A organização do sistema educacional brasileiro
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A organização do sistema educacional brasileiro
A organização do sistema educacional brasileiro e a formação na área de saúde* Maria Auxiliadora Christofaro ** Introdução Ao elaborar este texto alguns aspectos foram fundamentais no recorte do conteúdo e até na estrutura que ele acabou tendo. Um desses aspectos foi a sua inscrição no conjunto de atividades de Capacitação em Desenvolvimento de Recursos Humanos de Saúde – CADRHU. Seguramente, é esse conjunto de atividades que permitirá a análise e a compreensão mais ampla do sistema educacional brasileiro, enquanto parte do processo de desenvolvimento social. Para atenuar os limites do conteúdo e análise do texto, é imprescindível que sejam levadas em conta algumas “questões de ordem”: • a compreensão do sistema educacional brasileiro exige que não se perca de vista a totalidade social da qual o sistema educativo é parte. No presente trabalho a visão de totalidade foi tratada de forma mais descritiva que analítica por vários motivos, dentre outros, porque a intenção não é que se compreenda a sociedade brasileira para depois entender a organização do sistema educacional, mais adiante ainda, compreender a formação na área de saúde. A pretensão maior é garantir que a organização do sistema educacional e a formação na área de saúde sejam entendidos como processos imanentes da totalidade social; •o sistema escolar é um dos elementos da superestrutura que forma, em unidade com o seu contrário – a infra-estrutura – a estrutura social (Ribeiro, 1987); •entende-se infra-estrutura como os modos e os meios do homem produzir sua existência. Neste sentido as transformações, desses processos, devem ser compreendidas como alavancas que pressionam a ocorrência de mudanças na superestrutura que, por sua vez se movimenta entre dois elementos: as instituições e as idéias; * Texto de apoio elaborado especialmente para o Curso de Especialização em Desenvolvimento de Recursos Humanos de Saúde – CADRHU. ** Professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. 186 CADRHU •a relação entre a infra-estrutura e a superestrutura é uma relação determinante-determinado que não se dá de forma linear, direta e absoluta, haja vista que a superestrutura tem refletido em si a contradição fundamental da infra-estrutura – conservação x transformação. Cada uma e ambas, enquanto unidades de contrários, reagem e agem combinada e contraditoriamente, via processos de resistências, aceleramentos e recuos, intermediados por normas, regulamentos, concepções filosóficas e políticas, recursos e instituições, entre tantos outros. Tendo como referência estas “questões de ordem”, o conteúdo do texto tomou forma, privilegiando dois mediadores da organização educacional no Brasil: •as as concepções de educação – seus postulados e expressão na organização da escola brasileira; •a a organização, propriamente dita, do sistema educacional – onde a formação na área de saúde incorpora-se ao texto na forma de exemplos. Sobre educação e escola Conceitos de educação variam segundo o referencial que se toma. Esses diferentes conceitos projetam sobre a escola princípios, prescrições e finalidades, buscando torná-la a intérprete social dos seus propósitos. Em que pesem essas variações, dois pontos são igualmente contemplados nas diversas concepções: •todo processo educativo expressa uma doutrina pedagógica que, por sua vez, está assentada em determinadas filosofias de vida, concepção de homem e de sociedade; •em uma realidade social concreta, o processo educacional se dá através da família, da religião, da escola e da doutrina pedagógica que adotam.1 2 Tomando o Brasil como objeto de análise, Saviani identifica quatro grandes concepções na organização, orientação e funcionamento da escola brasileira: •a concepção humanista tradicional; •a concepção humanista moderna; •a concepção analítica; •a concepção dialética. A concepção humanista tradicional conceitua educação a partir de uma pré-determinada visão de homem, qual seja: cada homem é uma “essência imutável”. Neste sentido, propõe que a educação conforme-se à essência humana, resultando daí o entendimento de que as mudanças realizadas, via processo educativo 1 2 FREITAG, B. Escola, Estado e Sociedade. São Paulo: Editora Moraes, 1986. 6. ed. Neste texto as concepções de educação são abordadas esquematicamente. Para melhor compreensão ver: SAVIANI, D. In Filosofia da Educação Brasileira. São Paulo: Civilização Brasileira, 1987. 3. ed. p. 19-47. 187 Texto de apoio/Unidade 2 são acidentais. Nesse prisma concentra-se no adulto – homem completo – em detrimento da criança – um ser incompleto, “por fazer”. É importante distinguir na linha tradicional suas duas vertentes: uma religiosa (prevalente na idade média) e outra leiga (elaborada por pensadores modernos como “expressão da ascensão da burguesia e instrumento de consolidação da sua hegemonia” – Saviani, 1987). Entre outros princípios, esta concepção defende os sistemas públicos de ensino – leigos, obrigatórios, universais e gratuitos. Centra no educador (homem completo) o modelo a ser seguido, imitado e reproduzido pelos educandos (seres incompletos) cuja essência poderá ser potencializada ou atualizada através do processo educativo, porém jamais transformada. A concepção humanista moderna deriva seu conceito de educação de uma pré-determinada visão de homem, a exemplo do que faz a “tradicional”. Difere dessa, no entanto, quando afirma que a existência do Homem precede a sua essência, resultando daí seu conceito de homem: “um ser completo desde o nascimento e inacabado até a morte”. Defende a predominância do psicológico sobre o lógico e descola o centro do processo educativo do adulto para a criança (o educando), para a vida e para as atividades da existência. Admite formas descontínuas de educação, em dois sentidos: •considera que a educação caminha segundo o ritmo vital que varia conforme diferenças existenciais e individuais, desconsiderando, na educação, esquemas pré-definidos e lógicos; •afirma que os verdadeiros momentos educativos são “transitórios, raros, fugazes” e decorrem da predisposição e possibilidade de cada um. Em geral as propostas de reformulação de educação, fundamentadas na concepção humanista moderna, priorizam o aparato interno da escola: métodos, metodologias, relação educador-educando. A concepção analítica analítica, diferentemente das duas concepções anteriores, não embasa seu conceito de educação em uma visão apriorística de Homem. Sua formulação tem como núcleo conceitual a tarefa da educação, definida como aquela que confere significado lógico à linguagem em função do contexto. Concebe o contexto como o tempo, o lugar, a situação, a identidade, os temas de interesse e as histórias pessoais do educador e daqueles a quem este se dirige. Exclui do processo 3 educativo o contexto histórico. Sustenta o caráter utilitário da educação e a neutralidade do conhecimento. Esta concepção teve destaque, no Brasil, a partir da década de 60 quando da crise da tendência humanista moderna, predominante no período de 1945 a 1960. A concepção dialética dialética, assim como a analítica, não compreende a educação a partir de um conceito pré-definido de Homem. O conjunto das relações sociais – síntese de múltiplas determinações – como todo e partes, como contradição e interação, 3 STRAWSON, P. F. Escritos lógico-lingüísticos, citado por SAVIANI (1987) op. cit. 188 CADRHU forma a gênese dos seus postulados. Defende que à educação cabe explicitar os problemas educacionais compreendidos no contexto histórico. Essa concepção, a exemplo da humanista moderna, afirma-se na realidade. Contudo difere desta quando explica a realidade como um processo dinâmico, caracterizado pela interação recíproca do todo com as partes e com estas entre si. Forma-se no pressuposto de que mercê das contradições que lhe são inerentes, toda organização social engendra sua própria negação, evoluindo no sentido de uma nova formação social. Nessa concepção a tarefa da educação é colocar-se a serviço da formação do “novo”, que se constrói no interior do “antigo”. Frente ao tratamento esquemático e sumário que aqui foi dado as concepções de educação, impõem-se duas questões e suas respectivas respostas: •seriam as concepções de educação etapas sucessivas, isto é, uma supera e substitui a outra? Não. Elas coexistem, sobrepõem-se, interam-se e se contradizem nas organizações e processos sociais, inclusive, na organização e funcionamento do sistema educacional; •seriam as concepções de educação apenas abstrações – “formas de pensar” –, modelos teóricos que não se realizam como processo concreto? Aqui também a resposta é não. A concretização de cada uma e de todas se dá nos espaços, instâncias e instituições. Estão traduzidas, também, nos modos e meios de ordenação, de condução e de funcionamento da escola. Assumem, em cada tempo e lugar, características de maior ou menor aderência com os projetos sóciopolítico-econômicos, prevalentes nos diferentes estágios de desenvolvimento da sociedade. A propósito da articulação entre as concepções de educação e a sociedade brasileira, Saviani (1987) afirma que a organização social na qual vivemos, assumiu suas feições características com a consolidação do poder burguês e a conseqüente formulação da sua visão de mundo: o liberalismo. Chama atenção para o fato de ser o liberalismo o pano de fundo das diferentes concepções de educação com exceção, é óbvio, da concepção dialética cuja tarefa é “efetuar a crítica à ideologia liberal”.4 Apoiado nesta assertiva, esse autor ressalta que a Escola surge, no Brasil, como instrumento de realização do ideário liberal, organizando-se como sistema de ensino a partir do século XIX, apesar de existir, como função, desde o Brasil Colônia. Zanotti (1972) diz que a Escola brasileira, pensada segundo os ideais liberais, foi confiada a missão de redimir os homens do seu duplo pecado histórico: a ignorância (miséria moral) e, a opressão (miséria política). Para Cunha (1975), essa missão foi tomada pela lógica capitalista, como a maneira legal e legítima de reclassificar as pessoas das diferentes 4 Sobre o liberalismo há uma vasta bibliografia que pode ser consultada. Mas do que permitir a compreensão das concepções de educação o estudo sobre o liberalismo permitirá maior compreensão da sociedade brasileira. Sugiro dois textos: CURY, C. R. J. Ideologia e Educação Brasileira: católicos e liberais. São Paulo, Côrtez e Moraes, 1978. MATTEUCI, Nicola – LIBERALISMO. In BOBBIO, N. et al. Dicionário de política, Brasília: Edit. Universidade de Brasília, 1986. 