as migrações caribenhas guayano
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91 AS MIGRAÇÕES CARIBENHAS GUAYANO-AMAZÔNICAS: O LUGAR DO ÍNDIO Victor Hugo Veppo Burgardt5 Resumo: Proponho uma reflexão sobre a história da região setentrional da América do Sul, procurando responder a certas inquietudes que me ocorreram ao longo de minha pesquisa de doutorado, o que me leva a retomar o “conceito de Caribe”, com um olhar, portanto, no chamado Caribe Sul, ressaltando a importância do fenômeno migratório e a riqueza cultural dos povos indígenas como componentes culturais muito importantes na formação e no fortalecimento de certa identidade em construção, identidade esta que se pode entender como “fragmento da cultura caribenha”. Palavras-chave: Caribe; migração; cultura e identidade. “O que denominamos Caribe nasceu de dentro da violência e através dela. A via para a nossa modernidade está marcada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela da dependência colonial.” (HALL, 2003, p. 30) Em meus estudos, tenho procurado abordar a questão da imagem do índio em função daquilo que o índio tem representado para as sociedades nas quais tenho desenvolvido minhas pesquisas, tais sejam as ambiências fronteiriças entre o Brasil e a Venezuela, no centro da “Ilha de Guayana”. Conforme Dreyfus, esta ilha localiza-se em uma grande extensão da parte setentrional da América do Sul (1993, p. 27). Refiro-me à área compreendida entre os rios Orinoco, Negro e Amazonas, além do Canal de Cassiquiare, que liga os primeiros, conforme se percebe no mapa adiante (Mapa 1). Uma ilha de grande extensão continental, banhada pelo Oceano Atlântico e que, segundo muitos estudiosos da cultura caribenha, recebe, o sopro dos ventos caribenhos. Desde os tempos em que elaborei meu projeto para ingressar no Doutorado, tomei ciência do grande debate que se travava nas Universidades de Brasília (UnB) e de Goiás (UFG) sobre o entendimento do Nordeste brasileiro e da Amazônia como áreas culturalmente caribenhas, o chamado “Caribe Sul”. Recordo, ainda, o ceticismo de alguns historiadores com relação a esta possibilidade sobre a qual Cabrera (2006) é muito mais otimista, pois, exclui desta pertença apenas o Sul do Brasil.6 Historiador, professor nos Cursos de Direito e Pedagogia do Instituto de Ensino Superior Cenecista de Unaí (INESC) - MG. Cf. intervenção da historiadora durante minha apresentação no IV Simpósio do Centro de Estudos Caribenhos (CECAB), ocorrido em setembro de 2007, na cidade de Caldas Novas-GO. 5 6 Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 92 “Ilha de Guayana” ilustrada em detalhe (DREYFUS, 1993, p. 27) Constatando a falta de publicações sobre a presença da cultura autóctone na chamada “cultura caribenha” e, constatando também que a expressão “caribe” está diretamente relacionada à presença dos povos de família lingüística karib, habitantes das ilhas localizadas no Mar das Antilhas na ocasião da invasão européia, ocorreu-me a idéia de auscultar sobre as marcas indígenas que estariam faltando nesta identidade cultural que emerge na região guayano-amazônica, com traços nitidamente híbridos. Ora a sinalização mais importante que me leva a admitir que o Caribe já nascesse indígena parte de uma dos maiores estudiosos caribenhos: La primera traducción de la palabra caribe a un idioma europeo se remonta a 1492. En el diário de su primer viaje a América, el genovês Cristóbal Colón tomo nota de unos ‘caribes’ o ‘caníbales’, siempre al este de los arahuacos antillanos que le daban las noticias. (GAZTAMBIDE-GÉIGEL, 2006, p. 30) Cabe, portanto, chamar a atenção sobre o papel que hoje o autóctone desempenha neste conjunto identitário que forma um agregado humano altamente complexo, tanto ao norte quanto ao sul da Serra de Pacaraima. Como historiador desta região, inquieta-me o fato de os estudiosos promoverem quase uma exclusão do índio nos domínios da cultura que proclamam ser caribenha, como se o Caribe tivesse sido formado e se constituído apenas por etnias originárias da Europa e da