cavaco apela ao uso do comboio em defesa do ambiente
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cavaco apela ao uso do comboio em defesa do ambiente
14 N AC I O N A L PÚBLICO • SÁBADO, 15 JUL 2006 CAVACO APELA AO USO DO COMBOIO EM DEFESA DO AMBIENTE “Já há muito tempo que eu não andava de comboio. A última vez foi em Inglaterra, há dois anos. Em Portugal, não tenho sido um utente frequente do comboio, por razões que se entendem. Mas na juventude estive sempre ligado ao comboio. Isso talvez compense a minha falta nos últimos anos.” Foi um Cavaco Silva um pouco menos rígido do que o habitual que falou aos jornalistas, já o Alfa pendular nº 182/183 circulava veloz junto ao Sado, nas proximidades de Alcácer. O Presidente da República fez a sua profissão de fé no caminho-de-ferro, mas na vasta comitiva, que ocupou carruagem e meia, houve ferroviários que recordaram ter sido nos seus governos, com Ferreira do Amaral nas Obras Públicas, que mais se investiu nas auto-estradas em detrimento da ferrovia. Cavaco fez contas e descobriu que um automóvel entre o Algarve e Lisboa produz 120 Kg de CO2. “Se houvesse uma mudança de atitude por parte dos portugueses de andarem mais de comboio do que de carro, seria mais fácil cumprir o protocolo de Quioto”, afirmou. Cavaco Silva faz hoje 67 anos e este foi o pretexto para trazer a família de comboio para o Algarve e responder ao convite da CP e à sugestão da APAC (Associação Portuguesa dos Amigos do Caminho-de-Ferro) para “transmitir um sinal de confiança no Reportagem caminho-de-ferro como transporte de futuro”. A mesma associação vai agora propor a José Sócrates que realize um Conselho de Ministros num comboio. Como prenda de anos, Cavaco diz que lhe basta estar com a família. De Lisboa a Albufeira são 264 quilómetros em via férrea que o Presidente percorreu ontem num Alfa pendular. Deixou uma mensagem: se os portugueses andassem “mais de comboio do que de carro, seria mais fácil cumprir o protocolo de Quioto”. Por Carlos Cipriano MARTIM RAMOS O Presidente festeja hoje o seu aniversário no Algarve, para onde viajou de comboio com a família “Eu pensava que, como Presidente da República, teria mais tempo do que como primeiro-ministro, mas afinal nem tenho tempo para estar com a família.” São 18h50. A composição rola agora a 200 km/hora na planície, mas quando se aproxima da serra algarvia a ve- locidade diminui. Antes da Funcheira, o Presidente vai à cabine do Alfa pendular. O maquinista explica como se conduz o comboio e os sistemas que fazem deste um modo de transporte seguro: o chamado “homem morto”, que faz parar a composição se quem a conduz adormecer ou desmaiar, ou ainda o Convel, um computador de bordo que indica ao maquinista a velocidade a que deve seguir e o alerta se esta não for cumprida. Quem ficou mais encantado com a cabine e a possiblidade de ir lá à frente a ver a linha foram os netos do Presidente, o Afonso e o João, que de vez em quando iam fazer companhia aos maquinistas Adriano Castro e Aureliano Costa e até tiveram até o privilégio de apitar o comboio. Apesar do atraso de dois minutos à saída de Lisboa, o Alfa Pendular circula três minutos e meio adiantado. diz o maquinista Castro, que acaba de receber um telefonema do posto de comando a informar que deve parar a composição a meio da plataforma da estação de Tunes porque haverá uma surpresa para o Presidente. O Coro Infantil de Tunes, composto por filhos de ferroviários, oferece-lhe duas cantigas e um cesto de laranjas algarvias. De novo a bordo, são só 5 minutos entre Tunes e Albufeira, onde, às 20h05, com quatro minutos de atraso, o Alfa faz a sua entrada numa estação invulgarmente cheia para receber um passageiro especial. O que era para ser uma discreta viagem de fim-de-semana da família Cavaco acabou por se transformar numa viagem com honras de Estado e uma complexa operação logística. Desde logo na segurança, que os jornalistas notaram, depois de dez anos de presidência Sampaio, bem mais descontraída que a actual. A CP fez o que é habitual nestas circunstâncias: um Presidente a bordo obriga a que o comboio seja precedido por uma “batedora” —composição que viaja à frente da presidencial para assegurar que a linha está “limpa”. Os operadores tinham indicações para dar prioridade absoluta a este Alfa que não