2. ed. p. 686-705. 189 Texto de apoio/Unidade 2 classes sociais, conforme suas motivações e potencialidades inatas. A crença na escola redentora da humanidade, na sua versão original e na tradução capitalista, marca a organização do sistema brasileiro – alvo de diversos movimentos de reformas. Todos eles buscaram cumprir satisfatoriamente essa missão, e superar a insuficiência e ineficiência do próprio sistema, através da incorporação de programas e objetivos mais imediatos que emergiam do processo de desenvolvimento da sociedade. Mesmo quando o projeto social privilegiou os sistemas não escolares, como forma de produzir o cidadão útil à Nação, foi conferido à Escola o papel de realizar a produção do saber dito “literário” ou “desinteressado”, atrelando o sistema escolar aos sistemas não escolares pelo postulado da neutralidade do conhecimento. Nessa perspectiva, a articulação das concepções de educação com a sociedade brasileira é estrutural e se sustenta nas práticas e projetos sociais, através dos quais os interesses, os princípios e os pressupostos do grupo social dominante tornam-se propósitos e valores do senso-comum, ideologia compartilhada pelo conjunto de sociedade. É essa lógica que torna o pensamento liberal hegemônico e a burguesia além de classe dominante, também dirigente. Tal constatação não anula os antagonismos da sociedade de classe, sobre a qual se apóia e conforma o modo de produção capitalista. Pelo contrário, os interesses conflitantes e, até, inconciliáveis das diferentes classes formam a base de difusão do liberalismo e de consolidação do poder burguês. Tomando como parâmetros que os projetos de organização e desenvolvimento da sociedade brasileira têm como fundamento o liberalismo e que a escola brasileira, nesses projetos, foi organizada para realizar o ideário do pensamento liberal, vale identificar os vários “desenhos” de escola e de sistema escolar brasileiro que foram realizados. No século passado, a escola tinha como perspectiva assegurar o direito a educação para todos com qualidade, gratuidade e laicidade. A expectativa da classe dominante era que os membros das classes subalternas, uma vez instruídos, se ajustariam ao projeto dominante. O entendimento que perpassa esta expectativa é que a instrução transforma “súditos em cidadãos” e, no caso, cidadão é aquele que se adapta ao modelo de organização social dominante. Fato é que no início do século atual, em especial depois da Primeira Grande Guerra, a avaliação da escola indicava que as esperanças nela depositadas haviam sido frustradas: “ [...]Nem todos nela ingressavam e mesmo os que ingressavam nem sempre eram bem sucedidos [...] além do fato de que nem todos os bens sucedidos se ajustavam ao tipo de sociedade que se queria consolidar”. (SAVIANI, 1986). Esta avaliação fundamentou o primeiro movimento de reforma da Escola no Brasil. O projeto inicial, construído à luz da concepção tradicional, foi “substituído” pelo da escola-nova cujos postulados conformam a concepção humanista moderna. Enfatizando a qualidade do ensino ensino, o escolanovismo desloca o centro de organização da escola do professor para o aluno e, mais que isso, desloca o eixo de preocupação 190 CADRHU da educação: do âmbito político (relativo à sociedade em seu conjunto) para o âmbito técnico-pedagógico (referente ao interior da escola). O escolanovismo colaborou para a melhora da qualidade de ensino mas, dado aos poucos recursos da rede escolar pública, esta melhora restringiu-se aos centros escolares experimentais. A escola pública, sem recursos financeiros e humanos para adotar e realizar o que promulgava a pedagogia nova, levou dela apenas os postulados. Assim é que o movimento da escola nova, desencadeado para corrigir o que havia sido “mal feito” pela escola tradicional resulta, simplesmente no que Saviani (1987) identifica como “recomposição de hegemonia da classe dominante”, que à época encontrava-se ameaçada pela crescente participação política de seguimentos de trabalhadores, que reivindicavam escola universal e gratuita para todos, como apresentava-se à classe dirigente. No fim da primeira metade do século atual acentuam-se as críticas à escola-nova. O modelo econômico dominante, com o avanço do capitalismo monopolista, já contava com outros mecanismos de recomposição da hegemonia da classe dominante: os meios de comunicação de massa e a tecnologia industrial. Nesse momento o eixo do projeto social deslocou-se para o desenvolvimento da indústria. À escola coube, nesse projeto, incorporar a lógica que presidia a produção ou elaborar um saber extemporâneo. Surgem alternativas de todos os matizes buscando suprir insuficiências acumuladas, incorporar as contribuições da escola-nova e superar as críticas que enquadravam o sistema e organização educacional como mecanismos formais de instrução. Apesar desses projetos pretenderem contrapor-se à escola tecnicista, é ela que ganha terreno e a adesão da sociedade. A partir da década de 60 a escola brasileira – sua organização e funcionamento – compõe um cenário desorganizado e polêmico: uma estrutura tradicional, com ideário escolanovista e objetivos tecnicistas. Sob a crítica sócio-estrutural das tendências crítico-reprodutivistas de educação5 e sob a pressão dos setores sociais que buscam tornar de fato todos aquilo que a sociedade liberal aponta como de direito de todos, a escola e a educação brasileira articulam-se ao projeto social, ora como aparelho do Estado, ora como instrumento de luta social. A organização do sistema educacional no Brasil: a formação na área de saúde como exemplo Partindo das considerações anteriores, o propósito agora é identificar, na evolução da sociedade brasileira, como se deu a organização do sistema educacional como parte do processo de análise, a formação na área de saúde. Para realizar esta tarefa impõe-se, em primeiro lugar, reconhecer que a reflexão sobre a educação no Brasil (como decerto a reflexão sobre qualquer organização social brasileira) deve ser feita na perspectiva da dependência; em segundo lugar, faz-se necessário adotar uma periodização histórica, apenas para facilitar a localização dos fatos e não para 5 Sobre as tendências crítico-reprodutivistas ler Saviani, D. Escola e Democracia. Coleção Polêmicas do Nosso Tempo. São Paulo: Edit. Autores Associados e Cortez Editora, 1986. v. 5, 10. ed. p. 07-36. 191 Texto de apoio/Unidade 2 explicá-los. Combinando Freitag (1986) e Ribeiro (1989), a periodização adotada tem como base os modelos econômicos predominantes em largos estágios do desenvolvimento da sociedade brasileira, destacando em cada um a Escola: como foi pensada e realizada. eríodo (de 1500 a 1930) – abrange o Brasil Colônia, Império •Primeiro Período Primeiro P e Primeira República, quando prevaleceu o modelo agro-exportador de economia e a concepção tradicional de educação; Segundo P eríodo (de 1530 a 1960) – coincide com a crise do modelo •Segundo Período econômico anterior e a estruturação do modelo nacional-desenvolvimentista e de industrialização da economia, quando entram em cena as concepções humanista, moderna e analítica; eríodo (de 1960 até os dias atuais) – caracterizado como •T Período Terceiro P internacionalização do mercado interno de “internacionalização interno” (expressão consagrada implementação do modelo assopor Cardoso e Faletto – 1971), ou de “implementação ciado de desenvolvimento desenvolvimento” onde todas as concepções de educação têm lugar. O primeiro período – de 1500 a 1930 Este primeiro período pode ser recortado em vários outros. Em todo ele e nos seus recortes são identificáveis diferentes etapas na organização e funcionamento da Escola. No entanto, os aspectos que foram priorizados neste texto referem-se, basicamente ao último século do período. Da sua fase inicial merece destaque o Regimento da Colônia, de 1548, que regulamentava “a conversão dos indígenas à fé católica pela catequese e instrução”. Para concretizar esse propósito chegam à Colônia os padres jesuítas, vindo da metrópole. Apesar de terem sido transitoriamente expulsos em 1759, os jesuítas implantam as bases, estrutural e funcional, da escola brasileira que, diferentemente do que estava previsto no Regimento, instala-se como direito de todos e não apenas da população indígena. Considerando que a sociedade brasileira, no início desse período, era organizada para garantir o modelo agro-exportador (a sociedade política estava reduzida às representações da Metrópole: a monocultura latifundiária não dependia de mão-de-obra qualificada ou diversificada; o tráfico de africanos assegurava a reprodução da força de trabalho; a organização da produção garantia a estrutura de classe; a instrução das elites acontecia em Portugal ou no seio da família) cabe perguntar: que papel esta escola desempenharia? Anísio Teixeira (1989), afirma que em relação à instrução e catequese, o objetivo real era a aculturação dos habitantes silvícolas na perspectiva da sua escravização via processo de cristianização. Para este autor o que ocorreu no Brasil, via processo de instrução/cristianização, não pode ser comparado nem com o da Idade Média operado em um contexto social em fermentação com o real homogeneidade do tempo histórico. Para ele, o caso brasileiro dadas as suas feições e resultados só tem similaridade com o processo ocorrido na Antiguidade. Contudo, a instrução, como mecanismo de escravização da população indígena, fracassa, levando 192 CADRHU a Colônia a importar escravos da África, o que faz surgir na nova terra uma população miscigenada. Diante dessa realidade, a Metrópole repensa sua intenção inicial de catequese e instrução somente para índios e torna a escola um direito de todos todos. Apesar de permanecer regimentalmente estabelecidas as funções de catequese e de instrução da Escola, na realidade, os caminhos adotados pela Coroa, para implantar a Escola para todos não foram os mesmos: •para as populações indígenas: a catequese; •para os mamelucos, órfãos e filhos dos principais caciques da terra: a instrução através dos internatos (recolhimentos). Posteriormente, foram criados colégios e seminários destinados aos filhos dos colonos brancos, em regime de externatos. Os jesuítas, responsáveis por este “sistema”, tornam a Igreja participante privilegiada da sociedade civil e política da época e a Escola um instrumento de grande alcance na reprodução dos valores de uma cultura externa, embasada na visão liberal, já consolidada na Europa. Se a EscolaFunção foi a característica do Brasil-Colônia, a Escola-Estrutura (organizada e regulamentada nacionalmente) conforma-se no projeto da sociedade somente no último século desse primeiro período. A partir de 1808, o aumento numérico de escolas de instrução básica é acompanhado da criação de colégios e cursos cuja a finalidade precípua era formar profissionais. Nascem assim os primeiros cursos de Medicina e Direito, os primeiros cursos técnicos de artes e ofícios e os colégios militares. Apenas para ressaltar a tônica da ampliação da rede escolar à época, vale recorrer a alguns analistas desse processo. Para Teixeira (1989) “...o sistema escolar era o de formação de clero ou de legista ou do canonista, na forma em que a concebia o RATTIO STUDIORUM dos jesuítas, elaborado no século XVI e mantido até a metade do século XVIII, quando surgem as primeiras críticas à escola, representadas por controvérsias pedagógicas”. Quanto ao ensino de ofícios, a retrospectiva histórica feita por Machado (1989), demonstra o seu caráter fragmentário e dispersivo, cujo os primeiros regulamentos datam de 1826. Importante ressaltar que deste o seu surgimento a escola de ofícios se diferenciava da escola secundária, preparatória para os cursos profissionais. Os “considerandos” que justificam o Decreto Nº 7566/1909, retratam com nitidez a “função” do ensino técnico e o seu “lugar” na sociedade: •considerando que aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias e os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência; •considerando que para isto se torna necessário não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastarão da ociosidade, escola do vício e do crime; •considerando que um dos primeiros deveres do Governo da República é formar cidadãos úteis à Nação. 