África, ignorando, por vezes, fatores muito importantes que compõem o complexo cultural do qual evoluiu a cultura caribenha e que, por pertinência, os lembrei na epígrafe deste texto. Desconheço, portanto, se o índio esteve ausente em alguma situação onde tais fatores aqui epigrafados foram notórios. O fato de ter lembrado tal publicista me obriga a observar que o autor não lembra o indígena em sua noção de Caribe, o que já sugere sua exclusão e tal exclusão tem sua razão de ser, uma vez que, ao se processar a colonização das ilhas localizadas no Mar da Antilhas, ou seja, na formação desta Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 93 cultura, o autóctone já, praticamente, não existia lá. Com isto, também, pode-se observar que Hall vê o Caribe como uma cultura própria “das ilhas” e, ao que parece, não se refere ao chamado Caribe Sul, o que, sensatamente incluiria o autóctone. Segundo Hall, no Caribe, os indianos e chineses se juntaram mais tarde à ‘África’: o trabalho semi-escravo (...) entra junto com a escravidão. A distinção de nossa cultura é manifestamente o resultado do maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeus7. (HALL, 2003, p. 31) Ao tempo em que procuro um lugar para o índio, notadamente esquecido também nesta cultura, proponho uma reflexão sobre o contexto histórico das ambiências aqui escolhidas, balizando temporalmente nos últimos trinta anos do século XX e os primeiros anos do século XXI e os sentidos possíveis deste entrelaçar de etnias e deste lento processo de hibridação cultural. Este texto se trata de um fragmento da última parte de minha tese. É fruto de uma pesquisa de campo realizada entre os anos de 2003 e 2005, ocasião em que procurei respostas para várias inquietações valendo-me, além das caminhadas pelo interior da Gran Sabana8 e outras áreas da Guayana, da consulta a um corpus constituído por livros, teses, dissertações, CD-ROMs, painéis e depoimentos orais (entrevistas). Após defender minha tese, tive acesso a outros referenciais teóricos, que os utilizei para melhorar o conteúdo e a riqueza de informações, bem como para tentar conseguir respostas que não obtive durante a pesquisa do Curso de Doutorado, o que me levou a fazer novas inclusões e promover algumas exclusões, sempre com a preocupação de refletir sobre os fatores que têm causado mais impacto na mudança cultural do autóctone do Parque Nacional Canaima e que estiveram em evidência na última parte de minha tese (BURGARDT, 2006, passim). Entre estes, escolhi para refletir neste trabalho o fenômeno migratório. Considero, também, os colóquios com estudiosos do CECAB, principalmente nas oportunidades dos Simpósios promovidos por este grupo de estudos. Ressalto, ainda, o período em que residi em Boa Vista, capital do Estado de Roraima, nos anos de 1997-1998, oportunidade em que lecionei Geografia na Escola Estadual Maria dos Prazeres Mota, o que muito me valeu para procurar entender a cultura indígena e até que ponto esta cultura tem contribuído para esta hibridação cultural, hibridação esta definida como o espaço da intervenção que emerge nos interstícios culturais que introduz a invenção criativa dentro da existência. E, uma última vez, há um retorno à encenação da identidade como iteração, a re-criação do eu no mundo da viagem, o re-estabelecimento da comunidade fronteiriça da migração. (BHABHA, 2001, p. 29) No contexto que ora discorro, os primeiros anos do século XXI tendem a refletir a luta de trinta anos das comunidades indígenas da região limítrofe entre os Estados Nacionais venezuelano e brasileiro, pela reconquista das terras que lhes foram usurpadas ao longo do processo de colonização, luta esta pouco mais acirrada, ao que parece, ao sul da Serra de Pacaraima, uma vez que a mobilização indígena veio ganhar força no lado venezuelano após a luta dos makuxi do lado brasileiro já estar bem Grifos meus. Trata-se de um município do sul do Estado Bolívar (Venezuela), uma grande área geográfica que faz fronteira com o Estado de Roraima (Brasil). A sede do município de Gran Sabana é a cidade de Santa Elena de Uairén. 