise de hegemonia, a tendência é intervirem negando ou apoiando o grupo dominante. Neste caso, podem até se dividir em duas ou mais facções, expressando à sua maneira a crise de hegemonia existente, mas sempre em defesa da “pátria”, da “nação”, etc. Porém não apenas as intervenções, mas também as aderências, sejam na forma de participação em cargos oficiais ou o simples apoio passivo envolvem a aceitação a priori de um determinado projeto político. Quando se dividem em relação a um governo, expressam em seu próprio seio, as divisões políticas, os projetos de hegemonia conflitantes. É muito comum, aliás, que as Forças Armadas se cindam em partidos militares15, grupos de oficiais que se organizam e se combatem por um longo período (no Brasil, o Clube Militar se constituiu historicamente no espaço reconhecido pelos oficiais para este tipo de disputa). Em épocas normais, as disputas dãose no âmbito da instituição (eleições para o clube militar, indicações para promoção, etc). Todavia, em situação de crise orgânica, onde o grupo dominante não mais detém hegemonia política, a política militar se reveste de grande importância, pois a vitória de determinada fração pode conduzir a um novo equilíbrio de poder e a um novo Estado. Na América Latina, assim como em grande parte do chamado “terceiro mundo”, o receio das intervenções militares é constante16, daí a recorrência a tomada de medidas com o fim de conter as intervenções, e dentre estas, os dispositivos militares. Um pouco de história A expressão “dispositivo” é muito recorrente em linguagem militar, indica grosso modo uma determinada disposição de forças a serviço de uma tática ofensiva ou defensiva. Paradoxalmente, o mais famoso dos “dispositivos militares” foi o do general Assis Brasil, e foi justamente o que se celebrizou por não funcionar. Antes do “dispositivo de João Goulart”, outros existiram não apenas no Brasil, mas também na América Latina. Já no século XIX, o Chile tem um bom exemplo de “dispositivo militar” bem sucedido. Após vitória dos conservadores sobre seus inimigos liberais, em 1830, os vencedores cuidaram de se precaver de possíveis intervenções militares (o país já contava cinco intervenções nos último oito anos). O ministro conservador Portales não só organizou milícias civis em efetivos maiores que as tropas militares, como também cuidou de afastar da carreira das armas todo e qualquer elemento suspeito: “Impõe a preponderância do poder civil depurando sem piedade o corpo dos oficiais dos elementos liberais e de todos aqueles que se tinham feito notar, até o momento, pela propensão aos pronunciamientos e às rebeliões”.17 Ainda segundo Rouquié, os Estados unidos, após a vitória da Revolução Cubana, estruturam um “dispositivo militar interamericano”, oferecendo armas leves e treinamento antiguerrilha às Forças Armadas latino americanas.18 Hélio Silva também usa a expressão em vários momentos. Um bom exemplo, é o “dispositivo militar de Lott”. O próprio general, em depoimento citado por este autor, o descreve: Dei ordem ao general Denys que elaborasse ordens constituindo uma série de destacamentos, para que, se a ordem pública pudesse ser perturbada, imediatamente o exército interviesse e evitasse que a situação se agravasse. (...) Então, o general Denys e um auxiliar redigiram essas ordens, que foram trazidas a mim, e eu as examinei, fiz modificações na constituição dos destacamentos, depois disso, foram copiadas à máquina, seladas, guardadas, estavam prontas. De modo que nessa ocasião19 bastava distribuir as ordens que já estavam endereçadas aos comandantes, para imediatamente a tropa agir. E assim foi feito, e sem perda de tempo. O exército aqui, na I região militar, tomou todas as disposições necessárias. Agora, isso, eu sabia que iria se passar dessa maneira.20 O mesmo general Lott Permaneceu na pasta do Ministério da Guerra durante o governo de Juscelino Kubitschek. Carlos Castelo Branco menciona a 17 ROUQUIÉ, 1984, op cit. Pág 40. Ibid, pág 160. 19 A “ocasião”, foi o contragolpe preventivo comandado por Lott em 11 de novembro de 1955, que entrou para história como A Novembrada. 20 SILVA, Hélio Silva. O poder militar. Porto Alegre, L&PM, 1984, pág 119. 18 14 Ibid. ROUQUIÉ, Alain (org.) Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1980. 16 STEPAN, 1975. op cit, cap 1. 15 32 - Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart importância de Lott contra a oposição militar golpista. Fazendo uma breve comparação do governo de João Goulart com o governo Juscelino Kubitschek, afirma que este também teve de enfrentar intensa atividade golpista, especialmente no início de seu governo. Contudo os serviços de segurança permaneciam obedientes e solidários a seus chefes, e assim: “O general Lott identificava com facilidade as atividades conspiratórias e desarticulava os núcleos sem precisar sequer recorrer a processos dramáticos”.21 Prestes, em depoimento, ressalta que em seu “dispositivo”, Lott afastou os oficiais identificados com a oposição à Juscelino Kubitschek, mesmo em detrimento de suas próprias convicções políticas pessoais. Lott era anticomunista e católico praticante. Porém, para sabotar a influência de um oficial ligado à UDN22, promoveu ao comando, um que era reconhecidamente comunista. Podemos deduzir que nem esse oficial tinha condições de organizar uma conspiração pela esquerda, e nem seus subordinados uma conspiração pela direita: Havia um oficial do Exército que era comunista declarado (...) Quando Lott deu o golpe preventivo de 55 para assegurar a legalidade e a posse de JK, chamou esse oficial e disse: “conheço suas idéias, sei o que o senhor pensa. Mas vou lhe dar uma tarefa: o senhor vai ser chefe do serviço de recrutamento em Teresina”. O oficial respondeu: “Mas marechal, logo eu que estou há tanto tempo sem ligação com a tropa! Eu queria ir para o corpo da tropa e não para o serviço de recrutamento”. Lott foi inflexível: “não, o senhor vai para o recrutamento porque é um oficial mais antigo que o comandante do batalhão de Teresina”. Acontecia o seguinte: o comandante do batalhão, um dos irmãos Serpa, era udenista. E Lott escolheu justamente um comunista para neutralizá-lo.23 O general e historiador Nelson Werneck Sodré usa repetidamente a expressão “dispositivo militar”, no sentido acima empregado. De acordo com este autor, os setores golpistas das Forças Armadas tornaram-se muito poderosos já ao final do governo de Kubitschek, quando Lott entregou o ministério da Guerra ao Marechal da reserva Odílio Denys, seu antigo aliado na novembrada, mas que já então, se entendia e se articulava com seus antigos adversários. Os militares a serviço de Jânio identificaram e isolaram ao máximo possível aqueles que identificavam como “de esquerda”, segundo Sodré: Jamais existiu em nosso país dispositivo militar como aquele que, à sombra da omissão ou da ingenuidade do presidente Jânio 21 BRANCO, Carlos Castelo. Da conspiração à revolução. IN: DINES, Alberto, et all. Os Idos de março e a queda de abril. José Álvaro editor, Rio de Janeiro, 1964. pág 286. 22 União democrática Nacional, a UDN foi a agremiação partidária que, entre os governos de Vargas a Jango se notabilizou pela oposição intransigente e a pregação golpista. 23 MORAES, Denis de & VIANA, Francisco. Prestes: lutas e autocríticas. Vozes, Petrópolis, 1982. pág 370,371. pág 163. Quadros, foi montado. O golpismo afastou, sem nenhuma exceção, sem nenhuma tolerância, de todos os comandos, de todas as funções, de todos os campos, de todas as atividades, todos os elementos que não merecessem a máxima confiança. Montou dispositivo integralmente seu. Colheu todos os elementos suspeitos e deslocou-os para pontos distantes; cortou-lhes as perspectivas de carreira; privou-os de todos os direitos e recompensas, atirou todos à margem. Nos ministérios da Marinha e da Aeronáutica, a limpeza foi também rigorosa. (...) Assim, a reação militar assumiu as rédeas do poder e, dentro em pouco, Jânio Quadros estava nas condições de simples prisioneiro daqueles que escolhera.24 Conforme já salientado acima, a participação ou apoio dos militares a um determinado governo, não pode deixar de ser um tipo de aquiescência a um determinado projeto político. Nenhum observador negará o apoio ativo da fração majoritária dos militares ao “Estado Novo” de Vargas ou ao governo de Eurico Gaspar Dutra (aliás, ex-ministro de Vargas). Também não se poderá desconsiderar que as conspirações militares contra Juscelino Kubitschek não mobilizaram senão uma minoria ultratradicionalista sem base social, isto em função do enorme apoio obtido por este entre as frações burguesas ligadas ao capital monopolista. Jânio constitui um caso diferente. Eleito com o apoio entusiasmado da UDN e dos oficiais conservadores, perdeu muito rapidamente sua base de apoio. Acossado por Lacerda e pela maior parte da UDN, Jânio tentou um lance arriscado: renunciou esperando voltar com plenos poderes. Como hoje sabemos, não funcionou. O fato é que Jânio deixou no controle do aparato militar o setor mais conservador e de histórico mais golpista da tropa. Para assumir, seu vice João Goulart teve de se apoiar na oficialidade legalista que, em 1961 ainda era maioria. De acordo com Skidmore, por exemplo: “Se os militares estivessem unidos contra a ascensão de Jango, é provável que nunca tivesse assumido a presidência”.25 Durante seu governo, os militares seguiram participando da política. Não há dúvida de que Jango também recorreu aos militares como forma de pressão. O que não quer dizer em absoluto que este presidente também pretendia se colocar á frente de um golpe de Estado.26 Polêmicas a parte, Goulart precisava enfraquecer o “dispositivo golpista” que herdara de Jânio, sem fazer isso, não tinha chances de derrubar a emenda parlamentarista que lhe subtraíra os poderes. Era preciso agir pragmaticamente e assim procedeu. A renúncia de Tancredo, em 26 de junho de 62, por exigência legal de desincompatibilização de cargo de confiança para a participação nas eleições do mesmo ano, deu início a uma das crises ministeriais mais latentes do 24 SODRÉ, 1965. op cit. pág 370,371. SKIDMORE, Thomas. De Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 7 edição, 1982. pág 261. 26 Para alguns autores, Jango também planejava um golpe. 25 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 33 governo João Goulart. Pois caindo o primeiro ministro, caía todo seu gabinete. A possibilidade de um ministério militar favorável à antecipação do plebiscito era um desejo de Jango e um temor da oposição. Alguns observadores da época chegaram a sugerir que fosse este o objetivo real da renúncia de Tancredo. Tal é o caso do general Olympio Mourão Filho: “A razão provável da demissão do Presidente do Conselho, fazendo cair o Gabinete, seria derrubar os Ministros Militares, especialmente o General João Segadas Vianna, Ministro da Guerra, os quais eram contra a volta do presidencialismo”.27 A oposição unida não aceitou a indicação de San Tiago Dantas, sendo aprovada a posterior indicação do conservador Auro de Moura Andrade. Este parlamentar, não comprometido com o projeto de Jango, rapidamente entrou em conflito com o presidente. Em notícia do dia 2 de julho de 1962, o jornal opositor “A Tribuna da Imprensa” criticava a “Criação de um esquema militar forte e formado por elementos ideologicamente identificados com o presidente da república” de acordo com a reportagem: “outro sentido não tem a indicação do almirante Pedro Paulo de Araújo Suzano para a pasta da Marinha, tida há poucas semanas atrás como impraticável”.28 De acordo com o mesmo veículo, as dificuldades entre Auro e Jango eram mesmo em relação à indicação dos ministros militares: “O presidente afirmou que não consentirá que se torne realidade o que já soube estar sendo tramado: “a entrega das pastas militares a elementos que participaram ou inspiraram movimentos golpistas, entre os quais o de agosto do ano passado”.29 Auro renunciou e foi sucedido por Brochado da Rocha, que encaminhou projeto de lei ao Congresso para a antecipação do plebiscito. Às vésperas da votação, Jair Dantas Ribeiro, comandante do III Exército faz um comunicado ao Ministro da Guerra, de que não se poderia garantir a ordem, se a emenda fosse rejeitada pelo Congresso (o comunicado vazou para imprensa e teve grande repercussão). A emenda do plebiscito acabou sendo aprovada pelo Congresso em tumultuada sessão na madrugada do dia 14 para 15 de setembro de 1962. A advertência de Jair causou algum mal estar mesmo entre os aliados de Goulart, como o então ministro da guerra Nelson de Melo. Mais tarde, Jair também seria Ministro da Guerra. O “dispositivo militar” de João Goulart O período 62-64 foi marcado por uma grande politização social, com radicalizações de parte a parte, um presidente que não se definia claramente, e se isolava cada vez mais. Goulart, tal como todos os presidentes até ele, tinha em alta conta a “questão militar”. É evidente que a atuação no Congresso e nos demais organismos da sociedade civil foram tão ou mais importantes que sua política militar. Por questão de espaço não poderemos enveredar por estes aspectos de sua gestão. O que nos parece mais óbvio é que para este presidente em questão, a fidelidade dos homens de farda era mais importante que para seus antecessores em virtude mesmo da enorme oposição que lhe fazia a direita militar. Neste ponto entra a questão do seu “dispositivo militar”. De acordo com Skidmore, era “evidente, que Jango queria formar um dispositivo militar (...) nomeando oficiais notoriamente pró-Jango para postos de importância”.30 Assim, Segundo o mesmo autor: “Começou por tentar desarmar seus opositores mais poderosos, especialmente os militares antigetulistas que forçaram sua demissão do ministério de trabalho em 1954, e que tentaram impedir sua posse em 1961”.31 Essa política militar de Jango foi também amiúde usada como argumento contra ele. A indicação de militares de confiança para os postos de maior importância foi denunciada pelos opositores como um expediente para um futuro golpe de Estado. Tal argumento foi utilizado pelos militares que o depuseram, antes, durante e depois de golpe de 64. Mas ainda hoje é repetida por vários autores. Para Gaspari, por exemplo, existiam dois movimentos golpistas: “Se o golpe de Jango se destinava a mantê-lo no poder, o outro destinava-se a pô-lo para fora”.32 Assim, a montagem do “dispositivo militar” por parte de Jango deveria ser tomada como parte da sua estratégia golpista. Para Hélio Silva, que também defende a hipótese do golpe janguista, o “dispositivo” de Goulart era um “mal necessário”, composto de oficiais que não eram de sua inteira confiança, mas que precisava existir em função de seu estilo populista: Assim, apertado entre dois fogos e não sendo revolucionário, nem pretendendo fazer nenhuma revolução, conforme ele mesmo declarava, via-se o governo levado a preservar um dispositivo político militar que não confiava, mas que funcionava como fator de equilíbrio na sua política de harmonização dos contrários, de concessões ora à esquerda ora muito mais à direita.33 Falando sobre dispositivos militar, tanto para Vargas, como para Jango, Coelho – terceiro representante da opinião do golpe janguista – atribui a construção do dispositivo militar a lealdades pessoais. Em sua opinião, o fracasso militar desses governos está relacionado à aproximação exagerada com setores civis que eram hostilizados pelos militares, pela crença de dominar os militares através de relações de proximidade pessoal com alguns de seus líderes e pela busca de oficiais politicamente engajados: Foi o que aconteceu com Vargas e Goulart, ambos líderes populistas que alienaram o 30 SKIDMORE, 1982. op cit, pag 287. Ibid, pag 264. 32 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada.. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pag 52. 33 SILVA, Hélio. Memória dos vencidos. A vez e a voz dos vencidos. Militares x militares. Petrópolis, Vozes, 1988. Pag 92-93. 31 27 MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um revolucionário. Porto Alegre, L&PM, 1978. pág 40. 28 Tribuna da Imprensa, 02 de Julho de 1962, pág 4. 29 Ibid. 03 de Julho de 1962, capa 34 - Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart suporte militar de seus governos ao tentarem governar com as massas. O processo é bem conhecido. Os presidentes confiam nos respectivos “dispositivos militares”, isto é, em oficiais de sua inteira confiança colocados em comandos importantes ou em posições estratégicas da administração militar. Frequentemente, estes oficiais adotam a mesma semântica radical e tentam estabelecer suas “bases” dentro do próprio exército, que já estabeleceu uma tradição de anti-radicalismo de esquerda a partir de experiências anteriores com estes movimentos. Dentre todos os outros, o governo Goulart foi particularmente fecundo em criar “generais do povo”, que, aparentemente, aumentam a margem de manobra do governante ao criarem a impressão generalizada de que dispõem de um “Exército Popular” como suporte de seus programas reformistas ou revolucionários.34 Realmente, há indicativos de que a “lealdade pessoal” tenha sido um critério importante na construção do dispositivo. Os generais Justino Alves Bastos e Amaury Kruel, por exemplo, sempre foram articulados com a direita militar, inclusive tendo atuado na linha de frente contra o seu ministério em 1954. Mas em 1961, Kruel, por exemplo, era compadre de Goulart e tinha sua confiança. Certa vez teria inclusive chegado a comentar: “ele é meio de direita, mas é meu amigo, então posso contar com ele”.35 Às vésperas do comício de 1964, o presidente confiava plenamente em seu “dispositivo militar”, em encontro com Prestes disse que “20 generais estavam do lado dele”.36 Iniciado o levante Goulart assistiu, espantado, alguns de seus homens de confiança exercendo papel decisivo no movimento que se propunha a derrubá-lo. Mas a hipótese de Jango tenha montado um “dispositivo militar” no intuito de se por à frente de um golpe de Estado, carece de qualquer fundamento. Este homem já era acusado de golpista antes de assumir a presidência precisamente por aqueles que pretendiam impedir sua posse por meio de um golpe. O governo Goulart representou, em seus momentos mais críticos, a esperança da realização das “reformas de base”, e assim, malgrado suas indefinições políticas, promoveu uma ampla coalizão com as forças mais progressistas de seu tempo. A facção militar que o apoiou, posicionou-se em favor de bandeiras até então tabus nos meios militares, tais como a reforma agrária, o direito de elegibilidade para os praças, o voto para os analfabetos, ampla liberdade de organização política e sindical e até a legalidade para o Partido Comunista. Foi em função disto e por nada mais que Goulart foi acusado de golpista. Dreifuss observa que a busca de aliados militares não era uma prática recente, mas as resistências à política militar de Goulart foram muito mais fortes do que à de Juscelino Kubitschek, por exemplo: ...ele [Goulart] seguiu as regras não escritas das relações civil-militares incentivadas pelos udenistas, pedecistas e pessedistas, esforçando-se para estabelecer um relacionamento semelhante com as Forças Armadas. Ele tentou também reequilibrar a hierarquia militar, que tendia fortemente para a UDN e a ala direita do PSD, (...) Agindo assim, ele procurava constituir um dispositivo militar que desse forte apoio a sua política de reformas. No entanto, contrariamente a Juscelino Kubitscheck que havia feito o mesmo anteriormente, mas com oficiais identificados com a UDN e o PSD, João Goulart foi severamente condenado por imiscuir-se ilegitimamente na hierarquia do exército. Na prática, o que aconteceu foi que João Goulart estava rompendo com os limites estreitos e exclusivistas das relações civilmilitares, trazendo a tona o que elas realmente representavam, ou seja, um bonapartismo militar sancionado constitucionalmente.37 Primeiras conclusões As instituições militares são parte de Estado, o Estado é político, o apoliticismo dos militares é, portanto, um mito. Em toda a América Latina e o Brasil não é uma exceção, as Forças Armadas se constituíram no setor mais consolidado do Estado, e são tão mais fortes, quanto maior é a importância de elemento força para a reprodução da vida estatal. O posicionamento político dos militares não está suspenso no ar. Na medida em que são os guardiões de um tipo de Estado, expressam o pensamento das elites dirigentes. A sua vinculação com os grupos dirigentes via política estatal é mais importante que sua suposta origem de classe média, ademais, a classe média é um grupo muito fluido, sem um posicionamento preciso. Também é verdade que enquanto categoria específica e instituição total também produzem bens simbólicos específicos que modelam e reinterpretam à sua lógica o pensamento hegemônico. Em síntese o posicionamento político militar se forma a partir de uma dialética entre os projetos políticos que exercem ou disputam a hegemonia e uma visão de mundo militar. Em momentos de crise a instituição pode até se dividir, mas mantém um habitus comum. Na América Latina, de forma geral, e no Brasil em particular, setores da sociedade civil sempre apelaram aos militares para a defesa de seus interesses. A instabilidade foi a regra até bem avançado o século XX. Os governos de Juscelino Kubitschek, Vargas e mesmo Jânio tiveram também seus “dispositivos militares”, que foram diferentes porque a conjuntura era diferente. 34 COELHO, 2000. op cit pág 144. DINES, Alberto, Florestan Fernandes Junior e Nelma Salomão. Histórias do poder. Vol.3, São Paulo, editora 34, 2000. pág 166. 36 MORAES & VIANA, 1982, op cit, pág 165. 35 37 Dreifuss, 1981, op cit. pag 81, 82. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 35 O governo de João Goulart foi marcado por uma crise de hegemonia, dois projetos de Estado sensivelmente diferentes se defrontaram e respectivamente a eles, as Forças Armadas também se dividiram. A derrota do “dispositivo militar” de João Goulart, a custa de importantes traições, foi também a derrota de um projeto político de Estado dentro das Forças Armadas (inclusive com o posterior expurgo de muitos oficiais). Entender este processo, longe de irrelevante, constitui o primeiro passo para compreender não só a política militar, mas os mecanismos da política em si do Brasil durante o governo de João Goulart. 36 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa 1 Demian Melo2 U m dos momentos mais visitados pela historiografia e pela análise social nos últimos anos tem sido a ditadura militar e seus temas correlatos: o golpe de Estado, a censura, a luta armada, a resistência democrática etc. As controvérsias em torno do papel da esquerda na crise dos anos sessenta, caracterizada por certos autores como “golpista”, levou alguns analistas a questionar os rumos da historiografia recente.3 Esta consideração inicial é necessária, pois o problema de nossa exposição é a pertinência de uma hipótese muito difundida sobre a relação entre os oficiais nacionalistas das Forças Armadas e o movimento sindical nas greves gerais de 5 de julho e 15 de setembro de 1962, eventos ligados às campanhas desenvolvidas pelo presidente João Goulart pelo retorno do sistema presidencialista.4 Presente na maior parte dos textos memorialistas sobre o governo João Goulart (19611964), a hipótese foi sistematizada pelo brasilianista Kenneth Paul Erickson em sua tese PhD Labor in the Political Process in Brasil: Corporatism in a modernizing nation, defendida em 1970 na Universidade de Columbia.5 Segundo este autor, o sucesso destas greves – que comentaremos ao longo do artigo – esteve ligado ao apoio dado aos sindicalistas por parte de oficiais militares nacionalistas. Advertimos que nosso esboço de crítica a este trabalho não é motivado por qualquer tipo de participação em qualquer movimento revisionista da “nova história política” ou consortes, e sim pela necessidade da historiografia materialista buscar um impulso permanente de renovação, seja através do trabalho empírico, seja através do desenvolvimento teórico, seja, principalmente, de pesquisa orientada por reflexão 1 Este artigo é a apresentação de alguns resultados parciais de nossa pesquisa de doutorado sobre as greves políticas durante o governo Jango, sob orientação do Prof. Marcelo Badaró Mattos (PPGHUFF). Agradeço aos comentários pertinentes de Felipe Demier, ainda que apenas o autor seja o único responsável pelo próprio. 2 Doutorando em História pela UFF e bolsista da CAPES. 3 TOLEDO, Caio Navarro de. As falácias do revisionismo. Crítica Marxista, n. 19, 2004. MATTOS, Marcelo Badaró. Os trabalhadores e o golpe de 1964. História & Luta de Classes, nº 1, 2005, p.7-18. MELO, Demian. A miséria da historiografia. Outubro. nº14, 2006, p.111-130. 4 Sobre o processo político, apresentamos neste artigo também alguns resultados de nossa dissertação de mestrado. MELO, Demian Bezerra de. O plebiscito de 1963: inflexão de forças na crise orgânica dos anos sessenta. PPGH-UFF. Niterói: 2009. 5 Utilizamos a edição brasileira ERICKSON, K. P. Sindicalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979. teórica consistente. Neste sentido, o avanço dos estudos sobre o tema da participação dos militares na política6, e também daquele relacionado às lutas da classe trabalhadora brasileira, oferece uma boa oportunidade para pôr à prova algumas crenças um tanto arraigadas. Desta forma, este trabalho tomará, em primeiro lugar, o momento histórico do início dos anos sessenta, onde se cruzam uma série de crises de ordens e temporalidades distintas (crise econômica, do sistema político, do sistema sindical, da hierarquia militar, do modelo agrário etc.)7, como base para a exposição dos eventos ligados às duas greves gerais do ano de 1962, para em seguida tentar problematizar a hipótese de Erickson. Segundo Erickson, durante as greves políticas de 1962, teria estado em vigor o dispositivo sindical-militar que consistiria na cobertura militar dos oficiais à frente do I, II e III Exércitos aos movimentos paredistas, evitando que as forças públicas estaduais reprimissem o movimento, de forma a garantir o êxito dos mesmos. O caso mais patente seria o do general Osvino Alves, comandante do I Exército, que teria neutralizado a ação do governador da Guanabara Carlos Lacerda na repressão a estas greves. Na passagem a seguir, Erickson expõe sua hipótese: Os militares em geral assumiam uma posição de neutralidade benevolente ou de apoio ativo em relação aos grevistas no período anterior a 1963, mas desse momento em diante, a maioria dos oficiais em postos de comando declararam sua oposição às greves. No período estudado a seguir, os líderes da esquerda sindical apelaram a oficiais geralmente descritos como 'nacionalistas', que compartilhavam dos mesmos valores nacionalistas e reformistas radicais. A esquerda sindicalista pretendeu usar esses oficiais para proteger os 6 Refiro-me, a título de ilustração, ao conjunto de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas nos últimos anos no Laboratório de Estudos sobre a participação dos Militares na Política (LEMP), coordenado pelo Prof. Renato Lemos, do Departamento de História da UFRJ. 7 Utilizamos esta sugestão de entendimento da crise dos anos sessenta, baseada em LEMOS, Renato. Contrarrevolução e ditadura no Brasil: elementos para uma periodização do processo político brasileiro pós-1964. Comunicação ao Simpósio “Forces Armées et politique en Amérique Latine au XXe Siècle” no VI Congreso del Consejo Europeo de Investigaciones Sociales sobre América Latina (CEISAL), em Toulouse (França), jun. – jul. de 2010. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 37 movimentos grevistas da repressão oficial e para obter o apoio militar às suas reivindicações de uma radical reestruturação da sociedade. Em meados de 1963, tornou-se visível que o apelo aos oficiais das Forças Armadas havia falhado, e eles passaram então a centralizar seus esforços na obtenção de apoio militar dos sargentos e suboficiais.8 Assim, o sucesso das greves políticas esteve ligado ao “dispositivo militar”.9 Segundo o autor, esse dispositivo acabou por se romper em 1963, tendo o movimento sindical se inclinado para o apoio não mais nos oficiais nacionalistas, mas nos subalternos militares, sargentos e marinheiros. A idéia de que oficiais militares nacionalistas apoiavam movimentos grevistas pode soar algo estranho, tendo em vista a própria ditadura militar instaurada em 1964. Trata-se é claro de entender a configuração das divisões ideológicas na caserna, entre oficiais nacionalistas, legalistas, e aqueles favoráveis ao capital estrangeiro e identificados politicamente com a UDN. Este último grupo, vitorioso em 1964, tinha entre seus principais líderes os oficiais da Escola Superior de Guerra (ESG), que disputavam o controle do Clube Militar10 com a chapa Cruzada Democrática – também conhecida como “UDN militar”.11 Certamente não foi este “partido militar” que teve uma ação ao lado do movimento sindical, mas sim o grupo identificado com o ideário nacionalista varguista do qual fazia parte o general Osvino Ferreira Alves, chamado pela esquerda de “general do Povo”. As greves políticas de 1962 Como é bastante conhecido, a posse de Jango em setembro de 1961 foi resultado de um acordo com os setores conservadores do Congresso Nacional e os oficiais golpistas, que elaboraram às pressas uma emenda constitucional parlamentarista. A idéia era transformar Jango numa espécie de “Rainha da Inglaterra”: “reina, mas não governa”. De qualquer modo configurou-se uma contradição jurídica, em que passaram a conviver uma emenda constitucional parlamentarista e uma constituição presidencialista, a de 1946. O primeiro gabinete – de conciliação nacional – foi chefiado por Tancredo Neves, mas teve que se dissolver em junho de 1962, já que seus membros pretendiam participar das eleições gerais de outubro do mesmo ano, abrindo o debate no governo sobre o nome que deveria substituí-lo. Como as ações de Goulart estavam voltadas para a estratégia de retornar ao sistema presidencial, a escolha do nome deveria obedecer esta lógica. Para sucedê-lo, Goulart inicialmente escolheu o nome de San Tiago Dantas, que à frente do Ministério das Relações Exteriores havia conseguido prestígio junto às esquerdas, por defender uma posição neutra do Brasil quando da crise dos EUA com Cuba, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Pelo mesmo motivo, Dantas era demonizado pela direita, tendo sido a campanha contra o seu nome objeto de intensa mobilização da direita.12 Enfim, com 111 votos a favor, uma maioria de 172 deputados vetou o nome de Dantas para o cargo de primeiro-ministro. Foi justamente em meio a esta crise sucessória que o movimento sindical brasileiro realizou a sua mais importante greve geral do período, em 5 de julho de 1962. Com a recusa do Congresso Nacional em aprovar o nome de San Tiago Dantas, João Goulart decidiu, em clara manobra para causar um impasse, indicar o nome do Senador Auro Moura Andrade (PSD) ao cargo. Moura Andrade era ligado aos setores mais reacionários da política brasileira – havia ficado contra a posse do próprio Goulart em 1961 e, não por acaso, apoiaria o golpe de Estado que o depôs em 1964. A direita do espectro político apoiou ostensivamente o nome do senador, mas surgiram rumores de que Goulart exigiria de Andrade o compromisso com a antecipação do plebiscito para 7 de outubro. Pela imprensa, Andrade desconversou o assunto.13 O Congresso aprovou o nome de Moura Andrade (223 a 47), que a esta altura era apoiado por diversos setores das classes dominantes, como o conjunto das associações comerciais, através da declaração de seu presidente Rui Gomes de Almeida14, também o principal quadro do IPES-RJ. Como se ficou sabendo no período, Goulart possuía uma carta de renúncia do senador pessedista, e antes mesmo que Moura Andrade pudesse apresentar seu novo ministério, o público tomou conhecimento do conteúdo da carta.15 Em resposta à notícia da aprovação do nome de Andrade, o movimento sindical respondeu com uma greve geral. Os acontecimentos se precipitaram de forma dramática, e antes do início da greve, Moura Andrade renunciou ao cargo, o que levou a que emissários do governo tentassem impedir o movimento paredista. A imprensa daria destaque às tentativas do governo em deter o movimento paredista, como pode ser visto no trecho abaixo: Não sendo bem sucedido nos entendimentos que manteve, pessoalmente, com os grevistas, o sr. Gilberto Crockatt de Sá teve sua missão reforçada pelo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o sr. 8 ERICKSON, op. cit., p.141. Idem, p.142. 