193 Texto de apoio/Unidade 2 O Estado assumia, como se vê, que o ensino técnico estava dirigido as camadas desfavorecidas da população. Esta predestinação, tão explicita até então, só será escamoteada após a década de 30, quando o Estado adota uma linguagem “refinada de ocultamento” do caráter de classe que sustenta o sistema escolar. Vale lembrar que em 1927 foi aprovado, após cinco anos de debate um projeto que definia o ensino profissional obrigatório na escola secundário. No entanto, a oposição das “classes mais favorecidas” deixou-o sem validade uma vez que, estando aprovado, não foi executado. Quanto ao ensino primário (instrução básica), o primeiro levantamento feito compreende o período de 1907 a 1912 e refere-se apenas ao Distrito Federal. No entanto, outros estudos ilustram a situação da escola primária em momentos bem significativos: “...em 1889, os alunos matriculados, na escola primária, correspondiam a cerca de 12% da população em idade escolar e em 1930 já havia subido a cerca de 30%”. (BASBAUN, 1962, citado por Machado, 1989); “durante a República, o desenvolvimento do ensino primário se exprime pelos seguintes números de alunos por mil habitantes: 18 em 1889, 41 em 1920, 54 em 1932”. (SILVA, G. B. 1969, 319). No fim do Império e início da República são delineados os primeiros traços de uma política educacional estatal-fruto do fortalecimento do Estado, sob a forma de sociedade política. A primeira Constituição Brasileira (promulgada em 1824) substituiu a proposta de uma política nacional de ensino pela regulamentação da “instrução primária gratuita a todos os cidadãos” e, pela “criação de colégios e Universidades onde serão ensinados os elementos das ciências, belas artes e artes”. Aliás, em relação à escola primária, a Lei de 15 de outubro de 1827 foi a única lei geral sobre este nível de ensino, até 1946. Um destaque deve ser dado para o Decreto nº 7.147/1879, que dispõe sobre “a reforma do ensino primário e secundário no Município da Côrte e o Superior em todo o Império”. Nele estabelece-se que “é completamente livre o ensino primário e secundário no município da Côrte e o superior em todo o Império”; define-se também que “até se mostrarem habilitados em todas as disciplinas que constituem o programa das escolas primárias do 1º grau, são obrigados a freqüentá-las, os indivíduos de um e outro sexo, de 7 a 14 anos de idade”. Ressalta-se porém que esta obrigação não compreendia aquelas crianças cujos pais, tutores ou protetores provassem que recebiam instrução conveniente, em escolas particulares ou em suas próprias casas e aqueles que residissem distante da Escola Pública ou subsidiadas mais próximo (“de um e meio quilômetro para os meninos, e de um quilômetro para meninas”). Para alguns autores foi o Governo Republicano quem proporcionou maior crescimento de oportunidades escolares. Ressaltam porém, que até 1907 o tipo comum de escola primária era a de um professor e uma só classe, congregando vários níveis de 194 CADRHU alunos. Contudo é da Primeira República o aparecimento dos primeiros “grupos escolares”, através dos quais se pretendeu assegurar o acesso universal e a gratuidade da escola. À época, as instituições particulares, especialmente de caráter religioso, também se duplicaram. Dedicavam-se, prioritariamente, ao ensino secundário, preparatório para os cursos profissionais superiores. Como os grupos escolares não conseguiam atender a todos e as escolas particulares eram caras e não se destinavam a formar técnicos e artífices, o sistema educacional começa a demonstrar, não só seu caráter de classe, como também sua insuficiência. De 1920 a 1930, a escola pública mostra sinais de recuperação quando ocorre um pequeno aumento do número de pessoal docente porém, paralelamente, há significativa diminuição no número de matrículas. A insuficiência do setor em oferecer a instrução primária para todos resulta em um ponto de estrangulamento, permanente até hoje, na organização escolar: a escola tem, por um lado, o signo da elitização e, por outro, o da produção de iletrados e analfabetos. Se em 1548 o “universo” a quem se destinava a escola era a população indígena, a partir do Império passou a ser a elite. A declaração de Afrânio Peixoto, em 1923, citada por Ribeiro (1989), apesar do simplismo das relações que apontam, merece destaque porque identifica esta dupla e contraditória “função” da escola: “Sobre a formação das elites [...] no Brasil está processando a seleção dos incapazes feita pelo ensino secundário. Na escola primária, o filho do rico, irmanado com os do pobre, são bons e maus alunos, mas como os pobres são infinitamente mais numerosos, se tem numerosos alunos maus e também, muitos bem dotados: digamos, se em dez ricos há um aluno inteligente em noventa pobres, haverá nove alunos iguais a esse rico [...]. Quando começa o ensino secundário o pobre não pode freqüentá-lo: o liceu, o ginásio, o colégio custam muito caro. Os noventa pobres vão para as fábricas, para a lavoura, para a mãode-obra. Os dez ricos, esses farão exames, depois serão bacharéis, médicos, engenheiros, jornalistas, burocratas, políticos: constituirão a elite nacional [...]. Mas como nesses dez, apenas um é inteligente, nossa ‘elite’ tem apenas 0,1 de capacidade”. A organização política advinda com a Proclamação da República apoiou-se na descentralização político-econômica, refletindo-se também na organização escolar, como evidenciado no texto da Constituição de 1891: à União compete privativamente legislar sobre o ensino superior na capital da República, cabendo-lhe, mas não privativamente, criar instituições de ensino secundário nos Estados e promover a instrução no Distrito Federal... A partir destas definições a Escola se organiza em graus de ensino: o 1º grau para crianças de 7 aos 13 anos e, o 2º grau para crianças a partir dos 13 anos. Uma das intenções era que os diversos níveis de ensino se tornassem “formadores” e não apenas preparadores para o grau seguinte. A entrada nos cursos superiores, seria precedida de exames (no final do curso secundário) objetivando medir a capacidade intelectual dos alunos. Outra intenção era assegurar que a formação no 2º grau ocorresse tendo como base a ciência, substituindo assim o que chamavam “academismo literário”, criticado 195 Texto de apoio/Unidade 2 como resultado do predomínio da escola tradicional. As controvérsias e propostas de reformas giravam em torno de dois dilemas: •formação humana x preparação para o ensino superior; •formação humana baseada na ciência x formação humana baseada na literatura. O que resulta desse impasse é que tanto o ensino primário como o secundário, tornam-se enciclopédicos. Acresce-se ao conteúdo tradicional os conteúdos ditos científicos, não resolvendo o dilema nem ao nível das idéias nem ao nível da suficiência da Escola. Na prática, a escola se manteve como preparadora daqueles que iriam ingressar no grau de ensino subseqüente. O impasse entre a predominância de conteúdos da escola humanista clássica ou da escola realista-científica, conjugando com a profusão de métodos e parâmetros pedagógicos, formam o caldo de cultura gerador de uma série de reforma na organização escolar, no período que vai de 1900 a 1930. A Escola, mais uma vez, aparece como algo sem solução, em especial para aqueles que “esqueciam” a questão central: a dependência cultural e econômica e a marginalização e exclusão de grande parte da população, dos benefícios resultantes da modernização porque passava a sociedade brasileira, nos primeiros tempos da República, como vêm provar os dados sobre o analfabetismo de mais da metade da população (Tabelas 1 e 2, a seguir). Tabela 1 Índices de analfabetismo da população brasileira para pessoal de todas as idades em 1890, 1900 e 1920 Brasil, 1936 Especificação Sabem ler/escrever 1890 1900 1920 2.120.559 4.448.681 7.493.357 Não sabem ler/escrever 12.123.356 12.959.753 23.142.248 TOTAL 14.333.915 17.398.434 30.635.605 85 75 75 % de analfabetos FONTE: Instituto Nacional de Estatística Anuário Estatístico do Brasil, ano II, 1936, p. 43 Tabela 2 Proporção de analfabetos na população brasileira de quinze anos e mais em 1890 e 1920 Brasil, 1966 Especificação Sem declaração Sabem ler/escrever Não sabem ler/escrever TOTAL % de analfabetos 1890 22.791 3.380.451 6.348.869 9.752.111 65 1900 ——6.155.567 11.401.715 17.557.282 65 FONTE: FERNANDES, Florestan – Educação e Sociedade no Brasil - 966, Quadro 1 p. 47. Este quadro de analfabetismo torna-se um problema cada vez maior, em especial no contexto urabano-comercial e desenvolvimentista que marca a sociedade 196 CADRHU brasileira a partir de 1930. Asbaum (1962), citado por Ribeiro (1989), ao referir-se a esse período afirma que ...