"Del" na lenda - Portal dos Jornalistas
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"Del" na lenda - Portal dos Jornalistas
O "Del" na lenda Por Igor Ribeiro - Editor-Executivo, Enviado a Washington | 07/07/2010 19:00 Toda instituição mantém informações sobre si própria armazenadas em complexas camadas de interesses e segredos. Isso é um fato universal. A diferença entre países, governos e empresas fica restrita a um formato muito pouco variável, um método que estabelece a melhor forma de fornecer notícias convenientes enquanto se resguarda tópicos delicados. Todos mantêm, com algum grau de intensidade, mecanismos com essa finalidade, do Google ao governo da Coreia do Norte, do principado de Mônaco à Monsanto. Apesar do pendão liberal que agita arrebatadamente para o planeta inteiro ver, os Estados Unidos não ficam para trás. O país criou os sistemas mais engenhosos de análise de inteligência, e nem sempre é fácil furá-lo. Jornalistas são parte do grupo que tenta atravessar essa parede em busca da verdade, pelo bem do interesse público. Entre os colegas estadunidenses, Helen Thomas era das que mais tentava. Na manhã do dia 7 de junho último, segundafeira, a veterana setorista da Casa Branca se aposentou. Helen saiu de cena após a publicação de um vídeo, no final da semana anterior, no qual maldizia Israel. O diálogo registrado pelo rabino David F. Nesenoff era tão direto quanto simples. Questionada sobre o que achava do Estado israelense, Helen disparou: "Tell them to get the hell out of Palestine" ("Diga a eles para darem o fora da Palestina"). Surpreso, Nesenoff perguntou para onde deveria ir a população do país, ao que a jornalista replicou: "Para casa: Polônia, Alemanha, América e qualquer outro lugar... Por que empurrar para fora pessoas que viveram lá por séculos?". Com pouco mais de um minuto, publicado no site RabbiLive.com e no YouTube em 3 de junho, o vídeo justificou o termo "viral" em todas as suas acepções. Espalhou-se com desenfreada rapidez, passando a marca do milhão de cliques em menos de dois dias. Como uma boa e virulenta gripe, derrubou uma das jornalistas mais temidas dos Estados Unidos. Infectou uma porção de gente próxima, à esquerda e à direita do batalhão de imprensa da Casa Branca, e deixou esta revista de molho. Com entrevista marcada desde o início de março, a reportagem de IMPRENSA estava em Pittsburgh, Pensilvânia, e preparava-se para encontrá-la dali a cinco dias, em Washington DC, quando aconteceu o acontecido. Foi uma semana apreensiva até constatar-se, no 11 de junho previsto para a entrevista, que Helen Thomas se calaria. Talvez para sempre. "Ela era venerável, uma temida interrogadora de presidentes. Ouso dizer que se seus colegas a tivessem seguido na época de Bush com perguntas tão incisivas sobre [a Guerra do] Iraque, hoje os Estados Unidos e o resto do mundo não teriam problemas diplomáticos como no caso do Irã", defende Bob Garfield, apresentador do programa de rádio "On the Media", atração da National Public Radio sobre comunicação e jornalismo. "De JKF para frente, ela se tornou famosa por confrontar todos os presidentes, indistintamente", lembra o jornalista, também colaborador das revistas Washington Post Magazine e Civilization e do jornal USA Today. Helen Thomas, 89 anos, foi jornalista por seis décadas e setorista da Casa Branca por quatro. Participou da cobertura de dez presidentes e em todas essas administrações notabilizou-se por apresentar questões incômodas, cujas respostas eram consideradas sigilosas ou inconvenientes segundo os interesses do governo. A saraivada de Helen era variada. Deu a Richard Nixon (1969-1974) uma oportunidade de reconsiderar o juramento que fizera, quando garantiu à população que não sabia nada sobre o caso de espionagem no episódio de Watergate - dias mais tarde, desmascarado, o presidente renunciou. Embora Ronald Reagan (1981-1989) tentasse desviar-se do assunto, Helen cobrava negociações práticas com a União Soviética quanto ao desarmamento nuclear, em plena época do plano Guerra nas Estrelas. Não perdoou Bill Clinton (1993-2001) pelo seu envolvimento com a estagiária Monica Lewinsky. A firmeza de Helen sobre o assunto na época ainda é motivo de mal-estar entre a jornalista e a ex-primeira dama e atual secretária de Estado, Hillary Clinton. Foi a maior algoz de George W. Bush (2001-2009), a quem questionou reiteradamente sobre os motivos de se invadir o Iraque em 2003. Durante a gestão de Bush, a jornalista foi tão incômoda que chegou a ser boicotada das coletivas oficiais e passou a se dirigir somente aos porta-vozes. Readmitida durante a administração de Obama, Helen passou a incomodar o novo presidente a respeito da manutenção e ampliação da guerra no Afeganistão - que o democrata havia prometido terminar - e sobre a falta de diálogo equilibrado com o Irã. Ao longo desses 40 anos de Casa Branca, Helen foi, em muitas ocasiões, a única voz a importunar os