10 O Clube Militar foi dos anos 1950 até o golpe de 64 um espaço político onde as correntes militares se enfrentavam, constituindo uma verdadeira caixa de ressonância das opiniões militares. PEIXOTO, Antonio Carlos. “O Clube Militar e os confrontos no seio das Forças Armadas (1945-1964).” In. ROUQUIÉ, Alain (coord.). Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, s.d., p.71-113. 11 O termo é de Alain Rouquié e refere-se aos diferentes grupos políticos organizados por oficiais das Forças Armadas. Ver ROUQUIÉ, op. cit. 9 12 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, p.296. 13 O Globo, 02 e 03/07/1962. 14 O Globo, 04/07/1962. o título da reportagem foi “As classes produtoras aplaudem a escolha do novo primeiro-ministro”. 15 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil. 7ª edição. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: EdUNB, 2001, p.77. 38 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa Leocádio Antunes. Este chegou a CNTI, por volta das 17hs, mantendo conferências, a portas fechadas, até as 18hs e 45mim. O sr. Leocádio Antunes tentou em vão persuadir os articuladores da greve. Travou-se, então, o seguinte diálogo entre a autoridade e o sr. Pelacani, coadjuvado pelo sr. Roberto Morena. L.A.: “Não se justifica o movimento, desde que a situação evoluiu, com a renúncia de Auro.” P.: “A sustação da greve desmoralizara (sic) os trabalhadores.” M.: “A ordem da greve já está nas ruas e os trabalhadores não poderão compactuar com nova conciliação.” L.: “Não haverá conciliação pois o Auro já renunciou. Seu gesto foi conseqüência da nota do general Osvino e, logo, após, pela ratificação da mesma, pelo general Machado Lopes. O Auro tem um gênio violento, mas se curvou a realidade militar.” P. : “ N ó s q u e r e m o s a v o l t a d o presidencialismo e esta greve tem, como o governo reconhece, outras finalidades”.16 A greve geral foi afinal decretada às 15:30hs do dia 4 de julho, em reunião na sede da CNTI, decisão que contagiou sindicatos do Brasil inteiro. Com o desencadeamento do movimento, foram inúteis as tentativas de Goulart, através de seus emissários, San Tiago Dantas, Gilberto Crockatt de Sá (assessor sindical de Goulart), Leocádio Antunes (presidente do BNDE) e o General Osvino Ferreira Alves (comandante do I Exército), de sustar o movimento.17 Na ocasião, o então presidente da CNTI, Dante Pelacani, afirmou a Leocádio Antunes que: “Nós estamos do lado do Presidente João Goulart, mas não sob seu comando.”18 Ao sair da reunião, irritado, o presidente do BNDE teria declarado: “O momento não é de greve. É de ordem.”19 Também na sede do CNTI, tentando evitar o movimento, esteve o deputado Roland Corbisier. Durante mais de quinze minutos, falou ao telefone com Dante Pellacani, o sr. Luis Costa Araújo, do Gabinete Civil da Presidência da República, também tentando impedir a eclosão do movimento paredista. Contrariando estes apelos, o movimento foi a maior manifestação grevista até então realizada e, diferentemente das greves ocorridas pela Legalidade, isoladas e setoriais, esta foi nacional e coordenada por um comando nacional unificado: o Comando Geral de Greve.20 16 Correio da Manhã, 05/07/1962. “Dentro deste quadro do problema social, a perspectiva de um golpe mobilizou as organizações populares e os sindicatos para a resistência e para a greve que apesar dos apelos em contrário de Jango, San Tiago e do General Osvino, não pode ser evitada ontem.” Última Hora, 05/07/1962, p.4. 18 Jornal do Brasil, 05/07/1962. 19 O Globo, 05/07/1962, p.6. 20 Ver. TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981, capítulo 13, “O movimento operário na primeira metade de 1962”, p.125-173. 17 Na Guanabara e no Estado do Rio de Janeiro a greve foi total, tendo sido acompanha de ondas de saques na Baixada Fluminense, especialmente Caxias e São João de Meriti, onde o saldo foi de quarenta mortos e setecentos feridos.21 Os ferroviários da Estação Leopoldina foram a primeira categoria a entrar em greve: às 19:40horas do dia 4 de julho.22 No Rio Grande do Sul a greve foi no dia 6, parando comércio, cinemas e transportes, sendo total em Porto Alegre, com exceção apenas de alguns serviços essenciais. Toda a indústria paralisou. Também neste caso houve a tentativa de impedir a deflagração do movimento, através de apelos do então governador Leonel Brizola dirigidos ao Comando Sindical.23 Já em Pernambuco, onde a esquerda, incluindo o PCB, era muito forte, a capital parou, com a suspensão das atividades do porto (portuários, estivadores, conferentes, arrumadores e marítimos), dos ferroviários, bancários, motoristas e estudantes. No Ceará a greve foi geral em Fortaleza (bancos, comércio, porto, repartição públicas, transportes urbanos), contando com o apoio do governador do Estado (que era do PTB), para o desagrado das classes dominantes locais.24 No Pará, aderiram os petroleiros. Em Santa Catarina a greve foi, tal com no Rio Grande do Sul, no dia 6 e pararam os estivadores, conferentes, rodoviários e trabalhadores da indústria. Na Bahia a Petrobrás e o Porto paralisaram suas atividades no dia 5 de julho. Nos estados de Minas e São Paulo a paralisação foi parcial: em Minas houve greve na Mannesman e na Cidade Industrial (Contagem), com depredações em Além Paraíba. Já em São Paulo a paralisação foi total em Santos (portos, fábricas, oficinas, funcionalismo, operários da refinaria Cubatão), com a realização de comícios, paralisação de empresas na capital e no ABC. Segundo Fernando Teixeira da Silva25, a greve de 5 de julho foi "coroada de êxito”, diferente do que havia ocorrido em agosto de 1961, quando os sindicalistas ligados à Jânio Quadros conseguiram desorientar o movimento. 26 ERICKSON, op. cit., p.149-154. COSTA, Sérgio Amad. O CGT e as lutas sindicais brasileiras (1960-1964). São Paulo: Grêmio Politécnico, 1981. DELGADO, O Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil (1961-1964). Petrópolis: Vozes, 1986, p.56-57 e p.187-190. 21 Jornal do Brasil, 06/07/1962; ERICKSON, op. cit., p.151. 22 O Globo, 05/07/1962. 23 Última Hora, 07/07/1962. Apud JAKOBY, Marcos André. A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964. Dissertação de mestrado em História. UFF, 2008, p.146-147. 24 Novos Rumos, 20 a 26 de julho de 1962, p.8. 25 SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa: os operários das Docas de Santos: direitos e cultura da solidariedade (1937-1968). São Paulo: Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal de Santos, 1995, p.177. 26 Correio Paulistano, 06/07/1962, apud SILVA, op. cit., p.177. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 39 A ação do “dispositivo militar” Para diversos analistas o êxito da greve é atribuído à proteção dada pelas unidades militares nos locais do movimento, neutralizando a repressão levada a cabo pelas forças públicas estaduais. Erickson, que sistematiza tal hipótese na sua tese do dispositivo sindical-militar, nos diz o seguinte: O apoio do General Osvino Ferreira Alves, nacionalista que comandava o I Exército no Rio, foi vital para a operação e o êxito da greve. Os líderes sindicais atuaram com cuidado até que as afirmações de Osvino sugeriram que este os apoiaria. Em uma fala às tropas, dez dias antes da greve geral, denunciou a ofensiva da extrema direita que pretendia estabelecer uma ditadura e comparou-a ao nazismo alemão e ao fascismo italiano. Somente depois que Osvino repetiu sua decidida defesa em favor de Goulart, porém, a 4 de julho, os grevistas deram a palavra de ordem para o dia seguinte.27 Há aqui uma curiosa contradição, pois como vimos acima, o mesmo General Osvino figura entre os emissários de Goulart para tentar sustar o movimento paredista, fato, inclusive, constatado pelo próprio Erickson. De qualquer modo, o movimento explodiu com grande êxito, impressionando todos os atores políticos do período. O apoio destes militares nacionalistas não pode ser minimizado no balanço desta greve geral, afinal, estes identificavam os mesmos opositores e conformavam uma frente única junto aos sindicalistas e demais setores da esquerda. No entanto, como o próprio Erickson admite, a repressão das polícias estaduais não foi menos incisiva no episódio da greve de 5 de julho, sendo realizadas inúmeras prisões de manifestantes em diversos pontos do país, em especial na Guanabara, governada pelo linhadura civil Carlos Lacerda. Tanto nesta, quanto na greve de setembro, que logo comentaremos, os trabalhadores continuavam mobilizados após o encerramento da paralisação, com o fito de libertar as lideranças grevistas presas. O apoio de setores da caserna a tais movimentos só pode ser entendido no quadro da crise do regime populista. Mas tanto a greve como seu êxito não podem ser entendidos sem que se levem em conta os avanços organizativos da esquerda no movimento sindical. Como balanço da greve geral temos um fortalecimento da influência do movimento sindical, que, além do mais, criara o Comando Geral de Greve para coordenar a greve. Tal organização seria o embrião do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), fundando durante o IV Encontro Sindical Nacional, entre 17 e 19 de agosto em São Paulo. A partir deste ponto, até o golpe de Estado, os trabalhadores passariam a contar com um importante instrumento de unificação das lutas e de pressão, o CGT, a mais importante organização “paralela” do sindicalismo brasileiro. O gabinete de Brochado da Rocha – indicado por Jango após a queda de Moura Andrade e aprovado pelo Congresso – teve como objetivo explícito a reversão ao sistema presidencialista, seguindo fielmente os interesses de João Goulart. Não só deste, pois muitos presidenciáveis às eleições previstas para 1965, como o então senador goiano Juscelino Kubitscheck e o governador mineiro Magalhães Pinto, por exemplo, queriam se livrar o mais breve possível do incômodo sistema parlamentarista. Além destes setores, também o oficiais militares se posicionariam em uma série de pronunciamentos para que o Congresso aprovasse a antecipação e realização do plebiscito em conjunto com as eleições gerais. Ainda no início de agosto, o ministro da Guerra Nelson de Mello emitiria uma nota sobre a permanência da crise, fazendo a seguinte caracterização: O motivo das crises reside no fato de se ter mudado o sistema de governo sem que até agora o povo fosse chamado a opinar sobre a transformação tão radical. A continuar tal falha, estaria em causa a própria legitimidade do sistema de governo. É da mais alta oportunidade de que a Nação seja convocada para as urnas, para a realização do plebiscito.28 Por sua vez, o comandante de III Exército (Rio Grande do Sul), general Jair Dantas Ribeiro, enviou um telegrama ao ministro da Guerra, afirmando que não teria condições de manter a ordem pública no estado caso o parlamento se recusasse a aprovar a realização do plebiscito. A 13 de setembro foi publicada a seguinte declaração na imprensa: Face à intransigência do Parlamento... e tendo ainda em vista as primeiras manifestações de desagrado que se pronunciam nos territórios dos Estados (sic) ocupados pelo III Exército, cumpre-me informar a V. exa., como responsável pela garantia da lei, da ordem... e da propriedade privada deste território, que me encontro sem condições para assumir a segurança e êxito a responsabilidade do cumprimento de tais missões, se o povo se insurgir pela circunstância de o Congresso recusar o plebiscito para antes ou no máximo simultaneamente com as eleições de outubro próximo vindouro.29 Por sua vez, os generais Osvino Alves e Peri Constant Bevilaqua, comandantes do I e II Exércitos, respectivamente, solidarizaram-se com Dantas Ribeiro. Apenas o general Castelo Branco, comandante do IV Exército, recusou-se a apoiar a declaração. O ministro da Guerra, contrariado, considerou a declaração do comandante do III Exército uma manifestação de insubordinação. O movimento sindical resolveu solidarizar-se com Dantas Ribeiro e convocou uma greve nacional para exigir a antecipação do plebiscito. Em 14 de setembro, Brochado da Rocha renunciou. A greve geral estourou no mesmo dia e prolongou-se até o dia seguinte, tendo uma adesão inferior àquela realizada em julho, mas não menos radicalizada e importante. 28 27 ERICKSON, op. cit., p.152. Diário de Notícias, 07/08/1962. O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 1962. 29 40 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa A greve de setembro pelo plebiscito Entre uma greve e outra, Leonel Brizola fixou residência no Rio de Janeiro para concorrer para a Câmara Federal nas eleições de outubro. O prestígio conseguido durante a Crise da Legalidade era um capital político que o governador gaúcho queria valorizar para se projetar como presidenciável nas eleições previstas para 1965. Brizola acreditava, tal como toda a esquerda, que o parlamentarismo tinha sido um “golpe branco” para transformar Jango na “Rainha da Inglaterra”. Assim, avaliava que aquele Congresso era uma instituição espúria. Por outro lado, a plataforma defendida pela esquerda nacionalista, de comunistas, socialistas cristãos, trabalhistas até reformistas sociais eram as chamadas reformas de base. Pois Brizola impulsionou a própria propaganda das reformas de base, tendo tido a oportunidade de já à frente do Executivo gaúcho enfrentar-se com o capital estrangeiro e encaminhar diversas medidas reformistas.30 Assim, ele liderava a formação de uma corrente nacionalista-revolucionária naqueles anos, posto que se apresentou disposto a enfrentar Lacerda e todos os golpistas. Munido da experiência da campanha que liderou no ano anterior, Brizola adquiriu a Rádio Mayrink Veiga, através da qual propagava suas idéias e construía sua própria candidatura de Deputado federal.31 ocupar a Rádio e impedir o seu fechamento. Homero Pinho então protestou com o Ministro da Guerra, general Amauri Kruel32, afirmando que a Rádio estava divulgando notícias subversivas do Comando Geral de Greve. O episódio foi relatado no Jornal do Brasil nos seguintes termos: Pinho protesta contra a ação do I Exército – O Presidente do Tribunal Regional Eleitoral, Desembargador Homero Pinho, protestou ontem junto ao Ministro da Guerra Interino, General Amauri Kruel, contra a intervenção de tropas do I Exército, impedindo o fechamento da Rádio Mairink Veiga pela Polícia da Guanabara. O Desembargador Homero Pinho disse ao Ministro da Guerra que havia determinado o fechamento da Rádio Mairink Veiga porque ele mesmo verificara que a emissora estava divulgando propaganda subversiva, inclusive boletins do Comando Geral de Greve. REUNIÃO Antes de seguir para o Palácio das Laranjeiras, o Desembargador Homero Pinho manteve uma conferência, em seu gabinete, com o Procurador-Geral da Justiça, Sr. Cordeiro Guerra, e o Chefe de Polícia da Guanabara, Sr. Newton Marques Cruz. Pois Brizola através da rádio Mayrink Veiga não só intervinha no debate político diário, como disponibilizava aos movimentos sociais a possibilidade de divulgar suas idéias e mobilizações. Foi assim que, tendo a Rádio Mayrink Veiga se tornado porta-voz da esquerda, acabou tornando-se alvo da sanha golpista de Carlos Lacerda. Controlando outras superestruturas da política local, Lacerda conseguiu que o desembargador Homero Pinho, Presidente do Tribunal Regional Eleitoral, determinasse o fechamento da Rádio “por estar divulgando propaganda subversiva”. Entretanto, na ocasião o general Osvino Alves deslocou tropas para No Palácio das Laranjeiras, o Sr. Homero Pinho entregou um ofício ao Ministro da Guerra, solicitando a apuração das responsabilidades pela intervenção das tropas do I Exército. Em fontes ligadas ao Ministro da Guerra, informava-se ontem o General Amauri Kruel prometeu ao Desembargador Homero Pinho examinar, com o Presidente da República, a situação criada com a intervenção do I Exército.33 30 Todavia, aspectos erráticos de sua trajetória política, como o apoio dado ao seu governo pelos integralistas do Partido da Representação Popular (PRP), são geralmente esquecidos. Sobre o PRP ver CALIL, Gilberto Grassi. Integralismo e Hegemonia Burguesa: a intervenção do PRP na política brasileira (19451965). Cascavel: UNIOESTE, 2010. 31 Por outro lado, não concordamos com certas imagens que vêm sido produzidas pela historiografia recente que querem atribuir à Brizola um papel de “grande articulador” das esquerdas, particularmente por seu papel na Frente de Mobilização Popular (FMP), que congregava diversas organizações que rivalizavam com sua liderança, a começar pelos comunistas. Só a título de exemplo do absurdo que é considerar Brizola o grande líder das esquerdas naquele período, com uma consulta preliminar à imprensa pude verificar que a presença dele no Comício da Central (13 de março de 1964) era uma dúvida até a noite anterior ao meeting, quando reunidos em seu apartamento no Rio, Hércules Correa e Miguel Arraes articularam os limites da fala do Deputado para evitar um constrangimento à Goulart. Uma posição totalmente contrária à nossa pode ser lida em FERREIRA, Jorge. Leonel Brizola, os nacional-revolucionários e a Frente de Mobilização Popular. In. FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil. Nacionalismo e reformismo radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.543-583. No mesmo periódico, a greve geral é caracterizada como um fracasso, mas o próprio jornal dá diversos dados sobre a efetividade da paralisação, tal como sua eficiência como forma de intervenção dos trabalhadores na cena política. Isso fica explícito no caso dos aeronautas e aeroviários, que fechando o espaço aéreo comercial, impediram que os parlamentares 32 Reforçada por sua proximidade familiar com o presidente Jango, construiu-se uma narrativa na qual o general Kruel, que em março de 1964 estava à frente da II Região Militar sediada em São Paulo, aderiu de última hora ao golpe. Isso está presente, por exemplo, nas primeiras narrativas sobre o golpe, como o livro de Mário Victor Os cinco anos que abalaram o Brasil, mas Dreifuss desmontou esta versão ao conferir a presença do general Kruel nas articulações da conspiração desde março de 1963. DREIFUSS, op. cit., p.372. Na 7ª edição de seu livro, Moniz Bandeira confirma a crítica de Dreifuss. BANDEIRA, O governo João Goulart, op. cit., p.104. 33 Jornal do Brasil, 16 e 17 de setembro de 1962. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 41 voltassem a seus estados, e presos em Brasília não puderam se esquivar de negociar com o poder Executivo e parlamentares interessados na volta do presidencialismo. O próprio Jornal do Brasil relata como o Comando de Greve foi capaz de paralisar o transporte aéreo, através de uma referência a uma nota do mesmo Comando, que às 23 horas do dia 15 determinou que os aeronautas e aeroviários suspendessem a greve a partir das 5 horas da manhã, para que os próprios líderes sindicais, que haviam viajado para Brasília para negociar e pressionar os parlamentares, pudessem voltar aos seus Estados.34 Pois se sabe que no setor de transportes terrestres, ferroviários e aéreos os sindicatos estavam em mãos da esquerda sindical. Em muitas cidades o transporte rodoviário também foi solidário à paralisação. E não é muito difícil entender a importância para um movimento que pretende para o país ter o controle do setor de transportes. Mais uma vez, embora tenha o próprio Goulart e setores próximos ficado contra a greve, o general Osvino voltou a ter um comportamento favorável à mobilização, embora também ele fosse contrário ao desencadeamento da greve política. As tropas do I Exército guarneceram as estações ferroviárias Central do Brasil e Leopoldina, mas isso não impediu que cinco trens interestaduais furassem o movimento. Embora os transportes rodoviários não tivessem aderido à paralisação no Rio de Janeiro, aquela sexta-feira dia 14 de setembro pareceu a todos um domingo. Os bondes da Light, por exemplo, só regularizaram seu funcionamento na parte da tarde, e o transporte marítimo entre RioNiterói teve que ser feito com avisos da Marinha de Guerra. Três aviões também furaram a greve na ponte aérea, sendo que na parte da tarde, só 40% do tráfego estava normalizado. Um verdadeiro “caos aéreo”... Na madrugada do dia 15, fruto de um acordo em meio à esta polarização política, foi aprovado o projeto que antecipava o referendum para o dia 6 de janeiro de 1963.35 Também nesse caso, os assessores de Goulart também tentaram brecar o movimento, no que foram ignorados. E, como vimos, novamente o general Osvino, embora contrário à greve, colocou-se ao lado dos sindicalistas após o desencadeamento da paralisação, tendo tido uma ação importante para soltar os dirigentes sindicais presos na Guanabara. Quanto aos outros comandos militares, nem sinal de alguma atitude parecida. legalista das Forças Armadas, o general costumava se posicionar ao lado da ala nacionalistas nas eleições para a diretoria do Clube Militar. Em 1962, por exemplo, Bevilaqua foi o presidente da chapa formada por oficiais legalistas e nacionalistas que perderam as eleições para o general Augusto Magessi, da Cruzada Democrática. Como já é bem consagrado no campo de estudos da participação dos militares na política, o Clube Militar foi um dos principais espaços de articulação das correntes militares na República de 1946.36 No trabalho que é marco importante desta perspectiva, Peixoto atenta para a diferença entre as correntes nacionalista e legalista das Forças Armada, tendo a última se formado no contexto do movimento do contra-golpe preventivo do general Lott (1955), e o primeira pelos oficiais ligados à campanha pela nacionalização do petróleo e na construção das indústrias de base, da qual fizeram parte nomes como os generais Horta Barbosa e Newton Estillac Leal. No entanto, acaba enquadrando Bevilacqua sob a rubrica de nacionalista, quando, no entanto, sua posição seria muito mais legalista. Senão, vejamos. O general Peri Bevilacqua era um ferrenho defensor da estrutura sindical corporativa instituída no Estado Novo37, possuindo uma posição doutrinária de oposição tanto às greves, quanto às entidades sindicais paralelas. Mas quando de sua investidura ao comando do II Exército, no calor da espiral grevista, diversos setores das classes dominantes o olhavam com desconfiança, especialmente por sua posição favorável à posse constitucional de Goulart, na crise de agosto do ano anterior. Em seu arquivo38, existe uma charge – publicada na imprensa desta época – em que o general figurava ao lado das iniciais do seu nome, formando a sigla P.C.B. (Peri Constant Bevilacqua). Pelo mesmo motivo, foi visto como aliado pela esquerda sindical. Também por sua posição legalista, considerava o parlamentarismo então em vigor como um atentado à Constituição, tendo, por isto, se posicionado em apoio aos pronunciamentos de oficiais pela antecipação do plebiscito. No entanto, dois meses após sua posse no comando do II Exército, Bevilacqua emitiria sua Nota de Instrução nº 4, onde expunha seu princípio doutrinário contrário às greves. Na ocasião, o general Décio de Escobar, pertencente aos quadros do Instituto Brasileiro da Ação Democrática (IBAD) – entidade ligada à conspiração golpista e ao Departamento de Estado dos 36 O caso do general Peri Bevilacqua O caso do general Peri Bevilacqua é emblemático de certa dose de exagero da hipótese de Erickson sobre estas greves políticas em 1962. Em primeiro lugar, só no início de setembro – portanto após a greve de 5 de julho e alguns dias antes da greve de 15 de setembro – Bevilacqua assumiu o comando do II Exército, sediado em São Paulo. Pertencente à ala 34 Jornal do Brasil, 16 e 17 de setembro de 1962. Lei complementar nº 2, de 16 de setembro de 1962, ao Ato Adicional. 35 Sobre o tema, ver os textos pioneiros em ROUQUIÉ, op. cit. Utilizando esta démarche, existem muitos trabalhos recentes dedicados à dinâmica militar e sua participação no processo político brasileiro, como o de ALMEIDA, Lúcio Flávio de. A ilusão do desenvolvimento: nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK. Florianópolis: UFSC, 2006. CARDOSO, Rachel Motta. Depois, o golpe: as eleições de 1962 no Clube Militar. Dissertação de mestrado. PPGHIS-UFRJ, 2008. 37 Sobre esse tema, nos valemos de DEMIER, Felipe Abranches. Soldados x operários: o General Peri Bevilaqua no comando do II Exército. Monografia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de História, 2004. 38 Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa de Benjamin Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN 6a Coordenação regional). Apud DEMIER, op. cit. 42 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa EUA – parabenizou Bevilacqua por sua posição firme contra as greves.39 Ao mesmo tempo, suas atitudes provocavam decepções entre os setores esquerdistas, como Roberto Sisson, ex-membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que em correspondência ao comandante do II Exército afirma o seguinte: Exércitos, generais Benjamin Galhardo e Justino Alves, cumprimentaram Bevilacqua. Estava-se no clima de radicalização que desembocou na greve geral ocorrida em São Paulo, em outubro de 1963.43 Em 15 de setembro deste ano, o general Peri emitiu a seguinte Nota de Instrução no 7. Em certo trecho, lê-se Tenho assuntado a política corrente com alguns amigos comuns. Em geral, se mostram decepcionados pela sua posição nas greves, é que a julgam parcial, a favor do patronato (...). O prezado general não pode continuar a comprometer seu nome numa atitude que só recebe os parabéns de O Globo e das Associações burguesas.40 Ajuntamentos, ilegais e espúrios, serpentários de peçonhentos inimigos da Democracia, traidores da consciência democrática, se apresentam sob títulos esdrúxulos de CGT, Pacto de Unidade e Ação, Fórum Sindical de Debates, com a veleidade de se erigirem em um super-poder da República. Veja-se bem, superpoder e não 4º poder. Os poderes da República são três, harmônicos e independentes. Mas, o pretenso “poder sindical” não atura harmonia, não reconhece freios nem contra-pesos, não enxerga limitações em sua nefanda tarefa jamais desesperada de alcançar o Poder Político (...). Prestam criminoso desserviço à Pátria, manipulando greves ilegais, muitas vezes amorais e desumanas, sob os mais falsos pretextos, para satisfazerem seus apetites desonestos de coação, exaurindo num trabalho antipatriótico, a economia nacional, e agravando as injustiças sociais.44 Outro alvo da oposição de Bevilacqua era justamente as entidades “paralelas”, como o CGT e outras intersindicais como o Pacto de Unidade e Ação, o Fórum de Debate de Santos e a Comissão Política de Organizações Sindicais da Guanabara (CPOS), que, de fato, constituíam um desafio à estrutura sindical corporativa herdada do Estado Novo. Já em março de 1963, Bevilacqua fez um discurso criticando as entidades sindicais paralelas, no que recebeu uma repreensão do então ministro da Guerra, Amauri Kruel. Só que em agosto, quando o ministério era ocupado por Jair Dantas Ribeiro, os dois fizeram críticas públicas às greves políticas e ao “dever funcional de reprimi-las”.41 No mesmo mês, contra a opinião do movimento sindical, o general Osvino é posto na reserva.42 A comparação entre as atitudes de Osvino esclarece algumas contradições. Já em maio de 1962, Osvino havia se desentendido com o gen. Amaury Kruel, quando aquele defendeu publicamente a declaração do sargento Gelci Rodrigues Correia, que em um comício contra o FMI disse: “se os reacionários não permitem as Reformas de Base, usaremos para realizá-la nossos instrumentos de trabalho: o fuzil!” É por isso que Osvino era chamado pela esquerda de “General do Povo”. Estas atitudes são impensáveis num militar como Bevilacqua. Quando em setembro de 1963 ocorre o levante dos sargentos em Brasília, e as organizações de esquerda e movimentos sociais se solidarizam com os subalternos militares, Bevilacqua advertiria a necessidade de “estar em guarda contra a solidariedade dos malfeitores sindicais, CGT, PUA e Fórum Sindical de Debates”. Frente à declaração, os comandantes dos III e IV 39 Carta de Décio Escobar a Bevilaqua, 26 de novembro de 1962. Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa de Benjamin Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN 6a Coordenação regional). Apud DEMIER, op. cit. 40 Carta de Roberto Sisson a Bevilaqua. Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1963. Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa de Benjamin Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN 6a Coordenação regional). Apud DEMIER, op. cit. 41 Informações do verbete “Peri Constant Bevilacqua.” ABREU, Alzira et. alii (org.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2001, versão em CDRom. 42 Posteriormente assumiu a presidência da Petrobrás, ocupando o cargo até o golpe. Mas aí, já em 1963, segundo Erickson, o dispositivo sindical-militar não estaria mais em vigor, e assim poderia ser explicada a contrariedade de Peri Bevilaqua para com o movimento grevista. De qualquer modo, não se trata de uma opinião surgida no ano de 1963, mas uma firme posição doutrinária – calcada na formação intelectual positivista de Bevilaqua45 – contra qualquer forma de organização da classe trabalhadora que rompesse com o círculo corporativo de seus interesses imediatos. Bevilaqua acabou afastado do comando do II Exército por sua indisposição com o movimento sindical, sendo nomeado à revelia chefe do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e, enfim, acabaria apoiando o golpe de Estado de 1964, sob o argumento da defesa da legalidade. 43 Foi a “Greve dos 700 mil”, dirigida pela intersindical Pacto de Ação Conjunta (PAC), CNTI e CGT, que conseguem arrancar um aumento de 80% da FIESP. As tropas do II Exército, ao lado da polícia, reprimiram e prenderam líderes grevistas em Santos. No total de muitos espancados, em todo os estado de São Paulo 1100 foram presos. Sobre esta greve ver LEITE, Márcia de Paula & SÓLIS, Sydney Sérgio F. “O último vendaval: a Greve dos 700.000.” Cara a Cara, Ano I, n.2, julho a dezembro de 1978. CORRÊA, Larissa Rosa. “A “Greve dos 700 mil”: negociações e conflitos na justiça do Trabalho – São Paulo, 1963.” História Social, Campinas, N.14/15, p.219-236, 2008. 44 Nota de Instrução nº 7 de Peri Bevilaqua. São Paulo, 15 de setembro de 1963. Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa de Benjamin Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN 6a Coordenação regional). Apud DEMIER, op. cit. 45 Sobre a trajetória do gen. Peri Bevilaqua ver a introdução de LEMOS, Renato. Justiça fardada. O general Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bomtexto, 2004. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 43 Considerações finais De qualquer modo, seu caso é emblemático de como a hipótese de Erickson é uma generalização de uma situação muito particular ao Rio de Janeiro e com base em uma caracterização pouco precisa das posições ideológicas dos comandantes militares.46 As principais pesquisas sobre o sindicalismo gaúcho produzidas nos últimos tempos, e que abordam as greves políticas no governo Jango47, não dão conta de nenhum apoio militar às greves gerais de 6 de julho e 15 de novembro de 1962. Na cidade de São Paulo, que não participou da greve geral de 1962, o problema certamente não decorreu da ausência de apoio do comando do II Exército. Pois, como apontou o historiador Murilo Leal Pereira Neto48, a greve de 5 de julho sequer foi mencionada no jornal dos metalúrgicos de São Paulo – o que mostra uma grande desarticulação entre esta importante categoria e o grupo que organizou a greve na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) no Rio de Janeiro. Dentro da estrutura oficialcorporativa, o sindicato dos metalúrgicos de São Paulo estava ligado ao CNTI, e este foi o espaço onde se encontrou o Comando Geral de Greve durante a decretação da paralisação nacional. Então aqui o problema era outro: não falta de cobertura militar, e sim desarticulação política. No Nordeste, particularmente em Recife e Fortaleza, onde a greve foi forte, não existia a menor possibilidade dos movimentos serem apoiados pelo comando militar do IV Exército, que esteve nas mãos do general Arthur Costa e Silva de agosto de 1961 até setembro de 1962. Por outro lado, com o avanço dos estudos no campo da história do movimento sindical brasileiro, algumas pesquisas têm lançado mão dos arquivos das polícias políticas estaduais, onde podem ser encontrados vários documentos sobre a repressão aos movimentos grevistas nos idos dos anos sessenta.49 Nestes fundos é possível observar que qualquer que tenha sido a cobertura militar a estas greves, a repressão nunca deixou de bater à porta. 46 É também um golpe de morte na hipótese defendida por Francisco Weffort de que as entidades paralelas constituíam, em conjunto com a estrutura corporativa, a base do “sindicalismo populista”, uma instituição do regime burguês. 47 SANTOS, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958 e 1963. Dissertação de mestrado em História, Unicamp, 2002. JACOBY, op. cit. 48 NETO, Murilo Leal Pereira. A reinvenção do trabalhismo no “vulcão do inferno”. Um estudo sobre metalúrgicos e têxteis de São Paulo: a fábrica, o bairro, o sindicato e a política (1950-1964). Tese de doutorado em História,USP, 2006, p.302. 49 Ver, por exemplo, a obra coletiva MATTOS, Marcelo Badaró (coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca (1945-1964). Rio de Janeiro: APERJ/FAPERJ. 2003. 44 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) Edina Rautenberg1 E ste artigo está baseado nas conclusões obtidas em pesquisa de Iniciação Científica2, na qual buscamos caracterizar a formação discursiva realizada pela revista semanal Veja, sobre os grupos guerrilheiros presentes no Brasil durante o período de ditadura militar. A análise se estendeu de 1968, quando ocorreu o lançamento da revista e também ano em que as ações guerrilheiras já possuíam maior destaque nas cidades, até 1972, considerado por parte da historiografia como período de derrocada final dos grupos guerrilheiros. A revista Veja foi analisada como um Aparelho Privado de Hegemonia.3 Sendo assim, entendemos que ela atuou – e atua – de modo a formular, organizar e agir em torno de seus interesses político-ideológicoempresariais, pregando-os como os mais adequados para o desenvolvimento nacional como um todo. Segundo Gramsci, o capitalismo mantém o controle não apenas pela repressão, mas também através da coerção ideológica, por meio de uma cultura hegemônica na qual os valores da burguesia tentam se tornar "senso comum". Assim, os Aparelhos Privados de Hegemonia são instrumentos organizativos, construídos no âmbito da Sociedade Civil, pelas diversas classes e frações de classes, com objetivo de disputa de hegemonia. A imprensa pode ser entendida como um Partido Político em sentido gramsciano. Isso, dito em outras palavras, significa que a imprensa é um amplo campo de organização e defesa de projetos de classes de maneira efetiva e ampla. Quando entendida em sua forma burguesa, podemos afirmar que ela atua de maneira a manter e/ou ampliar as formas pelas quais as classes dominantes conseguem executar seus projetos e é também campo da luta de classes. É, portanto, lugar onde os setores dominantes implementam seus projetos, apresentado e recoberto de suposta neutralidade, realizando uma distribuição específica de poder, de hierarquia e de influência, e fazendo com que as classes dominadas tomem para si um projeto que não é seu, construído e destinado para atender os interesses do capitalismo. 1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Sociais da UNIOESTE. Linha de Pesquisa Estado e Poder. Bolsista pela CAPES. Orientada pela professora Dra. Carla Luciana Silva. 2 Veja e os movimentos de guerrilha (1968/1972), sob a orientação da Prof ª Dr. ª Carla Luciana Souza da Silva - Bolsa institucional de Iniciação Científica PIBIC/UNIOESTE/PRPPG, com vigência de agosto de 2005 a julho de 2006. 3 GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 2. Caderno 24. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000. Veja buscou criar hegemonia em torno da criação de um senso comum relativo às guerrilhas. Nesse sentido procuraremos mostrar a atuação de Veja na criação de uma imagem pejorativa dos guerrilheiros, associando estes ao banditismo e à subversão, criando um consenso na população que fosse desfavorável aos grupos guerrilheiros, e impedindo assim uma possível aliança e/ou o apoio da população aos guerrilheiros. O trabalho buscou mostrar a posição de Veja no período de 1968 a 1972. Através da análise do papel político-partidário da revista e da construção de seu discurso em relação às guerrilhas, pretendemos problematizar a importante atuação da imprensa na dinâmica capitalista, e, como decorrência, a possibilidade de se estimular a concepção de um pensamento crítico quando da leitura dos meios comunicacionais, entendidos como importantes difusores de hegemonia. Uma maneira utilizada pela revista Veja de caracterizar negativamente os guerrilheiros está na maneira em que o semanário é organizado. Exemplo disso é a titulação que a revista atribuiu às seções em que foram abordados temas relativos aos guerrilheiros. Veja não falou em “guerrilheiros”, mas sim em “terroristas” e, conseqüentemente, a seção foi intitulada “Terror” ou “Subversão”. Quando a revista não apresentou os fatos na seção “subversão” ou “terror” realizou matérias cujos títulos trazem especificações ou alusões ao terrorismo. Podemos perceber que Veja adotava uma posição de repulsa aos guerrilheiros, caracterizando-os como bandidos e terroristas e especialmente, desnecessários para a obtenção do processo de democratização, almejado pela revista. Isso ficou ainda mais evidente na constituição da matéria onde se percebe os mecanismos discursivos utilizados por Veja para dissimular sua ideologia. Durante o decorrer da pesquisa pode-se perceber que Veja procurou constantemente utilizar frases e versões oficiais para construir suas matérias. A revista se utilizou das falas, especialmente de militares, na tentativa de “corroborar a realidade” à qual ela estava se referindo. Dessa maneira, Veja pretendia dar credibilidade aos processos que procurava construir, além de criar a impressão de estar transmitindo o neutro e verdadeiro relato sobre o fato.4 4 Para discutir os recursos discursivos utilizados pela imprensa para construir suas matérias nos utilizamos de: ABRAMO, Perseu. Padrões de Manipulação na grande imprensa. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (44-50) - 45 Outra forma de combater o terrorismo – para o caso de elementos agitados que sempre precisam de uma forma de exteriorizar ações de protesto – é tolerar as chamadas 'válvulas de escape': organizações estudantis, manifestações, passeatas, desde que não perturbem a segurança do País (...) A violência da repressão, caracterizada pela proibição das passeatas, fechamento dos órgãos de representação estudantil, proibição do debate político nas escolas, serve mais para fortalecer os argumentos subversivos de que a única saída para o estudante interessado na solução de problemas nacionais é a luta clandestina (Grifos meus).10 Já na primeira matéria de Veja sobre os movimentos de guerrilhas, a revista abordou a preocupação existente com o “inimigo interno”5 e a importância em combater os guerrilheiros-terroristas – que por lutarem contra a ditadura, eram considerados como “extremistas” da ideologia comunista que tentava, segundo a justificativa da Segurança Nacional, se infiltrar de todas as maneiras possíveis no Brasil. “É preciso que o povo sinta a alta periculosidade dos elementos que estão tentando quebrar a ordem no País, e nos ajude dando informações e evitando que esses elementos se ocultem de nós”.6 De maneira generalizante, a revista foi apresentando os atentados e caracterizando as ações realizadas por determinados grupos guerrilheiros7 como fruto de especialistas, onde os guerrilheiros agiriam com “sangue frio, precisão, imaginação, habilidade”.8 Veja foi atuando de maneira a criar um ambiente de medo e pavor entre seus leitores, pois não apresentou os verdadeiros objetivos das ações guerrilheiras. De diferentes maneiras, Veja foi apresentando os guerrilheiros como indivíduos perigosos, que assassinavam as pessoas comuns: “E a figura do terrorista já faz parte da paisagem urbana: mais de um homem, mais de uma vez, já parou o trânsito de ruas próximas ao centro com rajadas de metralhadoras de um respeitável arsenal”.9 No decorrer do período analisado na pesquisa, percebemos também a preocupação da revista em evitar que a aliança estudantesguerrilheiros se concretizasse. Aliás, para Veja, os estudantes e seus movimentos eram fundamentais para evitar que os guerrilheiros continuassem suas práticas subversivas e, principalmente, para evitar que os guerrilheiros conseguissem atingirem e trazerem novos estudantes para a luta armada: 5 Hélio Bicudo (1984) em Segurança Nacional ou submissão caracteriza a Segurança Nacional como resultado de uma ideologia e uma política que, principalmente para os EUA, significou a preservação e expansão do poder imperial. Os países são “convencidos” a estabelecer regimes políticos que se baseiam no combate e aniquilamento do “inimigo externo comum” – identificado no comunismo – o que corresponde à imposição e sustentação de governos autoritários, como no caso da América Latina. Segundo Bicudo qualquer pessoa que se opusesse de alguma maneira ao governo poderia ser considerado como “inimigo interno”, por estar dentro das fronteiras do país, mas supostamente, atender “a objetivos externos” – o comunismo. 6 Veja. Os exércitos estão reunidos. Combate ao inimigo interno, nova tática para as forças americanas. Ed.03 – 25/09/68. p.23-24. 7 Sobre os grupos de guerrilhas, citamos (entre outras): GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2ª Ed. São Paulo: Ática, 1987; REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo; Brasília; Brasiliense; CNPq, 1990; MIR, Luís. A revolução impossível: a esquerda e a luta armada no Brasil. São Paulo: Best Seller, 1994; RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. 8 Veja. Mais assaltos. Roubaram 80 milhões e ficou a pergunta: são terroristas? A técnica do assalto e as armas lembram outros grandes roubos ocorridos em São Paulo. Ed.06 – 16/10/68. p.25. 9 Veja. Ele assalta em nome do terror. Ed.37 – 21/05/69. págs. 18-21. Juliana Tezini demonstrou de maneira mais aprofundada como a revista Veja buscou desmobilizar a participação política dos estudantes universitários, durante o ano de 1977. Como demonstrou a autora, a revista Veja desenvolveu uma campanha sistemática para conter a reorganização dos estudantes.11 Percebemos assim o papel de Veja em relação aos movimentos sociais: orientar e alertar segundo os interesses que mais estavam de acordo com a revista. Quando as guerrilhas mostramse um problema, Veja as repugnou colocando o movimento estudantil como forma correta de manifestação política. Quando o movimento estudantil se mostrava de maneira organizada, Veja indica a sua contenção. Isto porque uma reorganização do movimento estudantil naquele momento poderia ser uma forma de impulsionar o movimento operário, como demonstrou Tezini. E não era este o objetivo de Veja. E é sem saber ao certo “quem” ou “quais” são os objetivos dos guerrilheiros que a revista começou a abordar os grupos de guerrilhas e suas ações. “Que tipo de gente são os terroristas?” (Grifos meus)12. Porém, percebe-se que mesmo não conhecendo as intenções desses grupos, eles são mostrados como “terroristas” – e essa “desqualificação” já ficou clara na expressão “que tipo de gente”, utilizada pela revista, que já é preconceituosa por definição –, e Veja já possui seu veredicto: “Os radicais de esquerda ou de direita cedo ou tarde perceberão que o terrorismo lhes pode parecer necessário mas certamente não é suficiente para a tomada do poder”.13 A revista colocava-se como se estivesse falando aos “terroristas”, mesmo dizendo não saber se estes pertencem a uma ala da esquerda ou direita. Veja procurou convencer que as maneiras utilizadas pelos “terroristas” para “protestarem” seriam totalmente incorretas. Segundo a revista, “Se sua intenção é derrubar o Governo, será que acham que poderão 10 Veja. As seis perguntas do terror. Ed.49 – 13/08/69. Pgs.16-21. TEZINI, Juliana Caetano Vaccari. O movimento estudantil em 1977 e a atuação política da Revista Veja. IN: Revista Tempos Históricos. Universidade Estadual do Oeste do Paraná. V.1, n.1. Marechal Cândido Rondon: EDUNIOESTE, 1999. Pgs.171-205. 12 Veja. As seis perguntas do terror. Op. Cit. Pgs.16-21. 13 Veja. Terror e reação. O sangue de um capitão americano morto em São Paulo, o de outros mortos e feridos, se mistura aos estilhaços de bombas, como a que explodiu na Civilização Brasileira, no Rio. É o terrorismo? Ed.07 – 23/10/1968. Pgs.15-17. 11 46 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) conseguir mudar o regime através de paredes que se despedaçam sob o impacto da dinamite ou pelo sangue que corre de mortos politicamente desconhecidos?”.14 Neste sentido, Veja indicou aos guerrilheiros que suas ações estariam conferindo a eles o título de terroristas, e que, portanto, deveriam rever suas atitudes: Talvez então a palavra 'terrorista' não fosse adequada para designar um subversivo que assalta bancos com o único objetivo de obter dinheiro para sustentar guerrilheiros ou uma rede clandestina de militantes. No entanto, a sucessão de assaltos, acompanhada de algumas mortes, está criando um sentimento de medo em setores da população que trabalham em áreas visitadas pelos subversivos assaltantes.15 Percebe-se que, Veja colocava-se como se fosse tradutora da História, educadora do próprio movimento contestatório. Em relação aos grupos de guerrilhas, Veja adotou a política do governo, pois os grupos guerrilheiros quebravam a ordem existente e Veja acreditava no “progresso dentro da ordem” e esses grupos poderiam atrapalhar seus ideais capitalistas. Por fim, Veja definiu esses atentados como desnecessários, pois o almejado (a redemocratização) só seria obtido dentro da ordem: “As reações do governo e do povo, as reações dos grupos políticos é que, no fim, criarão uma nova situação no Brasil – em que os próprios terroristas se convencerão ou de que o terrorismo não é mais necessário ou de que ele é totalmente inútil”.16 Enfim, para Veja não importava “quem” ou “o que” são os terroristas. O importante é que eles “não são necessários”, e por isso deveriam ser combatidos. Percebemos a tentativa da revista de obter a redemocratização, entretanto, esta teria que ser dada burocraticamente, através dos mecanismos que assegurassem a continuidade do sistema capitalista. Os guerrilheiros tinham como prática de suas atividades revolucionárias os assaltos. Segundo Carlos Marighella, em seu Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano, “o assalto é o ataque armado com o qual fazemos expropriações, libertamos prisioneiros, capturamos explosivos, metralhadoras, e outras armas típicas e munições”.17 Além disso, o principal objetivo dos guerrilheiros em todas as suas ações era realizar a propaganda revolucionária. Porém, os atos guerrilheiros foram tratados pela maioria da sociedade como ações de delinqüentes inconsequentes. Perseu Abramo, na obra “Padrões de Manipulação na Grande Imprensa”, demonstrou que a manipulação da realidade pela imprensa ocorre de várias e múltiplas formas. Segundo ele, “a gravidade do fenômeno decorre do fato de que ele marca a essência do 14 Idem. Veja. As seis perguntas do terror. 13/8/69, pgs.16-21. 16 Idem. 17 MARIGHELLA, Carlos. Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano. D i s p o n í v e l e m : http://brasil.indymedia.org/media/2008/06//422822.pdf. Consulta realizada em 10 de maio de 2010. 15 procedimento geral do conjunto da produção cotidiana da imprensa”.18 Essa característica geral pode ser observada quando se procura tipificar as formas mais usuais de manipulação. E neste sentido, Abramo identificou pelo menos quatro padrões de manipulação gerais: Padrão de Ocultação, Padrão de Fragmentação; Padrão da Inversão; Padrão de Indução. No exemplo citado acima, percebemos que Veja se utilizou do Padrão de Inversão e da Fragmentação, fragmentando o fato em aspectos particulares, todos eles descontextualizados, prosseguindo com a destruição da realidade original e a criação artificial de outra realidade. Como demonstramos, Veja descontextualizou as ações dos guerrilheiros na prática de assaltos e expropriações, demonstrando os mesmo como bandidos que ameaçariam a vida das pessoas. Ainda em seu manual, Marighella alertava para a diferença existente entre um guerrilheiro urbano e os delinquentes: O delinqüente se beneficia pessoalmente por suas ações, e ataca indiscriminadamente sem distinção entre explorados e exploradores, por isso há tantos homens e mulheres cotidianos entre suas vítimas. O guerrilheiro urbano segue uma meta política e somente ataca o governo, os grandes capitalistas, os imperialistas norteamericanos.19 Porém, não é dessa maneira, fazendo distinção entre delinqüentes e guerrilheiros, que Veja caracterizou suas edições a respeito dos grupos de guerrilhas. Inicialmente a revista apresentou apenas os inúmeros assaltos e ataques (designados por ela de “terroristas”), além das inúmeras mortes, sem esclarecer os motivos que levaram os guerrilheiros a praticarem essas ações. Veja procurou ser “explicativa” para assim criar determinado consenso de estar apresentando o fato tal como ele aconteceu. Para isso, utilizou-se do máximo de dados possíveis, encobrindo neles a sua opinião. Nesse sentido, a revista procurou caracterizar a identidade dos atingidos (quando se trata de personalidades de destaque), bem como o setor atingido nos assaltos e ataques subversivos. Porém, essas são as únicas “informações” repassadas por Veja. Por mais que a revista tentou mostrar-se neutra, e dizer que dá voz aos dois lados, Veja jamais procurou discutir o significado dessas ações para os seus praticantes, ou seja, para os guerrilheiros. As “técnicas de guerrilhas urbanas” propostas pela maioria dos guerrilheiros brasileiros seguiam algumas características, e uma delas era as expropriações como forma de obter recursos para lançamento e sobrevivência da guerrilha rural, bem como de “atacar” e desmoralizar as classes dominantes e repressoras. Porém, isso jamais foi comentado pela revista. Veja apresentou os “motivos” que, segundo argumento de técnicos, seriam os responsáveis pela condenação da população às guerrilhas (assaltos, assassinatos, seqüestros, etc.). E, para reforçar sua tese, a revista chegou a apresentar trechos de 18 19 ABRAMO, Perseu. Op. Cit. P.25. Idem. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (44-50) - 47 documentos escritos por Lênin, Stálin e Guevara, onde estes falam sobre as táticas a serem utilizadas nas guerrilhas: “Che Guevara, Lênin e Stálin pensavam realmente dessa forma?”.20 Veja parece ironizar a prática das guerrilhas brasileiras, especialmente no que se refere a ataques terroristas realizados pelos grupos de luta armada, afirmando que os guerrilheiros estariam praticando ações que contrariam as “ideologias” de seus “ i n s t r u t o r e s ” . C o m i s s o , Ve j a p r o c u r o u , pedagogicamente, indicar os caminhos a serem trilhados pelos guerrilheiros, caminhos estes contrários daqueles normalmente seguidos por eles e que, segundo Veja, acabam “pelo seu aspecto absolutamente negativo, levando à repulsa da maioria da população e à reação violenta das autoridades, preocupadas com a manutenção do regime e da ordem”.21 Podemos perceber que a revista não apresentou as reais intenções dos guerrilheiros, o que possibilitaria, caso fossem apresentadas, a melhor compreensão por parte da população em relação aos “ataques”. Além disso, Veja utilizou-se de muitos argumentos para mostrar aos guerrilheiros que ela queria ajudá-los, desde que estes aceitassem os caminhos indicados pela revista. Um exemplo claro desta construção discursiva realizada por Veja para dirigir e indicar caminhos aos grupos guerrilheiros é a matéria intitulada “A caçada” onde Veja apresentou a mobilização policial pela procura do líder guerrilheiro Carlos Marighella. “Copacabana, agora ocupada por mais de 2 mil policiais à sua procura”.22 Veja parece construir uma identidade amena para Marighella, o que caracteriza a constante ambigüidade presente na revista: Não muitos dias depois, começava a caçada nacional ao homem robusto de pele morena e cabelo claro já grisalho, que diariamente tomava três horas de banho de sol e mar, comia cachorro-quente nas praias cariocas e conversava com as crianças (Grifos meus)23. Marighella foi apresentado por Veja como sendo um “comunista exemplar”. É interessante notar a construção da matéria e os adjetivos que Veja utilizou para designar o guerrilheiro. A matéria é constituída de três páginas: a primeira consiste em apresentar a mobilização policial, a segunda, fala-se sobre as ações realizadas pelos guerrilheiros. É neste momento que Veja iniciou sua “sessão” de elogios a Marighella, o que gera uma certa confusão na cabeça do leitor desprevenido. Utilizando-se de citações de diferentes pessoas, Veja foi descrevendo Marighella: “dirigente discreto e eficiente; um comunista exemplar; orador; mulato louro atrevido; muito combativo e falava bem; 195 discursos em menos de dois anos; um dos secretários mais eficientes; Dom Quixote...”.24 Observamos que a revista construiu uma 20 Veja. As seis perguntas do terror. Op. Cit. Pgs.16-21. Idem. 22 Veja. A caçada. O General França comanda milhares de policiais que em todo País estão à procura do líder comunista Marighela. Ed.11 – 20/11/68. Pgs.15-17. 23 Idem. 24 Idem. identidade exemplar para Marighella. Além disso, para a revista, toda essa “caçada policial vem dar (...) o prestígio que trinta anos de trabalho político nas fábricas e nos campos nunca lhe deram”.25 Ou seja, Veja parece estar falando aos militares para que estes reconheçam que toda essa mobilização policial foi favorável ao líder guerrilheiro, pois proporcionou um aumento na reputação de Marighella. Porém, é em meados da terceira página, quando “Marighella saiu dos salões brilhantes da Câmara para os quartos escuros das reuniões clandestinas”26, que toda essa descrição “heróica” de Marighella modifica-se drasticamente. A partir desse momento, a “biografia” do guerrilheiro ganhou um novo sentido: “stalinista brasileiro; inteiramente frio, duro, obstinado; pitoresco na linguagem; perigoso subversivo; patriota com métodos errados (...)”27, ou seja, para Veja, Marighella poderia ter sido um brilhante político de esquerda, desde que não entrasse para a clandestinidade. A partir do momento em que Marighella tornou-se um guerrilheiro, todos os pontos positivos do antigo deputado desapareceram para dar lugar a uma figura fria e inconseqüente, do líder guerrilheiro. Podemos perceber que Veja adotou a posição de indicar o certo e o errado, o bem e o mal. Marighella foi transformado em herói por sua trajetória militante, porém, por escolher “os quartos escuros das reuniões clandestinas”, e tomar atitudes que vão de encontro com a ordem zelada por Veja, Marighella acabou transformando-se em bandido e, portanto, motivo de repulsa pela revista. O exemplo de Marighella pode ser estendido também a outros guerrilheiros. Os guerrilheiros teriam a opção de se adaptarem às condições impostas para se enquadrarem no padrão “herói” de Veja, caso contrário, continuariam a ser considerados “bandidos terroristas”, caracterizados pela revista. A ordem é adequação, e somente a partir desse enquadramento que os militantes de esquerda, poderiam “merecer” os elogios de Veja. Grande parte das ações praticadas pelos guerrilheiros visavam a obtenção de fundos para o levante das guerrilhas. Entretanto, como percebemos, Veja procurou distorcer essa prática constantemente. E, nada melhor que supor a possibilidade do dinheiro estar sendo desviado para causas particulares, para completar essa espetacularização. Em diversas situações Veja ironizou a prática dos guerrilheiros em praticar assaltos e arrecadar fundos para a efetivação da guerrilha rural. A revista fez contestações a essas atitudes, insinuando que o fruto dessas ações seria em benefício de causas particulares, apresentando os guerrilheiros como “elementos que se profissionalizaram, ganham para fazer a revolução”28 e não como sendo ações cujo resultado seria em prol dos 21 25 Idem. Idem. 27 Idem. 28 Veja. Entrevista: General Meira Mattos. “O Brasil esta em guerra”. Ed.56 – 01/10/69. Pgs.03-06. 26 48 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) interesses dos grupos guerrilheiros. A revista insinuou que os líderes guerrilheiros estariam “desviando” o dinheiro obtido nas ações revolucionárias. Para “enriquecer” essas insinuações, Veja fez associações com outras lideranças esquerdistas que estariam, assim como os guerrilheiros, beneficiando-se com as “práticas revolucionárias”: “Brizola recebeu muito dinheiro destinado ao movimento; mas só enviou 8000 cruzeiros novos para os guerrilheiros”.29 vez a revista procurou criar o consenso nos leitores de que o dinheiro arrecadado nos assaltos era direcionado para causas pessoais. Veja levantou suspeita sem apresentar nenhuma prova. Entretanto, conseguiu criar um discurso indutor, de maneira a acentuar a repulsa da população aos guerrilheiros, agindo no sentido de fazer com que a população tenha pelos grupos de guerrilhas o mesmo sentimento dos assaltantes comuns, de repulsa e necessidade de combate. Na já citada reportagem de 20/11/1968, Veja apresentou a fala de um guerrilheiro foragido (Paulo César) alegando que o dinheiro obtido nos assaltos poderia ser para causas não revolucionárias: “Marighella disse que o dinheiro era para o movimento, mas não posso garantir que ele não vá usá-lo para outras coisas”30 (Grifos meus). O único dado apresentado pela revista sobre o “guerrilheiro arrependido” é o de que o mesmo era estudante. Percebemos um vazio nessa “informação” prestada por Veja. A revista não abordou à qual grupo o foragido pertencia, e nem apresentou provas reais de que ele era mesmo um militante guerrilheiro.31 Além disso, para confirmar que a declaração do jovem não fora obtida sob tortura, Veja colocou que o mesmo havia mostrado partes do seu corpo para provar que não havia sido torturado. As primeiras matérias realizadas por Veja sobre os grupos guerrilheiros demonstraram a preocupação da revista em relação ao alegado “inimigo” que se fortaleceria no Brasil. Ao referir-se à polícia, Veja procurou demonstrar o que considerava acomodação da repressão: “Até agora o Governo Federal não tem combatido diretamente o terror, por considerar que se trata de atos isolados, de competência dos governos estaduais”.35 Com o fortalecimento das ações da esquerda armada, Veja arriscou-se a afirmar que “a ineficiência da repressão é que leva a crer na possibilidade de aumento das ações das esquerdas subversivas”.36 A revista foi alertando os militares para que estes ampliem os mecanismos de coerção e repressão aos guerrilheiros. Em 14/04/71, quando Veja procurou caracterizar o fim dos guerrilheiros, uma das maneiras utilizadas para demonstrar o declínio “desesperador” pelo qual passavam os grupos de guerrilhas, mais uma vez, foi a associação da realização dos assaltos à manutenção das despesas pessoais: Os terroristas remanescentes estão de tal forma desarticulados que suas ações devem ser comparadas às de bandidos comuns. A única finalidade de um assalto é repartir o dinheiro obtido entre os membros do grupo: o que não garante a sobrevivência de um movimento político, mas pelo menos ajuda nas despesas pessoais (Grifos meus).32 Como se pode perceber, a ironia de Veja está presente na maioria das matérias realizadas pela revista. Apesar de Veja consentir que “nem todos os assaltos sejam políticos e que há muito ladrão comum agindo por aí” 3 3 , a revista continua insistindo na “profissionalização” dos revolucionários em praticar expropriações como forma de enriquecimento pessoal: “nem a presença de extremistas assegura que todo o dinheiro roubado vá para a subversão” (General Sílvio Correia de Andrade).34 Através do oficialismo, mais uma 29 Veja. O terror de rosto descoberto. Ed.48 – 06/08/69. Pgs.16-18. Veja. A caçada. Op. Cit. Pgs.15-17. 31 Para maiores discussões sobre os “militantes arrependidos” ver o trabalho de: GASPAROTTO. Alessandra. A síndrome da traição: Apontamentos sobre a figura do “traidor” nas organizações de combate à ditadura brasileira. IN: SILVA, Carla Luciana; CALIL, Gilberto Grassi & KOLING, Paulo José (Orgs.). Estado e Poder: abordagens e perspectivas. Cascavel: Edunioeste, 2009. p.167-190. 32 Veja. Subversão. O roubo pelo roubo. Ed.136 – 14/04/71. P. 20. 30 33 Veja. Ele assalta em nome do terror. Ed.37 – 21/05/1969. Pgs.18-21. 34 Idem. Através da estratégia de culpar os próprios guerrilheiros pelo aumento da repressão, Veja utilizou-se de argumentos que justificavam as ações violentas dos militares contra os grupos de guerrilhas. Segundo a revista, “para enfrentar o terrorismo, é preciso um terrorista”.37 E dessa maneira Veja relacionou a prática policial de violência e destruição aos ideais dos guerrilheiros, colocando a população a associar as práticas depredatórias dos militares às práticas revolucionárias dos guerrilheiros. Dessa maneira Veja alertou os militares para o combate eficaz aos guerrilheiros e abarcou justificativas para que os policiais pudessem exercer seu “serviço” sem preocupar-se com a “opinião pública” já que, segundo a revista, a culpa é dos próprios grupos de luta armada: “No Brasil o terrorismo provocou a reação policial”.38 Veja naturalizou a repressão e reuniu elementos para conquistar a população em favor dos militares. O fim das guerrilhas foi um assunto pedagogicamente retratado por Veja. Mesmo no período em que as ações armadas atingiam seu ápice, a revista apresentou frases de oficiais anunciando um fim próximo. “Um combate que se aproxima do fim, segundo os oficiais integrantes dos órgãos federais de segurança”.39 O constante anúncio de aniquilação dos movimentos de guerrilhas poderia deixar os demais grupos temerosos e apreensivos em continuar a luta armada, já que a continuidade da luta levaria, como afirmava a revista, à autodestruição. 