éramos um país de Doutores e analfabetos. A situação escolar que caracteriza o período é a seguinte: cursos secundários para poucos; nenhum incentivo à formação de professor; poucos recursos para a escola pública; aumento do número de escolas particulares e cursos superiores para formar bacharéis. Quanto ao curso superior, vale ressaltar que desde o Brasil Colônia era reivindicado, à Coroa Portuguesa, a criação da Universidade Brasileira. No entanto, só com a transferência da Côrte para o Brasil são criados os primeiros cursos superiores profissionais e alguns centros de referência. Sem estarem organizados enquanto Universidade, eram cursos isolados, entendidos como vocacionais ou profissionais, devendo produzir o saber dito útil, aplicado, imediato. Será esta visão e entendimento que orientará a organização da Universidade do Brasil, em 1920, no Rio de Janeiro – quase sem anos depois da primeira Constituição referir-se a ela. A Universidade Brasileira nasce, portanto, “vinculada ao saber utilitário restrito e isolado de cada profissão, esquecida a sua função formadora da cultura nacional e da cultura científica” (Teixeira, 1989). Essa ambigüidade entre cultura acadêmica e cultura utilitária vai ser fundamental na formação da atitude do brasileiro: “julgar poder e valorizar apenas a importação da cultura e não a sua criação a partir da realidade, contexto e problemas nacionais”. A formação na área de saúde, restrita aos cursos isolados, recebe os primeiros projetos de organização nacional quando se pretendeu, através da ação de estado, estabelecer estratégias de dominação e de controle médico do conjunto da sociedade. Partindo do postulado da utilidade imediata de determinada ocupação são organizadas as Academias Médico-Cirúrgicas do Rio de Janeiro e Bahia (Lei de 03 de outubro de 1832). Nelas são incluídos os cursos anexos de “Pharmacêutico” e o de “Parteira”. Os pré-requisitos de entrada apontam diferenças significativas em relação ao curso de Medicina, identificado na lei como curso de nível superior: Art. 22 – o estudante que se matricula para obter o título de doutor em Medicina deve: •1º – ter pelo menos dezesseis anos completos; •2º – saber latim, qualquer das duas línguas Francesa ou Inglesa, Philosophia racional e moral, Arithmética e Geometria. O que se matricula para obter o título de Pharmacêutico, deve: 1º – ter a mesma idade; 2º – saber qualquer das duas línguas Francesa ou Inglês, Arithmética, Geometria, ao menos plana. A mulher que se matricula para obter o título de parteira, deve: 1º – ter a mesma idade; 2º – saber ler e escrever corretamente; 3º – apresentar um atestado de bons costumes passado pelo Juiz de Paz da freguesia respectiva. Esta lei faz referência a médicos, cirurgiões, boticários e parteiras “legalmente autorizados em virtude de leis anteriores”. Proíbe que pessoas, sem título conferido ou aprovado pelas Faculdades criadas, possam “curar, ter botica, ou partejar” fazendo supor que estas profissões já eram exercidas sem que seus 197 Texto de apoio/Unidade 2 exercentes tivessem a formação específica. A Escola de “nível superior” que objetivava a formação de profissionais para a área de saúde, se constituiu, portanto, tendo como eixo a formação do médico e, como apêndices, os outros cursos. O curso de parteira, restrito às mulheres, tinha requisito de entrada que ultrapassava os de escolaridade e de idade: o atestado de bons costumes. Quanto ao pré-requisito da escolaridade constatam-se outras diferenças que nos leva à suposição de que existiam, dentro das Faculdades Médico-Cirúrgicas, apenas um curso superior: o de medicina, cuja conclusão conferia o título de “Doutor em Medicina”. Os cursos de farmácia e de parteira, por distinguirem-se entre si e ambos com o curso médico eram cursos de “outro nível”. Como também se diferenciavam dos cursos não se enquadravam em nenhuma norma de ensino até então existente. Estudando a evolução da organização e estrutura do ensino superior deparamos com a equiparação legal dos profissionais formados nestes primeiros cursos com o farmacêutico e o enfermeiro, formados posteriormente, quando os cursos de farmácia e enfermagem foram regulamentados como cursos superiores. De 1808 até 1930 foram aprovados vários decretos regulamentando os cursos formadores de profissionais de saúde (médico, farmacêutico, mestre em obstetrícia, parteira, odontólogo), todos anexos às Faculdades de Medicina. Diferentemente do Decreto de 1879, os novos decretos referentes ao ensino superior foram descolados das reformas do ensino primário e secundário. Sobre a organização que se deu nos cursos superiores da área de saúde merece salientar a regulamentação do curso de enfermagem que não foi criado como anexo à Faculdade de Medicina mas a um Hospital (o Hospital Nacional de Alienados do Rio de Janeiro - Decreto nº. 791 de 27 de setembro de 1890). Outro aspecto que chama a atenção é que para os cursos da área de saúde até então existentes, os conteúdos eram designados na sua forma substantiva: physiologia, anatomia, pharmacologia, obstetrícia. Na regulamentação do curso para formação de “enfermeiro e enfermeira” este conteúdo é qualificado: “noções práticas”, “noções gerais”, “cuidados especiais à certas categorias de enfermos”, entre outros. Também pela primeira vez, em um curso da área de saúde, são incluídos conteúdos referentes à “administração interna e escrituração do serviço sanitário e econômico das enfermarias”. Outra diferença marcante desse curso, em relação aos já existentes, é a matrícula de alunos externos e internos (alguma relação com os Recolhimentos dos Jesuítas?). Foram previstos aposentos, alimentação e gratificação de 20 mil réis (no primeiro ano) e de 25 mil réis “após a primeira aprendizagem” para os alunos internos, a quem cabia “coadjuvar os empregados do estabelecimento no serviço que lhes foi designados”. Como pré-requisito de entrada, além da idade e apresentação de atestado de bons costumes, a escolaridade exigida era apenas “saber ler e escrever corretamente e conhecer aritmética elementar”. Além das normas relativas à formação de vários profissionais de saúde, a regulamentação do Hospital Geral de Assistência, do Departamento Nacional de Saúde Pública (Decreto nº. 15799/22) vem ao encontro das necessidades de 198 CADRHU saúde delineadas pelo modelo econômico e abre um novo espaço de prática para os profissionais de saúde: o trabalho de fiscalização e controle sanitário. O regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública (Decreto nº. 16300/ 1923) refere-se à normas e/ou funções dos seguintes profissionais de saúde: médico, farmacêutico, cirurgiões dentistas, enfermeiros, parteiras, massagistas, manicuros, pedicuros, optometristas, visitadores de higiene, enfermeiras práticas, inspetores de serviços de saúde. Em 1925, o Decreto nº. 16.782A “estabelece o concurso da União para a difusão do ensino primário, organiza o Departamento Nacional de Ensino e reforma o ensino secundário e o superior”. Esse decreto suprime o curso de parteira e cria um curso para “as enfermeiras das maternidades, anexas às faculdades de medicina”. No período de 1500 a 1930 predominou na escola brasileira, como função sistema, a tendência humanista tradicional. No entanto, o dado de maior significância do período é, sem dúvida, ter a educação escapada do âmbito exclusivo da sociedade civil para o âmbito da sociedade política, graças ao fortalecimento do Estado, sob a forma da sociedade política. Para a formação na área de saúde, o aspecto de maior relevância foi a regulamentação do Departamento Nacional de Saúde Pública e do seu Hospital Geral de Assistência. A regulamentação dos serviços médicos do Exército e a Lei Eloy Chaves também foram marcos de reorientação da formação e ampliação de vagas nos cursos existentes. Merece lembrar que as Santas Casas de Misericórdia, criadas desde o século XVI, estão na gênese da absorção de trabalhadores de saúde sem qualificação específica e na adoção da estratégia do “treinamento”, para “formar” pessoal de saúde, mantendo ao mesmo tempo os serviços de saúde. Fundamentalmente, até 1930, o sistema educacional brasileiro não contemplou a formação escolar de profissionais de saúde ao nível de ensino médio. Segundo período – de 1930 a 1960 Este segundo período é marcado por intensa movimentação e tensão. O ápice da crise mundial, em 1929, provoca no Brasil transformações estruturais importantes: •a substituição da importação de bens de consumo por produtos nacionais, o que fortalece a indústria nacional e a nova burguesia urbano-industrial; •a diversificação da produção e relativização do poder econômico dos cafeicultores, levando tanto o Estado como a sociedade civil à significativas reestruturações. Destes movimentos emergem novas forças sociais (surgidas das modificações da estrutura econômica) e graves confrontos com o governo e com o poder estabelecido. A burguesia indústrial, o operariado, a classe média ou pequeno burguesia das cidades (representada pelos funcionários públicos, militares, empregados do comércio, intelectuais e profissionais liberais) ora polarizavam entre 199 Texto de apoio/Unidade 2 si, ora articulavam-se contra a orientação do Governo. Para o Governo o desenvolvimento da sociedade produzir-se-ia com o desenvolvimento do modelo capitalista, mesmo que dependente. O movimento das forças sociais, em que pesem recuos e avanços, pretendia romper com a dependência externa e reorientar o desenvolvimento no sentido da transformação econômica, política e social, cujo resultado desejado era o crescimento automático e autônomo do padrão de vida de toda a população e não de pequena parcela. Para Basbaum (s.d.) a Ditadura Vargas (1937-1945) não se estabelece apenas como forma de assegurar o desenvolvimento pretendido pelo Governo mas sim porque este não tinha base em uma classe social econômica que dominava os meios de produção, restando-lhe, como forma de governar, apenas a força. Mergulhado nesse processo de conflito interno o Brasil aproveita a rivalidade dos centros imperialistas (EE.UU, Alemanha, Inglaterra), na Segunda Guerra Mundial, para negociar “melhores condições de aplicação e pagamento dos empréstimos, em troca do seu apoio a um ou outro” (Ribeiro – 1989). Com o fim da Segunda Grande Guerra e derrota dos países do Eixo o Brasil amarra-se “definitivamente com os EE.UU., único país capitalista que sobrou da Segunda Guerra Mundial em condição de sobrevivência. E é quando começa realmente a penetração norte-americana no país, que irá atingir o apogeu em 1955” (Basbaum, s.d. 153-4). Essa conjuntura gera orientações e reorganizações político-econômicas no mundo e no País. Os confrontos de idéias e práticas estabelecidas contam com a participação de toda sociedade – instâncias políticas, sociais e institucionais. Nesse sentido a Escola e a educação reassumem um espaço privilegiado no projeto social, mantendo, no entanto, a convicção de que seus “fracassos” até então diagnosticados estavam na forma de fazer escola e não nos seus conteúdos, no