7 8 Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 94 mais intensa na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RSS), ao que tudo indica, por conta de um bem articulado trabalho de Organizações Não-Governamentais (ONGs), com destaque para os missionários católicos da Ordem Nossa Senhora Consolata (IMC) (BURGARDT, 2006, passim). Com relação à questão da identidade cultural desta ampla região na qual estão localizados dois centros urbanos (Boa Vista e Cidade Bolívar), refiro-me não apenas ao tipo humano resultante da mescla de povos originários de três grandes matrizes culturais, tais sejam, autóctones, invasores europeus e escravos africanos, mas, às peculiaridades identitárias que desta mescla cultural evoluiu e que arrisco chamar de “cultura caribenha”, tornando estes grupos distintos formadores de uma sociedade altamente heterogênea. Se a noção de cultura sugere complexidades, não menos complexa é a questão identitária, afinal, se há uma identidade regional com traços caribenhos é porque há uma dinâmica cultural que a forma e que a modifica em seu processo evolutivo. Ora, la cuestión de las identidades culturales salta hoy al primer plano tanto del análisis de los procesos sociales como en la elaboración de los proyectos políticos. Y ello apunta a la crisis radical que atraviesan tanto los modelos de desarrollo como los paradigmas conceptuales desde que esos modelos fueron legitimados e impugnados. (BARBERO, 2001, p. 36) Percebo então, que a muitas vezes invocada “crise de identidade” é uma reação natural às mudanças que ocorrem nas sociedades, ou em função dos outros agregados humanos ou, ainda, em função da própria situação interna que tendem a apressar, ou a retardar as mudanças e as transformações que ocorrerem, frutos da própria relação dialética que há no interior de cada realidade social. A identidade é evidentemente um elemento chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. (BERGER & LUKMANN, 1995, p. 228) A “crise de identidade”, que a meu ver pode ser entendida como uma variante do “processo de hibridação cultural” mostra que este fenômeno está muito além da nacionalidade, ou seja, um processo que reinstaura nos grupos humanos a sua vocação internacionalista, vocação esta que só não evoluiu nos tempos modernos porque foi sufocada pela ideologia do “nacionalismo”. “Gosto de pensar que, do lado de cá da psicose do fervor patriótico, há uma evidência esmagadora de uma noção mais transnacional e translacional do hibridismo das comunidades imaginadas” (BHABHA, 2003, p. 24). Muito embora os fenômenos migratórios sugiram a reflexão sobre a nação, não pretendo enveredar por maiores verticalizações sobre tal categoria, mas, apenas ressaltar o grande debate iniciado no final do século XX sobre a questão nacional, por vezes explosiva e que chama a atenção na polifonia de estudiosos de vários continentes, os quais, pelo que se percebe, de várias áreas do conhecimento, alertam para os particularismos étnico-culturais que, não poucas vezes, direcionam os agregados humanos às guerras fratricidas, o que sempre se constitui num perigo, como alerta Gilroy ao alegar que “aqui, também, o engodo do particularismo étnico e do nacionalismo tem constituído um perigo sempre presente” (2001, p. 37). Ainda com relação a questão nacional, ressaltou certo jurista que se a nacionalidade, entretanto, nos enriquece, humanizando os sentimentos regionalistas, de outro lado leva-nos à limitação, restringindo a nossa vocação internacionalista. O amor à pátria não deve, porém, banir de nós nem o amor da região menor em que nascemos, nem o Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 95 amor da humanidade pelo qual nos unimos à comunhão maior dos homens, por intermédio dos sentimentos de simpatia internacional que devemos em nós desenvolver. (PAUPÉRIO, 1987, p. 15-16) Em minha tese me referir à sociedade roraimense como uma “sociedade nova...”, tomando por base um “pequeno relato”,9 como também, me referi à sociedade bolivarense como