se poderia atrasar. E chegou a Faro à tabela. E, mesmo sem haver batedores da GNR, a corporação foi quase omnipresente ao longo da viagem, com patrulhas em todas as estações e nalgumas pontes. ■ Por que é que um Presidente a viajar de comboio é notícia? DANIEL ROCHA/ARQUIVO Aquilo que na primeira metade do século XX era um facto normal – os chefes de Estado usavam o transporte ferroviário nas suas deslocações oficiais e particulares – é hoje considerado como um fait -divers interessante, capaz de mobilizar jornais e televisões. Os homens do governo, os presidentes da República, há muito que deixaram de andar de comboio, tal como, de resto, a maioria dos portugueses, desde que o caminho-de-ferro foi secundarizado pela rodovia e pela aviação comercial. E, no entanto, a CP chegou a ter um comboio presidencial, como, de resto, praticamente todos os países do mundo onde havia linhas férreas. A sumptuosidade e o luxo de tais composições eram até uma maneira de os países mostrarem a sua riqueza e pujança, uma vez que era nelas que os chefes de Estado viajavam para o estrangeiro e onde recebiam dignitários importantes. O comboio presidencial português – que circulou até aos anos setenta – não desmerecia face aos seus congéneres europeus, apesar de quatro das suas cinco carruagens datarem do século XIX. Descendente do velho comboio real (D. Carlos I tinha-o quase como uma segunda casa nas suas deslocações oficiais e, sobretudo, nas idas a Vila Viçosa), o comboio presidencial era composto por quatro carruagens-salão com camas, um restaurante e um furgão de apoio. Três desses veículos foram construídos em 1890, um em 1888 e outro em 1930, mas os mais antigos foram transformados e modernizados em 1940, numa época de grande fervor patriótico que coincidia com a Exposição do Mundo Português. O regime saído do golpe de Estado de 1926 achou por bem remodelar as velhas carruagens Jorge Sampaio foi Presidente numa época em que pouco usou o comboio dos presidentes da I República e fazia-o tendo como modelo um veículo-salão recentemente adquirido à Alemanha. De cor azul, o comboio presidencial português era dotado de todos os requintes da época, a começar pela luz eléctrica e pelas casas de banho particulares nos compartimentos-cama. Cada carruagem tinha uma parte social – um salão com sofás, mesa de trabalho e um serviço de apoio de cozinha – e uma parte de descanso com cabines privadas com camas e toilletes. Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás foram os três chefes de Estado que utilizaram este comboio, numa época, porém, em que o automóvel era cada vez mais usado nas deslocações oficiais. Em rigor, os intrépidos viajantes do caminho-de-ferro foram os seus antecessores, presidentes de um país onde, praticamente até aos anos 30 não existiam estradas. A mobilidade era, assim, cumprida através das linhas férreas. Sidónio Pais, que foi assassinado na estação do Rossio, foi um dos maiores utilizadores do da composição destinada ao chefe de Estado, sobretudo nas suas inúmeras viagens ao Alentejo. De resto, qualquer rotineira visita presidencial à cidade do Porto era realizada no comboio presidencial. Foi nesta composição, aliás, que se fez o funeral de Salazar entre Lisboa e Santa Comba Dão, tendo-se-lhe atrelado mais uma carruagem para o transporte da urna. Quem nunca chegou a viajar no comboio presidencial foi Humberto Delgado, que, contudo, imortalizou uma das mais célebres viagens ferroviárias entre o Porto e Lisboa no Foguete, logo ali apelidado de “comboio da liberdade”. Vinte anos depois, foi também de comboio – mas desta vez no Sud Expresso – que um futuro Presidente da República, Mário Soares, atravessaria Vilar Formoso vindo do exílio para entrar em Portugal três dias depois do 25 de Abril. Retirado do serviço, o comboio presidencial está hoje repartido por secções museológicas. Duas carruagens estão em Valença e Santarém e a carrruagem-restaurante em Estremoz. Os outros veículos, demasiado degradados, aguardam no Entroncamento que haja verbas para serem recuperados e integrarem o futuro Museu Ferroviário Nacional. Hoje já não há comboio presidencial, mas a CP dispõe de uma carruagem VIP que tanto pode ser utilizada pelos representantes do Estado, como ser alugada a empresas para viagens de trabalho ou de lazer. ■ C.C.