acesso restrito e na falta de recursos. Diferentemente do final do período anterior, quando à escola restou apenas denunciar sua própria insuficiência e precariedade, esta época marca a escola como importante instância política, em que pese o refluxo das idéias no Estado Novo. A concepção humanista moderna, delineada na década anterior, toma impulso e sustenta o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). Para Nagle (1974) “[...] a multiplicação de escolas e a disseminação da educação escolar permitirá a incorporação de disseminação da educação no processo de desenvolvimento grandes parcelas da população no processo de desenvolvimento nacional e o Brasil caminhará no sentido das grandes nações do mundo”. Sobre a “doutrina” que se pretendia consolidar o autor afirma que: “determinadas doutrinas sobre a escola e o processo de escolarização indicam os verdadeiros caminhos para a formação do homem brasileiro”. Entra em cena, como texto principal, a concepção humanista moderna e os seus defensores. No entanto, por “debaixo do pano” já fermentava o dilema da “escola literária” versus o “aprender útil” defendido como sendo de aplicação imediata, menos 200 CADRHU demorado e direcionado para a produção do desenvolvimento. Os pioneiros da educação, contrários a essa “idéia” de escola, apresentam um projeto de sistema educacional, baseado no pressuposto de que medidas educacionais deveriam ser tomadas e apoiadas a partir de um programa educacional amplo, com unidade de propósitos e seqüência determinada. Propunham a organização de cursos acadêmicos e profissionais em um mesmo estabelecimento; combatiam o dualismo entre ensino profissional e cultural sendo contrários ao centralismo que confundia unidade com uniformidade. O movimento dos “pioneiros” marcou o tipo de escola e sistema escolar da época, mas não impossibilitou o crescimento da escola tecnicista. Com a criação do Ministério da Educação e Saúde (1930), houve uma reformulação no ensino que abrangeu todos os graus (Decretos n. 19851, n. 19852 e n. 19890). Em relação ao ensino superior, determinava a organização dos cursos isolados em Universidades e exigia que estas se estabelecessem, obrigatoriamente, com um mínimo de três institutos: Medicina, Direito e Engenharia. Permitia-se a substituição de um desses institutos pela Faculdade de Ciências e Letras que “deveria dar, ao conjunto de Faculdades integradas à Universidades, o caráter especificamente universitário pela cultura desinteressada [...] e, por sua função sintetizadora”... (Miranda, 1966). Quanto ao ensino secundário, a reforma objetivou imprimir-lhe “caráter eminentemente educativo” e o dividiu em duas etapas: •a primeira, com cinco anos (fundamental), deveria formar o homem através de “hábitos, atitudes e comportamento, habilitando a viver integralmente e capacitando-o à decisões convenientes e seguras, em qualquer situação” (Miranda, 1966). •a segunda, de dois anos, objetivava adaptar o aluno às futuras habilitações profissionais. Praticamente estas reformas vinham responder ao projeto dos Pioneiros da Educação. O ensino técnico, no entanto entra nesse ciclo como forma de privilegiar a corrente tecnicista que é atrelado à organização e estruturação da produção industrial. Na Constituição de 1937, o ensino técnico é objeto de definições, estabelecendo-se formalmente sua clientela: as classes menos favorecidas. A Constituição anterior (1934), elaborada em momento de grande embate dos grupos “conservadores” e “modernos” apresenta pontos bastante contraditórios, já que buscou harmonizar interesses desses dois grupos, em torno da definição de que à União caberia estabelecer um plano nacional de ensino contemplando todos os níveis e graus, o que só será definido em 1937. O período de 1930-1937 foi especialmente fecundo do ponto de vista do debate sobre a educação no Brasil, facilitada, inclusive, pela indefinição do governo diante das duas principais correntes que se opunham. Tais tendências e grupos combatiam o princípio do monopólio do ensino pelo Estado, identificado por ambos como um princípio de sustentação tanto do Estado Fascista como do Estado Comunista. Uma análise mais acurada da situação demonstra, porém, que os dois grupos oponentes estavam pactuados no postulado básico e fundamental do liberalismo: a defesa do individualismo e 201 Texto de apoio/Unidade 2 jamais de qualquer outro organismo, instituição ou ideologia. No entanto, o que aparecia para o grande público era a oposição entre escola pública e escola privada, entre o ensino leigo e confessional, entre o saber literário e o saber útil. Na verdade, a luta era entre duas formas de defesa de interesses particulares: a forma “conservadora” (identificada com as tendências humanistas) e a forma “moderna” (tecnicista). Apesar das múltiplas reformas do ensino e da promulgação de três cartas constitucionais, também nesse período, o sistema educacional brasileiro não chegou a responder satisfatória e suficientemente a situações como: •a a melhora do rendimento escolar – a variação de aprovação nos vários níveis de ensino, ficou em torno de 41% e 88% nos graus primário e secundário, respectivamente; o aperfeiçoamento administrativo – em 1937, 81% das unidades esco•o lares funcionavam como escolas isoladas; •o o alto grau de seletividade da escola – um grande número de alunos deixou de concluir o curso secundário e superior em relação à conclusão do primário. Como exemplo, temos que em 1936, 195.475 alunos concluíram o ensino elementar, enquanto 26.561 concluíram o secundário e 6.617 o superior – INEP, o ensino no Brasil no quinquênio 1932-36, p. 35; •a a bifurcação dos caminhos escolares após o primário – para o povo escolas técnicas e para a elite as escolas secundárias preparatórias para o curso superior. Em 1942 a Reforma Capanema abrange o ensino secundário e o técnico-industrial, afirmando que daria resposta a essas questões. Para tanto modificou os ciclos de estudo: quatro anos (ginasial) e três anos (colegial). Este último seria oferecido em duas modalidades: o científico e o clássico, ambos permitindo o ingresso em qualquer curso superior. No entanto, o que vai acontecer na prática, é que a ênfase dada às “letras”, no curso clássico, dirige seus egressos para as Faculdades de Filosofia, Letras e Direito e o científico, voltado para as ciências, orienta seus concluintes para os cursos da áreas de saúde, biológicas e engenharias, e nenhum deles é “dirigido” às classes baixas da sociedade. O ensino médio industrial também foi regulamentado em dois ciclos: um de quatro anos para formar artífices especializados em escolas industriais e o outro, de três anos, a ser ministrado em escolas técnicas para formar técnicos especializados. Uma variação sobre este “tema” foi a regulamentação da formação de normalistas com três anos após o ginasial que não se concentrava nem nas “letras” e nem nas “ciências” mas em cadeiras ditas pedagógicas. Estruturou-se o ensino comercial, como o ramo do ensino médio. Na verdade, a Reforma Capanema que vigorou até 1961, quando foi aprovada a atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB), pensou cada grau e ramo de ensino como forma de “orientar” o ingresso da clientela na escola conforme sua classe social. O ensino superior não recebeu, no período, a mesma atenção, em que pese o aumento no número de matrículas. Para a área de saúde a formação regulamentar e oficial mantêm, na época, os cursos já criados anteriormente. Destaca-se o fato de 202 CADRHU que na reorganização da Universidade do Brasil (Lei n. 452/37) o Instituto de Medicina compreendia o curso de Medicina, os cursos anexos já referido, exceto a Escola de Enfermagem Ana Neri, incorporada à Universidade como instituição complementar, semelhante ao Colégio Universitário. Interessante observar que essa Lei define que o curso em questão destinava-se ao ensino de enfermagem e, curiosamente, ao ensino de serviço social. As ocupações e profissões da área de saúde que não estavam na Universidade continuavam sendo formadas via treinamento nos serviços e Instituições de Saúde (pública e privada) e também através do Exército, da Marinha, e da Aeronáutica e Departamento Nacional de Saúde Pública – DNSP. Merecem destaque as normas de fiscalização do exercício profissional, executadas pelo DNSP, através da Inspetoria de Fiscalização do Exercício da Medicina; seu exame ajuda a esclarecer a conformação do processo de formação profissional na saúde. Nelas estão regulamentados o exercício de práticos de farmácia e de enfermagem, técnicos de massagens e laboratórios, ortopedistas e parteiras. A permissão para exercer estas ocupações exigia dos interessados comprovação de experiência em serviços de saúde e prestação de exames e provas, perante comissão julgadora. Não havia referência à escolaridade ou cumprimento de qualquer atividade escolar como pré-requisito. A única exceção, no período, foi a formação do auxiliar de enfermagem que teve sua preparação escolar regulamentada em 1946. Todos os demais “técnicos de saúde” passavam apenas pelas bancas examinadoras designadas pelo Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina (no Distrito Federal) e pelos Diretores dos Departamentos Estaduais de Saúde, quando o exame acontecia nos Estados. Quem seriam os candidatos a esses exames? Que classe social fornecia essa clientela? Considerando que a burguesia (rural, urbana, financeira e industrial) gerava a clientela dos cursos secundários particulares e dos cursos superiores; que a pequena burguesia e as classes médias urbanas ingressavam também nesses cursos como forma de ascenção; e o campesianato estava excluído da escola, inclusive da primária, depreende-se que era a classe operária que gerava os candidatos para os exames na área de saúde. Em geral, as mulheres que não entravam na produção industrial dirigiam-se para o trabalho da enfermagem e o homens para a farmácia, a prótese, o laboratório e para a fiscalização de portos e o serviço de controle de vetores. Nesse período o número de ocupações em saúde ampliou-se e diversificou-se; no entanto, a formação se manteve praticamente como no período anterior. A formação médica estava consolidada no País e, em geral, o médico respondia política e tecnicamente, não só pela formação dos demais profissionais de saúde como pelos Serviços de Saúde (sua organização, seu funcionamento e administração). O sistema educacional reflete, no período, a “dicotomia típica da estrutura de classes capitalista em consolidação” (Freitag, 1986), camuflada por uma ideologia paternalista: todos podiam passar pelos vários níveis de ensino, mas grande parcela dos egressos da escola primária não tinham