tipicamente caribenha. Estas duas asserções cobram alguns questionamentos: O que pode levar alguém a caracterizar esta ou aquela sociedade? Quais os referenciais utilizados para tais asserções? Se Roraima é uma sociedade nova, conforme afirma o documento o qual consultei, significa que a história desta Unidade Federativa começa com a chegada dos primeiros colonizadores. E os índios? Se o Estado de Roraima é chamado de Terra dos Makuxi ou Makuxiland, parece estar ocorrendo um grave esquecimento. Se a Cidade Bolívar se caracteriza por ser tipicamente caribenha, significa o que? Os traços culturais vindos do Caribe, que já são destaque em todo o conjunto cultural da região orinoquenha? Ou os ritmos musicais e as vestimentas coloridas que reproduzem os traços da cultura dos índios da família lingüística karib, que se estabeleceram na região desde tempos imemoriais? Ora, se forem analisadas algumas obras, chega-se a conclusão que o Caribe já nasceu indígena: La primera traducción de la palabra caribe a un idioma europeo se remonta a 1492. En el diario de su primer viaje a América, el genovés Cristóbal Colón tomo nota de unos ‘caribes’ o ‘caníbales’, siempre al este de los arahuacos antillanos que le daban las noticias. (GAZTAMBIDE-GÉIGEL, 2006, p. 30) Cabe, portanto, chamar a atenção sobre o papel que hoje o autóctone desempenha no emaranhado cultural que forma o Caribe cultural. Não quero afirmar que a cultura amazônica é tipicamente caribenha, nem que a migração, sobre a qual chamo a atenção neste ensaio seja exclusividade do Caribe, mas, pretendo chamar a atenção para a hibridação cultural que se processa na região guayano-amazônica no entrelaçar de culturas, onde há espaço, também, para aspectos culturais oriundos das ilhas antilhanas. Tais reflexões, se por um lado fazem emergir a complexidade dos temas relacionados à cultura e à identidade, por outro interferem de forma bastante significativa no estudo dos processos de hibridação cultural, dando a conhecer em certas situações caracteres negativos e racistas, pois, ao considerar uma sociedade nova quando se sabe que índios habitavam o mesmo espaço há bem mais tempo, claramente aparece não só o caráter eurocentrista, mas, também, o traço identitário excludente, caracterizando um andar na contramão da história, pois, conforme se percebe, cada vez mais, as culturas ‘nacionais’ estão sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas (BHABHA, 2001, p. 25). Para desenvolver uma reflexão sobre a complexidade da cultura caribenha, há a necessidade de uma retomada na questão conceitual, a fim de refletir sobre a noção de “o que é o Caribe”, ou seja, quais as características culturais peculiares que formam a identidade da sociedade caribenha e que por serem “Sahr (1993) define os pequenos relatos como documentos não oficiais, elaborados normalmente a partir de segmentos excluídos”. 9 Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 96 múltiplas, justificam a dificuldade em se obter uma conceituação. Ciente destas dificuldades contentame em buscar evidências que possam sinalizar para um entendimento do problema. Uma característica que tem tido muita importância como peculiaridade da cultura caribenha, é a migração, isto é, os movimentos populacionais que têm proporcionado o “encuentro de los más variados grupos humanos en un mismo espacio” (CABRERA, 2001, p. 149). Aponta a historiadora o estudo dos movimentos migratórios como um passo importante para o entendimento das sociedades caribenhas. Trata-se o Caribe de uma construção moderna, modernidade esta a qual são atribuídas três características, tais sejam: “o racismo, conseqüência do escravismo; o capitalismo, herança do livrecambismo do século XIX; e o nacionalismo, conseqüência das lutas pela independência” (SAHR, 1993, p. 46). São argumentos que, ao tempo em que se referem às ilhas caribenhas, apontam para características semelhantes a outras sociedades latino-americanas. É evidente que as migrações da região insular podem ser diferentes das migrações continentais e isto pode acarretar um dos problemas a mais que se apresenta na questão conceitual, pois, vem questionar o “ser ou não ser Caribe”, o que pode sugerir uma busca de resposta a partir da perspectiva geográfica, cabendo a pergunta “onde é o Caribe?”