35 Veja. Terror e reação. Op. Cit. Pgs.15-19. Veja. SUBVERSÃO. Mais eficiência na luta contra o terror. Ed.24 – 19/02/1969. p. 16. 37 Veja. As seis perguntas do terror. Op. Cit. Pgs.16-21. 38 Idem. 39 Veja. O terror de rosto descoberto. Ed.48 – 06/08/1969. Pgs.16-18. 36 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (44-50) - 49 Veja procurou criar consenso, desde as primeiras matérias realizadas sobre os grupos guerrilheiros, de que estes jamais obteriam sucesso, que já estavam praticamente acabados. O fim das guerrilhas foi apontado f r e q ü e n t e m e n t e , s e n d o q u e Ve j a p r o c u r o u constantemente trazer citações de oficiais envolvidos na “caça” aos guerrilheiros, para que estes “relatassem” o cerco que se fechava cada vez mais em torno dos grupos de luta armada. Além disso, a revista apresentou apenas dados que confirmavam esse propósito, deixando de mencionar sobre eventuais ações que poderiam estar sendo praticadas pelos guerrilheiros. Em relação à morte de Marighella, a qual a revista dedicou uma matéria de capa para trabalhar com o tema, não nos aprofundaremos aqui. Ressaltamos apenas que com a morte do principal líder, Veja tinha ainda mais argumentos para comprovar que os grupos de guerrilhas se aproximavam do fim.44 Por fim, na matéria intitulada “A política e a subversão”, a revista deu o “tiro final” sobre os grupos guerrilheiros. Nela Veja anunciou uma nova caracterização da esquerda armada: uma esquerda que “ao invés de armas, tem a pretensão de deflagrar idéias”. Segundo Veja: Uma característica bastante interessante é a seqüência de manchetes de Veja, com titulações que representam o fim das guerrilhas. Data 22/10/1969 29/10/1969 05/11/1969 12/11/1969 04/02/1970 04/03/1970 16/12/1970 Edição 59 60 61 62 74 78 119 Título O terror está cercado O terror sem saídas O terror sem fôlego Estratégia para matar o terror Os rachas do terror A última batalha O terror desafiado Tabela - Matérias de Veja declarando o fim das guerrilhas A revista realizou constantemente especulações a respeito da efetivação da guerrilha rural. Isso ficou mais presente, porém, no final de 1969. Os grupos estavam se desmantelando, discutia-se a continuidade da luta. O Exército recebia treinamentos para combater a guerrilha campesina (como o GOE – Grupo de Operações Especiais). Tentativas haviam sido desastrosas. Veja, porém, insistiu em incitar os guerrilheiros à guerrilha campesina. Na matéria de 20/8/69, intitulada “Um desafio a Marighella”, a revista apresentou o desafio do Coronel do Exército Antonio Erasmo Dias, a Marighella – “líder de um grupo de subversivos, assaltantes e terroristas candidatos a guerrilheiros”40 (Grifos meus) –, para que este deflagrasse o foco guerrilheiro no campo. Veja apresentou inúmeros insultos realizados pelo Coronel e terminou a reportagem transmitindo sua conclusão sobre o assunto: “No fim de semana, continuava no Rio a caça aos subversivos. Que na verdade não são guerrilheiros dispostos a lutar no campo – mas assaltantes de bancos, encurralados”.41 As diminuições das atividades “terroristas” são indícios para alguns policiais, segundo a revista, de que “os terroristas estão realmente no fim, agonizantes, desorganizados”42, porém, e essa pareceu ser a hipótese de Veja, “Outros policiais, porém, pensam que a interrupção tem uma segunda causa, igualmente desfavorável para os terroristas. Acreditam que os terroristas já estão no campo, preparando-se para iniciar a fase das guerrilhas e – segundo os policiais – serão derrotados rapidamente” (Grifos meus).43 40 Veja. TERROR. Um desafio a Marighella. Ed.50 – 20/08/1969. Pgs.19-20. 41 Idem. 42 Veja. O terror sem saídas. Ed.60 – 29/10/1969. p. 40. 43 Idem. Segundo uma fonte militar, embora os atentados isolados e esparsos continuem, espera-se que o movimento subversivo adote uma nova estratégia. Combalido nas suas ações terroristas, poderia voltar-se agora para atividades clandestinas de infiltração, aliciamento e proselitismo. A subversão, segundo aquela fonte, ao invés de armas, tem a pretensão de passar a deflagrar idéias.45 Para fazer essa afirmação, Veja baseou-se em um relatório elaborado por órgãos de segurança, que se referia a um “balanço das atividades subversivas”.46 As autoridades afirmariam nesse relatório, tendo como base um documento apreendido, a ocorrência de “uma unificação política e ideológica das organizações terroristas visando à formação de 'um partido novo, correto e poderoso'”.47 Esse novo grupo se denominaria Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil, e seria oriundo da antiga Ação Popular. Apesar de, no início, a APML ser uma organização voltada para a luta armada, em meados de 1970, segundo Esther Kuperman, a APML manifestava “uma nova preocupação: a necessidade de construir um partido legalizado, que viesse a ser fator de aglutinação das forças políticas que possuíssem o mesmo referencial de lutas e uma identidade ideológica”.48 A APML adotou como base de sua estratégia a formação de um partido operário, e após muitas cisões e crises, viria a se integrar no Partido dos Trabalhadores (PT). Apesar de as “idéias” poderem ser também fator de perigo e de “subversão”, Veja tinha agora uma “alternativa” para os opositores do governo: um partido que contestasse, mas que realizasse essa contestação de maneira pacífica. Dessa maneira, Veja estaria tentando garantir seu papel de “orientadora” dos grupos sociais, adequando-os aos interesses da revista. 44 Neste sentido há um texto publicado: RAUTENBERG, Edina. Veja e a morte de Marighella: moldando discursos em busca de hegemonia. IN: Anais do I Simpósio de Pesquisa Estado e Poder. Linha de Pesquisa Estado e Poder – Cascavel: EDUNIOESTE, 2007. Pgs.89-98. 45 Veja. A política e a subversão. Ed. 160 – 29/09/71. Pgs. 20-21. 46 Idem. 47 Idem. 48 KUPERMAN, Esther. Da Cruz à Estrela: A Trajetória da Ação Popular Marxista – Leninista. Revista Espaço Acadêmico – A n o I I I , n º 2 5 – J u n h o d e 2 0 0 3 . http://www.espacoacademico.com.br/025/25ckuperman.htm 50 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) Enfim, com esta análise podemos verificar as diferentes maneiras utilizadas por Veja para criar uma imagem negativa dos grupos guerrilheiros. Através da análise do discurso de Veja durante o período em questão, podemos perceber as formas com que a revista realizou seu discurso dirigido aos diferentes segmentos da sociedade, apontando o que diz ser os “erros cometidos” e “ensinando” caminhos a serem seguidos. Pedagogicamente, Veja procurou educar os militares a combaterem o “terrorismo” de forma eficaz demonstrou aos guerrilheiros suas “falhas” e indicou-lhes medidas a serem tomadas para obterem êxito. Além disso, estimulou a população a perceber em suas páginas o perigo e a inconseqüência que, segundo a revista, representavam as guerrilhas. Veja defendeu medidas coercitivas aos grupos guerrilheiros. Organizou através de sua prática pedagógica, indicando caminhos, naturalizando os acontecimentos, justificando medidas contraditórias, enfim, Veja pode ter contribuído para a decadência dos grupos de guerrilhas ao naturalizar a repressão e culpar os próprios guerrilheiros pelo seu fracasso. Colocando-se como “portadora da verdade” e através de artifícios de “neutralidade” Veja conseguiu impor sua visão como sendo a informação, criando uma realidade que atendesse às expectativas, como nos parece ter sido demonstrado. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (51-56) - 51 As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira Jussaramar da Silva1 E ste artigo trata de um dos aspectos vistos na documentação que elencamos em nossa pesquisa acerca das Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI's) da Itaipu Binacional.2 As AESI's compunham no Brasil a comunidade de informações, diretamente subordinadas ao Serviço Nacional de Informações (SNI), mas também possuíam vínculos com Ministérios, cada uma de acordo com o setor a que estavam subordinadas. Instituições públicas, universidades, empresas públicas possuíam Assessorias. Recentes levantamentos nos arquivos vêem demonstrando que elas compunham a malha burocrática do Estado, encastelando-se em instituições. Ao que temos notícias, existia uma AESI para cada um desses órgãos, podendo haver uma regional recebendo as informações das demais, como explica Motta.3 No caso da Itaipu, salta aos olhos a discrepância nessa organização. Ela possuiu mais de uma Assessoria, pois tinha escritórios regionais, funcionando conjuntamente com escritórios da empresa, onde estavam os agentes de informações. Mas, além disso, ela adentrou a malha de informações do Paraguai. Assim, havia AESI's da Itaipu no Brasil, subordinada ao SNI e AESI's Itaipu no Paraguai, subordinadas aos órgãos de informações desse país, pois se tratava de um condomínio de energia elétrica com o país vizinho. E pior, parte da documentação por nós pesquisada demonstra que também lá havia uma AESI em Assunção que era vinculada ao SNI no Brasil. Nosso trabalho pretende demonstrar que a vigilância se estendeu a todos os divergentes com as ditaduras militares, em especial a classe trabalhadora, 1 Mestre em História pela PUCSP. Integrante do Centro de Estudos de História da América Latina (CEHAL). E-mail: [email protected]. Texto integrante das reflexões contidas na dissertação: A Usina de Itaipu e a Operação Condor: o outro lado das relações bilaterais Brasil – Paraguai (1973-1988), sob orientação da Profª Drª Vera Lucia Vieira. 2 Nossa pesquisa teve como centro as Assessorias Especiais de Segurança e Informações da Itaipu Binacional. Sua ação perpassou não apenas a vinculação com a comunidade de informações do Brasil, mas também Paraguai, e em menor volume de documentos com a Argentina e o Chile. Para essa pesquisa, lançamos mão do acervo DOPS Paraná, fundo Assessoria Especial de Segurança e Informações da Itaipu, Arquivo do Horror, Arquivo Nacional e documentos gentilmente cedidos e/ou encaminhados por Aluizio Palmar, Martín Almada e Rodrigo Patto Sá Motta 3 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Incômoda Memória: os arquivos das ASI Universitárias”. Acervo: Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, 2008, p. 43-65. mas nesse artigo em particular, trataremos da vigilância e controle de civis, efetuadas pelas AESI's em conjunto com os demais órgãos de informações da região e que se estenderam ao período da “abertura” no caso brasileiro. Nesses documentos, percebemos os meandros da circulação de informações em torno de civis ou entidades da sociedade civil, que passaram pelo crivo da observação das AESI's de Itaipu, e estas se incumbiram de espionar e emitir relatórios, informes etc., o que ultrapassou inclusive o período do fim da Ditadura Brasileira. Trata-se da evidência da continuidade do controle sobre a sociedade civil, nos mesmos moldes vigentes no período ditatorial brasileiro e que encontrava respaldo, como seria lógico acontecer, no prosseguimento da ditadura paraguaia. O simples fato de se organizar, discutir problemas que pudessem afligir um grupo de pessoas ou uma nação como um todo, era motivo de relatórios constantes, trocas de informações e organizações de processos que poderiam servir de base para algum procedimento judicial. Assim, as eleições para prefeito em cidades da fronteira, a luta pela revogação da Lei de Segurança Nacional, os civis de maneira geral, que fossem considerados “subversivos”, jornais e jornalistas, e mesmo parlamentares, compunham o rol de acompanhamentos sistemáticos das AESI's.4 As famílias de perseguidos políticos pelas ditaduras também não estiveram isentas da observação. Ressalta-se que as famílias vigiadas foram aquelas que possuíam algum membro entrando na justiça exigindo reparações por perseguições, desaparecimentos forçados, aprisionamentos, ou torturas, infringidas contra algum familiar ou a ele mesmo. Como no Paraguai não havia ainda a abertura política, tal desígnio é relativo apenas ao Brasil, mas não exclusivamente a brasileiros. Aqui, a abertura dera-se, naqueles idos de 1985, apenas no cenário político estrito senso, ou seja, apenas pela reabertura do Congresso, pela re-implementação do sistema eleitoral que se abria à participação política mais 4 Pelo teor dos documentos, podemos concretamente afirmar que a trama interna de espionagem e informações no Brasil foi devastadora. Obviamente não nos propusemos a desnudá-la, e seria uma tarefa um tanto pretensiosa, mas nesse caso em particular, nossas reflexões trazem alguns elementos para pensarmos como é necessário desenvolver mais pesquisas nesse sentido. Ao que parece, nada passou despercebido. E ao mesmo tempo, o número de agentes da repressão era muito maior do que se supunha, ao levar em consideração os demais órgãos já estudados da Ditadura brasileira. 52 - As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira ampla da sociedade civil e a retomada da autonomia do judiciário. Um judiciário, que sofrera vários expurgos dos não alinhados com a ditadura, iniciados já em 1965 e que continuaram pelos 20 anos seguintes. Na estrutura governamental o arcabouço repressivo continuaria a funcionar até a sua extinção em 1990 e manterá intactas as suas funções, seus agentes, sua lógica de funcionamento. Neste contexto, o fato de entrar na justiça contra a violência e arbitrariedades cometidas nos anos anteriores pelo Estado, já os caracterizava como oposicionistas – das ditaduras – e, portanto, suspeitos de subversão. Naquele momento de transição, sabedores da continuidade do funcionamento do sistema repressivo, os perseguidos e os familiares atingidos, direta ou indiretamente, em busca de reparações ou mesmo de pessoas desaparecidas, optaram por ações conjuntas, pois isto lhes dava maior força argumentativa perante a justiça e também lhes permitia a construção de uma espécie de rede de proteção. Eram em tais reuniões que se encontravam agentes infiltrados, ou simples delatores, por vezes, conforme se deduz, conhecidos dos familiares ou amigos das vítimas. Foi o aconteceu, por exemplo, com o encontro ocorrido em Foz do Iguaçu.5 O agente infiltrado registrou a discussão entre amigos. Consta, segundo o relato do informante, que vários casais, ao que parece, bem próximos devido à sua situação de perseguidos da ditadura Stroessner, se encontraram na casa de um deles. Neste registro, a divergência entre os integrantes do grupo apareceu, pois o documento não relatou o motivo da discussão, quando um dos convidados chamou o outro de stronista.6 Embora não haja detalhamento de toda a reunião familiar, como o próprio documento a considera, chamou a atenção do infiltrado, o fato de que um deles ofendeu o outro. O destaque aparece no documento. Se tal acontecia do lado brasileiro, o que não dizer do lado paraguaio, onde a ditadura teve continuidade até 1989? O que não seria “normal” é o lado brasileiro continuar a dar informações para a repressão paraguaia. Tal relação continuou incluindo civis dos mais diferentes matizes, o que deu margem para que os agentes fizessem associações cuja lógica interna fica, muitas vezes difícil de objetivar. Assim, por exemplo, tomemos o caso da relação que tais personagens fizeram entre um ex-militar paraguaio e seu amigo brasileiro, plantador de grande porte. Conforme o documento relata, este militar havia sido combatente, ao lado de Stroessner, na Guerra do Chaco contra a Bolívia, ocorrida entre 1932 e 1935. Essa guerra teve como um de seus heróis o próprio Alfredo Stroessner, que ganhou como prêmio, pela sua “bravura”, a possibilidade de fazer cursos no Brasil. Anos depois, quando o golpe stronista já havia sido desferido, um 5 Informe nº 002/75. Acervo Arquivo do Horror, 28/04/1975. Origem: AESI Itaipu Paraguai (documento em espanhol). Difusão: Comando em Chefe. 6 Stronista, no jargão usado pelos divergentes da época seriam os afeitos à política desempenhada pela Ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai. opositor que integrava as forças armadas paraguaias, ocupando o cargo de tenente, foi para a reserva, transformando-se, segundo os agentes do governo, em ex-combatente. Nesta condição passou a ser vigiado e foi classificado como um “liberal de esquerda”7, de grande periculosidade porque era “conhecido como homem de ação”, capaz de realizar treinamentos de guerrilheiros.8 O risco que este homem representava era de que continuava freqüentando o Country Club de Foz do Iguaçu, ter amigos influentes e como proprietário de terras, empregar várias pessoas.9 Tal fato mereceu ser destacado pelo informante, o que leva o leitor a algumas especulações no sentido de entender a lógica de tal destaque: seria o risco do contato com trabalhadores e a suspeição de treinamento de guerrilheiros na propriedade do fazendeiro? Há aqui uma evidência de que nem mesmo o liberalismo era permitido nessa relação de desenvolvimento hiper-tardio do capitalismo no Paraguai, como também ocorrera no Brasil. Tal lógica nos remete às reflexões de Chasin sobre os países que não tiveram o processo de desenvolvimento clássico. Diz ele, A nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para sustentar e ampliar sua própria natureza exploradora, através da associação crescente com a exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre apropriado e conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser democrática, tem no politicismo sua forma natural de procedimento. Politicista e politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma da sua irrealização econômica (ela não se efetiva, de fato, por inteiro, nem mesmo suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu politicismo. E este integra, pelo nível do político, sua incompletude geral de classe. Incompletude histórica de classe que a afasta, ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a sua acumulação capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são genericamente estranhas e estruturalmente insuportáveis, na forma de um regime minimamente coerente e estável.10 Por fim, o documento não traz, conforme se observa em outros do mesmo tipo, dados que “comprovassem” as acusações de associação do excombatente com a guerrilha. É possível que fosse uma informação conseguida de forma aleatória, não havendo comprovação empírica, já que cada documento que tivesse qualquer informação sobre o caso, a complementava, destinava a muitos órgãos e tomava 7 Não nos é possível saber a que exatamente se refere à associação feita pelo agente entre liberal com esquerda. 8 Informe nº 002/78. Acervo Arquivo do Horror, 31/01/1978. Origem: AESI Itaipu Paraguai. Difusão: Diretor Geral Adjunto e Ministro do Interior. 9 Idem, ibidem. 10 CHASIN, José. A miséria brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social. Santo André: Ad Hominen, 2000, p. 124. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (51-56) - 53 providências, o que não ocorre nessa situação. A delação era comum no Paraguai, e permeava a sociedade, que em seu processo de exclusão social, faziaa em troca de obter determinados benefícios: passagens gratuitas nos ônibus, entradas em estádios de futebol etc.11 Numa sociedade em que o Estado suplantava as garantias, sobravam as migalhas da “mesa” da burguesia que orbitava em torno de Stroessner. No processo de desenvolvimento hiper-tardio do capitalismo que se configurou em toda a América Latina, não é difícil conceber que aos trabalhadores no Paraguai, não restavam muitas alternativas de sobrevivência. Até porque, iniciado o governo Stroessner, muitos privilégios foram dados à burguesia que se formava em seu entorno, constituída inclusive de brasileiros que adquiriram terras no Paraguai. Obviamente, trata-se daqueles que conseguiram grandes porções de terras, e não dos pequenos agricultores principalmente do Sul do Brasil, que em más condições de sobrevivência aqui, acabaram migrando para lá. Todavia, nesse processo de privilégio que solapava as riquezas da nação guarani com a extração da madeira, ou mesmo com a plantação de soja, aos segmentos da população excluídos do acesso à produção social e impossibilitados de se manifestar, vêm na delação algumas vantagens: tornam-se assim sóplons, ou mais popularmente, pyragüés.12 O Jornal Nosso Tempo e seus editores Numa rápida pesquisa às pastas do Acervo DOPS Paraná, percebemos que os órgãos de informações, especialmente o próprio DOPS acompanhava todo o noticiário, recortava suas matérias e assim, tudo o que saia na imprensa da época e que fosse de interesse dos agentes de informações foi arquivado.13 No caso do Jornal Nosso Tempo, que costumeiramente tecia críticas aos projetos da ditadura, privilegiando nesse caso a Binacional, visto que o mesmo também era de Foz do Iguaçu, enquadrava-se dentre os jornais que sofriam perseguição. Embora o jornal não tenha sofrido censura, pois fora criado em 1980, sofreu toda a sorte de perseguições possíveis. Assim, Notamos nesse caso, que a censura em relação ao Jornal, se deu em forma de perseguição. Assim, as AESI's cumpriram a função de recolher informações acerca dos principais noticiários, reunindo provas que subsidiaram a organização de processos judiciais contra os donos dos vespertinos, acusados de desrespeitarem a citada Lei e as encaminharem, não apenas aos tribunais de justiça da região, como também ao SNI. Conforme entrevista do advogado e procurador geral da justiça de Foz de Iguaçu, Antônio Vanderli Moreira, Corria o ano de 1981 e Foz do Iguaçu, área de segurança nacional, ainda vivia o clima tenso do terror da ditadura. Alguns profissionais de imprensa ousavam agir com independência, mas sofriam de imediato a perseguição política. Antes alguns pequenos jornais independentes surgiram, mas aguentaram pouco tempo.15 O jornalista Aluizio Palmar foi um de seus dirigentes, juntamente com Juvêncio Mazzarollo, e João Adelino de Souza. Palmar, ao buscar documentação referente a si próprio nos órgãos de informações, deparou-se com um acompanhamento sistemático do Jornal que dirigia. Neste sentido encontrou os informes das AESI's que subsidiaram as denúncias acolhidas pelo Ministério Público Militar que os processou por desrespeito à Lei de Segurança Nacional.16 Tal processo se originou de um inquérito policial na Polícia Federal apurando “responsabilidade quanto à veiculação de artigos considerados ofensivos às Forças Armadas e autoridades constituídas, figurando como indiciados os pseudo jornalistas acima referidos”.17 Note-se a alegação de que os artigos foram ofensivos e que os três eram pseudo jornalistas, numa completa desqualificação do trabalho dos profissionais, dadas as críticas que fizeram às Forças Armadas à época. O clima de perseguição que reinava naquele período envolvia toda a sociedade, conforme atesta o citado advogado na mesma entrevista. Referindo aos procedimentos repressivos que se abateram sobre o tablóide, rememora que, logo nas primeiras edições do jornal, conforme citação acima. Como o hebdomadário continuava em atividade, apertaram o cerco. A Delegacia Regional do Trabalho, por ordem do General Massa, instaurou procedimento e o Delegado de Polícia Federal De Faveri baixou a portaria nº 202/81/DPF/FI, dando início a Inquérito Policial contra as pessoas que centralizavam as ações do jornal "Nosso Tempo". Eram elas o Juvêncio Mazzarollo, o João Adelino de O peso do coturno do coronel interventor já se fez sentir. O prefeito e seu grupo procuravam de todas as maneiras sufocar o jornal para que parasse de funcionar. Os comerciantes que anunciavam eram ameaçados. Ao surgirem as pressões, alguns retiram-se da sociedade.14 11 SANTOS, Márcia Guena dos. Operação Condor : Uma conexão entre as polícias políticas do Cone Sul da América Latina, em particular Brasil e Paraguai, durante a década de 70. São Paulo: dissertação PROLAM/USP, 1998 – VOLUME I e II. 12 Sóplons e pyragüés são as expressões usadas na nação guarani para designar o delator. A segunda expressão é em guarani, e a primeira em espanhol, mas ambas possuem o mesmo significado. Cf. SANTOS, op. cit.,. 13 Destacamos tal informação, pela riqueza de detalhes sobre as circunstâncias da época, na região, que se encontra neste acervo e que podem subsidiar muitas outras pesquisas. 14 Entrevista intitulada Percalços de nosso tempo. Revista Cabeza, edição nº 12, julho de 2003. Site: http://www.h2foz.com.br/modules/conteudo/conteudo.php? conteudo=179. Acesso em: 20 nov. 2009. 15 Idem. 16 Informação nº E/AESI.G/IB/BR/056/(ilegível)81. Acervo Aluizio Palmar. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI. O documento explica ainda que fora enviado ao SNI mais dois informes e uma informação entre abril e julho de 1981. 17 Idem, ibidem. 54 - As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira Souza, o Aluízio e o Jessé. A acusação era de exercício irregular da profissão, por não possuírem registro de jornalista. Foram incursos no artigo 47 da Lei de Contravenções Penais. No dia 30 de setembro de 1981, às 14h30, os acusados e seu defensor compareceram à então Divisão de Polícia Federal para interrogatório. Lá ficaram durante horas esperando pelo delegado, que não os atendeu.18 Na seqüência de sua entrevista, o advogado relata que o início do processo se deu sob a alegação de que eles “foram dados como ausentes” porque não haviam comparecido à Delegacia Regional do Trabalho, sendo os autos encaminhados à Justiça Estadual porque o juiz federal considerou "imprestável o procedimento administrativo da DRT” que julgava os procedimentos do município. Apesar da evidente nulidade do processo, tanto pela [...] revelia inexistente que importava em cerceamento defesa, pela falta de apresentação de réu preso (Juvêncio já estava preso por ordem da Justiça Militar), verificando-se ainda a prescrição [”], a juíza sentenciante, que pelo menos em um outro processo já aceitara intromissão dos donos do poder, condenou Juvêncio, Aluízio, Adelino e Jessé a pagarem multa por infração ao artigo 47 da Lei de Contravenções Penais”. [...] Juvêncio ainda respondeu processo sob acusação de infração à Lei de Segurança Nacional, devido a um artigo onde sugeria: "Tirado o poder dos ladrões, corruptos, vendilhões da pátria e opressores, o passo seguinte é implantar um sistema institucional que garanta a construção de um novo modelo social, político, econômico e cultural”.19 Paralelamente os amigos e familiares de Mazzarollo, em campanha por sua libertação, criaram um comitê, também objeto de vigilância das AESI's.20 É pelo registro dos agentes que se infiltraram na reunião que temos notícias da organização, por exemplo, de ações de mobilização que amigos e familiares dos acusados empreenderam, como um ciclo de debates com o objetivo de discutir a Lei de Segurança Nacional. A discussão sobre a necessidade de se acabar com a legislação repressiva toma corpo desde o final dos anos de 1970, compondo as temáticas sobre o fim da ditadura, no bojo do ressurgimento do movimento operário.21 18 Entrevista intitulada “Percalços de nosso tempo”. Revista Cabeza, edição nº 12, julho de 2003. Site: http://www.h2foz.com.br/modules/conteudo/conteudo.php? conteudo=179. Acesso em: 20 nov. 2009. 19 Idem, ibidem. 20 Informe nº E/AESI.G/IB/BR/020/3237/83. Acervo Arquivo Nacional, fundo SNI. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI. Documento gentilmente enviado por Rodrigo Patto Sá Motta. 21 Sobre a função social de mobilização da sociedade que o recrudescimento operário cumpre ver CHASIN, José. As máquinas param, germina a democracia. São Paulo: Ed. Escrita, 1979. Além da volta de exilados, o recrudescimento dos movimentos populares começava a impor o fim do processo ditatorial. Longe de ser uma benesse oferecida pelos o militares, embora a transição tenha sido negociada com as oposições22, o fato é que o fim da ditadura era necessário, para inclusive não acontecer o que ocorrerá alguns anos depois no Paraguai; um golpe para destituir o ditador. Nesse processo de reorganização, foram unificadas as lutas pelas liberdades. A crescente mobilização social que se alastrava pelo país, capitaneada pelo ressurgimento do movimento operário23 na região onde se construía a Itaipu, o caso dos jornalistas acima referido teve enorme repercussão, particularmente a prisão de Juvencio Mazzarolo, o que foi, como não poderia deixar de ser, devidamente acompanhado pelos agentes das AESI's, como atesta, por exemplo, o documento que traz a lista dos nomes de pessoas envolvidas na mobilização, no interior da qual se observa os destaques nos nomes de palestrantes. Reza assim o referido relatório policial, [...] o evento realizado em TOLEDO/PR enquadra-se na campanha movida por setores radicais oposicionistas, pela revogação da LSN, confirmando-se, portanto, o ponto de vista expresso no INFE da referência, de que a repercussão em torno da condenação de JUVENCIO MAZZAROLLO, materializada em movimento em sua defesa, acima de tudo, visa a servir de pretexto aos objetivos da campanha contra a LSN. (maiúsculas do original).24 Uma série de anexos contendo matérias que saíram em outros jornais, inclusive com declarações dos agentes de informações, atesta a repercussão que tal caso teve na região. Na lógica repressiva, tratava-se de “setores radicais oposicionistas”, o que demonstra haver grande confusão entre o pessoal que colhia as informações e as distribuía e as organizações da época. Todavia, não devemos nos enganar em relação à produção da documentação. Num dos documentos que mais à frente analisaremos em relação às eleições, veremos que os órgãos repressivos possuíam pessoas altamente qualificadas para tratar as informações que julgassem pertinentes. Interessante é que a certeza de que agiam em benefício da nação faz com que tais informantes não se eximam, pelo menos na região, de falar publicamente de suas ações, como se observa, ainda, no caso dos jornalistas do Nosso Tempo. Em abril de 1983, foi publicada uma nota no Jornal O Paraná, em que Mazzarollo foi considerado um pseudo-mártir25, o que também consta da documentação que compõe seu dossiê. 22 Cf. em: FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2006. 23 PRADES, M.; Rago, M. A. P. O arrocho treme nas bases do ABC. Escrita Ensaio, ano IV, nº 7. São Paulo: Ed. Escrita.s/d. 24 Informe nº E/AESI.G/IB/BR/020/3237/83. Acervo Arquivo Nacional, fundo SNI. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI. 25 Idem, ibidem História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (51-56) - 55 Mesmo já no momento de abertura, de reorganização dos trabalhadores, de constituição de comitês populares lutando pela Anistia, fim da carestia, por melhores condições de vida e de salários, a presença marcante dos agentes de informações, das ações de controle do Estado brasileiro e paraguaio ainda poderia ser sentida. As eleições municipais e estaduais de 1982 na região de Foz, segundo as AESI's As eleições que ocorreriam no ano de 1982 eram importantes nos cálculos políticos do Estado ainda sob a égide da espada. Eram dessas eleições que se mostrariam ainda o poder da Ditadura, amparada pela votação do Partido da Democracia Social (PDS) e qual era ainda o seu nível de sustentação. Tais eleições se colocavam como uma prévia do que os eleitores pensavam e as tendências eleitorais para os pleitos subseqüentes, que garantiram a permanência dos senadores biônicos formadores do colégio eleitoral das eleições para a Presidência da República. Para tanto, Prosseguiram durante o ano de 1981 as negociações da política de liberalização. Eleições gerais seriam realizadas em 15 de novembro de 1982. Todos os partidos legalmente reconhecidos participariam com candidatos a vereadores, prefeitos (exceto nas capitais de estados e nos Municípios considerados de interesse da segurança nacional, onde as eleições permaneciam indiretas), deputados estaduais, deputados federais, senadores e governadores. As eleições seriam livres, por sufrágio universal direto e secreto. Eram consideradas as eleições mais importantes na história brasileira recente, com 55 milhões de eleitores escolhendo nas urnas cerca de 400 mil candidatos a todos os cargos.26 Embora Foz do Iguaçu e os municípios de fronteira do Brasil estivessem ainda sob o dispositivo das eleições indiretas, o processo eleitoral da localidade foi observado sistematicamente. Como apontou Alves, não se tratava de qualquer eleição, mas de um momento crítico de sobrevivência da ditadura brasileira e sua transição para a “democracia”, ou melhor, sua transição transada, nas palavras de Fernandes, uma vez que o processo se deu negociado pelas cúpulas, alijando os setores sociais da discussão. Foz do Iguaçu e diversas cidades nas proximidades de Itaipu passavam pelo problema constante de haver prefeitos nomeados envolvidos em corrupção, ao contrário do que é tão propalado pelo senso comum de que no período da ditadura militar não havia corrupção. A situação eleitoral de 1982 na região da fronteira, conforme ocorreu em todo o país foi acompanhada cotidianamente pelos agentes do Estado e a 26 ALVES, M. H. M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 332. particularidade que tal documentação apresenta é a profundidade das análises que diferem em muito dos outros relatórios que muitas vezes são apenas dados sobre as situações vigiadas, com destaques ticados e um ou outro comentário acusativo carregado de jargões policialescos. Segundo a avaliação constante em um destes documentos analíticos produzidos por tais agentes27, “as eleições em Foz seguiam o panorama nacional com a presença das agremiações partidárias nacionais, afora o fato de ainda haver nessa microrregião a nomeação de prefeitos”.28 Pondera que tal condição era motivo de controvérsias na “opinião publica”, inclusive havendo indisposição de vereadores com a administração local. Embora, provavelmente, houvesse vereadores ligados aos militares ou a seu partido de sustentação, reflete o autor, a nomeação incomodava aos vereadores locais, como reflexos da opinião pública. A preocupação, explicita ele, era com a mobilização e a repercussão nacional deste descontentamento, conforme já se enunciara na segunda reunião do Simpósio Nacional dos Municípios e que reunira os representantes de municípios caracterizados pela Lei de Segurança Nacional como de segurança, demonstrando que já começava a se organizar a resistência ante a existência de municípios sem eleições pela caracterização da Lei. O panorama da Tríplice Fronteira ante ao problema da nomeação dos prefeitos, demonstra haver um acirramento de ânimos, pois a Itaipu, na pessoa de Costa Cavalcanti, o seu então presidente, também interferia diretamente na relação da escolha dos prefeitos locais.29 Além de todo poderio como hidrelétrica, também seus diretores e o presidente gozavam de grande prestígio. Cabe destacar que na possível sucessão de Figueiredo por um militar, o nome que se cogitava era o de Costa Cavalcanti. Uma vez que ele assumira um dos principais projetos dos militares – além de ser um – tornou-se um nome de confiança de setores da caserna. Assim, “o Costa Cavalcanti, companheiro de turma de Figueiredo, homem de notáveis virtudes, equilibrado, tranqüilo e de passado brilhante em todos os governos militares”30, nas palavras de Otávio Costa, foi um dos homens que teve seu nome discutido por homens da caserna, podendo ser indicado inclusive para a sucessão presidencial e fazer valer sua vontade em relação às nomeações. Outrossim, o documento ora consultado revela que o tema já vinha ganhando proporções consideradas indesejáveis pela AESI, e que já há algum tempo acompanhava o problema. 27 Informação Nº E/AESI.G/IB/BR/056/ ilegível/81. Acervo Aluizio Palmar. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI. 28 Idem, ibidem. 2 9 C f . PA L M A R . D i s p o n í v e l e m : <http://www.h2foz.com.br/modules /conteudo/conteudo.php? conteudo=229>. Acesso em: 28 mar. 2010 30 D'ARAUJO, M. C; CASTRO, C; SOARES, G. A. D. A volta aos quartéis. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, p. 123. 56 - As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira Assim, parte para uma análise do cenário eleitoral e considera a entrada dos novos partidos nas eleições, demonstrando haver um analista da Assessoria com profundo conhecimento de balanços eleitorais, visto a linguagem usada documento segue estabelecendo um panorama das eleições no Estado do Paraná:31 O panorama político de FOZ DO IGUAÇU não foge ao ambiente eleitoral do restante do País, caracterizando-se, principalmente, pela acomodação das correntes internas e consolidação das novas agremiações partidárias, tendo em vista as eleições previstas para 82. (maiúsculas no original).32 Não se trata de um documento corriqueiro da comunidade de informações, mas de um trabalho bastante rebuscado, de quem sabia como o panorama nacional se configurava, demonstrando que, ou haveria homens dentro das AESI's com esse tipo de capacitação, ou era encomendado a intelectuais que o fizessem. Em qualquer caso, muito acostumados com um tipo de linguagem policialesca da comunidade de informações, o leitor pode se espantar com o rebuscamento, comumente não encontrado nesta documentação. Que havia agentes de informações com formação acadêmica é inconteste, até porque integram a carreira de funcionários públicos, militares ou não, para cujos cargos ou funções muitas vezes se exige titulação universitária. Assim, por exemplo, não causa espanto serem capazes de produzir um livro como o intitulado ORVIL33, redigido por um agente de informações que possuía graduação em filosofia. Este apenas assumiu a responsabilidade da redação por seus superiores reconhecerem sua capacidade de análise das informações que compõem o livro.34 Mas voltando ao balanço eleitoral, segundo deduz o informante, no último trimestre as criticas à Itaipu haviam diminuído. Segundo seu relato, isso se relacionava com uma bem sucedida campanha implementada pela “Assessoria de Relações Publicas da entidade”. Por fim, o atencioso informante acrescentou que parlamentares de oposição teciam críticas ao projeto Itaipu ou à direção da entidade com o objetivo de “projeção de seus nomes através dos meios de comunicação e obter dividendos políticos tendo em vista futuros pleitos eleitorais”. Essa última frase apenas corrobora o que anteriormente suspeitamos, aprofundando nossas dúvidas e inserindo um ponto de interrogação no papel cumprido pelo setor de Relações Públicas de Itaipu. Muito além de cuidar da imagem institucional, sua ação perpassava também uma 31 Informação Nº E/AESI.G/IB/BR/056/ ilegível/81. Acervo Aluizio Palmar. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI. 32 Idem, ibidem. 33 O projeto ORVIL (livro, ao contrário) surgiu em 1986, com o objetivo de denunciar supostos crimes da esquerda brasileira. Seria uma resposta ao Projeto Brasil Nunca Mais, levado adiante pela Arquidiocese de São Paulo. Cf. SILVA, 2009, p. 158 e seguintes. 34 Idem. imbricada trama de espionagem, relacionando-se diretamente com as AESI's, e quiçá com demais órgãos de informações. Além disso, a documentação comprova que essas AESI's perpassavam a trama de espionagem do Brasil e do Paraguai, havendo indícios de que participavam de atividades da Operação Condor. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 57 Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75) Raquel Varela1 Q “ uando os de cima já não podem… No dia 25 de Abril de 1974 um golpe levado a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) põe fim à ditadura portuguesa. De imediato, e contra o apelo dos militares que dirigiram o golpe – que insistiam pela rádio para as pessoas ficarem em casa –, milhares de pessoas saíram de suas casas, e foi com as pessoas à porta, a gritar “morte ao fascismo”, que no Quartel do Carmo, em Lisboa, o Governo foi cercado; as portas das prisões de Caxias e Peniche se abriram para saírem todos os presos políticos; a PIDE, a polícia política, foi desmantelada, atacada a sede do jornal do regime A Época e a censura abolida. A revolução foi a tradução na metrópole da derrota da guerra colonial. A vitoriosa luta dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, apoiados nas massas camponesas e populares desses países, levou a que na Guiné o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), liderado por Amílcar Cabral, conseguisse declarar unilateralmente, ainda em 1973, a independência. Em Moçambique e Angola o exército colonial português sofria importantes derrotas. O arrastamento da guerra ao longo de treze anos, sem vislumbre de qualquer solução política no quadro do regime de Marcelo Caetano e a iminência de derrota abriram a crise nas forças armadas, coluna vertebral do Estado.2 Mas este factor de imediato coincide com a espontânea entrada na cena política de milhões de trabalhadores que viveram sob o jugo da ditadura mais longa da Europa, 48 anos. A velha metáfora tão usada por historiadores da revolução portuguesa aplica-se de facto: os oficiais destaparam uma panela de pressão. Tais acontecimentos tornar-se-ão, no entanto, ainda mais explosivos quando combinados, por um lado, com uma prolongada crise nacional que se reflectia não só na impossibilidade de ganhar militarmente a guerra mas no congelamento da mobilidade social (mais de 1 milhão e meio de trabalhadores partem para trabalhar na Europa Ocidental na década de 60), e por outro com o início da crise cíclica de 1973, a maior crise de acumulação depois do fim da II Guerra Mundial. Em 1974 a produção nos Estados Unidos, economia reguladora do sistema mundial, tinha caído 10,4% e o desemprego situava-se 1 Investigadora/Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. 2 ROSAS, Fernando. Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976. Lisboa: Editorial Notícias, 2004, p. 136. em 9%.3 Em Portugal, a taxa de variação do Produto Interno Bruto passa de 11,2% em 1973 para 1,1% em 1974 e -4,3% em 1975. A estes fatores objectivos, que são parte de um processo de decadência nacional, junta-se o protagonismo do movimento operário. A maioria dos conflitos sociais da revolução portuguesa é protagonizada pelo operariado (19% da conflitualidade laboral dá-se na indústria têxtil, 15% na maquinaria e fabricação de produtos metálicos, 9% na construção e obras públicas, 7% na indústria química e alimentação), em particular o operariado das grandes cinturas industriais (Porto, Lisboa e Setúbal), com particular destaque para Lisboa, distrito no qual ocorrem 43% dos conflitos laborais.4 Portanto, trata-se de conflitos que ocorrem maioritariamente no sector que produz valor directamente, de uma classe operária relativamente jovem (a grande migração do campo para a cidade dá-se a partir do início dos anos de 1960) e concentrada geograficamente em torno da grande Lisboa, capital macrocéfala do País. Uma semana depois do 25 de Abril de 1974, a manifestação do 1.º de Maio – que passa a ser feriado nacional, o Dia do Trabalhador – reúne cerca de meio milhão de pessoas em Lisboa. Medeiros Ferreira cita estudos que apontam para uma centena de manifestações, em que participaram cerca de 1 milhão de portugueses para ouvirem 200 oradores em todo o País.5 As ocupações de casas sucedem-se. Nos primeiros quinze dias de Maio há greves, paralisações e nalguns casos ocupações em dezenas de fábricas e empresas. A segunda quinzena de Maio foi marcada pela radicalização dos conflitos sociais. A formação do I Governo Provisório, um governo frente-populista com a participação de comunistas, socialistas e liberais, no dia 16 de Maio de 1974, e os sucessivos apelos do Partido Comunista Português para que a classe trabalhadora apoiasse este Governo em nada acalmaram os conflitos sociais. A decisão do Governo, no dia 24 de Maio, de aprovar um salário mínimo de 3300 escudos, muito 3 COGGIOLA, Osvaldo, MARTINS, José. Dinâmicas da Globalização (Mercado Mundial e Ciclos Econômicos. 19702005), São Paulo: Instituto Rosa Luxemburgo, 2006, p. 61. 4 MUÑOZ, Duran. Contención y Transgresión. Las Movilizaciones Sociales y el Estado en las Transiciones Española y Portuguesa. Madrid: CPPC, 2000, p. 142. 5 FERREIRA, António Medeiros. Portugal em Transe (19741985). In MATTOSO, José (dir). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 35. 58 - Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75) aquém do exigido pelos trabalhadores (4000 ou mesmo 6000 escudos)6, só radicalizou ainda mais o surto de greves e ocupações de fábricas e empresas. Nos últimos dias de Maio tornou-se evidente que já não se estava apenas perante um golpe militar que tinha aberto as portas à mudança de regime, mas face um poderoso movimento social que questionava a propriedade privada dos meios de produção. No dia 27 de Maio de 1974 os trabalhadores da panificação – contrariando o sindicato – entram em greve. Rebenta também nesta fase a greve da Carris, autocarros de Lisboa, porque os trabalhadores exigiam paridade com o Metro, mesmo contra um parecer desfavorável por parte do sindicato. Os trabalhadores dos CTT (correios) entram em greve. Lisboa não tinha autocarros, eléctricos, correio e pão. A burguesia portuguesa não estava preparada para vários factores: primeiro, que o MFA, independentemente da débil experiência política dos seus membros, era de facto contra a guerra – era isso que tinha motivado a oficialidade intermédia a fazer o golpe; segundo, que a seguir ao golpe de estado se iniciou um processo revolucionário; finalmente, que os movimentos de libertação, apoiados massivamente pelas populações locais, resistiriam e lutariam pela independência. Por estes factores, a brecha que se abriu no seio da classe dominante não é solucionada pelo golpe de estado. Pelo contrário, a crise abre a porta à revolução; a revolução agrava a crise; a revolução acelera a independência das colónias; a luta pela independência das colónias influi no MFA e na revolução metropolitana. O que mais impressiona do ponto de vista dos movimentos sociais na revolução portuguesa não é, porém, o seu número, relevante claro, mas a sua dinâmica. As greves que se registam são maioritariamente “selvagens”, decididas em assembleias democráticas de trabalhadores e dirigidas, na maior parte dos casos, pelas comissões de trabalhadores. São convocadas à margem do Partido Comunista e do Partido Socialista – ambos faziam parte do Governo – e dos sindicatos, que estavam agora a formar-se na maioria dos casos. É neste quadro que o MFA, em acordo com o Partido Comunista, começa a surgir como uma das peças fundamentais de estabilização do regime e contenção da revolução. Este apoio dos trabalhadores ao MFA é dado não só pelo prestígio do Movimento que derrubara a ditadura mas pelo próprio Partido Comunista, que começa a ver no MFA o parceiro da sua estratégia frentista. A 30 de Abril de 1974, Álvaro Cunhal regressa do exílio e dá uma conferência de imprensa onde afirma, perante centenas de apoiantes, que “o nosso povo, em aliança com os militares do 25 de Abril conduzirão o nosso país pelo caminho da liberdade, da democracia e da paz”.11 A 17 de Julho de 1974, a direcção do PCP afirma que : A percepção do papel dos militares na revolução portuguesa é indispensável para compreender o conjunto dos acontecimentos. As hipóteses analíticas devem partir, cremos, de duas ideias chave: a relação dos militares com o Estado, por um lado, e com os trabalhadores por outro. O MFA faz o golpe de Estado a 25 de Abril de 1974. Os seus membros – capitães, oficialidade intermédia – eram, na sua maioria, oriundos da pequena burguesia, pouco politizados e limitados ao objectivo de pôr fim à guerra. Decidem entregar a direcção do País, através da Junta de Salvação Nacional, a um sector da burguesia portuguesa representado pelo general António de Spínola, que defende o fim da guerra mas quer uma solução neocolonial de tipo federalista para as colónias portuguesas.7 Fiel à sua classe, António de Spínola afirma na primeira comunicação da Junta de Salvação Nacional (JSN) ao País que a primeira tarefa política da JSN era “garantir a sobrevivência da Nação como Pátria soberana no seu todo pluricontinental”.8 No dia seguinte, o Programa do MFA afirma que a “política ultramarina do Governo Provisório começava por reconhecer que a solução das guerras no ultramar é política e não militar”.9 Em menos de 24 horas o País ficava a conhecer que havia divergências sobre a questão que esteve na origem do golpe: a forma de pôr fim à guerra e a solução para as colónias.10 6 SANTOS, Maria de Lurdes, LIMA, Marinús Pires de, FERREIRA, Vítor Matias. O 25 de Abril e as Lutas Sociais nas Empresas. Porto: Afrontamento, 1976, 3 volumes. 7 MAXWELL, Kenneth. A Construção da Democracia em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1999. 8 In: 25 de Abril. Documento. Lisboa: Casa Viva Editora, 2ª edição, s/d, p. 180. 9 Idem 10 FERREIRA, Op. Cit. pp. 21-33. Quem combate sistematicamente o Governo Provisório e o Movimento das Forças Armadas serve os interesses da reacção e do fascismo (…). O PCP defende naturalmente o direito dos cidadãos de discordarem de medidas governativas (…) Mas insiste em que (…) o prosseguimento da política de democratização exige das forças democráticas e das massas populares um apoio activo, constante e criador ao novo Governo Provisório e ao Movimento das Forças Armadas.12 Entre Julho de 1974 e Agosto de 1975, o papel do MFA, em acordo maioritário com o Partido Comunista e o Partido Socialista, é o de, por um lado, isolar os sectores de direita directamente ligados ao regime de Salazar e, por outro, conter as reivindicações, greves e processo de luta dos trabalhadores, ajudando a enquadrar o movimento operário nos sindicatos, maioritariamente dirigidos pelo PCP. A partir de Julho de 1974 os Governos Provisórios que se sucedem têm sempre na sua composição membros do PCP, do PS e do MFA, que procuram fazer uma política clássica de frente popular, promulgando leis como a da greve, a da requisição civil ou a da unicidade sindical, que visavam controlar o movimento operário. Regresso do exílio de Álvaro Cunhal. http://www.cmodivelas.pt/Extras/MFA/cronologia.asp?canal=7 Consultado a 29 de Janeiro de 2008. 12 Comunicado da Comissão Política do CC do PCP de 17 de Julho de 1974. 11 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 59 É assim que os golpes de estado de direita de 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975 são massivamente derrotados pelo MFA e pelos trabalhadores, que ocupam fábricas, sindicatos, se barricam nas ruas do País contra o sector da burguesia representado por Spínola, em defesa da democracia. E é assim também que caberá ao MFA – o ministro do Trabalho é um homem do MFA próximo do Partido Comunista, capitão Costa Martins, e o secretário de Estado do Trabalho é Carlos Carvalhas, membro do PCP13 – liderar a repressão armada contra os trabalhadores quando os seus objectivos ou métodos objectivamente colocam no horizonte a luta pelo socialismo. trabalhadores e 3 militares da Junta de Salvação Nacional – presidida pelo coronel Moura Pinto. No dia 25 de Julho os Comités Operários de Base (COB) lançam um comunicado onde questionam a autogestão da empresa – numa empresa capitalista não há conciliação possível de interesses de classe antagónicos, argumentam – e elaboram um documento que aponta para a greve em Agosto, para que se façam os saneamentos, para que prossiga a negociação do ACT (Acordo Colectivo de Trabalho) e a proibição dos despedimentos sem justa causa: Não nos deixaremos intimidar por manobras que tentem levar-nos a desistir da nossa luta, nomeadamente por aqueles que agitam o espantalho do caos económico. O caos económico foi o que sempre existiu e continua a existir. O caos económico é a produção não estar orientada para a satisfação das necessidades da maioria e estar orientada para o lucro máximo de uma minoria. Isso é que é o caos económico e esse caos só acabará quando a nossa luta atingir a vitória final, o capitalismo for derrubado e passemos a estar nós trabalhadores a controlar toda a sociedade no sentido de atingir uma sociedade sem classes, sem exploradores nem explorados.19 …e os de baixo já não querem” Às zero horas do dia 17 de Junho de 1974 entraram em greve 35 000 trabalhadores dos CTT (menos as telecomunicações), a nível nacional, mesmo depois de o Governo, no dia 16, ter emitido uma nota onde apelava à consciência dos trabalhadores para a grave atitude de uma greve geral num sector chave.14 No dia 18, uma reunião junta a comissão pró-sindicato, o MFA e o Ministério do Trabalho, mas não chega a nenhum acordo. No dia seguinte, o Governo afirma que se recusa a ultrapassar os limites salariais da contraproposta. A Intersindical e o PCP declaram-se contra a greve nesse dia 19 de Junho.15 Mas sectores da extrema-esquerda tomam a posição contrária. O MES (Movimento de Esquerda Socialista) afirma em comunicado o “apoio à luta dos trabalhadores dos CTT, porque as reivindicações e as formas de luta para as conquistar foram decididas pelos próprios trabalhadores”.16 O MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), maoísta, defende “a grande e justa greve nacional dos trabalhadores dos CTT!”.17 A greve termina, porém, no dia 20, não devido a um acordo entre o Governo e a comissão pró-sindicato, mas pela ameaça de intervenção militar: “a pedido do Governo, as Forças Armadas estavam preparadas para intervir a fim de assegurarem o funcionamento dos serviços”.18 A greve da TAP (Transportes Aéreos Portugueses) é emblemática. É uma luta operária, num sector chave da economia, e que vai ser reprimida, com armas, pelo Governo onde estavam o MFA, o PS e o PCP. No dia 2 de Maio de 1974 a comissão sindical da TAP apresentou um documento à Junta de Salvação Nacional onde fazia uma série de reivindicações salariais, saneamentos e de organização da empresa que apontavam para a autogestão e a readmissão de todos os despedidos sem justa causa. Na tentativa de conciliar os interesses das partes em conflito, cria-se uma Comissão Administrativa (CA) – composta por 3 representantes dos 13 Carlos Carvalhas será secretário-geral do PCP entre 1992 e 2004. In: SANTOS, Op. Cit. p.19. 15 «Greve dos CTT», 19 de Junho de 1974. In: Centro Documentação 25 de Abril, Fundo de Comunicados e Panfletos/PCP. 16 SANTOS, Op. Cit. p.21. 17 In Luta Popular, 20 de Junho de 1974, p. 7. 18 SANTOS, Op. Cit. p.11. 14 No dia 26 de Agosto, data limite que os trabalhadores tinham dado à empresa para atender as reivindicações, os trabalhadores da Divisão de Manutenção e Engenharia (ME) entram em greve. O Governo responde enviando a tropa para reprimir a greve e, no dia 28, os trabalhadores são enquadrados no Regulamento de Disciplina Militar. No dia 22 de Agosto de 1974 os trabalhadores do Jornal do Comércio, três centenas, entram em greve e ocupam as instalações da empresa exigindo a demissão de Carlos Machado e a equiparação salarial com os trabalhadores do Diário Popular. Exigem liberdade de imprensa e acusam o jornal de ter uma linha política de extrema-direita e de obrigar os trabalhadores a seguir essa linha. Perante a recusa da administração em negociar, os trabalhadores mantêm a greve e decidem publicar um jornal de greve. O Governo responde novamente com armas. Na noite de 26 para 27 de Agosto, a Polícia de Segurança Pública (PSP) e uma bateria do RAL 1 (Regimento de Artilharia Ligeira 1) cercam as instalações e, no dia 28, desocupam-nas e selam-nas para impedir a continuação da saída do jornal de greve. O caso vai gerar uma onda de solidariedade de toda a imprensa: no dia 29 o Sindicato dos Jornalistas solidariza-se com o protesto; a 3 de Setembro uma assembleia convocada pelo SJ e pelos sindicatos de artes gráficas, revisores de imprensa e vendedores de jornais e lotaria convoca uma greve nacional de 24 horas. No dia 4 só dois jornais se vendem, O Século e o Diário de Lisboa. A greve do Jornal do Comércio, que durou 46 dias, prosseguiu. A 28 de Setembro, Carlos Machado é preso por ter participado no falhado golpe spinolista. 19 In SANTOS, Op. Cit. 3.º volume, p. 125. 60 - Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75) No meio desta intensa conflitualidade social, o Governo Provisório faz aprovar a Lei da Greve, que entra em vigor a 27 de Agosto de 1974, uma lei logo considerada pelos sectores mais à esquerda de “antioperária”. A lei prevê que: 1) Os contratos colectivos não podem ser renegociados antes do fim do prazo, o que significava, num quadro de inflação de dois dígitos, que os salários eram rapidamente engolidos por esta; 2) Proíbe a greve às forças militares e militarizadas, aos bombeiros, às forças policiais e aos magistrados judiciais; 3) Proíbe a “cessação isolada de trabalho por parte do pessoal colocado em sectores estratégicos da empresa, com o fim de desorganizar o processo produtivo” e proíbe a ocupação dos locais de trabalho durante a greve; 4) No seu artigo 6.º proíbe a greve política e de solidariedade “que não interesse à mesma profissão”; 5) Prevê, numa altura em que a maioria dos conflitos laborais eram dirigidos pelas comissões de trabalhadores, que a greve é decidida pelas comissões sindicais e, quando não existem, pode ser decidida pelas assembleias de trabalhadores desde que as decisões das assembleias de trabalhadores sejam submetidas a um escrutínio, tenham mais de 50% dos votos e no escrutínio esteja presente um representante do Ministério do Trabalho; 6) Assegura à entidade patronal o direito de lock-out. É uma lei que surge devido à falta de controlo dos componentes do Governo Provisório, incluindo o PCP e o MFA, sobre a classe trabalhadora. Como afirma Miguel Pérez, a lei da greve tinha “alvos claros: não são permitidas as greves de solidariedade nem as ocupações, e qualquer paralisação deve ser precedida por um período de negociações de 30 dias, estabelecendo-se que são os sindicatos os órgãos competentes para a desencadear”.20 Philippe Schmitter fala de uma “séria restrição do direito à greve”.21 A luta dos operários da Lisnave, a maior concentração operária do País, com cerca de 8000 operários, transforma-se num combate contra a lei da greve. Tal como a TAP, os estaleiros navais da Lisnave são economicamente estratégicos para o País. Mas são também uma empresa de indústria pesada, situada na Margem Sul do Tejo, bastião operário. No dia 7 de Setembro um plenário com 2000 trabalhadores ratifica a decisão de convocar uma manifestação que levava os metalúrgicos da Lisnave para o centro da cidade de Lisboa, até ao Ministério do Trabalho, na Praça de Londres. Os trabalhadores da Lisnave exigem o saneamento da administração e recusam a lei da greve, que chamam nos comunicados de “lei anti-greve”.22 20 PÉREZ, Miguel, Contra a Exploração Capitalista: Comissões de Trabalhadores e Luta Operária na Revolução Portuguesa (197475), Dissertação de Mestrado em História dos Séculos XIX e XX, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Agosto de 2008, p. 104. 21 SCHMITTER, Philip. Portugal: Do Autoritarismo à Democracia. Lisboa: ICS, 1999, p. 218. 22 In SANTOS, Op. Cit. p. 110-112. O Governo, através do Ministério da Administração Interna, ilegaliza a manifestação nesse mesmo dia 11, temendo o alastramento da luta a outras empresas. Pela manhã de dia 12 uma delegação do MFA vai à Lisnave tentar convencer os operários a adiarem a manifestação para um sábado. Em vão. No dia 12, os operários, reunidos no interior do estaleiro, ratificam a manifestação, com apenas 25 votos contra. Lá fora, as forças do COPCON (Comando Operacional do Continente), as forças de repressão do MFA, cercam, com grande aparato militar, o estaleiro. Mas os fuzileiros, num dos momentos mais emblemáticos da revolução portuguesa, recusam-se a reprimir a manifestação, que avança. Sete mil operários, fardados de azul, atravessam a pé a ponte sobre o Tejo e percorrem as principais avenidas de Lisboa por 6 horas. Param à frente do Ministério do Trabalho onde lêem o seguinte comunicado: (…) Que não estamos com o Governo, quando promulga leis anti-operárias, restritivas à luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista. Que lutaremos activamente conta a 'lei da greve' porque é um golpe profundo nas liberdades dos trabalhadores. Que repudiamos o direito que os patrões têm de colocar na miséria milhares de trabalhadores porque a lei do lock-out é uma lei contra os operários e de protecção aos capitalistas.23 A dualidade de poderes A consulta à documentação do Foreign Office britânico revela que as chancelarias ocidentais, logo em Maio de 1974, acreditam que a radicalização da revolução pode dar-se em duas vertentes: em primeiro lugar, os efeitos da crise económica na radicalização social e, em segundo, os efeitos que o derrube do regime pela oficialidade intermédia podia ter nos soldados.24 Os seus temores revelar-se-ão realistas. Os operários da Lisnave tinham à sua passagem feito os fuzileiros recuar. No dia 7 de Fevereiro de 1975 outro momento de quebra da disciplina militar ficará para a história. A realização de manobras militares da NATO nos arredores de Lisboa, vista como uma provocação, é o momento escolhido pela coordenadora das comissões de trabalhadores, sob proposta da fábrica Efacec, para fazer uma manifestação. O Governo decreta a proibição de manifestações entre 7 e 12 de Fevereiro de 1975. O PCP lança no dia 4 de Fevereiro um comunicado do Comité Central em que critica o perigo de manobras da NATO no meio de uma grande tensão social, mas mantém a defesa da participação de Portugal nesta aliança militar, nas “actuais condições”, e denuncia a manifestação como 23 In SANTOS, Op. Cit. p. 110-112. Foreign Office, Central Department and Foreign and Commonwealth Office, Southern European Department: Registered Files (C and WS Series) FCO 9/2072 Visit by Dr Mario Soares, Portuguese Minister of Foreign Affairs to London and other European capitals, 1-6 May 1974 . Foreign Office,Date: 1974.Source: The Catalogue of The National Archives. 