acesso à escola secundária (e os cursos de nível médio que atendiam os menos favorecidos não habilitavam seus 203 Texto de apoio/Unidade 2 egressos a cursarem escolas de nível superior). Mesmo como este limite formal os cursos de nível médio eram poucos. O acesso a eles era quase um “prêmio” àqueles oriundos das classes subalternas que demonstravam bom desempenho na escola primária ou no processo de produção. Na área de saúde a formação de enfermeiros é um exemplo significativo: as escolas não tinham as alunas em sistema de internato, ofereciam a refeição, estabeleciam normas para o seu comportamento social e, em troca, as alunas cumpriam jornadas intensas e contínuas nos serviços de saúde. Na realidade essa lógica era uma forma de expropriar o trabalho da aluna. A Constituição de 46 e a reorganização da economia, no fim do Estado Novo, apontaram mudanças políticas e econômicas na perspectiva de consolidar o novo projeto social que se desenhou após a Ditadura Vargas e o fim da Segunda Guerra Mundial. No caso da educação, o projeto de lei de diretrizes e bases, indicado na Constituição e, a Campanha da Escola Pública mobilizaram todos os grupos sociais. Dos muitos debates e confrontos da época resultou a atual LDB onde estão contempladas as duas tendências que se polarizavam na sociedade à época. Contudo, a Lei n. 4.024, aprovada em dezembro de 1961, só vai corporificar-se na rede escolar no período seguinte. Já nasce como uma lei tardia buscando estabelecer um compromisso entre os interesses da burguesia nacional e de frações mais tradicionais da sociedade, ligadas ao capital internacional articuladas em torno da internacionalização do mercado interno. O que essa LDB gerou e resultou para o sistema educacional? Que tipo de sustentação ela significou para a sociedade que se configurava? Estas questões ficam melhores respondidas se entrarmos no próximo período. Terceiro período – de 1960 até os dias atuais Do ponto de vista do predomínio de cada uma das concepções de educação, vale recordar que na primeira década deste período entra em crise a tendência humanista moderna, predominante de 1945 a 1960 e começa uma forte articulação social privilegiando a concepção tecnicista de educação, considerada, mais uma vez, a “adequada” ao projeto social e econômico de internacionalização do mercado interno. Ressalta-se, porém, que nos idos de 1968, concomitantemente ao predomínio dessa tendência, emergem as críticas à “pedagogia oficial” e à política educacional que pretende implementá-la. Tais críticas, sustentadas pelas teorias crítico-reprodutivistas têm o mérito de promover a denúncia sistemática da tendência humanista, ao mesmo tempo que mina a crença da educação “redentora da humanidade” e da autonomia da educação em relação à sociedade. Contudo, como já foi referido, as teorias crítico-reprodutivistas, por “considerar as relações entre determinantes sociais e educação de modo externo e mecânico acentuam as posturas pessimistas e imobilistas nos espaços sociais e educacionais”. A tendência dialética toma a si a tarefa de abrir caminhos no sentido de captar a especificidade de articulação entre educação e o conjunto das relações 204 CADRHU sociais. Movimentos contra-hegemônicos defendem que o “espaço” próprio da educação é o da apropriação/desapropriação/reapropriação do saber e que esse espaço está atravessado pela contradição essencial do modo de produção capitalista: a contradição capital-trabalho. No bojo desse processo a educação consegue reunir grupos e propostas que, de um lado creditam à educação a reprodução e a manutenção do status quo e, de outro, os que apostam no seu potencial de explicitar as contradições da realidade e, portanto, constituir-se em instrumento social de transformação, dada sua especificidade em relação ao saber. “Sendo o saber força produtiva e sendo a sociedade capitalista caracterizada pela propriedade privada dos meios de produção, a classe que os detêm empenha-se na apropriação do saber, desapropriando-o da classe trabalhadora. Sendo impossível a apropriação exclusiva do saber, já que a contradição inerente à sociedade capitalista é insolúvel no seu âmbito, a classe capitalista sistematiza o saber de que se apropria e o devolve parcelado ao trabalhador. Assim fazendo, detêm a propriedade do saber relativo ao conjunto do processo produtivo restando ao trabalhador apenas o saber correspondente à parcela do trabalho que lhe cabe executar”. (SAVIANI, 1987). Configura-se assim a educação como espaço de luta, sustentada pela tendência dialética . A organização educacional que desponta na década de 60, sob a égide da Lei n. 4.024/61 (LDB), torna o sistema de ensino um ponto de conflito entre segmentos e grupo sociais. As “prescrições” da LDB, das Reformas Universitária e do Ensino de 1º e 2º Graus, caracterizam a escola: •currículos definidos nacionalmente; •minuciosas instruções e formulários, a serem obedecidos e preenchidos como forma de controle, fiscalização e reconhecimento da escola e do ensino ministrado; •professores, alunos e múltiplos técnicos de educação moldados conforme diretrizes técnico-operacionais. Essas prescrições aplicadas e operacionalizadas igualmente por todo o sistema e em todo o território nacional, pretenderam reafirmar o pressuposto da igualdade da escola, escamoteando não só a seletividade dentro do sistema, mas do próprio sistema, em relação às classes sociais. Os dados do MEC/SEEC, no documento Sinopse Estatística do Ensino Primário – 1972 são demonstrativos: •em 1964, somente 2/3 das crianças de sete a quatorze anos estavam matriculados – cinco milhões não estavam escolarizadas, das quais 3,3 milhões nunca haviam visitado uma escola; •em 1972 (onze anos após ser sancionada a LDB) ainda “faltava” escola para 4,4 milhões de crianças na faixa etária de sete a quatorze anos. 205 Texto de apoio/Unidade 2 Frente a esses dados, como interpretar o princípio do direito e do dever da educação para todos os cidadãos? A visão mais simplista (ou simplória) explica o fenômeno da seletividade e da exclusão que se consolida no sistema educacional brasileiro como decorrente de diferenças inatas, de dedicação ou de esforço individuais. No entanto, se todos não conseguem chegar à escola, a questão básica é o fato da seletividade acontecer antes mesmo do ingresso na escola: quem são os escolhidos? Quem são os rejeitados? Obviamente a LDB não veio para corrigir essas distorções, acumuladas desde períodos anteriores. Contudo cabe perguntar: o que “esconde” ou o que “revela” a indiferença do Estado da sociedade civil diante dos fatos incontestes da realidade educacional, em especial no que se refere à exclusão e à seletividade? O Censo Educacional de 1964 apontou, detalhadamente, as “dificuldades” que as crianças encontram para ingressar e permanecer na escola: •currículos inadequados (não esqueçamos que a história dos Três Porquinhos foi usada para alfabetizar, pelo método global, todas as crianças que lograram um lugar na escola em todo o Território Nacional!); •professores mal qualificados; •equipamentos deficientes (inexistentes!); •distância de casa à escola; •falta de transporte; •ingresso das crianças no mercado de trabalho para colaborar no sustento da família; •falta de roupas, alimentação e material escolar. À revelia dessas dificuldades a LDB, assim como as leis, os decretos, as resoluções e as portarias em que foi “desdobrada” (Lei da Reforma Universitária n. 5.540/ 68; Lei n. 5.692/71 de Reforma de Ensino de 1º e 2º Graus; Dec. Leis n. 5.379/67 e 62.484/67 que institucionalizam o MOBRAL; Dec. Lei n. 7.737/71 que institucionaliza o “ensino supletivo” previsto na Lei n. 5.692/71, entre outros). “Traduzem as estratégias típicas da classe dominante que ao mesmo tempo que institucionaliza a desigualdade social, ao nível da ideologia, postulam sua inexistência” (Freitag, 1986). Nessa lógica, as classes subalternas são submetidas aos padrões da escola da igualdade, onde a desigualdade social está perpetuada nos modos de organizar o sistema educacional e o ensino. Nesse processo, as classes “desfavorecidas” acabam por assumir a culpa da sua “incapacidade” em responder, satisfatoriamente, as regras do jogo educacional definidas pelas classes dominantes. Ressalte-se, porém, que essa culpa não é aceita natural e passivamente. O movimento de articulação social das classes subalternas, na sociedade civil e política, procura valer-se da educação como canal de mobilidade, ascensão social ou pré-requisito de entrada e reconhecimento no mercado de trabalho. Para tanto usa a flexibilidade e a equivalência formal dos cursos, asseguradas pela primeira vez no Brasil a partir desse período. Assim é que a estrutura e o funcionamento do sistema 206 CADRHU educacional refletem as ambigüidades e contradições da própria ordem social. Aparentemente, todos os grupos e classes estão contemplados na organização do sistema e seu funcionamento vem ao encontro dos diferentes interesses. Na verdade, são os interesses da classe hegemônica que estão preservados, como pode ser constatado através do caso da privatização do ensino secundário. O “mecanismo” de privatização do ensino secundário funciona como uma das barreiras à entrada das classes subalternas e no ensino superior, ao mesmo tempo que faculta ao setor privado transformar a educação em uma empresa lucrativa. O curso profissionalizante de nível médio, cujo objetivo é qualificar pessoal em habilidades necessárias ao mercado e ao desenvolvimento, vai sendo gradual e freqüentemente desvirtuado, tanto por parte do sistema como da clientela. Esses cursos, em geral, estão reduzidos a uma grade curricular e são implementados apesar da inexistência dos meios e dos recursos exigidos pela sua especificidade. Nesse sentido acabam por falsear as habilitações que “anunciam”, ao mesmo tempo que são uma fonte de lucro. Implantados para assegurar a entrada no mercado de trabalho, não são procurados pela clientela com esta finalidade, mas sim porque constituem a possibilidade das classes baixas almejarem a Universidade; como não têm acesso aos cursos de segundo grau, preparatórios para o ensino superior, os “desfavorecidos” se “preparam” para a Universidade nos cursos profissionalizantes, oferecidos, em geral, no turno da noite. Antes de considerar como que esse processo se reproduz na área de saúde, cumpre assinalar que o período que vai de 60 até os dias atuais não comporta apenas um recorte. O processo ditatorial, instalado com o golpe militar de 1964 e que se prolongou até a década de 80, redefiniu o alinhamento dos processos de organização e participação da sociedade civil, conferindo ao setor educacional, aos partidos políticos e à classe operária particular atenção. “O Estado que no fim do período anterior se havia tornado mais ou menos o porta-voz dos interesses daquelas frações da classe média e das classes subalternas... adeptas da alternativa de democratização do consumo com a preservação da autonomia cede à internacionalização do mercado interno...”