. Importa este trabalho em chamar a atenção sobre um dos enfoques de minha tese e que, além de não se limitar apenas aos aspectos geográficos, procura entender o Caribe como “lugar do índio”, ou seja, entender o papel do índio em tal ambiência cultural. No sentido de considerar tal possibilidade, não dispenso o diálogo com Hall, para quem, apesar de em sua obra olhar de costas para a região setentrional da América do Sul, a diáspora pode significar o ponto de partida para uma melhor análise, ocasião em que, se por um lado dialoga com Sahr na questão da modernidade, por outro dialoga com Cabrera na questão migratória: A cultura caribenha é essencialmente impelida por uma estética diaspórica. Em termos antropológicos, suas culturas são irremediavelmente ‘impuras’. Essa impureza, tão freqüentemente construída como carga e perda, é em si mesma uma condição necessária à sua modernidade. (HALL, 2003, p. 34) O ceticismo que percebi por parte de não poucos estudiosos, conforme observei em alguns encontros de trabalho acadêmicos, com relação à pertença caribenha da Amazônia, se torna evidente na seguinte colocação: “Hasta hoy existe mucha ambigüedad en la definición del Caribe debido a la inoperancia de las interpretaciones históricas, sociológicas, antropológicas y políticas, en general” (CABRERA, 2001, p. 149). Um dos fatores que mais contribuiu para que a sociedade roraimense viesse a se caracterizar como uma terra de migrantes foi o garimpo, fator este que deixou marcas profundas na identidade cultural da Terra dos Makuxi, lembrando que “em Roraima, este processo de construção de identidade se manifesta à medida que a atividade de garimpagem está colocada no centro das preocupações e também das ações dos diversos atores sociais” (RODRIGUES, 1996, p. 106). O garimpo teve e tem grande importância como fator atrativo de migrantes, migrantes estes que, nem sempre são passageiros. Observa-se em Boa Vista (e em Roraima em geral) que muitos moradores, após as atividades de garimpagem, não voltaram mais para suas terras de origem, preferindo ficar no extremo norte do Brasil. Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 97 Com relação à migração do indígena, se por um lado Rodrigues não deixa de reconhecer o fenômeno migratório do índio que busca a grande cidade, por outro não deixa de interpretar, também, a questão da resistência das populações autóctones que se opõem à saída dos territórios de origem. Ainda segundo Rogrigues, os índios reafirmam sua etnia, sua língua, sua história e se organizam para evitar seu processo de desterritorialização, lutam pela demarcação de suas terras, portanto, lutam para exercer a gestão de seu território [autodeterminação] e reafirmar sua identidade étnica. (id, ibid.) Não se pode minimizar, portanto, o fenômeno migratório como fato gerador de certa hibridação cultural e de fortalecedor do processo formativo de uma nova identidade, identidade esta que pode ser ou não sinal da emergência da cultura caribenha no Brasil setentrional. A partir da justificativa de Rodrigues sobre a resistência das etnias indígenas ao processo de desterritorialização, pode-se vislumbrar um diálogo aparente com Cabrera que vê, também, nesta resistência, uma marca bastante forte que caracteriza substratos da cultura caribenha quando esclarece: “Nos importa destacar que, la cultura de los inmigrantes subalternos ha mantenido su resistencia frente a la sociedad envolvente, echando por tierra todos los vaticínios de aculturación y desaparición de sociedades a partir de la modernización” (CABRERA, 2001, p. 150). Apesar deste possível diálogo, tal como em Hall, em nenhuma de suas obras sobre as culturas de migração, que eu tenha tido acesso, Cabrera faça referência aos povos indígenas. Percebe-se que, por vezes, no pensamento das duas autoras, há