presidentes com questões realmente sérias. O jornalismo de gabinete foi a norma padrão da maioria de seus colegas. Não raro, Helen tentava proteger a liberdade do trabalho jornalístico dentro do governo com a mesma incisividade, a despeito da indiferença de outros repórteres. Durante a administração de Clinton, seu chefe de comunicação, George Stephanopoulos, chegou a bloquear o acesso de repórteres à sala da secretaria de imprensa da presidência, departamento tradicionalmente aberto aos jornalistas, onde costumavam fazer apurações mais individuais - incompatíveis com as perguntas das coletivas. Helen encabeçou um movimento entre os colegas para reabrir o acesso, o que acabou acontecendo em poucos dias. Em julho do ano passado, Helen foi das poucas repórteres a darem suporte a Chip Reid, da CBS, ao questionar o secretário de imprensa Robert Gibbs sobre o motivo de Obama ter combinado previamente quais perguntas a correspondente do site The Huffington Post faria a ele durante uma coletiva. "Nem mesmo Nixon tentou fazer isso", afirmou Helen à época, numa entrevista à CNSNews. "Eles devem ficar fora do nosso caminho. São servidores públicos. Nós os pagamos." PARÓDIA DE SI MESMA Ao contrário do que desejava Helen, foi ela quem saiu do caminho deles. Na sexta-feira, 4 de junho, um dia após o vídeo começar a circular, postou em seu site um pedido oficial de desculpas, dizendo-se arrependida de seus comentários e reiterando sua fé numa solução pacífica para o Oriente Médio, com tolerância e respeito mútuo entre os povos. Na segunda, dia 7, apresentou seu pedido de aposentadoria ao grupo Hearst, que publica jornais como o San Francisco Chronicle e o Connecticut Post, e revistas como Esquire, Cosmopolitan e Marie Claire. Foi a terceira empresa para a qual Helen trabalhara em sua longa carreira de repórter - chegou a ser redatora num jornal de Washington após a faculdade, mas se destacou como correspondente da agência UPI, onde ficou de 1943 a 2000. Naquela mesma segunda, sua agente literária e mediadora de IMPRENSA com Helen, Diane Nine, também anunciou rompimento de contrato. A súbita aposentadoria da voz quase solitária de oposição na Casa Branca levantou uma onda de teorias conspiratórias da esquerda estadunidense. Apesar de Helen nunca ter declarado ideologia política alguma e ter sido sempre agressiva com presidentes democratas e republicanos, o noticiário mais liberal passou a enxergar no caso um golpe da direita para tirar da frente uma figura inconveniente. Improvável. Mas o fato é que se criou um gap: Quem, agora, faria tais perguntas aos presidentes? Glenn Greenwald, deduziram alguns. Ex-advogado especializado em direitos civis, colaborador do site Salon.com e autor de três livros críticos da política de Bush filho e do processo eleitoral do partido Republicano, Greenwald seria um ótimo candidato a ocupar a vaga de Helen Thomas. "Apesar de concordar com ela em muitos aspectos, não me sinto apto a ser um setorista da Casa Branca agora. Helen realmente vai deixar um vazio lá", afirmou o jornalista à IMPRENSA. Ele próprio entrevistara a repórter há três anos, por ocasião do lançamento de seu penúltimo livro, "Watchdogs of democracy?" ("Cães de guarda da democracia?", sem edição em português), obra na qual Helen expõe a falta de beligerância entre os setoristas da Casa Branca ao cobrirem a desastrosa presidência de Bush. "Ela me pareceu muito inteligente e sagaz para uma mulher de 86 anos", lembra Greenwald, desmistificando uma teoria de que a repórter falou o que falou porque estava senil. "Duvido que tenha sido por isso. Acho que era uma figura realmente incômoda para os presidentes, e isso pode ter influenciado." Garfield afirma que o ambiente em Washington era cada vez mais desconfortável para Helen. Segundo ele, a repórter vinha sendo desacreditada por colegas e até pelo trabalho. "A coluna dela não vinha sendo distribuída com o alcance de antes. Ela estava perdendo a liderança e se tornando uma peça de decoração da sala de imprensa", descreve. "Seu espaço continuava garantido porque ela era uma pioneira, uma instituição." Garfield, que acompanha diuturnamente o trabalho da imprensa estadunidense por conta do programa "On the Media", observa que o ambiente hostil pode ter motivado Helen a fazer comentários mais improdutivos: "Ela continuava fazendo as perguntas pertinentes aos presidentes e secretários, mas andava menos paciente... Helen vinha se tornando uma paródia de si mesma". MARCOS PASSADOS Além do comunicado oficial com pedido de desculpas em seu site, Helen Thomas não parecia à vontade para falar sobre o que ocorrera. Sua agente chegara a marcar a entrevista com a reportagem de IMPRENSA no restaurante Morton's, uma steakhouse de estilo clássico e sóbrio na avenida Connecticut, vizinha a uma loja da Victoria's Secret e a poucas quadras da Casa Branca. Mas a jornalista levou a aposentadoria a sério e refugiou- se entre familiares. "Uma vez que eu