. (CARDOSO, F. M., citado por FREITAG, 1986). A adoção desse “modelo” econômico vai colidir, frontalmente, com os setores organizados da população que reivindicavam reformas estruturais que permitissem um padrão de produção e consumo democratizado. Estabelece-se o Estado de força cujo impacto social, político e econômico está presente ainda hoje na sociedade. A organização, estruturação e funcionamento do sistema educacional são tomados como objetos a serem reordenados e fortemente fiscalizados. Num primeiro momento dois Decretos-Lei dão o tom da política do governo em relação à educação: •a Lei n. 4.464/64 que proíbe o funcionamento da União Nacional dos Estudantes (UNE),criada em 1937; •a Lei n. 4.440/64 que institucionaliza o salário-educação: 2% do saláriomínimo regional pago pelas empresas à Previdência Social, em relação a 207 Texto de apoio/Unidade 2 todos os empregados; do valor arrecadado, 50% compete aos governos estaduais aplicar no ensino fundamental e o restante destina-se aos Estados mais carentes, através do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, gerido pelo MEC. Seguindo o processo de intervenção na sociedade civil, a Constituição de 1967 antecipa os parâmetros da Reforma Universitária (Lei 5.540/68) e do Ensino de 1º e 2º Graus (Lei 5.692/71). As palavras do então Ministro da Educação, Suplicy de Lacerda, em 1964, formam a imagem do que o Governo chamaria de Reforma do Ensino Superior e do Ensino Médio: “Os estudantes devem estudar e os professores ensinar”. Em 1965 o governo constituiu uma Comissão para estudar, detalhadamente, a universidade brasileira. Compõem tal Comissão cinco americanos e dois brasileiros que elaboraram um relatório que não foi publicado (1967). Considerando o modelo de universidade e a organização que se deu aos cursos através da Lei 5.540/ 68, é impossível não inferir que a universidade que temos hoje é uma cópia atrasada da universidade norte-americana. Seus parâmetros estão até hoje orientando o funcionamento do ensino superior: •departamentalização (extinção das cátedras); •criação dos ciclos básicos por área de conhecimento (ciências humanas, exatas e biológicas); •sistema de créditos e extinção dos cursos seriados; •formas jurídico-administrativas múltiplas; •regime de tempo integral para professores; •vestibular unificado e classificatório; •estabelecimento de dois níveis de pós-graduação (mestrado e doutorado). Estes parâmetros, entre outros, conformam a Universidade. O ensino superior, no Brasil, passa a viver a lógica que a Universidade Americana viveu cinqüenta anos atrás. Somando o que se estabeleceu para o ensino superior com a Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus constata-se que a lógica da organização atual do sistema educacional caminha sob o empuxo das seguintes contradições: contenção x liberação e autoritarismo x democratização. Quanto à primeira, temos: o ensino profissionalizante como forma de “desviar” da Universidade todos os que concluem o segundo grau; o vestibular classificatório e não seletivo por nota mínima; e o jubilamento; estes procedimentos são exemplos das estratégias que resultam ora na contenção ora na liberação. A racionalidade está presente na adoção dos ciclos básicos gerando a irracionalidade da troca entre qualidade/quantidade, da “perda” de identidade dos cursos. Estes aspectos somam-se e se completam fazendo emergir a contradição autoritarismo/democracia, assentada em normas repressivas em relação a professores e alunos, paralelamente a medida que aumentam cursos e vagas objetivando ampliar a capacidade das Universidades em receber um número maior de alunos. Se a reforma universitária visava solucionar a crise universitária 208 CADRHU mediante, inclusive, o controle dos estudantes, a reforma do primeiro e do segundo graus visou: •controlar a crise educacional gerada pela pressão do número cada vez maior de jovens chegando ao vestibular (esse foi o sinal mais prático da equivalência entre cursos profissionalizantes e cursos “preparatórios”, no segundo grau); •colaborar para atenuar o impacto do desemprego resultando da crise no setor de produção, em especial a que ocorreu no período de 1964-1968. Na reforma do 1º e 2º graus merece destaque a flexibilidade como o princípio mais inovador para a organização e funcionamento do sistema educacional brasileiro, em toda a sua história. Saviani (1986) chega a dizer que a Lei 5.692/71 é tão flexível que pode até não ser implantada ou ser revogada sem realmente o ser. Como exemplo confronta os termos do Parecer n. 45/72 – da profissionalização, com o Parecer n. 76/75 também sobre a profissionalização: “o primeiro parecer regulamentou o artigo 5º da Lei; o segundo revogou o primeiro e, com ele, revogou também o artigo 5º da Lei; só que, mediante o princípio da flexibilidade, ele não revogou, ele reinterpretou... e o artigo 5º permanece...”. Tal flexibilidade permite, inclusive diferenciar “terminalidade legal ou ideal” (o conteúdo de aprendizagem do primeiro grau será dado em oito anos) de “terminalidade real” (é possível, com base nas diferenças regionais, de escola ou do aluno, que esse conteúdo seja dado de formas “mais ligeiras”, encaminhando o aluno para o mercado de trabalho). O que tem acontecido, com muita freqüência é, portanto, o, aligeiramento do ensino de primeiro e segundo graus a partir da reforma de 1971, em especial para os jovens de classes sociais “menos favorecidas”. A escola de 1º e 2º graus chega a constituir-se uma mera formalidade legal, cujo os conteúdos da chamada “educação geral” e da “educação especial” (através da qual pretende-se a profissionalização em múltiplas e diversas “habilitações”) podem ou não ser ministrados. Se este “procedimento” facilita a entrada do aluno na Escola, a saída conferir-lhe-á o título da diferença. “Além da flexibilidade e terminalidade, incorporadas na reforma, outro princípio relevante é o da continuidade de estudos assegurada pela equivalência legal do ensino profissionalizante. Se a terminalidade, ao nível de ensino de segundo grau resultaria, por um lado, na diminuição da pressão sobre a Universidade (as vagas seriam disputadas por um número menor de candidatos), por outro, não poderia ser imputado à reforma o não ingresso na Universidade, de todos aqueles que viessem a cursar o 2º grau (nas suas formas profissionalizantes ou propedêutica, regular ou supletiva). Estabelece-se assim, ao mesmo tempo, o mecanismo de contenção e liberalização em todos os níveis de ensino. “Assegurada a contenção estaria assegurada a reprodução das relações de classe. Abandonariam a escola somente aqueles que não tivessem mais condições para estudar. Continuariam estudando aqueles cujos pais pudessem financiar os estudos”. (FREITAG, 1986). 209 Texto de apoio/Unidade 2 A liberação do ensino poderia assim ser contemplada: “todos podem cursar o nível seguinte de estudos (até a Universidade) desde que permaneça na escola”. A área de saúde, que ao longo dos tempos se caracterizou como fonte de emprego para escolarizados ou não, é premiada com uma série de portarias, leis, decretos-lei e resoluções onde, praticamente todas as ocupações tornam-se objetos de normas educacionais, diferentemente do que ocorria antes. Assim é que tanto as profissões universitárias como as de nível médio tornam-se exercícios a serem praticados após a formação escolar. Isto, no entanto, não mudará o quadro que, ao longo do tempo, se construiu no âmbito das instituições prestadoras de serviços de saúde: a maior parte dos que ali trabalham não possuem o requisito formal da qualificação profissional escolar. A “escola” desse grande grupo continua sendo o próprio trabalho, mesmo porque: •as escolas criadas para formar profissionais de saúde de nível médio não se colocam na perspectiva de quem já trabalha; •os estabelecimentos de saúde não tomam a lei como forma de “qualificar o serviço” que produzem, através da qualificação dos seus trabalhadores, mas como algo que não lhes diz respeito. O exercício da maioria dos procedimentos assistenciais fica na dependência do treinamento em serviço. Se a formação do médico foi a “origem” da formação dos demais profissionais de saúde de nível superior, quando da criação dos primeiros cursos, a reforma que se instalou com a LDB e com as Leis n. 5.540/68 e 5.692/71, toma como origem do conhecimento a ser ministrado nos cursos de nível médio, na área de saúde, as tarefas que o mercado de trabalho em saúde confia a estes trabalhadores. Isto denota, claramente, que as bases e diretrizes da formação na área de saúde não foi pensada, em nenhum período como forma de responder à complexidade, a especificidade e a interdependência exigidas pela natureza do processo de trabalho em saúde. Tanto é que a partir do momento que foram abertas escolas para formar as mais variadas habilitações técnicas em saúde, não foi desenvolvido nenhum programa sistemático que contemplasse os que já trabalhavam. Seguiu-se, naturalmente, formando técnico em saúde mas absorvendo também quem não era formado. Ambos viriam a exercer as mesmas funções que as leis do exercício profissional diziam privativas dessa ou daquela profissão. Por motivos óbvios estava preservado o que era realizado pelo médico e pelo dentista. Para as funções na área de farmácia e enfermagem, por exemplo, continuam sendo absorvidos “auxiliares” e “técnicos” que não passam pela formação escolar. A visão tecnicista do sistema escolar tem, portanto, sua correspondência na área de saúde. Se na formação de médicos, odontólogos, farmacêuticos, fisioterapeutas, enfermeiros e demais profissionais universitários foram incorporados os postulados da tendência humanista moderna, plenamente regulamentados quando da Reforma Universitária (não só para a formação na área de saúde, mas como base de organização da própria Universidade) a formação do nível do ensino médio privilegiou a tendência tecnicista. Em relação aos 210 CADRHU cursos superiores em geral, a “Reforma” conformou a Universidade segundo o que o Relatório Flexner propunha para as escolas médicas americanas, na década de 20, flagrantemente assentado no princípio fundamental do escolanovismo: transformar o ensino e a escola através dos seus processos internos, didático-pedagógicos. Os exemplos são fartos: •saída do catedrático (tendência tradicional) e privilegiamente de