sinalizações sobre certa reação por parte de sujeitos culturais subalternos, que se encontram à margem da cultura dominante, reação esta que pode ser conseqüência da própria tendência da sociedade envolvente em tentar sufocar a chamada cultura subalterna. Outras vezes, dão a entender que, se existe grande quantidade de (i)migrantes excluídos é porque existem grupos de interesses distintos que promovem um processo cultural excludente. Desta forma as autoras estendem necessariamente o diálogo com Bhabha, para quem a pós-colonialidade, por sua vez, é um salutar lembrete das relações ‘neocoloniais’ remanescentes no interior da ‘nova’ ordem mundial e da divisão de trabalho multinacional. Tal perspectiva permite a autenticação de histórias de exploração e o desenvolvimento de estratégias de resistência. (BHABHA, 2001, p. 26) Ora, se a cultura é, também, “o conjunto de obras humanas” (MELLO, 1986, p. 41), o fenômeno migratório não deixa de ter uma importância capital na ocorrência das trocas culturais, o que acelera o processo de hibridação e fortalece o surgimento de novas identidades. O Estado de Roraima, que tem 42% de seu território habitado por populações indígenas que somam cerca de 35 mil pessoas ou 16% da população total, estas enfrentam problemas que se agravaram nos últimos anos com a política e incentivo à migração desenfreada desenvolvida pelos governos federal e estadual, de colonos não-indígenas. (BAINES, 2001, p. 10) Este processo migratório em grande escala ocorre tanto por migrantes que chegam a Roraima, principalmente em Boa Vista, vindo de diversas partes do Brasil, como por migrantes indígenas que, sem melhores perspectivas de vida ou por não estarem totalmente integrados no Movimento Indígena, Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 98 passam a fazer parte do grande número de excluídos da capital roraimense, passando a viver nos bairros periféricos e a freqüentar lugares onde há concentrações de desempregados a espera de “serviços gerais”, o que aliás, não é diferente do que ocorre na Cidade Bolívar, embora em menor escala que na vizinha Cidade Guayana10 e que é ilustrado por um documento do Movimiento Indio por la Identidad Nacional (MOIIN), no qual os autores tecem críticas a certa burocracia que cria uma determinada classe, classe esta que segue os padrões não indígenas e passa a explorar os próprios índios, que são obrigados a migrar para estas cidades: (...) el sector mayoritario indígena, se ve obligado a emigrar y deambular por las calles, constituyendo cordones miserables alrededor de las ciudades y otros sectores desposeídos; (...) de manera pues, que la democracia colonial que hemos vivido, ha acentuado la miseria, el éxodo, prostitución y cambios de patrones en la vida social del indígena. (MOIIN, 1986, p. 3) Tal constatação não passou despercebida por mim durante minha pesquisa do doutorado, pois, visitei na Cidade Bolívar dois bolsões de migrantes indígenas que ocupavam duas áreas. Refiro-me à Via Cardoso e a Passeo Gaspari. Quando falo no papel do índio nos caracteres caribenhos, me refiro que desde o início o autóctone karib já era importante, não só por ter sido determinante para a designação “Caribe”, mas, porque, ao percorrerem a região insular, ou comercializando ou disputando as rotas de comércio com outros povos indígenas, já experimentavam a cultura de migração, tão marcante ao sul do Orinoco (DIOCESE DE RORAIMA, 1989, p. 5-6). Entrevistei na Cidade Bolívar duas lideranças indígenas, e ambas parecem ter posições divergentes com relação ao problema dos índios migrantes que deixam suas regiões de origem e passam a viver na cidade. Um dos entrevistados foi o Deputado Túlio Gudiño, indígena da etnia cariña, que fez referência à situação de pobreza dos índios que vivem na periferia das cidades do Estado de Bolívar, exemplificando a situação de Puerto Ordaz11 (esta cidade, juntamente com San Felix, forma a grande cidade de Guayana). Outra questão que abordei com o Deputado foi questão da “identidade indígena”, na perspectiva do contato com o não