conheço Helen pessoalmente, acho difícil de acreditar que ela quis realmente dizer aquilo. Então acho que vai levar um tempo até ela superar o próprio comentário e o alvoroço que causou mundo afora", afirma Diane, que concordou em responder a algumas perguntas em seu lugar. "Foi uma decisão muito dolorida [romper o contrato]. Mas, se por um lado acredito em liberdade de expressão, sinto que Helen passou do ponto e eu não poderia ser associada aos comentários dela", lamenta Diane, para quem Helen não se aposentaria tão cedo se não fosse o ocorrido. (Há um ano, em entrevista à Priscila de Martini, do Zero Hora, a veterana repórter disse que nunca pretendia parar e mantinha-se ativa no jornalismo por desejar ver mais igualdade e paz no mundo.) "Acho um fim extremamente triste para uma carreira tão grande - e eu espero que as pessoas se lembrem de todas as coisas maravilhosas que ela fez como jornalista", declara Diane. Era exatamente essa a lembrança que o rabino Nesenoff tinha em mente antes de se abordar Helen no dia em que gravou o famoso vídeo. "Antes de me aproximar, eu estava pensando: 'Ela é um ícone, uma jornalista famosa, uma celebridade, uma repórter importante'. Tudo o que eu queria era dizer 'Olá!' e apresentá-la a dois jornalistas em início de carreira", conta Nesenoff, referindo-se ao filho de um amigo que o acompanhava. A ocasião era um encontro promovido pelo presidente em celebração à herança judaica, uma tradicional comemoração do mês de maio. Uma série de pessoas famosas da comunidade judia da costa leste foi convidada, bem como jornalistas. Nesenoff havia acabado de reativar seu modesto site e pretendia transformá-lo num canal de notícias em vídeo, com mensagens sobre tolerância e em defesa da causa israelense. Começou a perguntar para vários presentes o que pensavam a respeito de Israel - o ataque à flotilha humanitária próxima à Faixa de Gaza ainda não havia acontecido. Antes de repetir a mesma questão a Helen, pediu a ela que desse um conselho aos jovens, aos quais recomendou, de forma simpática, que fossem à luta. Sem alterar o tom de voz, seguiuse o diálogo com Nesenoff relatado anteriormente. PONTO DE EXCLAMAÇÃO Após a publicação na internet, a repercussão foi vasta e imediata. Todo mundo comentou: do radialista conservador Rush Limbaugh ao político verde Ralph Nader; do anárquico "rei da mídia" Howard Stern ao humorista liberal Jon Stewart; do intransigente Bill O'Reilly da Fox News ao media watcher do New York Times, David Carr. Até o presidente Obama se manifestou. A declaração de Helen dividiu a pauta, pelo menos naquela segunda-feira, com o incontrolável vazamento de petróleo da BP no Golfo do México. A maioria condenando a jornalista. Alguns, como Greenwald, defendendo-a do que considerava uma "onda de hipocrisia": "Ela entendeu que fez um comentário extremo e deveria ter resguardado sua opinião, mas foi sincera e deveria ter sido compreendida por isso. A relação histórica dos EUA com Israel é tão forte e emblemática que ela poderia ter feito um comentário tão crítico contra o próprio EUA que não teria causado tanta repercusão". Nesenoff discorda, e sustenta que, da forma como disse, Helen - que tem ascendência libanesa - pareceu ter pensamento consonante com o de extremistas do Hizbollah e do Hamas, que não reconhecem a existência do Estado de Israel. "Se ela não tivesse dito 'hell', ela ainda estaria trabalhando", especula o rabino, referindo-se à palavra "inferno", que consta na expressão original mas não encontra contexto literal em português. "Eu acho que ao ter usado essa palavra, ela deixou claro que tinha uma espécie de sentimento vil. E soou ofensivo, machucou. Foi como um ponto de exclamação." Poderia ter sido um simples ponto final. Ou talvez uma reticência... O fato é que Helen Thomas saiu do jornalismo de forma sensacionalista. Antes desse desfecho, a veterana repórter construiu um legado inspirador, que deveria ajudar a ocupar tão logo quanto possível sua cadeira na sala de imprensa da Casa Branca. Além das perguntas incisivas, Helen conhecia como ninguém os trâmites e as histórias do Salão Oval, e deixou muitas delas registradas nos seis livros que escreveu. No mais recente, "Listen up, Mr. President" ("Escute, Sr. Presidente", sem edição em português), conta um caso bastante ilustrativo envolvendo o ex-presidente Jimmy Carter (1977-1981). Pouco depois de deixar o Executivo, recebeu a visita de um dos repórteres que costumava cobrir sua administração na presidência. Carter tinha acabado de ganhar um computador e estava se exibindo com o briquedo novo. Entre piadas, digitou o nome do repórter e apertou o botão "delete" - em tempos de máquina de escrever, uma simples edição como essa era revolucionária. Disse ao jornalista: "Viu? Eu posso te apagar". "Ah, se isso fosse assim tão fácil, Sr. Presidente", finaliza, no capítulo, a autora. Realmente. No próprio caso de Helen Thomas, levaram 60 anos para apagá-la.