24 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 61 provocatória.25 No Governo, junto com o PS, vota a favor da proibição da manifestação. Mas a comissão interempresas reúne força social para avançar e a manifestação realiza-se, com 80 000 pessoas. Na manifestação há discursos inflamados contra as políticas defendidas pelo Governo e pelo PCP: a batalha pela produção nacional, a Intersindical, acusada de “amarela” e “reformista”.26 Mas o facto mais importante da manifestação dá-se quando o cordão militar adere às palavras de ordem da manifestação contra a NATO, sob o aplauso entusiástico dos manifestantes. A manifestação mostra, da mesma forma que tinha sido claro na militarização da TAP, que há um campo de divisão no seio das forças armadas e que o “Povo não está com o MFA” ou, para sermos precisos, que uma parte dos trabalhadores – entre eles o seu sector mais combativo – em determinados momentos, não estava com o MFA. E que sectores dos soldados, da base das forças armadas, estavam também com estes trabalhadores. No dia 11 de Março de 1975, um golpe de direita tenta pôr fim à revolução. É derrotado. A história da revolução portuguesa depois de 11 de Março de 1975 demonstrou que a etapa democrática da revolução tinha sido, em menos de um ano, ultrapassada pelos principais protagonistas do processo revolucionário – as classes trabalhadoras e parte dos sectores intermédios da sociedade portuguesa – que lutaram nas fábricas, nos bairros, nos locais de trabalho, com métodos de luta e reivindicações que faziam da etapa democrática um dado adquirido e do socialismo uma possibilidade. A seguir ao 11 de Março a situação social é a mais radicalizada desde o início da revolução. Há greves, ameaças de greve, conflitos laborais entre Maio e Junho de 1975 nos metalúrgicos, nos químicos, na hotelaria, nos têxteis, nas câmaras municipais, na construção civil, nas minas, electricistas, padeiros, gráficos, TAP.27 As ocupações alastram pelo Ribatejo e Alentejo. As nacionalizações são levadas a cabo em dezenas de grandes empresas. E surgem as ocupações de casas, que avançam a nível nacional num ritmo extraordinário, logo a partir de meados do mês de Fevereiro de 1975, em Lisboa, Porto e Setúbal, sobretudo. As comissões de moradores passam a ser, em muitos casos, a base organizativa do movimento social urbano, e transformam-se, na análise de Dows, num “verdadeiro duplo poder ao nível da cidade”.28 Também Valério Arcary considera que a derrota da direita no 11 de Março abre caminho à radicalização da revolução e à dualidade de poderes.29 25 In Avante!, Série VII, 6 de Fevereiro de 1974, p. 3. PÉREZ, Op.Cit. p. 139. 27 Diário de Lisboa, 5 de Maio de 1975, p. 1; Diário de Lisboa, 6 de Maio de 1975, p. 1 28 DOWS, Chip. Os Moradores à Conquista da Cidade. Lisboa: Armazém das Letras, 1978, p. 59. Muitas destas lutas tiveram sucessos extraordinários, educando militantes, convencendo activistas, organizando cada vez mais gente. Como refere Chip Dows, as reivindicações dos trabalhadores e das camadas populares não são intrinsecamente revolucionárias, Mas é com a experiência de luta pela satisfação da reivindicação e pelo direito ao controle directo sobre a sua resolução que esse significado político se vai acentuar e evoluir. (…) É a consciência de revolta que se apodera das pessoas; o sentimento de que têm algo a dizer e a propor em relação ao quotidiano que lhes pretendem impor, embora na maioria das vezes não o consigam exprimir claramente.30 A radicalização da revolução implicou a transformação, depois de 11 de Março de 1975, de uma crise de regime numa crise geral do Estado, traduzindo-se na maior crise governativa da revolução. PS e liberais abandonam o Governo deixando o PCP formar, já no Verão de 1975, contra a sua vontade, um governo, o V Governo Provisório, construído por militares profundamente divididos. Uma grande parte do MFA, reunida no agora baptizado Grupo dos Nove, alia-se ao Partido Socialista, à direita e à Igreja e irá encabeçar o golpe contrarevolucionário de 25 de Novembro de 1975; uma ala, encabeçada por Vasco Gonçalves, mantém-se fiel à estratégia do Partido Comunista de conservar a revolução nos marcos de um regime democrático, no quadro da NATO, com uma economia capitalista regulada; e uma outra ala parece estar disposta a levar a cabo uma via putschista de tomada do poder, tentando concretizar em Portugal um projecto a la Nasser como no Egipto ou como Alvarado no Peru. Finalmente, desta crise do MFA brota a revolução nos quartéis, com os soldados a avançarem para a constituição de comissões de soldados. “Sovietização” das Forças Armadas? É consensual entre a historiografia portuguesa que Portugal estava, durante o VI Governo, a viver uma crise político-militar e que o desfecho da revolução se aproximava.31 A teorização dos processos revolucionários aponta para a definição de um momento da revolução em que o seu desfecho, independentemente do resultado, é inevitável, ou seja, para um momento em que ou se dá um deslocamento do Estado, via insurreccional, feito pelos trabalhadores/camponeses (e dirigido por um partido, ou um conselho – revolução russa – ou um partido-exército – revolução chinesa), ou um golpe contra-revolucionário inicia a estabilização do Estado sob direcção da burguesia e seus aliados. Este seria o momento definido por crise revolucionária. 26 29 ARCARY, Valério. “Quando o Futuro era Agora. Trinta Anos da Revolução Portuguesa”. Outubro, São Paulo: Xamã, nº 11, 2004, pp.: 78. 30 DOWS, Op. Cit. p. 61-62. REZOLA, Op. Cit; MAXWELL, Op. Cit. p. 129; FERREIRA, Op. Cit. pp. 21-33. 31 62 - Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75) No fim de Agosto de 1975, depois de aceitar a substituição do V Governo e participar no VI Governo, liderado por Pinheiro de Azevedo, o PCP está no seu momento de maior fragilidade desde o início da revolução, porque o desmembramento do MFA arrasta consigo a “aliança Povo-MFA”, deixando os trabalhadores “órfãos” da direção que o próprio PCP tinha construído. Mesmo autores que não coincidem com a tese que aqui defendemos partilham a análise da fragilidade do PCP neste momento, devido ao desmoronamento do MFA.32 Mas não é só o PCP que entra em crise. O pilar de sustentação do Estado na revolução, o MFA, cai, arrastando consigo a estabilidade – que com crises tinha sido apesar de tudo mantida – das Forças Armadas, abrindo espaço à intensificação da dualidade de poderes dentro destas. A revolução entra definitivamente nos quartéis, com a progressiva organização dos soldados nas comissões de soldados, pela mão dos SUV, da Polícia Militar, das Assembleias Populares. No dia 5 de Setembro de 1975, o Grupo dos Nove consegue afastar Vasco Gonçalves e isolar a esquerda militar na Assembleia do MFA (conhecida como assembleia de Tancos) e no Conselho da Revolução, invertendo nessas estruturas – mas não nos quartéis – a correlação de forças a favor do Grupo dos Nove. Na Assembleia determina-se a reestruturação do Conselho da Revolução: os gonçalvistas, até aí maioritários, ficam com 3 elementos; o Grupo dos Nove, com 7. Fazem parte ainda Pinheiro de Azevedo e Morais da Silva, cada vez mais do lado do Grupo dos Nove,33 e Otelo e Costa Gomes, o primeiro com uma posição titubeante e o segundo um árbitro das várias fracções que politicamente acabará tomando posição ao lado dos Nove também. É o início de um processo de recomposição da hierarquia das Forças Armadas. A 7 de Setembro, apenas dois dias depois, um grupo de soldado embuçados (que se mantinham clandestinos) dão uma conferência de imprensa onde anunciam a criação dos SUV (Soldado Unidos Vencerão), uma organização de soldados que propõe a generalização da criação de comissões de soldados no Exército e que se afirma contra o MFA e pela “destruição do Exército burguês”.34 Nesse mesmo dia, a Companhia 8246 do Regimento de Polícia Militar (RPM) recusa-se a embarcar para Angola. No dia 9 de Setembro, reagindo ao “minar da disciplina e obediência militar”, o Conselho da Revolução faz publicar a Lei 11/75 em que proíbe aos órgãos de comunicação social “a divulgação de relatos e notícias, etc., sobre acontecimentos ou tomadas de posição nas unidades militares”.35 Conhecida como “Lei 32 CUNHA, Carlos A. The Portuguese Communist Party´s Strategy for Power 1921-1986. Garland Publishing: Inc. New York & London, 1992, p. 259. 33 REZOLA, Op. Cit. p. 399. 34 Os SUV em Luta. Lisboa, 1975. 3 5 Cronologia Pulsar da Revolução. In http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=PulsarSetembro75. Consultado a 16 de Fevereiro de 1975. da Censura Militar”, nunca foi posta em prática, porque os jornais, a rádio e a televisão se recusaram a cumpri-la. Quinze dias depois é revogada. No dia 21 de Setembro, 1500 soldados fardados, sob direcção dos SUV, junto a 10 mil civis, desfilam numa manifestação no Porto contra o Governo e os generais Fabião e Charais, que acusam de tentarem pôr fim à revolução. Nesse dia também rebentam engenhos explosivos na messe do Estado-maior da Armada, onde dormia Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro. Nessa noite, de 21 para 22, os deficientes das Forças Armadas, que não viam as suas reivindicações satisfeitas, ocupam a Ponte 25 de Abril, a ponte que une as duas margens do Tejo na grande Lisboa, e no dia 25 os mesmos ocupam os estúdios da Emissora Nacional. Nesse dia 25, em Lisboa, uma manifestação dos SUV é considerada a maior manifestação de soldados desde sempre realizada em Portugal. No dia 24 de Setembro o Estado-Maior do Exército reúne-se para enfrentar a crise: “as questões disciplinares em geral e em particular os SUV e ainda a falta de pessoal de enquadramento com suficiente competência para neutralizar os grupúsculos que se têm vindo a formar no interior das FA”.36 Nessa reunião decide-se a revitalização dos órgãos do MFA ao nível da unidade e regiões militares para evitar a “criação de organizações paralelas dentro dos quartéis”.37 No dia 27 dá-se o assalto e destruição, por manifestantes de extrema-esquerda, da embaixada e consulados de Espanha, contra o regime franquista, em repúdio pela condenação à morte de 6 nacionalistas bascos. As ordens dadas pelo COPCON para proteger as instalações diplomáticas de Espanha não são acatadas. Os SUV são de particular importância nesta crise porque defendem a criação de comissões de soldados. Mário Soares, líder do Partido Socialista, dirá mais tarde a Maria João Avilez que: É exacto, nessa época o poder estava em plena desagregação e era influenciado pelas manifestação de rua (…) Os SUV foram mais um degrau na escalada revolucionária, uma óbvia tentativa de sovietização do Exército, que precederia naturalmente a destruição da instituição militar, para sobre ela edificar um outro poder.38 Perante a conflitualidade dentro das Forças Armadas o Conselho da Revolução conclui por uma série de medidas repressivas, que passavam sobretudo por saneamentos de militares afectos aos vários sectores de esquerda, numa tentativa de reconstruir a hierarquia militar. Decide-se atender parte das reivindicações dos deficientes das Forças Armadas, dissolver o Regimento de Polícia Militar, e a criação de um Agrupamento Militar de Intervenção (AMI), que seria uma força disciplinada composta por forças operacionais dos três ramos das 36 REZOLA, Op. Cit. p. 418. Idem, p. 418. 38 Idem, p. 483. 37 História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 63 Forças Armadas, capaz de responder àquilo que consideravam ser uma ameaça à “tranquilidade nacional”. A 30 de Setembro, o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo ordena a ocupação dos emissores de televisão e rádio, argumentando que “era para evitar declarar o estado de sítio”, que, na sua opinião, era o que a situação de facto exigia”.39 Mas nem assim o conflito vai ser controlado. No dia 1 de Outubro oficiais do Exército selam os emissores da Buraca, em Lisboa, e a PSP fica a vigiar o local. Seguem-se protestos contra a decisão do Governo e a 21 uma manifestação, seguida de acampamento em frente dos emissores, organizada por comissões de soldados, moradores e trabalhadores, consegue a desselagem das instalações. A 7 de Novembro o Governo assume a sua falta de autoridade quando manda destruir à bomba os emissores. Como refere Paula Borges Santos, o caso Rádio Renascença é um espelho da falta de autoridade dos sucessivos governos que não conseguiram controlar o conflito nem com a criação de comissões administrativas, nem com os planos de nacionalização, nem com a ocupação militar da Emissora.40 No fim, um único método: a destruição física, à bomba. Quando decide suspender o Governo de funções, a 20 de Novembro de 1975 – depois de 100 mil operários da construção civil terem sequestrado a Assembleia Constituinte por quase 3 dias –, Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro, no seu estilo frontal e indiscreto, responde a uma jornalista que o tinha questionado sobre a situação militar: “A situação, tanto quanto eu sei, continua na mesma: primeiro fazem-se plenários e depois é que se cumprem as ordens!”.41 para o socialismo seria igualmente pacífica, sem sofrimento, sem guerra civil, e poderia ser conduzida pelos mesmos actores, o MFA. Em pleno cerco da Assembleia Constituinte pelos operários da construção civil, o PCP publica no seu jornal um artigo de celebração da revolução russa, onde se pode ler: Tudo faremos para tornar possível o caminho pacífico para o socialismo. (…) Outubro significa mais que insurreição. (…) Outubro significa o golpe de finados do capitalismo e embora sem pressas, sem precipitações, sem a impaciência de queimar etapas, sabendo avançar e sabendo recuar, tudo faremos para que esse dobre de finados soe o mais prontamente possível na nossa Pátria.42 No dia 25 de Novembro de 1975 um golpe, levado a cabo pelo maioria do MFA, reunida em torno do Grupo dos Nove, o PS, a Igreja, a direita afecta ao regime de Salazar e com a recusa do PCP (que impediu as suas unidades militares de avançarem e a Intersindical de 43 resistir) em resistir, iniciou a contra-revolução ao fazer retornar aos quartéis a disciplina e ao repor a hierarquia das Forças Armadas. A política da “revolução democrática” dos comunistas, que teve um respaldo extraordinário na oficialidade intermédia do regime, aponta para uma transição sem limite definido que mantém a continuação da dominação burguesa, dentro do quadro da democracia representativa, e no respeito pela propriedade privada, combinada com outras formas de propriedade. Nesse sentido não foi uma revolução, mas uma forma de regime, que se opôs a outras forças que se moveram no curso da revolução portuguesa e cujos objectivos e métodos apontavam para uma revolução social. Uma utopia pequeno-burguesa? No biénio 1974-75 em Portugal a burguesia portuguesa governou e garantiu a sua vitória no processo revolucionário através de governos de frente popular (ao todo 6 governos em 19 meses) que tinham no Movimento das Forças Armadas um dos seus principais pilares. Uma das suas vitórias esteve certamente na capacidade de garantir a confiança dos trabalhadores no MFA. Este projecto, que para a burguesia portuguesa foi táctico – uma tábua de salvação quando as suas próprias forças não garantiam a estabilidade do Estado –, só foi possível de concretizar porque ele correspondia, no que diz respeito ao sistema de alianças, ao projecto estratégico da principal direcção do movimento operário português, o Partido Comunista, que desde os primeiros dias a seguir ao 25 de Abril acarinhou, na célebre política de “aliança Povo-MFA”, a ideia de que a transição da ditadura para a democracia teria sido indolor (olvidando o papel das revoluções anticoloniais) e que a transição da democracia 39 Idem, p. 423. SANTOS, Paula Borges. «O Caso da Rádio Renascença». História, n.º 27, Julho/Agosto 2000, p. 57. 4 1 A r q u i v o d a R T P. h t t p : / / w w w. y o u t u b e . c o m / w a t c h ? v = 6 D B 4 2 Q U J Y S M . Consultado a 19 de Janeiro de 1975. 40 42 In Avante!, 13 de Novembro de 1975, p. 9. CUNHAL, Álvaro. Do 25 de Novembro às Eleições para a Assembleia Constituinte. Discursos Políticos 6. Lisboa: Edições Avante!, 1976. CUNHAL, Álvaro. A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril. Lisboa: Edições Avante!, 1999. 43 64 - Brizola, os Sargentos e a Luta Armada Brizola, os Sargentos e a Luta Armada Araken Vaz Galvão1 L eonel de Moura Brizola foi, sem nenhuma dúvida, um dos mais importantes – talvez o mais importante – líderes da esquerda não-ideológica do Brasil a partir de meados de século XX até o início deste século. Compreendendo-se por tal – já que uso uma denominação um tanto esdrúxula – aquele ramo da esquerda que não se movia conforme os ditames do marxismo ou mesmo do chamado socialismo revolucionário, sincero ou hipócrita; cristão ou social democrata. Brizola era de esquerda simplesmente porque, frente aos políticos da oligarquia, “Os Donos do Poder” – dos quais falava Raimundo Faoro – e da imprensa em geral, qualquer preocupação com justiça social, melhor distribuição de renda e outras medidas que, na Europa, foram adotadas no século XIX, eram e são consideradas subversivas ou mesmo comunistas. Junto com Miguel Arraes, Francisco Julião e outros, como Gabriel Passos, Djalma Maranhão, Jarbas Vasconcelos (quando mais jovem, porque hoje ele é um digno representante da direita), Sérgio Magalhães, Seixas Dória, Neiva Moreira, Dagoberto Salles, Almino Afonso, Aurélio Viana, entre tantos, que marcaram a vida política do Brasil daquele período da nossa conturbada vida política, Brizola foi uma estrela de primeira grandeza. Como homem de grande liderança popular – por ser bom orador e muito carismático – Leonel Brizola, beneficiado por um inesperado fato histórico – a renúncia de Jânio Quadros – destacou-se mais do que todos os outros líderes citados. Brizola possuía muito do estilo clássico do caudilho, fato, aliás, que caracterizou alguns políticos da sua região – o Rio Grande do Sul –, tanto da direita como daqueles que se situavam mais à esquerda. Era muito intuitivo e dotado de um grande poder de comunicação. E, justiça se lhe faça, nunca abandonou o linguajar carregado do gaúcho da campanha, o que devia lhe dar, aos olhos da massa, certo carisma de autenticidade. Brizola era ligado à defesa dos interesses nacionais, sim, Brizola era; preocupado com as penúrias a que viviam nosso povo, sim, Brizola era; ligado com as raízes da nossa cultura, sim, Brizola era. Mas também, como todos nós, tinha suas contradições e não era infalível. O Rio de Janeiro, sempre foi cantado em prosa e verso, como se diz, como um estado politizado, caso o fosse, carecia de ideologia ou consciência política, pois, 1 Condensação do capítulo, com o mesmo título, do livro inédito, Os Sargentos na História do Brasil. ao que parece essa “politização” manifestava-se mais em “ser do contra”, isso é, em demonstrar insatisfação contra às elites em uma espécie de birra inconseqüente. Anos antes, quando Brizola sonhava lançar-se a disputa da presidência de República, nas eleições de 62, o candidato a governador das oposições e dos nacionalistas era Sérgio Magalhães contra Carlos Lacerda, apoiado pela oligarquia e, acintosamente, pela embaixada dos Estados Unidos. No meio dessa disputa e não desassociada a ela – talvez até como parte de uma estratégia para torná-la vitoriosa –, surgiu o nome de Tenório Cavalcanti, um misto de gângster suburbano e político populista, o “politizado” povo do Rio de Janeiro dividiu-se entre ele e o candidato da esquerda, ensejando não só uma votação expressiva àquele pistoleiro de arrabalde, como contribuiu fundamentalmente para a eleição de Lacerda, peça fundamental no golpe de 64. Mas, outra vez, estou adiantando-me aos fatos. Desejo referir-me a época em que Brizola ainda era governador do Rio Grande de Sul, e gozava de grande popularidade, porque a inteligência obtusa da direita civil e militar, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, tirou Brizola – ao tentar impedir a posse do seu substituto legal – de entre um dos nomes da esquerda nacionalista – como se dizia na época – e o colocou em primeiríssima posição entre essa mesma esquerda, dando-lhe, inclusive, maior destaque político nacional e até certa projeção internacional. Como governador do Rio Grande, Brizola que já vinha resistindo à espoliação das elites, com sua Campanha pela Legalidade conquista os corações de parcelas expressivas do povo, para desespero da oligarquia. Nos quartéis há uma clara divisão: a grande maioria de oficiais de um lado e do outro o grosso da tropa ouvindo os inflamados chamamentos à resistência – cívica e até armada – que Brizola fazia de Porto Alegre por rádio. Empossado o vice-presidente João Goulart, mediante vergonhosa negociação – da qual Tancredo Neves foi o grande artífice –, começa, então, o desgaste de Jango como um dos líderes da esquerda trabalhista. Toda a herança política de Vargas, a mais consequente, pelo menos – aquela que via, com toda razão, os cordéis que movimentavam “os donos do poder” (que fomentara anos de exploração das riquezas nacionais) desejando impedir a posse do Vice-Presidente, sendo articulados em Washington –, deslocou-se quase que totalmente para a órbita de Brizola. Naquela época, porém, a sua penetração no meio militar era praticamente nula, salvo entre alguns oficiais ligados ou influenciados pelo Partidão e, naturalmente, História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (64-68) - 65 entre os sargentos. É da ligação com essa última categoria de militares que está o embrião do nascimento do Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR – como órgão pugnaz ou fomentador pioneiro da luta armada, como forma de resistência democrática. Há quem diga, porém, embora essa assertiva careça de maiores importâncias, que a sigla desejada pelo próprio Brizola, sempre obcecado com fórmulas que ele julgava ligadas ao povo – ou ao inconsciente coletivo popular –, era a de Movimento Revolucionário Nacionalista, cuja sigla seria brasileiramente2 MORENA3, com o possível subliminar detalhe subsidiário de que essa forma, no feminino, poderia muito bem fazer um apelo popular mais forte aos sentimentos dos homens... Bem, veio golpe, as forças militares que diziam apoiar o Presidente – e apoiavam de alguma forma – eram fracas, sem direção firme, sem entrosamento e ligação entre elas, com pouca capacidade de operação. Os sargentos – dos quais muito se falava serem vitais como sustentação do governo –, careciam de lideranças, militares audazes – considerando como tal o comando de oficiais nacionalistas e patriotas, porque é muito difícil se quebrar a cadeia de comando. E se eram poucos os oficiais generais que apoiavam o governo, pode-se dizer que no patamar de oficiais superiores (coronéis, tenentescoronéis e majores), capitães e oficiais subalternos, esse apoio era praticamente inexistente. A verdade, porém, é que muitos generais – aqueles que diziam defender o governo democrático – pararam, como hipnotizados, quais batráquios em face do bote da serpente, na crença popular, frente ao golpe. A resposta/advertência do marechal Osvino Ferreira Alves ao grupo de sargentos que o procuram no dia 1º de abril (Preparem o lombo que a paulada vem forte, citada em outro capítulo de meu livro “O Sargento da História do Brasil”), bem expressa aquele estado de espírito. É, pois, um pequeno exemplo de como os poucos oficiais generais legalistas estavam paralisados frente ao golpe. Isso quando não tomaram posições que beiravam a pusilanimidade. Se somarmos a isso que a maioria absoluta dos oficiais estavam contra o governo, não será difícil saber porque o golpe venceu com tanta facilidade. Não seria, pois, em um clima desses que os sargentos iriam virar a balança a favor do governo. As lideranças mais responsáveis dos sargentos – e refiro-me às lideranças políticas, que tinham várias e de muito bom nível – sabiam que, ao longo da História, somente dois fatos levaram os sargentos a fazer o prato de a balança pesar a favor da legalidade, inibindo ou paralisando os golpistas. Isso só se deu em caso de crise aguda das 2 Sua ligação com as coisas do Brasil, com nossa língua, fê-lo trazer para o português, em substituição ao termo inglês blackout e ao seu aportuguesamento blecaute, diretamente do espanhol a palavra apagón. Apagão, como está hoje popularizada. 3 Há um detalhe curioso no uso pioneiro dessa palavra como sigla. Mais tarde, quando da organização do seu partido político, o PDT (Partido Democrático Trabalhista), Brizola afirmou que a linha ideológica da nova agremiação seria uma espécie de “socialismo moreno”. Na época não houve nenhum associação, nem mesmo fizeram nenhuma ligação como o “mulato inzoneiro”, de Ari Barroso, um óbvio precedente. instituições, estabelecendo-se um completo vazio de poder e na cadeia de comando – como ocorreu em 1917, na Rússia –, ou configurando-se na existência de um partido revolucionário, no velho estilo, ou de uma organização armada, como ocorreu em Cuba em 1959. A outra situação seria um grande movimento de massas entre os sargentos – como ocorreu em Portugal no início do século XX – que inibisse os oficiais com pretensões golpistas de se movimentarem por temer um fraturamento das tropas. Era essa última opção que algumas das lideranças dos Sargentos de antes 64 sonharam. Por isso iniciaram uma grande campanha de mobilização. A eleição do sargento Antônio Garcia Filho para o Congresso Nacional – fato sem precedentes (ou com pouquíssimos exemplos) na história –, que tinha ensejado um grande movimento de massa entre todos os sargentos das Forças Armadas brasileiras – com naturais radicalizações aqui e ali, como é previsível –, mas que não teve tempo de chegar ao ponto de ruptura devido justamente ao advento do golpe. Por outro lado, diga-se de passagem, que o pouco de mobilização que se havia conseguido entre os sargentos, com a atitude imponderada do Sargento António Prestes de Paula, em Brasília – desencadeando aquele levante insensato de 12 de setembro de 1962 – contribuiu para desbarata a pouca mobilização existente. Consumado o golpe, muitas pessoas esperançosas se deslocaram para o Rio Grande, onde Brizola e o então prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, tentaram uma resistência desesperada – mesmo frente à crua realidade de o presidente João Goulart já ter desistido e ido para o Uruguai –, o que levou a alguns irônicos a dizer que naquele caso “a esperança não fora a última a morrer, morrera antes...” –, mesmo tendo contado com o apoio destemido do general Ladário Telles Pereira, um bravo chefe que já tinha demonstrado seu valor ao lado de Lott em 1955. Tudo em vão. A paulada (sobre o lombo dos sargentos) viria, como veio, e seria mesmo forte... Foi depois de ter sido, de certa forma, surpreendido pelo golpe, que Brizola pensou seriamente em resistência. E, por carecer de simpatia de expressão no seio dos oficiais, ele não teve outra alternativa do que recorrer aos sargentos. E isso, levou a que surgissem algumas contradições entre os interesses políticos de Brizola e os objetivos políticos dos sargentos depois de 64, consubstanciadas entre luta armada prolongada (guerra revolucionária) ou insurreição. Não desejamos omitir que, ao tentar substituir “a um partido revolucionário”, já que tal não existia no Brasil, nós, os sargentos, no mínimo, fomos ingênuos... A grande contradição posterior à resistência armada ao golpe militar deu-se naquela opção, a qual eu pessoalmente acreditava – já que fui uma das peças principais na busca daquele caminho –, pois penso que Brizola não abraçou aquela opção com suficiente sinceridade. E como ele nunca desejou falar sobre aquela experiência, cujo ponto mais ousado foi a tentativa de guerrilha do Caparaó4 – da qual fui sub-comandante – nunca saberemos e, tampouco poderemos analisar, tendo por base suas palavras. 66 - Brizola, os Sargentos e a Luta Armada Se o chamado esquema de sustentação do governo Jango era frágil, já que a maioria dos oficiais viao como desejoso de instalar uma risível e hipotética “república sindicalista”, imagina-se o “perigo” que aquelas cabeças ocas da maioria dos oficiais, e bem manobradas pelas teorias da Escola da Américas, não via na posição de Brizola... Não é absurdo supor que ele, que não dispunha de nenhuma penetração entre os oficiais, só pudesse buscar apoio entre os sargentos, onde as simpatias para com suas posições eram mais que evidentes. Assim sendo, o que poderiam fazer os sargentos? Os sargentos são treinados apenas para comandar um pelotão – 25 homens – podendo, excepcionalmente, comandar até uma companhia – 200 homens. Então não é viável esperar que alguns deles possam comandar uma divisão ou um exército. Em um processo de guerra revolucionária – que é fundamentalmente uma guerra política –, porém, os talentos surgem e grandes chefes militares vindos de baixo podem ser revelados. Napoleão, que foi capitão, teve entre seus futuros generais muitos que vieram de sargentos, como foram os casos de Joachim Murat (1767-1815), André Masséna (1758-1817), Andoche Junot (1771-1813), por exemplo. 4 Se do ponto de vista político, a eleição de um sargento da ativa, Antônio Garcia Filho, para a Câmara, como deputado federal, em 1962 – com quase 20 mil votos, sendo o quarto mais votado da sua legenda (o Partido Trabalhista Brasileiro, PTB), pelo então Estado da Guanabara – significou o ponto mais alto da prática política do Movimento dos Sargentos; a tentativa de guerrilha do Caparaó – quando um reduzido número de jovens, em sua maioria exsargentos, manteve-se em constante treinamento por mais de sete meses, mal alimentados, em condições climáticas adversas (chuvas constantes por mais de 60 dias, isso só em uma ocasião), quase sem material de proteção e abrigos adequados –, em uma região cuja altitude média estava na casa dos mil metros (chegando a quase três mil), significou o ponto mais alto a que uma parte daqueles sargentos “mais politizados” (dos quais sempre estou a falar), chegaram. Há quem diga que Caparaó foi o “18 do Forte” dos sargentos. Não concordo. Como o segundo homem na escala hierárquica de comando daquele grupo – que nunca ultrapassou o número de 14 pessoas e que foram presos no final apenas oito famélicos e doentes sobreviventes –, não concordo de nenhuma forma. Primeiro porque a maioria daqueles jovens tenentes, que protagonizou aquela epopéia de 1922, morrerem. Os que sobreviveram – com a exceção de Luís Carlos Prestes, que não estava lá – todos renegaram aqueles nobres ideais da juventude, muitos os traíram e se fizeram lacaios (como se dizia naqueles tempos de sonhos e utopias) dos interesses dos Estados Unidos, alguns acabaram sendo torturadores dos próprios companheiros de farda e da parcela da juventude civil brasileira que se rebelou depois de Caparaó. Quanto aos sargentos sobreviventes do Caparaó – permitam-me a imodéstia – não renegaram o ideal que os levou a fazer aquele gigantesco (quase absurdo) sacrifício, pelo menos não o negaram até agora. Muitos daqueles sargentos – hoje velhos – depois de anos nas prisões e no exílio, por seguir a pacata trilha da vida de aposentados – o famoso refugio do guerreiro –, para isso ensarilharam as armas, mas nunca negaram as razões de tê-las empunhado. Sobre eles poder-se-ia dizer aqueles versos de Castro Alves: “Se resvalaram foi no chão da História/ Se tropeçaram foi na eternidade/ se naufragaram foi no mar de glória”... Eram quatorze apenas, sete sargentos, dois subtenentes, dois marinheiros e dois civis. O Sargento Manuel Raimundo Soares, o 14º companheiro, tinha sido barbaramente assassinado um ano antes, afogado no Rio Guaíba, em Porto Alegre. Retomando ao tem central o golpe foi dado e Brizola não mais podia sonhar em galgar o poder por meio do voto popular, então lhe restava aquilo com o qual ele nunca pensara, sequer especulara, a luta armada. Ele optou pelo levante, o golpe de mão, por julgar mais rápido. Sobre as relações de Brizola com os sargentos, lembro-me um episódio, que fui involuntariamente partícipe. Estávamos na casa do deputado da esquerda uruguaia, Enrique Erro, aguerrido parlamentar da velha escola espanhola de cavaleiros – quando lá chegamos exilados, ele tinha acabado de participar em um duelo, instituição que ainda existia no Uruguai – (creio que com florete), quando, não sei por qual razão, o termo sargento surgiu e Brizola, entre bem humorado e magnânimo, disse: “Não. Todos estão promovidos a tenente.” Amadeu Felipe, que se encontrava lá comigo, olhou-me e sorriu. Ali estava – muito bem oculto (talvez nem tanto...) – o chamado preconceito de classe. O que se podia questionar era como um líder popular (ou populista) podia ter preconceito com uma categoria militar mais baixa, ou seja, popular? Isso, porém, não seria motivo – como não foi – para que nós nos sentíssemos ofendidos. O golpe de mão era, podia ou tinha que ser, o caminho mais curto. Brizola gozava de grande popularidade no meio da população do Rio Grande – e em um grau menor, em todo o Brasil – contavam com bastante apoio na Brigada Militar, os sargentos em grande maioria, em todo o país, eram-lhe simpáticos, por que não tentar um golpe de mão? Os pragmáticos, não sem uma boa dose de bom humor, dizem que não se tendo cão, mais seguro mesmo é caçar com cachorro... Foi aí que entraram algumas lideranças dos sargentos, as mais politizadas, as mais ideológicas e mais realistas5. E se tomou a decisão: Nós, sargentos ajudávamos Brizola a organizar o levante armado, enquanto ele ia-nos ajudando, com meios financeiros, a montar o foco guerrilheiro, se não desse certo o levante, poderia haver uma posterior decisão de continuar nos apoiando de alguma forma ou se separar de nós. Esse acordo, na realidade, não chegou a ser feito por escrito, no papel, como se diz. Amadeu Felipe, que era nosso líder, sempre deixou claro que aquela opção estava implícita. E ela nascia de uma necessidade prática real. 5 Amadeu Felipe, que hoje não faz segredo de ter pertencido ao Partido Comunista Brasileiro – o Partidão – e ainda pertencer aos heróicos remanescentes dele, devia ter vivido, naquele tempo um terrível drama de consciência, por mais que ele fosse pragmático (o sargento Soares, entre sério e brincalhão, dizia que ele era “frio e calculista”), entre optar pela linha pacifista do Partido e a luta armada que ele, inteligente e bravo, acreditava sinceramente. Talvez Amadeu Felipe sonhasse em provar na prática àqueles velhos carcomidos pelo stalinismo (e alguns jovens oportunistas – sua banda podre – que hoje dominam a antiga sigla daquilo que foi uma gloriosa agremiação um dia), esperando que se desse, de forma invertida, a pugna entre a maioria (bolchevique) e minoria (mechevique). No caso não havia pugna, mas inatividade e oportunismo de uma maioria e o destemor e perseverança de uma minoria, no caso, representada por ele. Apenas ele. Ou seja, a História se repetindo em forma de farsa. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (64-68) - 67 Porque havia um problema, esses sargentos, por serem politizados, desejavam a guerra revolucionária, mas não podiam levá-la adiante só com o grupo reduzido de que dispunham. Existia mais outro fator, esse favorável a Brizola, que nos tolhia de partir para essa posição isoladamente, não só porque precisávamos de um nome que tivesse repercussão internacional, como precisávamos de dinheiro para nos transformar em revolucionários profissionais, além de proporcionar segurança a nossas famílias. Na falta de um partido revolucionário, que tradicionalmente cumpre esse papel, restava-nos a busca de um aliado. Brizola era o único político importante que poderia cumprir esse papel. Havia ainda, entre o meio dos sargentos, a crença ingênua de que Brizola pessoalmente possuísse esses recursos – um grande número de sargentos acreditava que sim, que ele os tinha. As lideranças sabiam que isso era uma quimera, a História nunca registrou a existência de um “bom burguês” que usasse seu capital para financiar a derrocada de sua classe social. Isso, porém, não podia ser dito dessa forma. Por isso, surgiram mais tarde, os pragmáticos ou aqueles que não crendo que nenhum proprietário fosse investir o seu dinheiro, onde estaria a segurança dos seus filhos (e o seu próprio, em caso de fracasso), em uma aventura, então, se fez necessário aceitar a possibilidade daquele dinheiro vir de fora, de alguns países aliados. Os contatos internacionais feitos por Neiva Moreira, que esteve em Cuba, e Paulo Schilling6, que esteve na China, mostraram que teoria e auxílio em adestramento técnico de jovens, por exemplo, eram-nos oferecidos, mas recurso mesmo não veio nenhum. O famoso “ouro de Moscou”, tão falado pelos grandes órgãos da imprensa, não passava de conversa mole para boi dormir. Enquanto o boi dormia, o dinheiro de Washington corria solto, alimentando a democracia de poucos e a famosa “liberdade dos donos dos grandes órgãos da imprensa livre”. Há quem diga que esse dinheiro teria vindo de Cuba. Brizola nunca esclareceu esse ponto. Algum dinheiro deve ter vindo, como de fato parece que veio, mas o autor dessas linhas não crê que um país com a economia frágil como a de Cuba pudesse financiar a revolução brasileira. Dar uma ajuda, sim, podia. Financiá-la, nunca. Bem, de onde teria vindo o dinheiro, se é que veio algum, não nos interessa. O que nos interessa é como Brizola segurou, pelo menos inicialmente, o ímpeto daqueles jovens sargentos politizados (perdoem as repetições), levando-os inicialmente a adiarem o projeto de guerra revolucionária e concordarem em participar de um golpe de mão. Foi o sargento Amadeu Felipe da Luz Ferreira o homem que negociou com ele e chegou a esse denominador comum. Disse-me apenas Amadeu Felipe 6 Creio que o coronel Dagoberto Rodrigues esteve em Argel, onde teria tido contato com Miguel Arraes. Caso tenha ido, não houve nenhum resultado prático, tampouco Arrais teria demonstrado desejo de participar de “uma aventura” armada. que ele concordava com Brizola em participar e ajudar a preparar o golpe de mão e, em troca, Brizola iria ajudando-nos a reunir material para preparar um foco guerrilheiro, como já fora dito. O mais, que é aventado aqui, é especulação saída de minha cabeça... Lembro-me de uma conversa que mantive com Brizola no balneário de Atlântida – estando somente eu e ele (mas que me foi, mais tarde, confirmada por Paulo Schilling), quando aventado que seríamos vitoriosos em um levante só nos primeiros momentos, já que os golpistas tinham condições de nos esmagar, devido à disparidade de forças, ou seja, nos derrotar em uma guerra convencional, pois eles tinham muito mais meios do que nós. A solução – palavras de Brizola – seria criar um grande problema internacional, recuar um grande número de combatentes com suas famílias e forçar um internamento no Uruguai. Com isso, com a criação de um problema internacional, envolvendo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados, a situação complicar-se-ia, podendo até se gerar problemas de governo no exílio. Irrelevante ou não esse ponto, o certo, porém, é que ele nunca fez uma clara opção pela luta armada prolongada, aquilo que a direita chama de guerra revolucionária. Aquele era um projeto dos sargentos mais politizados, tendo como núcleo dirigente, os sargentos Amadeu Felipe da Luz Ferreira, Manuel Raimundo Soares, Araken Vaz Galvão (autor dessas linhas), o subtenente Jelcy Rodrigues Correa, o sargento Daltro Jacques D'Ornelas e outros. Foram esses também que, capitaneados pelo sargento Amadeu Felipe, ajudaram no processo de rebelião. Várias tentativas foram feitas, tendo por base uma parcela da Brigada Militar – oficiais e sargentos –, alguns poucos sargentos da ativa, do Exército, em Porto Alegre, operários da Companhia de Carris (bondes) e um pequeno núcleo de ferroviários e trabalhadores do pequeno porto de Porto Alegre, que eram onde se concentrava os esforços de rebelião. Sobre esses núcleos civis, que os sargentos deveriam comandar como improvisada milícia, Amadeu Felipe – que era nosso principal articulador, até mesmo por questões de segurança – considerava de pouca valia, uma vez que não tinham nenhum adestramento no uso de armas, ainda que alguns fossem de inegável valor como ativistas do sindicato. Ademais, Amadeu Felipe era pessimista em relação as conspiradores da Brigada. O certo é que todas as iniciativas – que não passaram da fase de preparação – fracassaram. Vários fatores contribuíram para esse fracasso, eu mesmo, por razões meramente pessoais (e bastante irresponsáveis, por imaturidade), fui atingido por um tiro de revólver propositalmente dado por uma mulher que morava comigo. Esse lamentável episódio quase me custou a vida, além de ter desmantelado um aparelho, onde eu morava no bairro de Ipanema, em Porto Alegre – com todas as conseqüências que se possa imaginar. Sem falar que fiquei quase um ano na prisão, no Presídio da Ilha das Pedras Brancas, com saúde abalada. Com essa prisão, fiquei completamente distanciado da conspiração, soube, porém, mais tarde, que várias outras tentativas 68 - Brizola, os Sargentos e a Luta Armada fracassaram. Em uma delas, devido a uma súbita diarréia nervosa de um dos chefes. Em uma tentativa, antes da minha prisão, chegamos a deslocar um grande número de sargentos do Rio de Janeiro, creio que uns 60, com todo o trabalho de logística que isso implicava – e que também mostrava a Brizola a nossa capacidade de mobilização –, resultando em fracasso. Não se pode manter 60 homens hospedados em diferentes pontos de uma cidade sem que isso gerem problemas, principalmente de ordem humana, como um simples telefonema para casa na busca de dar e receber notícias da família. À medida que o esquema de rebelião de Brizola fracassava – e fracassava sempre –, pressionado por seu Estado Maior – Neiva Moreira, Dagoberto Rodrigues e Paulo Schilling –, a opção do foco começou a receber maior apoio. Embora tivesse ligações com vários políticos, Brizola tinha nesses três homens o núcleo que esteve no centro de todas as preparações que se fez no Brasil e no exterior para derrubar a ditadura, fossem elas no campo das rebeliões ou das tentativas de guerrilha. Nesse ínterim, com o fracasso das sucessivas tentativas de levante militar no Rio Grande, foi criado o Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR – o qual se propunha a instalar alguns focos de guerrilha rural em alguns estados brasileiros. O primeiro deles seria no sul, no estado de Santa Catarina – terra natal de Amadeu Felipe – onde existia, segundo este, um bom potencial revolucionário entre os mineiros de carvão da região de Criciúma. Essa tentativa fracassou devido a uma casualidade. Fizeram várias. Em Mato Grosso, região de Corumbá; no Brasil Central, em Goiás, na qual esteve envolvido Flávio Tavares. Além da tentativa da região de Criciúma, em Santa Catarina, a qual uma infelicidade a fez abortar e, com os remanescentes desta, a mais séria, mais longa e mais bem organizada tentativa de guerrilha rural, aquela que entrou para História como a Guerrilha do Caparaó. Para coordenar esses núcleos guerrilheiros foi proposta a criação de uma organização. Por essa via chegou-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário, ampla organização sem um padrão ideológico muito definido, justamente para poder abrigar o maior número possível de opositores à ditadura. Ao realçar a oposição inicial de Brizola e Neiva à guerra de guerrilha, quero apenas fazer-lhes justiça. Ambos desejavam tão-somente romper com a ilegalidade do golpe militar com uma rebelião que trouxesse o país para o quadro de legalidade que se vivia antes de abril de 64. Isso implicaria em eleições livre, nas quais Brizola tinha grandes possibilidades de vencer a disputa para a presidência. Com isso quero dizer que tanto ele como o Neiva não eram revolucionários no sentido marxista do termo, eram reformistas e foram os fatos políticos – entre eles a falta de opções dentro do quadro democrático; e por pressão nossa, inclusive, entre outros fatores – que os empurraram para uma posição mais radical. Bem, sobre o papel de Brizola em relação àquela tentativa de guerrilha, o livro de José Caldas, “Caparaó, a primeira guerrilha contra a ditadura militar” e o filme de Flávio Frederico “Caparaó” já documentaram o assunto com objetividade e não voltarei a falar no assunto. Aqueles, porém, que são, pela vida afora, mais realistas que o rei, dizem que Leonel Brizola teria traído Caparaó. Contudo, não se trai aquilo que não se apóia, aquilo que não se fez parte de coração, aquilo que apenas se sentiu uma longínqua simpatia, simpatia essa que o levou a até prestar alguma ajuda. Por outro lado, nós, aquele grupo de sargentos mais politizados – entre eles, Manuel Raimundo Soares, Amadeu Felipe da Luz Ferreira e o autor dessas linhas, Araken Vaz Galvão – sempre pensaram que Brizola era tão-somente um companheiro de percurso, o que a esquerda chamava de aliado, companheiro de apenas uma parte do caminho. Aceitávamos sua liderança, não só porque ele era o líder inconteste de uma importante parcela do povo brasileiro, e porque tinha projeção internacional, e, também, porque precisávamos dele, talvez mais do que ele de nós, para darmos os primeiros passos na luta. Aliamo-nos a ele sabendo que poderia ocorrer, pelo menos, duas coisas: Ele se separar de nós em uma parte do caminho; ele se entusiasmar e seguir até o final, na esperança de controlar nosso possível radicalismo; enquanto nós não excluíamos a hipótese de que ele evoluísse no processo. O que nunca passou por nossa cabeça era que nós, se chegássemos ao poder, passássemos a pensar e agir como ele. Nós éramos revolucionários; ele, não. Afinal, há belo verso do Vinícius que, depois de falar de um “fato extraordinário”, diz: “O operário faz a coisa/ e a coisa faz o operário...” Brizola poderia muito bem se incluir nesse caso... História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (69-74) - 69 Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões1 Paula Schaller2 Pensar o regime partidário impõe uma análise retrospectiva para vislumbrar tendências que, surgidas na crise de 2001, ainda incidem sobre o ciclo político. Se este tem sido um ponto de inflexão para os estudos políticos dirigidos à análise das transformações da representação política, seus resultados são geralmente enfocados a partir de explicações que não dão conta de sua profundidade, primando por uma análise de tipo endógeno, onde as transformações da representação política são vistas como produto da metamorfose das pautas dessa representação, ao invés de uma perspectiva centrada na dinâmica da relação entre as classes e as frações de classe, no suposto denominador comum da ciência política atual, de que estas relações já não seriam mais o fundamento da ação política. Entendendo que a política continua sendo o âmbito da veiculação de interesses sociais anteriores a esta esfera, preexistentes à sua constituição política, vamos refletir sobre o estado atual do sistema de partidos na Argentina, polemizando com noções que Inés Pousadela formula ao analisar a representação política. Não faremos uma análise exaustiva nem acabada sobre o tema, mas aportes introdutórios a uma reflexão que merece ser complementada com estudos específicos. origem e nem a dinâmica subsequente das ações de massas, sendo necessário considerar o destino das instituições políticas e os partidos, a deslegitimação (perda de hegemonia) das frações dominantes, etc. Em 2001 emergiu um amplo bloco social – desempregados, pobres urbanos, juventude plebéia e classes médias arruinadas – que, mediante a ação direta nas ruas, quebrou a institucionalidade e a governabilidade vigente.4 Assistimos, assim, a uma ruptura das classes que se colocaram em movimento com as figuras políticas que declaravam representá-las, dando lugar ao que, recorrendo a Gramsci, denominamos de crise orgânica: Em certo momento de sua vida histórica, os grupos sociais se separam de seus partidos tradicionais. Isto significa que os partidos tradicionais, com a forma de organização que apresentam, com os homens determinados que os constituem, representam e dirigem, já não são reconhecidos como expressão própria de sua classe ou de uma fração dela. Quando estas crises se manifestam, a situação imediata se torna delicada e perigosa, porque o terreno é propício para soluções de força, para a atividade de potências obscuras, representadas por homens providenciais ou carismáticos. (…) (resultando uma) crise de hegemonia da classe dirigente, produzida ou porque a classe dirigente falhou em algum grande empreendimento político em que requereu ou impôs pela força o consenso das grandes massas (como no caso de uma guerra) ou porque vastas massas (…) passaram subitamente da passividade política a uma certa atividade e expõem reivindicações que em seu inorgânico conjunto constituem uma revolução. Fala-se de 'crise de autoridade' e nisto consiste precisamente a crise de hegemonia, ou a crise do Estado em seu conjunto.5 Crise orgânica e abertura de um ciclo político O fim do governo do Fernando de la Rúa representou na Argentina a primeira queda de um governo constitucional por ação direta das massas e não de um golpe militar. Na crise que lhe deu lugar foi determinante não só a recessão econômica – com o conseqüente aumento do desemprego e empobrecimento de setores populares e setores da classe média – como também a grande divisão existente entre as distintas frações da classe dominante3 combinada com um grande desprestígio do regime político. Se a crise econômica e a consequente pauperização social foram componentes necessários para a explosão de 2001, no entanto não são suficientes para explicar os fenômenos político-sociais aos quais deram 1 Tradução do espanhol de Angélica Lovatto, professora da UNESPMarília, e de Paulo Douglas Barsotti, professor da FGV-SP. 2 Licenciada en Historia, Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Nacional de Córdoba. Becaria de CONICET, Centro de Estudios Avanzados-Universidad Nacional de Córdoba. 3 Ver BASUALDO, Eduardo. Sistema Político y Modo de Acumulación en la Argentina. UNQ-FLACSO-IDEP, Buenos Aires, 2001. 4 Ver WERNER, Ruth e AGUIRRE, Facundo, “¿Qué fue el 19 y 20 de diciembre de 2001?”. In: La Verdad Obrera, n°217, 14 de diciembre de 2006, Buenos Aires. 5 GRAMSCI, Antonio. La política y el Estado Moderno. Editorial Planeta Agostini, Colección Obras Maestras del Pensamiento Contemporáneo, n° 39. Espanha, 1985, p.124. 70 - Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões A conjugação da crise econômica, política e social resultou numa ruptura da hegemonia pela divisão inter-burguesa em torno do modelo econômico projetado6 e pela falta de legitimidade das frações políticas tradicionais. Surgiram tendências à ação direta de massas que ultrapassaram os limites da democracia burguesa (ação política canalizada através dos representantes parlamentares e o voto como único exercício da soberania), abrindo espaço para o desdobramento de ações independentes e espontâneas como a multiplicação dos piquetes de desempregados, ocupação de fábricas e convocação de assembléias populares. A esse respeito, discordamos da análise de Waldo Ansaldi para quem estas assembléias, onde “milhares de vizinhos se reuniam espontaneamente para construir novas formas de instituir o público-político, superando a institucionalidade estatal existente e a mediação partidária”7 teriam fracassado centralmente pela estratégia de cooptação da esquerda, que ocasionou a deserção de vizinhos e seu posterior desaparecimento. Se estas assembléias expressaram uma demanda legítima de democracia direta diante do descontentamento com os partidos do regime e os mecanismos políticos tradicionais, padeciam do limite dado por sua composição social e por estarem constituídas centralmente por estratos de classe média, onde os trabalhadores atuavam diluídos como vizinhos ou cidadãos e não como classe organizada. As assembléias, que Ansaldi refere, foram reconhecidas como soviets por setores do establishment (Jornal La Nación) e pela esquerda partidária, mas estavam longe de sê-lo por não terem surgido de uma ligação orgânica com as fábricas e setores de serviços que centralizam milhões de assalariados que operam a economia.8 Sem superar esta condição, foram incapazes de articular uma alternativa de poder que solapasse as bases sociais do regime político, incapazes de levar a cabo o programa expresso em suas próprias resoluções: 6 “Os principais grupos capitalistas se agruparam em torno de duas saídas frente à crise da convertibilidade, esquematicamente os 'dolarizadotes' e os 'devaluadotes'. Os primeiros, (…) agrupavam aqueles que foram os principais “ganhadores” dos anos 1990, as empresas privatizadas e os bancos. (…) Com a imposição de dezembro de 2001 da saída desvalorizadora, mudaram as 'regras do jogo' para os negócios capitalistas. Algumas medidas, como a pesificação das dívidas em dólares e a brutal queda salarial, beneficiaram igualmente a quase todos os setores capitalistas. Mas o novo esquema alterou as capacidades de obter rendas extraordinárias. Os primeiros beneficiados foram os grandes exportadores de commodities, que aproveitaram a vantagem combinada da diminuição de custos locais e a subida de preços no mercado internacional. Os exportadores de produtos agrícolas, de petróleo e grupos industriais que exportam grande parte de sua produção e têm dimensão internacional, foram os principais favorecidos pela nova situação.”. Ver CASTILLO, Christian. Una nueva etapa en el gobierno de Kirchner. Realineamientos de clases y debates de estrategias. In: Revista Lucha de Clases, nº 2/3, Buenos Aires, abril de 2004, p.23. 7 ANSALDI, Waldo. Tanto andar a los mandobles para terminar a los besuqueos. Acerca de la relegitimación de los políticos argentinos. In: Revista Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 23, nº 38, dezembro de 2007, p.438-459. 8 Os soviets, cuja gênese histórica data da primeira revolução russa de 1905, constituíam uma verdadeira frente única das massas em As assembléias podiam votar que os trabalhadores desempregados viajassem grátis de trem, metrô ou coletivos, mas se os ferroviários, os trabalhadores do metrô ou das empresas de coletivos não interviessem ativamente, uma medida deste tipo não poderia ser executada.9 Em nosso entendimento, este é um dos motivos centrais da posterior recomposição do regime político, já que tanto os organismos de democracia radical criados pela classe média, como as ações dos desempregados, foram incapazes, por si mesmos, de projetar uma alternativa ao regime burguês sem consolidar uma aliança estratégica com a classe operária empregada. Assim como Gramsci, entendemos que se uma crise orgânica não se traduz em desagregação estatal e capacidade das classes exploradas de assumir um papel dirigente – vale dizer, projetar sua própria hegemonia – são compreensíveis os fatores que possibilitaram a reestabilização capitalista e do regime político. Se hoje é evidente que a crise orgânica não permanece aberta – como se impôs a fração desvalorizadora que recompôs a institucionalidade através de um crescimento da economia,10 uma mudança de discurso governamental e uma política de relegitimação de instituições como a Corte Suprema, as Forças Armadas e o Congresso – acreditamos que 2001 inaugurou um ciclo político de crise do bipartidarismo em que estamos imersos. Sistema partidário: tendão de Aquiles do regime político Ansaldi considera que um dos aspectos do estado quase insurrecional que possibilitou o acesso de Duhalde à presidência em 2002 foi a solidez do justicialismo portenho, com uma “notável persistência de sua capacidade de penetração nos setores sociais mais pobres e um nível de organização capaz de controlar o conflito social, em boa medida através de redes clientelistas, eficazmente utilizadas na distribuição de cerca de dois milhões de planos sociais”, oferecendo-se “diante da ruptura institucional, como última garantia dos restos do sistema político”.11 Efetivamente, o PJ – Partido Justicialista – atuou diante da crise de hegemonia como “partido de contenção” do regime burguês, impondo um “governo de transição para evitar a 'anarquia'”, como autodefiniu Duhalde, determinante ao estabelecer as bases para a normalização política e uma luta, onde a representação das mesmas partia de critérios de classe e não de generalizações universais, o que levou o marxismo russo a definí-los como “embriões do futuro poder proletário”. Ver TROTSKY, León. Historia de la Revolución Rusa. Tomo I, editorial Antídoto, Buenos Aires. 9 “Y sin embargo, ay, mira lo que quedó…”, en Miradas del Sur, Buenos Aires, 23 de diciembre de 2003. 10 Baseado na desvalorização monetária que deprimiu o poder de compra dos assalariados e que aumentou o lucro dos setores ligados à exportação, acompanhado por um ciclo de altos preços internacionais das commodities. 11 ANSALDI, op.cit. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (69-74) - 71 transição de poder conforme os canais políticos habituais. Mas a descrição deste papel não explica, por si mesmo, por que o peronismo pôde desempenhá-lo, mas sim à sua suposta imagem de força. O PJ pôde sustentar-se e atuar como “partido de contenção”, menos por sua própria força, e mais como produto do handcap que representou a não intervenção da classe operária – sua base social histórica – o que por sua vez permitiu a sobrevivência de um dos pilares do aparelho peronista – as direções sindicais burocratizadas – e o conjunto do regime burguês. E embora Ansaldi analise a fragmentação do peronismo – que se apresentou dividido em três candidaturas às eleições presidenciais de 2003 – o autor nem sequer menciona a falta de intervenção da classe operária, tirando conclusões fora da dinâmica do processo, ao propor a possibilidade de uma “revolução política”, cujo sujeito e programa não define em momento algum. Em nossa opinião a ausência da classe operária organizada como sujeito de luta na crise orgânica explica em grande parte a recomposição do regime político operada em 2003, mas por outro lado não podemos subestimar as fraturas produzidas nos últimos tempos na relação desta com o peronismo. Crise do bipartidarismo e fragmentação do regime político Considerado o conjunto do regime político atual, vemos que uma de suas falhas consiste na dificuldade da classe dominante de recompor partidos orgânicos com base de massas. O kirchnerismo emergiu em 2003 com um discurso renovador e antineoliberal, o que ampliou suas bases em setores das classes médias. Ampliou também suas bases junto aos assalariados por meio de uma recomposição econômica, que redundou na criação de aproximadamente 3 milhões e meio de postos de trabalho, na institucionalização das paritárias, no aumento do salário mínimo, etc. Apesar disso, não conseguiu consolidar uma força política organizada que fizesse desta uma base estável, muito menos militante. Sua intenção inicial de reconstruir o bipartidarismo através do estabelecimento de duas coalizões amplas – uma de centro-esquerda e outra de centro-direita12 – fracassou, mudando a “transversalidade” da primeira hora Kirchner em um modelo de construção apoiado sobre a velha estrutura peronista. Um peronismo que já não é, como antigamente, uma força política com apoio 12 Projeto que Julio Godio resume dizendo: “O Presidente Néstor Kirchner pensa – apoiado naquilo que no velho Partido Justicialista (PJ) deixou faz muitos anos de funcionar como uma só organização partidária (no máximo agora é uma instável 'confederação' de tendências), e no fato de que a União Cívica Radical (UCR) dividiu-se e está em processo de decomposição – que no futuro deveria criar-se um cenário com duas grandes coalizões político-partidárias. Uma coalizão de partidos seria de centro-esquerda, com apoio no peronismo e liderada pelo kirchnerismo; a outra coalizão agruparia os partidos de centrodireita. Existiriam partidos 'bisagra', menores entre ambas as coalizões”. Ver GODIO, Julio. “Acerca del nuevo partido político de Kirchner”. operário de massas militante, mas sim uma espécie de federação de caudilhos locais, apoiados em aparelhos clientelistas e uma estrutura sindical burocratizada e desprestigiada – que é pressionada tanto por cima, com as leis contra o monopólio da representação sindical ditadas pela Corte Suprema, como por baixo, com um processo antiburocrático que percorre amplos setores do movimento operário e que os meios de comunicação denominaram sindicalismo de base – cujas expressões paradigmáticas são a Comissão Interna da Kraft, o Corpo de Delegados dos trabalhadores da e Metrô e o Sindicato Ceramista de Neuquén, setores que se reivindicam classistas. Este aparato apoiado no tripé, governadores do interior / intendentes da Grande Buenos Aires / burocracia sindical, não conseguiu despertar um entusiasmo que nos permita falar de sobrevivência de uma “identidade peronista” da classe operária e camadas pobres, questão que tem relação genética com a estrutura econômico-social que favoreceu o peronismo ao longo de décadas. Como diz o sociólogo Christian Castillo, se no final dos anos 1970, Portantiero afirmava que historicamente havia sobrado sindicatos e faltado burguesia nacional ao peronismo (aludindo que a força social do movimento operário era mais significativa em relação a do capitalismo nativo, dificultando a política peronista de conciliação de classes), depois do menemismo – quando o peronismo no governo favoreceu o aumento da dominação do capital imperialista sobre a economia nacional, com grande parte da burguesia local transformando-se diretamente em financeira, transferindo dólares aos paraísos fiscais – a tentativa kirchnerista de reconstruir uma burguesia nacional do Estado mostrou grandes limites. Das principais 500 grandes empresas que operam hoje no país, dois terços estão em poder do capital estrangeiro – a mesma percentagem que no final dos anos 1990 –, enquanto que só no ano de 2009 mais de 60 das 100 companhias vendidas nos ramos de siderúrgica, indumentária, mantimentos e bebidas, ficaram em mãos de capitais estrangeiros.13 Em que pese a retórica neodesenvolvimentista, o modelo Kirchner só chegou ao fortalecimento de setores da burguesia local através do que muitos analistas denominam o capitalismo de amigos, mediante a distribuição de subsídios e diversas formas de ajuda estatal, enquanto, paradoxalmente, terminou num enfrentamento com grande parte da burguesia nacional “realmente existente”,14 como a burguesia agrária, o grupo Techint15 e o grupo Clarim.16 13 MAIELLO, Matías e ROMANO, Manolo. El fin del ciclo kirchnerista. In: Revista Estrategia Internacional, n°26, marzo de 2010, Buenos Aires, p.105. 14 Ver CASTILLO, Christian. La decadencia y corrupción de la política burguesa. In: La Verdad Obrera, Buenos Aires, 5 de noviembre de 2009. 15 Grupo empresário de capitais argentinos centralmente dedicado ao ramo da construção. Possui mais de 100 empresas operando em diversas partes do mundo e conta com 60 mil empregados. 