índio. Segundo ele, a identidade cultural do índio não fica em perigo com a integração, pois, há uma preocupação governamental para que isto não ocorra. A integração visa, também, fazer com que os povos indígenas tenham seu crescimento integrado à sociedade nacional até mesmo para que se apague esta idéia generalizada na América Latina, que o índio é um obstáculo ao progresso, ao crescimento econômico e ao desenvolvimento social.12 O argumento da “integração do índio”, portanto, foi utilizado com o propósito de dizer que a única forma do autóctone não se tornar um obstáculo ao progresso da sociedade é a busca desta integração à sociedade nacional, da qual um passo decisivo é a migração para a cidade. Sobre tais preocupações, recordo a entrevista que consegui na Cidade Bolívar com um líder indígena pertencente à etnia pemón. Refiro-me a Crispín Alvarez, formado em Hotelaria e possui um cargo na administração pública (Fondo de Desarrollo Indígena del Estado Bolívar). Segundo este, “o grande problema dos índios que abandonam a terra para estudar na cidade é a resistência que empreendem Cf. depoimento oral de um taxista de Cidade Bolívar, coletado na ocasião de minha pesquisa de doutorado. Cf. depoimento pessoal oral do referido parlamentar, para subsidiar a pesquisa de minha tese. 12 Idem. 10 11 Revista FACEVV - 2º Semestre de 2008 - Número 1 99 em retornar à terra, pois, experimentam outros valores e já não vêem razão para voltarem a residir nas comunidades indígenas com suas famílias”.13 Há uma preocupação por parte desta liderança com relação ao impacto cultural da integração, preocupação esta que não é só dela, mas, de boa parte dos cientistas sociais e das instâncias que vêem a integração forçada como problemática para a sobrevivência da cultura autóctone e a migração está no foco principal do problema a ser trabalhado, pois, ao tempo em que os indígenas procuram a cidade, outros grupos étnicos não indígenas também o fazem, aumentando a desigualdade sociocultural, situação que torna a cultura autóctone subalternizada. Considero, portanto, o fator migratório como um dos importantes pilares culturais produzidos no contexto desta dinâmica onde o índio, a exemplo do africano, do europeu e do asiático, se insere como um dos sujeitos deste processo, sujeito este que, se perde a importância cultural pela extinção na região insular, ganha pela resistência que empreende na “Ilha de Guayana”, a ponto de refigurar certos caracteres identitários importantíssimos da sociedade guayano-amazônica. Penso que, sem o sujeito índio qualquer argumento que venha sugerir a inclusão desta sociedade no chamado Caribe cultural, a meu ver se torna frágil. Portanto, à oportuna problematização dos estudos caribenhos, penso que se deva, com o foco no fenômeno aqui considerado, chamar a atenção para o papel do índio neste contexto cultural, independente se a área pertença ou não ao Caribe geográfico, limitando-me a refletir sobre o Caribe como uma categoria sócio-histórica e cultural. Neste sentido, ainda que modestamente, lanço as primeiras pedras do alicerce de uma tentativa de se fazer novas abordagens sobre desafiante tema, posto que nos limites do presente trabalho, extraído em boa parte de minha tese, objetivo sinalizar para a importância de ampliar o leque de enfoques de modo a abrigar os “vários Caribes”. Referências bibliográficas: BAINES, Stephen G. Migrações indígenas - Movimentos populacionais indígenas e situação atual no âmbito do pacto amazônico e perspectivas. In: Seminário Migrações forçadas - os indígenas no contexto Latino-Americano (pacto amazônico). Brasília: NECLA/CEAM/UnB , 2001. BARBERO, Jesús Martín. Las identidades en la sociedad multicultural. In: ALEMÁN, Carmen Elena , FERÁNDEZ, Fernando (org.). In: Los rostros de la identidad. Caracas: 2001. BERGER, Peter I. e LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 12ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1995. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. 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