atividades baseadas nas experiências do aluno como núcleo ordenador do ensino; como o aluno não possui experiência em saúde, de forma a permitir-lhe nuclear dos conteúdos específicos da profissão, criam-se os ciclos básicos, onde o aluno poderia lidar com sua “experiência” livresca das ciências biológicas e experimentar em laboratórios; •criam-se os hospitais de clínicas para que a própria escola fosse o mundo da existência do aluno e do professor. Entre outros pontos, estes tornam nítidas as pretensões da “escola nova uni-versitária”. No entanto, como sua adoção coincidiu com a chegada de novas orientações em relação ao modelo de assistência à saúde que deveria ser privilegiada (medicina integral, comunitária e preventiva), as expectativas em relação ao impacto da reforma universitária, na área de saúde, foram, significativamente menores que o pretendido. Isto porque os movimentos de reorientação referidos apontavam como clientela prioritária aquela que estava fora dos hospitais. Esse discurso, no entanto, foi útil mesmo para conter a maioria da clientela que buscava os hospitais e firmar, no seio do processo de formação do profissional universitário, a idéia que, junto à população, se faz prevenção e isto é politicamente importante, sendo o hospital o lugar de cura, cuja a importância é de natureza técnica. Enquanto o processo maniqueístas e excludentes, tornaram a formação na área de saúde imprecisa e desordenada. A “saída” foi tornar o ensino de graduação campo livre de projetos, práticas educativas e objetivos. O investimento e a qualidade buscar-se-ia com a especialização em um grau de ensino para além da formação básica: a pós-graduação. O resultado de todas essas idas e vindas, geradas pela aderência ou não do “modelo de formação” ao “modelo de assistência”, foi que ao longo da década de 70, predominou a discussão em torno da maior ou menor capacidade do sistema educacional atender às necessidades do “mercado” em saúde. Mesmo a formação de nível médio, nascida para responder tecnicamente ao mercado, também era vista como não correspondendo a seus objetivos, levando o mercado a suprir a falta de técnicos e auxiliares com trabalhadores sem nenhuma qualificação. Se para a insuficiência de alguns profissionais a compensação se deu pela absorção indiscriminada de pessoal sem qualificação, para a baixa qualidade da assistência e da formação, reiterada pelas próprias escolas e pelos serviços de saúde, a “compensação” percorre outros caminhos. Para os profissionais universitários a pós-graduação foi acionada como forma de assegurar a “qualidade desejada” e, para aqueles do nível médio, foi instituída a “supervisão”. Se a pós-graduação é capaz de resgatar a qualidade não 211 Texto de apoio/Unidade 2 alcançada na formação básica, é uma hipótese ainda a ser demonstrada; contudo, caso isso ocorresse, ter-se-ia não uma solução mas, no mínimo, um “desvio”: primeiro, porque a pós-graduação absorve pequena parcela dos egressos da graduação; segundo, porque a finalidade da pós-graduação não pode se preencher os vazios da graduação; terceiro, porque a pós-graduação é um processo de educação continuada e, como tal, deve permitir o aprofundamento do conhecimento, o aperfeiçoamento e a atualização – e ninguém aperfeiçoa, atualiza ou aprofunda o que não tem. A partir do final da década de 70, várias tentativas de superação dos problemas, relacionados com a quantidade e a qualidade da formação na área de saúde, foram propostas e implementadas. Em geral, faziam partes de programas institucionais de trabalho conjunto e articulado entre escola e serviço. Outro marco na última década é o surgimento de programas visando a formação dos trabalhadores de saúde sem qualificação e a expansão das residências médicas, com estratégias política e tecnicamente privilegiadas. Estas propostas pretendem não só o atendimento do mercado mas, também e principalmente, a reorientação da assistência à saúde. Pelo lado dos movimentos que se organizam na sociedade, a saúde e a educação estão sendo tomadas como questões sociais prioritárias na perspectiva de uma outra ordem social que se vem delineando no ocaso do estado ditatorial. Em torno da retomada do país ao estado de direito agregaram-se parceiros na luta por uma nova Constituição. Mas uma vez a polarização seria aquela que historicamente marca o desenvolvimento da sociedade brasileira: para uns, bastava proclamar, na lei, o direito de todos; para outros, interessava assegurar diretrizes políticas que vinhessem a sustentar a luta para tornar efetivamente de todos, aquilo que a ideologia liberal proclama como direito. Em 1988 é promulgada a nova Constituição e a ela se seguem leis específicas que regulamentam instâncias e processos sociais específicos, como por exemplo a lei orgânica da saúde. A educação, após quatro anos de vigência da nova Constituição, continua sendo regida pelas normas anteriores. A antiga “discussão” entre escola pública e privada obstrui o processo de reorganização do sistema educacional. No setor de informação na área de saúde é muito localizada e difusa a discussão de uma nova Lei de Diretrizes e Bases; aqui, prevalece a preocupação com os procedimentos internos: currículos e métodos em especial. Os estudos sobre a força de trabalho em saúde realizados na década de 80, apontam questões, mais uma vez, ligadas à quantidade e qualidade dos profissionais formados e ao grande contingente de trabalhadores sem qualificação. Inclui esta problemática como fator preponderante da qualidade da assistência à saúde e da organização do sistema de saúde como um todo. O movimento de reforma sanitária, subssumido pelo projeto neo-liberal, tem funcionado como fuga de uma realidade onde vem sendo consolidados os seguros de saúde como única porta que viabiliza o financiamento do sistema e, portanto, da assistência. A escola segue o seu caminho, conturbado apenas por programas mais tecnicistas ou mais 212 CADRHU escolanovistas ou mais tradicionais. Os movimentos que buscam reorientar a formação na área de saúde (do âmbito técnico-pedagógico para o âmbito político) têm sido marginalizados, especialmente porque já se sabe que não é suficiente ter na estrutura do curso um departamento de preventiva, ter um programa de integração docente-assistencial e um hospital de clínicas, para que se superem os problemas da formação e da assistência. Sabemos que estratégias isoladas das escolas ou dos serviços de saúde são insuficientes para argüir a contradição fundamental do processo de formação e de assistência: de um lado, não incorporar a categoria trabalho na formação e, de outro os serviços não buscarem a formação e a qualificação dos seus profissionais. Considerações finais Tomando as concepções de educação como ponto de partida para analisar o funcionamento e a organização do sistema educacional brasileiro, dois momentos são especiais: um, em torno da década de 30 e, o outro, após 1970. Em ambos a polarização entre concepções educacionais estava nitidamente atrelada à organização da sociedade, resultando assim nas reformas mais significativas para a educação. Até 1920, o entusiasmo pela educação tomava o processo educativo como instrumento político, que colaboraria no crescimento de participação das classes subalternas no processo político. Em 30, o otimismo pedagógico assumido pela pedagogia nova resulta na problematização dos processos internos da escola, atingindo o auge mais ou menos em 60. Logo em seguida, emerge, em função dos novos mecanismos sociais e políticos de recomposição da hegemonia, a linha tecnicista que secundariza a essência e a existência como parâmetros de educação e privilegia os processos e objetivos da produção. Em que pesem as diferenças e o potencial mais ou menos reacionário/revolucionário dessas concepções, constatase que desde o Brasil-Colônia movimentos contra-hegemônicos buscaram retirar a educação da vala comum de apenas reproduzir e manter o status quo. Marcada pelo signo da elitização e, ao mesmo tempo, produtora de iletrados e excluídos a educação tem sido, ela própria, um mecanismo de recomposição da hegemonia. No entanto, em todo o processo de desenvolvimento civil e político do país, os movimentos que geraram as reformas educacionais contaram com forças sociais que entendem a educação como elemento determinado cujo determinante é por ela influenciado. Para estes movimentos a educação é um instrumento que se situa para além das pedagogias da essência, da existência e dos objetivos operacionais. Enquanto processo determinado-determinante supera a crença da autonomia e da dependência absoluta da educação em relação à sociedade. Nesse sentido é um processo que jamais se justifica em si mesmo, sendo sempre: •uma uma passagem (de um ponto a outro, pressupondo uma heterogeneidade real e uma homogeneidade possível, uma desigualdade na partida e uma igualdade na chegada); 213 Texto de apoio/Unidade 2 •uma uma transformação (de algo em outra coisa); •uma uma catarse (elaboração e transformação da condição em contradição na consciência dos homens). Sob esta ótica não tem como pensar diferentemente quando da análise da formação na área de saúde. Incorporando todas as críticas e avaliações das tendências educacionais e dos projetos políticos delineados e implementados pela sociedade, a área de saúde tem, também, privilegiado uma ou outra tendência e tem sido alvo de movimentos que incorporam interesses dos vários segmentos e classes sociais. Chama a atenção, porém, o caráter discriminatório e extremamente elitista que a escola, o sistema de saúde e a própria sociedade trabalham. A possibilidade de novos paradigmas para a formação está no jogo de forças e interesses que compõe o desenvolvimento da sociedade. Referências bibliográficas APPLE, Michael. Ideologia e Currículo, São Paulo: ed. Brasiliense, 1979. 246 p. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. FUNDAÇÃO SERVIÇOS DE SAÚDE PÚBLICA. Enfermagem: Legislação e Assuntos Correlatos, Rio de Janeiro: 1974. 3. ed. vol. I, II, III. _______. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Ensino de 2º grau. Coordenadoria de Ensino para o Setor de Serviço - Legislação e Normas em Nível Federal - Currículos Mínimos do 2º grau da Habilitações Profissionais - SAÚDE. Brasília, 1989. CUNHA, Luiz Antônio. Educação e Desenvolvimento Social no Brasil, Rio de Janeiro: ed. Francisco Alves, 1975. 291 p. CURY, Carlos Alberto Jamil - Comemorando o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova/32” - In. Educação e Sociedade, CEDES vol. 12 Rev., setembro/1982 - Cortez Ed. 1982. p. 5-13. FLORENZANO, Modesto. As Revoluções Burguesas, col. 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