16 A maior empresa de multimídia da Argentina, que concentra o Diário Clarín, a empresa ARTEAR (que produz e comercializa 72 - Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões Este último é um fator que conduziu a crise política às alturas, dadas as disputas entre estas frações que não conseguem consolidar-se em expressões políticas sólidas que condensem um programa definido. Nos últimos tempos, esta crise girou em torno do pagamento da dívida externa que o governo tenta fazer frente com reservas do Banco Central, promovendo o pagamento com recursos do orçamento nacional, questão que a oposição parlamentar não aceita. Se na questão de fundo, o pagamento da dívida, as diversas frações econômicas e políticas coincidem, a crise desnuda a tentativa da oposição de pôr um limite à política do governo de utilizar os recursos públicos para subsidiar setores afins do empresariado, cooptar governadores e intendentes – e promover uma leve transferência de ganhos aos setores mais pobres com a atribuição universal por filho17 – esquema de poder desenhado pelo kirchnerismo para governar no marco da fragmentação do regime político e a impossibilidade de rearmar um sistema estável de partidos. Portanto, a UCR – União Cívica Radical – saiu de 2001 muito debilitada como expressão política das classes médias, reduzida a um partido marginal do ponto de vista nacional, permeada de fragmentações e rupturas, questão que responde tanto à crise em que terminaram seus governos, como à própria polarização social da classe média, sua base eleitoral histórica.18 Assim, como partido nacional tradicional, o radicalismo pós-2001 se viu reduzido a sua mínima expressão histórica, e é incapaz de se localizar como a variante alternativa ao peronismo. O que sobressaiu no cenário político de 2001, mais que os partidos orgânicos e enraizados, foram coalizões muito instáveis, acordos conjunturais entre frações das forças políticas e figuras midiáticas, expressas em cada eleição de maneira diversa, e que não se sustentavam sobre uma base social duradoura. A derrota kirchnerista na província de Buenos Aires, para o empresário colombiano De Narváez nas eleições legislativas de 28 de junho, expressa esta volatilidade, que projeta uma grande crise do peronismo no seu bastião sócio-territorial histórico. Mas o triunfo De Narváez, como cabeça de lista da instável aliança Union-PRO, não se traduziu na emergência de uma força com capacidade de projetar sua hegemonia política sobre o conjunto da oposição. Assim, enquanto o oficialismo passou de 46% de Cristina Kirchner nas eleições presidenciais, a um magro 31%, isto não lhe impediu de mais de 5 canais abertos e TV a cabo), e dezenas de editoras, emissoras de rádio, televisão, produtoras de televisão, internet, telecomunicações, empresas gráficas, correio tradicional e serviços de terceirização. 17 Que equivale a 0,58% do PBI do país, enquanto os 40 milhões de pesos que o governo reconhece com a troca da dívida no default, equivalem a 2 orçamentos anuais de educação, 4 orçamentos de saúde ou 8 vezes o montante destinado por ano à habitação. Ver ROMANO, Manolo. El engaño del discurso oficial. In: La Verdad Obrera, n°368, jueves, 1 de abril de 2010. 18 Ver ANSALDI, Waldo. “El faro del fin del mundo. La crisis de 2001 o cómo navegar entre el riesgo y la inseguridad”, in: http://catedras.fsoc.uba.ar. converter-se na primeira minoria parlamentar, já que sua perda de votos não foi capitalizada por nenhum setor da oposição. De fato, Das três alianças nacionais que concorreram em 28 de junho último, só a Frente para la Victoria permanece como tal, já que tanto o Acuerdo Cívico Social, com a deserção da Coalición Cívica e as internas intermináveis no radicalismo, como Union-PRO e o peronismo dissidente, com sua falta de liderança e seus problemas para disputar o peronismo com Néstor Kirchner, entraram em crise.19 Em nossa ótica, esta debilidade do regime político argentino, altamente fragmentado e carente de partidos estáveis que se colocam como canais de aspirações dos setores de massas, é o fundamento da Lei de Reforma Política impulsionada recentemente por Cristina Kirchner. Esta lei pretende superar a atomização com uma engenharia eleitoral que rearme o regime de partidos, buscando que as diversas linhas em que se desmembraram a UCR e o PJ se apresentem unificadamente no interior da estrutura partidária, limitando a emergência de forças políticas menores ao impor uma série de restrições para o funcionamento e a obtenção da legalidade dos partidos. Condições que limitam, quando não inibem, diretamente as possibilidades legais de muitas formações políticas, que tendem deste modo a bloquear a emergência e desenvolvimento de expressões políticas de esquerda, que no contexto internacional de crise econômica e diante do ressurgimento da classe trabalhadora na cena política – com a significativa luta da Kraft-Terrabusi, cuja comissão interna se localiza como a referência mais visível de um setor mais amplo do movimento operário que não responde às direções sindicais tradicionais – derive em um giro à esquerda de setores dos trabalhadores e da juventude. Esta questão não é menor, já que ao conduzir as direções sindicais como pilares do PJ em sua relação com a classe trabalhadora, o surgimento e extensão de expressões de um novo sindicalismo de base abre a possibilidade de gerar fissuras maiores nessa relação que derivem em um giro à esquerda de setores da classe trabalhadora. Neste sentido, Julián De Diego, um dos principais assessores do empresariado local, alertou sobre as leis ditadas pela Corte Suprema contra o monopólio da representação sindical que Os questionamentos ao modelo sindical não sabem ao certo onde querem chegar. E mais do que isso, não têm nem contam com um modelo alternativo, e podem correr o risco, e de fato já estão correndo, de girar o pêndulo ao extremo oposto atual, destruindo (…) uma realidade sindical que foi clara protagonista na hora de confrontar com modelos extremos da esquerda 19 LEONE, Néstor, La barrera de los cuarenta. Néstor Kirchner y las posibilidades reales de un triunfo en primera vuelta en las presidenciales de 2011. In: Revista Debate, 16 de abril de 2010, Buenos Aires. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (69-74) - 73 trotskista, maoísta, ou comunista que tentaram monopolizar as organizações sindicais (…) para as converter nos meios instrumentais para combater e destruir o capital (…). Da escolha do caminho mais eficiente depende que a realidade trabalhista e sindical se represe ou que dramaticamente se encaminhe para a rebelião e o caos social (…).20 por sobre o debate programático; por outro, fenômenos tais como a percepção da incapacidade ou a corrupção da chamada classe política, indiferenciada em sua composição e com interesses corporativos mais poderosos que os de seus representados, e a desconfiança nas instituições representativas. Este último, em apoio à suspeita de que existe algo inerente ao mecanismo de representação, que se volta para os representantes desleais, em relação com seus representados, no momento preciso em que se convertem em seus representantes. Enquanto que este segundo conjunto de imagens remete, efetivamente, ao fenômeno de crise de representação, o primeiro corresponde, por outro lado, ao processo que denominaremos metamorfose da representação.22 Se este é um cenário hoje inexistente, não se pode descartar para um futuro próximo o desenvolvimento de certas tendências, possibilidade que tanto o governo como o empresariado tentam evitar. Metamorfose da representação: uma política “para além” das classes? Pousadela analisa a situação dos partidos políticos na Argentina como um processo de alcance geral denominado de metamorfose da representação, que remete à substituição de um formato de representação por outro, com o trânsito da velha democracia de partidos à chamada democracia de audiências. Assim, expõe que as últimas décadas se caracterizam por uma elevada volatilidade eleitoral – uma oferta eleitoral cada vez mais personalizada, a crescente importância dos meios de comunicação na instalação dos candidatos, a desvalorização dos programas partidários, etc.21 – que teria resultado no desaparecimento, em escala global, dos partidos tal como se consolidaram historicamente com a chamada democracia de partidos de fins do século XIX e começos do XX. Os partidos já não se caracterizariam por uma estrutura organizativa sólida, de forte implantação territorial, com uma orientação ideológica definida traduzida em programa, características que o politicólogo Maurice Duverger englobou sob a definição de partidos de massas, profundamente enraizados na realidade social. Embora Pousadela faça a distinção entre vários tipos de partidos presentes tanto na democracia de partidos (que se caracterizou por formações políticas diferentes na Europa e Estados Unidos) como na democracia de audiências (em que coexistem partidos tradicionais reformados com novas formações políticas com traços específicos), formulando como hipótese a coexistência na Argentina de traços pós-modernos, modernos e pré-modernos, queremos assinalar que a autora define a metamorfose da representação política como uma característica de época. Em seu livro Que se vayan todos. Enigmas de la representación política, Pousadela analisa a crise de 2001 como convergência de dois processos de alcances diferenciáveis: Por um lado, fenômenos relacionados com o declínio da importância dos programas partidários, a personalização das lideranças e a instrumentalização dos partidos políticos por parte de seus líderes, o império dos meios de comunicação e a preponderância da imagem 20 DE DIEGO, Julián. Grave controversia en el sindicalismo para preservar el unicato gremial. In: El Cronista, 21 de enero de 2010. 21 Ibidem, p.110. A metamorfose da representação política é para Pousadela – de acordo com Bernard Manin – um processo de longo alcance que envolve o conjunto das democracias contemporâneas e supõe profundas mudanças nas formas de constituição das identidades políticas. A crise de hegemonia ocorrida na conjuntura de 2001 teria se dado como uma fase episódica de um processo de alcance de uma época, onde a própria representação política experimentou variações. Dessa forma, os partidos, produto de uma metamorfose representacional que parecia explicar-se por referência a si mesmo – tentando enganosamente compreender “a política pela política”, diria Atilio Borón23 – já não expressam fundamentos sociais de classe, mas sim constróem sua legitimidade nos espaços midiáticos de massas, com o império da cidadania transformada em audiência. Esta explicação, baseada no suposto de uma política “acima das classes”, é incapaz de dar conta dos processos políticos, já que faz abstração das próprias condições sociais que se localizaram nos partidos hegemônicos argentinos na situação de crise em que se encontram. A esse respeito, Marx chegou muito cedo à conclusão da impossibilidade de compreender os fundamentos da política à margem de uma concepção totalizadora da vida social, onde se conjugam e interdeterminam economia, sociedade, cultura, ideologia e política. Levou a análise hegeliana da conexão existente entre atividade política e Estado com a sociedade civil, como império da propriedade privada, das relações econômicas, a suas máximas conseqüências lógicas, ao expor o engano de qualquer empreendimento teórico que tente dar conta da atividade política e estatal sem atender aos fundamentos econômicos da ordem social. Porque 22 POUSADELA, Inés. Que se vayan todos. Enigmas de la representación política. Capital Intelectual, Buenos Aires, 2006, p.9-10. 23 BORÓN, Atilio, Filosofía política y crítica de la sociedad burguesa: el legado teórico de Karl Marx. In: Borón, Atilio Com., La filosofía política moderna. De Hobbes a Marx, CLACSO, Buenos Aires, 2003, p.323. 74 - Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões em sua profundidade a dimensão da política na sociedade capitalista – assim como o Estado e suas instituições – longe de ser um território neutro e asséptico de atividade humana, não é mais que a esfera da alienação, quer dizer, da ilusão e do engano, um tipo de véu cuja ilusória função integradora – que consagra os cidadãos abstratos com direitos formalmente igualitários – não é mais que a cobertura que preserva o corpo social apoiado em relações estruturalmente desiguais, “uma nociva ficção de uma pseudo-igualdade que inocenta a desigualdade real. Daí seu caráter alienado.”24 Seguindo a análise de Atilio Borón sobre a filosofia política de Marx, digamos que deste caráter se desprende uma das tarefas estratégicas do Estado na sociedade burguesa: a invocação manipuladora ao “povo”, em sua inócua abstração, aos efeitos de legitimar a ditadura de classe da burguesia. Entendendo, logicamente, que estamos falando aqui da política hegemônica, posto que a possibilidade de negação e superação desta condição alienada da política está dada, precisamente, pelo desenvolvimento de uma política consciente dos explorados e, portanto, não alienada, não ilusória. Pretendemos expressar assim a futilidade de uma perspectiva teórica que concebe a política como atividade divorciada dos fundamentos da estrutura social em que tem lugar e sentido. Deste modo, mais que metamorfose da política em geral, é mais pertinente falar na Argentina de crise da política burguesa, de seus partidos como canais dessa atividade, fenômeno que não se explica, a não ser referindo-se aos interesses e políticas assegurados ao longo de décadas. A imposição de uma estrutura econômico-social regressiva fez com que ao longo dos anos a burguesia fosse “sacrificando” seus principais partidos frente as massas: tanto o peronismo – que com Menem levou a cabo um ataque generalizado à classe trabalhadora, mediante as demissões maciças, produto das privatizações, a imposição da flexibilização trabalhista e a debilitação das organizações do movimento operário – como a UCR – que logo depois da crise em que terminou o governo de Raúl Alfonsín em 1989, tinha obtido uma renovação a partir da confluência com a centro-esquerda do FREPASO e terminou como continuadora do neoliberalismo, arremetendo contra sua própria base social, a classe média, através de políticas de cortes ao orçamento universitário, a confisco dos poupadores, etc. – eclipsaram notoriamente sua influência diante das massas, com o qual o bipartidarismo característico do regime político argentino do retorno democrático se desmembrou.25 Sem levar em consideração estes processos é impossível dar conta das transformações ocorridas na relação dos partidos hegemônicos com as massas, que sofreu uma evidente fratura. A impossibilidade de reconvertê-los em forças políticas que expressem as aspirações de amplos setores da sociedade, faz com que 24 BORÓN, Op. Cit, p.321. MAIELLO & ROMANO, Op. Cit., p.102. 25 as distintas opções se ordenem em função de figuras midiáticas de enraizamento eleitoral volátil, o que expressa um grande problema para a classe dominante, já que se encontram muito debilitados os canais de contenção e institucionalização de sua relação com as massas. Por sua vez, como a política já não seria expressão dos interesses sociais insiste-se na inexistência de partidos de classe ao estilo da social-democracia alemã, que “expressava a identidade e os interesses do movimento operário”. Novamente isto, por si só, não explica nada, já que metodologicamente o resultado não pode se dar como explicação da causa. Teria que se analisar a situação de grande retrocesso estrutural e subjetivo – político – que a última ditadura impôs à classe trabalhadora, a derrota que para esta implicaram as privatizações e políticas de flexibilização trabalhista dos anos 1990, que ocasionaram sua crescente 26 fragmentação – que em parte explicam a ausência do movimento operário como sujeito de 2001 – e, em termos de longo alcance, a incidência do peronismo como movimento nacionalista-burguês que inibe o desenvolvimento de um partido operário classista, como poderia ter sido o trabalhismo dos anos 1940, se tivesse adotado um caminho independente. Isto, e mais, teria que ser analisado para entender a atual atomização política da classe trabalhadora e sua incapacidade, por décadas, de dar nascimento a um partido de classe. Possibilidade que não está obstruída para o futuro, e dependerá da dinâmica de relação entre as classes. De fato, foi uma constante histórica que em momentos de aguda luta de classes, as tendências políticas radicalizadas (tanto a direita como a esquerda) tendessem a adquirir peso de massas. Porque, sob o risco de cair em explicações simplistas – em que a política parece erigir-se como uma esfera autonomizada dos interesses sociais, produto artificial da TV – continua sendo necessário recorrer à análise dos processos sociais e estruturais, seus reais fundamentos, para compreendê-la. 26 Com uma classe trabalhadora segmentada entre uma camada de desempregados, um setor de trabalhadores “de segunda” (contratados, terceirizados, em informalidade, subcontratados, etc.), e um setor minoritário sindicalizado e registrado. Ver MAIELLO, Matías e ROMANO, Manolo. El fin del ciclo kirchnerista. In: Revista Estrategia Internacional, n° 26, año XVII, marzo, 2010, Buenos Aires, p.117. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (75-77) - 75 Los Argentinos Somos Derechos y Humanos 1 Resenha do Livro NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. La dictadura militar 1976/1983 – del golpe de Estado a la restauración democrática. Buenos Aires: Editora Paidós, 2006, 567 p. Waldir José Rampinelli2 A ditadura militar argentina fundamentou-se, ideologicamente, na doutrina de segurança nacional, no integralismo católico e no anticomunismo, utilizando-se da estratégia do terror de Estado e de uma série de políticas públicas para desmantelar as estruturas formais e informais de proteção estatal que haviam sido criadas no país na década de 1930 e, principalmente, durante o primeiro governo peronista. Para tanto, teve as devidas bênçãos e recomendações da Conferencia Episcopal Argentina (CEA), cuja cúpula hierárquica foi ouvida na véspera do golpe. Não se pode esquecer também o grande apoio dado pela população à primeira Junta Militar golpista (Jorge Rafael Videla, pelo Exército; Emílio Eduardo Massera, pela Marinha; e Ramón Agosti, pela Força Aérea), defendendo-a como a salvadora da Pátria, da ordem e da paz. Duas estratégias implementou a ditadura: a guerra antissubversiva e o estabelecimento de um plano econômico em favor da classe dominante. A primeira consistiu na eliminação física de todas as organizações guerrilheiras, dos grupos de esquerda revolucionária, das comissões e dos delegados sindicais combativos, das agrupações estudantis e dos simpatizantes do populismo peronista, recorrendo a ditadura, para tal, a métodos de regimes totalitários. Esta complexa máquina de torturar e matar chegou a dispor, em 1977, de 340 centros clandestinos em toda a Argentina (p. 118). Inventou novas formas de desaparecimento: em voos noturnos, lançou ao mar, com vida, os opositores detidos na Escola da Mecânica da Armada; apropriou-se dos bens móveis e imóveis dos presos, vendendo-os em lojas estabelecidas ou nas subastas públicas; sequestrou bebês nascidos nos centros de tortura para entregá-los a pais adotivos apoiadores dos militares e explorou o trabalho escravo das pessoas encarceradas, evitando assim contratar mão de obra para certas tarefas a serem realizadas no quartel. Muitos capelães das Forças Armadas amainavam as consciências dos carrascos e dos ladrões com a justificativa cristã de que era preciso separar o joio do trigo. Um deles, Christian Von Wernich, foi condenado à prisão perpétua, em outubro de 2007, por participar da privação ilegal da liberdade de 34 pessoas, como também por ser coautor da aplicação de tormentos agravados a 31 cidadãos. O relatório Nunca más chegou à cifra de 30.000 desaparecidos, um verdadeiro genocídio da população 1 Consigna criada pela ditadura militar para se opor às denúncias sobre violações dos direitos humanos no país. 2 Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente do Instituto de Estudos Latino- Americanos (IELA). organizada argentina e o Diário del Juicio, vendido nas bancas, contava em detalhes os horrores dos porões do regime, o verdadeiro inferno de Dante. Tamanho foi o desprestígio das Forças Armadas após tais relatos, que, inclusive, os militares evitavam sair fardados pelas ruas. O cinismo do ditador Videla o levou a dar uma explicação para os desaparecidos, apresentando cinco causas: a) que estas pessoas tenham passado para a clandestinidade; b) que tenham sido eliminadas pelas próprias organizações, por falta de lealdade; c) que tenham se ocultado para viver na marginalidade; d) que tenham se desesperado e cometido suicídio; e e) por último, que tenham sido assassinadas por conta de excessos cometidos pelas Forças Armadas.3 Enquanto a hierarquia católica tratara de ignorar a questão, quando não referindo-se a ela em termos de pacificação, de reconciliação e de esquecimento, Henry Kissinger, na reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Santiago do Chile, em 1976, aconselhara a ditadura militar a avançar na “solução” final do problema subversivo antes que o Congresso dos EUA reiniciasse suas sessões e antes, também, que Jimmy Carter assumisse a presidência, em janeiro de 1977. A segunda estratégia da ditadura consistiu em limpar os caminhos para a implantação de um programa econômico com um composto de receitas neoliberais, conservadoras e desenvolvimentistas, cujo ponto de convergência básico seria redefinir o comportamento dos atores por meio de uma fórmula composta pelo disciplinamento dos mercados e pela intervenção do Estado (p. 42). Os beneficiados seriam apenas as classes dominantes, que em troca davam todo o apoio ao Processo de Reorganização Nacional. O ditador Videla costumava realizar, entre abril e setembro de 1976, almoços mensais com figuras representativas para consolidar o consenso. Participaram destes encontros empresários dos meios de comunicação, representantes do agronegócio, líderes religiosos, presidentes de entidades científicas, ex-ministros de Relações Exteriores e escritores, entre os quais Jorge Luis Borges, Ernesto Sábato, Horácio Ratti e o padre Leonardo Castellani. Sábato chegou a dizer que Videla o havia impressionado “como um homem justo, modesto e inteligente”; Borges estava “agradecido [a Videla] pelo golpe de 24 de março que salvou o país da ignomínia” e ao mesmo tempo “surpreendido por sua enorme, infinita 3 VIDELA, Jorge Rafael. Entrevista. La Razón, Buenos Aires, 13 maio 1977. 76 - Los Argentinos Somos Derechos y Humanos paciência”; Castellani o considerava “um homem sensato, sereno, humilde e preocupado seriamente por conhecer a realidade argentina em sua totalidade” (p. 182). O Partido Comunista Argentino também apoiou o golpe, chegando ao ponto de propor a assinatura de um “convênio nacional democrático que servisse de fundamento a um governo cívico-militar de ampla coalizão democrática”, na perspectiva de evitar o avanço da ala dos duros do exército. Tais equívocos históricos não apenas ajudaram a dar respaldo à Junta Militar, como também abriram caminho para o avanço do terrorismo de Estado. Novaro e Palermo mostram como a ditadura argentina, dentro de uma estratégia global anticomunista comandada por Washington, exportou o terror estatal para a Bolívia e os países da América Central. O envio de assessores e o ensino de métodos de interrogatório, de tortura e de roubo de crianças foram algumas das experiências passadas aos ditadores destas regiões dentro da Operação Condor, que consistia na continentalização da criminalidade política por meio de ações terroristas. O resultado foi, juntamente com outros governos autoritários, a morte de mais de 400 mil pessoas em toda a América Latina, das quais 50 mil apenas no Cone Sul.4 “Planícies alisadas pela morte e o silêncio”, segundo palavras de Julio Cortázar. O terror praticado por Estados, diz Chomsky, é funcional, já que melhora o clima de investimentos no curto prazo. Segundo ele, a ajuda de Washington aos governos inclinados ao terrorismo está em “relação direta com o terror e a melhoria do clima de investimentos e em relação inversa com os direitos humanos”. Sendo os Estados Unidos um centro de poder, cujas opções políticas e estratégias calculadas produzem um sistema de clientes que praticam sistematicamente a tortura e o assassinato em escala assustadora, pode-se afirmar que Washington se tornou a capital mundial da tortura e do assassinato político. É o terror benigno, permitido aos Estados clientes que lutam contra o comunismo internacional, fazendo par ao terror construtivo, destinado também aos Estados clientes que buscam manter e ampliar as áreas globais de investimentos estadunidenses.5 Para João Corradi, a conquista do campeonato mundial de futebol (1978) e a invasão das Ilhas Malvinas (1982) apresentam características muito próximas do fascismo, já que a Junta não apenas é apoiada entusiasticamente pela população, como também o Estado nacional católico mobiliza multidões em torno da argentinidade. As duas últimas ditaduras militares – a da Revolução Argentina (1966-1973) e a do Processo de Reorganização Nacional (1976-1983) – tiveram, no momento de sua implantação golpista, segundo Luis Rubio, os benefícios de uma passividade expectante por parte da sociedade civil e as vantagens de uma neutralidade alarmada da população. Ambos os golpes foram contra governos constitucionais desprestigiados, tendo a Revolução Argentina caído a partir do Cordobazo (1969), enquanto a ditadura do Processo de Reorganização Nacional perdeu todo seu apoio com a derrota das Malvinas (1982).6 Lógicamente que os movimentos internos de resistência, assim como as pugnas intracastrenses, tiveram sua influência no fim deste último regime. As Mães da Praça de Maio, que a partir 30 de abril de 1977 começaram a reunir-se periodicamente em frente à Casa Rosada exigindo uma solução para o desaparecimento de seus filhos, denunciam à Argentina e ao mundo os horrores da ditadura militar. Quando a imensa maioria da sociedade apoiava a guerra contra a Inglaterra por conta das Ilhas, as Mães afirmavam categoricamente que As Malvinas são argentinas, os desaparecidos também. Foi a organização que mais capitaneou a luta contra o governo do terror. A primeira ditadura militar de segurança nacional da América Latina, cujos líderes sentaram no banco dos réus, foi a argentina. Apesar das leis de Ponto Final e de Obediência Devida, de Raúl Alfonsín, e do indulto, de Carlos Ménem, que nada mais foram que tentativas de tornar impunes os crimes de lesahumanidade, o Congresso Nacional do país revogou tais decisões e os grupos de defesa dos direitos humanos continuaram lutando para julgar seus torturadores. O resultado apresentado pelo presidente do máximo tribunal, Ricardo Lorenzetti, elenca 26 julgamentos concluídos, 13 em curso e 5 em preparação. Concluiu o seu informe dizendo que os juízos dos crimes da ditadura já fazem parte “dos princípios que nos unem, hoje, a todos os argentinos: ou seja, que não queremos nunca mais que nossos filhos e nossos netos sejam perseguidos pelo próprio Estado – que os deveria proteger –, por terem ideias distintas. O ensinamento mais importante que nós podemos resgatar a esta altura do processo é que não haja marcha atrás”.7 O livro La dictadura militar 1976/1983 faz parte da coleção História Argentina, sendo este o de número 9. Ele é um grande trabalho, tornando-se, às vezes, demasiado descritivo. As fotos apresentadas poderiam ter uma qualidade melhor. É um livro muito importante para entender este período. Por fim, vale ressaltar, que todo o complexo da Escola de Mecânica da Armada, que ocupa uma quadra ao norte de Buenos Aires, quase foi destruído por Ménen para que no local se construísse uma praça da solidariedade. Na verdade, o objetivo era um parque que valorizasse os apartamentos da classe alta que estão em frente. No entanto, os grupos de direitos humanos se mobilizaram e impediram que se aplicasse a lei do “olvido” a este quartel da Armada. Parte dele que serviu de local de tortura – o clube dos oficiais – foi 6 4 CALLONI, Stella. Los años del lobbo: operación condor. Buenos Aires: Peña Lillo, 1999, p. 12 e 16. 5 CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Washington y el fascismo en el tercer mundo. México: Século XXI, 1981, p. 160. RUBIO, Luis. Argentina: la promesa incumplida. In: CUEVA, Agustin (Org.). Tiempos conservadores: América Latina en la derechización de Occidente. Quito: Editora El Conejo, 1987, p. 159. 7 LORENZETTI, Ricardo. No hay marcha atrás con los juicios. Página 12, Buenos Aires, 12 ago. 2010. História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (75-77) - 77 transformado em museu, em 24 de março de 2004, constituindo uma experiência fundamental de política pública sustentada nos pilares da memória, da verdade e da justiça, historicamente sustentados pelo movimento de direitos humanos. As visitas são guiadas por jovens estudantes das universidades públicas de Buenos Aires que contam a história com muito conhecimento e detalhe. É muito importante conhecê-lo, bastando para tal agendar por telefone (4704-5525) ou pelos serviços dos correios eletrônicos ([email protected] ou [email protected].) Normas para Autores 1. A revista História & Luta de Classes [[email protected]] nasce em tempos de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências Sociais. Ela procura servir como ferramenta de intervenção de historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir e se opõem ativamente a essa dominação. 2. Os objetivos da revista História & Luta de Classes estão expressos na "Apresentação" do seu primeiro número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração ao coletivo da revista. 3. A revista está aberta a propostas de colaborações, reservando-se o direito de exame dos textos enviados espontaneamente à redação. Sem exceção, todos os artigos serão submetidos a parecer. 4. A revista História & Luta de Classes dirige-se aos estudantes e professores de história e ciências sociais, em especial, e ao grande público interessado, em geral. Sem concessões de conteúdo, na forma e na linguagem, os autores procurarão que seus artigos alcancem o mais vasto público leitor. 5. Os artigos poderão ser enviados através de e-mail em arquivo anexado em formato Word para o endereço [email protected] ou para os organizadores de cada número. Os textos enviados deverão ser inéditos, no relativo à publicação impressa, e não excedendo os 35.000 caracteres, contando notas de rodapé e os espaços em branco. Os originais deverão conter título, nome do autor e filiação institucional (universidade, escola, sindicato, etc.). 6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras. 7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do texto), obedecendo à seguinte formatação: 7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex.: CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123. 7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22. 7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n. (número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo; SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149. 8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé. Próximos Dossiês: Número 11 – Violência e Criminalização. Prazo para encaminhamento de contribuições: encerrado; Número 12 – Revolução e Contra-Revolução. Prazo para encaminhamento de contribuições: 30.03.2011. Número 13 – Educação e Ensino de História. Prazo para encaminhamento de constribuições até 30.09.2011. Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da temática estabelecida para cada dossiê. ISSN 1808-091X Militares e Luta de Classes NESTA EDIÇÃO DOSSIÊ MILITARES E LUTA DE CLASSES Vida, Luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares Mário Maestri e Helen Ortiz Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército Claudia Alves O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República Romulo Costa Mattos Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart Fabiano Godinho Faria A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa Demian Melo A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) Edina Rautenberg As AESI’s de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira Jussaramar da Silva Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75) Raquel Varela DEPOIMENTO Brizola, os Sargentos e a Luta Armada Araken Vaz Galvão ARTIGO Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões Paula Schaller RESENHA Los Argentinos Somos Derechos y Humanos Waldir José Rampinelli 9 771808 091002